Criar um Site Grátis Fantástico
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


The Edge of Always
The Edge of Always

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

21

21 DE JANEIRO — meu vigésimo sexto aniversário

Estou tendo um sonho legal no qual salto de paraquedas (por algum motivo bizarro, com o ator Christopher Lee) e o céu está tão azul quanto... bem, quanto o céu. Christopher Lee, usando óculos de mergulho vermelhos, faz um sinal de positivo antes que o vento o arrebate para o éter azul. Então, de repente, meu coração para, e eu inspiro uma golfada de ar gelado. Meus olhos se abrem para a realidade. Meu corpo salta da cama tão rápido que abro o braço para o lado e bato no abajur parafusado na parede.

— Pu-ta-que-pariu! — eu grito.

Levo um segundo para entender o que aconteceu. Enquanto vejo Camryn no pé da cama ainda segurando um balde de gelo, jogo freneticamente os lençóis gelados e encharcados para o lado e tento recuperar o fôlego.

Camryn gargalha como uma bruxa.

— Feliz aniversário, amor! Levanta!

Acho que mereci isso, depois do que fiz com ela na manhã do seu aniversário, mês passado. Mas essa cretina maquiavélica me pegou de jeito, muito mais pesado do que fiz com ela. Acho que a vingança é sempre pior mesmo.

Incapaz de parar de sorrir, entro no clima e levanto lentamente minha bunda pelada da cama. Ela já está fazendo aquela cara de oh-oh quando começa a se afastar de mim e ir para a porta. Sabendo que essa é a sua única saída, eu a vigio enquanto ela estuda a situação.

— Sinto muito! — ela diz com um sorriso apavorado, com a mão para trás, tateando na direção da porta.

— Hã-hã, eu sei que você sente, amor.

Ando bem lentamente na direção dela, espreitando-a com os olhos semicerrados, como se eu fosse um predador brincando com sua presa.

Ela dá uma risada de bruxa de novo.

— Andrew! Nem pensa nisso! — Ela está a meio metro da porta, agora. Mas eu ajo com calma, deixando-a pensar que vai conseguir chegar até lá, meu sorriso aumentando até que sei que já devo estar parecendo um maníaco sádico.

De repente, Camryn grita, incapaz de se controlar mais, e corre para a porta, escancarando-a.

— Nãão! Por favor! — ela grita e ri ao mesmo tempo enquanto a porta se abre, batendo na parede com estrondo. Ela dispara pelo corredor.

Quando começo a persegui-la, sua expressão chocada e o modo hilariante como ela chega a parar dão a entender que ela não esperava que eu saísse do quarto sem roupa.

— Ai meu Deus! Andrew, não! — ela grita, enquanto volta a correr a toda velocidade pelo corredor iluminado.

Eu continuo atrás dela, com meus documentos balançando ao vento. Essa garota ainda precisa aprender muito se achou mesmo que eu ia ficar com vergonha de correr atrás dela, de bunda de fora e com o pinto encolhido pelo frio. Eu não tô nem aí. Ela vai se arrepender daquele banho de gelo.

Passamos pelo quarto 321 no exato momento em que um casal de velhinhos está saindo. O homem puxa sua esposa de olhos arregalados para dentro quando o doido pelado passa ventando.

— Meu Deus do céu... — ouço uma voz distante dizendo atrás de mim.

Finalmente, quando Camryn chega ao final do imenso corredor, ela para e me encara, encurvada, com as duas mãos à sua frente como se fossem um escudo. Lágrimas escorrem de seus olhos de tanto rir.

— Eu desisto! Eu desisto! Ai meu Deus, você tá pelado! — Ela não consegue parar de rir. Rio também quando a ouço fungar com força.

— Agora você me paga — eu digo, agarrando-a e jogando-a sobre o ombro.

Ela nem tenta espernear, gritar e agitar os braços, dessa vez. Primeiro porque ela não consegue parar de rir o suficiente para controlar seu corpo a esse ponto. E, segundo, porque ela sabe que não adianta. Só espero que ela não mije em cima de mim.

Eu a carrego pelo corredor todo até nosso quarto, e quando chegamos ao quarto 321, digo:

— Desculpem por ter feito vocês verem isso. Tenham um bom-dia — acenando enquanto passo. O casal fica só olhando, o marido balançando a cabeça para mim, com uma expressão revoltada.

Fecho a porta atrás de nós e jogo Camryn na cama, sobre os cubos de gelo e a água gelada. Ela ainda está rindo.

Fico de pé no meio das pernas dela e tiro seu short e sua calcinha ao mesmo tempo, olhando para ela, sem dizer uma palavra. Fico de pau duro em segundos. Seu humor brincalhão muda instantaneamente e ela morde o lábio inferior, olhando para mim com aqueles olhos azuis docemente sedutores que sempre despertam algo primal em mim.

Sem nenhum aviso, eu me deito por cima dela e enfio tudo.

— Você sente muito mesmo? — sussurro, tirando e pondo nela devagar. Meu peito apertado sobre o dela, nossas tatuagens se tocando, Orfeu e Eurídice se juntando novamente enquanto eu e ela nos tornamos um só.

— Sim... — ela diz, as palavras tremulando de seus lábios.

Meto nela um pouco mais fundo, empurrando uma de suas coxas para cima com a mão.

Suas pálpebras ficam mais pesadas e ela joga a cabeça para trás.

Eu esmago minha boca sobre a dela, e seus gemidos reverberam na minha garganta quando começo a meter com mais força.

Então algo dentro de mim fica sombrio, predador. Me ajoelho na cama e agarro suas duas coxas, cravando os dedos em sua carne e arrastando-a pelo colchão para perto de mim tão rápido que ela nem consegue começar a se mexer. Agarrando seus braços, eu a viro de costas, seguro seus pulsos atrás das costas e a forço a ficar de joelhos. Com a outra mão, toco o contorno macio de sua bunda empinada diante de mim, apertando bem cada nádega antes de bater nelas com tanta força que seu corpo se retorce para a frente. Ela choraminga. Então aperto sua nuca com a mão, empurrando com força o rosto de lado contra o colchão. Sinto o calor emanando de sua pele no lugar onde minha mão já deixou marcas vermelhas.

Ela choraminga de novo e eu torço e aperto mais seus pulsos. Com a outra mão, enfio dois dedos em sua boca e puxo sua bochecha, enquanto enfio meu pau nela por trás.

Ela chora um pouco, com as coxas começando a tremer, mas eu não paro. Sei que na verdade ela não quer que eu pare.

Depois que eu gozo e meu coração volta a bater mais devagar, puxo seu corpo nu para perto do meu, sua cabeça suada aninhada na minha axila. Ela beija meu peito e faz dois dedos andarem pelo meu braço até minha boca. Eu pego sua mão e beijo os dedos.

— Que bom que você voltou ao normal — ela diz baixinho.

— Eu voltei ao normal? — pergunto, e ela levanta a cabeça para me olhar nos olhos. — Eu não tava normal?

— Não, antes não.

— Quando eu não tava normal? — Estou verdadeiramente confuso, mas acho adorável sua timidez ao me explicar o que quis dizer.

— Depois que a gente perdeu Lily — ela diz, e o sorriso brincalhão que estava se abrindo em meus lábios desaparece. — Não te culpo por isso, mas depois de Lily, você me tratava como uma boneca de porcelana, com medo de me quebrar se fosse bruto demais comigo.

Eu a aperto mais com meu braço e sua bochecha volta a encostar no meu peito.

— Bom, eu não queria te machucar — digo, passando meu polegar em seu braço. — Ainda sinto isso às vezes.

— Então não sinta — ela sussurra, beijando meu peito de novo. — Nunca se segure comigo, Andrew. Quero que você seja sempre você mesmo.

Eu sorrio e aperto seu braço mais uma vez.

— Sabe que tá me dando permissão pra te atacar sempre que eu quiser, certo?

— Sei, tenho plena consciência disso — ela diz, e ouço um sorriso como o meu em sua voz.

Eu beijo o alto de sua cabeça e a puxo para cima de mim.

— Feliz aniversário — ela diz novamente, e enfia a língua na minha boca.

~~~

Graças a Deus existe a Flórida no inverno. Depois da minha muito surpreendente — e prazerosa, devo acrescentar — manhã de aniversário, Camryn e eu passamos o dia ensaiando nossa nova canção. Bem, não é tecnicamente nossa, mas pra misturar um pouco as coisas, adotamos o hit sensacional de Stevie Nicks, “Edge of Seventeen”. Camryn está ficando frustrada com o modo como os versos se seguem tão rapidamente, mas está determinada a conseguir cantá-la. É a canção dela, aquela que ela quer cantar sozinha. É um passo importante para ela, porque nós sempre cantamos juntos.

E eu a admiro por isso.

Ela parece muito frustrada, mas por trás disso, tudo o que vejo é a minha Camryn voltando para mim cada dia mais. Sua alma está mais leve, a luz em seus olhos, mais brilhante, e cada vez que ela sorri, me lembro do dia em que nos conhecemos.

— Você consegue — asseguro, sentado na sacada da janela, com o meu violão encostado no peito. — Não faz tanto esforço, amor, só toma posse dela.

Ela suspira e joga a cabeça para trás, desabando na cadeira da mesinha redonda ao meu lado.

— Eu sei a letra toda, mas sempre me atrapalho naquelas últimas estrofes. Não sei por quê.

— Acabei de te falar. Você tá pensando demais, porque começa a cantar já esperando se atrapalhar quando chegar nessa parte. Não pensa. Agora tenta de novo.

Ela suspira profundamente de novo, nervosa, e fica de pé.

Ensaiamos por mais uma hora antes de ir à churrascaria mais próxima para um almoço tardio.

— Você vai conseguir. Não se preocupe — insisto, enquanto a garçonete traz nossos bifes.

— Eu sei. Mas é que é frustrante. — Ela começa a cortar o bife, com a faca numa mão e o garfo na outra.

— Demorei um pouco pra aprender “Laugh, I Nearly Died” — conto, enfiando um pedação de bife na boca com o garfo. Mastigo um pouco e então continuo, ainda de boca cheia: — De qualquer jeito, a próxima canção que quero aprender é “Ain’t No Sunshine”, do Bill Withers. Sempre quis aprender essa, e acho que tá na hora de aposentar os Stones.

Ela parece surpresa. Aponta o garfo para mim, engole e diz:

— Oooh! Ótima escolha!

— Você conhece essa? — Também estou um pouco surpreso, considerando que ela não gostava tanto de rock clássico ou blues quando nos conhecemos.

Ela balança a cabeça e come um pouco de purê.

— Adoro essa canção. Ela tava numa playlist que meu pai gostava de ouvir quando viajava a negócios. Esse Withers é danado pra cantar.

Eu dou uma gargalhada.

— Qual é a graça? — ela pergunta, me olhando com ar confuso.

— Você falou de um jeito tão country, agora. — Eu tomo um gole de cerveja e rio um pouco mais, balançando a cabeça.

— O quê? Tá dizendo que eu falei que nem caipira? — Seus olhos estão arregalados, mas seu sorriso não poderia ser mais óbvio.

— Tá mais pra uma roceira, na verdade. Esse Withers é danado pra cantar! Eeeiita ferro! — Eu a arremedo, jogando a cabeça para trás.

Ela ri comigo, se esforçando ao máximo para esconder o rubor do rosto.

— Bom, nisso eu concordo contigo — ela admite, tomando um gole de sua cerveja. Ela põe o copo na mesa e acrescenta, estreitando os olhos: — Com a escolha da canção, não com a coisa da roceira.

— Claro — digo com um sorriso, terminando meu bife.

O primeiro bife que comemos juntos foi como ela prometeu, alguns dias depois que saí do hospital após a cirurgia. E como naquele dia e toda vez que comemos carne juntos, ela só consegue comer metade. Melhor, sobra mais pra mim. Quando vejo que ela dá sinais de estar tão empanturrada que vai vomitar, estico o braço e puxo o prato dela para o meu lado.

Ela fica olhando para o celular, e então começa a responder uma mensagem de texto.

— Natalie tá pedindo pra você voltar de novo?

— Sim, ela é incansável. — Ela recoloca o celular na bolsa.

Camryn mente mal à beça. Muito mal. Não conseguiria mentir nem para salvar a própria vida, e no momento, o modo como ela fica olhando a parede de madeira rústica mostra que com certeza está mentindo. Eu palito os dentes e a estudo.

— Podemos ir? — pergunto.

Ela sorri para mim, sem graça, obviamente escondendo algo, e então percebo que a tela do seu celular se ilumina dentro da bolsa. Ela olha a mensagem de texto e de repente fica mais ansiosa para sair. Seu sorriso aumenta e ela se levanta rapidamente.

— Peraí, preciso pagar. — Aceno para a garçonete, e Camryn se senta de novo, impaciente. — Por que tá com tanta pressa assim de repente? — eu a provoco, enquanto a garçonete deixa a conta sobre a mesa, mas antes que ela vá embora, tiro o cartão de crédito da carteira.

— Por nada — Camryn desconversa.

Eu apenas sorrio.

— Tá — digo, e me encosto na cadeira, me espreguiçando e relaxando o corpo. É uma farsa. Quanto mais pareço relaxado, mais ela fica impaciente.

Minutos depois, a garçonete volta com meu cartão de crédito e o recibo. Eu anoto a gorjeta dela no recibo do restaurante e muito lentamente me levanto, visto o casaco, me espreguiço erguendo os braços bem alto, finjo bocejar...

— Porra, dá pra andar logo!

Sabia que ela não ia aguentar muito tempo. Rio, pego sua mão e saímos do restaurante.

Quando chegamos ao hotel, Camryn para no saguão.

— Pode subir. Eu subo daqui a pouco.

É óbvio que ela está armando alguma coisa, mas como é meu aniversário, entro no jogo dela, lhe dou um beijo no rosto e tomo o elevador. Mas assim que entro no quarto, sou eu que começo a ficar impaciente.

Não preciso esperar muito até que ela entra no quarto, segurando uma guitarra nova.

Eu fico de pé assim que a vejo.

— Uau...

Seu sorriso é doce e meigo, até envergonhado. Como se uma pequena parte dela tivesse medo de que eu não vá gostar.

Ando direto até ela.

— Feliz aniversário, Andrew — ela diz, me entregando a guitarra.

Coloco uma mão no braço, a outra no corpo e admiro a guitarra com um sorriso imenso. Fininha. Linda. Perfeita. Virando-a para ver a parte de trás, noto uma escrita prateada em cursivo no braço que diz:

Ele arrancou lágrimas de ferro de Plutão

e fez o inferno dar o que buscava o coração.

Um verso de uma das várias versões da história de Orfeu e Eurídice. Eu estou sinceramente sem palavras.

— Você gostou?

Eu olho para ela.

— Eu adorei. É perfeita.

Ela desvia o olhar, corando um pouco.

— Bom, eu não entendo nada de guitarras. Espero que não seja uma marca vagabunda nem nada disso. O cara da loja de instrumentos musicais me ajudou a escolher. Aí precisei esperar alguns dias pra fazer a inscrição, que eu achei que nem ia dar certo porque teve primeiro um problema, depois outro, e...

— Camryn — digo, interrompendo sua tagarelice nervosa. — Nunca recebi um presente de aniversário melhor na minha vida. — Atravesso o espaço entre nós e beijo suavemente seus lábios.


Camryn


22

ALGUM LUGAR DA Interstate 75 — maio

Estamos na estrada há meses. Lá por março já tínhamos nos acostumado tanto a ir de um hotel para o outro que isso se tornou natural. Um quarto diferente a cada semana, uma cidade diferente, uma praia diferente, tudo diferente. Mas por mais que tudo seja diferente, cada vez que entramos, é como se estivéssemos passando pela porta de uma casa onde moramos há anos. Eu jamais teria imaginado que chamaria um quarto de hotel de “casa”, ou que seria tão fácil se acostumar à vida na estrada como foi para nós. Às vezes é difícil, mas tudo é uma experiência, e eu não mudaria nada.

Mas fico me perguntando se o longo inverno não me afetou. Isso porque já me peguei sonhando acordada com morar numa casa em algum lugar, levando uma vida caseira com Andrew.

É, tenho certeza de que foi só o inverno.

São duas da manhã, e nosso carro quebrou em algum lugar do sudoeste da Flórida, num longo trecho de estrada deserta. E está caindo um dilúvio. Chuva aos baldes. Pedimos um guincho há uma hora, mas por algum motivo ele ainda não chegou.

— Tem um guarda-chuva no carro? — pergunto por cima do estrondo da chuva no teto. — Eu posso segurar enquanto você conserta o motor!

— Tá um breu lá fora, Camryn — ele responde, gritando tanto quanto eu. — Mesmo com uma lanterna, duvido que eu fosse conseguir. Pra começar, precisaria descobrir qual é o defeito.

Eu afundo mais no banco da frente e apoio os pés no painel, com os joelhos dobrados junto ao corpo.

— Pelo menos não tá frio — comento.

— A gente vai se virar por aqui esta noite — ele declara. — Não vai ser a primeira vez que dormimos no carro. Talvez o guincho chegue antes de amanhecer, e se não chegar, eu conserto o carro quando estiver conseguindo enxergar.

Ficamos em silêncio por um momento, ouvindo a chuva batendo no carro, os trovões ecoando como ondas através das nuvens. Finalmente, ficamos tão cansados que vamos para o banco de trás, nos encolhemos nele juntos e tentamos dormir. Depois de um tempo, quando fica claro que ambos estamos desconfortáveis e o espaço não é suficiente para nós dois, Andrew passa para o banco da frente. Mesmo assim, não conseguimos pegar no sono. Eu o ouço se revirando por algum tempo, e então ele pergunta:

— Onde você se vê nos próximos dez anos?

— Não tenho certeza — respondo, olhando para o teto do carro. — Mas o que sei é que o que eu fizer, quero fazer junto com você.

— Eu também — ele diz do banco da frente, deitado como eu estou, agora, de costas, olhando para cima.

— Você pensou em alguma coisa específica? — pergunto, imaginando aonde ele quer chegar com isso. Troco o braço esquerdo pelo direito, enfiando-o embaixo da cabeça.

— Pensei. Quero morar num lugar quente e sossegado. Às vezes imagino você na praia, descalça na areia, com a brisa soprando seu cabelo. Eu tô sentado embaixo de uma árvore não muito longe, dedilhando minha guitarra...

— Aquela que eu te comprei?

— Claro.

Eu sorrio e continuo escutando, imaginando a cena.

— E você tá segurando a mão dela.

— A mão de quem?

Andrew fica em silêncio por um momento.

— Da nossa menina — ele diz num tom distante, como se sua mente estivesse indo um pouco mais longe do que a minha.

Eu engulo em seco e sinto um nó se formando na minha garganta.

— Gosto dessa imagem — digo. — Então você quer parar de viajar?

— Um dia. Mas só quando a gente sentir que é certo. Nem um dia antes.

Uma lufada de vento atinge a lateral do carro, e um trovão alto faz o chão tremer.

— Andrew? — pergunto.

— Sim?

— Número três, pra acrescentar à nossa lista de promessas. Se a gente chegar à velhice, ficar com dor nos ossos e não puder dormir na mesma cama, me promete que nunca vamos dormir em quartos separados.

— Tá prometido — ele responde, com um sorriso na voz.

— Boa noite — eu digo.

— Boa noite.

E quando pego no sono, minutos depois, sonho com aquela praia quente e Andrew me olhando andar pela areia, com uma mãozinha segurando a minha.

~~~

O guincho não veio. Acordamos na manhã seguinte, entrevados e doloridos, mesmo tendo um banco para cada um.

— Vou encher aquele cara do guincho de porrada, se ele aparecer — Andrew rosna debaixo do capô.

Ele está ocupado usando uma chave inglesa... não vou nem fingir que sei o que é aquilo. Ele está consertando o carro. Isso é tudo o que sei. E está de péssimo humor. Eu só fico por perto para ajudá-lo quando ele precisa de algo, e evito dar uma de loura burra, perguntando o que é essa rebimboca ou pra que serve aquela parafuseta. A verdade é que não me importa. Além disso, só ia deixá-lo mais estressado ter que explicar.

Mas o sol apareceu. E está quente! Até parece que eu morri e fui pro céu!

Fico saltitando nas poças de chuva da noite passada, encharcando meus chinelos de dedo. Não sei o que deu em mim, além da simples mudança de clima, mas levanto os braços acima da cabeça e olho para o céu, rodopiando sem parar no meio da estrada.

— Quer fazer o favor de me ajudar? — Andrew resmunga.

Saltito para perto dele e dou um beliscão de brincadeira na sua bunda, porque estou de ótimo humor e não consigo evitar. Mas então, bang, Andrew leva um susto com o beliscão e bate a cabeça na parte de baixo do capô. Eu me encolho e ponho a mão na boca.

— Poxa, amor! Desculpa! — Estendo a mão para Andrew, puto da vida, revirando aqueles olhos verdes, mas então ele os fecha, enche as bochechas de ar e bufa devagar.

Agarro a cabeça dele, esfrego e beijo o seu nariz. Não consigo parar de sorrir, mas não estou rindo dele, só tentando fazer cara de gatinho do Shrek.

— Tá desculpada — ele diz, apontando para o motor. — Preciso que você segure esta peça aqui um momento.

Eu vou para o outro lado, olho debaixo do capô e enfio a mão no lugar, guiada pelos seus dedos.

— Isso, aí mesmo — ele diz. — Agora segura.

— Por quanto tempo?

— Até eu mandar soltar — ele responde, e vejo o sorriso começando a se formar no canto de sua boca. — Se você soltar, o cárter vai cair e a gente vai ficar parado aqui um tempão.

— Tá, então vai logo — digo, já sentindo um mau jeito começando a se formar no meu pescoço.

Ele vai até o porta-malas e pega uma garrafa d’água. Lentamente, abre a tampa. Toma um gole. Olha para a paisagem. Toma mais um gole.

— Andrew, você tá me zoando? — Eu olho de baixo do capô levantado, tentando vê-lo o melhor que posso.

Ele apenas sorri. E toma mais um gole.

Cacete, ele tá me zoando! Eu acho...

— Não solta. É sério.

— Besteira — eu insisto e começo a mover os dedos, mas decido não soltar. — Você tá dizendo a verdade? Sério mesmo?

— Claro que tô. O cárter vai cair e ainda é capaz de te molhar inteira de óleo de motor. É difícil pra cacete limpar aquela porra da pele.

— Minhas costas estão começando a doer — reclamo.

Ele demora uma eternidade, e quando estou a ponto de soltar, ele vem por trás de mim e me segura pela cintura, me tirando de perto do motor. Com uma mão, ele passa uma meleca preta na minha bochecha. Eu grito e dou um empurrão nele.

— Eca! Puta que pariu, Andrew! E se eu não conseguir limpar essa droga? — Estou realmente fula da vida, mas uma pequena parte de mim não resiste ao sorriso dele.

— Dá pra limpar, sim — ele diz, voltando para baixo do capô. — Agora entra no carro e liga a ignição quando eu mandar.

Rosno para ele antes de fazer o que ele pede, e rapidinho o Chevelle está funcionando de novo e estamos a caminho de St. Petersburg, a apenas uma hora dali.

Hoje parece um dia de verão, e queremos que não acabe nunca. Depois de arranjar um quarto de hotel e tomar um banho tão necessário, vamos para a loja de departamentos mais próxima, comprar um calção de banho para ele e um biquíni para mim, para irmos à praia nadar.

Ele insiste para que eu leve um biquíni preto minúsculo com estrelinhas prateadas, mas não é ele que vai ter que ficar puxando aquele fio dental de dentro do meu rabo a cada cinco segundos. Por isso compro um vermelho, bonitinho, que cobre um pouco mais.

— Acho que foi melhor você ter levado esse mesmo — ele diz quando entramos no carro no estacionamento da loja.

— Por quê? — pergunto, sorrindo e tirando os chinelos.

— Porque eu ia ter que quebrar a cara de uns sujeitos. — Ele dá ré e saímos do estacionamento.

— Só por olharem pra mim? — pergunto rindo, um pouco incrédula.

Ele inclina a cabeça para o lado e olha para mim.

— Não, acho que não. Na verdade, acho excitante quando outros caras olham pra você.

— Eca! — franzo o nariz.

— Não desse jeito! — ele diz. — Caramba! — Balança a cabeça, como que para dizer INacreditável, e ganhamos a rua, que está cheia de carros de turistas. — É que me sinto bem, sabe, quando tô com você. Isso faz maravilhas pelo ego de um cara.

— Ah, então sou só um troféu pra você? — Cruzo os braços e sorrio para ele.

— É, amor, só tô com você por isso. Achei que você já tivesse percebido.

— Tá, então acho que não é segredo que eu tô com você pelo mesmo motivo.

— Ah, é? — ele pergunta, me olhando de soslaio antes de voltar a prestar atenção na estrada à sua frente.

— É — eu confirmo, apoiando a cabeça no encosto. — Só tô com você pra fazer inveja na mulherada. Mas à noite, fico sonhando com o amor da minha vida.

— E quem seria ele?

Estufo os lábios e olho ao meu redor, depois para ele, com ar brincalhão.

— Bom, não vou dizer o nome dele, porque não quero que você tire satisfação com ele e leve porrada. Mas posso dizer que ele tem cabelo castanho, olhos verdes lindos e umas tatuagens. Ah, e ele é músico.

— É mesmo? Bom, pelo visto ele é demais, então por que me usar como troféu?

Eu dou de ombros, porque não consigo pensar numa boa resposta.

— Vai, pode me contar — ele insiste. — Eu nem conheço esse cara mesmo.

— Desculpa — digo olhando-o —, mas não falo dele pelas costas.

— Tudo bem — ele diz sorrindo. — Quer saber?

— O quê?

Andrew sorri maldosamente, e eu não gosto nem um pouco.

— Eu me lembro de umas coisinhas da nossa primeira viagem que você não chegou a fazer.

Oh-oh...

— Nem faço ideia do que você tá falando — eu minto.

Ele tira a mão direita do volante e a apoia na perna. Aquele seu olhar de desafio está ganhando força, e eu tento não tornar meu crescente nervosismo óbvio demais.

— É, acho que você me deve uma bunda de fora na janelinha, e ainda não testemunhei você comendo um bicho. O que prefere? Um gafanhoto? Um grilo? Uma minhoca? Ou talvez uma aranha tremedeira. Será que tem aranhas tremedeiras aqui na Flórida?

Eu fico toda arrepiada.

— Desiste, Andrew — digo, balançando a cabeça. Eu apoio o pé na porta e enrolo minha trança nos dedos, tentando disfarçar a preocupação. — Não vou fazer isso. Além do mais, isso foi na primeira viagem, e você não pode transferir coisas daquela viagem pra essa. Devia ter me obrigado a fazer quando teve chance.

Andrew continua sorrindo, como o merdinha malicioso que ele é.

— Não — digo de novo, bem séria.

Eu olho para ele.

— Não! — repito uma última vez, e ele fica rindo.

— Tudo bem — ele diz, voltando a segurar o volante com as duas mãos. — Mas valeu a tentativa. Não pode me culpar por tentar.

— Acho que não.

Andrew

Passamos o dia inteiro nadando e tomando sol na praia. Vemos o sol se pôr no horizonte e finalmente as estrelas, quando elas ganham vida na escuridão. Uma hora depois que escurece, encontramos um grupo de pessoas da nossa idade. Eles estavam na praia perto de nós havia algum tempo, curtindo.

— Vocês são daqui? — o cara alto com o braço direito cheio de tatuagens pergunta.

Um dos casais se senta na areia perto de nós. Camryn, sentada no meio das minhas pernas, endireita o corpo e presta atenção.

— Não, a gente é de Galveston — respondo.

— E Raleigh — Camryn completa.

— A gente é de Indiana — diz a garota de cabelo preto, se sentando. Ela aponta para os outros, que ainda estão de pé. — Mas eles moram aqui.

Um dos outros caras abraça a namorada.

— Eu sou Tate, esta é Jen — ele aponta para a namorada, depois para os outros de pé ali perto. — Johanna. Grace. E aquele é meu irmão, Caleb.

Os três acenam e sorriem para nós.

— Eu sou Bray — a garota de cabelo preto perto de Camryn diz. — E este é o meu noivo, Elias.

Camryn se endireita mais e espana a areia das mãos, esfregando-as.

— Prazer — ela responde. — Eu me chamo Camryn e este é meu noivo, Andrew.

Elias aperta a minha mão.

Tate, o cara tatuado, diz:

— A gente tá indo pra um lugar reservado, numa praia a meia hora daqui. É ótimo pra uma balada. Bem isolado. Se vocês quiserem, podem ir com a gente.

Camryn vira um pouco o corpo para olhar para mim. Nós dois conversamos com os olhos por um momento. De início, eu não estava com muita vontade de ir, mas ela parece querer muito. Fico de pé e a ajudo a levantar.

Eu me viro para Tate.

— Tá. A gente segue vocês.

— Show de bola — ele diz.

Camryn e eu pegamos nossas toalhas e a sacola que trouxemos com carne-seca, água mineral e filtro solar, e seguimos Tate e seus amigos da praia até o estacionamento.

E agora estamos de novo no carro e podemos ser espontâneos. Não estou muito tranquilo com essa porra, porque faz muito tempo que não saio com ninguém além de Camryn, mas eles parecem bastante inofensivos.

A tal viagem de meia hora acaba levando uns 45 minutos.

— Agora não faço mais ideia de onde a gente tá.

Pegamos uma estrada escura depois de sair da rodovia principal há no mínimo vinte minutos, o Jeep Sahara deles queimando o chão na nossa frente a 120 por hora. Consigo acompanhar o ritmo sem problemas, mas não costumo correr tanto em território desconhecido à noite, quando não dá pra avistar de longe a polícia escondida nas laterais da estrada. Se eu for multado a culpa é minha, mas posso encher o tal Tate de porrada mesmo assim, só por uma questão de princípio.

— Pelo menos a gente tá com o tanque cheio — ela diz. Depois ri, estica o pé para fora da janela e continua: — Vai ver que eles estão planejando ir pra uma cabana sinistra no meio do mato e matar a gente lá.

— Ei, eu também pensei nisso — digo, rindo junto com ela.

— Bom, eu confio em você pra me proteger — ela brinca. — Não deixa nenhum deles fazer picadinho de mim, nem me obrigar a ver Honey Boo Boo.

— Pode deixar. O que me lembra do número quatro na nossa lista de promessas: se um dia eu me perder ou desaparecer, prometa que não vai parar de me procurar exatamente por 365 dias. No dia 366, aceite que se eu estivesse vivo, já teria dado um jeito de voltar pra você, e que portanto tô morto faz tempo. Quero que você siga com sua vida.

Ela se ergue do banco, puxando o pé para dentro do carro.

— Não gostei disso. Tem gente que desaparece e é encontrada anos depois, viva e saudável.

— É, mas não é o meu caso. Pode acreditar, se passar um ano, eu morri.

— Tá, tudo bem — ela diz, afastando o cinto de segurança e chegando perto de mim. Ela encosta a cabeça no meu ombro. — Só se você topar fazer o mesmo por mim. Um ano. Nem um dia a mais.

— Prometo — eu digo, mas é uma mentira deslavada. Eu continuaria procurando por ela até morrer.


Camryn


23

NÃO TEM PROBLEMA mentir sobre algumas coisas. Essa “promessa” é uma delas. De jeito nenhum eu conseguiria parar de procurá-lo depois de um ano. Na verdade, jamais iria parar de procurar. Esse pacto cheio de promessas que juramos manter é importante para nós dois, mas acho que pra certas coisas, vou ter que concordar abertamente e depois fazer o que eu quiser, caso aconteçam.

Além disso, tenho a impressão de que ele também está mentindo.

Andrew não sabe, mas vi aquela garota de cabelo preto, Bray, algumas horas antes, nos banheiros perto da praia. Ela acabou entrando na minha cabine depois de mim. Não chegamos a conversar, só nos cruzamos com um sorriso amigável e mais nada. Acho que foi isso que a motivou a fazer seus amigos nos convidarem para a balada.

Acho que vai ser divertido. Andrew e eu passamos 100% do nosso tempo sozinhos um com o outro, e imagino que seja bom para os dois sair um pouco do casulo e socializar mais com outras pessoas. E ele não levantou nenhuma objeção, então acho que ele também supõe que não vai fazer mal nenhum.

A viagem pro tal lugar “reservado” parece levar uma hora.

O jipe deles vira à esquerda numa estrada parcialmente pavimentada e, quanto mais avançamos, mais o asfalto fica esburacado. Os faróis do carro deles se agitam na escuridão diante de nós, até que a estrada arborizada se abre numa grande clareira de areia e pedras. Andrew para ao lado deles e desliga o motor.

— Bom, é isolado mesmo — eu comento ao sair do carro.

Andrew chega perto de mim, olhando para a praia deserta. Ele segura a minha mão.

— A gente pode voltar agora, ainda dá tempo — ele me provoca. — Depois que nos tirarem de perto do carro, pode ser a última vez que vamos nos ver. — Ele aperta a minha mão e me puxa mais para perto, brincando.

— Acho que vamos sobreviver — decido, quando o último do grupo sai do jipe e nos encontra atrás dos carros.

Tate abre a porta de trás do jipe, tira um isopor gigante e o joga na areia.

— Tá cheio de cerveja aqui — ele diz, erguendo a tampa e mexendo dentro.

Ele joga uma garrafa de Corona para Andrew. Não é sua favorita, eu sei, mas ele também não chega a recusar.

Bray e o noivo, nem lembro mais o nome dele, se aproximam de mim, enquanto Tate destampa outra garrafa de Corona e me entrega.

Eu aceito.

— Obrigada.

Andrew abre a tampa da sua com o abridor de garrafas do chaveiro.

— Se vocês têm um cobertor, é bom trazer — Tate diz. Sua namorada se junta a ele, sorrindo para mim ao passar entre nós com seu biquíni branco minúsculo. — E tenho um som da porra no carro — ele acrescenta, dando tapinhas no jipe —, então música também não vai ser problema.

Andrew abre o porta-malas e pega o cobertor que sempre leva no carro, o mesmo que usamos na noite em que tentamos dormir naquele campo julho passado. Só que agora, graças a mim, ele foi lavado e não está fedendo a óleo e fumaça de carro.

— Cadê meu short? — pergunto, remexendo no banco de trás.

— Aqui — Andrew diz do porta-malas. Quando saio do carro, ele joga o short para mim e eu o apanho no ar.

— Não pretendo nadar nesse abismo à noite — digo, vestindo o short por cima do meu biquíni vermelho.

Ouvindo o que eu falei, Bray diz:

— Ainda bem que não sou só eu!

Sorrio para ela por cima do teto do Chevelle e fecho a porta.

— Você já veio aqui com eles?

Tate e os outros estão indo para a praia agora, carregando o isopor, sacolas de praia e outros objetos. Eles deixam as portas do jipe abertas, com os alto-falantes despejando rock no último volume.

— A gente veio ontem — Bray conta —, mas Elias logo ficou bêbado e começou a pôr os bofes pra fora, por isso eu tive que voltar dirigindo pro hotel bem cedo.

Elias, isso, esse é o nome do noivo dela. Ele balança a cabeça e lança um olhar sarcástico de obrigado-por-contar-pra-todo-mundo para ela.

Andrew e eu andamos ao lado de Bray e Elias, de mãos dadas, até onde todos já estão acampando não muito longe, perto da água. Quando chegamos e estendemos nosso cobertor na areia, Tate risca um fósforo e o joga num monte de galhos. A chama acende o fluido de isqueiro que ele espalhou antes na fogueira. Uma coluna de fogo alta e brilhante espirala por cima do monte e ilumina a escuridão ao nosso redor com uma luz laranja dançante. O calor das chamas já está chegando em mim, por isso afasto um pouco mais nosso cobertor da fogueira, antes que eu e Andrew sentemos nele. Bray e Elias também se sentam sobre duas toalhas de praia gigantes. Tate, o irmão dele e as outras três garotas dividem uma grande colcha. Enfio o fundo da minha garrafa de cerveja na areia ao meu lado, para que ela fique de pé.

Tate me lembra aqueles surfistas da Califórnia, muito louros e bronzeados. Como todos os outros caras, incluindo Andrew, Tate se senta com os joelhos dobrados e os braços apoiados neles. E enquanto estudo todos discretamente, logo vejo algo com o rabo do olho que me faz ficar territorial na hora. A loura ao lado do irmão de Tate, que duvido que seja namorada dele porque os dois não parecem estar juntos, está olhando para Andrew com olhos famintos. Não quero dizer de um jeito inocente, de quem só vai olhar sem tocar. Não, essa garota tentaria dormir com ele assim que eu me afastasse.

Quando ela nota que a estou observando, desvia o olhar e começa a conversar com a garota ao seu lado.

Não tenho com que me preocupar com relação a Andrew, mas se ela me desrespeitar sabendo que ele é meu noivo, não vou pensar duas vezes antes de enchê-la de porrada.

Eu me pergunto se Andrew percebeu.

Andrew

Espero que Camryn não tenha percebido o jeito como aquela garota me olhou agora. Se eu e ela ficássemos cinco segundos sozinhos aqui, ela tentaria dar pra mim. Nem fodendo eu ia querer isso, mas este luau já ficou um pouco mais interessante.

Aposto minha bola esquerda que ela já dormiu com Tate e o irmão dele. Talvez não com Elias — ele parece o tipo fiel —, mas ela daria pra ele também, se ele topasse.

Puta merda, ela olhou pra mim de novo.

Olho rapidamente para Camryn para não cruzar olhares com a menina e não dá outra, Camryn está com aquele sorriso revelador no rosto. É, com certeza ela viu.

Eu pego Camryn no colo e a coloco no meio das minhas pernas.

— Não se preocupe, amor — sussurro no seu ouvido, e então beijo seu pescoço para que a garota veja.

— Eu não tô preocupada — Camryn diz, deitando sobre o meu peito.

Não está preocupada comigo, claro, mas sinto a tensão territorial emanando de seu corpo. Cacete, só a ideia de vê-la pulando em cima daquela garota por minha causa... Tudo bem, eu não deveria pensar nisso. Fodeu. Tarde demais.

— Essas tatuagens são iradas — Tate diz, apontando.

Todos estão olhando a tatuagem em mim e Camryn. Ela se ergue do meu peito para que vejam melhor.

— Pode crer — Bray diz, encantada. Ela rasteja pela areia mais para perto de nós. — Eu tava curiosa mesmo pra ver.

A loura que estava me olhando agora há pouco ri de Camryn, embora Camryn não note, porque está ocupada mostrando a tatuagem para Bray.

Uso essa oportunidade em meu benefício.

— Vira pra cá, amor, mostra como elas se encaixam. — Eu viro Camryn no meu colo e me deito de costas, deitando seu corpo sobre o meu.

O grupo nos olha com atenção, o rosto da loura ficando um pouco amargo quando a encaro diretamente enquanto aperto meu corpo contra o de Camryn. Alinhamos nossas tatuagens para formar o desenho de Orfeu e Eurídice; minha Eurídice usando uma veste branca comprida e transparente, colada ao corpo pelo vento, dobras de tecido sopradas atrás dela, que estende os braços para o Orfeu tatuado nas costelas de Camryn. Bray olha atentamente os detalhes, seus olhos pretos arregalados de assombro. Ela olha novamente para Elias e agora ele parece nervoso, como se tivesse medo de que Bray vá arrastá-lo para o tatuador mais próximo amanhã.

— Isso. É. Demais — Bray diz. — Quem são eles?

— Orfeu e Eurídice — respondo. — Da mitologia grega.

— Uma história trágica de amor verdadeiro — Camryn acrescenta.

Eu a abraço mais forte.

— Bom, vocês dois não parecem ter nada de trágico — Tate diz.

Abraço Camryn ainda mais forte, nós dois pensando em coisas particulares, que é melhor guardar só para nós. Eu beijo o alto do seu cabelo.

Bray se afasta, ainda sentada com os joelhos afundados na areia.

— Eu achei linda. E é bom que seja, porque sei que isso dói um bocado.

— É, doeu mesmo — Camryn diz. — Mas valeu cada hora de sofrimento.

Algum tempo depois, Camryn e eu já tomamos pelo menos três Coronas cada um, mas só ela demonstra. Está um pouco alta, mas só o bastante para ficar mais tagarela.

— Eu sei! — ela diz para Bray, a de cabelo preto. — Vi um show deles com minha melhor amiga, Nat, e eles são demais! Não tem muitas bandas que conseguem tocar quase como no disco.

— É verdade — Bray diz, terminando sua cerveja. — Você disse que é da Carolina do Norte?

Camryn levanta as costas do meu peito e se senta de pernas cruzadas na areia.

— Sou, mas Andrew e eu não moramos mais lá.

— Onde vocês moram? — Tate pergunta. Ele puxa um longo trago do seu cigarro e segura a fumaça enquanto fala. — No Texas?

Todos se viram para me olhar quando respondo.

— Não, a gente meio que... viaja.

— Viaja? — Bray pergunta. — Como, vocês têm um trailer?

— Não exatamente — Camryn diz. — A gente só tem o carro.

A loura que está me olhando o tempo todo entra na conversa:

— Por que vocês estão viajando?

Noto imediatamente por sua expressão que ela está se esforçando ao máximo para chamar a minha atenção, mas eu a ignoro e respondo, olhando para Bray, que está ao nosso lado: — A gente toca junto.

— Como, vocês têm uma banda? — a loura pergunta.

Eu olho para ela, desta vez.

— Mais ou menos — digo, mas é só o que eu respondo, e volto a dar atenção para Bray.

— Que estilo de música vocês tocam? — pergunta Caleb, o irmão de Tate. Ele está se engraçando com a outra garota desde que chegamos. Provavelmente também não estão juntos, mas ele com certeza vai se dar bem hoje.

— Rock clássico, blues e folk, coisas assim — respondo, tomando um gole de cerveja.

— Vocês precisam tocar pra gente! — Bray diz, empolgada.

Ela está claramente tão alta quanto Camryn, e as duas parecem estar se dando bem.

Camryn vira na areia para me olhar, de olhos arregalados e cheios de entusiasmo.

— A gente podia. O violão tá no banco de trás.

Eu balanço a cabeça.

— Não, não tô a fim agora.

— Ah, vai, amor, por que não?

Aí estão a cara de gatinho do Shrek e o jeito de choramingar que é a marca registrada de Camryn, que nunca falham em me obrigar a fazer tudo o que ela quer. Mas eu enrolo mais um pouco, talvez esperando que ela desista e diga deixa pra lá.

É claro que ela não desiste.

— É, cara, se você trouxe um violão e sabe tocar, vai ser show — Tate diz.

A essa altura, todos estão me olhando — até Camryn, que na verdade é a única pela qual vou fazer isso.

Cedendo, eu me levanto, vou até o carro e volto trazendo o violão.

— Você vai cantar comigo — digo para Camryn quando me sento ao seu lado.

— Nãão! Eu tô muito bêbada! — Ela me beija na boca e vai se sentar perto de Bray e Elias, para me dar um pouco de espaço, acho.

— Tudo bem, o que você quer que eu cante?

A pergunta era para Camryn, mas Tate responde:

— Ei, o que você quiser, cara.

Penso em várias canções por um minuto e finalmente escolho uma porque é bem curta. Mexo um pouco nas cordas, afino o violão rapidinho e começo a tocar “Ain’t No Sunshine”. No início, estou pouco me fodendo se está bom, mas como sempre, depois que começo, me torno outra pessoa e dou tudo de mim. Meus olhos ficam fechados a maior parte da canção, mas sempre consigo sentir a energia das pessoas ao meu redor, se elas estão curtindo ou não.

Todas estão.

No segundo refrão, olho nos olhos de Camryn enquanto dedilho as cordas. Ela está sentada na areia sobre os joelhos, seu corpo balançando de um lado para o outro. As outras garotas fazem o mesmo, totalmente imersas na música. Eu canto o último refrão, e essa canção basta para que eu queira tocar mais. Bray mal consegue se segurar, me dizendo o quanto foi bom e dando bastante atenção a Camryn, o que a faz ganhar pontos comigo. Diferente da loura, que está me olhando um pouco mais do que antes.

— Porra, cara, você não tava brincando — Tate diz.

Ele acende um baseado.

— Toca outra — Bray diz, encostando-se em Elias de novo, que a abraça por trás.

Tate passa o baseado primeiro para Camryn. Ela apenas o olha por um segundo, sem saber se deve aceitar ou não. Vejo uma expressão fugidia de dor em seu rosto; eu sei que ela está se lembrando do seu momento de fraqueza com os comprimidos. Ela balança a cabeça.

— Não, obrigada, acho que hoje só vou beber.

Eu sorrio por dentro, orgulhoso de sua decisão. E quando Tate o oferece para mim em seguida, faço o mesmo, não porque eu não queira dar uns tapas, mas porque não consigo curtir assim quando Camryn não quer.

Nunca fui muito fã de maconha, mas curto dar um pega de vez em quando. Agora não é o momento.

Toco mais algumas canções em volta da fogueira. Camryn finalmente canta uma comigo, e depois quero só relaxar com a minha garota e curtir essa onda tão rara. Deixo o violão ao nosso lado no cobertor e puxo Camryn novamente para o meu colo.

O irmão de Tate está chupando a língua daquela garota e bolinando-a há algum tempo. Eles não falam muito, por motivos óbvios. A loura que antes estava me olhando finalmente se tocou, eu acho. Ou isso, ou já está chapada demais para se importar comigo.

A música do jipe de Tate aumenta de novo, e ele volta de lá trazendo uísque, uma garrafa de dois litros de Sprite e uma pilha de copos descartáveis. A namorada dele começa a misturar as bebidas e distribuir os copos.

— Bebe aí, cara — Tate aconselha. — Nem esquenta se vai dirigir depois. A polícia não conhece esse lugar.

— Tá, eu aceito um copo — respondo.

Olho para Camryn, lembrando sua expressão quando Tate lhe passou o baseado.

— Se você não quiser, eu não bebo — digo.

À parte não querer que ela sinta que está traindo a si mesma bebendo demais, também não quero que encha a lata a ponto de ficar um lixo na manhã seguinte.

— Não, tudo bem, amor. Só vou tomar uma dose, tá?

Ela sorri docemente para mim como se estivesse esperando a minha permissão, o que eu acho bonitinho pra cacete.

— Tá — eu cedo, por não querer magoá-la, e ela aceita o copo da namorada de Tate.

Todos relaxamos, bebemos e conversamos sobre tudo quanto é assunto por um tempo enorme. Camryn está gargalhando, sorrindo e falando com Bray sobre absorventes íntimos, um assunto que não faço ideia de como surgiu, nem quero saber, mas estamos nos divertindo muito. Músicas de bandas que nunca ouvi tocam alto no som perto dali, e fico intrigado com as últimas canções, que tenho certeza de que são com o mesmo cantor.

— Quem são esses? — pergunto a Tate.

Ele desvia o olhar da namorada, que está com a cabeça no seu colo.

— Quem? A banda?

— Sim — digo. — Eles são muito bons.

— Isso, meu amigo, é Dax Riggs. Tá fazendo carreira solo agora. Ele começou no Acid Bath, acho... — Ele parece pensativo, como se não tivesse certeza. — Bom, ele tocou em vários grupos. Acid Bath e Agents of Oblivion são os mais conhecidos.

— Acho que já ouvi falar do Acid Bath — comento, tomando mais um gole de uísque com Sprite.

— Eu não me espantaria — Tate acrescenta.

— Preciso conhecer o som desse cara. Ele é desconhecido?

Camryn, abandonando a conversa sobre absorventes com Bray, se aproxima de mim e encosta a cabeça no meu ombro.

— É, ele nunca aderiu ao mainstream — Tate diz. — Ainda bem, porque o mainstream é uma bosta. Fico puto quando vejo um grupo legal se vendendo, fazendo comercial de pasta de dente e merdas assim.

Eu rio um pouco.

— Com certeza. Eu nunca assinaria um contrato com uma gravadora, nem se me oferecessem.

— Falou tudo, cara — Tate diz. — Depois que você assina, vira a putinha deles. Sua música não te pertence mais e você precisa abrir as pernas pro cuzão que assina seus cheques.

Tô começando a gostar desse cara. Só um pouquinho.

— Andrew, preciso fazer xixi — Camryn diz.

Eu olho para ela. Tirando o copo de sua mão, eu o deixo na areia.

— Também tô precisando dar uma mijada — digo tanto para ela quanto para Tate.

Tate aponta para a esquerda com outro cigarro entre os dedos e diz: — Vão praquele lado. Não tem vidro quebrado nem merda nenhuma no chão.

Deixo meu copo perto do de Camryn e a ajudo a levantar. Andamos pela areia até um lugar cheio de árvores e pedras, distante o suficiente para que ninguém nos veja.

— A gente vai ter que passar a noite aqui. Não tô em condições de voltar dirigindo.

Ela se agacha enquanto mijo a poucos metros dela.

— Eu sei. Acho que finalmente vamos dormir sob as estrelas, hein?

Estou rindo dela por dentro. Minha gata está tão bêbada que está até enrolando a língua.

— Pois é, acho que sim — concordo. — Mas é bom você saber que na verdade esta vez não conta porque você mal vai lembrar amanhã.

— Vou, sim.

— Nãão, não vai.

Ela quase cai depois de terminar e tentar ficar de pé. Eu a seguro pelo braço e passo o meu pela sua cintura. Então a beijo no alto da cabeça.

— Eu te amo tanto.

Não sei por que senti tanta vontade de dizer isso nesse momento, mas só de tê-la ao meu lado e saber que ela não está em condições de se cuidar esta noite, eu precisava dizer. Essas palavras estavam presas na minha garganta e, admito, eu estava começando a ficar engasgado com elas. Eu poderia culpar o álcool, mas não, mesmo completamente sóbrio, eu a amo pra cacete.

Ela passa os dois braços pela minha cintura, aninha a cabeça no meu peito quando começamos a voltar e me aperta.

— Eu também te amo.


24

À MEDIDA QUE a noite avança, as cenas do nosso pequeno grupo começam a mudar. As pessoas estão falando menos e se pegando mais. Bray e Elias estão deitados ao lado da fogueira. Tate e a namorada já poderiam estar transando; só falta tirarem a roupa. Por sorte, a loura sinistra me esqueceu e está ajudando a amiga a apalpar Caleb a uns dois metros e meio de mim e Camryn.

É, tenho certeza de que imagino no que isso vai dar. Nada de especial. Não é uma situação que eu ainda não tenha vivido, mas desta vez meu principal objetivo não é satisfazer duas garotas ao mesmo tempo. Só preciso manter Camryn longe dessa merda.

Quando começo a virar o corpo para falar com Camryn, que está deitada ao meu lado, o mundo todo some debaixo de mim. Tento levantar a cabeça. Eu acho. Sinto fadas dançando em cima dos meus olhos. Abertos.

— Caralho... — digo em voz alta, mas talvez não tenha dito. Talvez tenha sido só minha imaginação.

Eu levanto a mão diante do rosto e a lua parece estar aninhada entre meu polegar e meu indicador. Tento soltá-la, mas ela é pesada demais e empurra meu braço para baixo. Sinto meu cotovelo bater na areia como um haltere de 40 quilos.

Minha cabeça está rodando. A cor do fogo é azul, amarela e vermelho-escura. O som do oceano está triplicado em meus ouvidos, misturando-se ao crepitar da madeira no fogo e a alguém gemendo.

— Camryn? Cadê você?

— Andrew? Eu... eu tô aqui. Eu acho.

Nem sei dizer se era realmente a voz dela.

Fecho os olhos com força e abro de novo, tentando clarear a visão, mas percebo que não quero enxergar melhor. Estou sorrindo. Meu rosto parece tão esticado que por um instante tenho medo de que não vá parar de esticar e acabe rasgando no meio. Mas tudo bem.

Puta que me pariu... eu tô viajando. Que. Porra. Eles. Me deram pra beber?

Tento me levantar, mas quando acho que estou de pé, olho para baixo e percebo que nem me mexi. Tento de novo, com o mesmo resultado.

Por que não consigo levantar?!

— Caralho, Tate — ouço uma voz dizer, mas nem consigo dizer se é masculina ou feminina. — Que puta bagulho bom. Caraaalho... Tô vendo arco-íris e o escambau. É a porra do Reading Rainbow1...

Em seguida, quem disse isso começa a cantar o tema do Reading Rainbow.

Me sinto na cidade dos malucos, mas na verdade não quero ir embora.

Finalmente, eu me deito de costas e verifico duas vezes minha posição, apalpando a areia dos dois lados do corpo com as palmas das minhas mãos pesadas. Então olho para o céu cheio de estrelas e vejo que elas se movem para lá e para cá na escuridão, num balé poético.

O rosto de Camryn aparece sobre o meu peito, como um fantasma emergindo da neblina.

— Amor? — pergunto. — Você tá bem?

Estou preocupado com ela, mas não consigo parar de sorrir.

— Tô. Eu tô óooootima. Tô ótima.

— Deita aqui comigo — digo para ela.

Fecho os olhos quando sinto sua cabeça sobre o meu peito e sinto o cheiro do xampu que ela sempre usa, só que agora está muito mais forte. Tudo está mais forte. Cada ruído. A sensação do vento no meu rosto. Dax Riggs cantando “Night Is the Notion” ao fundo, em algum lugar que minha mente diz ser longe, mas o som está tão alto que parece que o jipe está encostado na minha cabeça. Consigo quase sentir o cheiro de borracha dos pneus.

E eu não consigo evitar. Começo a cantar “Night Is the Notion” o mais alto que posso. Não sei como já conheço a letra, mas conheço. Conheço, caralho. E parece que a canção dura horas, e eu nem ligo. Finalmente, paro de cantar, só fecho os olhos e sinto a música passar através de mim. E não me importa mais nada agora, a não ser o momento. E eu tô doido de tesão. Levo um segundo — eu acho — para perceber que meu pau está sentindo a mesma brisa que meu rosto sente. E é bom.

— Camryn? Quê? Tá.

Nem sei o que estou dizendo, ou se estou realmente dizendo alguma coisa. Minha mente me diz que preciso me certificar de que ela não está chapada a ponto de fazer um boquete na frente dos outros, mas ao mesmo tempo não quero que ela pare.

Eu fico sem fôlego e minha cabeça cai para o lado. Vejo Caleb em cima de uma das garotas, as coxas nuas dela apertadas ao redor do corpo dele, que sobe e desce. Desvio o olhar. Olho para o céu de novo. Traços de luz vão para um lado e para o outro com o movimento das estrelas. Estremeço quando sinto meu pau batendo no fundo da garganta dela.

Eu olho para baixo. Vejo uma cabeleira loura. Estendo a mão para tocá-la, parte de mim querendo afastá-la, outra parte querendo forçá-la a engolir mais fundo. Acabo escolhendo a segunda opção, mas quando jogo a cabeça para trás e vejo o rosto de Camryn ao lado do meu, ergo os ombros da areia.

— Sai de cima de mim, piranha! — consigo gritar.

Eu a chuto para longe e o barato muda completamente. Não estou mais curtindo.

Eu me obrigo a sentar, tento dar murros na cabeça com as mãos, esperando ficar sóbrio com o choque, mas não adianta porra nenhuma. Só consigo enfiar o pau de volta no short, olho para o outro lado da fogueira e vejo aquela piranha nojenta já desmaiada perto de Caleb. Não sei quanto tempo passou, mas todos estão capotados, menos eu.

Estou em pânico, não consigo nem respirar. O que foi que aconteceu, porra?

Eu viro para o lado e abraço Camryn, forçando-a a ficar perto de mim, e não solto mais.

E essa é a última coisa de que me lembro.

Camryn

Estou enjoada. Meu Deus, eu nunca, nunca tive uma ressaca assim. O sol da manhãzinha e a brisa que vem do oceano me acordam. De início fico deitada ali, pois tenho medo de vomitar se me mexer. Minha cabeça está latejando, as pontas dos meus dedos estão dormentes, o resto do meu corpo treme, tomado pela náusea. Eu gemo e acabo de abrir os olhos, pressionando um braço horizontalmente sobre a barriga. Sei que de jeito nenhum vou conseguir sair desta praia sem antes vomitar por uns bons cinco minutos, mas tento me segurar o máximo que posso.

Minha bochecha está apertada contra a areia debaixo de mim. Sinto grãos grudados na pele. Com muito cuidado, limpo a areia com um dedo antes que ela entre no meu olho.

Ouço uma pancada, seguida por um estalo e gritos.

Apesar dos protestos do meu estômago, viro para o outro lado, olhando para o oceano.

— Sai de cima dele! — ouço uma garota gritar.

Isso me acorda ainda mais, e por uma fração de segundo me dou conta do quanto eu estava desacordada. Mas agora estou totalmente alerta. Levanto a cabeça da areia e vejo Andrew moendo Tate com os punhos.

— Andrew! — tento gritar, mas minha garganta está irritada e minha voz sai rouca, por isso só consigo balbuciar seu nome. — Andrew! — digo de novo, controlando melhor minha voz.

— Qual é o seu problema, caralho?! — Tate grita.

Ele está tentando se afastar de Andrew, mas Andrew continua avançando. Ele dá mais e mais socos, dessa vez derrubando Tate sentado na areia.

Então o irmão de Tate vem ajudar e soca o quadril de Andrew. Os dois caem longe de Tate e rolam vários metros. Andrew pega Caleb pela garganta e o levanta acima de seu corpo, jogando-o com força na areia, e está em cima dele em segundos. Ele dá três socos em Caleb antes que Tate chegue por trás, puxando-o para longe.

— Fica frio aí, porra! — Tate grita.

Mas Andrew gira o corpo e atinge seu queixo com um gancho, e eu ouço outro estalo de ossos de virar o estômago. Tate cambaleia para trás, segurando a mandíbula.

— Você drogou a gente! Eu vou te matar, caralho! — Andrew ruge.

Finalmente consigo ficar de pé, embora eu tropece uma vez antes de chegar perto de Andrew. Quando vou segurar o braço dele para puxá-lo, sou empurrada por trás e caio sentada. Nem sei o que aconteceu, mas por um segundo fico sem fôlego. Levanto a cabeça e vejo Caleb em cima de Andrew. Devo ter sido atingida quando Caleb atacou Andrew por trás.

Eu me levanto novamente da areia e vejo Elias se aproximando.

Em pânico, olho para meus dois lados e novamente para Elias. Tudo parece estar em câmera lenta. Os três vão se juntar contra Andrew? Ah, nem fodendo! Começo a agarrar Tate enquanto ele e Caleb estão esmurrando Andrew, mas sou empurrada para longe por Elias.

— Sai! — ele rosna para mim.

Andrew consegue se aguentar bem contra Tate e Caleb, ainda está de pé e trocando socos com os dois, mas se Elias entrar na briga, acho que ele não vai conseguir lutar contra os três.

Elias entra no bolo e não consigo entender quem está batendo em quem, quando um par de mãos me pegam pelas axilas por trás.

— Fica aqui comigo, garota — Bray diz.

No meio da minha confusão e pavor, vejo Elias esmurrando Caleb e o alívio toma conta do meu corpo, embora isso dure pouco.

A boca de Andrew está sangrando. Mas todos os quatro estão sangrando em algum lugar. A luta parece continuar para sempre, e a cada golpe que Andrew dá ou recebe, eu me encolho e fecho os olhos, querendo apenas bloquear tudo. Estou sentada na areia com Bray me abraçando por trás, porque ela ainda acha que vou tentar entrar na briga. Mas voltei a sentir que vou vomitar e mal consigo me mexer. Gotas de suor brotam na minha testa. Minha nuca está fria e úmida. O céu está começando a girar.

— Oh, não. Bray... acho que eu vou...

Eu perco o controle ali mesmo. Sinto meu corpo se desvencilhando com violência dela e minhas mãos se estendendo, afundando na areia. Minhas costas se arqueiam e descem, se arqueiam e descem, e eu vomito sem parar, sem parar. Meu Deus, por favor, faz isso parar. Eu nunca mais vou beber! Por favor, faz isso parar! Mas parece que eu nunca vou parar. Quanto mais vomito, mais meu corpo reage ao cheiro do vômito, ao som, ao sabor dele, e isso me faz vomitar ainda mais. Mal consigo ouvir a luta ao fundo por cima dos meus próprios ruídos, e dos estertores secos quando não resta mais nada no meu estômago para devolver. Finalmente, caio para o lado. Não consigo me mexer. Meu corpo treme incontrolavelmente, minha pele está fria e quente e pegajosa em todo lugar. Sinto que Bray está sentada ao meu lado.

— Você vai ficar bem — eu a ouço dizer. — Uau, aquele bagulho te zoou forte.

— O que era? — pergunto, e partes da noite anterior começam a voltar à minha memória.

Nem ouço se ela respondeu ou não à minha pergunta.

Lembro que tudo estava bem, era só uma bebedeira normal, até pouco depois que começamos a tomar o gim. E então, do nada, eu não conseguia mais enxergar o que estava à minha frente, porque tudo estava perto demais. Eu ficava tentando focar os olhos em coisas mais distantes, o oceano, as estrelas, as luzes dos barcos ao longe, sobre a água. Lembro que achei que um navio estava se aproximando de nós e que ia bater na praia. Mas eu não me importava. Eu achei... lindo. Ia matar a todos nós, mas era lindo. E lembro que ouvi Andrew cantando uma canção bem sexy. Deitei a cabeça no peito dele e fiquei ouvindo-o cantar. Eu queria subir em cima dele e tirar a roupa, e teria feito isso, se conseguisse me mexer.

E lembro...

Peraí.

Aquela piranha loura. Ela me perguntou... peraí.

Eu levanto o corpo da areia.

— Acho que você precisa ficar deitada um pouco — Bray diz.

Meus dedos tocam minha testa.

Lembro que ela estava sentada perto de mim e de Bray. Estava tão chapada quanto todos nós, mas eu não estava mais com ciúmes. Ela conversou com a gente um pouco, e eu não me importei.

À medida que as lembranças vão voltando, meu corpo começa a tremer mais.

Ela tentou me beijar. Acho que eu deixei...

Acho que vou vomitar de novo.

Eu encolho os joelhos e apoio os cotovelos em cima deles, afundando o rosto nas mãos. Ainda estou tão zonza. Sinto que ainda não acabei de vomitar. Não tenho aquela grande sensação de alívio que vem depois de passar mal. Não, a ânsia só ficou mais intensa, desta vez provocada pelos meus nervos.

O resto está voltando aos poucos, e embora eu queira me forçar a esquecer, não consigo.

Ela perguntou se podia dormir comigo e com Andrew. Sim, me lembro agora. Mas... meu Deus... pensei que ela quisesse dizer dormir, mas agora me dou conta de que estava tão chapada que não percebi que ela queria dizer sexualmente.

Eu disse que não me importava.

Então lembro que ela...

Eu perco o fôlego. Levo a mão à boca, com os olhos arregalados e ardendo por causa da brisa.

Lembro que ela fez um boquete em Andrew.

Tentando ficar de pé, sinto a mão de Bray nas minhas costas.

— Para, garota — ela diz, me puxando de volta para a areia. — Não vai lá. Você só vai se machucar.

Solto meu pulso da mão dela e tento ficar de pé de novo, mas os movimentos bruscos, junto com meus nervos em frangalhos, causam mais ânsia de vômito.

Então ouço Andrew de pé perto de mim.

— Cacete — ele diz para Bray. — Você pega uma garrafa d’água no isopor no banco de trás do meu carro?

Bray vai pegar a água.

Andrew me puxa para suas pernas assim que eu paro de tentar vomitar. Ele afasta meu cabelo dos olhos e da boca.

— Eles deram droga pra gente, amor — ele diz.

Meus olhos se abrem um pouco e o vejo em cima de mim, com as palmas das mãos nas minhas bochechas.

— Eu mato aquela vaca. Juro por Deus, Andrew.

A expressão dele é de uma pessoa atordoada. Acho que ele não sabia que eu tinha visto.

— Ela ainda tá desacordada. Amor, eu...

A culpa em seu rosto me corta o coração.

— Andrew, eu sei o que aconteceu — digo. — Sei que você achou que fosse eu. Vi o que você fez.

— Não importa — ele diz, cerrando os dentes. Seus olhos ficam rasos d’água. — Eu devia saber que não era você. Porra, me desculpa. Eu devia saber. — Suas mãos apertam meu rosto.

Estou para mandá-lo parar de se culpar quando Elias se aproxima.

— Desculpa, cara, a gente não sabia. Juro.

— Eu acredito — Andrew diz.

Bray volta com a água, e eu já estou recuperando um pouco das minhas forças. Levanto o corpo e fico sentada, encostada no peito nu de Andrew. Ele me abraça e me aperta tão forte, como se temesse que eu fosse levantar e sair correndo.

Então ele pega a garrafa de Bray, tira a tampa, joga um pouco d’água na mão e passa na minha testa e na minha boca. O frescor me alivia na hora.

— Olha, cara, desculpa — Tate diz, chegando por trás de nós. — A gente achou que vocês não iam ligar. Só pusemos um pouco na bebida de todo mundo. Fizemos uma presença. Não trouxemos vocês pra cá com más intenções.

Andrew consegue se afastar delicadamente de mim, mesmo assim tão rápido que mal noto sua ausência, e esmurra Tate de novo. Um estalo de ossos nauseabundo ecoa pelo espaço.

— Por favor, Andrew! — eu grito.

Elias segura Andrew e Caleb segura Tate, apartando-os.

Andrew deixa Elias segurá-lo por trás, mas depois se desvencilha e volta para mim, me ajudando a levantar.

— Vamos embora — ele diz, ele começa a me pegar no colo, mas eu balanço a cabeça, para que ele saiba que consigo andar sozinha.

Ele pega o violão e eu pego o nosso cobertor, e nós vamos para o Chevelle.

— Talvez fosse bom a gente dar uma carona pra Bray e Elias — digo.

Andrew joga o violão no porta-malas e pega o cobertor de mim, guardando-o também. Então ele vai para o seu lado do carro, estende os braços sobre o teto e apoia a cabeça entre eles. Ele respira fundo e dá um murro na lataria.

— Puta que pariu! — grita, dando outro murro.

Em vez de tentar chamá-lo à razão, decido deixar que ele se acalme sozinho. Olho para ele com ternura do outro lado do carro. Depois entro e fecho a porta. Ele fica ali mais um minuto, até que o ouço dizer:

— Se vocês quiserem, podem voltar com a gente.

Elias e Bray, carregando suas coisas, vêm até o carro e se sentam no banco de trás.

1 Programa infantil de incentivo à leitura da TV pública americana. (N.T.)


Andrew


25

NEM SEI COMO achei o caminho de volta tão facilmente. Acho que num certo momento eu nem me importava muito se nos perdêssemos. Mas volto sem virar uma esquina errada nem ter que parar e pedir informações. Os quatro não falamos muita coisa na volta. E do pouco que foi falado, não lembro nada.

Paramos no estacionamento do hotel e nos despedimos de Elias e Bray. Talvez eu tivesse agradecido a Elias ou desejado sorte para o resto da viagem, ou talvez até convidado os dois para saírem conosco à noite, mas dadas as circunstâncias, só consigo responder com um aceno quando eles agradecem pela carona.

Eu dou partida no carro e vou para o nosso lado do hotel.

Camryn ainda parece insegura sobre conversar comigo. Não com medo, apenas insegura. Eu não consigo nem olhar para ela. Me sinto um bosta pelo que aconteceu, e nunca vou me perdoar.

Camryn segura a minha mão e vamos direto para o nosso quarto. Eu abro a porta e começo a jogar nossas coisas nas mochilas.

— Não foi sua...

Eu a interrompo.

— Não. Por favor. Só... me dá um minuto...

Ela olha para mim tão desolada, mas balança a cabeça e concorda.

Logo estamos na estrada de novo, indo para o Norte pelo litoral. Destino: qualquer lugar, menos a Flórida.

Depois de dirigir por uma hora, o que aconteceu na noite passada não me sai da cabeça, e eu tento entender, de alguma forma. Eu saio da estrada e o carro roda até parar no acostamento. Está tão silencioso. Olho para baixo, depois pelo para-brisa. Percebo que estou com os nós dos dedos brancos de tanto apertar o volante. Finalmente, abro a porta e saio do carro.

Ando rapidamente pelo cascalho e então desço a encosta da vala, atravessando para o outro lado e indo direto para a primeira árvore.

— Andrew, para! — ouço Camryn gritar.

Mas eu continuo andando, e quando fico frente a frente com aquela merda de árvore, bato nela com tanta força quanto bati em Tate e Caleb. A pele de dois dos meus dedos se abre, o sangue escorre pelas costas da mão e entre os dedos, mas eu não paro.

Só paro quando Camryn entra na minha frente e empurra meu peito com tanta força com as duas mãos que eu quase caio para trás. Lágrimas escorrem dos seus olhos.

— Para! Por favor! Para com isso!

Eu desabo sentado na grama, com os joelhos dobrados, minhas mãos ensanguentadas pendendo dos pulsos. Meu corpo se curva para a frente, cabisbaixo. Só consigo ver o chão embaixo de mim.

Camryn se senta na minha frente. Sinto suas mãos no meu rosto, tentando levantar minha cabeça, mas eu não deixo.

— Você não pode fazer isso comigo — diz com voz trêmula. Camryn tenta me forçar a olhá-la, e eu finalmente deixo porque me mata de dor ouvi-la chorar. Olho nos olhos dela, os meus cheios de lágrimas de raiva que estou tentando conter. — Amor, não foi culpa sua. Você tava drogado. Qualquer um poderia ter se enganado, chapado como você tava. — Seus dedos apertam meu rosto. — Não. Foi. Culpa. Sua. Entendeu?

Tento desviar o olhar, mas ela afasta minhas mãos e se senta no meio das minhas pernas sobre os joelhos, de frente para mim. Instintivamente, eu a abraço.

— Mesmo assim, eu devia saber — digo, olhando para baixo. — E não é só isso, Camryn, eu devia cuidar da sua segurança. Você nem deveria ter sido drogada, pra começar. — Só de pensar nisso, a raiva e o ódio por mim mesmo aumentam de novo. — Eu devia cuidar da sua segurança!

Ela me abraça e me força a apoiar a cabeça em seu peito.

Ela se afasta.

— Andrew, olha pra mim. Por favor.

Eu olho. Vejo dor e compaixão em seus olhos. Seus dedos delicados envolvem meu rosto barbado. Ela beija meus lábios suavemente e diz:

— Foi um momento de fraqueza — como que para me lembrar do que eu disse a ela há vários meses sobre os comprimidos. — Foi minha culpa tanto quanto sua. Eu não sou burra. Deveria ter imaginado que não podia deixar nossas bebidas na mão deles nem por um segundo. Não é culpa sua.

Eu baixo o olhar, e então olho para ela de novo. Não sei como posso fazê-la entender que, por causa de como e quem sou, sinto um forte senso de responsabilidade por ela. Uma responsabilidade da qual me orgulho, que senti desde o dia em que a conheci. Me mata... me mata saber que no meu “momento de fraqueza” eu não pude protegê-la, que, por eu ter baixado a guarda, ela poderia ter sido ferida, estuprada, morta. Como posso fazê-la entender que não importa se ela não me culpa por isso, que sua opinião, embora eu não a considere sem valor, não desculpa meu momento de fracasso? Ela tem direito a um momento de fraqueza. Eu não tenho. O meu é só fracasso.

— E eu nunca, jamais culparia você por aquilo — ela acrescenta.

Eu só olho para ela, procurando um significado em seu rosto, e então ela continua:

— O que aquela garota fez — ela explica. — Eu jamais jogaria aquilo na sua cara. Porque você não fez nada errado. — Eu sinto seus dedos afundando em meu rosto. — Você acredita em mim?

Eu balanço a cabeça lentamente.

— Acredito, sim.

Ela suspira e diz:

— De todo modo, pode ter sido em parte minha culpa. — Ela desvia o olhar.

— Como assim?

— Bem — ela diz, mas hesita com uma expressão distante de arrependimento no semblante —, acho que, sem querer, posso ter dado permissão pra ela.

Aquilo certamente me pega de surpresa.

— Lembro que ela perguntou sobre dormir com a gente, e acho que falei que sim, que ela podia. Eu-eu não sabia que ela queria dizer... sexualmente. Se eu estivesse sóbria, com certeza teria sacado isso. Andrew, me desculpa. Desculpa por eu ter deixado aquela piranha louca violentar você.

Eu balanço a cabeça.

— A culpa não é de nenhum dos dois, então não começa a se culpar também, tá?

Quando não vejo aparecer o sorriso que eu queria causar rápido o suficiente, eu a agarro dos dois lados pela cintura. Ela grita quando começo a fazer cócegas. Ela ri e se retorce tanto que cai para trás na grama, e eu me sento em cima dela, me apoiando nos joelhos dos dois lados para não esmagá-la.

— Para! Não! Andrew, tô falando sério, caralho! Paraaaa! — Ela ri alto e eu enfio mais os dedos nos seus quadris.

Então ouço um carro de polícia tocar a sirene uma vez e silenciar, parando atrás do meu carro.

— Fodeu — eu digo, olhando para Camryn. Seu cabelo está emaranhado e cheio de fios de grama.

Saio de cima dela e estendo a mão ensanguentada para ajudá-la a levantar. Ela a toma e fica de pé, espanando a roupa. Voltamos para o carro enquanto o policial sai de sua viatura.

— Vocês costumam deixar a porta do carro escancarada assim na estrada? — o policial pergunta.

Eu olho para a porta e novamente para ele.

— Não, senhor — eu digo. — Fiquei com vontade de vomitar e nem pensei nisso.

— Habilitação, comprovante do seguro e documentos do veículo.

Tiro a habilitação da carteira, entrego para ele e enfio o corpo pela janela do lado do passageiro para procurar os documentos no porta-luvas. Camryn está encostada na traseira do carro, com os braços cruzados nervosamente sobre o peito. O policial volta para a viatura — depois de notar o sangue nas minhas mãos — e se senta para consultar o meu nome.

— Espero que você não esteja escondendo nenhum assalto, assassinato ou nada assim de mim — Camryn diz, quando me apoio no capô ao lado dela.

— Não, já parei com os assassinatos — respondo. — Ele não tem como me prender. — Eu a cutuco de leve com o cotovelo.

Passados alguns minutos de pura tensão, o policial se aproxima de nós e me devolve os documentos.

— O que aconteceu com a sua mão? — ele pergunta.

Olho para ela, sentindo-a doer e latejar pela primeira vez, agora que ele chamou minha atenção. Em seguida, aponto para a árvore perto dali.

— Eu meio que bati na árvore.

— Você meio que bateu na árvore? — ele pergunta, desconfiado, e noto que olha para Camryn várias vezes. Que legal, ele deve estar achando que bati nela ou alguma porra assim, e considerando como ela está detonada depois do incidente de ontem à noite e do nosso rala-e-rola na grama, suas suspeitas devem estar sendo confirmadas.

— Tá, eu bati na árvore.

Ele olha para Camryn, agora.

— Foi isso que aconteceu? — ele pergunta a ela.

Camryn, nervosa pra caramba e pelo visto imaginando, como eu, o que o policial acha que realmente aconteceu, de repente faz a Natalie.

— Foi, senhor — ela diz, gesticulando muito. — Ele ficou nervoso porque uns filhos da puta... — ela se encolhe toda — desculpa, se aproveitaram da gente ontem à noite, e ele ficou se martirizando com isso a manhã toda e acabou descontando naquela árvore! Eu corri pra lá pra não deixar que ele se machucasse, a gente conversou, e eu tô com essa cara de merda pisada... ai, desculpa... por causa da noite de cão que a gente passou. Mas juro que não somos más pessoas. Não usamos drogas e ele não é um psicopata nem nada, então, por favor, libera a gente. Pode até fazer uma busca no carro, se quiser.

Momento. Sorvete. Na testa.

Eu rio por dentro. Não temos com que nos preocupar se ele quiser vasculhar o carro. A não ser que... nossos amigos temporários, Elias e Bray, tenham acidentalmente deixado uma trouxinha de erva ou qualquer porra incriminadora no banco de trás.

Puta merda... por favor, que não aconteça agora o que sempre acontece nos seriados de TV.

Eu olho para Camryn e balanço discretamente a cabeça.

Ela arregala os olhos.

— O que foi que eu falei?

Eu apenas sorrio, ainda balançando a cabeça, porque é só isso que posso fazer, na verdade.

O policial funga e depois mastiga a bochecha por dentro. Seus olhos vêm e vão entre mim e Camryn várias vezes e ele não diz uma palavra, o que só aumenta a nossa tensão.

— Da próxima vez, não deixem a porta escancarada assim — o policial diz, sua expressão tão neutra quanto esteve o tempo todo. — Seria uma pena alguém passar e arrancar a porta de um Chevelle 1969 em tão bom estado.

Um sorriso discreto ilumina o meu rosto.

— Com certeza.

O policial parte antes de nós, que ficamos dentro do carro estacionado por um mais um momento.

— “Pode fazer uma busca no carro, se quiser”? — repito.

— Pois é! — ela ri, jogando a cabeça para trás. — Eu não queria dizer isso. Escapou.

Eu rio também.

— Bom, parece que seu monólogo inocente... que, a propósito, me dá um pouco de medo; acho que aquela sua amiga bipolar tá te contagiando... deixou o policial com peninha e livrou a nossa cara.

Eu apoio as mãos no volante.

Ela estava sorrindo e provavelmente ia comentar minha piadinha com Natalie, até que vê de novo minha mão ensanguentada. Então se aproxima de mim e a pega delicadamente.

— A gente precisa limpar isso antes que infeccione — ela diz. Olha mais de perto e começa a tirar pequenos fragmentos de grama e terra em volta e dentro do ferimento. — Tá muito feio, Andrew.

— Não é tão grave assim — digo. — Não vai precisar de pontos.

— Não, você precisa é apanhar. Nunca mais faz isso. Tô falando sério. — Ela pega um último fragmento e depois se debruça por cima do encosto, procurando o pequeno isopor no banco de trás.

Eu viro a cabeça e só vejo a bunda dela saindo do short. Com minha mão ensanguentada, enfio o dedo dentro do elástico da calcinha do biquíni e o estalo sobre a pele dela. Ela não se assusta, mas revira os olhos quando para de remexer no banco traseiro, com uma garrafa d’água na mão.

— Enxágua isso — ela ordena, me passando a garrafa.

Eu abro a porta, pego a garrafa, estendo a mão para fora e derramo água sobre o ferimento.

Enquanto procura algo na bolsa, ela diz:

— Da próxima vez que você ficar puto e descarregar a raiva em algum objeto, vou pôr oficialmente o seu nome na minha Lista de Psicopatas. — Ela me passa um tubo de pomada.

Eu só balanço a cabeça e pego o tubo. Acho que não dá pra discutir com ela quanto a isso.

Ela aponta para a pomada e me manda aplicá-la logo. Eu rio e digo:

— Você parece uma sargenta.

Camryn me dá um soco de brincadeira no braço (machucando a própria mão, na verdade) e me acusa de insinuar que ela é gorda. É tudo brincadeira, e acho que é sua maneira de me ajudar a não pensar no que aconteceu. Depois de minutos, estamos conversando sobre música e sobre os bares ou clubes onde podemos tocar a caminho de Nova Orleans.

Sim, num certo momento decidimos que, não importando onde vamos parar ou quanto tempo vamos ficar, temos que visitar nosso lugar favorito à margem do Mississippi, haja o que houver.

~~~

Isso foi há dois dias. Hoje estamos acomodados num belo hotel no grande estado do Alabama.


Camryn


26

— TÁ EMPOLGADA com o que a gente vai fazer hoje à noite ou precisa respirar num saco de papel? — Andrew pergunta, saindo do banheiro com uma toalha enrolada na cintura.

— As duas coisas — respondo. Deixo o controle remoto sobre o criado-mudo e me sento na cama. — Conheço a música, mas é minha primeira apresentação solo. Por isso, sim, tô surtando um pouco.

Ele remexe na sua mochila perto da TV e acha uma cueca limpa. A toalha cai no chão. Eu inclino a cabeça, admirando sua bunda sexy da cama. Ele veste a cueca e ajeita o elástico na cintura.

— Você vai botar pra quebrar — ele diz, virando-se para mim. — Ensaiou um monte e já tá afiada. E se eu achasse que você não tava preparada, eu falaria.

— Eu sei que falaria.

— Bom, pronta pra trabalhar? — ele pergunta, terminando de se vestir.

— É. Acho que sim. Como eu tô?

Eu me levanto e dou uma volta, usando um top minúsculo preto com alcinhas finas e um jeans apertado.

— Peraí — eu exclamo, levantando o dedo. Calço minhas novas botas três quartos reluzentes e fecho o zíper na lateral. Então giro e faço pose de novo, exagerando um pouco.

— Insuportavelmente sexy, como sempre — ele elogia com um sorrisão, e então se aproxima de mim e passa a mão na minha trança.

Posso estar me apresentando sozinha cantando “Edge of Seventeen” da Stevie Nicks hoje, mas por duas horas, antes de subir no palco, vou trabalhar como garçonete e Andrew vai limpar mesas. Ganhei dele! Eu consegui o emprego mais legal.

A casa está lotada quando chegamos, às 19h. Adoro a atmosfera deste lugar. O palco é de bom tamanho, mas a área das mesas e a pista de dança são enormes. E está cheio, o que me deixa mais nervosa ainda. Eu vou até a cozinha, apertando a mão de Andrew, abrindo caminho no meio da multidão. Com estes empregos temporários, tivemos a sorte de trabalhar juntos por algumas noites. Quase todos os serviços que pegamos durante a viagem, desde a Virgínia, foram esporádicos. Eu trabalho como arrumadeira aqui e ali, enquanto Andrew trabalha de garçom ou até substitui algum leão de chácara. Ele pode não ser o tipo bombado (ainda bem, porque acho isso nojento), mas seus músculos são grandes o suficiente para ele ser contratado com facilidade. Por sorte, ele não precisou arrastar ninguém para fora pela camisa, nem apartar nenhuma briga.

Nosso chefe pelos próximos dias, German — é o nome dele mesmo, apesar de ele definitivamente não ser alemão, e sim o típico caipira do Meio-Oeste americano —, entrega a Andrew um avental branco e um broche que o identifica como “Andy”.

Eu seguro o riso, mas Andrew percebe a minha expressão divertida.

German esfrega sua mão roliça como uma salsicha no nariz, limpa-a no jeans e diz:

— Quando o povo levantá de uma mesa e terminá de recoiê as porra deles toda, cê vai lá e deixa a mesa limpinha pro próximo cliente. — Ele agita o dedo para Andy, hã, isto é, Andrew. — E não toca nas gorjeta. São só pras garçonete, tá me entendeno?

— Sim, senhor — Andrew diz. Quando German baixa os olhos para seu bloco de pedidos por um segundo, Andrew diz para mim, sem emitir som: Que porra...? E eu tento endireitar a boca e evitar sorrir quando German olha para nós de novo.

German olha para mim, mas olha mesmo, totalmente diferente de como estava olhando para Andrew agora há pouco. Ele abre um sorriso amarelo e diz:

— E ocê só pricisa fazê exatamente essa carinha que tá fazeno agora. Abre esse sorriso lindo e enche os bolso cas gorjeta.

Fico imaginando o que as outras garçonetes que trabalham aqui em tempo integral têm que aguentar desse cara.

Pisco meus olhos azul-bebê para ele e digo, com um sotaque caipira doce e sedutor:

— Pode deixá, seu German. E mais tarde, quando meu turno terminá, vô tê que ir lá pra dentro e retocá a maquiage antes de me apresentá, o senhor entende, né?

Noto que Andrew arregala os olhos e parece mais intrigado, mas eu continuo dando atenção a German, que já está comendo na minha mão de um jeito que, se eu o mandasse lamber o chão, ele falaria: Diz quando é pra pará, tá?

Andrew

Esse sotaque de bela do Sul que surgiu do nada me deixou morrendo de tesão. Vou ter que conversar com ela a respeito disso mais tarde.

Eu ponho meu broche, amarro o avental nas costas e pego a espécie de bacia de plástico que German aponta quando olho para ele. Cacete, não me incomoda fazer esse tipo de trabalho, mas German é um caipirão babaca, que espero que fique longe de mim pelas próximas duas horas. E ele está precisando de um desodorante. A porra do tubo inteiro, quero dizer. Ele realmente não combina com esse lugar. Parece uma bandeira confederada pendurada na janela de uma mansão de 400 mil dólares. O bar e restaurante até que é bem decorado. Por dentro, pelo menos.

Eu me dirijo para a área das mesas com a bacia debaixo do braço e vou para a primeira mesa vazia que vejo. Pego todo o lixo, os pratos sujos cheios de fritas e bolinhos que sobraram e jogo tudo dentro da bacia. Depois limpo a mesa com o trapo que tiro do bolso do avental e endireito os potes de ketchup e molho de churrasco. É tudo muito automático, diferente do serviço de garçonete, e acho que por isso somente Camryn precisou fazer uma hora de treinamento ontem para começar a trabalhar hoje. Ela pode ter o emprego que rende gorjetas, no qual pode usar seu charme sexy, mas precisa aguentar o chefe nojento e tarado. E eu tô adorando isso. Bem feito pra ela por tirar sarro do meu emprego de limpar mesas. Ela fez piadinha, me chamando de “escória” do bar. Bem, espero que ela não ache que vou tirar o traseirinho magro dela da reta, caso German resolva avançar o sinal. Ela vai ter que se virar sozinha.

Eu limpo mais algumas mesas, deixando uma gorjeta de cinco dólares numa e outra de vinte na outra. Quando estou para voltar para a cozinha para esvaziar a bacia, sou parado por quatro garotas numa mesa perto do balcão do bar.

— Ei, gatão — uma das mulheres mais velhas diz, me chamando com um dedo. — Podemos pedir nossas bebidas pra você?

— Sinto muito, senhora, mas eu só limpo as mesas.

Eu tento me afastar, mas outra mais bonita me impede.

— Aposto que se a gente pedisse pra você ser nosso garçom, você seria promovido. — Seus olhos estão vidrados e sua cabeça balança um pouco. Eu noto, porque é difícil não notar, seus peitos enormes saindo do top apertado. Ela os empina mais ainda.

— Bom, vocês podem pedir — eu digo, também mostrando meu charme, sorrindo com o canto da boca. — E se a chefia deixar, serei seu a noite toda.

As quatro se entreolham numa espécie de conversa silenciosa. Já estão comendo na minha mão.

Camryn chega atrás de mim carregando uma bandeja cheia de copos de uísque e um copo já lotado de notas. Eu me pergunto se aquele é o dinheiro das gorjetas ou o pagamento dos drinques. Isso está me deixando ansioso.

Ela dá um sorrisinho para mim, olhando para a mesa das mulheres, e depois rapidamente para mim de novo.

— Ele está incomodando vocês? — ela pergunta.

Eu sei que ela não está com ciúmes; hoje só o que importa é a competição entre nós dois. E ela vai fazer tudo o que puder para impedir que eu ganhe a pequena aposta que fizemos no carro a caminho daqui:

— Você acha que não consigo ganhar gorjetas só porque tô limpando mesas?

— Não consegue — ela disse. — Copeiro não ganha gorjeta.

— Pense bem — eu disse, olhando-a do banco do motorista. — É um bar cheio de mulheres e álcool. Aposto que consigo ganhar gorjetas.

— Ah, é mesmo? — ela perguntou, estufando os lábios.

— Sim — eu disse, e então aumentei o cacife, porque estava me sentindo ousado: — Na verdade, aposto que consigo ganhar mais gorjetas do que você.

Camryn riu.

— É sério? Quer mesmo apostar isso? — Ela cruzou os braços e balançou a cabeça como se eu estivesse dizendo algo ridículo.

— Quero — eu disse, mesmo sabendo que deveria ter dito Não, tô brincando.

Mas eu não disse não, e agora estou amarrado a essa aposta, e se Camryn ganhar, vou ter que fazer uma massagem de uma hora nela por três noites seguidas. Uma hora é muito tempo de massagem. Fico com os braços cansados só de pensar.

A mulher mais velha responde para Camryn:

— Não, ele não tá incomodando nem um pouco, lindinha. — Ela me olha de alto a baixo como se quisesse arrancar minha roupa e me lamber, apoiando o queixo nas duas mãos. — Ele pode ficar aqui o tempo que quiser. Cadê o seu chefe?

— Ele tá por aqui — Camryn diz. — É só procurar um gordão de uniforme. O nome dele é German.

— Obrigada, gata — a mulher diz, e volta a olhar para mim.

Essa mulher, admito, meio que me dá medo. E como ela parece ser a líder da matilha, decido que preciso sair dali antes que ela ache que estou mesmo a fim dela, porque aí eu é que vou precisar da ajuda de Camryn pra sair da enrascada em que me meti.

— Tenham uma ótima noite, madames — digo com um sorriso acolhedor, e me viro para ir embora.

Sinto uma mão deslizando para dentro do bolso do meu avental. Eu paro e olho para a mão que a mulher já está tirando do meu bolso. Ela está me encarando com aquele famoso olhar cheio de tesão.

— Pra você também, docinho — ela diz.

Pisco para ela e sorrio para as outras três enquanto me afasto casualmente. Quando chego à cozinha, esvazio a bacia, enfio a mão no bolso e tiro dele três notas de vinte dólares.

Porra, talvez aquela aposta não tenha sido tão ridícula, no fim das contas.

Duas horas depois...

A aposta foi ridícula, sim.

— 240, 241, 246, 256. — Camryn fica contando suas gorjetas, agora que nosso curto turno acabou. Ela dá um sorrisinho e acrescenta: — E você, quanto conseguiu?

Estou tentando ficar sério para que minha decepção pareça minimamente genuína, mas ela não está facilitando. Por isso pego meu dinheiro, conto de novo e respondo:

— 82 dólares.

— Bom, até que não tá ruim pra um copeiro, admito — ela diz, embolsando sua grana.

— Como assim, admite? — pergunto, desatando o avental e tirando-o. — Vai perdoar a aposta?

— Pfah! De jeito nenhum.

German chega atrás de nós.

— É bom que a cantoria docês preste. E nada dessas merda de rap, nem musiquinha new age metida a besta. — Ele estala os dedos rapidamente, como se estivesse tentando lembrar algum exemplo, mas logo desiste. — Cês num tão no Ídolos.

— Entendido — Camryn diz, com aquele seu sorriso doce.

German, com um sorriso de babacão na cara, desperta do feitiço dela e, ao se afastar, rosna quando passa por mim. Melhor isso do que me olhar do jeito que ele olha para Camryn, por isso não vou reclamar.

Eu me viro para Camryn.

— Não fica nervosa. — Eu seguro as mãos dela. — Já falei, você vai botar pra quebrar.

Ela balança a cabeça nervosamente. Então solta um suspiro rápido, fazendo bico, e respira fundo.

— Vou pegar a guitarra enquanto você se prepara — digo.

— Tudo bem.

Eu a beijo nos lábios e vou até o carro pegar a guitarra elétrica que ela me deu de presente de aniversário, que está no porta-malas. Apesar de “Edge of Seventeen” ser o solo dela, o próprio riff da guitarra é tão conhecido que estou quase tão nervoso quanto ela por ter que tocá-lo. Tudo bem, talvez não tão nervoso — é uma música até bem fácil. O que me deixa um pouco tenso é o medo de estragar o número dela. É só por causa dela que o show de hoje me deixa tenso.

Eu subo no palco e encontro o baterista, Leif, que conhecemos ontem, se preparando.

— Obrigado por tocar com a gente, cara — agradeço.

— Sem problemas — Leif diz. — Já toquei essa várias vezes num bar da Geórgia onde eu trabalhava, uns anos atrás.

Camryn ficou feliz por encontrar um baterista que conhece a canção. Ela estava preparada para se apresentar só comigo, sabendo que não seria a mesma coisa sem a bateria. Mas quando conhecemos Leif ontem, durante o treinamento dela como garçonete, e ele concordou em tocar conosco esta noite, acho que Camryn se sentiu bem mais confiante.

Eu passo a alça da guitarra pelo ombro assim que Camryn aparece no palco.

Ela vem direto na minha direção, eu encosto no seu ouvido e digo:

— Você tá gostosa.

Ela fica vermelha e olha para sua roupa. Ela trocou o top preto bonitinho que estava usando por outro de seda, também preto, com um decote nas costas que expõe sua pele quase até a cintura. O colar que comprei para ela brilha sobre a seda preta na frente. E ela soltou o cabelo. Adoro a trança que ela sempre usa, mas devo dizer que ela fica sexy em outro nível com o cabelão sedoso e louro caindo sobre os ombros.

O vozerio no bar ecoa pelo ambiente espaçoso, alto até enquanto Leif testa o bumbo da bateria atrás de nós. Todas as mesas estão ocupadas, bem como os bancos junto à parede dos fundos. Minhas quatro “amigas” ainda estão aqui e migraram de seu lugar para uma mesa mais próxima do palco. Elas parecem intrigadas com minha transformação de copeiro em guitarrista. Normalmente, a essa altura, eu estaria procurando na plateia minha “vítima” da noite, mas hoje é diferente, e não vamos fazer nada disso. Camryn está nervosa e concentrada demais para tentar nossa brincadeira de sempre.

Depois que finalmente nos preparamos e estamos prontos para começar, Camryn prende a respiração por um momento e olha para mim.

Eu espero que ela me dê o sinal, e quando a vejo acenar, começo a tocar, e todos os olhos na multidão se viram para nós. Essa introdução da guitarra sempre chama a atenção de todos numa casa lotada. E Camryn, assim que começa a cantar, como sempre acontece também comigo, se transforma em alguém completamente diferente, a ponto de me deixar atordoado. Ela é a dona da canção. Está muito diferente de como estava em todos os nossos ensaios. Confiança e sensualidade derramam de cada verso da canção e de cada movimento seu, e todo o meu corpo reage a isso.

— Ooo, baby, ooo, ooo! — eu acompanho no refrão.

Mas todos estão olhando para ela, até minhas quatro amigas, que sei que de início haviam se aproximado para me olhar. Não, agora elas pertencem sobretudo a Camryn, e isso me deixa orgulhoso.

Antes mesmo que termine a primeira estrofe, a pista de dança já está lotada. A energia e o sexo na voz de Camryn, misturados com o fascínio de todos com sua apresentação, me fazem perder o controle, e eu martelo aquele riff com mais devoção do que antes.

— Ooo, baby, ooo, ooo!

A cada poucos segundos, ouço uma voz gritar ao fundo:

— Huuuuu! — E também cada vez que Camryn solta uma nota tocante.

E eu não me canso disso.

Canto a plenos pulmões junto com ela nos dois refrões seguintes, e sei que a quarta estrofe, aquela em que ela sempre se embanana, vem a seguir. Olho para ela, ainda agitando a palheta rapidamente sobre as cordas, com as costas arqueadas, e não vejo nenhum sinal de nervosismo em seu rosto. Ela está no controle; posso perceber, só de olhar, que de jeito nenhum ela vai errar.

E então a letra sai tão rápida e impecavelmente de seus lábios que sinto meu rosto esticado até o limite por um sorriso quando canto junto com ela a todo volume o refrão seguinte.

Porra, minha gata tomou posse da canção. Te cuida, Stevie Nicks!

Passando a metade da canção, Camryn canta: Oooo! E sua voz some naquela parte sombria da melodia que permite um breve descanso à sua voz.

Mas o solo de guitarra continua. É cansativo, mas meus dedos não param, sem errar uma nota.

Camryn e eu nos entreolhamos e temos um momento só nosso. Então ela volta a cantar, e eu canto junto no momento certo.

Ela continua cantando, suas duas mãos seguram o suporte do microfone, seus olhos se fecham quando ela berra com tanta emoção:

— Yeah! Yeah!

Então ela olha para mim de novo e continua me encarando enquanto solta a estrofe seguinte, como se estivesse cantando apenas para mim.

Calafrios percorrem a minha espinha. Eu sorrio e continuo tocando até a canção acabar.

A plateia explode com uivos e gritos. Camryn agradece as palmas primeiro, depois eu. Ela está com um sorriso enorme, olhando para a multidão, e eu fico meio comovido por dentro.

Sem tirar a guitarra, que empurro para as costas, me aproximo de Camryn e a levanto do chão em meus braços. Os assobios e gritos vêm de todos os lados, mas a única coisa que eu noto é Camryn me olhando. Eu a beijo profundamente, e a multidão assobia e grita ainda mais.

Antes de a noite acabar, fazemos um show completo de dez canções para uma multidão cada vez maior, com o passar das horas. Voltamos a cantar algumas das nossas favoritas: “Barton Hollow”, “Hotel California” e “Birds of a Feather”, entre outras, e cada canção parece agradar mais ao público. Não canto sozinho esta noite, embora Camryn chegue a me pedir isso. A noite foi dela e só dela. Me recuso a ser o centro das atenções, mesmo por apenas uma canção.

Voltamos ao hotel às duas da manhã, e eu pago de bom grado a aposta que perdi.


Camryn


27

— GERMAN PARECE achar que a gente vai ficar muito tempo aqui — eu digo, com o lado direito do rosto encostado no colchão. — Eu falei pra ele que era só temporário.

As mãos mágicas de Andrew pressionam os dois lados das minhas costas dos ombros até a cintura, e eu viro massa de modelar em suas mãos. Fico deitada ali e curto essa massagem como se nunca tivesse sido massageada na vida. Mal consigo abrir os olhos. Ele está sentado sobre meu corpo quase nu, a cavalo sobre minha cintura.

— É, ele me puxou de lado uma hora e perguntou a que horas a gente ia tocar amanhã. — Andrew ri e aperta as pontas dos dez dedos com força na minha pele, mexendo as mãos num firme movimento circular.

Eu gemo debaixo dele.

— A gente pode ficar mais uns dias — ele diz —, mas acho que devíamos partir logo.

— Concordo. E também, os mosquitos em Mobile são horríveis! Você viu que enxame apocalíptico em volta das lâmpadas quando a gente saiu de lá?

Andrew ignora a pergunta e diz:

— Você foi sensacional hoje. Eu sabia que você ia mandar bem, mas pra falar a verdade, não tava esperando aquilo.

Eu finalmente abro os olhos e espio pela janela.

— O que, exatamente? — pergunto.

Suas mãos não param de massagear minhas costas.

— Você subiu no palco e tomou posse da canção. Você tem um talento natural.

— Não sei se tenho — respondo. — Mas tô orgulhosa de mim mesma. Sério, não sei o que deu em mim. Esqueci o nervosismo e mergulhei de cabeça.

— Bom, funcionou — ele diz.

— Só porque você tava lá comigo — eu saliento.

Ficamos em silêncio por vários minutos, eu de olhos fechados, com sua massagem ameaçando gradualmente me mandar para a terra dos sonhos. A circulação ao redor dos meus olhos parece aliviar; minha cabeça toda está formigando, e minha nuca se arrepia quando ele afunda os dedos no meu couro cabeludo.

Antes que passe uma hora, começo a me sentir culpada por fazê-lo trabalhar tanto tempo e digo:

— Se você estiver cansado, pode parar.

E quando ele não para, eu o faço parar, virando o corpo e me deitando de costas. Ele fica em cima de mim e me beija de leve na boca. E nós nos olhamos por um momento, um examinando os olhos do outro, estudando os lábios. Sinto-o pressionar meu corpo lá embaixo, sua boca se fecha sobre a minha num beijo apaixonado e ele começa a fazer amor comigo.


Andrew


28

ESTAMOS NA ESTRADA de novo, em algum lugar de uma rodovia entre Gulfport, Mississippi e Nova Orleans. O dia está perfeito, com céu azul e calor na medida certa para que possamos viajar de janelas abertas, sem sentir necessidade de ligar o ar-condicionado do carro. Camryn está dirigindo e eu descanso no banco do passageiro, numa posição bem parecida com a sua de sempre, com um pé para fora da janela.

Ficamos em Mobile uma semana e pagamos o quarto de hotel, toda a comida e a gasolina só com uma fração do dinheiro que ganhamos tocando e das gorjetas de Camryn como garçonete. Minhas gorjetas de copeiro foram só uma gota no oceano, comparadas com as dela.

Meu celular vibra no bolso da minha bermuda preta de lona e eu atendo.

— E aí, mãe, tudo bem?

Ela diz que sente muito a minha falta e logo começa a fazer perguntas sobre os meus checkups.

— Não, eu tô fazendo, sim — digo. — É, fiz tomografia esses dias num hospital em... Não, eles só ligaram pro dr. Masters pra pedir minha ficha e... Tá, mãe. Eu sei. Eu tô me cuidando. — Olho para Camryn, que está sorrindo. — Camryn não me deixa faltar. É. Bom, agora a gente tá indo pra Nova Orleans, não sei quanto tempo a gente vai ficar lá, mas depois vamos passar por aí pra te visitar, tá?

Depois que eu desligo, Camryn pergunta:

— No Texas?

Imediatamente, sinto que ela está pensando a mesma coisa que pensou na nossa primeira viagem, mas ela me desmente quando diz:

— Pra mim não tem problema nenhum. Só tô curiosa pra saber nosso destino. — Ela sorri, e percebo na hora que não está escondendo nada.

— O Texas não te preocupa? — eu pergunto.

Ela olha de novo para a estrada ao chegar numa curva, depois volta a olhar para mim.

— De jeito nenhum. Não como me preocupava antes.

— O que te fez mudar de ideia? — Eu tiro o pé da janela e me viro para olhá-la melhor, intrigado pela mudança de opinião.

— As coisas estão diferentes agora — ela diz. — Mas de um jeito bom. Andrew, o mês de julho foi difícil. Pra nós dois. Não sei como eu sei, mas acho que eu já previa desde o início que alguma coisa ruim ia acontecer quando a gente chegasse ao Texas. Por um tempo, achei que eu só estivesse preocupada por aquela ser a última parada da nossa viagem. Mas agora não sei mais. Era como se eu soubesse...

Eu sorrio um pouco.

— Acho que eu entendo — digo. — Então preciso fazer uma pergunta.

Ela olha para mim, esperando.

— A gente vai parar definitivamente um dia?

Sua reação não é a que eu esperava. Eu esperava que seu sorriso sumisse e o momento se perdesse, mas em vez disso, seus olhos brilham, e sinto um ar de calma emanando dela.

— Um dia — ela diz. — Mas ainda não. — Ela olha novamente para a estrada e continua: — Sabe, Andrew, quero ir pra Itália um dia. Pra Roma. Sorrento. Talvez não agora, nem mesmo nos próximos cinco anos, mas espero ir pra lá. Pra França também. Pra Londres. Adoraria até conhecer a Jamaica, o México e o Brasil.

— É mesmo? Ia levar um tempão visitar todos esses lugares — eu digo, mas não de forma a desencorajá-la. Eu também adoraria.

O vento da janela aberta roça seu cabelo, soltando mais fios de sua trança, que dançam ao redor do seu rosto radiante.

— Eu me sinto livre com você — ela diz. — Sinto que posso fazer qualquer coisa. Ir a qualquer lugar. Ser o que eu quiser. — Seus olhos pousam em mim mais uma vez e ela continua: — A gente vai parar logo, mas nunca quero parar definitivamente. Isso faz sentido?

— Com certeza — respondo. — Eu não teria dito melhor.

Chegamos à divisa da Louisiana logo depois que escurece, e Camryn para no acostamento.

— Acho que não consigo mais dirigir — ela diz, esticando os braços para trás e bocejando.

— Eu falei há uma hora que você precisava me deixar dirigir.

— Bom, agora eu tô deixando. — Ela fica ranzinza quando está cansada.

Ambos saímos para trocar de lugar, mas paramos quando nos encontramos na frente do carro.

— Você viu onde a gente tá? — pergunto.

Camryn olha para os dois lados da rodovia deserta. Ela dá de ombros.

— Hã, no meio do nada?

Eu rio baixinho e aponto para o campo. Depois aponto para as estrelas.

— A última vez não valeu, lembra?

Seus olhos brilham, mas sinto que ela está dividida. Não levo muito tempo para entender por quê.

— É um campo plano e aberto. E não tem vaca nenhuma até onde a vista alcança — digo.

Eu sei que absolutamente nada que eu disser vai tranquilizá-la quanto à possibilidade de cobras, mas estava tentando ser sutil e dar uma de idiota, esperando que ela esquecesse isso.

— E as cobras? — ela pergunta, não esquecendo.

— Não deixe seu medo de cobras estragar uma oportunidade perfeita de finalmente dormir sob as estrelas.

Ela estreita os olhos para mim.

Resolvo apelar para a artilharia pesada e simplesmente imploro.

— Por favor? Por favorziiiiinho? — Eu me pergunto se minha cara de gatinho do Shrek é tão eficaz com ela quanto a dela sempre é comigo. Meu instinto inicial foi jogar a desgraçada em cima do ombro e carregá-la à força, mas também estou curioso quanto à eficiência da minha técnica implorativa.

Ela rumina por um minuto e finalmente cede ao meu charme.

— Tá — ela admite, um pouco exasperada.

Eu pego o cobertor do porta-malas e nós passamos juntos por cima da vala e da cerca baixa, depois cruzamos o enorme campo até que encontramos um bom lugar, vários metros à frente. Tenho uma sensação de déjà vu. Estendo o cobertor na grama seca e verifico rapidamente se há cobras nos arredores, só para deixá-la mais tranquila. Nós nos deitamos lado a lado, de costas, com as pernas esticadas sobre o cobertor, cruzando os tornozelos. E olhamos para a imensidão escura e infinita do céu cheio de estrelas. Camryn aponta várias constelações e planetas, me explicando cada um em detalhes, e eu fico impressionado em ver o quanto ela sabe, e como consegue reconhecê-los.

— Eu nunca imaginei que você fosse tão... — tenho dificuldade para encontrar as palavras certas.

— Tão culta? — Sinto que ela sorri discretamente ao meu lado.

— Bom, eu... não quis dizer que acho você...

— Uma garota desmiolada e superficial que não sabe que a Via Láctea não é uma comida de bebê, nem que a teoria do Big Bang é mais do que um seriado de TV?

— É, alguma coisa assim — digo, só para fazer o jogo dela. — Não, mas falando sério, como sabe tudo isso? Nunca pensei que você se interessasse por ciências.

— Eu queria ser astrofísica. Decidi isso quando tinha uns 12 anos.

Fico completamente chocado com sua confissão, mas continuo olhando as estrelas com ela, meu sorriso aumentando.

— Bom, na verdade eu queria ser isso, mais física e astronauta e também trabalhar na NASA, mas acho que eu tava meio iludida, na época. Obviamente.

— Camryn — eu digo, ainda tão surpreso que mal sei o que dizer. — Por que você nunca me contou isso?

Ela dá de ombros.

— Não sei — ela diz. — O assunto nunca surgiu. Você nunca sonhou em ser alguma coisa diferente do que é?

— Acho que sim — respondo. — Mas, amor, por que você não foi atrás disso? — Eu levanto o corpo do cobertor e me sento. Isso pede toda a minha atenção.

Ela olha para mim como se eu estivesse exagerando.

— Provavelmente pelo mesmo motivo que você não foi atrás do que você queria ser. — Ela dobra os joelhos e cruza as mãos sobre a barriga. — O que você queria ser?

Não quero falar de mim agora, mas acho melhor responder, já que ela me perguntou duas vezes.

Eu também dobro os joelhos e apoio os antebraços sobre eles.

— Bom, à parte o clichê de sonhar em ser um astro do rock, como todo mundo, eu queria ser arquiteto.

— Sério?

— Sim — digo, balançando a cabeça.

— Era isso que você tava estudando antes de largar a faculdade?

Eu balanço a cabeça.

— Não — digo, e rio um pouco do absurdo da minha resposta. — Eu tava fazendo faculdade de ciências contábeis e administração.

Camryn franze o cenho.

— Ciências contábeis? Tá falando sério? — Ela está quase rindo.

— Pois é, você vê? — digo, rindo também. — Aidan me ofereceu sociedade no bar dele. Na época, eu só via cifrões na minha frente, e achei que ter um bar seria uma oportunidade e tanto. Eu poderia tocar lá e... não sei o que eu tava pensando, mas topei a proposta do meu irmão na hora. Aí ele começou a dizer que eu precisava entender a parte administrativa do negócio, essa porra toda. Eu entrei na faculdade, e foi então que a ideia foi por água abaixo. Eu tava cagando pras ciências contábeis, pra administrar um bar ou ter que lidar com todos os aspectos negativos de ter um negócio. — Paro por um momento e então digo: — Acho que, como você disse, eu tava iludido, queria todos os aspectos positivos, mas nenhum negativo. Quando percebi que não era assim que funcionava, falei: foda-se.

Ela se senta junto de mim.

— Então por que você não foi atrás de ser arquiteto?

Eu dou um sorrisinho.

— Provavelmente pelo mesmo motivo que você não foi atrás de ser astrofísica.

Ela apenas sorri, sem ter como rebater isso.

Eu olho para o cabelo louro de Camryn e para o campo.

— Acho que somos só duas almas perdidas nadando num aquário — declaro.

Seus olhos se estreitam.

— Já ouvi isso em algum lugar.

Eu sorrio e aponto rapidamente para ela.

— É Pink Floyd. Mas é verdade.

— Você acha que a gente tá perdido?

Eu inclino um pouco a cabeça, olho para as estrelas atrás dela e digo:

— Na sociedade, talvez. Mas juntos, não. Acho que estamos exatamente onde precisamos estar.

Nenhum dos dois diz mais nada por um bom tempo.

Ficamos deitados um ao lado do outro, fazendo o que fomos fazer ali. Enquanto olho para a escuridão infinita daquele céu, fico totalmente assombrado com o momento. Acho que encontro um pouco de mim mesmo naquelas estrelas. Por um bom tempo esqueço a música, a estrada, o tumor que quase me matou ano passado e o momento de fraqueza que quase matou o espírito de Camryn. Esqueço que perdemos Lily e que sei que Camryn parou de tomar anticoncepcional e não me contou. E esqueço também que parei de gozar fora por um motivo e não contei a ela.

Eu realmente esqueço tudo. Porque é isso que um momento assim faz com você. Faz você se sentir algo tão pequeno, dentro de algo tão imenso que está além da compreensão. Apaga todos os seus problemas, suas dificuldades, todas as suas necessidades, aspirações e desejos mundanos, te obrigando a perceber o quanto tudo isso na verdade é insignificante. É como se a Terra ficasse completamente silenciosa e imóvel, e sua mente só pudesse entender ou sentir a imensidão do Universo, e você fica sem fôlego pensando no seu lugar dentro dele.

Quem precisa de psiquiatras? Quem precisa de acompanhamento psicológico, mentores e palestras motivacionais? Vão todos pra casa do caralho. Apenas olhe para o céu noturno e se deixe perder nele de vez em quando.

~~~

Algo desagradável me acorda na manhã seguinte. Farejo o ar de olhos ainda fechados, minha mente não totalmente acordada, mas meu corpo e meu olfato funcionando antes de mim. Há uma brisa fresca no ar e minha pele parece úmida, como se eu estivesse coberto de orvalho. Virando para o outro lado, farejo o ar de novo e o cheiro é ainda pior do que antes. Ouço algo raspando nas proximidades, e finalmente meus olhos se abrem um pouco. Camryn está capotada ao meu lado. Mal consigo ver sua trança loura em cima do cobertor entre nós. Ela parece estar encolhida em posição fetal.

Que fedor é esse?!

Cubro a boca com a mão e começo a me levantar do cobertor. Camryn começa a se mexer ao mesmo tempo, virando de barriga para cima e esfregando o rosto e os olhos com as duas mãos. Ela boceja. Quando me sento e abro completamente os olhos, Camryn pergunta:

— Que fedor da porra é esse? — e faz uma careta.

Estou para responder que deve ser o bafo dela, quando seus olhos azuis ficam arregalados de pavor, ao olhar atrás de mim.

Instintivamente, eu me viro rápido.

Uma manada de vacas está a poucos metros de nós, e quando percebem que estamos nos mexendo, elas se assustam.

— Meu Deus! — Camryn se põe de pé num pulo mais rápido do que na noite em que a cobra subiu no nosso cobertor, me fazendo pular também.

Duas vacas mugem, gemem e grunhem, recuando para perto das outras, agitando a manada ainda mais.

— Acho melhor a gente sair correndo — digo, pegando Camryn pela mão e disparando com ela.

Nem paramos para pegar o cobertor, de início, mas eu paro e me viro, segundos depois, para agarrá-lo. Camryn grita, eu começo a rir e nós desabalamos para longe das vacas, na direção do carro.

— Puta meeeerda! — eu grito, enfiando o pé num monte enorme da substância.

Camryn cacareja de tanto rir, e ambos praticamente rolamos o resto do caminho pelo campo, eu tentando raspar a bosta da sola do sapato e correr ao mesmo tempo, e os chinelos de dedo de Camryn grudando no chão, tentando acompanhar seus passos.

— Não acredito que isso aconteceu! — Camryn ri quando finalmente alcançamos o carro. Ela fica encurvada e apoia as mãos nos joelhos, tentando recuperar o fôlego.

Eu também estou sem fôlego, mas continuo a raspar incansavelmente a sola do meu sapato no asfalto.

— Puta que pariu! — exclamo, esfregando o pé para todo lado.

Camryn se senta no capô do carro, balançando as pernas.

— Agora valeu pra você? — ela pergunta, com riso na voz.

Eu fico parado, ofegando. Olho para ela, para seu sorriso lindo e radiante e digo:

— É, acho que já dá pra riscar esse item da lista.

— Ótimo! — ela diz. Depois aponta para trás de mim. — Esfrega na grama. Assim você só tá espalhando bosta pra todo lado.

Eu saltito para a grama e começo a esfregar o pé de novo.

— Desde quando você virou especialista em bosta?

— Veja lá como fala — ela avisa, se sentando no lugar do motorista.

— Por que, o que você vai fazer? — eu provoco.

Ela dá a partida no Chevelle e acelera algumas vezes. Há um brilho cruel no seu olhar. Ela apoia o braço esquerdo na janela aberta, e quando me dou conta, o carro já está passando lentamente por mim.

Eu a fuzilo com o olhar como aviso, mas seu sorriso só aumenta.

— Eu sei que você não me deixaria aqui! — grito quando ela passa.

É claro que não...

Ela se afasta cada vez mais, e de início eu pago pra ver, parado ali, vendo o carro ficar cada vez menor...

Por fim, eu saio correndo atrás do carro.


Camryn


29

A PRIMEIRA COISA que me vem em mente quando chegamos a Nova Orleans é lar doce lar. Fico empolgada quando o cenário se torna familiar: os grandes carvalhos e as lindas casas históricas, o Lago Pontchartrain e o Superdome, os bondes vermelhos e amarelos que sempre me pareceram de brinquedo. E, é claro, o Bairro Francês. Tem até um homem tocando saxofone numa esquina, e sinto que entramos diretamente num cartão-postal de Nova Orleans.

Olho para Andrew e ele sorri para mim rapidamente. Ele dá a seta e viramos à direita na Royal Street. Meu coração falha e bate forte ao mesmo tempo quando vejo o Holiday Inn. Tanta coisa aconteceu aqui há dez meses. Este lugar... logo um hotel... é tão mais do que isso para mim, para nós dois.

— Imaginei que você gostaria de ficar aqui enquanto estivéssemos na cidade — Andrew diz, com um enorme sorriso.

Como as lembranças ainda estão, por assim dizer, tirando meu fôlego, não consigo responder, por isso só balanço a cabeça e sorrio como ele.

Pegamos nossas coisas no carro e entramos no saguão. Tudo parece exatamente igual, exceto talvez as duas mulheres na recepção, quando nos aproximamos. Não me lembro delas.

Ouço vagamente Andrew perguntar sobre a disponibilidade dos quartos que ocupamos da outra vez enquanto olho ao meu redor, tentando absorver tudo.

Meu Deus, senti falta deste lugar.

— Sim, parece que esses dois quartos estão vagos — ouço uma das recepcionistas dizer. — Querem ficar com os dois?

Isso chama a minha atenção.

Andrew se vira para mim. Acho que ele quer minha opinião.

Passo a bolsa para o outro ombro e hesito por um momento, ponderando a pergunta. Não previ isso, nem que a decisão seria tão difícil.

— Hãã, bem... — Olho para Andrew e depois para a recepcionista, ainda indecisa. — Não sei. Tá, talvez a gente devesse ficar naquele onde... — Eu me interrompo, sem querer dar a impressão de que somos dois adolescentes imaturos, desta vez, e encaro Andrew com um olhar que diz tudo. — Aquele onde o pacto foi selado.

Andrew luta para se manter sério, mas vejo claramente o sorriso em seus olhos quando ele entrega o cartão de crédito à recepcionista.

Saímos do saguão logo depois e tomamos o elevador até nosso andar. Andando pelo corredor, ainda estou absorvendo tudo ao meu redor, até a cor da tinta das paredes, porque tudo faz parte de uma lembrança, por maior, menor ou aparentemente insignificante que seja. A sensação de estar aqui de novo... sinto quase que vou cair no choro de felicidade. Mas também estou empolgada, e isso me salva de me debulhar em lágrimas.

Andrew para entre as duas portas dos nossos antigos quartos, com as duas mochilas e a guitarra elétrica que lhe dei penduradas nos ombros. Ele quer comprar um estojo para a guitarra, mas ainda não fez isso.

— É estranho estar aqui de novo, não? — ele pergunta, me olhando.

— Estranho, mas de um jeito bom.

Ficamos assim por um minuto, olhando um para o outro e para as duas portas, até que finalmente Andrew se dirige para o quarto que escolhemos e passa o cartão na fechadura.

É realmente como entrar no passado. A porta se abre lentamente, e é como se todas as emoções que experimentamos naquele quarto tivessem sido deixadas ali e estivessem nos cumprimentando agora, quando entramos. Assim que pisamos lá dentro, lembro cada noite que passamos aqui, separados e juntos, como se fosse ontem. Olho para o lugar perto da cama onde eu estava quando Andrew me domou e me tornou sua. Olho pela janela para as ruas movimentadas do Bairro Francês. Revejo o dia em que Andrew se sentou naquela soleira tocando violão, e até me vejo ali, dançando e cantando “Barton Hollow”, quando achei que estava sozinha. Eu me viro para ver o banheiro, e quando Andrew acende a luz, meu olhar vai primeiro para o chão e lembro, embora vagamente, a noite em que ele dormiu ao meu lado.

Acho que às vezes as melhores lembranças se criam nos lugares mais improváveis, mais uma prova de que a espontaneidade é mais recompensadora do que uma vida meticulosamente planejada. Do que qualquer coisa meticulosamente planejada.

Eu me viro para Andrew.

— Não sei por quê, mas eu sinto... bom, sinto que todos os meses que passamos na estrada desde dezembro foram pra chegar a este lugar. Esta cidade. Este hotel. — Não acredito que estou dizendo isso, e imediatamente começo a questionar meus motivos. Pode significar tantas coisas diferentes, mas acho que o maior significado é que nós precisávamos voltar para lá.

Sim, é exatamente isso, ou pelo menos é o que eu precisava. Quando recebo essa revelação, me vejo parada naquele quarto, cercada por pensamentos em vez de objetos materiais. Olho nos olhos de Andrew, mas na verdade não é ele que vejo. O que vejo é ele no passado. Os mesmos olhos verdes magnéticos, outro ano.

Por que estou me sentindo assim?

— Talvez você tenha razão — ele concorda, e então seu tom de voz fica mais misterioso. — Camryn, o que você tá pensando agora?

— Que a gente foi embora cedo demais da última vez. — Foi a primeira coisa que pensei, e só agora que falei começo a entender o quanto pode ser verdade.

— Por que você acha isso? — ele pergunta, se aproximando de mim.

Não sinto que ele está me fazendo perguntas para as quais já sabe as respostas, desta vez. É como se ambos estivéssemos seguindo a mesma linha de raciocínio, ambos tentando entender o sentido de tudo e buscando respostas um no outro.

Nós nos sentamos no pé da cama juntos, eu com as mãos no meio das coxas, como ele, e ficamos em silêncio por vários longos segundos. Finalmente, viro a cabeça para olhá-lo à minha direita e digo:

— Eu não queria partir quando a gente partiu, Andrew. Eu sabia que nossa próxima parada, depois de Nova Orleans, seria Galveston. Eu não tava preparada pra deixar este lugar... mas não sei por quê.

E essa verdade me deixa ansiosa.

Por quê? Além de temer que o Texas significasse o fim da nossa viagem, ou mais tarde sentir que eu sabia que algo ruim iria acontecer lá, por que mais eu iria querer ficar? Eu não queria necessariamente ficar ali para sempre, só acho que partimos cedo demais.

— Não sei — ele diz, dando de ombros. — Talvez seja porque foi aqui que finalmente selamos o pacto. — Ele me dá uma cotoveladinha de brincadeira.

Não consigo deixar de sorrir.

— É, talvez, mas acho que é mais do que isso, Andrew. Acho que é porque a gente se encontrou aqui. — Eu olho para a parede, pensativa. — Não sei mesmo.

Sinto a cama se movimentar quando Andrew se levanta.

— Bom, sugiro que desta vez a gente aproveite ao máximo antes de partir. — Ele estende a mão para mim e eu a seguro. — Talvez a gente desvende esse mistério.

Eu me levanto e digo:

— Ou... talvez seja uma nova chance.

Sinceramente, não faço ideia do que me levou a dizer isso.

— Uma nova chance de quê, exatamente? — ele pergunta.

Eu fico em silêncio, pensando, e em seguida respondo:

— Isso eu também não sei...


CONTINUA

21

21 DE JANEIRO — meu vigésimo sexto aniversário

Estou tendo um sonho legal no qual salto de paraquedas (por algum motivo bizarro, com o ator Christopher Lee) e o céu está tão azul quanto... bem, quanto o céu. Christopher Lee, usando óculos de mergulho vermelhos, faz um sinal de positivo antes que o vento o arrebate para o éter azul. Então, de repente, meu coração para, e eu inspiro uma golfada de ar gelado. Meus olhos se abrem para a realidade. Meu corpo salta da cama tão rápido que abro o braço para o lado e bato no abajur parafusado na parede.

— Pu-ta-que-pariu! — eu grito.

Levo um segundo para entender o que aconteceu. Enquanto vejo Camryn no pé da cama ainda segurando um balde de gelo, jogo freneticamente os lençóis gelados e encharcados para o lado e tento recuperar o fôlego.

Camryn gargalha como uma bruxa.

— Feliz aniversário, amor! Levanta!

Acho que mereci isso, depois do que fiz com ela na manhã do seu aniversário, mês passado. Mas essa cretina maquiavélica me pegou de jeito, muito mais pesado do que fiz com ela. Acho que a vingança é sempre pior mesmo.

Incapaz de parar de sorrir, entro no clima e levanto lentamente minha bunda pelada da cama. Ela já está fazendo aquela cara de oh-oh quando começa a se afastar de mim e ir para a porta. Sabendo que essa é a sua única saída, eu a vigio enquanto ela estuda a situação.

— Sinto muito! — ela diz com um sorriso apavorado, com a mão para trás, tateando na direção da porta.

— Hã-hã, eu sei que você sente, amor.

Ando bem lentamente na direção dela, espreitando-a com os olhos semicerrados, como se eu fosse um predador brincando com sua presa.

Ela dá uma risada de bruxa de novo.

— Andrew! Nem pensa nisso! — Ela está a meio metro da porta, agora. Mas eu ajo com calma, deixando-a pensar que vai conseguir chegar até lá, meu sorriso aumentando até que sei que já devo estar parecendo um maníaco sádico.

De repente, Camryn grita, incapaz de se controlar mais, e corre para a porta, escancarando-a.

— Nãão! Por favor! — ela grita e ri ao mesmo tempo enquanto a porta se abre, batendo na parede com estrondo. Ela dispara pelo corredor.

Quando começo a persegui-la, sua expressão chocada e o modo hilariante como ela chega a parar dão a entender que ela não esperava que eu saísse do quarto sem roupa.

— Ai meu Deus! Andrew, não! — ela grita, enquanto volta a correr a toda velocidade pelo corredor iluminado.

Eu continuo atrás dela, com meus documentos balançando ao vento. Essa garota ainda precisa aprender muito se achou mesmo que eu ia ficar com vergonha de correr atrás dela, de bunda de fora e com o pinto encolhido pelo frio. Eu não tô nem aí. Ela vai se arrepender daquele banho de gelo.

Passamos pelo quarto 321 no exato momento em que um casal de velhinhos está saindo. O homem puxa sua esposa de olhos arregalados para dentro quando o doido pelado passa ventando.

— Meu Deus do céu... — ouço uma voz distante dizendo atrás de mim.

Finalmente, quando Camryn chega ao final do imenso corredor, ela para e me encara, encurvada, com as duas mãos à sua frente como se fossem um escudo. Lágrimas escorrem de seus olhos de tanto rir.

— Eu desisto! Eu desisto! Ai meu Deus, você tá pelado! — Ela não consegue parar de rir. Rio também quando a ouço fungar com força.

— Agora você me paga — eu digo, agarrando-a e jogando-a sobre o ombro.

Ela nem tenta espernear, gritar e agitar os braços, dessa vez. Primeiro porque ela não consegue parar de rir o suficiente para controlar seu corpo a esse ponto. E, segundo, porque ela sabe que não adianta. Só espero que ela não mije em cima de mim.

Eu a carrego pelo corredor todo até nosso quarto, e quando chegamos ao quarto 321, digo:

— Desculpem por ter feito vocês verem isso. Tenham um bom-dia — acenando enquanto passo. O casal fica só olhando, o marido balançando a cabeça para mim, com uma expressão revoltada.

Fecho a porta atrás de nós e jogo Camryn na cama, sobre os cubos de gelo e a água gelada. Ela ainda está rindo.

Fico de pé no meio das pernas dela e tiro seu short e sua calcinha ao mesmo tempo, olhando para ela, sem dizer uma palavra. Fico de pau duro em segundos. Seu humor brincalhão muda instantaneamente e ela morde o lábio inferior, olhando para mim com aqueles olhos azuis docemente sedutores que sempre despertam algo primal em mim.

Sem nenhum aviso, eu me deito por cima dela e enfio tudo.

— Você sente muito mesmo? — sussurro, tirando e pondo nela devagar. Meu peito apertado sobre o dela, nossas tatuagens se tocando, Orfeu e Eurídice se juntando novamente enquanto eu e ela nos tornamos um só.

— Sim... — ela diz, as palavras tremulando de seus lábios.

Meto nela um pouco mais fundo, empurrando uma de suas coxas para cima com a mão.

Suas pálpebras ficam mais pesadas e ela joga a cabeça para trás.

Eu esmago minha boca sobre a dela, e seus gemidos reverberam na minha garganta quando começo a meter com mais força.

Então algo dentro de mim fica sombrio, predador. Me ajoelho na cama e agarro suas duas coxas, cravando os dedos em sua carne e arrastando-a pelo colchão para perto de mim tão rápido que ela nem consegue começar a se mexer. Agarrando seus braços, eu a viro de costas, seguro seus pulsos atrás das costas e a forço a ficar de joelhos. Com a outra mão, toco o contorno macio de sua bunda empinada diante de mim, apertando bem cada nádega antes de bater nelas com tanta força que seu corpo se retorce para a frente. Ela choraminga. Então aperto sua nuca com a mão, empurrando com força o rosto de lado contra o colchão. Sinto o calor emanando de sua pele no lugar onde minha mão já deixou marcas vermelhas.

Ela choraminga de novo e eu torço e aperto mais seus pulsos. Com a outra mão, enfio dois dedos em sua boca e puxo sua bochecha, enquanto enfio meu pau nela por trás.

Ela chora um pouco, com as coxas começando a tremer, mas eu não paro. Sei que na verdade ela não quer que eu pare.

Depois que eu gozo e meu coração volta a bater mais devagar, puxo seu corpo nu para perto do meu, sua cabeça suada aninhada na minha axila. Ela beija meu peito e faz dois dedos andarem pelo meu braço até minha boca. Eu pego sua mão e beijo os dedos.

— Que bom que você voltou ao normal — ela diz baixinho.

— Eu voltei ao normal? — pergunto, e ela levanta a cabeça para me olhar nos olhos. — Eu não tava normal?

— Não, antes não.

— Quando eu não tava normal? — Estou verdadeiramente confuso, mas acho adorável sua timidez ao me explicar o que quis dizer.

— Depois que a gente perdeu Lily — ela diz, e o sorriso brincalhão que estava se abrindo em meus lábios desaparece. — Não te culpo por isso, mas depois de Lily, você me tratava como uma boneca de porcelana, com medo de me quebrar se fosse bruto demais comigo.

Eu a aperto mais com meu braço e sua bochecha volta a encostar no meu peito.

— Bom, eu não queria te machucar — digo, passando meu polegar em seu braço. — Ainda sinto isso às vezes.

— Então não sinta — ela sussurra, beijando meu peito de novo. — Nunca se segure comigo, Andrew. Quero que você seja sempre você mesmo.

Eu sorrio e aperto seu braço mais uma vez.

— Sabe que tá me dando permissão pra te atacar sempre que eu quiser, certo?

— Sei, tenho plena consciência disso — ela diz, e ouço um sorriso como o meu em sua voz.

Eu beijo o alto de sua cabeça e a puxo para cima de mim.

— Feliz aniversário — ela diz novamente, e enfia a língua na minha boca.

~~~

Graças a Deus existe a Flórida no inverno. Depois da minha muito surpreendente — e prazerosa, devo acrescentar — manhã de aniversário, Camryn e eu passamos o dia ensaiando nossa nova canção. Bem, não é tecnicamente nossa, mas pra misturar um pouco as coisas, adotamos o hit sensacional de Stevie Nicks, “Edge of Seventeen”. Camryn está ficando frustrada com o modo como os versos se seguem tão rapidamente, mas está determinada a conseguir cantá-la. É a canção dela, aquela que ela quer cantar sozinha. É um passo importante para ela, porque nós sempre cantamos juntos.

E eu a admiro por isso.

Ela parece muito frustrada, mas por trás disso, tudo o que vejo é a minha Camryn voltando para mim cada dia mais. Sua alma está mais leve, a luz em seus olhos, mais brilhante, e cada vez que ela sorri, me lembro do dia em que nos conhecemos.

— Você consegue — asseguro, sentado na sacada da janela, com o meu violão encostado no peito. — Não faz tanto esforço, amor, só toma posse dela.

Ela suspira e joga a cabeça para trás, desabando na cadeira da mesinha redonda ao meu lado.

— Eu sei a letra toda, mas sempre me atrapalho naquelas últimas estrofes. Não sei por quê.

— Acabei de te falar. Você tá pensando demais, porque começa a cantar já esperando se atrapalhar quando chegar nessa parte. Não pensa. Agora tenta de novo.

Ela suspira profundamente de novo, nervosa, e fica de pé.

Ensaiamos por mais uma hora antes de ir à churrascaria mais próxima para um almoço tardio.

— Você vai conseguir. Não se preocupe — insisto, enquanto a garçonete traz nossos bifes.

— Eu sei. Mas é que é frustrante. — Ela começa a cortar o bife, com a faca numa mão e o garfo na outra.

— Demorei um pouco pra aprender “Laugh, I Nearly Died” — conto, enfiando um pedação de bife na boca com o garfo. Mastigo um pouco e então continuo, ainda de boca cheia: — De qualquer jeito, a próxima canção que quero aprender é “Ain’t No Sunshine”, do Bill Withers. Sempre quis aprender essa, e acho que tá na hora de aposentar os Stones.

Ela parece surpresa. Aponta o garfo para mim, engole e diz:

— Oooh! Ótima escolha!

— Você conhece essa? — Também estou um pouco surpreso, considerando que ela não gostava tanto de rock clássico ou blues quando nos conhecemos.

Ela balança a cabeça e come um pouco de purê.

— Adoro essa canção. Ela tava numa playlist que meu pai gostava de ouvir quando viajava a negócios. Esse Withers é danado pra cantar.

Eu dou uma gargalhada.

— Qual é a graça? — ela pergunta, me olhando com ar confuso.

— Você falou de um jeito tão country, agora. — Eu tomo um gole de cerveja e rio um pouco mais, balançando a cabeça.

— O quê? Tá dizendo que eu falei que nem caipira? — Seus olhos estão arregalados, mas seu sorriso não poderia ser mais óbvio.

— Tá mais pra uma roceira, na verdade. Esse Withers é danado pra cantar! Eeeiita ferro! — Eu a arremedo, jogando a cabeça para trás.

Ela ri comigo, se esforçando ao máximo para esconder o rubor do rosto.

— Bom, nisso eu concordo contigo — ela admite, tomando um gole de sua cerveja. Ela põe o copo na mesa e acrescenta, estreitando os olhos: — Com a escolha da canção, não com a coisa da roceira.

— Claro — digo com um sorriso, terminando meu bife.

O primeiro bife que comemos juntos foi como ela prometeu, alguns dias depois que saí do hospital após a cirurgia. E como naquele dia e toda vez que comemos carne juntos, ela só consegue comer metade. Melhor, sobra mais pra mim. Quando vejo que ela dá sinais de estar tão empanturrada que vai vomitar, estico o braço e puxo o prato dela para o meu lado.

Ela fica olhando para o celular, e então começa a responder uma mensagem de texto.

— Natalie tá pedindo pra você voltar de novo?

— Sim, ela é incansável. — Ela recoloca o celular na bolsa.

Camryn mente mal à beça. Muito mal. Não conseguiria mentir nem para salvar a própria vida, e no momento, o modo como ela fica olhando a parede de madeira rústica mostra que com certeza está mentindo. Eu palito os dentes e a estudo.

— Podemos ir? — pergunto.

Ela sorri para mim, sem graça, obviamente escondendo algo, e então percebo que a tela do seu celular se ilumina dentro da bolsa. Ela olha a mensagem de texto e de repente fica mais ansiosa para sair. Seu sorriso aumenta e ela se levanta rapidamente.

— Peraí, preciso pagar. — Aceno para a garçonete, e Camryn se senta de novo, impaciente. — Por que tá com tanta pressa assim de repente? — eu a provoco, enquanto a garçonete deixa a conta sobre a mesa, mas antes que ela vá embora, tiro o cartão de crédito da carteira.

— Por nada — Camryn desconversa.

Eu apenas sorrio.

— Tá — digo, e me encosto na cadeira, me espreguiçando e relaxando o corpo. É uma farsa. Quanto mais pareço relaxado, mais ela fica impaciente.

Minutos depois, a garçonete volta com meu cartão de crédito e o recibo. Eu anoto a gorjeta dela no recibo do restaurante e muito lentamente me levanto, visto o casaco, me espreguiço erguendo os braços bem alto, finjo bocejar...

— Porra, dá pra andar logo!

Sabia que ela não ia aguentar muito tempo. Rio, pego sua mão e saímos do restaurante.

Quando chegamos ao hotel, Camryn para no saguão.

— Pode subir. Eu subo daqui a pouco.

É óbvio que ela está armando alguma coisa, mas como é meu aniversário, entro no jogo dela, lhe dou um beijo no rosto e tomo o elevador. Mas assim que entro no quarto, sou eu que começo a ficar impaciente.

Não preciso esperar muito até que ela entra no quarto, segurando uma guitarra nova.

Eu fico de pé assim que a vejo.

— Uau...

Seu sorriso é doce e meigo, até envergonhado. Como se uma pequena parte dela tivesse medo de que eu não vá gostar.

Ando direto até ela.

— Feliz aniversário, Andrew — ela diz, me entregando a guitarra.

Coloco uma mão no braço, a outra no corpo e admiro a guitarra com um sorriso imenso. Fininha. Linda. Perfeita. Virando-a para ver a parte de trás, noto uma escrita prateada em cursivo no braço que diz:

Ele arrancou lágrimas de ferro de Plutão

e fez o inferno dar o que buscava o coração.

Um verso de uma das várias versões da história de Orfeu e Eurídice. Eu estou sinceramente sem palavras.

— Você gostou?

Eu olho para ela.

— Eu adorei. É perfeita.

Ela desvia o olhar, corando um pouco.

— Bom, eu não entendo nada de guitarras. Espero que não seja uma marca vagabunda nem nada disso. O cara da loja de instrumentos musicais me ajudou a escolher. Aí precisei esperar alguns dias pra fazer a inscrição, que eu achei que nem ia dar certo porque teve primeiro um problema, depois outro, e...

— Camryn — digo, interrompendo sua tagarelice nervosa. — Nunca recebi um presente de aniversário melhor na minha vida. — Atravesso o espaço entre nós e beijo suavemente seus lábios.


Camryn


22

ALGUM LUGAR DA Interstate 75 — maio

Estamos na estrada há meses. Lá por março já tínhamos nos acostumado tanto a ir de um hotel para o outro que isso se tornou natural. Um quarto diferente a cada semana, uma cidade diferente, uma praia diferente, tudo diferente. Mas por mais que tudo seja diferente, cada vez que entramos, é como se estivéssemos passando pela porta de uma casa onde moramos há anos. Eu jamais teria imaginado que chamaria um quarto de hotel de “casa”, ou que seria tão fácil se acostumar à vida na estrada como foi para nós. Às vezes é difícil, mas tudo é uma experiência, e eu não mudaria nada.

Mas fico me perguntando se o longo inverno não me afetou. Isso porque já me peguei sonhando acordada com morar numa casa em algum lugar, levando uma vida caseira com Andrew.

É, tenho certeza de que foi só o inverno.

São duas da manhã, e nosso carro quebrou em algum lugar do sudoeste da Flórida, num longo trecho de estrada deserta. E está caindo um dilúvio. Chuva aos baldes. Pedimos um guincho há uma hora, mas por algum motivo ele ainda não chegou.

— Tem um guarda-chuva no carro? — pergunto por cima do estrondo da chuva no teto. — Eu posso segurar enquanto você conserta o motor!

— Tá um breu lá fora, Camryn — ele responde, gritando tanto quanto eu. — Mesmo com uma lanterna, duvido que eu fosse conseguir. Pra começar, precisaria descobrir qual é o defeito.

Eu afundo mais no banco da frente e apoio os pés no painel, com os joelhos dobrados junto ao corpo.

— Pelo menos não tá frio — comento.

— A gente vai se virar por aqui esta noite — ele declara. — Não vai ser a primeira vez que dormimos no carro. Talvez o guincho chegue antes de amanhecer, e se não chegar, eu conserto o carro quando estiver conseguindo enxergar.

Ficamos em silêncio por um momento, ouvindo a chuva batendo no carro, os trovões ecoando como ondas através das nuvens. Finalmente, ficamos tão cansados que vamos para o banco de trás, nos encolhemos nele juntos e tentamos dormir. Depois de um tempo, quando fica claro que ambos estamos desconfortáveis e o espaço não é suficiente para nós dois, Andrew passa para o banco da frente. Mesmo assim, não conseguimos pegar no sono. Eu o ouço se revirando por algum tempo, e então ele pergunta:

— Onde você se vê nos próximos dez anos?

— Não tenho certeza — respondo, olhando para o teto do carro. — Mas o que sei é que o que eu fizer, quero fazer junto com você.

— Eu também — ele diz do banco da frente, deitado como eu estou, agora, de costas, olhando para cima.

— Você pensou em alguma coisa específica? — pergunto, imaginando aonde ele quer chegar com isso. Troco o braço esquerdo pelo direito, enfiando-o embaixo da cabeça.

— Pensei. Quero morar num lugar quente e sossegado. Às vezes imagino você na praia, descalça na areia, com a brisa soprando seu cabelo. Eu tô sentado embaixo de uma árvore não muito longe, dedilhando minha guitarra...

— Aquela que eu te comprei?

— Claro.

Eu sorrio e continuo escutando, imaginando a cena.

— E você tá segurando a mão dela.

— A mão de quem?

Andrew fica em silêncio por um momento.

— Da nossa menina — ele diz num tom distante, como se sua mente estivesse indo um pouco mais longe do que a minha.

Eu engulo em seco e sinto um nó se formando na minha garganta.

— Gosto dessa imagem — digo. — Então você quer parar de viajar?

— Um dia. Mas só quando a gente sentir que é certo. Nem um dia antes.

Uma lufada de vento atinge a lateral do carro, e um trovão alto faz o chão tremer.

— Andrew? — pergunto.

— Sim?

— Número três, pra acrescentar à nossa lista de promessas. Se a gente chegar à velhice, ficar com dor nos ossos e não puder dormir na mesma cama, me promete que nunca vamos dormir em quartos separados.

— Tá prometido — ele responde, com um sorriso na voz.

— Boa noite — eu digo.

— Boa noite.

E quando pego no sono, minutos depois, sonho com aquela praia quente e Andrew me olhando andar pela areia, com uma mãozinha segurando a minha.

~~~

O guincho não veio. Acordamos na manhã seguinte, entrevados e doloridos, mesmo tendo um banco para cada um.

— Vou encher aquele cara do guincho de porrada, se ele aparecer — Andrew rosna debaixo do capô.

Ele está ocupado usando uma chave inglesa... não vou nem fingir que sei o que é aquilo. Ele está consertando o carro. Isso é tudo o que sei. E está de péssimo humor. Eu só fico por perto para ajudá-lo quando ele precisa de algo, e evito dar uma de loura burra, perguntando o que é essa rebimboca ou pra que serve aquela parafuseta. A verdade é que não me importa. Além disso, só ia deixá-lo mais estressado ter que explicar.

Mas o sol apareceu. E está quente! Até parece que eu morri e fui pro céu!

Fico saltitando nas poças de chuva da noite passada, encharcando meus chinelos de dedo. Não sei o que deu em mim, além da simples mudança de clima, mas levanto os braços acima da cabeça e olho para o céu, rodopiando sem parar no meio da estrada.

— Quer fazer o favor de me ajudar? — Andrew resmunga.

Saltito para perto dele e dou um beliscão de brincadeira na sua bunda, porque estou de ótimo humor e não consigo evitar. Mas então, bang, Andrew leva um susto com o beliscão e bate a cabeça na parte de baixo do capô. Eu me encolho e ponho a mão na boca.

— Poxa, amor! Desculpa! — Estendo a mão para Andrew, puto da vida, revirando aqueles olhos verdes, mas então ele os fecha, enche as bochechas de ar e bufa devagar.

Agarro a cabeça dele, esfrego e beijo o seu nariz. Não consigo parar de sorrir, mas não estou rindo dele, só tentando fazer cara de gatinho do Shrek.

— Tá desculpada — ele diz, apontando para o motor. — Preciso que você segure esta peça aqui um momento.

Eu vou para o outro lado, olho debaixo do capô e enfio a mão no lugar, guiada pelos seus dedos.

— Isso, aí mesmo — ele diz. — Agora segura.

— Por quanto tempo?

— Até eu mandar soltar — ele responde, e vejo o sorriso começando a se formar no canto de sua boca. — Se você soltar, o cárter vai cair e a gente vai ficar parado aqui um tempão.

— Tá, então vai logo — digo, já sentindo um mau jeito começando a se formar no meu pescoço.

Ele vai até o porta-malas e pega uma garrafa d’água. Lentamente, abre a tampa. Toma um gole. Olha para a paisagem. Toma mais um gole.

— Andrew, você tá me zoando? — Eu olho de baixo do capô levantado, tentando vê-lo o melhor que posso.

Ele apenas sorri. E toma mais um gole.

Cacete, ele tá me zoando! Eu acho...

— Não solta. É sério.

— Besteira — eu insisto e começo a mover os dedos, mas decido não soltar. — Você tá dizendo a verdade? Sério mesmo?

— Claro que tô. O cárter vai cair e ainda é capaz de te molhar inteira de óleo de motor. É difícil pra cacete limpar aquela porra da pele.

— Minhas costas estão começando a doer — reclamo.

Ele demora uma eternidade, e quando estou a ponto de soltar, ele vem por trás de mim e me segura pela cintura, me tirando de perto do motor. Com uma mão, ele passa uma meleca preta na minha bochecha. Eu grito e dou um empurrão nele.

— Eca! Puta que pariu, Andrew! E se eu não conseguir limpar essa droga? — Estou realmente fula da vida, mas uma pequena parte de mim não resiste ao sorriso dele.

— Dá pra limpar, sim — ele diz, voltando para baixo do capô. — Agora entra no carro e liga a ignição quando eu mandar.

Rosno para ele antes de fazer o que ele pede, e rapidinho o Chevelle está funcionando de novo e estamos a caminho de St. Petersburg, a apenas uma hora dali.

Hoje parece um dia de verão, e queremos que não acabe nunca. Depois de arranjar um quarto de hotel e tomar um banho tão necessário, vamos para a loja de departamentos mais próxima, comprar um calção de banho para ele e um biquíni para mim, para irmos à praia nadar.

Ele insiste para que eu leve um biquíni preto minúsculo com estrelinhas prateadas, mas não é ele que vai ter que ficar puxando aquele fio dental de dentro do meu rabo a cada cinco segundos. Por isso compro um vermelho, bonitinho, que cobre um pouco mais.

— Acho que foi melhor você ter levado esse mesmo — ele diz quando entramos no carro no estacionamento da loja.

— Por quê? — pergunto, sorrindo e tirando os chinelos.

— Porque eu ia ter que quebrar a cara de uns sujeitos. — Ele dá ré e saímos do estacionamento.

— Só por olharem pra mim? — pergunto rindo, um pouco incrédula.

Ele inclina a cabeça para o lado e olha para mim.

— Não, acho que não. Na verdade, acho excitante quando outros caras olham pra você.

— Eca! — franzo o nariz.

— Não desse jeito! — ele diz. — Caramba! — Balança a cabeça, como que para dizer INacreditável, e ganhamos a rua, que está cheia de carros de turistas. — É que me sinto bem, sabe, quando tô com você. Isso faz maravilhas pelo ego de um cara.

— Ah, então sou só um troféu pra você? — Cruzo os braços e sorrio para ele.

— É, amor, só tô com você por isso. Achei que você já tivesse percebido.

— Tá, então acho que não é segredo que eu tô com você pelo mesmo motivo.

— Ah, é? — ele pergunta, me olhando de soslaio antes de voltar a prestar atenção na estrada à sua frente.

— É — eu confirmo, apoiando a cabeça no encosto. — Só tô com você pra fazer inveja na mulherada. Mas à noite, fico sonhando com o amor da minha vida.

— E quem seria ele?

Estufo os lábios e olho ao meu redor, depois para ele, com ar brincalhão.

— Bom, não vou dizer o nome dele, porque não quero que você tire satisfação com ele e leve porrada. Mas posso dizer que ele tem cabelo castanho, olhos verdes lindos e umas tatuagens. Ah, e ele é músico.

— É mesmo? Bom, pelo visto ele é demais, então por que me usar como troféu?

Eu dou de ombros, porque não consigo pensar numa boa resposta.

— Vai, pode me contar — ele insiste. — Eu nem conheço esse cara mesmo.

— Desculpa — digo olhando-o —, mas não falo dele pelas costas.

— Tudo bem — ele diz sorrindo. — Quer saber?

— O quê?

Andrew sorri maldosamente, e eu não gosto nem um pouco.

— Eu me lembro de umas coisinhas da nossa primeira viagem que você não chegou a fazer.

Oh-oh...

— Nem faço ideia do que você tá falando — eu minto.

Ele tira a mão direita do volante e a apoia na perna. Aquele seu olhar de desafio está ganhando força, e eu tento não tornar meu crescente nervosismo óbvio demais.

— É, acho que você me deve uma bunda de fora na janelinha, e ainda não testemunhei você comendo um bicho. O que prefere? Um gafanhoto? Um grilo? Uma minhoca? Ou talvez uma aranha tremedeira. Será que tem aranhas tremedeiras aqui na Flórida?

Eu fico toda arrepiada.

— Desiste, Andrew — digo, balançando a cabeça. Eu apoio o pé na porta e enrolo minha trança nos dedos, tentando disfarçar a preocupação. — Não vou fazer isso. Além do mais, isso foi na primeira viagem, e você não pode transferir coisas daquela viagem pra essa. Devia ter me obrigado a fazer quando teve chance.

Andrew continua sorrindo, como o merdinha malicioso que ele é.

— Não — digo de novo, bem séria.

Eu olho para ele.

— Não! — repito uma última vez, e ele fica rindo.

— Tudo bem — ele diz, voltando a segurar o volante com as duas mãos. — Mas valeu a tentativa. Não pode me culpar por tentar.

— Acho que não.

Andrew

Passamos o dia inteiro nadando e tomando sol na praia. Vemos o sol se pôr no horizonte e finalmente as estrelas, quando elas ganham vida na escuridão. Uma hora depois que escurece, encontramos um grupo de pessoas da nossa idade. Eles estavam na praia perto de nós havia algum tempo, curtindo.

— Vocês são daqui? — o cara alto com o braço direito cheio de tatuagens pergunta.

Um dos casais se senta na areia perto de nós. Camryn, sentada no meio das minhas pernas, endireita o corpo e presta atenção.

— Não, a gente é de Galveston — respondo.

— E Raleigh — Camryn completa.

— A gente é de Indiana — diz a garota de cabelo preto, se sentando. Ela aponta para os outros, que ainda estão de pé. — Mas eles moram aqui.

Um dos outros caras abraça a namorada.

— Eu sou Tate, esta é Jen — ele aponta para a namorada, depois para os outros de pé ali perto. — Johanna. Grace. E aquele é meu irmão, Caleb.

Os três acenam e sorriem para nós.

— Eu sou Bray — a garota de cabelo preto perto de Camryn diz. — E este é o meu noivo, Elias.

Camryn se endireita mais e espana a areia das mãos, esfregando-as.

— Prazer — ela responde. — Eu me chamo Camryn e este é meu noivo, Andrew.

Elias aperta a minha mão.

Tate, o cara tatuado, diz:

— A gente tá indo pra um lugar reservado, numa praia a meia hora daqui. É ótimo pra uma balada. Bem isolado. Se vocês quiserem, podem ir com a gente.

Camryn vira um pouco o corpo para olhar para mim. Nós dois conversamos com os olhos por um momento. De início, eu não estava com muita vontade de ir, mas ela parece querer muito. Fico de pé e a ajudo a levantar.

Eu me viro para Tate.

— Tá. A gente segue vocês.

— Show de bola — ele diz.

Camryn e eu pegamos nossas toalhas e a sacola que trouxemos com carne-seca, água mineral e filtro solar, e seguimos Tate e seus amigos da praia até o estacionamento.

E agora estamos de novo no carro e podemos ser espontâneos. Não estou muito tranquilo com essa porra, porque faz muito tempo que não saio com ninguém além de Camryn, mas eles parecem bastante inofensivos.

A tal viagem de meia hora acaba levando uns 45 minutos.

— Agora não faço mais ideia de onde a gente tá.

Pegamos uma estrada escura depois de sair da rodovia principal há no mínimo vinte minutos, o Jeep Sahara deles queimando o chão na nossa frente a 120 por hora. Consigo acompanhar o ritmo sem problemas, mas não costumo correr tanto em território desconhecido à noite, quando não dá pra avistar de longe a polícia escondida nas laterais da estrada. Se eu for multado a culpa é minha, mas posso encher o tal Tate de porrada mesmo assim, só por uma questão de princípio.

— Pelo menos a gente tá com o tanque cheio — ela diz. Depois ri, estica o pé para fora da janela e continua: — Vai ver que eles estão planejando ir pra uma cabana sinistra no meio do mato e matar a gente lá.

— Ei, eu também pensei nisso — digo, rindo junto com ela.

— Bom, eu confio em você pra me proteger — ela brinca. — Não deixa nenhum deles fazer picadinho de mim, nem me obrigar a ver Honey Boo Boo.

— Pode deixar. O que me lembra do número quatro na nossa lista de promessas: se um dia eu me perder ou desaparecer, prometa que não vai parar de me procurar exatamente por 365 dias. No dia 366, aceite que se eu estivesse vivo, já teria dado um jeito de voltar pra você, e que portanto tô morto faz tempo. Quero que você siga com sua vida.

Ela se ergue do banco, puxando o pé para dentro do carro.

— Não gostei disso. Tem gente que desaparece e é encontrada anos depois, viva e saudável.

— É, mas não é o meu caso. Pode acreditar, se passar um ano, eu morri.

— Tá, tudo bem — ela diz, afastando o cinto de segurança e chegando perto de mim. Ela encosta a cabeça no meu ombro. — Só se você topar fazer o mesmo por mim. Um ano. Nem um dia a mais.

— Prometo — eu digo, mas é uma mentira deslavada. Eu continuaria procurando por ela até morrer.


Camryn


23

NÃO TEM PROBLEMA mentir sobre algumas coisas. Essa “promessa” é uma delas. De jeito nenhum eu conseguiria parar de procurá-lo depois de um ano. Na verdade, jamais iria parar de procurar. Esse pacto cheio de promessas que juramos manter é importante para nós dois, mas acho que pra certas coisas, vou ter que concordar abertamente e depois fazer o que eu quiser, caso aconteçam.

Além disso, tenho a impressão de que ele também está mentindo.

Andrew não sabe, mas vi aquela garota de cabelo preto, Bray, algumas horas antes, nos banheiros perto da praia. Ela acabou entrando na minha cabine depois de mim. Não chegamos a conversar, só nos cruzamos com um sorriso amigável e mais nada. Acho que foi isso que a motivou a fazer seus amigos nos convidarem para a balada.

Acho que vai ser divertido. Andrew e eu passamos 100% do nosso tempo sozinhos um com o outro, e imagino que seja bom para os dois sair um pouco do casulo e socializar mais com outras pessoas. E ele não levantou nenhuma objeção, então acho que ele também supõe que não vai fazer mal nenhum.

A viagem pro tal lugar “reservado” parece levar uma hora.

O jipe deles vira à esquerda numa estrada parcialmente pavimentada e, quanto mais avançamos, mais o asfalto fica esburacado. Os faróis do carro deles se agitam na escuridão diante de nós, até que a estrada arborizada se abre numa grande clareira de areia e pedras. Andrew para ao lado deles e desliga o motor.

— Bom, é isolado mesmo — eu comento ao sair do carro.

Andrew chega perto de mim, olhando para a praia deserta. Ele segura a minha mão.

— A gente pode voltar agora, ainda dá tempo — ele me provoca. — Depois que nos tirarem de perto do carro, pode ser a última vez que vamos nos ver. — Ele aperta a minha mão e me puxa mais para perto, brincando.

— Acho que vamos sobreviver — decido, quando o último do grupo sai do jipe e nos encontra atrás dos carros.

Tate abre a porta de trás do jipe, tira um isopor gigante e o joga na areia.

— Tá cheio de cerveja aqui — ele diz, erguendo a tampa e mexendo dentro.

Ele joga uma garrafa de Corona para Andrew. Não é sua favorita, eu sei, mas ele também não chega a recusar.

Bray e o noivo, nem lembro mais o nome dele, se aproximam de mim, enquanto Tate destampa outra garrafa de Corona e me entrega.

Eu aceito.

— Obrigada.

Andrew abre a tampa da sua com o abridor de garrafas do chaveiro.

— Se vocês têm um cobertor, é bom trazer — Tate diz. Sua namorada se junta a ele, sorrindo para mim ao passar entre nós com seu biquíni branco minúsculo. — E tenho um som da porra no carro — ele acrescenta, dando tapinhas no jipe —, então música também não vai ser problema.

Andrew abre o porta-malas e pega o cobertor que sempre leva no carro, o mesmo que usamos na noite em que tentamos dormir naquele campo julho passado. Só que agora, graças a mim, ele foi lavado e não está fedendo a óleo e fumaça de carro.

— Cadê meu short? — pergunto, remexendo no banco de trás.

— Aqui — Andrew diz do porta-malas. Quando saio do carro, ele joga o short para mim e eu o apanho no ar.

— Não pretendo nadar nesse abismo à noite — digo, vestindo o short por cima do meu biquíni vermelho.

Ouvindo o que eu falei, Bray diz:

— Ainda bem que não sou só eu!

Sorrio para ela por cima do teto do Chevelle e fecho a porta.

— Você já veio aqui com eles?

Tate e os outros estão indo para a praia agora, carregando o isopor, sacolas de praia e outros objetos. Eles deixam as portas do jipe abertas, com os alto-falantes despejando rock no último volume.

— A gente veio ontem — Bray conta —, mas Elias logo ficou bêbado e começou a pôr os bofes pra fora, por isso eu tive que voltar dirigindo pro hotel bem cedo.

Elias, isso, esse é o nome do noivo dela. Ele balança a cabeça e lança um olhar sarcástico de obrigado-por-contar-pra-todo-mundo para ela.

Andrew e eu andamos ao lado de Bray e Elias, de mãos dadas, até onde todos já estão acampando não muito longe, perto da água. Quando chegamos e estendemos nosso cobertor na areia, Tate risca um fósforo e o joga num monte de galhos. A chama acende o fluido de isqueiro que ele espalhou antes na fogueira. Uma coluna de fogo alta e brilhante espirala por cima do monte e ilumina a escuridão ao nosso redor com uma luz laranja dançante. O calor das chamas já está chegando em mim, por isso afasto um pouco mais nosso cobertor da fogueira, antes que eu e Andrew sentemos nele. Bray e Elias também se sentam sobre duas toalhas de praia gigantes. Tate, o irmão dele e as outras três garotas dividem uma grande colcha. Enfio o fundo da minha garrafa de cerveja na areia ao meu lado, para que ela fique de pé.

Tate me lembra aqueles surfistas da Califórnia, muito louros e bronzeados. Como todos os outros caras, incluindo Andrew, Tate se senta com os joelhos dobrados e os braços apoiados neles. E enquanto estudo todos discretamente, logo vejo algo com o rabo do olho que me faz ficar territorial na hora. A loura ao lado do irmão de Tate, que duvido que seja namorada dele porque os dois não parecem estar juntos, está olhando para Andrew com olhos famintos. Não quero dizer de um jeito inocente, de quem só vai olhar sem tocar. Não, essa garota tentaria dormir com ele assim que eu me afastasse.

Quando ela nota que a estou observando, desvia o olhar e começa a conversar com a garota ao seu lado.

Não tenho com que me preocupar com relação a Andrew, mas se ela me desrespeitar sabendo que ele é meu noivo, não vou pensar duas vezes antes de enchê-la de porrada.

Eu me pergunto se Andrew percebeu.

Andrew

Espero que Camryn não tenha percebido o jeito como aquela garota me olhou agora. Se eu e ela ficássemos cinco segundos sozinhos aqui, ela tentaria dar pra mim. Nem fodendo eu ia querer isso, mas este luau já ficou um pouco mais interessante.

Aposto minha bola esquerda que ela já dormiu com Tate e o irmão dele. Talvez não com Elias — ele parece o tipo fiel —, mas ela daria pra ele também, se ele topasse.

Puta merda, ela olhou pra mim de novo.

Olho rapidamente para Camryn para não cruzar olhares com a menina e não dá outra, Camryn está com aquele sorriso revelador no rosto. É, com certeza ela viu.

Eu pego Camryn no colo e a coloco no meio das minhas pernas.

— Não se preocupe, amor — sussurro no seu ouvido, e então beijo seu pescoço para que a garota veja.

— Eu não tô preocupada — Camryn diz, deitando sobre o meu peito.

Não está preocupada comigo, claro, mas sinto a tensão territorial emanando de seu corpo. Cacete, só a ideia de vê-la pulando em cima daquela garota por minha causa... Tudo bem, eu não deveria pensar nisso. Fodeu. Tarde demais.

— Essas tatuagens são iradas — Tate diz, apontando.

Todos estão olhando a tatuagem em mim e Camryn. Ela se ergue do meu peito para que vejam melhor.

— Pode crer — Bray diz, encantada. Ela rasteja pela areia mais para perto de nós. — Eu tava curiosa mesmo pra ver.

A loura que estava me olhando agora há pouco ri de Camryn, embora Camryn não note, porque está ocupada mostrando a tatuagem para Bray.

Uso essa oportunidade em meu benefício.

— Vira pra cá, amor, mostra como elas se encaixam. — Eu viro Camryn no meu colo e me deito de costas, deitando seu corpo sobre o meu.

O grupo nos olha com atenção, o rosto da loura ficando um pouco amargo quando a encaro diretamente enquanto aperto meu corpo contra o de Camryn. Alinhamos nossas tatuagens para formar o desenho de Orfeu e Eurídice; minha Eurídice usando uma veste branca comprida e transparente, colada ao corpo pelo vento, dobras de tecido sopradas atrás dela, que estende os braços para o Orfeu tatuado nas costelas de Camryn. Bray olha atentamente os detalhes, seus olhos pretos arregalados de assombro. Ela olha novamente para Elias e agora ele parece nervoso, como se tivesse medo de que Bray vá arrastá-lo para o tatuador mais próximo amanhã.

— Isso. É. Demais — Bray diz. — Quem são eles?

— Orfeu e Eurídice — respondo. — Da mitologia grega.

— Uma história trágica de amor verdadeiro — Camryn acrescenta.

Eu a abraço mais forte.

— Bom, vocês dois não parecem ter nada de trágico — Tate diz.

Abraço Camryn ainda mais forte, nós dois pensando em coisas particulares, que é melhor guardar só para nós. Eu beijo o alto do seu cabelo.

Bray se afasta, ainda sentada com os joelhos afundados na areia.

— Eu achei linda. E é bom que seja, porque sei que isso dói um bocado.

— É, doeu mesmo — Camryn diz. — Mas valeu cada hora de sofrimento.

Algum tempo depois, Camryn e eu já tomamos pelo menos três Coronas cada um, mas só ela demonstra. Está um pouco alta, mas só o bastante para ficar mais tagarela.

— Eu sei! — ela diz para Bray, a de cabelo preto. — Vi um show deles com minha melhor amiga, Nat, e eles são demais! Não tem muitas bandas que conseguem tocar quase como no disco.

— É verdade — Bray diz, terminando sua cerveja. — Você disse que é da Carolina do Norte?

Camryn levanta as costas do meu peito e se senta de pernas cruzadas na areia.

— Sou, mas Andrew e eu não moramos mais lá.

— Onde vocês moram? — Tate pergunta. Ele puxa um longo trago do seu cigarro e segura a fumaça enquanto fala. — No Texas?

Todos se viram para me olhar quando respondo.

— Não, a gente meio que... viaja.

— Viaja? — Bray pergunta. — Como, vocês têm um trailer?

— Não exatamente — Camryn diz. — A gente só tem o carro.

A loura que está me olhando o tempo todo entra na conversa:

— Por que vocês estão viajando?

Noto imediatamente por sua expressão que ela está se esforçando ao máximo para chamar a minha atenção, mas eu a ignoro e respondo, olhando para Bray, que está ao nosso lado: — A gente toca junto.

— Como, vocês têm uma banda? — a loura pergunta.

Eu olho para ela, desta vez.

— Mais ou menos — digo, mas é só o que eu respondo, e volto a dar atenção para Bray.

— Que estilo de música vocês tocam? — pergunta Caleb, o irmão de Tate. Ele está se engraçando com a outra garota desde que chegamos. Provavelmente também não estão juntos, mas ele com certeza vai se dar bem hoje.

— Rock clássico, blues e folk, coisas assim — respondo, tomando um gole de cerveja.

— Vocês precisam tocar pra gente! — Bray diz, empolgada.

Ela está claramente tão alta quanto Camryn, e as duas parecem estar se dando bem.

Camryn vira na areia para me olhar, de olhos arregalados e cheios de entusiasmo.

— A gente podia. O violão tá no banco de trás.

Eu balanço a cabeça.

— Não, não tô a fim agora.

— Ah, vai, amor, por que não?

Aí estão a cara de gatinho do Shrek e o jeito de choramingar que é a marca registrada de Camryn, que nunca falham em me obrigar a fazer tudo o que ela quer. Mas eu enrolo mais um pouco, talvez esperando que ela desista e diga deixa pra lá.

É claro que ela não desiste.

— É, cara, se você trouxe um violão e sabe tocar, vai ser show — Tate diz.

A essa altura, todos estão me olhando — até Camryn, que na verdade é a única pela qual vou fazer isso.

Cedendo, eu me levanto, vou até o carro e volto trazendo o violão.

— Você vai cantar comigo — digo para Camryn quando me sento ao seu lado.

— Nãão! Eu tô muito bêbada! — Ela me beija na boca e vai se sentar perto de Bray e Elias, para me dar um pouco de espaço, acho.

— Tudo bem, o que você quer que eu cante?

A pergunta era para Camryn, mas Tate responde:

— Ei, o que você quiser, cara.

Penso em várias canções por um minuto e finalmente escolho uma porque é bem curta. Mexo um pouco nas cordas, afino o violão rapidinho e começo a tocar “Ain’t No Sunshine”. No início, estou pouco me fodendo se está bom, mas como sempre, depois que começo, me torno outra pessoa e dou tudo de mim. Meus olhos ficam fechados a maior parte da canção, mas sempre consigo sentir a energia das pessoas ao meu redor, se elas estão curtindo ou não.

Todas estão.

No segundo refrão, olho nos olhos de Camryn enquanto dedilho as cordas. Ela está sentada na areia sobre os joelhos, seu corpo balançando de um lado para o outro. As outras garotas fazem o mesmo, totalmente imersas na música. Eu canto o último refrão, e essa canção basta para que eu queira tocar mais. Bray mal consegue se segurar, me dizendo o quanto foi bom e dando bastante atenção a Camryn, o que a faz ganhar pontos comigo. Diferente da loura, que está me olhando um pouco mais do que antes.

— Porra, cara, você não tava brincando — Tate diz.

Ele acende um baseado.

— Toca outra — Bray diz, encostando-se em Elias de novo, que a abraça por trás.

Tate passa o baseado primeiro para Camryn. Ela apenas o olha por um segundo, sem saber se deve aceitar ou não. Vejo uma expressão fugidia de dor em seu rosto; eu sei que ela está se lembrando do seu momento de fraqueza com os comprimidos. Ela balança a cabeça.

— Não, obrigada, acho que hoje só vou beber.

Eu sorrio por dentro, orgulhoso de sua decisão. E quando Tate o oferece para mim em seguida, faço o mesmo, não porque eu não queira dar uns tapas, mas porque não consigo curtir assim quando Camryn não quer.

Nunca fui muito fã de maconha, mas curto dar um pega de vez em quando. Agora não é o momento.

Toco mais algumas canções em volta da fogueira. Camryn finalmente canta uma comigo, e depois quero só relaxar com a minha garota e curtir essa onda tão rara. Deixo o violão ao nosso lado no cobertor e puxo Camryn novamente para o meu colo.

O irmão de Tate está chupando a língua daquela garota e bolinando-a há algum tempo. Eles não falam muito, por motivos óbvios. A loura que antes estava me olhando finalmente se tocou, eu acho. Ou isso, ou já está chapada demais para se importar comigo.

A música do jipe de Tate aumenta de novo, e ele volta de lá trazendo uísque, uma garrafa de dois litros de Sprite e uma pilha de copos descartáveis. A namorada dele começa a misturar as bebidas e distribuir os copos.

— Bebe aí, cara — Tate aconselha. — Nem esquenta se vai dirigir depois. A polícia não conhece esse lugar.

— Tá, eu aceito um copo — respondo.

Olho para Camryn, lembrando sua expressão quando Tate lhe passou o baseado.

— Se você não quiser, eu não bebo — digo.

À parte não querer que ela sinta que está traindo a si mesma bebendo demais, também não quero que encha a lata a ponto de ficar um lixo na manhã seguinte.

— Não, tudo bem, amor. Só vou tomar uma dose, tá?

Ela sorri docemente para mim como se estivesse esperando a minha permissão, o que eu acho bonitinho pra cacete.

— Tá — eu cedo, por não querer magoá-la, e ela aceita o copo da namorada de Tate.

Todos relaxamos, bebemos e conversamos sobre tudo quanto é assunto por um tempo enorme. Camryn está gargalhando, sorrindo e falando com Bray sobre absorventes íntimos, um assunto que não faço ideia de como surgiu, nem quero saber, mas estamos nos divertindo muito. Músicas de bandas que nunca ouvi tocam alto no som perto dali, e fico intrigado com as últimas canções, que tenho certeza de que são com o mesmo cantor.

— Quem são esses? — pergunto a Tate.

Ele desvia o olhar da namorada, que está com a cabeça no seu colo.

— Quem? A banda?

— Sim — digo. — Eles são muito bons.

— Isso, meu amigo, é Dax Riggs. Tá fazendo carreira solo agora. Ele começou no Acid Bath, acho... — Ele parece pensativo, como se não tivesse certeza. — Bom, ele tocou em vários grupos. Acid Bath e Agents of Oblivion são os mais conhecidos.

— Acho que já ouvi falar do Acid Bath — comento, tomando mais um gole de uísque com Sprite.

— Eu não me espantaria — Tate acrescenta.

— Preciso conhecer o som desse cara. Ele é desconhecido?

Camryn, abandonando a conversa sobre absorventes com Bray, se aproxima de mim e encosta a cabeça no meu ombro.

— É, ele nunca aderiu ao mainstream — Tate diz. — Ainda bem, porque o mainstream é uma bosta. Fico puto quando vejo um grupo legal se vendendo, fazendo comercial de pasta de dente e merdas assim.

Eu rio um pouco.

— Com certeza. Eu nunca assinaria um contrato com uma gravadora, nem se me oferecessem.

— Falou tudo, cara — Tate diz. — Depois que você assina, vira a putinha deles. Sua música não te pertence mais e você precisa abrir as pernas pro cuzão que assina seus cheques.

Tô começando a gostar desse cara. Só um pouquinho.

— Andrew, preciso fazer xixi — Camryn diz.

Eu olho para ela. Tirando o copo de sua mão, eu o deixo na areia.

— Também tô precisando dar uma mijada — digo tanto para ela quanto para Tate.

Tate aponta para a esquerda com outro cigarro entre os dedos e diz: — Vão praquele lado. Não tem vidro quebrado nem merda nenhuma no chão.

Deixo meu copo perto do de Camryn e a ajudo a levantar. Andamos pela areia até um lugar cheio de árvores e pedras, distante o suficiente para que ninguém nos veja.

— A gente vai ter que passar a noite aqui. Não tô em condições de voltar dirigindo.

Ela se agacha enquanto mijo a poucos metros dela.

— Eu sei. Acho que finalmente vamos dormir sob as estrelas, hein?

Estou rindo dela por dentro. Minha gata está tão bêbada que está até enrolando a língua.

— Pois é, acho que sim — concordo. — Mas é bom você saber que na verdade esta vez não conta porque você mal vai lembrar amanhã.

— Vou, sim.

— Nãão, não vai.

Ela quase cai depois de terminar e tentar ficar de pé. Eu a seguro pelo braço e passo o meu pela sua cintura. Então a beijo no alto da cabeça.

— Eu te amo tanto.

Não sei por que senti tanta vontade de dizer isso nesse momento, mas só de tê-la ao meu lado e saber que ela não está em condições de se cuidar esta noite, eu precisava dizer. Essas palavras estavam presas na minha garganta e, admito, eu estava começando a ficar engasgado com elas. Eu poderia culpar o álcool, mas não, mesmo completamente sóbrio, eu a amo pra cacete.

Ela passa os dois braços pela minha cintura, aninha a cabeça no meu peito quando começamos a voltar e me aperta.

— Eu também te amo.


24

À MEDIDA QUE a noite avança, as cenas do nosso pequeno grupo começam a mudar. As pessoas estão falando menos e se pegando mais. Bray e Elias estão deitados ao lado da fogueira. Tate e a namorada já poderiam estar transando; só falta tirarem a roupa. Por sorte, a loura sinistra me esqueceu e está ajudando a amiga a apalpar Caleb a uns dois metros e meio de mim e Camryn.

É, tenho certeza de que imagino no que isso vai dar. Nada de especial. Não é uma situação que eu ainda não tenha vivido, mas desta vez meu principal objetivo não é satisfazer duas garotas ao mesmo tempo. Só preciso manter Camryn longe dessa merda.

Quando começo a virar o corpo para falar com Camryn, que está deitada ao meu lado, o mundo todo some debaixo de mim. Tento levantar a cabeça. Eu acho. Sinto fadas dançando em cima dos meus olhos. Abertos.

— Caralho... — digo em voz alta, mas talvez não tenha dito. Talvez tenha sido só minha imaginação.

Eu levanto a mão diante do rosto e a lua parece estar aninhada entre meu polegar e meu indicador. Tento soltá-la, mas ela é pesada demais e empurra meu braço para baixo. Sinto meu cotovelo bater na areia como um haltere de 40 quilos.

Minha cabeça está rodando. A cor do fogo é azul, amarela e vermelho-escura. O som do oceano está triplicado em meus ouvidos, misturando-se ao crepitar da madeira no fogo e a alguém gemendo.

— Camryn? Cadê você?

— Andrew? Eu... eu tô aqui. Eu acho.

Nem sei dizer se era realmente a voz dela.

Fecho os olhos com força e abro de novo, tentando clarear a visão, mas percebo que não quero enxergar melhor. Estou sorrindo. Meu rosto parece tão esticado que por um instante tenho medo de que não vá parar de esticar e acabe rasgando no meio. Mas tudo bem.

Puta que me pariu... eu tô viajando. Que. Porra. Eles. Me deram pra beber?

Tento me levantar, mas quando acho que estou de pé, olho para baixo e percebo que nem me mexi. Tento de novo, com o mesmo resultado.

Por que não consigo levantar?!

— Caralho, Tate — ouço uma voz dizer, mas nem consigo dizer se é masculina ou feminina. — Que puta bagulho bom. Caraaalho... Tô vendo arco-íris e o escambau. É a porra do Reading Rainbow1...

Em seguida, quem disse isso começa a cantar o tema do Reading Rainbow.

Me sinto na cidade dos malucos, mas na verdade não quero ir embora.

Finalmente, eu me deito de costas e verifico duas vezes minha posição, apalpando a areia dos dois lados do corpo com as palmas das minhas mãos pesadas. Então olho para o céu cheio de estrelas e vejo que elas se movem para lá e para cá na escuridão, num balé poético.

O rosto de Camryn aparece sobre o meu peito, como um fantasma emergindo da neblina.

— Amor? — pergunto. — Você tá bem?

Estou preocupado com ela, mas não consigo parar de sorrir.

— Tô. Eu tô óooootima. Tô ótima.

— Deita aqui comigo — digo para ela.

Fecho os olhos quando sinto sua cabeça sobre o meu peito e sinto o cheiro do xampu que ela sempre usa, só que agora está muito mais forte. Tudo está mais forte. Cada ruído. A sensação do vento no meu rosto. Dax Riggs cantando “Night Is the Notion” ao fundo, em algum lugar que minha mente diz ser longe, mas o som está tão alto que parece que o jipe está encostado na minha cabeça. Consigo quase sentir o cheiro de borracha dos pneus.

E eu não consigo evitar. Começo a cantar “Night Is the Notion” o mais alto que posso. Não sei como já conheço a letra, mas conheço. Conheço, caralho. E parece que a canção dura horas, e eu nem ligo. Finalmente, paro de cantar, só fecho os olhos e sinto a música passar através de mim. E não me importa mais nada agora, a não ser o momento. E eu tô doido de tesão. Levo um segundo — eu acho — para perceber que meu pau está sentindo a mesma brisa que meu rosto sente. E é bom.

— Camryn? Quê? Tá.

Nem sei o que estou dizendo, ou se estou realmente dizendo alguma coisa. Minha mente me diz que preciso me certificar de que ela não está chapada a ponto de fazer um boquete na frente dos outros, mas ao mesmo tempo não quero que ela pare.

Eu fico sem fôlego e minha cabeça cai para o lado. Vejo Caleb em cima de uma das garotas, as coxas nuas dela apertadas ao redor do corpo dele, que sobe e desce. Desvio o olhar. Olho para o céu de novo. Traços de luz vão para um lado e para o outro com o movimento das estrelas. Estremeço quando sinto meu pau batendo no fundo da garganta dela.

Eu olho para baixo. Vejo uma cabeleira loura. Estendo a mão para tocá-la, parte de mim querendo afastá-la, outra parte querendo forçá-la a engolir mais fundo. Acabo escolhendo a segunda opção, mas quando jogo a cabeça para trás e vejo o rosto de Camryn ao lado do meu, ergo os ombros da areia.

— Sai de cima de mim, piranha! — consigo gritar.

Eu a chuto para longe e o barato muda completamente. Não estou mais curtindo.

Eu me obrigo a sentar, tento dar murros na cabeça com as mãos, esperando ficar sóbrio com o choque, mas não adianta porra nenhuma. Só consigo enfiar o pau de volta no short, olho para o outro lado da fogueira e vejo aquela piranha nojenta já desmaiada perto de Caleb. Não sei quanto tempo passou, mas todos estão capotados, menos eu.

Estou em pânico, não consigo nem respirar. O que foi que aconteceu, porra?

Eu viro para o lado e abraço Camryn, forçando-a a ficar perto de mim, e não solto mais.

E essa é a última coisa de que me lembro.

Camryn

Estou enjoada. Meu Deus, eu nunca, nunca tive uma ressaca assim. O sol da manhãzinha e a brisa que vem do oceano me acordam. De início fico deitada ali, pois tenho medo de vomitar se me mexer. Minha cabeça está latejando, as pontas dos meus dedos estão dormentes, o resto do meu corpo treme, tomado pela náusea. Eu gemo e acabo de abrir os olhos, pressionando um braço horizontalmente sobre a barriga. Sei que de jeito nenhum vou conseguir sair desta praia sem antes vomitar por uns bons cinco minutos, mas tento me segurar o máximo que posso.

Minha bochecha está apertada contra a areia debaixo de mim. Sinto grãos grudados na pele. Com muito cuidado, limpo a areia com um dedo antes que ela entre no meu olho.

Ouço uma pancada, seguida por um estalo e gritos.

Apesar dos protestos do meu estômago, viro para o outro lado, olhando para o oceano.

— Sai de cima dele! — ouço uma garota gritar.

Isso me acorda ainda mais, e por uma fração de segundo me dou conta do quanto eu estava desacordada. Mas agora estou totalmente alerta. Levanto a cabeça da areia e vejo Andrew moendo Tate com os punhos.

— Andrew! — tento gritar, mas minha garganta está irritada e minha voz sai rouca, por isso só consigo balbuciar seu nome. — Andrew! — digo de novo, controlando melhor minha voz.

— Qual é o seu problema, caralho?! — Tate grita.

Ele está tentando se afastar de Andrew, mas Andrew continua avançando. Ele dá mais e mais socos, dessa vez derrubando Tate sentado na areia.

Então o irmão de Tate vem ajudar e soca o quadril de Andrew. Os dois caem longe de Tate e rolam vários metros. Andrew pega Caleb pela garganta e o levanta acima de seu corpo, jogando-o com força na areia, e está em cima dele em segundos. Ele dá três socos em Caleb antes que Tate chegue por trás, puxando-o para longe.

— Fica frio aí, porra! — Tate grita.

Mas Andrew gira o corpo e atinge seu queixo com um gancho, e eu ouço outro estalo de ossos de virar o estômago. Tate cambaleia para trás, segurando a mandíbula.

— Você drogou a gente! Eu vou te matar, caralho! — Andrew ruge.

Finalmente consigo ficar de pé, embora eu tropece uma vez antes de chegar perto de Andrew. Quando vou segurar o braço dele para puxá-lo, sou empurrada por trás e caio sentada. Nem sei o que aconteceu, mas por um segundo fico sem fôlego. Levanto a cabeça e vejo Caleb em cima de Andrew. Devo ter sido atingida quando Caleb atacou Andrew por trás.

Eu me levanto novamente da areia e vejo Elias se aproximando.

Em pânico, olho para meus dois lados e novamente para Elias. Tudo parece estar em câmera lenta. Os três vão se juntar contra Andrew? Ah, nem fodendo! Começo a agarrar Tate enquanto ele e Caleb estão esmurrando Andrew, mas sou empurrada para longe por Elias.

— Sai! — ele rosna para mim.

Andrew consegue se aguentar bem contra Tate e Caleb, ainda está de pé e trocando socos com os dois, mas se Elias entrar na briga, acho que ele não vai conseguir lutar contra os três.

Elias entra no bolo e não consigo entender quem está batendo em quem, quando um par de mãos me pegam pelas axilas por trás.

— Fica aqui comigo, garota — Bray diz.

No meio da minha confusão e pavor, vejo Elias esmurrando Caleb e o alívio toma conta do meu corpo, embora isso dure pouco.

A boca de Andrew está sangrando. Mas todos os quatro estão sangrando em algum lugar. A luta parece continuar para sempre, e a cada golpe que Andrew dá ou recebe, eu me encolho e fecho os olhos, querendo apenas bloquear tudo. Estou sentada na areia com Bray me abraçando por trás, porque ela ainda acha que vou tentar entrar na briga. Mas voltei a sentir que vou vomitar e mal consigo me mexer. Gotas de suor brotam na minha testa. Minha nuca está fria e úmida. O céu está começando a girar.

— Oh, não. Bray... acho que eu vou...

Eu perco o controle ali mesmo. Sinto meu corpo se desvencilhando com violência dela e minhas mãos se estendendo, afundando na areia. Minhas costas se arqueiam e descem, se arqueiam e descem, e eu vomito sem parar, sem parar. Meu Deus, por favor, faz isso parar. Eu nunca mais vou beber! Por favor, faz isso parar! Mas parece que eu nunca vou parar. Quanto mais vomito, mais meu corpo reage ao cheiro do vômito, ao som, ao sabor dele, e isso me faz vomitar ainda mais. Mal consigo ouvir a luta ao fundo por cima dos meus próprios ruídos, e dos estertores secos quando não resta mais nada no meu estômago para devolver. Finalmente, caio para o lado. Não consigo me mexer. Meu corpo treme incontrolavelmente, minha pele está fria e quente e pegajosa em todo lugar. Sinto que Bray está sentada ao meu lado.

— Você vai ficar bem — eu a ouço dizer. — Uau, aquele bagulho te zoou forte.

— O que era? — pergunto, e partes da noite anterior começam a voltar à minha memória.

Nem ouço se ela respondeu ou não à minha pergunta.

Lembro que tudo estava bem, era só uma bebedeira normal, até pouco depois que começamos a tomar o gim. E então, do nada, eu não conseguia mais enxergar o que estava à minha frente, porque tudo estava perto demais. Eu ficava tentando focar os olhos em coisas mais distantes, o oceano, as estrelas, as luzes dos barcos ao longe, sobre a água. Lembro que achei que um navio estava se aproximando de nós e que ia bater na praia. Mas eu não me importava. Eu achei... lindo. Ia matar a todos nós, mas era lindo. E lembro que ouvi Andrew cantando uma canção bem sexy. Deitei a cabeça no peito dele e fiquei ouvindo-o cantar. Eu queria subir em cima dele e tirar a roupa, e teria feito isso, se conseguisse me mexer.

E lembro...

Peraí.

Aquela piranha loura. Ela me perguntou... peraí.

Eu levanto o corpo da areia.

— Acho que você precisa ficar deitada um pouco — Bray diz.

Meus dedos tocam minha testa.

Lembro que ela estava sentada perto de mim e de Bray. Estava tão chapada quanto todos nós, mas eu não estava mais com ciúmes. Ela conversou com a gente um pouco, e eu não me importei.

À medida que as lembranças vão voltando, meu corpo começa a tremer mais.

Ela tentou me beijar. Acho que eu deixei...

Acho que vou vomitar de novo.

Eu encolho os joelhos e apoio os cotovelos em cima deles, afundando o rosto nas mãos. Ainda estou tão zonza. Sinto que ainda não acabei de vomitar. Não tenho aquela grande sensação de alívio que vem depois de passar mal. Não, a ânsia só ficou mais intensa, desta vez provocada pelos meus nervos.

O resto está voltando aos poucos, e embora eu queira me forçar a esquecer, não consigo.

Ela perguntou se podia dormir comigo e com Andrew. Sim, me lembro agora. Mas... meu Deus... pensei que ela quisesse dizer dormir, mas agora me dou conta de que estava tão chapada que não percebi que ela queria dizer sexualmente.

Eu disse que não me importava.

Então lembro que ela...

Eu perco o fôlego. Levo a mão à boca, com os olhos arregalados e ardendo por causa da brisa.

Lembro que ela fez um boquete em Andrew.

Tentando ficar de pé, sinto a mão de Bray nas minhas costas.

— Para, garota — ela diz, me puxando de volta para a areia. — Não vai lá. Você só vai se machucar.

Solto meu pulso da mão dela e tento ficar de pé de novo, mas os movimentos bruscos, junto com meus nervos em frangalhos, causam mais ânsia de vômito.

Então ouço Andrew de pé perto de mim.

— Cacete — ele diz para Bray. — Você pega uma garrafa d’água no isopor no banco de trás do meu carro?

Bray vai pegar a água.

Andrew me puxa para suas pernas assim que eu paro de tentar vomitar. Ele afasta meu cabelo dos olhos e da boca.

— Eles deram droga pra gente, amor — ele diz.

Meus olhos se abrem um pouco e o vejo em cima de mim, com as palmas das mãos nas minhas bochechas.

— Eu mato aquela vaca. Juro por Deus, Andrew.

A expressão dele é de uma pessoa atordoada. Acho que ele não sabia que eu tinha visto.

— Ela ainda tá desacordada. Amor, eu...

A culpa em seu rosto me corta o coração.

— Andrew, eu sei o que aconteceu — digo. — Sei que você achou que fosse eu. Vi o que você fez.

— Não importa — ele diz, cerrando os dentes. Seus olhos ficam rasos d’água. — Eu devia saber que não era você. Porra, me desculpa. Eu devia saber. — Suas mãos apertam meu rosto.

Estou para mandá-lo parar de se culpar quando Elias se aproxima.

— Desculpa, cara, a gente não sabia. Juro.

— Eu acredito — Andrew diz.

Bray volta com a água, e eu já estou recuperando um pouco das minhas forças. Levanto o corpo e fico sentada, encostada no peito nu de Andrew. Ele me abraça e me aperta tão forte, como se temesse que eu fosse levantar e sair correndo.

Então ele pega a garrafa de Bray, tira a tampa, joga um pouco d’água na mão e passa na minha testa e na minha boca. O frescor me alivia na hora.

— Olha, cara, desculpa — Tate diz, chegando por trás de nós. — A gente achou que vocês não iam ligar. Só pusemos um pouco na bebida de todo mundo. Fizemos uma presença. Não trouxemos vocês pra cá com más intenções.

Andrew consegue se afastar delicadamente de mim, mesmo assim tão rápido que mal noto sua ausência, e esmurra Tate de novo. Um estalo de ossos nauseabundo ecoa pelo espaço.

— Por favor, Andrew! — eu grito.

Elias segura Andrew e Caleb segura Tate, apartando-os.

Andrew deixa Elias segurá-lo por trás, mas depois se desvencilha e volta para mim, me ajudando a levantar.

— Vamos embora — ele diz, ele começa a me pegar no colo, mas eu balanço a cabeça, para que ele saiba que consigo andar sozinha.

Ele pega o violão e eu pego o nosso cobertor, e nós vamos para o Chevelle.

— Talvez fosse bom a gente dar uma carona pra Bray e Elias — digo.

Andrew joga o violão no porta-malas e pega o cobertor de mim, guardando-o também. Então ele vai para o seu lado do carro, estende os braços sobre o teto e apoia a cabeça entre eles. Ele respira fundo e dá um murro na lataria.

— Puta que pariu! — grita, dando outro murro.

Em vez de tentar chamá-lo à razão, decido deixar que ele se acalme sozinho. Olho para ele com ternura do outro lado do carro. Depois entro e fecho a porta. Ele fica ali mais um minuto, até que o ouço dizer:

— Se vocês quiserem, podem voltar com a gente.

Elias e Bray, carregando suas coisas, vêm até o carro e se sentam no banco de trás.

1 Programa infantil de incentivo à leitura da TV pública americana. (N.T.)


Andrew


25

NEM SEI COMO achei o caminho de volta tão facilmente. Acho que num certo momento eu nem me importava muito se nos perdêssemos. Mas volto sem virar uma esquina errada nem ter que parar e pedir informações. Os quatro não falamos muita coisa na volta. E do pouco que foi falado, não lembro nada.

Paramos no estacionamento do hotel e nos despedimos de Elias e Bray. Talvez eu tivesse agradecido a Elias ou desejado sorte para o resto da viagem, ou talvez até convidado os dois para saírem conosco à noite, mas dadas as circunstâncias, só consigo responder com um aceno quando eles agradecem pela carona.

Eu dou partida no carro e vou para o nosso lado do hotel.

Camryn ainda parece insegura sobre conversar comigo. Não com medo, apenas insegura. Eu não consigo nem olhar para ela. Me sinto um bosta pelo que aconteceu, e nunca vou me perdoar.

Camryn segura a minha mão e vamos direto para o nosso quarto. Eu abro a porta e começo a jogar nossas coisas nas mochilas.

— Não foi sua...

Eu a interrompo.

— Não. Por favor. Só... me dá um minuto...

Ela olha para mim tão desolada, mas balança a cabeça e concorda.

Logo estamos na estrada de novo, indo para o Norte pelo litoral. Destino: qualquer lugar, menos a Flórida.

Depois de dirigir por uma hora, o que aconteceu na noite passada não me sai da cabeça, e eu tento entender, de alguma forma. Eu saio da estrada e o carro roda até parar no acostamento. Está tão silencioso. Olho para baixo, depois pelo para-brisa. Percebo que estou com os nós dos dedos brancos de tanto apertar o volante. Finalmente, abro a porta e saio do carro.

Ando rapidamente pelo cascalho e então desço a encosta da vala, atravessando para o outro lado e indo direto para a primeira árvore.

— Andrew, para! — ouço Camryn gritar.

Mas eu continuo andando, e quando fico frente a frente com aquela merda de árvore, bato nela com tanta força quanto bati em Tate e Caleb. A pele de dois dos meus dedos se abre, o sangue escorre pelas costas da mão e entre os dedos, mas eu não paro.

Só paro quando Camryn entra na minha frente e empurra meu peito com tanta força com as duas mãos que eu quase caio para trás. Lágrimas escorrem dos seus olhos.

— Para! Por favor! Para com isso!

Eu desabo sentado na grama, com os joelhos dobrados, minhas mãos ensanguentadas pendendo dos pulsos. Meu corpo se curva para a frente, cabisbaixo. Só consigo ver o chão embaixo de mim.

Camryn se senta na minha frente. Sinto suas mãos no meu rosto, tentando levantar minha cabeça, mas eu não deixo.

— Você não pode fazer isso comigo — diz com voz trêmula. Camryn tenta me forçar a olhá-la, e eu finalmente deixo porque me mata de dor ouvi-la chorar. Olho nos olhos dela, os meus cheios de lágrimas de raiva que estou tentando conter. — Amor, não foi culpa sua. Você tava drogado. Qualquer um poderia ter se enganado, chapado como você tava. — Seus dedos apertam meu rosto. — Não. Foi. Culpa. Sua. Entendeu?

Tento desviar o olhar, mas ela afasta minhas mãos e se senta no meio das minhas pernas sobre os joelhos, de frente para mim. Instintivamente, eu a abraço.

— Mesmo assim, eu devia saber — digo, olhando para baixo. — E não é só isso, Camryn, eu devia cuidar da sua segurança. Você nem deveria ter sido drogada, pra começar. — Só de pensar nisso, a raiva e o ódio por mim mesmo aumentam de novo. — Eu devia cuidar da sua segurança!

Ela me abraça e me força a apoiar a cabeça em seu peito.

Ela se afasta.

— Andrew, olha pra mim. Por favor.

Eu olho. Vejo dor e compaixão em seus olhos. Seus dedos delicados envolvem meu rosto barbado. Ela beija meus lábios suavemente e diz:

— Foi um momento de fraqueza — como que para me lembrar do que eu disse a ela há vários meses sobre os comprimidos. — Foi minha culpa tanto quanto sua. Eu não sou burra. Deveria ter imaginado que não podia deixar nossas bebidas na mão deles nem por um segundo. Não é culpa sua.

Eu baixo o olhar, e então olho para ela de novo. Não sei como posso fazê-la entender que, por causa de como e quem sou, sinto um forte senso de responsabilidade por ela. Uma responsabilidade da qual me orgulho, que senti desde o dia em que a conheci. Me mata... me mata saber que no meu “momento de fraqueza” eu não pude protegê-la, que, por eu ter baixado a guarda, ela poderia ter sido ferida, estuprada, morta. Como posso fazê-la entender que não importa se ela não me culpa por isso, que sua opinião, embora eu não a considere sem valor, não desculpa meu momento de fracasso? Ela tem direito a um momento de fraqueza. Eu não tenho. O meu é só fracasso.

— E eu nunca, jamais culparia você por aquilo — ela acrescenta.

Eu só olho para ela, procurando um significado em seu rosto, e então ela continua:

— O que aquela garota fez — ela explica. — Eu jamais jogaria aquilo na sua cara. Porque você não fez nada errado. — Eu sinto seus dedos afundando em meu rosto. — Você acredita em mim?

Eu balanço a cabeça lentamente.

— Acredito, sim.

Ela suspira e diz:

— De todo modo, pode ter sido em parte minha culpa. — Ela desvia o olhar.

— Como assim?

— Bem — ela diz, mas hesita com uma expressão distante de arrependimento no semblante —, acho que, sem querer, posso ter dado permissão pra ela.

Aquilo certamente me pega de surpresa.

— Lembro que ela perguntou sobre dormir com a gente, e acho que falei que sim, que ela podia. Eu-eu não sabia que ela queria dizer... sexualmente. Se eu estivesse sóbria, com certeza teria sacado isso. Andrew, me desculpa. Desculpa por eu ter deixado aquela piranha louca violentar você.

Eu balanço a cabeça.

— A culpa não é de nenhum dos dois, então não começa a se culpar também, tá?

Quando não vejo aparecer o sorriso que eu queria causar rápido o suficiente, eu a agarro dos dois lados pela cintura. Ela grita quando começo a fazer cócegas. Ela ri e se retorce tanto que cai para trás na grama, e eu me sento em cima dela, me apoiando nos joelhos dos dois lados para não esmagá-la.

— Para! Não! Andrew, tô falando sério, caralho! Paraaaa! — Ela ri alto e eu enfio mais os dedos nos seus quadris.

Então ouço um carro de polícia tocar a sirene uma vez e silenciar, parando atrás do meu carro.

— Fodeu — eu digo, olhando para Camryn. Seu cabelo está emaranhado e cheio de fios de grama.

Saio de cima dela e estendo a mão ensanguentada para ajudá-la a levantar. Ela a toma e fica de pé, espanando a roupa. Voltamos para o carro enquanto o policial sai de sua viatura.

— Vocês costumam deixar a porta do carro escancarada assim na estrada? — o policial pergunta.

Eu olho para a porta e novamente para ele.

— Não, senhor — eu digo. — Fiquei com vontade de vomitar e nem pensei nisso.

— Habilitação, comprovante do seguro e documentos do veículo.

Tiro a habilitação da carteira, entrego para ele e enfio o corpo pela janela do lado do passageiro para procurar os documentos no porta-luvas. Camryn está encostada na traseira do carro, com os braços cruzados nervosamente sobre o peito. O policial volta para a viatura — depois de notar o sangue nas minhas mãos — e se senta para consultar o meu nome.

— Espero que você não esteja escondendo nenhum assalto, assassinato ou nada assim de mim — Camryn diz, quando me apoio no capô ao lado dela.

— Não, já parei com os assassinatos — respondo. — Ele não tem como me prender. — Eu a cutuco de leve com o cotovelo.

Passados alguns minutos de pura tensão, o policial se aproxima de nós e me devolve os documentos.

— O que aconteceu com a sua mão? — ele pergunta.

Olho para ela, sentindo-a doer e latejar pela primeira vez, agora que ele chamou minha atenção. Em seguida, aponto para a árvore perto dali.

— Eu meio que bati na árvore.

— Você meio que bateu na árvore? — ele pergunta, desconfiado, e noto que olha para Camryn várias vezes. Que legal, ele deve estar achando que bati nela ou alguma porra assim, e considerando como ela está detonada depois do incidente de ontem à noite e do nosso rala-e-rola na grama, suas suspeitas devem estar sendo confirmadas.

— Tá, eu bati na árvore.

Ele olha para Camryn, agora.

— Foi isso que aconteceu? — ele pergunta a ela.

Camryn, nervosa pra caramba e pelo visto imaginando, como eu, o que o policial acha que realmente aconteceu, de repente faz a Natalie.

— Foi, senhor — ela diz, gesticulando muito. — Ele ficou nervoso porque uns filhos da puta... — ela se encolhe toda — desculpa, se aproveitaram da gente ontem à noite, e ele ficou se martirizando com isso a manhã toda e acabou descontando naquela árvore! Eu corri pra lá pra não deixar que ele se machucasse, a gente conversou, e eu tô com essa cara de merda pisada... ai, desculpa... por causa da noite de cão que a gente passou. Mas juro que não somos más pessoas. Não usamos drogas e ele não é um psicopata nem nada, então, por favor, libera a gente. Pode até fazer uma busca no carro, se quiser.

Momento. Sorvete. Na testa.

Eu rio por dentro. Não temos com que nos preocupar se ele quiser vasculhar o carro. A não ser que... nossos amigos temporários, Elias e Bray, tenham acidentalmente deixado uma trouxinha de erva ou qualquer porra incriminadora no banco de trás.

Puta merda... por favor, que não aconteça agora o que sempre acontece nos seriados de TV.

Eu olho para Camryn e balanço discretamente a cabeça.

Ela arregala os olhos.

— O que foi que eu falei?

Eu apenas sorrio, ainda balançando a cabeça, porque é só isso que posso fazer, na verdade.

O policial funga e depois mastiga a bochecha por dentro. Seus olhos vêm e vão entre mim e Camryn várias vezes e ele não diz uma palavra, o que só aumenta a nossa tensão.

— Da próxima vez, não deixem a porta escancarada assim — o policial diz, sua expressão tão neutra quanto esteve o tempo todo. — Seria uma pena alguém passar e arrancar a porta de um Chevelle 1969 em tão bom estado.

Um sorriso discreto ilumina o meu rosto.

— Com certeza.

O policial parte antes de nós, que ficamos dentro do carro estacionado por um mais um momento.

— “Pode fazer uma busca no carro, se quiser”? — repito.

— Pois é! — ela ri, jogando a cabeça para trás. — Eu não queria dizer isso. Escapou.

Eu rio também.

— Bom, parece que seu monólogo inocente... que, a propósito, me dá um pouco de medo; acho que aquela sua amiga bipolar tá te contagiando... deixou o policial com peninha e livrou a nossa cara.

Eu apoio as mãos no volante.

Ela estava sorrindo e provavelmente ia comentar minha piadinha com Natalie, até que vê de novo minha mão ensanguentada. Então se aproxima de mim e a pega delicadamente.

— A gente precisa limpar isso antes que infeccione — ela diz. Olha mais de perto e começa a tirar pequenos fragmentos de grama e terra em volta e dentro do ferimento. — Tá muito feio, Andrew.

— Não é tão grave assim — digo. — Não vai precisar de pontos.

— Não, você precisa é apanhar. Nunca mais faz isso. Tô falando sério. — Ela pega um último fragmento e depois se debruça por cima do encosto, procurando o pequeno isopor no banco de trás.

Eu viro a cabeça e só vejo a bunda dela saindo do short. Com minha mão ensanguentada, enfio o dedo dentro do elástico da calcinha do biquíni e o estalo sobre a pele dela. Ela não se assusta, mas revira os olhos quando para de remexer no banco traseiro, com uma garrafa d’água na mão.

— Enxágua isso — ela ordena, me passando a garrafa.

Eu abro a porta, pego a garrafa, estendo a mão para fora e derramo água sobre o ferimento.

Enquanto procura algo na bolsa, ela diz:

— Da próxima vez que você ficar puto e descarregar a raiva em algum objeto, vou pôr oficialmente o seu nome na minha Lista de Psicopatas. — Ela me passa um tubo de pomada.

Eu só balanço a cabeça e pego o tubo. Acho que não dá pra discutir com ela quanto a isso.

Ela aponta para a pomada e me manda aplicá-la logo. Eu rio e digo:

— Você parece uma sargenta.

Camryn me dá um soco de brincadeira no braço (machucando a própria mão, na verdade) e me acusa de insinuar que ela é gorda. É tudo brincadeira, e acho que é sua maneira de me ajudar a não pensar no que aconteceu. Depois de minutos, estamos conversando sobre música e sobre os bares ou clubes onde podemos tocar a caminho de Nova Orleans.

Sim, num certo momento decidimos que, não importando onde vamos parar ou quanto tempo vamos ficar, temos que visitar nosso lugar favorito à margem do Mississippi, haja o que houver.

~~~

Isso foi há dois dias. Hoje estamos acomodados num belo hotel no grande estado do Alabama.


Camryn


26

— TÁ EMPOLGADA com o que a gente vai fazer hoje à noite ou precisa respirar num saco de papel? — Andrew pergunta, saindo do banheiro com uma toalha enrolada na cintura.

— As duas coisas — respondo. Deixo o controle remoto sobre o criado-mudo e me sento na cama. — Conheço a música, mas é minha primeira apresentação solo. Por isso, sim, tô surtando um pouco.

Ele remexe na sua mochila perto da TV e acha uma cueca limpa. A toalha cai no chão. Eu inclino a cabeça, admirando sua bunda sexy da cama. Ele veste a cueca e ajeita o elástico na cintura.

— Você vai botar pra quebrar — ele diz, virando-se para mim. — Ensaiou um monte e já tá afiada. E se eu achasse que você não tava preparada, eu falaria.

— Eu sei que falaria.

— Bom, pronta pra trabalhar? — ele pergunta, terminando de se vestir.

— É. Acho que sim. Como eu tô?

Eu me levanto e dou uma volta, usando um top minúsculo preto com alcinhas finas e um jeans apertado.

— Peraí — eu exclamo, levantando o dedo. Calço minhas novas botas três quartos reluzentes e fecho o zíper na lateral. Então giro e faço pose de novo, exagerando um pouco.

— Insuportavelmente sexy, como sempre — ele elogia com um sorrisão, e então se aproxima de mim e passa a mão na minha trança.

Posso estar me apresentando sozinha cantando “Edge of Seventeen” da Stevie Nicks hoje, mas por duas horas, antes de subir no palco, vou trabalhar como garçonete e Andrew vai limpar mesas. Ganhei dele! Eu consegui o emprego mais legal.

A casa está lotada quando chegamos, às 19h. Adoro a atmosfera deste lugar. O palco é de bom tamanho, mas a área das mesas e a pista de dança são enormes. E está cheio, o que me deixa mais nervosa ainda. Eu vou até a cozinha, apertando a mão de Andrew, abrindo caminho no meio da multidão. Com estes empregos temporários, tivemos a sorte de trabalhar juntos por algumas noites. Quase todos os serviços que pegamos durante a viagem, desde a Virgínia, foram esporádicos. Eu trabalho como arrumadeira aqui e ali, enquanto Andrew trabalha de garçom ou até substitui algum leão de chácara. Ele pode não ser o tipo bombado (ainda bem, porque acho isso nojento), mas seus músculos são grandes o suficiente para ele ser contratado com facilidade. Por sorte, ele não precisou arrastar ninguém para fora pela camisa, nem apartar nenhuma briga.

Nosso chefe pelos próximos dias, German — é o nome dele mesmo, apesar de ele definitivamente não ser alemão, e sim o típico caipira do Meio-Oeste americano —, entrega a Andrew um avental branco e um broche que o identifica como “Andy”.

Eu seguro o riso, mas Andrew percebe a minha expressão divertida.

German esfrega sua mão roliça como uma salsicha no nariz, limpa-a no jeans e diz:

— Quando o povo levantá de uma mesa e terminá de recoiê as porra deles toda, cê vai lá e deixa a mesa limpinha pro próximo cliente. — Ele agita o dedo para Andy, hã, isto é, Andrew. — E não toca nas gorjeta. São só pras garçonete, tá me entendeno?

— Sim, senhor — Andrew diz. Quando German baixa os olhos para seu bloco de pedidos por um segundo, Andrew diz para mim, sem emitir som: Que porra...? E eu tento endireitar a boca e evitar sorrir quando German olha para nós de novo.

German olha para mim, mas olha mesmo, totalmente diferente de como estava olhando para Andrew agora há pouco. Ele abre um sorriso amarelo e diz:

— E ocê só pricisa fazê exatamente essa carinha que tá fazeno agora. Abre esse sorriso lindo e enche os bolso cas gorjeta.

Fico imaginando o que as outras garçonetes que trabalham aqui em tempo integral têm que aguentar desse cara.

Pisco meus olhos azul-bebê para ele e digo, com um sotaque caipira doce e sedutor:

— Pode deixá, seu German. E mais tarde, quando meu turno terminá, vô tê que ir lá pra dentro e retocá a maquiage antes de me apresentá, o senhor entende, né?

Noto que Andrew arregala os olhos e parece mais intrigado, mas eu continuo dando atenção a German, que já está comendo na minha mão de um jeito que, se eu o mandasse lamber o chão, ele falaria: Diz quando é pra pará, tá?

Andrew

Esse sotaque de bela do Sul que surgiu do nada me deixou morrendo de tesão. Vou ter que conversar com ela a respeito disso mais tarde.

Eu ponho meu broche, amarro o avental nas costas e pego a espécie de bacia de plástico que German aponta quando olho para ele. Cacete, não me incomoda fazer esse tipo de trabalho, mas German é um caipirão babaca, que espero que fique longe de mim pelas próximas duas horas. E ele está precisando de um desodorante. A porra do tubo inteiro, quero dizer. Ele realmente não combina com esse lugar. Parece uma bandeira confederada pendurada na janela de uma mansão de 400 mil dólares. O bar e restaurante até que é bem decorado. Por dentro, pelo menos.

Eu me dirijo para a área das mesas com a bacia debaixo do braço e vou para a primeira mesa vazia que vejo. Pego todo o lixo, os pratos sujos cheios de fritas e bolinhos que sobraram e jogo tudo dentro da bacia. Depois limpo a mesa com o trapo que tiro do bolso do avental e endireito os potes de ketchup e molho de churrasco. É tudo muito automático, diferente do serviço de garçonete, e acho que por isso somente Camryn precisou fazer uma hora de treinamento ontem para começar a trabalhar hoje. Ela pode ter o emprego que rende gorjetas, no qual pode usar seu charme sexy, mas precisa aguentar o chefe nojento e tarado. E eu tô adorando isso. Bem feito pra ela por tirar sarro do meu emprego de limpar mesas. Ela fez piadinha, me chamando de “escória” do bar. Bem, espero que ela não ache que vou tirar o traseirinho magro dela da reta, caso German resolva avançar o sinal. Ela vai ter que se virar sozinha.

Eu limpo mais algumas mesas, deixando uma gorjeta de cinco dólares numa e outra de vinte na outra. Quando estou para voltar para a cozinha para esvaziar a bacia, sou parado por quatro garotas numa mesa perto do balcão do bar.

— Ei, gatão — uma das mulheres mais velhas diz, me chamando com um dedo. — Podemos pedir nossas bebidas pra você?

— Sinto muito, senhora, mas eu só limpo as mesas.

Eu tento me afastar, mas outra mais bonita me impede.

— Aposto que se a gente pedisse pra você ser nosso garçom, você seria promovido. — Seus olhos estão vidrados e sua cabeça balança um pouco. Eu noto, porque é difícil não notar, seus peitos enormes saindo do top apertado. Ela os empina mais ainda.

— Bom, vocês podem pedir — eu digo, também mostrando meu charme, sorrindo com o canto da boca. — E se a chefia deixar, serei seu a noite toda.

As quatro se entreolham numa espécie de conversa silenciosa. Já estão comendo na minha mão.

Camryn chega atrás de mim carregando uma bandeja cheia de copos de uísque e um copo já lotado de notas. Eu me pergunto se aquele é o dinheiro das gorjetas ou o pagamento dos drinques. Isso está me deixando ansioso.

Ela dá um sorrisinho para mim, olhando para a mesa das mulheres, e depois rapidamente para mim de novo.

— Ele está incomodando vocês? — ela pergunta.

Eu sei que ela não está com ciúmes; hoje só o que importa é a competição entre nós dois. E ela vai fazer tudo o que puder para impedir que eu ganhe a pequena aposta que fizemos no carro a caminho daqui:

— Você acha que não consigo ganhar gorjetas só porque tô limpando mesas?

— Não consegue — ela disse. — Copeiro não ganha gorjeta.

— Pense bem — eu disse, olhando-a do banco do motorista. — É um bar cheio de mulheres e álcool. Aposto que consigo ganhar gorjetas.

— Ah, é mesmo? — ela perguntou, estufando os lábios.

— Sim — eu disse, e então aumentei o cacife, porque estava me sentindo ousado: — Na verdade, aposto que consigo ganhar mais gorjetas do que você.

Camryn riu.

— É sério? Quer mesmo apostar isso? — Ela cruzou os braços e balançou a cabeça como se eu estivesse dizendo algo ridículo.

— Quero — eu disse, mesmo sabendo que deveria ter dito Não, tô brincando.

Mas eu não disse não, e agora estou amarrado a essa aposta, e se Camryn ganhar, vou ter que fazer uma massagem de uma hora nela por três noites seguidas. Uma hora é muito tempo de massagem. Fico com os braços cansados só de pensar.

A mulher mais velha responde para Camryn:

— Não, ele não tá incomodando nem um pouco, lindinha. — Ela me olha de alto a baixo como se quisesse arrancar minha roupa e me lamber, apoiando o queixo nas duas mãos. — Ele pode ficar aqui o tempo que quiser. Cadê o seu chefe?

— Ele tá por aqui — Camryn diz. — É só procurar um gordão de uniforme. O nome dele é German.

— Obrigada, gata — a mulher diz, e volta a olhar para mim.

Essa mulher, admito, meio que me dá medo. E como ela parece ser a líder da matilha, decido que preciso sair dali antes que ela ache que estou mesmo a fim dela, porque aí eu é que vou precisar da ajuda de Camryn pra sair da enrascada em que me meti.

— Tenham uma ótima noite, madames — digo com um sorriso acolhedor, e me viro para ir embora.

Sinto uma mão deslizando para dentro do bolso do meu avental. Eu paro e olho para a mão que a mulher já está tirando do meu bolso. Ela está me encarando com aquele famoso olhar cheio de tesão.

— Pra você também, docinho — ela diz.

Pisco para ela e sorrio para as outras três enquanto me afasto casualmente. Quando chego à cozinha, esvazio a bacia, enfio a mão no bolso e tiro dele três notas de vinte dólares.

Porra, talvez aquela aposta não tenha sido tão ridícula, no fim das contas.

Duas horas depois...

A aposta foi ridícula, sim.

— 240, 241, 246, 256. — Camryn fica contando suas gorjetas, agora que nosso curto turno acabou. Ela dá um sorrisinho e acrescenta: — E você, quanto conseguiu?

Estou tentando ficar sério para que minha decepção pareça minimamente genuína, mas ela não está facilitando. Por isso pego meu dinheiro, conto de novo e respondo:

— 82 dólares.

— Bom, até que não tá ruim pra um copeiro, admito — ela diz, embolsando sua grana.

— Como assim, admite? — pergunto, desatando o avental e tirando-o. — Vai perdoar a aposta?

— Pfah! De jeito nenhum.

German chega atrás de nós.

— É bom que a cantoria docês preste. E nada dessas merda de rap, nem musiquinha new age metida a besta. — Ele estala os dedos rapidamente, como se estivesse tentando lembrar algum exemplo, mas logo desiste. — Cês num tão no Ídolos.

— Entendido — Camryn diz, com aquele seu sorriso doce.

German, com um sorriso de babacão na cara, desperta do feitiço dela e, ao se afastar, rosna quando passa por mim. Melhor isso do que me olhar do jeito que ele olha para Camryn, por isso não vou reclamar.

Eu me viro para Camryn.

— Não fica nervosa. — Eu seguro as mãos dela. — Já falei, você vai botar pra quebrar.

Ela balança a cabeça nervosamente. Então solta um suspiro rápido, fazendo bico, e respira fundo.

— Vou pegar a guitarra enquanto você se prepara — digo.

— Tudo bem.

Eu a beijo nos lábios e vou até o carro pegar a guitarra elétrica que ela me deu de presente de aniversário, que está no porta-malas. Apesar de “Edge of Seventeen” ser o solo dela, o próprio riff da guitarra é tão conhecido que estou quase tão nervoso quanto ela por ter que tocá-lo. Tudo bem, talvez não tão nervoso — é uma música até bem fácil. O que me deixa um pouco tenso é o medo de estragar o número dela. É só por causa dela que o show de hoje me deixa tenso.

Eu subo no palco e encontro o baterista, Leif, que conhecemos ontem, se preparando.

— Obrigado por tocar com a gente, cara — agradeço.

— Sem problemas — Leif diz. — Já toquei essa várias vezes num bar da Geórgia onde eu trabalhava, uns anos atrás.

Camryn ficou feliz por encontrar um baterista que conhece a canção. Ela estava preparada para se apresentar só comigo, sabendo que não seria a mesma coisa sem a bateria. Mas quando conhecemos Leif ontem, durante o treinamento dela como garçonete, e ele concordou em tocar conosco esta noite, acho que Camryn se sentiu bem mais confiante.

Eu passo a alça da guitarra pelo ombro assim que Camryn aparece no palco.

Ela vem direto na minha direção, eu encosto no seu ouvido e digo:

— Você tá gostosa.

Ela fica vermelha e olha para sua roupa. Ela trocou o top preto bonitinho que estava usando por outro de seda, também preto, com um decote nas costas que expõe sua pele quase até a cintura. O colar que comprei para ela brilha sobre a seda preta na frente. E ela soltou o cabelo. Adoro a trança que ela sempre usa, mas devo dizer que ela fica sexy em outro nível com o cabelão sedoso e louro caindo sobre os ombros.

O vozerio no bar ecoa pelo ambiente espaçoso, alto até enquanto Leif testa o bumbo da bateria atrás de nós. Todas as mesas estão ocupadas, bem como os bancos junto à parede dos fundos. Minhas quatro “amigas” ainda estão aqui e migraram de seu lugar para uma mesa mais próxima do palco. Elas parecem intrigadas com minha transformação de copeiro em guitarrista. Normalmente, a essa altura, eu estaria procurando na plateia minha “vítima” da noite, mas hoje é diferente, e não vamos fazer nada disso. Camryn está nervosa e concentrada demais para tentar nossa brincadeira de sempre.

Depois que finalmente nos preparamos e estamos prontos para começar, Camryn prende a respiração por um momento e olha para mim.

Eu espero que ela me dê o sinal, e quando a vejo acenar, começo a tocar, e todos os olhos na multidão se viram para nós. Essa introdução da guitarra sempre chama a atenção de todos numa casa lotada. E Camryn, assim que começa a cantar, como sempre acontece também comigo, se transforma em alguém completamente diferente, a ponto de me deixar atordoado. Ela é a dona da canção. Está muito diferente de como estava em todos os nossos ensaios. Confiança e sensualidade derramam de cada verso da canção e de cada movimento seu, e todo o meu corpo reage a isso.

— Ooo, baby, ooo, ooo! — eu acompanho no refrão.

Mas todos estão olhando para ela, até minhas quatro amigas, que sei que de início haviam se aproximado para me olhar. Não, agora elas pertencem sobretudo a Camryn, e isso me deixa orgulhoso.

Antes mesmo que termine a primeira estrofe, a pista de dança já está lotada. A energia e o sexo na voz de Camryn, misturados com o fascínio de todos com sua apresentação, me fazem perder o controle, e eu martelo aquele riff com mais devoção do que antes.

— Ooo, baby, ooo, ooo!

A cada poucos segundos, ouço uma voz gritar ao fundo:

— Huuuuu! — E também cada vez que Camryn solta uma nota tocante.

E eu não me canso disso.

Canto a plenos pulmões junto com ela nos dois refrões seguintes, e sei que a quarta estrofe, aquela em que ela sempre se embanana, vem a seguir. Olho para ela, ainda agitando a palheta rapidamente sobre as cordas, com as costas arqueadas, e não vejo nenhum sinal de nervosismo em seu rosto. Ela está no controle; posso perceber, só de olhar, que de jeito nenhum ela vai errar.

E então a letra sai tão rápida e impecavelmente de seus lábios que sinto meu rosto esticado até o limite por um sorriso quando canto junto com ela a todo volume o refrão seguinte.

Porra, minha gata tomou posse da canção. Te cuida, Stevie Nicks!

Passando a metade da canção, Camryn canta: Oooo! E sua voz some naquela parte sombria da melodia que permite um breve descanso à sua voz.

Mas o solo de guitarra continua. É cansativo, mas meus dedos não param, sem errar uma nota.

Camryn e eu nos entreolhamos e temos um momento só nosso. Então ela volta a cantar, e eu canto junto no momento certo.

Ela continua cantando, suas duas mãos seguram o suporte do microfone, seus olhos se fecham quando ela berra com tanta emoção:

— Yeah! Yeah!

Então ela olha para mim de novo e continua me encarando enquanto solta a estrofe seguinte, como se estivesse cantando apenas para mim.

Calafrios percorrem a minha espinha. Eu sorrio e continuo tocando até a canção acabar.

A plateia explode com uivos e gritos. Camryn agradece as palmas primeiro, depois eu. Ela está com um sorriso enorme, olhando para a multidão, e eu fico meio comovido por dentro.

Sem tirar a guitarra, que empurro para as costas, me aproximo de Camryn e a levanto do chão em meus braços. Os assobios e gritos vêm de todos os lados, mas a única coisa que eu noto é Camryn me olhando. Eu a beijo profundamente, e a multidão assobia e grita ainda mais.

Antes de a noite acabar, fazemos um show completo de dez canções para uma multidão cada vez maior, com o passar das horas. Voltamos a cantar algumas das nossas favoritas: “Barton Hollow”, “Hotel California” e “Birds of a Feather”, entre outras, e cada canção parece agradar mais ao público. Não canto sozinho esta noite, embora Camryn chegue a me pedir isso. A noite foi dela e só dela. Me recuso a ser o centro das atenções, mesmo por apenas uma canção.

Voltamos ao hotel às duas da manhã, e eu pago de bom grado a aposta que perdi.


Camryn


27

— GERMAN PARECE achar que a gente vai ficar muito tempo aqui — eu digo, com o lado direito do rosto encostado no colchão. — Eu falei pra ele que era só temporário.

As mãos mágicas de Andrew pressionam os dois lados das minhas costas dos ombros até a cintura, e eu viro massa de modelar em suas mãos. Fico deitada ali e curto essa massagem como se nunca tivesse sido massageada na vida. Mal consigo abrir os olhos. Ele está sentado sobre meu corpo quase nu, a cavalo sobre minha cintura.

— É, ele me puxou de lado uma hora e perguntou a que horas a gente ia tocar amanhã. — Andrew ri e aperta as pontas dos dez dedos com força na minha pele, mexendo as mãos num firme movimento circular.

Eu gemo debaixo dele.

— A gente pode ficar mais uns dias — ele diz —, mas acho que devíamos partir logo.

— Concordo. E também, os mosquitos em Mobile são horríveis! Você viu que enxame apocalíptico em volta das lâmpadas quando a gente saiu de lá?

Andrew ignora a pergunta e diz:

— Você foi sensacional hoje. Eu sabia que você ia mandar bem, mas pra falar a verdade, não tava esperando aquilo.

Eu finalmente abro os olhos e espio pela janela.

— O que, exatamente? — pergunto.

Suas mãos não param de massagear minhas costas.

— Você subiu no palco e tomou posse da canção. Você tem um talento natural.

— Não sei se tenho — respondo. — Mas tô orgulhosa de mim mesma. Sério, não sei o que deu em mim. Esqueci o nervosismo e mergulhei de cabeça.

— Bom, funcionou — ele diz.

— Só porque você tava lá comigo — eu saliento.

Ficamos em silêncio por vários minutos, eu de olhos fechados, com sua massagem ameaçando gradualmente me mandar para a terra dos sonhos. A circulação ao redor dos meus olhos parece aliviar; minha cabeça toda está formigando, e minha nuca se arrepia quando ele afunda os dedos no meu couro cabeludo.

Antes que passe uma hora, começo a me sentir culpada por fazê-lo trabalhar tanto tempo e digo:

— Se você estiver cansado, pode parar.

E quando ele não para, eu o faço parar, virando o corpo e me deitando de costas. Ele fica em cima de mim e me beija de leve na boca. E nós nos olhamos por um momento, um examinando os olhos do outro, estudando os lábios. Sinto-o pressionar meu corpo lá embaixo, sua boca se fecha sobre a minha num beijo apaixonado e ele começa a fazer amor comigo.


Andrew


28

ESTAMOS NA ESTRADA de novo, em algum lugar de uma rodovia entre Gulfport, Mississippi e Nova Orleans. O dia está perfeito, com céu azul e calor na medida certa para que possamos viajar de janelas abertas, sem sentir necessidade de ligar o ar-condicionado do carro. Camryn está dirigindo e eu descanso no banco do passageiro, numa posição bem parecida com a sua de sempre, com um pé para fora da janela.

Ficamos em Mobile uma semana e pagamos o quarto de hotel, toda a comida e a gasolina só com uma fração do dinheiro que ganhamos tocando e das gorjetas de Camryn como garçonete. Minhas gorjetas de copeiro foram só uma gota no oceano, comparadas com as dela.

Meu celular vibra no bolso da minha bermuda preta de lona e eu atendo.

— E aí, mãe, tudo bem?

Ela diz que sente muito a minha falta e logo começa a fazer perguntas sobre os meus checkups.

— Não, eu tô fazendo, sim — digo. — É, fiz tomografia esses dias num hospital em... Não, eles só ligaram pro dr. Masters pra pedir minha ficha e... Tá, mãe. Eu sei. Eu tô me cuidando. — Olho para Camryn, que está sorrindo. — Camryn não me deixa faltar. É. Bom, agora a gente tá indo pra Nova Orleans, não sei quanto tempo a gente vai ficar lá, mas depois vamos passar por aí pra te visitar, tá?

Depois que eu desligo, Camryn pergunta:

— No Texas?

Imediatamente, sinto que ela está pensando a mesma coisa que pensou na nossa primeira viagem, mas ela me desmente quando diz:

— Pra mim não tem problema nenhum. Só tô curiosa pra saber nosso destino. — Ela sorri, e percebo na hora que não está escondendo nada.

— O Texas não te preocupa? — eu pergunto.

Ela olha de novo para a estrada ao chegar numa curva, depois volta a olhar para mim.

— De jeito nenhum. Não como me preocupava antes.

— O que te fez mudar de ideia? — Eu tiro o pé da janela e me viro para olhá-la melhor, intrigado pela mudança de opinião.

— As coisas estão diferentes agora — ela diz. — Mas de um jeito bom. Andrew, o mês de julho foi difícil. Pra nós dois. Não sei como eu sei, mas acho que eu já previa desde o início que alguma coisa ruim ia acontecer quando a gente chegasse ao Texas. Por um tempo, achei que eu só estivesse preocupada por aquela ser a última parada da nossa viagem. Mas agora não sei mais. Era como se eu soubesse...

Eu sorrio um pouco.

— Acho que eu entendo — digo. — Então preciso fazer uma pergunta.

Ela olha para mim, esperando.

— A gente vai parar definitivamente um dia?

Sua reação não é a que eu esperava. Eu esperava que seu sorriso sumisse e o momento se perdesse, mas em vez disso, seus olhos brilham, e sinto um ar de calma emanando dela.

— Um dia — ela diz. — Mas ainda não. — Ela olha novamente para a estrada e continua: — Sabe, Andrew, quero ir pra Itália um dia. Pra Roma. Sorrento. Talvez não agora, nem mesmo nos próximos cinco anos, mas espero ir pra lá. Pra França também. Pra Londres. Adoraria até conhecer a Jamaica, o México e o Brasil.

— É mesmo? Ia levar um tempão visitar todos esses lugares — eu digo, mas não de forma a desencorajá-la. Eu também adoraria.

O vento da janela aberta roça seu cabelo, soltando mais fios de sua trança, que dançam ao redor do seu rosto radiante.

— Eu me sinto livre com você — ela diz. — Sinto que posso fazer qualquer coisa. Ir a qualquer lugar. Ser o que eu quiser. — Seus olhos pousam em mim mais uma vez e ela continua: — A gente vai parar logo, mas nunca quero parar definitivamente. Isso faz sentido?

— Com certeza — respondo. — Eu não teria dito melhor.

Chegamos à divisa da Louisiana logo depois que escurece, e Camryn para no acostamento.

— Acho que não consigo mais dirigir — ela diz, esticando os braços para trás e bocejando.

— Eu falei há uma hora que você precisava me deixar dirigir.

— Bom, agora eu tô deixando. — Ela fica ranzinza quando está cansada.

Ambos saímos para trocar de lugar, mas paramos quando nos encontramos na frente do carro.

— Você viu onde a gente tá? — pergunto.

Camryn olha para os dois lados da rodovia deserta. Ela dá de ombros.

— Hã, no meio do nada?

Eu rio baixinho e aponto para o campo. Depois aponto para as estrelas.

— A última vez não valeu, lembra?

Seus olhos brilham, mas sinto que ela está dividida. Não levo muito tempo para entender por quê.

— É um campo plano e aberto. E não tem vaca nenhuma até onde a vista alcança — digo.

Eu sei que absolutamente nada que eu disser vai tranquilizá-la quanto à possibilidade de cobras, mas estava tentando ser sutil e dar uma de idiota, esperando que ela esquecesse isso.

— E as cobras? — ela pergunta, não esquecendo.

— Não deixe seu medo de cobras estragar uma oportunidade perfeita de finalmente dormir sob as estrelas.

Ela estreita os olhos para mim.

Resolvo apelar para a artilharia pesada e simplesmente imploro.

— Por favor? Por favorziiiiinho? — Eu me pergunto se minha cara de gatinho do Shrek é tão eficaz com ela quanto a dela sempre é comigo. Meu instinto inicial foi jogar a desgraçada em cima do ombro e carregá-la à força, mas também estou curioso quanto à eficiência da minha técnica implorativa.

Ela rumina por um minuto e finalmente cede ao meu charme.

— Tá — ela admite, um pouco exasperada.

Eu pego o cobertor do porta-malas e nós passamos juntos por cima da vala e da cerca baixa, depois cruzamos o enorme campo até que encontramos um bom lugar, vários metros à frente. Tenho uma sensação de déjà vu. Estendo o cobertor na grama seca e verifico rapidamente se há cobras nos arredores, só para deixá-la mais tranquila. Nós nos deitamos lado a lado, de costas, com as pernas esticadas sobre o cobertor, cruzando os tornozelos. E olhamos para a imensidão escura e infinita do céu cheio de estrelas. Camryn aponta várias constelações e planetas, me explicando cada um em detalhes, e eu fico impressionado em ver o quanto ela sabe, e como consegue reconhecê-los.

— Eu nunca imaginei que você fosse tão... — tenho dificuldade para encontrar as palavras certas.

— Tão culta? — Sinto que ela sorri discretamente ao meu lado.

— Bom, eu... não quis dizer que acho você...

— Uma garota desmiolada e superficial que não sabe que a Via Láctea não é uma comida de bebê, nem que a teoria do Big Bang é mais do que um seriado de TV?

— É, alguma coisa assim — digo, só para fazer o jogo dela. — Não, mas falando sério, como sabe tudo isso? Nunca pensei que você se interessasse por ciências.

— Eu queria ser astrofísica. Decidi isso quando tinha uns 12 anos.

Fico completamente chocado com sua confissão, mas continuo olhando as estrelas com ela, meu sorriso aumentando.

— Bom, na verdade eu queria ser isso, mais física e astronauta e também trabalhar na NASA, mas acho que eu tava meio iludida, na época. Obviamente.

— Camryn — eu digo, ainda tão surpreso que mal sei o que dizer. — Por que você nunca me contou isso?

Ela dá de ombros.

— Não sei — ela diz. — O assunto nunca surgiu. Você nunca sonhou em ser alguma coisa diferente do que é?

— Acho que sim — respondo. — Mas, amor, por que você não foi atrás disso? — Eu levanto o corpo do cobertor e me sento. Isso pede toda a minha atenção.

Ela olha para mim como se eu estivesse exagerando.

— Provavelmente pelo mesmo motivo que você não foi atrás do que você queria ser. — Ela dobra os joelhos e cruza as mãos sobre a barriga. — O que você queria ser?

Não quero falar de mim agora, mas acho melhor responder, já que ela me perguntou duas vezes.

Eu também dobro os joelhos e apoio os antebraços sobre eles.

— Bom, à parte o clichê de sonhar em ser um astro do rock, como todo mundo, eu queria ser arquiteto.

— Sério?

— Sim — digo, balançando a cabeça.

— Era isso que você tava estudando antes de largar a faculdade?

Eu balanço a cabeça.

— Não — digo, e rio um pouco do absurdo da minha resposta. — Eu tava fazendo faculdade de ciências contábeis e administração.

Camryn franze o cenho.

— Ciências contábeis? Tá falando sério? — Ela está quase rindo.

— Pois é, você vê? — digo, rindo também. — Aidan me ofereceu sociedade no bar dele. Na época, eu só via cifrões na minha frente, e achei que ter um bar seria uma oportunidade e tanto. Eu poderia tocar lá e... não sei o que eu tava pensando, mas topei a proposta do meu irmão na hora. Aí ele começou a dizer que eu precisava entender a parte administrativa do negócio, essa porra toda. Eu entrei na faculdade, e foi então que a ideia foi por água abaixo. Eu tava cagando pras ciências contábeis, pra administrar um bar ou ter que lidar com todos os aspectos negativos de ter um negócio. — Paro por um momento e então digo: — Acho que, como você disse, eu tava iludido, queria todos os aspectos positivos, mas nenhum negativo. Quando percebi que não era assim que funcionava, falei: foda-se.

Ela se senta junto de mim.

— Então por que você não foi atrás de ser arquiteto?

Eu dou um sorrisinho.

— Provavelmente pelo mesmo motivo que você não foi atrás de ser astrofísica.

Ela apenas sorri, sem ter como rebater isso.

Eu olho para o cabelo louro de Camryn e para o campo.

— Acho que somos só duas almas perdidas nadando num aquário — declaro.

Seus olhos se estreitam.

— Já ouvi isso em algum lugar.

Eu sorrio e aponto rapidamente para ela.

— É Pink Floyd. Mas é verdade.

— Você acha que a gente tá perdido?

Eu inclino um pouco a cabeça, olho para as estrelas atrás dela e digo:

— Na sociedade, talvez. Mas juntos, não. Acho que estamos exatamente onde precisamos estar.

Nenhum dos dois diz mais nada por um bom tempo.

Ficamos deitados um ao lado do outro, fazendo o que fomos fazer ali. Enquanto olho para a escuridão infinita daquele céu, fico totalmente assombrado com o momento. Acho que encontro um pouco de mim mesmo naquelas estrelas. Por um bom tempo esqueço a música, a estrada, o tumor que quase me matou ano passado e o momento de fraqueza que quase matou o espírito de Camryn. Esqueço que perdemos Lily e que sei que Camryn parou de tomar anticoncepcional e não me contou. E esqueço também que parei de gozar fora por um motivo e não contei a ela.

Eu realmente esqueço tudo. Porque é isso que um momento assim faz com você. Faz você se sentir algo tão pequeno, dentro de algo tão imenso que está além da compreensão. Apaga todos os seus problemas, suas dificuldades, todas as suas necessidades, aspirações e desejos mundanos, te obrigando a perceber o quanto tudo isso na verdade é insignificante. É como se a Terra ficasse completamente silenciosa e imóvel, e sua mente só pudesse entender ou sentir a imensidão do Universo, e você fica sem fôlego pensando no seu lugar dentro dele.

Quem precisa de psiquiatras? Quem precisa de acompanhamento psicológico, mentores e palestras motivacionais? Vão todos pra casa do caralho. Apenas olhe para o céu noturno e se deixe perder nele de vez em quando.

~~~

Algo desagradável me acorda na manhã seguinte. Farejo o ar de olhos ainda fechados, minha mente não totalmente acordada, mas meu corpo e meu olfato funcionando antes de mim. Há uma brisa fresca no ar e minha pele parece úmida, como se eu estivesse coberto de orvalho. Virando para o outro lado, farejo o ar de novo e o cheiro é ainda pior do que antes. Ouço algo raspando nas proximidades, e finalmente meus olhos se abrem um pouco. Camryn está capotada ao meu lado. Mal consigo ver sua trança loura em cima do cobertor entre nós. Ela parece estar encolhida em posição fetal.

Que fedor é esse?!

Cubro a boca com a mão e começo a me levantar do cobertor. Camryn começa a se mexer ao mesmo tempo, virando de barriga para cima e esfregando o rosto e os olhos com as duas mãos. Ela boceja. Quando me sento e abro completamente os olhos, Camryn pergunta:

— Que fedor da porra é esse? — e faz uma careta.

Estou para responder que deve ser o bafo dela, quando seus olhos azuis ficam arregalados de pavor, ao olhar atrás de mim.

Instintivamente, eu me viro rápido.

Uma manada de vacas está a poucos metros de nós, e quando percebem que estamos nos mexendo, elas se assustam.

— Meu Deus! — Camryn se põe de pé num pulo mais rápido do que na noite em que a cobra subiu no nosso cobertor, me fazendo pular também.

Duas vacas mugem, gemem e grunhem, recuando para perto das outras, agitando a manada ainda mais.

— Acho melhor a gente sair correndo — digo, pegando Camryn pela mão e disparando com ela.

Nem paramos para pegar o cobertor, de início, mas eu paro e me viro, segundos depois, para agarrá-lo. Camryn grita, eu começo a rir e nós desabalamos para longe das vacas, na direção do carro.

— Puta meeeerda! — eu grito, enfiando o pé num monte enorme da substância.

Camryn cacareja de tanto rir, e ambos praticamente rolamos o resto do caminho pelo campo, eu tentando raspar a bosta da sola do sapato e correr ao mesmo tempo, e os chinelos de dedo de Camryn grudando no chão, tentando acompanhar seus passos.

— Não acredito que isso aconteceu! — Camryn ri quando finalmente alcançamos o carro. Ela fica encurvada e apoia as mãos nos joelhos, tentando recuperar o fôlego.

Eu também estou sem fôlego, mas continuo a raspar incansavelmente a sola do meu sapato no asfalto.

— Puta que pariu! — exclamo, esfregando o pé para todo lado.

Camryn se senta no capô do carro, balançando as pernas.

— Agora valeu pra você? — ela pergunta, com riso na voz.

Eu fico parado, ofegando. Olho para ela, para seu sorriso lindo e radiante e digo:

— É, acho que já dá pra riscar esse item da lista.

— Ótimo! — ela diz. Depois aponta para trás de mim. — Esfrega na grama. Assim você só tá espalhando bosta pra todo lado.

Eu saltito para a grama e começo a esfregar o pé de novo.

— Desde quando você virou especialista em bosta?

— Veja lá como fala — ela avisa, se sentando no lugar do motorista.

— Por que, o que você vai fazer? — eu provoco.

Ela dá a partida no Chevelle e acelera algumas vezes. Há um brilho cruel no seu olhar. Ela apoia o braço esquerdo na janela aberta, e quando me dou conta, o carro já está passando lentamente por mim.

Eu a fuzilo com o olhar como aviso, mas seu sorriso só aumenta.

— Eu sei que você não me deixaria aqui! — grito quando ela passa.

É claro que não...

Ela se afasta cada vez mais, e de início eu pago pra ver, parado ali, vendo o carro ficar cada vez menor...

Por fim, eu saio correndo atrás do carro.


Camryn


29

A PRIMEIRA COISA que me vem em mente quando chegamos a Nova Orleans é lar doce lar. Fico empolgada quando o cenário se torna familiar: os grandes carvalhos e as lindas casas históricas, o Lago Pontchartrain e o Superdome, os bondes vermelhos e amarelos que sempre me pareceram de brinquedo. E, é claro, o Bairro Francês. Tem até um homem tocando saxofone numa esquina, e sinto que entramos diretamente num cartão-postal de Nova Orleans.

Olho para Andrew e ele sorri para mim rapidamente. Ele dá a seta e viramos à direita na Royal Street. Meu coração falha e bate forte ao mesmo tempo quando vejo o Holiday Inn. Tanta coisa aconteceu aqui há dez meses. Este lugar... logo um hotel... é tão mais do que isso para mim, para nós dois.

— Imaginei que você gostaria de ficar aqui enquanto estivéssemos na cidade — Andrew diz, com um enorme sorriso.

Como as lembranças ainda estão, por assim dizer, tirando meu fôlego, não consigo responder, por isso só balanço a cabeça e sorrio como ele.

Pegamos nossas coisas no carro e entramos no saguão. Tudo parece exatamente igual, exceto talvez as duas mulheres na recepção, quando nos aproximamos. Não me lembro delas.

Ouço vagamente Andrew perguntar sobre a disponibilidade dos quartos que ocupamos da outra vez enquanto olho ao meu redor, tentando absorver tudo.

Meu Deus, senti falta deste lugar.

— Sim, parece que esses dois quartos estão vagos — ouço uma das recepcionistas dizer. — Querem ficar com os dois?

Isso chama a minha atenção.

Andrew se vira para mim. Acho que ele quer minha opinião.

Passo a bolsa para o outro ombro e hesito por um momento, ponderando a pergunta. Não previ isso, nem que a decisão seria tão difícil.

— Hãã, bem... — Olho para Andrew e depois para a recepcionista, ainda indecisa. — Não sei. Tá, talvez a gente devesse ficar naquele onde... — Eu me interrompo, sem querer dar a impressão de que somos dois adolescentes imaturos, desta vez, e encaro Andrew com um olhar que diz tudo. — Aquele onde o pacto foi selado.

Andrew luta para se manter sério, mas vejo claramente o sorriso em seus olhos quando ele entrega o cartão de crédito à recepcionista.

Saímos do saguão logo depois e tomamos o elevador até nosso andar. Andando pelo corredor, ainda estou absorvendo tudo ao meu redor, até a cor da tinta das paredes, porque tudo faz parte de uma lembrança, por maior, menor ou aparentemente insignificante que seja. A sensação de estar aqui de novo... sinto quase que vou cair no choro de felicidade. Mas também estou empolgada, e isso me salva de me debulhar em lágrimas.

Andrew para entre as duas portas dos nossos antigos quartos, com as duas mochilas e a guitarra elétrica que lhe dei penduradas nos ombros. Ele quer comprar um estojo para a guitarra, mas ainda não fez isso.

— É estranho estar aqui de novo, não? — ele pergunta, me olhando.

— Estranho, mas de um jeito bom.

Ficamos assim por um minuto, olhando um para o outro e para as duas portas, até que finalmente Andrew se dirige para o quarto que escolhemos e passa o cartão na fechadura.

É realmente como entrar no passado. A porta se abre lentamente, e é como se todas as emoções que experimentamos naquele quarto tivessem sido deixadas ali e estivessem nos cumprimentando agora, quando entramos. Assim que pisamos lá dentro, lembro cada noite que passamos aqui, separados e juntos, como se fosse ontem. Olho para o lugar perto da cama onde eu estava quando Andrew me domou e me tornou sua. Olho pela janela para as ruas movimentadas do Bairro Francês. Revejo o dia em que Andrew se sentou naquela soleira tocando violão, e até me vejo ali, dançando e cantando “Barton Hollow”, quando achei que estava sozinha. Eu me viro para ver o banheiro, e quando Andrew acende a luz, meu olhar vai primeiro para o chão e lembro, embora vagamente, a noite em que ele dormiu ao meu lado.

Acho que às vezes as melhores lembranças se criam nos lugares mais improváveis, mais uma prova de que a espontaneidade é mais recompensadora do que uma vida meticulosamente planejada. Do que qualquer coisa meticulosamente planejada.

Eu me viro para Andrew.

— Não sei por quê, mas eu sinto... bom, sinto que todos os meses que passamos na estrada desde dezembro foram pra chegar a este lugar. Esta cidade. Este hotel. — Não acredito que estou dizendo isso, e imediatamente começo a questionar meus motivos. Pode significar tantas coisas diferentes, mas acho que o maior significado é que nós precisávamos voltar para lá.

Sim, é exatamente isso, ou pelo menos é o que eu precisava. Quando recebo essa revelação, me vejo parada naquele quarto, cercada por pensamentos em vez de objetos materiais. Olho nos olhos de Andrew, mas na verdade não é ele que vejo. O que vejo é ele no passado. Os mesmos olhos verdes magnéticos, outro ano.

Por que estou me sentindo assim?

— Talvez você tenha razão — ele concorda, e então seu tom de voz fica mais misterioso. — Camryn, o que você tá pensando agora?

— Que a gente foi embora cedo demais da última vez. — Foi a primeira coisa que pensei, e só agora que falei começo a entender o quanto pode ser verdade.

— Por que você acha isso? — ele pergunta, se aproximando de mim.

Não sinto que ele está me fazendo perguntas para as quais já sabe as respostas, desta vez. É como se ambos estivéssemos seguindo a mesma linha de raciocínio, ambos tentando entender o sentido de tudo e buscando respostas um no outro.

Nós nos sentamos no pé da cama juntos, eu com as mãos no meio das coxas, como ele, e ficamos em silêncio por vários longos segundos. Finalmente, viro a cabeça para olhá-lo à minha direita e digo:

— Eu não queria partir quando a gente partiu, Andrew. Eu sabia que nossa próxima parada, depois de Nova Orleans, seria Galveston. Eu não tava preparada pra deixar este lugar... mas não sei por quê.

E essa verdade me deixa ansiosa.

Por quê? Além de temer que o Texas significasse o fim da nossa viagem, ou mais tarde sentir que eu sabia que algo ruim iria acontecer lá, por que mais eu iria querer ficar? Eu não queria necessariamente ficar ali para sempre, só acho que partimos cedo demais.

— Não sei — ele diz, dando de ombros. — Talvez seja porque foi aqui que finalmente selamos o pacto. — Ele me dá uma cotoveladinha de brincadeira.

Não consigo deixar de sorrir.

— É, talvez, mas acho que é mais do que isso, Andrew. Acho que é porque a gente se encontrou aqui. — Eu olho para a parede, pensativa. — Não sei mesmo.

Sinto a cama se movimentar quando Andrew se levanta.

— Bom, sugiro que desta vez a gente aproveite ao máximo antes de partir. — Ele estende a mão para mim e eu a seguro. — Talvez a gente desvende esse mistério.

Eu me levanto e digo:

— Ou... talvez seja uma nova chance.

Sinceramente, não faço ideia do que me levou a dizer isso.

— Uma nova chance de quê, exatamente? — ele pergunta.

Eu fico em silêncio, pensando, e em seguida respondo:

— Isso eu também não sei...


CONTINUA

21

21 DE JANEIRO — meu vigésimo sexto aniversário

Estou tendo um sonho legal no qual salto de paraquedas (por algum motivo bizarro, com o ator Christopher Lee) e o céu está tão azul quanto... bem, quanto o céu. Christopher Lee, usando óculos de mergulho vermelhos, faz um sinal de positivo antes que o vento o arrebate para o éter azul. Então, de repente, meu coração para, e eu inspiro uma golfada de ar gelado. Meus olhos se abrem para a realidade. Meu corpo salta da cama tão rápido que abro o braço para o lado e bato no abajur parafusado na parede.

— Pu-ta-que-pariu! — eu grito.

Levo um segundo para entender o que aconteceu. Enquanto vejo Camryn no pé da cama ainda segurando um balde de gelo, jogo freneticamente os lençóis gelados e encharcados para o lado e tento recuperar o fôlego.

Camryn gargalha como uma bruxa.

— Feliz aniversário, amor! Levanta!

Acho que mereci isso, depois do que fiz com ela na manhã do seu aniversário, mês passado. Mas essa cretina maquiavélica me pegou de jeito, muito mais pesado do que fiz com ela. Acho que a vingança é sempre pior mesmo.

Incapaz de parar de sorrir, entro no clima e levanto lentamente minha bunda pelada da cama. Ela já está fazendo aquela cara de oh-oh quando começa a se afastar de mim e ir para a porta. Sabendo que essa é a sua única saída, eu a vigio enquanto ela estuda a situação.

— Sinto muito! — ela diz com um sorriso apavorado, com a mão para trás, tateando na direção da porta.

— Hã-hã, eu sei que você sente, amor.

Ando bem lentamente na direção dela, espreitando-a com os olhos semicerrados, como se eu fosse um predador brincando com sua presa.

Ela dá uma risada de bruxa de novo.

— Andrew! Nem pensa nisso! — Ela está a meio metro da porta, agora. Mas eu ajo com calma, deixando-a pensar que vai conseguir chegar até lá, meu sorriso aumentando até que sei que já devo estar parecendo um maníaco sádico.

De repente, Camryn grita, incapaz de se controlar mais, e corre para a porta, escancarando-a.

— Nãão! Por favor! — ela grita e ri ao mesmo tempo enquanto a porta se abre, batendo na parede com estrondo. Ela dispara pelo corredor.

Quando começo a persegui-la, sua expressão chocada e o modo hilariante como ela chega a parar dão a entender que ela não esperava que eu saísse do quarto sem roupa.

— Ai meu Deus! Andrew, não! — ela grita, enquanto volta a correr a toda velocidade pelo corredor iluminado.

Eu continuo atrás dela, com meus documentos balançando ao vento. Essa garota ainda precisa aprender muito se achou mesmo que eu ia ficar com vergonha de correr atrás dela, de bunda de fora e com o pinto encolhido pelo frio. Eu não tô nem aí. Ela vai se arrepender daquele banho de gelo.

Passamos pelo quarto 321 no exato momento em que um casal de velhinhos está saindo. O homem puxa sua esposa de olhos arregalados para dentro quando o doido pelado passa ventando.

— Meu Deus do céu... — ouço uma voz distante dizendo atrás de mim.

Finalmente, quando Camryn chega ao final do imenso corredor, ela para e me encara, encurvada, com as duas mãos à sua frente como se fossem um escudo. Lágrimas escorrem de seus olhos de tanto rir.

— Eu desisto! Eu desisto! Ai meu Deus, você tá pelado! — Ela não consegue parar de rir. Rio também quando a ouço fungar com força.

— Agora você me paga — eu digo, agarrando-a e jogando-a sobre o ombro.

Ela nem tenta espernear, gritar e agitar os braços, dessa vez. Primeiro porque ela não consegue parar de rir o suficiente para controlar seu corpo a esse ponto. E, segundo, porque ela sabe que não adianta. Só espero que ela não mije em cima de mim.

Eu a carrego pelo corredor todo até nosso quarto, e quando chegamos ao quarto 321, digo:

— Desculpem por ter feito vocês verem isso. Tenham um bom-dia — acenando enquanto passo. O casal fica só olhando, o marido balançando a cabeça para mim, com uma expressão revoltada.

Fecho a porta atrás de nós e jogo Camryn na cama, sobre os cubos de gelo e a água gelada. Ela ainda está rindo.

Fico de pé no meio das pernas dela e tiro seu short e sua calcinha ao mesmo tempo, olhando para ela, sem dizer uma palavra. Fico de pau duro em segundos. Seu humor brincalhão muda instantaneamente e ela morde o lábio inferior, olhando para mim com aqueles olhos azuis docemente sedutores que sempre despertam algo primal em mim.

Sem nenhum aviso, eu me deito por cima dela e enfio tudo.

— Você sente muito mesmo? — sussurro, tirando e pondo nela devagar. Meu peito apertado sobre o dela, nossas tatuagens se tocando, Orfeu e Eurídice se juntando novamente enquanto eu e ela nos tornamos um só.

— Sim... — ela diz, as palavras tremulando de seus lábios.

Meto nela um pouco mais fundo, empurrando uma de suas coxas para cima com a mão.

Suas pálpebras ficam mais pesadas e ela joga a cabeça para trás.

Eu esmago minha boca sobre a dela, e seus gemidos reverberam na minha garganta quando começo a meter com mais força.

Então algo dentro de mim fica sombrio, predador. Me ajoelho na cama e agarro suas duas coxas, cravando os dedos em sua carne e arrastando-a pelo colchão para perto de mim tão rápido que ela nem consegue começar a se mexer. Agarrando seus braços, eu a viro de costas, seguro seus pulsos atrás das costas e a forço a ficar de joelhos. Com a outra mão, toco o contorno macio de sua bunda empinada diante de mim, apertando bem cada nádega antes de bater nelas com tanta força que seu corpo se retorce para a frente. Ela choraminga. Então aperto sua nuca com a mão, empurrando com força o rosto de lado contra o colchão. Sinto o calor emanando de sua pele no lugar onde minha mão já deixou marcas vermelhas.

Ela choraminga de novo e eu torço e aperto mais seus pulsos. Com a outra mão, enfio dois dedos em sua boca e puxo sua bochecha, enquanto enfio meu pau nela por trás.

Ela chora um pouco, com as coxas começando a tremer, mas eu não paro. Sei que na verdade ela não quer que eu pare.

Depois que eu gozo e meu coração volta a bater mais devagar, puxo seu corpo nu para perto do meu, sua cabeça suada aninhada na minha axila. Ela beija meu peito e faz dois dedos andarem pelo meu braço até minha boca. Eu pego sua mão e beijo os dedos.

— Que bom que você voltou ao normal — ela diz baixinho.

— Eu voltei ao normal? — pergunto, e ela levanta a cabeça para me olhar nos olhos. — Eu não tava normal?

— Não, antes não.

— Quando eu não tava normal? — Estou verdadeiramente confuso, mas acho adorável sua timidez ao me explicar o que quis dizer.

— Depois que a gente perdeu Lily — ela diz, e o sorriso brincalhão que estava se abrindo em meus lábios desaparece. — Não te culpo por isso, mas depois de Lily, você me tratava como uma boneca de porcelana, com medo de me quebrar se fosse bruto demais comigo.

Eu a aperto mais com meu braço e sua bochecha volta a encostar no meu peito.

— Bom, eu não queria te machucar — digo, passando meu polegar em seu braço. — Ainda sinto isso às vezes.

— Então não sinta — ela sussurra, beijando meu peito de novo. — Nunca se segure comigo, Andrew. Quero que você seja sempre você mesmo.

Eu sorrio e aperto seu braço mais uma vez.

— Sabe que tá me dando permissão pra te atacar sempre que eu quiser, certo?

— Sei, tenho plena consciência disso — ela diz, e ouço um sorriso como o meu em sua voz.

Eu beijo o alto de sua cabeça e a puxo para cima de mim.

— Feliz aniversário — ela diz novamente, e enfia a língua na minha boca.

~~~

Graças a Deus existe a Flórida no inverno. Depois da minha muito surpreendente — e prazerosa, devo acrescentar — manhã de aniversário, Camryn e eu passamos o dia ensaiando nossa nova canção. Bem, não é tecnicamente nossa, mas pra misturar um pouco as coisas, adotamos o hit sensacional de Stevie Nicks, “Edge of Seventeen”. Camryn está ficando frustrada com o modo como os versos se seguem tão rapidamente, mas está determinada a conseguir cantá-la. É a canção dela, aquela que ela quer cantar sozinha. É um passo importante para ela, porque nós sempre cantamos juntos.

E eu a admiro por isso.

Ela parece muito frustrada, mas por trás disso, tudo o que vejo é a minha Camryn voltando para mim cada dia mais. Sua alma está mais leve, a luz em seus olhos, mais brilhante, e cada vez que ela sorri, me lembro do dia em que nos conhecemos.

— Você consegue — asseguro, sentado na sacada da janela, com o meu violão encostado no peito. — Não faz tanto esforço, amor, só toma posse dela.

Ela suspira e joga a cabeça para trás, desabando na cadeira da mesinha redonda ao meu lado.

— Eu sei a letra toda, mas sempre me atrapalho naquelas últimas estrofes. Não sei por quê.

— Acabei de te falar. Você tá pensando demais, porque começa a cantar já esperando se atrapalhar quando chegar nessa parte. Não pensa. Agora tenta de novo.

Ela suspira profundamente de novo, nervosa, e fica de pé.

Ensaiamos por mais uma hora antes de ir à churrascaria mais próxima para um almoço tardio.

— Você vai conseguir. Não se preocupe — insisto, enquanto a garçonete traz nossos bifes.

— Eu sei. Mas é que é frustrante. — Ela começa a cortar o bife, com a faca numa mão e o garfo na outra.

— Demorei um pouco pra aprender “Laugh, I Nearly Died” — conto, enfiando um pedação de bife na boca com o garfo. Mastigo um pouco e então continuo, ainda de boca cheia: — De qualquer jeito, a próxima canção que quero aprender é “Ain’t No Sunshine”, do Bill Withers. Sempre quis aprender essa, e acho que tá na hora de aposentar os Stones.

Ela parece surpresa. Aponta o garfo para mim, engole e diz:

— Oooh! Ótima escolha!

— Você conhece essa? — Também estou um pouco surpreso, considerando que ela não gostava tanto de rock clássico ou blues quando nos conhecemos.

Ela balança a cabeça e come um pouco de purê.

— Adoro essa canção. Ela tava numa playlist que meu pai gostava de ouvir quando viajava a negócios. Esse Withers é danado pra cantar.

Eu dou uma gargalhada.

— Qual é a graça? — ela pergunta, me olhando com ar confuso.

— Você falou de um jeito tão country, agora. — Eu tomo um gole de cerveja e rio um pouco mais, balançando a cabeça.

— O quê? Tá dizendo que eu falei que nem caipira? — Seus olhos estão arregalados, mas seu sorriso não poderia ser mais óbvio.

— Tá mais pra uma roceira, na verdade. Esse Withers é danado pra cantar! Eeeiita ferro! — Eu a arremedo, jogando a cabeça para trás.

Ela ri comigo, se esforçando ao máximo para esconder o rubor do rosto.

— Bom, nisso eu concordo contigo — ela admite, tomando um gole de sua cerveja. Ela põe o copo na mesa e acrescenta, estreitando os olhos: — Com a escolha da canção, não com a coisa da roceira.

— Claro — digo com um sorriso, terminando meu bife.

O primeiro bife que comemos juntos foi como ela prometeu, alguns dias depois que saí do hospital após a cirurgia. E como naquele dia e toda vez que comemos carne juntos, ela só consegue comer metade. Melhor, sobra mais pra mim. Quando vejo que ela dá sinais de estar tão empanturrada que vai vomitar, estico o braço e puxo o prato dela para o meu lado.

Ela fica olhando para o celular, e então começa a responder uma mensagem de texto.

— Natalie tá pedindo pra você voltar de novo?

— Sim, ela é incansável. — Ela recoloca o celular na bolsa.

Camryn mente mal à beça. Muito mal. Não conseguiria mentir nem para salvar a própria vida, e no momento, o modo como ela fica olhando a parede de madeira rústica mostra que com certeza está mentindo. Eu palito os dentes e a estudo.

— Podemos ir? — pergunto.

Ela sorri para mim, sem graça, obviamente escondendo algo, e então percebo que a tela do seu celular se ilumina dentro da bolsa. Ela olha a mensagem de texto e de repente fica mais ansiosa para sair. Seu sorriso aumenta e ela se levanta rapidamente.

— Peraí, preciso pagar. — Aceno para a garçonete, e Camryn se senta de novo, impaciente. — Por que tá com tanta pressa assim de repente? — eu a provoco, enquanto a garçonete deixa a conta sobre a mesa, mas antes que ela vá embora, tiro o cartão de crédito da carteira.

— Por nada — Camryn desconversa.

Eu apenas sorrio.

— Tá — digo, e me encosto na cadeira, me espreguiçando e relaxando o corpo. É uma farsa. Quanto mais pareço relaxado, mais ela fica impaciente.

Minutos depois, a garçonete volta com meu cartão de crédito e o recibo. Eu anoto a gorjeta dela no recibo do restaurante e muito lentamente me levanto, visto o casaco, me espreguiço erguendo os braços bem alto, finjo bocejar...

— Porra, dá pra andar logo!

Sabia que ela não ia aguentar muito tempo. Rio, pego sua mão e saímos do restaurante.

Quando chegamos ao hotel, Camryn para no saguão.

— Pode subir. Eu subo daqui a pouco.

É óbvio que ela está armando alguma coisa, mas como é meu aniversário, entro no jogo dela, lhe dou um beijo no rosto e tomo o elevador. Mas assim que entro no quarto, sou eu que começo a ficar impaciente.

Não preciso esperar muito até que ela entra no quarto, segurando uma guitarra nova.

Eu fico de pé assim que a vejo.

— Uau...

Seu sorriso é doce e meigo, até envergonhado. Como se uma pequena parte dela tivesse medo de que eu não vá gostar.

Ando direto até ela.

— Feliz aniversário, Andrew — ela diz, me entregando a guitarra.

Coloco uma mão no braço, a outra no corpo e admiro a guitarra com um sorriso imenso. Fininha. Linda. Perfeita. Virando-a para ver a parte de trás, noto uma escrita prateada em cursivo no braço que diz:

Ele arrancou lágrimas de ferro de Plutão

e fez o inferno dar o que buscava o coração.

Um verso de uma das várias versões da história de Orfeu e Eurídice. Eu estou sinceramente sem palavras.

— Você gostou?

Eu olho para ela.

— Eu adorei. É perfeita.

Ela desvia o olhar, corando um pouco.

— Bom, eu não entendo nada de guitarras. Espero que não seja uma marca vagabunda nem nada disso. O cara da loja de instrumentos musicais me ajudou a escolher. Aí precisei esperar alguns dias pra fazer a inscrição, que eu achei que nem ia dar certo porque teve primeiro um problema, depois outro, e...

— Camryn — digo, interrompendo sua tagarelice nervosa. — Nunca recebi um presente de aniversário melhor na minha vida. — Atravesso o espaço entre nós e beijo suavemente seus lábios.


Camryn


22

ALGUM LUGAR DA Interstate 75 — maio

Estamos na estrada há meses. Lá por março já tínhamos nos acostumado tanto a ir de um hotel para o outro que isso se tornou natural. Um quarto diferente a cada semana, uma cidade diferente, uma praia diferente, tudo diferente. Mas por mais que tudo seja diferente, cada vez que entramos, é como se estivéssemos passando pela porta de uma casa onde moramos há anos. Eu jamais teria imaginado que chamaria um quarto de hotel de “casa”, ou que seria tão fácil se acostumar à vida na estrada como foi para nós. Às vezes é difícil, mas tudo é uma experiência, e eu não mudaria nada.

Mas fico me perguntando se o longo inverno não me afetou. Isso porque já me peguei sonhando acordada com morar numa casa em algum lugar, levando uma vida caseira com Andrew.

É, tenho certeza de que foi só o inverno.

São duas da manhã, e nosso carro quebrou em algum lugar do sudoeste da Flórida, num longo trecho de estrada deserta. E está caindo um dilúvio. Chuva aos baldes. Pedimos um guincho há uma hora, mas por algum motivo ele ainda não chegou.

— Tem um guarda-chuva no carro? — pergunto por cima do estrondo da chuva no teto. — Eu posso segurar enquanto você conserta o motor!

— Tá um breu lá fora, Camryn — ele responde, gritando tanto quanto eu. — Mesmo com uma lanterna, duvido que eu fosse conseguir. Pra começar, precisaria descobrir qual é o defeito.

Eu afundo mais no banco da frente e apoio os pés no painel, com os joelhos dobrados junto ao corpo.

— Pelo menos não tá frio — comento.

— A gente vai se virar por aqui esta noite — ele declara. — Não vai ser a primeira vez que dormimos no carro. Talvez o guincho chegue antes de amanhecer, e se não chegar, eu conserto o carro quando estiver conseguindo enxergar.

Ficamos em silêncio por um momento, ouvindo a chuva batendo no carro, os trovões ecoando como ondas através das nuvens. Finalmente, ficamos tão cansados que vamos para o banco de trás, nos encolhemos nele juntos e tentamos dormir. Depois de um tempo, quando fica claro que ambos estamos desconfortáveis e o espaço não é suficiente para nós dois, Andrew passa para o banco da frente. Mesmo assim, não conseguimos pegar no sono. Eu o ouço se revirando por algum tempo, e então ele pergunta:

— Onde você se vê nos próximos dez anos?

— Não tenho certeza — respondo, olhando para o teto do carro. — Mas o que sei é que o que eu fizer, quero fazer junto com você.

— Eu também — ele diz do banco da frente, deitado como eu estou, agora, de costas, olhando para cima.

— Você pensou em alguma coisa específica? — pergunto, imaginando aonde ele quer chegar com isso. Troco o braço esquerdo pelo direito, enfiando-o embaixo da cabeça.

— Pensei. Quero morar num lugar quente e sossegado. Às vezes imagino você na praia, descalça na areia, com a brisa soprando seu cabelo. Eu tô sentado embaixo de uma árvore não muito longe, dedilhando minha guitarra...

— Aquela que eu te comprei?

— Claro.

Eu sorrio e continuo escutando, imaginando a cena.

— E você tá segurando a mão dela.

— A mão de quem?

Andrew fica em silêncio por um momento.

— Da nossa menina — ele diz num tom distante, como se sua mente estivesse indo um pouco mais longe do que a minha.

Eu engulo em seco e sinto um nó se formando na minha garganta.

— Gosto dessa imagem — digo. — Então você quer parar de viajar?

— Um dia. Mas só quando a gente sentir que é certo. Nem um dia antes.

Uma lufada de vento atinge a lateral do carro, e um trovão alto faz o chão tremer.

— Andrew? — pergunto.

— Sim?

— Número três, pra acrescentar à nossa lista de promessas. Se a gente chegar à velhice, ficar com dor nos ossos e não puder dormir na mesma cama, me promete que nunca vamos dormir em quartos separados.

— Tá prometido — ele responde, com um sorriso na voz.

— Boa noite — eu digo.

— Boa noite.

E quando pego no sono, minutos depois, sonho com aquela praia quente e Andrew me olhando andar pela areia, com uma mãozinha segurando a minha.

~~~

O guincho não veio. Acordamos na manhã seguinte, entrevados e doloridos, mesmo tendo um banco para cada um.

— Vou encher aquele cara do guincho de porrada, se ele aparecer — Andrew rosna debaixo do capô.

Ele está ocupado usando uma chave inglesa... não vou nem fingir que sei o que é aquilo. Ele está consertando o carro. Isso é tudo o que sei. E está de péssimo humor. Eu só fico por perto para ajudá-lo quando ele precisa de algo, e evito dar uma de loura burra, perguntando o que é essa rebimboca ou pra que serve aquela parafuseta. A verdade é que não me importa. Além disso, só ia deixá-lo mais estressado ter que explicar.

Mas o sol apareceu. E está quente! Até parece que eu morri e fui pro céu!

Fico saltitando nas poças de chuva da noite passada, encharcando meus chinelos de dedo. Não sei o que deu em mim, além da simples mudança de clima, mas levanto os braços acima da cabeça e olho para o céu, rodopiando sem parar no meio da estrada.

— Quer fazer o favor de me ajudar? — Andrew resmunga.

Saltito para perto dele e dou um beliscão de brincadeira na sua bunda, porque estou de ótimo humor e não consigo evitar. Mas então, bang, Andrew leva um susto com o beliscão e bate a cabeça na parte de baixo do capô. Eu me encolho e ponho a mão na boca.

— Poxa, amor! Desculpa! — Estendo a mão para Andrew, puto da vida, revirando aqueles olhos verdes, mas então ele os fecha, enche as bochechas de ar e bufa devagar.

Agarro a cabeça dele, esfrego e beijo o seu nariz. Não consigo parar de sorrir, mas não estou rindo dele, só tentando fazer cara de gatinho do Shrek.

— Tá desculpada — ele diz, apontando para o motor. — Preciso que você segure esta peça aqui um momento.

Eu vou para o outro lado, olho debaixo do capô e enfio a mão no lugar, guiada pelos seus dedos.

— Isso, aí mesmo — ele diz. — Agora segura.

— Por quanto tempo?

— Até eu mandar soltar — ele responde, e vejo o sorriso começando a se formar no canto de sua boca. — Se você soltar, o cárter vai cair e a gente vai ficar parado aqui um tempão.

— Tá, então vai logo — digo, já sentindo um mau jeito começando a se formar no meu pescoço.

Ele vai até o porta-malas e pega uma garrafa d’água. Lentamente, abre a tampa. Toma um gole. Olha para a paisagem. Toma mais um gole.

— Andrew, você tá me zoando? — Eu olho de baixo do capô levantado, tentando vê-lo o melhor que posso.

Ele apenas sorri. E toma mais um gole.

Cacete, ele tá me zoando! Eu acho...

— Não solta. É sério.

— Besteira — eu insisto e começo a mover os dedos, mas decido não soltar. — Você tá dizendo a verdade? Sério mesmo?

— Claro que tô. O cárter vai cair e ainda é capaz de te molhar inteira de óleo de motor. É difícil pra cacete limpar aquela porra da pele.

— Minhas costas estão começando a doer — reclamo.

Ele demora uma eternidade, e quando estou a ponto de soltar, ele vem por trás de mim e me segura pela cintura, me tirando de perto do motor. Com uma mão, ele passa uma meleca preta na minha bochecha. Eu grito e dou um empurrão nele.

— Eca! Puta que pariu, Andrew! E se eu não conseguir limpar essa droga? — Estou realmente fula da vida, mas uma pequena parte de mim não resiste ao sorriso dele.

— Dá pra limpar, sim — ele diz, voltando para baixo do capô. — Agora entra no carro e liga a ignição quando eu mandar.

Rosno para ele antes de fazer o que ele pede, e rapidinho o Chevelle está funcionando de novo e estamos a caminho de St. Petersburg, a apenas uma hora dali.

Hoje parece um dia de verão, e queremos que não acabe nunca. Depois de arranjar um quarto de hotel e tomar um banho tão necessário, vamos para a loja de departamentos mais próxima, comprar um calção de banho para ele e um biquíni para mim, para irmos à praia nadar.

Ele insiste para que eu leve um biquíni preto minúsculo com estrelinhas prateadas, mas não é ele que vai ter que ficar puxando aquele fio dental de dentro do meu rabo a cada cinco segundos. Por isso compro um vermelho, bonitinho, que cobre um pouco mais.

— Acho que foi melhor você ter levado esse mesmo — ele diz quando entramos no carro no estacionamento da loja.

— Por quê? — pergunto, sorrindo e tirando os chinelos.

— Porque eu ia ter que quebrar a cara de uns sujeitos. — Ele dá ré e saímos do estacionamento.

— Só por olharem pra mim? — pergunto rindo, um pouco incrédula.

Ele inclina a cabeça para o lado e olha para mim.

— Não, acho que não. Na verdade, acho excitante quando outros caras olham pra você.

— Eca! — franzo o nariz.

— Não desse jeito! — ele diz. — Caramba! — Balança a cabeça, como que para dizer INacreditável, e ganhamos a rua, que está cheia de carros de turistas. — É que me sinto bem, sabe, quando tô com você. Isso faz maravilhas pelo ego de um cara.

— Ah, então sou só um troféu pra você? — Cruzo os braços e sorrio para ele.

— É, amor, só tô com você por isso. Achei que você já tivesse percebido.

— Tá, então acho que não é segredo que eu tô com você pelo mesmo motivo.

— Ah, é? — ele pergunta, me olhando de soslaio antes de voltar a prestar atenção na estrada à sua frente.

— É — eu confirmo, apoiando a cabeça no encosto. — Só tô com você pra fazer inveja na mulherada. Mas à noite, fico sonhando com o amor da minha vida.

— E quem seria ele?

Estufo os lábios e olho ao meu redor, depois para ele, com ar brincalhão.

— Bom, não vou dizer o nome dele, porque não quero que você tire satisfação com ele e leve porrada. Mas posso dizer que ele tem cabelo castanho, olhos verdes lindos e umas tatuagens. Ah, e ele é músico.

— É mesmo? Bom, pelo visto ele é demais, então por que me usar como troféu?

Eu dou de ombros, porque não consigo pensar numa boa resposta.

— Vai, pode me contar — ele insiste. — Eu nem conheço esse cara mesmo.

— Desculpa — digo olhando-o —, mas não falo dele pelas costas.

— Tudo bem — ele diz sorrindo. — Quer saber?

— O quê?

Andrew sorri maldosamente, e eu não gosto nem um pouco.

— Eu me lembro de umas coisinhas da nossa primeira viagem que você não chegou a fazer.

Oh-oh...

— Nem faço ideia do que você tá falando — eu minto.

Ele tira a mão direita do volante e a apoia na perna. Aquele seu olhar de desafio está ganhando força, e eu tento não tornar meu crescente nervosismo óbvio demais.

— É, acho que você me deve uma bunda de fora na janelinha, e ainda não testemunhei você comendo um bicho. O que prefere? Um gafanhoto? Um grilo? Uma minhoca? Ou talvez uma aranha tremedeira. Será que tem aranhas tremedeiras aqui na Flórida?

Eu fico toda arrepiada.

— Desiste, Andrew — digo, balançando a cabeça. Eu apoio o pé na porta e enrolo minha trança nos dedos, tentando disfarçar a preocupação. — Não vou fazer isso. Além do mais, isso foi na primeira viagem, e você não pode transferir coisas daquela viagem pra essa. Devia ter me obrigado a fazer quando teve chance.

Andrew continua sorrindo, como o merdinha malicioso que ele é.

— Não — digo de novo, bem séria.

Eu olho para ele.

— Não! — repito uma última vez, e ele fica rindo.

— Tudo bem — ele diz, voltando a segurar o volante com as duas mãos. — Mas valeu a tentativa. Não pode me culpar por tentar.

— Acho que não.

Andrew

Passamos o dia inteiro nadando e tomando sol na praia. Vemos o sol se pôr no horizonte e finalmente as estrelas, quando elas ganham vida na escuridão. Uma hora depois que escurece, encontramos um grupo de pessoas da nossa idade. Eles estavam na praia perto de nós havia algum tempo, curtindo.

— Vocês são daqui? — o cara alto com o braço direito cheio de tatuagens pergunta.

Um dos casais se senta na areia perto de nós. Camryn, sentada no meio das minhas pernas, endireita o corpo e presta atenção.

— Não, a gente é de Galveston — respondo.

— E Raleigh — Camryn completa.

— A gente é de Indiana — diz a garota de cabelo preto, se sentando. Ela aponta para os outros, que ainda estão de pé. — Mas eles moram aqui.

Um dos outros caras abraça a namorada.

— Eu sou Tate, esta é Jen — ele aponta para a namorada, depois para os outros de pé ali perto. — Johanna. Grace. E aquele é meu irmão, Caleb.

Os três acenam e sorriem para nós.

— Eu sou Bray — a garota de cabelo preto perto de Camryn diz. — E este é o meu noivo, Elias.

Camryn se endireita mais e espana a areia das mãos, esfregando-as.

— Prazer — ela responde. — Eu me chamo Camryn e este é meu noivo, Andrew.

Elias aperta a minha mão.

Tate, o cara tatuado, diz:

— A gente tá indo pra um lugar reservado, numa praia a meia hora daqui. É ótimo pra uma balada. Bem isolado. Se vocês quiserem, podem ir com a gente.

Camryn vira um pouco o corpo para olhar para mim. Nós dois conversamos com os olhos por um momento. De início, eu não estava com muita vontade de ir, mas ela parece querer muito. Fico de pé e a ajudo a levantar.

Eu me viro para Tate.

— Tá. A gente segue vocês.

— Show de bola — ele diz.

Camryn e eu pegamos nossas toalhas e a sacola que trouxemos com carne-seca, água mineral e filtro solar, e seguimos Tate e seus amigos da praia até o estacionamento.

E agora estamos de novo no carro e podemos ser espontâneos. Não estou muito tranquilo com essa porra, porque faz muito tempo que não saio com ninguém além de Camryn, mas eles parecem bastante inofensivos.

A tal viagem de meia hora acaba levando uns 45 minutos.

— Agora não faço mais ideia de onde a gente tá.

Pegamos uma estrada escura depois de sair da rodovia principal há no mínimo vinte minutos, o Jeep Sahara deles queimando o chão na nossa frente a 120 por hora. Consigo acompanhar o ritmo sem problemas, mas não costumo correr tanto em território desconhecido à noite, quando não dá pra avistar de longe a polícia escondida nas laterais da estrada. Se eu for multado a culpa é minha, mas posso encher o tal Tate de porrada mesmo assim, só por uma questão de princípio.

— Pelo menos a gente tá com o tanque cheio — ela diz. Depois ri, estica o pé para fora da janela e continua: — Vai ver que eles estão planejando ir pra uma cabana sinistra no meio do mato e matar a gente lá.

— Ei, eu também pensei nisso — digo, rindo junto com ela.

— Bom, eu confio em você pra me proteger — ela brinca. — Não deixa nenhum deles fazer picadinho de mim, nem me obrigar a ver Honey Boo Boo.

— Pode deixar. O que me lembra do número quatro na nossa lista de promessas: se um dia eu me perder ou desaparecer, prometa que não vai parar de me procurar exatamente por 365 dias. No dia 366, aceite que se eu estivesse vivo, já teria dado um jeito de voltar pra você, e que portanto tô morto faz tempo. Quero que você siga com sua vida.

Ela se ergue do banco, puxando o pé para dentro do carro.

— Não gostei disso. Tem gente que desaparece e é encontrada anos depois, viva e saudável.

— É, mas não é o meu caso. Pode acreditar, se passar um ano, eu morri.

— Tá, tudo bem — ela diz, afastando o cinto de segurança e chegando perto de mim. Ela encosta a cabeça no meu ombro. — Só se você topar fazer o mesmo por mim. Um ano. Nem um dia a mais.

— Prometo — eu digo, mas é uma mentira deslavada. Eu continuaria procurando por ela até morrer.


Camryn


23

NÃO TEM PROBLEMA mentir sobre algumas coisas. Essa “promessa” é uma delas. De jeito nenhum eu conseguiria parar de procurá-lo depois de um ano. Na verdade, jamais iria parar de procurar. Esse pacto cheio de promessas que juramos manter é importante para nós dois, mas acho que pra certas coisas, vou ter que concordar abertamente e depois fazer o que eu quiser, caso aconteçam.

Além disso, tenho a impressão de que ele também está mentindo.

Andrew não sabe, mas vi aquela garota de cabelo preto, Bray, algumas horas antes, nos banheiros perto da praia. Ela acabou entrando na minha cabine depois de mim. Não chegamos a conversar, só nos cruzamos com um sorriso amigável e mais nada. Acho que foi isso que a motivou a fazer seus amigos nos convidarem para a balada.

Acho que vai ser divertido. Andrew e eu passamos 100% do nosso tempo sozinhos um com o outro, e imagino que seja bom para os dois sair um pouco do casulo e socializar mais com outras pessoas. E ele não levantou nenhuma objeção, então acho que ele também supõe que não vai fazer mal nenhum.

A viagem pro tal lugar “reservado” parece levar uma hora.

O jipe deles vira à esquerda numa estrada parcialmente pavimentada e, quanto mais avançamos, mais o asfalto fica esburacado. Os faróis do carro deles se agitam na escuridão diante de nós, até que a estrada arborizada se abre numa grande clareira de areia e pedras. Andrew para ao lado deles e desliga o motor.

— Bom, é isolado mesmo — eu comento ao sair do carro.

Andrew chega perto de mim, olhando para a praia deserta. Ele segura a minha mão.

— A gente pode voltar agora, ainda dá tempo — ele me provoca. — Depois que nos tirarem de perto do carro, pode ser a última vez que vamos nos ver. — Ele aperta a minha mão e me puxa mais para perto, brincando.

— Acho que vamos sobreviver — decido, quando o último do grupo sai do jipe e nos encontra atrás dos carros.

Tate abre a porta de trás do jipe, tira um isopor gigante e o joga na areia.

— Tá cheio de cerveja aqui — ele diz, erguendo a tampa e mexendo dentro.

Ele joga uma garrafa de Corona para Andrew. Não é sua favorita, eu sei, mas ele também não chega a recusar.

Bray e o noivo, nem lembro mais o nome dele, se aproximam de mim, enquanto Tate destampa outra garrafa de Corona e me entrega.

Eu aceito.

— Obrigada.

Andrew abre a tampa da sua com o abridor de garrafas do chaveiro.

— Se vocês têm um cobertor, é bom trazer — Tate diz. Sua namorada se junta a ele, sorrindo para mim ao passar entre nós com seu biquíni branco minúsculo. — E tenho um som da porra no carro — ele acrescenta, dando tapinhas no jipe —, então música também não vai ser problema.

Andrew abre o porta-malas e pega o cobertor que sempre leva no carro, o mesmo que usamos na noite em que tentamos dormir naquele campo julho passado. Só que agora, graças a mim, ele foi lavado e não está fedendo a óleo e fumaça de carro.

— Cadê meu short? — pergunto, remexendo no banco de trás.

— Aqui — Andrew diz do porta-malas. Quando saio do carro, ele joga o short para mim e eu o apanho no ar.

— Não pretendo nadar nesse abismo à noite — digo, vestindo o short por cima do meu biquíni vermelho.

Ouvindo o que eu falei, Bray diz:

— Ainda bem que não sou só eu!

Sorrio para ela por cima do teto do Chevelle e fecho a porta.

— Você já veio aqui com eles?

Tate e os outros estão indo para a praia agora, carregando o isopor, sacolas de praia e outros objetos. Eles deixam as portas do jipe abertas, com os alto-falantes despejando rock no último volume.

— A gente veio ontem — Bray conta —, mas Elias logo ficou bêbado e começou a pôr os bofes pra fora, por isso eu tive que voltar dirigindo pro hotel bem cedo.

Elias, isso, esse é o nome do noivo dela. Ele balança a cabeça e lança um olhar sarcástico de obrigado-por-contar-pra-todo-mundo para ela.

Andrew e eu andamos ao lado de Bray e Elias, de mãos dadas, até onde todos já estão acampando não muito longe, perto da água. Quando chegamos e estendemos nosso cobertor na areia, Tate risca um fósforo e o joga num monte de galhos. A chama acende o fluido de isqueiro que ele espalhou antes na fogueira. Uma coluna de fogo alta e brilhante espirala por cima do monte e ilumina a escuridão ao nosso redor com uma luz laranja dançante. O calor das chamas já está chegando em mim, por isso afasto um pouco mais nosso cobertor da fogueira, antes que eu e Andrew sentemos nele. Bray e Elias também se sentam sobre duas toalhas de praia gigantes. Tate, o irmão dele e as outras três garotas dividem uma grande colcha. Enfio o fundo da minha garrafa de cerveja na areia ao meu lado, para que ela fique de pé.

Tate me lembra aqueles surfistas da Califórnia, muito louros e bronzeados. Como todos os outros caras, incluindo Andrew, Tate se senta com os joelhos dobrados e os braços apoiados neles. E enquanto estudo todos discretamente, logo vejo algo com o rabo do olho que me faz ficar territorial na hora. A loura ao lado do irmão de Tate, que duvido que seja namorada dele porque os dois não parecem estar juntos, está olhando para Andrew com olhos famintos. Não quero dizer de um jeito inocente, de quem só vai olhar sem tocar. Não, essa garota tentaria dormir com ele assim que eu me afastasse.

Quando ela nota que a estou observando, desvia o olhar e começa a conversar com a garota ao seu lado.

Não tenho com que me preocupar com relação a Andrew, mas se ela me desrespeitar sabendo que ele é meu noivo, não vou pensar duas vezes antes de enchê-la de porrada.

Eu me pergunto se Andrew percebeu.

Andrew

Espero que Camryn não tenha percebido o jeito como aquela garota me olhou agora. Se eu e ela ficássemos cinco segundos sozinhos aqui, ela tentaria dar pra mim. Nem fodendo eu ia querer isso, mas este luau já ficou um pouco mais interessante.

Aposto minha bola esquerda que ela já dormiu com Tate e o irmão dele. Talvez não com Elias — ele parece o tipo fiel —, mas ela daria pra ele também, se ele topasse.

Puta merda, ela olhou pra mim de novo.

Olho rapidamente para Camryn para não cruzar olhares com a menina e não dá outra, Camryn está com aquele sorriso revelador no rosto. É, com certeza ela viu.

Eu pego Camryn no colo e a coloco no meio das minhas pernas.

— Não se preocupe, amor — sussurro no seu ouvido, e então beijo seu pescoço para que a garota veja.

— Eu não tô preocupada — Camryn diz, deitando sobre o meu peito.

Não está preocupada comigo, claro, mas sinto a tensão territorial emanando de seu corpo. Cacete, só a ideia de vê-la pulando em cima daquela garota por minha causa... Tudo bem, eu não deveria pensar nisso. Fodeu. Tarde demais.

— Essas tatuagens são iradas — Tate diz, apontando.

Todos estão olhando a tatuagem em mim e Camryn. Ela se ergue do meu peito para que vejam melhor.

— Pode crer — Bray diz, encantada. Ela rasteja pela areia mais para perto de nós. — Eu tava curiosa mesmo pra ver.

A loura que estava me olhando agora há pouco ri de Camryn, embora Camryn não note, porque está ocupada mostrando a tatuagem para Bray.

Uso essa oportunidade em meu benefício.

— Vira pra cá, amor, mostra como elas se encaixam. — Eu viro Camryn no meu colo e me deito de costas, deitando seu corpo sobre o meu.

O grupo nos olha com atenção, o rosto da loura ficando um pouco amargo quando a encaro diretamente enquanto aperto meu corpo contra o de Camryn. Alinhamos nossas tatuagens para formar o desenho de Orfeu e Eurídice; minha Eurídice usando uma veste branca comprida e transparente, colada ao corpo pelo vento, dobras de tecido sopradas atrás dela, que estende os braços para o Orfeu tatuado nas costelas de Camryn. Bray olha atentamente os detalhes, seus olhos pretos arregalados de assombro. Ela olha novamente para Elias e agora ele parece nervoso, como se tivesse medo de que Bray vá arrastá-lo para o tatuador mais próximo amanhã.

— Isso. É. Demais — Bray diz. — Quem são eles?

— Orfeu e Eurídice — respondo. — Da mitologia grega.

— Uma história trágica de amor verdadeiro — Camryn acrescenta.

Eu a abraço mais forte.

— Bom, vocês dois não parecem ter nada de trágico — Tate diz.

Abraço Camryn ainda mais forte, nós dois pensando em coisas particulares, que é melhor guardar só para nós. Eu beijo o alto do seu cabelo.

Bray se afasta, ainda sentada com os joelhos afundados na areia.

— Eu achei linda. E é bom que seja, porque sei que isso dói um bocado.

— É, doeu mesmo — Camryn diz. — Mas valeu cada hora de sofrimento.

Algum tempo depois, Camryn e eu já tomamos pelo menos três Coronas cada um, mas só ela demonstra. Está um pouco alta, mas só o bastante para ficar mais tagarela.

— Eu sei! — ela diz para Bray, a de cabelo preto. — Vi um show deles com minha melhor amiga, Nat, e eles são demais! Não tem muitas bandas que conseguem tocar quase como no disco.

— É verdade — Bray diz, terminando sua cerveja. — Você disse que é da Carolina do Norte?

Camryn levanta as costas do meu peito e se senta de pernas cruzadas na areia.

— Sou, mas Andrew e eu não moramos mais lá.

— Onde vocês moram? — Tate pergunta. Ele puxa um longo trago do seu cigarro e segura a fumaça enquanto fala. — No Texas?

Todos se viram para me olhar quando respondo.

— Não, a gente meio que... viaja.

— Viaja? — Bray pergunta. — Como, vocês têm um trailer?

— Não exatamente — Camryn diz. — A gente só tem o carro.

A loura que está me olhando o tempo todo entra na conversa:

— Por que vocês estão viajando?

Noto imediatamente por sua expressão que ela está se esforçando ao máximo para chamar a minha atenção, mas eu a ignoro e respondo, olhando para Bray, que está ao nosso lado: — A gente toca junto.

— Como, vocês têm uma banda? — a loura pergunta.

Eu olho para ela, desta vez.

— Mais ou menos — digo, mas é só o que eu respondo, e volto a dar atenção para Bray.

— Que estilo de música vocês tocam? — pergunta Caleb, o irmão de Tate. Ele está se engraçando com a outra garota desde que chegamos. Provavelmente também não estão juntos, mas ele com certeza vai se dar bem hoje.

— Rock clássico, blues e folk, coisas assim — respondo, tomando um gole de cerveja.

— Vocês precisam tocar pra gente! — Bray diz, empolgada.

Ela está claramente tão alta quanto Camryn, e as duas parecem estar se dando bem.

Camryn vira na areia para me olhar, de olhos arregalados e cheios de entusiasmo.

— A gente podia. O violão tá no banco de trás.

Eu balanço a cabeça.

— Não, não tô a fim agora.

— Ah, vai, amor, por que não?

Aí estão a cara de gatinho do Shrek e o jeito de choramingar que é a marca registrada de Camryn, que nunca falham em me obrigar a fazer tudo o que ela quer. Mas eu enrolo mais um pouco, talvez esperando que ela desista e diga deixa pra lá.

É claro que ela não desiste.

— É, cara, se você trouxe um violão e sabe tocar, vai ser show — Tate diz.

A essa altura, todos estão me olhando — até Camryn, que na verdade é a única pela qual vou fazer isso.

Cedendo, eu me levanto, vou até o carro e volto trazendo o violão.

— Você vai cantar comigo — digo para Camryn quando me sento ao seu lado.

— Nãão! Eu tô muito bêbada! — Ela me beija na boca e vai se sentar perto de Bray e Elias, para me dar um pouco de espaço, acho.

— Tudo bem, o que você quer que eu cante?

A pergunta era para Camryn, mas Tate responde:

— Ei, o que você quiser, cara.

Penso em várias canções por um minuto e finalmente escolho uma porque é bem curta. Mexo um pouco nas cordas, afino o violão rapidinho e começo a tocar “Ain’t No Sunshine”. No início, estou pouco me fodendo se está bom, mas como sempre, depois que começo, me torno outra pessoa e dou tudo de mim. Meus olhos ficam fechados a maior parte da canção, mas sempre consigo sentir a energia das pessoas ao meu redor, se elas estão curtindo ou não.

Todas estão.

No segundo refrão, olho nos olhos de Camryn enquanto dedilho as cordas. Ela está sentada na areia sobre os joelhos, seu corpo balançando de um lado para o outro. As outras garotas fazem o mesmo, totalmente imersas na música. Eu canto o último refrão, e essa canção basta para que eu queira tocar mais. Bray mal consegue se segurar, me dizendo o quanto foi bom e dando bastante atenção a Camryn, o que a faz ganhar pontos comigo. Diferente da loura, que está me olhando um pouco mais do que antes.

— Porra, cara, você não tava brincando — Tate diz.

Ele acende um baseado.

— Toca outra — Bray diz, encostando-se em Elias de novo, que a abraça por trás.

Tate passa o baseado primeiro para Camryn. Ela apenas o olha por um segundo, sem saber se deve aceitar ou não. Vejo uma expressão fugidia de dor em seu rosto; eu sei que ela está se lembrando do seu momento de fraqueza com os comprimidos. Ela balança a cabeça.

— Não, obrigada, acho que hoje só vou beber.

Eu sorrio por dentro, orgulhoso de sua decisão. E quando Tate o oferece para mim em seguida, faço o mesmo, não porque eu não queira dar uns tapas, mas porque não consigo curtir assim quando Camryn não quer.

Nunca fui muito fã de maconha, mas curto dar um pega de vez em quando. Agora não é o momento.

Toco mais algumas canções em volta da fogueira. Camryn finalmente canta uma comigo, e depois quero só relaxar com a minha garota e curtir essa onda tão rara. Deixo o violão ao nosso lado no cobertor e puxo Camryn novamente para o meu colo.

O irmão de Tate está chupando a língua daquela garota e bolinando-a há algum tempo. Eles não falam muito, por motivos óbvios. A loura que antes estava me olhando finalmente se tocou, eu acho. Ou isso, ou já está chapada demais para se importar comigo.

A música do jipe de Tate aumenta de novo, e ele volta de lá trazendo uísque, uma garrafa de dois litros de Sprite e uma pilha de copos descartáveis. A namorada dele começa a misturar as bebidas e distribuir os copos.

— Bebe aí, cara — Tate aconselha. — Nem esquenta se vai dirigir depois. A polícia não conhece esse lugar.

— Tá, eu aceito um copo — respondo.

Olho para Camryn, lembrando sua expressão quando Tate lhe passou o baseado.

— Se você não quiser, eu não bebo — digo.

À parte não querer que ela sinta que está traindo a si mesma bebendo demais, também não quero que encha a lata a ponto de ficar um lixo na manhã seguinte.

— Não, tudo bem, amor. Só vou tomar uma dose, tá?

Ela sorri docemente para mim como se estivesse esperando a minha permissão, o que eu acho bonitinho pra cacete.

— Tá — eu cedo, por não querer magoá-la, e ela aceita o copo da namorada de Tate.

Todos relaxamos, bebemos e conversamos sobre tudo quanto é assunto por um tempo enorme. Camryn está gargalhando, sorrindo e falando com Bray sobre absorventes íntimos, um assunto que não faço ideia de como surgiu, nem quero saber, mas estamos nos divertindo muito. Músicas de bandas que nunca ouvi tocam alto no som perto dali, e fico intrigado com as últimas canções, que tenho certeza de que são com o mesmo cantor.

— Quem são esses? — pergunto a Tate.

Ele desvia o olhar da namorada, que está com a cabeça no seu colo.

— Quem? A banda?

— Sim — digo. — Eles são muito bons.

— Isso, meu amigo, é Dax Riggs. Tá fazendo carreira solo agora. Ele começou no Acid Bath, acho... — Ele parece pensativo, como se não tivesse certeza. — Bom, ele tocou em vários grupos. Acid Bath e Agents of Oblivion são os mais conhecidos.

— Acho que já ouvi falar do Acid Bath — comento, tomando mais um gole de uísque com Sprite.

— Eu não me espantaria — Tate acrescenta.

— Preciso conhecer o som desse cara. Ele é desconhecido?

Camryn, abandonando a conversa sobre absorventes com Bray, se aproxima de mim e encosta a cabeça no meu ombro.

— É, ele nunca aderiu ao mainstream — Tate diz. — Ainda bem, porque o mainstream é uma bosta. Fico puto quando vejo um grupo legal se vendendo, fazendo comercial de pasta de dente e merdas assim.

Eu rio um pouco.

— Com certeza. Eu nunca assinaria um contrato com uma gravadora, nem se me oferecessem.

— Falou tudo, cara — Tate diz. — Depois que você assina, vira a putinha deles. Sua música não te pertence mais e você precisa abrir as pernas pro cuzão que assina seus cheques.

Tô começando a gostar desse cara. Só um pouquinho.

— Andrew, preciso fazer xixi — Camryn diz.

Eu olho para ela. Tirando o copo de sua mão, eu o deixo na areia.

— Também tô precisando dar uma mijada — digo tanto para ela quanto para Tate.

Tate aponta para a esquerda com outro cigarro entre os dedos e diz: — Vão praquele lado. Não tem vidro quebrado nem merda nenhuma no chão.

Deixo meu copo perto do de Camryn e a ajudo a levantar. Andamos pela areia até um lugar cheio de árvores e pedras, distante o suficiente para que ninguém nos veja.

— A gente vai ter que passar a noite aqui. Não tô em condições de voltar dirigindo.

Ela se agacha enquanto mijo a poucos metros dela.

— Eu sei. Acho que finalmente vamos dormir sob as estrelas, hein?

Estou rindo dela por dentro. Minha gata está tão bêbada que está até enrolando a língua.

— Pois é, acho que sim — concordo. — Mas é bom você saber que na verdade esta vez não conta porque você mal vai lembrar amanhã.

— Vou, sim.

— Nãão, não vai.

Ela quase cai depois de terminar e tentar ficar de pé. Eu a seguro pelo braço e passo o meu pela sua cintura. Então a beijo no alto da cabeça.

— Eu te amo tanto.

Não sei por que senti tanta vontade de dizer isso nesse momento, mas só de tê-la ao meu lado e saber que ela não está em condições de se cuidar esta noite, eu precisava dizer. Essas palavras estavam presas na minha garganta e, admito, eu estava começando a ficar engasgado com elas. Eu poderia culpar o álcool, mas não, mesmo completamente sóbrio, eu a amo pra cacete.

Ela passa os dois braços pela minha cintura, aninha a cabeça no meu peito quando começamos a voltar e me aperta.

— Eu também te amo.


24

À MEDIDA QUE a noite avança, as cenas do nosso pequeno grupo começam a mudar. As pessoas estão falando menos e se pegando mais. Bray e Elias estão deitados ao lado da fogueira. Tate e a namorada já poderiam estar transando; só falta tirarem a roupa. Por sorte, a loura sinistra me esqueceu e está ajudando a amiga a apalpar Caleb a uns dois metros e meio de mim e Camryn.

É, tenho certeza de que imagino no que isso vai dar. Nada de especial. Não é uma situação que eu ainda não tenha vivido, mas desta vez meu principal objetivo não é satisfazer duas garotas ao mesmo tempo. Só preciso manter Camryn longe dessa merda.

Quando começo a virar o corpo para falar com Camryn, que está deitada ao meu lado, o mundo todo some debaixo de mim. Tento levantar a cabeça. Eu acho. Sinto fadas dançando em cima dos meus olhos. Abertos.

— Caralho... — digo em voz alta, mas talvez não tenha dito. Talvez tenha sido só minha imaginação.

Eu levanto a mão diante do rosto e a lua parece estar aninhada entre meu polegar e meu indicador. Tento soltá-la, mas ela é pesada demais e empurra meu braço para baixo. Sinto meu cotovelo bater na areia como um haltere de 40 quilos.

Minha cabeça está rodando. A cor do fogo é azul, amarela e vermelho-escura. O som do oceano está triplicado em meus ouvidos, misturando-se ao crepitar da madeira no fogo e a alguém gemendo.

— Camryn? Cadê você?

— Andrew? Eu... eu tô aqui. Eu acho.

Nem sei dizer se era realmente a voz dela.

Fecho os olhos com força e abro de novo, tentando clarear a visão, mas percebo que não quero enxergar melhor. Estou sorrindo. Meu rosto parece tão esticado que por um instante tenho medo de que não vá parar de esticar e acabe rasgando no meio. Mas tudo bem.

Puta que me pariu... eu tô viajando. Que. Porra. Eles. Me deram pra beber?

Tento me levantar, mas quando acho que estou de pé, olho para baixo e percebo que nem me mexi. Tento de novo, com o mesmo resultado.

Por que não consigo levantar?!

— Caralho, Tate — ouço uma voz dizer, mas nem consigo dizer se é masculina ou feminina. — Que puta bagulho bom. Caraaalho... Tô vendo arco-íris e o escambau. É a porra do Reading Rainbow1...

Em seguida, quem disse isso começa a cantar o tema do Reading Rainbow.

Me sinto na cidade dos malucos, mas na verdade não quero ir embora.

Finalmente, eu me deito de costas e verifico duas vezes minha posição, apalpando a areia dos dois lados do corpo com as palmas das minhas mãos pesadas. Então olho para o céu cheio de estrelas e vejo que elas se movem para lá e para cá na escuridão, num balé poético.

O rosto de Camryn aparece sobre o meu peito, como um fantasma emergindo da neblina.

— Amor? — pergunto. — Você tá bem?

Estou preocupado com ela, mas não consigo parar de sorrir.

— Tô. Eu tô óooootima. Tô ótima.

— Deita aqui comigo — digo para ela.

Fecho os olhos quando sinto sua cabeça sobre o meu peito e sinto o cheiro do xampu que ela sempre usa, só que agora está muito mais forte. Tudo está mais forte. Cada ruído. A sensação do vento no meu rosto. Dax Riggs cantando “Night Is the Notion” ao fundo, em algum lugar que minha mente diz ser longe, mas o som está tão alto que parece que o jipe está encostado na minha cabeça. Consigo quase sentir o cheiro de borracha dos pneus.

E eu não consigo evitar. Começo a cantar “Night Is the Notion” o mais alto que posso. Não sei como já conheço a letra, mas conheço. Conheço, caralho. E parece que a canção dura horas, e eu nem ligo. Finalmente, paro de cantar, só fecho os olhos e sinto a música passar através de mim. E não me importa mais nada agora, a não ser o momento. E eu tô doido de tesão. Levo um segundo — eu acho — para perceber que meu pau está sentindo a mesma brisa que meu rosto sente. E é bom.

— Camryn? Quê? Tá.

Nem sei o que estou dizendo, ou se estou realmente dizendo alguma coisa. Minha mente me diz que preciso me certificar de que ela não está chapada a ponto de fazer um boquete na frente dos outros, mas ao mesmo tempo não quero que ela pare.

Eu fico sem fôlego e minha cabeça cai para o lado. Vejo Caleb em cima de uma das garotas, as coxas nuas dela apertadas ao redor do corpo dele, que sobe e desce. Desvio o olhar. Olho para o céu de novo. Traços de luz vão para um lado e para o outro com o movimento das estrelas. Estremeço quando sinto meu pau batendo no fundo da garganta dela.

Eu olho para baixo. Vejo uma cabeleira loura. Estendo a mão para tocá-la, parte de mim querendo afastá-la, outra parte querendo forçá-la a engolir mais fundo. Acabo escolhendo a segunda opção, mas quando jogo a cabeça para trás e vejo o rosto de Camryn ao lado do meu, ergo os ombros da areia.

— Sai de cima de mim, piranha! — consigo gritar.

Eu a chuto para longe e o barato muda completamente. Não estou mais curtindo.

Eu me obrigo a sentar, tento dar murros na cabeça com as mãos, esperando ficar sóbrio com o choque, mas não adianta porra nenhuma. Só consigo enfiar o pau de volta no short, olho para o outro lado da fogueira e vejo aquela piranha nojenta já desmaiada perto de Caleb. Não sei quanto tempo passou, mas todos estão capotados, menos eu.

Estou em pânico, não consigo nem respirar. O que foi que aconteceu, porra?

Eu viro para o lado e abraço Camryn, forçando-a a ficar perto de mim, e não solto mais.

E essa é a última coisa de que me lembro.

Camryn

Estou enjoada. Meu Deus, eu nunca, nunca tive uma ressaca assim. O sol da manhãzinha e a brisa que vem do oceano me acordam. De início fico deitada ali, pois tenho medo de vomitar se me mexer. Minha cabeça está latejando, as pontas dos meus dedos estão dormentes, o resto do meu corpo treme, tomado pela náusea. Eu gemo e acabo de abrir os olhos, pressionando um braço horizontalmente sobre a barriga. Sei que de jeito nenhum vou conseguir sair desta praia sem antes vomitar por uns bons cinco minutos, mas tento me segurar o máximo que posso.

Minha bochecha está apertada contra a areia debaixo de mim. Sinto grãos grudados na pele. Com muito cuidado, limpo a areia com um dedo antes que ela entre no meu olho.

Ouço uma pancada, seguida por um estalo e gritos.

Apesar dos protestos do meu estômago, viro para o outro lado, olhando para o oceano.

— Sai de cima dele! — ouço uma garota gritar.

Isso me acorda ainda mais, e por uma fração de segundo me dou conta do quanto eu estava desacordada. Mas agora estou totalmente alerta. Levanto a cabeça da areia e vejo Andrew moendo Tate com os punhos.

— Andrew! — tento gritar, mas minha garganta está irritada e minha voz sai rouca, por isso só consigo balbuciar seu nome. — Andrew! — digo de novo, controlando melhor minha voz.

— Qual é o seu problema, caralho?! — Tate grita.

Ele está tentando se afastar de Andrew, mas Andrew continua avançando. Ele dá mais e mais socos, dessa vez derrubando Tate sentado na areia.

Então o irmão de Tate vem ajudar e soca o quadril de Andrew. Os dois caem longe de Tate e rolam vários metros. Andrew pega Caleb pela garganta e o levanta acima de seu corpo, jogando-o com força na areia, e está em cima dele em segundos. Ele dá três socos em Caleb antes que Tate chegue por trás, puxando-o para longe.

— Fica frio aí, porra! — Tate grita.

Mas Andrew gira o corpo e atinge seu queixo com um gancho, e eu ouço outro estalo de ossos de virar o estômago. Tate cambaleia para trás, segurando a mandíbula.

— Você drogou a gente! Eu vou te matar, caralho! — Andrew ruge.

Finalmente consigo ficar de pé, embora eu tropece uma vez antes de chegar perto de Andrew. Quando vou segurar o braço dele para puxá-lo, sou empurrada por trás e caio sentada. Nem sei o que aconteceu, mas por um segundo fico sem fôlego. Levanto a cabeça e vejo Caleb em cima de Andrew. Devo ter sido atingida quando Caleb atacou Andrew por trás.

Eu me levanto novamente da areia e vejo Elias se aproximando.

Em pânico, olho para meus dois lados e novamente para Elias. Tudo parece estar em câmera lenta. Os três vão se juntar contra Andrew? Ah, nem fodendo! Começo a agarrar Tate enquanto ele e Caleb estão esmurrando Andrew, mas sou empurrada para longe por Elias.

— Sai! — ele rosna para mim.

Andrew consegue se aguentar bem contra Tate e Caleb, ainda está de pé e trocando socos com os dois, mas se Elias entrar na briga, acho que ele não vai conseguir lutar contra os três.

Elias entra no bolo e não consigo entender quem está batendo em quem, quando um par de mãos me pegam pelas axilas por trás.

— Fica aqui comigo, garota — Bray diz.

No meio da minha confusão e pavor, vejo Elias esmurrando Caleb e o alívio toma conta do meu corpo, embora isso dure pouco.

A boca de Andrew está sangrando. Mas todos os quatro estão sangrando em algum lugar. A luta parece continuar para sempre, e a cada golpe que Andrew dá ou recebe, eu me encolho e fecho os olhos, querendo apenas bloquear tudo. Estou sentada na areia com Bray me abraçando por trás, porque ela ainda acha que vou tentar entrar na briga. Mas voltei a sentir que vou vomitar e mal consigo me mexer. Gotas de suor brotam na minha testa. Minha nuca está fria e úmida. O céu está começando a girar.

— Oh, não. Bray... acho que eu vou...

Eu perco o controle ali mesmo. Sinto meu corpo se desvencilhando com violência dela e minhas mãos se estendendo, afundando na areia. Minhas costas se arqueiam e descem, se arqueiam e descem, e eu vomito sem parar, sem parar. Meu Deus, por favor, faz isso parar. Eu nunca mais vou beber! Por favor, faz isso parar! Mas parece que eu nunca vou parar. Quanto mais vomito, mais meu corpo reage ao cheiro do vômito, ao som, ao sabor dele, e isso me faz vomitar ainda mais. Mal consigo ouvir a luta ao fundo por cima dos meus próprios ruídos, e dos estertores secos quando não resta mais nada no meu estômago para devolver. Finalmente, caio para o lado. Não consigo me mexer. Meu corpo treme incontrolavelmente, minha pele está fria e quente e pegajosa em todo lugar. Sinto que Bray está sentada ao meu lado.

— Você vai ficar bem — eu a ouço dizer. — Uau, aquele bagulho te zoou forte.

— O que era? — pergunto, e partes da noite anterior começam a voltar à minha memória.

Nem ouço se ela respondeu ou não à minha pergunta.

Lembro que tudo estava bem, era só uma bebedeira normal, até pouco depois que começamos a tomar o gim. E então, do nada, eu não conseguia mais enxergar o que estava à minha frente, porque tudo estava perto demais. Eu ficava tentando focar os olhos em coisas mais distantes, o oceano, as estrelas, as luzes dos barcos ao longe, sobre a água. Lembro que achei que um navio estava se aproximando de nós e que ia bater na praia. Mas eu não me importava. Eu achei... lindo. Ia matar a todos nós, mas era lindo. E lembro que ouvi Andrew cantando uma canção bem sexy. Deitei a cabeça no peito dele e fiquei ouvindo-o cantar. Eu queria subir em cima dele e tirar a roupa, e teria feito isso, se conseguisse me mexer.

E lembro...

Peraí.

Aquela piranha loura. Ela me perguntou... peraí.

Eu levanto o corpo da areia.

— Acho que você precisa ficar deitada um pouco — Bray diz.

Meus dedos tocam minha testa.

Lembro que ela estava sentada perto de mim e de Bray. Estava tão chapada quanto todos nós, mas eu não estava mais com ciúmes. Ela conversou com a gente um pouco, e eu não me importei.

À medida que as lembranças vão voltando, meu corpo começa a tremer mais.

Ela tentou me beijar. Acho que eu deixei...

Acho que vou vomitar de novo.

Eu encolho os joelhos e apoio os cotovelos em cima deles, afundando o rosto nas mãos. Ainda estou tão zonza. Sinto que ainda não acabei de vomitar. Não tenho aquela grande sensação de alívio que vem depois de passar mal. Não, a ânsia só ficou mais intensa, desta vez provocada pelos meus nervos.

O resto está voltando aos poucos, e embora eu queira me forçar a esquecer, não consigo.

Ela perguntou se podia dormir comigo e com Andrew. Sim, me lembro agora. Mas... meu Deus... pensei que ela quisesse dizer dormir, mas agora me dou conta de que estava tão chapada que não percebi que ela queria dizer sexualmente.

Eu disse que não me importava.

Então lembro que ela...

Eu perco o fôlego. Levo a mão à boca, com os olhos arregalados e ardendo por causa da brisa.

Lembro que ela fez um boquete em Andrew.

Tentando ficar de pé, sinto a mão de Bray nas minhas costas.

— Para, garota — ela diz, me puxando de volta para a areia. — Não vai lá. Você só vai se machucar.

Solto meu pulso da mão dela e tento ficar de pé de novo, mas os movimentos bruscos, junto com meus nervos em frangalhos, causam mais ânsia de vômito.

Então ouço Andrew de pé perto de mim.

— Cacete — ele diz para Bray. — Você pega uma garrafa d’água no isopor no banco de trás do meu carro?

Bray vai pegar a água.

Andrew me puxa para suas pernas assim que eu paro de tentar vomitar. Ele afasta meu cabelo dos olhos e da boca.

— Eles deram droga pra gente, amor — ele diz.

Meus olhos se abrem um pouco e o vejo em cima de mim, com as palmas das mãos nas minhas bochechas.

— Eu mato aquela vaca. Juro por Deus, Andrew.

A expressão dele é de uma pessoa atordoada. Acho que ele não sabia que eu tinha visto.

— Ela ainda tá desacordada. Amor, eu...

A culpa em seu rosto me corta o coração.

— Andrew, eu sei o que aconteceu — digo. — Sei que você achou que fosse eu. Vi o que você fez.

— Não importa — ele diz, cerrando os dentes. Seus olhos ficam rasos d’água. — Eu devia saber que não era você. Porra, me desculpa. Eu devia saber. — Suas mãos apertam meu rosto.

Estou para mandá-lo parar de se culpar quando Elias se aproxima.

— Desculpa, cara, a gente não sabia. Juro.

— Eu acredito — Andrew diz.

Bray volta com a água, e eu já estou recuperando um pouco das minhas forças. Levanto o corpo e fico sentada, encostada no peito nu de Andrew. Ele me abraça e me aperta tão forte, como se temesse que eu fosse levantar e sair correndo.

Então ele pega a garrafa de Bray, tira a tampa, joga um pouco d’água na mão e passa na minha testa e na minha boca. O frescor me alivia na hora.

— Olha, cara, desculpa — Tate diz, chegando por trás de nós. — A gente achou que vocês não iam ligar. Só pusemos um pouco na bebida de todo mundo. Fizemos uma presença. Não trouxemos vocês pra cá com más intenções.

Andrew consegue se afastar delicadamente de mim, mesmo assim tão rápido que mal noto sua ausência, e esmurra Tate de novo. Um estalo de ossos nauseabundo ecoa pelo espaço.

— Por favor, Andrew! — eu grito.

Elias segura Andrew e Caleb segura Tate, apartando-os.

Andrew deixa Elias segurá-lo por trás, mas depois se desvencilha e volta para mim, me ajudando a levantar.

— Vamos embora — ele diz, ele começa a me pegar no colo, mas eu balanço a cabeça, para que ele saiba que consigo andar sozinha.

Ele pega o violão e eu pego o nosso cobertor, e nós vamos para o Chevelle.

— Talvez fosse bom a gente dar uma carona pra Bray e Elias — digo.

Andrew joga o violão no porta-malas e pega o cobertor de mim, guardando-o também. Então ele vai para o seu lado do carro, estende os braços sobre o teto e apoia a cabeça entre eles. Ele respira fundo e dá um murro na lataria.

— Puta que pariu! — grita, dando outro murro.

Em vez de tentar chamá-lo à razão, decido deixar que ele se acalme sozinho. Olho para ele com ternura do outro lado do carro. Depois entro e fecho a porta. Ele fica ali mais um minuto, até que o ouço dizer:

— Se vocês quiserem, podem voltar com a gente.

Elias e Bray, carregando suas coisas, vêm até o carro e se sentam no banco de trás.

1 Programa infantil de incentivo à leitura da TV pública americana. (N.T.)


Andrew


25

NEM SEI COMO achei o caminho de volta tão facilmente. Acho que num certo momento eu nem me importava muito se nos perdêssemos. Mas volto sem virar uma esquina errada nem ter que parar e pedir informações. Os quatro não falamos muita coisa na volta. E do pouco que foi falado, não lembro nada.

Paramos no estacionamento do hotel e nos despedimos de Elias e Bray. Talvez eu tivesse agradecido a Elias ou desejado sorte para o resto da viagem, ou talvez até convidado os dois para saírem conosco à noite, mas dadas as circunstâncias, só consigo responder com um aceno quando eles agradecem pela carona.

Eu dou partida no carro e vou para o nosso lado do hotel.

Camryn ainda parece insegura sobre conversar comigo. Não com medo, apenas insegura. Eu não consigo nem olhar para ela. Me sinto um bosta pelo que aconteceu, e nunca vou me perdoar.

Camryn segura a minha mão e vamos direto para o nosso quarto. Eu abro a porta e começo a jogar nossas coisas nas mochilas.

— Não foi sua...

Eu a interrompo.

— Não. Por favor. Só... me dá um minuto...

Ela olha para mim tão desolada, mas balança a cabeça e concorda.

Logo estamos na estrada de novo, indo para o Norte pelo litoral. Destino: qualquer lugar, menos a Flórida.

Depois de dirigir por uma hora, o que aconteceu na noite passada não me sai da cabeça, e eu tento entender, de alguma forma. Eu saio da estrada e o carro roda até parar no acostamento. Está tão silencioso. Olho para baixo, depois pelo para-brisa. Percebo que estou com os nós dos dedos brancos de tanto apertar o volante. Finalmente, abro a porta e saio do carro.

Ando rapidamente pelo cascalho e então desço a encosta da vala, atravessando para o outro lado e indo direto para a primeira árvore.

— Andrew, para! — ouço Camryn gritar.

Mas eu continuo andando, e quando fico frente a frente com aquela merda de árvore, bato nela com tanta força quanto bati em Tate e Caleb. A pele de dois dos meus dedos se abre, o sangue escorre pelas costas da mão e entre os dedos, mas eu não paro.

Só paro quando Camryn entra na minha frente e empurra meu peito com tanta força com as duas mãos que eu quase caio para trás. Lágrimas escorrem dos seus olhos.

— Para! Por favor! Para com isso!

Eu desabo sentado na grama, com os joelhos dobrados, minhas mãos ensanguentadas pendendo dos pulsos. Meu corpo se curva para a frente, cabisbaixo. Só consigo ver o chão embaixo de mim.

Camryn se senta na minha frente. Sinto suas mãos no meu rosto, tentando levantar minha cabeça, mas eu não deixo.

— Você não pode fazer isso comigo — diz com voz trêmula. Camryn tenta me forçar a olhá-la, e eu finalmente deixo porque me mata de dor ouvi-la chorar. Olho nos olhos dela, os meus cheios de lágrimas de raiva que estou tentando conter. — Amor, não foi culpa sua. Você tava drogado. Qualquer um poderia ter se enganado, chapado como você tava. — Seus dedos apertam meu rosto. — Não. Foi. Culpa. Sua. Entendeu?

Tento desviar o olhar, mas ela afasta minhas mãos e se senta no meio das minhas pernas sobre os joelhos, de frente para mim. Instintivamente, eu a abraço.

— Mesmo assim, eu devia saber — digo, olhando para baixo. — E não é só isso, Camryn, eu devia cuidar da sua segurança. Você nem deveria ter sido drogada, pra começar. — Só de pensar nisso, a raiva e o ódio por mim mesmo aumentam de novo. — Eu devia cuidar da sua segurança!

Ela me abraça e me força a apoiar a cabeça em seu peito.

Ela se afasta.

— Andrew, olha pra mim. Por favor.

Eu olho. Vejo dor e compaixão em seus olhos. Seus dedos delicados envolvem meu rosto barbado. Ela beija meus lábios suavemente e diz:

— Foi um momento de fraqueza — como que para me lembrar do que eu disse a ela há vários meses sobre os comprimidos. — Foi minha culpa tanto quanto sua. Eu não sou burra. Deveria ter imaginado que não podia deixar nossas bebidas na mão deles nem por um segundo. Não é culpa sua.

Eu baixo o olhar, e então olho para ela de novo. Não sei como posso fazê-la entender que, por causa de como e quem sou, sinto um forte senso de responsabilidade por ela. Uma responsabilidade da qual me orgulho, que senti desde o dia em que a conheci. Me mata... me mata saber que no meu “momento de fraqueza” eu não pude protegê-la, que, por eu ter baixado a guarda, ela poderia ter sido ferida, estuprada, morta. Como posso fazê-la entender que não importa se ela não me culpa por isso, que sua opinião, embora eu não a considere sem valor, não desculpa meu momento de fracasso? Ela tem direito a um momento de fraqueza. Eu não tenho. O meu é só fracasso.

— E eu nunca, jamais culparia você por aquilo — ela acrescenta.

Eu só olho para ela, procurando um significado em seu rosto, e então ela continua:

— O que aquela garota fez — ela explica. — Eu jamais jogaria aquilo na sua cara. Porque você não fez nada errado. — Eu sinto seus dedos afundando em meu rosto. — Você acredita em mim?

Eu balanço a cabeça lentamente.

— Acredito, sim.

Ela suspira e diz:

— De todo modo, pode ter sido em parte minha culpa. — Ela desvia o olhar.

— Como assim?

— Bem — ela diz, mas hesita com uma expressão distante de arrependimento no semblante —, acho que, sem querer, posso ter dado permissão pra ela.

Aquilo certamente me pega de surpresa.

— Lembro que ela perguntou sobre dormir com a gente, e acho que falei que sim, que ela podia. Eu-eu não sabia que ela queria dizer... sexualmente. Se eu estivesse sóbria, com certeza teria sacado isso. Andrew, me desculpa. Desculpa por eu ter deixado aquela piranha louca violentar você.

Eu balanço a cabeça.

— A culpa não é de nenhum dos dois, então não começa a se culpar também, tá?

Quando não vejo aparecer o sorriso que eu queria causar rápido o suficiente, eu a agarro dos dois lados pela cintura. Ela grita quando começo a fazer cócegas. Ela ri e se retorce tanto que cai para trás na grama, e eu me sento em cima dela, me apoiando nos joelhos dos dois lados para não esmagá-la.

— Para! Não! Andrew, tô falando sério, caralho! Paraaaa! — Ela ri alto e eu enfio mais os dedos nos seus quadris.

Então ouço um carro de polícia tocar a sirene uma vez e silenciar, parando atrás do meu carro.

— Fodeu — eu digo, olhando para Camryn. Seu cabelo está emaranhado e cheio de fios de grama.

Saio de cima dela e estendo a mão ensanguentada para ajudá-la a levantar. Ela a toma e fica de pé, espanando a roupa. Voltamos para o carro enquanto o policial sai de sua viatura.

— Vocês costumam deixar a porta do carro escancarada assim na estrada? — o policial pergunta.

Eu olho para a porta e novamente para ele.

— Não, senhor — eu digo. — Fiquei com vontade de vomitar e nem pensei nisso.

— Habilitação, comprovante do seguro e documentos do veículo.

Tiro a habilitação da carteira, entrego para ele e enfio o corpo pela janela do lado do passageiro para procurar os documentos no porta-luvas. Camryn está encostada na traseira do carro, com os braços cruzados nervosamente sobre o peito. O policial volta para a viatura — depois de notar o sangue nas minhas mãos — e se senta para consultar o meu nome.

— Espero que você não esteja escondendo nenhum assalto, assassinato ou nada assim de mim — Camryn diz, quando me apoio no capô ao lado dela.

— Não, já parei com os assassinatos — respondo. — Ele não tem como me prender. — Eu a cutuco de leve com o cotovelo.

Passados alguns minutos de pura tensão, o policial se aproxima de nós e me devolve os documentos.

— O que aconteceu com a sua mão? — ele pergunta.

Olho para ela, sentindo-a doer e latejar pela primeira vez, agora que ele chamou minha atenção. Em seguida, aponto para a árvore perto dali.

— Eu meio que bati na árvore.

— Você meio que bateu na árvore? — ele pergunta, desconfiado, e noto que olha para Camryn várias vezes. Que legal, ele deve estar achando que bati nela ou alguma porra assim, e considerando como ela está detonada depois do incidente de ontem à noite e do nosso rala-e-rola na grama, suas suspeitas devem estar sendo confirmadas.

— Tá, eu bati na árvore.

Ele olha para Camryn, agora.

— Foi isso que aconteceu? — ele pergunta a ela.

Camryn, nervosa pra caramba e pelo visto imaginando, como eu, o que o policial acha que realmente aconteceu, de repente faz a Natalie.

— Foi, senhor — ela diz, gesticulando muito. — Ele ficou nervoso porque uns filhos da puta... — ela se encolhe toda — desculpa, se aproveitaram da gente ontem à noite, e ele ficou se martirizando com isso a manhã toda e acabou descontando naquela árvore! Eu corri pra lá pra não deixar que ele se machucasse, a gente conversou, e eu tô com essa cara de merda pisada... ai, desculpa... por causa da noite de cão que a gente passou. Mas juro que não somos más pessoas. Não usamos drogas e ele não é um psicopata nem nada, então, por favor, libera a gente. Pode até fazer uma busca no carro, se quiser.

Momento. Sorvete. Na testa.

Eu rio por dentro. Não temos com que nos preocupar se ele quiser vasculhar o carro. A não ser que... nossos amigos temporários, Elias e Bray, tenham acidentalmente deixado uma trouxinha de erva ou qualquer porra incriminadora no banco de trás.

Puta merda... por favor, que não aconteça agora o que sempre acontece nos seriados de TV.

Eu olho para Camryn e balanço discretamente a cabeça.

Ela arregala os olhos.

— O que foi que eu falei?

Eu apenas sorrio, ainda balançando a cabeça, porque é só isso que posso fazer, na verdade.

O policial funga e depois mastiga a bochecha por dentro. Seus olhos vêm e vão entre mim e Camryn várias vezes e ele não diz uma palavra, o que só aumenta a nossa tensão.

— Da próxima vez, não deixem a porta escancarada assim — o policial diz, sua expressão tão neutra quanto esteve o tempo todo. — Seria uma pena alguém passar e arrancar a porta de um Chevelle 1969 em tão bom estado.

Um sorriso discreto ilumina o meu rosto.

— Com certeza.

O policial parte antes de nós, que ficamos dentro do carro estacionado por um mais um momento.

— “Pode fazer uma busca no carro, se quiser”? — repito.

— Pois é! — ela ri, jogando a cabeça para trás. — Eu não queria dizer isso. Escapou.

Eu rio também.

— Bom, parece que seu monólogo inocente... que, a propósito, me dá um pouco de medo; acho que aquela sua amiga bipolar tá te contagiando... deixou o policial com peninha e livrou a nossa cara.

Eu apoio as mãos no volante.

Ela estava sorrindo e provavelmente ia comentar minha piadinha com Natalie, até que vê de novo minha mão ensanguentada. Então se aproxima de mim e a pega delicadamente.

— A gente precisa limpar isso antes que infeccione — ela diz. Olha mais de perto e começa a tirar pequenos fragmentos de grama e terra em volta e dentro do ferimento. — Tá muito feio, Andrew.

— Não é tão grave assim — digo. — Não vai precisar de pontos.

— Não, você precisa é apanhar. Nunca mais faz isso. Tô falando sério. — Ela pega um último fragmento e depois se debruça por cima do encosto, procurando o pequeno isopor no banco de trás.

Eu viro a cabeça e só vejo a bunda dela saindo do short. Com minha mão ensanguentada, enfio o dedo dentro do elástico da calcinha do biquíni e o estalo sobre a pele dela. Ela não se assusta, mas revira os olhos quando para de remexer no banco traseiro, com uma garrafa d’água na mão.

— Enxágua isso — ela ordena, me passando a garrafa.

Eu abro a porta, pego a garrafa, estendo a mão para fora e derramo água sobre o ferimento.

Enquanto procura algo na bolsa, ela diz:

— Da próxima vez que você ficar puto e descarregar a raiva em algum objeto, vou pôr oficialmente o seu nome na minha Lista de Psicopatas. — Ela me passa um tubo de pomada.

Eu só balanço a cabeça e pego o tubo. Acho que não dá pra discutir com ela quanto a isso.

Ela aponta para a pomada e me manda aplicá-la logo. Eu rio e digo:

— Você parece uma sargenta.

Camryn me dá um soco de brincadeira no braço (machucando a própria mão, na verdade) e me acusa de insinuar que ela é gorda. É tudo brincadeira, e acho que é sua maneira de me ajudar a não pensar no que aconteceu. Depois de minutos, estamos conversando sobre música e sobre os bares ou clubes onde podemos tocar a caminho de Nova Orleans.

Sim, num certo momento decidimos que, não importando onde vamos parar ou quanto tempo vamos ficar, temos que visitar nosso lugar favorito à margem do Mississippi, haja o que houver.

~~~

Isso foi há dois dias. Hoje estamos acomodados num belo hotel no grande estado do Alabama.


Camryn


26

— TÁ EMPOLGADA com o que a gente vai fazer hoje à noite ou precisa respirar num saco de papel? — Andrew pergunta, saindo do banheiro com uma toalha enrolada na cintura.

— As duas coisas — respondo. Deixo o controle remoto sobre o criado-mudo e me sento na cama. — Conheço a música, mas é minha primeira apresentação solo. Por isso, sim, tô surtando um pouco.

Ele remexe na sua mochila perto da TV e acha uma cueca limpa. A toalha cai no chão. Eu inclino a cabeça, admirando sua bunda sexy da cama. Ele veste a cueca e ajeita o elástico na cintura.

— Você vai botar pra quebrar — ele diz, virando-se para mim. — Ensaiou um monte e já tá afiada. E se eu achasse que você não tava preparada, eu falaria.

— Eu sei que falaria.

— Bom, pronta pra trabalhar? — ele pergunta, terminando de se vestir.

— É. Acho que sim. Como eu tô?

Eu me levanto e dou uma volta, usando um top minúsculo preto com alcinhas finas e um jeans apertado.

— Peraí — eu exclamo, levantando o dedo. Calço minhas novas botas três quartos reluzentes e fecho o zíper na lateral. Então giro e faço pose de novo, exagerando um pouco.

— Insuportavelmente sexy, como sempre — ele elogia com um sorrisão, e então se aproxima de mim e passa a mão na minha trança.

Posso estar me apresentando sozinha cantando “Edge of Seventeen” da Stevie Nicks hoje, mas por duas horas, antes de subir no palco, vou trabalhar como garçonete e Andrew vai limpar mesas. Ganhei dele! Eu consegui o emprego mais legal.

A casa está lotada quando chegamos, às 19h. Adoro a atmosfera deste lugar. O palco é de bom tamanho, mas a área das mesas e a pista de dança são enormes. E está cheio, o que me deixa mais nervosa ainda. Eu vou até a cozinha, apertando a mão de Andrew, abrindo caminho no meio da multidão. Com estes empregos temporários, tivemos a sorte de trabalhar juntos por algumas noites. Quase todos os serviços que pegamos durante a viagem, desde a Virgínia, foram esporádicos. Eu trabalho como arrumadeira aqui e ali, enquanto Andrew trabalha de garçom ou até substitui algum leão de chácara. Ele pode não ser o tipo bombado (ainda bem, porque acho isso nojento), mas seus músculos são grandes o suficiente para ele ser contratado com facilidade. Por sorte, ele não precisou arrastar ninguém para fora pela camisa, nem apartar nenhuma briga.

Nosso chefe pelos próximos dias, German — é o nome dele mesmo, apesar de ele definitivamente não ser alemão, e sim o típico caipira do Meio-Oeste americano —, entrega a Andrew um avental branco e um broche que o identifica como “Andy”.

Eu seguro o riso, mas Andrew percebe a minha expressão divertida.

German esfrega sua mão roliça como uma salsicha no nariz, limpa-a no jeans e diz:

— Quando o povo levantá de uma mesa e terminá de recoiê as porra deles toda, cê vai lá e deixa a mesa limpinha pro próximo cliente. — Ele agita o dedo para Andy, hã, isto é, Andrew. — E não toca nas gorjeta. São só pras garçonete, tá me entendeno?

— Sim, senhor — Andrew diz. Quando German baixa os olhos para seu bloco de pedidos por um segundo, Andrew diz para mim, sem emitir som: Que porra...? E eu tento endireitar a boca e evitar sorrir quando German olha para nós de novo.

German olha para mim, mas olha mesmo, totalmente diferente de como estava olhando para Andrew agora há pouco. Ele abre um sorriso amarelo e diz:

— E ocê só pricisa fazê exatamente essa carinha que tá fazeno agora. Abre esse sorriso lindo e enche os bolso cas gorjeta.

Fico imaginando o que as outras garçonetes que trabalham aqui em tempo integral têm que aguentar desse cara.

Pisco meus olhos azul-bebê para ele e digo, com um sotaque caipira doce e sedutor:

— Pode deixá, seu German. E mais tarde, quando meu turno terminá, vô tê que ir lá pra dentro e retocá a maquiage antes de me apresentá, o senhor entende, né?

Noto que Andrew arregala os olhos e parece mais intrigado, mas eu continuo dando atenção a German, que já está comendo na minha mão de um jeito que, se eu o mandasse lamber o chão, ele falaria: Diz quando é pra pará, tá?

Andrew

Esse sotaque de bela do Sul que surgiu do nada me deixou morrendo de tesão. Vou ter que conversar com ela a respeito disso mais tarde.

Eu ponho meu broche, amarro o avental nas costas e pego a espécie de bacia de plástico que German aponta quando olho para ele. Cacete, não me incomoda fazer esse tipo de trabalho, mas German é um caipirão babaca, que espero que fique longe de mim pelas próximas duas horas. E ele está precisando de um desodorante. A porra do tubo inteiro, quero dizer. Ele realmente não combina com esse lugar. Parece uma bandeira confederada pendurada na janela de uma mansão de 400 mil dólares. O bar e restaurante até que é bem decorado. Por dentro, pelo menos.

Eu me dirijo para a área das mesas com a bacia debaixo do braço e vou para a primeira mesa vazia que vejo. Pego todo o lixo, os pratos sujos cheios de fritas e bolinhos que sobraram e jogo tudo dentro da bacia. Depois limpo a mesa com o trapo que tiro do bolso do avental e endireito os potes de ketchup e molho de churrasco. É tudo muito automático, diferente do serviço de garçonete, e acho que por isso somente Camryn precisou fazer uma hora de treinamento ontem para começar a trabalhar hoje. Ela pode ter o emprego que rende gorjetas, no qual pode usar seu charme sexy, mas precisa aguentar o chefe nojento e tarado. E eu tô adorando isso. Bem feito pra ela por tirar sarro do meu emprego de limpar mesas. Ela fez piadinha, me chamando de “escória” do bar. Bem, espero que ela não ache que vou tirar o traseirinho magro dela da reta, caso German resolva avançar o sinal. Ela vai ter que se virar sozinha.

Eu limpo mais algumas mesas, deixando uma gorjeta de cinco dólares numa e outra de vinte na outra. Quando estou para voltar para a cozinha para esvaziar a bacia, sou parado por quatro garotas numa mesa perto do balcão do bar.

— Ei, gatão — uma das mulheres mais velhas diz, me chamando com um dedo. — Podemos pedir nossas bebidas pra você?

— Sinto muito, senhora, mas eu só limpo as mesas.

Eu tento me afastar, mas outra mais bonita me impede.

— Aposto que se a gente pedisse pra você ser nosso garçom, você seria promovido. — Seus olhos estão vidrados e sua cabeça balança um pouco. Eu noto, porque é difícil não notar, seus peitos enormes saindo do top apertado. Ela os empina mais ainda.

— Bom, vocês podem pedir — eu digo, também mostrando meu charme, sorrindo com o canto da boca. — E se a chefia deixar, serei seu a noite toda.

As quatro se entreolham numa espécie de conversa silenciosa. Já estão comendo na minha mão.

Camryn chega atrás de mim carregando uma bandeja cheia de copos de uísque e um copo já lotado de notas. Eu me pergunto se aquele é o dinheiro das gorjetas ou o pagamento dos drinques. Isso está me deixando ansioso.

Ela dá um sorrisinho para mim, olhando para a mesa das mulheres, e depois rapidamente para mim de novo.

— Ele está incomodando vocês? — ela pergunta.

Eu sei que ela não está com ciúmes; hoje só o que importa é a competição entre nós dois. E ela vai fazer tudo o que puder para impedir que eu ganhe a pequena aposta que fizemos no carro a caminho daqui:

— Você acha que não consigo ganhar gorjetas só porque tô limpando mesas?

— Não consegue — ela disse. — Copeiro não ganha gorjeta.

— Pense bem — eu disse, olhando-a do banco do motorista. — É um bar cheio de mulheres e álcool. Aposto que consigo ganhar gorjetas.

— Ah, é mesmo? — ela perguntou, estufando os lábios.

— Sim — eu disse, e então aumentei o cacife, porque estava me sentindo ousado: — Na verdade, aposto que consigo ganhar mais gorjetas do que você.

Camryn riu.

— É sério? Quer mesmo apostar isso? — Ela cruzou os braços e balançou a cabeça como se eu estivesse dizendo algo ridículo.

— Quero — eu disse, mesmo sabendo que deveria ter dito Não, tô brincando.

Mas eu não disse não, e agora estou amarrado a essa aposta, e se Camryn ganhar, vou ter que fazer uma massagem de uma hora nela por três noites seguidas. Uma hora é muito tempo de massagem. Fico com os braços cansados só de pensar.

A mulher mais velha responde para Camryn:

— Não, ele não tá incomodando nem um pouco, lindinha. — Ela me olha de alto a baixo como se quisesse arrancar minha roupa e me lamber, apoiando o queixo nas duas mãos. — Ele pode ficar aqui o tempo que quiser. Cadê o seu chefe?

— Ele tá por aqui — Camryn diz. — É só procurar um gordão de uniforme. O nome dele é German.

— Obrigada, gata — a mulher diz, e volta a olhar para mim.

Essa mulher, admito, meio que me dá medo. E como ela parece ser a líder da matilha, decido que preciso sair dali antes que ela ache que estou mesmo a fim dela, porque aí eu é que vou precisar da ajuda de Camryn pra sair da enrascada em que me meti.

— Tenham uma ótima noite, madames — digo com um sorriso acolhedor, e me viro para ir embora.

Sinto uma mão deslizando para dentro do bolso do meu avental. Eu paro e olho para a mão que a mulher já está tirando do meu bolso. Ela está me encarando com aquele famoso olhar cheio de tesão.

— Pra você também, docinho — ela diz.

Pisco para ela e sorrio para as outras três enquanto me afasto casualmente. Quando chego à cozinha, esvazio a bacia, enfio a mão no bolso e tiro dele três notas de vinte dólares.

Porra, talvez aquela aposta não tenha sido tão ridícula, no fim das contas.

Duas horas depois...

A aposta foi ridícula, sim.

— 240, 241, 246, 256. — Camryn fica contando suas gorjetas, agora que nosso curto turno acabou. Ela dá um sorrisinho e acrescenta: — E você, quanto conseguiu?

Estou tentando ficar sério para que minha decepção pareça minimamente genuína, mas ela não está facilitando. Por isso pego meu dinheiro, conto de novo e respondo:

— 82 dólares.

— Bom, até que não tá ruim pra um copeiro, admito — ela diz, embolsando sua grana.

— Como assim, admite? — pergunto, desatando o avental e tirando-o. — Vai perdoar a aposta?

— Pfah! De jeito nenhum.

German chega atrás de nós.

— É bom que a cantoria docês preste. E nada dessas merda de rap, nem musiquinha new age metida a besta. — Ele estala os dedos rapidamente, como se estivesse tentando lembrar algum exemplo, mas logo desiste. — Cês num tão no Ídolos.

— Entendido — Camryn diz, com aquele seu sorriso doce.

German, com um sorriso de babacão na cara, desperta do feitiço dela e, ao se afastar, rosna quando passa por mim. Melhor isso do que me olhar do jeito que ele olha para Camryn, por isso não vou reclamar.

Eu me viro para Camryn.

— Não fica nervosa. — Eu seguro as mãos dela. — Já falei, você vai botar pra quebrar.

Ela balança a cabeça nervosamente. Então solta um suspiro rápido, fazendo bico, e respira fundo.

— Vou pegar a guitarra enquanto você se prepara — digo.

— Tudo bem.

Eu a beijo nos lábios e vou até o carro pegar a guitarra elétrica que ela me deu de presente de aniversário, que está no porta-malas. Apesar de “Edge of Seventeen” ser o solo dela, o próprio riff da guitarra é tão conhecido que estou quase tão nervoso quanto ela por ter que tocá-lo. Tudo bem, talvez não tão nervoso — é uma música até bem fácil. O que me deixa um pouco tenso é o medo de estragar o número dela. É só por causa dela que o show de hoje me deixa tenso.

Eu subo no palco e encontro o baterista, Leif, que conhecemos ontem, se preparando.

— Obrigado por tocar com a gente, cara — agradeço.

— Sem problemas — Leif diz. — Já toquei essa várias vezes num bar da Geórgia onde eu trabalhava, uns anos atrás.

Camryn ficou feliz por encontrar um baterista que conhece a canção. Ela estava preparada para se apresentar só comigo, sabendo que não seria a mesma coisa sem a bateria. Mas quando conhecemos Leif ontem, durante o treinamento dela como garçonete, e ele concordou em tocar conosco esta noite, acho que Camryn se sentiu bem mais confiante.

Eu passo a alça da guitarra pelo ombro assim que Camryn aparece no palco.

Ela vem direto na minha direção, eu encosto no seu ouvido e digo:

— Você tá gostosa.

Ela fica vermelha e olha para sua roupa. Ela trocou o top preto bonitinho que estava usando por outro de seda, também preto, com um decote nas costas que expõe sua pele quase até a cintura. O colar que comprei para ela brilha sobre a seda preta na frente. E ela soltou o cabelo. Adoro a trança que ela sempre usa, mas devo dizer que ela fica sexy em outro nível com o cabelão sedoso e louro caindo sobre os ombros.

O vozerio no bar ecoa pelo ambiente espaçoso, alto até enquanto Leif testa o bumbo da bateria atrás de nós. Todas as mesas estão ocupadas, bem como os bancos junto à parede dos fundos. Minhas quatro “amigas” ainda estão aqui e migraram de seu lugar para uma mesa mais próxima do palco. Elas parecem intrigadas com minha transformação de copeiro em guitarrista. Normalmente, a essa altura, eu estaria procurando na plateia minha “vítima” da noite, mas hoje é diferente, e não vamos fazer nada disso. Camryn está nervosa e concentrada demais para tentar nossa brincadeira de sempre.

Depois que finalmente nos preparamos e estamos prontos para começar, Camryn prende a respiração por um momento e olha para mim.

Eu espero que ela me dê o sinal, e quando a vejo acenar, começo a tocar, e todos os olhos na multidão se viram para nós. Essa introdução da guitarra sempre chama a atenção de todos numa casa lotada. E Camryn, assim que começa a cantar, como sempre acontece também comigo, se transforma em alguém completamente diferente, a ponto de me deixar atordoado. Ela é a dona da canção. Está muito diferente de como estava em todos os nossos ensaios. Confiança e sensualidade derramam de cada verso da canção e de cada movimento seu, e todo o meu corpo reage a isso.

— Ooo, baby, ooo, ooo! — eu acompanho no refrão.

Mas todos estão olhando para ela, até minhas quatro amigas, que sei que de início haviam se aproximado para me olhar. Não, agora elas pertencem sobretudo a Camryn, e isso me deixa orgulhoso.

Antes mesmo que termine a primeira estrofe, a pista de dança já está lotada. A energia e o sexo na voz de Camryn, misturados com o fascínio de todos com sua apresentação, me fazem perder o controle, e eu martelo aquele riff com mais devoção do que antes.

— Ooo, baby, ooo, ooo!

A cada poucos segundos, ouço uma voz gritar ao fundo:

— Huuuuu! — E também cada vez que Camryn solta uma nota tocante.

E eu não me canso disso.

Canto a plenos pulmões junto com ela nos dois refrões seguintes, e sei que a quarta estrofe, aquela em que ela sempre se embanana, vem a seguir. Olho para ela, ainda agitando a palheta rapidamente sobre as cordas, com as costas arqueadas, e não vejo nenhum sinal de nervosismo em seu rosto. Ela está no controle; posso perceber, só de olhar, que de jeito nenhum ela vai errar.

E então a letra sai tão rápida e impecavelmente de seus lábios que sinto meu rosto esticado até o limite por um sorriso quando canto junto com ela a todo volume o refrão seguinte.

Porra, minha gata tomou posse da canção. Te cuida, Stevie Nicks!

Passando a metade da canção, Camryn canta: Oooo! E sua voz some naquela parte sombria da melodia que permite um breve descanso à sua voz.

Mas o solo de guitarra continua. É cansativo, mas meus dedos não param, sem errar uma nota.

Camryn e eu nos entreolhamos e temos um momento só nosso. Então ela volta a cantar, e eu canto junto no momento certo.

Ela continua cantando, suas duas mãos seguram o suporte do microfone, seus olhos se fecham quando ela berra com tanta emoção:

— Yeah! Yeah!

Então ela olha para mim de novo e continua me encarando enquanto solta a estrofe seguinte, como se estivesse cantando apenas para mim.

Calafrios percorrem a minha espinha. Eu sorrio e continuo tocando até a canção acabar.

A plateia explode com uivos e gritos. Camryn agradece as palmas primeiro, depois eu. Ela está com um sorriso enorme, olhando para a multidão, e eu fico meio comovido por dentro.

Sem tirar a guitarra, que empurro para as costas, me aproximo de Camryn e a levanto do chão em meus braços. Os assobios e gritos vêm de todos os lados, mas a única coisa que eu noto é Camryn me olhando. Eu a beijo profundamente, e a multidão assobia e grita ainda mais.

Antes de a noite acabar, fazemos um show completo de dez canções para uma multidão cada vez maior, com o passar das horas. Voltamos a cantar algumas das nossas favoritas: “Barton Hollow”, “Hotel California” e “Birds of a Feather”, entre outras, e cada canção parece agradar mais ao público. Não canto sozinho esta noite, embora Camryn chegue a me pedir isso. A noite foi dela e só dela. Me recuso a ser o centro das atenções, mesmo por apenas uma canção.

Voltamos ao hotel às duas da manhã, e eu pago de bom grado a aposta que perdi.


Camryn


27

— GERMAN PARECE achar que a gente vai ficar muito tempo aqui — eu digo, com o lado direito do rosto encostado no colchão. — Eu falei pra ele que era só temporário.

As mãos mágicas de Andrew pressionam os dois lados das minhas costas dos ombros até a cintura, e eu viro massa de modelar em suas mãos. Fico deitada ali e curto essa massagem como se nunca tivesse sido massageada na vida. Mal consigo abrir os olhos. Ele está sentado sobre meu corpo quase nu, a cavalo sobre minha cintura.

— É, ele me puxou de lado uma hora e perguntou a que horas a gente ia tocar amanhã. — Andrew ri e aperta as pontas dos dez dedos com força na minha pele, mexendo as mãos num firme movimento circular.

Eu gemo debaixo dele.

— A gente pode ficar mais uns dias — ele diz —, mas acho que devíamos partir logo.

— Concordo. E também, os mosquitos em Mobile são horríveis! Você viu que enxame apocalíptico em volta das lâmpadas quando a gente saiu de lá?

Andrew ignora a pergunta e diz:

— Você foi sensacional hoje. Eu sabia que você ia mandar bem, mas pra falar a verdade, não tava esperando aquilo.

Eu finalmente abro os olhos e espio pela janela.

— O que, exatamente? — pergunto.

Suas mãos não param de massagear minhas costas.

— Você subiu no palco e tomou posse da canção. Você tem um talento natural.

— Não sei se tenho — respondo. — Mas tô orgulhosa de mim mesma. Sério, não sei o que deu em mim. Esqueci o nervosismo e mergulhei de cabeça.

— Bom, funcionou — ele diz.

— Só porque você tava lá comigo — eu saliento.

Ficamos em silêncio por vários minutos, eu de olhos fechados, com sua massagem ameaçando gradualmente me mandar para a terra dos sonhos. A circulação ao redor dos meus olhos parece aliviar; minha cabeça toda está formigando, e minha nuca se arrepia quando ele afunda os dedos no meu couro cabeludo.

Antes que passe uma hora, começo a me sentir culpada por fazê-lo trabalhar tanto tempo e digo:

— Se você estiver cansado, pode parar.

E quando ele não para, eu o faço parar, virando o corpo e me deitando de costas. Ele fica em cima de mim e me beija de leve na boca. E nós nos olhamos por um momento, um examinando os olhos do outro, estudando os lábios. Sinto-o pressionar meu corpo lá embaixo, sua boca se fecha sobre a minha num beijo apaixonado e ele começa a fazer amor comigo.


Andrew


28

ESTAMOS NA ESTRADA de novo, em algum lugar de uma rodovia entre Gulfport, Mississippi e Nova Orleans. O dia está perfeito, com céu azul e calor na medida certa para que possamos viajar de janelas abertas, sem sentir necessidade de ligar o ar-condicionado do carro. Camryn está dirigindo e eu descanso no banco do passageiro, numa posição bem parecida com a sua de sempre, com um pé para fora da janela.

Ficamos em Mobile uma semana e pagamos o quarto de hotel, toda a comida e a gasolina só com uma fração do dinheiro que ganhamos tocando e das gorjetas de Camryn como garçonete. Minhas gorjetas de copeiro foram só uma gota no oceano, comparadas com as dela.

Meu celular vibra no bolso da minha bermuda preta de lona e eu atendo.

— E aí, mãe, tudo bem?

Ela diz que sente muito a minha falta e logo começa a fazer perguntas sobre os meus checkups.

— Não, eu tô fazendo, sim — digo. — É, fiz tomografia esses dias num hospital em... Não, eles só ligaram pro dr. Masters pra pedir minha ficha e... Tá, mãe. Eu sei. Eu tô me cuidando. — Olho para Camryn, que está sorrindo. — Camryn não me deixa faltar. É. Bom, agora a gente tá indo pra Nova Orleans, não sei quanto tempo a gente vai ficar lá, mas depois vamos passar por aí pra te visitar, tá?

Depois que eu desligo, Camryn pergunta:

— No Texas?

Imediatamente, sinto que ela está pensando a mesma coisa que pensou na nossa primeira viagem, mas ela me desmente quando diz:

— Pra mim não tem problema nenhum. Só tô curiosa pra saber nosso destino. — Ela sorri, e percebo na hora que não está escondendo nada.

— O Texas não te preocupa? — eu pergunto.

Ela olha de novo para a estrada ao chegar numa curva, depois volta a olhar para mim.

— De jeito nenhum. Não como me preocupava antes.

— O que te fez mudar de ideia? — Eu tiro o pé da janela e me viro para olhá-la melhor, intrigado pela mudança de opinião.

— As coisas estão diferentes agora — ela diz. — Mas de um jeito bom. Andrew, o mês de julho foi difícil. Pra nós dois. Não sei como eu sei, mas acho que eu já previa desde o início que alguma coisa ruim ia acontecer quando a gente chegasse ao Texas. Por um tempo, achei que eu só estivesse preocupada por aquela ser a última parada da nossa viagem. Mas agora não sei mais. Era como se eu soubesse...

Eu sorrio um pouco.

— Acho que eu entendo — digo. — Então preciso fazer uma pergunta.

Ela olha para mim, esperando.

— A gente vai parar definitivamente um dia?

Sua reação não é a que eu esperava. Eu esperava que seu sorriso sumisse e o momento se perdesse, mas em vez disso, seus olhos brilham, e sinto um ar de calma emanando dela.

— Um dia — ela diz. — Mas ainda não. — Ela olha novamente para a estrada e continua: — Sabe, Andrew, quero ir pra Itália um dia. Pra Roma. Sorrento. Talvez não agora, nem mesmo nos próximos cinco anos, mas espero ir pra lá. Pra França também. Pra Londres. Adoraria até conhecer a Jamaica, o México e o Brasil.

— É mesmo? Ia levar um tempão visitar todos esses lugares — eu digo, mas não de forma a desencorajá-la. Eu também adoraria.

O vento da janela aberta roça seu cabelo, soltando mais fios de sua trança, que dançam ao redor do seu rosto radiante.

— Eu me sinto livre com você — ela diz. — Sinto que posso fazer qualquer coisa. Ir a qualquer lugar. Ser o que eu quiser. — Seus olhos pousam em mim mais uma vez e ela continua: — A gente vai parar logo, mas nunca quero parar definitivamente. Isso faz sentido?

— Com certeza — respondo. — Eu não teria dito melhor.

Chegamos à divisa da Louisiana logo depois que escurece, e Camryn para no acostamento.

— Acho que não consigo mais dirigir — ela diz, esticando os braços para trás e bocejando.

— Eu falei há uma hora que você precisava me deixar dirigir.

— Bom, agora eu tô deixando. — Ela fica ranzinza quando está cansada.

Ambos saímos para trocar de lugar, mas paramos quando nos encontramos na frente do carro.

— Você viu onde a gente tá? — pergunto.

Camryn olha para os dois lados da rodovia deserta. Ela dá de ombros.

— Hã, no meio do nada?

Eu rio baixinho e aponto para o campo. Depois aponto para as estrelas.

— A última vez não valeu, lembra?

Seus olhos brilham, mas sinto que ela está dividida. Não levo muito tempo para entender por quê.

— É um campo plano e aberto. E não tem vaca nenhuma até onde a vista alcança — digo.

Eu sei que absolutamente nada que eu disser vai tranquilizá-la quanto à possibilidade de cobras, mas estava tentando ser sutil e dar uma de idiota, esperando que ela esquecesse isso.

— E as cobras? — ela pergunta, não esquecendo.

— Não deixe seu medo de cobras estragar uma oportunidade perfeita de finalmente dormir sob as estrelas.

Ela estreita os olhos para mim.

Resolvo apelar para a artilharia pesada e simplesmente imploro.

— Por favor? Por favorziiiiinho? — Eu me pergunto se minha cara de gatinho do Shrek é tão eficaz com ela quanto a dela sempre é comigo. Meu instinto inicial foi jogar a desgraçada em cima do ombro e carregá-la à força, mas também estou curioso quanto à eficiência da minha técnica implorativa.

Ela rumina por um minuto e finalmente cede ao meu charme.

— Tá — ela admite, um pouco exasperada.

Eu pego o cobertor do porta-malas e nós passamos juntos por cima da vala e da cerca baixa, depois cruzamos o enorme campo até que encontramos um bom lugar, vários metros à frente. Tenho uma sensação de déjà vu. Estendo o cobertor na grama seca e verifico rapidamente se há cobras nos arredores, só para deixá-la mais tranquila. Nós nos deitamos lado a lado, de costas, com as pernas esticadas sobre o cobertor, cruzando os tornozelos. E olhamos para a imensidão escura e infinita do céu cheio de estrelas. Camryn aponta várias constelações e planetas, me explicando cada um em detalhes, e eu fico impressionado em ver o quanto ela sabe, e como consegue reconhecê-los.

— Eu nunca imaginei que você fosse tão... — tenho dificuldade para encontrar as palavras certas.

— Tão culta? — Sinto que ela sorri discretamente ao meu lado.

— Bom, eu... não quis dizer que acho você...

— Uma garota desmiolada e superficial que não sabe que a Via Láctea não é uma comida de bebê, nem que a teoria do Big Bang é mais do que um seriado de TV?

— É, alguma coisa assim — digo, só para fazer o jogo dela. — Não, mas falando sério, como sabe tudo isso? Nunca pensei que você se interessasse por ciências.

— Eu queria ser astrofísica. Decidi isso quando tinha uns 12 anos.

Fico completamente chocado com sua confissão, mas continuo olhando as estrelas com ela, meu sorriso aumentando.

— Bom, na verdade eu queria ser isso, mais física e astronauta e também trabalhar na NASA, mas acho que eu tava meio iludida, na época. Obviamente.

— Camryn — eu digo, ainda tão surpreso que mal sei o que dizer. — Por que você nunca me contou isso?

Ela dá de ombros.

— Não sei — ela diz. — O assunto nunca surgiu. Você nunca sonhou em ser alguma coisa diferente do que é?

— Acho que sim — respondo. — Mas, amor, por que você não foi atrás disso? — Eu levanto o corpo do cobertor e me sento. Isso pede toda a minha atenção.

Ela olha para mim como se eu estivesse exagerando.

— Provavelmente pelo mesmo motivo que você não foi atrás do que você queria ser. — Ela dobra os joelhos e cruza as mãos sobre a barriga. — O que você queria ser?

Não quero falar de mim agora, mas acho melhor responder, já que ela me perguntou duas vezes.

Eu também dobro os joelhos e apoio os antebraços sobre eles.

— Bom, à parte o clichê de sonhar em ser um astro do rock, como todo mundo, eu queria ser arquiteto.

— Sério?

— Sim — digo, balançando a cabeça.

— Era isso que você tava estudando antes de largar a faculdade?

Eu balanço a cabeça.

— Não — digo, e rio um pouco do absurdo da minha resposta. — Eu tava fazendo faculdade de ciências contábeis e administração.

Camryn franze o cenho.

— Ciências contábeis? Tá falando sério? — Ela está quase rindo.

— Pois é, você vê? — digo, rindo também. — Aidan me ofereceu sociedade no bar dele. Na época, eu só via cifrões na minha frente, e achei que ter um bar seria uma oportunidade e tanto. Eu poderia tocar lá e... não sei o que eu tava pensando, mas topei a proposta do meu irmão na hora. Aí ele começou a dizer que eu precisava entender a parte administrativa do negócio, essa porra toda. Eu entrei na faculdade, e foi então que a ideia foi por água abaixo. Eu tava cagando pras ciências contábeis, pra administrar um bar ou ter que lidar com todos os aspectos negativos de ter um negócio. — Paro por um momento e então digo: — Acho que, como você disse, eu tava iludido, queria todos os aspectos positivos, mas nenhum negativo. Quando percebi que não era assim que funcionava, falei: foda-se.

Ela se senta junto de mim.

— Então por que você não foi atrás de ser arquiteto?

Eu dou um sorrisinho.

— Provavelmente pelo mesmo motivo que você não foi atrás de ser astrofísica.

Ela apenas sorri, sem ter como rebater isso.

Eu olho para o cabelo louro de Camryn e para o campo.

— Acho que somos só duas almas perdidas nadando num aquário — declaro.

Seus olhos se estreitam.

— Já ouvi isso em algum lugar.

Eu sorrio e aponto rapidamente para ela.

— É Pink Floyd. Mas é verdade.

— Você acha que a gente tá perdido?

Eu inclino um pouco a cabeça, olho para as estrelas atrás dela e digo:

— Na sociedade, talvez. Mas juntos, não. Acho que estamos exatamente onde precisamos estar.

Nenhum dos dois diz mais nada por um bom tempo.

Ficamos deitados um ao lado do outro, fazendo o que fomos fazer ali. Enquanto olho para a escuridão infinita daquele céu, fico totalmente assombrado com o momento. Acho que encontro um pouco de mim mesmo naquelas estrelas. Por um bom tempo esqueço a música, a estrada, o tumor que quase me matou ano passado e o momento de fraqueza que quase matou o espírito de Camryn. Esqueço que perdemos Lily e que sei que Camryn parou de tomar anticoncepcional e não me contou. E esqueço também que parei de gozar fora por um motivo e não contei a ela.

Eu realmente esqueço tudo. Porque é isso que um momento assim faz com você. Faz você se sentir algo tão pequeno, dentro de algo tão imenso que está além da compreensão. Apaga todos os seus problemas, suas dificuldades, todas as suas necessidades, aspirações e desejos mundanos, te obrigando a perceber o quanto tudo isso na verdade é insignificante. É como se a Terra ficasse completamente silenciosa e imóvel, e sua mente só pudesse entender ou sentir a imensidão do Universo, e você fica sem fôlego pensando no seu lugar dentro dele.

Quem precisa de psiquiatras? Quem precisa de acompanhamento psicológico, mentores e palestras motivacionais? Vão todos pra casa do caralho. Apenas olhe para o céu noturno e se deixe perder nele de vez em quando.

~~~

Algo desagradável me acorda na manhã seguinte. Farejo o ar de olhos ainda fechados, minha mente não totalmente acordada, mas meu corpo e meu olfato funcionando antes de mim. Há uma brisa fresca no ar e minha pele parece úmida, como se eu estivesse coberto de orvalho. Virando para o outro lado, farejo o ar de novo e o cheiro é ainda pior do que antes. Ouço algo raspando nas proximidades, e finalmente meus olhos se abrem um pouco. Camryn está capotada ao meu lado. Mal consigo ver sua trança loura em cima do cobertor entre nós. Ela parece estar encolhida em posição fetal.

Que fedor é esse?!

Cubro a boca com a mão e começo a me levantar do cobertor. Camryn começa a se mexer ao mesmo tempo, virando de barriga para cima e esfregando o rosto e os olhos com as duas mãos. Ela boceja. Quando me sento e abro completamente os olhos, Camryn pergunta:

— Que fedor da porra é esse? — e faz uma careta.

Estou para responder que deve ser o bafo dela, quando seus olhos azuis ficam arregalados de pavor, ao olhar atrás de mim.

Instintivamente, eu me viro rápido.

Uma manada de vacas está a poucos metros de nós, e quando percebem que estamos nos mexendo, elas se assustam.

— Meu Deus! — Camryn se põe de pé num pulo mais rápido do que na noite em que a cobra subiu no nosso cobertor, me fazendo pular também.

Duas vacas mugem, gemem e grunhem, recuando para perto das outras, agitando a manada ainda mais.

— Acho melhor a gente sair correndo — digo, pegando Camryn pela mão e disparando com ela.

Nem paramos para pegar o cobertor, de início, mas eu paro e me viro, segundos depois, para agarrá-lo. Camryn grita, eu começo a rir e nós desabalamos para longe das vacas, na direção do carro.

— Puta meeeerda! — eu grito, enfiando o pé num monte enorme da substância.

Camryn cacareja de tanto rir, e ambos praticamente rolamos o resto do caminho pelo campo, eu tentando raspar a bosta da sola do sapato e correr ao mesmo tempo, e os chinelos de dedo de Camryn grudando no chão, tentando acompanhar seus passos.

— Não acredito que isso aconteceu! — Camryn ri quando finalmente alcançamos o carro. Ela fica encurvada e apoia as mãos nos joelhos, tentando recuperar o fôlego.

Eu também estou sem fôlego, mas continuo a raspar incansavelmente a sola do meu sapato no asfalto.

— Puta que pariu! — exclamo, esfregando o pé para todo lado.

Camryn se senta no capô do carro, balançando as pernas.

— Agora valeu pra você? — ela pergunta, com riso na voz.

Eu fico parado, ofegando. Olho para ela, para seu sorriso lindo e radiante e digo:

— É, acho que já dá pra riscar esse item da lista.

— Ótimo! — ela diz. Depois aponta para trás de mim. — Esfrega na grama. Assim você só tá espalhando bosta pra todo lado.

Eu saltito para a grama e começo a esfregar o pé de novo.

— Desde quando você virou especialista em bosta?

— Veja lá como fala — ela avisa, se sentando no lugar do motorista.

— Por que, o que você vai fazer? — eu provoco.

Ela dá a partida no Chevelle e acelera algumas vezes. Há um brilho cruel no seu olhar. Ela apoia o braço esquerdo na janela aberta, e quando me dou conta, o carro já está passando lentamente por mim.

Eu a fuzilo com o olhar como aviso, mas seu sorriso só aumenta.

— Eu sei que você não me deixaria aqui! — grito quando ela passa.

É claro que não...

Ela se afasta cada vez mais, e de início eu pago pra ver, parado ali, vendo o carro ficar cada vez menor...

Por fim, eu saio correndo atrás do carro.


Camryn


29

A PRIMEIRA COISA que me vem em mente quando chegamos a Nova Orleans é lar doce lar. Fico empolgada quando o cenário se torna familiar: os grandes carvalhos e as lindas casas históricas, o Lago Pontchartrain e o Superdome, os bondes vermelhos e amarelos que sempre me pareceram de brinquedo. E, é claro, o Bairro Francês. Tem até um homem tocando saxofone numa esquina, e sinto que entramos diretamente num cartão-postal de Nova Orleans.

Olho para Andrew e ele sorri para mim rapidamente. Ele dá a seta e viramos à direita na Royal Street. Meu coração falha e bate forte ao mesmo tempo quando vejo o Holiday Inn. Tanta coisa aconteceu aqui há dez meses. Este lugar... logo um hotel... é tão mais do que isso para mim, para nós dois.

— Imaginei que você gostaria de ficar aqui enquanto estivéssemos na cidade — Andrew diz, com um enorme sorriso.

Como as lembranças ainda estão, por assim dizer, tirando meu fôlego, não consigo responder, por isso só balanço a cabeça e sorrio como ele.

Pegamos nossas coisas no carro e entramos no saguão. Tudo parece exatamente igual, exceto talvez as duas mulheres na recepção, quando nos aproximamos. Não me lembro delas.

Ouço vagamente Andrew perguntar sobre a disponibilidade dos quartos que ocupamos da outra vez enquanto olho ao meu redor, tentando absorver tudo.

Meu Deus, senti falta deste lugar.

— Sim, parece que esses dois quartos estão vagos — ouço uma das recepcionistas dizer. — Querem ficar com os dois?

Isso chama a minha atenção.

Andrew se vira para mim. Acho que ele quer minha opinião.

Passo a bolsa para o outro ombro e hesito por um momento, ponderando a pergunta. Não previ isso, nem que a decisão seria tão difícil.

— Hãã, bem... — Olho para Andrew e depois para a recepcionista, ainda indecisa. — Não sei. Tá, talvez a gente devesse ficar naquele onde... — Eu me interrompo, sem querer dar a impressão de que somos dois adolescentes imaturos, desta vez, e encaro Andrew com um olhar que diz tudo. — Aquele onde o pacto foi selado.

Andrew luta para se manter sério, mas vejo claramente o sorriso em seus olhos quando ele entrega o cartão de crédito à recepcionista.

Saímos do saguão logo depois e tomamos o elevador até nosso andar. Andando pelo corredor, ainda estou absorvendo tudo ao meu redor, até a cor da tinta das paredes, porque tudo faz parte de uma lembrança, por maior, menor ou aparentemente insignificante que seja. A sensação de estar aqui de novo... sinto quase que vou cair no choro de felicidade. Mas também estou empolgada, e isso me salva de me debulhar em lágrimas.

Andrew para entre as duas portas dos nossos antigos quartos, com as duas mochilas e a guitarra elétrica que lhe dei penduradas nos ombros. Ele quer comprar um estojo para a guitarra, mas ainda não fez isso.

— É estranho estar aqui de novo, não? — ele pergunta, me olhando.

— Estranho, mas de um jeito bom.

Ficamos assim por um minuto, olhando um para o outro e para as duas portas, até que finalmente Andrew se dirige para o quarto que escolhemos e passa o cartão na fechadura.

É realmente como entrar no passado. A porta se abre lentamente, e é como se todas as emoções que experimentamos naquele quarto tivessem sido deixadas ali e estivessem nos cumprimentando agora, quando entramos. Assim que pisamos lá dentro, lembro cada noite que passamos aqui, separados e juntos, como se fosse ontem. Olho para o lugar perto da cama onde eu estava quando Andrew me domou e me tornou sua. Olho pela janela para as ruas movimentadas do Bairro Francês. Revejo o dia em que Andrew se sentou naquela soleira tocando violão, e até me vejo ali, dançando e cantando “Barton Hollow”, quando achei que estava sozinha. Eu me viro para ver o banheiro, e quando Andrew acende a luz, meu olhar vai primeiro para o chão e lembro, embora vagamente, a noite em que ele dormiu ao meu lado.

Acho que às vezes as melhores lembranças se criam nos lugares mais improváveis, mais uma prova de que a espontaneidade é mais recompensadora do que uma vida meticulosamente planejada. Do que qualquer coisa meticulosamente planejada.

Eu me viro para Andrew.

— Não sei por quê, mas eu sinto... bom, sinto que todos os meses que passamos na estrada desde dezembro foram pra chegar a este lugar. Esta cidade. Este hotel. — Não acredito que estou dizendo isso, e imediatamente começo a questionar meus motivos. Pode significar tantas coisas diferentes, mas acho que o maior significado é que nós precisávamos voltar para lá.

Sim, é exatamente isso, ou pelo menos é o que eu precisava. Quando recebo essa revelação, me vejo parada naquele quarto, cercada por pensamentos em vez de objetos materiais. Olho nos olhos de Andrew, mas na verdade não é ele que vejo. O que vejo é ele no passado. Os mesmos olhos verdes magnéticos, outro ano.

Por que estou me sentindo assim?

— Talvez você tenha razão — ele concorda, e então seu tom de voz fica mais misterioso. — Camryn, o que você tá pensando agora?

— Que a gente foi embora cedo demais da última vez. — Foi a primeira coisa que pensei, e só agora que falei começo a entender o quanto pode ser verdade.

— Por que você acha isso? — ele pergunta, se aproximando de mim.

Não sinto que ele está me fazendo perguntas para as quais já sabe as respostas, desta vez. É como se ambos estivéssemos seguindo a mesma linha de raciocínio, ambos tentando entender o sentido de tudo e buscando respostas um no outro.

Nós nos sentamos no pé da cama juntos, eu com as mãos no meio das coxas, como ele, e ficamos em silêncio por vários longos segundos. Finalmente, viro a cabeça para olhá-lo à minha direita e digo:

— Eu não queria partir quando a gente partiu, Andrew. Eu sabia que nossa próxima parada, depois de Nova Orleans, seria Galveston. Eu não tava preparada pra deixar este lugar... mas não sei por quê.

E essa verdade me deixa ansiosa.

Por quê? Além de temer que o Texas significasse o fim da nossa viagem, ou mais tarde sentir que eu sabia que algo ruim iria acontecer lá, por que mais eu iria querer ficar? Eu não queria necessariamente ficar ali para sempre, só acho que partimos cedo demais.

— Não sei — ele diz, dando de ombros. — Talvez seja porque foi aqui que finalmente selamos o pacto. — Ele me dá uma cotoveladinha de brincadeira.

Não consigo deixar de sorrir.

— É, talvez, mas acho que é mais do que isso, Andrew. Acho que é porque a gente se encontrou aqui. — Eu olho para a parede, pensativa. — Não sei mesmo.

Sinto a cama se movimentar quando Andrew se levanta.

— Bom, sugiro que desta vez a gente aproveite ao máximo antes de partir. — Ele estende a mão para mim e eu a seguro. — Talvez a gente desvende esse mistério.

Eu me levanto e digo:

— Ou... talvez seja uma nova chance.

Sinceramente, não faço ideia do que me levou a dizer isso.

— Uma nova chance de quê, exatamente? — ele pergunta.

Eu fico em silêncio, pensando, e em seguida respondo:

— Isso eu também não sei...


CONTINUA

21

21 DE JANEIRO — meu vigésimo sexto aniversário

Estou tendo um sonho legal no qual salto de paraquedas (por algum motivo bizarro, com o ator Christopher Lee) e o céu está tão azul quanto... bem, quanto o céu. Christopher Lee, usando óculos de mergulho vermelhos, faz um sinal de positivo antes que o vento o arrebate para o éter azul. Então, de repente, meu coração para, e eu inspiro uma golfada de ar gelado. Meus olhos se abrem para a realidade. Meu corpo salta da cama tão rápido que abro o braço para o lado e bato no abajur parafusado na parede.

— Pu-ta-que-pariu! — eu grito.

Levo um segundo para entender o que aconteceu. Enquanto vejo Camryn no pé da cama ainda segurando um balde de gelo, jogo freneticamente os lençóis gelados e encharcados para o lado e tento recuperar o fôlego.

Camryn gargalha como uma bruxa.

— Feliz aniversário, amor! Levanta!

Acho que mereci isso, depois do que fiz com ela na manhã do seu aniversário, mês passado. Mas essa cretina maquiavélica me pegou de jeito, muito mais pesado do que fiz com ela. Acho que a vingança é sempre pior mesmo.

Incapaz de parar de sorrir, entro no clima e levanto lentamente minha bunda pelada da cama. Ela já está fazendo aquela cara de oh-oh quando começa a se afastar de mim e ir para a porta. Sabendo que essa é a sua única saída, eu a vigio enquanto ela estuda a situação.

— Sinto muito! — ela diz com um sorriso apavorado, com a mão para trás, tateando na direção da porta.

— Hã-hã, eu sei que você sente, amor.

Ando bem lentamente na direção dela, espreitando-a com os olhos semicerrados, como se eu fosse um predador brincando com sua presa.

Ela dá uma risada de bruxa de novo.

— Andrew! Nem pensa nisso! — Ela está a meio metro da porta, agora. Mas eu ajo com calma, deixando-a pensar que vai conseguir chegar até lá, meu sorriso aumentando até que sei que já devo estar parecendo um maníaco sádico.

De repente, Camryn grita, incapaz de se controlar mais, e corre para a porta, escancarando-a.

— Nãão! Por favor! — ela grita e ri ao mesmo tempo enquanto a porta se abre, batendo na parede com estrondo. Ela dispara pelo corredor.

Quando começo a persegui-la, sua expressão chocada e o modo hilariante como ela chega a parar dão a entender que ela não esperava que eu saísse do quarto sem roupa.

— Ai meu Deus! Andrew, não! — ela grita, enquanto volta a correr a toda velocidade pelo corredor iluminado.

Eu continuo atrás dela, com meus documentos balançando ao vento. Essa garota ainda precisa aprender muito se achou mesmo que eu ia ficar com vergonha de correr atrás dela, de bunda de fora e com o pinto encolhido pelo frio. Eu não tô nem aí. Ela vai se arrepender daquele banho de gelo.

Passamos pelo quarto 321 no exato momento em que um casal de velhinhos está saindo. O homem puxa sua esposa de olhos arregalados para dentro quando o doido pelado passa ventando.

— Meu Deus do céu... — ouço uma voz distante dizendo atrás de mim.

Finalmente, quando Camryn chega ao final do imenso corredor, ela para e me encara, encurvada, com as duas mãos à sua frente como se fossem um escudo. Lágrimas escorrem de seus olhos de tanto rir.

— Eu desisto! Eu desisto! Ai meu Deus, você tá pelado! — Ela não consegue parar de rir. Rio também quando a ouço fungar com força.

— Agora você me paga — eu digo, agarrando-a e jogando-a sobre o ombro.

Ela nem tenta espernear, gritar e agitar os braços, dessa vez. Primeiro porque ela não consegue parar de rir o suficiente para controlar seu corpo a esse ponto. E, segundo, porque ela sabe que não adianta. Só espero que ela não mije em cima de mim.

Eu a carrego pelo corredor todo até nosso quarto, e quando chegamos ao quarto 321, digo:

— Desculpem por ter feito vocês verem isso. Tenham um bom-dia — acenando enquanto passo. O casal fica só olhando, o marido balançando a cabeça para mim, com uma expressão revoltada.

Fecho a porta atrás de nós e jogo Camryn na cama, sobre os cubos de gelo e a água gelada. Ela ainda está rindo.

Fico de pé no meio das pernas dela e tiro seu short e sua calcinha ao mesmo tempo, olhando para ela, sem dizer uma palavra. Fico de pau duro em segundos. Seu humor brincalhão muda instantaneamente e ela morde o lábio inferior, olhando para mim com aqueles olhos azuis docemente sedutores que sempre despertam algo primal em mim.

Sem nenhum aviso, eu me deito por cima dela e enfio tudo.

— Você sente muito mesmo? — sussurro, tirando e pondo nela devagar. Meu peito apertado sobre o dela, nossas tatuagens se tocando, Orfeu e Eurídice se juntando novamente enquanto eu e ela nos tornamos um só.

— Sim... — ela diz, as palavras tremulando de seus lábios.

Meto nela um pouco mais fundo, empurrando uma de suas coxas para cima com a mão.

Suas pálpebras ficam mais pesadas e ela joga a cabeça para trás.

Eu esmago minha boca sobre a dela, e seus gemidos reverberam na minha garganta quando começo a meter com mais força.

Então algo dentro de mim fica sombrio, predador. Me ajoelho na cama e agarro suas duas coxas, cravando os dedos em sua carne e arrastando-a pelo colchão para perto de mim tão rápido que ela nem consegue começar a se mexer. Agarrando seus braços, eu a viro de costas, seguro seus pulsos atrás das costas e a forço a ficar de joelhos. Com a outra mão, toco o contorno macio de sua bunda empinada diante de mim, apertando bem cada nádega antes de bater nelas com tanta força que seu corpo se retorce para a frente. Ela choraminga. Então aperto sua nuca com a mão, empurrando com força o rosto de lado contra o colchão. Sinto o calor emanando de sua pele no lugar onde minha mão já deixou marcas vermelhas.

Ela choraminga de novo e eu torço e aperto mais seus pulsos. Com a outra mão, enfio dois dedos em sua boca e puxo sua bochecha, enquanto enfio meu pau nela por trás.

Ela chora um pouco, com as coxas começando a tremer, mas eu não paro. Sei que na verdade ela não quer que eu pare.

Depois que eu gozo e meu coração volta a bater mais devagar, puxo seu corpo nu para perto do meu, sua cabeça suada aninhada na minha axila. Ela beija meu peito e faz dois dedos andarem pelo meu braço até minha boca. Eu pego sua mão e beijo os dedos.

— Que bom que você voltou ao normal — ela diz baixinho.

— Eu voltei ao normal? — pergunto, e ela levanta a cabeça para me olhar nos olhos. — Eu não tava normal?

— Não, antes não.

— Quando eu não tava normal? — Estou verdadeiramente confuso, mas acho adorável sua timidez ao me explicar o que quis dizer.

— Depois que a gente perdeu Lily — ela diz, e o sorriso brincalhão que estava se abrindo em meus lábios desaparece. — Não te culpo por isso, mas depois de Lily, você me tratava como uma boneca de porcelana, com medo de me quebrar se fosse bruto demais comigo.

Eu a aperto mais com meu braço e sua bochecha volta a encostar no meu peito.

— Bom, eu não queria te machucar — digo, passando meu polegar em seu braço. — Ainda sinto isso às vezes.

— Então não sinta — ela sussurra, beijando meu peito de novo. — Nunca se segure comigo, Andrew. Quero que você seja sempre você mesmo.

Eu sorrio e aperto seu braço mais uma vez.

— Sabe que tá me dando permissão pra te atacar sempre que eu quiser, certo?

— Sei, tenho plena consciência disso — ela diz, e ouço um sorriso como o meu em sua voz.

Eu beijo o alto de sua cabeça e a puxo para cima de mim.

— Feliz aniversário — ela diz novamente, e enfia a língua na minha boca.

~~~

Graças a Deus existe a Flórida no inverno. Depois da minha muito surpreendente — e prazerosa, devo acrescentar — manhã de aniversário, Camryn e eu passamos o dia ensaiando nossa nova canção. Bem, não é tecnicamente nossa, mas pra misturar um pouco as coisas, adotamos o hit sensacional de Stevie Nicks, “Edge of Seventeen”. Camryn está ficando frustrada com o modo como os versos se seguem tão rapidamente, mas está determinada a conseguir cantá-la. É a canção dela, aquela que ela quer cantar sozinha. É um passo importante para ela, porque nós sempre cantamos juntos.

E eu a admiro por isso.

Ela parece muito frustrada, mas por trás disso, tudo o que vejo é a minha Camryn voltando para mim cada dia mais. Sua alma está mais leve, a luz em seus olhos, mais brilhante, e cada vez que ela sorri, me lembro do dia em que nos conhecemos.

— Você consegue — asseguro, sentado na sacada da janela, com o meu violão encostado no peito. — Não faz tanto esforço, amor, só toma posse dela.

Ela suspira e joga a cabeça para trás, desabando na cadeira da mesinha redonda ao meu lado.

— Eu sei a letra toda, mas sempre me atrapalho naquelas últimas estrofes. Não sei por quê.

— Acabei de te falar. Você tá pensando demais, porque começa a cantar já esperando se atrapalhar quando chegar nessa parte. Não pensa. Agora tenta de novo.

Ela suspira profundamente de novo, nervosa, e fica de pé.

Ensaiamos por mais uma hora antes de ir à churrascaria mais próxima para um almoço tardio.

— Você vai conseguir. Não se preocupe — insisto, enquanto a garçonete traz nossos bifes.

— Eu sei. Mas é que é frustrante. — Ela começa a cortar o bife, com a faca numa mão e o garfo na outra.

— Demorei um pouco pra aprender “Laugh, I Nearly Died” — conto, enfiando um pedação de bife na boca com o garfo. Mastigo um pouco e então continuo, ainda de boca cheia: — De qualquer jeito, a próxima canção que quero aprender é “Ain’t No Sunshine”, do Bill Withers. Sempre quis aprender essa, e acho que tá na hora de aposentar os Stones.

Ela parece surpresa. Aponta o garfo para mim, engole e diz:

— Oooh! Ótima escolha!

— Você conhece essa? — Também estou um pouco surpreso, considerando que ela não gostava tanto de rock clássico ou blues quando nos conhecemos.

Ela balança a cabeça e come um pouco de purê.

— Adoro essa canção. Ela tava numa playlist que meu pai gostava de ouvir quando viajava a negócios. Esse Withers é danado pra cantar.

Eu dou uma gargalhada.

— Qual é a graça? — ela pergunta, me olhando com ar confuso.

— Você falou de um jeito tão country, agora. — Eu tomo um gole de cerveja e rio um pouco mais, balançando a cabeça.

— O quê? Tá dizendo que eu falei que nem caipira? — Seus olhos estão arregalados, mas seu sorriso não poderia ser mais óbvio.

— Tá mais pra uma roceira, na verdade. Esse Withers é danado pra cantar! Eeeiita ferro! — Eu a arremedo, jogando a cabeça para trás.

Ela ri comigo, se esforçando ao máximo para esconder o rubor do rosto.

— Bom, nisso eu concordo contigo — ela admite, tomando um gole de sua cerveja. Ela põe o copo na mesa e acrescenta, estreitando os olhos: — Com a escolha da canção, não com a coisa da roceira.

— Claro — digo com um sorriso, terminando meu bife.

O primeiro bife que comemos juntos foi como ela prometeu, alguns dias depois que saí do hospital após a cirurgia. E como naquele dia e toda vez que comemos carne juntos, ela só consegue comer metade. Melhor, sobra mais pra mim. Quando vejo que ela dá sinais de estar tão empanturrada que vai vomitar, estico o braço e puxo o prato dela para o meu lado.

Ela fica olhando para o celular, e então começa a responder uma mensagem de texto.

— Natalie tá pedindo pra você voltar de novo?

— Sim, ela é incansável. — Ela recoloca o celular na bolsa.

Camryn mente mal à beça. Muito mal. Não conseguiria mentir nem para salvar a própria vida, e no momento, o modo como ela fica olhando a parede de madeira rústica mostra que com certeza está mentindo. Eu palito os dentes e a estudo.

— Podemos ir? — pergunto.

Ela sorri para mim, sem graça, obviamente escondendo algo, e então percebo que a tela do seu celular se ilumina dentro da bolsa. Ela olha a mensagem de texto e de repente fica mais ansiosa para sair. Seu sorriso aumenta e ela se levanta rapidamente.

— Peraí, preciso pagar. — Aceno para a garçonete, e Camryn se senta de novo, impaciente. — Por que tá com tanta pressa assim de repente? — eu a provoco, enquanto a garçonete deixa a conta sobre a mesa, mas antes que ela vá embora, tiro o cartão de crédito da carteira.

— Por nada — Camryn desconversa.

Eu apenas sorrio.

— Tá — digo, e me encosto na cadeira, me espreguiçando e relaxando o corpo. É uma farsa. Quanto mais pareço relaxado, mais ela fica impaciente.

Minutos depois, a garçonete volta com meu cartão de crédito e o recibo. Eu anoto a gorjeta dela no recibo do restaurante e muito lentamente me levanto, visto o casaco, me espreguiço erguendo os braços bem alto, finjo bocejar...

— Porra, dá pra andar logo!

Sabia que ela não ia aguentar muito tempo. Rio, pego sua mão e saímos do restaurante.

Quando chegamos ao hotel, Camryn para no saguão.

— Pode subir. Eu subo daqui a pouco.

É óbvio que ela está armando alguma coisa, mas como é meu aniversário, entro no jogo dela, lhe dou um beijo no rosto e tomo o elevador. Mas assim que entro no quarto, sou eu que começo a ficar impaciente.

Não preciso esperar muito até que ela entra no quarto, segurando uma guitarra nova.

Eu fico de pé assim que a vejo.

— Uau...

Seu sorriso é doce e meigo, até envergonhado. Como se uma pequena parte dela tivesse medo de que eu não vá gostar.

Ando direto até ela.

— Feliz aniversário, Andrew — ela diz, me entregando a guitarra.

Coloco uma mão no braço, a outra no corpo e admiro a guitarra com um sorriso imenso. Fininha. Linda. Perfeita. Virando-a para ver a parte de trás, noto uma escrita prateada em cursivo no braço que diz:

Ele arrancou lágrimas de ferro de Plutão

e fez o inferno dar o que buscava o coração.

Um verso de uma das várias versões da história de Orfeu e Eurídice. Eu estou sinceramente sem palavras.

— Você gostou?

Eu olho para ela.

— Eu adorei. É perfeita.

Ela desvia o olhar, corando um pouco.

— Bom, eu não entendo nada de guitarras. Espero que não seja uma marca vagabunda nem nada disso. O cara da loja de instrumentos musicais me ajudou a escolher. Aí precisei esperar alguns dias pra fazer a inscrição, que eu achei que nem ia dar certo porque teve primeiro um problema, depois outro, e...

— Camryn — digo, interrompendo sua tagarelice nervosa. — Nunca recebi um presente de aniversário melhor na minha vida. — Atravesso o espaço entre nós e beijo suavemente seus lábios.


Camryn


22

ALGUM LUGAR DA Interstate 75 — maio

Estamos na estrada há meses. Lá por março já tínhamos nos acostumado tanto a ir de um hotel para o outro que isso se tornou natural. Um quarto diferente a cada semana, uma cidade diferente, uma praia diferente, tudo diferente. Mas por mais que tudo seja diferente, cada vez que entramos, é como se estivéssemos passando pela porta de uma casa onde moramos há anos. Eu jamais teria imaginado que chamaria um quarto de hotel de “casa”, ou que seria tão fácil se acostumar à vida na estrada como foi para nós. Às vezes é difícil, mas tudo é uma experiência, e eu não mudaria nada.

Mas fico me perguntando se o longo inverno não me afetou. Isso porque já me peguei sonhando acordada com morar numa casa em algum lugar, levando uma vida caseira com Andrew.

É, tenho certeza de que foi só o inverno.

São duas da manhã, e nosso carro quebrou em algum lugar do sudoeste da Flórida, num longo trecho de estrada deserta. E está caindo um dilúvio. Chuva aos baldes. Pedimos um guincho há uma hora, mas por algum motivo ele ainda não chegou.

— Tem um guarda-chuva no carro? — pergunto por cima do estrondo da chuva no teto. — Eu posso segurar enquanto você conserta o motor!

— Tá um breu lá fora, Camryn — ele responde, gritando tanto quanto eu. — Mesmo com uma lanterna, duvido que eu fosse conseguir. Pra começar, precisaria descobrir qual é o defeito.

Eu afundo mais no banco da frente e apoio os pés no painel, com os joelhos dobrados junto ao corpo.

— Pelo menos não tá frio — comento.

— A gente vai se virar por aqui esta noite — ele declara. — Não vai ser a primeira vez que dormimos no carro. Talvez o guincho chegue antes de amanhecer, e se não chegar, eu conserto o carro quando estiver conseguindo enxergar.

Ficamos em silêncio por um momento, ouvindo a chuva batendo no carro, os trovões ecoando como ondas através das nuvens. Finalmente, ficamos tão cansados que vamos para o banco de trás, nos encolhemos nele juntos e tentamos dormir. Depois de um tempo, quando fica claro que ambos estamos desconfortáveis e o espaço não é suficiente para nós dois, Andrew passa para o banco da frente. Mesmo assim, não conseguimos pegar no sono. Eu o ouço se revirando por algum tempo, e então ele pergunta:

— Onde você se vê nos próximos dez anos?

— Não tenho certeza — respondo, olhando para o teto do carro. — Mas o que sei é que o que eu fizer, quero fazer junto com você.

— Eu também — ele diz do banco da frente, deitado como eu estou, agora, de costas, olhando para cima.

— Você pensou em alguma coisa específica? — pergunto, imaginando aonde ele quer chegar com isso. Troco o braço esquerdo pelo direito, enfiando-o embaixo da cabeça.

— Pensei. Quero morar num lugar quente e sossegado. Às vezes imagino você na praia, descalça na areia, com a brisa soprando seu cabelo. Eu tô sentado embaixo de uma árvore não muito longe, dedilhando minha guitarra...

— Aquela que eu te comprei?

— Claro.

Eu sorrio e continuo escutando, imaginando a cena.

— E você tá segurando a mão dela.

— A mão de quem?

Andrew fica em silêncio por um momento.

— Da nossa menina — ele diz num tom distante, como se sua mente estivesse indo um pouco mais longe do que a minha.

Eu engulo em seco e sinto um nó se formando na minha garganta.

— Gosto dessa imagem — digo. — Então você quer parar de viajar?

— Um dia. Mas só quando a gente sentir que é certo. Nem um dia antes.

Uma lufada de vento atinge a lateral do carro, e um trovão alto faz o chão tremer.

— Andrew? — pergunto.

— Sim?

— Número três, pra acrescentar à nossa lista de promessas. Se a gente chegar à velhice, ficar com dor nos ossos e não puder dormir na mesma cama, me promete que nunca vamos dormir em quartos separados.

— Tá prometido — ele responde, com um sorriso na voz.

— Boa noite — eu digo.

— Boa noite.

E quando pego no sono, minutos depois, sonho com aquela praia quente e Andrew me olhando andar pela areia, com uma mãozinha segurando a minha.

~~~

O guincho não veio. Acordamos na manhã seguinte, entrevados e doloridos, mesmo tendo um banco para cada um.

— Vou encher aquele cara do guincho de porrada, se ele aparecer — Andrew rosna debaixo do capô.

Ele está ocupado usando uma chave inglesa... não vou nem fingir que sei o que é aquilo. Ele está consertando o carro. Isso é tudo o que sei. E está de péssimo humor. Eu só fico por perto para ajudá-lo quando ele precisa de algo, e evito dar uma de loura burra, perguntando o que é essa rebimboca ou pra que serve aquela parafuseta. A verdade é que não me importa. Além disso, só ia deixá-lo mais estressado ter que explicar.

Mas o sol apareceu. E está quente! Até parece que eu morri e fui pro céu!

Fico saltitando nas poças de chuva da noite passada, encharcando meus chinelos de dedo. Não sei o que deu em mim, além da simples mudança de clima, mas levanto os braços acima da cabeça e olho para o céu, rodopiando sem parar no meio da estrada.

— Quer fazer o favor de me ajudar? — Andrew resmunga.

Saltito para perto dele e dou um beliscão de brincadeira na sua bunda, porque estou de ótimo humor e não consigo evitar. Mas então, bang, Andrew leva um susto com o beliscão e bate a cabeça na parte de baixo do capô. Eu me encolho e ponho a mão na boca.

— Poxa, amor! Desculpa! — Estendo a mão para Andrew, puto da vida, revirando aqueles olhos verdes, mas então ele os fecha, enche as bochechas de ar e bufa devagar.

Agarro a cabeça dele, esfrego e beijo o seu nariz. Não consigo parar de sorrir, mas não estou rindo dele, só tentando fazer cara de gatinho do Shrek.

— Tá desculpada — ele diz, apontando para o motor. — Preciso que você segure esta peça aqui um momento.

Eu vou para o outro lado, olho debaixo do capô e enfio a mão no lugar, guiada pelos seus dedos.

— Isso, aí mesmo — ele diz. — Agora segura.

— Por quanto tempo?

— Até eu mandar soltar — ele responde, e vejo o sorriso começando a se formar no canto de sua boca. — Se você soltar, o cárter vai cair e a gente vai ficar parado aqui um tempão.

— Tá, então vai logo — digo, já sentindo um mau jeito começando a se formar no meu pescoço.

Ele vai até o porta-malas e pega uma garrafa d’água. Lentamente, abre a tampa. Toma um gole. Olha para a paisagem. Toma mais um gole.

— Andrew, você tá me zoando? — Eu olho de baixo do capô levantado, tentando vê-lo o melhor que posso.

Ele apenas sorri. E toma mais um gole.

Cacete, ele tá me zoando! Eu acho...

— Não solta. É sério.

— Besteira — eu insisto e começo a mover os dedos, mas decido não soltar. — Você tá dizendo a verdade? Sério mesmo?

— Claro que tô. O cárter vai cair e ainda é capaz de te molhar inteira de óleo de motor. É difícil pra cacete limpar aquela porra da pele.

— Minhas costas estão começando a doer — reclamo.

Ele demora uma eternidade, e quando estou a ponto de soltar, ele vem por trás de mim e me segura pela cintura, me tirando de perto do motor. Com uma mão, ele passa uma meleca preta na minha bochecha. Eu grito e dou um empurrão nele.

— Eca! Puta que pariu, Andrew! E se eu não conseguir limpar essa droga? — Estou realmente fula da vida, mas uma pequena parte de mim não resiste ao sorriso dele.

— Dá pra limpar, sim — ele diz, voltando para baixo do capô. — Agora entra no carro e liga a ignição quando eu mandar.

Rosno para ele antes de fazer o que ele pede, e rapidinho o Chevelle está funcionando de novo e estamos a caminho de St. Petersburg, a apenas uma hora dali.

Hoje parece um dia de verão, e queremos que não acabe nunca. Depois de arranjar um quarto de hotel e tomar um banho tão necessário, vamos para a loja de departamentos mais próxima, comprar um calção de banho para ele e um biquíni para mim, para irmos à praia nadar.

Ele insiste para que eu leve um biquíni preto minúsculo com estrelinhas prateadas, mas não é ele que vai ter que ficar puxando aquele fio dental de dentro do meu rabo a cada cinco segundos. Por isso compro um vermelho, bonitinho, que cobre um pouco mais.

— Acho que foi melhor você ter levado esse mesmo — ele diz quando entramos no carro no estacionamento da loja.

— Por quê? — pergunto, sorrindo e tirando os chinelos.

— Porque eu ia ter que quebrar a cara de uns sujeitos. — Ele dá ré e saímos do estacionamento.

— Só por olharem pra mim? — pergunto rindo, um pouco incrédula.

Ele inclina a cabeça para o lado e olha para mim.

— Não, acho que não. Na verdade, acho excitante quando outros caras olham pra você.

— Eca! — franzo o nariz.

— Não desse jeito! — ele diz. — Caramba! — Balança a cabeça, como que para dizer INacreditável, e ganhamos a rua, que está cheia de carros de turistas. — É que me sinto bem, sabe, quando tô com você. Isso faz maravilhas pelo ego de um cara.

— Ah, então sou só um troféu pra você? — Cruzo os braços e sorrio para ele.

— É, amor, só tô com você por isso. Achei que você já tivesse percebido.

— Tá, então acho que não é segredo que eu tô com você pelo mesmo motivo.

— Ah, é? — ele pergunta, me olhando de soslaio antes de voltar a prestar atenção na estrada à sua frente.

— É — eu confirmo, apoiando a cabeça no encosto. — Só tô com você pra fazer inveja na mulherada. Mas à noite, fico sonhando com o amor da minha vida.

— E quem seria ele?

Estufo os lábios e olho ao meu redor, depois para ele, com ar brincalhão.

— Bom, não vou dizer o nome dele, porque não quero que você tire satisfação com ele e leve porrada. Mas posso dizer que ele tem cabelo castanho, olhos verdes lindos e umas tatuagens. Ah, e ele é músico.

— É mesmo? Bom, pelo visto ele é demais, então por que me usar como troféu?

Eu dou de ombros, porque não consigo pensar numa boa resposta.

— Vai, pode me contar — ele insiste. — Eu nem conheço esse cara mesmo.

— Desculpa — digo olhando-o —, mas não falo dele pelas costas.

— Tudo bem — ele diz sorrindo. — Quer saber?

— O quê?

Andrew sorri maldosamente, e eu não gosto nem um pouco.

— Eu me lembro de umas coisinhas da nossa primeira viagem que você não chegou a fazer.

Oh-oh...

— Nem faço ideia do que você tá falando — eu minto.

Ele tira a mão direita do volante e a apoia na perna. Aquele seu olhar de desafio está ganhando força, e eu tento não tornar meu crescente nervosismo óbvio demais.

— É, acho que você me deve uma bunda de fora na janelinha, e ainda não testemunhei você comendo um bicho. O que prefere? Um gafanhoto? Um grilo? Uma minhoca? Ou talvez uma aranha tremedeira. Será que tem aranhas tremedeiras aqui na Flórida?

Eu fico toda arrepiada.

— Desiste, Andrew — digo, balançando a cabeça. Eu apoio o pé na porta e enrolo minha trança nos dedos, tentando disfarçar a preocupação. — Não vou fazer isso. Além do mais, isso foi na primeira viagem, e você não pode transferir coisas daquela viagem pra essa. Devia ter me obrigado a fazer quando teve chance.

Andrew continua sorrindo, como o merdinha malicioso que ele é.

— Não — digo de novo, bem séria.

Eu olho para ele.

— Não! — repito uma última vez, e ele fica rindo.

— Tudo bem — ele diz, voltando a segurar o volante com as duas mãos. — Mas valeu a tentativa. Não pode me culpar por tentar.

— Acho que não.

Andrew

Passamos o dia inteiro nadando e tomando sol na praia. Vemos o sol se pôr no horizonte e finalmente as estrelas, quando elas ganham vida na escuridão. Uma hora depois que escurece, encontramos um grupo de pessoas da nossa idade. Eles estavam na praia perto de nós havia algum tempo, curtindo.

— Vocês são daqui? — o cara alto com o braço direito cheio de tatuagens pergunta.

Um dos casais se senta na areia perto de nós. Camryn, sentada no meio das minhas pernas, endireita o corpo e presta atenção.

— Não, a gente é de Galveston — respondo.

— E Raleigh — Camryn completa.

— A gente é de Indiana — diz a garota de cabelo preto, se sentando. Ela aponta para os outros, que ainda estão de pé. — Mas eles moram aqui.

Um dos outros caras abraça a namorada.

— Eu sou Tate, esta é Jen — ele aponta para a namorada, depois para os outros de pé ali perto. — Johanna. Grace. E aquele é meu irmão, Caleb.

Os três acenam e sorriem para nós.

— Eu sou Bray — a garota de cabelo preto perto de Camryn diz. — E este é o meu noivo, Elias.

Camryn se endireita mais e espana a areia das mãos, esfregando-as.

— Prazer — ela responde. — Eu me chamo Camryn e este é meu noivo, Andrew.

Elias aperta a minha mão.

Tate, o cara tatuado, diz:

— A gente tá indo pra um lugar reservado, numa praia a meia hora daqui. É ótimo pra uma balada. Bem isolado. Se vocês quiserem, podem ir com a gente.

Camryn vira um pouco o corpo para olhar para mim. Nós dois conversamos com os olhos por um momento. De início, eu não estava com muita vontade de ir, mas ela parece querer muito. Fico de pé e a ajudo a levantar.

Eu me viro para Tate.

— Tá. A gente segue vocês.

— Show de bola — ele diz.

Camryn e eu pegamos nossas toalhas e a sacola que trouxemos com carne-seca, água mineral e filtro solar, e seguimos Tate e seus amigos da praia até o estacionamento.

E agora estamos de novo no carro e podemos ser espontâneos. Não estou muito tranquilo com essa porra, porque faz muito tempo que não saio com ninguém além de Camryn, mas eles parecem bastante inofensivos.

A tal viagem de meia hora acaba levando uns 45 minutos.

— Agora não faço mais ideia de onde a gente tá.

Pegamos uma estrada escura depois de sair da rodovia principal há no mínimo vinte minutos, o Jeep Sahara deles queimando o chão na nossa frente a 120 por hora. Consigo acompanhar o ritmo sem problemas, mas não costumo correr tanto em território desconhecido à noite, quando não dá pra avistar de longe a polícia escondida nas laterais da estrada. Se eu for multado a culpa é minha, mas posso encher o tal Tate de porrada mesmo assim, só por uma questão de princípio.

— Pelo menos a gente tá com o tanque cheio — ela diz. Depois ri, estica o pé para fora da janela e continua: — Vai ver que eles estão planejando ir pra uma cabana sinistra no meio do mato e matar a gente lá.

— Ei, eu também pensei nisso — digo, rindo junto com ela.

— Bom, eu confio em você pra me proteger — ela brinca. — Não deixa nenhum deles fazer picadinho de mim, nem me obrigar a ver Honey Boo Boo.

— Pode deixar. O que me lembra do número quatro na nossa lista de promessas: se um dia eu me perder ou desaparecer, prometa que não vai parar de me procurar exatamente por 365 dias. No dia 366, aceite que se eu estivesse vivo, já teria dado um jeito de voltar pra você, e que portanto tô morto faz tempo. Quero que você siga com sua vida.

Ela se ergue do banco, puxando o pé para dentro do carro.

— Não gostei disso. Tem gente que desaparece e é encontrada anos depois, viva e saudável.

— É, mas não é o meu caso. Pode acreditar, se passar um ano, eu morri.

— Tá, tudo bem — ela diz, afastando o cinto de segurança e chegando perto de mim. Ela encosta a cabeça no meu ombro. — Só se você topar fazer o mesmo por mim. Um ano. Nem um dia a mais.

— Prometo — eu digo, mas é uma mentira deslavada. Eu continuaria procurando por ela até morrer.


Camryn


23

NÃO TEM PROBLEMA mentir sobre algumas coisas. Essa “promessa” é uma delas. De jeito nenhum eu conseguiria parar de procurá-lo depois de um ano. Na verdade, jamais iria parar de procurar. Esse pacto cheio de promessas que juramos manter é importante para nós dois, mas acho que pra certas coisas, vou ter que concordar abertamente e depois fazer o que eu quiser, caso aconteçam.

Além disso, tenho a impressão de que ele também está mentindo.

Andrew não sabe, mas vi aquela garota de cabelo preto, Bray, algumas horas antes, nos banheiros perto da praia. Ela acabou entrando na minha cabine depois de mim. Não chegamos a conversar, só nos cruzamos com um sorriso amigável e mais nada. Acho que foi isso que a motivou a fazer seus amigos nos convidarem para a balada.

Acho que vai ser divertido. Andrew e eu passamos 100% do nosso tempo sozinhos um com o outro, e imagino que seja bom para os dois sair um pouco do casulo e socializar mais com outras pessoas. E ele não levantou nenhuma objeção, então acho que ele também supõe que não vai fazer mal nenhum.

A viagem pro tal lugar “reservado” parece levar uma hora.

O jipe deles vira à esquerda numa estrada parcialmente pavimentada e, quanto mais avançamos, mais o asfalto fica esburacado. Os faróis do carro deles se agitam na escuridão diante de nós, até que a estrada arborizada se abre numa grande clareira de areia e pedras. Andrew para ao lado deles e desliga o motor.

— Bom, é isolado mesmo — eu comento ao sair do carro.

Andrew chega perto de mim, olhando para a praia deserta. Ele segura a minha mão.

— A gente pode voltar agora, ainda dá tempo — ele me provoca. — Depois que nos tirarem de perto do carro, pode ser a última vez que vamos nos ver. — Ele aperta a minha mão e me puxa mais para perto, brincando.

— Acho que vamos sobreviver — decido, quando o último do grupo sai do jipe e nos encontra atrás dos carros.

Tate abre a porta de trás do jipe, tira um isopor gigante e o joga na areia.

— Tá cheio de cerveja aqui — ele diz, erguendo a tampa e mexendo dentro.

Ele joga uma garrafa de Corona para Andrew. Não é sua favorita, eu sei, mas ele também não chega a recusar.

Bray e o noivo, nem lembro mais o nome dele, se aproximam de mim, enquanto Tate destampa outra garrafa de Corona e me entrega.

Eu aceito.

— Obrigada.

Andrew abre a tampa da sua com o abridor de garrafas do chaveiro.

— Se vocês têm um cobertor, é bom trazer — Tate diz. Sua namorada se junta a ele, sorrindo para mim ao passar entre nós com seu biquíni branco minúsculo. — E tenho um som da porra no carro — ele acrescenta, dando tapinhas no jipe —, então música também não vai ser problema.

Andrew abre o porta-malas e pega o cobertor que sempre leva no carro, o mesmo que usamos na noite em que tentamos dormir naquele campo julho passado. Só que agora, graças a mim, ele foi lavado e não está fedendo a óleo e fumaça de carro.

— Cadê meu short? — pergunto, remexendo no banco de trás.

— Aqui — Andrew diz do porta-malas. Quando saio do carro, ele joga o short para mim e eu o apanho no ar.

— Não pretendo nadar nesse abismo à noite — digo, vestindo o short por cima do meu biquíni vermelho.

Ouvindo o que eu falei, Bray diz:

— Ainda bem que não sou só eu!

Sorrio para ela por cima do teto do Chevelle e fecho a porta.

— Você já veio aqui com eles?

Tate e os outros estão indo para a praia agora, carregando o isopor, sacolas de praia e outros objetos. Eles deixam as portas do jipe abertas, com os alto-falantes despejando rock no último volume.

— A gente veio ontem — Bray conta —, mas Elias logo ficou bêbado e começou a pôr os bofes pra fora, por isso eu tive que voltar dirigindo pro hotel bem cedo.

Elias, isso, esse é o nome do noivo dela. Ele balança a cabeça e lança um olhar sarcástico de obrigado-por-contar-pra-todo-mundo para ela.

Andrew e eu andamos ao lado de Bray e Elias, de mãos dadas, até onde todos já estão acampando não muito longe, perto da água. Quando chegamos e estendemos nosso cobertor na areia, Tate risca um fósforo e o joga num monte de galhos. A chama acende o fluido de isqueiro que ele espalhou antes na fogueira. Uma coluna de fogo alta e brilhante espirala por cima do monte e ilumina a escuridão ao nosso redor com uma luz laranja dançante. O calor das chamas já está chegando em mim, por isso afasto um pouco mais nosso cobertor da fogueira, antes que eu e Andrew sentemos nele. Bray e Elias também se sentam sobre duas toalhas de praia gigantes. Tate, o irmão dele e as outras três garotas dividem uma grande colcha. Enfio o fundo da minha garrafa de cerveja na areia ao meu lado, para que ela fique de pé.

Tate me lembra aqueles surfistas da Califórnia, muito louros e bronzeados. Como todos os outros caras, incluindo Andrew, Tate se senta com os joelhos dobrados e os braços apoiados neles. E enquanto estudo todos discretamente, logo vejo algo com o rabo do olho que me faz ficar territorial na hora. A loura ao lado do irmão de Tate, que duvido que seja namorada dele porque os dois não parecem estar juntos, está olhando para Andrew com olhos famintos. Não quero dizer de um jeito inocente, de quem só vai olhar sem tocar. Não, essa garota tentaria dormir com ele assim que eu me afastasse.

Quando ela nota que a estou observando, desvia o olhar e começa a conversar com a garota ao seu lado.

Não tenho com que me preocupar com relação a Andrew, mas se ela me desrespeitar sabendo que ele é meu noivo, não vou pensar duas vezes antes de enchê-la de porrada.

Eu me pergunto se Andrew percebeu.

Andrew

Espero que Camryn não tenha percebido o jeito como aquela garota me olhou agora. Se eu e ela ficássemos cinco segundos sozinhos aqui, ela tentaria dar pra mim. Nem fodendo eu ia querer isso, mas este luau já ficou um pouco mais interessante.

Aposto minha bola esquerda que ela já dormiu com Tate e o irmão dele. Talvez não com Elias — ele parece o tipo fiel —, mas ela daria pra ele também, se ele topasse.

Puta merda, ela olhou pra mim de novo.

Olho rapidamente para Camryn para não cruzar olhares com a menina e não dá outra, Camryn está com aquele sorriso revelador no rosto. É, com certeza ela viu.

Eu pego Camryn no colo e a coloco no meio das minhas pernas.

— Não se preocupe, amor — sussurro no seu ouvido, e então beijo seu pescoço para que a garota veja.

— Eu não tô preocupada — Camryn diz, deitando sobre o meu peito.

Não está preocupada comigo, claro, mas sinto a tensão territorial emanando de seu corpo. Cacete, só a ideia de vê-la pulando em cima daquela garota por minha causa... Tudo bem, eu não deveria pensar nisso. Fodeu. Tarde demais.

— Essas tatuagens são iradas — Tate diz, apontando.

Todos estão olhando a tatuagem em mim e Camryn. Ela se ergue do meu peito para que vejam melhor.

— Pode crer — Bray diz, encantada. Ela rasteja pela areia mais para perto de nós. — Eu tava curiosa mesmo pra ver.

A loura que estava me olhando agora há pouco ri de Camryn, embora Camryn não note, porque está ocupada mostrando a tatuagem para Bray.

Uso essa oportunidade em meu benefício.

— Vira pra cá, amor, mostra como elas se encaixam. — Eu viro Camryn no meu colo e me deito de costas, deitando seu corpo sobre o meu.

O grupo nos olha com atenção, o rosto da loura ficando um pouco amargo quando a encaro diretamente enquanto aperto meu corpo contra o de Camryn. Alinhamos nossas tatuagens para formar o desenho de Orfeu e Eurídice; minha Eurídice usando uma veste branca comprida e transparente, colada ao corpo pelo vento, dobras de tecido sopradas atrás dela, que estende os braços para o Orfeu tatuado nas costelas de Camryn. Bray olha atentamente os detalhes, seus olhos pretos arregalados de assombro. Ela olha novamente para Elias e agora ele parece nervoso, como se tivesse medo de que Bray vá arrastá-lo para o tatuador mais próximo amanhã.

— Isso. É. Demais — Bray diz. — Quem são eles?

— Orfeu e Eurídice — respondo. — Da mitologia grega.

— Uma história trágica de amor verdadeiro — Camryn acrescenta.

Eu a abraço mais forte.

— Bom, vocês dois não parecem ter nada de trágico — Tate diz.

Abraço Camryn ainda mais forte, nós dois pensando em coisas particulares, que é melhor guardar só para nós. Eu beijo o alto do seu cabelo.

Bray se afasta, ainda sentada com os joelhos afundados na areia.

— Eu achei linda. E é bom que seja, porque sei que isso dói um bocado.

— É, doeu mesmo — Camryn diz. — Mas valeu cada hora de sofrimento.

Algum tempo depois, Camryn e eu já tomamos pelo menos três Coronas cada um, mas só ela demonstra. Está um pouco alta, mas só o bastante para ficar mais tagarela.

— Eu sei! — ela diz para Bray, a de cabelo preto. — Vi um show deles com minha melhor amiga, Nat, e eles são demais! Não tem muitas bandas que conseguem tocar quase como no disco.

— É verdade — Bray diz, terminando sua cerveja. — Você disse que é da Carolina do Norte?

Camryn levanta as costas do meu peito e se senta de pernas cruzadas na areia.

— Sou, mas Andrew e eu não moramos mais lá.

— Onde vocês moram? — Tate pergunta. Ele puxa um longo trago do seu cigarro e segura a fumaça enquanto fala. — No Texas?

Todos se viram para me olhar quando respondo.

— Não, a gente meio que... viaja.

— Viaja? — Bray pergunta. — Como, vocês têm um trailer?

— Não exatamente — Camryn diz. — A gente só tem o carro.

A loura que está me olhando o tempo todo entra na conversa:

— Por que vocês estão viajando?

Noto imediatamente por sua expressão que ela está se esforçando ao máximo para chamar a minha atenção, mas eu a ignoro e respondo, olhando para Bray, que está ao nosso lado: — A gente toca junto.

— Como, vocês têm uma banda? — a loura pergunta.

Eu olho para ela, desta vez.

— Mais ou menos — digo, mas é só o que eu respondo, e volto a dar atenção para Bray.

— Que estilo de música vocês tocam? — pergunta Caleb, o irmão de Tate. Ele está se engraçando com a outra garota desde que chegamos. Provavelmente também não estão juntos, mas ele com certeza vai se dar bem hoje.

— Rock clássico, blues e folk, coisas assim — respondo, tomando um gole de cerveja.

— Vocês precisam tocar pra gente! — Bray diz, empolgada.

Ela está claramente tão alta quanto Camryn, e as duas parecem estar se dando bem.

Camryn vira na areia para me olhar, de olhos arregalados e cheios de entusiasmo.

— A gente podia. O violão tá no banco de trás.

Eu balanço a cabeça.

— Não, não tô a fim agora.

— Ah, vai, amor, por que não?

Aí estão a cara de gatinho do Shrek e o jeito de choramingar que é a marca registrada de Camryn, que nunca falham em me obrigar a fazer tudo o que ela quer. Mas eu enrolo mais um pouco, talvez esperando que ela desista e diga deixa pra lá.

É claro que ela não desiste.

— É, cara, se você trouxe um violão e sabe tocar, vai ser show — Tate diz.

A essa altura, todos estão me olhando — até Camryn, que na verdade é a única pela qual vou fazer isso.

Cedendo, eu me levanto, vou até o carro e volto trazendo o violão.

— Você vai cantar comigo — digo para Camryn quando me sento ao seu lado.

— Nãão! Eu tô muito bêbada! — Ela me beija na boca e vai se sentar perto de Bray e Elias, para me dar um pouco de espaço, acho.

— Tudo bem, o que você quer que eu cante?

A pergunta era para Camryn, mas Tate responde:

— Ei, o que você quiser, cara.

Penso em várias canções por um minuto e finalmente escolho uma porque é bem curta. Mexo um pouco nas cordas, afino o violão rapidinho e começo a tocar “Ain’t No Sunshine”. No início, estou pouco me fodendo se está bom, mas como sempre, depois que começo, me torno outra pessoa e dou tudo de mim. Meus olhos ficam fechados a maior parte da canção, mas sempre consigo sentir a energia das pessoas ao meu redor, se elas estão curtindo ou não.

Todas estão.

No segundo refrão, olho nos olhos de Camryn enquanto dedilho as cordas. Ela está sentada na areia sobre os joelhos, seu corpo balançando de um lado para o outro. As outras garotas fazem o mesmo, totalmente imersas na música. Eu canto o último refrão, e essa canção basta para que eu queira tocar mais. Bray mal consegue se segurar, me dizendo o quanto foi bom e dando bastante atenção a Camryn, o que a faz ganhar pontos comigo. Diferente da loura, que está me olhando um pouco mais do que antes.

— Porra, cara, você não tava brincando — Tate diz.

Ele acende um baseado.

— Toca outra — Bray diz, encostando-se em Elias de novo, que a abraça por trás.

Tate passa o baseado primeiro para Camryn. Ela apenas o olha por um segundo, sem saber se deve aceitar ou não. Vejo uma expressão fugidia de dor em seu rosto; eu sei que ela está se lembrando do seu momento de fraqueza com os comprimidos. Ela balança a cabeça.

— Não, obrigada, acho que hoje só vou beber.

Eu sorrio por dentro, orgulhoso de sua decisão. E quando Tate o oferece para mim em seguida, faço o mesmo, não porque eu não queira dar uns tapas, mas porque não consigo curtir assim quando Camryn não quer.

Nunca fui muito fã de maconha, mas curto dar um pega de vez em quando. Agora não é o momento.

Toco mais algumas canções em volta da fogueira. Camryn finalmente canta uma comigo, e depois quero só relaxar com a minha garota e curtir essa onda tão rara. Deixo o violão ao nosso lado no cobertor e puxo Camryn novamente para o meu colo.

O irmão de Tate está chupando a língua daquela garota e bolinando-a há algum tempo. Eles não falam muito, por motivos óbvios. A loura que antes estava me olhando finalmente se tocou, eu acho. Ou isso, ou já está chapada demais para se importar comigo.

A música do jipe de Tate aumenta de novo, e ele volta de lá trazendo uísque, uma garrafa de dois litros de Sprite e uma pilha de copos descartáveis. A namorada dele começa a misturar as bebidas e distribuir os copos.

— Bebe aí, cara — Tate aconselha. — Nem esquenta se vai dirigir depois. A polícia não conhece esse lugar.

— Tá, eu aceito um copo — respondo.

Olho para Camryn, lembrando sua expressão quando Tate lhe passou o baseado.

— Se você não quiser, eu não bebo — digo.

À parte não querer que ela sinta que está traindo a si mesma bebendo demais, também não quero que encha a lata a ponto de ficar um lixo na manhã seguinte.

— Não, tudo bem, amor. Só vou tomar uma dose, tá?

Ela sorri docemente para mim como se estivesse esperando a minha permissão, o que eu acho bonitinho pra cacete.

— Tá — eu cedo, por não querer magoá-la, e ela aceita o copo da namorada de Tate.

Todos relaxamos, bebemos e conversamos sobre tudo quanto é assunto por um tempo enorme. Camryn está gargalhando, sorrindo e falando com Bray sobre absorventes íntimos, um assunto que não faço ideia de como surgiu, nem quero saber, mas estamos nos divertindo muito. Músicas de bandas que nunca ouvi tocam alto no som perto dali, e fico intrigado com as últimas canções, que tenho certeza de que são com o mesmo cantor.

— Quem são esses? — pergunto a Tate.

Ele desvia o olhar da namorada, que está com a cabeça no seu colo.

— Quem? A banda?

— Sim — digo. — Eles são muito bons.

— Isso, meu amigo, é Dax Riggs. Tá fazendo carreira solo agora. Ele começou no Acid Bath, acho... — Ele parece pensativo, como se não tivesse certeza. — Bom, ele tocou em vários grupos. Acid Bath e Agents of Oblivion são os mais conhecidos.

— Acho que já ouvi falar do Acid Bath — comento, tomando mais um gole de uísque com Sprite.

— Eu não me espantaria — Tate acrescenta.

— Preciso conhecer o som desse cara. Ele é desconhecido?

Camryn, abandonando a conversa sobre absorventes com Bray, se aproxima de mim e encosta a cabeça no meu ombro.

— É, ele nunca aderiu ao mainstream — Tate diz. — Ainda bem, porque o mainstream é uma bosta. Fico puto quando vejo um grupo legal se vendendo, fazendo comercial de pasta de dente e merdas assim.

Eu rio um pouco.

— Com certeza. Eu nunca assinaria um contrato com uma gravadora, nem se me oferecessem.

— Falou tudo, cara — Tate diz. — Depois que você assina, vira a putinha deles. Sua música não te pertence mais e você precisa abrir as pernas pro cuzão que assina seus cheques.

Tô começando a gostar desse cara. Só um pouquinho.

— Andrew, preciso fazer xixi — Camryn diz.

Eu olho para ela. Tirando o copo de sua mão, eu o deixo na areia.

— Também tô precisando dar uma mijada — digo tanto para ela quanto para Tate.

Tate aponta para a esquerda com outro cigarro entre os dedos e diz: — Vão praquele lado. Não tem vidro quebrado nem merda nenhuma no chão.

Deixo meu copo perto do de Camryn e a ajudo a levantar. Andamos pela areia até um lugar cheio de árvores e pedras, distante o suficiente para que ninguém nos veja.

— A gente vai ter que passar a noite aqui. Não tô em condições de voltar dirigindo.

Ela se agacha enquanto mijo a poucos metros dela.

— Eu sei. Acho que finalmente vamos dormir sob as estrelas, hein?

Estou rindo dela por dentro. Minha gata está tão bêbada que está até enrolando a língua.

— Pois é, acho que sim — concordo. — Mas é bom você saber que na verdade esta vez não conta porque você mal vai lembrar amanhã.

— Vou, sim.

— Nãão, não vai.

Ela quase cai depois de terminar e tentar ficar de pé. Eu a seguro pelo braço e passo o meu pela sua cintura. Então a beijo no alto da cabeça.

— Eu te amo tanto.

Não sei por que senti tanta vontade de dizer isso nesse momento, mas só de tê-la ao meu lado e saber que ela não está em condições de se cuidar esta noite, eu precisava dizer. Essas palavras estavam presas na minha garganta e, admito, eu estava começando a ficar engasgado com elas. Eu poderia culpar o álcool, mas não, mesmo completamente sóbrio, eu a amo pra cacete.

Ela passa os dois braços pela minha cintura, aninha a cabeça no meu peito quando começamos a voltar e me aperta.

— Eu também te amo.


24

À MEDIDA QUE a noite avança, as cenas do nosso pequeno grupo começam a mudar. As pessoas estão falando menos e se pegando mais. Bray e Elias estão deitados ao lado da fogueira. Tate e a namorada já poderiam estar transando; só falta tirarem a roupa. Por sorte, a loura sinistra me esqueceu e está ajudando a amiga a apalpar Caleb a uns dois metros e meio de mim e Camryn.

É, tenho certeza de que imagino no que isso vai dar. Nada de especial. Não é uma situação que eu ainda não tenha vivido, mas desta vez meu principal objetivo não é satisfazer duas garotas ao mesmo tempo. Só preciso manter Camryn longe dessa merda.

Quando começo a virar o corpo para falar com Camryn, que está deitada ao meu lado, o mundo todo some debaixo de mim. Tento levantar a cabeça. Eu acho. Sinto fadas dançando em cima dos meus olhos. Abertos.

— Caralho... — digo em voz alta, mas talvez não tenha dito. Talvez tenha sido só minha imaginação.

Eu levanto a mão diante do rosto e a lua parece estar aninhada entre meu polegar e meu indicador. Tento soltá-la, mas ela é pesada demais e empurra meu braço para baixo. Sinto meu cotovelo bater na areia como um haltere de 40 quilos.

Minha cabeça está rodando. A cor do fogo é azul, amarela e vermelho-escura. O som do oceano está triplicado em meus ouvidos, misturando-se ao crepitar da madeira no fogo e a alguém gemendo.

— Camryn? Cadê você?

— Andrew? Eu... eu tô aqui. Eu acho.

Nem sei dizer se era realmente a voz dela.

Fecho os olhos com força e abro de novo, tentando clarear a visão, mas percebo que não quero enxergar melhor. Estou sorrindo. Meu rosto parece tão esticado que por um instante tenho medo de que não vá parar de esticar e acabe rasgando no meio. Mas tudo bem.

Puta que me pariu... eu tô viajando. Que. Porra. Eles. Me deram pra beber?

Tento me levantar, mas quando acho que estou de pé, olho para baixo e percebo que nem me mexi. Tento de novo, com o mesmo resultado.

Por que não consigo levantar?!

— Caralho, Tate — ouço uma voz dizer, mas nem consigo dizer se é masculina ou feminina. — Que puta bagulho bom. Caraaalho... Tô vendo arco-íris e o escambau. É a porra do Reading Rainbow1...

Em seguida, quem disse isso começa a cantar o tema do Reading Rainbow.

Me sinto na cidade dos malucos, mas na verdade não quero ir embora.

Finalmente, eu me deito de costas e verifico duas vezes minha posição, apalpando a areia dos dois lados do corpo com as palmas das minhas mãos pesadas. Então olho para o céu cheio de estrelas e vejo que elas se movem para lá e para cá na escuridão, num balé poético.

O rosto de Camryn aparece sobre o meu peito, como um fantasma emergindo da neblina.

— Amor? — pergunto. — Você tá bem?

Estou preocupado com ela, mas não consigo parar de sorrir.

— Tô. Eu tô óooootima. Tô ótima.

— Deita aqui comigo — digo para ela.

Fecho os olhos quando sinto sua cabeça sobre o meu peito e sinto o cheiro do xampu que ela sempre usa, só que agora está muito mais forte. Tudo está mais forte. Cada ruído. A sensação do vento no meu rosto. Dax Riggs cantando “Night Is the Notion” ao fundo, em algum lugar que minha mente diz ser longe, mas o som está tão alto que parece que o jipe está encostado na minha cabeça. Consigo quase sentir o cheiro de borracha dos pneus.

E eu não consigo evitar. Começo a cantar “Night Is the Notion” o mais alto que posso. Não sei como já conheço a letra, mas conheço. Conheço, caralho. E parece que a canção dura horas, e eu nem ligo. Finalmente, paro de cantar, só fecho os olhos e sinto a música passar através de mim. E não me importa mais nada agora, a não ser o momento. E eu tô doido de tesão. Levo um segundo — eu acho — para perceber que meu pau está sentindo a mesma brisa que meu rosto sente. E é bom.

— Camryn? Quê? Tá.

Nem sei o que estou dizendo, ou se estou realmente dizendo alguma coisa. Minha mente me diz que preciso me certificar de que ela não está chapada a ponto de fazer um boquete na frente dos outros, mas ao mesmo tempo não quero que ela pare.

Eu fico sem fôlego e minha cabeça cai para o lado. Vejo Caleb em cima de uma das garotas, as coxas nuas dela apertadas ao redor do corpo dele, que sobe e desce. Desvio o olhar. Olho para o céu de novo. Traços de luz vão para um lado e para o outro com o movimento das estrelas. Estremeço quando sinto meu pau batendo no fundo da garganta dela.

Eu olho para baixo. Vejo uma cabeleira loura. Estendo a mão para tocá-la, parte de mim querendo afastá-la, outra parte querendo forçá-la a engolir mais fundo. Acabo escolhendo a segunda opção, mas quando jogo a cabeça para trás e vejo o rosto de Camryn ao lado do meu, ergo os ombros da areia.

— Sai de cima de mim, piranha! — consigo gritar.

Eu a chuto para longe e o barato muda completamente. Não estou mais curtindo.

Eu me obrigo a sentar, tento dar murros na cabeça com as mãos, esperando ficar sóbrio com o choque, mas não adianta porra nenhuma. Só consigo enfiar o pau de volta no short, olho para o outro lado da fogueira e vejo aquela piranha nojenta já desmaiada perto de Caleb. Não sei quanto tempo passou, mas todos estão capotados, menos eu.

Estou em pânico, não consigo nem respirar. O que foi que aconteceu, porra?

Eu viro para o lado e abraço Camryn, forçando-a a ficar perto de mim, e não solto mais.

E essa é a última coisa de que me lembro.

Camryn

Estou enjoada. Meu Deus, eu nunca, nunca tive uma ressaca assim. O sol da manhãzinha e a brisa que vem do oceano me acordam. De início fico deitada ali, pois tenho medo de vomitar se me mexer. Minha cabeça está latejando, as pontas dos meus dedos estão dormentes, o resto do meu corpo treme, tomado pela náusea. Eu gemo e acabo de abrir os olhos, pressionando um braço horizontalmente sobre a barriga. Sei que de jeito nenhum vou conseguir sair desta praia sem antes vomitar por uns bons cinco minutos, mas tento me segurar o máximo que posso.

Minha bochecha está apertada contra a areia debaixo de mim. Sinto grãos grudados na pele. Com muito cuidado, limpo a areia com um dedo antes que ela entre no meu olho.

Ouço uma pancada, seguida por um estalo e gritos.

Apesar dos protestos do meu estômago, viro para o outro lado, olhando para o oceano.

— Sai de cima dele! — ouço uma garota gritar.

Isso me acorda ainda mais, e por uma fração de segundo me dou conta do quanto eu estava desacordada. Mas agora estou totalmente alerta. Levanto a cabeça da areia e vejo Andrew moendo Tate com os punhos.

— Andrew! — tento gritar, mas minha garganta está irritada e minha voz sai rouca, por isso só consigo balbuciar seu nome. — Andrew! — digo de novo, controlando melhor minha voz.

— Qual é o seu problema, caralho?! — Tate grita.

Ele está tentando se afastar de Andrew, mas Andrew continua avançando. Ele dá mais e mais socos, dessa vez derrubando Tate sentado na areia.

Então o irmão de Tate vem ajudar e soca o quadril de Andrew. Os dois caem longe de Tate e rolam vários metros. Andrew pega Caleb pela garganta e o levanta acima de seu corpo, jogando-o com força na areia, e está em cima dele em segundos. Ele dá três socos em Caleb antes que Tate chegue por trás, puxando-o para longe.

— Fica frio aí, porra! — Tate grita.

Mas Andrew gira o corpo e atinge seu queixo com um gancho, e eu ouço outro estalo de ossos de virar o estômago. Tate cambaleia para trás, segurando a mandíbula.

— Você drogou a gente! Eu vou te matar, caralho! — Andrew ruge.

Finalmente consigo ficar de pé, embora eu tropece uma vez antes de chegar perto de Andrew. Quando vou segurar o braço dele para puxá-lo, sou empurrada por trás e caio sentada. Nem sei o que aconteceu, mas por um segundo fico sem fôlego. Levanto a cabeça e vejo Caleb em cima de Andrew. Devo ter sido atingida quando Caleb atacou Andrew por trás.

Eu me levanto novamente da areia e vejo Elias se aproximando.

Em pânico, olho para meus dois lados e novamente para Elias. Tudo parece estar em câmera lenta. Os três vão se juntar contra Andrew? Ah, nem fodendo! Começo a agarrar Tate enquanto ele e Caleb estão esmurrando Andrew, mas sou empurrada para longe por Elias.

— Sai! — ele rosna para mim.

Andrew consegue se aguentar bem contra Tate e Caleb, ainda está de pé e trocando socos com os dois, mas se Elias entrar na briga, acho que ele não vai conseguir lutar contra os três.

Elias entra no bolo e não consigo entender quem está batendo em quem, quando um par de mãos me pegam pelas axilas por trás.

— Fica aqui comigo, garota — Bray diz.

No meio da minha confusão e pavor, vejo Elias esmurrando Caleb e o alívio toma conta do meu corpo, embora isso dure pouco.

A boca de Andrew está sangrando. Mas todos os quatro estão sangrando em algum lugar. A luta parece continuar para sempre, e a cada golpe que Andrew dá ou recebe, eu me encolho e fecho os olhos, querendo apenas bloquear tudo. Estou sentada na areia com Bray me abraçando por trás, porque ela ainda acha que vou tentar entrar na briga. Mas voltei a sentir que vou vomitar e mal consigo me mexer. Gotas de suor brotam na minha testa. Minha nuca está fria e úmida. O céu está começando a girar.

— Oh, não. Bray... acho que eu vou...

Eu perco o controle ali mesmo. Sinto meu corpo se desvencilhando com violência dela e minhas mãos se estendendo, afundando na areia. Minhas costas se arqueiam e descem, se arqueiam e descem, e eu vomito sem parar, sem parar. Meu Deus, por favor, faz isso parar. Eu nunca mais vou beber! Por favor, faz isso parar! Mas parece que eu nunca vou parar. Quanto mais vomito, mais meu corpo reage ao cheiro do vômito, ao som, ao sabor dele, e isso me faz vomitar ainda mais. Mal consigo ouvir a luta ao fundo por cima dos meus próprios ruídos, e dos estertores secos quando não resta mais nada no meu estômago para devolver. Finalmente, caio para o lado. Não consigo me mexer. Meu corpo treme incontrolavelmente, minha pele está fria e quente e pegajosa em todo lugar. Sinto que Bray está sentada ao meu lado.

— Você vai ficar bem — eu a ouço dizer. — Uau, aquele bagulho te zoou forte.

— O que era? — pergunto, e partes da noite anterior começam a voltar à minha memória.

Nem ouço se ela respondeu ou não à minha pergunta.

Lembro que tudo estava bem, era só uma bebedeira normal, até pouco depois que começamos a tomar o gim. E então, do nada, eu não conseguia mais enxergar o que estava à minha frente, porque tudo estava perto demais. Eu ficava tentando focar os olhos em coisas mais distantes, o oceano, as estrelas, as luzes dos barcos ao longe, sobre a água. Lembro que achei que um navio estava se aproximando de nós e que ia bater na praia. Mas eu não me importava. Eu achei... lindo. Ia matar a todos nós, mas era lindo. E lembro que ouvi Andrew cantando uma canção bem sexy. Deitei a cabeça no peito dele e fiquei ouvindo-o cantar. Eu queria subir em cima dele e tirar a roupa, e teria feito isso, se conseguisse me mexer.

E lembro...

Peraí.

Aquela piranha loura. Ela me perguntou... peraí.

Eu levanto o corpo da areia.

— Acho que você precisa ficar deitada um pouco — Bray diz.

Meus dedos tocam minha testa.

Lembro que ela estava sentada perto de mim e de Bray. Estava tão chapada quanto todos nós, mas eu não estava mais com ciúmes. Ela conversou com a gente um pouco, e eu não me importei.

À medida que as lembranças vão voltando, meu corpo começa a tremer mais.

Ela tentou me beijar. Acho que eu deixei...

Acho que vou vomitar de novo.

Eu encolho os joelhos e apoio os cotovelos em cima deles, afundando o rosto nas mãos. Ainda estou tão zonza. Sinto que ainda não acabei de vomitar. Não tenho aquela grande sensação de alívio que vem depois de passar mal. Não, a ânsia só ficou mais intensa, desta vez provocada pelos meus nervos.

O resto está voltando aos poucos, e embora eu queira me forçar a esquecer, não consigo.

Ela perguntou se podia dormir comigo e com Andrew. Sim, me lembro agora. Mas... meu Deus... pensei que ela quisesse dizer dormir, mas agora me dou conta de que estava tão chapada que não percebi que ela queria dizer sexualmente.

Eu disse que não me importava.

Então lembro que ela...

Eu perco o fôlego. Levo a mão à boca, com os olhos arregalados e ardendo por causa da brisa.

Lembro que ela fez um boquete em Andrew.

Tentando ficar de pé, sinto a mão de Bray nas minhas costas.

— Para, garota — ela diz, me puxando de volta para a areia. — Não vai lá. Você só vai se machucar.

Solto meu pulso da mão dela e tento ficar de pé de novo, mas os movimentos bruscos, junto com meus nervos em frangalhos, causam mais ânsia de vômito.

Então ouço Andrew de pé perto de mim.

— Cacete — ele diz para Bray. — Você pega uma garrafa d’água no isopor no banco de trás do meu carro?

Bray vai pegar a água.

Andrew me puxa para suas pernas assim que eu paro de tentar vomitar. Ele afasta meu cabelo dos olhos e da boca.

— Eles deram droga pra gente, amor — ele diz.

Meus olhos se abrem um pouco e o vejo em cima de mim, com as palmas das mãos nas minhas bochechas.

— Eu mato aquela vaca. Juro por Deus, Andrew.

A expressão dele é de uma pessoa atordoada. Acho que ele não sabia que eu tinha visto.

— Ela ainda tá desacordada. Amor, eu...

A culpa em seu rosto me corta o coração.

— Andrew, eu sei o que aconteceu — digo. — Sei que você achou que fosse eu. Vi o que você fez.

— Não importa — ele diz, cerrando os dentes. Seus olhos ficam rasos d’água. — Eu devia saber que não era você. Porra, me desculpa. Eu devia saber. — Suas mãos apertam meu rosto.

Estou para mandá-lo parar de se culpar quando Elias se aproxima.

— Desculpa, cara, a gente não sabia. Juro.

— Eu acredito — Andrew diz.

Bray volta com a água, e eu já estou recuperando um pouco das minhas forças. Levanto o corpo e fico sentada, encostada no peito nu de Andrew. Ele me abraça e me aperta tão forte, como se temesse que eu fosse levantar e sair correndo.

Então ele pega a garrafa de Bray, tira a tampa, joga um pouco d’água na mão e passa na minha testa e na minha boca. O frescor me alivia na hora.

— Olha, cara, desculpa — Tate diz, chegando por trás de nós. — A gente achou que vocês não iam ligar. Só pusemos um pouco na bebida de todo mundo. Fizemos uma presença. Não trouxemos vocês pra cá com más intenções.

Andrew consegue se afastar delicadamente de mim, mesmo assim tão rápido que mal noto sua ausência, e esmurra Tate de novo. Um estalo de ossos nauseabundo ecoa pelo espaço.

— Por favor, Andrew! — eu grito.

Elias segura Andrew e Caleb segura Tate, apartando-os.

Andrew deixa Elias segurá-lo por trás, mas depois se desvencilha e volta para mim, me ajudando a levantar.

— Vamos embora — ele diz, ele começa a me pegar no colo, mas eu balanço a cabeça, para que ele saiba que consigo andar sozinha.

Ele pega o violão e eu pego o nosso cobertor, e nós vamos para o Chevelle.

— Talvez fosse bom a gente dar uma carona pra Bray e Elias — digo.

Andrew joga o violão no porta-malas e pega o cobertor de mim, guardando-o também. Então ele vai para o seu lado do carro, estende os braços sobre o teto e apoia a cabeça entre eles. Ele respira fundo e dá um murro na lataria.

— Puta que pariu! — grita, dando outro murro.

Em vez de tentar chamá-lo à razão, decido deixar que ele se acalme sozinho. Olho para ele com ternura do outro lado do carro. Depois entro e fecho a porta. Ele fica ali mais um minuto, até que o ouço dizer:

— Se vocês quiserem, podem voltar com a gente.

Elias e Bray, carregando suas coisas, vêm até o carro e se sentam no banco de trás.

1 Programa infantil de incentivo à leitura da TV pública americana. (N.T.)


Andrew


25

NEM SEI COMO achei o caminho de volta tão facilmente. Acho que num certo momento eu nem me importava muito se nos perdêssemos. Mas volto sem virar uma esquina errada nem ter que parar e pedir informações. Os quatro não falamos muita coisa na volta. E do pouco que foi falado, não lembro nada.

Paramos no estacionamento do hotel e nos despedimos de Elias e Bray. Talvez eu tivesse agradecido a Elias ou desejado sorte para o resto da viagem, ou talvez até convidado os dois para saírem conosco à noite, mas dadas as circunstâncias, só consigo responder com um aceno quando eles agradecem pela carona.

Eu dou partida no carro e vou para o nosso lado do hotel.

Camryn ainda parece insegura sobre conversar comigo. Não com medo, apenas insegura. Eu não consigo nem olhar para ela. Me sinto um bosta pelo que aconteceu, e nunca vou me perdoar.

Camryn segura a minha mão e vamos direto para o nosso quarto. Eu abro a porta e começo a jogar nossas coisas nas mochilas.

— Não foi sua...

Eu a interrompo.

— Não. Por favor. Só... me dá um minuto...

Ela olha para mim tão desolada, mas balança a cabeça e concorda.

Logo estamos na estrada de novo, indo para o Norte pelo litoral. Destino: qualquer lugar, menos a Flórida.

Depois de dirigir por uma hora, o que aconteceu na noite passada não me sai da cabeça, e eu tento entender, de alguma forma. Eu saio da estrada e o carro roda até parar no acostamento. Está tão silencioso. Olho para baixo, depois pelo para-brisa. Percebo que estou com os nós dos dedos brancos de tanto apertar o volante. Finalmente, abro a porta e saio do carro.

Ando rapidamente pelo cascalho e então desço a encosta da vala, atravessando para o outro lado e indo direto para a primeira árvore.

— Andrew, para! — ouço Camryn gritar.

Mas eu continuo andando, e quando fico frente a frente com aquela merda de árvore, bato nela com tanta força quanto bati em Tate e Caleb. A pele de dois dos meus dedos se abre, o sangue escorre pelas costas da mão e entre os dedos, mas eu não paro.

Só paro quando Camryn entra na minha frente e empurra meu peito com tanta força com as duas mãos que eu quase caio para trás. Lágrimas escorrem dos seus olhos.

— Para! Por favor! Para com isso!

Eu desabo sentado na grama, com os joelhos dobrados, minhas mãos ensanguentadas pendendo dos pulsos. Meu corpo se curva para a frente, cabisbaixo. Só consigo ver o chão embaixo de mim.

Camryn se senta na minha frente. Sinto suas mãos no meu rosto, tentando levantar minha cabeça, mas eu não deixo.

— Você não pode fazer isso comigo — diz com voz trêmula. Camryn tenta me forçar a olhá-la, e eu finalmente deixo porque me mata de dor ouvi-la chorar. Olho nos olhos dela, os meus cheios de lágrimas de raiva que estou tentando conter. — Amor, não foi culpa sua. Você tava drogado. Qualquer um poderia ter se enganado, chapado como você tava. — Seus dedos apertam meu rosto. — Não. Foi. Culpa. Sua. Entendeu?

Tento desviar o olhar, mas ela afasta minhas mãos e se senta no meio das minhas pernas sobre os joelhos, de frente para mim. Instintivamente, eu a abraço.

— Mesmo assim, eu devia saber — digo, olhando para baixo. — E não é só isso, Camryn, eu devia cuidar da sua segurança. Você nem deveria ter sido drogada, pra começar. — Só de pensar nisso, a raiva e o ódio por mim mesmo aumentam de novo. — Eu devia cuidar da sua segurança!

Ela me abraça e me força a apoiar a cabeça em seu peito.

Ela se afasta.

— Andrew, olha pra mim. Por favor.

Eu olho. Vejo dor e compaixão em seus olhos. Seus dedos delicados envolvem meu rosto barbado. Ela beija meus lábios suavemente e diz:

— Foi um momento de fraqueza — como que para me lembrar do que eu disse a ela há vários meses sobre os comprimidos. — Foi minha culpa tanto quanto sua. Eu não sou burra. Deveria ter imaginado que não podia deixar nossas bebidas na mão deles nem por um segundo. Não é culpa sua.

Eu baixo o olhar, e então olho para ela de novo. Não sei como posso fazê-la entender que, por causa de como e quem sou, sinto um forte senso de responsabilidade por ela. Uma responsabilidade da qual me orgulho, que senti desde o dia em que a conheci. Me mata... me mata saber que no meu “momento de fraqueza” eu não pude protegê-la, que, por eu ter baixado a guarda, ela poderia ter sido ferida, estuprada, morta. Como posso fazê-la entender que não importa se ela não me culpa por isso, que sua opinião, embora eu não a considere sem valor, não desculpa meu momento de fracasso? Ela tem direito a um momento de fraqueza. Eu não tenho. O meu é só fracasso.

— E eu nunca, jamais culparia você por aquilo — ela acrescenta.

Eu só olho para ela, procurando um significado em seu rosto, e então ela continua:

— O que aquela garota fez — ela explica. — Eu jamais jogaria aquilo na sua cara. Porque você não fez nada errado. — Eu sinto seus dedos afundando em meu rosto. — Você acredita em mim?

Eu balanço a cabeça lentamente.

— Acredito, sim.

Ela suspira e diz:

— De todo modo, pode ter sido em parte minha culpa. — Ela desvia o olhar.

— Como assim?

— Bem — ela diz, mas hesita com uma expressão distante de arrependimento no semblante —, acho que, sem querer, posso ter dado permissão pra ela.

Aquilo certamente me pega de surpresa.

— Lembro que ela perguntou sobre dormir com a gente, e acho que falei que sim, que ela podia. Eu-eu não sabia que ela queria dizer... sexualmente. Se eu estivesse sóbria, com certeza teria sacado isso. Andrew, me desculpa. Desculpa por eu ter deixado aquela piranha louca violentar você.

Eu balanço a cabeça.

— A culpa não é de nenhum dos dois, então não começa a se culpar também, tá?

Quando não vejo aparecer o sorriso que eu queria causar rápido o suficiente, eu a agarro dos dois lados pela cintura. Ela grita quando começo a fazer cócegas. Ela ri e se retorce tanto que cai para trás na grama, e eu me sento em cima dela, me apoiando nos joelhos dos dois lados para não esmagá-la.

— Para! Não! Andrew, tô falando sério, caralho! Paraaaa! — Ela ri alto e eu enfio mais os dedos nos seus quadris.

Então ouço um carro de polícia tocar a sirene uma vez e silenciar, parando atrás do meu carro.

— Fodeu — eu digo, olhando para Camryn. Seu cabelo está emaranhado e cheio de fios de grama.

Saio de cima dela e estendo a mão ensanguentada para ajudá-la a levantar. Ela a toma e fica de pé, espanando a roupa. Voltamos para o carro enquanto o policial sai de sua viatura.

— Vocês costumam deixar a porta do carro escancarada assim na estrada? — o policial pergunta.

Eu olho para a porta e novamente para ele.

— Não, senhor — eu digo. — Fiquei com vontade de vomitar e nem pensei nisso.

— Habilitação, comprovante do seguro e documentos do veículo.

Tiro a habilitação da carteira, entrego para ele e enfio o corpo pela janela do lado do passageiro para procurar os documentos no porta-luvas. Camryn está encostada na traseira do carro, com os braços cruzados nervosamente sobre o peito. O policial volta para a viatura — depois de notar o sangue nas minhas mãos — e se senta para consultar o meu nome.

— Espero que você não esteja escondendo nenhum assalto, assassinato ou nada assim de mim — Camryn diz, quando me apoio no capô ao lado dela.

— Não, já parei com os assassinatos — respondo. — Ele não tem como me prender. — Eu a cutuco de leve com o cotovelo.

Passados alguns minutos de pura tensão, o policial se aproxima de nós e me devolve os documentos.

— O que aconteceu com a sua mão? — ele pergunta.

Olho para ela, sentindo-a doer e latejar pela primeira vez, agora que ele chamou minha atenção. Em seguida, aponto para a árvore perto dali.

— Eu meio que bati na árvore.

— Você meio que bateu na árvore? — ele pergunta, desconfiado, e noto que olha para Camryn várias vezes. Que legal, ele deve estar achando que bati nela ou alguma porra assim, e considerando como ela está detonada depois do incidente de ontem à noite e do nosso rala-e-rola na grama, suas suspeitas devem estar sendo confirmadas.

— Tá, eu bati na árvore.

Ele olha para Camryn, agora.

— Foi isso que aconteceu? — ele pergunta a ela.

Camryn, nervosa pra caramba e pelo visto imaginando, como eu, o que o policial acha que realmente aconteceu, de repente faz a Natalie.

— Foi, senhor — ela diz, gesticulando muito. — Ele ficou nervoso porque uns filhos da puta... — ela se encolhe toda — desculpa, se aproveitaram da gente ontem à noite, e ele ficou se martirizando com isso a manhã toda e acabou descontando naquela árvore! Eu corri pra lá pra não deixar que ele se machucasse, a gente conversou, e eu tô com essa cara de merda pisada... ai, desculpa... por causa da noite de cão que a gente passou. Mas juro que não somos más pessoas. Não usamos drogas e ele não é um psicopata nem nada, então, por favor, libera a gente. Pode até fazer uma busca no carro, se quiser.

Momento. Sorvete. Na testa.

Eu rio por dentro. Não temos com que nos preocupar se ele quiser vasculhar o carro. A não ser que... nossos amigos temporários, Elias e Bray, tenham acidentalmente deixado uma trouxinha de erva ou qualquer porra incriminadora no banco de trás.

Puta merda... por favor, que não aconteça agora o que sempre acontece nos seriados de TV.

Eu olho para Camryn e balanço discretamente a cabeça.

Ela arregala os olhos.

— O que foi que eu falei?

Eu apenas sorrio, ainda balançando a cabeça, porque é só isso que posso fazer, na verdade.

O policial funga e depois mastiga a bochecha por dentro. Seus olhos vêm e vão entre mim e Camryn várias vezes e ele não diz uma palavra, o que só aumenta a nossa tensão.

— Da próxima vez, não deixem a porta escancarada assim — o policial diz, sua expressão tão neutra quanto esteve o tempo todo. — Seria uma pena alguém passar e arrancar a porta de um Chevelle 1969 em tão bom estado.

Um sorriso discreto ilumina o meu rosto.

— Com certeza.

O policial parte antes de nós, que ficamos dentro do carro estacionado por um mais um momento.

— “Pode fazer uma busca no carro, se quiser”? — repito.

— Pois é! — ela ri, jogando a cabeça para trás. — Eu não queria dizer isso. Escapou.

Eu rio também.

— Bom, parece que seu monólogo inocente... que, a propósito, me dá um pouco de medo; acho que aquela sua amiga bipolar tá te contagiando... deixou o policial com peninha e livrou a nossa cara.

Eu apoio as mãos no volante.

Ela estava sorrindo e provavelmente ia comentar minha piadinha com Natalie, até que vê de novo minha mão ensanguentada. Então se aproxima de mim e a pega delicadamente.

— A gente precisa limpar isso antes que infeccione — ela diz. Olha mais de perto e começa a tirar pequenos fragmentos de grama e terra em volta e dentro do ferimento. — Tá muito feio, Andrew.

— Não é tão grave assim — digo. — Não vai precisar de pontos.

— Não, você precisa é apanhar. Nunca mais faz isso. Tô falando sério. — Ela pega um último fragmento e depois se debruça por cima do encosto, procurando o pequeno isopor no banco de trás.

Eu viro a cabeça e só vejo a bunda dela saindo do short. Com minha mão ensanguentada, enfio o dedo dentro do elástico da calcinha do biquíni e o estalo sobre a pele dela. Ela não se assusta, mas revira os olhos quando para de remexer no banco traseiro, com uma garrafa d’água na mão.

— Enxágua isso — ela ordena, me passando a garrafa.

Eu abro a porta, pego a garrafa, estendo a mão para fora e derramo água sobre o ferimento.

Enquanto procura algo na bolsa, ela diz:

— Da próxima vez que você ficar puto e descarregar a raiva em algum objeto, vou pôr oficialmente o seu nome na minha Lista de Psicopatas. — Ela me passa um tubo de pomada.

Eu só balanço a cabeça e pego o tubo. Acho que não dá pra discutir com ela quanto a isso.

Ela aponta para a pomada e me manda aplicá-la logo. Eu rio e digo:

— Você parece uma sargenta.

Camryn me dá um soco de brincadeira no braço (machucando a própria mão, na verdade) e me acusa de insinuar que ela é gorda. É tudo brincadeira, e acho que é sua maneira de me ajudar a não pensar no que aconteceu. Depois de minutos, estamos conversando sobre música e sobre os bares ou clubes onde podemos tocar a caminho de Nova Orleans.

Sim, num certo momento decidimos que, não importando onde vamos parar ou quanto tempo vamos ficar, temos que visitar nosso lugar favorito à margem do Mississippi, haja o que houver.

~~~

Isso foi há dois dias. Hoje estamos acomodados num belo hotel no grande estado do Alabama.


Camryn


26

— TÁ EMPOLGADA com o que a gente vai fazer hoje à noite ou precisa respirar num saco de papel? — Andrew pergunta, saindo do banheiro com uma toalha enrolada na cintura.

— As duas coisas — respondo. Deixo o controle remoto sobre o criado-mudo e me sento na cama. — Conheço a música, mas é minha primeira apresentação solo. Por isso, sim, tô surtando um pouco.

Ele remexe na sua mochila perto da TV e acha uma cueca limpa. A toalha cai no chão. Eu inclino a cabeça, admirando sua bunda sexy da cama. Ele veste a cueca e ajeita o elástico na cintura.

— Você vai botar pra quebrar — ele diz, virando-se para mim. — Ensaiou um monte e já tá afiada. E se eu achasse que você não tava preparada, eu falaria.

— Eu sei que falaria.

— Bom, pronta pra trabalhar? — ele pergunta, terminando de se vestir.

— É. Acho que sim. Como eu tô?

Eu me levanto e dou uma volta, usando um top minúsculo preto com alcinhas finas e um jeans apertado.

— Peraí — eu exclamo, levantando o dedo. Calço minhas novas botas três quartos reluzentes e fecho o zíper na lateral. Então giro e faço pose de novo, exagerando um pouco.

— Insuportavelmente sexy, como sempre — ele elogia com um sorrisão, e então se aproxima de mim e passa a mão na minha trança.

Posso estar me apresentando sozinha cantando “Edge of Seventeen” da Stevie Nicks hoje, mas por duas horas, antes de subir no palco, vou trabalhar como garçonete e Andrew vai limpar mesas. Ganhei dele! Eu consegui o emprego mais legal.

A casa está lotada quando chegamos, às 19h. Adoro a atmosfera deste lugar. O palco é de bom tamanho, mas a área das mesas e a pista de dança são enormes. E está cheio, o que me deixa mais nervosa ainda. Eu vou até a cozinha, apertando a mão de Andrew, abrindo caminho no meio da multidão. Com estes empregos temporários, tivemos a sorte de trabalhar juntos por algumas noites. Quase todos os serviços que pegamos durante a viagem, desde a Virgínia, foram esporádicos. Eu trabalho como arrumadeira aqui e ali, enquanto Andrew trabalha de garçom ou até substitui algum leão de chácara. Ele pode não ser o tipo bombado (ainda bem, porque acho isso nojento), mas seus músculos são grandes o suficiente para ele ser contratado com facilidade. Por sorte, ele não precisou arrastar ninguém para fora pela camisa, nem apartar nenhuma briga.

Nosso chefe pelos próximos dias, German — é o nome dele mesmo, apesar de ele definitivamente não ser alemão, e sim o típico caipira do Meio-Oeste americano —, entrega a Andrew um avental branco e um broche que o identifica como “Andy”.

Eu seguro o riso, mas Andrew percebe a minha expressão divertida.

German esfrega sua mão roliça como uma salsicha no nariz, limpa-a no jeans e diz:

— Quando o povo levantá de uma mesa e terminá de recoiê as porra deles toda, cê vai lá e deixa a mesa limpinha pro próximo cliente. — Ele agita o dedo para Andy, hã, isto é, Andrew. — E não toca nas gorjeta. São só pras garçonete, tá me entendeno?

— Sim, senhor — Andrew diz. Quando German baixa os olhos para seu bloco de pedidos por um segundo, Andrew diz para mim, sem emitir som: Que porra...? E eu tento endireitar a boca e evitar sorrir quando German olha para nós de novo.

German olha para mim, mas olha mesmo, totalmente diferente de como estava olhando para Andrew agora há pouco. Ele abre um sorriso amarelo e diz:

— E ocê só pricisa fazê exatamente essa carinha que tá fazeno agora. Abre esse sorriso lindo e enche os bolso cas gorjeta.

Fico imaginando o que as outras garçonetes que trabalham aqui em tempo integral têm que aguentar desse cara.

Pisco meus olhos azul-bebê para ele e digo, com um sotaque caipira doce e sedutor:

— Pode deixá, seu German. E mais tarde, quando meu turno terminá, vô tê que ir lá pra dentro e retocá a maquiage antes de me apresentá, o senhor entende, né?

Noto que Andrew arregala os olhos e parece mais intrigado, mas eu continuo dando atenção a German, que já está comendo na minha mão de um jeito que, se eu o mandasse lamber o chão, ele falaria: Diz quando é pra pará, tá?

Andrew

Esse sotaque de bela do Sul que surgiu do nada me deixou morrendo de tesão. Vou ter que conversar com ela a respeito disso mais tarde.

Eu ponho meu broche, amarro o avental nas costas e pego a espécie de bacia de plástico que German aponta quando olho para ele. Cacete, não me incomoda fazer esse tipo de trabalho, mas German é um caipirão babaca, que espero que fique longe de mim pelas próximas duas horas. E ele está precisando de um desodorante. A porra do tubo inteiro, quero dizer. Ele realmente não combina com esse lugar. Parece uma bandeira confederada pendurada na janela de uma mansão de 400 mil dólares. O bar e restaurante até que é bem decorado. Por dentro, pelo menos.

Eu me dirijo para a área das mesas com a bacia debaixo do braço e vou para a primeira mesa vazia que vejo. Pego todo o lixo, os pratos sujos cheios de fritas e bolinhos que sobraram e jogo tudo dentro da bacia. Depois limpo a mesa com o trapo que tiro do bolso do avental e endireito os potes de ketchup e molho de churrasco. É tudo muito automático, diferente do serviço de garçonete, e acho que por isso somente Camryn precisou fazer uma hora de treinamento ontem para começar a trabalhar hoje. Ela pode ter o emprego que rende gorjetas, no qual pode usar seu charme sexy, mas precisa aguentar o chefe nojento e tarado. E eu tô adorando isso. Bem feito pra ela por tirar sarro do meu emprego de limpar mesas. Ela fez piadinha, me chamando de “escória” do bar. Bem, espero que ela não ache que vou tirar o traseirinho magro dela da reta, caso German resolva avançar o sinal. Ela vai ter que se virar sozinha.

Eu limpo mais algumas mesas, deixando uma gorjeta de cinco dólares numa e outra de vinte na outra. Quando estou para voltar para a cozinha para esvaziar a bacia, sou parado por quatro garotas numa mesa perto do balcão do bar.

— Ei, gatão — uma das mulheres mais velhas diz, me chamando com um dedo. — Podemos pedir nossas bebidas pra você?

— Sinto muito, senhora, mas eu só limpo as mesas.

Eu tento me afastar, mas outra mais bonita me impede.

— Aposto que se a gente pedisse pra você ser nosso garçom, você seria promovido. — Seus olhos estão vidrados e sua cabeça balança um pouco. Eu noto, porque é difícil não notar, seus peitos enormes saindo do top apertado. Ela os empina mais ainda.

— Bom, vocês podem pedir — eu digo, também mostrando meu charme, sorrindo com o canto da boca. — E se a chefia deixar, serei seu a noite toda.

As quatro se entreolham numa espécie de conversa silenciosa. Já estão comendo na minha mão.

Camryn chega atrás de mim carregando uma bandeja cheia de copos de uísque e um copo já lotado de notas. Eu me pergunto se aquele é o dinheiro das gorjetas ou o pagamento dos drinques. Isso está me deixando ansioso.

Ela dá um sorrisinho para mim, olhando para a mesa das mulheres, e depois rapidamente para mim de novo.

— Ele está incomodando vocês? — ela pergunta.

Eu sei que ela não está com ciúmes; hoje só o que importa é a competição entre nós dois. E ela vai fazer tudo o que puder para impedir que eu ganhe a pequena aposta que fizemos no carro a caminho daqui:

— Você acha que não consigo ganhar gorjetas só porque tô limpando mesas?

— Não consegue — ela disse. — Copeiro não ganha gorjeta.

— Pense bem — eu disse, olhando-a do banco do motorista. — É um bar cheio de mulheres e álcool. Aposto que consigo ganhar gorjetas.

— Ah, é mesmo? — ela perguntou, estufando os lábios.

— Sim — eu disse, e então aumentei o cacife, porque estava me sentindo ousado: — Na verdade, aposto que consigo ganhar mais gorjetas do que você.

Camryn riu.

— É sério? Quer mesmo apostar isso? — Ela cruzou os braços e balançou a cabeça como se eu estivesse dizendo algo ridículo.

— Quero — eu disse, mesmo sabendo que deveria ter dito Não, tô brincando.

Mas eu não disse não, e agora estou amarrado a essa aposta, e se Camryn ganhar, vou ter que fazer uma massagem de uma hora nela por três noites seguidas. Uma hora é muito tempo de massagem. Fico com os braços cansados só de pensar.

A mulher mais velha responde para Camryn:

— Não, ele não tá incomodando nem um pouco, lindinha. — Ela me olha de alto a baixo como se quisesse arrancar minha roupa e me lamber, apoiando o queixo nas duas mãos. — Ele pode ficar aqui o tempo que quiser. Cadê o seu chefe?

— Ele tá por aqui — Camryn diz. — É só procurar um gordão de uniforme. O nome dele é German.

— Obrigada, gata — a mulher diz, e volta a olhar para mim.

Essa mulher, admito, meio que me dá medo. E como ela parece ser a líder da matilha, decido que preciso sair dali antes que ela ache que estou mesmo a fim dela, porque aí eu é que vou precisar da ajuda de Camryn pra sair da enrascada em que me meti.

— Tenham uma ótima noite, madames — digo com um sorriso acolhedor, e me viro para ir embora.

Sinto uma mão deslizando para dentro do bolso do meu avental. Eu paro e olho para a mão que a mulher já está tirando do meu bolso. Ela está me encarando com aquele famoso olhar cheio de tesão.

— Pra você também, docinho — ela diz.

Pisco para ela e sorrio para as outras três enquanto me afasto casualmente. Quando chego à cozinha, esvazio a bacia, enfio a mão no bolso e tiro dele três notas de vinte dólares.

Porra, talvez aquela aposta não tenha sido tão ridícula, no fim das contas.

Duas horas depois...

A aposta foi ridícula, sim.

— 240, 241, 246, 256. — Camryn fica contando suas gorjetas, agora que nosso curto turno acabou. Ela dá um sorrisinho e acrescenta: — E você, quanto conseguiu?

Estou tentando ficar sério para que minha decepção pareça minimamente genuína, mas ela não está facilitando. Por isso pego meu dinheiro, conto de novo e respondo:

— 82 dólares.

— Bom, até que não tá ruim pra um copeiro, admito — ela diz, embolsando sua grana.

— Como assim, admite? — pergunto, desatando o avental e tirando-o. — Vai perdoar a aposta?

— Pfah! De jeito nenhum.

German chega atrás de nós.

— É bom que a cantoria docês preste. E nada dessas merda de rap, nem musiquinha new age metida a besta. — Ele estala os dedos rapidamente, como se estivesse tentando lembrar algum exemplo, mas logo desiste. — Cês num tão no Ídolos.

— Entendido — Camryn diz, com aquele seu sorriso doce.

German, com um sorriso de babacão na cara, desperta do feitiço dela e, ao se afastar, rosna quando passa por mim. Melhor isso do que me olhar do jeito que ele olha para Camryn, por isso não vou reclamar.

Eu me viro para Camryn.

— Não fica nervosa. — Eu seguro as mãos dela. — Já falei, você vai botar pra quebrar.

Ela balança a cabeça nervosamente. Então solta um suspiro rápido, fazendo bico, e respira fundo.

— Vou pegar a guitarra enquanto você se prepara — digo.

— Tudo bem.

Eu a beijo nos lábios e vou até o carro pegar a guitarra elétrica que ela me deu de presente de aniversário, que está no porta-malas. Apesar de “Edge of Seventeen” ser o solo dela, o próprio riff da guitarra é tão conhecido que estou quase tão nervoso quanto ela por ter que tocá-lo. Tudo bem, talvez não tão nervoso — é uma música até bem fácil. O que me deixa um pouco tenso é o medo de estragar o número dela. É só por causa dela que o show de hoje me deixa tenso.

Eu subo no palco e encontro o baterista, Leif, que conhecemos ontem, se preparando.

— Obrigado por tocar com a gente, cara — agradeço.

— Sem problemas — Leif diz. — Já toquei essa várias vezes num bar da Geórgia onde eu trabalhava, uns anos atrás.

Camryn ficou feliz por encontrar um baterista que conhece a canção. Ela estava preparada para se apresentar só comigo, sabendo que não seria a mesma coisa sem a bateria. Mas quando conhecemos Leif ontem, durante o treinamento dela como garçonete, e ele concordou em tocar conosco esta noite, acho que Camryn se sentiu bem mais confiante.

Eu passo a alça da guitarra pelo ombro assim que Camryn aparece no palco.

Ela vem direto na minha direção, eu encosto no seu ouvido e digo:

— Você tá gostosa.

Ela fica vermelha e olha para sua roupa. Ela trocou o top preto bonitinho que estava usando por outro de seda, também preto, com um decote nas costas que expõe sua pele quase até a cintura. O colar que comprei para ela brilha sobre a seda preta na frente. E ela soltou o cabelo. Adoro a trança que ela sempre usa, mas devo dizer que ela fica sexy em outro nível com o cabelão sedoso e louro caindo sobre os ombros.

O vozerio no bar ecoa pelo ambiente espaçoso, alto até enquanto Leif testa o bumbo da bateria atrás de nós. Todas as mesas estão ocupadas, bem como os bancos junto à parede dos fundos. Minhas quatro “amigas” ainda estão aqui e migraram de seu lugar para uma mesa mais próxima do palco. Elas parecem intrigadas com minha transformação de copeiro em guitarrista. Normalmente, a essa altura, eu estaria procurando na plateia minha “vítima” da noite, mas hoje é diferente, e não vamos fazer nada disso. Camryn está nervosa e concentrada demais para tentar nossa brincadeira de sempre.

Depois que finalmente nos preparamos e estamos prontos para começar, Camryn prende a respiração por um momento e olha para mim.

Eu espero que ela me dê o sinal, e quando a vejo acenar, começo a tocar, e todos os olhos na multidão se viram para nós. Essa introdução da guitarra sempre chama a atenção de todos numa casa lotada. E Camryn, assim que começa a cantar, como sempre acontece também comigo, se transforma em alguém completamente diferente, a ponto de me deixar atordoado. Ela é a dona da canção. Está muito diferente de como estava em todos os nossos ensaios. Confiança e sensualidade derramam de cada verso da canção e de cada movimento seu, e todo o meu corpo reage a isso.

— Ooo, baby, ooo, ooo! — eu acompanho no refrão.

Mas todos estão olhando para ela, até minhas quatro amigas, que sei que de início haviam se aproximado para me olhar. Não, agora elas pertencem sobretudo a Camryn, e isso me deixa orgulhoso.

Antes mesmo que termine a primeira estrofe, a pista de dança já está lotada. A energia e o sexo na voz de Camryn, misturados com o fascínio de todos com sua apresentação, me fazem perder o controle, e eu martelo aquele riff com mais devoção do que antes.

— Ooo, baby, ooo, ooo!

A cada poucos segundos, ouço uma voz gritar ao fundo:

— Huuuuu! — E também cada vez que Camryn solta uma nota tocante.

E eu não me canso disso.

Canto a plenos pulmões junto com ela nos dois refrões seguintes, e sei que a quarta estrofe, aquela em que ela sempre se embanana, vem a seguir. Olho para ela, ainda agitando a palheta rapidamente sobre as cordas, com as costas arqueadas, e não vejo nenhum sinal de nervosismo em seu rosto. Ela está no controle; posso perceber, só de olhar, que de jeito nenhum ela vai errar.

E então a letra sai tão rápida e impecavelmente de seus lábios que sinto meu rosto esticado até o limite por um sorriso quando canto junto com ela a todo volume o refrão seguinte.

Porra, minha gata tomou posse da canção. Te cuida, Stevie Nicks!

Passando a metade da canção, Camryn canta: Oooo! E sua voz some naquela parte sombria da melodia que permite um breve descanso à sua voz.

Mas o solo de guitarra continua. É cansativo, mas meus dedos não param, sem errar uma nota.

Camryn e eu nos entreolhamos e temos um momento só nosso. Então ela volta a cantar, e eu canto junto no momento certo.

Ela continua cantando, suas duas mãos seguram o suporte do microfone, seus olhos se fecham quando ela berra com tanta emoção:

— Yeah! Yeah!

Então ela olha para mim de novo e continua me encarando enquanto solta a estrofe seguinte, como se estivesse cantando apenas para mim.

Calafrios percorrem a minha espinha. Eu sorrio e continuo tocando até a canção acabar.

A plateia explode com uivos e gritos. Camryn agradece as palmas primeiro, depois eu. Ela está com um sorriso enorme, olhando para a multidão, e eu fico meio comovido por dentro.

Sem tirar a guitarra, que empurro para as costas, me aproximo de Camryn e a levanto do chão em meus braços. Os assobios e gritos vêm de todos os lados, mas a única coisa que eu noto é Camryn me olhando. Eu a beijo profundamente, e a multidão assobia e grita ainda mais.

Antes de a noite acabar, fazemos um show completo de dez canções para uma multidão cada vez maior, com o passar das horas. Voltamos a cantar algumas das nossas favoritas: “Barton Hollow”, “Hotel California” e “Birds of a Feather”, entre outras, e cada canção parece agradar mais ao público. Não canto sozinho esta noite, embora Camryn chegue a me pedir isso. A noite foi dela e só dela. Me recuso a ser o centro das atenções, mesmo por apenas uma canção.

Voltamos ao hotel às duas da manhã, e eu pago de bom grado a aposta que perdi.


Camryn


27

— GERMAN PARECE achar que a gente vai ficar muito tempo aqui — eu digo, com o lado direito do rosto encostado no colchão. — Eu falei pra ele que era só temporário.

As mãos mágicas de Andrew pressionam os dois lados das minhas costas dos ombros até a cintura, e eu viro massa de modelar em suas mãos. Fico deitada ali e curto essa massagem como se nunca tivesse sido massageada na vida. Mal consigo abrir os olhos. Ele está sentado sobre meu corpo quase nu, a cavalo sobre minha cintura.

— É, ele me puxou de lado uma hora e perguntou a que horas a gente ia tocar amanhã. — Andrew ri e aperta as pontas dos dez dedos com força na minha pele, mexendo as mãos num firme movimento circular.

Eu gemo debaixo dele.

— A gente pode ficar mais uns dias — ele diz —, mas acho que devíamos partir logo.

— Concordo. E também, os mosquitos em Mobile são horríveis! Você viu que enxame apocalíptico em volta das lâmpadas quando a gente saiu de lá?

Andrew ignora a pergunta e diz:

— Você foi sensacional hoje. Eu sabia que você ia mandar bem, mas pra falar a verdade, não tava esperando aquilo.

Eu finalmente abro os olhos e espio pela janela.

— O que, exatamente? — pergunto.

Suas mãos não param de massagear minhas costas.

— Você subiu no palco e tomou posse da canção. Você tem um talento natural.

— Não sei se tenho — respondo. — Mas tô orgulhosa de mim mesma. Sério, não sei o que deu em mim. Esqueci o nervosismo e mergulhei de cabeça.

— Bom, funcionou — ele diz.

— Só porque você tava lá comigo — eu saliento.

Ficamos em silêncio por vários minutos, eu de olhos fechados, com sua massagem ameaçando gradualmente me mandar para a terra dos sonhos. A circulação ao redor dos meus olhos parece aliviar; minha cabeça toda está formigando, e minha nuca se arrepia quando ele afunda os dedos no meu couro cabeludo.

Antes que passe uma hora, começo a me sentir culpada por fazê-lo trabalhar tanto tempo e digo:

— Se você estiver cansado, pode parar.

E quando ele não para, eu o faço parar, virando o corpo e me deitando de costas. Ele fica em cima de mim e me beija de leve na boca. E nós nos olhamos por um momento, um examinando os olhos do outro, estudando os lábios. Sinto-o pressionar meu corpo lá embaixo, sua boca se fecha sobre a minha num beijo apaixonado e ele começa a fazer amor comigo.


Andrew


28

ESTAMOS NA ESTRADA de novo, em algum lugar de uma rodovia entre Gulfport, Mississippi e Nova Orleans. O dia está perfeito, com céu azul e calor na medida certa para que possamos viajar de janelas abertas, sem sentir necessidade de ligar o ar-condicionado do carro. Camryn está dirigindo e eu descanso no banco do passageiro, numa posição bem parecida com a sua de sempre, com um pé para fora da janela.

Ficamos em Mobile uma semana e pagamos o quarto de hotel, toda a comida e a gasolina só com uma fração do dinheiro que ganhamos tocando e das gorjetas de Camryn como garçonete. Minhas gorjetas de copeiro foram só uma gota no oceano, comparadas com as dela.

Meu celular vibra no bolso da minha bermuda preta de lona e eu atendo.

— E aí, mãe, tudo bem?

Ela diz que sente muito a minha falta e logo começa a fazer perguntas sobre os meus checkups.

— Não, eu tô fazendo, sim — digo. — É, fiz tomografia esses dias num hospital em... Não, eles só ligaram pro dr. Masters pra pedir minha ficha e... Tá, mãe. Eu sei. Eu tô me cuidando. — Olho para Camryn, que está sorrindo. — Camryn não me deixa faltar. É. Bom, agora a gente tá indo pra Nova Orleans, não sei quanto tempo a gente vai ficar lá, mas depois vamos passar por aí pra te visitar, tá?

Depois que eu desligo, Camryn pergunta:

— No Texas?

Imediatamente, sinto que ela está pensando a mesma coisa que pensou na nossa primeira viagem, mas ela me desmente quando diz:

— Pra mim não tem problema nenhum. Só tô curiosa pra saber nosso destino. — Ela sorri, e percebo na hora que não está escondendo nada.

— O Texas não te preocupa? — eu pergunto.

Ela olha de novo para a estrada ao chegar numa curva, depois volta a olhar para mim.

— De jeito nenhum. Não como me preocupava antes.

— O que te fez mudar de ideia? — Eu tiro o pé da janela e me viro para olhá-la melhor, intrigado pela mudança de opinião.

— As coisas estão diferentes agora — ela diz. — Mas de um jeito bom. Andrew, o mês de julho foi difícil. Pra nós dois. Não sei como eu sei, mas acho que eu já previa desde o início que alguma coisa ruim ia acontecer quando a gente chegasse ao Texas. Por um tempo, achei que eu só estivesse preocupada por aquela ser a última parada da nossa viagem. Mas agora não sei mais. Era como se eu soubesse...

Eu sorrio um pouco.

— Acho que eu entendo — digo. — Então preciso fazer uma pergunta.

Ela olha para mim, esperando.

— A gente vai parar definitivamente um dia?

Sua reação não é a que eu esperava. Eu esperava que seu sorriso sumisse e o momento se perdesse, mas em vez disso, seus olhos brilham, e sinto um ar de calma emanando dela.

— Um dia — ela diz. — Mas ainda não. — Ela olha novamente para a estrada e continua: — Sabe, Andrew, quero ir pra Itália um dia. Pra Roma. Sorrento. Talvez não agora, nem mesmo nos próximos cinco anos, mas espero ir pra lá. Pra França também. Pra Londres. Adoraria até conhecer a Jamaica, o México e o Brasil.

— É mesmo? Ia levar um tempão visitar todos esses lugares — eu digo, mas não de forma a desencorajá-la. Eu também adoraria.

O vento da janela aberta roça seu cabelo, soltando mais fios de sua trança, que dançam ao redor do seu rosto radiante.

— Eu me sinto livre com você — ela diz. — Sinto que posso fazer qualquer coisa. Ir a qualquer lugar. Ser o que eu quiser. — Seus olhos pousam em mim mais uma vez e ela continua: — A gente vai parar logo, mas nunca quero parar definitivamente. Isso faz sentido?

— Com certeza — respondo. — Eu não teria dito melhor.

Chegamos à divisa da Louisiana logo depois que escurece, e Camryn para no acostamento.

— Acho que não consigo mais dirigir — ela diz, esticando os braços para trás e bocejando.

— Eu falei há uma hora que você precisava me deixar dirigir.

— Bom, agora eu tô deixando. — Ela fica ranzinza quando está cansada.

Ambos saímos para trocar de lugar, mas paramos quando nos encontramos na frente do carro.

— Você viu onde a gente tá? — pergunto.

Camryn olha para os dois lados da rodovia deserta. Ela dá de ombros.

— Hã, no meio do nada?

Eu rio baixinho e aponto para o campo. Depois aponto para as estrelas.

— A última vez não valeu, lembra?

Seus olhos brilham, mas sinto que ela está dividida. Não levo muito tempo para entender por quê.

— É um campo plano e aberto. E não tem vaca nenhuma até onde a vista alcança — digo.

Eu sei que absolutamente nada que eu disser vai tranquilizá-la quanto à possibilidade de cobras, mas estava tentando ser sutil e dar uma de idiota, esperando que ela esquecesse isso.

— E as cobras? — ela pergunta, não esquecendo.

— Não deixe seu medo de cobras estragar uma oportunidade perfeita de finalmente dormir sob as estrelas.

Ela estreita os olhos para mim.

Resolvo apelar para a artilharia pesada e simplesmente imploro.

— Por favor? Por favorziiiiinho? — Eu me pergunto se minha cara de gatinho do Shrek é tão eficaz com ela quanto a dela sempre é comigo. Meu instinto inicial foi jogar a desgraçada em cima do ombro e carregá-la à força, mas também estou curioso quanto à eficiência da minha técnica implorativa.

Ela rumina por um minuto e finalmente cede ao meu charme.

— Tá — ela admite, um pouco exasperada.

Eu pego o cobertor do porta-malas e nós passamos juntos por cima da vala e da cerca baixa, depois cruzamos o enorme campo até que encontramos um bom lugar, vários metros à frente. Tenho uma sensação de déjà vu. Estendo o cobertor na grama seca e verifico rapidamente se há cobras nos arredores, só para deixá-la mais tranquila. Nós nos deitamos lado a lado, de costas, com as pernas esticadas sobre o cobertor, cruzando os tornozelos. E olhamos para a imensidão escura e infinita do céu cheio de estrelas. Camryn aponta várias constelações e planetas, me explicando cada um em detalhes, e eu fico impressionado em ver o quanto ela sabe, e como consegue reconhecê-los.

— Eu nunca imaginei que você fosse tão... — tenho dificuldade para encontrar as palavras certas.

— Tão culta? — Sinto que ela sorri discretamente ao meu lado.

— Bom, eu... não quis dizer que acho você...

— Uma garota desmiolada e superficial que não sabe que a Via Láctea não é uma comida de bebê, nem que a teoria do Big Bang é mais do que um seriado de TV?

— É, alguma coisa assim — digo, só para fazer o jogo dela. — Não, mas falando sério, como sabe tudo isso? Nunca pensei que você se interessasse por ciências.

— Eu queria ser astrofísica. Decidi isso quando tinha uns 12 anos.

Fico completamente chocado com sua confissão, mas continuo olhando as estrelas com ela, meu sorriso aumentando.

— Bom, na verdade eu queria ser isso, mais física e astronauta e também trabalhar na NASA, mas acho que eu tava meio iludida, na época. Obviamente.

— Camryn — eu digo, ainda tão surpreso que mal sei o que dizer. — Por que você nunca me contou isso?

Ela dá de ombros.

— Não sei — ela diz. — O assunto nunca surgiu. Você nunca sonhou em ser alguma coisa diferente do que é?

— Acho que sim — respondo. — Mas, amor, por que você não foi atrás disso? — Eu levanto o corpo do cobertor e me sento. Isso pede toda a minha atenção.

Ela olha para mim como se eu estivesse exagerando.

— Provavelmente pelo mesmo motivo que você não foi atrás do que você queria ser. — Ela dobra os joelhos e cruza as mãos sobre a barriga. — O que você queria ser?

Não quero falar de mim agora, mas acho melhor responder, já que ela me perguntou duas vezes.

Eu também dobro os joelhos e apoio os antebraços sobre eles.

— Bom, à parte o clichê de sonhar em ser um astro do rock, como todo mundo, eu queria ser arquiteto.

— Sério?

— Sim — digo, balançando a cabeça.

— Era isso que você tava estudando antes de largar a faculdade?

Eu balanço a cabeça.

— Não — digo, e rio um pouco do absurdo da minha resposta. — Eu tava fazendo faculdade de ciências contábeis e administração.

Camryn franze o cenho.

— Ciências contábeis? Tá falando sério? — Ela está quase rindo.

— Pois é, você vê? — digo, rindo também. — Aidan me ofereceu sociedade no bar dele. Na época, eu só via cifrões na minha frente, e achei que ter um bar seria uma oportunidade e tanto. Eu poderia tocar lá e... não sei o que eu tava pensando, mas topei a proposta do meu irmão na hora. Aí ele começou a dizer que eu precisava entender a parte administrativa do negócio, essa porra toda. Eu entrei na faculdade, e foi então que a ideia foi por água abaixo. Eu tava cagando pras ciências contábeis, pra administrar um bar ou ter que lidar com todos os aspectos negativos de ter um negócio. — Paro por um momento e então digo: — Acho que, como você disse, eu tava iludido, queria todos os aspectos positivos, mas nenhum negativo. Quando percebi que não era assim que funcionava, falei: foda-se.

Ela se senta junto de mim.

— Então por que você não foi atrás de ser arquiteto?

Eu dou um sorrisinho.

— Provavelmente pelo mesmo motivo que você não foi atrás de ser astrofísica.

Ela apenas sorri, sem ter como rebater isso.

Eu olho para o cabelo louro de Camryn e para o campo.

— Acho que somos só duas almas perdidas nadando num aquário — declaro.

Seus olhos se estreitam.

— Já ouvi isso em algum lugar.

Eu sorrio e aponto rapidamente para ela.

— É Pink Floyd. Mas é verdade.

— Você acha que a gente tá perdido?

Eu inclino um pouco a cabeça, olho para as estrelas atrás dela e digo:

— Na sociedade, talvez. Mas juntos, não. Acho que estamos exatamente onde precisamos estar.

Nenhum dos dois diz mais nada por um bom tempo.

Ficamos deitados um ao lado do outro, fazendo o que fomos fazer ali. Enquanto olho para a escuridão infinita daquele céu, fico totalmente assombrado com o momento. Acho que encontro um pouco de mim mesmo naquelas estrelas. Por um bom tempo esqueço a música, a estrada, o tumor que quase me matou ano passado e o momento de fraqueza que quase matou o espírito de Camryn. Esqueço que perdemos Lily e que sei que Camryn parou de tomar anticoncepcional e não me contou. E esqueço também que parei de gozar fora por um motivo e não contei a ela.

Eu realmente esqueço tudo. Porque é isso que um momento assim faz com você. Faz você se sentir algo tão pequeno, dentro de algo tão imenso que está além da compreensão. Apaga todos os seus problemas, suas dificuldades, todas as suas necessidades, aspirações e desejos mundanos, te obrigando a perceber o quanto tudo isso na verdade é insignificante. É como se a Terra ficasse completamente silenciosa e imóvel, e sua mente só pudesse entender ou sentir a imensidão do Universo, e você fica sem fôlego pensando no seu lugar dentro dele.

Quem precisa de psiquiatras? Quem precisa de acompanhamento psicológico, mentores e palestras motivacionais? Vão todos pra casa do caralho. Apenas olhe para o céu noturno e se deixe perder nele de vez em quando.

~~~

Algo desagradável me acorda na manhã seguinte. Farejo o ar de olhos ainda fechados, minha mente não totalmente acordada, mas meu corpo e meu olfato funcionando antes de mim. Há uma brisa fresca no ar e minha pele parece úmida, como se eu estivesse coberto de orvalho. Virando para o outro lado, farejo o ar de novo e o cheiro é ainda pior do que antes. Ouço algo raspando nas proximidades, e finalmente meus olhos se abrem um pouco. Camryn está capotada ao meu lado. Mal consigo ver sua trança loura em cima do cobertor entre nós. Ela parece estar encolhida em posição fetal.

Que fedor é esse?!

Cubro a boca com a mão e começo a me levantar do cobertor. Camryn começa a se mexer ao mesmo tempo, virando de barriga para cima e esfregando o rosto e os olhos com as duas mãos. Ela boceja. Quando me sento e abro completamente os olhos, Camryn pergunta:

— Que fedor da porra é esse? — e faz uma careta.

Estou para responder que deve ser o bafo dela, quando seus olhos azuis ficam arregalados de pavor, ao olhar atrás de mim.

Instintivamente, eu me viro rápido.

Uma manada de vacas está a poucos metros de nós, e quando percebem que estamos nos mexendo, elas se assustam.

— Meu Deus! — Camryn se põe de pé num pulo mais rápido do que na noite em que a cobra subiu no nosso cobertor, me fazendo pular também.

Duas vacas mugem, gemem e grunhem, recuando para perto das outras, agitando a manada ainda mais.

— Acho melhor a gente sair correndo — digo, pegando Camryn pela mão e disparando com ela.

Nem paramos para pegar o cobertor, de início, mas eu paro e me viro, segundos depois, para agarrá-lo. Camryn grita, eu começo a rir e nós desabalamos para longe das vacas, na direção do carro.

— Puta meeeerda! — eu grito, enfiando o pé num monte enorme da substância.

Camryn cacareja de tanto rir, e ambos praticamente rolamos o resto do caminho pelo campo, eu tentando raspar a bosta da sola do sapato e correr ao mesmo tempo, e os chinelos de dedo de Camryn grudando no chão, tentando acompanhar seus passos.

— Não acredito que isso aconteceu! — Camryn ri quando finalmente alcançamos o carro. Ela fica encurvada e apoia as mãos nos joelhos, tentando recuperar o fôlego.

Eu também estou sem fôlego, mas continuo a raspar incansavelmente a sola do meu sapato no asfalto.

— Puta que pariu! — exclamo, esfregando o pé para todo lado.

Camryn se senta no capô do carro, balançando as pernas.

— Agora valeu pra você? — ela pergunta, com riso na voz.

Eu fico parado, ofegando. Olho para ela, para seu sorriso lindo e radiante e digo:

— É, acho que já dá pra riscar esse item da lista.

— Ótimo! — ela diz. Depois aponta para trás de mim. — Esfrega na grama. Assim você só tá espalhando bosta pra todo lado.

Eu saltito para a grama e começo a esfregar o pé de novo.

— Desde quando você virou especialista em bosta?

— Veja lá como fala — ela avisa, se sentando no lugar do motorista.

— Por que, o que você vai fazer? — eu provoco.

Ela dá a partida no Chevelle e acelera algumas vezes. Há um brilho cruel no seu olhar. Ela apoia o braço esquerdo na janela aberta, e quando me dou conta, o carro já está passando lentamente por mim.

Eu a fuzilo com o olhar como aviso, mas seu sorriso só aumenta.

— Eu sei que você não me deixaria aqui! — grito quando ela passa.

É claro que não...

Ela se afasta cada vez mais, e de início eu pago pra ver, parado ali, vendo o carro ficar cada vez menor...

Por fim, eu saio correndo atrás do carro.


Camryn


29

A PRIMEIRA COISA que me vem em mente quando chegamos a Nova Orleans é lar doce lar. Fico empolgada quando o cenário se torna familiar: os grandes carvalhos e as lindas casas históricas, o Lago Pontchartrain e o Superdome, os bondes vermelhos e amarelos que sempre me pareceram de brinquedo. E, é claro, o Bairro Francês. Tem até um homem tocando saxofone numa esquina, e sinto que entramos diretamente num cartão-postal de Nova Orleans.

Olho para Andrew e ele sorri para mim rapidamente. Ele dá a seta e viramos à direita na Royal Street. Meu coração falha e bate forte ao mesmo tempo quando vejo o Holiday Inn. Tanta coisa aconteceu aqui há dez meses. Este lugar... logo um hotel... é tão mais do que isso para mim, para nós dois.

— Imaginei que você gostaria de ficar aqui enquanto estivéssemos na cidade — Andrew diz, com um enorme sorriso.

Como as lembranças ainda estão, por assim dizer, tirando meu fôlego, não consigo responder, por isso só balanço a cabeça e sorrio como ele.

Pegamos nossas coisas no carro e entramos no saguão. Tudo parece exatamente igual, exceto talvez as duas mulheres na recepção, quando nos aproximamos. Não me lembro delas.

Ouço vagamente Andrew perguntar sobre a disponibilidade dos quartos que ocupamos da outra vez enquanto olho ao meu redor, tentando absorver tudo.

Meu Deus, senti falta deste lugar.

— Sim, parece que esses dois quartos estão vagos — ouço uma das recepcionistas dizer. — Querem ficar com os dois?

Isso chama a minha atenção.

Andrew se vira para mim. Acho que ele quer minha opinião.

Passo a bolsa para o outro ombro e hesito por um momento, ponderando a pergunta. Não previ isso, nem que a decisão seria tão difícil.

— Hãã, bem... — Olho para Andrew e depois para a recepcionista, ainda indecisa. — Não sei. Tá, talvez a gente devesse ficar naquele onde... — Eu me interrompo, sem querer dar a impressão de que somos dois adolescentes imaturos, desta vez, e encaro Andrew com um olhar que diz tudo. — Aquele onde o pacto foi selado.

Andrew luta para se manter sério, mas vejo claramente o sorriso em seus olhos quando ele entrega o cartão de crédito à recepcionista.

Saímos do saguão logo depois e tomamos o elevador até nosso andar. Andando pelo corredor, ainda estou absorvendo tudo ao meu redor, até a cor da tinta das paredes, porque tudo faz parte de uma lembrança, por maior, menor ou aparentemente insignificante que seja. A sensação de estar aqui de novo... sinto quase que vou cair no choro de felicidade. Mas também estou empolgada, e isso me salva de me debulhar em lágrimas.

Andrew para entre as duas portas dos nossos antigos quartos, com as duas mochilas e a guitarra elétrica que lhe dei penduradas nos ombros. Ele quer comprar um estojo para a guitarra, mas ainda não fez isso.

— É estranho estar aqui de novo, não? — ele pergunta, me olhando.

— Estranho, mas de um jeito bom.

Ficamos assim por um minuto, olhando um para o outro e para as duas portas, até que finalmente Andrew se dirige para o quarto que escolhemos e passa o cartão na fechadura.

É realmente como entrar no passado. A porta se abre lentamente, e é como se todas as emoções que experimentamos naquele quarto tivessem sido deixadas ali e estivessem nos cumprimentando agora, quando entramos. Assim que pisamos lá dentro, lembro cada noite que passamos aqui, separados e juntos, como se fosse ontem. Olho para o lugar perto da cama onde eu estava quando Andrew me domou e me tornou sua. Olho pela janela para as ruas movimentadas do Bairro Francês. Revejo o dia em que Andrew se sentou naquela soleira tocando violão, e até me vejo ali, dançando e cantando “Barton Hollow”, quando achei que estava sozinha. Eu me viro para ver o banheiro, e quando Andrew acende a luz, meu olhar vai primeiro para o chão e lembro, embora vagamente, a noite em que ele dormiu ao meu lado.

Acho que às vezes as melhores lembranças se criam nos lugares mais improváveis, mais uma prova de que a espontaneidade é mais recompensadora do que uma vida meticulosamente planejada. Do que qualquer coisa meticulosamente planejada.

Eu me viro para Andrew.

— Não sei por quê, mas eu sinto... bom, sinto que todos os meses que passamos na estrada desde dezembro foram pra chegar a este lugar. Esta cidade. Este hotel. — Não acredito que estou dizendo isso, e imediatamente começo a questionar meus motivos. Pode significar tantas coisas diferentes, mas acho que o maior significado é que nós precisávamos voltar para lá.

Sim, é exatamente isso, ou pelo menos é o que eu precisava. Quando recebo essa revelação, me vejo parada naquele quarto, cercada por pensamentos em vez de objetos materiais. Olho nos olhos de Andrew, mas na verdade não é ele que vejo. O que vejo é ele no passado. Os mesmos olhos verdes magnéticos, outro ano.

Por que estou me sentindo assim?

— Talvez você tenha razão — ele concorda, e então seu tom de voz fica mais misterioso. — Camryn, o que você tá pensando agora?

— Que a gente foi embora cedo demais da última vez. — Foi a primeira coisa que pensei, e só agora que falei começo a entender o quanto pode ser verdade.

— Por que você acha isso? — ele pergunta, se aproximando de mim.

Não sinto que ele está me fazendo perguntas para as quais já sabe as respostas, desta vez. É como se ambos estivéssemos seguindo a mesma linha de raciocínio, ambos tentando entender o sentido de tudo e buscando respostas um no outro.

Nós nos sentamos no pé da cama juntos, eu com as mãos no meio das coxas, como ele, e ficamos em silêncio por vários longos segundos. Finalmente, viro a cabeça para olhá-lo à minha direita e digo:

— Eu não queria partir quando a gente partiu, Andrew. Eu sabia que nossa próxima parada, depois de Nova Orleans, seria Galveston. Eu não tava preparada pra deixar este lugar... mas não sei por quê.

E essa verdade me deixa ansiosa.

Por quê? Além de temer que o Texas significasse o fim da nossa viagem, ou mais tarde sentir que eu sabia que algo ruim iria acontecer lá, por que mais eu iria querer ficar? Eu não queria necessariamente ficar ali para sempre, só acho que partimos cedo demais.

— Não sei — ele diz, dando de ombros. — Talvez seja porque foi aqui que finalmente selamos o pacto. — Ele me dá uma cotoveladinha de brincadeira.

Não consigo deixar de sorrir.

— É, talvez, mas acho que é mais do que isso, Andrew. Acho que é porque a gente se encontrou aqui. — Eu olho para a parede, pensativa. — Não sei mesmo.

Sinto a cama se movimentar quando Andrew se levanta.

— Bom, sugiro que desta vez a gente aproveite ao máximo antes de partir. — Ele estende a mão para mim e eu a seguro. — Talvez a gente desvende esse mistério.

Eu me levanto e digo:

— Ou... talvez seja uma nova chance.

Sinceramente, não faço ideia do que me levou a dizer isso.

— Uma nova chance de quê, exatamente? — ele pergunta.

Eu fico em silêncio, pensando, e em seguida respondo:

— Isso eu também não sei...


CONTINUA

21

21 DE JANEIRO — meu vigésimo sexto aniversário

Estou tendo um sonho legal no qual salto de paraquedas (por algum motivo bizarro, com o ator Christopher Lee) e o céu está tão azul quanto... bem, quanto o céu. Christopher Lee, usando óculos de mergulho vermelhos, faz um sinal de positivo antes que o vento o arrebate para o éter azul. Então, de repente, meu coração para, e eu inspiro uma golfada de ar gelado. Meus olhos se abrem para a realidade. Meu corpo salta da cama tão rápido que abro o braço para o lado e bato no abajur parafusado na parede.

— Pu-ta-que-pariu! — eu grito.

Levo um segundo para entender o que aconteceu. Enquanto vejo Camryn no pé da cama ainda segurando um balde de gelo, jogo freneticamente os lençóis gelados e encharcados para o lado e tento recuperar o fôlego.

Camryn gargalha como uma bruxa.

— Feliz aniversário, amor! Levanta!

Acho que mereci isso, depois do que fiz com ela na manhã do seu aniversário, mês passado. Mas essa cretina maquiavélica me pegou de jeito, muito mais pesado do que fiz com ela. Acho que a vingança é sempre pior mesmo.

Incapaz de parar de sorrir, entro no clima e levanto lentamente minha bunda pelada da cama. Ela já está fazendo aquela cara de oh-oh quando começa a se afastar de mim e ir para a porta. Sabendo que essa é a sua única saída, eu a vigio enquanto ela estuda a situação.

— Sinto muito! — ela diz com um sorriso apavorado, com a mão para trás, tateando na direção da porta.

— Hã-hã, eu sei que você sente, amor.

Ando bem lentamente na direção dela, espreitando-a com os olhos semicerrados, como se eu fosse um predador brincando com sua presa.

Ela dá uma risada de bruxa de novo.

— Andrew! Nem pensa nisso! — Ela está a meio metro da porta, agora. Mas eu ajo com calma, deixando-a pensar que vai conseguir chegar até lá, meu sorriso aumentando até que sei que já devo estar parecendo um maníaco sádico.

De repente, Camryn grita, incapaz de se controlar mais, e corre para a porta, escancarando-a.

— Nãão! Por favor! — ela grita e ri ao mesmo tempo enquanto a porta se abre, batendo na parede com estrondo. Ela dispara pelo corredor.

Quando começo a persegui-la, sua expressão chocada e o modo hilariante como ela chega a parar dão a entender que ela não esperava que eu saísse do quarto sem roupa.

— Ai meu Deus! Andrew, não! — ela grita, enquanto volta a correr a toda velocidade pelo corredor iluminado.

Eu continuo atrás dela, com meus documentos balançando ao vento. Essa garota ainda precisa aprender muito se achou mesmo que eu ia ficar com vergonha de correr atrás dela, de bunda de fora e com o pinto encolhido pelo frio. Eu não tô nem aí. Ela vai se arrepender daquele banho de gelo.

Passamos pelo quarto 321 no exato momento em que um casal de velhinhos está saindo. O homem puxa sua esposa de olhos arregalados para dentro quando o doido pelado passa ventando.

— Meu Deus do céu... — ouço uma voz distante dizendo atrás de mim.

Finalmente, quando Camryn chega ao final do imenso corredor, ela para e me encara, encurvada, com as duas mãos à sua frente como se fossem um escudo. Lágrimas escorrem de seus olhos de tanto rir.

— Eu desisto! Eu desisto! Ai meu Deus, você tá pelado! — Ela não consegue parar de rir. Rio também quando a ouço fungar com força.

— Agora você me paga — eu digo, agarrando-a e jogando-a sobre o ombro.

Ela nem tenta espernear, gritar e agitar os braços, dessa vez. Primeiro porque ela não consegue parar de rir o suficiente para controlar seu corpo a esse ponto. E, segundo, porque ela sabe que não adianta. Só espero que ela não mije em cima de mim.

Eu a carrego pelo corredor todo até nosso quarto, e quando chegamos ao quarto 321, digo:

— Desculpem por ter feito vocês verem isso. Tenham um bom-dia — acenando enquanto passo. O casal fica só olhando, o marido balançando a cabeça para mim, com uma expressão revoltada.

Fecho a porta atrás de nós e jogo Camryn na cama, sobre os cubos de gelo e a água gelada. Ela ainda está rindo.

Fico de pé no meio das pernas dela e tiro seu short e sua calcinha ao mesmo tempo, olhando para ela, sem dizer uma palavra. Fico de pau duro em segundos. Seu humor brincalhão muda instantaneamente e ela morde o lábio inferior, olhando para mim com aqueles olhos azuis docemente sedutores que sempre despertam algo primal em mim.

Sem nenhum aviso, eu me deito por cima dela e enfio tudo.

— Você sente muito mesmo? — sussurro, tirando e pondo nela devagar. Meu peito apertado sobre o dela, nossas tatuagens se tocando, Orfeu e Eurídice se juntando novamente enquanto eu e ela nos tornamos um só.

— Sim... — ela diz, as palavras tremulando de seus lábios.

Meto nela um pouco mais fundo, empurrando uma de suas coxas para cima com a mão.

Suas pálpebras ficam mais pesadas e ela joga a cabeça para trás.

Eu esmago minha boca sobre a dela, e seus gemidos reverberam na minha garganta quando começo a meter com mais força.

Então algo dentro de mim fica sombrio, predador. Me ajoelho na cama e agarro suas duas coxas, cravando os dedos em sua carne e arrastando-a pelo colchão para perto de mim tão rápido que ela nem consegue começar a se mexer. Agarrando seus braços, eu a viro de costas, seguro seus pulsos atrás das costas e a forço a ficar de joelhos. Com a outra mão, toco o contorno macio de sua bunda empinada diante de mim, apertando bem cada nádega antes de bater nelas com tanta força que seu corpo se retorce para a frente. Ela choraminga. Então aperto sua nuca com a mão, empurrando com força o rosto de lado contra o colchão. Sinto o calor emanando de sua pele no lugar onde minha mão já deixou marcas vermelhas.

Ela choraminga de novo e eu torço e aperto mais seus pulsos. Com a outra mão, enfio dois dedos em sua boca e puxo sua bochecha, enquanto enfio meu pau nela por trás.

Ela chora um pouco, com as coxas começando a tremer, mas eu não paro. Sei que na verdade ela não quer que eu pare.

Depois que eu gozo e meu coração volta a bater mais devagar, puxo seu corpo nu para perto do meu, sua cabeça suada aninhada na minha axila. Ela beija meu peito e faz dois dedos andarem pelo meu braço até minha boca. Eu pego sua mão e beijo os dedos.

— Que bom que você voltou ao normal — ela diz baixinho.

— Eu voltei ao normal? — pergunto, e ela levanta a cabeça para me olhar nos olhos. — Eu não tava normal?

— Não, antes não.

— Quando eu não tava normal? — Estou verdadeiramente confuso, mas acho adorável sua timidez ao me explicar o que quis dizer.

— Depois que a gente perdeu Lily — ela diz, e o sorriso brincalhão que estava se abrindo em meus lábios desaparece. — Não te culpo por isso, mas depois de Lily, você me tratava como uma boneca de porcelana, com medo de me quebrar se fosse bruto demais comigo.

Eu a aperto mais com meu braço e sua bochecha volta a encostar no meu peito.

— Bom, eu não queria te machucar — digo, passando meu polegar em seu braço. — Ainda sinto isso às vezes.

— Então não sinta — ela sussurra, beijando meu peito de novo. — Nunca se segure comigo, Andrew. Quero que você seja sempre você mesmo.

Eu sorrio e aperto seu braço mais uma vez.

— Sabe que tá me dando permissão pra te atacar sempre que eu quiser, certo?

— Sei, tenho plena consciência disso — ela diz, e ouço um sorriso como o meu em sua voz.

Eu beijo o alto de sua cabeça e a puxo para cima de mim.

— Feliz aniversário — ela diz novamente, e enfia a língua na minha boca.

~~~

Graças a Deus existe a Flórida no inverno. Depois da minha muito surpreendente — e prazerosa, devo acrescentar — manhã de aniversário, Camryn e eu passamos o dia ensaiando nossa nova canção. Bem, não é tecnicamente nossa, mas pra misturar um pouco as coisas, adotamos o hit sensacional de Stevie Nicks, “Edge of Seventeen”. Camryn está ficando frustrada com o modo como os versos se seguem tão rapidamente, mas está determinada a conseguir cantá-la. É a canção dela, aquela que ela quer cantar sozinha. É um passo importante para ela, porque nós sempre cantamos juntos.

E eu a admiro por isso.

Ela parece muito frustrada, mas por trás disso, tudo o que vejo é a minha Camryn voltando para mim cada dia mais. Sua alma está mais leve, a luz em seus olhos, mais brilhante, e cada vez que ela sorri, me lembro do dia em que nos conhecemos.

— Você consegue — asseguro, sentado na sacada da janela, com o meu violão encostado no peito. — Não faz tanto esforço, amor, só toma posse dela.

Ela suspira e joga a cabeça para trás, desabando na cadeira da mesinha redonda ao meu lado.

— Eu sei a letra toda, mas sempre me atrapalho naquelas últimas estrofes. Não sei por quê.

— Acabei de te falar. Você tá pensando demais, porque começa a cantar já esperando se atrapalhar quando chegar nessa parte. Não pensa. Agora tenta de novo.

Ela suspira profundamente de novo, nervosa, e fica de pé.

Ensaiamos por mais uma hora antes de ir à churrascaria mais próxima para um almoço tardio.

— Você vai conseguir. Não se preocupe — insisto, enquanto a garçonete traz nossos bifes.

— Eu sei. Mas é que é frustrante. — Ela começa a cortar o bife, com a faca numa mão e o garfo na outra.

— Demorei um pouco pra aprender “Laugh, I Nearly Died” — conto, enfiando um pedação de bife na boca com o garfo. Mastigo um pouco e então continuo, ainda de boca cheia: — De qualquer jeito, a próxima canção que quero aprender é “Ain’t No Sunshine”, do Bill Withers. Sempre quis aprender essa, e acho que tá na hora de aposentar os Stones.

Ela parece surpresa. Aponta o garfo para mim, engole e diz:

— Oooh! Ótima escolha!

— Você conhece essa? — Também estou um pouco surpreso, considerando que ela não gostava tanto de rock clássico ou blues quando nos conhecemos.

Ela balança a cabeça e come um pouco de purê.

— Adoro essa canção. Ela tava numa playlist que meu pai gostava de ouvir quando viajava a negócios. Esse Withers é danado pra cantar.

Eu dou uma gargalhada.

— Qual é a graça? — ela pergunta, me olhando com ar confuso.

— Você falou de um jeito tão country, agora. — Eu tomo um gole de cerveja e rio um pouco mais, balançando a cabeça.

— O quê? Tá dizendo que eu falei que nem caipira? — Seus olhos estão arregalados, mas seu sorriso não poderia ser mais óbvio.

— Tá mais pra uma roceira, na verdade. Esse Withers é danado pra cantar! Eeeiita ferro! — Eu a arremedo, jogando a cabeça para trás.

Ela ri comigo, se esforçando ao máximo para esconder o rubor do rosto.

— Bom, nisso eu concordo contigo — ela admite, tomando um gole de sua cerveja. Ela põe o copo na mesa e acrescenta, estreitando os olhos: — Com a escolha da canção, não com a coisa da roceira.

— Claro — digo com um sorriso, terminando meu bife.

O primeiro bife que comemos juntos foi como ela prometeu, alguns dias depois que saí do hospital após a cirurgia. E como naquele dia e toda vez que comemos carne juntos, ela só consegue comer metade. Melhor, sobra mais pra mim. Quando vejo que ela dá sinais de estar tão empanturrada que vai vomitar, estico o braço e puxo o prato dela para o meu lado.

Ela fica olhando para o celular, e então começa a responder uma mensagem de texto.

— Natalie tá pedindo pra você voltar de novo?

— Sim, ela é incansável. — Ela recoloca o celular na bolsa.

Camryn mente mal à beça. Muito mal. Não conseguiria mentir nem para salvar a própria vida, e no momento, o modo como ela fica olhando a parede de madeira rústica mostra que com certeza está mentindo. Eu palito os dentes e a estudo.

— Podemos ir? — pergunto.

Ela sorri para mim, sem graça, obviamente escondendo algo, e então percebo que a tela do seu celular se ilumina dentro da bolsa. Ela olha a mensagem de texto e de repente fica mais ansiosa para sair. Seu sorriso aumenta e ela se levanta rapidamente.

— Peraí, preciso pagar. — Aceno para a garçonete, e Camryn se senta de novo, impaciente. — Por que tá com tanta pressa assim de repente? — eu a provoco, enquanto a garçonete deixa a conta sobre a mesa, mas antes que ela vá embora, tiro o cartão de crédito da carteira.

— Por nada — Camryn desconversa.

Eu apenas sorrio.

— Tá — digo, e me encosto na cadeira, me espreguiçando e relaxando o corpo. É uma farsa. Quanto mais pareço relaxado, mais ela fica impaciente.

Minutos depois, a garçonete volta com meu cartão de crédito e o recibo. Eu anoto a gorjeta dela no recibo do restaurante e muito lentamente me levanto, visto o casaco, me espreguiço erguendo os braços bem alto, finjo bocejar...

— Porra, dá pra andar logo!

Sabia que ela não ia aguentar muito tempo. Rio, pego sua mão e saímos do restaurante.

Quando chegamos ao hotel, Camryn para no saguão.

— Pode subir. Eu subo daqui a pouco.

É óbvio que ela está armando alguma coisa, mas como é meu aniversário, entro no jogo dela, lhe dou um beijo no rosto e tomo o elevador. Mas assim que entro no quarto, sou eu que começo a ficar impaciente.

Não preciso esperar muito até que ela entra no quarto, segurando uma guitarra nova.

Eu fico de pé assim que a vejo.

— Uau...

Seu sorriso é doce e meigo, até envergonhado. Como se uma pequena parte dela tivesse medo de que eu não vá gostar.

Ando direto até ela.

— Feliz aniversário, Andrew — ela diz, me entregando a guitarra.

Coloco uma mão no braço, a outra no corpo e admiro a guitarra com um sorriso imenso. Fininha. Linda. Perfeita. Virando-a para ver a parte de trás, noto uma escrita prateada em cursivo no braço que diz:

Ele arrancou lágrimas de ferro de Plutão

e fez o inferno dar o que buscava o coração.

Um verso de uma das várias versões da história de Orfeu e Eurídice. Eu estou sinceramente sem palavras.

— Você gostou?

Eu olho para ela.

— Eu adorei. É perfeita.

Ela desvia o olhar, corando um pouco.

— Bom, eu não entendo nada de guitarras. Espero que não seja uma marca vagabunda nem nada disso. O cara da loja de instrumentos musicais me ajudou a escolher. Aí precisei esperar alguns dias pra fazer a inscrição, que eu achei que nem ia dar certo porque teve primeiro um problema, depois outro, e...

— Camryn — digo, interrompendo sua tagarelice nervosa. — Nunca recebi um presente de aniversário melhor na minha vida. — Atravesso o espaço entre nós e beijo suavemente seus lábios.


Camryn


22

ALGUM LUGAR DA Interstate 75 — maio

Estamos na estrada há meses. Lá por março já tínhamos nos acostumado tanto a ir de um hotel para o outro que isso se tornou natural. Um quarto diferente a cada semana, uma cidade diferente, uma praia diferente, tudo diferente. Mas por mais que tudo seja diferente, cada vez que entramos, é como se estivéssemos passando pela porta de uma casa onde moramos há anos. Eu jamais teria imaginado que chamaria um quarto de hotel de “casa”, ou que seria tão fácil se acostumar à vida na estrada como foi para nós. Às vezes é difícil, mas tudo é uma experiência, e eu não mudaria nada.

Mas fico me perguntando se o longo inverno não me afetou. Isso porque já me peguei sonhando acordada com morar numa casa em algum lugar, levando uma vida caseira com Andrew.

É, tenho certeza de que foi só o inverno.

São duas da manhã, e nosso carro quebrou em algum lugar do sudoeste da Flórida, num longo trecho de estrada deserta. E está caindo um dilúvio. Chuva aos baldes. Pedimos um guincho há uma hora, mas por algum motivo ele ainda não chegou.

— Tem um guarda-chuva no carro? — pergunto por cima do estrondo da chuva no teto. — Eu posso segurar enquanto você conserta o motor!

— Tá um breu lá fora, Camryn — ele responde, gritando tanto quanto eu. — Mesmo com uma lanterna, duvido que eu fosse conseguir. Pra começar, precisaria descobrir qual é o defeito.

Eu afundo mais no banco da frente e apoio os pés no painel, com os joelhos dobrados junto ao corpo.

— Pelo menos não tá frio — comento.

— A gente vai se virar por aqui esta noite — ele declara. — Não vai ser a primeira vez que dormimos no carro. Talvez o guincho chegue antes de amanhecer, e se não chegar, eu conserto o carro quando estiver conseguindo enxergar.

Ficamos em silêncio por um momento, ouvindo a chuva batendo no carro, os trovões ecoando como ondas através das nuvens. Finalmente, ficamos tão cansados que vamos para o banco de trás, nos encolhemos nele juntos e tentamos dormir. Depois de um tempo, quando fica claro que ambos estamos desconfortáveis e o espaço não é suficiente para nós dois, Andrew passa para o banco da frente. Mesmo assim, não conseguimos pegar no sono. Eu o ouço se revirando por algum tempo, e então ele pergunta:

— Onde você se vê nos próximos dez anos?

— Não tenho certeza — respondo, olhando para o teto do carro. — Mas o que sei é que o que eu fizer, quero fazer junto com você.

— Eu também — ele diz do banco da frente, deitado como eu estou, agora, de costas, olhando para cima.

— Você pensou em alguma coisa específica? — pergunto, imaginando aonde ele quer chegar com isso. Troco o braço esquerdo pelo direito, enfiando-o embaixo da cabeça.

— Pensei. Quero morar num lugar quente e sossegado. Às vezes imagino você na praia, descalça na areia, com a brisa soprando seu cabelo. Eu tô sentado embaixo de uma árvore não muito longe, dedilhando minha guitarra...

— Aquela que eu te comprei?

— Claro.

Eu sorrio e continuo escutando, imaginando a cena.

— E você tá segurando a mão dela.

— A mão de quem?

Andrew fica em silêncio por um momento.

— Da nossa menina — ele diz num tom distante, como se sua mente estivesse indo um pouco mais longe do que a minha.

Eu engulo em seco e sinto um nó se formando na minha garganta.

— Gosto dessa imagem — digo. — Então você quer parar de viajar?

— Um dia. Mas só quando a gente sentir que é certo. Nem um dia antes.

Uma lufada de vento atinge a lateral do carro, e um trovão alto faz o chão tremer.

— Andrew? — pergunto.

— Sim?

— Número três, pra acrescentar à nossa lista de promessas. Se a gente chegar à velhice, ficar com dor nos ossos e não puder dormir na mesma cama, me promete que nunca vamos dormir em quartos separados.

— Tá prometido — ele responde, com um sorriso na voz.

— Boa noite — eu digo.

— Boa noite.

E quando pego no sono, minutos depois, sonho com aquela praia quente e Andrew me olhando andar pela areia, com uma mãozinha segurando a minha.

~~~

O guincho não veio. Acordamos na manhã seguinte, entrevados e doloridos, mesmo tendo um banco para cada um.

— Vou encher aquele cara do guincho de porrada, se ele aparecer — Andrew rosna debaixo do capô.

Ele está ocupado usando uma chave inglesa... não vou nem fingir que sei o que é aquilo. Ele está consertando o carro. Isso é tudo o que sei. E está de péssimo humor. Eu só fico por perto para ajudá-lo quando ele precisa de algo, e evito dar uma de loura burra, perguntando o que é essa rebimboca ou pra que serve aquela parafuseta. A verdade é que não me importa. Além disso, só ia deixá-lo mais estressado ter que explicar.

Mas o sol apareceu. E está quente! Até parece que eu morri e fui pro céu!

Fico saltitando nas poças de chuva da noite passada, encharcando meus chinelos de dedo. Não sei o que deu em mim, além da simples mudança de clima, mas levanto os braços acima da cabeça e olho para o céu, rodopiando sem parar no meio da estrada.

— Quer fazer o favor de me ajudar? — Andrew resmunga.

Saltito para perto dele e dou um beliscão de brincadeira na sua bunda, porque estou de ótimo humor e não consigo evitar. Mas então, bang, Andrew leva um susto com o beliscão e bate a cabeça na parte de baixo do capô. Eu me encolho e ponho a mão na boca.

— Poxa, amor! Desculpa! — Estendo a mão para Andrew, puto da vida, revirando aqueles olhos verdes, mas então ele os fecha, enche as bochechas de ar e bufa devagar.

Agarro a cabeça dele, esfrego e beijo o seu nariz. Não consigo parar de sorrir, mas não estou rindo dele, só tentando fazer cara de gatinho do Shrek.

— Tá desculpada — ele diz, apontando para o motor. — Preciso que você segure esta peça aqui um momento.

Eu vou para o outro lado, olho debaixo do capô e enfio a mão no lugar, guiada pelos seus dedos.

— Isso, aí mesmo — ele diz. — Agora segura.

— Por quanto tempo?

— Até eu mandar soltar — ele responde, e vejo o sorriso começando a se formar no canto de sua boca. — Se você soltar, o cárter vai cair e a gente vai ficar parado aqui um tempão.

— Tá, então vai logo — digo, já sentindo um mau jeito começando a se formar no meu pescoço.

Ele vai até o porta-malas e pega uma garrafa d’água. Lentamente, abre a tampa. Toma um gole. Olha para a paisagem. Toma mais um gole.

— Andrew, você tá me zoando? — Eu olho de baixo do capô levantado, tentando vê-lo o melhor que posso.

Ele apenas sorri. E toma mais um gole.

Cacete, ele tá me zoando! Eu acho...

— Não solta. É sério.

— Besteira — eu insisto e começo a mover os dedos, mas decido não soltar. — Você tá dizendo a verdade? Sério mesmo?

— Claro que tô. O cárter vai cair e ainda é capaz de te molhar inteira de óleo de motor. É difícil pra cacete limpar aquela porra da pele.

— Minhas costas estão começando a doer — reclamo.

Ele demora uma eternidade, e quando estou a ponto de soltar, ele vem por trás de mim e me segura pela cintura, me tirando de perto do motor. Com uma mão, ele passa uma meleca preta na minha bochecha. Eu grito e dou um empurrão nele.

— Eca! Puta que pariu, Andrew! E se eu não conseguir limpar essa droga? — Estou realmente fula da vida, mas uma pequena parte de mim não resiste ao sorriso dele.

— Dá pra limpar, sim — ele diz, voltando para baixo do capô. — Agora entra no carro e liga a ignição quando eu mandar.

Rosno para ele antes de fazer o que ele pede, e rapidinho o Chevelle está funcionando de novo e estamos a caminho de St. Petersburg, a apenas uma hora dali.

Hoje parece um dia de verão, e queremos que não acabe nunca. Depois de arranjar um quarto de hotel e tomar um banho tão necessário, vamos para a loja de departamentos mais próxima, comprar um calção de banho para ele e um biquíni para mim, para irmos à praia nadar.

Ele insiste para que eu leve um biquíni preto minúsculo com estrelinhas prateadas, mas não é ele que vai ter que ficar puxando aquele fio dental de dentro do meu rabo a cada cinco segundos. Por isso compro um vermelho, bonitinho, que cobre um pouco mais.

— Acho que foi melhor você ter levado esse mesmo — ele diz quando entramos no carro no estacionamento da loja.

— Por quê? — pergunto, sorrindo e tirando os chinelos.

— Porque eu ia ter que quebrar a cara de uns sujeitos. — Ele dá ré e saímos do estacionamento.

— Só por olharem pra mim? — pergunto rindo, um pouco incrédula.

Ele inclina a cabeça para o lado e olha para mim.

— Não, acho que não. Na verdade, acho excitante quando outros caras olham pra você.

— Eca! — franzo o nariz.

— Não desse jeito! — ele diz. — Caramba! — Balança a cabeça, como que para dizer INacreditável, e ganhamos a rua, que está cheia de carros de turistas. — É que me sinto bem, sabe, quando tô com você. Isso faz maravilhas pelo ego de um cara.

— Ah, então sou só um troféu pra você? — Cruzo os braços e sorrio para ele.

— É, amor, só tô com você por isso. Achei que você já tivesse percebido.

— Tá, então acho que não é segredo que eu tô com você pelo mesmo motivo.

— Ah, é? — ele pergunta, me olhando de soslaio antes de voltar a prestar atenção na estrada à sua frente.

— É — eu confirmo, apoiando a cabeça no encosto. — Só tô com você pra fazer inveja na mulherada. Mas à noite, fico sonhando com o amor da minha vida.

— E quem seria ele?

Estufo os lábios e olho ao meu redor, depois para ele, com ar brincalhão.

— Bom, não vou dizer o nome dele, porque não quero que você tire satisfação com ele e leve porrada. Mas posso dizer que ele tem cabelo castanho, olhos verdes lindos e umas tatuagens. Ah, e ele é músico.

— É mesmo? Bom, pelo visto ele é demais, então por que me usar como troféu?

Eu dou de ombros, porque não consigo pensar numa boa resposta.

— Vai, pode me contar — ele insiste. — Eu nem conheço esse cara mesmo.

— Desculpa — digo olhando-o —, mas não falo dele pelas costas.

— Tudo bem — ele diz sorrindo. — Quer saber?

— O quê?

Andrew sorri maldosamente, e eu não gosto nem um pouco.

— Eu me lembro de umas coisinhas da nossa primeira viagem que você não chegou a fazer.

Oh-oh...

— Nem faço ideia do que você tá falando — eu minto.

Ele tira a mão direita do volante e a apoia na perna. Aquele seu olhar de desafio está ganhando força, e eu tento não tornar meu crescente nervosismo óbvio demais.

— É, acho que você me deve uma bunda de fora na janelinha, e ainda não testemunhei você comendo um bicho. O que prefere? Um gafanhoto? Um grilo? Uma minhoca? Ou talvez uma aranha tremedeira. Será que tem aranhas tremedeiras aqui na Flórida?

Eu fico toda arrepiada.

— Desiste, Andrew — digo, balançando a cabeça. Eu apoio o pé na porta e enrolo minha trança nos dedos, tentando disfarçar a preocupação. — Não vou fazer isso. Além do mais, isso foi na primeira viagem, e você não pode transferir coisas daquela viagem pra essa. Devia ter me obrigado a fazer quando teve chance.

Andrew continua sorrindo, como o merdinha malicioso que ele é.

— Não — digo de novo, bem séria.

Eu olho para ele.

— Não! — repito uma última vez, e ele fica rindo.

— Tudo bem — ele diz, voltando a segurar o volante com as duas mãos. — Mas valeu a tentativa. Não pode me culpar por tentar.

— Acho que não.

Andrew

Passamos o dia inteiro nadando e tomando sol na praia. Vemos o sol se pôr no horizonte e finalmente as estrelas, quando elas ganham vida na escuridão. Uma hora depois que escurece, encontramos um grupo de pessoas da nossa idade. Eles estavam na praia perto de nós havia algum tempo, curtindo.

— Vocês são daqui? — o cara alto com o braço direito cheio de tatuagens pergunta.

Um dos casais se senta na areia perto de nós. Camryn, sentada no meio das minhas pernas, endireita o corpo e presta atenção.

— Não, a gente é de Galveston — respondo.

— E Raleigh — Camryn completa.

— A gente é de Indiana — diz a garota de cabelo preto, se sentando. Ela aponta para os outros, que ainda estão de pé. — Mas eles moram aqui.

Um dos outros caras abraça a namorada.

— Eu sou Tate, esta é Jen — ele aponta para a namorada, depois para os outros de pé ali perto. — Johanna. Grace. E aquele é meu irmão, Caleb.

Os três acenam e sorriem para nós.

— Eu sou Bray — a garota de cabelo preto perto de Camryn diz. — E este é o meu noivo, Elias.

Camryn se endireita mais e espana a areia das mãos, esfregando-as.

— Prazer — ela responde. — Eu me chamo Camryn e este é meu noivo, Andrew.

Elias aperta a minha mão.

Tate, o cara tatuado, diz:

— A gente tá indo pra um lugar reservado, numa praia a meia hora daqui. É ótimo pra uma balada. Bem isolado. Se vocês quiserem, podem ir com a gente.

Camryn vira um pouco o corpo para olhar para mim. Nós dois conversamos com os olhos por um momento. De início, eu não estava com muita vontade de ir, mas ela parece querer muito. Fico de pé e a ajudo a levantar.

Eu me viro para Tate.

— Tá. A gente segue vocês.

— Show de bola — ele diz.

Camryn e eu pegamos nossas toalhas e a sacola que trouxemos com carne-seca, água mineral e filtro solar, e seguimos Tate e seus amigos da praia até o estacionamento.

E agora estamos de novo no carro e podemos ser espontâneos. Não estou muito tranquilo com essa porra, porque faz muito tempo que não saio com ninguém além de Camryn, mas eles parecem bastante inofensivos.

A tal viagem de meia hora acaba levando uns 45 minutos.

— Agora não faço mais ideia de onde a gente tá.

Pegamos uma estrada escura depois de sair da rodovia principal há no mínimo vinte minutos, o Jeep Sahara deles queimando o chão na nossa frente a 120 por hora. Consigo acompanhar o ritmo sem problemas, mas não costumo correr tanto em território desconhecido à noite, quando não dá pra avistar de longe a polícia escondida nas laterais da estrada. Se eu for multado a culpa é minha, mas posso encher o tal Tate de porrada mesmo assim, só por uma questão de princípio.

— Pelo menos a gente tá com o tanque cheio — ela diz. Depois ri, estica o pé para fora da janela e continua: — Vai ver que eles estão planejando ir pra uma cabana sinistra no meio do mato e matar a gente lá.

— Ei, eu também pensei nisso — digo, rindo junto com ela.

— Bom, eu confio em você pra me proteger — ela brinca. — Não deixa nenhum deles fazer picadinho de mim, nem me obrigar a ver Honey Boo Boo.

— Pode deixar. O que me lembra do número quatro na nossa lista de promessas: se um dia eu me perder ou desaparecer, prometa que não vai parar de me procurar exatamente por 365 dias. No dia 366, aceite que se eu estivesse vivo, já teria dado um jeito de voltar pra você, e que portanto tô morto faz tempo. Quero que você siga com sua vida.

Ela se ergue do banco, puxando o pé para dentro do carro.

— Não gostei disso. Tem gente que desaparece e é encontrada anos depois, viva e saudável.

— É, mas não é o meu caso. Pode acreditar, se passar um ano, eu morri.

— Tá, tudo bem — ela diz, afastando o cinto de segurança e chegando perto de mim. Ela encosta a cabeça no meu ombro. — Só se você topar fazer o mesmo por mim. Um ano. Nem um dia a mais.

— Prometo — eu digo, mas é uma mentira deslavada. Eu continuaria procurando por ela até morrer.


Camryn


23

NÃO TEM PROBLEMA mentir sobre algumas coisas. Essa “promessa” é uma delas. De jeito nenhum eu conseguiria parar de procurá-lo depois de um ano. Na verdade, jamais iria parar de procurar. Esse pacto cheio de promessas que juramos manter é importante para nós dois, mas acho que pra certas coisas, vou ter que concordar abertamente e depois fazer o que eu quiser, caso aconteçam.

Além disso, tenho a impressão de que ele também está mentindo.

Andrew não sabe, mas vi aquela garota de cabelo preto, Bray, algumas horas antes, nos banheiros perto da praia. Ela acabou entrando na minha cabine depois de mim. Não chegamos a conversar, só nos cruzamos com um sorriso amigável e mais nada. Acho que foi isso que a motivou a fazer seus amigos nos convidarem para a balada.

Acho que vai ser divertido. Andrew e eu passamos 100% do nosso tempo sozinhos um com o outro, e imagino que seja bom para os dois sair um pouco do casulo e socializar mais com outras pessoas. E ele não levantou nenhuma objeção, então acho que ele também supõe que não vai fazer mal nenhum.

A viagem pro tal lugar “reservado” parece levar uma hora.

O jipe deles vira à esquerda numa estrada parcialmente pavimentada e, quanto mais avançamos, mais o asfalto fica esburacado. Os faróis do carro deles se agitam na escuridão diante de nós, até que a estrada arborizada se abre numa grande clareira de areia e pedras. Andrew para ao lado deles e desliga o motor.

— Bom, é isolado mesmo — eu comento ao sair do carro.

Andrew chega perto de mim, olhando para a praia deserta. Ele segura a minha mão.

— A gente pode voltar agora, ainda dá tempo — ele me provoca. — Depois que nos tirarem de perto do carro, pode ser a última vez que vamos nos ver. — Ele aperta a minha mão e me puxa mais para perto, brincando.

— Acho que vamos sobreviver — decido, quando o último do grupo sai do jipe e nos encontra atrás dos carros.

Tate abre a porta de trás do jipe, tira um isopor gigante e o joga na areia.

— Tá cheio de cerveja aqui — ele diz, erguendo a tampa e mexendo dentro.

Ele joga uma garrafa de Corona para Andrew. Não é sua favorita, eu sei, mas ele também não chega a recusar.

Bray e o noivo, nem lembro mais o nome dele, se aproximam de mim, enquanto Tate destampa outra garrafa de Corona e me entrega.

Eu aceito.

— Obrigada.

Andrew abre a tampa da sua com o abridor de garrafas do chaveiro.

— Se vocês têm um cobertor, é bom trazer — Tate diz. Sua namorada se junta a ele, sorrindo para mim ao passar entre nós com seu biquíni branco minúsculo. — E tenho um som da porra no carro — ele acrescenta, dando tapinhas no jipe —, então música também não vai ser problema.

Andrew abre o porta-malas e pega o cobertor que sempre leva no carro, o mesmo que usamos na noite em que tentamos dormir naquele campo julho passado. Só que agora, graças a mim, ele foi lavado e não está fedendo a óleo e fumaça de carro.

— Cadê meu short? — pergunto, remexendo no banco de trás.

— Aqui — Andrew diz do porta-malas. Quando saio do carro, ele joga o short para mim e eu o apanho no ar.

— Não pretendo nadar nesse abismo à noite — digo, vestindo o short por cima do meu biquíni vermelho.

Ouvindo o que eu falei, Bray diz:

— Ainda bem que não sou só eu!

Sorrio para ela por cima do teto do Chevelle e fecho a porta.

— Você já veio aqui com eles?

Tate e os outros estão indo para a praia agora, carregando o isopor, sacolas de praia e outros objetos. Eles deixam as portas do jipe abertas, com os alto-falantes despejando rock no último volume.

— A gente veio ontem — Bray conta —, mas Elias logo ficou bêbado e começou a pôr os bofes pra fora, por isso eu tive que voltar dirigindo pro hotel bem cedo.

Elias, isso, esse é o nome do noivo dela. Ele balança a cabeça e lança um olhar sarcástico de obrigado-por-contar-pra-todo-mundo para ela.

Andrew e eu andamos ao lado de Bray e Elias, de mãos dadas, até onde todos já estão acampando não muito longe, perto da água. Quando chegamos e estendemos nosso cobertor na areia, Tate risca um fósforo e o joga num monte de galhos. A chama acende o fluido de isqueiro que ele espalhou antes na fogueira. Uma coluna de fogo alta e brilhante espirala por cima do monte e ilumina a escuridão ao nosso redor com uma luz laranja dançante. O calor das chamas já está chegando em mim, por isso afasto um pouco mais nosso cobertor da fogueira, antes que eu e Andrew sentemos nele. Bray e Elias também se sentam sobre duas toalhas de praia gigantes. Tate, o irmão dele e as outras três garotas dividem uma grande colcha. Enfio o fundo da minha garrafa de cerveja na areia ao meu lado, para que ela fique de pé.

Tate me lembra aqueles surfistas da Califórnia, muito louros e bronzeados. Como todos os outros caras, incluindo Andrew, Tate se senta com os joelhos dobrados e os braços apoiados neles. E enquanto estudo todos discretamente, logo vejo algo com o rabo do olho que me faz ficar territorial na hora. A loura ao lado do irmão de Tate, que duvido que seja namorada dele porque os dois não parecem estar juntos, está olhando para Andrew com olhos famintos. Não quero dizer de um jeito inocente, de quem só vai olhar sem tocar. Não, essa garota tentaria dormir com ele assim que eu me afastasse.

Quando ela nota que a estou observando, desvia o olhar e começa a conversar com a garota ao seu lado.

Não tenho com que me preocupar com relação a Andrew, mas se ela me desrespeitar sabendo que ele é meu noivo, não vou pensar duas vezes antes de enchê-la de porrada.

Eu me pergunto se Andrew percebeu.

Andrew

Espero que Camryn não tenha percebido o jeito como aquela garota me olhou agora. Se eu e ela ficássemos cinco segundos sozinhos aqui, ela tentaria dar pra mim. Nem fodendo eu ia querer isso, mas este luau já ficou um pouco mais interessante.

Aposto minha bola esquerda que ela já dormiu com Tate e o irmão dele. Talvez não com Elias — ele parece o tipo fiel —, mas ela daria pra ele também, se ele topasse.

Puta merda, ela olhou pra mim de novo.

Olho rapidamente para Camryn para não cruzar olhares com a menina e não dá outra, Camryn está com aquele sorriso revelador no rosto. É, com certeza ela viu.

Eu pego Camryn no colo e a coloco no meio das minhas pernas.

— Não se preocupe, amor — sussurro no seu ouvido, e então beijo seu pescoço para que a garota veja.

— Eu não tô preocupada — Camryn diz, deitando sobre o meu peito.

Não está preocupada comigo, claro, mas sinto a tensão territorial emanando de seu corpo. Cacete, só a ideia de vê-la pulando em cima daquela garota por minha causa... Tudo bem, eu não deveria pensar nisso. Fodeu. Tarde demais.

— Essas tatuagens são iradas — Tate diz, apontando.

Todos estão olhando a tatuagem em mim e Camryn. Ela se ergue do meu peito para que vejam melhor.

— Pode crer — Bray diz, encantada. Ela rasteja pela areia mais para perto de nós. — Eu tava curiosa mesmo pra ver.

A loura que estava me olhando agora há pouco ri de Camryn, embora Camryn não note, porque está ocupada mostrando a tatuagem para Bray.

Uso essa oportunidade em meu benefício.

— Vira pra cá, amor, mostra como elas se encaixam. — Eu viro Camryn no meu colo e me deito de costas, deitando seu corpo sobre o meu.

O grupo nos olha com atenção, o rosto da loura ficando um pouco amargo quando a encaro diretamente enquanto aperto meu corpo contra o de Camryn. Alinhamos nossas tatuagens para formar o desenho de Orfeu e Eurídice; minha Eurídice usando uma veste branca comprida e transparente, colada ao corpo pelo vento, dobras de tecido sopradas atrás dela, que estende os braços para o Orfeu tatuado nas costelas de Camryn. Bray olha atentamente os detalhes, seus olhos pretos arregalados de assombro. Ela olha novamente para Elias e agora ele parece nervoso, como se tivesse medo de que Bray vá arrastá-lo para o tatuador mais próximo amanhã.

— Isso. É. Demais — Bray diz. — Quem são eles?

— Orfeu e Eurídice — respondo. — Da mitologia grega.

— Uma história trágica de amor verdadeiro — Camryn acrescenta.

Eu a abraço mais forte.

— Bom, vocês dois não parecem ter nada de trágico — Tate diz.

Abraço Camryn ainda mais forte, nós dois pensando em coisas particulares, que é melhor guardar só para nós. Eu beijo o alto do seu cabelo.

Bray se afasta, ainda sentada com os joelhos afundados na areia.

— Eu achei linda. E é bom que seja, porque sei que isso dói um bocado.

— É, doeu mesmo — Camryn diz. — Mas valeu cada hora de sofrimento.

Algum tempo depois, Camryn e eu já tomamos pelo menos três Coronas cada um, mas só ela demonstra. Está um pouco alta, mas só o bastante para ficar mais tagarela.

— Eu sei! — ela diz para Bray, a de cabelo preto. — Vi um show deles com minha melhor amiga, Nat, e eles são demais! Não tem muitas bandas que conseguem tocar quase como no disco.

— É verdade — Bray diz, terminando sua cerveja. — Você disse que é da Carolina do Norte?

Camryn levanta as costas do meu peito e se senta de pernas cruzadas na areia.

— Sou, mas Andrew e eu não moramos mais lá.

— Onde vocês moram? — Tate pergunta. Ele puxa um longo trago do seu cigarro e segura a fumaça enquanto fala. — No Texas?

Todos se viram para me olhar quando respondo.

— Não, a gente meio que... viaja.

— Viaja? — Bray pergunta. — Como, vocês têm um trailer?

— Não exatamente — Camryn diz. — A gente só tem o carro.

A loura que está me olhando o tempo todo entra na conversa:

— Por que vocês estão viajando?

Noto imediatamente por sua expressão que ela está se esforçando ao máximo para chamar a minha atenção, mas eu a ignoro e respondo, olhando para Bray, que está ao nosso lado: — A gente toca junto.

— Como, vocês têm uma banda? — a loura pergunta.

Eu olho para ela, desta vez.

— Mais ou menos — digo, mas é só o que eu respondo, e volto a dar atenção para Bray.

— Que estilo de música vocês tocam? — pergunta Caleb, o irmão de Tate. Ele está se engraçando com a outra garota desde que chegamos. Provavelmente também não estão juntos, mas ele com certeza vai se dar bem hoje.

— Rock clássico, blues e folk, coisas assim — respondo, tomando um gole de cerveja.

— Vocês precisam tocar pra gente! — Bray diz, empolgada.

Ela está claramente tão alta quanto Camryn, e as duas parecem estar se dando bem.

Camryn vira na areia para me olhar, de olhos arregalados e cheios de entusiasmo.

— A gente podia. O violão tá no banco de trás.

Eu balanço a cabeça.

— Não, não tô a fim agora.

— Ah, vai, amor, por que não?

Aí estão a cara de gatinho do Shrek e o jeito de choramingar que é a marca registrada de Camryn, que nunca falham em me obrigar a fazer tudo o que ela quer. Mas eu enrolo mais um pouco, talvez esperando que ela desista e diga deixa pra lá.

É claro que ela não desiste.

— É, cara, se você trouxe um violão e sabe tocar, vai ser show — Tate diz.

A essa altura, todos estão me olhando — até Camryn, que na verdade é a única pela qual vou fazer isso.

Cedendo, eu me levanto, vou até o carro e volto trazendo o violão.

— Você vai cantar comigo — digo para Camryn quando me sento ao seu lado.

— Nãão! Eu tô muito bêbada! — Ela me beija na boca e vai se sentar perto de Bray e Elias, para me dar um pouco de espaço, acho.

— Tudo bem, o que você quer que eu cante?

A pergunta era para Camryn, mas Tate responde:

— Ei, o que você quiser, cara.

Penso em várias canções por um minuto e finalmente escolho uma porque é bem curta. Mexo um pouco nas cordas, afino o violão rapidinho e começo a tocar “Ain’t No Sunshine”. No início, estou pouco me fodendo se está bom, mas como sempre, depois que começo, me torno outra pessoa e dou tudo de mim. Meus olhos ficam fechados a maior parte da canção, mas sempre consigo sentir a energia das pessoas ao meu redor, se elas estão curtindo ou não.

Todas estão.

No segundo refrão, olho nos olhos de Camryn enquanto dedilho as cordas. Ela está sentada na areia sobre os joelhos, seu corpo balançando de um lado para o outro. As outras garotas fazem o mesmo, totalmente imersas na música. Eu canto o último refrão, e essa canção basta para que eu queira tocar mais. Bray mal consegue se segurar, me dizendo o quanto foi bom e dando bastante atenção a Camryn, o que a faz ganhar pontos comigo. Diferente da loura, que está me olhando um pouco mais do que antes.

— Porra, cara, você não tava brincando — Tate diz.

Ele acende um baseado.

— Toca outra — Bray diz, encostando-se em Elias de novo, que a abraça por trás.

Tate passa o baseado primeiro para Camryn. Ela apenas o olha por um segundo, sem saber se deve aceitar ou não. Vejo uma expressão fugidia de dor em seu rosto; eu sei que ela está se lembrando do seu momento de fraqueza com os comprimidos. Ela balança a cabeça.

— Não, obrigada, acho que hoje só vou beber.

Eu sorrio por dentro, orgulhoso de sua decisão. E quando Tate o oferece para mim em seguida, faço o mesmo, não porque eu não queira dar uns tapas, mas porque não consigo curtir assim quando Camryn não quer.

Nunca fui muito fã de maconha, mas curto dar um pega de vez em quando. Agora não é o momento.

Toco mais algumas canções em volta da fogueira. Camryn finalmente canta uma comigo, e depois quero só relaxar com a minha garota e curtir essa onda tão rara. Deixo o violão ao nosso lado no cobertor e puxo Camryn novamente para o meu colo.

O irmão de Tate está chupando a língua daquela garota e bolinando-a há algum tempo. Eles não falam muito, por motivos óbvios. A loura que antes estava me olhando finalmente se tocou, eu acho. Ou isso, ou já está chapada demais para se importar comigo.

A música do jipe de Tate aumenta de novo, e ele volta de lá trazendo uísque, uma garrafa de dois litros de Sprite e uma pilha de copos descartáveis. A namorada dele começa a misturar as bebidas e distribuir os copos.

— Bebe aí, cara — Tate aconselha. — Nem esquenta se vai dirigir depois. A polícia não conhece esse lugar.

— Tá, eu aceito um copo — respondo.

Olho para Camryn, lembrando sua expressão quando Tate lhe passou o baseado.

— Se você não quiser, eu não bebo — digo.

À parte não querer que ela sinta que está traindo a si mesma bebendo demais, também não quero que encha a lata a ponto de ficar um lixo na manhã seguinte.

— Não, tudo bem, amor. Só vou tomar uma dose, tá?

Ela sorri docemente para mim como se estivesse esperando a minha permissão, o que eu acho bonitinho pra cacete.

— Tá — eu cedo, por não querer magoá-la, e ela aceita o copo da namorada de Tate.

Todos relaxamos, bebemos e conversamos sobre tudo quanto é assunto por um tempo enorme. Camryn está gargalhando, sorrindo e falando com Bray sobre absorventes íntimos, um assunto que não faço ideia de como surgiu, nem quero saber, mas estamos nos divertindo muito. Músicas de bandas que nunca ouvi tocam alto no som perto dali, e fico intrigado com as últimas canções, que tenho certeza de que são com o mesmo cantor.

— Quem são esses? — pergunto a Tate.

Ele desvia o olhar da namorada, que está com a cabeça no seu colo.

— Quem? A banda?

— Sim — digo. — Eles são muito bons.

— Isso, meu amigo, é Dax Riggs. Tá fazendo carreira solo agora. Ele começou no Acid Bath, acho... — Ele parece pensativo, como se não tivesse certeza. — Bom, ele tocou em vários grupos. Acid Bath e Agents of Oblivion são os mais conhecidos.

— Acho que já ouvi falar do Acid Bath — comento, tomando mais um gole de uísque com Sprite.

— Eu não me espantaria — Tate acrescenta.

— Preciso conhecer o som desse cara. Ele é desconhecido?

Camryn, abandonando a conversa sobre absorventes com Bray, se aproxima de mim e encosta a cabeça no meu ombro.

— É, ele nunca aderiu ao mainstream — Tate diz. — Ainda bem, porque o mainstream é uma bosta. Fico puto quando vejo um grupo legal se vendendo, fazendo comercial de pasta de dente e merdas assim.

Eu rio um pouco.

— Com certeza. Eu nunca assinaria um contrato com uma gravadora, nem se me oferecessem.

— Falou tudo, cara — Tate diz. — Depois que você assina, vira a putinha deles. Sua música não te pertence mais e você precisa abrir as pernas pro cuzão que assina seus cheques.

Tô começando a gostar desse cara. Só um pouquinho.

— Andrew, preciso fazer xixi — Camryn diz.

Eu olho para ela. Tirando o copo de sua mão, eu o deixo na areia.

— Também tô precisando dar uma mijada — digo tanto para ela quanto para Tate.

Tate aponta para a esquerda com outro cigarro entre os dedos e diz: — Vão praquele lado. Não tem vidro quebrado nem merda nenhuma no chão.

Deixo meu copo perto do de Camryn e a ajudo a levantar. Andamos pela areia até um lugar cheio de árvores e pedras, distante o suficiente para que ninguém nos veja.

— A gente vai ter que passar a noite aqui. Não tô em condições de voltar dirigindo.

Ela se agacha enquanto mijo a poucos metros dela.

— Eu sei. Acho que finalmente vamos dormir sob as estrelas, hein?

Estou rindo dela por dentro. Minha gata está tão bêbada que está até enrolando a língua.

— Pois é, acho que sim — concordo. — Mas é bom você saber que na verdade esta vez não conta porque você mal vai lembrar amanhã.

— Vou, sim.

— Nãão, não vai.

Ela quase cai depois de terminar e tentar ficar de pé. Eu a seguro pelo braço e passo o meu pela sua cintura. Então a beijo no alto da cabeça.

— Eu te amo tanto.

Não sei por que senti tanta vontade de dizer isso nesse momento, mas só de tê-la ao meu lado e saber que ela não está em condições de se cuidar esta noite, eu precisava dizer. Essas palavras estavam presas na minha garganta e, admito, eu estava começando a ficar engasgado com elas. Eu poderia culpar o álcool, mas não, mesmo completamente sóbrio, eu a amo pra cacete.

Ela passa os dois braços pela minha cintura, aninha a cabeça no meu peito quando começamos a voltar e me aperta.

— Eu também te amo.


24

À MEDIDA QUE a noite avança, as cenas do nosso pequeno grupo começam a mudar. As pessoas estão falando menos e se pegando mais. Bray e Elias estão deitados ao lado da fogueira. Tate e a namorada já poderiam estar transando; só falta tirarem a roupa. Por sorte, a loura sinistra me esqueceu e está ajudando a amiga a apalpar Caleb a uns dois metros e meio de mim e Camryn.

É, tenho certeza de que imagino no que isso vai dar. Nada de especial. Não é uma situação que eu ainda não tenha vivido, mas desta vez meu principal objetivo não é satisfazer duas garotas ao mesmo tempo. Só preciso manter Camryn longe dessa merda.

Quando começo a virar o corpo para falar com Camryn, que está deitada ao meu lado, o mundo todo some debaixo de mim. Tento levantar a cabeça. Eu acho. Sinto fadas dançando em cima dos meus olhos. Abertos.

— Caralho... — digo em voz alta, mas talvez não tenha dito. Talvez tenha sido só minha imaginação.

Eu levanto a mão diante do rosto e a lua parece estar aninhada entre meu polegar e meu indicador. Tento soltá-la, mas ela é pesada demais e empurra meu braço para baixo. Sinto meu cotovelo bater na areia como um haltere de 40 quilos.

Minha cabeça está rodando. A cor do fogo é azul, amarela e vermelho-escura. O som do oceano está triplicado em meus ouvidos, misturando-se ao crepitar da madeira no fogo e a alguém gemendo.

— Camryn? Cadê você?

— Andrew? Eu... eu tô aqui. Eu acho.

Nem sei dizer se era realmente a voz dela.

Fecho os olhos com força e abro de novo, tentando clarear a visão, mas percebo que não quero enxergar melhor. Estou sorrindo. Meu rosto parece tão esticado que por um instante tenho medo de que não vá parar de esticar e acabe rasgando no meio. Mas tudo bem.

Puta que me pariu... eu tô viajando. Que. Porra. Eles. Me deram pra beber?

Tento me levantar, mas quando acho que estou de pé, olho para baixo e percebo que nem me mexi. Tento de novo, com o mesmo resultado.

Por que não consigo levantar?!

— Caralho, Tate — ouço uma voz dizer, mas nem consigo dizer se é masculina ou feminina. — Que puta bagulho bom. Caraaalho... Tô vendo arco-íris e o escambau. É a porra do Reading Rainbow1...

Em seguida, quem disse isso começa a cantar o tema do Reading Rainbow.

Me sinto na cidade dos malucos, mas na verdade não quero ir embora.

Finalmente, eu me deito de costas e verifico duas vezes minha posição, apalpando a areia dos dois lados do corpo com as palmas das minhas mãos pesadas. Então olho para o céu cheio de estrelas e vejo que elas se movem para lá e para cá na escuridão, num balé poético.

O rosto de Camryn aparece sobre o meu peito, como um fantasma emergindo da neblina.

— Amor? — pergunto. — Você tá bem?

Estou preocupado com ela, mas não consigo parar de sorrir.

— Tô. Eu tô óooootima. Tô ótima.

— Deita aqui comigo — digo para ela.

Fecho os olhos quando sinto sua cabeça sobre o meu peito e sinto o cheiro do xampu que ela sempre usa, só que agora está muito mais forte. Tudo está mais forte. Cada ruído. A sensação do vento no meu rosto. Dax Riggs cantando “Night Is the Notion” ao fundo, em algum lugar que minha mente diz ser longe, mas o som está tão alto que parece que o jipe está encostado na minha cabeça. Consigo quase sentir o cheiro de borracha dos pneus.

E eu não consigo evitar. Começo a cantar “Night Is the Notion” o mais alto que posso. Não sei como já conheço a letra, mas conheço. Conheço, caralho. E parece que a canção dura horas, e eu nem ligo. Finalmente, paro de cantar, só fecho os olhos e sinto a música passar através de mim. E não me importa mais nada agora, a não ser o momento. E eu tô doido de tesão. Levo um segundo — eu acho — para perceber que meu pau está sentindo a mesma brisa que meu rosto sente. E é bom.

— Camryn? Quê? Tá.

Nem sei o que estou dizendo, ou se estou realmente dizendo alguma coisa. Minha mente me diz que preciso me certificar de que ela não está chapada a ponto de fazer um boquete na frente dos outros, mas ao mesmo tempo não quero que ela pare.

Eu fico sem fôlego e minha cabeça cai para o lado. Vejo Caleb em cima de uma das garotas, as coxas nuas dela apertadas ao redor do corpo dele, que sobe e desce. Desvio o olhar. Olho para o céu de novo. Traços de luz vão para um lado e para o outro com o movimento das estrelas. Estremeço quando sinto meu pau batendo no fundo da garganta dela.

Eu olho para baixo. Vejo uma cabeleira loura. Estendo a mão para tocá-la, parte de mim querendo afastá-la, outra parte querendo forçá-la a engolir mais fundo. Acabo escolhendo a segunda opção, mas quando jogo a cabeça para trás e vejo o rosto de Camryn ao lado do meu, ergo os ombros da areia.

— Sai de cima de mim, piranha! — consigo gritar.

Eu a chuto para longe e o barato muda completamente. Não estou mais curtindo.

Eu me obrigo a sentar, tento dar murros na cabeça com as mãos, esperando ficar sóbrio com o choque, mas não adianta porra nenhuma. Só consigo enfiar o pau de volta no short, olho para o outro lado da fogueira e vejo aquela piranha nojenta já desmaiada perto de Caleb. Não sei quanto tempo passou, mas todos estão capotados, menos eu.

Estou em pânico, não consigo nem respirar. O que foi que aconteceu, porra?

Eu viro para o lado e abraço Camryn, forçando-a a ficar perto de mim, e não solto mais.

E essa é a última coisa de que me lembro.

Camryn

Estou enjoada. Meu Deus, eu nunca, nunca tive uma ressaca assim. O sol da manhãzinha e a brisa que vem do oceano me acordam. De início fico deitada ali, pois tenho medo de vomitar se me mexer. Minha cabeça está latejando, as pontas dos meus dedos estão dormentes, o resto do meu corpo treme, tomado pela náusea. Eu gemo e acabo de abrir os olhos, pressionando um braço horizontalmente sobre a barriga. Sei que de jeito nenhum vou conseguir sair desta praia sem antes vomitar por uns bons cinco minutos, mas tento me segurar o máximo que posso.

Minha bochecha está apertada contra a areia debaixo de mim. Sinto grãos grudados na pele. Com muito cuidado, limpo a areia com um dedo antes que ela entre no meu olho.

Ouço uma pancada, seguida por um estalo e gritos.

Apesar dos protestos do meu estômago, viro para o outro lado, olhando para o oceano.

— Sai de cima dele! — ouço uma garota gritar.

Isso me acorda ainda mais, e por uma fração de segundo me dou conta do quanto eu estava desacordada. Mas agora estou totalmente alerta. Levanto a cabeça da areia e vejo Andrew moendo Tate com os punhos.

— Andrew! — tento gritar, mas minha garganta está irritada e minha voz sai rouca, por isso só consigo balbuciar seu nome. — Andrew! — digo de novo, controlando melhor minha voz.

— Qual é o seu problema, caralho?! — Tate grita.

Ele está tentando se afastar de Andrew, mas Andrew continua avançando. Ele dá mais e mais socos, dessa vez derrubando Tate sentado na areia.

Então o irmão de Tate vem ajudar e soca o quadril de Andrew. Os dois caem longe de Tate e rolam vários metros. Andrew pega Caleb pela garganta e o levanta acima de seu corpo, jogando-o com força na areia, e está em cima dele em segundos. Ele dá três socos em Caleb antes que Tate chegue por trás, puxando-o para longe.

— Fica frio aí, porra! — Tate grita.

Mas Andrew gira o corpo e atinge seu queixo com um gancho, e eu ouço outro estalo de ossos de virar o estômago. Tate cambaleia para trás, segurando a mandíbula.

— Você drogou a gente! Eu vou te matar, caralho! — Andrew ruge.

Finalmente consigo ficar de pé, embora eu tropece uma vez antes de chegar perto de Andrew. Quando vou segurar o braço dele para puxá-lo, sou empurrada por trás e caio sentada. Nem sei o que aconteceu, mas por um segundo fico sem fôlego. Levanto a cabeça e vejo Caleb em cima de Andrew. Devo ter sido atingida quando Caleb atacou Andrew por trás.

Eu me levanto novamente da areia e vejo Elias se aproximando.

Em pânico, olho para meus dois lados e novamente para Elias. Tudo parece estar em câmera lenta. Os três vão se juntar contra Andrew? Ah, nem fodendo! Começo a agarrar Tate enquanto ele e Caleb estão esmurrando Andrew, mas sou empurrada para longe por Elias.

— Sai! — ele rosna para mim.

Andrew consegue se aguentar bem contra Tate e Caleb, ainda está de pé e trocando socos com os dois, mas se Elias entrar na briga, acho que ele não vai conseguir lutar contra os três.

Elias entra no bolo e não consigo entender quem está batendo em quem, quando um par de mãos me pegam pelas axilas por trás.

— Fica aqui comigo, garota — Bray diz.

No meio da minha confusão e pavor, vejo Elias esmurrando Caleb e o alívio toma conta do meu corpo, embora isso dure pouco.

A boca de Andrew está sangrando. Mas todos os quatro estão sangrando em algum lugar. A luta parece continuar para sempre, e a cada golpe que Andrew dá ou recebe, eu me encolho e fecho os olhos, querendo apenas bloquear tudo. Estou sentada na areia com Bray me abraçando por trás, porque ela ainda acha que vou tentar entrar na briga. Mas voltei a sentir que vou vomitar e mal consigo me mexer. Gotas de suor brotam na minha testa. Minha nuca está fria e úmida. O céu está começando a girar.

— Oh, não. Bray... acho que eu vou...

Eu perco o controle ali mesmo. Sinto meu corpo se desvencilhando com violência dela e minhas mãos se estendendo, afundando na areia. Minhas costas se arqueiam e descem, se arqueiam e descem, e eu vomito sem parar, sem parar. Meu Deus, por favor, faz isso parar. Eu nunca mais vou beber! Por favor, faz isso parar! Mas parece que eu nunca vou parar. Quanto mais vomito, mais meu corpo reage ao cheiro do vômito, ao som, ao sabor dele, e isso me faz vomitar ainda mais. Mal consigo ouvir a luta ao fundo por cima dos meus próprios ruídos, e dos estertores secos quando não resta mais nada no meu estômago para devolver. Finalmente, caio para o lado. Não consigo me mexer. Meu corpo treme incontrolavelmente, minha pele está fria e quente e pegajosa em todo lugar. Sinto que Bray está sentada ao meu lado.

— Você vai ficar bem — eu a ouço dizer. — Uau, aquele bagulho te zoou forte.

— O que era? — pergunto, e partes da noite anterior começam a voltar à minha memória.

Nem ouço se ela respondeu ou não à minha pergunta.

Lembro que tudo estava bem, era só uma bebedeira normal, até pouco depois que começamos a tomar o gim. E então, do nada, eu não conseguia mais enxergar o que estava à minha frente, porque tudo estava perto demais. Eu ficava tentando focar os olhos em coisas mais distantes, o oceano, as estrelas, as luzes dos barcos ao longe, sobre a água. Lembro que achei que um navio estava se aproximando de nós e que ia bater na praia. Mas eu não me importava. Eu achei... lindo. Ia matar a todos nós, mas era lindo. E lembro que ouvi Andrew cantando uma canção bem sexy. Deitei a cabeça no peito dele e fiquei ouvindo-o cantar. Eu queria subir em cima dele e tirar a roupa, e teria feito isso, se conseguisse me mexer.

E lembro...

Peraí.

Aquela piranha loura. Ela me perguntou... peraí.

Eu levanto o corpo da areia.

— Acho que você precisa ficar deitada um pouco — Bray diz.

Meus dedos tocam minha testa.

Lembro que ela estava sentada perto de mim e de Bray. Estava tão chapada quanto todos nós, mas eu não estava mais com ciúmes. Ela conversou com a gente um pouco, e eu não me importei.

À medida que as lembranças vão voltando, meu corpo começa a tremer mais.

Ela tentou me beijar. Acho que eu deixei...

Acho que vou vomitar de novo.

Eu encolho os joelhos e apoio os cotovelos em cima deles, afundando o rosto nas mãos. Ainda estou tão zonza. Sinto que ainda não acabei de vomitar. Não tenho aquela grande sensação de alívio que vem depois de passar mal. Não, a ânsia só ficou mais intensa, desta vez provocada pelos meus nervos.

O resto está voltando aos poucos, e embora eu queira me forçar a esquecer, não consigo.

Ela perguntou se podia dormir comigo e com Andrew. Sim, me lembro agora. Mas... meu Deus... pensei que ela quisesse dizer dormir, mas agora me dou conta de que estava tão chapada que não percebi que ela queria dizer sexualmente.

Eu disse que não me importava.

Então lembro que ela...

Eu perco o fôlego. Levo a mão à boca, com os olhos arregalados e ardendo por causa da brisa.

Lembro que ela fez um boquete em Andrew.

Tentando ficar de pé, sinto a mão de Bray nas minhas costas.

— Para, garota — ela diz, me puxando de volta para a areia. — Não vai lá. Você só vai se machucar.

Solto meu pulso da mão dela e tento ficar de pé de novo, mas os movimentos bruscos, junto com meus nervos em frangalhos, causam mais ânsia de vômito.

Então ouço Andrew de pé perto de mim.

— Cacete — ele diz para Bray. — Você pega uma garrafa d’água no isopor no banco de trás do meu carro?

Bray vai pegar a água.

Andrew me puxa para suas pernas assim que eu paro de tentar vomitar. Ele afasta meu cabelo dos olhos e da boca.

— Eles deram droga pra gente, amor — ele diz.

Meus olhos se abrem um pouco e o vejo em cima de mim, com as palmas das mãos nas minhas bochechas.

— Eu mato aquela vaca. Juro por Deus, Andrew.

A expressão dele é de uma pessoa atordoada. Acho que ele não sabia que eu tinha visto.

— Ela ainda tá desacordada. Amor, eu...

A culpa em seu rosto me corta o coração.

— Andrew, eu sei o que aconteceu — digo. — Sei que você achou que fosse eu. Vi o que você fez.

— Não importa — ele diz, cerrando os dentes. Seus olhos ficam rasos d’água. — Eu devia saber que não era você. Porra, me desculpa. Eu devia saber. — Suas mãos apertam meu rosto.

Estou para mandá-lo parar de se culpar quando Elias se aproxima.

— Desculpa, cara, a gente não sabia. Juro.

— Eu acredito — Andrew diz.

Bray volta com a água, e eu já estou recuperando um pouco das minhas forças. Levanto o corpo e fico sentada, encostada no peito nu de Andrew. Ele me abraça e me aperta tão forte, como se temesse que eu fosse levantar e sair correndo.

Então ele pega a garrafa de Bray, tira a tampa, joga um pouco d’água na mão e passa na minha testa e na minha boca. O frescor me alivia na hora.

— Olha, cara, desculpa — Tate diz, chegando por trás de nós. — A gente achou que vocês não iam ligar. Só pusemos um pouco na bebida de todo mundo. Fizemos uma presença. Não trouxemos vocês pra cá com más intenções.

Andrew consegue se afastar delicadamente de mim, mesmo assim tão rápido que mal noto sua ausência, e esmurra Tate de novo. Um estalo de ossos nauseabundo ecoa pelo espaço.

— Por favor, Andrew! — eu grito.

Elias segura Andrew e Caleb segura Tate, apartando-os.

Andrew deixa Elias segurá-lo por trás, mas depois se desvencilha e volta para mim, me ajudando a levantar.

— Vamos embora — ele diz, ele começa a me pegar no colo, mas eu balanço a cabeça, para que ele saiba que consigo andar sozinha.

Ele pega o violão e eu pego o nosso cobertor, e nós vamos para o Chevelle.

— Talvez fosse bom a gente dar uma carona pra Bray e Elias — digo.

Andrew joga o violão no porta-malas e pega o cobertor de mim, guardando-o também. Então ele vai para o seu lado do carro, estende os braços sobre o teto e apoia a cabeça entre eles. Ele respira fundo e dá um murro na lataria.

— Puta que pariu! — grita, dando outro murro.

Em vez de tentar chamá-lo à razão, decido deixar que ele se acalme sozinho. Olho para ele com ternura do outro lado do carro. Depois entro e fecho a porta. Ele fica ali mais um minuto, até que o ouço dizer:

— Se vocês quiserem, podem voltar com a gente.

Elias e Bray, carregando suas coisas, vêm até o carro e se sentam no banco de trás.

1 Programa infantil de incentivo à leitura da TV pública americana. (N.T.)


Andrew


25

NEM SEI COMO achei o caminho de volta tão facilmente. Acho que num certo momento eu nem me importava muito se nos perdêssemos. Mas volto sem virar uma esquina errada nem ter que parar e pedir informações. Os quatro não falamos muita coisa na volta. E do pouco que foi falado, não lembro nada.

Paramos no estacionamento do hotel e nos despedimos de Elias e Bray. Talvez eu tivesse agradecido a Elias ou desejado sorte para o resto da viagem, ou talvez até convidado os dois para saírem conosco à noite, mas dadas as circunstâncias, só consigo responder com um aceno quando eles agradecem pela carona.

Eu dou partida no carro e vou para o nosso lado do hotel.

Camryn ainda parece insegura sobre conversar comigo. Não com medo, apenas insegura. Eu não consigo nem olhar para ela. Me sinto um bosta pelo que aconteceu, e nunca vou me perdoar.

Camryn segura a minha mão e vamos direto para o nosso quarto. Eu abro a porta e começo a jogar nossas coisas nas mochilas.

— Não foi sua...

Eu a interrompo.

— Não. Por favor. Só... me dá um minuto...

Ela olha para mim tão desolada, mas balança a cabeça e concorda.

Logo estamos na estrada de novo, indo para o Norte pelo litoral. Destino: qualquer lugar, menos a Flórida.

Depois de dirigir por uma hora, o que aconteceu na noite passada não me sai da cabeça, e eu tento entender, de alguma forma. Eu saio da estrada e o carro roda até parar no acostamento. Está tão silencioso. Olho para baixo, depois pelo para-brisa. Percebo que estou com os nós dos dedos brancos de tanto apertar o volante. Finalmente, abro a porta e saio do carro.

Ando rapidamente pelo cascalho e então desço a encosta da vala, atravessando para o outro lado e indo direto para a primeira árvore.

— Andrew, para! — ouço Camryn gritar.

Mas eu continuo andando, e quando fico frente a frente com aquela merda de árvore, bato nela com tanta força quanto bati em Tate e Caleb. A pele de dois dos meus dedos se abre, o sangue escorre pelas costas da mão e entre os dedos, mas eu não paro.

Só paro quando Camryn entra na minha frente e empurra meu peito com tanta força com as duas mãos que eu quase caio para trás. Lágrimas escorrem dos seus olhos.

— Para! Por favor! Para com isso!

Eu desabo sentado na grama, com os joelhos dobrados, minhas mãos ensanguentadas pendendo dos pulsos. Meu corpo se curva para a frente, cabisbaixo. Só consigo ver o chão embaixo de mim.

Camryn se senta na minha frente. Sinto suas mãos no meu rosto, tentando levantar minha cabeça, mas eu não deixo.

— Você não pode fazer isso comigo — diz com voz trêmula. Camryn tenta me forçar a olhá-la, e eu finalmente deixo porque me mata de dor ouvi-la chorar. Olho nos olhos dela, os meus cheios de lágrimas de raiva que estou tentando conter. — Amor, não foi culpa sua. Você tava drogado. Qualquer um poderia ter se enganado, chapado como você tava. — Seus dedos apertam meu rosto. — Não. Foi. Culpa. Sua. Entendeu?

Tento desviar o olhar, mas ela afasta minhas mãos e se senta no meio das minhas pernas sobre os joelhos, de frente para mim. Instintivamente, eu a abraço.

— Mesmo assim, eu devia saber — digo, olhando para baixo. — E não é só isso, Camryn, eu devia cuidar da sua segurança. Você nem deveria ter sido drogada, pra começar. — Só de pensar nisso, a raiva e o ódio por mim mesmo aumentam de novo. — Eu devia cuidar da sua segurança!

Ela me abraça e me força a apoiar a cabeça em seu peito.

Ela se afasta.

— Andrew, olha pra mim. Por favor.

Eu olho. Vejo dor e compaixão em seus olhos. Seus dedos delicados envolvem meu rosto barbado. Ela beija meus lábios suavemente e diz:

— Foi um momento de fraqueza — como que para me lembrar do que eu disse a ela há vários meses sobre os comprimidos. — Foi minha culpa tanto quanto sua. Eu não sou burra. Deveria ter imaginado que não podia deixar nossas bebidas na mão deles nem por um segundo. Não é culpa sua.

Eu baixo o olhar, e então olho para ela de novo. Não sei como posso fazê-la entender que, por causa de como e quem sou, sinto um forte senso de responsabilidade por ela. Uma responsabilidade da qual me orgulho, que senti desde o dia em que a conheci. Me mata... me mata saber que no meu “momento de fraqueza” eu não pude protegê-la, que, por eu ter baixado a guarda, ela poderia ter sido ferida, estuprada, morta. Como posso fazê-la entender que não importa se ela não me culpa por isso, que sua opinião, embora eu não a considere sem valor, não desculpa meu momento de fracasso? Ela tem direito a um momento de fraqueza. Eu não tenho. O meu é só fracasso.

— E eu nunca, jamais culparia você por aquilo — ela acrescenta.

Eu só olho para ela, procurando um significado em seu rosto, e então ela continua:

— O que aquela garota fez — ela explica. — Eu jamais jogaria aquilo na sua cara. Porque você não fez nada errado. — Eu sinto seus dedos afundando em meu rosto. — Você acredita em mim?

Eu balanço a cabeça lentamente.

— Acredito, sim.

Ela suspira e diz:

— De todo modo, pode ter sido em parte minha culpa. — Ela desvia o olhar.

— Como assim?

— Bem — ela diz, mas hesita com uma expressão distante de arrependimento no semblante —, acho que, sem querer, posso ter dado permissão pra ela.

Aquilo certamente me pega de surpresa.

— Lembro que ela perguntou sobre dormir com a gente, e acho que falei que sim, que ela podia. Eu-eu não sabia que ela queria dizer... sexualmente. Se eu estivesse sóbria, com certeza teria sacado isso. Andrew, me desculpa. Desculpa por eu ter deixado aquela piranha louca violentar você.

Eu balanço a cabeça.

— A culpa não é de nenhum dos dois, então não começa a se culpar também, tá?

Quando não vejo aparecer o sorriso que eu queria causar rápido o suficiente, eu a agarro dos dois lados pela cintura. Ela grita quando começo a fazer cócegas. Ela ri e se retorce tanto que cai para trás na grama, e eu me sento em cima dela, me apoiando nos joelhos dos dois lados para não esmagá-la.

— Para! Não! Andrew, tô falando sério, caralho! Paraaaa! — Ela ri alto e eu enfio mais os dedos nos seus quadris.

Então ouço um carro de polícia tocar a sirene uma vez e silenciar, parando atrás do meu carro.

— Fodeu — eu digo, olhando para Camryn. Seu cabelo está emaranhado e cheio de fios de grama.

Saio de cima dela e estendo a mão ensanguentada para ajudá-la a levantar. Ela a toma e fica de pé, espanando a roupa. Voltamos para o carro enquanto o policial sai de sua viatura.

— Vocês costumam deixar a porta do carro escancarada assim na estrada? — o policial pergunta.

Eu olho para a porta e novamente para ele.

— Não, senhor — eu digo. — Fiquei com vontade de vomitar e nem pensei nisso.

— Habilitação, comprovante do seguro e documentos do veículo.

Tiro a habilitação da carteira, entrego para ele e enfio o corpo pela janela do lado do passageiro para procurar os documentos no porta-luvas. Camryn está encostada na traseira do carro, com os braços cruzados nervosamente sobre o peito. O policial volta para a viatura — depois de notar o sangue nas minhas mãos — e se senta para consultar o meu nome.

— Espero que você não esteja escondendo nenhum assalto, assassinato ou nada assim de mim — Camryn diz, quando me apoio no capô ao lado dela.

— Não, já parei com os assassinatos — respondo. — Ele não tem como me prender. — Eu a cutuco de leve com o cotovelo.

Passados alguns minutos de pura tensão, o policial se aproxima de nós e me devolve os documentos.

— O que aconteceu com a sua mão? — ele pergunta.

Olho para ela, sentindo-a doer e latejar pela primeira vez, agora que ele chamou minha atenção. Em seguida, aponto para a árvore perto dali.

— Eu meio que bati na árvore.

— Você meio que bateu na árvore? — ele pergunta, desconfiado, e noto que olha para Camryn várias vezes. Que legal, ele deve estar achando que bati nela ou alguma porra assim, e considerando como ela está detonada depois do incidente de ontem à noite e do nosso rala-e-rola na grama, suas suspeitas devem estar sendo confirmadas.

— Tá, eu bati na árvore.

Ele olha para Camryn, agora.

— Foi isso que aconteceu? — ele pergunta a ela.

Camryn, nervosa pra caramba e pelo visto imaginando, como eu, o que o policial acha que realmente aconteceu, de repente faz a Natalie.

— Foi, senhor — ela diz, gesticulando muito. — Ele ficou nervoso porque uns filhos da puta... — ela se encolhe toda — desculpa, se aproveitaram da gente ontem à noite, e ele ficou se martirizando com isso a manhã toda e acabou descontando naquela árvore! Eu corri pra lá pra não deixar que ele se machucasse, a gente conversou, e eu tô com essa cara de merda pisada... ai, desculpa... por causa da noite de cão que a gente passou. Mas juro que não somos más pessoas. Não usamos drogas e ele não é um psicopata nem nada, então, por favor, libera a gente. Pode até fazer uma busca no carro, se quiser.

Momento. Sorvete. Na testa.

Eu rio por dentro. Não temos com que nos preocupar se ele quiser vasculhar o carro. A não ser que... nossos amigos temporários, Elias e Bray, tenham acidentalmente deixado uma trouxinha de erva ou qualquer porra incriminadora no banco de trás.

Puta merda... por favor, que não aconteça agora o que sempre acontece nos seriados de TV.

Eu olho para Camryn e balanço discretamente a cabeça.

Ela arregala os olhos.

— O que foi que eu falei?

Eu apenas sorrio, ainda balançando a cabeça, porque é só isso que posso fazer, na verdade.

O policial funga e depois mastiga a bochecha por dentro. Seus olhos vêm e vão entre mim e Camryn várias vezes e ele não diz uma palavra, o que só aumenta a nossa tensão.

— Da próxima vez, não deixem a porta escancarada assim — o policial diz, sua expressão tão neutra quanto esteve o tempo todo. — Seria uma pena alguém passar e arrancar a porta de um Chevelle 1969 em tão bom estado.

Um sorriso discreto ilumina o meu rosto.

— Com certeza.

O policial parte antes de nós, que ficamos dentro do carro estacionado por um mais um momento.

— “Pode fazer uma busca no carro, se quiser”? — repito.

— Pois é! — ela ri, jogando a cabeça para trás. — Eu não queria dizer isso. Escapou.

Eu rio também.

— Bom, parece que seu monólogo inocente... que, a propósito, me dá um pouco de medo; acho que aquela sua amiga bipolar tá te contagiando... deixou o policial com peninha e livrou a nossa cara.

Eu apoio as mãos no volante.

Ela estava sorrindo e provavelmente ia comentar minha piadinha com Natalie, até que vê de novo minha mão ensanguentada. Então se aproxima de mim e a pega delicadamente.

— A gente precisa limpar isso antes que infeccione — ela diz. Olha mais de perto e começa a tirar pequenos fragmentos de grama e terra em volta e dentro do ferimento. — Tá muito feio, Andrew.

— Não é tão grave assim — digo. — Não vai precisar de pontos.

— Não, você precisa é apanhar. Nunca mais faz isso. Tô falando sério. — Ela pega um último fragmento e depois se debruça por cima do encosto, procurando o pequeno isopor no banco de trás.

Eu viro a cabeça e só vejo a bunda dela saindo do short. Com minha mão ensanguentada, enfio o dedo dentro do elástico da calcinha do biquíni e o estalo sobre a pele dela. Ela não se assusta, mas revira os olhos quando para de remexer no banco traseiro, com uma garrafa d’água na mão.

— Enxágua isso — ela ordena, me passando a garrafa.

Eu abro a porta, pego a garrafa, estendo a mão para fora e derramo água sobre o ferimento.

Enquanto procura algo na bolsa, ela diz:

— Da próxima vez que você ficar puto e descarregar a raiva em algum objeto, vou pôr oficialmente o seu nome na minha Lista de Psicopatas. — Ela me passa um tubo de pomada.

Eu só balanço a cabeça e pego o tubo. Acho que não dá pra discutir com ela quanto a isso.

Ela aponta para a pomada e me manda aplicá-la logo. Eu rio e digo:

— Você parece uma sargenta.

Camryn me dá um soco de brincadeira no braço (machucando a própria mão, na verdade) e me acusa de insinuar que ela é gorda. É tudo brincadeira, e acho que é sua maneira de me ajudar a não pensar no que aconteceu. Depois de minutos, estamos conversando sobre música e sobre os bares ou clubes onde podemos tocar a caminho de Nova Orleans.

Sim, num certo momento decidimos que, não importando onde vamos parar ou quanto tempo vamos ficar, temos que visitar nosso lugar favorito à margem do Mississippi, haja o que houver.

~~~

Isso foi há dois dias. Hoje estamos acomodados num belo hotel no grande estado do Alabama.


Camryn


26

— TÁ EMPOLGADA com o que a gente vai fazer hoje à noite ou precisa respirar num saco de papel? — Andrew pergunta, saindo do banheiro com uma toalha enrolada na cintura.

— As duas coisas — respondo. Deixo o controle remoto sobre o criado-mudo e me sento na cama. — Conheço a música, mas é minha primeira apresentação solo. Por isso, sim, tô surtando um pouco.

Ele remexe na sua mochila perto da TV e acha uma cueca limpa. A toalha cai no chão. Eu inclino a cabeça, admirando sua bunda sexy da cama. Ele veste a cueca e ajeita o elástico na cintura.

— Você vai botar pra quebrar — ele diz, virando-se para mim. — Ensaiou um monte e já tá afiada. E se eu achasse que você não tava preparada, eu falaria.

— Eu sei que falaria.

— Bom, pronta pra trabalhar? — ele pergunta, terminando de se vestir.

— É. Acho que sim. Como eu tô?

Eu me levanto e dou uma volta, usando um top minúsculo preto com alcinhas finas e um jeans apertado.

— Peraí — eu exclamo, levantando o dedo. Calço minhas novas botas três quartos reluzentes e fecho o zíper na lateral. Então giro e faço pose de novo, exagerando um pouco.

— Insuportavelmente sexy, como sempre — ele elogia com um sorrisão, e então se aproxima de mim e passa a mão na minha trança.

Posso estar me apresentando sozinha cantando “Edge of Seventeen” da Stevie Nicks hoje, mas por duas horas, antes de subir no palco, vou trabalhar como garçonete e Andrew vai limpar mesas. Ganhei dele! Eu consegui o emprego mais legal.

A casa está lotada quando chegamos, às 19h. Adoro a atmosfera deste lugar. O palco é de bom tamanho, mas a área das mesas e a pista de dança são enormes. E está cheio, o que me deixa mais nervosa ainda. Eu vou até a cozinha, apertando a mão de Andrew, abrindo caminho no meio da multidão. Com estes empregos temporários, tivemos a sorte de trabalhar juntos por algumas noites. Quase todos os serviços que pegamos durante a viagem, desde a Virgínia, foram esporádicos. Eu trabalho como arrumadeira aqui e ali, enquanto Andrew trabalha de garçom ou até substitui algum leão de chácara. Ele pode não ser o tipo bombado (ainda bem, porque acho isso nojento), mas seus músculos são grandes o suficiente para ele ser contratado com facilidade. Por sorte, ele não precisou arrastar ninguém para fora pela camisa, nem apartar nenhuma briga.

Nosso chefe pelos próximos dias, German — é o nome dele mesmo, apesar de ele definitivamente não ser alemão, e sim o típico caipira do Meio-Oeste americano —, entrega a Andrew um avental branco e um broche que o identifica como “Andy”.

Eu seguro o riso, mas Andrew percebe a minha expressão divertida.

German esfrega sua mão roliça como uma salsicha no nariz, limpa-a no jeans e diz:

— Quando o povo levantá de uma mesa e terminá de recoiê as porra deles toda, cê vai lá e deixa a mesa limpinha pro próximo cliente. — Ele agita o dedo para Andy, hã, isto é, Andrew. — E não toca nas gorjeta. São só pras garçonete, tá me entendeno?

— Sim, senhor — Andrew diz. Quando German baixa os olhos para seu bloco de pedidos por um segundo, Andrew diz para mim, sem emitir som: Que porra...? E eu tento endireitar a boca e evitar sorrir quando German olha para nós de novo.

German olha para mim, mas olha mesmo, totalmente diferente de como estava olhando para Andrew agora há pouco. Ele abre um sorriso amarelo e diz:

— E ocê só pricisa fazê exatamente essa carinha que tá fazeno agora. Abre esse sorriso lindo e enche os bolso cas gorjeta.

Fico imaginando o que as outras garçonetes que trabalham aqui em tempo integral têm que aguentar desse cara.

Pisco meus olhos azul-bebê para ele e digo, com um sotaque caipira doce e sedutor:

— Pode deixá, seu German. E mais tarde, quando meu turno terminá, vô tê que ir lá pra dentro e retocá a maquiage antes de me apresentá, o senhor entende, né?

Noto que Andrew arregala os olhos e parece mais intrigado, mas eu continuo dando atenção a German, que já está comendo na minha mão de um jeito que, se eu o mandasse lamber o chão, ele falaria: Diz quando é pra pará, tá?

Andrew

Esse sotaque de bela do Sul que surgiu do nada me deixou morrendo de tesão. Vou ter que conversar com ela a respeito disso mais tarde.

Eu ponho meu broche, amarro o avental nas costas e pego a espécie de bacia de plástico que German aponta quando olho para ele. Cacete, não me incomoda fazer esse tipo de trabalho, mas German é um caipirão babaca, que espero que fique longe de mim pelas próximas duas horas. E ele está precisando de um desodorante. A porra do tubo inteiro, quero dizer. Ele realmente não combina com esse lugar. Parece uma bandeira confederada pendurada na janela de uma mansão de 400 mil dólares. O bar e restaurante até que é bem decorado. Por dentro, pelo menos.

Eu me dirijo para a área das mesas com a bacia debaixo do braço e vou para a primeira mesa vazia que vejo. Pego todo o lixo, os pratos sujos cheios de fritas e bolinhos que sobraram e jogo tudo dentro da bacia. Depois limpo a mesa com o trapo que tiro do bolso do avental e endireito os potes de ketchup e molho de churrasco. É tudo muito automático, diferente do serviço de garçonete, e acho que por isso somente Camryn precisou fazer uma hora de treinamento ontem para começar a trabalhar hoje. Ela pode ter o emprego que rende gorjetas, no qual pode usar seu charme sexy, mas precisa aguentar o chefe nojento e tarado. E eu tô adorando isso. Bem feito pra ela por tirar sarro do meu emprego de limpar mesas. Ela fez piadinha, me chamando de “escória” do bar. Bem, espero que ela não ache que vou tirar o traseirinho magro dela da reta, caso German resolva avançar o sinal. Ela vai ter que se virar sozinha.

Eu limpo mais algumas mesas, deixando uma gorjeta de cinco dólares numa e outra de vinte na outra. Quando estou para voltar para a cozinha para esvaziar a bacia, sou parado por quatro garotas numa mesa perto do balcão do bar.

— Ei, gatão — uma das mulheres mais velhas diz, me chamando com um dedo. — Podemos pedir nossas bebidas pra você?

— Sinto muito, senhora, mas eu só limpo as mesas.

Eu tento me afastar, mas outra mais bonita me impede.

— Aposto que se a gente pedisse pra você ser nosso garçom, você seria promovido. — Seus olhos estão vidrados e sua cabeça balança um pouco. Eu noto, porque é difícil não notar, seus peitos enormes saindo do top apertado. Ela os empina mais ainda.

— Bom, vocês podem pedir — eu digo, também mostrando meu charme, sorrindo com o canto da boca. — E se a chefia deixar, serei seu a noite toda.

As quatro se entreolham numa espécie de conversa silenciosa. Já estão comendo na minha mão.

Camryn chega atrás de mim carregando uma bandeja cheia de copos de uísque e um copo já lotado de notas. Eu me pergunto se aquele é o dinheiro das gorjetas ou o pagamento dos drinques. Isso está me deixando ansioso.

Ela dá um sorrisinho para mim, olhando para a mesa das mulheres, e depois rapidamente para mim de novo.

— Ele está incomodando vocês? — ela pergunta.

Eu sei que ela não está com ciúmes; hoje só o que importa é a competição entre nós dois. E ela vai fazer tudo o que puder para impedir que eu ganhe a pequena aposta que fizemos no carro a caminho daqui:

— Você acha que não consigo ganhar gorjetas só porque tô limpando mesas?

— Não consegue — ela disse. — Copeiro não ganha gorjeta.

— Pense bem — eu disse, olhando-a do banco do motorista. — É um bar cheio de mulheres e álcool. Aposto que consigo ganhar gorjetas.

— Ah, é mesmo? — ela perguntou, estufando os lábios.

— Sim — eu disse, e então aumentei o cacife, porque estava me sentindo ousado: — Na verdade, aposto que consigo ganhar mais gorjetas do que você.

Camryn riu.

— É sério? Quer mesmo apostar isso? — Ela cruzou os braços e balançou a cabeça como se eu estivesse dizendo algo ridículo.

— Quero — eu disse, mesmo sabendo que deveria ter dito Não, tô brincando.

Mas eu não disse não, e agora estou amarrado a essa aposta, e se Camryn ganhar, vou ter que fazer uma massagem de uma hora nela por três noites seguidas. Uma hora é muito tempo de massagem. Fico com os braços cansados só de pensar.

A mulher mais velha responde para Camryn:

— Não, ele não tá incomodando nem um pouco, lindinha. — Ela me olha de alto a baixo como se quisesse arrancar minha roupa e me lamber, apoiando o queixo nas duas mãos. — Ele pode ficar aqui o tempo que quiser. Cadê o seu chefe?

— Ele tá por aqui — Camryn diz. — É só procurar um gordão de uniforme. O nome dele é German.

— Obrigada, gata — a mulher diz, e volta a olhar para mim.

Essa mulher, admito, meio que me dá medo. E como ela parece ser a líder da matilha, decido que preciso sair dali antes que ela ache que estou mesmo a fim dela, porque aí eu é que vou precisar da ajuda de Camryn pra sair da enrascada em que me meti.

— Tenham uma ótima noite, madames — digo com um sorriso acolhedor, e me viro para ir embora.

Sinto uma mão deslizando para dentro do bolso do meu avental. Eu paro e olho para a mão que a mulher já está tirando do meu bolso. Ela está me encarando com aquele famoso olhar cheio de tesão.

— Pra você também, docinho — ela diz.

Pisco para ela e sorrio para as outras três enquanto me afasto casualmente. Quando chego à cozinha, esvazio a bacia, enfio a mão no bolso e tiro dele três notas de vinte dólares.

Porra, talvez aquela aposta não tenha sido tão ridícula, no fim das contas.

Duas horas depois...

A aposta foi ridícula, sim.

— 240, 241, 246, 256. — Camryn fica contando suas gorjetas, agora que nosso curto turno acabou. Ela dá um sorrisinho e acrescenta: — E você, quanto conseguiu?

Estou tentando ficar sério para que minha decepção pareça minimamente genuína, mas ela não está facilitando. Por isso pego meu dinheiro, conto de novo e respondo:

— 82 dólares.

— Bom, até que não tá ruim pra um copeiro, admito — ela diz, embolsando sua grana.

— Como assim, admite? — pergunto, desatando o avental e tirando-o. — Vai perdoar a aposta?

— Pfah! De jeito nenhum.

German chega atrás de nós.

— É bom que a cantoria docês preste. E nada dessas merda de rap, nem musiquinha new age metida a besta. — Ele estala os dedos rapidamente, como se estivesse tentando lembrar algum exemplo, mas logo desiste. — Cês num tão no Ídolos.

— Entendido — Camryn diz, com aquele seu sorriso doce.

German, com um sorriso de babacão na cara, desperta do feitiço dela e, ao se afastar, rosna quando passa por mim. Melhor isso do que me olhar do jeito que ele olha para Camryn, por isso não vou reclamar.

Eu me viro para Camryn.

— Não fica nervosa. — Eu seguro as mãos dela. — Já falei, você vai botar pra quebrar.

Ela balança a cabeça nervosamente. Então solta um suspiro rápido, fazendo bico, e respira fundo.

— Vou pegar a guitarra enquanto você se prepara — digo.

— Tudo bem.

Eu a beijo nos lábios e vou até o carro pegar a guitarra elétrica que ela me deu de presente de aniversário, que está no porta-malas. Apesar de “Edge of Seventeen” ser o solo dela, o próprio riff da guitarra é tão conhecido que estou quase tão nervoso quanto ela por ter que tocá-lo. Tudo bem, talvez não tão nervoso — é uma música até bem fácil. O que me deixa um pouco tenso é o medo de estragar o número dela. É só por causa dela que o show de hoje me deixa tenso.

Eu subo no palco e encontro o baterista, Leif, que conhecemos ontem, se preparando.

— Obrigado por tocar com a gente, cara — agradeço.

— Sem problemas — Leif diz. — Já toquei essa várias vezes num bar da Geórgia onde eu trabalhava, uns anos atrás.

Camryn ficou feliz por encontrar um baterista que conhece a canção. Ela estava preparada para se apresentar só comigo, sabendo que não seria a mesma coisa sem a bateria. Mas quando conhecemos Leif ontem, durante o treinamento dela como garçonete, e ele concordou em tocar conosco esta noite, acho que Camryn se sentiu bem mais confiante.

Eu passo a alça da guitarra pelo ombro assim que Camryn aparece no palco.

Ela vem direto na minha direção, eu encosto no seu ouvido e digo:

— Você tá gostosa.

Ela fica vermelha e olha para sua roupa. Ela trocou o top preto bonitinho que estava usando por outro de seda, também preto, com um decote nas costas que expõe sua pele quase até a cintura. O colar que comprei para ela brilha sobre a seda preta na frente. E ela soltou o cabelo. Adoro a trança que ela sempre usa, mas devo dizer que ela fica sexy em outro nível com o cabelão sedoso e louro caindo sobre os ombros.

O vozerio no bar ecoa pelo ambiente espaçoso, alto até enquanto Leif testa o bumbo da bateria atrás de nós. Todas as mesas estão ocupadas, bem como os bancos junto à parede dos fundos. Minhas quatro “amigas” ainda estão aqui e migraram de seu lugar para uma mesa mais próxima do palco. Elas parecem intrigadas com minha transformação de copeiro em guitarrista. Normalmente, a essa altura, eu estaria procurando na plateia minha “vítima” da noite, mas hoje é diferente, e não vamos fazer nada disso. Camryn está nervosa e concentrada demais para tentar nossa brincadeira de sempre.

Depois que finalmente nos preparamos e estamos prontos para começar, Camryn prende a respiração por um momento e olha para mim.

Eu espero que ela me dê o sinal, e quando a vejo acenar, começo a tocar, e todos os olhos na multidão se viram para nós. Essa introdução da guitarra sempre chama a atenção de todos numa casa lotada. E Camryn, assim que começa a cantar, como sempre acontece também comigo, se transforma em alguém completamente diferente, a ponto de me deixar atordoado. Ela é a dona da canção. Está muito diferente de como estava em todos os nossos ensaios. Confiança e sensualidade derramam de cada verso da canção e de cada movimento seu, e todo o meu corpo reage a isso.

— Ooo, baby, ooo, ooo! — eu acompanho no refrão.

Mas todos estão olhando para ela, até minhas quatro amigas, que sei que de início haviam se aproximado para me olhar. Não, agora elas pertencem sobretudo a Camryn, e isso me deixa orgulhoso.

Antes mesmo que termine a primeira estrofe, a pista de dança já está lotada. A energia e o sexo na voz de Camryn, misturados com o fascínio de todos com sua apresentação, me fazem perder o controle, e eu martelo aquele riff com mais devoção do que antes.

— Ooo, baby, ooo, ooo!

A cada poucos segundos, ouço uma voz gritar ao fundo:

— Huuuuu! — E também cada vez que Camryn solta uma nota tocante.

E eu não me canso disso.

Canto a plenos pulmões junto com ela nos dois refrões seguintes, e sei que a quarta estrofe, aquela em que ela sempre se embanana, vem a seguir. Olho para ela, ainda agitando a palheta rapidamente sobre as cordas, com as costas arqueadas, e não vejo nenhum sinal de nervosismo em seu rosto. Ela está no controle; posso perceber, só de olhar, que de jeito nenhum ela vai errar.

E então a letra sai tão rápida e impecavelmente de seus lábios que sinto meu rosto esticado até o limite por um sorriso quando canto junto com ela a todo volume o refrão seguinte.

Porra, minha gata tomou posse da canção. Te cuida, Stevie Nicks!

Passando a metade da canção, Camryn canta: Oooo! E sua voz some naquela parte sombria da melodia que permite um breve descanso à sua voz.

Mas o solo de guitarra continua. É cansativo, mas meus dedos não param, sem errar uma nota.

Camryn e eu nos entreolhamos e temos um momento só nosso. Então ela volta a cantar, e eu canto junto no momento certo.

Ela continua cantando, suas duas mãos seguram o suporte do microfone, seus olhos se fecham quando ela berra com tanta emoção:

— Yeah! Yeah!

Então ela olha para mim de novo e continua me encarando enquanto solta a estrofe seguinte, como se estivesse cantando apenas para mim.

Calafrios percorrem a minha espinha. Eu sorrio e continuo tocando até a canção acabar.

A plateia explode com uivos e gritos. Camryn agradece as palmas primeiro, depois eu. Ela está com um sorriso enorme, olhando para a multidão, e eu fico meio comovido por dentro.

Sem tirar a guitarra, que empurro para as costas, me aproximo de Camryn e a levanto do chão em meus braços. Os assobios e gritos vêm de todos os lados, mas a única coisa que eu noto é Camryn me olhando. Eu a beijo profundamente, e a multidão assobia e grita ainda mais.

Antes de a noite acabar, fazemos um show completo de dez canções para uma multidão cada vez maior, com o passar das horas. Voltamos a cantar algumas das nossas favoritas: “Barton Hollow”, “Hotel California” e “Birds of a Feather”, entre outras, e cada canção parece agradar mais ao público. Não canto sozinho esta noite, embora Camryn chegue a me pedir isso. A noite foi dela e só dela. Me recuso a ser o centro das atenções, mesmo por apenas uma canção.

Voltamos ao hotel às duas da manhã, e eu pago de bom grado a aposta que perdi.


Camryn


27

— GERMAN PARECE achar que a gente vai ficar muito tempo aqui — eu digo, com o lado direito do rosto encostado no colchão. — Eu falei pra ele que era só temporário.

As mãos mágicas de Andrew pressionam os dois lados das minhas costas dos ombros até a cintura, e eu viro massa de modelar em suas mãos. Fico deitada ali e curto essa massagem como se nunca tivesse sido massageada na vida. Mal consigo abrir os olhos. Ele está sentado sobre meu corpo quase nu, a cavalo sobre minha cintura.

— É, ele me puxou de lado uma hora e perguntou a que horas a gente ia tocar amanhã. — Andrew ri e aperta as pontas dos dez dedos com força na minha pele, mexendo as mãos num firme movimento circular.

Eu gemo debaixo dele.

— A gente pode ficar mais uns dias — ele diz —, mas acho que devíamos partir logo.

— Concordo. E também, os mosquitos em Mobile são horríveis! Você viu que enxame apocalíptico em volta das lâmpadas quando a gente saiu de lá?

Andrew ignora a pergunta e diz:

— Você foi sensacional hoje. Eu sabia que você ia mandar bem, mas pra falar a verdade, não tava esperando aquilo.

Eu finalmente abro os olhos e espio pela janela.

— O que, exatamente? — pergunto.

Suas mãos não param de massagear minhas costas.

— Você subiu no palco e tomou posse da canção. Você tem um talento natural.

— Não sei se tenho — respondo. — Mas tô orgulhosa de mim mesma. Sério, não sei o que deu em mim. Esqueci o nervosismo e mergulhei de cabeça.

— Bom, funcionou — ele diz.

— Só porque você tava lá comigo — eu saliento.

Ficamos em silêncio por vários minutos, eu de olhos fechados, com sua massagem ameaçando gradualmente me mandar para a terra dos sonhos. A circulação ao redor dos meus olhos parece aliviar; minha cabeça toda está formigando, e minha nuca se arrepia quando ele afunda os dedos no meu couro cabeludo.

Antes que passe uma hora, começo a me sentir culpada por fazê-lo trabalhar tanto tempo e digo:

— Se você estiver cansado, pode parar.

E quando ele não para, eu o faço parar, virando o corpo e me deitando de costas. Ele fica em cima de mim e me beija de leve na boca. E nós nos olhamos por um momento, um examinando os olhos do outro, estudando os lábios. Sinto-o pressionar meu corpo lá embaixo, sua boca se fecha sobre a minha num beijo apaixonado e ele começa a fazer amor comigo.


Andrew


28

ESTAMOS NA ESTRADA de novo, em algum lugar de uma rodovia entre Gulfport, Mississippi e Nova Orleans. O dia está perfeito, com céu azul e calor na medida certa para que possamos viajar de janelas abertas, sem sentir necessidade de ligar o ar-condicionado do carro. Camryn está dirigindo e eu descanso no banco do passageiro, numa posição bem parecida com a sua de sempre, com um pé para fora da janela.

Ficamos em Mobile uma semana e pagamos o quarto de hotel, toda a comida e a gasolina só com uma fração do dinheiro que ganhamos tocando e das gorjetas de Camryn como garçonete. Minhas gorjetas de copeiro foram só uma gota no oceano, comparadas com as dela.

Meu celular vibra no bolso da minha bermuda preta de lona e eu atendo.

— E aí, mãe, tudo bem?

Ela diz que sente muito a minha falta e logo começa a fazer perguntas sobre os meus checkups.

— Não, eu tô fazendo, sim — digo. — É, fiz tomografia esses dias num hospital em... Não, eles só ligaram pro dr. Masters pra pedir minha ficha e... Tá, mãe. Eu sei. Eu tô me cuidando. — Olho para Camryn, que está sorrindo. — Camryn não me deixa faltar. É. Bom, agora a gente tá indo pra Nova Orleans, não sei quanto tempo a gente vai ficar lá, mas depois vamos passar por aí pra te visitar, tá?

Depois que eu desligo, Camryn pergunta:

— No Texas?

Imediatamente, sinto que ela está pensando a mesma coisa que pensou na nossa primeira viagem, mas ela me desmente quando diz:

— Pra mim não tem problema nenhum. Só tô curiosa pra saber nosso destino. — Ela sorri, e percebo na hora que não está escondendo nada.

— O Texas não te preocupa? — eu pergunto.

Ela olha de novo para a estrada ao chegar numa curva, depois volta a olhar para mim.

— De jeito nenhum. Não como me preocupava antes.

— O que te fez mudar de ideia? — Eu tiro o pé da janela e me viro para olhá-la melhor, intrigado pela mudança de opinião.

— As coisas estão diferentes agora — ela diz. — Mas de um jeito bom. Andrew, o mês de julho foi difícil. Pra nós dois. Não sei como eu sei, mas acho que eu já previa desde o início que alguma coisa ruim ia acontecer quando a gente chegasse ao Texas. Por um tempo, achei que eu só estivesse preocupada por aquela ser a última parada da nossa viagem. Mas agora não sei mais. Era como se eu soubesse...

Eu sorrio um pouco.

— Acho que eu entendo — digo. — Então preciso fazer uma pergunta.

Ela olha para mim, esperando.

— A gente vai parar definitivamente um dia?

Sua reação não é a que eu esperava. Eu esperava que seu sorriso sumisse e o momento se perdesse, mas em vez disso, seus olhos brilham, e sinto um ar de calma emanando dela.

— Um dia — ela diz. — Mas ainda não. — Ela olha novamente para a estrada e continua: — Sabe, Andrew, quero ir pra Itália um dia. Pra Roma. Sorrento. Talvez não agora, nem mesmo nos próximos cinco anos, mas espero ir pra lá. Pra França também. Pra Londres. Adoraria até conhecer a Jamaica, o México e o Brasil.

— É mesmo? Ia levar um tempão visitar todos esses lugares — eu digo, mas não de forma a desencorajá-la. Eu também adoraria.

O vento da janela aberta roça seu cabelo, soltando mais fios de sua trança, que dançam ao redor do seu rosto radiante.

— Eu me sinto livre com você — ela diz. — Sinto que posso fazer qualquer coisa. Ir a qualquer lugar. Ser o que eu quiser. — Seus olhos pousam em mim mais uma vez e ela continua: — A gente vai parar logo, mas nunca quero parar definitivamente. Isso faz sentido?

— Com certeza — respondo. — Eu não teria dito melhor.

Chegamos à divisa da Louisiana logo depois que escurece, e Camryn para no acostamento.

— Acho que não consigo mais dirigir — ela diz, esticando os braços para trás e bocejando.

— Eu falei há uma hora que você precisava me deixar dirigir.

— Bom, agora eu tô deixando. — Ela fica ranzinza quando está cansada.

Ambos saímos para trocar de lugar, mas paramos quando nos encontramos na frente do carro.

— Você viu onde a gente tá? — pergunto.

Camryn olha para os dois lados da rodovia deserta. Ela dá de ombros.

— Hã, no meio do nada?

Eu rio baixinho e aponto para o campo. Depois aponto para as estrelas.

— A última vez não valeu, lembra?

Seus olhos brilham, mas sinto que ela está dividida. Não levo muito tempo para entender por quê.

— É um campo plano e aberto. E não tem vaca nenhuma até onde a vista alcança — digo.

Eu sei que absolutamente nada que eu disser vai tranquilizá-la quanto à possibilidade de cobras, mas estava tentando ser sutil e dar uma de idiota, esperando que ela esquecesse isso.

— E as cobras? — ela pergunta, não esquecendo.

— Não deixe seu medo de cobras estragar uma oportunidade perfeita de finalmente dormir sob as estrelas.

Ela estreita os olhos para mim.

Resolvo apelar para a artilharia pesada e simplesmente imploro.

— Por favor? Por favorziiiiinho? — Eu me pergunto se minha cara de gatinho do Shrek é tão eficaz com ela quanto a dela sempre é comigo. Meu instinto inicial foi jogar a desgraçada em cima do ombro e carregá-la à força, mas também estou curioso quanto à eficiência da minha técnica implorativa.

Ela rumina por um minuto e finalmente cede ao meu charme.

— Tá — ela admite, um pouco exasperada.

Eu pego o cobertor do porta-malas e nós passamos juntos por cima da vala e da cerca baixa, depois cruzamos o enorme campo até que encontramos um bom lugar, vários metros à frente. Tenho uma sensação de déjà vu. Estendo o cobertor na grama seca e verifico rapidamente se há cobras nos arredores, só para deixá-la mais tranquila. Nós nos deitamos lado a lado, de costas, com as pernas esticadas sobre o cobertor, cruzando os tornozelos. E olhamos para a imensidão escura e infinita do céu cheio de estrelas. Camryn aponta várias constelações e planetas, me explicando cada um em detalhes, e eu fico impressionado em ver o quanto ela sabe, e como consegue reconhecê-los.

— Eu nunca imaginei que você fosse tão... — tenho dificuldade para encontrar as palavras certas.

— Tão culta? — Sinto que ela sorri discretamente ao meu lado.

— Bom, eu... não quis dizer que acho você...

— Uma garota desmiolada e superficial que não sabe que a Via Láctea não é uma comida de bebê, nem que a teoria do Big Bang é mais do que um seriado de TV?

— É, alguma coisa assim — digo, só para fazer o jogo dela. — Não, mas falando sério, como sabe tudo isso? Nunca pensei que você se interessasse por ciências.

— Eu queria ser astrofísica. Decidi isso quando tinha uns 12 anos.

Fico completamente chocado com sua confissão, mas continuo olhando as estrelas com ela, meu sorriso aumentando.

— Bom, na verdade eu queria ser isso, mais física e astronauta e também trabalhar na NASA, mas acho que eu tava meio iludida, na época. Obviamente.

— Camryn — eu digo, ainda tão surpreso que mal sei o que dizer. — Por que você nunca me contou isso?

Ela dá de ombros.

— Não sei — ela diz. — O assunto nunca surgiu. Você nunca sonhou em ser alguma coisa diferente do que é?

— Acho que sim — respondo. — Mas, amor, por que você não foi atrás disso? — Eu levanto o corpo do cobertor e me sento. Isso pede toda a minha atenção.

Ela olha para mim como se eu estivesse exagerando.

— Provavelmente pelo mesmo motivo que você não foi atrás do que você queria ser. — Ela dobra os joelhos e cruza as mãos sobre a barriga. — O que você queria ser?

Não quero falar de mim agora, mas acho melhor responder, já que ela me perguntou duas vezes.

Eu também dobro os joelhos e apoio os antebraços sobre eles.

— Bom, à parte o clichê de sonhar em ser um astro do rock, como todo mundo, eu queria ser arquiteto.

— Sério?

— Sim — digo, balançando a cabeça.

— Era isso que você tava estudando antes de largar a faculdade?

Eu balanço a cabeça.

— Não — digo, e rio um pouco do absurdo da minha resposta. — Eu tava fazendo faculdade de ciências contábeis e administração.

Camryn franze o cenho.

— Ciências contábeis? Tá falando sério? — Ela está quase rindo.

— Pois é, você vê? — digo, rindo também. — Aidan me ofereceu sociedade no bar dele. Na época, eu só via cifrões na minha frente, e achei que ter um bar seria uma oportunidade e tanto. Eu poderia tocar lá e... não sei o que eu tava pensando, mas topei a proposta do meu irmão na hora. Aí ele começou a dizer que eu precisava entender a parte administrativa do negócio, essa porra toda. Eu entrei na faculdade, e foi então que a ideia foi por água abaixo. Eu tava cagando pras ciências contábeis, pra administrar um bar ou ter que lidar com todos os aspectos negativos de ter um negócio. — Paro por um momento e então digo: — Acho que, como você disse, eu tava iludido, queria todos os aspectos positivos, mas nenhum negativo. Quando percebi que não era assim que funcionava, falei: foda-se.

Ela se senta junto de mim.

— Então por que você não foi atrás de ser arquiteto?

Eu dou um sorrisinho.

— Provavelmente pelo mesmo motivo que você não foi atrás de ser astrofísica.

Ela apenas sorri, sem ter como rebater isso.

Eu olho para o cabelo louro de Camryn e para o campo.

— Acho que somos só duas almas perdidas nadando num aquário — declaro.

Seus olhos se estreitam.

— Já ouvi isso em algum lugar.

Eu sorrio e aponto rapidamente para ela.

— É Pink Floyd. Mas é verdade.

— Você acha que a gente tá perdido?

Eu inclino um pouco a cabeça, olho para as estrelas atrás dela e digo:

— Na sociedade, talvez. Mas juntos, não. Acho que estamos exatamente onde precisamos estar.

Nenhum dos dois diz mais nada por um bom tempo.

Ficamos deitados um ao lado do outro, fazendo o que fomos fazer ali. Enquanto olho para a escuridão infinita daquele céu, fico totalmente assombrado com o momento. Acho que encontro um pouco de mim mesmo naquelas estrelas. Por um bom tempo esqueço a música, a estrada, o tumor que quase me matou ano passado e o momento de fraqueza que quase matou o espírito de Camryn. Esqueço que perdemos Lily e que sei que Camryn parou de tomar anticoncepcional e não me contou. E esqueço também que parei de gozar fora por um motivo e não contei a ela.

Eu realmente esqueço tudo. Porque é isso que um momento assim faz com você. Faz você se sentir algo tão pequeno, dentro de algo tão imenso que está além da compreensão. Apaga todos os seus problemas, suas dificuldades, todas as suas necessidades, aspirações e desejos mundanos, te obrigando a perceber o quanto tudo isso na verdade é insignificante. É como se a Terra ficasse completamente silenciosa e imóvel, e sua mente só pudesse entender ou sentir a imensidão do Universo, e você fica sem fôlego pensando no seu lugar dentro dele.

Quem precisa de psiquiatras? Quem precisa de acompanhamento psicológico, mentores e palestras motivacionais? Vão todos pra casa do caralho. Apenas olhe para o céu noturno e se deixe perder nele de vez em quando.

~~~

Algo desagradável me acorda na manhã seguinte. Farejo o ar de olhos ainda fechados, minha mente não totalmente acordada, mas meu corpo e meu olfato funcionando antes de mim. Há uma brisa fresca no ar e minha pele parece úmida, como se eu estivesse coberto de orvalho. Virando para o outro lado, farejo o ar de novo e o cheiro é ainda pior do que antes. Ouço algo raspando nas proximidades, e finalmente meus olhos se abrem um pouco. Camryn está capotada ao meu lado. Mal consigo ver sua trança loura em cima do cobertor entre nós. Ela parece estar encolhida em posição fetal.

Que fedor é esse?!

Cubro a boca com a mão e começo a me levantar do cobertor. Camryn começa a se mexer ao mesmo tempo, virando de barriga para cima e esfregando o rosto e os olhos com as duas mãos. Ela boceja. Quando me sento e abro completamente os olhos, Camryn pergunta:

— Que fedor da porra é esse? — e faz uma careta.

Estou para responder que deve ser o bafo dela, quando seus olhos azuis ficam arregalados de pavor, ao olhar atrás de mim.

Instintivamente, eu me viro rápido.

Uma manada de vacas está a poucos metros de nós, e quando percebem que estamos nos mexendo, elas se assustam.

— Meu Deus! — Camryn se põe de pé num pulo mais rápido do que na noite em que a cobra subiu no nosso cobertor, me fazendo pular também.

Duas vacas mugem, gemem e grunhem, recuando para perto das outras, agitando a manada ainda mais.

— Acho melhor a gente sair correndo — digo, pegando Camryn pela mão e disparando com ela.

Nem paramos para pegar o cobertor, de início, mas eu paro e me viro, segundos depois, para agarrá-lo. Camryn grita, eu começo a rir e nós desabalamos para longe das vacas, na direção do carro.

— Puta meeeerda! — eu grito, enfiando o pé num monte enorme da substância.

Camryn cacareja de tanto rir, e ambos praticamente rolamos o resto do caminho pelo campo, eu tentando raspar a bosta da sola do sapato e correr ao mesmo tempo, e os chinelos de dedo de Camryn grudando no chão, tentando acompanhar seus passos.

— Não acredito que isso aconteceu! — Camryn ri quando finalmente alcançamos o carro. Ela fica encurvada e apoia as mãos nos joelhos, tentando recuperar o fôlego.

Eu também estou sem fôlego, mas continuo a raspar incansavelmente a sola do meu sapato no asfalto.

— Puta que pariu! — exclamo, esfregando o pé para todo lado.

Camryn se senta no capô do carro, balançando as pernas.

— Agora valeu pra você? — ela pergunta, com riso na voz.

Eu fico parado, ofegando. Olho para ela, para seu sorriso lindo e radiante e digo:

— É, acho que já dá pra riscar esse item da lista.

— Ótimo! — ela diz. Depois aponta para trás de mim. — Esfrega na grama. Assim você só tá espalhando bosta pra todo lado.

Eu saltito para a grama e começo a esfregar o pé de novo.

— Desde quando você virou especialista em bosta?

— Veja lá como fala — ela avisa, se sentando no lugar do motorista.

— Por que, o que você vai fazer? — eu provoco.

Ela dá a partida no Chevelle e acelera algumas vezes. Há um brilho cruel no seu olhar. Ela apoia o braço esquerdo na janela aberta, e quando me dou conta, o carro já está passando lentamente por mim.

Eu a fuzilo com o olhar como aviso, mas seu sorriso só aumenta.

— Eu sei que você não me deixaria aqui! — grito quando ela passa.

É claro que não...

Ela se afasta cada vez mais, e de início eu pago pra ver, parado ali, vendo o carro ficar cada vez menor...

Por fim, eu saio correndo atrás do carro.


Camryn


29

A PRIMEIRA COISA que me vem em mente quando chegamos a Nova Orleans é lar doce lar. Fico empolgada quando o cenário se torna familiar: os grandes carvalhos e as lindas casas históricas, o Lago Pontchartrain e o Superdome, os bondes vermelhos e amarelos que sempre me pareceram de brinquedo. E, é claro, o Bairro Francês. Tem até um homem tocando saxofone numa esquina, e sinto que entramos diretamente num cartão-postal de Nova Orleans.

Olho para Andrew e ele sorri para mim rapidamente. Ele dá a seta e viramos à direita na Royal Street. Meu coração falha e bate forte ao mesmo tempo quando vejo o Holiday Inn. Tanta coisa aconteceu aqui há dez meses. Este lugar... logo um hotel... é tão mais do que isso para mim, para nós dois.

— Imaginei que você gostaria de ficar aqui enquanto estivéssemos na cidade — Andrew diz, com um enorme sorriso.

Como as lembranças ainda estão, por assim dizer, tirando meu fôlego, não consigo responder, por isso só balanço a cabeça e sorrio como ele.

Pegamos nossas coisas no carro e entramos no saguão. Tudo parece exatamente igual, exceto talvez as duas mulheres na recepção, quando nos aproximamos. Não me lembro delas.

Ouço vagamente Andrew perguntar sobre a disponibilidade dos quartos que ocupamos da outra vez enquanto olho ao meu redor, tentando absorver tudo.

Meu Deus, senti falta deste lugar.

— Sim, parece que esses dois quartos estão vagos — ouço uma das recepcionistas dizer. — Querem ficar com os dois?

Isso chama a minha atenção.

Andrew se vira para mim. Acho que ele quer minha opinião.

Passo a bolsa para o outro ombro e hesito por um momento, ponderando a pergunta. Não previ isso, nem que a decisão seria tão difícil.

— Hãã, bem... — Olho para Andrew e depois para a recepcionista, ainda indecisa. — Não sei. Tá, talvez a gente devesse ficar naquele onde... — Eu me interrompo, sem querer dar a impressão de que somos dois adolescentes imaturos, desta vez, e encaro Andrew com um olhar que diz tudo. — Aquele onde o pacto foi selado.

Andrew luta para se manter sério, mas vejo claramente o sorriso em seus olhos quando ele entrega o cartão de crédito à recepcionista.

Saímos do saguão logo depois e tomamos o elevador até nosso andar. Andando pelo corredor, ainda estou absorvendo tudo ao meu redor, até a cor da tinta das paredes, porque tudo faz parte de uma lembrança, por maior, menor ou aparentemente insignificante que seja. A sensação de estar aqui de novo... sinto quase que vou cair no choro de felicidade. Mas também estou empolgada, e isso me salva de me debulhar em lágrimas.

Andrew para entre as duas portas dos nossos antigos quartos, com as duas mochilas e a guitarra elétrica que lhe dei penduradas nos ombros. Ele quer comprar um estojo para a guitarra, mas ainda não fez isso.

— É estranho estar aqui de novo, não? — ele pergunta, me olhando.

— Estranho, mas de um jeito bom.

Ficamos assim por um minuto, olhando um para o outro e para as duas portas, até que finalmente Andrew se dirige para o quarto que escolhemos e passa o cartão na fechadura.

É realmente como entrar no passado. A porta se abre lentamente, e é como se todas as emoções que experimentamos naquele quarto tivessem sido deixadas ali e estivessem nos cumprimentando agora, quando entramos. Assim que pisamos lá dentro, lembro cada noite que passamos aqui, separados e juntos, como se fosse ontem. Olho para o lugar perto da cama onde eu estava quando Andrew me domou e me tornou sua. Olho pela janela para as ruas movimentadas do Bairro Francês. Revejo o dia em que Andrew se sentou naquela soleira tocando violão, e até me vejo ali, dançando e cantando “Barton Hollow”, quando achei que estava sozinha. Eu me viro para ver o banheiro, e quando Andrew acende a luz, meu olhar vai primeiro para o chão e lembro, embora vagamente, a noite em que ele dormiu ao meu lado.

Acho que às vezes as melhores lembranças se criam nos lugares mais improváveis, mais uma prova de que a espontaneidade é mais recompensadora do que uma vida meticulosamente planejada. Do que qualquer coisa meticulosamente planejada.

Eu me viro para Andrew.

— Não sei por quê, mas eu sinto... bom, sinto que todos os meses que passamos na estrada desde dezembro foram pra chegar a este lugar. Esta cidade. Este hotel. — Não acredito que estou dizendo isso, e imediatamente começo a questionar meus motivos. Pode significar tantas coisas diferentes, mas acho que o maior significado é que nós precisávamos voltar para lá.

Sim, é exatamente isso, ou pelo menos é o que eu precisava. Quando recebo essa revelação, me vejo parada naquele quarto, cercada por pensamentos em vez de objetos materiais. Olho nos olhos de Andrew, mas na verdade não é ele que vejo. O que vejo é ele no passado. Os mesmos olhos verdes magnéticos, outro ano.

Por que estou me sentindo assim?

— Talvez você tenha razão — ele concorda, e então seu tom de voz fica mais misterioso. — Camryn, o que você tá pensando agora?

— Que a gente foi embora cedo demais da última vez. — Foi a primeira coisa que pensei, e só agora que falei começo a entender o quanto pode ser verdade.

— Por que você acha isso? — ele pergunta, se aproximando de mim.

Não sinto que ele está me fazendo perguntas para as quais já sabe as respostas, desta vez. É como se ambos estivéssemos seguindo a mesma linha de raciocínio, ambos tentando entender o sentido de tudo e buscando respostas um no outro.

Nós nos sentamos no pé da cama juntos, eu com as mãos no meio das coxas, como ele, e ficamos em silêncio por vários longos segundos. Finalmente, viro a cabeça para olhá-lo à minha direita e digo:

— Eu não queria partir quando a gente partiu, Andrew. Eu sabia que nossa próxima parada, depois de Nova Orleans, seria Galveston. Eu não tava preparada pra deixar este lugar... mas não sei por quê.

E essa verdade me deixa ansiosa.

Por quê? Além de temer que o Texas significasse o fim da nossa viagem, ou mais tarde sentir que eu sabia que algo ruim iria acontecer lá, por que mais eu iria querer ficar? Eu não queria necessariamente ficar ali para sempre, só acho que partimos cedo demais.

— Não sei — ele diz, dando de ombros. — Talvez seja porque foi aqui que finalmente selamos o pacto. — Ele me dá uma cotoveladinha de brincadeira.

Não consigo deixar de sorrir.

— É, talvez, mas acho que é mais do que isso, Andrew. Acho que é porque a gente se encontrou aqui. — Eu olho para a parede, pensativa. — Não sei mesmo.

Sinto a cama se movimentar quando Andrew se levanta.

— Bom, sugiro que desta vez a gente aproveite ao máximo antes de partir. — Ele estende a mão para mim e eu a seguro. — Talvez a gente desvende esse mistério.

Eu me levanto e digo:

— Ou... talvez seja uma nova chance.

Sinceramente, não faço ideia do que me levou a dizer isso.

— Uma nova chance de quê, exatamente? — ele pergunta.

Eu fico em silêncio, pensando, e em seguida respondo:

— Isso eu também não sei...


CONTINUA

21

21 DE JANEIRO — meu vigésimo sexto aniversário

Estou tendo um sonho legal no qual salto de paraquedas (por algum motivo bizarro, com o ator Christopher Lee) e o céu está tão azul quanto... bem, quanto o céu. Christopher Lee, usando óculos de mergulho vermelhos, faz um sinal de positivo antes que o vento o arrebate para o éter azul. Então, de repente, meu coração para, e eu inspiro uma golfada de ar gelado. Meus olhos se abrem para a realidade. Meu corpo salta da cama tão rápido que abro o braço para o lado e bato no abajur parafusado na parede.

— Pu-ta-que-pariu! — eu grito.

Levo um segundo para entender o que aconteceu. Enquanto vejo Camryn no pé da cama ainda segurando um balde de gelo, jogo freneticamente os lençóis gelados e encharcados para o lado e tento recuperar o fôlego.

Camryn gargalha como uma bruxa.

— Feliz aniversário, amor! Levanta!

Acho que mereci isso, depois do que fiz com ela na manhã do seu aniversário, mês passado. Mas essa cretina maquiavélica me pegou de jeito, muito mais pesado do que fiz com ela. Acho que a vingança é sempre pior mesmo.

Incapaz de parar de sorrir, entro no clima e levanto lentamente minha bunda pelada da cama. Ela já está fazendo aquela cara de oh-oh quando começa a se afastar de mim e ir para a porta. Sabendo que essa é a sua única saída, eu a vigio enquanto ela estuda a situação.

— Sinto muito! — ela diz com um sorriso apavorado, com a mão para trás, tateando na direção da porta.

— Hã-hã, eu sei que você sente, amor.

Ando bem lentamente na direção dela, espreitando-a com os olhos semicerrados, como se eu fosse um predador brincando com sua presa.

Ela dá uma risada de bruxa de novo.

— Andrew! Nem pensa nisso! — Ela está a meio metro da porta, agora. Mas eu ajo com calma, deixando-a pensar que vai conseguir chegar até lá, meu sorriso aumentando até que sei que já devo estar parecendo um maníaco sádico.

De repente, Camryn grita, incapaz de se controlar mais, e corre para a porta, escancarando-a.

— Nãão! Por favor! — ela grita e ri ao mesmo tempo enquanto a porta se abre, batendo na parede com estrondo. Ela dispara pelo corredor.

Quando começo a persegui-la, sua expressão chocada e o modo hilariante como ela chega a parar dão a entender que ela não esperava que eu saísse do quarto sem roupa.

— Ai meu Deus! Andrew, não! — ela grita, enquanto volta a correr a toda velocidade pelo corredor iluminado.

Eu continuo atrás dela, com meus documentos balançando ao vento. Essa garota ainda precisa aprender muito se achou mesmo que eu ia ficar com vergonha de correr atrás dela, de bunda de fora e com o pinto encolhido pelo frio. Eu não tô nem aí. Ela vai se arrepender daquele banho de gelo.

Passamos pelo quarto 321 no exato momento em que um casal de velhinhos está saindo. O homem puxa sua esposa de olhos arregalados para dentro quando o doido pelado passa ventando.

— Meu Deus do céu... — ouço uma voz distante dizendo atrás de mim.

Finalmente, quando Camryn chega ao final do imenso corredor, ela para e me encara, encurvada, com as duas mãos à sua frente como se fossem um escudo. Lágrimas escorrem de seus olhos de tanto rir.

— Eu desisto! Eu desisto! Ai meu Deus, você tá pelado! — Ela não consegue parar de rir. Rio também quando a ouço fungar com força.

— Agora você me paga — eu digo, agarrando-a e jogando-a sobre o ombro.

Ela nem tenta espernear, gritar e agitar os braços, dessa vez. Primeiro porque ela não consegue parar de rir o suficiente para controlar seu corpo a esse ponto. E, segundo, porque ela sabe que não adianta. Só espero que ela não mije em cima de mim.

Eu a carrego pelo corredor todo até nosso quarto, e quando chegamos ao quarto 321, digo:

— Desculpem por ter feito vocês verem isso. Tenham um bom-dia — acenando enquanto passo. O casal fica só olhando, o marido balançando a cabeça para mim, com uma expressão revoltada.

Fecho a porta atrás de nós e jogo Camryn na cama, sobre os cubos de gelo e a água gelada. Ela ainda está rindo.

Fico de pé no meio das pernas dela e tiro seu short e sua calcinha ao mesmo tempo, olhando para ela, sem dizer uma palavra. Fico de pau duro em segundos. Seu humor brincalhão muda instantaneamente e ela morde o lábio inferior, olhando para mim com aqueles olhos azuis docemente sedutores que sempre despertam algo primal em mim.

Sem nenhum aviso, eu me deito por cima dela e enfio tudo.

— Você sente muito mesmo? — sussurro, tirando e pondo nela devagar. Meu peito apertado sobre o dela, nossas tatuagens se tocando, Orfeu e Eurídice se juntando novamente enquanto eu e ela nos tornamos um só.

— Sim... — ela diz, as palavras tremulando de seus lábios.

Meto nela um pouco mais fundo, empurrando uma de suas coxas para cima com a mão.

Suas pálpebras ficam mais pesadas e ela joga a cabeça para trás.

Eu esmago minha boca sobre a dela, e seus gemidos reverberam na minha garganta quando começo a meter com mais força.

Então algo dentro de mim fica sombrio, predador. Me ajoelho na cama e agarro suas duas coxas, cravando os dedos em sua carne e arrastando-a pelo colchão para perto de mim tão rápido que ela nem consegue começar a se mexer. Agarrando seus braços, eu a viro de costas, seguro seus pulsos atrás das costas e a forço a ficar de joelhos. Com a outra mão, toco o contorno macio de sua bunda empinada diante de mim, apertando bem cada nádega antes de bater nelas com tanta força que seu corpo se retorce para a frente. Ela choraminga. Então aperto sua nuca com a mão, empurrando com força o rosto de lado contra o colchão. Sinto o calor emanando de sua pele no lugar onde minha mão já deixou marcas vermelhas.

Ela choraminga de novo e eu torço e aperto mais seus pulsos. Com a outra mão, enfio dois dedos em sua boca e puxo sua bochecha, enquanto enfio meu pau nela por trás.

Ela chora um pouco, com as coxas começando a tremer, mas eu não paro. Sei que na verdade ela não quer que eu pare.

Depois que eu gozo e meu coração volta a bater mais devagar, puxo seu corpo nu para perto do meu, sua cabeça suada aninhada na minha axila. Ela beija meu peito e faz dois dedos andarem pelo meu braço até minha boca. Eu pego sua mão e beijo os dedos.

— Que bom que você voltou ao normal — ela diz baixinho.

— Eu voltei ao normal? — pergunto, e ela levanta a cabeça para me olhar nos olhos. — Eu não tava normal?

— Não, antes não.

— Quando eu não tava normal? — Estou verdadeiramente confuso, mas acho adorável sua timidez ao me explicar o que quis dizer.

— Depois que a gente perdeu Lily — ela diz, e o sorriso brincalhão que estava se abrindo em meus lábios desaparece. — Não te culpo por isso, mas depois de Lily, você me tratava como uma boneca de porcelana, com medo de me quebrar se fosse bruto demais comigo.

Eu a aperto mais com meu braço e sua bochecha volta a encostar no meu peito.

— Bom, eu não queria te machucar — digo, passando meu polegar em seu braço. — Ainda sinto isso às vezes.

— Então não sinta — ela sussurra, beijando meu peito de novo. — Nunca se segure comigo, Andrew. Quero que você seja sempre você mesmo.

Eu sorrio e aperto seu braço mais uma vez.

— Sabe que tá me dando permissão pra te atacar sempre que eu quiser, certo?

— Sei, tenho plena consciência disso — ela diz, e ouço um sorriso como o meu em sua voz.

Eu beijo o alto de sua cabeça e a puxo para cima de mim.

— Feliz aniversário — ela diz novamente, e enfia a língua na minha boca.

~~~

Graças a Deus existe a Flórida no inverno. Depois da minha muito surpreendente — e prazerosa, devo acrescentar — manhã de aniversário, Camryn e eu passamos o dia ensaiando nossa nova canção. Bem, não é tecnicamente nossa, mas pra misturar um pouco as coisas, adotamos o hit sensacional de Stevie Nicks, “Edge of Seventeen”. Camryn está ficando frustrada com o modo como os versos se seguem tão rapidamente, mas está determinada a conseguir cantá-la. É a canção dela, aquela que ela quer cantar sozinha. É um passo importante para ela, porque nós sempre cantamos juntos.

E eu a admiro por isso.

Ela parece muito frustrada, mas por trás disso, tudo o que vejo é a minha Camryn voltando para mim cada dia mais. Sua alma está mais leve, a luz em seus olhos, mais brilhante, e cada vez que ela sorri, me lembro do dia em que nos conhecemos.

— Você consegue — asseguro, sentado na sacada da janela, com o meu violão encostado no peito. — Não faz tanto esforço, amor, só toma posse dela.

Ela suspira e joga a cabeça para trás, desabando na cadeira da mesinha redonda ao meu lado.

— Eu sei a letra toda, mas sempre me atrapalho naquelas últimas estrofes. Não sei por quê.

— Acabei de te falar. Você tá pensando demais, porque começa a cantar já esperando se atrapalhar quando chegar nessa parte. Não pensa. Agora tenta de novo.

Ela suspira profundamente de novo, nervosa, e fica de pé.

Ensaiamos por mais uma hora antes de ir à churrascaria mais próxima para um almoço tardio.

— Você vai conseguir. Não se preocupe — insisto, enquanto a garçonete traz nossos bifes.

— Eu sei. Mas é que é frustrante. — Ela começa a cortar o bife, com a faca numa mão e o garfo na outra.

— Demorei um pouco pra aprender “Laugh, I Nearly Died” — conto, enfiando um pedação de bife na boca com o garfo. Mastigo um pouco e então continuo, ainda de boca cheia: — De qualquer jeito, a próxima canção que quero aprender é “Ain’t No Sunshine”, do Bill Withers. Sempre quis aprender essa, e acho que tá na hora de aposentar os Stones.

Ela parece surpresa. Aponta o garfo para mim, engole e diz:

— Oooh! Ótima escolha!

— Você conhece essa? — Também estou um pouco surpreso, considerando que ela não gostava tanto de rock clássico ou blues quando nos conhecemos.

Ela balança a cabeça e come um pouco de purê.

— Adoro essa canção. Ela tava numa playlist que meu pai gostava de ouvir quando viajava a negócios. Esse Withers é danado pra cantar.

Eu dou uma gargalhada.

— Qual é a graça? — ela pergunta, me olhando com ar confuso.

— Você falou de um jeito tão country, agora. — Eu tomo um gole de cerveja e rio um pouco mais, balançando a cabeça.

— O quê? Tá dizendo que eu falei que nem caipira? — Seus olhos estão arregalados, mas seu sorriso não poderia ser mais óbvio.

— Tá mais pra uma roceira, na verdade. Esse Withers é danado pra cantar! Eeeiita ferro! — Eu a arremedo, jogando a cabeça para trás.

Ela ri comigo, se esforçando ao máximo para esconder o rubor do rosto.

— Bom, nisso eu concordo contigo — ela admite, tomando um gole de sua cerveja. Ela põe o copo na mesa e acrescenta, estreitando os olhos: — Com a escolha da canção, não com a coisa da roceira.

— Claro — digo com um sorriso, terminando meu bife.

O primeiro bife que comemos juntos foi como ela prometeu, alguns dias depois que saí do hospital após a cirurgia. E como naquele dia e toda vez que comemos carne juntos, ela só consegue comer metade. Melhor, sobra mais pra mim. Quando vejo que ela dá sinais de estar tão empanturrada que vai vomitar, estico o braço e puxo o prato dela para o meu lado.

Ela fica olhando para o celular, e então começa a responder uma mensagem de texto.

— Natalie tá pedindo pra você voltar de novo?

— Sim, ela é incansável. — Ela recoloca o celular na bolsa.

Camryn mente mal à beça. Muito mal. Não conseguiria mentir nem para salvar a própria vida, e no momento, o modo como ela fica olhando a parede de madeira rústica mostra que com certeza está mentindo. Eu palito os dentes e a estudo.

— Podemos ir? — pergunto.

Ela sorri para mim, sem graça, obviamente escondendo algo, e então percebo que a tela do seu celular se ilumina dentro da bolsa. Ela olha a mensagem de texto e de repente fica mais ansiosa para sair. Seu sorriso aumenta e ela se levanta rapidamente.

— Peraí, preciso pagar. — Aceno para a garçonete, e Camryn se senta de novo, impaciente. — Por que tá com tanta pressa assim de repente? — eu a provoco, enquanto a garçonete deixa a conta sobre a mesa, mas antes que ela vá embora, tiro o cartão de crédito da carteira.

— Por nada — Camryn desconversa.

Eu apenas sorrio.

— Tá — digo, e me encosto na cadeira, me espreguiçando e relaxando o corpo. É uma farsa. Quanto mais pareço relaxado, mais ela fica impaciente.

Minutos depois, a garçonete volta com meu cartão de crédito e o recibo. Eu anoto a gorjeta dela no recibo do restaurante e muito lentamente me levanto, visto o casaco, me espreguiço erguendo os braços bem alto, finjo bocejar...

— Porra, dá pra andar logo!

Sabia que ela não ia aguentar muito tempo. Rio, pego sua mão e saímos do restaurante.

Quando chegamos ao hotel, Camryn para no saguão.

— Pode subir. Eu subo daqui a pouco.

É óbvio que ela está armando alguma coisa, mas como é meu aniversário, entro no jogo dela, lhe dou um beijo no rosto e tomo o elevador. Mas assim que entro no quarto, sou eu que começo a ficar impaciente.

Não preciso esperar muito até que ela entra no quarto, segurando uma guitarra nova.

Eu fico de pé assim que a vejo.

— Uau...

Seu sorriso é doce e meigo, até envergonhado. Como se uma pequena parte dela tivesse medo de que eu não vá gostar.

Ando direto até ela.

— Feliz aniversário, Andrew — ela diz, me entregando a guitarra.

Coloco uma mão no braço, a outra no corpo e admiro a guitarra com um sorriso imenso. Fininha. Linda. Perfeita. Virando-a para ver a parte de trás, noto uma escrita prateada em cursivo no braço que diz:

Ele arrancou lágrimas de ferro de Plutão

e fez o inferno dar o que buscava o coração.

Um verso de uma das várias versões da história de Orfeu e Eurídice. Eu estou sinceramente sem palavras.

— Você gostou?

Eu olho para ela.

— Eu adorei. É perfeita.

Ela desvia o olhar, corando um pouco.

— Bom, eu não entendo nada de guitarras. Espero que não seja uma marca vagabunda nem nada disso. O cara da loja de instrumentos musicais me ajudou a escolher. Aí precisei esperar alguns dias pra fazer a inscrição, que eu achei que nem ia dar certo porque teve primeiro um problema, depois outro, e...

— Camryn — digo, interrompendo sua tagarelice nervosa. — Nunca recebi um presente de aniversário melhor na minha vida. — Atravesso o espaço entre nós e beijo suavemente seus lábios.


Camryn


22

ALGUM LUGAR DA Interstate 75 — maio

Estamos na estrada há meses. Lá por março já tínhamos nos acostumado tanto a ir de um hotel para o outro que isso se tornou natural. Um quarto diferente a cada semana, uma cidade diferente, uma praia diferente, tudo diferente. Mas por mais que tudo seja diferente, cada vez que entramos, é como se estivéssemos passando pela porta de uma casa onde moramos há anos. Eu jamais teria imaginado que chamaria um quarto de hotel de “casa”, ou que seria tão fácil se acostumar à vida na estrada como foi para nós. Às vezes é difícil, mas tudo é uma experiência, e eu não mudaria nada.

Mas fico me perguntando se o longo inverno não me afetou. Isso porque já me peguei sonhando acordada com morar numa casa em algum lugar, levando uma vida caseira com Andrew.

É, tenho certeza de que foi só o inverno.

São duas da manhã, e nosso carro quebrou em algum lugar do sudoeste da Flórida, num longo trecho de estrada deserta. E está caindo um dilúvio. Chuva aos baldes. Pedimos um guincho há uma hora, mas por algum motivo ele ainda não chegou.

— Tem um guarda-chuva no carro? — pergunto por cima do estrondo da chuva no teto. — Eu posso segurar enquanto você conserta o motor!

— Tá um breu lá fora, Camryn — ele responde, gritando tanto quanto eu. — Mesmo com uma lanterna, duvido que eu fosse conseguir. Pra começar, precisaria descobrir qual é o defeito.

Eu afundo mais no banco da frente e apoio os pés no painel, com os joelhos dobrados junto ao corpo.

— Pelo menos não tá frio — comento.

— A gente vai se virar por aqui esta noite — ele declara. — Não vai ser a primeira vez que dormimos no carro. Talvez o guincho chegue antes de amanhecer, e se não chegar, eu conserto o carro quando estiver conseguindo enxergar.

Ficamos em silêncio por um momento, ouvindo a chuva batendo no carro, os trovões ecoando como ondas através das nuvens. Finalmente, ficamos tão cansados que vamos para o banco de trás, nos encolhemos nele juntos e tentamos dormir. Depois de um tempo, quando fica claro que ambos estamos desconfortáveis e o espaço não é suficiente para nós dois, Andrew passa para o banco da frente. Mesmo assim, não conseguimos pegar no sono. Eu o ouço se revirando por algum tempo, e então ele pergunta:

— Onde você se vê nos próximos dez anos?

— Não tenho certeza — respondo, olhando para o teto do carro. — Mas o que sei é que o que eu fizer, quero fazer junto com você.

— Eu também — ele diz do banco da frente, deitado como eu estou, agora, de costas, olhando para cima.

— Você pensou em alguma coisa específica? — pergunto, imaginando aonde ele quer chegar com isso. Troco o braço esquerdo pelo direito, enfiando-o embaixo da cabeça.

— Pensei. Quero morar num lugar quente e sossegado. Às vezes imagino você na praia, descalça na areia, com a brisa soprando seu cabelo. Eu tô sentado embaixo de uma árvore não muito longe, dedilhando minha guitarra...

— Aquela que eu te comprei?

— Claro.

Eu sorrio e continuo escutando, imaginando a cena.

— E você tá segurando a mão dela.

— A mão de quem?

Andrew fica em silêncio por um momento.

— Da nossa menina — ele diz num tom distante, como se sua mente estivesse indo um pouco mais longe do que a minha.

Eu engulo em seco e sinto um nó se formando na minha garganta.

— Gosto dessa imagem — digo. — Então você quer parar de viajar?

— Um dia. Mas só quando a gente sentir que é certo. Nem um dia antes.

Uma lufada de vento atinge a lateral do carro, e um trovão alto faz o chão tremer.

— Andrew? — pergunto.

— Sim?

— Número três, pra acrescentar à nossa lista de promessas. Se a gente chegar à velhice, ficar com dor nos ossos e não puder dormir na mesma cama, me promete que nunca vamos dormir em quartos separados.

— Tá prometido — ele responde, com um sorriso na voz.

— Boa noite — eu digo.

— Boa noite.

E quando pego no sono, minutos depois, sonho com aquela praia quente e Andrew me olhando andar pela areia, com uma mãozinha segurando a minha.

~~~

O guincho não veio. Acordamos na manhã seguinte, entrevados e doloridos, mesmo tendo um banco para cada um.

— Vou encher aquele cara do guincho de porrada, se ele aparecer — Andrew rosna debaixo do capô.

Ele está ocupado usando uma chave inglesa... não vou nem fingir que sei o que é aquilo. Ele está consertando o carro. Isso é tudo o que sei. E está de péssimo humor. Eu só fico por perto para ajudá-lo quando ele precisa de algo, e evito dar uma de loura burra, perguntando o que é essa rebimboca ou pra que serve aquela parafuseta. A verdade é que não me importa. Além disso, só ia deixá-lo mais estressado ter que explicar.

Mas o sol apareceu. E está quente! Até parece que eu morri e fui pro céu!

Fico saltitando nas poças de chuva da noite passada, encharcando meus chinelos de dedo. Não sei o que deu em mim, além da simples mudança de clima, mas levanto os braços acima da cabeça e olho para o céu, rodopiando sem parar no meio da estrada.

— Quer fazer o favor de me ajudar? — Andrew resmunga.

Saltito para perto dele e dou um beliscão de brincadeira na sua bunda, porque estou de ótimo humor e não consigo evitar. Mas então, bang, Andrew leva um susto com o beliscão e bate a cabeça na parte de baixo do capô. Eu me encolho e ponho a mão na boca.

— Poxa, amor! Desculpa! — Estendo a mão para Andrew, puto da vida, revirando aqueles olhos verdes, mas então ele os fecha, enche as bochechas de ar e bufa devagar.

Agarro a cabeça dele, esfrego e beijo o seu nariz. Não consigo parar de sorrir, mas não estou rindo dele, só tentando fazer cara de gatinho do Shrek.

— Tá desculpada — ele diz, apontando para o motor. — Preciso que você segure esta peça aqui um momento.

Eu vou para o outro lado, olho debaixo do capô e enfio a mão no lugar, guiada pelos seus dedos.

— Isso, aí mesmo — ele diz. — Agora segura.

— Por quanto tempo?

— Até eu mandar soltar — ele responde, e vejo o sorriso começando a se formar no canto de sua boca. — Se você soltar, o cárter vai cair e a gente vai ficar parado aqui um tempão.

— Tá, então vai logo — digo, já sentindo um mau jeito começando a se formar no meu pescoço.

Ele vai até o porta-malas e pega uma garrafa d’água. Lentamente, abre a tampa. Toma um gole. Olha para a paisagem. Toma mais um gole.

— Andrew, você tá me zoando? — Eu olho de baixo do capô levantado, tentando vê-lo o melhor que posso.

Ele apenas sorri. E toma mais um gole.

Cacete, ele tá me zoando! Eu acho...

— Não solta. É sério.

— Besteira — eu insisto e começo a mover os dedos, mas decido não soltar. — Você tá dizendo a verdade? Sério mesmo?

— Claro que tô. O cárter vai cair e ainda é capaz de te molhar inteira de óleo de motor. É difícil pra cacete limpar aquela porra da pele.

— Minhas costas estão começando a doer — reclamo.

Ele demora uma eternidade, e quando estou a ponto de soltar, ele vem por trás de mim e me segura pela cintura, me tirando de perto do motor. Com uma mão, ele passa uma meleca preta na minha bochecha. Eu grito e dou um empurrão nele.

— Eca! Puta que pariu, Andrew! E se eu não conseguir limpar essa droga? — Estou realmente fula da vida, mas uma pequena parte de mim não resiste ao sorriso dele.

— Dá pra limpar, sim — ele diz, voltando para baixo do capô. — Agora entra no carro e liga a ignição quando eu mandar.

Rosno para ele antes de fazer o que ele pede, e rapidinho o Chevelle está funcionando de novo e estamos a caminho de St. Petersburg, a apenas uma hora dali.

Hoje parece um dia de verão, e queremos que não acabe nunca. Depois de arranjar um quarto de hotel e tomar um banho tão necessário, vamos para a loja de departamentos mais próxima, comprar um calção de banho para ele e um biquíni para mim, para irmos à praia nadar.

Ele insiste para que eu leve um biquíni preto minúsculo com estrelinhas prateadas, mas não é ele que vai ter que ficar puxando aquele fio dental de dentro do meu rabo a cada cinco segundos. Por isso compro um vermelho, bonitinho, que cobre um pouco mais.

— Acho que foi melhor você ter levado esse mesmo — ele diz quando entramos no carro no estacionamento da loja.

— Por quê? — pergunto, sorrindo e tirando os chinelos.

— Porque eu ia ter que quebrar a cara de uns sujeitos. — Ele dá ré e saímos do estacionamento.

— Só por olharem pra mim? — pergunto rindo, um pouco incrédula.

Ele inclina a cabeça para o lado e olha para mim.

— Não, acho que não. Na verdade, acho excitante quando outros caras olham pra você.

— Eca! — franzo o nariz.

— Não desse jeito! — ele diz. — Caramba! — Balança a cabeça, como que para dizer INacreditável, e ganhamos a rua, que está cheia de carros de turistas. — É que me sinto bem, sabe, quando tô com você. Isso faz maravilhas pelo ego de um cara.

— Ah, então sou só um troféu pra você? — Cruzo os braços e sorrio para ele.

— É, amor, só tô com você por isso. Achei que você já tivesse percebido.

— Tá, então acho que não é segredo que eu tô com você pelo mesmo motivo.

— Ah, é? — ele pergunta, me olhando de soslaio antes de voltar a prestar atenção na estrada à sua frente.

— É — eu confirmo, apoiando a cabeça no encosto. — Só tô com você pra fazer inveja na mulherada. Mas à noite, fico sonhando com o amor da minha vida.

— E quem seria ele?

Estufo os lábios e olho ao meu redor, depois para ele, com ar brincalhão.

— Bom, não vou dizer o nome dele, porque não quero que você tire satisfação com ele e leve porrada. Mas posso dizer que ele tem cabelo castanho, olhos verdes lindos e umas tatuagens. Ah, e ele é músico.

— É mesmo? Bom, pelo visto ele é demais, então por que me usar como troféu?

Eu dou de ombros, porque não consigo pensar numa boa resposta.

— Vai, pode me contar — ele insiste. — Eu nem conheço esse cara mesmo.

— Desculpa — digo olhando-o —, mas não falo dele pelas costas.

— Tudo bem — ele diz sorrindo. — Quer saber?

— O quê?

Andrew sorri maldosamente, e eu não gosto nem um pouco.

— Eu me lembro de umas coisinhas da nossa primeira viagem que você não chegou a fazer.

Oh-oh...

— Nem faço ideia do que você tá falando — eu minto.

Ele tira a mão direita do volante e a apoia na perna. Aquele seu olhar de desafio está ganhando força, e eu tento não tornar meu crescente nervosismo óbvio demais.

— É, acho que você me deve uma bunda de fora na janelinha, e ainda não testemunhei você comendo um bicho. O que prefere? Um gafanhoto? Um grilo? Uma minhoca? Ou talvez uma aranha tremedeira. Será que tem aranhas tremedeiras aqui na Flórida?

Eu fico toda arrepiada.

— Desiste, Andrew — digo, balançando a cabeça. Eu apoio o pé na porta e enrolo minha trança nos dedos, tentando disfarçar a preocupação. — Não vou fazer isso. Além do mais, isso foi na primeira viagem, e você não pode transferir coisas daquela viagem pra essa. Devia ter me obrigado a fazer quando teve chance.

Andrew continua sorrindo, como o merdinha malicioso que ele é.

— Não — digo de novo, bem séria.

Eu olho para ele.

— Não! — repito uma última vez, e ele fica rindo.

— Tudo bem — ele diz, voltando a segurar o volante com as duas mãos. — Mas valeu a tentativa. Não pode me culpar por tentar.

— Acho que não.

Andrew

Passamos o dia inteiro nadando e tomando sol na praia. Vemos o sol se pôr no horizonte e finalmente as estrelas, quando elas ganham vida na escuridão. Uma hora depois que escurece, encontramos um grupo de pessoas da nossa idade. Eles estavam na praia perto de nós havia algum tempo, curtindo.

— Vocês são daqui? — o cara alto com o braço direito cheio de tatuagens pergunta.

Um dos casais se senta na areia perto de nós. Camryn, sentada no meio das minhas pernas, endireita o corpo e presta atenção.

— Não, a gente é de Galveston — respondo.

— E Raleigh — Camryn completa.

— A gente é de Indiana — diz a garota de cabelo preto, se sentando. Ela aponta para os outros, que ainda estão de pé. — Mas eles moram aqui.

Um dos outros caras abraça a namorada.

— Eu sou Tate, esta é Jen — ele aponta para a namorada, depois para os outros de pé ali perto. — Johanna. Grace. E aquele é meu irmão, Caleb.

Os três acenam e sorriem para nós.

— Eu sou Bray — a garota de cabelo preto perto de Camryn diz. — E este é o meu noivo, Elias.

Camryn se endireita mais e espana a areia das mãos, esfregando-as.

— Prazer — ela responde. — Eu me chamo Camryn e este é meu noivo, Andrew.

Elias aperta a minha mão.

Tate, o cara tatuado, diz:

— A gente tá indo pra um lugar reservado, numa praia a meia hora daqui. É ótimo pra uma balada. Bem isolado. Se vocês quiserem, podem ir com a gente.

Camryn vira um pouco o corpo para olhar para mim. Nós dois conversamos com os olhos por um momento. De início, eu não estava com muita vontade de ir, mas ela parece querer muito. Fico de pé e a ajudo a levantar.

Eu me viro para Tate.

— Tá. A gente segue vocês.

— Show de bola — ele diz.

Camryn e eu pegamos nossas toalhas e a sacola que trouxemos com carne-seca, água mineral e filtro solar, e seguimos Tate e seus amigos da praia até o estacionamento.

E agora estamos de novo no carro e podemos ser espontâneos. Não estou muito tranquilo com essa porra, porque faz muito tempo que não saio com ninguém além de Camryn, mas eles parecem bastante inofensivos.

A tal viagem de meia hora acaba levando uns 45 minutos.

— Agora não faço mais ideia de onde a gente tá.

Pegamos uma estrada escura depois de sair da rodovia principal há no mínimo vinte minutos, o Jeep Sahara deles queimando o chão na nossa frente a 120 por hora. Consigo acompanhar o ritmo sem problemas, mas não costumo correr tanto em território desconhecido à noite, quando não dá pra avistar de longe a polícia escondida nas laterais da estrada. Se eu for multado a culpa é minha, mas posso encher o tal Tate de porrada mesmo assim, só por uma questão de princípio.

— Pelo menos a gente tá com o tanque cheio — ela diz. Depois ri, estica o pé para fora da janela e continua: — Vai ver que eles estão planejando ir pra uma cabana sinistra no meio do mato e matar a gente lá.

— Ei, eu também pensei nisso — digo, rindo junto com ela.

— Bom, eu confio em você pra me proteger — ela brinca. — Não deixa nenhum deles fazer picadinho de mim, nem me obrigar a ver Honey Boo Boo.

— Pode deixar. O que me lembra do número quatro na nossa lista de promessas: se um dia eu me perder ou desaparecer, prometa que não vai parar de me procurar exatamente por 365 dias. No dia 366, aceite que se eu estivesse vivo, já teria dado um jeito de voltar pra você, e que portanto tô morto faz tempo. Quero que você siga com sua vida.

Ela se ergue do banco, puxando o pé para dentro do carro.

— Não gostei disso. Tem gente que desaparece e é encontrada anos depois, viva e saudável.

— É, mas não é o meu caso. Pode acreditar, se passar um ano, eu morri.

— Tá, tudo bem — ela diz, afastando o cinto de segurança e chegando perto de mim. Ela encosta a cabeça no meu ombro. — Só se você topar fazer o mesmo por mim. Um ano. Nem um dia a mais.

— Prometo — eu digo, mas é uma mentira deslavada. Eu continuaria procurando por ela até morrer.


Camryn


23

NÃO TEM PROBLEMA mentir sobre algumas coisas. Essa “promessa” é uma delas. De jeito nenhum eu conseguiria parar de procurá-lo depois de um ano. Na verdade, jamais iria parar de procurar. Esse pacto cheio de promessas que juramos manter é importante para nós dois, mas acho que pra certas coisas, vou ter que concordar abertamente e depois fazer o que eu quiser, caso aconteçam.

Além disso, tenho a impressão de que ele também está mentindo.

Andrew não sabe, mas vi aquela garota de cabelo preto, Bray, algumas horas antes, nos banheiros perto da praia. Ela acabou entrando na minha cabine depois de mim. Não chegamos a conversar, só nos cruzamos com um sorriso amigável e mais nada. Acho que foi isso que a motivou a fazer seus amigos nos convidarem para a balada.

Acho que vai ser divertido. Andrew e eu passamos 100% do nosso tempo sozinhos um com o outro, e imagino que seja bom para os dois sair um pouco do casulo e socializar mais com outras pessoas. E ele não levantou nenhuma objeção, então acho que ele também supõe que não vai fazer mal nenhum.

A viagem pro tal lugar “reservado” parece levar uma hora.

O jipe deles vira à esquerda numa estrada parcialmente pavimentada e, quanto mais avançamos, mais o asfalto fica esburacado. Os faróis do carro deles se agitam na escuridão diante de nós, até que a estrada arborizada se abre numa grande clareira de areia e pedras. Andrew para ao lado deles e desliga o motor.

— Bom, é isolado mesmo — eu comento ao sair do carro.

Andrew chega perto de mim, olhando para a praia deserta. Ele segura a minha mão.

— A gente pode voltar agora, ainda dá tempo — ele me provoca. — Depois que nos tirarem de perto do carro, pode ser a última vez que vamos nos ver. — Ele aperta a minha mão e me puxa mais para perto, brincando.

— Acho que vamos sobreviver — decido, quando o último do grupo sai do jipe e nos encontra atrás dos carros.

Tate abre a porta de trás do jipe, tira um isopor gigante e o joga na areia.

— Tá cheio de cerveja aqui — ele diz, erguendo a tampa e mexendo dentro.

Ele joga uma garrafa de Corona para Andrew. Não é sua favorita, eu sei, mas ele também não chega a recusar.

Bray e o noivo, nem lembro mais o nome dele, se aproximam de mim, enquanto Tate destampa outra garrafa de Corona e me entrega.

Eu aceito.

— Obrigada.

Andrew abre a tampa da sua com o abridor de garrafas do chaveiro.

— Se vocês têm um cobertor, é bom trazer — Tate diz. Sua namorada se junta a ele, sorrindo para mim ao passar entre nós com seu biquíni branco minúsculo. — E tenho um som da porra no carro — ele acrescenta, dando tapinhas no jipe —, então música também não vai ser problema.

Andrew abre o porta-malas e pega o cobertor que sempre leva no carro, o mesmo que usamos na noite em que tentamos dormir naquele campo julho passado. Só que agora, graças a mim, ele foi lavado e não está fedendo a óleo e fumaça de carro.

— Cadê meu short? — pergunto, remexendo no banco de trás.

— Aqui — Andrew diz do porta-malas. Quando saio do carro, ele joga o short para mim e eu o apanho no ar.

— Não pretendo nadar nesse abismo à noite — digo, vestindo o short por cima do meu biquíni vermelho.

Ouvindo o que eu falei, Bray diz:

— Ainda bem que não sou só eu!

Sorrio para ela por cima do teto do Chevelle e fecho a porta.

— Você já veio aqui com eles?

Tate e os outros estão indo para a praia agora, carregando o isopor, sacolas de praia e outros objetos. Eles deixam as portas do jipe abertas, com os alto-falantes despejando rock no último volume.

— A gente veio ontem — Bray conta —, mas Elias logo ficou bêbado e começou a pôr os bofes pra fora, por isso eu tive que voltar dirigindo pro hotel bem cedo.

Elias, isso, esse é o nome do noivo dela. Ele balança a cabeça e lança um olhar sarcástico de obrigado-por-contar-pra-todo-mundo para ela.

Andrew e eu andamos ao lado de Bray e Elias, de mãos dadas, até onde todos já estão acampando não muito longe, perto da água. Quando chegamos e estendemos nosso cobertor na areia, Tate risca um fósforo e o joga num monte de galhos. A chama acende o fluido de isqueiro que ele espalhou antes na fogueira. Uma coluna de fogo alta e brilhante espirala por cima do monte e ilumina a escuridão ao nosso redor com uma luz laranja dançante. O calor das chamas já está chegando em mim, por isso afasto um pouco mais nosso cobertor da fogueira, antes que eu e Andrew sentemos nele. Bray e Elias também se sentam sobre duas toalhas de praia gigantes. Tate, o irmão dele e as outras três garotas dividem uma grande colcha. Enfio o fundo da minha garrafa de cerveja na areia ao meu lado, para que ela fique de pé.

Tate me lembra aqueles surfistas da Califórnia, muito louros e bronzeados. Como todos os outros caras, incluindo Andrew, Tate se senta com os joelhos dobrados e os braços apoiados neles. E enquanto estudo todos discretamente, logo vejo algo com o rabo do olho que me faz ficar territorial na hora. A loura ao lado do irmão de Tate, que duvido que seja namorada dele porque os dois não parecem estar juntos, está olhando para Andrew com olhos famintos. Não quero dizer de um jeito inocente, de quem só vai olhar sem tocar. Não, essa garota tentaria dormir com ele assim que eu me afastasse.

Quando ela nota que a estou observando, desvia o olhar e começa a conversar com a garota ao seu lado.

Não tenho com que me preocupar com relação a Andrew, mas se ela me desrespeitar sabendo que ele é meu noivo, não vou pensar duas vezes antes de enchê-la de porrada.

Eu me pergunto se Andrew percebeu.

Andrew

Espero que Camryn não tenha percebido o jeito como aquela garota me olhou agora. Se eu e ela ficássemos cinco segundos sozinhos aqui, ela tentaria dar pra mim. Nem fodendo eu ia querer isso, mas este luau já ficou um pouco mais interessante.

Aposto minha bola esquerda que ela já dormiu com Tate e o irmão dele. Talvez não com Elias — ele parece o tipo fiel —, mas ela daria pra ele também, se ele topasse.

Puta merda, ela olhou pra mim de novo.

Olho rapidamente para Camryn para não cruzar olhares com a menina e não dá outra, Camryn está com aquele sorriso revelador no rosto. É, com certeza ela viu.

Eu pego Camryn no colo e a coloco no meio das minhas pernas.

— Não se preocupe, amor — sussurro no seu ouvido, e então beijo seu pescoço para que a garota veja.

— Eu não tô preocupada — Camryn diz, deitando sobre o meu peito.

Não está preocupada comigo, claro, mas sinto a tensão territorial emanando de seu corpo. Cacete, só a ideia de vê-la pulando em cima daquela garota por minha causa... Tudo bem, eu não deveria pensar nisso. Fodeu. Tarde demais.

— Essas tatuagens são iradas — Tate diz, apontando.

Todos estão olhando a tatuagem em mim e Camryn. Ela se ergue do meu peito para que vejam melhor.

— Pode crer — Bray diz, encantada. Ela rasteja pela areia mais para perto de nós. — Eu tava curiosa mesmo pra ver.

A loura que estava me olhando agora há pouco ri de Camryn, embora Camryn não note, porque está ocupada mostrando a tatuagem para Bray.

Uso essa oportunidade em meu benefício.

— Vira pra cá, amor, mostra como elas se encaixam. — Eu viro Camryn no meu colo e me deito de costas, deitando seu corpo sobre o meu.

O grupo nos olha com atenção, o rosto da loura ficando um pouco amargo quando a encaro diretamente enquanto aperto meu corpo contra o de Camryn. Alinhamos nossas tatuagens para formar o desenho de Orfeu e Eurídice; minha Eurídice usando uma veste branca comprida e transparente, colada ao corpo pelo vento, dobras de tecido sopradas atrás dela, que estende os braços para o Orfeu tatuado nas costelas de Camryn. Bray olha atentamente os detalhes, seus olhos pretos arregalados de assombro. Ela olha novamente para Elias e agora ele parece nervoso, como se tivesse medo de que Bray vá arrastá-lo para o tatuador mais próximo amanhã.

— Isso. É. Demais — Bray diz. — Quem são eles?

— Orfeu e Eurídice — respondo. — Da mitologia grega.

— Uma história trágica de amor verdadeiro — Camryn acrescenta.

Eu a abraço mais forte.

— Bom, vocês dois não parecem ter nada de trágico — Tate diz.

Abraço Camryn ainda mais forte, nós dois pensando em coisas particulares, que é melhor guardar só para nós. Eu beijo o alto do seu cabelo.

Bray se afasta, ainda sentada com os joelhos afundados na areia.

— Eu achei linda. E é bom que seja, porque sei que isso dói um bocado.

— É, doeu mesmo — Camryn diz. — Mas valeu cada hora de sofrimento.

Algum tempo depois, Camryn e eu já tomamos pelo menos três Coronas cada um, mas só ela demonstra. Está um pouco alta, mas só o bastante para ficar mais tagarela.

— Eu sei! — ela diz para Bray, a de cabelo preto. — Vi um show deles com minha melhor amiga, Nat, e eles são demais! Não tem muitas bandas que conseguem tocar quase como no disco.

— É verdade — Bray diz, terminando sua cerveja. — Você disse que é da Carolina do Norte?

Camryn levanta as costas do meu peito e se senta de pernas cruzadas na areia.

— Sou, mas Andrew e eu não moramos mais lá.

— Onde vocês moram? — Tate pergunta. Ele puxa um longo trago do seu cigarro e segura a fumaça enquanto fala. — No Texas?

Todos se viram para me olhar quando respondo.

— Não, a gente meio que... viaja.

— Viaja? — Bray pergunta. — Como, vocês têm um trailer?

— Não exatamente — Camryn diz. — A gente só tem o carro.

A loura que está me olhando o tempo todo entra na conversa:

— Por que vocês estão viajando?

Noto imediatamente por sua expressão que ela está se esforçando ao máximo para chamar a minha atenção, mas eu a ignoro e respondo, olhando para Bray, que está ao nosso lado: — A gente toca junto.

— Como, vocês têm uma banda? — a loura pergunta.

Eu olho para ela, desta vez.

— Mais ou menos — digo, mas é só o que eu respondo, e volto a dar atenção para Bray.

— Que estilo de música vocês tocam? — pergunta Caleb, o irmão de Tate. Ele está se engraçando com a outra garota desde que chegamos. Provavelmente também não estão juntos, mas ele com certeza vai se dar bem hoje.

— Rock clássico, blues e folk, coisas assim — respondo, tomando um gole de cerveja.

— Vocês precisam tocar pra gente! — Bray diz, empolgada.

Ela está claramente tão alta quanto Camryn, e as duas parecem estar se dando bem.

Camryn vira na areia para me olhar, de olhos arregalados e cheios de entusiasmo.

— A gente podia. O violão tá no banco de trás.

Eu balanço a cabeça.

— Não, não tô a fim agora.

— Ah, vai, amor, por que não?

Aí estão a cara de gatinho do Shrek e o jeito de choramingar que é a marca registrada de Camryn, que nunca falham em me obrigar a fazer tudo o que ela quer. Mas eu enrolo mais um pouco, talvez esperando que ela desista e diga deixa pra lá.

É claro que ela não desiste.

— É, cara, se você trouxe um violão e sabe tocar, vai ser show — Tate diz.

A essa altura, todos estão me olhando — até Camryn, que na verdade é a única pela qual vou fazer isso.

Cedendo, eu me levanto, vou até o carro e volto trazendo o violão.

— Você vai cantar comigo — digo para Camryn quando me sento ao seu lado.

— Nãão! Eu tô muito bêbada! — Ela me beija na boca e vai se sentar perto de Bray e Elias, para me dar um pouco de espaço, acho.

— Tudo bem, o que você quer que eu cante?

A pergunta era para Camryn, mas Tate responde:

— Ei, o que você quiser, cara.

Penso em várias canções por um minuto e finalmente escolho uma porque é bem curta. Mexo um pouco nas cordas, afino o violão rapidinho e começo a tocar “Ain’t No Sunshine”. No início, estou pouco me fodendo se está bom, mas como sempre, depois que começo, me torno outra pessoa e dou tudo de mim. Meus olhos ficam fechados a maior parte da canção, mas sempre consigo sentir a energia das pessoas ao meu redor, se elas estão curtindo ou não.

Todas estão.

No segundo refrão, olho nos olhos de Camryn enquanto dedilho as cordas. Ela está sentada na areia sobre os joelhos, seu corpo balançando de um lado para o outro. As outras garotas fazem o mesmo, totalmente imersas na música. Eu canto o último refrão, e essa canção basta para que eu queira tocar mais. Bray mal consegue se segurar, me dizendo o quanto foi bom e dando bastante atenção a Camryn, o que a faz ganhar pontos comigo. Diferente da loura, que está me olhando um pouco mais do que antes.

— Porra, cara, você não tava brincando — Tate diz.

Ele acende um baseado.

— Toca outra — Bray diz, encostando-se em Elias de novo, que a abraça por trás.

Tate passa o baseado primeiro para Camryn. Ela apenas o olha por um segundo, sem saber se deve aceitar ou não. Vejo uma expressão fugidia de dor em seu rosto; eu sei que ela está se lembrando do seu momento de fraqueza com os comprimidos. Ela balança a cabeça.

— Não, obrigada, acho que hoje só vou beber.

Eu sorrio por dentro, orgulhoso de sua decisão. E quando Tate o oferece para mim em seguida, faço o mesmo, não porque eu não queira dar uns tapas, mas porque não consigo curtir assim quando Camryn não quer.

Nunca fui muito fã de maconha, mas curto dar um pega de vez em quando. Agora não é o momento.

Toco mais algumas canções em volta da fogueira. Camryn finalmente canta uma comigo, e depois quero só relaxar com a minha garota e curtir essa onda tão rara. Deixo o violão ao nosso lado no cobertor e puxo Camryn novamente para o meu colo.

O irmão de Tate está chupando a língua daquela garota e bolinando-a há algum tempo. Eles não falam muito, por motivos óbvios. A loura que antes estava me olhando finalmente se tocou, eu acho. Ou isso, ou já está chapada demais para se importar comigo.

A música do jipe de Tate aumenta de novo, e ele volta de lá trazendo uísque, uma garrafa de dois litros de Sprite e uma pilha de copos descartáveis. A namorada dele começa a misturar as bebidas e distribuir os copos.

— Bebe aí, cara — Tate aconselha. — Nem esquenta se vai dirigir depois. A polícia não conhece esse lugar.

— Tá, eu aceito um copo — respondo.

Olho para Camryn, lembrando sua expressão quando Tate lhe passou o baseado.

— Se você não quiser, eu não bebo — digo.

À parte não querer que ela sinta que está traindo a si mesma bebendo demais, também não quero que encha a lata a ponto de ficar um lixo na manhã seguinte.

— Não, tudo bem, amor. Só vou tomar uma dose, tá?

Ela sorri docemente para mim como se estivesse esperando a minha permissão, o que eu acho bonitinho pra cacete.

— Tá — eu cedo, por não querer magoá-la, e ela aceita o copo da namorada de Tate.

Todos relaxamos, bebemos e conversamos sobre tudo quanto é assunto por um tempo enorme. Camryn está gargalhando, sorrindo e falando com Bray sobre absorventes íntimos, um assunto que não faço ideia de como surgiu, nem quero saber, mas estamos nos divertindo muito. Músicas de bandas que nunca ouvi tocam alto no som perto dali, e fico intrigado com as últimas canções, que tenho certeza de que são com o mesmo cantor.

— Quem são esses? — pergunto a Tate.

Ele desvia o olhar da namorada, que está com a cabeça no seu colo.

— Quem? A banda?

— Sim — digo. — Eles são muito bons.

— Isso, meu amigo, é Dax Riggs. Tá fazendo carreira solo agora. Ele começou no Acid Bath, acho... — Ele parece pensativo, como se não tivesse certeza. — Bom, ele tocou em vários grupos. Acid Bath e Agents of Oblivion são os mais conhecidos.

— Acho que já ouvi falar do Acid Bath — comento, tomando mais um gole de uísque com Sprite.

— Eu não me espantaria — Tate acrescenta.

— Preciso conhecer o som desse cara. Ele é desconhecido?

Camryn, abandonando a conversa sobre absorventes com Bray, se aproxima de mim e encosta a cabeça no meu ombro.

— É, ele nunca aderiu ao mainstream — Tate diz. — Ainda bem, porque o mainstream é uma bosta. Fico puto quando vejo um grupo legal se vendendo, fazendo comercial de pasta de dente e merdas assim.

Eu rio um pouco.

— Com certeza. Eu nunca assinaria um contrato com uma gravadora, nem se me oferecessem.

— Falou tudo, cara — Tate diz. — Depois que você assina, vira a putinha deles. Sua música não te pertence mais e você precisa abrir as pernas pro cuzão que assina seus cheques.

Tô começando a gostar desse cara. Só um pouquinho.

— Andrew, preciso fazer xixi — Camryn diz.

Eu olho para ela. Tirando o copo de sua mão, eu o deixo na areia.

— Também tô precisando dar uma mijada — digo tanto para ela quanto para Tate.

Tate aponta para a esquerda com outro cigarro entre os dedos e diz: — Vão praquele lado. Não tem vidro quebrado nem merda nenhuma no chão.

Deixo meu copo perto do de Camryn e a ajudo a levantar. Andamos pela areia até um lugar cheio de árvores e pedras, distante o suficiente para que ninguém nos veja.

— A gente vai ter que passar a noite aqui. Não tô em condições de voltar dirigindo.

Ela se agacha enquanto mijo a poucos metros dela.

— Eu sei. Acho que finalmente vamos dormir sob as estrelas, hein?

Estou rindo dela por dentro. Minha gata está tão bêbada que está até enrolando a língua.

— Pois é, acho que sim — concordo. — Mas é bom você saber que na verdade esta vez não conta porque você mal vai lembrar amanhã.

— Vou, sim.

— Nãão, não vai.

Ela quase cai depois de terminar e tentar ficar de pé. Eu a seguro pelo braço e passo o meu pela sua cintura. Então a beijo no alto da cabeça.

— Eu te amo tanto.

Não sei por que senti tanta vontade de dizer isso nesse momento, mas só de tê-la ao meu lado e saber que ela não está em condições de se cuidar esta noite, eu precisava dizer. Essas palavras estavam presas na minha garganta e, admito, eu estava começando a ficar engasgado com elas. Eu poderia culpar o álcool, mas não, mesmo completamente sóbrio, eu a amo pra cacete.

Ela passa os dois braços pela minha cintura, aninha a cabeça no meu peito quando começamos a voltar e me aperta.

— Eu também te amo.


24

À MEDIDA QUE a noite avança, as cenas do nosso pequeno grupo começam a mudar. As pessoas estão falando menos e se pegando mais. Bray e Elias estão deitados ao lado da fogueira. Tate e a namorada já poderiam estar transando; só falta tirarem a roupa. Por sorte, a loura sinistra me esqueceu e está ajudando a amiga a apalpar Caleb a uns dois metros e meio de mim e Camryn.

É, tenho certeza de que imagino no que isso vai dar. Nada de especial. Não é uma situação que eu ainda não tenha vivido, mas desta vez meu principal objetivo não é satisfazer duas garotas ao mesmo tempo. Só preciso manter Camryn longe dessa merda.

Quando começo a virar o corpo para falar com Camryn, que está deitada ao meu lado, o mundo todo some debaixo de mim. Tento levantar a cabeça. Eu acho. Sinto fadas dançando em cima dos meus olhos. Abertos.

— Caralho... — digo em voz alta, mas talvez não tenha dito. Talvez tenha sido só minha imaginação.

Eu levanto a mão diante do rosto e a lua parece estar aninhada entre meu polegar e meu indicador. Tento soltá-la, mas ela é pesada demais e empurra meu braço para baixo. Sinto meu cotovelo bater na areia como um haltere de 40 quilos.

Minha cabeça está rodando. A cor do fogo é azul, amarela e vermelho-escura. O som do oceano está triplicado em meus ouvidos, misturando-se ao crepitar da madeira no fogo e a alguém gemendo.

— Camryn? Cadê você?

— Andrew? Eu... eu tô aqui. Eu acho.

Nem sei dizer se era realmente a voz dela.

Fecho os olhos com força e abro de novo, tentando clarear a visão, mas percebo que não quero enxergar melhor. Estou sorrindo. Meu rosto parece tão esticado que por um instante tenho medo de que não vá parar de esticar e acabe rasgando no meio. Mas tudo bem.

Puta que me pariu... eu tô viajando. Que. Porra. Eles. Me deram pra beber?

Tento me levantar, mas quando acho que estou de pé, olho para baixo e percebo que nem me mexi. Tento de novo, com o mesmo resultado.

Por que não consigo levantar?!

— Caralho, Tate — ouço uma voz dizer, mas nem consigo dizer se é masculina ou feminina. — Que puta bagulho bom. Caraaalho... Tô vendo arco-íris e o escambau. É a porra do Reading Rainbow1...

Em seguida, quem disse isso começa a cantar o tema do Reading Rainbow.

Me sinto na cidade dos malucos, mas na verdade não quero ir embora.

Finalmente, eu me deito de costas e verifico duas vezes minha posição, apalpando a areia dos dois lados do corpo com as palmas das minhas mãos pesadas. Então olho para o céu cheio de estrelas e vejo que elas se movem para lá e para cá na escuridão, num balé poético.

O rosto de Camryn aparece sobre o meu peito, como um fantasma emergindo da neblina.

— Amor? — pergunto. — Você tá bem?

Estou preocupado com ela, mas não consigo parar de sorrir.

— Tô. Eu tô óooootima. Tô ótima.

— Deita aqui comigo — digo para ela.

Fecho os olhos quando sinto sua cabeça sobre o meu peito e sinto o cheiro do xampu que ela sempre usa, só que agora está muito mais forte. Tudo está mais forte. Cada ruído. A sensação do vento no meu rosto. Dax Riggs cantando “Night Is the Notion” ao fundo, em algum lugar que minha mente diz ser longe, mas o som está tão alto que parece que o jipe está encostado na minha cabeça. Consigo quase sentir o cheiro de borracha dos pneus.

E eu não consigo evitar. Começo a cantar “Night Is the Notion” o mais alto que posso. Não sei como já conheço a letra, mas conheço. Conheço, caralho. E parece que a canção dura horas, e eu nem ligo. Finalmente, paro de cantar, só fecho os olhos e sinto a música passar através de mim. E não me importa mais nada agora, a não ser o momento. E eu tô doido de tesão. Levo um segundo — eu acho — para perceber que meu pau está sentindo a mesma brisa que meu rosto sente. E é bom.

— Camryn? Quê? Tá.

Nem sei o que estou dizendo, ou se estou realmente dizendo alguma coisa. Minha mente me diz que preciso me certificar de que ela não está chapada a ponto de fazer um boquete na frente dos outros, mas ao mesmo tempo não quero que ela pare.

Eu fico sem fôlego e minha cabeça cai para o lado. Vejo Caleb em cima de uma das garotas, as coxas nuas dela apertadas ao redor do corpo dele, que sobe e desce. Desvio o olhar. Olho para o céu de novo. Traços de luz vão para um lado e para o outro com o movimento das estrelas. Estremeço quando sinto meu pau batendo no fundo da garganta dela.

Eu olho para baixo. Vejo uma cabeleira loura. Estendo a mão para tocá-la, parte de mim querendo afastá-la, outra parte querendo forçá-la a engolir mais fundo. Acabo escolhendo a segunda opção, mas quando jogo a cabeça para trás e vejo o rosto de Camryn ao lado do meu, ergo os ombros da areia.

— Sai de cima de mim, piranha! — consigo gritar.

Eu a chuto para longe e o barato muda completamente. Não estou mais curtindo.

Eu me obrigo a sentar, tento dar murros na cabeça com as mãos, esperando ficar sóbrio com o choque, mas não adianta porra nenhuma. Só consigo enfiar o pau de volta no short, olho para o outro lado da fogueira e vejo aquela piranha nojenta já desmaiada perto de Caleb. Não sei quanto tempo passou, mas todos estão capotados, menos eu.

Estou em pânico, não consigo nem respirar. O que foi que aconteceu, porra?

Eu viro para o lado e abraço Camryn, forçando-a a ficar perto de mim, e não solto mais.

E essa é a última coisa de que me lembro.

Camryn

Estou enjoada. Meu Deus, eu nunca, nunca tive uma ressaca assim. O sol da manhãzinha e a brisa que vem do oceano me acordam. De início fico deitada ali, pois tenho medo de vomitar se me mexer. Minha cabeça está latejando, as pontas dos meus dedos estão dormentes, o resto do meu corpo treme, tomado pela náusea. Eu gemo e acabo de abrir os olhos, pressionando um braço horizontalmente sobre a barriga. Sei que de jeito nenhum vou conseguir sair desta praia sem antes vomitar por uns bons cinco minutos, mas tento me segurar o máximo que posso.

Minha bochecha está apertada contra a areia debaixo de mim. Sinto grãos grudados na pele. Com muito cuidado, limpo a areia com um dedo antes que ela entre no meu olho.

Ouço uma pancada, seguida por um estalo e gritos.

Apesar dos protestos do meu estômago, viro para o outro lado, olhando para o oceano.

— Sai de cima dele! — ouço uma garota gritar.

Isso me acorda ainda mais, e por uma fração de segundo me dou conta do quanto eu estava desacordada. Mas agora estou totalmente alerta. Levanto a cabeça da areia e vejo Andrew moendo Tate com os punhos.

— Andrew! — tento gritar, mas minha garganta está irritada e minha voz sai rouca, por isso só consigo balbuciar seu nome. — Andrew! — digo de novo, controlando melhor minha voz.

— Qual é o seu problema, caralho?! — Tate grita.

Ele está tentando se afastar de Andrew, mas Andrew continua avançando. Ele dá mais e mais socos, dessa vez derrubando Tate sentado na areia.

Então o irmão de Tate vem ajudar e soca o quadril de Andrew. Os dois caem longe de Tate e rolam vários metros. Andrew pega Caleb pela garganta e o levanta acima de seu corpo, jogando-o com força na areia, e está em cima dele em segundos. Ele dá três socos em Caleb antes que Tate chegue por trás, puxando-o para longe.

— Fica frio aí, porra! — Tate grita.

Mas Andrew gira o corpo e atinge seu queixo com um gancho, e eu ouço outro estalo de ossos de virar o estômago. Tate cambaleia para trás, segurando a mandíbula.

— Você drogou a gente! Eu vou te matar, caralho! — Andrew ruge.

Finalmente consigo ficar de pé, embora eu tropece uma vez antes de chegar perto de Andrew. Quando vou segurar o braço dele para puxá-lo, sou empurrada por trás e caio sentada. Nem sei o que aconteceu, mas por um segundo fico sem fôlego. Levanto a cabeça e vejo Caleb em cima de Andrew. Devo ter sido atingida quando Caleb atacou Andrew por trás.

Eu me levanto novamente da areia e vejo Elias se aproximando.

Em pânico, olho para meus dois lados e novamente para Elias. Tudo parece estar em câmera lenta. Os três vão se juntar contra Andrew? Ah, nem fodendo! Começo a agarrar Tate enquanto ele e Caleb estão esmurrando Andrew, mas sou empurrada para longe por Elias.

— Sai! — ele rosna para mim.

Andrew consegue se aguentar bem contra Tate e Caleb, ainda está de pé e trocando socos com os dois, mas se Elias entrar na briga, acho que ele não vai conseguir lutar contra os três.

Elias entra no bolo e não consigo entender quem está batendo em quem, quando um par de mãos me pegam pelas axilas por trás.

— Fica aqui comigo, garota — Bray diz.

No meio da minha confusão e pavor, vejo Elias esmurrando Caleb e o alívio toma conta do meu corpo, embora isso dure pouco.

A boca de Andrew está sangrando. Mas todos os quatro estão sangrando em algum lugar. A luta parece continuar para sempre, e a cada golpe que Andrew dá ou recebe, eu me encolho e fecho os olhos, querendo apenas bloquear tudo. Estou sentada na areia com Bray me abraçando por trás, porque ela ainda acha que vou tentar entrar na briga. Mas voltei a sentir que vou vomitar e mal consigo me mexer. Gotas de suor brotam na minha testa. Minha nuca está fria e úmida. O céu está começando a girar.

— Oh, não. Bray... acho que eu vou...

Eu perco o controle ali mesmo. Sinto meu corpo se desvencilhando com violência dela e minhas mãos se estendendo, afundando na areia. Minhas costas se arqueiam e descem, se arqueiam e descem, e eu vomito sem parar, sem parar. Meu Deus, por favor, faz isso parar. Eu nunca mais vou beber! Por favor, faz isso parar! Mas parece que eu nunca vou parar. Quanto mais vomito, mais meu corpo reage ao cheiro do vômito, ao som, ao sabor dele, e isso me faz vomitar ainda mais. Mal consigo ouvir a luta ao fundo por cima dos meus próprios ruídos, e dos estertores secos quando não resta mais nada no meu estômago para devolver. Finalmente, caio para o lado. Não consigo me mexer. Meu corpo treme incontrolavelmente, minha pele está fria e quente e pegajosa em todo lugar. Sinto que Bray está sentada ao meu lado.

— Você vai ficar bem — eu a ouço dizer. — Uau, aquele bagulho te zoou forte.

— O que era? — pergunto, e partes da noite anterior começam a voltar à minha memória.

Nem ouço se ela respondeu ou não à minha pergunta.

Lembro que tudo estava bem, era só uma bebedeira normal, até pouco depois que começamos a tomar o gim. E então, do nada, eu não conseguia mais enxergar o que estava à minha frente, porque tudo estava perto demais. Eu ficava tentando focar os olhos em coisas mais distantes, o oceano, as estrelas, as luzes dos barcos ao longe, sobre a água. Lembro que achei que um navio estava se aproximando de nós e que ia bater na praia. Mas eu não me importava. Eu achei... lindo. Ia matar a todos nós, mas era lindo. E lembro que ouvi Andrew cantando uma canção bem sexy. Deitei a cabeça no peito dele e fiquei ouvindo-o cantar. Eu queria subir em cima dele e tirar a roupa, e teria feito isso, se conseguisse me mexer.

E lembro...

Peraí.

Aquela piranha loura. Ela me perguntou... peraí.

Eu levanto o corpo da areia.

— Acho que você precisa ficar deitada um pouco — Bray diz.

Meus dedos tocam minha testa.

Lembro que ela estava sentada perto de mim e de Bray. Estava tão chapada quanto todos nós, mas eu não estava mais com ciúmes. Ela conversou com a gente um pouco, e eu não me importei.

À medida que as lembranças vão voltando, meu corpo começa a tremer mais.

Ela tentou me beijar. Acho que eu deixei...

Acho que vou vomitar de novo.

Eu encolho os joelhos e apoio os cotovelos em cima deles, afundando o rosto nas mãos. Ainda estou tão zonza. Sinto que ainda não acabei de vomitar. Não tenho aquela grande sensação de alívio que vem depois de passar mal. Não, a ânsia só ficou mais intensa, desta vez provocada pelos meus nervos.

O resto está voltando aos poucos, e embora eu queira me forçar a esquecer, não consigo.

Ela perguntou se podia dormir comigo e com Andrew. Sim, me lembro agora. Mas... meu Deus... pensei que ela quisesse dizer dormir, mas agora me dou conta de que estava tão chapada que não percebi que ela queria dizer sexualmente.

Eu disse que não me importava.

Então lembro que ela...

Eu perco o fôlego. Levo a mão à boca, com os olhos arregalados e ardendo por causa da brisa.

Lembro que ela fez um boquete em Andrew.

Tentando ficar de pé, sinto a mão de Bray nas minhas costas.

— Para, garota — ela diz, me puxando de volta para a areia. — Não vai lá. Você só vai se machucar.

Solto meu pulso da mão dela e tento ficar de pé de novo, mas os movimentos bruscos, junto com meus nervos em frangalhos, causam mais ânsia de vômito.

Então ouço Andrew de pé perto de mim.

— Cacete — ele diz para Bray. — Você pega uma garrafa d’água no isopor no banco de trás do meu carro?

Bray vai pegar a água.

Andrew me puxa para suas pernas assim que eu paro de tentar vomitar. Ele afasta meu cabelo dos olhos e da boca.

— Eles deram droga pra gente, amor — ele diz.

Meus olhos se abrem um pouco e o vejo em cima de mim, com as palmas das mãos nas minhas bochechas.

— Eu mato aquela vaca. Juro por Deus, Andrew.

A expressão dele é de uma pessoa atordoada. Acho que ele não sabia que eu tinha visto.

— Ela ainda tá desacordada. Amor, eu...

A culpa em seu rosto me corta o coração.

— Andrew, eu sei o que aconteceu — digo. — Sei que você achou que fosse eu. Vi o que você fez.

— Não importa — ele diz, cerrando os dentes. Seus olhos ficam rasos d’água. — Eu devia saber que não era você. Porra, me desculpa. Eu devia saber. — Suas mãos apertam meu rosto.

Estou para mandá-lo parar de se culpar quando Elias se aproxima.

— Desculpa, cara, a gente não sabia. Juro.

— Eu acredito — Andrew diz.

Bray volta com a água, e eu já estou recuperando um pouco das minhas forças. Levanto o corpo e fico sentada, encostada no peito nu de Andrew. Ele me abraça e me aperta tão forte, como se temesse que eu fosse levantar e sair correndo.

Então ele pega a garrafa de Bray, tira a tampa, joga um pouco d’água na mão e passa na minha testa e na minha boca. O frescor me alivia na hora.

— Olha, cara, desculpa — Tate diz, chegando por trás de nós. — A gente achou que vocês não iam ligar. Só pusemos um pouco na bebida de todo mundo. Fizemos uma presença. Não trouxemos vocês pra cá com más intenções.

Andrew consegue se afastar delicadamente de mim, mesmo assim tão rápido que mal noto sua ausência, e esmurra Tate de novo. Um estalo de ossos nauseabundo ecoa pelo espaço.

— Por favor, Andrew! — eu grito.

Elias segura Andrew e Caleb segura Tate, apartando-os.

Andrew deixa Elias segurá-lo por trás, mas depois se desvencilha e volta para mim, me ajudando a levantar.

— Vamos embora — ele diz, ele começa a me pegar no colo, mas eu balanço a cabeça, para que ele saiba que consigo andar sozinha.

Ele pega o violão e eu pego o nosso cobertor, e nós vamos para o Chevelle.

— Talvez fosse bom a gente dar uma carona pra Bray e Elias — digo.

Andrew joga o violão no porta-malas e pega o cobertor de mim, guardando-o também. Então ele vai para o seu lado do carro, estende os braços sobre o teto e apoia a cabeça entre eles. Ele respira fundo e dá um murro na lataria.

— Puta que pariu! — grita, dando outro murro.

Em vez de tentar chamá-lo à razão, decido deixar que ele se acalme sozinho. Olho para ele com ternura do outro lado do carro. Depois entro e fecho a porta. Ele fica ali mais um minuto, até que o ouço dizer:

— Se vocês quiserem, podem voltar com a gente.

Elias e Bray, carregando suas coisas, vêm até o carro e se sentam no banco de trás.

1 Programa infantil de incentivo à leitura da TV pública americana. (N.T.)


Andrew


25

NEM SEI COMO achei o caminho de volta tão facilmente. Acho que num certo momento eu nem me importava muito se nos perdêssemos. Mas volto sem virar uma esquina errada nem ter que parar e pedir informações. Os quatro não falamos muita coisa na volta. E do pouco que foi falado, não lembro nada.

Paramos no estacionamento do hotel e nos despedimos de Elias e Bray. Talvez eu tivesse agradecido a Elias ou desejado sorte para o resto da viagem, ou talvez até convidado os dois para saírem conosco à noite, mas dadas as circunstâncias, só consigo responder com um aceno quando eles agradecem pela carona.

Eu dou partida no carro e vou para o nosso lado do hotel.

Camryn ainda parece insegura sobre conversar comigo. Não com medo, apenas insegura. Eu não consigo nem olhar para ela. Me sinto um bosta pelo que aconteceu, e nunca vou me perdoar.

Camryn segura a minha mão e vamos direto para o nosso quarto. Eu abro a porta e começo a jogar nossas coisas nas mochilas.

— Não foi sua...

Eu a interrompo.

— Não. Por favor. Só... me dá um minuto...

Ela olha para mim tão desolada, mas balança a cabeça e concorda.

Logo estamos na estrada de novo, indo para o Norte pelo litoral. Destino: qualquer lugar, menos a Flórida.

Depois de dirigir por uma hora, o que aconteceu na noite passada não me sai da cabeça, e eu tento entender, de alguma forma. Eu saio da estrada e o carro roda até parar no acostamento. Está tão silencioso. Olho para baixo, depois pelo para-brisa. Percebo que estou com os nós dos dedos brancos de tanto apertar o volante. Finalmente, abro a porta e saio do carro.

Ando rapidamente pelo cascalho e então desço a encosta da vala, atravessando para o outro lado e indo direto para a primeira árvore.

— Andrew, para! — ouço Camryn gritar.

Mas eu continuo andando, e quando fico frente a frente com aquela merda de árvore, bato nela com tanta força quanto bati em Tate e Caleb. A pele de dois dos meus dedos se abre, o sangue escorre pelas costas da mão e entre os dedos, mas eu não paro.

Só paro quando Camryn entra na minha frente e empurra meu peito com tanta força com as duas mãos que eu quase caio para trás. Lágrimas escorrem dos seus olhos.

— Para! Por favor! Para com isso!

Eu desabo sentado na grama, com os joelhos dobrados, minhas mãos ensanguentadas pendendo dos pulsos. Meu corpo se curva para a frente, cabisbaixo. Só consigo ver o chão embaixo de mim.

Camryn se senta na minha frente. Sinto suas mãos no meu rosto, tentando levantar minha cabeça, mas eu não deixo.

— Você não pode fazer isso comigo — diz com voz trêmula. Camryn tenta me forçar a olhá-la, e eu finalmente deixo porque me mata de dor ouvi-la chorar. Olho nos olhos dela, os meus cheios de lágrimas de raiva que estou tentando conter. — Amor, não foi culpa sua. Você tava drogado. Qualquer um poderia ter se enganado, chapado como você tava. — Seus dedos apertam meu rosto. — Não. Foi. Culpa. Sua. Entendeu?

Tento desviar o olhar, mas ela afasta minhas mãos e se senta no meio das minhas pernas sobre os joelhos, de frente para mim. Instintivamente, eu a abraço.

— Mesmo assim, eu devia saber — digo, olhando para baixo. — E não é só isso, Camryn, eu devia cuidar da sua segurança. Você nem deveria ter sido drogada, pra começar. — Só de pensar nisso, a raiva e o ódio por mim mesmo aumentam de novo. — Eu devia cuidar da sua segurança!

Ela me abraça e me força a apoiar a cabeça em seu peito.

Ela se afasta.

— Andrew, olha pra mim. Por favor.

Eu olho. Vejo dor e compaixão em seus olhos. Seus dedos delicados envolvem meu rosto barbado. Ela beija meus lábios suavemente e diz:

— Foi um momento de fraqueza — como que para me lembrar do que eu disse a ela há vários meses sobre os comprimidos. — Foi minha culpa tanto quanto sua. Eu não sou burra. Deveria ter imaginado que não podia deixar nossas bebidas na mão deles nem por um segundo. Não é culpa sua.

Eu baixo o olhar, e então olho para ela de novo. Não sei como posso fazê-la entender que, por causa de como e quem sou, sinto um forte senso de responsabilidade por ela. Uma responsabilidade da qual me orgulho, que senti desde o dia em que a conheci. Me mata... me mata saber que no meu “momento de fraqueza” eu não pude protegê-la, que, por eu ter baixado a guarda, ela poderia ter sido ferida, estuprada, morta. Como posso fazê-la entender que não importa se ela não me culpa por isso, que sua opinião, embora eu não a considere sem valor, não desculpa meu momento de fracasso? Ela tem direito a um momento de fraqueza. Eu não tenho. O meu é só fracasso.

— E eu nunca, jamais culparia você por aquilo — ela acrescenta.

Eu só olho para ela, procurando um significado em seu rosto, e então ela continua:

— O que aquela garota fez — ela explica. — Eu jamais jogaria aquilo na sua cara. Porque você não fez nada errado. — Eu sinto seus dedos afundando em meu rosto. — Você acredita em mim?

Eu balanço a cabeça lentamente.

— Acredito, sim.

Ela suspira e diz:

— De todo modo, pode ter sido em parte minha culpa. — Ela desvia o olhar.

— Como assim?

— Bem — ela diz, mas hesita com uma expressão distante de arrependimento no semblante —, acho que, sem querer, posso ter dado permissão pra ela.

Aquilo certamente me pega de surpresa.

— Lembro que ela perguntou sobre dormir com a gente, e acho que falei que sim, que ela podia. Eu-eu não sabia que ela queria dizer... sexualmente. Se eu estivesse sóbria, com certeza teria sacado isso. Andrew, me desculpa. Desculpa por eu ter deixado aquela piranha louca violentar você.

Eu balanço a cabeça.

— A culpa não é de nenhum dos dois, então não começa a se culpar também, tá?

Quando não vejo aparecer o sorriso que eu queria causar rápido o suficiente, eu a agarro dos dois lados pela cintura. Ela grita quando começo a fazer cócegas. Ela ri e se retorce tanto que cai para trás na grama, e eu me sento em cima dela, me apoiando nos joelhos dos dois lados para não esmagá-la.

— Para! Não! Andrew, tô falando sério, caralho! Paraaaa! — Ela ri alto e eu enfio mais os dedos nos seus quadris.

Então ouço um carro de polícia tocar a sirene uma vez e silenciar, parando atrás do meu carro.

— Fodeu — eu digo, olhando para Camryn. Seu cabelo está emaranhado e cheio de fios de grama.

Saio de cima dela e estendo a mão ensanguentada para ajudá-la a levantar. Ela a toma e fica de pé, espanando a roupa. Voltamos para o carro enquanto o policial sai de sua viatura.

— Vocês costumam deixar a porta do carro escancarada assim na estrada? — o policial pergunta.

Eu olho para a porta e novamente para ele.

— Não, senhor — eu digo. — Fiquei com vontade de vomitar e nem pensei nisso.

— Habilitação, comprovante do seguro e documentos do veículo.

Tiro a habilitação da carteira, entrego para ele e enfio o corpo pela janela do lado do passageiro para procurar os documentos no porta-luvas. Camryn está encostada na traseira do carro, com os braços cruzados nervosamente sobre o peito. O policial volta para a viatura — depois de notar o sangue nas minhas mãos — e se senta para consultar o meu nome.

— Espero que você não esteja escondendo nenhum assalto, assassinato ou nada assim de mim — Camryn diz, quando me apoio no capô ao lado dela.

— Não, já parei com os assassinatos — respondo. — Ele não tem como me prender. — Eu a cutuco de leve com o cotovelo.

Passados alguns minutos de pura tensão, o policial se aproxima de nós e me devolve os documentos.

— O que aconteceu com a sua mão? — ele pergunta.

Olho para ela, sentindo-a doer e latejar pela primeira vez, agora que ele chamou minha atenção. Em seguida, aponto para a árvore perto dali.

— Eu meio que bati na árvore.

— Você meio que bateu na árvore? — ele pergunta, desconfiado, e noto que olha para Camryn várias vezes. Que legal, ele deve estar achando que bati nela ou alguma porra assim, e considerando como ela está detonada depois do incidente de ontem à noite e do nosso rala-e-rola na grama, suas suspeitas devem estar sendo confirmadas.

— Tá, eu bati na árvore.

Ele olha para Camryn, agora.

— Foi isso que aconteceu? — ele pergunta a ela.

Camryn, nervosa pra caramba e pelo visto imaginando, como eu, o que o policial acha que realmente aconteceu, de repente faz a Natalie.

— Foi, senhor — ela diz, gesticulando muito. — Ele ficou nervoso porque uns filhos da puta... — ela se encolhe toda — desculpa, se aproveitaram da gente ontem à noite, e ele ficou se martirizando com isso a manhã toda e acabou descontando naquela árvore! Eu corri pra lá pra não deixar que ele se machucasse, a gente conversou, e eu tô com essa cara de merda pisada... ai, desculpa... por causa da noite de cão que a gente passou. Mas juro que não somos más pessoas. Não usamos drogas e ele não é um psicopata nem nada, então, por favor, libera a gente. Pode até fazer uma busca no carro, se quiser.

Momento. Sorvete. Na testa.

Eu rio por dentro. Não temos com que nos preocupar se ele quiser vasculhar o carro. A não ser que... nossos amigos temporários, Elias e Bray, tenham acidentalmente deixado uma trouxinha de erva ou qualquer porra incriminadora no banco de trás.

Puta merda... por favor, que não aconteça agora o que sempre acontece nos seriados de TV.

Eu olho para Camryn e balanço discretamente a cabeça.

Ela arregala os olhos.

— O que foi que eu falei?

Eu apenas sorrio, ainda balançando a cabeça, porque é só isso que posso fazer, na verdade.

O policial funga e depois mastiga a bochecha por dentro. Seus olhos vêm e vão entre mim e Camryn várias vezes e ele não diz uma palavra, o que só aumenta a nossa tensão.

— Da próxima vez, não deixem a porta escancarada assim — o policial diz, sua expressão tão neutra quanto esteve o tempo todo. — Seria uma pena alguém passar e arrancar a porta de um Chevelle 1969 em tão bom estado.

Um sorriso discreto ilumina o meu rosto.

— Com certeza.

O policial parte antes de nós, que ficamos dentro do carro estacionado por um mais um momento.

— “Pode fazer uma busca no carro, se quiser”? — repito.

— Pois é! — ela ri, jogando a cabeça para trás. — Eu não queria dizer isso. Escapou.

Eu rio também.

— Bom, parece que seu monólogo inocente... que, a propósito, me dá um pouco de medo; acho que aquela sua amiga bipolar tá te contagiando... deixou o policial com peninha e livrou a nossa cara.

Eu apoio as mãos no volante.

Ela estava sorrindo e provavelmente ia comentar minha piadinha com Natalie, até que vê de novo minha mão ensanguentada. Então se aproxima de mim e a pega delicadamente.

— A gente precisa limpar isso antes que infeccione — ela diz. Olha mais de perto e começa a tirar pequenos fragmentos de grama e terra em volta e dentro do ferimento. — Tá muito feio, Andrew.

— Não é tão grave assim — digo. — Não vai precisar de pontos.

— Não, você precisa é apanhar. Nunca mais faz isso. Tô falando sério. — Ela pega um último fragmento e depois se debruça por cima do encosto, procurando o pequeno isopor no banco de trás.

Eu viro a cabeça e só vejo a bunda dela saindo do short. Com minha mão ensanguentada, enfio o dedo dentro do elástico da calcinha do biquíni e o estalo sobre a pele dela. Ela não se assusta, mas revira os olhos quando para de remexer no banco traseiro, com uma garrafa d’água na mão.

— Enxágua isso — ela ordena, me passando a garrafa.

Eu abro a porta, pego a garrafa, estendo a mão para fora e derramo água sobre o ferimento.

Enquanto procura algo na bolsa, ela diz:

— Da próxima vez que você ficar puto e descarregar a raiva em algum objeto, vou pôr oficialmente o seu nome na minha Lista de Psicopatas. — Ela me passa um tubo de pomada.

Eu só balanço a cabeça e pego o tubo. Acho que não dá pra discutir com ela quanto a isso.

Ela aponta para a pomada e me manda aplicá-la logo. Eu rio e digo:

— Você parece uma sargenta.

Camryn me dá um soco de brincadeira no braço (machucando a própria mão, na verdade) e me acusa de insinuar que ela é gorda. É tudo brincadeira, e acho que é sua maneira de me ajudar a não pensar no que aconteceu. Depois de minutos, estamos conversando sobre música e sobre os bares ou clubes onde podemos tocar a caminho de Nova Orleans.

Sim, num certo momento decidimos que, não importando onde vamos parar ou quanto tempo vamos ficar, temos que visitar nosso lugar favorito à margem do Mississippi, haja o que houver.

~~~

Isso foi há dois dias. Hoje estamos acomodados num belo hotel no grande estado do Alabama.


Camryn


26

— TÁ EMPOLGADA com o que a gente vai fazer hoje à noite ou precisa respirar num saco de papel? — Andrew pergunta, saindo do banheiro com uma toalha enrolada na cintura.

— As duas coisas — respondo. Deixo o controle remoto sobre o criado-mudo e me sento na cama. — Conheço a música, mas é minha primeira apresentação solo. Por isso, sim, tô surtando um pouco.

Ele remexe na sua mochila perto da TV e acha uma cueca limpa. A toalha cai no chão. Eu inclino a cabeça, admirando sua bunda sexy da cama. Ele veste a cueca e ajeita o elástico na cintura.

— Você vai botar pra quebrar — ele diz, virando-se para mim. — Ensaiou um monte e já tá afiada. E se eu achasse que você não tava preparada, eu falaria.

— Eu sei que falaria.

— Bom, pronta pra trabalhar? — ele pergunta, terminando de se vestir.

— É. Acho que sim. Como eu tô?

Eu me levanto e dou uma volta, usando um top minúsculo preto com alcinhas finas e um jeans apertado.

— Peraí — eu exclamo, levantando o dedo. Calço minhas novas botas três quartos reluzentes e fecho o zíper na lateral. Então giro e faço pose de novo, exagerando um pouco.

— Insuportavelmente sexy, como sempre — ele elogia com um sorrisão, e então se aproxima de mim e passa a mão na minha trança.

Posso estar me apresentando sozinha cantando “Edge of Seventeen” da Stevie Nicks hoje, mas por duas horas, antes de subir no palco, vou trabalhar como garçonete e Andrew vai limpar mesas. Ganhei dele! Eu consegui o emprego mais legal.

A casa está lotada quando chegamos, às 19h. Adoro a atmosfera deste lugar. O palco é de bom tamanho, mas a área das mesas e a pista de dança são enormes. E está cheio, o que me deixa mais nervosa ainda. Eu vou até a cozinha, apertando a mão de Andrew, abrindo caminho no meio da multidão. Com estes empregos temporários, tivemos a sorte de trabalhar juntos por algumas noites. Quase todos os serviços que pegamos durante a viagem, desde a Virgínia, foram esporádicos. Eu trabalho como arrumadeira aqui e ali, enquanto Andrew trabalha de garçom ou até substitui algum leão de chácara. Ele pode não ser o tipo bombado (ainda bem, porque acho isso nojento), mas seus músculos são grandes o suficiente para ele ser contratado com facilidade. Por sorte, ele não precisou arrastar ninguém para fora pela camisa, nem apartar nenhuma briga.

Nosso chefe pelos próximos dias, German — é o nome dele mesmo, apesar de ele definitivamente não ser alemão, e sim o típico caipira do Meio-Oeste americano —, entrega a Andrew um avental branco e um broche que o identifica como “Andy”.

Eu seguro o riso, mas Andrew percebe a minha expressão divertida.

German esfrega sua mão roliça como uma salsicha no nariz, limpa-a no jeans e diz:

— Quando o povo levantá de uma mesa e terminá de recoiê as porra deles toda, cê vai lá e deixa a mesa limpinha pro próximo cliente. — Ele agita o dedo para Andy, hã, isto é, Andrew. — E não toca nas gorjeta. São só pras garçonete, tá me entendeno?

— Sim, senhor — Andrew diz. Quando German baixa os olhos para seu bloco de pedidos por um segundo, Andrew diz para mim, sem emitir som: Que porra...? E eu tento endireitar a boca e evitar sorrir quando German olha para nós de novo.

German olha para mim, mas olha mesmo, totalmente diferente de como estava olhando para Andrew agora há pouco. Ele abre um sorriso amarelo e diz:

— E ocê só pricisa fazê exatamente essa carinha que tá fazeno agora. Abre esse sorriso lindo e enche os bolso cas gorjeta.

Fico imaginando o que as outras garçonetes que trabalham aqui em tempo integral têm que aguentar desse cara.

Pisco meus olhos azul-bebê para ele e digo, com um sotaque caipira doce e sedutor:

— Pode deixá, seu German. E mais tarde, quando meu turno terminá, vô tê que ir lá pra dentro e retocá a maquiage antes de me apresentá, o senhor entende, né?

Noto que Andrew arregala os olhos e parece mais intrigado, mas eu continuo dando atenção a German, que já está comendo na minha mão de um jeito que, se eu o mandasse lamber o chão, ele falaria: Diz quando é pra pará, tá?

Andrew

Esse sotaque de bela do Sul que surgiu do nada me deixou morrendo de tesão. Vou ter que conversar com ela a respeito disso mais tarde.

Eu ponho meu broche, amarro o avental nas costas e pego a espécie de bacia de plástico que German aponta quando olho para ele. Cacete, não me incomoda fazer esse tipo de trabalho, mas German é um caipirão babaca, que espero que fique longe de mim pelas próximas duas horas. E ele está precisando de um desodorante. A porra do tubo inteiro, quero dizer. Ele realmente não combina com esse lugar. Parece uma bandeira confederada pendurada na janela de uma mansão de 400 mil dólares. O bar e restaurante até que é bem decorado. Por dentro, pelo menos.

Eu me dirijo para a área das mesas com a bacia debaixo do braço e vou para a primeira mesa vazia que vejo. Pego todo o lixo, os pratos sujos cheios de fritas e bolinhos que sobraram e jogo tudo dentro da bacia. Depois limpo a mesa com o trapo que tiro do bolso do avental e endireito os potes de ketchup e molho de churrasco. É tudo muito automático, diferente do serviço de garçonete, e acho que por isso somente Camryn precisou fazer uma hora de treinamento ontem para começar a trabalhar hoje. Ela pode ter o emprego que rende gorjetas, no qual pode usar seu charme sexy, mas precisa aguentar o chefe nojento e tarado. E eu tô adorando isso. Bem feito pra ela por tirar sarro do meu emprego de limpar mesas. Ela fez piadinha, me chamando de “escória” do bar. Bem, espero que ela não ache que vou tirar o traseirinho magro dela da reta, caso German resolva avançar o sinal. Ela vai ter que se virar sozinha.

Eu limpo mais algumas mesas, deixando uma gorjeta de cinco dólares numa e outra de vinte na outra. Quando estou para voltar para a cozinha para esvaziar a bacia, sou parado por quatro garotas numa mesa perto do balcão do bar.

— Ei, gatão — uma das mulheres mais velhas diz, me chamando com um dedo. — Podemos pedir nossas bebidas pra você?

— Sinto muito, senhora, mas eu só limpo as mesas.

Eu tento me afastar, mas outra mais bonita me impede.

— Aposto que se a gente pedisse pra você ser nosso garçom, você seria promovido. — Seus olhos estão vidrados e sua cabeça balança um pouco. Eu noto, porque é difícil não notar, seus peitos enormes saindo do top apertado. Ela os empina mais ainda.

— Bom, vocês podem pedir — eu digo, também mostrando meu charme, sorrindo com o canto da boca. — E se a chefia deixar, serei seu a noite toda.

As quatro se entreolham numa espécie de conversa silenciosa. Já estão comendo na minha mão.

Camryn chega atrás de mim carregando uma bandeja cheia de copos de uísque e um copo já lotado de notas. Eu me pergunto se aquele é o dinheiro das gorjetas ou o pagamento dos drinques. Isso está me deixando ansioso.

Ela dá um sorrisinho para mim, olhando para a mesa das mulheres, e depois rapidamente para mim de novo.

— Ele está incomodando vocês? — ela pergunta.

Eu sei que ela não está com ciúmes; hoje só o que importa é a competição entre nós dois. E ela vai fazer tudo o que puder para impedir que eu ganhe a pequena aposta que fizemos no carro a caminho daqui:

— Você acha que não consigo ganhar gorjetas só porque tô limpando mesas?

— Não consegue — ela disse. — Copeiro não ganha gorjeta.

— Pense bem — eu disse, olhando-a do banco do motorista. — É um bar cheio de mulheres e álcool. Aposto que consigo ganhar gorjetas.

— Ah, é mesmo? — ela perguntou, estufando os lábios.

— Sim — eu disse, e então aumentei o cacife, porque estava me sentindo ousado: — Na verdade, aposto que consigo ganhar mais gorjetas do que você.

Camryn riu.

— É sério? Quer mesmo apostar isso? — Ela cruzou os braços e balançou a cabeça como se eu estivesse dizendo algo ridículo.

— Quero — eu disse, mesmo sabendo que deveria ter dito Não, tô brincando.

Mas eu não disse não, e agora estou amarrado a essa aposta, e se Camryn ganhar, vou ter que fazer uma massagem de uma hora nela por três noites seguidas. Uma hora é muito tempo de massagem. Fico com os braços cansados só de pensar.

A mulher mais velha responde para Camryn:

— Não, ele não tá incomodando nem um pouco, lindinha. — Ela me olha de alto a baixo como se quisesse arrancar minha roupa e me lamber, apoiando o queixo nas duas mãos. — Ele pode ficar aqui o tempo que quiser. Cadê o seu chefe?

— Ele tá por aqui — Camryn diz. — É só procurar um gordão de uniforme. O nome dele é German.

— Obrigada, gata — a mulher diz, e volta a olhar para mim.

Essa mulher, admito, meio que me dá medo. E como ela parece ser a líder da matilha, decido que preciso sair dali antes que ela ache que estou mesmo a fim dela, porque aí eu é que vou precisar da ajuda de Camryn pra sair da enrascada em que me meti.

— Tenham uma ótima noite, madames — digo com um sorriso acolhedor, e me viro para ir embora.

Sinto uma mão deslizando para dentro do bolso do meu avental. Eu paro e olho para a mão que a mulher já está tirando do meu bolso. Ela está me encarando com aquele famoso olhar cheio de tesão.

— Pra você também, docinho — ela diz.

Pisco para ela e sorrio para as outras três enquanto me afasto casualmente. Quando chego à cozinha, esvazio a bacia, enfio a mão no bolso e tiro dele três notas de vinte dólares.

Porra, talvez aquela aposta não tenha sido tão ridícula, no fim das contas.

Duas horas depois...

A aposta foi ridícula, sim.

— 240, 241, 246, 256. — Camryn fica contando suas gorjetas, agora que nosso curto turno acabou. Ela dá um sorrisinho e acrescenta: — E você, quanto conseguiu?

Estou tentando ficar sério para que minha decepção pareça minimamente genuína, mas ela não está facilitando. Por isso pego meu dinheiro, conto de novo e respondo:

— 82 dólares.

— Bom, até que não tá ruim pra um copeiro, admito — ela diz, embolsando sua grana.

— Como assim, admite? — pergunto, desatando o avental e tirando-o. — Vai perdoar a aposta?

— Pfah! De jeito nenhum.

German chega atrás de nós.

— É bom que a cantoria docês preste. E nada dessas merda de rap, nem musiquinha new age metida a besta. — Ele estala os dedos rapidamente, como se estivesse tentando lembrar algum exemplo, mas logo desiste. — Cês num tão no Ídolos.

— Entendido — Camryn diz, com aquele seu sorriso doce.

German, com um sorriso de babacão na cara, desperta do feitiço dela e, ao se afastar, rosna quando passa por mim. Melhor isso do que me olhar do jeito que ele olha para Camryn, por isso não vou reclamar.

Eu me viro para Camryn.

— Não fica nervosa. — Eu seguro as mãos dela. — Já falei, você vai botar pra quebrar.

Ela balança a cabeça nervosamente. Então solta um suspiro rápido, fazendo bico, e respira fundo.

— Vou pegar a guitarra enquanto você se prepara — digo.

— Tudo bem.

Eu a beijo nos lábios e vou até o carro pegar a guitarra elétrica que ela me deu de presente de aniversário, que está no porta-malas. Apesar de “Edge of Seventeen” ser o solo dela, o próprio riff da guitarra é tão conhecido que estou quase tão nervoso quanto ela por ter que tocá-lo. Tudo bem, talvez não tão nervoso — é uma música até bem fácil. O que me deixa um pouco tenso é o medo de estragar o número dela. É só por causa dela que o show de hoje me deixa tenso.

Eu subo no palco e encontro o baterista, Leif, que conhecemos ontem, se preparando.

— Obrigado por tocar com a gente, cara — agradeço.

— Sem problemas — Leif diz. — Já toquei essa várias vezes num bar da Geórgia onde eu trabalhava, uns anos atrás.

Camryn ficou feliz por encontrar um baterista que conhece a canção. Ela estava preparada para se apresentar só comigo, sabendo que não seria a mesma coisa sem a bateria. Mas quando conhecemos Leif ontem, durante o treinamento dela como garçonete, e ele concordou em tocar conosco esta noite, acho que Camryn se sentiu bem mais confiante.

Eu passo a alça da guitarra pelo ombro assim que Camryn aparece no palco.

Ela vem direto na minha direção, eu encosto no seu ouvido e digo:

— Você tá gostosa.

Ela fica vermelha e olha para sua roupa. Ela trocou o top preto bonitinho que estava usando por outro de seda, também preto, com um decote nas costas que expõe sua pele quase até a cintura. O colar que comprei para ela brilha sobre a seda preta na frente. E ela soltou o cabelo. Adoro a trança que ela sempre usa, mas devo dizer que ela fica sexy em outro nível com o cabelão sedoso e louro caindo sobre os ombros.

O vozerio no bar ecoa pelo ambiente espaçoso, alto até enquanto Leif testa o bumbo da bateria atrás de nós. Todas as mesas estão ocupadas, bem como os bancos junto à parede dos fundos. Minhas quatro “amigas” ainda estão aqui e migraram de seu lugar para uma mesa mais próxima do palco. Elas parecem intrigadas com minha transformação de copeiro em guitarrista. Normalmente, a essa altura, eu estaria procurando na plateia minha “vítima” da noite, mas hoje é diferente, e não vamos fazer nada disso. Camryn está nervosa e concentrada demais para tentar nossa brincadeira de sempre.

Depois que finalmente nos preparamos e estamos prontos para começar, Camryn prende a respiração por um momento e olha para mim.

Eu espero que ela me dê o sinal, e quando a vejo acenar, começo a tocar, e todos os olhos na multidão se viram para nós. Essa introdução da guitarra sempre chama a atenção de todos numa casa lotada. E Camryn, assim que começa a cantar, como sempre acontece também comigo, se transforma em alguém completamente diferente, a ponto de me deixar atordoado. Ela é a dona da canção. Está muito diferente de como estava em todos os nossos ensaios. Confiança e sensualidade derramam de cada verso da canção e de cada movimento seu, e todo o meu corpo reage a isso.

— Ooo, baby, ooo, ooo! — eu acompanho no refrão.

Mas todos estão olhando para ela, até minhas quatro amigas, que sei que de início haviam se aproximado para me olhar. Não, agora elas pertencem sobretudo a Camryn, e isso me deixa orgulhoso.

Antes mesmo que termine a primeira estrofe, a pista de dança já está lotada. A energia e o sexo na voz de Camryn, misturados com o fascínio de todos com sua apresentação, me fazem perder o controle, e eu martelo aquele riff com mais devoção do que antes.

— Ooo, baby, ooo, ooo!

A cada poucos segundos, ouço uma voz gritar ao fundo:

— Huuuuu! — E também cada vez que Camryn solta uma nota tocante.

E eu não me canso disso.

Canto a plenos pulmões junto com ela nos dois refrões seguintes, e sei que a quarta estrofe, aquela em que ela sempre se embanana, vem a seguir. Olho para ela, ainda agitando a palheta rapidamente sobre as cordas, com as costas arqueadas, e não vejo nenhum sinal de nervosismo em seu rosto. Ela está no controle; posso perceber, só de olhar, que de jeito nenhum ela vai errar.

E então a letra sai tão rápida e impecavelmente de seus lábios que sinto meu rosto esticado até o limite por um sorriso quando canto junto com ela a todo volume o refrão seguinte.

Porra, minha gata tomou posse da canção. Te cuida, Stevie Nicks!

Passando a metade da canção, Camryn canta: Oooo! E sua voz some naquela parte sombria da melodia que permite um breve descanso à sua voz.

Mas o solo de guitarra continua. É cansativo, mas meus dedos não param, sem errar uma nota.

Camryn e eu nos entreolhamos e temos um momento só nosso. Então ela volta a cantar, e eu canto junto no momento certo.

Ela continua cantando, suas duas mãos seguram o suporte do microfone, seus olhos se fecham quando ela berra com tanta emoção:

— Yeah! Yeah!

Então ela olha para mim de novo e continua me encarando enquanto solta a estrofe seguinte, como se estivesse cantando apenas para mim.

Calafrios percorrem a minha espinha. Eu sorrio e continuo tocando até a canção acabar.

A plateia explode com uivos e gritos. Camryn agradece as palmas primeiro, depois eu. Ela está com um sorriso enorme, olhando para a multidão, e eu fico meio comovido por dentro.

Sem tirar a guitarra, que empurro para as costas, me aproximo de Camryn e a levanto do chão em meus braços. Os assobios e gritos vêm de todos os lados, mas a única coisa que eu noto é Camryn me olhando. Eu a beijo profundamente, e a multidão assobia e grita ainda mais.

Antes de a noite acabar, fazemos um show completo de dez canções para uma multidão cada vez maior, com o passar das horas. Voltamos a cantar algumas das nossas favoritas: “Barton Hollow”, “Hotel California” e “Birds of a Feather”, entre outras, e cada canção parece agradar mais ao público. Não canto sozinho esta noite, embora Camryn chegue a me pedir isso. A noite foi dela e só dela. Me recuso a ser o centro das atenções, mesmo por apenas uma canção.

Voltamos ao hotel às duas da manhã, e eu pago de bom grado a aposta que perdi.


Camryn


27

— GERMAN PARECE achar que a gente vai ficar muito tempo aqui — eu digo, com o lado direito do rosto encostado no colchão. — Eu falei pra ele que era só temporário.

As mãos mágicas de Andrew pressionam os dois lados das minhas costas dos ombros até a cintura, e eu viro massa de modelar em suas mãos. Fico deitada ali e curto essa massagem como se nunca tivesse sido massageada na vida. Mal consigo abrir os olhos. Ele está sentado sobre meu corpo quase nu, a cavalo sobre minha cintura.

— É, ele me puxou de lado uma hora e perguntou a que horas a gente ia tocar amanhã. — Andrew ri e aperta as pontas dos dez dedos com força na minha pele, mexendo as mãos num firme movimento circular.

Eu gemo debaixo dele.

— A gente pode ficar mais uns dias — ele diz —, mas acho que devíamos partir logo.

— Concordo. E também, os mosquitos em Mobile são horríveis! Você viu que enxame apocalíptico em volta das lâmpadas quando a gente saiu de lá?

Andrew ignora a pergunta e diz:

— Você foi sensacional hoje. Eu sabia que você ia mandar bem, mas pra falar a verdade, não tava esperando aquilo.

Eu finalmente abro os olhos e espio pela janela.

— O que, exatamente? — pergunto.

Suas mãos não param de massagear minhas costas.

— Você subiu no palco e tomou posse da canção. Você tem um talento natural.

— Não sei se tenho — respondo. — Mas tô orgulhosa de mim mesma. Sério, não sei o que deu em mim. Esqueci o nervosismo e mergulhei de cabeça.

— Bom, funcionou — ele diz.

— Só porque você tava lá comigo — eu saliento.

Ficamos em silêncio por vários minutos, eu de olhos fechados, com sua massagem ameaçando gradualmente me mandar para a terra dos sonhos. A circulação ao redor dos meus olhos parece aliviar; minha cabeça toda está formigando, e minha nuca se arrepia quando ele afunda os dedos no meu couro cabeludo.

Antes que passe uma hora, começo a me sentir culpada por fazê-lo trabalhar tanto tempo e digo:

— Se você estiver cansado, pode parar.

E quando ele não para, eu o faço parar, virando o corpo e me deitando de costas. Ele fica em cima de mim e me beija de leve na boca. E nós nos olhamos por um momento, um examinando os olhos do outro, estudando os lábios. Sinto-o pressionar meu corpo lá embaixo, sua boca se fecha sobre a minha num beijo apaixonado e ele começa a fazer amor comigo.


Andrew


28

ESTAMOS NA ESTRADA de novo, em algum lugar de uma rodovia entre Gulfport, Mississippi e Nova Orleans. O dia está perfeito, com céu azul e calor na medida certa para que possamos viajar de janelas abertas, sem sentir necessidade de ligar o ar-condicionado do carro. Camryn está dirigindo e eu descanso no banco do passageiro, numa posição bem parecida com a sua de sempre, com um pé para fora da janela.

Ficamos em Mobile uma semana e pagamos o quarto de hotel, toda a comida e a gasolina só com uma fração do dinheiro que ganhamos tocando e das gorjetas de Camryn como garçonete. Minhas gorjetas de copeiro foram só uma gota no oceano, comparadas com as dela.

Meu celular vibra no bolso da minha bermuda preta de lona e eu atendo.

— E aí, mãe, tudo bem?

Ela diz que sente muito a minha falta e logo começa a fazer perguntas sobre os meus checkups.

— Não, eu tô fazendo, sim — digo. — É, fiz tomografia esses dias num hospital em... Não, eles só ligaram pro dr. Masters pra pedir minha ficha e... Tá, mãe. Eu sei. Eu tô me cuidando. — Olho para Camryn, que está sorrindo. — Camryn não me deixa faltar. É. Bom, agora a gente tá indo pra Nova Orleans, não sei quanto tempo a gente vai ficar lá, mas depois vamos passar por aí pra te visitar, tá?

Depois que eu desligo, Camryn pergunta:

— No Texas?

Imediatamente, sinto que ela está pensando a mesma coisa que pensou na nossa primeira viagem, mas ela me desmente quando diz:

— Pra mim não tem problema nenhum. Só tô curiosa pra saber nosso destino. — Ela sorri, e percebo na hora que não está escondendo nada.

— O Texas não te preocupa? — eu pergunto.

Ela olha de novo para a estrada ao chegar numa curva, depois volta a olhar para mim.

— De jeito nenhum. Não como me preocupava antes.

— O que te fez mudar de ideia? — Eu tiro o pé da janela e me viro para olhá-la melhor, intrigado pela mudança de opinião.

— As coisas estão diferentes agora — ela diz. — Mas de um jeito bom. Andrew, o mês de julho foi difícil. Pra nós dois. Não sei como eu sei, mas acho que eu já previa desde o início que alguma coisa ruim ia acontecer quando a gente chegasse ao Texas. Por um tempo, achei que eu só estivesse preocupada por aquela ser a última parada da nossa viagem. Mas agora não sei mais. Era como se eu soubesse...

Eu sorrio um pouco.

— Acho que eu entendo — digo. — Então preciso fazer uma pergunta.

Ela olha para mim, esperando.

— A gente vai parar definitivamente um dia?

Sua reação não é a que eu esperava. Eu esperava que seu sorriso sumisse e o momento se perdesse, mas em vez disso, seus olhos brilham, e sinto um ar de calma emanando dela.

— Um dia — ela diz. — Mas ainda não. — Ela olha novamente para a estrada e continua: — Sabe, Andrew, quero ir pra Itália um dia. Pra Roma. Sorrento. Talvez não agora, nem mesmo nos próximos cinco anos, mas espero ir pra lá. Pra França também. Pra Londres. Adoraria até conhecer a Jamaica, o México e o Brasil.

— É mesmo? Ia levar um tempão visitar todos esses lugares — eu digo, mas não de forma a desencorajá-la. Eu também adoraria.

O vento da janela aberta roça seu cabelo, soltando mais fios de sua trança, que dançam ao redor do seu rosto radiante.

— Eu me sinto livre com você — ela diz. — Sinto que posso fazer qualquer coisa. Ir a qualquer lugar. Ser o que eu quiser. — Seus olhos pousam em mim mais uma vez e ela continua: — A gente vai parar logo, mas nunca quero parar definitivamente. Isso faz sentido?

— Com certeza — respondo. — Eu não teria dito melhor.

Chegamos à divisa da Louisiana logo depois que escurece, e Camryn para no acostamento.

— Acho que não consigo mais dirigir — ela diz, esticando os braços para trás e bocejando.

— Eu falei há uma hora que você precisava me deixar dirigir.

— Bom, agora eu tô deixando. — Ela fica ranzinza quando está cansada.

Ambos saímos para trocar de lugar, mas paramos quando nos encontramos na frente do carro.

— Você viu onde a gente tá? — pergunto.

Camryn olha para os dois lados da rodovia deserta. Ela dá de ombros.

— Hã, no meio do nada?

Eu rio baixinho e aponto para o campo. Depois aponto para as estrelas.

— A última vez não valeu, lembra?

Seus olhos brilham, mas sinto que ela está dividida. Não levo muito tempo para entender por quê.

— É um campo plano e aberto. E não tem vaca nenhuma até onde a vista alcança — digo.

Eu sei que absolutamente nada que eu disser vai tranquilizá-la quanto à possibilidade de cobras, mas estava tentando ser sutil e dar uma de idiota, esperando que ela esquecesse isso.

— E as cobras? — ela pergunta, não esquecendo.

— Não deixe seu medo de cobras estragar uma oportunidade perfeita de finalmente dormir sob as estrelas.

Ela estreita os olhos para mim.

Resolvo apelar para a artilharia pesada e simplesmente imploro.

— Por favor? Por favorziiiiinho? — Eu me pergunto se minha cara de gatinho do Shrek é tão eficaz com ela quanto a dela sempre é comigo. Meu instinto inicial foi jogar a desgraçada em cima do ombro e carregá-la à força, mas também estou curioso quanto à eficiência da minha técnica implorativa.

Ela rumina por um minuto e finalmente cede ao meu charme.

— Tá — ela admite, um pouco exasperada.

Eu pego o cobertor do porta-malas e nós passamos juntos por cima da vala e da cerca baixa, depois cruzamos o enorme campo até que encontramos um bom lugar, vários metros à frente. Tenho uma sensação de déjà vu. Estendo o cobertor na grama seca e verifico rapidamente se há cobras nos arredores, só para deixá-la mais tranquila. Nós nos deitamos lado a lado, de costas, com as pernas esticadas sobre o cobertor, cruzando os tornozelos. E olhamos para a imensidão escura e infinita do céu cheio de estrelas. Camryn aponta várias constelações e planetas, me explicando cada um em detalhes, e eu fico impressionado em ver o quanto ela sabe, e como consegue reconhecê-los.

— Eu nunca imaginei que você fosse tão... — tenho dificuldade para encontrar as palavras certas.

— Tão culta? — Sinto que ela sorri discretamente ao meu lado.

— Bom, eu... não quis dizer que acho você...

— Uma garota desmiolada e superficial que não sabe que a Via Láctea não é uma comida de bebê, nem que a teoria do Big Bang é mais do que um seriado de TV?

— É, alguma coisa assim — digo, só para fazer o jogo dela. — Não, mas falando sério, como sabe tudo isso? Nunca pensei que você se interessasse por ciências.

— Eu queria ser astrofísica. Decidi isso quando tinha uns 12 anos.

Fico completamente chocado com sua confissão, mas continuo olhando as estrelas com ela, meu sorriso aumentando.

— Bom, na verdade eu queria ser isso, mais física e astronauta e também trabalhar na NASA, mas acho que eu tava meio iludida, na época. Obviamente.

— Camryn — eu digo, ainda tão surpreso que mal sei o que dizer. — Por que você nunca me contou isso?

Ela dá de ombros.

— Não sei — ela diz. — O assunto nunca surgiu. Você nunca sonhou em ser alguma coisa diferente do que é?

— Acho que sim — respondo. — Mas, amor, por que você não foi atrás disso? — Eu levanto o corpo do cobertor e me sento. Isso pede toda a minha atenção.

Ela olha para mim como se eu estivesse exagerando.

— Provavelmente pelo mesmo motivo que você não foi atrás do que você queria ser. — Ela dobra os joelhos e cruza as mãos sobre a barriga. — O que você queria ser?

Não quero falar de mim agora, mas acho melhor responder, já que ela me perguntou duas vezes.

Eu também dobro os joelhos e apoio os antebraços sobre eles.

— Bom, à parte o clichê de sonhar em ser um astro do rock, como todo mundo, eu queria ser arquiteto.

— Sério?

— Sim — digo, balançando a cabeça.

— Era isso que você tava estudando antes de largar a faculdade?

Eu balanço a cabeça.

— Não — digo, e rio um pouco do absurdo da minha resposta. — Eu tava fazendo faculdade de ciências contábeis e administração.

Camryn franze o cenho.

— Ciências contábeis? Tá falando sério? — Ela está quase rindo.

— Pois é, você vê? — digo, rindo também. — Aidan me ofereceu sociedade no bar dele. Na época, eu só via cifrões na minha frente, e achei que ter um bar seria uma oportunidade e tanto. Eu poderia tocar lá e... não sei o que eu tava pensando, mas topei a proposta do meu irmão na hora. Aí ele começou a dizer que eu precisava entender a parte administrativa do negócio, essa porra toda. Eu entrei na faculdade, e foi então que a ideia foi por água abaixo. Eu tava cagando pras ciências contábeis, pra administrar um bar ou ter que lidar com todos os aspectos negativos de ter um negócio. — Paro por um momento e então digo: — Acho que, como você disse, eu tava iludido, queria todos os aspectos positivos, mas nenhum negativo. Quando percebi que não era assim que funcionava, falei: foda-se.

Ela se senta junto de mim.

— Então por que você não foi atrás de ser arquiteto?

Eu dou um sorrisinho.

— Provavelmente pelo mesmo motivo que você não foi atrás de ser astrofísica.

Ela apenas sorri, sem ter como rebater isso.

Eu olho para o cabelo louro de Camryn e para o campo.

— Acho que somos só duas almas perdidas nadando num aquário — declaro.

Seus olhos se estreitam.

— Já ouvi isso em algum lugar.

Eu sorrio e aponto rapidamente para ela.

— É Pink Floyd. Mas é verdade.

— Você acha que a gente tá perdido?

Eu inclino um pouco a cabeça, olho para as estrelas atrás dela e digo:

— Na sociedade, talvez. Mas juntos, não. Acho que estamos exatamente onde precisamos estar.

Nenhum dos dois diz mais nada por um bom tempo.

Ficamos deitados um ao lado do outro, fazendo o que fomos fazer ali. Enquanto olho para a escuridão infinita daquele céu, fico totalmente assombrado com o momento. Acho que encontro um pouco de mim mesmo naquelas estrelas. Por um bom tempo esqueço a música, a estrada, o tumor que quase me matou ano passado e o momento de fraqueza que quase matou o espírito de Camryn. Esqueço que perdemos Lily e que sei que Camryn parou de tomar anticoncepcional e não me contou. E esqueço também que parei de gozar fora por um motivo e não contei a ela.

Eu realmente esqueço tudo. Porque é isso que um momento assim faz com você. Faz você se sentir algo tão pequeno, dentro de algo tão imenso que está além da compreensão. Apaga todos os seus problemas, suas dificuldades, todas as suas necessidades, aspirações e desejos mundanos, te obrigando a perceber o quanto tudo isso na verdade é insignificante. É como se a Terra ficasse completamente silenciosa e imóvel, e sua mente só pudesse entender ou sentir a imensidão do Universo, e você fica sem fôlego pensando no seu lugar dentro dele.

Quem precisa de psiquiatras? Quem precisa de acompanhamento psicológico, mentores e palestras motivacionais? Vão todos pra casa do caralho. Apenas olhe para o céu noturno e se deixe perder nele de vez em quando.

~~~

Algo desagradável me acorda na manhã seguinte. Farejo o ar de olhos ainda fechados, minha mente não totalmente acordada, mas meu corpo e meu olfato funcionando antes de mim. Há uma brisa fresca no ar e minha pele parece úmida, como se eu estivesse coberto de orvalho. Virando para o outro lado, farejo o ar de novo e o cheiro é ainda pior do que antes. Ouço algo raspando nas proximidades, e finalmente meus olhos se abrem um pouco. Camryn está capotada ao meu lado. Mal consigo ver sua trança loura em cima do cobertor entre nós. Ela parece estar encolhida em posição fetal.

Que fedor é esse?!

Cubro a boca com a mão e começo a me levantar do cobertor. Camryn começa a se mexer ao mesmo tempo, virando de barriga para cima e esfregando o rosto e os olhos com as duas mãos. Ela boceja. Quando me sento e abro completamente os olhos, Camryn pergunta:

— Que fedor da porra é esse? — e faz uma careta.

Estou para responder que deve ser o bafo dela, quando seus olhos azuis ficam arregalados de pavor, ao olhar atrás de mim.

Instintivamente, eu me viro rápido.

Uma manada de vacas está a poucos metros de nós, e quando percebem que estamos nos mexendo, elas se assustam.

— Meu Deus! — Camryn se põe de pé num pulo mais rápido do que na noite em que a cobra subiu no nosso cobertor, me fazendo pular também.

Duas vacas mugem, gemem e grunhem, recuando para perto das outras, agitando a manada ainda mais.

— Acho melhor a gente sair correndo — digo, pegando Camryn pela mão e disparando com ela.

Nem paramos para pegar o cobertor, de início, mas eu paro e me viro, segundos depois, para agarrá-lo. Camryn grita, eu começo a rir e nós desabalamos para longe das vacas, na direção do carro.

— Puta meeeerda! — eu grito, enfiando o pé num monte enorme da substância.

Camryn cacareja de tanto rir, e ambos praticamente rolamos o resto do caminho pelo campo, eu tentando raspar a bosta da sola do sapato e correr ao mesmo tempo, e os chinelos de dedo de Camryn grudando no chão, tentando acompanhar seus passos.

— Não acredito que isso aconteceu! — Camryn ri quando finalmente alcançamos o carro. Ela fica encurvada e apoia as mãos nos joelhos, tentando recuperar o fôlego.

Eu também estou sem fôlego, mas continuo a raspar incansavelmente a sola do meu sapato no asfalto.

— Puta que pariu! — exclamo, esfregando o pé para todo lado.

Camryn se senta no capô do carro, balançando as pernas.

— Agora valeu pra você? — ela pergunta, com riso na voz.

Eu fico parado, ofegando. Olho para ela, para seu sorriso lindo e radiante e digo:

— É, acho que já dá pra riscar esse item da lista.

— Ótimo! — ela diz. Depois aponta para trás de mim. — Esfrega na grama. Assim você só tá espalhando bosta pra todo lado.

Eu saltito para a grama e começo a esfregar o pé de novo.

— Desde quando você virou especialista em bosta?

— Veja lá como fala — ela avisa, se sentando no lugar do motorista.

— Por que, o que você vai fazer? — eu provoco.

Ela dá a partida no Chevelle e acelera algumas vezes. Há um brilho cruel no seu olhar. Ela apoia o braço esquerdo na janela aberta, e quando me dou conta, o carro já está passando lentamente por mim.

Eu a fuzilo com o olhar como aviso, mas seu sorriso só aumenta.

— Eu sei que você não me deixaria aqui! — grito quando ela passa.

É claro que não...

Ela se afasta cada vez mais, e de início eu pago pra ver, parado ali, vendo o carro ficar cada vez menor...

Por fim, eu saio correndo atrás do carro.


Camryn


29

A PRIMEIRA COISA que me vem em mente quando chegamos a Nova Orleans é lar doce lar. Fico empolgada quando o cenário se torna familiar: os grandes carvalhos e as lindas casas históricas, o Lago Pontchartrain e o Superdome, os bondes vermelhos e amarelos que sempre me pareceram de brinquedo. E, é claro, o Bairro Francês. Tem até um homem tocando saxofone numa esquina, e sinto que entramos diretamente num cartão-postal de Nova Orleans.

Olho para Andrew e ele sorri para mim rapidamente. Ele dá a seta e viramos à direita na Royal Street. Meu coração falha e bate forte ao mesmo tempo quando vejo o Holiday Inn. Tanta coisa aconteceu aqui há dez meses. Este lugar... logo um hotel... é tão mais do que isso para mim, para nós dois.

— Imaginei que você gostaria de ficar aqui enquanto estivéssemos na cidade — Andrew diz, com um enorme sorriso.

Como as lembranças ainda estão, por assim dizer, tirando meu fôlego, não consigo responder, por isso só balanço a cabeça e sorrio como ele.

Pegamos nossas coisas no carro e entramos no saguão. Tudo parece exatamente igual, exceto talvez as duas mulheres na recepção, quando nos aproximamos. Não me lembro delas.

Ouço vagamente Andrew perguntar sobre a disponibilidade dos quartos que ocupamos da outra vez enquanto olho ao meu redor, tentando absorver tudo.

Meu Deus, senti falta deste lugar.

— Sim, parece que esses dois quartos estão vagos — ouço uma das recepcionistas dizer. — Querem ficar com os dois?

Isso chama a minha atenção.

Andrew se vira para mim. Acho que ele quer minha opinião.

Passo a bolsa para o outro ombro e hesito por um momento, ponderando a pergunta. Não previ isso, nem que a decisão seria tão difícil.

— Hãã, bem... — Olho para Andrew e depois para a recepcionista, ainda indecisa. — Não sei. Tá, talvez a gente devesse ficar naquele onde... — Eu me interrompo, sem querer dar a impressão de que somos dois adolescentes imaturos, desta vez, e encaro Andrew com um olhar que diz tudo. — Aquele onde o pacto foi selado.

Andrew luta para se manter sério, mas vejo claramente o sorriso em seus olhos quando ele entrega o cartão de crédito à recepcionista.

Saímos do saguão logo depois e tomamos o elevador até nosso andar. Andando pelo corredor, ainda estou absorvendo tudo ao meu redor, até a cor da tinta das paredes, porque tudo faz parte de uma lembrança, por maior, menor ou aparentemente insignificante que seja. A sensação de estar aqui de novo... sinto quase que vou cair no choro de felicidade. Mas também estou empolgada, e isso me salva de me debulhar em lágrimas.

Andrew para entre as duas portas dos nossos antigos quartos, com as duas mochilas e a guitarra elétrica que lhe dei penduradas nos ombros. Ele quer comprar um estojo para a guitarra, mas ainda não fez isso.

— É estranho estar aqui de novo, não? — ele pergunta, me olhando.

— Estranho, mas de um jeito bom.

Ficamos assim por um minuto, olhando um para o outro e para as duas portas, até que finalmente Andrew se dirige para o quarto que escolhemos e passa o cartão na fechadura.

É realmente como entrar no passado. A porta se abre lentamente, e é como se todas as emoções que experimentamos naquele quarto tivessem sido deixadas ali e estivessem nos cumprimentando agora, quando entramos. Assim que pisamos lá dentro, lembro cada noite que passamos aqui, separados e juntos, como se fosse ontem. Olho para o lugar perto da cama onde eu estava quando Andrew me domou e me tornou sua. Olho pela janela para as ruas movimentadas do Bairro Francês. Revejo o dia em que Andrew se sentou naquela soleira tocando violão, e até me vejo ali, dançando e cantando “Barton Hollow”, quando achei que estava sozinha. Eu me viro para ver o banheiro, e quando Andrew acende a luz, meu olhar vai primeiro para o chão e lembro, embora vagamente, a noite em que ele dormiu ao meu lado.

Acho que às vezes as melhores lembranças se criam nos lugares mais improváveis, mais uma prova de que a espontaneidade é mais recompensadora do que uma vida meticulosamente planejada. Do que qualquer coisa meticulosamente planejada.

Eu me viro para Andrew.

— Não sei por quê, mas eu sinto... bom, sinto que todos os meses que passamos na estrada desde dezembro foram pra chegar a este lugar. Esta cidade. Este hotel. — Não acredito que estou dizendo isso, e imediatamente começo a questionar meus motivos. Pode significar tantas coisas diferentes, mas acho que o maior significado é que nós precisávamos voltar para lá.

Sim, é exatamente isso, ou pelo menos é o que eu precisava. Quando recebo essa revelação, me vejo parada naquele quarto, cercada por pensamentos em vez de objetos materiais. Olho nos olhos de Andrew, mas na verdade não é ele que vejo. O que vejo é ele no passado. Os mesmos olhos verdes magnéticos, outro ano.

Por que estou me sentindo assim?

— Talvez você tenha razão — ele concorda, e então seu tom de voz fica mais misterioso. — Camryn, o que você tá pensando agora?

— Que a gente foi embora cedo demais da última vez. — Foi a primeira coisa que pensei, e só agora que falei começo a entender o quanto pode ser verdade.

— Por que você acha isso? — ele pergunta, se aproximando de mim.

Não sinto que ele está me fazendo perguntas para as quais já sabe as respostas, desta vez. É como se ambos estivéssemos seguindo a mesma linha de raciocínio, ambos tentando entender o sentido de tudo e buscando respostas um no outro.

Nós nos sentamos no pé da cama juntos, eu com as mãos no meio das coxas, como ele, e ficamos em silêncio por vários longos segundos. Finalmente, viro a cabeça para olhá-lo à minha direita e digo:

— Eu não queria partir quando a gente partiu, Andrew. Eu sabia que nossa próxima parada, depois de Nova Orleans, seria Galveston. Eu não tava preparada pra deixar este lugar... mas não sei por quê.

E essa verdade me deixa ansiosa.

Por quê? Além de temer que o Texas significasse o fim da nossa viagem, ou mais tarde sentir que eu sabia que algo ruim iria acontecer lá, por que mais eu iria querer ficar? Eu não queria necessariamente ficar ali para sempre, só acho que partimos cedo demais.

— Não sei — ele diz, dando de ombros. — Talvez seja porque foi aqui que finalmente selamos o pacto. — Ele me dá uma cotoveladinha de brincadeira.

Não consigo deixar de sorrir.

— É, talvez, mas acho que é mais do que isso, Andrew. Acho que é porque a gente se encontrou aqui. — Eu olho para a parede, pensativa. — Não sei mesmo.

Sinto a cama se movimentar quando Andrew se levanta.

— Bom, sugiro que desta vez a gente aproveite ao máximo antes de partir. — Ele estende a mão para mim e eu a seguro. — Talvez a gente desvende esse mistério.

Eu me levanto e digo:

— Ou... talvez seja uma nova chance.

Sinceramente, não faço ideia do que me levou a dizer isso.

— Uma nova chance de quê, exatamente? — ele pergunta.

Eu fico em silêncio, pensando, e em seguida respondo:

— Isso eu também não sei...


CONTINUA

21

21 DE JANEIRO — meu vigésimo sexto aniversário

Estou tendo um sonho legal no qual salto de paraquedas (por algum motivo bizarro, com o ator Christopher Lee) e o céu está tão azul quanto... bem, quanto o céu. Christopher Lee, usando óculos de mergulho vermelhos, faz um sinal de positivo antes que o vento o arrebate para o éter azul. Então, de repente, meu coração para, e eu inspiro uma golfada de ar gelado. Meus olhos se abrem para a realidade. Meu corpo salta da cama tão rápido que abro o braço para o lado e bato no abajur parafusado na parede.

— Pu-ta-que-pariu! — eu grito.

Levo um segundo para entender o que aconteceu. Enquanto vejo Camryn no pé da cama ainda segurando um balde de gelo, jogo freneticamente os lençóis gelados e encharcados para o lado e tento recuperar o fôlego.

Camryn gargalha como uma bruxa.

— Feliz aniversário, amor! Levanta!

Acho que mereci isso, depois do que fiz com ela na manhã do seu aniversário, mês passado. Mas essa cretina maquiavélica me pegou de jeito, muito mais pesado do que fiz com ela. Acho que a vingança é sempre pior mesmo.

Incapaz de parar de sorrir, entro no clima e levanto lentamente minha bunda pelada da cama. Ela já está fazendo aquela cara de oh-oh quando começa a se afastar de mim e ir para a porta. Sabendo que essa é a sua única saída, eu a vigio enquanto ela estuda a situação.

— Sinto muito! — ela diz com um sorriso apavorado, com a mão para trás, tateando na direção da porta.

— Hã-hã, eu sei que você sente, amor.

Ando bem lentamente na direção dela, espreitando-a com os olhos semicerrados, como se eu fosse um predador brincando com sua presa.

Ela dá uma risada de bruxa de novo.

— Andrew! Nem pensa nisso! — Ela está a meio metro da porta, agora. Mas eu ajo com calma, deixando-a pensar que vai conseguir chegar até lá, meu sorriso aumentando até que sei que já devo estar parecendo um maníaco sádico.

De repente, Camryn grita, incapaz de se controlar mais, e corre para a porta, escancarando-a.

— Nãão! Por favor! — ela grita e ri ao mesmo tempo enquanto a porta se abre, batendo na parede com estrondo. Ela dispara pelo corredor.

Quando começo a persegui-la, sua expressão chocada e o modo hilariante como ela chega a parar dão a entender que ela não esperava que eu saísse do quarto sem roupa.

— Ai meu Deus! Andrew, não! — ela grita, enquanto volta a correr a toda velocidade pelo corredor iluminado.

Eu continuo atrás dela, com meus documentos balançando ao vento. Essa garota ainda precisa aprender muito se achou mesmo que eu ia ficar com vergonha de correr atrás dela, de bunda de fora e com o pinto encolhido pelo frio. Eu não tô nem aí. Ela vai se arrepender daquele banho de gelo.

Passamos pelo quarto 321 no exato momento em que um casal de velhinhos está saindo. O homem puxa sua esposa de olhos arregalados para dentro quando o doido pelado passa ventando.

— Meu Deus do céu... — ouço uma voz distante dizendo atrás de mim.

Finalmente, quando Camryn chega ao final do imenso corredor, ela para e me encara, encurvada, com as duas mãos à sua frente como se fossem um escudo. Lágrimas escorrem de seus olhos de tanto rir.

— Eu desisto! Eu desisto! Ai meu Deus, você tá pelado! — Ela não consegue parar de rir. Rio também quando a ouço fungar com força.

— Agora você me paga — eu digo, agarrando-a e jogando-a sobre o ombro.

Ela nem tenta espernear, gritar e agitar os braços, dessa vez. Primeiro porque ela não consegue parar de rir o suficiente para controlar seu corpo a esse ponto. E, segundo, porque ela sabe que não adianta. Só espero que ela não mije em cima de mim.

Eu a carrego pelo corredor todo até nosso quarto, e quando chegamos ao quarto 321, digo:

— Desculpem por ter feito vocês verem isso. Tenham um bom-dia — acenando enquanto passo. O casal fica só olhando, o marido balançando a cabeça para mim, com uma expressão revoltada.

Fecho a porta atrás de nós e jogo Camryn na cama, sobre os cubos de gelo e a água gelada. Ela ainda está rindo.

Fico de pé no meio das pernas dela e tiro seu short e sua calcinha ao mesmo tempo, olhando para ela, sem dizer uma palavra. Fico de pau duro em segundos. Seu humor brincalhão muda instantaneamente e ela morde o lábio inferior, olhando para mim com aqueles olhos azuis docemente sedutores que sempre despertam algo primal em mim.

Sem nenhum aviso, eu me deito por cima dela e enfio tudo.

— Você sente muito mesmo? — sussurro, tirando e pondo nela devagar. Meu peito apertado sobre o dela, nossas tatuagens se tocando, Orfeu e Eurídice se juntando novamente enquanto eu e ela nos tornamos um só.

— Sim... — ela diz, as palavras tremulando de seus lábios.

Meto nela um pouco mais fundo, empurrando uma de suas coxas para cima com a mão.

Suas pálpebras ficam mais pesadas e ela joga a cabeça para trás.

Eu esmago minha boca sobre a dela, e seus gemidos reverberam na minha garganta quando começo a meter com mais força.

Então algo dentro de mim fica sombrio, predador. Me ajoelho na cama e agarro suas duas coxas, cravando os dedos em sua carne e arrastando-a pelo colchão para perto de mim tão rápido que ela nem consegue começar a se mexer. Agarrando seus braços, eu a viro de costas, seguro seus pulsos atrás das costas e a forço a ficar de joelhos. Com a outra mão, toco o contorno macio de sua bunda empinada diante de mim, apertando bem cada nádega antes de bater nelas com tanta força que seu corpo se retorce para a frente. Ela choraminga. Então aperto sua nuca com a mão, empurrando com força o rosto de lado contra o colchão. Sinto o calor emanando de sua pele no lugar onde minha mão já deixou marcas vermelhas.

Ela choraminga de novo e eu torço e aperto mais seus pulsos. Com a outra mão, enfio dois dedos em sua boca e puxo sua bochecha, enquanto enfio meu pau nela por trás.

Ela chora um pouco, com as coxas começando a tremer, mas eu não paro. Sei que na verdade ela não quer que eu pare.

Depois que eu gozo e meu coração volta a bater mais devagar, puxo seu corpo nu para perto do meu, sua cabeça suada aninhada na minha axila. Ela beija meu peito e faz dois dedos andarem pelo meu braço até minha boca. Eu pego sua mão e beijo os dedos.

— Que bom que você voltou ao normal — ela diz baixinho.

— Eu voltei ao normal? — pergunto, e ela levanta a cabeça para me olhar nos olhos. — Eu não tava normal?

— Não, antes não.

— Quando eu não tava normal? — Estou verdadeiramente confuso, mas acho adorável sua timidez ao me explicar o que quis dizer.

— Depois que a gente perdeu Lily — ela diz, e o sorriso brincalhão que estava se abrindo em meus lábios desaparece. — Não te culpo por isso, mas depois de Lily, você me tratava como uma boneca de porcelana, com medo de me quebrar se fosse bruto demais comigo.

Eu a aperto mais com meu braço e sua bochecha volta a encostar no meu peito.

— Bom, eu não queria te machucar — digo, passando meu polegar em seu braço. — Ainda sinto isso às vezes.

— Então não sinta — ela sussurra, beijando meu peito de novo. — Nunca se segure comigo, Andrew. Quero que você seja sempre você mesmo.

Eu sorrio e aperto seu braço mais uma vez.

— Sabe que tá me dando permissão pra te atacar sempre que eu quiser, certo?

— Sei, tenho plena consciência disso — ela diz, e ouço um sorriso como o meu em sua voz.

Eu beijo o alto de sua cabeça e a puxo para cima de mim.

— Feliz aniversário — ela diz novamente, e enfia a língua na minha boca.

~~~

Graças a Deus existe a Flórida no inverno. Depois da minha muito surpreendente — e prazerosa, devo acrescentar — manhã de aniversário, Camryn e eu passamos o dia ensaiando nossa nova canção. Bem, não é tecnicamente nossa, mas pra misturar um pouco as coisas, adotamos o hit sensacional de Stevie Nicks, “Edge of Seventeen”. Camryn está ficando frustrada com o modo como os versos se seguem tão rapidamente, mas está determinada a conseguir cantá-la. É a canção dela, aquela que ela quer cantar sozinha. É um passo importante para ela, porque nós sempre cantamos juntos.

E eu a admiro por isso.

Ela parece muito frustrada, mas por trás disso, tudo o que vejo é a minha Camryn voltando para mim cada dia mais. Sua alma está mais leve, a luz em seus olhos, mais brilhante, e cada vez que ela sorri, me lembro do dia em que nos conhecemos.

— Você consegue — asseguro, sentado na sacada da janela, com o meu violão encostado no peito. — Não faz tanto esforço, amor, só toma posse dela.

Ela suspira e joga a cabeça para trás, desabando na cadeira da mesinha redonda ao meu lado.

— Eu sei a letra toda, mas sempre me atrapalho naquelas últimas estrofes. Não sei por quê.

— Acabei de te falar. Você tá pensando demais, porque começa a cantar já esperando se atrapalhar quando chegar nessa parte. Não pensa. Agora tenta de novo.

Ela suspira profundamente de novo, nervosa, e fica de pé.

Ensaiamos por mais uma hora antes de ir à churrascaria mais próxima para um almoço tardio.

— Você vai conseguir. Não se preocupe — insisto, enquanto a garçonete traz nossos bifes.

— Eu sei. Mas é que é frustrante. — Ela começa a cortar o bife, com a faca numa mão e o garfo na outra.

— Demorei um pouco pra aprender “Laugh, I Nearly Died” — conto, enfiando um pedação de bife na boca com o garfo. Mastigo um pouco e então continuo, ainda de boca cheia: — De qualquer jeito, a próxima canção que quero aprender é “Ain’t No Sunshine”, do Bill Withers. Sempre quis aprender essa, e acho que tá na hora de aposentar os Stones.

Ela parece surpresa. Aponta o garfo para mim, engole e diz:

— Oooh! Ótima escolha!

— Você conhece essa? — Também estou um pouco surpreso, considerando que ela não gostava tanto de rock clássico ou blues quando nos conhecemos.

Ela balança a cabeça e come um pouco de purê.

— Adoro essa canção. Ela tava numa playlist que meu pai gostava de ouvir quando viajava a negócios. Esse Withers é danado pra cantar.

Eu dou uma gargalhada.

— Qual é a graça? — ela pergunta, me olhando com ar confuso.

— Você falou de um jeito tão country, agora. — Eu tomo um gole de cerveja e rio um pouco mais, balançando a cabeça.

— O quê? Tá dizendo que eu falei que nem caipira? — Seus olhos estão arregalados, mas seu sorriso não poderia ser mais óbvio.

— Tá mais pra uma roceira, na verdade. Esse Withers é danado pra cantar! Eeeiita ferro! — Eu a arremedo, jogando a cabeça para trás.

Ela ri comigo, se esforçando ao máximo para esconder o rubor do rosto.

— Bom, nisso eu concordo contigo — ela admite, tomando um gole de sua cerveja. Ela põe o copo na mesa e acrescenta, estreitando os olhos: — Com a escolha da canção, não com a coisa da roceira.

— Claro — digo com um sorriso, terminando meu bife.

O primeiro bife que comemos juntos foi como ela prometeu, alguns dias depois que saí do hospital após a cirurgia. E como naquele dia e toda vez que comemos carne juntos, ela só consegue comer metade. Melhor, sobra mais pra mim. Quando vejo que ela dá sinais de estar tão empanturrada que vai vomitar, estico o braço e puxo o prato dela para o meu lado.

Ela fica olhando para o celular, e então começa a responder uma mensagem de texto.

— Natalie tá pedindo pra você voltar de novo?

— Sim, ela é incansável. — Ela recoloca o celular na bolsa.

Camryn mente mal à beça. Muito mal. Não conseguiria mentir nem para salvar a própria vida, e no momento, o modo como ela fica olhando a parede de madeira rústica mostra que com certeza está mentindo. Eu palito os dentes e a estudo.

— Podemos ir? — pergunto.

Ela sorri para mim, sem graça, obviamente escondendo algo, e então percebo que a tela do seu celular se ilumina dentro da bolsa. Ela olha a mensagem de texto e de repente fica mais ansiosa para sair. Seu sorriso aumenta e ela se levanta rapidamente.

— Peraí, preciso pagar. — Aceno para a garçonete, e Camryn se senta de novo, impaciente. — Por que tá com tanta pressa assim de repente? — eu a provoco, enquanto a garçonete deixa a conta sobre a mesa, mas antes que ela vá embora, tiro o cartão de crédito da carteira.

— Por nada — Camryn desconversa.

Eu apenas sorrio.

— Tá — digo, e me encosto na cadeira, me espreguiçando e relaxando o corpo. É uma farsa. Quanto mais pareço relaxado, mais ela fica impaciente.

Minutos depois, a garçonete volta com meu cartão de crédito e o recibo. Eu anoto a gorjeta dela no recibo do restaurante e muito lentamente me levanto, visto o casaco, me espreguiço erguendo os braços bem alto, finjo bocejar...

— Porra, dá pra andar logo!

Sabia que ela não ia aguentar muito tempo. Rio, pego sua mão e saímos do restaurante.

Quando chegamos ao hotel, Camryn para no saguão.

— Pode subir. Eu subo daqui a pouco.

É óbvio que ela está armando alguma coisa, mas como é meu aniversário, entro no jogo dela, lhe dou um beijo no rosto e tomo o elevador. Mas assim que entro no quarto, sou eu que começo a ficar impaciente.

Não preciso esperar muito até que ela entra no quarto, segurando uma guitarra nova.

Eu fico de pé assim que a vejo.

— Uau...

Seu sorriso é doce e meigo, até envergonhado. Como se uma pequena parte dela tivesse medo de que eu não vá gostar.

Ando direto até ela.

— Feliz aniversário, Andrew — ela diz, me entregando a guitarra.

Coloco uma mão no braço, a outra no corpo e admiro a guitarra com um sorriso imenso. Fininha. Linda. Perfeita. Virando-a para ver a parte de trás, noto uma escrita prateada em cursivo no braço que diz:

Ele arrancou lágrimas de ferro de Plutão

e fez o inferno dar o que buscava o coração.

Um verso de uma das várias versões da história de Orfeu e Eurídice. Eu estou sinceramente sem palavras.

— Você gostou?

Eu olho para ela.

— Eu adorei. É perfeita.

Ela desvia o olhar, corando um pouco.

— Bom, eu não entendo nada de guitarras. Espero que não seja uma marca vagabunda nem nada disso. O cara da loja de instrumentos musicais me ajudou a escolher. Aí precisei esperar alguns dias pra fazer a inscrição, que eu achei que nem ia dar certo porque teve primeiro um problema, depois outro, e...

— Camryn — digo, interrompendo sua tagarelice nervosa. — Nunca recebi um presente de aniversário melhor na minha vida. — Atravesso o espaço entre nós e beijo suavemente seus lábios.


Camryn


22

ALGUM LUGAR DA Interstate 75 — maio

Estamos na estrada há meses. Lá por março já tínhamos nos acostumado tanto a ir de um hotel para o outro que isso se tornou natural. Um quarto diferente a cada semana, uma cidade diferente, uma praia diferente, tudo diferente. Mas por mais que tudo seja diferente, cada vez que entramos, é como se estivéssemos passando pela porta de uma casa onde moramos há anos. Eu jamais teria imaginado que chamaria um quarto de hotel de “casa”, ou que seria tão fácil se acostumar à vida na estrada como foi para nós. Às vezes é difícil, mas tudo é uma experiência, e eu não mudaria nada.

Mas fico me perguntando se o longo inverno não me afetou. Isso porque já me peguei sonhando acordada com morar numa casa em algum lugar, levando uma vida caseira com Andrew.

É, tenho certeza de que foi só o inverno.

São duas da manhã, e nosso carro quebrou em algum lugar do sudoeste da Flórida, num longo trecho de estrada deserta. E está caindo um dilúvio. Chuva aos baldes. Pedimos um guincho há uma hora, mas por algum motivo ele ainda não chegou.

— Tem um guarda-chuva no carro? — pergunto por cima do estrondo da chuva no teto. — Eu posso segurar enquanto você conserta o motor!

— Tá um breu lá fora, Camryn — ele responde, gritando tanto quanto eu. — Mesmo com uma lanterna, duvido que eu fosse conseguir. Pra começar, precisaria descobrir qual é o defeito.

Eu afundo mais no banco da frente e apoio os pés no painel, com os joelhos dobrados junto ao corpo.

— Pelo menos não tá frio — comento.

— A gente vai se virar por aqui esta noite — ele declara. — Não vai ser a primeira vez que dormimos no carro. Talvez o guincho chegue antes de amanhecer, e se não chegar, eu conserto o carro quando estiver conseguindo enxergar.

Ficamos em silêncio por um momento, ouvindo a chuva batendo no carro, os trovões ecoando como ondas através das nuvens. Finalmente, ficamos tão cansados que vamos para o banco de trás, nos encolhemos nele juntos e tentamos dormir. Depois de um tempo, quando fica claro que ambos estamos desconfortáveis e o espaço não é suficiente para nós dois, Andrew passa para o banco da frente. Mesmo assim, não conseguimos pegar no sono. Eu o ouço se revirando por algum tempo, e então ele pergunta:

— Onde você se vê nos próximos dez anos?

— Não tenho certeza — respondo, olhando para o teto do carro. — Mas o que sei é que o que eu fizer, quero fazer junto com você.

— Eu também — ele diz do banco da frente, deitado como eu estou, agora, de costas, olhando para cima.

— Você pensou em alguma coisa específica? — pergunto, imaginando aonde ele quer chegar com isso. Troco o braço esquerdo pelo direito, enfiando-o embaixo da cabeça.

— Pensei. Quero morar num lugar quente e sossegado. Às vezes imagino você na praia, descalça na areia, com a brisa soprando seu cabelo. Eu tô sentado embaixo de uma árvore não muito longe, dedilhando minha guitarra...

— Aquela que eu te comprei?

— Claro.

Eu sorrio e continuo escutando, imaginando a cena.

— E você tá segurando a mão dela.

— A mão de quem?

Andrew fica em silêncio por um momento.

— Da nossa menina — ele diz num tom distante, como se sua mente estivesse indo um pouco mais longe do que a minha.

Eu engulo em seco e sinto um nó se formando na minha garganta.

— Gosto dessa imagem — digo. — Então você quer parar de viajar?

— Um dia. Mas só quando a gente sentir que é certo. Nem um dia antes.

Uma lufada de vento atinge a lateral do carro, e um trovão alto faz o chão tremer.

— Andrew? — pergunto.

— Sim?

— Número três, pra acrescentar à nossa lista de promessas. Se a gente chegar à velhice, ficar com dor nos ossos e não puder dormir na mesma cama, me promete que nunca vamos dormir em quartos separados.

— Tá prometido — ele responde, com um sorriso na voz.

— Boa noite — eu digo.

— Boa noite.

E quando pego no sono, minutos depois, sonho com aquela praia quente e Andrew me olhando andar pela areia, com uma mãozinha segurando a minha.

~~~

O guincho não veio. Acordamos na manhã seguinte, entrevados e doloridos, mesmo tendo um banco para cada um.

— Vou encher aquele cara do guincho de porrada, se ele aparecer — Andrew rosna debaixo do capô.

Ele está ocupado usando uma chave inglesa... não vou nem fingir que sei o que é aquilo. Ele está consertando o carro. Isso é tudo o que sei. E está de péssimo humor. Eu só fico por perto para ajudá-lo quando ele precisa de algo, e evito dar uma de loura burra, perguntando o que é essa rebimboca ou pra que serve aquela parafuseta. A verdade é que não me importa. Além disso, só ia deixá-lo mais estressado ter que explicar.

Mas o sol apareceu. E está quente! Até parece que eu morri e fui pro céu!

Fico saltitando nas poças de chuva da noite passada, encharcando meus chinelos de dedo. Não sei o que deu em mim, além da simples mudança de clima, mas levanto os braços acima da cabeça e olho para o céu, rodopiando sem parar no meio da estrada.

— Quer fazer o favor de me ajudar? — Andrew resmunga.

Saltito para perto dele e dou um beliscão de brincadeira na sua bunda, porque estou de ótimo humor e não consigo evitar. Mas então, bang, Andrew leva um susto com o beliscão e bate a cabeça na parte de baixo do capô. Eu me encolho e ponho a mão na boca.

— Poxa, amor! Desculpa! — Estendo a mão para Andrew, puto da vida, revirando aqueles olhos verdes, mas então ele os fecha, enche as bochechas de ar e bufa devagar.

Agarro a cabeça dele, esfrego e beijo o seu nariz. Não consigo parar de sorrir, mas não estou rindo dele, só tentando fazer cara de gatinho do Shrek.

— Tá desculpada — ele diz, apontando para o motor. — Preciso que você segure esta peça aqui um momento.

Eu vou para o outro lado, olho debaixo do capô e enfio a mão no lugar, guiada pelos seus dedos.

— Isso, aí mesmo — ele diz. — Agora segura.

— Por quanto tempo?

— Até eu mandar soltar — ele responde, e vejo o sorriso começando a se formar no canto de sua boca. — Se você soltar, o cárter vai cair e a gente vai ficar parado aqui um tempão.

— Tá, então vai logo — digo, já sentindo um mau jeito começando a se formar no meu pescoço.

Ele vai até o porta-malas e pega uma garrafa d’água. Lentamente, abre a tampa. Toma um gole. Olha para a paisagem. Toma mais um gole.

— Andrew, você tá me zoando? — Eu olho de baixo do capô levantado, tentando vê-lo o melhor que posso.

Ele apenas sorri. E toma mais um gole.

Cacete, ele tá me zoando! Eu acho...

— Não solta. É sério.

— Besteira — eu insisto e começo a mover os dedos, mas decido não soltar. — Você tá dizendo a verdade? Sério mesmo?

— Claro que tô. O cárter vai cair e ainda é capaz de te molhar inteira de óleo de motor. É difícil pra cacete limpar aquela porra da pele.

— Minhas costas estão começando a doer — reclamo.

Ele demora uma eternidade, e quando estou a ponto de soltar, ele vem por trás de mim e me segura pela cintura, me tirando de perto do motor. Com uma mão, ele passa uma meleca preta na minha bochecha. Eu grito e dou um empurrão nele.

— Eca! Puta que pariu, Andrew! E se eu não conseguir limpar essa droga? — Estou realmente fula da vida, mas uma pequena parte de mim não resiste ao sorriso dele.

— Dá pra limpar, sim — ele diz, voltando para baixo do capô. — Agora entra no carro e liga a ignição quando eu mandar.

Rosno para ele antes de fazer o que ele pede, e rapidinho o Chevelle está funcionando de novo e estamos a caminho de St. Petersburg, a apenas uma hora dali.

Hoje parece um dia de verão, e queremos que não acabe nunca. Depois de arranjar um quarto de hotel e tomar um banho tão necessário, vamos para a loja de departamentos mais próxima, comprar um calção de banho para ele e um biquíni para mim, para irmos à praia nadar.

Ele insiste para que eu leve um biquíni preto minúsculo com estrelinhas prateadas, mas não é ele que vai ter que ficar puxando aquele fio dental de dentro do meu rabo a cada cinco segundos. Por isso compro um vermelho, bonitinho, que cobre um pouco mais.

— Acho que foi melhor você ter levado esse mesmo — ele diz quando entramos no carro no estacionamento da loja.

— Por quê? — pergunto, sorrindo e tirando os chinelos.

— Porque eu ia ter que quebrar a cara de uns sujeitos. — Ele dá ré e saímos do estacionamento.

— Só por olharem pra mim? — pergunto rindo, um pouco incrédula.

Ele inclina a cabeça para o lado e olha para mim.

— Não, acho que não. Na verdade, acho excitante quando outros caras olham pra você.

— Eca! — franzo o nariz.

— Não desse jeito! — ele diz. — Caramba! — Balança a cabeça, como que para dizer INacreditável, e ganhamos a rua, que está cheia de carros de turistas. — É que me sinto bem, sabe, quando tô com você. Isso faz maravilhas pelo ego de um cara.

— Ah, então sou só um troféu pra você? — Cruzo os braços e sorrio para ele.

— É, amor, só tô com você por isso. Achei que você já tivesse percebido.

— Tá, então acho que não é segredo que eu tô com você pelo mesmo motivo.

— Ah, é? — ele pergunta, me olhando de soslaio antes de voltar a prestar atenção na estrada à sua frente.

— É — eu confirmo, apoiando a cabeça no encosto. — Só tô com você pra fazer inveja na mulherada. Mas à noite, fico sonhando com o amor da minha vida.

— E quem seria ele?

Estufo os lábios e olho ao meu redor, depois para ele, com ar brincalhão.

— Bom, não vou dizer o nome dele, porque não quero que você tire satisfação com ele e leve porrada. Mas posso dizer que ele tem cabelo castanho, olhos verdes lindos e umas tatuagens. Ah, e ele é músico.

— É mesmo? Bom, pelo visto ele é demais, então por que me usar como troféu?

Eu dou de ombros, porque não consigo pensar numa boa resposta.

— Vai, pode me contar — ele insiste. — Eu nem conheço esse cara mesmo.

— Desculpa — digo olhando-o —, mas não falo dele pelas costas.

— Tudo bem — ele diz sorrindo. — Quer saber?

— O quê?

Andrew sorri maldosamente, e eu não gosto nem um pouco.

— Eu me lembro de umas coisinhas da nossa primeira viagem que você não chegou a fazer.

Oh-oh...

— Nem faço ideia do que você tá falando — eu minto.

Ele tira a mão direita do volante e a apoia na perna. Aquele seu olhar de desafio está ganhando força, e eu tento não tornar meu crescente nervosismo óbvio demais.

— É, acho que você me deve uma bunda de fora na janelinha, e ainda não testemunhei você comendo um bicho. O que prefere? Um gafanhoto? Um grilo? Uma minhoca? Ou talvez uma aranha tremedeira. Será que tem aranhas tremedeiras aqui na Flórida?

Eu fico toda arrepiada.

— Desiste, Andrew — digo, balançando a cabeça. Eu apoio o pé na porta e enrolo minha trança nos dedos, tentando disfarçar a preocupação. — Não vou fazer isso. Além do mais, isso foi na primeira viagem, e você não pode transferir coisas daquela viagem pra essa. Devia ter me obrigado a fazer quando teve chance.

Andrew continua sorrindo, como o merdinha malicioso que ele é.

— Não — digo de novo, bem séria.

Eu olho para ele.

— Não! — repito uma última vez, e ele fica rindo.

— Tudo bem — ele diz, voltando a segurar o volante com as duas mãos. — Mas valeu a tentativa. Não pode me culpar por tentar.

— Acho que não.

Andrew

Passamos o dia inteiro nadando e tomando sol na praia. Vemos o sol se pôr no horizonte e finalmente as estrelas, quando elas ganham vida na escuridão. Uma hora depois que escurece, encontramos um grupo de pessoas da nossa idade. Eles estavam na praia perto de nós havia algum tempo, curtindo.

— Vocês são daqui? — o cara alto com o braço direito cheio de tatuagens pergunta.

Um dos casais se senta na areia perto de nós. Camryn, sentada no meio das minhas pernas, endireita o corpo e presta atenção.

— Não, a gente é de Galveston — respondo.

— E Raleigh — Camryn completa.

— A gente é de Indiana — diz a garota de cabelo preto, se sentando. Ela aponta para os outros, que ainda estão de pé. — Mas eles moram aqui.

Um dos outros caras abraça a namorada.

— Eu sou Tate, esta é Jen — ele aponta para a namorada, depois para os outros de pé ali perto. — Johanna. Grace. E aquele é meu irmão, Caleb.

Os três acenam e sorriem para nós.

— Eu sou Bray — a garota de cabelo preto perto de Camryn diz. — E este é o meu noivo, Elias.

Camryn se endireita mais e espana a areia das mãos, esfregando-as.

— Prazer — ela responde. — Eu me chamo Camryn e este é meu noivo, Andrew.

Elias aperta a minha mão.

Tate, o cara tatuado, diz:

— A gente tá indo pra um lugar reservado, numa praia a meia hora daqui. É ótimo pra uma balada. Bem isolado. Se vocês quiserem, podem ir com a gente.

Camryn vira um pouco o corpo para olhar para mim. Nós dois conversamos com os olhos por um momento. De início, eu não estava com muita vontade de ir, mas ela parece querer muito. Fico de pé e a ajudo a levantar.

Eu me viro para Tate.

— Tá. A gente segue vocês.

— Show de bola — ele diz.

Camryn e eu pegamos nossas toalhas e a sacola que trouxemos com carne-seca, água mineral e filtro solar, e seguimos Tate e seus amigos da praia até o estacionamento.

E agora estamos de novo no carro e podemos ser espontâneos. Não estou muito tranquilo com essa porra, porque faz muito tempo que não saio com ninguém além de Camryn, mas eles parecem bastante inofensivos.

A tal viagem de meia hora acaba levando uns 45 minutos.

— Agora não faço mais ideia de onde a gente tá.

Pegamos uma estrada escura depois de sair da rodovia principal há no mínimo vinte minutos, o Jeep Sahara deles queimando o chão na nossa frente a 120 por hora. Consigo acompanhar o ritmo sem problemas, mas não costumo correr tanto em território desconhecido à noite, quando não dá pra avistar de longe a polícia escondida nas laterais da estrada. Se eu for multado a culpa é minha, mas posso encher o tal Tate de porrada mesmo assim, só por uma questão de princípio.

— Pelo menos a gente tá com o tanque cheio — ela diz. Depois ri, estica o pé para fora da janela e continua: — Vai ver que eles estão planejando ir pra uma cabana sinistra no meio do mato e matar a gente lá.

— Ei, eu também pensei nisso — digo, rindo junto com ela.

— Bom, eu confio em você pra me proteger — ela brinca. — Não deixa nenhum deles fazer picadinho de mim, nem me obrigar a ver Honey Boo Boo.

— Pode deixar. O que me lembra do número quatro na nossa lista de promessas: se um dia eu me perder ou desaparecer, prometa que não vai parar de me procurar exatamente por 365 dias. No dia 366, aceite que se eu estivesse vivo, já teria dado um jeito de voltar pra você, e que portanto tô morto faz tempo. Quero que você siga com sua vida.

Ela se ergue do banco, puxando o pé para dentro do carro.

— Não gostei disso. Tem gente que desaparece e é encontrada anos depois, viva e saudável.

— É, mas não é o meu caso. Pode acreditar, se passar um ano, eu morri.

— Tá, tudo bem — ela diz, afastando o cinto de segurança e chegando perto de mim. Ela encosta a cabeça no meu ombro. — Só se você topar fazer o mesmo por mim. Um ano. Nem um dia a mais.

— Prometo — eu digo, mas é uma mentira deslavada. Eu continuaria procurando por ela até morrer.


Camryn


23

NÃO TEM PROBLEMA mentir sobre algumas coisas. Essa “promessa” é uma delas. De jeito nenhum eu conseguiria parar de procurá-lo depois de um ano. Na verdade, jamais iria parar de procurar. Esse pacto cheio de promessas que juramos manter é importante para nós dois, mas acho que pra certas coisas, vou ter que concordar abertamente e depois fazer o que eu quiser, caso aconteçam.

Além disso, tenho a impressão de que ele também está mentindo.

Andrew não sabe, mas vi aquela garota de cabelo preto, Bray, algumas horas antes, nos banheiros perto da praia. Ela acabou entrando na minha cabine depois de mim. Não chegamos a conversar, só nos cruzamos com um sorriso amigável e mais nada. Acho que foi isso que a motivou a fazer seus amigos nos convidarem para a balada.

Acho que vai ser divertido. Andrew e eu passamos 100% do nosso tempo sozinhos um com o outro, e imagino que seja bom para os dois sair um pouco do casulo e socializar mais com outras pessoas. E ele não levantou nenhuma objeção, então acho que ele também supõe que não vai fazer mal nenhum.

A viagem pro tal lugar “reservado” parece levar uma hora.

O jipe deles vira à esquerda numa estrada parcialmente pavimentada e, quanto mais avançamos, mais o asfalto fica esburacado. Os faróis do carro deles se agitam na escuridão diante de nós, até que a estrada arborizada se abre numa grande clareira de areia e pedras. Andrew para ao lado deles e desliga o motor.

— Bom, é isolado mesmo — eu comento ao sair do carro.

Andrew chega perto de mim, olhando para a praia deserta. Ele segura a minha mão.

— A gente pode voltar agora, ainda dá tempo — ele me provoca. — Depois que nos tirarem de perto do carro, pode ser a última vez que vamos nos ver. — Ele aperta a minha mão e me puxa mais para perto, brincando.

— Acho que vamos sobreviver — decido, quando o último do grupo sai do jipe e nos encontra atrás dos carros.

Tate abre a porta de trás do jipe, tira um isopor gigante e o joga na areia.

— Tá cheio de cerveja aqui — ele diz, erguendo a tampa e mexendo dentro.

Ele joga uma garrafa de Corona para Andrew. Não é sua favorita, eu sei, mas ele também não chega a recusar.

Bray e o noivo, nem lembro mais o nome dele, se aproximam de mim, enquanto Tate destampa outra garrafa de Corona e me entrega.

Eu aceito.

— Obrigada.

Andrew abre a tampa da sua com o abridor de garrafas do chaveiro.

— Se vocês têm um cobertor, é bom trazer — Tate diz. Sua namorada se junta a ele, sorrindo para mim ao passar entre nós com seu biquíni branco minúsculo. — E tenho um som da porra no carro — ele acrescenta, dando tapinhas no jipe —, então música também não vai ser problema.

Andrew abre o porta-malas e pega o cobertor que sempre leva no carro, o mesmo que usamos na noite em que tentamos dormir naquele campo julho passado. Só que agora, graças a mim, ele foi lavado e não está fedendo a óleo e fumaça de carro.

— Cadê meu short? — pergunto, remexendo no banco de trás.

— Aqui — Andrew diz do porta-malas. Quando saio do carro, ele joga o short para mim e eu o apanho no ar.

— Não pretendo nadar nesse abismo à noite — digo, vestindo o short por cima do meu biquíni vermelho.

Ouvindo o que eu falei, Bray diz:

— Ainda bem que não sou só eu!

Sorrio para ela por cima do teto do Chevelle e fecho a porta.

— Você já veio aqui com eles?

Tate e os outros estão indo para a praia agora, carregando o isopor, sacolas de praia e outros objetos. Eles deixam as portas do jipe abertas, com os alto-falantes despejando rock no último volume.

— A gente veio ontem — Bray conta —, mas Elias logo ficou bêbado e começou a pôr os bofes pra fora, por isso eu tive que voltar dirigindo pro hotel bem cedo.

Elias, isso, esse é o nome do noivo dela. Ele balança a cabeça e lança um olhar sarcástico de obrigado-por-contar-pra-todo-mundo para ela.

Andrew e eu andamos ao lado de Bray e Elias, de mãos dadas, até onde todos já estão acampando não muito longe, perto da água. Quando chegamos e estendemos nosso cobertor na areia, Tate risca um fósforo e o joga num monte de galhos. A chama acende o fluido de isqueiro que ele espalhou antes na fogueira. Uma coluna de fogo alta e brilhante espirala por cima do monte e ilumina a escuridão ao nosso redor com uma luz laranja dançante. O calor das chamas já está chegando em mim, por isso afasto um pouco mais nosso cobertor da fogueira, antes que eu e Andrew sentemos nele. Bray e Elias também se sentam sobre duas toalhas de praia gigantes. Tate, o irmão dele e as outras três garotas dividem uma grande colcha. Enfio o fundo da minha garrafa de cerveja na areia ao meu lado, para que ela fique de pé.

Tate me lembra aqueles surfistas da Califórnia, muito louros e bronzeados. Como todos os outros caras, incluindo Andrew, Tate se senta com os joelhos dobrados e os braços apoiados neles. E enquanto estudo todos discretamente, logo vejo algo com o rabo do olho que me faz ficar territorial na hora. A loura ao lado do irmão de Tate, que duvido que seja namorada dele porque os dois não parecem estar juntos, está olhando para Andrew com olhos famintos. Não quero dizer de um jeito inocente, de quem só vai olhar sem tocar. Não, essa garota tentaria dormir com ele assim que eu me afastasse.

Quando ela nota que a estou observando, desvia o olhar e começa a conversar com a garota ao seu lado.

Não tenho com que me preocupar com relação a Andrew, mas se ela me desrespeitar sabendo que ele é meu noivo, não vou pensar duas vezes antes de enchê-la de porrada.

Eu me pergunto se Andrew percebeu.

Andrew

Espero que Camryn não tenha percebido o jeito como aquela garota me olhou agora. Se eu e ela ficássemos cinco segundos sozinhos aqui, ela tentaria dar pra mim. Nem fodendo eu ia querer isso, mas este luau já ficou um pouco mais interessante.

Aposto minha bola esquerda que ela já dormiu com Tate e o irmão dele. Talvez não com Elias — ele parece o tipo fiel —, mas ela daria pra ele também, se ele topasse.

Puta merda, ela olhou pra mim de novo.

Olho rapidamente para Camryn para não cruzar olhares com a menina e não dá outra, Camryn está com aquele sorriso revelador no rosto. É, com certeza ela viu.

Eu pego Camryn no colo e a coloco no meio das minhas pernas.

— Não se preocupe, amor — sussurro no seu ouvido, e então beijo seu pescoço para que a garota veja.

— Eu não tô preocupada — Camryn diz, deitando sobre o meu peito.

Não está preocupada comigo, claro, mas sinto a tensão territorial emanando de seu corpo. Cacete, só a ideia de vê-la pulando em cima daquela garota por minha causa... Tudo bem, eu não deveria pensar nisso. Fodeu. Tarde demais.

— Essas tatuagens são iradas — Tate diz, apontando.

Todos estão olhando a tatuagem em mim e Camryn. Ela se ergue do meu peito para que vejam melhor.

— Pode crer — Bray diz, encantada. Ela rasteja pela areia mais para perto de nós. — Eu tava curiosa mesmo pra ver.

A loura que estava me olhando agora há pouco ri de Camryn, embora Camryn não note, porque está ocupada mostrando a tatuagem para Bray.

Uso essa oportunidade em meu benefício.

— Vira pra cá, amor, mostra como elas se encaixam. — Eu viro Camryn no meu colo e me deito de costas, deitando seu corpo sobre o meu.

O grupo nos olha com atenção, o rosto da loura ficando um pouco amargo quando a encaro diretamente enquanto aperto meu corpo contra o de Camryn. Alinhamos nossas tatuagens para formar o desenho de Orfeu e Eurídice; minha Eurídice usando uma veste branca comprida e transparente, colada ao corpo pelo vento, dobras de tecido sopradas atrás dela, que estende os braços para o Orfeu tatuado nas costelas de Camryn. Bray olha atentamente os detalhes, seus olhos pretos arregalados de assombro. Ela olha novamente para Elias e agora ele parece nervoso, como se tivesse medo de que Bray vá arrastá-lo para o tatuador mais próximo amanhã.

— Isso. É. Demais — Bray diz. — Quem são eles?

— Orfeu e Eurídice — respondo. — Da mitologia grega.

— Uma história trágica de amor verdadeiro — Camryn acrescenta.

Eu a abraço mais forte.

— Bom, vocês dois não parecem ter nada de trágico — Tate diz.

Abraço Camryn ainda mais forte, nós dois pensando em coisas particulares, que é melhor guardar só para nós. Eu beijo o alto do seu cabelo.

Bray se afasta, ainda sentada com os joelhos afundados na areia.

— Eu achei linda. E é bom que seja, porque sei que isso dói um bocado.

— É, doeu mesmo — Camryn diz. — Mas valeu cada hora de sofrimento.

Algum tempo depois, Camryn e eu já tomamos pelo menos três Coronas cada um, mas só ela demonstra. Está um pouco alta, mas só o bastante para ficar mais tagarela.

— Eu sei! — ela diz para Bray, a de cabelo preto. — Vi um show deles com minha melhor amiga, Nat, e eles são demais! Não tem muitas bandas que conseguem tocar quase como no disco.

— É verdade — Bray diz, terminando sua cerveja. — Você disse que é da Carolina do Norte?

Camryn levanta as costas do meu peito e se senta de pernas cruzadas na areia.

— Sou, mas Andrew e eu não moramos mais lá.

— Onde vocês moram? — Tate pergunta. Ele puxa um longo trago do seu cigarro e segura a fumaça enquanto fala. — No Texas?

Todos se viram para me olhar quando respondo.

— Não, a gente meio que... viaja.

— Viaja? — Bray pergunta. — Como, vocês têm um trailer?

— Não exatamente — Camryn diz. — A gente só tem o carro.

A loura que está me olhando o tempo todo entra na conversa:

— Por que vocês estão viajando?

Noto imediatamente por sua expressão que ela está se esforçando ao máximo para chamar a minha atenção, mas eu a ignoro e respondo, olhando para Bray, que está ao nosso lado: — A gente toca junto.

— Como, vocês têm uma banda? — a loura pergunta.

Eu olho para ela, desta vez.

— Mais ou menos — digo, mas é só o que eu respondo, e volto a dar atenção para Bray.

— Que estilo de música vocês tocam? — pergunta Caleb, o irmão de Tate. Ele está se engraçando com a outra garota desde que chegamos. Provavelmente também não estão juntos, mas ele com certeza vai se dar bem hoje.

— Rock clássico, blues e folk, coisas assim — respondo, tomando um gole de cerveja.

— Vocês precisam tocar pra gente! — Bray diz, empolgada.

Ela está claramente tão alta quanto Camryn, e as duas parecem estar se dando bem.

Camryn vira na areia para me olhar, de olhos arregalados e cheios de entusiasmo.

— A gente podia. O violão tá no banco de trás.

Eu balanço a cabeça.

— Não, não tô a fim agora.

— Ah, vai, amor, por que não?

Aí estão a cara de gatinho do Shrek e o jeito de choramingar que é a marca registrada de Camryn, que nunca falham em me obrigar a fazer tudo o que ela quer. Mas eu enrolo mais um pouco, talvez esperando que ela desista e diga deixa pra lá.

É claro que ela não desiste.

— É, cara, se você trouxe um violão e sabe tocar, vai ser show — Tate diz.

A essa altura, todos estão me olhando — até Camryn, que na verdade é a única pela qual vou fazer isso.

Cedendo, eu me levanto, vou até o carro e volto trazendo o violão.

— Você vai cantar comigo — digo para Camryn quando me sento ao seu lado.

— Nãão! Eu tô muito bêbada! — Ela me beija na boca e vai se sentar perto de Bray e Elias, para me dar um pouco de espaço, acho.

— Tudo bem, o que você quer que eu cante?

A pergunta era para Camryn, mas Tate responde:

— Ei, o que você quiser, cara.

Penso em várias canções por um minuto e finalmente escolho uma porque é bem curta. Mexo um pouco nas cordas, afino o violão rapidinho e começo a tocar “Ain’t No Sunshine”. No início, estou pouco me fodendo se está bom, mas como sempre, depois que começo, me torno outra pessoa e dou tudo de mim. Meus olhos ficam fechados a maior parte da canção, mas sempre consigo sentir a energia das pessoas ao meu redor, se elas estão curtindo ou não.

Todas estão.

No segundo refrão, olho nos olhos de Camryn enquanto dedilho as cordas. Ela está sentada na areia sobre os joelhos, seu corpo balançando de um lado para o outro. As outras garotas fazem o mesmo, totalmente imersas na música. Eu canto o último refrão, e essa canção basta para que eu queira tocar mais. Bray mal consegue se segurar, me dizendo o quanto foi bom e dando bastante atenção a Camryn, o que a faz ganhar pontos comigo. Diferente da loura, que está me olhando um pouco mais do que antes.

— Porra, cara, você não tava brincando — Tate diz.

Ele acende um baseado.

— Toca outra — Bray diz, encostando-se em Elias de novo, que a abraça por trás.

Tate passa o baseado primeiro para Camryn. Ela apenas o olha por um segundo, sem saber se deve aceitar ou não. Vejo uma expressão fugidia de dor em seu rosto; eu sei que ela está se lembrando do seu momento de fraqueza com os comprimidos. Ela balança a cabeça.

— Não, obrigada, acho que hoje só vou beber.

Eu sorrio por dentro, orgulhoso de sua decisão. E quando Tate o oferece para mim em seguida, faço o mesmo, não porque eu não queira dar uns tapas, mas porque não consigo curtir assim quando Camryn não quer.

Nunca fui muito fã de maconha, mas curto dar um pega de vez em quando. Agora não é o momento.

Toco mais algumas canções em volta da fogueira. Camryn finalmente canta uma comigo, e depois quero só relaxar com a minha garota e curtir essa onda tão rara. Deixo o violão ao nosso lado no cobertor e puxo Camryn novamente para o meu colo.

O irmão de Tate está chupando a língua daquela garota e bolinando-a há algum tempo. Eles não falam muito, por motivos óbvios. A loura que antes estava me olhando finalmente se tocou, eu acho. Ou isso, ou já está chapada demais para se importar comigo.

A música do jipe de Tate aumenta de novo, e ele volta de lá trazendo uísque, uma garrafa de dois litros de Sprite e uma pilha de copos descartáveis. A namorada dele começa a misturar as bebidas e distribuir os copos.

— Bebe aí, cara — Tate aconselha. — Nem esquenta se vai dirigir depois. A polícia não conhece esse lugar.

— Tá, eu aceito um copo — respondo.

Olho para Camryn, lembrando sua expressão quando Tate lhe passou o baseado.

— Se você não quiser, eu não bebo — digo.

À parte não querer que ela sinta que está traindo a si mesma bebendo demais, também não quero que encha a lata a ponto de ficar um lixo na manhã seguinte.

— Não, tudo bem, amor. Só vou tomar uma dose, tá?

Ela sorri docemente para mim como se estivesse esperando a minha permissão, o que eu acho bonitinho pra cacete.

— Tá — eu cedo, por não querer magoá-la, e ela aceita o copo da namorada de Tate.

Todos relaxamos, bebemos e conversamos sobre tudo quanto é assunto por um tempo enorme. Camryn está gargalhando, sorrindo e falando com Bray sobre absorventes íntimos, um assunto que não faço ideia de como surgiu, nem quero saber, mas estamos nos divertindo muito. Músicas de bandas que nunca ouvi tocam alto no som perto dali, e fico intrigado com as últimas canções, que tenho certeza de que são com o mesmo cantor.

— Quem são esses? — pergunto a Tate.

Ele desvia o olhar da namorada, que está com a cabeça no seu colo.

— Quem? A banda?

— Sim — digo. — Eles são muito bons.

— Isso, meu amigo, é Dax Riggs. Tá fazendo carreira solo agora. Ele começou no Acid Bath, acho... — Ele parece pensativo, como se não tivesse certeza. — Bom, ele tocou em vários grupos. Acid Bath e Agents of Oblivion são os mais conhecidos.

— Acho que já ouvi falar do Acid Bath — comento, tomando mais um gole de uísque com Sprite.

— Eu não me espantaria — Tate acrescenta.

— Preciso conhecer o som desse cara. Ele é desconhecido?

Camryn, abandonando a conversa sobre absorventes com Bray, se aproxima de mim e encosta a cabeça no meu ombro.

— É, ele nunca aderiu ao mainstream — Tate diz. — Ainda bem, porque o mainstream é uma bosta. Fico puto quando vejo um grupo legal se vendendo, fazendo comercial de pasta de dente e merdas assim.

Eu rio um pouco.

— Com certeza. Eu nunca assinaria um contrato com uma gravadora, nem se me oferecessem.

— Falou tudo, cara — Tate diz. — Depois que você assina, vira a putinha deles. Sua música não te pertence mais e você precisa abrir as pernas pro cuzão que assina seus cheques.

Tô começando a gostar desse cara. Só um pouquinho.

— Andrew, preciso fazer xixi — Camryn diz.

Eu olho para ela. Tirando o copo de sua mão, eu o deixo na areia.

— Também tô precisando dar uma mijada — digo tanto para ela quanto para Tate.

Tate aponta para a esquerda com outro cigarro entre os dedos e diz: — Vão praquele lado. Não tem vidro quebrado nem merda nenhuma no chão.

Deixo meu copo perto do de Camryn e a ajudo a levantar. Andamos pela areia até um lugar cheio de árvores e pedras, distante o suficiente para que ninguém nos veja.

— A gente vai ter que passar a noite aqui. Não tô em condições de voltar dirigindo.

Ela se agacha enquanto mijo a poucos metros dela.

— Eu sei. Acho que finalmente vamos dormir sob as estrelas, hein?

Estou rindo dela por dentro. Minha gata está tão bêbada que está até enrolando a língua.

— Pois é, acho que sim — concordo. — Mas é bom você saber que na verdade esta vez não conta porque você mal vai lembrar amanhã.

— Vou, sim.

— Nãão, não vai.

Ela quase cai depois de terminar e tentar ficar de pé. Eu a seguro pelo braço e passo o meu pela sua cintura. Então a beijo no alto da cabeça.

— Eu te amo tanto.

Não sei por que senti tanta vontade de dizer isso nesse momento, mas só de tê-la ao meu lado e saber que ela não está em condições de se cuidar esta noite, eu precisava dizer. Essas palavras estavam presas na minha garganta e, admito, eu estava começando a ficar engasgado com elas. Eu poderia culpar o álcool, mas não, mesmo completamente sóbrio, eu a amo pra cacete.

Ela passa os dois braços pela minha cintura, aninha a cabeça no meu peito quando começamos a voltar e me aperta.

— Eu também te amo.


24

À MEDIDA QUE a noite avança, as cenas do nosso pequeno grupo começam a mudar. As pessoas estão falando menos e se pegando mais. Bray e Elias estão deitados ao lado da fogueira. Tate e a namorada já poderiam estar transando; só falta tirarem a roupa. Por sorte, a loura sinistra me esqueceu e está ajudando a amiga a apalpar Caleb a uns dois metros e meio de mim e Camryn.

É, tenho certeza de que imagino no que isso vai dar. Nada de especial. Não é uma situação que eu ainda não tenha vivido, mas desta vez meu principal objetivo não é satisfazer duas garotas ao mesmo tempo. Só preciso manter Camryn longe dessa merda.

Quando começo a virar o corpo para falar com Camryn, que está deitada ao meu lado, o mundo todo some debaixo de mim. Tento levantar a cabeça. Eu acho. Sinto fadas dançando em cima dos meus olhos. Abertos.

— Caralho... — digo em voz alta, mas talvez não tenha dito. Talvez tenha sido só minha imaginação.

Eu levanto a mão diante do rosto e a lua parece estar aninhada entre meu polegar e meu indicador. Tento soltá-la, mas ela é pesada demais e empurra meu braço para baixo. Sinto meu cotovelo bater na areia como um haltere de 40 quilos.

Minha cabeça está rodando. A cor do fogo é azul, amarela e vermelho-escura. O som do oceano está triplicado em meus ouvidos, misturando-se ao crepitar da madeira no fogo e a alguém gemendo.

— Camryn? Cadê você?

— Andrew? Eu... eu tô aqui. Eu acho.

Nem sei dizer se era realmente a voz dela.

Fecho os olhos com força e abro de novo, tentando clarear a visão, mas percebo que não quero enxergar melhor. Estou sorrindo. Meu rosto parece tão esticado que por um instante tenho medo de que não vá parar de esticar e acabe rasgando no meio. Mas tudo bem.

Puta que me pariu... eu tô viajando. Que. Porra. Eles. Me deram pra beber?

Tento me levantar, mas quando acho que estou de pé, olho para baixo e percebo que nem me mexi. Tento de novo, com o mesmo resultado.

Por que não consigo levantar?!

— Caralho, Tate — ouço uma voz dizer, mas nem consigo dizer se é masculina ou feminina. — Que puta bagulho bom. Caraaalho... Tô vendo arco-íris e o escambau. É a porra do Reading Rainbow1...

Em seguida, quem disse isso começa a cantar o tema do Reading Rainbow.

Me sinto na cidade dos malucos, mas na verdade não quero ir embora.

Finalmente, eu me deito de costas e verifico duas vezes minha posição, apalpando a areia dos dois lados do corpo com as palmas das minhas mãos pesadas. Então olho para o céu cheio de estrelas e vejo que elas se movem para lá e para cá na escuridão, num balé poético.

O rosto de Camryn aparece sobre o meu peito, como um fantasma emergindo da neblina.

— Amor? — pergunto. — Você tá bem?

Estou preocupado com ela, mas não consigo parar de sorrir.

— Tô. Eu tô óooootima. Tô ótima.

— Deita aqui comigo — digo para ela.

Fecho os olhos quando sinto sua cabeça sobre o meu peito e sinto o cheiro do xampu que ela sempre usa, só que agora está muito mais forte. Tudo está mais forte. Cada ruído. A sensação do vento no meu rosto. Dax Riggs cantando “Night Is the Notion” ao fundo, em algum lugar que minha mente diz ser longe, mas o som está tão alto que parece que o jipe está encostado na minha cabeça. Consigo quase sentir o cheiro de borracha dos pneus.

E eu não consigo evitar. Começo a cantar “Night Is the Notion” o mais alto que posso. Não sei como já conheço a letra, mas conheço. Conheço, caralho. E parece que a canção dura horas, e eu nem ligo. Finalmente, paro de cantar, só fecho os olhos e sinto a música passar através de mim. E não me importa mais nada agora, a não ser o momento. E eu tô doido de tesão. Levo um segundo — eu acho — para perceber que meu pau está sentindo a mesma brisa que meu rosto sente. E é bom.

— Camryn? Quê? Tá.

Nem sei o que estou dizendo, ou se estou realmente dizendo alguma coisa. Minha mente me diz que preciso me certificar de que ela não está chapada a ponto de fazer um boquete na frente dos outros, mas ao mesmo tempo não quero que ela pare.

Eu fico sem fôlego e minha cabeça cai para o lado. Vejo Caleb em cima de uma das garotas, as coxas nuas dela apertadas ao redor do corpo dele, que sobe e desce. Desvio o olhar. Olho para o céu de novo. Traços de luz vão para um lado e para o outro com o movimento das estrelas. Estremeço quando sinto meu pau batendo no fundo da garganta dela.

Eu olho para baixo. Vejo uma cabeleira loura. Estendo a mão para tocá-la, parte de mim querendo afastá-la, outra parte querendo forçá-la a engolir mais fundo. Acabo escolhendo a segunda opção, mas quando jogo a cabeça para trás e vejo o rosto de Camryn ao lado do meu, ergo os ombros da areia.

— Sai de cima de mim, piranha! — consigo gritar.

Eu a chuto para longe e o barato muda completamente. Não estou mais curtindo.

Eu me obrigo a sentar, tento dar murros na cabeça com as mãos, esperando ficar sóbrio com o choque, mas não adianta porra nenhuma. Só consigo enfiar o pau de volta no short, olho para o outro lado da fogueira e vejo aquela piranha nojenta já desmaiada perto de Caleb. Não sei quanto tempo passou, mas todos estão capotados, menos eu.

Estou em pânico, não consigo nem respirar. O que foi que aconteceu, porra?

Eu viro para o lado e abraço Camryn, forçando-a a ficar perto de mim, e não solto mais.

E essa é a última coisa de que me lembro.

Camryn

Estou enjoada. Meu Deus, eu nunca, nunca tive uma ressaca assim. O sol da manhãzinha e a brisa que vem do oceano me acordam. De início fico deitada ali, pois tenho medo de vomitar se me mexer. Minha cabeça está latejando, as pontas dos meus dedos estão dormentes, o resto do meu corpo treme, tomado pela náusea. Eu gemo e acabo de abrir os olhos, pressionando um braço horizontalmente sobre a barriga. Sei que de jeito nenhum vou conseguir sair desta praia sem antes vomitar por uns bons cinco minutos, mas tento me segurar o máximo que posso.

Minha bochecha está apertada contra a areia debaixo de mim. Sinto grãos grudados na pele. Com muito cuidado, limpo a areia com um dedo antes que ela entre no meu olho.

Ouço uma pancada, seguida por um estalo e gritos.

Apesar dos protestos do meu estômago, viro para o outro lado, olhando para o oceano.

— Sai de cima dele! — ouço uma garota gritar.

Isso me acorda ainda mais, e por uma fração de segundo me dou conta do quanto eu estava desacordada. Mas agora estou totalmente alerta. Levanto a cabeça da areia e vejo Andrew moendo Tate com os punhos.

— Andrew! — tento gritar, mas minha garganta está irritada e minha voz sai rouca, por isso só consigo balbuciar seu nome. — Andrew! — digo de novo, controlando melhor minha voz.

— Qual é o seu problema, caralho?! — Tate grita.

Ele está tentando se afastar de Andrew, mas Andrew continua avançando. Ele dá mais e mais socos, dessa vez derrubando Tate sentado na areia.

Então o irmão de Tate vem ajudar e soca o quadril de Andrew. Os dois caem longe de Tate e rolam vários metros. Andrew pega Caleb pela garganta e o levanta acima de seu corpo, jogando-o com força na areia, e está em cima dele em segundos. Ele dá três socos em Caleb antes que Tate chegue por trás, puxando-o para longe.

— Fica frio aí, porra! — Tate grita.

Mas Andrew gira o corpo e atinge seu queixo com um gancho, e eu ouço outro estalo de ossos de virar o estômago. Tate cambaleia para trás, segurando a mandíbula.

— Você drogou a gente! Eu vou te matar, caralho! — Andrew ruge.

Finalmente consigo ficar de pé, embora eu tropece uma vez antes de chegar perto de Andrew. Quando vou segurar o braço dele para puxá-lo, sou empurrada por trás e caio sentada. Nem sei o que aconteceu, mas por um segundo fico sem fôlego. Levanto a cabeça e vejo Caleb em cima de Andrew. Devo ter sido atingida quando Caleb atacou Andrew por trás.

Eu me levanto novamente da areia e vejo Elias se aproximando.

Em pânico, olho para meus dois lados e novamente para Elias. Tudo parece estar em câmera lenta. Os três vão se juntar contra Andrew? Ah, nem fodendo! Começo a agarrar Tate enquanto ele e Caleb estão esmurrando Andrew, mas sou empurrada para longe por Elias.

— Sai! — ele rosna para mim.

Andrew consegue se aguentar bem contra Tate e Caleb, ainda está de pé e trocando socos com os dois, mas se Elias entrar na briga, acho que ele não vai conseguir lutar contra os três.

Elias entra no bolo e não consigo entender quem está batendo em quem, quando um par de mãos me pegam pelas axilas por trás.

— Fica aqui comigo, garota — Bray diz.

No meio da minha confusão e pavor, vejo Elias esmurrando Caleb e o alívio toma conta do meu corpo, embora isso dure pouco.

A boca de Andrew está sangrando. Mas todos os quatro estão sangrando em algum lugar. A luta parece continuar para sempre, e a cada golpe que Andrew dá ou recebe, eu me encolho e fecho os olhos, querendo apenas bloquear tudo. Estou sentada na areia com Bray me abraçando por trás, porque ela ainda acha que vou tentar entrar na briga. Mas voltei a sentir que vou vomitar e mal consigo me mexer. Gotas de suor brotam na minha testa. Minha nuca está fria e úmida. O céu está começando a girar.

— Oh, não. Bray... acho que eu vou...

Eu perco o controle ali mesmo. Sinto meu corpo se desvencilhando com violência dela e minhas mãos se estendendo, afundando na areia. Minhas costas se arqueiam e descem, se arqueiam e descem, e eu vomito sem parar, sem parar. Meu Deus, por favor, faz isso parar. Eu nunca mais vou beber! Por favor, faz isso parar! Mas parece que eu nunca vou parar. Quanto mais vomito, mais meu corpo reage ao cheiro do vômito, ao som, ao sabor dele, e isso me faz vomitar ainda mais. Mal consigo ouvir a luta ao fundo por cima dos meus próprios ruídos, e dos estertores secos quando não resta mais nada no meu estômago para devolver. Finalmente, caio para o lado. Não consigo me mexer. Meu corpo treme incontrolavelmente, minha pele está fria e quente e pegajosa em todo lugar. Sinto que Bray está sentada ao meu lado.

— Você vai ficar bem — eu a ouço dizer. — Uau, aquele bagulho te zoou forte.

— O que era? — pergunto, e partes da noite anterior começam a voltar à minha memória.

Nem ouço se ela respondeu ou não à minha pergunta.

Lembro que tudo estava bem, era só uma bebedeira normal, até pouco depois que começamos a tomar o gim. E então, do nada, eu não conseguia mais enxergar o que estava à minha frente, porque tudo estava perto demais. Eu ficava tentando focar os olhos em coisas mais distantes, o oceano, as estrelas, as luzes dos barcos ao longe, sobre a água. Lembro que achei que um navio estava se aproximando de nós e que ia bater na praia. Mas eu não me importava. Eu achei... lindo. Ia matar a todos nós, mas era lindo. E lembro que ouvi Andrew cantando uma canção bem sexy. Deitei a cabeça no peito dele e fiquei ouvindo-o cantar. Eu queria subir em cima dele e tirar a roupa, e teria feito isso, se conseguisse me mexer.

E lembro...

Peraí.

Aquela piranha loura. Ela me perguntou... peraí.

Eu levanto o corpo da areia.

— Acho que você precisa ficar deitada um pouco — Bray diz.

Meus dedos tocam minha testa.

Lembro que ela estava sentada perto de mim e de Bray. Estava tão chapada quanto todos nós, mas eu não estava mais com ciúmes. Ela conversou com a gente um pouco, e eu não me importei.

À medida que as lembranças vão voltando, meu corpo começa a tremer mais.

Ela tentou me beijar. Acho que eu deixei...

Acho que vou vomitar de novo.

Eu encolho os joelhos e apoio os cotovelos em cima deles, afundando o rosto nas mãos. Ainda estou tão zonza. Sinto que ainda não acabei de vomitar. Não tenho aquela grande sensação de alívio que vem depois de passar mal. Não, a ânsia só ficou mais intensa, desta vez provocada pelos meus nervos.

O resto está voltando aos poucos, e embora eu queira me forçar a esquecer, não consigo.

Ela perguntou se podia dormir comigo e com Andrew. Sim, me lembro agora. Mas... meu Deus... pensei que ela quisesse dizer dormir, mas agora me dou conta de que estava tão chapada que não percebi que ela queria dizer sexualmente.

Eu disse que não me importava.

Então lembro que ela...

Eu perco o fôlego. Levo a mão à boca, com os olhos arregalados e ardendo por causa da brisa.

Lembro que ela fez um boquete em Andrew.

Tentando ficar de pé, sinto a mão de Bray nas minhas costas.

— Para, garota — ela diz, me puxando de volta para a areia. — Não vai lá. Você só vai se machucar.

Solto meu pulso da mão dela e tento ficar de pé de novo, mas os movimentos bruscos, junto com meus nervos em frangalhos, causam mais ânsia de vômito.

Então ouço Andrew de pé perto de mim.

— Cacete — ele diz para Bray. — Você pega uma garrafa d’água no isopor no banco de trás do meu carro?

Bray vai pegar a água.

Andrew me puxa para suas pernas assim que eu paro de tentar vomitar. Ele afasta meu cabelo dos olhos e da boca.

— Eles deram droga pra gente, amor — ele diz.

Meus olhos se abrem um pouco e o vejo em cima de mim, com as palmas das mãos nas minhas bochechas.

— Eu mato aquela vaca. Juro por Deus, Andrew.

A expressão dele é de uma pessoa atordoada. Acho que ele não sabia que eu tinha visto.

— Ela ainda tá desacordada. Amor, eu...

A culpa em seu rosto me corta o coração.

— Andrew, eu sei o que aconteceu — digo. — Sei que você achou que fosse eu. Vi o que você fez.

— Não importa — ele diz, cerrando os dentes. Seus olhos ficam rasos d’água. — Eu devia saber que não era você. Porra, me desculpa. Eu devia saber. — Suas mãos apertam meu rosto.

Estou para mandá-lo parar de se culpar quando Elias se aproxima.

— Desculpa, cara, a gente não sabia. Juro.

— Eu acredito — Andrew diz.

Bray volta com a água, e eu já estou recuperando um pouco das minhas forças. Levanto o corpo e fico sentada, encostada no peito nu de Andrew. Ele me abraça e me aperta tão forte, como se temesse que eu fosse levantar e sair correndo.

Então ele pega a garrafa de Bray, tira a tampa, joga um pouco d’água na mão e passa na minha testa e na minha boca. O frescor me alivia na hora.

— Olha, cara, desculpa — Tate diz, chegando por trás de nós. — A gente achou que vocês não iam ligar. Só pusemos um pouco na bebida de todo mundo. Fizemos uma presença. Não trouxemos vocês pra cá com más intenções.

Andrew consegue se afastar delicadamente de mim, mesmo assim tão rápido que mal noto sua ausência, e esmurra Tate de novo. Um estalo de ossos nauseabundo ecoa pelo espaço.

— Por favor, Andrew! — eu grito.

Elias segura Andrew e Caleb segura Tate, apartando-os.

Andrew deixa Elias segurá-lo por trás, mas depois se desvencilha e volta para mim, me ajudando a levantar.

— Vamos embora — ele diz, ele começa a me pegar no colo, mas eu balanço a cabeça, para que ele saiba que consigo andar sozinha.

Ele pega o violão e eu pego o nosso cobertor, e nós vamos para o Chevelle.

— Talvez fosse bom a gente dar uma carona pra Bray e Elias — digo.

Andrew joga o violão no porta-malas e pega o cobertor de mim, guardando-o também. Então ele vai para o seu lado do carro, estende os braços sobre o teto e apoia a cabeça entre eles. Ele respira fundo e dá um murro na lataria.

— Puta que pariu! — grita, dando outro murro.

Em vez de tentar chamá-lo à razão, decido deixar que ele se acalme sozinho. Olho para ele com ternura do outro lado do carro. Depois entro e fecho a porta. Ele fica ali mais um minuto, até que o ouço dizer:

— Se vocês quiserem, podem voltar com a gente.

Elias e Bray, carregando suas coisas, vêm até o carro e se sentam no banco de trás.

1 Programa infantil de incentivo à leitura da TV pública americana. (N.T.)


Andrew


25

NEM SEI COMO achei o caminho de volta tão facilmente. Acho que num certo momento eu nem me importava muito se nos perdêssemos. Mas volto sem virar uma esquina errada nem ter que parar e pedir informações. Os quatro não falamos muita coisa na volta. E do pouco que foi falado, não lembro nada.

Paramos no estacionamento do hotel e nos despedimos de Elias e Bray. Talvez eu tivesse agradecido a Elias ou desejado sorte para o resto da viagem, ou talvez até convidado os dois para saírem conosco à noite, mas dadas as circunstâncias, só consigo responder com um aceno quando eles agradecem pela carona.

Eu dou partida no carro e vou para o nosso lado do hotel.

Camryn ainda parece insegura sobre conversar comigo. Não com medo, apenas insegura. Eu não consigo nem olhar para ela. Me sinto um bosta pelo que aconteceu, e nunca vou me perdoar.

Camryn segura a minha mão e vamos direto para o nosso quarto. Eu abro a porta e começo a jogar nossas coisas nas mochilas.

— Não foi sua...

Eu a interrompo.

— Não. Por favor. Só... me dá um minuto...

Ela olha para mim tão desolada, mas balança a cabeça e concorda.

Logo estamos na estrada de novo, indo para o Norte pelo litoral. Destino: qualquer lugar, menos a Flórida.

Depois de dirigir por uma hora, o que aconteceu na noite passada não me sai da cabeça, e eu tento entender, de alguma forma. Eu saio da estrada e o carro roda até parar no acostamento. Está tão silencioso. Olho para baixo, depois pelo para-brisa. Percebo que estou com os nós dos dedos brancos de tanto apertar o volante. Finalmente, abro a porta e saio do carro.

Ando rapidamente pelo cascalho e então desço a encosta da vala, atravessando para o outro lado e indo direto para a primeira árvore.

— Andrew, para! — ouço Camryn gritar.

Mas eu continuo andando, e quando fico frente a frente com aquela merda de árvore, bato nela com tanta força quanto bati em Tate e Caleb. A pele de dois dos meus dedos se abre, o sangue escorre pelas costas da mão e entre os dedos, mas eu não paro.

Só paro quando Camryn entra na minha frente e empurra meu peito com tanta força com as duas mãos que eu quase caio para trás. Lágrimas escorrem dos seus olhos.

— Para! Por favor! Para com isso!

Eu desabo sentado na grama, com os joelhos dobrados, minhas mãos ensanguentadas pendendo dos pulsos. Meu corpo se curva para a frente, cabisbaixo. Só consigo ver o chão embaixo de mim.

Camryn se senta na minha frente. Sinto suas mãos no meu rosto, tentando levantar minha cabeça, mas eu não deixo.

— Você não pode fazer isso comigo — diz com voz trêmula. Camryn tenta me forçar a olhá-la, e eu finalmente deixo porque me mata de dor ouvi-la chorar. Olho nos olhos dela, os meus cheios de lágrimas de raiva que estou tentando conter. — Amor, não foi culpa sua. Você tava drogado. Qualquer um poderia ter se enganado, chapado como você tava. — Seus dedos apertam meu rosto. — Não. Foi. Culpa. Sua. Entendeu?

Tento desviar o olhar, mas ela afasta minhas mãos e se senta no meio das minhas pernas sobre os joelhos, de frente para mim. Instintivamente, eu a abraço.

— Mesmo assim, eu devia saber — digo, olhando para baixo. — E não é só isso, Camryn, eu devia cuidar da sua segurança. Você nem deveria ter sido drogada, pra começar. — Só de pensar nisso, a raiva e o ódio por mim mesmo aumentam de novo. — Eu devia cuidar da sua segurança!

Ela me abraça e me força a apoiar a cabeça em seu peito.

Ela se afasta.

— Andrew, olha pra mim. Por favor.

Eu olho. Vejo dor e compaixão em seus olhos. Seus dedos delicados envolvem meu rosto barbado. Ela beija meus lábios suavemente e diz:

— Foi um momento de fraqueza — como que para me lembrar do que eu disse a ela há vários meses sobre os comprimidos. — Foi minha culpa tanto quanto sua. Eu não sou burra. Deveria ter imaginado que não podia deixar nossas bebidas na mão deles nem por um segundo. Não é culpa sua.

Eu baixo o olhar, e então olho para ela de novo. Não sei como posso fazê-la entender que, por causa de como e quem sou, sinto um forte senso de responsabilidade por ela. Uma responsabilidade da qual me orgulho, que senti desde o dia em que a conheci. Me mata... me mata saber que no meu “momento de fraqueza” eu não pude protegê-la, que, por eu ter baixado a guarda, ela poderia ter sido ferida, estuprada, morta. Como posso fazê-la entender que não importa se ela não me culpa por isso, que sua opinião, embora eu não a considere sem valor, não desculpa meu momento de fracasso? Ela tem direito a um momento de fraqueza. Eu não tenho. O meu é só fracasso.

— E eu nunca, jamais culparia você por aquilo — ela acrescenta.

Eu só olho para ela, procurando um significado em seu rosto, e então ela continua:

— O que aquela garota fez — ela explica. — Eu jamais jogaria aquilo na sua cara. Porque você não fez nada errado. — Eu sinto seus dedos afundando em meu rosto. — Você acredita em mim?

Eu balanço a cabeça lentamente.

— Acredito, sim.

Ela suspira e diz:

— De todo modo, pode ter sido em parte minha culpa. — Ela desvia o olhar.

— Como assim?

— Bem — ela diz, mas hesita com uma expressão distante de arrependimento no semblante —, acho que, sem querer, posso ter dado permissão pra ela.

Aquilo certamente me pega de surpresa.

— Lembro que ela perguntou sobre dormir com a gente, e acho que falei que sim, que ela podia. Eu-eu não sabia que ela queria dizer... sexualmente. Se eu estivesse sóbria, com certeza teria sacado isso. Andrew, me desculpa. Desculpa por eu ter deixado aquela piranha louca violentar você.

Eu balanço a cabeça.

— A culpa não é de nenhum dos dois, então não começa a se culpar também, tá?

Quando não vejo aparecer o sorriso que eu queria causar rápido o suficiente, eu a agarro dos dois lados pela cintura. Ela grita quando começo a fazer cócegas. Ela ri e se retorce tanto que cai para trás na grama, e eu me sento em cima dela, me apoiando nos joelhos dos dois lados para não esmagá-la.

— Para! Não! Andrew, tô falando sério, caralho! Paraaaa! — Ela ri alto e eu enfio mais os dedos nos seus quadris.

Então ouço um carro de polícia tocar a sirene uma vez e silenciar, parando atrás do meu carro.

— Fodeu — eu digo, olhando para Camryn. Seu cabelo está emaranhado e cheio de fios de grama.

Saio de cima dela e estendo a mão ensanguentada para ajudá-la a levantar. Ela a toma e fica de pé, espanando a roupa. Voltamos para o carro enquanto o policial sai de sua viatura.

— Vocês costumam deixar a porta do carro escancarada assim na estrada? — o policial pergunta.

Eu olho para a porta e novamente para ele.

— Não, senhor — eu digo. — Fiquei com vontade de vomitar e nem pensei nisso.

— Habilitação, comprovante do seguro e documentos do veículo.

Tiro a habilitação da carteira, entrego para ele e enfio o corpo pela janela do lado do passageiro para procurar os documentos no porta-luvas. Camryn está encostada na traseira do carro, com os braços cruzados nervosamente sobre o peito. O policial volta para a viatura — depois de notar o sangue nas minhas mãos — e se senta para consultar o meu nome.

— Espero que você não esteja escondendo nenhum assalto, assassinato ou nada assim de mim — Camryn diz, quando me apoio no capô ao lado dela.

— Não, já parei com os assassinatos — respondo. — Ele não tem como me prender. — Eu a cutuco de leve com o cotovelo.

Passados alguns minutos de pura tensão, o policial se aproxima de nós e me devolve os documentos.

— O que aconteceu com a sua mão? — ele pergunta.

Olho para ela, sentindo-a doer e latejar pela primeira vez, agora que ele chamou minha atenção. Em seguida, aponto para a árvore perto dali.

— Eu meio que bati na árvore.

— Você meio que bateu na árvore? — ele pergunta, desconfiado, e noto que olha para Camryn várias vezes. Que legal, ele deve estar achando que bati nela ou alguma porra assim, e considerando como ela está detonada depois do incidente de ontem à noite e do nosso rala-e-rola na grama, suas suspeitas devem estar sendo confirmadas.

— Tá, eu bati na árvore.

Ele olha para Camryn, agora.

— Foi isso que aconteceu? — ele pergunta a ela.

Camryn, nervosa pra caramba e pelo visto imaginando, como eu, o que o policial acha que realmente aconteceu, de repente faz a Natalie.

— Foi, senhor — ela diz, gesticulando muito. — Ele ficou nervoso porque uns filhos da puta... — ela se encolhe toda — desculpa, se aproveitaram da gente ontem à noite, e ele ficou se martirizando com isso a manhã toda e acabou descontando naquela árvore! Eu corri pra lá pra não deixar que ele se machucasse, a gente conversou, e eu tô com essa cara de merda pisada... ai, desculpa... por causa da noite de cão que a gente passou. Mas juro que não somos más pessoas. Não usamos drogas e ele não é um psicopata nem nada, então, por favor, libera a gente. Pode até fazer uma busca no carro, se quiser.

Momento. Sorvete. Na testa.

Eu rio por dentro. Não temos com que nos preocupar se ele quiser vasculhar o carro. A não ser que... nossos amigos temporários, Elias e Bray, tenham acidentalmente deixado uma trouxinha de erva ou qualquer porra incriminadora no banco de trás.

Puta merda... por favor, que não aconteça agora o que sempre acontece nos seriados de TV.

Eu olho para Camryn e balanço discretamente a cabeça.

Ela arregala os olhos.

— O que foi que eu falei?

Eu apenas sorrio, ainda balançando a cabeça, porque é só isso que posso fazer, na verdade.

O policial funga e depois mastiga a bochecha por dentro. Seus olhos vêm e vão entre mim e Camryn várias vezes e ele não diz uma palavra, o que só aumenta a nossa tensão.

— Da próxima vez, não deixem a porta escancarada assim — o policial diz, sua expressão tão neutra quanto esteve o tempo todo. — Seria uma pena alguém passar e arrancar a porta de um Chevelle 1969 em tão bom estado.

Um sorriso discreto ilumina o meu rosto.

— Com certeza.

O policial parte antes de nós, que ficamos dentro do carro estacionado por um mais um momento.

— “Pode fazer uma busca no carro, se quiser”? — repito.

— Pois é! — ela ri, jogando a cabeça para trás. — Eu não queria dizer isso. Escapou.

Eu rio também.

— Bom, parece que seu monólogo inocente... que, a propósito, me dá um pouco de medo; acho que aquela sua amiga bipolar tá te contagiando... deixou o policial com peninha e livrou a nossa cara.

Eu apoio as mãos no volante.

Ela estava sorrindo e provavelmente ia comentar minha piadinha com Natalie, até que vê de novo minha mão ensanguentada. Então se aproxima de mim e a pega delicadamente.

— A gente precisa limpar isso antes que infeccione — ela diz. Olha mais de perto e começa a tirar pequenos fragmentos de grama e terra em volta e dentro do ferimento. — Tá muito feio, Andrew.

— Não é tão grave assim — digo. — Não vai precisar de pontos.

— Não, você precisa é apanhar. Nunca mais faz isso. Tô falando sério. — Ela pega um último fragmento e depois se debruça por cima do encosto, procurando o pequeno isopor no banco de trás.

Eu viro a cabeça e só vejo a bunda dela saindo do short. Com minha mão ensanguentada, enfio o dedo dentro do elástico da calcinha do biquíni e o estalo sobre a pele dela. Ela não se assusta, mas revira os olhos quando para de remexer no banco traseiro, com uma garrafa d’água na mão.

— Enxágua isso — ela ordena, me passando a garrafa.

Eu abro a porta, pego a garrafa, estendo a mão para fora e derramo água sobre o ferimento.

Enquanto procura algo na bolsa, ela diz:

— Da próxima vez que você ficar puto e descarregar a raiva em algum objeto, vou pôr oficialmente o seu nome na minha Lista de Psicopatas. — Ela me passa um tubo de pomada.

Eu só balanço a cabeça e pego o tubo. Acho que não dá pra discutir com ela quanto a isso.

Ela aponta para a pomada e me manda aplicá-la logo. Eu rio e digo:

— Você parece uma sargenta.

Camryn me dá um soco de brincadeira no braço (machucando a própria mão, na verdade) e me acusa de insinuar que ela é gorda. É tudo brincadeira, e acho que é sua maneira de me ajudar a não pensar no que aconteceu. Depois de minutos, estamos conversando sobre música e sobre os bares ou clubes onde podemos tocar a caminho de Nova Orleans.

Sim, num certo momento decidimos que, não importando onde vamos parar ou quanto tempo vamos ficar, temos que visitar nosso lugar favorito à margem do Mississippi, haja o que houver.

~~~

Isso foi há dois dias. Hoje estamos acomodados num belo hotel no grande estado do Alabama.


Camryn


26

— TÁ EMPOLGADA com o que a gente vai fazer hoje à noite ou precisa respirar num saco de papel? — Andrew pergunta, saindo do banheiro com uma toalha enrolada na cintura.

— As duas coisas — respondo. Deixo o controle remoto sobre o criado-mudo e me sento na cama. — Conheço a música, mas é minha primeira apresentação solo. Por isso, sim, tô surtando um pouco.

Ele remexe na sua mochila perto da TV e acha uma cueca limpa. A toalha cai no chão. Eu inclino a cabeça, admirando sua bunda sexy da cama. Ele veste a cueca e ajeita o elástico na cintura.

— Você vai botar pra quebrar — ele diz, virando-se para mim. — Ensaiou um monte e já tá afiada. E se eu achasse que você não tava preparada, eu falaria.

— Eu sei que falaria.

— Bom, pronta pra trabalhar? — ele pergunta, terminando de se vestir.

— É. Acho que sim. Como eu tô?

Eu me levanto e dou uma volta, usando um top minúsculo preto com alcinhas finas e um jeans apertado.

— Peraí — eu exclamo, levantando o dedo. Calço minhas novas botas três quartos reluzentes e fecho o zíper na lateral. Então giro e faço pose de novo, exagerando um pouco.

— Insuportavelmente sexy, como sempre — ele elogia com um sorrisão, e então se aproxima de mim e passa a mão na minha trança.

Posso estar me apresentando sozinha cantando “Edge of Seventeen” da Stevie Nicks hoje, mas por duas horas, antes de subir no palco, vou trabalhar como garçonete e Andrew vai limpar mesas. Ganhei dele! Eu consegui o emprego mais legal.

A casa está lotada quando chegamos, às 19h. Adoro a atmosfera deste lugar. O palco é de bom tamanho, mas a área das mesas e a pista de dança são enormes. E está cheio, o que me deixa mais nervosa ainda. Eu vou até a cozinha, apertando a mão de Andrew, abrindo caminho no meio da multidão. Com estes empregos temporários, tivemos a sorte de trabalhar juntos por algumas noites. Quase todos os serviços que pegamos durante a viagem, desde a Virgínia, foram esporádicos. Eu trabalho como arrumadeira aqui e ali, enquanto Andrew trabalha de garçom ou até substitui algum leão de chácara. Ele pode não ser o tipo bombado (ainda bem, porque acho isso nojento), mas seus músculos são grandes o suficiente para ele ser contratado com facilidade. Por sorte, ele não precisou arrastar ninguém para fora pela camisa, nem apartar nenhuma briga.

Nosso chefe pelos próximos dias, German — é o nome dele mesmo, apesar de ele definitivamente não ser alemão, e sim o típico caipira do Meio-Oeste americano —, entrega a Andrew um avental branco e um broche que o identifica como “Andy”.

Eu seguro o riso, mas Andrew percebe a minha expressão divertida.

German esfrega sua mão roliça como uma salsicha no nariz, limpa-a no jeans e diz:

— Quando o povo levantá de uma mesa e terminá de recoiê as porra deles toda, cê vai lá e deixa a mesa limpinha pro próximo cliente. — Ele agita o dedo para Andy, hã, isto é, Andrew. — E não toca nas gorjeta. São só pras garçonete, tá me entendeno?

— Sim, senhor — Andrew diz. Quando German baixa os olhos para seu bloco de pedidos por um segundo, Andrew diz para mim, sem emitir som: Que porra...? E eu tento endireitar a boca e evitar sorrir quando German olha para nós de novo.

German olha para mim, mas olha mesmo, totalmente diferente de como estava olhando para Andrew agora há pouco. Ele abre um sorriso amarelo e diz:

— E ocê só pricisa fazê exatamente essa carinha que tá fazeno agora. Abre esse sorriso lindo e enche os bolso cas gorjeta.

Fico imaginando o que as outras garçonetes que trabalham aqui em tempo integral têm que aguentar desse cara.

Pisco meus olhos azul-bebê para ele e digo, com um sotaque caipira doce e sedutor:

— Pode deixá, seu German. E mais tarde, quando meu turno terminá, vô tê que ir lá pra dentro e retocá a maquiage antes de me apresentá, o senhor entende, né?

Noto que Andrew arregala os olhos e parece mais intrigado, mas eu continuo dando atenção a German, que já está comendo na minha mão de um jeito que, se eu o mandasse lamber o chão, ele falaria: Diz quando é pra pará, tá?

Andrew

Esse sotaque de bela do Sul que surgiu do nada me deixou morrendo de tesão. Vou ter que conversar com ela a respeito disso mais tarde.

Eu ponho meu broche, amarro o avental nas costas e pego a espécie de bacia de plástico que German aponta quando olho para ele. Cacete, não me incomoda fazer esse tipo de trabalho, mas German é um caipirão babaca, que espero que fique longe de mim pelas próximas duas horas. E ele está precisando de um desodorante. A porra do tubo inteiro, quero dizer. Ele realmente não combina com esse lugar. Parece uma bandeira confederada pendurada na janela de uma mansão de 400 mil dólares. O bar e restaurante até que é bem decorado. Por dentro, pelo menos.

Eu me dirijo para a área das mesas com a bacia debaixo do braço e vou para a primeira mesa vazia que vejo. Pego todo o lixo, os pratos sujos cheios de fritas e bolinhos que sobraram e jogo tudo dentro da bacia. Depois limpo a mesa com o trapo que tiro do bolso do avental e endireito os potes de ketchup e molho de churrasco. É tudo muito automático, diferente do serviço de garçonete, e acho que por isso somente Camryn precisou fazer uma hora de treinamento ontem para começar a trabalhar hoje. Ela pode ter o emprego que rende gorjetas, no qual pode usar seu charme sexy, mas precisa aguentar o chefe nojento e tarado. E eu tô adorando isso. Bem feito pra ela por tirar sarro do meu emprego de limpar mesas. Ela fez piadinha, me chamando de “escória” do bar. Bem, espero que ela não ache que vou tirar o traseirinho magro dela da reta, caso German resolva avançar o sinal. Ela vai ter que se virar sozinha.

Eu limpo mais algumas mesas, deixando uma gorjeta de cinco dólares numa e outra de vinte na outra. Quando estou para voltar para a cozinha para esvaziar a bacia, sou parado por quatro garotas numa mesa perto do balcão do bar.

— Ei, gatão — uma das mulheres mais velhas diz, me chamando com um dedo. — Podemos pedir nossas bebidas pra você?

— Sinto muito, senhora, mas eu só limpo as mesas.

Eu tento me afastar, mas outra mais bonita me impede.

— Aposto que se a gente pedisse pra você ser nosso garçom, você seria promovido. — Seus olhos estão vidrados e sua cabeça balança um pouco. Eu noto, porque é difícil não notar, seus peitos enormes saindo do top apertado. Ela os empina mais ainda.

— Bom, vocês podem pedir — eu digo, também mostrando meu charme, sorrindo com o canto da boca. — E se a chefia deixar, serei seu a noite toda.

As quatro se entreolham numa espécie de conversa silenciosa. Já estão comendo na minha mão.

Camryn chega atrás de mim carregando uma bandeja cheia de copos de uísque e um copo já lotado de notas. Eu me pergunto se aquele é o dinheiro das gorjetas ou o pagamento dos drinques. Isso está me deixando ansioso.

Ela dá um sorrisinho para mim, olhando para a mesa das mulheres, e depois rapidamente para mim de novo.

— Ele está incomodando vocês? — ela pergunta.

Eu sei que ela não está com ciúmes; hoje só o que importa é a competição entre nós dois. E ela vai fazer tudo o que puder para impedir que eu ganhe a pequena aposta que fizemos no carro a caminho daqui:

— Você acha que não consigo ganhar gorjetas só porque tô limpando mesas?

— Não consegue — ela disse. — Copeiro não ganha gorjeta.

— Pense bem — eu disse, olhando-a do banco do motorista. — É um bar cheio de mulheres e álcool. Aposto que consigo ganhar gorjetas.

— Ah, é mesmo? — ela perguntou, estufando os lábios.

— Sim — eu disse, e então aumentei o cacife, porque estava me sentindo ousado: — Na verdade, aposto que consigo ganhar mais gorjetas do que você.

Camryn riu.

— É sério? Quer mesmo apostar isso? — Ela cruzou os braços e balançou a cabeça como se eu estivesse dizendo algo ridículo.

— Quero — eu disse, mesmo sabendo que deveria ter dito Não, tô brincando.

Mas eu não disse não, e agora estou amarrado a essa aposta, e se Camryn ganhar, vou ter que fazer uma massagem de uma hora nela por três noites seguidas. Uma hora é muito tempo de massagem. Fico com os braços cansados só de pensar.

A mulher mais velha responde para Camryn:

— Não, ele não tá incomodando nem um pouco, lindinha. — Ela me olha de alto a baixo como se quisesse arrancar minha roupa e me lamber, apoiando o queixo nas duas mãos. — Ele pode ficar aqui o tempo que quiser. Cadê o seu chefe?

— Ele tá por aqui — Camryn diz. — É só procurar um gordão de uniforme. O nome dele é German.

— Obrigada, gata — a mulher diz, e volta a olhar para mim.

Essa mulher, admito, meio que me dá medo. E como ela parece ser a líder da matilha, decido que preciso sair dali antes que ela ache que estou mesmo a fim dela, porque aí eu é que vou precisar da ajuda de Camryn pra sair da enrascada em que me meti.

— Tenham uma ótima noite, madames — digo com um sorriso acolhedor, e me viro para ir embora.

Sinto uma mão deslizando para dentro do bolso do meu avental. Eu paro e olho para a mão que a mulher já está tirando do meu bolso. Ela está me encarando com aquele famoso olhar cheio de tesão.

— Pra você também, docinho — ela diz.

Pisco para ela e sorrio para as outras três enquanto me afasto casualmente. Quando chego à cozinha, esvazio a bacia, enfio a mão no bolso e tiro dele três notas de vinte dólares.

Porra, talvez aquela aposta não tenha sido tão ridícula, no fim das contas.

Duas horas depois...

A aposta foi ridícula, sim.

— 240, 241, 246, 256. — Camryn fica contando suas gorjetas, agora que nosso curto turno acabou. Ela dá um sorrisinho e acrescenta: — E você, quanto conseguiu?

Estou tentando ficar sério para que minha decepção pareça minimamente genuína, mas ela não está facilitando. Por isso pego meu dinheiro, conto de novo e respondo:

— 82 dólares.

— Bom, até que não tá ruim pra um copeiro, admito — ela diz, embolsando sua grana.

— Como assim, admite? — pergunto, desatando o avental e tirando-o. — Vai perdoar a aposta?

— Pfah! De jeito nenhum.

German chega atrás de nós.

— É bom que a cantoria docês preste. E nada dessas merda de rap, nem musiquinha new age metida a besta. — Ele estala os dedos rapidamente, como se estivesse tentando lembrar algum exemplo, mas logo desiste. — Cês num tão no Ídolos.

— Entendido — Camryn diz, com aquele seu sorriso doce.

German, com um sorriso de babacão na cara, desperta do feitiço dela e, ao se afastar, rosna quando passa por mim. Melhor isso do que me olhar do jeito que ele olha para Camryn, por isso não vou reclamar.

Eu me viro para Camryn.

— Não fica nervosa. — Eu seguro as mãos dela. — Já falei, você vai botar pra quebrar.

Ela balança a cabeça nervosamente. Então solta um suspiro rápido, fazendo bico, e respira fundo.

— Vou pegar a guitarra enquanto você se prepara — digo.

— Tudo bem.

Eu a beijo nos lábios e vou até o carro pegar a guitarra elétrica que ela me deu de presente de aniversário, que está no porta-malas. Apesar de “Edge of Seventeen” ser o solo dela, o próprio riff da guitarra é tão conhecido que estou quase tão nervoso quanto ela por ter que tocá-lo. Tudo bem, talvez não tão nervoso — é uma música até bem fácil. O que me deixa um pouco tenso é o medo de estragar o número dela. É só por causa dela que o show de hoje me deixa tenso.

Eu subo no palco e encontro o baterista, Leif, que conhecemos ontem, se preparando.

— Obrigado por tocar com a gente, cara — agradeço.

— Sem problemas — Leif diz. — Já toquei essa várias vezes num bar da Geórgia onde eu trabalhava, uns anos atrás.

Camryn ficou feliz por encontrar um baterista que conhece a canção. Ela estava preparada para se apresentar só comigo, sabendo que não seria a mesma coisa sem a bateria. Mas quando conhecemos Leif ontem, durante o treinamento dela como garçonete, e ele concordou em tocar conosco esta noite, acho que Camryn se sentiu bem mais confiante.

Eu passo a alça da guitarra pelo ombro assim que Camryn aparece no palco.

Ela vem direto na minha direção, eu encosto no seu ouvido e digo:

— Você tá gostosa.

Ela fica vermelha e olha para sua roupa. Ela trocou o top preto bonitinho que estava usando por outro de seda, também preto, com um decote nas costas que expõe sua pele quase até a cintura. O colar que comprei para ela brilha sobre a seda preta na frente. E ela soltou o cabelo. Adoro a trança que ela sempre usa, mas devo dizer que ela fica sexy em outro nível com o cabelão sedoso e louro caindo sobre os ombros.

O vozerio no bar ecoa pelo ambiente espaçoso, alto até enquanto Leif testa o bumbo da bateria atrás de nós. Todas as mesas estão ocupadas, bem como os bancos junto à parede dos fundos. Minhas quatro “amigas” ainda estão aqui e migraram de seu lugar para uma mesa mais próxima do palco. Elas parecem intrigadas com minha transformação de copeiro em guitarrista. Normalmente, a essa altura, eu estaria procurando na plateia minha “vítima” da noite, mas hoje é diferente, e não vamos fazer nada disso. Camryn está nervosa e concentrada demais para tentar nossa brincadeira de sempre.

Depois que finalmente nos preparamos e estamos prontos para começar, Camryn prende a respiração por um momento e olha para mim.

Eu espero que ela me dê o sinal, e quando a vejo acenar, começo a tocar, e todos os olhos na multidão se viram para nós. Essa introdução da guitarra sempre chama a atenção de todos numa casa lotada. E Camryn, assim que começa a cantar, como sempre acontece também comigo, se transforma em alguém completamente diferente, a ponto de me deixar atordoado. Ela é a dona da canção. Está muito diferente de como estava em todos os nossos ensaios. Confiança e sensualidade derramam de cada verso da canção e de cada movimento seu, e todo o meu corpo reage a isso.

— Ooo, baby, ooo, ooo! — eu acompanho no refrão.

Mas todos estão olhando para ela, até minhas quatro amigas, que sei que de início haviam se aproximado para me olhar. Não, agora elas pertencem sobretudo a Camryn, e isso me deixa orgulhoso.

Antes mesmo que termine a primeira estrofe, a pista de dança já está lotada. A energia e o sexo na voz de Camryn, misturados com o fascínio de todos com sua apresentação, me fazem perder o controle, e eu martelo aquele riff com mais devoção do que antes.

— Ooo, baby, ooo, ooo!

A cada poucos segundos, ouço uma voz gritar ao fundo:

— Huuuuu! — E também cada vez que Camryn solta uma nota tocante.

E eu não me canso disso.

Canto a plenos pulmões junto com ela nos dois refrões seguintes, e sei que a quarta estrofe, aquela em que ela sempre se embanana, vem a seguir. Olho para ela, ainda agitando a palheta rapidamente sobre as cordas, com as costas arqueadas, e não vejo nenhum sinal de nervosismo em seu rosto. Ela está no controle; posso perceber, só de olhar, que de jeito nenhum ela vai errar.

E então a letra sai tão rápida e impecavelmente de seus lábios que sinto meu rosto esticado até o limite por um sorriso quando canto junto com ela a todo volume o refrão seguinte.

Porra, minha gata tomou posse da canção. Te cuida, Stevie Nicks!

Passando a metade da canção, Camryn canta: Oooo! E sua voz some naquela parte sombria da melodia que permite um breve descanso à sua voz.

Mas o solo de guitarra continua. É cansativo, mas meus dedos não param, sem errar uma nota.

Camryn e eu nos entreolhamos e temos um momento só nosso. Então ela volta a cantar, e eu canto junto no momento certo.

Ela continua cantando, suas duas mãos seguram o suporte do microfone, seus olhos se fecham quando ela berra com tanta emoção:

— Yeah! Yeah!

Então ela olha para mim de novo e continua me encarando enquanto solta a estrofe seguinte, como se estivesse cantando apenas para mim.

Calafrios percorrem a minha espinha. Eu sorrio e continuo tocando até a canção acabar.

A plateia explode com uivos e gritos. Camryn agradece as palmas primeiro, depois eu. Ela está com um sorriso enorme, olhando para a multidão, e eu fico meio comovido por dentro.

Sem tirar a guitarra, que empurro para as costas, me aproximo de Camryn e a levanto do chão em meus braços. Os assobios e gritos vêm de todos os lados, mas a única coisa que eu noto é Camryn me olhando. Eu a beijo profundamente, e a multidão assobia e grita ainda mais.

Antes de a noite acabar, fazemos um show completo de dez canções para uma multidão cada vez maior, com o passar das horas. Voltamos a cantar algumas das nossas favoritas: “Barton Hollow”, “Hotel California” e “Birds of a Feather”, entre outras, e cada canção parece agradar mais ao público. Não canto sozinho esta noite, embora Camryn chegue a me pedir isso. A noite foi dela e só dela. Me recuso a ser o centro das atenções, mesmo por apenas uma canção.

Voltamos ao hotel às duas da manhã, e eu pago de bom grado a aposta que perdi.


Camryn


27

— GERMAN PARECE achar que a gente vai ficar muito tempo aqui — eu digo, com o lado direito do rosto encostado no colchão. — Eu falei pra ele que era só temporário.

As mãos mágicas de Andrew pressionam os dois lados das minhas costas dos ombros até a cintura, e eu viro massa de modelar em suas mãos. Fico deitada ali e curto essa massagem como se nunca tivesse sido massageada na vida. Mal consigo abrir os olhos. Ele está sentado sobre meu corpo quase nu, a cavalo sobre minha cintura.

— É, ele me puxou de lado uma hora e perguntou a que horas a gente ia tocar amanhã. — Andrew ri e aperta as pontas dos dez dedos com força na minha pele, mexendo as mãos num firme movimento circular.

Eu gemo debaixo dele.

— A gente pode ficar mais uns dias — ele diz —, mas acho que devíamos partir logo.

— Concordo. E também, os mosquitos em Mobile são horríveis! Você viu que enxame apocalíptico em volta das lâmpadas quando a gente saiu de lá?

Andrew ignora a pergunta e diz:

— Você foi sensacional hoje. Eu sabia que você ia mandar bem, mas pra falar a verdade, não tava esperando aquilo.

Eu finalmente abro os olhos e espio pela janela.

— O que, exatamente? — pergunto.

Suas mãos não param de massagear minhas costas.

— Você subiu no palco e tomou posse da canção. Você tem um talento natural.

— Não sei se tenho — respondo. — Mas tô orgulhosa de mim mesma. Sério, não sei o que deu em mim. Esqueci o nervosismo e mergulhei de cabeça.

— Bom, funcionou — ele diz.

— Só porque você tava lá comigo — eu saliento.

Ficamos em silêncio por vários minutos, eu de olhos fechados, com sua massagem ameaçando gradualmente me mandar para a terra dos sonhos. A circulação ao redor dos meus olhos parece aliviar; minha cabeça toda está formigando, e minha nuca se arrepia quando ele afunda os dedos no meu couro cabeludo.

Antes que passe uma hora, começo a me sentir culpada por fazê-lo trabalhar tanto tempo e digo:

— Se você estiver cansado, pode parar.

E quando ele não para, eu o faço parar, virando o corpo e me deitando de costas. Ele fica em cima de mim e me beija de leve na boca. E nós nos olhamos por um momento, um examinando os olhos do outro, estudando os lábios. Sinto-o pressionar meu corpo lá embaixo, sua boca se fecha sobre a minha num beijo apaixonado e ele começa a fazer amor comigo.


Andrew


28

ESTAMOS NA ESTRADA de novo, em algum lugar de uma rodovia entre Gulfport, Mississippi e Nova Orleans. O dia está perfeito, com céu azul e calor na medida certa para que possamos viajar de janelas abertas, sem sentir necessidade de ligar o ar-condicionado do carro. Camryn está dirigindo e eu descanso no banco do passageiro, numa posição bem parecida com a sua de sempre, com um pé para fora da janela.

Ficamos em Mobile uma semana e pagamos o quarto de hotel, toda a comida e a gasolina só com uma fração do dinheiro que ganhamos tocando e das gorjetas de Camryn como garçonete. Minhas gorjetas de copeiro foram só uma gota no oceano, comparadas com as dela.

Meu celular vibra no bolso da minha bermuda preta de lona e eu atendo.

— E aí, mãe, tudo bem?

Ela diz que sente muito a minha falta e logo começa a fazer perguntas sobre os meus checkups.

— Não, eu tô fazendo, sim — digo. — É, fiz tomografia esses dias num hospital em... Não, eles só ligaram pro dr. Masters pra pedir minha ficha e... Tá, mãe. Eu sei. Eu tô me cuidando. — Olho para Camryn, que está sorrindo. — Camryn não me deixa faltar. É. Bom, agora a gente tá indo pra Nova Orleans, não sei quanto tempo a gente vai ficar lá, mas depois vamos passar por aí pra te visitar, tá?

Depois que eu desligo, Camryn pergunta:

— No Texas?

Imediatamente, sinto que ela está pensando a mesma coisa que pensou na nossa primeira viagem, mas ela me desmente quando diz:

— Pra mim não tem problema nenhum. Só tô curiosa pra saber nosso destino. — Ela sorri, e percebo na hora que não está escondendo nada.

— O Texas não te preocupa? — eu pergunto.

Ela olha de novo para a estrada ao chegar numa curva, depois volta a olhar para mim.

— De jeito nenhum. Não como me preocupava antes.

— O que te fez mudar de ideia? — Eu tiro o pé da janela e me viro para olhá-la melhor, intrigado pela mudança de opinião.

— As coisas estão diferentes agora — ela diz. — Mas de um jeito bom. Andrew, o mês de julho foi difícil. Pra nós dois. Não sei como eu sei, mas acho que eu já previa desde o início que alguma coisa ruim ia acontecer quando a gente chegasse ao Texas. Por um tempo, achei que eu só estivesse preocupada por aquela ser a última parada da nossa viagem. Mas agora não sei mais. Era como se eu soubesse...

Eu sorrio um pouco.

— Acho que eu entendo — digo. — Então preciso fazer uma pergunta.

Ela olha para mim, esperando.

— A gente vai parar definitivamente um dia?

Sua reação não é a que eu esperava. Eu esperava que seu sorriso sumisse e o momento se perdesse, mas em vez disso, seus olhos brilham, e sinto um ar de calma emanando dela.

— Um dia — ela diz. — Mas ainda não. — Ela olha novamente para a estrada e continua: — Sabe, Andrew, quero ir pra Itália um dia. Pra Roma. Sorrento. Talvez não agora, nem mesmo nos próximos cinco anos, mas espero ir pra lá. Pra França também. Pra Londres. Adoraria até conhecer a Jamaica, o México e o Brasil.

— É mesmo? Ia levar um tempão visitar todos esses lugares — eu digo, mas não de forma a desencorajá-la. Eu também adoraria.

O vento da janela aberta roça seu cabelo, soltando mais fios de sua trança, que dançam ao redor do seu rosto radiante.

— Eu me sinto livre com você — ela diz. — Sinto que posso fazer qualquer coisa. Ir a qualquer lugar. Ser o que eu quiser. — Seus olhos pousam em mim mais uma vez e ela continua: — A gente vai parar logo, mas nunca quero parar definitivamente. Isso faz sentido?

— Com certeza — respondo. — Eu não teria dito melhor.

Chegamos à divisa da Louisiana logo depois que escurece, e Camryn para no acostamento.

— Acho que não consigo mais dirigir — ela diz, esticando os braços para trás e bocejando.

— Eu falei há uma hora que você precisava me deixar dirigir.

— Bom, agora eu tô deixando. — Ela fica ranzinza quando está cansada.

Ambos saímos para trocar de lugar, mas paramos quando nos encontramos na frente do carro.

— Você viu onde a gente tá? — pergunto.

Camryn olha para os dois lados da rodovia deserta. Ela dá de ombros.

— Hã, no meio do nada?

Eu rio baixinho e aponto para o campo. Depois aponto para as estrelas.

— A última vez não valeu, lembra?

Seus olhos brilham, mas sinto que ela está dividida. Não levo muito tempo para entender por quê.

— É um campo plano e aberto. E não tem vaca nenhuma até onde a vista alcança — digo.

Eu sei que absolutamente nada que eu disser vai tranquilizá-la quanto à possibilidade de cobras, mas estava tentando ser sutil e dar uma de idiota, esperando que ela esquecesse isso.

— E as cobras? — ela pergunta, não esquecendo.

— Não deixe seu medo de cobras estragar uma oportunidade perfeita de finalmente dormir sob as estrelas.

Ela estreita os olhos para mim.

Resolvo apelar para a artilharia pesada e simplesmente imploro.

— Por favor? Por favorziiiiinho? — Eu me pergunto se minha cara de gatinho do Shrek é tão eficaz com ela quanto a dela sempre é comigo. Meu instinto inicial foi jogar a desgraçada em cima do ombro e carregá-la à força, mas também estou curioso quanto à eficiência da minha técnica implorativa.

Ela rumina por um minuto e finalmente cede ao meu charme.

— Tá — ela admite, um pouco exasperada.

Eu pego o cobertor do porta-malas e nós passamos juntos por cima da vala e da cerca baixa, depois cruzamos o enorme campo até que encontramos um bom lugar, vários metros à frente. Tenho uma sensação de déjà vu. Estendo o cobertor na grama seca e verifico rapidamente se há cobras nos arredores, só para deixá-la mais tranquila. Nós nos deitamos lado a lado, de costas, com as pernas esticadas sobre o cobertor, cruzando os tornozelos. E olhamos para a imensidão escura e infinita do céu cheio de estrelas. Camryn aponta várias constelações e planetas, me explicando cada um em detalhes, e eu fico impressionado em ver o quanto ela sabe, e como consegue reconhecê-los.

— Eu nunca imaginei que você fosse tão... — tenho dificuldade para encontrar as palavras certas.

— Tão culta? — Sinto que ela sorri discretamente ao meu lado.

— Bom, eu... não quis dizer que acho você...

— Uma garota desmiolada e superficial que não sabe que a Via Láctea não é uma comida de bebê, nem que a teoria do Big Bang é mais do que um seriado de TV?

— É, alguma coisa assim — digo, só para fazer o jogo dela. — Não, mas falando sério, como sabe tudo isso? Nunca pensei que você se interessasse por ciências.

— Eu queria ser astrofísica. Decidi isso quando tinha uns 12 anos.

Fico completamente chocado com sua confissão, mas continuo olhando as estrelas com ela, meu sorriso aumentando.

— Bom, na verdade eu queria ser isso, mais física e astronauta e também trabalhar na NASA, mas acho que eu tava meio iludida, na época. Obviamente.

— Camryn — eu digo, ainda tão surpreso que mal sei o que dizer. — Por que você nunca me contou isso?

Ela dá de ombros.

— Não sei — ela diz. — O assunto nunca surgiu. Você nunca sonhou em ser alguma coisa diferente do que é?

— Acho que sim — respondo. — Mas, amor, por que você não foi atrás disso? — Eu levanto o corpo do cobertor e me sento. Isso pede toda a minha atenção.

Ela olha para mim como se eu estivesse exagerando.

— Provavelmente pelo mesmo motivo que você não foi atrás do que você queria ser. — Ela dobra os joelhos e cruza as mãos sobre a barriga. — O que você queria ser?

Não quero falar de mim agora, mas acho melhor responder, já que ela me perguntou duas vezes.

Eu também dobro os joelhos e apoio os antebraços sobre eles.

— Bom, à parte o clichê de sonhar em ser um astro do rock, como todo mundo, eu queria ser arquiteto.

— Sério?

— Sim — digo, balançando a cabeça.

— Era isso que você tava estudando antes de largar a faculdade?

Eu balanço a cabeça.

— Não — digo, e rio um pouco do absurdo da minha resposta. — Eu tava fazendo faculdade de ciências contábeis e administração.

Camryn franze o cenho.

— Ciências contábeis? Tá falando sério? — Ela está quase rindo.

— Pois é, você vê? — digo, rindo também. — Aidan me ofereceu sociedade no bar dele. Na época, eu só via cifrões na minha frente, e achei que ter um bar seria uma oportunidade e tanto. Eu poderia tocar lá e... não sei o que eu tava pensando, mas topei a proposta do meu irmão na hora. Aí ele começou a dizer que eu precisava entender a parte administrativa do negócio, essa porra toda. Eu entrei na faculdade, e foi então que a ideia foi por água abaixo. Eu tava cagando pras ciências contábeis, pra administrar um bar ou ter que lidar com todos os aspectos negativos de ter um negócio. — Paro por um momento e então digo: — Acho que, como você disse, eu tava iludido, queria todos os aspectos positivos, mas nenhum negativo. Quando percebi que não era assim que funcionava, falei: foda-se.

Ela se senta junto de mim.

— Então por que você não foi atrás de ser arquiteto?

Eu dou um sorrisinho.

— Provavelmente pelo mesmo motivo que você não foi atrás de ser astrofísica.

Ela apenas sorri, sem ter como rebater isso.

Eu olho para o cabelo louro de Camryn e para o campo.

— Acho que somos só duas almas perdidas nadando num aquário — declaro.

Seus olhos se estreitam.

— Já ouvi isso em algum lugar.

Eu sorrio e aponto rapidamente para ela.

— É Pink Floyd. Mas é verdade.

— Você acha que a gente tá perdido?

Eu inclino um pouco a cabeça, olho para as estrelas atrás dela e digo:

— Na sociedade, talvez. Mas juntos, não. Acho que estamos exatamente onde precisamos estar.

Nenhum dos dois diz mais nada por um bom tempo.

Ficamos deitados um ao lado do outro, fazendo o que fomos fazer ali. Enquanto olho para a escuridão infinita daquele céu, fico totalmente assombrado com o momento. Acho que encontro um pouco de mim mesmo naquelas estrelas. Por um bom tempo esqueço a música, a estrada, o tumor que quase me matou ano passado e o momento de fraqueza que quase matou o espírito de Camryn. Esqueço que perdemos Lily e que sei que Camryn parou de tomar anticoncepcional e não me contou. E esqueço também que parei de gozar fora por um motivo e não contei a ela.

Eu realmente esqueço tudo. Porque é isso que um momento assim faz com você. Faz você se sentir algo tão pequeno, dentro de algo tão imenso que está além da compreensão. Apaga todos os seus problemas, suas dificuldades, todas as suas necessidades, aspirações e desejos mundanos, te obrigando a perceber o quanto tudo isso na verdade é insignificante. É como se a Terra ficasse completamente silenciosa e imóvel, e sua mente só pudesse entender ou sentir a imensidão do Universo, e você fica sem fôlego pensando no seu lugar dentro dele.

Quem precisa de psiquiatras? Quem precisa de acompanhamento psicológico, mentores e palestras motivacionais? Vão todos pra casa do caralho. Apenas olhe para o céu noturno e se deixe perder nele de vez em quando.

~~~

Algo desagradável me acorda na manhã seguinte. Farejo o ar de olhos ainda fechados, minha mente não totalmente acordada, mas meu corpo e meu olfato funcionando antes de mim. Há uma brisa fresca no ar e minha pele parece úmida, como se eu estivesse coberto de orvalho. Virando para o outro lado, farejo o ar de novo e o cheiro é ainda pior do que antes. Ouço algo raspando nas proximidades, e finalmente meus olhos se abrem um pouco. Camryn está capotada ao meu lado. Mal consigo ver sua trança loura em cima do cobertor entre nós. Ela parece estar encolhida em posição fetal.

Que fedor é esse?!

Cubro a boca com a mão e começo a me levantar do cobertor. Camryn começa a se mexer ao mesmo tempo, virando de barriga para cima e esfregando o rosto e os olhos com as duas mãos. Ela boceja. Quando me sento e abro completamente os olhos, Camryn pergunta:

— Que fedor da porra é esse? — e faz uma careta.

Estou para responder que deve ser o bafo dela, quando seus olhos azuis ficam arregalados de pavor, ao olhar atrás de mim.

Instintivamente, eu me viro rápido.

Uma manada de vacas está a poucos metros de nós, e quando percebem que estamos nos mexendo, elas se assustam.

— Meu Deus! — Camryn se põe de pé num pulo mais rápido do que na noite em que a cobra subiu no nosso cobertor, me fazendo pular também.

Duas vacas mugem, gemem e grunhem, recuando para perto das outras, agitando a manada ainda mais.

— Acho melhor a gente sair correndo — digo, pegando Camryn pela mão e disparando com ela.

Nem paramos para pegar o cobertor, de início, mas eu paro e me viro, segundos depois, para agarrá-lo. Camryn grita, eu começo a rir e nós desabalamos para longe das vacas, na direção do carro.

— Puta meeeerda! — eu grito, enfiando o pé num monte enorme da substância.

Camryn cacareja de tanto rir, e ambos praticamente rolamos o resto do caminho pelo campo, eu tentando raspar a bosta da sola do sapato e correr ao mesmo tempo, e os chinelos de dedo de Camryn grudando no chão, tentando acompanhar seus passos.

— Não acredito que isso aconteceu! — Camryn ri quando finalmente alcançamos o carro. Ela fica encurvada e apoia as mãos nos joelhos, tentando recuperar o fôlego.

Eu também estou sem fôlego, mas continuo a raspar incansavelmente a sola do meu sapato no asfalto.

— Puta que pariu! — exclamo, esfregando o pé para todo lado.

Camryn se senta no capô do carro, balançando as pernas.

— Agora valeu pra você? — ela pergunta, com riso na voz.

Eu fico parado, ofegando. Olho para ela, para seu sorriso lindo e radiante e digo:

— É, acho que já dá pra riscar esse item da lista.

— Ótimo! — ela diz. Depois aponta para trás de mim. — Esfrega na grama. Assim você só tá espalhando bosta pra todo lado.

Eu saltito para a grama e começo a esfregar o pé de novo.

— Desde quando você virou especialista em bosta?

— Veja lá como fala — ela avisa, se sentando no lugar do motorista.

— Por que, o que você vai fazer? — eu provoco.

Ela dá a partida no Chevelle e acelera algumas vezes. Há um brilho cruel no seu olhar. Ela apoia o braço esquerdo na janela aberta, e quando me dou conta, o carro já está passando lentamente por mim.

Eu a fuzilo com o olhar como aviso, mas seu sorriso só aumenta.

— Eu sei que você não me deixaria aqui! — grito quando ela passa.

É claro que não...

Ela se afasta cada vez mais, e de início eu pago pra ver, parado ali, vendo o carro ficar cada vez menor...

Por fim, eu saio correndo atrás do carro.


Camryn


29

A PRIMEIRA COISA que me vem em mente quando chegamos a Nova Orleans é lar doce lar. Fico empolgada quando o cenário se torna familiar: os grandes carvalhos e as lindas casas históricas, o Lago Pontchartrain e o Superdome, os bondes vermelhos e amarelos que sempre me pareceram de brinquedo. E, é claro, o Bairro Francês. Tem até um homem tocando saxofone numa esquina, e sinto que entramos diretamente num cartão-postal de Nova Orleans.

Olho para Andrew e ele sorri para mim rapidamente. Ele dá a seta e viramos à direita na Royal Street. Meu coração falha e bate forte ao mesmo tempo quando vejo o Holiday Inn. Tanta coisa aconteceu aqui há dez meses. Este lugar... logo um hotel... é tão mais do que isso para mim, para nós dois.

— Imaginei que você gostaria de ficar aqui enquanto estivéssemos na cidade — Andrew diz, com um enorme sorriso.

Como as lembranças ainda estão, por assim dizer, tirando meu fôlego, não consigo responder, por isso só balanço a cabeça e sorrio como ele.

Pegamos nossas coisas no carro e entramos no saguão. Tudo parece exatamente igual, exceto talvez as duas mulheres na recepção, quando nos aproximamos. Não me lembro delas.

Ouço vagamente Andrew perguntar sobre a disponibilidade dos quartos que ocupamos da outra vez enquanto olho ao meu redor, tentando absorver tudo.

Meu Deus, senti falta deste lugar.

— Sim, parece que esses dois quartos estão vagos — ouço uma das recepcionistas dizer. — Querem ficar com os dois?

Isso chama a minha atenção.

Andrew se vira para mim. Acho que ele quer minha opinião.

Passo a bolsa para o outro ombro e hesito por um momento, ponderando a pergunta. Não previ isso, nem que a decisão seria tão difícil.

— Hãã, bem... — Olho para Andrew e depois para a recepcionista, ainda indecisa. — Não sei. Tá, talvez a gente devesse ficar naquele onde... — Eu me interrompo, sem querer dar a impressão de que somos dois adolescentes imaturos, desta vez, e encaro Andrew com um olhar que diz tudo. — Aquele onde o pacto foi selado.

Andrew luta para se manter sério, mas vejo claramente o sorriso em seus olhos quando ele entrega o cartão de crédito à recepcionista.

Saímos do saguão logo depois e tomamos o elevador até nosso andar. Andando pelo corredor, ainda estou absorvendo tudo ao meu redor, até a cor da tinta das paredes, porque tudo faz parte de uma lembrança, por maior, menor ou aparentemente insignificante que seja. A sensação de estar aqui de novo... sinto quase que vou cair no choro de felicidade. Mas também estou empolgada, e isso me salva de me debulhar em lágrimas.

Andrew para entre as duas portas dos nossos antigos quartos, com as duas mochilas e a guitarra elétrica que lhe dei penduradas nos ombros. Ele quer comprar um estojo para a guitarra, mas ainda não fez isso.

— É estranho estar aqui de novo, não? — ele pergunta, me olhando.

— Estranho, mas de um jeito bom.

Ficamos assim por um minuto, olhando um para o outro e para as duas portas, até que finalmente Andrew se dirige para o quarto que escolhemos e passa o cartão na fechadura.

É realmente como entrar no passado. A porta se abre lentamente, e é como se todas as emoções que experimentamos naquele quarto tivessem sido deixadas ali e estivessem nos cumprimentando agora, quando entramos. Assim que pisamos lá dentro, lembro cada noite que passamos aqui, separados e juntos, como se fosse ontem. Olho para o lugar perto da cama onde eu estava quando Andrew me domou e me tornou sua. Olho pela janela para as ruas movimentadas do Bairro Francês. Revejo o dia em que Andrew se sentou naquela soleira tocando violão, e até me vejo ali, dançando e cantando “Barton Hollow”, quando achei que estava sozinha. Eu me viro para ver o banheiro, e quando Andrew acende a luz, meu olhar vai primeiro para o chão e lembro, embora vagamente, a noite em que ele dormiu ao meu lado.

Acho que às vezes as melhores lembranças se criam nos lugares mais improváveis, mais uma prova de que a espontaneidade é mais recompensadora do que uma vida meticulosamente planejada. Do que qualquer coisa meticulosamente planejada.

Eu me viro para Andrew.

— Não sei por quê, mas eu sinto... bom, sinto que todos os meses que passamos na estrada desde dezembro foram pra chegar a este lugar. Esta cidade. Este hotel. — Não acredito que estou dizendo isso, e imediatamente começo a questionar meus motivos. Pode significar tantas coisas diferentes, mas acho que o maior significado é que nós precisávamos voltar para lá.

Sim, é exatamente isso, ou pelo menos é o que eu precisava. Quando recebo essa revelação, me vejo parada naquele quarto, cercada por pensamentos em vez de objetos materiais. Olho nos olhos de Andrew, mas na verdade não é ele que vejo. O que vejo é ele no passado. Os mesmos olhos verdes magnéticos, outro ano.

Por que estou me sentindo assim?

— Talvez você tenha razão — ele concorda, e então seu tom de voz fica mais misterioso. — Camryn, o que você tá pensando agora?

— Que a gente foi embora cedo demais da última vez. — Foi a primeira coisa que pensei, e só agora que falei começo a entender o quanto pode ser verdade.

— Por que você acha isso? — ele pergunta, se aproximando de mim.

Não sinto que ele está me fazendo perguntas para as quais já sabe as respostas, desta vez. É como se ambos estivéssemos seguindo a mesma linha de raciocínio, ambos tentando entender o sentido de tudo e buscando respostas um no outro.

Nós nos sentamos no pé da cama juntos, eu com as mãos no meio das coxas, como ele, e ficamos em silêncio por vários longos segundos. Finalmente, viro a cabeça para olhá-lo à minha direita e digo:

— Eu não queria partir quando a gente partiu, Andrew. Eu sabia que nossa próxima parada, depois de Nova Orleans, seria Galveston. Eu não tava preparada pra deixar este lugar... mas não sei por quê.

E essa verdade me deixa ansiosa.

Por quê? Além de temer que o Texas significasse o fim da nossa viagem, ou mais tarde sentir que eu sabia que algo ruim iria acontecer lá, por que mais eu iria querer ficar? Eu não queria necessariamente ficar ali para sempre, só acho que partimos cedo demais.

— Não sei — ele diz, dando de ombros. — Talvez seja porque foi aqui que finalmente selamos o pacto. — Ele me dá uma cotoveladinha de brincadeira.

Não consigo deixar de sorrir.

— É, talvez, mas acho que é mais do que isso, Andrew. Acho que é porque a gente se encontrou aqui. — Eu olho para a parede, pensativa. — Não sei mesmo.

Sinto a cama se movimentar quando Andrew se levanta.

— Bom, sugiro que desta vez a gente aproveite ao máximo antes de partir. — Ele estende a mão para mim e eu a seguro. — Talvez a gente desvende esse mistério.

Eu me levanto e digo:

— Ou... talvez seja uma nova chance.

Sinceramente, não faço ideia do que me levou a dizer isso.

— Uma nova chance de quê, exatamente? — ele pergunta.

Eu fico em silêncio, pensando, e em seguida respondo:

— Isso eu também não sei...

 


CONTINUA