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Series & Trilogias Literarias
Enquanto o futuro de Escócia pende por um fio, o mais bravo dos guerreiros do reino se prepara para a batalha mais árdua: o amor. Um bando de guerreiros foram selecionados pessoalmente por Robert the Bruce para libertar a Escócia do jugo inglês. Entre eles se encontra Erik o Falcão, um perito em navegação, que toma as rédeas da luta quando Bruce se vê obrigado a exilar-se. Entretanto, Erik se encontra tomado por uma paixão devastadora por Lady Elyne de Burgh, a formosa filha de um poderoso nobre irlandês, que parece estar envolvida na trama que mantém Bruce afastado de sua pátria. Com o futuro da Escócia em jogo, o Falcão terá que decidir entre ser fiel ao seu coração ou ao seu país.
Ano de Nosso Senhor de mil trezentos e seis
Três meses depois de sua coroação na abadia de Scone como rei da Escócia, o conflito desesperado de Robert Bruce para alcançar a coroa fracassou e sua perecível rebelião é esmagada pelo rei Eduardo da Inglaterra, poderoso Martelo dos escoceses.
Excomungado pelo Papa ao ter assassinado o seu rival, açoitado sem piedade pelo rei mais poderoso da cristandade e abandonado por três quarta parte de seus concidadãos, que se negam a fazer ondear sua bandeira, Bruce não só luta pela coroa. Luta por sua própria vida. Tudo o que esta entre ele e a derrota são os dez guerreiros de sua secreta Guarda das Highlanders.
Perdida na noite dos tempos, esquecida de todos salvo de uns quantos, subjaze a lenda de uma tropa secreta de guerreiros de elite escolhidos pelo próprio Bruce dentre os rincões mais recônditos das Highlands e as ilhas Ocidentais, para formar a força de combate mais mortífera de todos os tempos. Irmanados em cerimônia secreta, formam uma força fantasma, somente identificável por suas extraordinárias qualidades, seus nomes de guerra e o leão rampante tatuado em seus braços.
Entretanto, o reino de terror do rei Eduardo não está a não ser em seu inicio. O temido estandarte do dragão se elevou, e com ele, a promessa de mostrar-se sem misericórdia. Nos escuros dias vindouros, esta elite de guerreiros confrontará a mais dura das provas, com nada menos que a liberdade de seu povo no outro lado da balança.
Prólogo
Agora que o rei Hood se congrega no baldio,
não mostra desejo de vir a cidade;
se os barões da Inglaterra o pudessem apanhar,
a força fariam tocar
a gaita em inglês:
que seja sempre tenaz
mesmo quando o vão procurar
por terra e por mar.
Canções políticas da Inglaterra
Ilha de Rathlin,
A três milhas da costa norte da Irlanda,
Idus de setembro, 1306
Robert Bruce queria que tudo cessasse, e fechou seus olhos não como um rei, mas sim como um covarde. Mas aquelas imagens seguiam assaltando-o e apareciam ante seus olhos como as cenas de um pesadelo: espadas que revoavam e entrechocavam criando uma onda de morte perpétua, flechas que caíam do céu em uma espessa chuva com a que o dia se tornava noite, o feroz bater de cascos dos enormes cavalos de batalha ingleses que esmagavam tudo que encontravam a seu passo, o trêmulo brilho prateado das cotas de malha obscurecidas pelo sangue e o barro, o horror e o medo nos rostos de seus leais companheiros de batalha enfrentando à morte. E o aroma… essa odiosa mescla de sangue, suor e loucura que penetrava em seu nariz, em seus pulmões, em seus ossos.
Levou suas mãos aos ouvidos para tampar-lhe. Mas os gemidos e gritos da morte não podiam evitar-se. Por um momento se viu retornando ao campo de batalha ensanguentado de Methven. Retornava aquele lugar no que tudo tinha saído tão horrivelmente mal, o lugar no que tinha faltado pouco para que o código de cavalaria acabasse com ele.
Mas não se tratava simplesmente de um pesadelo. Quando Bruce abriu os olhos, não se encontrou ante a ira do Eduardo da Inglaterra, a não ser ante a ira de Deus. Aquele som metálico não provinha das espadas, mas sim dos trovões. O que caía do céu não eram flechas, a não ser chuva gelada. Os horrendos alaridos não eram gritos de morte, mas sim provinham do vento. E esse incessante bater não eram cascos de cavalos, a não ser os golpes que dava o martelo do feitor sobre o escudo para marcar o ritmo dos remadores. Não obstante, o medo… o medo era exatamente o mesmo. Podia vê-lo nos rostos dos homens que o acompanhavam. Tinham plena consciência de que estavam todos a ponto de morrer. E não em um maldito campo de batalha, a não ser em meio daquele mar sacudido pela tempestade, em um navio deixado da mão de Deus, enquanto fugiam de seu próprio reino como se fossem criminosos.
«Rei Capuz», chamavam-no os ingleses. O rei proscrito. Mais humilhante ainda resultava pensar que aquilo correspondia com a realidade. Pouco menos de uma centena de homens em um par de birlinns1, isso era o que subtraía das orgulhosas forças que em um tempo pensou capazes de derrocar ao exército mais poderoso da cristandade. E agora olhem. Menos de seis meses depois de sua coroação não eram mais que uma banda de foragidos esfarrapados, apinhados em um navio à deriva, alguns tão doentes que tão somente ficava esperar a morte, outros tremendo e pálidos de medo por manter suas vidas a flutuação.
Todos salvo os highlanders. Bruce não acreditava que reconhecessem o medo nem que o próprio Lúcifer abrisse as abrasadoras portas do inferno para lhes dar a bem-vinda. E entre eles, nenhum era tão intrépido como o homem encarregado de proteger suas vidas. Erguido sobre a popa, com a chuva caindo sobre o rosto e ventos impetuosos a seu redor, lutando por firmar os cabos da vela, parecia que era algum tipo de divindade marinha pagã, disposto a apresentar batalha ante o que a natureza tivesse a bem lhe dar. Se havia alguém que pudesse tirá-los dessa, tratava-se de Erik MacSorley, ou Falcão, como o conhecia desde que se uniu a Guarda dos Highlanders, o grupo de elite secreto que Bruce tinha reunido aos guerreiros melhor capacitados do lugar. Aquele descarado lobo do mar tinha sido eleito por suas qualidades como navegante e nadador, mas também teria que admitir que os tinha muito bem postos. Parecia deleitar-se com qualquer desafio, por impossível que resultasse. Essa mesma manhã MacSorley os tinha tirado às escondidas do castelo de Dunaverty ante os narizes do exército inglês. Agora tentava cruzar o estreito canal de uns vinte e cinco quilômetros que separava Kintyre, na Escócia, da costa da Irlanda, em meio da pior tormenta que Bruce tinha presenciado em sua vida.
—Se agarrem forte, companheiros —gritou o temível capitão por cima do rugido da tormenta enquanto sorria como um demente. — Essa vai ser uma das boas.
MacSorley, como a maioria dos highlanders, tinha grande facilidade para subestimar o perigo.
Bruce prendeu a respiração em quanto que o vento, empreendendo contra a vela, levantava o navio como se pesasse menos que o brinquedo de um menino, conduzia-os através das empinadas e muito altas ondas e arrebentavam com força contra eles por estibordo. Durante um instante agonizante, o navio ficou inclinado por um dos flancos de maneira perigosa, e Bruce pensou que ali acabaria tudo, que aquele seria o momento em que o navio naufragaria. Mas uma vez mais aquele marinheiro desafiou as leis da natureza com um rápido ajuste dos cabos, e o navio voltou a endireitar-se. Embora não por muito tempo.
A tormenta se abateu de novo sobre eles com toda sua força. As ondas chegavam uma atrás da outra, como abruptos escarpados que ameaçavam fazendo-os naufragar a cada um de seus impetuosos embates. Violentos ventos formavam redemoinhos entre as águas e aumentavam contra as velas, ao tempo que umas pesadas cortinas de chuva enchiam o casco da nave sem lhes dar tempo para esgotar. O coração encolhia a cada estalo continuado e rangido daquele tempestuoso mar que se enfurecia contra o navio de madeira, fazendo que se perguntasse se seria aquela a onda que os despedaçaria e acabaria com sua mísera existência. «Jamais devia fazê-lo. Nunca deveria ter me elevado contra a força da Inglaterra e seu poderoso rei.» No mundo real, David não vencia ao Golias. No mundo real, David era massacrado. Ou dava com seus ossos no fundo de um mar tempestuoso.
Mas o highlander não estava disposto a dar-se por vencido. Permanecia ao leme, tão implacável como a tormenta, sem dar sinal algum que não poderia tirá-los dessa. Apesar disso, tratava-se de um choque de forças no que não cabia esperança alguma. O poder da natureza era devastador, inclusive para esse homem metade gaélico metade nórdico, descendente dos maiores piratas que os tempos tinham conhecido: os vikings.
Bruce ouviu um rangido aterrador instantes antes da voz do navegante clamar:
— Cuidado! — Mas já era muito tarde. Elevou a vista bem a tempo para ver como parte do mastro se precipitava sobre ele.
Quando abriu os olhos, Bruce se encontrou em meio da escuridão. Por um momento pensou que estava no inferno. Tudo que via sobre sua cabeça era uma parede de pedra negra irregular que brilhava pela umidade. Um som à esquerda reclamou sua atenção. Ao voltar-se, pareceu-lhe que caía sobre sua cabeça uma chuva de estrelas como canivetes de ponta. Assim que recuperou a visão, advertiu o movimento. Uns homens, seus homens, entravam com muita dificuldade pela rochosa borda e desabavam na entrada arqueada do que aparentava ser uma cova marinha. Não estava morto, depois de tudo. Mas não sabia se se sentia agradecido ou não. Uma morte entre as águas era preferível a que lhe teria preparado Eduardo em caso de que o apanhasse. Nisso tinham ficado seus propósitos. Seu reino se via reduzido à sombra e escura entrada de uma cova marinha.
Outro movimento, este a poucos centímetros de seu rosto, disse-lhe que inclusive esse desventurado reino no que morava podia lhe ser impugnado: uma enorme aranha negra espreitava da parede que havia sobre sua cabeça. Parecia empenhada em um fútil esforço por saltar de uma saliência da parede a outra, mas ao não poder agarrar-se à escorregadia superfície, tinha escorregado e pendia de um só fio de seda, balançando-se impotente a mercê do vento. Uma e outra vez tentava erigir sua rede sem resultados, condenada ao fracasso.
Bruce conhecia esse sentimento.
Pensou que, depois de duas derrotas devastadoras no campo de batalha, de que capturassem seus amigos e aliados, de que o obrigassem a separar-se de sua esposa e a abandonar seu reino para maior desonra, nada pior podia ocorrer. Deveria ter imaginado. A natureza tinha estado a ponto de lhe atirar o golpe final ali onde o exército inglês tinha fracassado. Mais uma vez escapava das garras do diabo, nesta ocasião graças às habilidades marinhas de MacSorley. Igual à aranha, aqueles highlanders não conheciam a rendição. Mas ele sim. Estava acabado. Pode que o mar os tivesse perdoado por esta vez, mas sua causa estava perdida, e com ela, a oportunidade de que a Escócia se livrasse do jugo da tirania inglesa.
Se em Methven tivesse seguido o conselho do guarda, tudo teria sido diferente. Mas atender obstinadamente a seu código de cavalaria, Bruce tinha decidido ignorar seus conselhos e aceitar a promessa de sir Aymer de Valence de esperar à manhã seguinte para começar a batalha. Aquele bastardo inglês tinha quebrado sua promessa, iniciando o ataque no meio da noite. Sofreram uma derrota esmagadora. Muitos de seus mais leais partidários e amigos pereceram ou foram capturados. O cavalheirismo significava a morte segura. Jamais voltaria a esquecê-lo. Tinha cometido um engano quando, ao formar sua guarda, acolheu somente pela metade às práticas guerreiras da pirataria que exerciam os highlanders. Se houvesse acolhido a elas por completo, ignorando assim o código de cavalaria, a derrota de Methven não teria tido lugar.
A aranha voltava a tentar. Nesta ocasião esteve a ponto de conseguir salvar o oco que existia entre as rochas com seu fio de seda, mas a vitória foi negada em última instância por um golpe do vento. Bruce suspirou decepcionado, identificando-se estranhamente com os vãos esforços da aranha. Talvez fosse porque lhe resultavam familiares. Inclusive depois do desastre de Methven, Bruce manteve a esperança. Depois se encontrou com os MacDougall em Dail Righ e sofreu outra derrota devastadora. Na perseguição que seguiu a essa derrota, viu-se obrigado a separar-se de sua esposa, filha, irmãs, e da condessa de Buchan, a mulher que o tinha coroado com valentia menos de seis meses atrás. Tinha mandado sua esposa ao norte junto a seu irmão pequeno, Nigel, sob o amparo da metade de sua apreciada guarda, com a esperança de reunir-se logo com eles. Mas tinha sido obrigado a fugir ao sul junto com o resto de seu exército.
Dizia-se que as mulheres estavam a salvo, que Deus as protegeria se Eduardo as apanhasse. O estandarte do dragão fazia que inclusive as mulheres se convertessem em proscritas, e dava a seus captores carta branca para a violação. Aos homens os executavam sem que mediasse julgamento algum.
Depois de Dail Righ, Bruce se escondeu entre as colinas e os brejos e evitou que MacDougall o capturasse graças a Gregor MacGregor, o Flecha, outro dos integrantes de sua Guarda dos Highlanders, que o tinha conduzido através dos campos de Lennox até encontrar o resguardo de Kintyre e o castelo de Dunaverty. Mas aquilo tinha sido uma pausa temporária. Fazia três dias que o exército inglês tinha chegado com a intenção de sitiar o castelo, e MacSorley mal tinha podido tirá-los dali com vida. Tinham sofrido muitos fracassos. Muitos.
A aranha voltava a subir por seu fio e parecia disposta a tentar uma nova tentativa. Bruce sentiu um acesso de ira irracional e por um momento se viu tentado a amassá-la com o punho. «É que não se dá conta de que é uma batalha perdida?» Aqueles pensamentos que ocupavam sua mente na nave voltaram a invadi-lo. Ao acreditar que poderia derrotar Eduardo da Inglaterra, tinha sido tão estúpido como a aranha. Nunca devia ter tentado. Nesse momento poderia estar com sua esposa e sua filha em sua casa em Carrick, encarregando-se de suas terras, em lugar de fugir para salvar a vida e ver como seus amigos e partidários morriam por ele. Aquela era uma vida da que teria gozado com gosto a não ser pela firme crença que a coroa lhe pertencia. Ele era o legítimo rei da Escócia. Mas que importância tinha isso agora? Tinha apostado tudo o que tinha, e tinha perdido. Já não ficava nada. Estava tão esgotado… Desejava fechar os olhos, embarcar no sonho e afastar-se do pesadelo. Ao mover a cabeça, viu Falcão na borda consultando com o líder da Guarda dos Highlanders, Tor MacLeod, conhecido como o Chefe. Os dois formidáveis guerreiros se dirigiram juntos para ele. O sonho teria que esperar.
A guarda secreta significava o único ponto positivo nos últimos meses. Aquela equipe de guerreiros tinha ultrapassado suas próprias expectativas. Mas nem sequer eles tinham sido capazes de evitar as desastrosas repercussões de seu engano em Methven. À medida que os guerreiros se aproximavam, Bruce viu sinais de preocupação gravados em seus aguerridos rostos. Já vinha sendo hora. Ao contrário do resto, os highlanders não pareciam desmoralizados pelas derrotas que os tinham jogado da Escócia. Imunes à debilidade fruto das emoções normais, nada parecia agitá-los. E apesar de apreciar aquela determinação e resistência, às vezes faziam que sua própria frustração se sentisse como debilidade.
—Como têm a cabeça? —perguntou MacSorley — Recebeu um bom golpe.
O mastro, recordou Bruce. Acariciou um lado da cabeça e massageou o grande galo que ali tinha aparecido.
—Sobreviverei. —«por agora», disse para si — Onde nos encontramos?
—Rathlin —disse MacLeod— Em nosso destino, salvos e relativamente sãos.
MacSorley arqueou uma sobrancelha.
—Duvidava?
Bruce meneou a cabeça, já acostumado às graças dos highlanders.
—E o resto dos homens? —perguntou.
—A salvo —respondeu Tor — Encontraram refúgio em uma cova próxima, porque esta tão somente pode albergar a uma dezena de homens. Dei instruções a Assalto e Caçador para que se dirijam ao castelo amanhã e recolham provisões. Está seguro de que sir Hugh nos ajudará?
Bruce se encolheu de ombros.
—O lorde de Rathlin é súdito leal de Eduardo, mas também é meu amigo.
A boca de Tor adotou um gesto sério.
—Não podemos nos arriscar a permanecer aqui muito tempo. Assim que os ingleses se precaverem de que já não estamos em Dunaverty, porão em marcha toda sua frota para nos buscar. Dado os laços que nos unem a Irlanda, este será um dos primeiros lugares nos que procurarão.
A família de Bruce contava com terras na Irlanda fazia anos. E sua esposa, Isabel de Burgh, era filha do conde mais poderoso da Irlanda. Entretanto, seu sogro, o duque de Ulster, era partidário de Eduardo.
—Uma vez que tenhamos abastecimento, não demoraremos mais de um ou dois dias em reparar os navios — disse Falcão.
Bruce assentiu, consciente que deveria dar ordens, mas incapaz de passar por cima do assustador sentimento de futilidade que o embargava. E que mais dava? Advertiu pela extremidade do olho como a aranha voltava a saltar uma vez mais do saliente da rocha.
—Veem essa aranha? —disse assinalando a parede que tinha a sua direita. Os homens assentiram impassíveis. Bruce estava seguro que estavam se perguntando se não teria perdido o julgamento — Não faço mais que esperar que desfaleça. Esta deve ser a sexta vez que a vejo tentar cruzar esse oco para cair inevitavelmente em um nada. —Negou com a cabeça — Me pergunto quantas vezes necessitará para precaver-se que não vai consegui-lo.
Falcão o obsequiou com um sorriso.
—Certamente, Majestade, que essa aranha é uma highlander, assim seguirá tentando até que consiga. Os highlanders não acreditam na rendição. Somos um rebanho de instados.
—Refere-se que são teimosos e cabeçudos? —disse Bruce com sarcasmo.
Falcão riu.
—Sim, isso também.
Bruce não podia a não ser admirar a afável habilidade que mostrava o navegante para encontrar humor inclusive nas situações mais complicadas. Geralmente, o bom aspecto de Falcão os fazia seguir olhando para frente, mas nem sequer o gigante nórdico podia fazer que Bruce se desfizesse do estado de desesperança em que se encontrava essa noite.
—Descanse um pouco, meu senhor —disse Tor — foi um longo dia para todos.
Bruce assentiu, muito cansado para fazer algo mais que mostrar-se de acordo. A luz atirava de suas pálpebras, e uma amável calidez agasalhou suas bochechas como o abraço de uma mãe carinhosa. Ao abrir os olhos, encontrou-se com um raio de luz que sulcava a cova. O dia tinha amanhecido brilhante e ensolarado, criando um forte contraste com as apocalípticas tormentas do dia anterior. Demorou um momento em estabilizar-se e clarear sua vista para enfocar. Olhou para as rochas que havia sobre sua cabeça e blasfemou.
«Vá! Que me crucifiquem!»
Do oco de uns quarenta centímetros que havia entre duas rochas pendurava a teia de aranha mais esplêndida que tinha visto em sua vida. Seus intrincados fios de seda resplandeciam e brilhavam à luz do sol como uma magnífica coroa tecida com pequenos diamantes. Tinha conseguido. A aranha tinha construído sua rede. Bruce sorriu, desfrutando de seu triunfo durante uns instantes.
Methven. Dal Righ. As mortes e capturas de seus amigos. A separação de sua esposa. A tormenta. Talvez não fossem a ira de Deus depois de tudo, a não ser uma prova. E aquela aranha era a encarregada de transmitir sua mensagem.
Advertiu que o marinheiro se espreguiçava a pouca distância, e Bruce se dirigiu para ele.
—Tinha razão — disse fazendo um gesto sobre sua cabeça.
Falcão demorou um momento em precaver-se ao que se referia Bruce, mas ao ver a teia de aranha esboçou seu enorme sorriso.
—Ah, conseguiu. Uma boa lição de perseverança, não crê?
Bruce assentiu com ar meditabundo.
—Sem lugar dúvidas. Se não o conseguir à primeira, tenta-o uma e outra, e outra vez. Algo a ter sempre presente.
Mas que ele tinha esquecido.
Não sabia muito bem se era pela aranha ou pela chegada do novo dia, mas pouco importava. A negra desesperança da jornada anterior tinha ficado para trás, e se sentia com novas forças para o combate que se esperava. Nada importava quantas vezes o derrubasse Eduardo; enquanto ficasse fôlego em seu corpo, Robert Bruce continuaria lutando. «Rei Capuz» ou não, ele era o rei legítimo da Escócia e recuperaria sua coroa.
—Têm um plano, meu senhor? —perguntou Falcão, pressentindo sua mudança de humor.
—É obvio que sim — disse ao tempo que assentia. Fez uma pausa e obsequiou ao descarado navegante com o tipo de proclama audaz que ele saberia apreciar —: Ganhar.
Falcão sorriu de orelha a orelha.
—Agora sim soa como um highlander.
Bruce permaneceria à espreita. Desapareceria entre a névoa durante os seguintes meses e se perderia entre as centenas de ilhas da costa ocidental, rearmando seus exércitos para tentar de novo uma e outra vez. Até que conseguisse.
Capítulo 1
Rathlin Sound, ao norte da costa da Irlanda,
Dia da Candelaria,
2 de fevereiro de 1307
Erik MacSorley jamais podia resistir a um desafio, embora ninguém o provocasse. Com só uma olhada ao navio de pesca açoitado pelo galeão inglês, precaveu-se que aquela noite nada mudaria. O que devia fazer era ignorá-lo e continuar com sua missão, prosseguir seu caminho sem ser detectado pela patrulha inglesa enquanto se dirigia para o castelo de Dunluce para reunir-se com os mercenários irlandeses. Mas o que teria isso de divertido? Depois de passar quatro meses escondidos e saltando de uma ilha a outra sem fazer mais que alguma breve incursão no continente para recolher as rendas de Bruce e cumprir a missão de reconhecimento pertinente, Erik e seus homens mereciam um pouco de ação.
Em Lent teve um comportamento digno de um monge, exceto pelas garotas, mas Erik tinha a certeza que não tinha feito voto de castidade algum ao entrar na Guarda dos Highlanders de Bruce. Desde o dia da tormenta e a fuga de Dunaverty tentou evitar problemas e refrear seus impulsos sempre que o chamavam à ação, mas com a Ponta do Diabo virtualmente a um tiro de pedra, maré alta e o forte vento que os empurrava, tratava-se de uma oportunidade muito tentadora para deixá-la escapar.
Desenhou um diabólico sorriso pensando que a seus vinte e nove anos ainda não tinha encontrado vento que não pudesse dominar, homem que pudesse contê-lo sobre a água ou dentro dela, navio que não pudesse dirigir, e tampouco mulher que fosse capaz de resistir por que tinha que ser diferente aquela noite? As intensas brumas a faziam perfeita para uma regata, sobre tudo sabendo que era capaz de navegar por essas traiçoeiras águas da costa de Antrim com os olhos fechados. Acabavam de rodear a ponta noroeste da ilha de Rathlin, indo rumo sul para o castelo de Dunluce, na costa norte da Irlanda, quando avistaram o navio patrulha dos ingleses perto de Ballentoy Head. Do momento em que os ingleses tomaram o castelo de Dunluce, poucos dias antes daquele mesmo mês, e se precaveram que Bruce tinha fugido da Escócia, a frota inimiga incrementou o número de patrulhas no canal do Norte para dar caça ao rei fugitivo. Mas a Erik não fazia graça ver um navio patrulha tão perto de seu destino. A melhor maneira de assegurar-se de que os ingleses não interferiam em seus planos era colocá-los em algum lugar que não representassem problema algum. Além disso, dava a impressão de que aqueles pescadores não viria mal um pouco de ajuda.
«Velhacos ingleses.» O traiçoeiro assassinato do clã MacLeod seguia fresco em sua memória. E se atreviam a chamá-lo de pirata.
Deu a ordem de içar a vela.
—O que esta fazendo? —balbuciou sir Thomas Randolph com um sussurro — Nos verão.
Erik suspirou e negou com a cabeça. Bruce lhe devia uma. Fazer de babá do pomposo sobrinho do rei não era para o que se alistou. O rei teria que acrescentar um ou dois castelos às terras de Kintyre que tinha prometido lhe restituir quando Bruce reclamasse sua coroa e devolvesse Eduardo Pernas longas a chutes até a Inglaterra. Randolph estava tão metido no código de cavalaria e em suas «obrigações» como cavalheiro, que fazia que Alex Seton, o único cavalheiro e súdito inglês entre a elite da Guarda dos Highlanders, parecesse licencioso. Depois de dois meses «doutrinando» a Randolph, Erik professava um maior respeito pelo companheiro de Seton, Robbie Boyd. Tinha tido suficientes regra e honra para toda a vida. Randolph estava começando a azedar inclusive seu visivelmente despreocupado aspecto.
Erik arqueou uma sobrancelha com certa apatia exagerada.
—Talvez seja o melhor se o que queremos é afastá-los.
—Mas, maldita seja, Falcão. E se nos apanham? —disse Randolph fazendo uso de seu nome de guerra.
Quando se encontravam em uma missão, os nomes de guerra se usavam para proteger as identidades da Guarda dos Highlanders, mas, como navegante, Erik não tinha mais opção que implicar a outros. Necessitava homens para governar os remos, e com os outros componentes da guarda dispersados, tinha tido que recorrer aos membros de seu próprio clã MacSorley. O punhado de homens que acompanhava Erik em sua missão secreta estava formado pelos parentes nos que mais confiava e pelos membros de seu séquito pessoal. Estes protegeriam sua identidade até a morte. No momento ninguém tinha relacionado a aclamada e temida bandeira do Falcão com os rumores do exército fantasma de Bruce que se estendiam pelo país, mas ele sabia que aquilo podia mudar a qualquer momento.
Quão remadores alcançaram ouvir Randolph riram abertamente ante o absurdo do caso.
—Não perco uma regata desde… —Erik se voltou para consultar seu segundo, Domnall, que se encolheu de ombros.
—Que me leve o diabo se souber, capitão.
—Já vê —disse Erik, esboçando um sorriso de satisfação — Não há que preocupar-se.
—Mas o que passará com os caudais? —aduziu o jovem cavalheiro obstinadamente — Não podemos nos arriscar que os ingleses ponham suas garras sobre eles.
A moeda que transportavam, valorada em cinqüenta libras, era necessária para assegurar a contratação dos mercenários. Tinham obtido das rendas de Bruce na Escócia, através de pequenas expedições durante os meses de inverno. Aquelas expedições noturnas não tinham feito a não ser aumentar a lenda da guarda fantasma de Bruce. MacSorley e alguns dos outros homens da guarda tinham conseguido entrar e sair da Escócia sem serem detectados graças à informação chave filtrada desde campo inimigo. Erik acreditava saber de onde provinha.
Bruce tinha a esperança de triplicar o número de suas forças de ataque com mercenários. Sem esses homens adicionais, Bruce não teria possibilidades de preparar o ataque às guarnições inglesas que ocupavam os castelos da Escócia e assim recuperar seu reino. O trabalho de Erik era levá-los até ali. O ataque era iminente, e Bruce contava com ele para conseguir os mercenários e que burlassem à frota inglesa, chegando até Arran a tempo para o ataque programado para o dia quinze, a menos de duas semanas no calendário.
—Relaxe, pequeno Tommy — disse Erik plenamente consciente que aquele homem da nobreza que levava uma espada metida no mais fundo de seu traseiro se veria ainda mais contrariado com esta advertência — Parece uma velha. A única coisa que poderão agarrar será nossa esteira.
Randolph franziu tanto a boca que seus lábios se tornaram brancos, produzindo um forte contraste com suas ruborizadas bochechas.
—Meu nome é Thomas —grunhiu — Sir Thomas, como muito bem sabe, demônios. Nossas ordens eram conseguir os mercenários e conduzi-los até meu tio sem alertar às tropas inglesas de nossa presença.
Não era tão singelo como isso, mas somente uns poucos conheciam o plano até suas últimas consequências e Randolph não era um deles. Não tinham que transladar aos mercenários ao lugar em que se encontrava Bruce, tão somente providenciariam o seguinte encontro. Fazer daquele modo era o mais seguro. Para que Bruce tivesse alguma possibilidade de êxito contra a formidável armada inglesa era indispensável que contassem com o fator surpresa.
Depois de anos servindo como mercenário estrangeiro na Irlanda, Erik sabia que o mais aconselhável era ser precavido com a informação. A moeda era o único senhor ao que serviam a maioria dos mercenários, e os MacQuillan eram de natureza inculta, por dizê-lo com boas palavras. O rei não lhes confiaria os detalhes de seu plano até que estivesse obrigado a fazê-lo, incluídos o lugar que se encontrariam e onde e quando tinham planejado atacar. Erik se encontraria com os irlandeses duas noites antes do ataque, e depois os conduziria pessoalmente até Rathlin para encontrar-se com Bruce e reunir o exército. Na noite seguinte Erik levaria a frota completa até a ilha de Arran, de onde Bruce tinha planejado atacar o norte do continente escocês no dia quinze de fevereiro. Chegar a tempo era essencial. O rei tinha dividido suas forças para levar a cabo um ataque a dois lados. Bruce atacaria Turnberry, enquanto seus irmãos liderariam o segundo ataque esse mesmo dia ao sul, em Galloway. Com um programa tão apertado, e dado que deviam viajar sempre de noite, não havia margem para engano.
—Não quero surpresas, Tommy. Deste modo nos asseguraremos disso.
Nada se interporia em sua missão, mas isso não significava que não pudessem desfrutar um pouco dela.
—É uma temeridade — protestou Randolph com fúria.
Erik negou com a cabeça. Aquele guri não tinha remédio.
—Olhe, Tommy, não vai por aí falando do que não conhece. Não reconheceria uma temeridade embora se elevasse sobre você e lhe mordesse o traseiro. Seria temerário em caso de que houvesse alguma probabilidade de que nos alcançassem, o qual, tal e como acabou de ouvir, não é o caso.
Seus homens içaram a vela quadrada. Pesadas fibras de lã daquele pano recoberto com graxa animal rangeram contra o vento ao desdobrar-se, revelando o temível falcão marinho negro com os lados brancos e douradas como fundo. Por mais vezes que a içasse, aquela visão sempre conseguia que lhe fervesse o sangue.
Momentos mais tarde ouviu um grito que chegava da água. Erik se voltou para seu reticente companheiro com um sorriso impertinente.
—Ao que parece, já é muito tarde, moço. Viram-nos.
Tomou os dois cabos guia entre suas mãos, preparou-se para a rajada de vento e gritou a seus homens:
—Demos a esses cães ingleses algo para perseguir que não seja seu próprio rabo. Para o Benbane2, moços!
Seus homens riram da graça. «Rabo» era um termo depreciativo para referir-se aos ingleses, significava «covarde infame».
A vela se encheu com o vento e o birlinn se propulsou para o céu, elevando-se sobre as ondas como se fosse um pássaro em pleno voo e fazendo valer os falcões que engalanavam a vela e a gravura da proa do navio.
Quanto mais velocidade alcançavam, com mais velocidade fluía o sangue por suas veias. Seus músculos se esticavam ante a brutal energia que os esporeava e colocava a nave virtualmente em posição vertical sobre a água. O vento atravessava seus cabelos, orvalhava seu rosto e enchia seus pulmões como se de um elixir se tratasse. Aquela rajada era algo excepcional, primitiva, a liberdade em sua forma mais pura. Sentia-se vivo e era consciente de ter nascido para isso.
No transcurso dos seguintes minutos, seus homens permaneceram em silêncio enquanto ele manobrava o bote para pô-lo em direção ao cabo de Benbane, a ponta norte de Antrim. Os homens de seu clã o conheciam muito bem para não saber o que tinha planejado. Não era a primeira vez que tirava proveito da maré alta e de armadilhas traiçoeiras.
Ao olhar para trás comprovou que sua argúcia estava dando resultados. A patrulha inglesa se esqueceu dos pescadores e se dispunha a lhes caçar.
—Se apresse — gritou Randolph sobre o bramar do vento — Estão nos alcançando.
Aquele moço certamente sabia estragar a festa de qualquer um. Mas Erik devia admitir a contra gosto que o galeão inglês estava mais perto do que esperava. Seu capitão tinha certas aptidões, e sorte. O inglês tinha tirado partido de uma rajada de vento mais forte da que tinha aproveitado Erik, e estava aumentando a velocidade fazendo uso dos remos. Os remadores de Erik permaneciam à espera. Necessitá-los-ia mais tarde.
Um pouco de sorte inglesa não era algo que lhe preocupasse sobremaneira; inclusive um esquilo cego era capaz de encontrar uma noz de vez em quando.
—Essa é a ideia, Tommy. Quero que se aproximem o suficiente para conduzi-los até a armadilha.
A Ponta do Diabo era um promontório em forma de falange rochosa que se sobressaía da costa justo ao oeste do cabo Benbane, no ponto mais ao norte da costa da Irlanda. Com maré alta, aquele recife rochoso permaneceria invisível até que a fatalidade fosse inevitável. A mutreta consistia em interpor-se entre os ingleses e terra firme, de modo que fosse seu navio o que ficasse destroçado pelos penhascos. No último momento Erik deixaria que os alcançassem para logo girar abruptamente para o oeste, mantendo o rumo até deixar atrás as rochas e conduzir os ingleses diretos para o Diabo. Tratava-se do tipo de manobra que era capaz de realizar com os olhos vendados.
—Armadilha? —disse Randolph com uma voz que adotou um matiz agônico — Mas como pode ver algo com esta névoa?
Erik suspirou. Se aquele rapaz não aprendesse a relaxar, seu coração deixaria de funcionar antes que pudesse cumprir os vinte e três anos.
—Posso ver tudo o que necessito. Tenha um pouco de fé, intrépido cavalheiro.
Ante eles apareceram os fatais e altos escarpados do saliente. Nos dias limpos, aquelas majestosas e escuras paredes coroadas por ladeiras esmeraldas eram de uma beleza assustadora, mas essa noite suas imensas sombras pareciam uma ameaça aterradora. Erik olhou para trás e elevou uma sobrancelha, deixando entrever um gesto de admiração em seu rosto. Aquele cão inglês não era tão inepto. De fato, era suficientemente bom para jogar ao traste os cálculos de Erik. Seguir o curso paralelo da costa não daria resultado. Teria que dirigi-los para as rochas diretamente e logo girar, com o vento de cara, no último momento.
Pode ser que aquele capitão inglês fosse bom… mas Erik era melhor.
Um grande sorriso se desenhou em seu rosto. Aquilo seria mais divertido do que em um primeiro momento esperava. Agora que seu primo Lachlan MacRuairi, chamado Víbora, estava no norte com as mulheres, e Tor MacLeod, Chefe, permanecia em terra como guarda pessoal do rei, fazia tempo que Erik não apreciava o sabor da verdadeira competição. E o último lugar no que esperava encontrá-la era entre as filas inglesas.
Havia muita escuridão e névoa para ver com precisão onde começava a costa, mas Erik sabia que já estavam perto. Podia senti-lo. O sangue bulia com mais força por suas veias à medida que antecipava os momentos de perigo que aguardavam. Se algo falhava ou cometia algum engano em seus cálculos, não seriam os ingleses quão únicos teriam que chegar a nado até a costa.
Voltou-se para Domnall, que comandava o leme fixado à popa.
—Agora! —gritou, ordenando a bordada de bombordo a estibordo — Remem e mandem esses ingleses bastardos até os narizes do Diabo.
Seus homens responderam com remadas entusiastas. Momentos depois a vela já ondeava, e com a Ponta do Diabo justo frente a eles, seu barco virou tudo para estibordo. Erik ouviu como a vela recebia o golpe de vento a suas costas, em tanto que os ingleses os seguiam imediatamente atrás, trabalhando a borda com mestria. Os levavam a recuar, virtualmente a tiro de arco.
Quase tinha chegado o momento…
—Se detenha em nome de Eduardo, rei da Inglaterra pela graça de Deus! —gritou uma voz em inglesa desde atrás.
—Não sirvo a mais rei que Bruce —respondeu Erik em gaélico —: Airson an Leomhann! —vociferou com o grito de guerra da Guarda dos Highlanders: «Pelo leão!»
A cacofonia de vozes atrás dele confirmou que alguém tinha entendido seu proclama.
—Traidores! —elevou-se uma voz.
Mas Erik não prestou atenção alguma. Concentrava todos seus esforços na estreita extensão de negras águas que podia ver ante si. A tensão podia respirar-se no interior da nave. Não ficava muito por avançar: uns trinta metros. Visualizou os escarpados da costa a sua esquerda, tentando localizar com dificuldades que marcava seu ponto de referência, mas aquela névoa segadora fazia impossível o avistar.
«Com os olhos vendados», recordou-se.
Seus homens se retorciam em seus assentos com certa ansiedade, com as mãos preparadas sobre os remos, antecipando-se a suas ordens.
—O que está acontecendo? —perguntou Randolph com voz gritã ao sentir a tensão.
—Preparados, moços — disse Erik ignorando o cavalheiro — Só um pouco mais…
O coração de Erik palpitava em seu peito com força e a um ritmo constante. Agora chegava a verdadeira prova de fogo para seus nervos. Deus santo, adorava aquilo! Seus instintos se avivavam ante o perigo vindouro, lhe pedindo a gritos que girasse, mas Erik não pestanejava. «Ainda não.» Umas quantas braças mais assegurariam que o capitão inglês, fosse destro ou não, sucumbisse ante o leito de rochas que Erik lhe tinha preparado.
Estava a ponto de dar a ordem quando sobreveio o desastre. Uma onda fanfarrona se elevou da escuridão como a boca de uma serpente e se chocou contra o flanco estibordo do birlinn, empurrando-os para a borda e acrescentando umas cinco braças a sua ajustada manobra para rodear a ponta.
Erik blasfemou e devorou com força os cabos das velas. As rochas estavam muito perto. Podia ver as delatoras brumas brancas da água rompendo ao redor das pontas dos picos inundados. Não dispunha de espaço para realizar essa ágil virada que tinha exposto. A única opção que tinha de rodeá-los era abater em uma arriscada manobra em direção ao vento.
Agora sim que ficava interessante a coisa. Seu pulso bulia de emoção. Era para momentos como esse, verdadeiras provas de mestria e nervo, para os que realmente vivia.
—Agora! —gritou — Atire, jogue forte, moços!
Domnall fez os ajustes do leme, e seus homens afundaram os remos na água em ângulo agudo para girar, enquanto Erik lutava por conseguir que a vela aquartelasse tanto como fosse possível para ajudá-los a sair do perigo.
Ouviu vozes que se elevavam no navio que tinha atrás de si, mas estava muito concentrado em sua quase irrealizável tarefa. O mar e a inércia lutavam por levá-los até as rochas, que não estavam a mais de três metros do flanco de bombordo. Seus homens remaram com mais força, fazendo uso de toda a energia que lhes subtraía, uma energia que os remadores ingleses não tinham. A proa do navio cabeceou justo ao passar a borda da zona de armadilha.
Tão somente umas braças mais…
Mas as rochas de bombordo seguiam aproximando-se e fazendo-se maiores, em tanto que o birlinn se aproximava ao desastre. Erik ouviu que Randolph blasfemava e rezava alternamente, mas não perdeu nunca a concentração em seu objetivo.
—Mais forte! —gritou a seus homens, com os braços flexionados e o corpo ardendo do esforço de aguentar os cabos — Quase têm virado…
Manteve a respiração enquanto o bote margeava a ponta do pico, com todos seus sentidos concentrados nos ruídos que se produziam sob a linha de flutuação. E então ouviu o suave rangido de madeira. Esse inconfundível som de rocha arranhando o carvalho aterrorizaria a qualquer marinheiro, mas Erik permaneceu impassível. O ruído continuou durante uns segundos, mas não passou a maiores. Tinham conseguido.
Um enorme sorriso se estendeu sobre seu rosto. Ah, isso sim tinha valido a pena! Não tinha feito nada tão emocionante desde aquela tormenta que acompanhou sua fuga do castelo de Dunaverty.
—Conseguimos, moços!
A algazarra se apoderou do navio, uma algazarra que se incrementou quando ouviram o estrépito do galeão inglês que se estrelava contra as rochas.
Erik deu os dois equipamentos de barco a um de seus homens e saltou sobre uma arca de madeira que fazia as vezes de banco, para recompensar com uma clara visão dos marinheiros ingleses brigando por encontrar refúgio nas mesmas rochas que tinham despedaçado sua própria nave. Suas imprecações viajaram através do vento até chegar a seus ouvidos.
—Mandem minhas lembranças a Eduardo, moços! —disse prostrando-se e fazendo uma reverência cômica adornada com um gesto da mão.
A onda renovada de insultos que lhe dirigiram em resposta não fez a não ser provocar mais gargalhadas de sua parte. Voltou a descer de um salto e deu uma palmada nas costas de Randolph. O pobre moço não tinha muito bom aspecto.
—Isso sim que foi arriscado.
O jovem cavalheiro o olhou com uma mescla de admiração e incredulidade.
—Têm a sorte do demônio, Falcão. Mas algum dia a perderá.
—Sim, pode ser que tenha razão — repôs Erik lhe oferecendo uma piscada de cumplicidade — Mas não esta noite.
Ao menos isso acreditava.
— Pelos ossos da Santa Columba, Ellie! Quando foi a última vez que se divertiu? Qualquer um diria que pegou um resfriado —disse dando ênfase a esta última palavra com o exagerado drama que somente poderia outorgar uma garota de dezoito anos, fazendo que soasse como se Ellie realmente se contagiou daquela enfermidade tão própria das cavalarias.
Ellie não afastou a vista dos tecidos que tinha pulverizados sobre a cama e respondeu a sua irmã pequena de maneira automática.
—Não tenho resfriado, e não blasfeme. —aproximou do peito uma seda azul celeste — O que acha desta?
—Vê? —disse Matty elevando as mãos com desespero — A isso é exatamente ao que me refiro. Mal cumpriste uns anos mais que eu e já atua como se fosse minha babá. Mas inclusive a velha Betha «Cara de passa» era mais divertida que você. Além disso Thomas diz «pelos ossos da Santa Columba» todo o tempo e ninguém o chama atenção.
—Sou seis anos maior que você e Thomas não é uma dama.
Ellie enrugou o nariz ao ver-se no espelho e descartou o azul o pondo no montão de cores pouco favorecedoras. As cores pasteis que tão em voga estavam no momento não ressaltavam absolutamente seu cabelo e olhos escuros.
Matty, a quem as cores pasteis sentavam maravilhosamente, entrecerrou seus grandes olhos azuis. Não havia nada que zangasse mais a Mathilda de Burgh que lhe recordassem a liberdade da que gozava seu irmão gêmeo. Seu adorável queixo adotou uma aparência de rebeldia que fazia que parecesse um gatinho obstinado.
—Essa razão é ridícula, e você sabe.
Ellie encolheu os ombros sem chegar a contrariar nem apoiar o que acabava de dizer sua irmã.
—Assim é como são as coisas.
—Não têm por que ser assim.
Matty a agarrou pela mão e a olhou de maneira suplicante. Com aquele cabelo loiro sedoso, sua pele de porcelana, essa boca em forma de coração e enormes olhos azuis, era difícil resistir. Mas Ellie tinha maior experiência enfrentando a táticas como aquela. De seus nove irmãos, oito eram criaturas ridiculamente belas de cabelo loiro e olhos claros. Quão únicos possuíam as feições escuras normandas de seu pai eram ela e seu irmão Walter. Ao pensar nisso, invadiu-a uma onda de tristeza. Agora era ela quão única ficava dos dois.
—Por isso esta noite vai ser tão divertida — insistiu Matty sem dar-se por vencida — É a única noite em que nos permite nadar com homens. Esta é sua última oportunidade. O próximo ano terá partido a Inglaterra com seu novo marido —disse suspirando com ar sonhador.
Ellie sentiu que lhe revolvia o estômago, como sempre lhe ocorria quando se mencionavam suas iminentes núpcias, mas separou de si aquela repentina descompostura.
—O Banho das Donzelas não é para mulheres de nossa posição.
Teve que morder o lábio ao sentir-se aborrecida inclusive de suas próprias palavras. Igual às festas pagãs de Yule tinham dado passo ao Natal, a ancestral celebração nórdica do Banho das Virgens (rebatizada como Banho das Donzelas para não ofender à Igreja no vindouro), em que os pagãos sacrificavam a jovens donzelas em honra de Aegir, deus dos mares, converteu-se no dia da Candelaria, a data que marcava o final da temporada de Natal. A Igreja não via com bons olhos as celebrações pagãs, mas tampouco tentava as proibir. Talvez fosse porque era consciente que qualquer tentativa de proibição fracassaria.
Cada dois de fevereiro, a meia-noite, as garotas da localidade saltavam sobre as geladas águas e nadavam a toda pressa de novo para a borda para esquentar-se em enormes fogueiras, em lugar das saunas que usavam originalmente os nórdicos. A garota que aguentasse mais tempo nas frias águas seria coroada princesa do gelo. Ellie tinha ganho a coroa as três últimas vezes que tinha concorrido. Walter estava acostumado a brincar que devia ter um pouco de foca, já que a água fria não parecia incomodá-la.
—Antes não pensava o mesmo — disse Matty negando com a cabeça e olhando-a como se fosse uma pessoa estranha para ela — Não entendo, antes você adorava nadar e te entusiasmava o Banho das Donzelas.
—Isso era antes… —replicou Ellie para depois parar em seco e tragar saliva ao sentir uma opressão na garganta — Então era uma menina. Agora tenho responsabilidades.
Matty permaneceu em silêncio um instante enquanto Ellie dava a volta e olhava os tecidos que jaziam sobre a cama. Aqueles tecidos se converteriam em quão vestidos levaria em sua nova vida na Inglaterra, na corte do rei Eduardo, como esposa do outrora genro deste, Ralph do Monthermer.
—Isso não é justo — disse Matty em voz baixa — Você não é a única sente falta. Eu também o faço. Mas nem mamãe nem Walter teriam querido que guardasse luto para sempre.
A febre que tinha varrido os corredores do castelo de Dunluce fazia dois anos levou consigo não só seu irmão de dezenove anos, mas também sua mãe, Margaret, condessa de Ulster. Para Ellie, que naquele momento contava vinte e dois anos, a febre levou algo mais: aquela vivaz garota ávida de aventuras. Como filha mais velha sem desposar, Ellie tinha adquirido a maioria das obrigações de sua mãe como condessa, entre elas a de cuidar de seus irmãos e irmãs menores. Que classe de exemplo daria se andasse brincando meio nua no mar?
Era a primeira vez que retornavam ao castelo de Dunluce desde que tinham morrido sua mãe e seu irmão, o herdeiro do condado. Tinham acordado um encontro com seu prometido em Carrickfergus, o principal bastão do condado de Ulster, mas o rei Eduardo deu ordem que permanecessem ali. Embora Ellie não contava com a confidência de seu pai, supunha que teria algo a ver com a incessante busca de Robert Bruce.
Os olhos de sua irmã se encheram de lágrimas e Ellie a acolheu em seus braços de maneira instintiva.
—Já sei que você também os sente falta — disse Ellie com um suspiro — E tem razão. Não gostariam que guardássemos luto para sempre.
Matty se voltou para trás mostrando um amplo sorriso em seu rosto.
—Então significa que virá? —Ellie entreabriu os olhos com receio. «Vadia.» Era tão implacável como seu padrinho, o rei Eduardo — Diga ao menos que pensará nisso —interpôs Matty antes que Ellie pudesse objetar algo.
Ellie não tinha intenção alguma de pensar nisso, mas Matty não era a única que sabia como conseguir o que queria. Com cinco peritos manipuladores ainda a seu cargo, aos quais não gostavam de ouvir um «não» por resposta, tinha que adaptar-se para sobreviver.
—De acordo, pensarei nisso.
Os olhos de Matty se avivaram.
—Fará? —disse dando palmadas de alegria — Passaremos bem no mar.
—Pensarei nisso —particularizou Ellie — Se me ajudar a escolher quais destes tecidos devo usar para fazer vestimentas.
Não conseguia reunir o entusiasmo necessário para essa tarefa. Matty tinha um olho para as cores que Ellie, sem dúvida, carecia. Mas havia algo mais e era consciente disso. Algo não andava bem nela. Como explicar essa sensação nauseabunda que a embargava cada vez que pensava em seu matrimônio? Um matrimônio pelo que devia sentir-se agradecida em qualquer circunstância objetiva que se considerasse. Apesar de um começo pouco alentador, seu prometido era um dos ilustres mais apreciados por Eduardo, além de seu anterior genro. Apaixonado pela filha de Eduardo, Juana de Acre, casou-se com ela na clandestinidade, mas quando o rei descobriu o matrimônio, confinou Ralph, então um simples cavalheiro, na torre, e graças à intercessão do bispo de Durham não foi executado. Ao final Ralph e seu virulento sogro acabaram reconciliando-se, e inclusive recebeu os títulos de conde de Gloucester e Hereford em vida da própria Juana. Agora que Bruce tinha escapado, Eduardo queria assegurar o apoio do pai de Ellie, assim tinha proposto essa aliança com seu outrora genro como amostra de gratidão.
Ralph, além de ser considerado um cavalheiro excelente, era um homem amável e arrumado, com uma imponente compleição: alto e largo de costas. Era um homem que despertava admiração. Então por que lhe revolvia o estômago, dava-lhe um tombo o coração e sua pele se empapava de um suor frio cada vez que se encontrava com ele na mesma habitação? E por que sentia essa estranha inquietação crescendo em seu interior à medida que passavam os dias e se aproximava as bodas? Era uma inquietação que a impulsionava a fazer loucuras, como correr descalça pela areia ou tirar o véu e a touca para sentir o ar fresco sobre seu rosto. Ou inundar-se na água gelada. Mas aqueles sentimentos irracionais pouco importavam. Casar-se-ia com o homem que seu pai tinha escolhido para ela, igual faria Matty quando chegasse o dia. Eram as filhas de Ulster: a escolha não figurava em suas decisões matrimoniais.
Durante os seguintes minutos Matty descartou sem piedade cortes dentre a imensa montanha de luxuosas lãs, damascos e veludos, aceitando algum deles em ocasiões. Ao finalizar ficou um montinho muito reduzido de marrons escuros, verdes, dourados e granadas. Nenhuma daquelas cores era vivo nem pastel. Ellie suspirou e olhou com desejo o montão de cores rosadas, azuis, amarelos e vermelhos.
—Serei a dama mais sombria de toda a corte — disse com desconsolo.
Matty franziu o cenho.
—Estará preciosa. Esses tons outonais ressaltarão os matizes dourados de sua pele e as nervuras verdes de seus olhos.
Ellie fez uma careta levantando o lábio superior.
—Nervuras verdes? Meus olhos são castanhos.
Matty retorceu a boca rebelando-se contra isso.
—Seus olhos são de uma vibrante e preciosa cor mel.
«Castanhos», pensou Ellie, e assim estavam perfeitamente. Mas sabia muito bem que não valia a pena discutir. Seus irmãos sempre tentavam fazer que se sentisse especial, e tomavam como algo pessoal quando alguém aludia à ausência nela desses espetaculares e belos traços da família. Em uma família normal a teria considerado razoavelmente bonita, mas a sua não era. Nunca deixava de lhe surpreender, e, ao que parecia, a outros tampouco, como duas pessoas de aparência tão extraordinária como seu pai e sua mãe tinham podido dar a luz uma filha de aparência tão ordinária como ela.
Mas aquele semblante comum e comum preocupava mais a seus irmãos que a ela mesma. Logo tinha aprendido que a beleza não outorgava a felicidade. Sua mãe era um exemplo disso. Ellie se contentava sendo normal e comum, mas sua família se negava a vê-la como alguém que não fosse especial.
Matty a observava como se pudesse adivinhar o que estava pensando.
—Eu adoraria que pudesse se ver do mesmo modo em que o faço eu. É muito mais bela que todos nós juntos. Irradia beleza interior. —O pior dos eufemismos para alguém pouco bonito, pensou Ellie — É amável, generosa, doce…
—E aborrecida — interpôs Ellie, sentindo-se incômoda com os elogios de sua irmã. Matty sorriu.
—E aborrecida. Mas não por muito tempo. Recorda que prometeu pensar nisso. Diga que virá. Será divertido, já verá. —Seu sorriso se tornou pícaro — Talvez esse prometido teu tão bonito ronde por ali.
Ellie empalideceu. Certamente esperava que não fosse assim. Mal podia pronunciar um par de palavras sem ver-se envolta nesse suor frio.
Matty a olhou com olhos de estranheza.
—Não sei o que te ocorre, Ellie. Comporta-se como se não quisesse contrair matrimônio com ele. Ralph é jovem e arrumado — disse adotando um ar sonhador — Com esses olhos verdes e seu cabelo moreno… —continuou com uma voz que acabou por extinguir-se. Ralph tinha os olhos verdes? Ellie não se deu conta — É muito afortunada. Se estivesse em seu lugar, me apoderaria dele em um abrir e fechar de olhos. O mais provável é que acabe casada com um homem mais velho que papai, um que tenha mau fôlego, as mãos fofas e gota. —Olhou-a cheia de curiosidade — É que você não gosta dele?
—É obvio que eu gosto dele — respondeu Ellie de maneira automática, embora seu pulso acelerasse pelo pânico que sentia. E o que significava isso de não gostar?— Estou segura de que será um marido estupendo.
—E também papai —disse Matty inclinando um pouco a cabeça — É isso o que a preocupa? Quantos filhos tem ele, dez?
—Oito. —Eram cinco garotas, o jovem conde e dois meninos mais, todos eles menores de doze anos. Nada ao que não estivesse acostumada. Negou com a cabeça — Não, eu gosto dos meninos.
Matty se aproximou dela e lhe deu um beijo na bochecha.
—E serão tão afortunados como nós de ter você a seu lado. —Fez uma careta travessa com suas arqueadas sobrancelhas para acrescentar —: Mas isso não significa que não possa se divertir um pouco antes.
Ellie elevou os olhos ao céu e tirou a sua irmã da pequena câmara.
—Fora daqui! Tenho que ver como estão a pequena Juana e Edmundo antes que chegue o jantar.
—Ver-te-ei esta noite — disse Matty com um olhar avesso.
Se havia algo que caracterizava sua irmã era a persistência. Conseguia que parecesse que Ellie não fazia mais que comer, rezar e estar aos cuidados dos meninos pequenos. Mordeu o lábio ao precaver-se de que aquilo se aproximava bastante à verdade. Teria se tornado muito séria? Era sua vida um aborrecimento?, pensou tragando saliva ante aquela ideia. O que tinha acontecido com aquela marota amalucada que nadava e vagava pela campina? Essa que adorava os desafios? A que sonhava com aventuras? A que pensava que não haveria nada melhor que visitar cada uma das ilhas da Irlanda até a Noruega?
Aqueles tempos pareciam remotos. Talvez muito. Os sonhos mudavam. As pessoas mudavam. Contava vinte e quatro anos, estava prometida a um importante cavalheiro inglês e era a virtual condessa do nobre mais importante da Irlanda. Dificilmente podia vagabundear pela campina como se fosse uma serva da gleba. Por mais divertido que pudesse lhe parecer.
Capítulo 2
O bom humor que Erik tinha gozado depois de conduzir os ingleses até as rochas não durou muito. À medida que seus homens e ele se aproximavam do castelo, soube que algo não ia bem. Era já passada a meia-noite, mas os arredores de Dunluce refulgiam de luz. Na praia que ficava ao norte rugiam duas imensas fogueiras quais piras de iniciação dos guerreiros a caminho de Valhalla.
—E esses fogos? —perguntou Randolph precavendo do assunto.
Erik negou com a cabeça e entreabriu os olhos para a escuridão. Estavam muito longe para distingui-lo claramente, mas juraria que havia gente banhando-se na praia.
—Parecem vilãos —disse Domnall.
Erik se animou subitamente ao recordar a data.
—E são vilãos —disse — Bom, mas bem vilãs.
Randolph ficou olhando-o com rosto inquisitivo.
—O Banho das Virgens — explicou.
Randolph franziu o cenho.
—Essa prática pagã? Não sabia que os irlandeses continuavam celebrando festivais ímpios.
—Ainda se conservam na maioria das ilhas. É algo assim como um rito de iniciação. Mas mais que isso é uma desculpa para que os mancebos se divirtam. Não há nada mau nisso.
O jovem cavalheiro seguia olhando-o com olhos reprovatórios.
—É indecente.
Erik riu.
—Exato. Por isso é que resulta divertido. E se não for capaz de apreciar os efeitos da água gelada na camisola de uma moça, então temo que não há nada que possa fazer por você.
Randolph elevou um tanto o lábio inferior.
—Talvez possa ver certo atrativo nisso.
Erik riu e lhe deu uma palmada nas costas.
—Isso eu já gosto mais. Talvez haja ainda esperança para você, sir Tommy.
Tinham arriado a vela de novo para procurar ser menos visíveis, e Erik manteve o navio o mais afastado da costa que pôde ao passar junto ao castelo. Dunluce estava situado no mais alto de um intransitável e enorme penhasco de forma triangular, com escarpados de trinta metros que caíam em picado para o mar. Um profundo abismo percorria a parte de trás do castelo, ao que somente podia acessar-se através de uma estreita ponte de madeira. Abaixo dele havia uma cova marinha conhecida pelos locais como a cova da Sereia. Esta, que se podia acessar pelo mar do sul e pela terra do norte, através de uma acidentada rampa, perfurava a rocha ao longo de uns cem metros. Seus tetos, que se elevavam até uma altura de quinze metros, faziam dela um autêntico palácio subterrâneo, e seu fácil acesso através do mar a convertia no lugar perfeito para um encontro com os MacQuillan, aquele clã de escoceses que chegaram a Irlanda em qualidade de mercenários e decidiram ficar como guardiães de Dunluce para o conde de Ulster. Não obstante, aqueles ferozes guerreiros seguiam contratando a seus homens… por um módico preço.
Erik conduziu o birlinn ao redor dos salientes rochosos que protegiam a boca da cova. «Olho atento, moços!», disse com um sussurro. O Banho das Virgens explicava a incomum atividade noturna, mas havia algo que seguia arrepiando os cabelos do cangote.
Enquanto o bote deslizava pela íngreme entrada, Erik mantinha um olho no castelo que pendia sobre ele nas alturas e o outro na parte de trás da alargada caverna. Sabia que de cima ninguém podia vê-los, e embora não poderiam acusá-lo jamais de mostrar excessivo zelo, seu desenvolvido sentido do perigo lhe tinha salvado o pescoço em mais de uma ocasião. Por um instante ficaram a mercê da escuridão. Mas depois, como saindo de um nada daquele negro abismo, viu aparecer três segmentos laranjas que piscavam ao outro lado da caverna. Três longos. Uma pausa. Dois curtos. Depois disto, repetiu-se a sequência. Tratava-se do sinal adequado, mas Erik somente relaxou quando os homens se aproximaram o suficiente e pôde reconhecer as feições do esbirro do chefe MacQuillan, Fergal. Seu cenho adotou uma expressão peculiar. Fergal não era a pessoa que esperava e aquela substituição não lhe agradava.
Fergal MacQuillan não só era um sanguinário atroz que venderia sua mãe por umas moedas, mas sim, além disso, desfrutaria fazendo-o. Erik tinha lutado a seu lado fazia anos e, por mais que pudesse apreciar o entusiasmo e frenesi em combate, sabia que a avidez por sangue de Fergal não acabava na batalha. Entretanto, tampouco tinha por que apreciá-lo. Fergal podia ser uma escória, mas sabia como brandir uma espada, e nesse momento necessitavam tantos guerreiros como pudessem conseguir. Chefe, Tor MacLeod, disse a Bruce em uma ocasião que teria que sujar-se se queria ganhar. E tinha toda a razão.
Enquanto os MacQuillan mantivessem sua palavra, não haveria problemas. Quando esteve quase na borda, Erik saltou pela amurada e caminhou para a pedregosa margem com a água à altura dos joelhos. Saudou o guerreiro MacQuillan com um forte apertão nos antebraços. Depois de fazer o próprio com o resto de quão semelhantes conhecia de nome, apareceram Randolph e Domnall, e formalizou as necessárias apresentações. MacQuillan parecia estar inquieto por algo, algo que Erik suspeitava não seria de seu agrado.
—Pensava que me encontraria com seu chefe — disse Erik sem alterar a voz e forçando um sorriso que não chegou alcançar seus olhos.
Fergal negou com sua cabeça calva. Esta tinha uma estranha forma cônica que sobressaía de modo peculiar devido a uns traços planos, ao grosso pescoço e a uma descuidada barba ruiva.
—Mudança de planos — disse o guerreiro — Não pôde sair. Ulster chegou e o castelo está infestado de ingleses. Teriam notado sua ausência.
Os olhos de Erik se entreabriram um tanto. Não lhe tinha falhado o instinto. Em sua cabotagem tinham passado pela boca do lobo. Se tratava de uma armadilha, a deformada cabeça de Fergal não formaria parte de seu corpo por muito tempo. Dois segundos, isso é o que demoraria para hastear a manga de sua tocha de guerra e brandi-la. Havia boa parte de seu ser que não fazia ascos à desculpa.
Erik deu uma olhada atrás de Fergal, quase esperando encontrar as tropas inglesas descendo pela rampa, e olhou com frieza ao guerreiro.
—Acredito recordar que seu chefe disse que Ulster estava em Carrickfergus.
—Isso nos haviam dito, mas apareceu inesperadamente a instâncias de Eduardo —disse Fergal cuspindo por reflexo ao mencionar o nome do rei — De Monthermer, ou o conde de Atholl, como se faz chamar agora, também está com eles.
Bom, bom. Isso sim que era interessante. Aquilo explicava a presença da patrulha inglesa nas imediações do castelo. De Monthermer estava às ordens da frota de galeões maiores e mais experientes da marinha de Eduardo. Apesar do capitão inglês ter ajudado Bruce em outra ocasião, Erik não poderia contar com ele para fazê-lo de novo. Mas que demônios fazia ali De Monthermer? Antes que tivesse tempo de perguntá-lo, o próprio Fergal o explicou: —Uma aliança com uma das filhas de Ulster.
Erik assentiu com pesar. A desinformação na guerra era mais comum que não ter informação alguma, mas esse tipo de enganos podiam fazer que matassem a ele e a seus homens. Um movimento em falso e veriam suas cabeças adornando as lanças dos castelos escoceses. E apesar de que pudessem supor um adorno de aspecto inultrapassável, o certo era que Erik tinha bastante apreço à sua.
—Têm que sair daqui o quanto antes — apressou Fergal, claramente a borda de um ataque de pânico — As patrulhas inglesas estão por toda parte.
—Sabemos —disse Erik com calma — Acabamos de topar com uma, metaforicamente falando, a poucas milhas daqui.
—Me deem o ouro e poderemos partir.
Randolph, que obviamente desejava ir dali o quanto antes, colocou a mão sob sua armadura para alcançar a bolsa que tinha atada à cintura, mas Erik antepôs seu braço para detê-lo.
—Ainda não. Por que não relaxamos todos um pouco? Sairemos daqui, mas acredito que ainda temos que discutir certos detalhes.
—Mas não há tempo, os ingleses… —balbuciou Fergal.
—São um maldito grão no traseiro — finalizou Erik lhe dedicando uma piscada de cumplicidade — Já sei. —Estivesse na boca do lobo ou não, tinha uma missão a cumprir e, até que não visse o guarda correr rampa abaixo, não estava disposto a apressar-se — Não queremos que haja nenhum mal-entendido. Não é certo, Fergal?
Este negou com a cabeça.
Erik tomou a bolsa das mãos de Randolph e a pesou. Fergal o observava com olhos famintos.
—A metade agora, como acordamos, e o resto quando levarem os trezentos homens a Bruce.
—Quão único precisamos saber é quando e onde.
—Há uma praia perto de Fair Head. Conhecem-na?
Fergal assentiu olhando-o com cara de assombro.
—Sim.
—Estejam ali na noite do dia treze com seus homens.
A inexpressiva cara do irlandês adotou um matiz de ceticismo.
—Tem Bruce intenção de lançar o ataque da Irlanda?
Erik negou com a cabeça.
—Não. Eu mesmo lhes levarei junto ao rei.
Fair Head era o enclave do continente irlandês que distava menos de Rathlin, ponto de encontro programado por Bruce. A expressão de Fergal se endureceu ao precaver-se que Erik não tinha intenção de lhe revelar o plano. Mas se Erik se via pouco inclinado a confiar no chefe dos MacQuillan, menos ainda em Fergal.
—Isso não é o que acordamos — disse o irlandês com raiva.
Erik deu um passo à frente. Apesar de Fergal ser largo e robusto como um porco, e provavelmente igualmente agressivo, Erik era uma cabeça mais alto. E quanto a quem era melhor guerreiro dos dois…, ambos sabiam que não havia discussão. Podia contar com os dedos da mão os homens que tinham alguma possibilidade de derrotar Erik com a espada ou a tocha de guerra, e Fergal não era um deles.
Erik, apesar da ameaça que implicavam seus movimentos, esboçou um sorriso.
—Bom, Fergal — disse em tom complacente —, lembra perfeitamente a conversação que teve com seu chefe faz umas semanas aqui nesta mesma cova, e isso é exatamente o que tínhamos acordado. A metade agora e a outra metade quando nos encontrarmos com Bruce. Para que quer ter mais informação?
Fergal dirigiu seus olhos para a tocha compreendendo o que significava a pergunta de Erik.
—Eu gosto de saber para onde vou.
—Saberá, quando chegar o momento. Estas são as condições. Toma ou o deixa — disse Erik encolhendo-se de ombros enquanto sustentava a bolsa.
O irlandês a agarrou e a escondeu sob seu cotun3.
—Sim, na praia junto a Fair Head no dia treze. Ali estaremos — assentiu com todo o entusiasmo que supõe um cão encurralado em um canto — Se assegure de que você também esteja lá.
Um sonoro chapinho na água cortou em seco a resposta de Erik, que por instinto girou sobre si mesmo com a tocha de guerra já disposta na mão. O resto dos homens também haviam desembainhado suas armas.
—O que foi isso? —disse Fergal, sustentando em alto a tocha.
Erik tentou ver entre a penumbra.
—Não sei.
O irlandês se dirigiu a dois de seus homens:
—Averigúem.
Aquilo não podia ser bom. Nada bom.
Ellie soube que se colocou em problemas assim que começou a sair da água e ouviu como os homens desciam pela rampa da cova com suas tochas. Em princípio sua intenção era nadar de novo para a praia, mas a água estava mais fria do que recordava. Isso ou estava envelhecendo. De modo que decidiu voltar caminhando à praia da cova.
E pensar que até esse momento Ellie tinha passado bastante bem… Matty se entusiasmou ao vê-la. Somente por ver sua cara de surpresa já tinha valido a pena. Mas quando tirou o casaco e saltou à água, Ellie se lembrou de quanto sentia falta de nadar. Inclusive naquela água gelada a sensação de liberdade era excitante. Talvez podia ignorar aqueles homens e continuar a ascensão da rampa para voltar junto ao grupo e reclamar sua coroa. Mas se seguia caminhando com a camisola empapada e sem uma capa com a que cobrir-se, corria o risco de encontrar-se com um grupo de guerreiros de arruda aparência no meio da noite. Assim voltou para água com a ideia de retornar por onde tinha vindo, sem importar o frio que fizesse, quando viu sua via de escape obstruída pela chegada do navio.
Somente um olhar aos homens do birlinn bastou para que lhe encolhesse o coração. Estava escuro, mas foi capaz de perceber o suficiente.
«Por Deus bendito, vêm os vikings!»
Enormes guerreiros com capacetes de aço com nasal sob os que se entreviam longos cabelos loiros, mantos de pele, armados até os dentes, e… havia dito já que eram enormes? Não havia forma possível de que passasse entre eles. Estava realmente apanhada. Refugiou-se em um lado escuro da cova e conseguiu subir até uma pequena rocha escarpada para evitar morrer de frio, embora o ar noturno tampouco melhorou muito sua perspectiva. Tinha todo o corpo sumido em calafrios. Os dentes tamborilavam e seu cabelo molhado congelava sobre os ombros formando placas de gelo. Escondeu os pés sob o corpo da melhor forma que pôde nessa superfície inclinada e rugosa e se aconchegou sobre seus joelhos fazendo uma bola, procurando dar-se calor. Mas sabia que aquilo não podia durar muito tempo. Rezou para que os homens acabassem com seus assuntos o quanto antes. Embora ouvia suas vozes, não era capaz de entender do que estavam falando. Apesar disso, não precisava saber o que diziam para compreender que se encontrava no lugar equivocado.
O que podia ser pior, morrer de frio ou que a encontrassem? Nenhuma dessas opções soava muito prometedora naquele momento. Nunca deveria ter se deixado convencer para aquilo. Nem devia nadar sozinha e afastar-se tanto do grupo. Acaso não acautelava sempre seus irmãos menores contra isso mesmo? Mas queria ganhar e adorava aquela cova. Por que tinha permitido que Matty a persuadisse? Ser aborrecida não era tão mau… Ser aborrecida era seguro. Sendo aborrecida, estava quente. Nesse momento poderia estar dormindo em sua cômoda e linda cama entre um montão de peles, em lugar de estar obstinada a uma rocha com as pontas de seus dedos insensibilizadas, em uma cova escura repleta de terríveis vikings que faziam Deus sabia o que.
Tinha muito medo e muito frio para sentir curiosidade. Nem sequer se atrevia a elevar a cabeça por trás de seu intrincado esconderijo para tentar avistar a borda, por medo que a vissem. Se ao menos se apressassem. O tamborilar de seus dentes era tal que temia que logo a ouvissem, e tampouco sabia por quanto tempo poderia seguir encarapitada à rocha, quando sequer sentia seus… OH, OH!
Seus pés escorregaram sob o corpo. Balançou-se em uma tentativa por segurar-se, mas já era muito tarde. Em sua queda bateu sobre a água de maneira determinante. O golpe de frio e a iminência do pânico fizeram que seu coração pulsasse a um ritmo frenético. Resistiu a tendência natural a voltar para a borda e elevou a cabeça com cautela.
Era possível que não tivessem ouvido? Somente um olhar para a borda lhe disse que não teria tanta sorte. Dois homens saltaram à água e começaram a nadar em sua direção. Voltou a inundar-se e nadou com todas suas forças. Mas não eram suficientes.
Tinha frio, estava cansada de seu exercício anterior e além eles contavam com a vantagem do impulso. Um dos homens a agarrou pelo tornozelo. Tentou afastar-se dele projetando suas pernas, mas o homem a puxou como quem saca facilmente um peixe enrolando a linha. Deu-lhe a impressão que a partir desse momento olharia com outros olhos quando visse um arenque em seu prato. Um braço rodeou sua cintura como uma serpente. Aquele guerreiro selvagem a atraiu para si de uma maneira pouco amável, devolvendo-a à superfície. O rufião fez um tosco pronunciamento: —É uma donzela! —gritou a seus companheiros.
Ellie atendeu à pausa de surpresa que precedeu à arruda voz que disse:
—Traga-a!
—Maldita seja, que frio faz aqui! —blasfemou o homem a seu ouvido. Estava claro que a culpava por ter que molhar-se.
—Tire as mãos de cima de mim! —gritou — Acaso não sabe quem sou? Meu pai…
Entretanto, o nome de seu pai foi silenciado por uma calosa mão que pressionou com força sobre sua boca.
—Silêncio —advertiu — Fará que caia sobre nós toda a guarda, e já se vê em suficiente apuro no momento.
Ficou quieta ao precaver-se da seriedade de suas palavras. O soldado a arrastou até a rochosa borda e a jogou sem cerimônia alguma aos pés de um homem calvo que, para sua alegria, tinha um rosto que lhe resultava familiar. Tentou rebuscar em sua gelada cabeça mas não funcionava com muita diligência. Era um dos homens de seu pai? Um dos soldados do castelo? Provavelmente a ajudaria. Certamente tinha que encontrar mais compreensão em um rosto familiar que em uma barcada de nórdicos, pensou estremecendo ante a ideia. Não era certo? Estava a ponto de expor seu caso quando olhou aos olhos do soldado calvo. As palavras se cristalizaram em sua língua. Sabia sem necessidade de perguntar que aquele homem não seria de ajuda. Era um homem com um rosto impassível. Tinha os mesmos olhos inexpressivos de um réptil.
—O que ouviu? Por que estava nos espiando? —perguntou com dureza.
—Não… não… nada. Não estava espiando. —Ainda batiam os dentes — Eu… juro… nada… nadava.
—Deve vir do grupo de verbena da praia — disse uma profunda voz atrás dela.
Falava em gaélico, como o resto deles, mas havia algo compassado em sua rouca voz que soava quente.
Assentiu de maneira enérgica, já que seus dentes não pareciam acompanhá-la e aventurou um olhar em sua direção. Apesar das circunstâncias ficou boquiaberta: por todos os Santos! Piscou, mas aquele homem era real. A impressionante beleza do nórdico poderia rivalizar com a de seus irmãos e irmãs. Tinha o cabelo loiro, recortado de tal modo que lhe chegava justo sobre as orelhas, salvo uma mecha longa que caía por sua testa. Ao contrário do resto dos homens, não tinha barba, o que revelava as claras e duras linhas de seu perfeitamente esculpido rosto. Umas sobrancelhas tênues, traços afiados em suas bochechas, mandíbula proeminente e um nariz com caráter que para sua surpresa, dada sua profissão, mostrava-se bastante reto. Estava muito escuro para distinguir a cor de seus olhos, mas ela sabia que eram azuis. De um azul vibrante. Azul oceano. De um azul desolador. Afastou a vista imediatamente para evitar lhe dar tempo que advertisse seu olhar. Valha-me Deus! Ela pensava que homens como esse somente existiam nos mitos.
Pode ser que fosse muito formoso, mas também era indubitavelmente um pirata, e já que o mencionava, um alto e com uma musculatura incrível. Um homem forjado para a pilhagem, a conquista e aquilo que Deus quisesse que fizessem esses vikings, deixando um rastro de destruição a seu aterrorizante passo. Poderia esmagá-la com um só de seus punhos de aço.
O homem réptil voltou a pronunciar-se:
—Não podemos nos arriscar que fale a Ulster.
Seu coração se deteve o ouvir o nome de seu pai. Fosse o que fosse aquilo que tramavam, não queriam que seu pai estivesse a par disso. Estava claro que revelar sua identidade não resolveria o problema. De fato, provavelmente pioraria. E então o que faria? Sob sua camisola molhada, suas mãos se retorciam. Lhe dariam o prêmio por estar no lugar equivocado no momento equivocado. Tinha que explicar-se, mas o frio tinha paralisado seu cérebro.
Depois de obrigar seus dentes a deixar de bater, disse:
—Por favor, tudo isto é um engano. Estava nadando e tropecei por engano com vossa senhoria — Conseguiu ficar em pé e manter a calma, parecer racional, segura de si. Não morta de medo. «Pensa. Atua como se soubesse o que faz. Fala com autoridade.» — Meus amigos estarão se perguntando onde estou. Estarão me buscando… —Começou a aventurar-se para a saída com passo firme, mas um muro de irlandeses rudes lhe fechou o passo. Apesar de lhe apagar o sorriso, esforçou-se para que sua voz soasse enérgica e confiante — Deixe-me passar e poderão terminar com seus assuntos.
O homem calvo a ignorou e falou com o nórdico.
—Terá que eliminá-la.
Se alguma gota ficava correndo por suas veias, escorreu-se até seus pés imediatamente. Subitamente ficou sem fôlego. Tentou convencer-se que não podia falar a sério, mas com somente olhar a cruel face do soldado soube que não era assim.
Erik blasfemou. Aquilo não sairia bem. Sua singela missão acabava de dar um giro sombrio. Esperava que a moça não desmaiasse, mas a pobrezinha parecia aterrada. Não podia culpá-la por isso. Que fazia na cova? Seria certo que tinha chegado nadando da praia? Nessa época do ano era algo difícil de acreditar, mas dava a impressão de ser sincera.
Infelizmente Fergal estava certo. Se tinha ouvido algo, poria sua missão em perigo. Nada nem ninguém podia interferir na obtenção daqueles mercenários. Não podiam deixá-la partir como se nada tivesse ocorrido. Mas assassiná-la? Cada um de seus ossos se rebelava ante a ideia de fazer mal a uma moça.
Erik amava às mulheres. A todas as mulheres. Adorava como cheiravam, a suavidade de sua pele, a maneira em que seus longos e sedosos cabelos se pulverizavam sobre seu peito quando se aconchegavam junto a ele, ou em cima dele. Adorava suas risadas melodiosas, suas paqueras, atender a todas elas. Tudo que havia nas mulheres adorava, mas por cima de tudo amava sua viçosa feminilidade. Peitos grandes e suculentos que sustentar com suas mãos e entre os que enterrar seu rosto, quadris curva e traseiros redondos que aferrar debaixo dele e suaves coxas que rodeassem sua cintura enquanto ele se deslizava lentamente no interior da mais feminina de suas partes. Suspirou. Sim, as moças eram criaturas formosas. Cada uma delas. Tão somente teria que olhar com suficiente atenção.
E entretanto, tinha que admitir que, inclusive com a vantagem acrescentada que provia o tecido molhado, a que se mostrava ante si não era grande coisa. Mal se tinha onde agarrar. Era de altura normal, mas esquálida como uma barba de pescado. Como muito pesaria quarenta e cinco quilogramas, empapada e tudo. Não era absolutamente seu tipo. Erik preferia mulheres com algo mais de carne sobre os ossos. Exuberantes e com curvas, com algo que se pudesse agarrar, e não mais magrelas que um junco. Depois de tudo, ele era um homem grande. Não queria ter que preocupar-se em esmagar a ninguém.
Tinha dado uma rápida olhada a seu rosto sem que nada dela o atraísse. Não se tratava de nenhuma Vênus saindo da água, isso estava claro. Com esse cabelo bem esmagado contra o rosto, parecia um gato meio afogado, desalinhado, miserável e transfixado. Mas tinha garra, isso tinha que reconhecê-lo. Era admirável a maneira em que tinha tentado sair dali com passo decidido, tão descarada como fosse preciso. Apesar de sua juventude, havia nela certo ar autoritário. Tinha a suspeita de que se tratasse de quem se tratasse, era o tipo de mulher que estava acostumada a ser escutada. Como essa velha babá que estava acostumada a brigar por tudo quando ele era menino.
Aquela lembrança lhe fez franzir o cenho. Ada tinha se revelado como impossível de seduzir. Representava seu único fracasso em um expediente imaculado à exceção dela.
De todas as coisas que podiam ameaçar o plano, Erik jamais teria imaginado uma moça se intrometendo em sua reunião. Sabia que teria que fazer algo a respeito e que não gostaria de fazê-lo. Que desastre! Passou os dedos entre seus recém cortados cabelos. Muitos de seus homens cortaram o cabelo para acautelar a praga de piolhos que assolava o acampamento. O resultado da comodidade, ele tinha decidido mantê-lo assim.
A moça finalmente conseguiu dominar sua língua depois do funesto pronunciamento de Fergal. Fazendo ornamento de um bom julgamento, não se incomodou em suplicar ao irlandês, mas sim dirigiu seu fino e pálido semblante para ele.
—Por favor, não podem fazer isso. Eu não tenho feito nada. Não ouvi nada. Juro que não direi nada do acontecido a ninguém. Me permitam partir.
Teria gostado de acreditá-la, mas infelizmente aquilo não mudaria as coisas. Não podia correr esse risco. Não era somente sua missão o que estava em jogo. Quão último desejava Erik era contrariar Ulster.
A relação de Bruce com seu sogro era de natureza complicada. Por uma parte, a lealdade de Ulster por Eduardo era indisputável. Entretanto, Bruce suspeitava que uma das razões que tinham conseguido evitar que os capturassem durante os últimos meses era que Ulster fazia vista grossa ante qualquer evidência de sua presença em suas terras. Mas algo que o conde não ignoraria seria a mobilização de soldados ante seus próprios narizes, especialmente com os malditos ingleses revoando ao redor.
Randolph deu um passo para diante.
—É obvio que não…
—Tem razão — disse Erik parando os pés de Randolph com um olhar de advertência severo. Aquele galante jovenzinho louco arruinaria tudo. Erik se dirigiu a Fergal, ignorando à garota — Não podemos nos arriscar a deixá-la partir.
O sorriso que percorreu o rosto de Fergal gelou seu sangue. Estava claro que desejava se desfazer do problema o quanto antes. Erik suspirou, recordando que necessitava aquele sanguinário, e ameaçou a não mostrar sua repulsa lhe arrancando a cabeça. Não obstante a ideia era tentadora.
A moça emitiu um som metade grito, metade gemido horrorizado e começou a afastar-se dos homens. Mas Erik a agarrou pelo pulso antes que pudesse alcançá-la algum dos homens de Fergal. Ela tentou escapar, mas ele a agarrou com firmeza, desejando com todas suas forças não lhe quebrar nenhum osso. Tinha apanhado mariposas com mais gordura.
—Eu me ocuparei dela — disse. Antes que Fergal pudesse interrompê-lo, Erik lhe dirigiu um olhar de cumplicidade e acrescentou —: Depois que meus homens e eu nos tenhamos divertido um pouquinho.
Fergal entreabriu seus pequenos e brilhantes olhos de corvo negro.
—Mas a encontraram meus homens — disse olhando à trêmula moça de cima abaixo — Não parece que lhe possa tirar muito proveito.
Erik ofereceu a moça a Domnall e encarou Fergal.
—Meus homens levam bastante tempo no mar — mentiu Erik — Qualquer coisa lhes pareceria bem. Além disso, assim se assegurarão de que isto não se volte contra vós. Pense no desastre que isto suporia. A atiraremos ao mar, onde ninguém jamais terá conhecimento disso. —Erik se voltou para Domnall e advertiu a lividez do rosto da garota — Melhor será que lhe demos uma manta —disse forçando uma risada — Nos asseguremos antes de que viva o suficiente para que sirva de algo.
Fergal mexeu na desalinhada barba grisalha como querendo protestar. O último que gostaria Erik era uma discussão por uma condenada garota com o homem que ia recrutar para lutar com eles. De repente ouviram o som afogado da voz de uma mulher que provinha da entrada da caverna: «Ellie!».
A moça fez uma tentativa de gritar, mas Domnall conseguiu tampar sua boca a tempo.
—Alguém a está procurando — disse Erik — Será melhor que saiam daqui antes que os vejam.
Fergall não parecia contente com a ideia, mas sabia que não tinha outra alternativa. O tempo para as discussões terminou. Erik voltou para a água e caminhou até subir ao navio saltando pela amurada.
—No dia treze — lhe recordou — Não me defraude.
Pronunciou aquela ameaça em um tom indiferente, mas seus olhos mostravam um olhar acerado que prometia represálias. Fergal se acalmou um tanto e perdeu algo de sua beligerância. Conhecia o suficiente Erik para saber do que era capaz. Se o traía, não haveria lugar seguro no que ocultar-se sobre a face da terra. O irlandês assentiu e desapareceu na escuridão. Erik e seus homens fizeram o próprio e saíram da caverna tão silenciosos como tinham chegado a ela, embora infelizmente com um passageiro a mais. Mas não por muito tempo. Livraria-se dela logo que pudesse.
Capítulo 3
Ouvir a voz de sua irmã fez que corressem por suas bochechas aquelas lágrimas que tinha conseguido manter sob controle enquanto os rufiões discutiam alegremente sobre sua violação e assassinato. Tentou gritar: «Matty!», mas o único que conseguiu foi que seu captor a capturasse com mais força e tampasse sua boca com uma mão fornida, que com certeza não estaria muito limpa. Tentou escapar como pôde, mas era inútil. Aquela besta humana era tão imóvel como o demoníaco capitão viking que a tinha agarrado pelo pulso anteriormente. Seria mais fácil dobrar o aço ou arrebentar um muro de granito.
—Chist… —sussurrou o homem em seu ouvido — Não lhe faremos mal, mas é preciso que se cale.
O que pôde ver dele antes que a agarrasse lhe sugeria uma figura jovial e de aspecto paternal, também sua voz resultava amável e tranquilizadora, mas acaso esperava realmente que confiasse nele após ouvir como seu capitão falava com tal frieza de violá-la e jogar seu corpo ao oceano? Duvidava-o muito. Mordeu sua mão com força e obteve um grunhido de assombro como recompensa. Entretanto, o homem não afrouxou sua mão absolutamente, mas sim aquela rebeldia só conseguiu que a apertasse com mais força e de maneira que seus dentes não pudessem morder. Graças a enorme manta e aos braços que a agarravam com firmeza, Ellie já não sentia um frio de morte. Uma pequena consolação ante um momento como esse. O terror e o desespero angustiavam seu coração. Aquilo não podia estar acontecendo. Como em um horrível pesadelo, tinha sido sequestrada por piratas, os mais temíveis de todos eles: os vikings.
Com frio, incômodos, e desamparada como nunca antes havia se sentido, choramingou em silêncio. Seu resgate estava à distância de um grito e, mesmo assim, não podia mais que observar como o bote tornava ao mar enquanto a escura e brumosa noite se apoderava de sua irmã, sua família e seu lar. Quando voltaria a vê-los? Ou acaso voltaria a vê-los algum dia? jurou a si mesma que se saísse com vida daquilo, jamais poria um só dedo de seus pés na água. Casaria-se com Randolph com um sorriso no rosto, deixaria atrás os ridículos reparos ante seu matrimônio e levaria uma vida exemplar como dama e mãe de seus filhos, os oito em total, sem importar o aborrecido ou sério que tudo aquilo pudesse lhe parecer.
Talvez sua família não se precavesse que a tinham sequestrado, e simplesmente pensasse que se afogou. Com o repentino broto de energia proporcionado por essa funesta perspectiva, renovou sua luta contra o homem que a tinha presa, conseguindo desta vez que afrouxasse um braço o justo para lhe dar uma forte cotovelada no estômago. O homem proferiu um áspero som gutural e a soltou o tempo suficiente para que lhe apertasse a mão, escapasse dele e ficasse em pé com um impulso. Encaminhou-se para a amurada com a intenção de saltar por ela e nadar em direção às luzes do castelo, que se viam na distância. Mas sua saída foi abortada abruptamente e seu impulso para frente parado em seco. Um comprido e musculoso braço a agarrou pela cintura e a puxou com brutalidade para levá-la para um largo e mais que sólido peito. Seus pés ficaram pendurando no ar.
A Ellie cortou a respiração pela surpresa e por algo mais… a cercania. Durante um instante ficou completamente quieta, tentando compreender aquela assustadora sensação de impotência que a embargava. Sabia quem era sem necessidade de vê-lo. Também sabia que jamais poderia liberar-se da prisão de ferro que a atendia. Seus músculos eram como rochas. E pareciam cobrir cada centímetro de sua pele. Podia sentir as arestas e contornos de seu corpo grudado contra o dela como um mapa em relevo. Jamais antes tinha estado tão perto de um homem, de modo que a intimidade resultava perturbadora. E cálida. O corpo daquele homem parecia irradiar calor. Deixou de tremer. O viking riu junto a sua orelha, e aquele quente e rouco som reverberou contra suas costas, provocando um comichão que percorreu sua coluna. O aroma penetrante do mar chegou até ela salpicado por uma bruma espaçada.
—Eu diria que já nadou o suficiente esta noite — murmurou em um tom provocador justo antes de voltar-se para o homem que a tinha segurado — Ao que parece, a menina te deu algum probleminha, né, Domnall?
Por Deus santo, que voz! Rouca e profunda, enfeitada com esse tom de dissimulação. Era esse tipo de voz que te envolvia e já não te deixava partir, o tipo de voz nascida para contar histórias ao redor do fogo, recitar versos ou, ainda melhor, se for acompanhada desse rosto, fazer que as mulheres sucumbissem à tentação. Uma voz nascida para atrair, seduzir e obrigar que a mais sensata das mulheres perdesse a cabeça. E apostaria tudo o que tinha, que nesse momento consistia em uma camisola gelada e uma manta de tartán emprestada, a que haveria um sorriso devastador acompanhando tudo aquilo. Felizmente ela era imune a tais sandices. O brilho de sua masculinidade se esfumaria, sempre ocorria desse modo. Sem dúvida, estar rodeada todo o tempo por um grupo de criaturas de uma beleza assustadora tinha certos benefícios.
Quando aquele homem acabou por soltá-la no chão e a obrigou que girasse para tê-la de frente, não se sentiu defraudada. Seu sorriso era exatamente tão irresistível como tinha antecipado. Inclusive seu coração, endurecido fazia anos contra essas impressões, acelerou-se um tanto. Mas aqueles cabelos loiros, olhos azuis e aspecto de divindade dourada não a enganavam absolutamente. Por mais que sorrisse, cada um dos centímetros de seu alto e indecentemente musculoso físico de guerreiro tinha escrito sobre ele as palavras bárbaro desumano. Agora, sem seu protetor abraço, sentia novamente como o vento frio atravessava o tartán, e o ajustou sobre a cabeça para cobrir o pescoço com ele.
—Essa pequena fúria tem os ossos afiados —se queixou o guerreiro maior, passando uma mão por sua barriga —, e também os dentes.
O sorriso do capitão se alargou mais, revelando umas profundas covinhas a cada lado da boca, o resplendor de seus dentes perfeitamente alinhados e de brancura impoluta e um brilho cintilante nos olhos. Era algo deslumbrante, e, dadas as circunstâncias, completamente absurdo. Que tipo de monstro atroz podia burlar-se dela e sorrir depois do que tinha planejado?
—Meus mais sinceros parabéns — disse oferecendo uma reverência exagerada — Não acontece com frequência que um de meus homens se veja superado por tal… —seu olhar passeou por seu corpo tentando conter a risada — delicioso adversário.
Aquilo era uma loucura. O que pretendia, matá-la com sua sedução? A que tipo de crueldade jogava? Ao violador brincalhão? Ao assassino magnânimo? Não pôde aguentá-lo por mais tempo. O medo se apoderou dela e as lágrimas começaram a sulcar seu rosto.
—Não o faça —suplicou — Juro que não ouvi nada. —Elevou a vista para olhá-lo com lágrimas nos olhos enquanto o gelado vento salpicava seu rosto — Não me faça mal, rogo-lhe isso.
Qualquer sinal de leveza se apagou do rosto de Erik. A Ellie deu a sensação que não se mostrava sério em muitas ocasiões, mas que desta vez sim o era. Seus olhos cruzaram com os dela. «Têm que ser azuis», pensou absurdamente.
—Não têm nada a temer de mim nem de meus homens. Não lhe faremos mal.
Sua voz era amável e sincera, mas as lágrimas não fizeram a não ser brotar com mais força, irritando sua garganta e penetrando em seu nariz. Estava desesperada por acreditar no que dizia, por agarrar-se a qualquer fio de esperança, por mínimo que fosse.
—Mas ouvi o que disse — balbuciou.
O gesto da boca dele se torceu. Como o resto de sua pessoa, estava excessivamente bem formada, larga e suave, com um delicioso brilho de travessura nela.
—Era algo necessário. As inclinações de meu acompanhante não eram tão compassivas. Se não tivesse dito aquilo, não teria permitido que partisse conosco.
Ellie não se atrevia a acreditar naquilo. Era possível que dissesse a verdade?
—Então me levarão de volta? —perguntou sem poder evitar o tom de esperança na voz.
—Temo que não posso fazer isso. Ao menos, por agora não.
A alegria se desvaneceu de seu peito.
—Mas por que não? —Então lhe assaltaram as razões. Igual ao outro homem, tampouco ele queria correr o risco que tivesse ouvido algo — Juro que não ouvi nada! Não sei nada a respeito de seus negócios. —Apesar que a sua cabeça acudiam coisas como a pirataria e o contrabando — Não direi nada a ninguém! Rogo-lhe, me devolva junto a minha família. —Começou a tremer de novo — Estarão muito preocupados comigo.
Examinou seu rosto à luz da brumosa lua em busca de algum sinal de permeabilidade, mas sua resolução era tão rígida e inquebrável como o resto de seu corpo. Erik permaneceu de pé frente a ela com o corpo em tensão, como se seus rogos o incomodassem.
—Me acredite, moça, não desejo mais que você que permaneça aqui. Mas por agora temo que teremos que nos aguentar com esta situação. Têm minha palavra que lhe devolverei junto a sua família logo que seja seguro fazê-lo.
Dirigiu-lhe outro desses sorrisos que tinham como claro encargo deslumbrar, mas mal fez racho nela. A frustração bulia em seu interior. Aquilo não era justo. Não sabia nada de seus assuntos. Por que não acreditava?
—E se supõe que tenho que acreditar na palavra de um pirata nórdico?
Erik arqueou uma sobrancelha surpreso pela acusação e, depois disso, sorriu como se houvesse dito algo que o divertisse.
—Nórdico só em parte.
Um homem das ilhas. Deveria ter-se precavido ao ouvi-lo falar. Era gall-gaedhil, tinha parte nórdica e parte de ilhéu gaélico. Mas tudo nele era pirata. Os homens das ilhas eram tão famosos como seus ancestrais nórdicos quanto à pirataria. Ellie advertiu que não se mostrava em desacordo com ela quanto a sua ocupação.
—E como a minha é a única palavra que pode obter, temo que terá que aceitá-la.
Por dentro estava furiosa, mas guardou silêncio consciente de que tinha razão.
—Como se chama, moça? Têm um marido esperando em casa?
A pergunta a sobressaltou. Olhou-o com cautela, perguntando a razão da questão. O que pretendia? Saber se podia pedir um resgate por ela? Ou —Deus não o queria— obrigá-la a desposar-se?
—Ellie — respondeu com reserva. Certamente teria ouvido como Matty a chamava — Não estou casada. Como sabe, estava com o grupo da praia para o Banho das Donzelas.
Seu olhar mudou subitamente e Ellie se perguntou se não teria pretendido enganá-la.
—Então é da vila?
O sangue do nobre mais poderoso da Irlanda corria por suas veias, assim quase era um ato reflexo elevar o queixo e lhe oferecer um desdenhoso «é obvio que não». Mas sabia que devia andar com cuidado. Não queria revelar sua identidade, mas também sabia que sua fila lhe permitia certo amparo, já que animava aos rufiões a manter-se a distância. A resposta veio a ela de maneira repentina.
—Sou a babá dos filhos do conde.
Tratava-se de uma posição de respeito, e mais ou menos se parecia com a verdade, pensou Ellie com sarcasmo. Acaso não era certo que todos os homens queriam a sua babá?
Um estranho sorriso percorreu o semblante de Erik ao tempo que assentia, aceitando sua explicação com uma facilidade que resultava pouco consoladora. Mas o certo era que, enrolada nesse tecido de tartán e agasalhada com uma simples camisola, desprovida de suas custosas vestimentas e joalheria fina, seu aspecto não resultava mais nobre que o de um… pirata. Sabia que era para tornar-se a rir, mas lhe dava a impressão que aquele homem tinha certo ar de nobreza. Havia algo na posição de seus ombros, sua auréola de autoridade e o arrogante brilho de seus olhos. Tentou tirar aquela ideia da cabeça. Não podia ter pensamento mais ridículo a respeito ao selvagem que a tinha sequestrado. Estava claro que a noite tinha sido longa.
O pirata desabotoou o broche que levava no pescoço e se desprendeu da pesada capa forrada de pele que cobria seus ombros.
—Tome —disse — Deve estar congelada.
Estava, mas a surpreendeu que tivesse tanta consideração. Ao que parecia, tinha sido sequestrada por um pirata sedutor e galante. Ellie era orgulhosa, mas não tinha perdido a cabeça. Aceitou a capa assentindo levemente e se aconchegou entre suas profundas dobras. Sentiu-se na glória. Apesar de ainda estar molhada, aquela peça era de uma calidez surpreendente. Mas se negou a lhe dar a satisfação de emitir um suspiro de alívio.
—Posso confiar em você para que fique quieta, ou terei que fazer que Domnall a ate?
Aquele perverso resplendor de seus olhos lhe dizia que ele preferiria o segundo. Ellie mascarou o ultraje que sentia e enfrentou seu pícaro sorriso usando o olhar de tédio que punha quando seus irmãos tentavam lhe fazer perder os estribos. Olhou-o por cima do ombro, lhe devolvendo o desafio.
—Eu posso confiar em você?
Uma parte da boca dele se torceu para mostrar um sorriso fanfarrão.
—Já o veremos. —Fez uma reverência de brincadeira e acrescentou —: Milady. —Dito isso, voltou para seu posto na popa do navio. Inclusive caminhando se pavoneava.
Ellie voltou a ser arrastada até a incômoda arca junto ao homem maior ao que tinha chamado Domnall. Sem sentir-se já condenada a converter-se em um pedaço de gelo humano, quente pela primeira vez no que tinham parecido horas, ficou com o olhar fixo na densa bruma da noite, observando como a cada remada o navio se afastava mais e mais de seu lar. O terror se esfumou um tanto, mas não a desesperança. Podia acreditar em sua palavra? Seria certo que não lhe faria mal? Parecia falar com honestidade, e Ellie queria acreditar nele com todas suas forças. Olhava-o furtivamente sob o véu de suas pestanas. Parecia discutir com um jovem guerreiro de cabelo negro que, conforme tinha parecido a ela, tinha tentado sair a seu resgate na cova. Havia algo nesse jovem guerreiro diferente de todos os outros. Não era somente porque fosse moreno. Era o único que levava cota de malha em lugar do cotun de guerra mais leve que estavam acostumados a levar os gaélicos. A cada tanto o olhar do jovem se dirigia para ela, deixando claro que a discussão a tinha como objeto, o qual não podia ser bom. Quem sabia o maligno plano que o capitão reservava para ela? Ergueu seu corpo, esporeada por uma determinação que endireitava suas costas. Um rosto bonito e um encanto endiabrado não poderiam enganá-la. Seu captor era um pirata e, obviamente, estava envolvido em alguma traição. É obvio que não podia confiar nele. Ellie voltou a vista para o negro horizonte que se estendia ante ela, observando e esperando um sinal. Quando chegasse a oportunidade de escapar, estaria preparada para isso.
Aquela conversação com a moça perturbava Erik mais do que queria fazer ver. Não era porque ela o acreditasse um pirata. Tinham-no chamado coisas piores e, sem dúvida, havia algo de certo em sua caracterização. De fato, que acreditasse assim provavelmente seria de ajuda. Se pensasse que era um pirata, não o relacionaria com Bruce. E tampouco era pelo medo inicial que lhe tinha professado, o qual compreendia e dava por sentado pelas circunstâncias. Não, o que o incomodava era como tinha reagido ou, talvez deveria dizer, que não tivesse reagido, a seus encantos. A moça era absurdamente imune a suas tentativas de fazê-la sentir cômoda. E isso que tinha feito o que levava praticando desde que esteve sobre o colo de sua mãe, quando seus sorrisos e caretas provocavam os satisfeitos arrulhos de sua idolatrada mãe e de suas cinco irmãs mais velhas.
Havia três coisas que Erik fazia à perfeição: dirigir um navio, brigar e agradar às moças. Era algo que dava por certo, como os peixes no mar e os pássaros no céu. As mulheres o adoravam tanto como ele a elas. Assim era de singelo e simples. De modo que tinha sorrido com a intenção de dobrar qualquer oposição, tinha-lhe falado com amabilidade e respondido pacientemente suas perguntas. E apesar de tudo, ela mal parecia apreciar seus esforços no que deveria ter sido, como de fato estava acostumado a ser, algo natural. Ficou circunspecto. Não estava acostumado a chegar tão longe para seduzir a uma moça, e fracassar nisso de maneira tão miserável resultava um tanto inquietante. Talvez fosse uma estranha doença congênita nas babás. Não o surpreendia absolutamente que aquela fosse sua profissão. Casava à perfeição com essa eficiente e prática confiança em si mesma que tinha advertido anteriormente. E quando o olhou por cima do ombro e lhe obsequiou com esse sorriso condescendente, havia trazido a sua memória imagens que evocavam Ada, aquela velha imperiosa. Havia algo nessa moça que o incomodava, e não via o momento de livrar-se dela. Isto era o que tinha tentado deixar claro a Randolph.
—Levarei-a de volta quando for seguro — repetiu Erik em voz baixa. Pode ser que se afastaram de Dunluce, mas aquilo não significava que estivessem fora de perigo. Os homens de Ralph de Monthermer poderiam rondar por toda parte — E agora não o é —acrescentou assinalando algo que claramente era óbvio.
Ralph insistia em mostrar-se contrariado.
—Não é o correto. Não foi sequestrar a moças inocentes pelo que me uni a meu tio. Isto nos faz parecer piratas bárbaros, como nos chamam os ingleses.
Erik o atravessou com o olhar.
—Preferiria que a deixasse a mercê dos homens de MacQuillan?
O jovem cavalheiro ficou à defensiva.
—É obvio que não. Eu teria insistido…
Erik riu ante sua simplicidade.
—Poderia ter insistido tudo o que quisesse, mas à moça teria talhado o pescoço assim que saíssemos da cova. Tirei-a dali da única forma que podia.
Randolph se ruborizou.
—Se não pudermos levá-la de volta, por que não a liberamos em qualquer ponto da costa e que ela se encarregue de encontrar o caminho até sua casa?
—Me acredite, se pudesse fazer isso, não o duvidaria. Não tenho mais interesse que você em arrastar a uma moça conosco. Mas não estou disposto a pôr em perigo nossa missão e a oportunidade de seu tio de reclamar o que lhe roubaram por culpa de uma moça. E você?
—Ela disse que não ouviu nada.
—Já sei o que disse, mas o que ocorrerá se esta mentindo? —Erik deixou em suspense a pergunta e negou com a cabeça — Não penso me arriscar.
—E o que pensa fazer com ela?
Não tinha a mínima ideia. Seus planos eram reunir-se com Bruce e o resto em Finlaggan, o castelo que seu primo tinha em Islay, informar a respeito de seu encontro e começar os preparativos para o ataque. Mas se no momento a moça realmente ignorava seu plano, a coisa mudaria assim que visse Bruce. Por outro lado, se a levava ante o rei, poderia desfazer-se dela com maior celeridade, algo que naquele momento soava bastante apetecível.
Examinou a paisagem que tinha frente a si sem ver nada salvo névoa e escuridão. Tudo estava calmo. Quase muito calmo. Os navios ingleses se encontravam ali fora, em alguma parte.
—Neste momento, o único que penso é em nos manter fora do alcance das patrulhas inglesas. Depois me preocuparei com a moça.
—Eu não gosto disso — disse Randolph obstinadamente.
Erik olhou para sua inesperada acompanhante, cuja esbelta figura ficava completamente envolta na capa de pele que lhe tinha dado. Sua aparência não tinha melhorado grande coisa após sucessivas prospecções. Não era feia, mas tampouco formosa, mas sim se achava em algum ponto intermediário. Certamente, não era o tipo de mulher que o voltava louco. Aquilo com o que contava, teve que supor, não era mais que algo natural em um corpo meio nu pressionado contra o seu. Para ser tão magra, tinha um corpo surpreendentemente suave. Ao olhá-la, sentiu um formigamento na pele e um estranho comichão que descia pelas costas. Ficou surpreso ao precaver-se que aquilo mesmo lhe tinha passado ao apertá-la contra seu corpo. E talvez essa fosse a reação que mais o incomodava de todas. Aquilo não o agradava. Por uma vez teve que estar de acordo com o jovem sobrinho de Bruce.
—Nem a mim tampouco, moço, nem a mim tampouco.
E menos ainda gostou momentos depois.
Erik acabava de dar a ordem de virar ao este em direção a Islay, depois de decidir vendar os olhos da moça e deixá-la no birlinn para evitar que pudesse delatar Bruce, quando advertiu a presença de uma vela atrás deles. Mas aquilo não o preocupava. Com a vela arriada, seu bote era virtualmente invisível ante aquele pesado manto de escuridão e brumas. Se ao final o outro navio conseguia descobri-los, sempre poderia içar a vela e conseguir ir mais rápido que eles.
Não, uma só vela perseguindo-o não lhe preocupava o mínimo. Mas aqueles três pontos brancos situados frente a eles, que tinham surgido no meio da noite e corriam paralelos à costa, avançando a toda vela em sua direção eram algo que dificilmente podia evitar. Resmungou. Aquela longa noite tinha reflexos de prolongar-se mais ainda. Acaso aquela maldita frota inglesa não dormia alguma vez? Na ditosa boca do lobo, disse-se uma vez mais. Apesar dos prometedores começos, essa viagem a Dunluce estava se convertendo em uma autêntica dor de cabeça.
Com aquelas três naves frente a ele, a que levava na cauda e a costa irlandesa à direita, não ficava mais alternativa para burlá-los e pôr rumo ao norte com o mar e vento a favor. Advertiu que as velas ficavam apenas a distância de visibilidade. Ainda havia tempo. Em tanto que permanecessem em silêncio, poderiam escapar.
«Em silêncio. Diabos!». Dirigiu seu olhar para a moça um segundo tarde. Ouviu a imprecação surpreendida de Domnall seguida da batida sobre a água. Erik atuou sem pensar e se atirou atrás dela completamente vestido e armado. Não lutou contra a corrente que o levava para baixo à medida que a água entrava por seu peitilho, mas sim esperou uns segundos até que o peso se equilibrou. Mal percebeu aquele golpe de água fria que o atravessava como aguilhões de gelo, lhe impregnando até os ossos. Somente podia pensar em alcançá-la antes que pudesse gritar e advertir os ingleses de sua presença. Seguiu o leito de água pelo que ela mergulhou e, ao não encontrá-la imediatamente, voltou para a superfície. As ondas cabeceavam acima e abaixo, mas não havia nem rastro dela. Onde demônios se colocou? A problemática moça fez que se arrependesse ao momento daquele ilegítimo ato de galanteria que tinha cometido por salvar seu enxuto pescoço. O que faria seria retorcê-lo com suas próprias mãos assim que a apanhasse. Viu como seus homens apareciam pela amurada e olhavam para a escuridão em uma tentativa de encontrá-la. «Veem algo?», sussurrou-lhes. Negaram com suas cabeças. Erik amaldiçoou e voltou a mergulhar sob a água. A estúpida menina acabaria afogando-se sozinha. Por que não tinha atendido a suas palavras?
«Porque tem medo. De mim».
Precaver-se daquilo o incomodou. Que uma moça fugisse dele não era algo que estava acostumado. Alargou os braços para a escuridão das águas com a esperança de encontrar uma perna, um braço, uma espessa mecha de cabelos. Nada. Voltou a ascender, consciente de que não era possível que ela aguentasse a respiração tanto tempo.
E não o tinha feito. Um grito de surpreendente volume atravessou o ar escuro da noite: «Socorro!», gritou em inglês com toda a força de seus pulmões. «Por aqui, por favor, me ajudem! Sequestraram-me os piratas!»
Absolutamente era uma estúpida. Tinha-a menosprezado. Em lugar de mergulhar para frente como teria feito qualquer outra pessoa, inundou-se sob o bote para sair por estibordo, para onde não olhava ninguém. Além disso, era uma boa nadadora, já que tinha percorrido ao menos quarenta braçadas antes de dar a voz de alarme. Teria admirado aquele esforço se não fosse lhe causar um verdadeiro amontoado de problemas.
Já a teriam ouvido? A moça emitiu outro grito dilacerador que o fez estremecer. Pardiez, meia Irlanda a teria ouvido então. Mas no momento os galeões ingleses ainda não tinham variado seu rumo. Inundou-se de novo e nadou tão rápido como pôde. Se não a tinham ouvido ainda, demorariam muito pouco em fazê-lo. A moça já tinha tido suficiente diversão por aquela noite, e Erik estava a ponto de pôr fim a isso.
Infelizmente, não demonstrou ser tarefa fácil. Seu cotum empapado e suas armas se interpunham contra a forte corrente, de maneira que chegar até ela foi mais custoso do que o esperado. Mas então já era muito tarde. Quando Erik subiu à superfície, chegaram até ele gritos da amurada das embarcações situadas a oeste. As três tinham posto rumo para eles e recortavam a distância com rapidez. Tinham-nos descoberto. O tempo de diversão acabou. Tinha que prender à moça e levá-la ao navio logo que pudesse. A problemática babá estava ainda a vários pés de seu alcance e nadava com força ao tempo que gritava. Mas suas forças começavam a falhar, algo que não era surpreendente. O frio diminuía inclusive suas próprias faculdades, e ele tinha recebido um intenso e prolongado treinamento. Estava a ponto de alcançá-la quando ouviu que Domnall lhe gritava: «A suas costas, capitão!». Ao olhar a redor, viu uma cabeça que se balançava acima e abaixo chapinhando de maneira frenética a uns vinte pés de distância.
Pelas chagas de Cristo! Acaso essa aventura noturna não acabaria? Randolph, o maldito idiota, ao que parecia, tinha decidido jogar de cavalheiro andante e resgatar à moça por si mesmo, mas tinha se esquecido de fatores como a corrente e sua pesada cota de malha. Uma onda rompeu sobre ele e já não o viu mais. Domnall tinha investido o rumo da nave para dirigir-se em sua busca, mas Erik estava mais perto. Inspecionou os movimentos da moça rapidamente. Tinha parado de nadar e gritar e parecia tentar conservar suas energias. Seus olhares cruzaram na escuridão. O pulso de Erik acelerou de um modo estranho. Teria jurado que podia ler em seus olhos a silenciosa súplica de ajuda que aquela teimosa boca se negava a pronunciar. Seus instintos clamavam por responder a essa prece silenciosa, mas se forçou a pensar de maneira racional. Ela contava com um tempo que o sobrinho do rei carecia.
Nadou com tanta força como nunca o tinha feito em sua vida, mergulhando nas profundidades até que pensou que seus pulmões explodiriam pela pressão. Randolph, arrastado por sua própria cota de malha, afundava-se como uma pedra. Erik mal pôde agarrá-lo a tempo. E quando o fez, empregou cada grama de força que o subtraía para poder levá-lo até a superfície. O cavalheiro parecia ter tomado o peso de três guerreiros highlanders. Felizmente, no momento em que emergiram daquela tumba marinha, Domnall já tinha aproximado o bote e estava preparado para puxar o inanimado corpo de Randolph da água. Seus homens se ocupariam de extrair a água de seu corpo a golpes, e talvez de passagem conseguissem pôr um pouco de sensatez nele.
O olhar de Erik inspecionou imediatamente os escuros e turbulentos mares para localizar à moça. Podia ver de soslaio como se aproximavam perigosamente as velas dos navios ingleses.
—Onde está? —conseguiu dizer entre uma baforada e outra de ar.
—A perdi — disse Domnall negando com a cabeça.
Erik não podia acreditar. A ira e a frustração se apoderavam dele à medida que esquadrinhava a escuridão de maneira frenética. Não só tinha jogado os ingleses em cima deles, mas sim aquela maldita moça tinha escapado e conseguido acabar com sua vida no processo.
Capítulo 4
O momento triunfal de Ellie acabavam. A onda de satisfação que tinha sentido ao escapar de seus captores e alertar aos navios da patrulha inglesa de sua presença logo se desvaneceu no gelado abraço daquele turbulento mar. Resultava irônico, pois não era o frio ou o cansaço, nem as fortes correntes, o que anunciava sua derrota, a não ser algo muito mais inoportuno. Aquela pequena cãibra começou pelo flanco para depois expandir-se pelo resto de seu corpo como se tratasse de uma faca que cerceava o controle de seus músculos de uma atroz fatia. Um momento antes se via avançando pela água e ao seguinte já não podia mover-se. Por um instante pensou que tudo sairia bem. O capitão dos piratas ia nadando atrás dela a um ritmo que parecia impossível de manter. Ellie se precaveu de algo quando seus olhos se encontraram. Fosse pirata ou não, estava segura que não a deixaria morrer. Mas então advertiu ao outro. Um segundo homem se lançou por ela e sacudia os braços atrás dele. Quando o capitão voltou a olhar em sua direção, Ellie compreendeu o que faria: tinha que decidir-se entre seu homem ou ela. E ganhou seu homem. Não podia culpá-lo pela escolha. Era ela quem tinha provocado aquela situação. «Mantenha a flutuação. Virá te resgatar.» Mas seu tempo tinha expirado.
Momentos depois que o homem desaparecesse sob a água, lhe retorceu o estômago, e a tensão dos músculos de seu corpo era tal que parecia vítima do impacto de um raio. Incapaz de lutar contra isso, a água a arrastou para as profundidades. Esperou que aparecesse ante ela o feixe de luz que tinha que conduzi-la até o céu, a que a assaltassem as lembranças felizes, a deixar-se levar por uma sensação de paz. Mas à medida que sentia a queimação da água no interior de seus pulmões, que o pânico se apoderava dela e seus olhos contemplavam impotentes o negro fundo do mar, tão somente podia pensar em que aquela era uma maneira horrível de morrer. Especialmente porque mal tinha tido tempo de experimentar a vida.
Erik se negava a dar-se por vencido tão facilmente e mantinha os olhos fixos nas agitadas ondas. Era impossível que a moça tivesse aguentado tanto tempo sob a água. Domnall ofereceu sua mão para ajudá-lo a subir ao birlinn, porém Erik a rechaçou.
—Me dê um minuto — disse, para justo depois advertir de soslaio algo pálido que resplandecia na escuridão. Podia ser uma mão? — Ali! —gritou — Viu?
—Não há tempo, capitão — disse Domnall assinalando à frente — Temos que sair daqui. Estão quase em cima.
Sabia que Domnall tinha razão, mas não podia abandoná-la, por mais que merecesse por avisar os ingleses de sua presença. Não podia tirar da cabeça a lembrança daqueles olhos ao cruzar seus olhares. Sabia que se não a encontrava, aquele olhar, essa súplica silenciosa, persegui-lo-ia pelo resto de sua vida.
—Icem a bandeira —disse Erik a Domnall — E permaneçam em seus postos.
Aquela interessante noite estava a ponto de melhorar ainda mais se podia. Dirigiu-se para o lugar que tinha detectado o movimento, sentindo uma repentina descarga de energia que renovou as forças de seus decaídos membros. Mergulhou sob as ondas tentando pescar algo com suas mãos nas profundidades, até que sua persistência recebeu o prêmio de ver seus dedos emaranhados em um arbusto de compridos cabelos molhados. Momentos depois, seus braços rodeavam a cintura da garota e voltava com ela à superfície. Sua cabeça olhava para o outro lado, mas podia ouvir o doce ferver da água ao sair de seus pulmões em sua tentativa por recuperar o fôlego. Tinha chegado a tempo. Ao tê-la tão perto, percebia com claridade o amalucado ritmo de sua pulsação, o delicado peso daqueles pequenos seios que caíam sobre seu braço e bamboleavam ao ritmo que ditavam seus esforços por conseguir aspirar todo o ar que pudesse.
—Tranquila —disse roçando sua orelha com sua boca para serená-la — Está a salvo, tè bheag.
«Pequena.» Aquelas carinhosas palavras escaparam de sua boca sem que ele se precavesse disso. A moça havia se aconchegado em seus braços como um bebê, de modo que quando concordou em deixá-la nas mãos de seus homens, fez-o não sem certa reserva. Assim que Domnall alargou os braços para subir à moça ao navio, Erik pôs seus olhos sobre os galeões que se aproximavam. Os ingleses estavam já virtualmente sobre eles. Tinha um minuto, talvez segundos, antes de ficar a tiro de arco. Poucos minutos depois as naves os rodeariam.
Navegar ao norte com vento contra tinha deixado de ser uma opção. Aquelas embarcações tinham muitos remadores, e Erik não contava com espaço suficiente para tentar mover-se entre o vento fazendo esses de um lado a outro. Tampouco daria tempo dar meia volta por onde tinham vindo e tentar superá-los. Para o sul ficava a Irlanda e sua rochosa costa. Sua única opção era antecipar-se ao que eles pensassem, já que os navios ingleses tinham avançado até ficar a uma distância de onde chegariam os projéteis de seus arqueiros. Se tentasse que seu birlinn navegasse entre eles, receberia uma chuva de flechas de ambos os lados.
O galeão de estibordo tinha variado seu rumo ligeiramente para a costa, disposto a cortar qualquer tentativa de rodeá-lo. As opções de Erik se reduziam drasticamente. Os galeões ingleses convergiam a seu redor, com o navio central na retaguarda para permitir que os outros dois se adiantassem e, entre todos, formar um círculo que os rodeasse como uma corda. Mas Erik não tinha intenção de permanecer ali para ser parte do enforcamento.
Tomou a mão de um de seus homens e se elevou sobre a madeira da amurada. Quase antes de pôr os pés no chão já estava dando ordens e tomando o controle dos equipamentos do barco. Jogaram um manto de pele sobre seus ombros, mas o frio era o que menos o preocupava nesse momento. Sentiu como estalava sobre sua nave a energia desprendida pela excitação de seus homens quando se precaveram do que se dispunha a fazer. Era um pouco ousado e audaz. Inclusive para ele.
«Nada como um ataque surpresa direto», pensou Erik com um sorriso de antecipação. A maneira mais rápida para sair daquilo era dirigir-se ao coração da armadilha que acreditavam ter estendido. Somente tinha que chegar até ali antes que os dois navios que navegavam a ambos os lados pudessem ajustar seu rumo e lhes cortar o passo. Seria arriscado, mas o risco era algo pelo que valia a pena viver. Sentiu a afiada rajada do vento em suas costas e sorriu, consciente que os deuses estavam a seu lado.
Que noite! E ainda não tinha terminado. O sangue corria com força por suas veias ao pensar nos momentos que ficavam por vir. Seus sentidos estavam concentrados na tarefa que tinha ante si. Reafirmou suas mãos para agarrar com força as robustas cordas de cânhamo e deixou ir a vela um tanto. Os cabos o puxaram com força à medida que a vela se enchia com o vento, e teve que firmar os pés quando o birlinn saiu disparado como uma seta para o navio do centro. Ao dirigir-se para este último, saíam da distância de tiro dos outros dois galeões, mas ainda teriam que lutar com as do navio que se achava frente a eles.
Randolph elevou a cabeça sobre seu peito justo para olhar a seu redor e ver o que estava acontecendo. Tiritava pelo frio e, ao ter estado tão perto de afogar-se, tinha uma voz débil e rouca.
—O que está fazendo?
Erik advertiu o alívio que o enchia ao ouvir que a moça se recuperou o suficiente para poder responder.
—A menos que me equivoque — disse —, acredito que tem intenção de abordar a três galeões ingleses.
—Não, seguro que não se equivoca — respondeu Randolph negando com a cabeça — Soa exatamente como o tipo de coisa que ele faria.
O alagado cavalheiro voltou a ocultar sua cabeça entre os joelhos, como se aquilo lhe importasse três pimentas. Erik pensou que se isso significasse que não teria que ouvir as incessantes queixas do cavalheiro toda a noite, talvez tinha valido a pena. Sentiu sobre ele todo o peso do olhar da moça.
—O que pretende, nos matar?
Erik retirou seus olhos do objetivo inglês por um segundo para lhe oferecer seu descarado sorriso.
—Não, se pestanejarem primeiro.
A que se referia com «se pestanejarem primeiro»? A surpresa se apoderou do rosto de Ellie assim que o compreendeu. Não, não podia estar falando a sério. Ah, mas sim, falava a sério. Apenas olhando esse diabólico sorriso, soube exatamente o que pretendia. Em lugar de render-se, como faria qualquer pessoa em seu são julgamento ao ver-se encurralado, o capitão pirata tinha intenção de liberar um ataque direto indo para o galeão inglês e obrigando que fossem eles os que teriam que girar para esquivar-se dele. Tratava-se de um machismo em forma de justa a vida ou morte para comprovar quem tinha os nervos mais temperados.
—Não, não, não o diz a sério — balbuciou.
Erik simplesmente sorriu, o que indicava que falava completamente a sério.
—E o que acontecerá se não virar a tempo? —perguntou a moça — Acabaremos todos no mar.
Erik se encolheu de ombros.
—Não será pior que o que planejam fazer conosco. Além disso — acrescentou piscando um olho —, meus homens sabem nadar.
Algo que provavelmente não se poderia dizer dos ingleses. Uma das incongruências da navegação era que a maioria dos marinheiros não sabiam nadar.
Pensava levá-lo a cabo. Era imprudente. Era temerário. Era agressivo e audaz. Ellie suspeitava que este era seu comportamento habitual. Permaneceu olhando-o com uma mescla de incredulidade e admiração involuntária. Quem era esse homem? Ou não estava em seu cabais ou era um insensato. Provavelmente as duas coisas. Somente teria que olhá-lo, sorrindo como se em lugar de estar a borda da morte ou de ser capturado estivesse passando o melhor momento de sua vida. O via como peixe na água, controlando tudo, com os pés separados e o corpo em tensão para aproveitar o poder do vento, como se aquilo não fosse mais que uma viagem de prazer ao redor das ilhas durante uma aprazível tarde de verão. Ao observá-lo, soube, sem nenhuma dúvida, que aquele homem jamais cederia. Cada um dos musculosos e gigantescos centímetros de seus dois metros de altura gotejavam confiança e autoridade. Preferiria cair lutando repleto de glória antes de render-se. Somente ficava rezar para que o capitão inglês mostrasse menos fortaleza.
A ação acontecia a toda velocidade e, apesar disso, cada segundo passava com uma lentidão angustiante. Não podia fazer mais que observar em um silêncio aterrador de sua posição junto à proa, enquanto o navio inglês se aproximava mais e mais. Domnall ao tomar o leme, tinha a colocado sobre a coberta do bote, acoplada entre dois remadores, recebendo ordens de permanecer com o corpo abaixado. O homem que quase se afogou antes em sua tentativa por salvá-la, o mesmo que se posicionou a seu favor anteriormente, estava frente a ela, abaixado sobre o chão. Ellie mordeu o lábio sentindo remorsos. Inclusive ante a nebulosa luz da lua podia distinguir que não se encontrava bem. Seu rosto estava da cor de cera e não parava de tiritar. Seus companheiros jogaram umas mantas por cima, mas não tiveram tempo para muito mais. Igual a ela, todos os ocupantes do navio estavam pendentes do drama que acontecia no mar. Mas ao contrário dela, o resto dos homens parecia desfrutar até a extenuação. Estava claro que confiavam cegamente em seu capitão, embora tivesse intenção de pô-los nos braços da morte. Jamais chegaria a compreender aos homens. Como podiam brincar e jogar assim com sua vida? Eram capazes de morrer afogados no fundo do mar e fazer um concurso para ver quem chegava primeiro. Seus dedos se aferraram as bordas do tartán e da pele que haviam tornado a jogar sobre seus ombros de maneira apressada após tira-la das garras do mar. Embora não por muito tempo…
Os navios se aproximavam um do outro a uma velocidade alarmante. E então, com muita claridade, ouviu uma voz de homem gritar em inglês: «Preparados!». E depois de uma pausa, a ordem: «Disparem!».
O capitão pirata estava sobre aviso: «Se cubram, moços!». A seu redor todos os homens elevaram os escudos sobre suas cabeças, formando um pálio de madeira e pele que os protegia contra a chuva de flechas inglesas. Um aterrador golpe surdo e seco a sacudiu, mas se sentiu aliviada ao comprovar que se tratava de uma flecha que tinha acertado sobre a madeira e não sobre um osso.
Apesar da avalanche de flechas, o navio não diminuiu sua marcha, mas sim aumentou a velocidade. Mais rápido, mais perto; seu pulso ao compasso da marcha. Precaveram-se os ingleses de que eram eles os que estavam sendo atacados? Ellie não acreditava. Aquela mesma voz inglesa bramou sulcando as ondas, desta vez com mais força: —Se detenha! Estão presos!
O som rouco e profundo da risada do capitão dos piratas a fez estremecer de cima abaixo.
—E vocês estão em meu caminho.
—Se afastem! —exigiu o capitão inglês, mas em sua voz já não havia tanta convicção.
Embora as flechas seguiram voando em sua direção, o capitão pirata não cedeu nem um centímetro. Mantinha um rumo estável e fixo, inclusive quando tinha que proteger-se para evitar as flechas que apontavam a sua cabeça.
—Venham por mim, moços! Minha irmã tem melhor pontaria!
Sua voz era tão sossegada! Ellie, em troca, estava tão aterrorizada que tinha esquecido inclusive o frio e todos os incômodos que sentia.
Segundos mais tarde voltava a soar a voz do capitão do navio inglês.
—Se afaste, repito! Se afaste! —E após isto, o som do pânico crescente, os insultos, a raiva — Se afaste de uma vez!
O coração de Ellie tinha parado de pulsar. A tensão era tão densa e pesada como a névoa que a envolvia. Os atacantes estavam a menos de vinte metros e se aproximavam com rapidez. Já podia ver com excessiva claridade a proa do galeão inglês, que ia incrustar diretamente sobre eles. Mal ficavam uns metros. A nave inglesa contava com escassos segundos para virar. «Virem, louco inglês! Virem!» Ellie não podia olhar. Mas tampouco não podia fazê-lo. Tinha um olho na fatal colisão iminente e o outro no homem que estava ao mando do navio. O imenso viking jamais mostrou um pingo de medo. Jamais perdeu o sorriso. E jamais piscou.
Mas os ingleses sim.
Justo quando pensava que não seria capaz de suportar nem um segundo mais, quando a tensão tinha conseguido lhe arrancar o fôlego, Ellie ouviu o grito que lhe ordenava afastar-se e viu como a proa do galeão inglês se movia para a direita. Os piratas gritaram de júbilo enquanto o birlinn passava a toda vela junto à embarcação e aos surpreendidos marinheiros ingleses.
Tinham conseguido! Ellie sentiu tal explosão de alegria que por um momento lhe deu vontade de se alvoroçar de júbilo junto a eles. Até que recordou que os ingleses tinham vindo resgatá-la e que tinha sido ela que os tinha alertado em um primeiro momento. Mas aquilo ainda não tinha acabado. Durante os minutos seguintes, a tensão liberada tão somente diminuiu levemente, em tanto que os ingleses viravam para iniciar a perseguição. O capitão do navio central, que tinha perdido a justa, conseguiu fazê-lo sem naufragar na tentativa, para decepção de alguns dos piratas. Seria um sério revés para o orgulho da marinha inglesa se soubessem a baixa estima que tinham estes «bárbaros» das ilhas de suas qualidades como navegantes.
Segundo os cálculos de Ellie, aquilo significava que levavam quatro navios atrás de sua esteira. O único bote que os seguia em um princípio obteve que retrocedesse a tempo para observar o esforço de colisão, mas não para ser de nenhuma ajuda. Não obstante, ao ir na direção adequada, levava certa vantagem sobre os outros e se mostrou como o mais difícil de burlar. O galeão inglês era maior. Quando menos, tinha o dobro de remadores. Mas o pirata levava o vento a favor. E a Ellie deu a sensação que ele pensava aproveitar ao máximo aquela vantagem. Observou com assombro como firmava as cordas, as esticando até a extenuação contra o vento, fazendo que o navio fosse de vento em popa sobre as ondas e a maior velocidade. Não tinha idéia de como podia navegar a semelhante velocidade na escuridão, com a brumosa luz da lua como única guia, mas parecia saber com exatidão para onde se dirigia. Ellie voltou a vista e percebeu que a imagem dos galeões tremia atrás deles na distância, mas ainda seguiam sua esteira. Depois disto, como indo a sua chamada, o vento se levantou com mais força ainda. O capitão se voltou para trás e flexionou cada um dos formidáveis músculos de seu corpo, dos quais havia um número impressionante, contra aquela força acrescentada. Ellie sentia como se visse um homem com um só braço que praticava luta livre com a natureza e ganhava a partida. Sua imensa vela quadrada estava tão esticada e cheia de ar que Ellie pensou que se romperia em mil pedaços. Não lhe era possível imaginar que tipo de força precisava para atacar tal proeza. Seus ombros eram… incríveis. Sentiu uma insólita revoada na parte baixa do ventre e teve a mais estranha necessidade de rodear aquela massa com suas mãos e fazer pressão sobre ela para comprovar se era da dureza granítica que aparentava. Esse impulso a horrorizou. Resultava aterrador. Inquietante.
Aquilo era o mais excitante que jamais tinha feito em sua vida. Nunca antes havia sentido nada parecido. O fluir da euforia, a excitação que exaltava seu coração, esse louco, selvagem voo através das ondas a uma velocidade que a enjoava. Deu-lhe vontade de gritar, mas tudo que pôde fazer foi sorrir enquanto sentia o vento passar entre seus cabelos e arremeter contra seu rosto orvalhando-o com a água do mar, extraindo lágrimas de seus olhos e enchendo seus pulmões de ar. De novo tinha frio, mas subitamente parecia não importar. No meio daquela loucura, e pela primeira vez em semanas, meses, anos… Ellie podia respirar.
De repente o birlinn começou a abordar a estibordo. Teve que agarrar à amurada para não escorregar pela superfície da coberta.
—Ao porto! —gritou o capitão para o vento.
Os homens se inclinaram para o porto, mas inclusive com esta carga acrescentada sobre estibordo, Ellie percebeu que o navio tomava mais altura. O homem de cabelo escuro que tinha tentado ajudá-la parecia estar sofrendo para manter a posição, assim que alguns dos remadores foram em sua ajuda, que aceitou a contra gosto. Ao precaver-se que ela o observava, animou-os para que o deixassem, assim Ellie olhou para outro lugar tentando não incomodá-lo mais.
Uma grande onda caiu acima do navio e o devolveu à água com tanta força que ele sacudiu o ar de seus pulmões. Por Deus santo, durante quanto tempo podia seguir aguentando as cordas contra uma força como essa? Seus braços tinham que estar ardendo já. Aventurou a olhá-lo, mas o homem permanecia como se nada, ao que parecia imune ao cansaço. Seu coração pulsava a toda velocidade. Dava a impressão que navegavam em direção perpendicular ao oceano. As negras ondas estavam justo abaixo dela. Se tivesse podido deixar de agarrar-se à amurada com todas suas forças, teria sido capaz de alcançar a água e tocá-la com os dedos. Não pensava que seu coração pudesse aguentar por muito mais tempo.
—Diminua! Vamos muito depressa! —ordenou Ellie — Fará com que viremos!
Não podia estar segura, mas lhe deu a impressão que o olhar do pirata brilhou na escuridão. O branco resplendor de seus dentes, não obstante, resultava inconfundível. Ellie reconheceu seu engano com um medo que a sobressaltou. «Nunca desafie ao diabo.» Tinha tomado suas palavras como uma provocação pessoal.
—Se agarre forte! —disse em um tom de diversão evidente em sua voz.
O cavalheiro de cabelo moreno a fulminou com o olhar e agitou a cabeça como dizendo: «No que estava pensando?».
O capitão segurou mais os cabos se possível. O coração de Ellie deu um salto. Juraria que aquele navio se elevava por cima das ondas e que estavam voando. Planavam sobre o mar como um pássaro em pleno voo. Era a coisa mais impressionante que jamais tinha vivido, algo aterrador e emocionante ao mesmo tempo. Quando já pensava que estavam a ponto de se chocar contra a costa da Escócia, o capitão acabou por diminuir a marcha e ordenou a Domnall que virasse para o norte. Com um destro golpe dos cabos, o capitão amainou e devolveu o bote à superfície da água, com o que seus homens puderam voltar para os remos.
—Parece que os perdemos, capitão — disse um moço de não mais de dezesseis anos que devia servir como feitor.
—Bem.
Ellie advertiu que com toda aquela emoção se esqueceu por completo dos navios que seguiam sua esteira. Mas, ao que parecia, o moço estava certo: o pirata tinha evitado quatro galeões ingleses com uma combinação de velocidade e habilidade em manobras jamais vistas. Seu olhar voltou a recair sobre o capitão pirata, que ajudava seus homens a arriar a vela para que o birlinn voltasse a desaparecer entre a noite e a converter-se de novo em um navio fantasma. Não queria estar impressionada, mas estava. Aquele pirata fanfarrão, com seu sorriso de galo de briga e essa inalterável segurança em si mesmo, devia ser um dos melhores marinheiros do reino navegante das terras do West Highland. Uma pena que as ilhas e os homens que as habitavam fossem tão indômitos. Seu cunhado podia fazer uso de homens como este pirata em caso de que algum dia esperasse reclamar ao Eduardo a coroa da Escócia. Mas a causa de Robert parecia perdida claramente. Fazia meses que Ellie não tinha notícias de sua irmã. Rezava para que Isabel estivesse a salvo.
Os cabelos da nuca picavam como se alguém a estivesse observando. Ao afastar seu olhar do capitão, encontrou com que a olhava o jovem pirata de cabelo moreno. Agradeceu que a escuridão ocultasse o rubor causado por ser descoberta olhando o capitão. Mas seus pensamentos deviam ser mais transparentes do que ela pensava.
—Não é somente habilidade, a não ser sorte — disse secamente em um perfeito francês de aristocrata — Jamais vi nada igual. Poderia cair nas porcarias e sair delas cheirando a rosas.
Algo naquela voz chamou sua atenção.
—Não o agrada sua pessoa? —disse Ellie tentando falar em voz baixa ante o buliçoso estrondo que os homens, ainda celebrando a vitória, faziam a seu redor.
O moço a olhou como se fosse boba.
—É obvio que me agrada. A todos agrada. É impossível o contrário.
Ellie inclinou a cabeça surpreendida por sua resposta, até que caiu na conta: estava ciumento. Supôs que era algo compreensível. Embora o pirata de cabelo moreno fosse alto, esbelto e bonito a sua maneira, não era mais que um moço, e provavelmente não podia aspirar competir com aquele guerreiro marinheiro robusto, de bronzeado divino, que estava na cúpula de sua maturidade. O capitão pirata, imponente, com uma beleza que convidava ao pecado, com uma impudência e carisma tão arrebatadoras que seus homens o seguiriam até a morte, emanava paixão e energia. Tratava-se de uma combinação magnética que atraía às pessoas como uma chama às traças, como se simplesmente estando perto dele, esse dourado resplendor pudesse salpicar aos que o rodeavam.
O que sentiria ao beijá-lo? «Pela Muito Santa Virgem, de onde provinha aquilo?» Tinha saído de um nada. Sequer podia recordar ter pensado alguma vez em algo parecido. A única vez que Ralph tentou beijá-la, esteve a ponto de cair doente. Desconcertada pela direção que tomavam seus pensamentos, decidiu mudar de tema.
—Sente-se melhor?
—Sim. Gelado, úmido e com moléstias, mas suspeito que você se sente igual.
Via-se certa melhoria nele, embora duvidasse que o admitisse se este não fosse o caso. Sua pele seguia tendo um brilho doentio, mas ao menos dava a impressão de ter deixado de tremer. Estava sentado sobre a coberta do navio, sob a amurada, ajudando a amainar o vento.
—Como se chama? —perguntou Ellie.
Pôs cara de inquietação e duvidou antes de responder.
—Thomas.
—Se não se importar que o diga, Thomas, não têm aspecto nem tampouco soa muito como um pirata.
Ele abriu a boca para dizer algo e logo a fechou. Seus olhos se cravaram no capitão antes de erguer-se e responder.
—Não sou das ilhas, mas estou com eles.
Ficou circunspeta, pensando em quão estranho era que um jovem, obviamente de nobre berço, algo que não delatava somente sua maneira de falar, mas também seu rosto e fina armadura, unir-se a uma banda de piratas gall-gaedhil. Mas ao precaver-se de que não falaria mais a respeito daquele assunto, disse: —Obrigada pelo que fez na cova, e por saltar à água para me buscar.
Thomas fez um gesto nervoso, como se sua gratidão o envergonhasse.
—Da próxima vez que tente salvar uma moça de se afogar me assegurarei de tirar a armadura antes. Não adverti quão pesada podia ser, nem a fria que estaria a água — disse com um meio sorriso.
Agitou seus morenos cabelos, que, como os dela, converteram-se em icebergs de gelo. Queria adicionar algo mais, mas se viu interrompido por uma forte tosse que piorava por momentos, até lhe rasgar tanto que parecia que ainda tentasse purgar a água de seus pulmões. Ao ver que não cessava, Ellie se alarmou e se aproximou dele para pôr uma mão sobre suas costas guarnecida pela malha. Não era necessário ser curadora para dar-se conta de que aquela tosse não soava bem. Esse moço precisava chegar à costa, secar-se e manter seu corpo quente, algo que ela também agradeceria. Aquelas peles eram quentes, mas tal e como ele havia dito, ela também tinha frio, suas roupas estavam úmidas e sentia incomodo.
Quando por fim parou de tossir, Ellie retirou sua mão sentindo-se coibida.
—Sinto-o — disse — Não queria causar dano a ninguém —acrescentou com uma voz quebrada pela lembrança da terrível noite — Só queria tentar retornar a casa.
—Têm que saber que não lhe fará mal — respondeu ele olhando-a com compaixão — Suas palavras eram honestas. A devolverá a seu lar quando for seguro fazê-lo.
Surpreendeu-lhe precaver-se de que em realidade acreditava no que lhe dizia. Embora não tivesse sentido, aquele capitão pirata a tinha salvado da morte. Os piratas não arriscavam sua própria vida por um prisioneiro sem importância. E apesar disso, ele tinha salvado sua vida; duas vezes, se a gente dava crédito ao que teria passado em caso de deixá-la na cova.
—Quando será isso?
—Não sei — admitiu Thomas.
Não era suficiente. Tinha que retornar a casa. Tinha que fazer saber a sua família que estava a salvo. Não podia navegar pelos mares por tempo indefinido. Pelo amor de Deus, supunha-se que tinha que casar-se! Em sua frustração, esquecia que não esperava esse casamento precisamente com ansiedade.
Voltou-se para o capitão pirata para lhe pedir explicações a respeito do que pensava fazer com ela quando de repente, reconsiderando-o, deteve seus passos. Estava melancólico e havia algo em sua expressão que a inquietou. Embargada pela excitação da perseguição, tinha esquecido momentaneamente a precariedade de sua situação. Mordeu o lábio ao precaver-se de que o mais provável era que estivesse furioso com ela pelos problemas que lhe tinha causado ao tentar escapar. Talvez suas demandas pudessem esperar. Mas antes que pudesse voltar sobre seus passos, o pirata lhe fez gestos para que se aproximasse, com um ligeiro movimento de dedo do qual suspeitava fazia uso frequentemente. Suas costas ficaram em tensão. Havia algo naquele gesto que a arrepiava. A sua cabeça acudiu a imagem de um sultão sarraceno recostado em sua tenda e escolhendo sua próxima donzela. Por mais que ela fosse uma cativa que estava retida contra sua vontade de maneira temporária, não era sua escrava. Inclusive Edmond, o menor de seus irmãos, tinha melhores maneiras. Com seus seis anos de idade, era muito mais adorável que esse viking arrogante e muito gigante, muito bonito até para si mesmo. Bom, meio viking, se corrigiu.
Ellie voltou o rosto de maneira arrogante e se separou dele. Somente quando olhou de esguelha e o viu caminhar para ela pôde reconhecer seu engano. Somente um olhar a seu rosto bastou para gelar seu sangue. Seu insensato ato de desafio tinha feito que fosse às nuvens, e aquela transmutação de simpático safado em viking sem escrúpulos não podia ser mais aterrorizante. Com aquele cabelo loiro e seus gelados traços nórdicos tinha todo o aspecto de um frio e desalmado bárbaro. Sentiu uma necessidade premente de benzer-se. O medo percorria suas costas. O que seria capaz de fazer com ela? Advertiu sua presença atrás de suas costas e se precaveu que estava a ponto de descobri-lo. Quisesse ou não, a hora da verdade tinha chegado.
Capítulo 5
Erik desfrutava rememorando as aventuras da noite junto a seus homens quando advertiu que a moça falava com Randolph. Seu bom humor se evaporou como água orvalhada sobre as rochas de uma sauna. Esperava com todas suas forças que Randolph mantivesse a prudência e não lhe escapasse nada a respeito de Bruce. Quanto menos soubesse a moça, melhor. Já lhe tinha dado suficientes problemas. O qual o recordava, pensou com um brilho diabólico nos olhos, que tinha certas contas que ajustar com a babá Ellie. Assim que esta se voltou para ele e seus olhares se cruzaram, Erik lhe fez um gesto para que acudisse. Sua surpresa não pôde ser maior ao advertir que o olhava aos olhos e voltava o rosto. Aquilo do dedo era um capricho que, segundo sua ampla experiência, amavam todas as mulheres, assim que pareceu algo tão fora deste mundo, já não somente que ignorasse seu gesto, mas sim o rechaçasse, que se não tivesse sido pelo movimento de cabeça com o que o acompanhou teria pensado que não o tinha visto. E isso apesar de estar olhando-o diretamente aos olhos.
Seu caráter se inflamou como um fogo avivado com lenha seca. Embora normalmente era necessária uma ação própria de uma divindade para provocar a ira de Erik, aquela pequena babá o tinha conseguido com um simples movimento de cabeça. Agora bem, teria que admitir que, quanto a movimentos de cabeça altivos se referia, aquele era de uma qualidade extraordinária. Tinha elevado esse pequeno e bicudo queixo para olhar com desdém sob seu magro nariz e depois mover sua gelada juba de ondulosos cabelos morenos como se fosse a rainha da abominável Inglaterra.
Não estava acostumado que o rechaçasse mulher alguma, nem que desobedecessem suas ordens, e nenhuma destas coisas lhe sentavam bem. Quem demônios se acreditava essa insossa babá? Estivesse ali como passageira contra sua vontade ou não, o capitão do navio era ele. E mais lhe conviria aprender a cadeia de mando ao uso. Não pensava permitir que nenhuma babá imperiosa criasse caos em seu navio. Já lhe tinha causado suficientes problemas por uma noite. Não tinham saído totalmente ilesos de sua escaramuça com os ingleses. Um de seus parentes tinha sido alcançado por uma flecha no braço. Nada sério, mas teria que ser atendido, e quanto a Randolph, este parecia sofrer os estragos daquele mergulho que tornou na tentativa de salvamento.
Para evitar a possibilidade de levar os ingleses até o acampamento de Bruce em Islay, Erik tinha decidido ancorar em uma das numerosas ilhas que a costa escocesa tinha entre Kintyre e o condado de Ayrshire. Assim poderia esperar junto a seus homens que os ingleses se cansassem de buscá-los, e depois ir reunir-se com Bruce e o resto das tropas.
Domnall poderia ter levado a moça ante ele, mas sua irritação era tal que foi ele mesmo quem foi até ela como um vendaval. Erik esperava que ela desse a volta, enquanto a moça permanecia ali, como se não se precavesse de sua presença. Mas sabia perfeitamente que Erik estava atrás dela. Podia percebê-lo pela rigidez de suas costas e a respiração entrecortada, algo que lhe pareceu estranhamente erótico. Subitamente incomodado, decidiu esclarecer a garganta. Ela o obsequiou com tal majestoso giro de cabeça que a Erik os músculos do pescoço e ombros se enrijeceram até senti-los arder.
—Pedi que viesse —disse.
Ela fez um leve movimento de cabeça para olhá-lo.
—Ah, sim…? Mmm. Não me tinha precavido.
Erik apertou a mandíbula até que lhe doeram os dentes. Havia algo nessa moça que crispava seu inquebrável bom humor. Deu um passo ameaçador em sua direção e plantou aquela imponente figura ante ela.
—Da próxima vez que a chame, para seu bem atenderá — disse em voz baixa — Me expliquei com claridade?
Os olhos de Ellie se abriram mostrando inquietação, ao tempo que assentia com a cabeça. Erik se deu conta de duas coisas ao uníssono: um, que a moça não tinha tanta confiança em si mesma como aparentava, e dois, que a estava assustando. Perjurou para si e deu um passo atrás, perguntando-se que demônios lhe ocorria. Não era capaz de recordar uma só vez que tinha usado seu tamanho para intimidar uma mulher. Sua cólera se moderou tão rápido como tinha brotado. Isso de intimidar às mulheres não era seu estilo; não precisava fazê-lo. Ao precaver-se que tinham começado com o pé errado, dirigiu-lhe um sorriso e se sentou na arca que ficava frente a ela.
—Pode deixar de me olhar assim. Não penso lhe comer.
Ellie o olhou com receio ao tempo que torcia o gesto.
—Tinha pensado em algum tipo de sacrifício pagão.
Teve que rir. A moça estava obviamente obcecada com seu sangue nórdico.
—Asseguro-lhe que estou completamente domesticado. —Ellie o obsequiou com um olhar que indicava que não acreditava em uma só palavra, e Erik voltou a sorrir. Garota preparada — Se me acha malvado, deveria ver meus primos.
Os MacRuairi faziam que seus ancestrais vikigns parecessem civilizados. Erik tinha se mostrado tão surpreso como qualquer um quando seu primo Lachlan tinha decidido unir-se a Guarda dos Highlanders. Víbora, seu nome de guerra lhe assentava bem. Lachlan tinha o coração e os princípios morais de uma serpente, ou dito em outras palavras: carecia deles. Perguntava-se como iria pelo norte. Tinha estranhado que seu primo bastardo se apresentasse voluntário a acompanhar às damas quando se viram obrigados a separar-se. Como ele, Lachlan, tinha nascido no mar. Permanecer em terra durante tanto tempo faria que seu primo se voltasse meio louco, se é que Bela MacDuff não o faria antes. A desafiante condessa de Buchan, que tinha arriscado tudo para coroar Bruce, não podia ter feito mais patente seu desdém por MacRuairi.
—Obrigada pela oferta, mas acredito que preferirei não fazê-lo — disse a moça sentindo um calafrio.
Erik esperou que o olhasse.
—Não têm nada a temer. Dizia a verdade quando afirmei que estaria a salvo.
Seus olhos se cruzaram por um momento e a Ellie deu a sensação que era sincero. Baixou o olhar e brincou nervosamente entre seus pés com as peles.
—Acreditei que estaria furioso pelo que ocorreu. —Olhou-o timidamente com a cabeça encurvada para acrescentar —: Obrigada por me resgatar. Deu-me uma cãibra e não podia me mover.
Ah, tinha estado perguntando-se qual pôde ter sido a causa.
—O que fez foi muito arriscado. Os navios ingleses não teriam lhe alcançado a tempo. Se tivesse chegado uns minutos mais tarde, teria se afogado.
Ellie arqueou uma sobrancelha com delicadeza.
—E você exorta isso sobre o risco?
Erik sorriu de maneira impenitente.
—Não há risco se souber qual será o resultado de antemão. Navego com o vento a favor. Sempre.
Ellie desprezou aquela fanfarronada elevando a vista ao céu de um modo pouco discreto.
—Como podia estar tão seguro que o capitão inglês aceitaria o desafio em lugar de esperar com seus arqueiros dispostos para o ataque?
Seu olhar se tornou admiração. Se aquela moça tivesse capitaneado o galeão, possivelmente os ingleses teriam tido melhor sorte. Esperar era exatamente o que deveriam ter feito. Não só teriam ganhado tempo para que chegasse ajuda dos outros navios, mas arremeter colocando todos seus arqueiros sobre eles teria dado como resultado um número muito maior de feridos no bando de Erik.
—O sentimento de superioridade dos ingleses — disse com um sorriso — É o que sempre os faz perder.
—E o que há do sentimento de superioridade dos piratas? —perguntou Ellie com malícia.
Erik deixou escapar uma gargalhada.
—Esse também podem dá-lo por descontado.
Aquela menina começava a demonstrar uma companhia mais entretida. Não estava acostumado a ser desafiado por mulheres. Pelo geral simplesmente sentiam prazer em deixá-lo fazer. Ficou observando aquele pálido rosto, como se esperasse que algo tivesse mudado nela, mas seu olhar se encontrou com os mesmos traços anódinos. Não obstante, alegrou-lhe comprovar que o medo tinha desaparecido de seus olhos. Não pôde resistir a tentação de voltar a desafiá-la com suas palavras.
—Saiba que não me engana absolutamente.
—Ah, não? —disse Ellie olhando-o velhacaria.
—Não — respondeu ele negando com a cabeça. Tinha visto a cara que tinha quando voavam sobre as ondas. Pela primeira vez seu semblante não adotava a expressão de quem leva o espartilho muito apertado. Erik balançou os pés e cruzou os braços sobre o peito — Estava passando muito bem.
Inclusive com aquela escuridão advertiu que ela ruborizava.
—Estava morta de medo — protestou. Entretanto, manteve o olhar e acabou concedendo um sorriso — Mas foi emocionante. Jamais antes tinha navegado a tal velocidade. Nem sequer durante o dia; assim muito menos de noite. —A moça permanecia olhando-o e a Erik deu a estranha sensação que podia ler sua mente. Teve que obrigar-se a não dar amostras de nervosismo — Quem é? —perguntou Ellie com ar pensativo.
Deteve-se um momento para considerar o que devia dizer.
—Meus homens me chamam Falcão.
—Isso explica o desenho na vela.
—Sim, e a máscara da proa — disse assinalando a gravura, embora era difícil distinguir na escuridão.
—Justo como os navios dragão — replicou Ellie estremecendo.
Erik sorriu; de novo voltava para o dos vikings.
—Supõe-se que serve para afugentar aos monstros marinhos e outras bestas terríveis.
—E o que afugenta a você? —Erik voltou a rir a gargalhadas. Aquela moça era realmente divertida. Ellie inclinou a cabeça e, ao fazê-lo, a brumosa luz da lua deu a seus traços um brilho espectral — Surpreende não ter ouvido falar de você.
—E por que deveria? Não sou mais que um pirata dos de sempre que trata de ganhar o pão da única maneira que sabe.
Pelo ruído que fez a moça, Erik adivinhou que aquela pretensão de modéstia não a enganava absolutamente.
—Seus talentos estão desperdiçados na pirataria. Alguma vez pensou dar um uso honrado a essas habilidades?
—Para quem? —perguntou observando-a com cautela enquanto se perguntava se teria chegado algo a seus ouvidos — Para o rei Eduardo?
—Entre outros — respondeu encolhendo-se de ombros—. Meu irmão… —Ellie freou em seco suas palavras e ele ficou pensando o que seria que estava a ponto de dizer — Muita gente pagaria bem por um homem de suas habilidades.
Aquela moça ocultava algo, apostaria seu navio naquela aposta. Mas ao fim e ao cabo ele o fazia também.
—Aprecio seu conselho — disse entre risadas — Mas prefiro a liberdade de não ter ataduras com ninguém salvo com minha própria pessoa.
—Então não está casado?
Venceu a vontade que lhe deu de responder com um definitivo «Nem pensar» e, em lugar disto, ofereceu-lhe uma piscada sedutora.
—Ainda não, mas lhe direi que ando sempre procurando, se por acaso quer optar pela vaga. —Os olhos de Ellie se encheram de surpresa, e antes que pudesse replicar, ele acrescentou —: Mas devo a advertir que há bastante concorrência pelo posto.
Erik ficou decepcionado ao ver que nem sequer pestanejava. Em lugar disso, os olhos da moça passearam por seu rosto de uma maneira que quase o fez sentir-se incômodo.
—Aposto que sim —disse ela lhe dirigindo um desses sorrisos condescendentes de babá — Os encantos superficiais podem ser entretidos… por um tempo.
Erik franziu o cenho. Superficiais? O que queria dizer com isso de superficiais? Por mais que tentasse que se rendesse a seus encantos, quão único conseguia era pô-la à defensiva. Não estava acostumado a ver-se naquela situação e em seguida se precaveu que não gostava absolutamente. A moça de nenhum modo atuava da maneira em que devia.
Ellie se aproveitou do silêncio que tinha provocado seu assombro e disse:
—O rogo, parece o suficiente razoável. Se não pode me devolver a minha casa, não me permitiria partir, ao menos? Poderei encontrar o caminho de volta…
—Temo que não posso fazê-lo — disse Erik cortando de pleno sua súplica.
—Mas por que? —protestou — Juro que não ouvi nada do que falava com aquele homem. Por que não acredita?
Erik não se mostrava tão imune a seus rogos como lhe teria gostado. Detestava ter que negar algo a uma mulher. Endureceu seu olhar para tentar assegurar-se de que cessaria em suas demandas.
—Seus esforços são vãos. Não mudarei de opinião. Devolver-lhe-ei logo que seja seguro fazê-lo, nem um minuto antes.
A impotência fez que Ellie apertasse os lábios com força ao tempo que seus olhos brilharam enfurecidos na escuridão.
—Isto é uma loucura. Está sendo ridículo. Acaso sabe para onde se dirige?
—É obvio que sei para onde vou, diabos. —Nem que se perdeu em alguma ocasião.
Ellie o observava como se não acreditasse em suas palavras.
—Não pode navegar à deriva durante toda a noite. Têm que estar parado em algum lugar. Está a ponto de amanhecer e os ingleses seguirão lhe procurando. Além disso — acrescentou assinalando a Randolph —, seu homem precisa de cuidados.
«Têm que.» Ao Erik nunca tinha entusiasmado que lhe dissessem o que tinha que fazer, e muito menos uma moça que podia levantar sobre sua cabeça com uma só mão. A babá Ellie teria que começar a aprender que não era ela quem estava ao mando. Mas apesar daquele tom mandão que o fazia apertar os dentes, Erik sorriu.
—Agradeço o aviso.
Suspeitava que teria que levar a cabo aquilo que tanta vontade tinha tido de fazer antes, mas multiplicado por dez, algo que a tiraria por fim do sério. Podia tentá-lo quanto quisesse, mas jamais chegaria a dirigi-lo. Mesmo assim, seria divertido observar como o tentava.
—Que aviso? —perguntou ela franzindo o cenho.
—Tínhamos um trato — disse negando com a cabeça e fingindo desilusão — Normalmente eu não gosto de fazer isto até que não conheço melhor à garota. Mas com você farei uma exceção. —Erik se levantou e fez um sinal a Domnall — Ata-a.
Aquele grito sufocado que tinha provocado a ofensa era quão único Erik necessitava para assegurar a si mesmo que já não era ele quem estava à defensiva. Sim. O mundo voltava a ser plano uma vez mais.
Gigantesco…
Arrogante…
Pirata!
Jamais em sua vida tinham tratado Ellie de uma forma tão ignóbil. Atada e amordaçada como se fosse uma vulgar prisioneira! Não sabia o que era maior, se o ultraje ou a humilhação. Nada importava que suas amarras de tecido não estivessem atadas com força, nem que seu castigo fosse totalmente merecido. Não era necessário que aquele condenado pirata desfrutasse tanto disso. E pela forma que se alargava seu sorriso e a maneira que se enrugava a expressão de seus olhos cada vez que a olhava, sabia que desfrutava mais a cada segundo. Galante, Ah! Tratava-se de um abominável briguento e faria bem em não esquecê-lo.
Ellie passou quase a totalidade da seguinte hora amaldiçoando todo seu ser, envolta no impressionante repertório de insultos que tinha feito provisão ao longo de toda uma vida rodeada de irmãos varões, até que ao final o sono acabou por tragar sua raiva. Ao despertar, encontrou-se com o suave bamboleio dos braços de sua mãe. Suspirando de satisfação, esfregou sua bochecha contra a amaciada manta escocesa, inalou o suave aroma de mirtos e se amassou ainda mais contra seu duro peito.
Seus olhos se abriram de repente. Já não era nenhuma menina. Sua mãe estava morta. Cheirava a rosas, não a mirto, e certamente seu peito não era duro. Ellie se assustou. Seu primeiro impulso foi liberar-se, mas não podia separar-se daquele abraço que a apertava.
—A menos que queira voltar a dar um mergulho, sugiro que fique quieta e não me dê uma razão para lhe jogar no mar — disse uma sossegada e profunda voz.
O pirata. Quem se não? Quem mais teria podido agarrá-la como se tivesse todo o direito do mundo de tocá-la de maneira tão atrevida? Tinha um braço sob suas pernas e o outro agarrando-a pelas costas e balançava sua cabeça para o peito dele como se embalasse a um bebê. Mas essa maneira em que lhe agarrava o braço… Aqueles dedos se aproximavam perigosamente à curva de seu seio. E para maior vergonha, o corpo de Ellie parecia reagir a sua proximidade. Sob o fino tecido de sua camisa, seus mamilos ficaram eretos e ela sabia à perfeição que não era pelo frio. Mas ainda pior que a cercania da mão era que seu traseiro roçava o significativo vulto que jazia sob o estômago daquele homem. Ellie tentou não pensar nisso, mas, cada vez que ele se inclinava para frente, seu corpo chocava contra o dela da maneira mais íntima. Aquilo estava… mais duro do que ela esperava. E mesmo assim, o contato era tão breve que sentia uma muito estranha necessidade de intensificar a fricção e aconchegar se contra ele.
Suas bochechas ardiam ante a traição perpetrada por seu corpo. Apesar que mal havia luz, Ellie permaneceu com o rosto pego ao peito sem atrever-se a olhá-lo por medo de que descobrisse sua reação. Ser consciente daquilo resultava mais humilhante por quanto ele provavelmente nem sequer se precavia da maneira em que seus corpos se estavam tocando. Não cabia dúvida que tinha a cada momento a mulheres nessa posição, e em muitas outras diferentes posições, enquanto ela jamais tinha estado tão perto de um homem em toda sua vida.
Sentia-se como uma donzela tola e ruborizada, o qual se ajustava exatamente à realidade. Mas ao não ter se sentido assim nunca antes, aquilo significava um golpe a seu orgulho feminino. Acreditava-se imune a tais comportamentos de menina. E, sem dúvida alguma, tinha muito claro que não devia ceder aos encantos de um pilantra incorrigível como aquele. Mas não podia negar o atrativo do pirata. Thomas estava certo: era difícil que não se agradasse de sua pessoa. Tratava-se de alguém atrativo, engenhoso, e certamente resultava emocionante estar junto a ele. Mas levava tanto tempo confiando naquele deslumbrante sorriso dele que Ellie duvidava que tomasse a moléstia de conhecer alguém, nem de permitir que alguém se aproximasse o suficiente para conhecê-lo. A vida era um jogo para ele. Não tomava nada a sério. Podia prestar-se ao jogo da sedução e fazê-lo, sem dúvida, de maneira brilhante, mas jamais haveria nada mais que isso. Apesar de ser consciente disto, seu corpo não parecia entendê-lo tão bem como o fazia seu cérebro. Aquilo carecia por completo de sentido. Não cabia dúvida que se sentia atraída por seu belo rosto. Mas muitos homens eram bonitos, incluído Ralph, e jamais se viu em semelhante circunstância. Não ser capaz de dirigir as reações de seu corpo a desconcertava. Não obstante, por sorte, a costa estava já bastante perto.
Ao ter um casco tão baixo, o birlinn podia ser deitado com muita facilidade e, em caso de ser necessário, também era possível conduzi-lo por extensões estreitas de terra. Como o protótipo de navio viking alargado de que provinha, o birlinn das terras do West Highland foi concebido para entrar e sair com rapidez de águas pouco profundas, o que o convertia na embarcação perfeita para ataques e incursões expeditas. Assim como para os piratas.
Ellie se sentiu aliviada quando Erik a posou com suavidade sobre os calhaus da praia.
—Milady — disse provocadoramente, acompanhando suas palavras com uma reverência exagerada.
Apesar desse homem nada ter de cavalheiro galante e de que estivesse zangada com ele, a ponto esteve de sorrir pela paródia. Subitamente, levou as mãos aos pulsos.
—Tirou as amarras — disse com surpresa ao precaver-se disso.
—Deseja que volte a pô-las, tão rápido? Pensava que esperaríamos até que estivéssemos em privado. Mas se insistir…
Sua pele se arrepiou ante aquela evidente implicação sensual. A única explicação que pôde encontrar a tal estranha reação era que ainda sofria as sequelas de ter estado tão pega a ele. Deu instruções a seus próprios traços para que recuperassem a perfeita normalidade, pretendendo não dar-se por inteirada do que sugeriram tom de sua voz.
—Onde estamos?
Aquele sorriso pícaro desapareceu de seu rosto assim que viu que ela não respondia a seus jogos de sedução. Quase parecia ter mal humor.
—Em um lugar que os ingleses não ouvirão em caso de voltar a gritar como uma fúria.
—Eu não… —disse interrompendo-se ao ver que somente pretendia provocá-la.
Ellie indicou com um pequeno sorriso que teria que esforçar-se mais se queria obter alguma reação dela; logo deu uma olhada a seu redor e viu uma baía em forma de meia lua cujas costas tocava com uns rochosos escarpados. Sua visão estava velada pela escuridão, assim não podia ter muita ideia dos arredores, mas um terreno como aquele podia ser característico da maior parte do litoral ocidental. Oxalá não tivesse dormido, talvez assim teria tido uma melhor ideia sobre o lugar que se achavam. Tudo que podia imaginar era que se encontravam em uma das pequenas ilhas da costa escocesa.
Ellie elevou o queixo para enfrentar seu olhar.
—Trouxeste-me para sua guarida pirata secreta?
—Algo assim — repôs sorrindo ante a ocorrência — As pessoas daqui me professam sua lealdade, assim não pense sequer em tentar apelar a elas a respeito de sua…, hum, transição.
—Refere se a meu sequestro.
—Chame como quiser, mas não ouse me desafiar nisto. —A dura expressão de suas feições parecia algo incongruente à vista de suas provocações anteriores — Não se intrometa e faça o que lhe diga em todo momento e não teremos nenhum problema.
—Sonha realmente interessante — disse Ellie secamente.
Ao Erik não pareceu gostar nada esse tom.
—Não confunda minha transigência com debilidade. Fui amável atendendo às circunstâncias. Compreendo que esteja assustada, mas se tentar de novo algo como aquilo lamentará. A comodidade que queira gozar durante o resto de sua estadia está em suas próprias mãos.
Ellie não pôs em dúvida suas palavras nem por um momento. Debaixo daquela fachada amável, percebia sua fria e rígida couraça de aço. Tinha a sensação que, dada sua arrogância, não era o homem adequado ao que desafiar, e não tinha nenhuma vontade de que a atasse de novo.
Erik assinalou para os homens que ajudavam ao guerreiro de cabelos morenos a poucos metros da borda, e acrescentou: —Já causou suficiente problemas.
Ellie mordeu o lábio sentindo um arrependimento imediato.
—Aonde o levarão? —perguntou ela.
Erik assinalou para as rochas.
—Aí há uma cova em que poderá descansar. Mandarei alguém para que…
—Não pode fazer isso!
A tensão fez que sua máscara de amabilidade desaparecesse uma vez mais de seu rosto. Sua mandíbula se esticou para baixo lhe torcendo o gesto de tal maneira que o coração de Ellie deu um tombo.
—Não sou um de seus tutelados, babá Ellie. Não me dirá o que tenho e o que não tenho que fazer. Somente há um capitão a bordo deste navio. Quanto antes se inteire, melhor nos levaremos.
Ellie se apressou a aplacar seu orgulho. Os homens eram terrivelmente sensíveis a respeito de certas coisas.
—Não pretendia ferir sua dignidade…
Acreditou ouvir um grunhido antes que a cortasse em seco.
—Não feriu nada, e muito menos minha dignidade. Simplesmente quero que saiba como vão ser as coisas.
Ellie ficou observando o de lado.
—Sabe? Uma vez tive um cão como você.
Erik sacudiu a cabeça como se não tivesse entendido bem.
—O que?
—Sempre tentava demonstrar que era ele quem estava ao mando. Desafiava a qualquer cão que se aproximasse.
Manteve-lhe o olhar durante um momento e logo prorrompeu em gargalhadas.
—Ai, moça, sim que é divertida. —Ela franziu o cenho; não pretendia ser graciosa — Mas comprovará que há uma importante diferença.
—Qual?
Dirigiu-lhe uma daquelas olhadas que Ellie suspeitava teriam feito cair a mais de uma a seus pés, enquanto se aproximava dela muito mais do que necessário. O suficiente perto para que pudesse aspirar algo do aroma de sua cálida masculinidade.
—Eu não preciso demonstrar nada.
Ellie ficou sem fôlego ante a força daquele poderoso olhar. Sua aveludada voz reverberava como uma escura carícia que a desafiava a contradizê-lo. Não podia. O que dizia era certo. Não precisava provar nada. O poder e a autoridade brotavam dele tão alto e claro como o som de um tambor. Ou talvez aquilo fosse o pulsar de seu próprio coração? Ao precaver-se que a falta de sono certamente tinha debilitado seu bom julgamento, Ellie voltou a seu ponto de partida, com a esperança de soar muito menos confundida do que se sentia.
—Quão único tentava sugerir — disse pondo ênfase nesta palavra — é que uma cova não bastará. Thomas necessita algum lugar quente e seco. É que não há nenhuma casa ou cabana perto a que possam levá-lo?
—O que é, curadora?
Pensou em seu irmão e sentiu uma pontada que lhe atravessou o peito. Tinha desejado tanto sê-lo… Todas as horas que tinha passado junto a seu leito não tinham servido de nada. Negou com a cabeça esperando que a escuridão mascarasse a umidade de seus olhos.
—Não, mas vi suficientes homens morrerem pela febre para reconhecer os sintomas. O quanto antes o trate, melhor.
Seu irmão se negou teimosamente a reconhecer os sinais. Quando o levaram para o leito, já ardia de febre. Ellie e sua mãe tinham cuidado dele dia e noite, mas então já era muito tarde.
—Lhe rogo — disse agarrando seu braço. Por Deus bendito, mas se era pura rocha! Seus sólidos músculos se tencionaram ao contato de seus dedos — Não há algum lugar onde possa levá-lo?
Erik era plenamente consciente da mão que tinha posto sobre seu braço. A suave pressão de seus dedos ardia através da pele de seu cotun de couro. Algo se inquietava em seu coração incomodamente ao olhá-la. A moça parecia estar realmente preocupada. De fato, parecia a ponto de chorar.
Havia um bom número de lugares aos que poderia levar Randolph. Conhecia bem aquela ilha. Igual anteriormente fez William Wallace, Robert Bruce e seus seguidores tinham visto a utilidade da situação estratégica da ilha de Spoon no canal do Norte, não só como lugar de refúgio, mas também por sua valiosa posição. O próprio Eduardo Bruce esteve ali estacionado em setembro passado, já que ficava a uma distância que se via facilmente a costa de Kintyre e podia montar guarda enquanto Erik tirava Bruce do castelo de Dunaverty.
Embora Erik podia contar com a ajuda da população, queria esperar até que amanhecesse para informar às pessoas da vila, formada em sua maioria por pescadores e suas famílias, de sua chegada e especiais circunstâncias. Mas supunha que haveria algum lugar próximo que podia levá-los.
Ficou circunspecto. Com a predisposição que a moça mostrava a ser mandona, era consciente que sentaria um mal precedente se cedia a seu pedido. Mas tinha que admitir que estava certa: Randolph não tinha bom aspecto. E ela também tiraria proveito de secar-se bem. E mais, suspeitava que ele e seus homens teriam um sono muito mais prazeroso junto ao fogo se a moça não se encontrava dormindo a poucos passos. Ainda notava seu corpo incrivelmente perturbado.
Levá-la desde o navio tinha sido uma má ideia. Não tinha gostado absolutamente da sensação de tê-la entre seus braços. Diabos, não se tinha incomodado tanto por tocar uma mulher desde aquela ocasião em que, com treze anos, uma das moças da vila se ofereceu a lhe mostrar os prazeres da carne. E que uma mulher tão pouca coisa e tão normal como aquela pudesse excitá-lo, algo que devia admitir que não ocorria ultimamente com muita frequência, era um tanto desconcertante. Especialmente quando aqueles penetrantes olhos que tinha o olhavam com algo próximo à condescendência. Aquilo era antinatural. Isso é o que era. Antinatural. Sempre tinha gostado das mulheres. Que diabos lhe estava passando?
Tentou desprender-se daqueles inquietantes pensamentos e disse:
—Há um posto próximo, mas…
—OH, agradeço-lhe tanto! —disse antes de deixá-lo terminar, olhando-o com um brilhante sorriso no rosto.
Aquilo o comoveu. Por um momento pareceu, se não muito formosa, ao menos a muito pouca distância disso. Deveria sorrir mais frequentemente. Ajustou-se seu cotun sentindo um estranho formigamento no peito.
—Mas me dará sua palavra que não tentará escapar nem se aproveitar da natureza bondosa de Meg para procurar ajuda. Não dirá nada de como chegou a se unir a nós.
—Meg? —Ellie afastou a mão de seu braço e, por um momento, Erik quis que voltasse a pô-la ali — É que deseja que também eu os acompanhe?
—Precisa dormir. Ali estará mais cômoda. Mas se prefere dormir na cova junto a mim…
Normalmente teria dado uma entonação ao sugerir essas palavras, mas sabendo que cairiam em ouvidos surdos não tomou a moléstia de fazê-lo.
—Não — se apressou a dizer. Apressou-se muito, conforme pareceu a Erik.
Não lhe escapava que tinha evitado responder formulando a sua vez uma pergunta. Tinha fracassado em sua anterior tentativa por assegurar-se de conseguir sua palavra de honra, mas nesta ocasião não se mostraria tão descuidado.
—Dar-me-á sua palavra, Ellie.
Ela assentiu a contra gosto.
—Dou-lhe minha palavra. Não farei nada esta noite.
Erik a repreendeu com o olhar.
—Nem quando chegar a manhã. Nem durante todo o tempo que fique aqui.
Ellie enrugou o nariz, indubitavelmente zangada ao ver que captava suas reservas.
—De acordo. Têm minha palavra.
Os olhos de Erik atravessaram a escuridão e posaram nos dela por um instante.
—Não faça que me arrependa de confiar em sua palavra.
Ellie assentiu um pouco surpreendida, ao que parecia, consciente do tom de ameaça de sua voz.
Erik se voltou para dar ordens a seus homens. Além de Ellie, Randolph, os dois homens que virtualmente o levavam nos braços e seu parente Duncan, que tinham ferido com uma flecha, trouxe outro homem consigo. Apesar de querer confiar nela, a moça se mostrou muito ardilosa no momento. O homem que estava postado no exterior da casa ajudaria a assegurar que mantinha sua palavra. Se tentava escapar, não chegaria muito longe, mas não estava disposto a assumir mais riscos. Bruce e seus companheiros da guarda contavam com ele, e isso era algo que ele tomava muito a sério.
Erik originalmente se uniu a Bruce a pedido de seu primo, Angus Og MacDonald, lorde de Islay, com a intenção de reclamar suas terras usurpadas pelos MacDougall. Mas tinha acabado admirando a esse rei batalhador. Se havia alguém que podia desafiar Eduardo, era Bruce. Aquela lealdade que em seu momento devia a seu primo, transferiu-se agora a Bruce e a seus camaradas da Guarda dos Highlanders. O fracasso era impensável. Nada se interporia em sua missão. E muito menos uma babá magra de beleza passável, aficionada a instaurar o caos.
Capítulo 6
Mathilda de Burgh jamais teve um aspecto mais desventurado. Seus angélicos cachos loiros, ainda murchos e enredados pela água do mar, eram um autêntico desastre; seus grandes olhos de cor celeste estavam vermelhos e tão inchados após horas de pranto que quase não podia abri-los; e aquele pequeno narizinho arrebitado não deixava de escorrer.
Mas que horas eram? Já devia estar perto do amanhecer. Tinham transcorrido horas desde que Ellie tinha desaparecido e ainda não se sabia nada dela. Matty não podia suportar a ideia que tivesse perdido sua irmã. Afogada em um estúpido jogo de meninas. Seu jogo.
«Tudo é minha culpa.» Por que a tinha pressionado? Depois de tudo o que Ellie fazia durante esses anos por eles. Como podia ter sido tão cruel? O que tinha de mau se Ellie havia crescido e estava um pouco aborrecida da noite para o dia? Era a irmã mais amável e generosa que alguém podia imaginar. Tinha sido ela quem se encarregou de manter unida à família após essa devastadora febre que tinha assolado suas infâncias.
Matty estava sentada no solar do duque, ainda envolta na mesma bata de peles com a que se vestiu após mergulhar no mar, com seu pai e com dois dos três irmãos que ficavam: John e seu gêmeo Thomas. Os pequenos ainda dormiam, cômodos e quentinhos em suas camas, sem ideia alguma do pesadelo que aguardava quando despertassem. Somente os sons do crepitar do fogo, o vento golpeando contra as portinhas e suas ocasionais choramingações rompiam aquele horrível silêncio. Não os via tão abatidos das mortes de sua mãe e seu irmão. Seu pai mal podia olhar em seu rosto. Culpava-a. Todos o faziam. E era lógico. Novas lágrimas caíram de seus olhos. Tão somente queria ver Ellie rir de novo. Nunca tinha querido…
—Sinto-o — disse incapaz de suportar aquele silêncio por mais tempo.
Durante uns instantes ninguém disse uma palavra. Ao final John teve piedade dela.
—Não foi tua culpa, Matty. Foi um acidente.
Richard de Burgh, duque de Ulster e o nobre mais poderoso de toda a Irlanda, voltou seus frágeis olhos de cor negra para ela. A seus quarenta e oito anos ainda era um homem arrumado, mas seu rosto mostrava sinais da tensão sofrida durante a tarde. Seu pai não era um homem ao que pusessem a prova frequentemente. Do berço, tinha sido imbuído com a sensação de ter direito a tudo e se acostumou que as coisas saíssem como ele queria. Quando aquilo não acontecia, como tinha ocorrido com a morte da mãe de Matty ou quando seu cunhado Bruce se rebelou contra seu rei, seu comportamento era imprevisível. Inclusive caprichoso. Matty deveria ter sabido que não tinha que atrair sua atenção. Assim, tinha dado a sua frustração uma direção para a que represar-se.
—Em que demônios estava pensando? Como pode ser tão irresponsável? É que não tem respeito por seu dever e sua posição? Revoar pela campina como se fosse uma… serva. E provocar sua irmã para…
—Eu somente queria ajudá-la. Estava tão triste ultimamente… Acreditava que com a perspectiva das bodas melhoraria, mas, ao que parece, somente foi a pior.
Seu pai enrugou o cenho de um modo terrível.
—Ellie estava perfeitamente.
Matty sentiu um arrebatamento de fúria ante a obstinada cegueira do pai.
—Não estava perfeitamente! Mas você não queria vê-lo, porque ela se ocupava de tudo e te liberava dessa carga.
Seu pai se estremeceu.
—Basta, Mathilda — disse com raiva — Acredito que já disse e fez suficiente em um só dia.
Matty mordeu o lábio e assentiu, consciente de que tinha ido muito longe. Ellie era a única de quem seu pai aceitaria uma crítica, e isto somente ocorria porque o fazia com tal mestria que normalmente não se precavia que o estava criticando.
Todos olharam à porta quando Ralph entrou como uma exalação. O pulso de Matty se alterou um tanto, como sempre tinha feito desde a primeira vez que pôs os olhos sobre ele. Como era possível que Ellie não o quisesse por marido? Se Matty tivesse sonhado com o perfeito cavalheiro inglês, teria exatamente o mesmo aspecto que Ralph de Monthermer. Alto e esbelto, com um denso cabelo moreno e olhos de cor verde clara; um homem bonito, forte e honorável até a medula. O fato de que em seu momento arriscasse tudo por amor e se casasse com a filha do rei não fazia mais que engrandecer a romântica figura que Matty via nele.
Seus olhares se cruzaram por um momento e logo ambos olharam para outro lado.
—Tenho notícias — disse. A Matty gelou o coração. A pausa durou somente um momento, mas a ela, que esperava com ansiedade saber se se tratava de notícias boas ou más, pareceu-lhe uma eternidade — Meus homens viram uma mulher não muito longe daqui. Ao que parece, saltou à água e pediu ajuda, mas a recapturaram antes que meus homens chegassem até ela.
—Era Ellie? —perguntou Matty sem atrever-se apenas a acreditá-lo.
Ralph a olhou de novo e aguentou seu olhar só um instante, mas o suficiente para que ela pudesse detectar compaixão neles.
—Tem que ser ela. Tanto a hora como a descrição encaixam.
Matty fechou os olhos e pronunciou palavras de agradecimento. Também ouviu que seu pai murmurava «Graças a Deus». Aquele alívio tão sincero em sua voz a surpreendeu. Apesar que ao conde lhe importassem todos seus filhos, não era um homem excessivamente sentimental. Era possível que as mortes de sua mãe e de seu irmão o tivessem afetado mais do que ela acreditava? Talvez fosse somente por Ellie, já que era o sustento de todos eles. Mas aquele alívio logo foi substituído pela ira.
—A recapturaram? A que se refere com que voltaram a capturá-la? —exclamou — Quem?
O rosto de Ralph adotou uma expressão de descontente.
—Não sei. Mas conforme contaram, a vela levava a imagem de um falcão nela.
Ambos os homens se olharam com cumplicidade, e Matty compreendeu que aquilo era algo significativo.
—O homem que ouvimos esses rumores? —perguntou seu pai. Ralph assentiu — Eduardo gostará de sabê-lo. Leva buscando-o desde a fuga de Dunaverty.
Matty pôs olhos de surpresa. Inclusive ao John e ao Thomas assombrou aquilo que sugeria que seu irmão político estivesse relacionado com os homens que levaram Ellie.
—Robert não faria tal coisa — disse Matty com veemência — Jamais faria mal a Ellie.
Nem um nem outro se deram por inteirados de seu arrebatamento. Se estavam de acordo com aquele comentário ou não, era algo que carecia de importância. Ralph tinha sido amigo íntimo de Bruce. Os sentimentos de seu pai para seu irmão político já eram mais difíceis de quantificar. Embora não ajudaria a seu genro abertamente, às vezes Matty se perguntava se não quereria vê-lo triunfar. Mas ambos eram leais a Eduardo. Cumpririam com sua obrigação apesar de seus sentimentos pessoais. E se Robert tinha algo a ver com isto… Matty estremeceu. A ira de seu pai poderia rivalizar com a de Eduardo.
—Como conseguiram escapar? —perguntou John.
A expressão de Ralph voltou a azedar-se e seus lábios embranqueceram de raiva. Descreveu a confrontação no mar e a posterior perseguição por parte de seus homens com uma voz crispada e entrecortada.
—O navio de Falcão estava rodeado por quatro galeões e conseguiu escapar? —perguntou Thomas com incredulidade.
Matty lhe fez uma séria advertência com o olhar, mas já era muito tarde.
O gesto de Ralph se esticou mais ainda.
—Isso parece.
Matty podia ver que seu orgulho tinha recebido um tremendo golpe. Ralph punha em alto nível a frota de galeões que tinha sob seu mando, e tomava pessoal o fracasso de seus homens. Encaminhou-se para ele, mas deteve seus passos a tempo. Não era a ela a quem correspondia consolá-lo.
—Não me importa o que custe — disse seu pai com uma voz desumana que correspondia com a do conde mais poderoso da Irlanda — Encontre-o.
Capítulo 7
Efetivamente, eram azuis. De um azul cegador, como o oceano em um dia de sol. Ellie já estava preparada para isso. O que não tinha previsto eram as covinhas. E além disso tinha duas. Duas profundas covinhas perfeitamente alinhadas a cada lado desse incorrigível sorriso. Combinados com esse denso cabelo dourado pelo sol e um bronzeado que, atendendo a toda lógica, já devia ter desaparecido…
Franziu os lábios com aborrecimento. Aquilo era ridículo. Nenhum homem tinha direito a ser tão bonito, especialmente quando já contava com uma personalidade de tanto magnetismo… Parecia algo injusto que um homem tivesse que administrar tanta dádiva. E entretanto, o fazia com total soltura. Obviamente não era Ellie a única que se precavia disso. Do momento em que bateram na porta daquela velha casa em forma de nave, Falcão, como Meg tinha vociferado, o recebeu de um modo que não deixava dúvidas sobre o tipo de relação que mantinham, tinha sido o centro da atenção. Toda essa emoção se tornou calma durante a noite, mas foi reavivada assim que reapareceu pela porta com seu ar despreocupado à manhã seguinte. Acaso não tinha nada que fazer? Apoderar-se de seu botim de ouro? Conquistar pequenos países? Sequestrar mais donzelas inocentes? Ao que parecia não. Dava a sensação que tinha todo o tempo do mundo para sua multidão de admiradoras. A pequena estadia se encheu até os batentes de visitantes femininas. As mulheres da ilha não tinham demorado muito em inteirar-se de sua chegada e não pararam de bater na porta de Meg após.
Meg informou a Ellie que estavam em uma pequena ilha junto à costa escocesa de Kintyre. Contando às sete mulheres que havia na habitação, não lhe teria surpreendido que a metade da população feminina de solteiras estivesse ali sentada ao redor da lareira de Meg. Embora aquilo de que fossem solteiras tão somente era uma hipótese dela.
«Pois claro que senti sua falta, amor. Como poderia me esquecer desse bolo que fez antes de partir?», o ouviu dizer. «Foi a coisa mais doce que jamais tenha provado.» Ellie não precisava olhar para saber que seus olhos cintilavam de maneira travessa, mas igualmente o fez. «Bom, talvez a segunda coisa que jamais tenha provado.» Não se dirigiu a ninguém em particular, mas sim o deixou no ar, como se referisse a todas elas a título individual.
Ellie devia admitir que possuía um talento natural. Observá-lo era como admirar o trabalho de um professor artesão. Transbordava carisma, brotava dele como nata fresca. Repartia elogios com uma sinceridade virtuosa, mostrava uma solicitude a toda prova e tratava a cada mulher como se fosse uma princesa. Não era difícil compreender por que agradava a todas.
Então por que Ellie apertava as mandíbulas até quase sentir que lhe romperiam os dentes ao ouvir como as mulheres o adulavam? Tinha a todas as fêmeas apinhadas ao redor de sua cadeira e pendentes de cada uma de suas palavras como se fosse um sarraceno rodeado por seu harém. Apoiava um de seus braços sobre o ombro de Meg de maneira indiferente enquanto outra das mulheres fazia que se sentava no braço da cadeira para acabar virtualmente sobre seu colo. Mas tampouco permitia que fossem as mulheres as únicas acariciadas. Ellie jamais viu tantas palmadas no traseiro nem beijos de bem-vinda mais longos em toda sua vida. Devia ser a ilha mais hospitaleira de toda Escócia!
Ao dar-se conta de que tinha o rosto fechado, Ellie dirigiu sua atenção ao pão com queijo que lhe tinha preparado Meg como café da manhã. Não era seu assunto a quem tocasse, enquanto não fosse a ela. Se havia alguém que tinha motivos de queixa, seria Meg, e a ela não parecia importar muito a concorrência. Observou ao grupo furtivamente de seu assento naquela mesa afastada a um lado do salãozinho. Depois de como se saudaram a noite anterior, tinha-lhe ficado claro que Meg era sua amante. Essa preciosa ruiva, sem dúvida, deitava com ele. Provavelmente uns anos mais velha que Ellie, com um amplo e cordial sorriso, as bochechas rosadas e os maiores peitos que ela jamais tinha visto. Sua sensualidade exuberante era tudo do que Ellie carecia. Sentia-se como uma uva passa em comparação com ela. Mas ao observá-los, já não estava tão segura da natureza de sua relação. Tratava-a com o mesmo tipo de humor descarado que a qualquer outra pessoa.
Era tão agradável que dava raiva. Mas Ellie não podia evitar pensar que usava toda essa afabilidade como uma máscara que mantinha os outros a certa distância. Todas essas pessoas que pensavam que o conheciam muito bem provavelmente não sabiam nada dele. Inclusive seu nome era um mistério. Inclusive as mulheres se referiam a ele como Falcão. O certo era que resultava apropriado para ele. Esse pássaro de presa livre e selvagem, que sobrevoava o mar e caçava mediante ataque surpresa desde seu esconderijo, era o símbolo perfeito para um pirata.
Seguiu mordiscando sua comida enquanto ouvia como trabalhava o professor. Atrás daquele sorriso indolente se escondia um homem muito observador. Perguntou sobre o novo corte de cabelo de Maura, sobre o novo vestido de Deidre e como se recuperava o jovem filho de Bessie da lesão de sua perna após cair de uma árvore no ano anterior. Encarregava-se de fazer perguntas pessoais a cada uma delas, mas qualquer tentativa de averiguar algo sobre ele era afastado com um sorriso e um comentário jocoso, normalmente em tom mais alto. O fazia de uma maneira tão ardilosa que Ellie se perguntava se aquelas mulheres sequer se davam conta do que fazia com elas. Aquilo excitava sua curiosidade em torno da verdadeira natureza daquele homem que se escondia atrás daquela capa de pão de ouro.
—Algo vai mau, Ellie? —perguntou. Uma multidão de rostos curiosos olharam para ela, que se surpreendeu inclusive que se precavesse de sua presença, tendo em conta quão ocupado estava — Esta manhã não se vê tão irritada como sempre — acrescentou com certa inocência, olhando-a com esses olhos endiabradamente azuis que brilhavam de alegria.
—Pois estou bem melhor — disse a contra gosto. «Para alguém que dormiu duas horas após ser sequestrada de sua casa por uma turfa de vikings.»
Olhou-a como se estivesse contendo a risada.
—Sim, já o vejo.
Teve que apertar os dentes para não fulminá-lo com o olhar de novo quando sussurrou, mas em voz alta, uma desculpa ao resto das mulheres, pelo arisca que se mostrava essa manhã. Aquela provocação era tão mais dolorosa por quanto se correspondia com a realidade. Sempre, inclusive na melhor das circunstâncias, tinha sido lenta para levantar-se, como dizia sua mãe indulgentemente. E estava claro que esse dia não se davam as melhores das circunstâncias. Meg tinha se levantado chegada a aurora, cozinhando, e apenas fazia umas horas que Ellie tinha caído abatida sobre o improvisado catre junto ao fogo, depois de ajudá-la a atender Thomas e Duncan, o homem com a ferida de flecha. Disse a si mesma que devia sentir-se agradecida quando Erik voltou a esquecê-la dirigindo de novo seus cuidados para a frota de adoradoras que o rodeava.
—Quanto tempo ficará desta vez? —perguntou uma das mulheres.
—Até que possa suportar me afastar da excelente comida de Meg —disse voltando-se para sua anfitriã — Que delícia de guisado nos têm feito chegar esta manhã, amor. Meus homens agradecem muito que tenha se incomodado… tanto como eu.
Meg se ruborizou de prazer.
—Não foi nenhum incomodo. Não tinha mais que jogar um par de coisas ao tacho.
«Sim, ao amanhecer», Deu vontade de particularizar Ellie a contra gosto. E uma vez mais o pirata tinha fugido da resposta.
Erik se levantou da cadeira com preguiça, como se não pudesse suportar ter que afastar-se delas. Apesar de a habitação ser de um tamanho considerável, uns seis metros de largura por quinze de comprimento, sua altura e suas largas costas não demoraram para fazê-la parecer bastante menor. Aquele homem dominava tudo o que o rodeava.
—Temo que tenho que voltar junto a meus homens —disse com tristeza. Então começaram os esperados protestos, mas logo as amedrontou — Somente vim agradecer Meg por sua hospitalidade e por atender meus homens.
Duncan e Thomas tinham insistido de maneira obstinada em voltar para a praia e unir-se ao resto dos homens a primeira hora da manhã. Ellie pensava que a ambos teria beneficiado descansar um pouco mais como a ela e tinha insistido em que permanecessem ali, mas eles tomaram sua sugestão como um insulto. Meg, que também tinha tentado que ficassem, franziu o cenho.
—Não gostei nada do aspecto que tinha o mais jovem. Não o percam de vista. Os homens podem ser teimosos até a loucura —acrescentou olhando Falcão com receio — Seguro que não quer que dê uma olhada a essas mãos?
—Se lhe permitir que olhe minhas mãos, passará horas antes de voltar com meus homens — disse com um sorriso.
Meg fez um ligeiro dramalhão e todos riram, exceto Ellie. Acaso alguma vez tomava algo a sério? E o que lhe passava nas mãos?
Voltou-se para partir e logo deu meia volta como se se esquecesse de algo, ao que parecia, de Ellie.
—Está segura que não é nenhum problema? —disse referindo-se a ela como se não estivesse sentada ali mesmo.
—Vir-me-á bem ter companhia — assegurou Meg negando com a cabeça.
Falcão se agachou e beijou a bochecha da voluptuosa ruiva.
—Devo-lhe uma, amor.
A Meg lhe marcaram as covinhas.
—E eu desfrutarei quando pagar sua dívida.
—Patife — respondeu ele com outra de suas palmadas no traseiro para depois dirigir seu olhar para Ellie — Não se meta em problemas — disse como se falasse com um menino.
Ellie teve que lutar por reter um ridículo impulso de lhe fazer brincadeiras com a língua. Por Deus bendito, o que lhe estava acontecendo? Em menos de vinte e quatro horas em sua companhia já se comportava como sua irmã, Juana, de cinco anos. Aguentou o olhar, talvez durante muito tempo. Erik ficou circunspeto, mas quando voltou a olhar Meg, já sorria de novo.
—A ponha para trabalhar. Estou seguro de que haverá algo que possa fazer — acrescentou sem muito convencimento em sua voz.
Ellie sentiu um ataque de ira. Teria gostado de lhe dizer que havia um montão de coisas que podia fazer, mas, para não morder a isca, preferiu morder a língua. Saber que a afetavam suas palavras só serviria para esporeá-lo. E o certo era que tampouco sabia como as habilidades próprias de uma cortesã podiam ser de ajuda a Meg naquela pequena moradia.
Ellie sabia como governar aos vassalos do castelo, fiscalizar a limpeza e a cozinha, ocupar do gado e da colheita, mas em realidade nunca tinha assado o pão, nem feito um guisado, saneado a palha, lavado a roupa branca, ordenhado uma vaca ou recolhido a colheita de cevada ela mesma. Precaver-se de quão inúteis eram suas habilidades fora de um castelo resultava uma autêntica aula de humildade.
Uma vez que ele partiu, a sala não demorou para ficar vazia. Ellie tinha presente as recentes palavras de Falcão, assim ajudou Meg a retirar da mesa os pratos, terrinas e taças do almoço.
—Obrigada — disse Ellie quando acabaram a tarefa — A comida estava deliciosa. —Apesar de ser muito menos elaborada da que acostumava tomar ela, aquele singelo prato era surpreendentemente satisfatório. Igual sua hospedagem. Embora pequeno e rústico, o lar de Meg era confortável e estava limpo e organizado — E deveria fazer extensiva minha gratidão para o capitão, por me alojar em tão bom lugar.
Meg tomou as mãos de Ellie entre as suas e as estreitou de um modo maternal.
—Pobrezinha. Falcão lhe levará para casa antes de que se tenha dado conta —disse, rindo a seguir — Com certeza que da próxima vez pensará melhor antes de se esconder em um navio. Mas, ao menos, terá uma aventura para contar quando retornar para casa.
A Ellie deu tanta vergonha que se acalorou e lhe acendeu o rosto. Teve vontade de protestar e contar a verdade, mas era consciente de sua promessa. Ao recordar os sussurros da noite passada que tinham servido para explicar a Meg os motivos pelos que a tinha levado consigo, amaldiçoou o capitão com toda sua alma.
O pirata tinha sacudido a cabeça com gesto grave:
—A moça crê estar apaixonada, e quando lhe disse que tinha que partir — disse encolhendo-se de ombros sem poder evitá-lo, como se aquilo passasse a cada momento —, Ficou meio louca de tristeza e se escondeu sob as velas do navio. Quando um de meus homens a encontrou, já era muito tarde para levá-la de volta. E até que a devolva a sua casa, sinto-me responsável por ela.
Ellie não pôde fazer mais que lhe disparar dardos com o olhar durante todo o tempo, o qual foi para ele um entretenimento acrescentado. Esse vadio arrogante tinha muita sorte que não tivesse dardos reais em suas mãos. E Meg, por outra parte, olhava-o como se aquilo fosse o mais natural do mundo.
—E isso é o que deve fazer — disse para depois olhar Ellie e negar com a cabeça — Ai, pobrezinha, que inocente.
Tinha aceito tão bem à adulterada Ellie e a abraçou com tal compaixão que lhe tirou a vontade de discutir. Não sabia o que era pior: a história que tinha inventado ou que Meg a assumisse com tanta facilidade.
Meg a estava observando e confundiu os motivos de seu mal-estar.
—Não têm por que se envergonhar. Falcão é do tipo de homem que faz que inclusive uma mulher sensata perca a cabeça.
—Também você? —escapou a Ellie, que fez cara de surpresa ao dar-se conta do que acabava de dizer — Me refiro a que, bom, não pude evitar notar como… —mordeu o lábio, vendo que quão único fazia era piorar tudo.
Mas em lugar de ofender-se, a outra mulher pôs-se a rir.
—Talvez por um tempo. Quando perdi meu Colin… —Deteve suas palavras com os olhos alagados pelas lágrimas. Depois se recompôs e voltou a sorrir — Falcão me ajudou a me sentir viva de novo, e só por isso lhe professarei amor eternamente. Mas não o tipo de amor ao que você se refere — disse negando com a cabeça — Isso somente ocorre uma vez na vida, se é que tem sorte.
A Ellie veio à cabeça a imagem de Ralph. «E se não é filha de um conde», pensou. Talvez ela não conhecesse nunca essa forma de amor, mas sim conhecia a perda. Tomou a mão de Meg e a apertou com carinho, algo que, embora encheu de assombro a esta última, não deixou de apreciar, conforme advertiu Ellie.
—Já sei que não quer ouvi-lo neste momento —disse Meg com doçura — Mas Falcão não pretendia lhe fazer mal. — Ellie não disse uma palavra. O que poderia ter dito? Meg, sem dúvida, pensava que estava apaixonada por ele. Uma pobre e patética babá feiosa que bebia os ventos por aquele deus nórdico de dimensões descomunais — Adora as mulheres e nós adoramos ele. Mas pedir mais que isso somente pode a colocar em problemas.
Ellie não pôde evitar perguntar:
—Por que?
—Gosta muito das mulheres para comprometer-se com alguma —disse Meg com um sorriso de compreensão.
Não precisava que Meg lhe contasse isso. Já tinha se dado conta do primeiro momento em que pôs os olhos sobre ele. Era exatamente igual a seu pai: muito encantado com o amor que lhe professavam todas as mulheres para atar-se a uma só pessoa. Apaixonar-se por alguém como o capitão só podia levar a uma vida miserável. Dava-lhe pena a mulher que não tivesse isto presente.
Quase tinha entardecido quando Erik subiu pelo escarpado até o pequeno promontório que se escondia a suas costas. Ao chegar a borda, pôde ver as suaves colunas de fumaça do lar de Meg justo frente a ele. Seguia zangado consigo mesmo por ter permitido que Ellie o tirasse do sério. E o que lhe importava o que pensasse ela? Mas a babá tinha expressado sua desaprovação clamando tão alto e claro que teriam podido ouvi-la através de toda Escócia, quanto mais no pequeno salão de Meg. Mas mesmo assim, não deveria tê-la provocado. E menos sabendo que se encontrava tão exausta. Não era próprio dele mostrar-se tão pouco correto com uma moça, mas ela não atuava como nenhuma das que tinha conhecido antes. Suas reações o confundiam. Irritavam-no. Algo que não era capaz de recordar que tinha feito antes mulher alguma. Bem melhor, livrar-se-ia dessa pequena harpia logo. Em um dia ou dois já estariam prontos para partir. Tampouco havia razão para apressar-se; devia dar tempo para que a busca se esfriasse.
Domnall e ele tinham subido ao topo da colina para obter uma boa visão das vias marítimas dos arredores, e o que encontraram foi pior que o esperado. Parecia que toda a frota inglesa estiva navegando pelas águas do canal. Pelo que podia ver, os ingleses se situaram perto de cada intercessão, cortando o passo para o norte para dirigir-se às ilhas maiores, ao sul para a ilha de Man, e ao oeste em direção a Rathlin e a Irlanda.
Não tinha dúvida alguma que poderia passar ante seus narizes em caso de necessidade, mas além de sua ansiedade por livrar-se da moça e reunir-se a Bruce e o resto, tampouco havia razão para arriscar-se que os capturassem ou levar os ingleses até Bruce. No momento tentaria pensar em alguma maneira de enviar uma mensagem a Chefe, o líder da Guarda dos Highlanders e lhe advertir do perigo. Bruce logo teria que pôr rumo a Rathlin. Mas a paciência não era um dos atributos pelos que destacava Erik, e tinha a suspeita que os próximos dois dias se desenvolveriam a passo de tartaruga. Só em pensá-lo começava a impacientar-se.
Ao chegar ao topo do escarpado, deteve-se para fiscalizar a baía. Tudo estava em ordem. Havia vários barcos de pescadores disseminados pelo porto, mas não ficava rastro de sua presença. Com antecedência, seus homens e ele tinham transportado o birlinn até a cova para ocultá-lo da vista de qualquer patrulha que pudesse topar com eles. Com a multidão de ilhas que havia entre a Irlanda e a Escócia era possível que os ingleses se esforçassem em buscá-los, mas precisariam de ajuda se quisessem encontrá-los. Havia muitos lugares que ocultar-se e estariam a salvo em tanto que a gente da vila guardasse silêncio, o qual era outra das razões pelas que tinham amarrado ali. A ilha de Spoon pertenceu aos MacSorley até que os MacDougall se apropriaram dela, mas os ilhéus seguiam considerando Erik seu legítimo chefe. E assim seria quando Bruce reclamasse sua coroa.
Erik dirigiu seus passos para a velha casa de pedra em forma de nave alargada. Não precisava estar ali, mas tampouco podia privar-se de comprovar o estado de Ellie. Não cessava de dizer-se que ela era responsabilidade dele. Até que a levasse para casa ou a entregasse ao Bruce, ela era responsabilidade dele. Elevou o braço para saudar Duncan, a quem tinha consignado tarefas de custódia enquanto se recuperava, jogou os ombros para trás como se se dispusesse a liderar uma batalha, e abriu a porta.
«OH, demônios.»
Qualquer sintoma de irritação que pudesse ficar dos sucessos da manhã desapareceu por completo ante a sossegada visão que tinha ante ele. A pequena babá permanecia ante o fogo aconchegada sobre a cadeira, com uma manta escocesa sobre os ombros e os pés escondidos sob o traseiro. Pelo camisão de lã limpo que levava e os cachos de cabelos morenos ainda úmidos que lhe caíam sobre o rosto supôs que fazia pouco que se banhou. Ainda permanecia no carregado ambiente um leve perfume a lavanda. Tinha um cabelo precioso, denso e brilhante, que pendurava em ondas recém penteadas sobre seus ombros como um pesado manto da Marta zibelina. Sabia somente olhando que roçá-lo com sua pele seria como tocar um véu de seda. Em repouso, não parecia absolutamente o tipo de mulher que pudesse lhe ter causado tantos problemas. Observou aquela carinha que o tinha olhado com tanta indiferença. Jamais seria uma beleza, mas de todas as formas havia algo agradável em seu rosto. O calor do fogo rosava suas pálidas bochechas. Agora que tinha esse teimoso queixo relaxado, seus sempre irritados lábios um tanto separados e aqueles muito observadores olhos negros fechados, seus traços se suavizaram… Era mais jovem… e muito mais vulnerável.
Erik sentiu uma incômoda pontada no peito suspeitosamente parecida com culpa. Apesar de todos os problemas que tinha causado, nada do ocorrido era culpa dela. Tampouco era dele, mas isso não evitava que se sentisse responsável para que chegasse em casa a salvo e o antes possível.
As largas pestanas de Ellie bateram as asas anunciando seu despertar. Ao vê-lo ali de pé, suas bochechas se ruborizaram.
—O que está fazendo aqui?
Apressou-se a incorporar-se e, ao esticar seus membros, deixou à vista dois deliciosos pés de perfeitas formas, pequenos e pálidos, com uns dedos minúsculos que faziam deles algo absolutamente adorável, muito adoráveis para uma babá mandona como ela. Ele se excedeu no tempo em que devia olhá-los, o qual provocou que ela os escondesse rapidamente sob a manta.
Erik sentiu uma raiva inexplicável, como a de um menino ao que pegaram colocando a mão no pote do mel, e seu rosto adotou uma expressão séria.
—Onde está Meg?
Não gostava de estar a sós com ela. Quase teve que rir ante a estranheza que aquele pensamento lhe provocava, já que não recordava ter se sentido incômodo junto a uma mulher.
—Foi ver uma das aldeãs. Mhairi, acredito que se chama. Está a ponto de dar a luz. —Erik não disse uma palavra, mas sim permaneceu olhando-a como se aquele desconforto que sentia fosse culpa dela — Há algo que queira que lhe diga? —animou-se a perguntar, tão desejosa de livrar-se dele como ele dela.
—Não, falarei com ela mais tarde —disse negando com a cabeça.
Girou sobre seus calcanhares para partir, mas ela o reteve.
—Thomas está bem?
Aquele tom de preocupação que notou em sua voz o deixou um pouco surpreso.
—Encontra-se bem — disse, para acrescentar depois de uma pausa —: Não têm também curiosidade pelo estado de Duncan?
Ellie o olhou diretamente aos olhos.
—Para que ia lhe perguntar sobre o estado de Duncan quando posso abrir a porta e o perguntar eu mesma?
Ao ver que estava molesta, Erik se encolheu de ombros sem intenção alguma de desculpar-se.
—Tinha que ocupar-se de algo até que seu braço se recuperasse.
—E espiar foi o único que lhe ocorreu? Pensava que tínhamos chegado a um acordo.
—E o fizemos. Duncan é meu meio para me assegurar que não o esqueça.
—O que ocorre com suas mãos? —perguntou entreabrindo os olhos.
Aquela súbita mudança de tema o pegou com a guarda baixa.
—Nada.
Ellie se levantou e se dirigiu para ele com essa expressão de obstinação no queixo que tão pouco gostava.
—Me deixe ver.
Estava a ponto de dizer que aquilo não era absolutamente de sua incumbência quando ela o pegou pelo braço. Demônios, aqueles dedos eram suaves. E tão endiabradamente pequenos. Mal podiam abranger a metade de seu pulso. Sua cabeça se transladou imediatamente a outra parte de seu corpo e pensou naqueles dedos envolvendo algo grosso e penetrante. O fogo o consumia por dentro, assim em lugar de afastar-se permitiu que desse a volta a sua mão e visse suas palmas ensanguentadas e destroçadas. O suspiro e a cara de estupefação que apareceram depois o fizeram desejar não havê-lo permitido.
—Como fez isto?
—Os cabos. Não é nada — disse, tirando importância a sua preocupação — Acontece muito frequentemente.
Gostava de estar em contato com o cânhamo, assim não se preocupava em levar luvas.
—Tem um aspecto horrível. Não lhe dói?
—Não — respondeu sem pensar.
Ellie entreabriu os olhos suspicazmente.
—Me deixe adivinhar: os piratas altos e de musculatura excessiva não sentem dor.
Erik sorriu pela primeira vez desde que tinha entrado na casa.
—Musculatura excessiva? Acreditava que não tinha se precavido.
—Não sou cega — disse com desprezo. Seus olhos resplandeceram ante as rutilantes chamas do fogo. Em um primeiro momento pensou que eram castanhos, mas ao vê-los tão perto pôde apreciar suas nervuras douradas e verdes, algo incomum e de grande beleza. Depois ela teve que arruinar aquela impressão acrescentando —: Como também veria um pavão que apruma suas plumas e se pavoneia pelo lugar.
Aquilo o deixou tão aniquilado que não pôde dizer nada. Pela primeira vez a resposta fácil não ia a ele. Acabava de compará-lo com um maldito pavão? Primeiro um cão e agora um pássaro? Era um dos guerreiros mais temidos das Highlands, guarda pessoal do rei, seguidor e parente de um dos líderes mais poderosos das ilhas Ocidentais e chefe de um clã ancestral. A pontada de indignação seguiu crescendo até converter-se em uma autêntica punhalada.
—Nem tampouco me impressiona sua fanfarronice de machão — disse — E não tente me distrair.
Nesse momento Erik pensou em um par de coisinhas que conseguiriam fazê-lo. Aquele mormaço do fogo e o leve perfume a lavanda, que tinha se feito mais forte ao aproximar-se dela, estavam provocando estranhas reações em seu corpo. As garotas inocentes não eram seu prato habitual. Embora sempre tinha gostado da sedução, mostrava-se precavido quanto a quem levava a cama. Preferia moças com experiência que compreendessem o que significa o desejo e não cometessem o engano de acreditarem-se apaixonadas. Mas seu corpo não parecia atender a seus raciocínios.
Ellie examinou sua mão passando a gema de um de seus dedos por aquelas gastas estrias. Ele permaneceu impassível, sem oferecer indicação alguma que todo esse toque e cutucadas provocava uma dor de mil demônios.
—Mas se ainda têm areia aqui colocada — disse de maneira acusadora — E fibras de cânhamo. —Olhou-o como se fosse um menino impossível de corrigir e não um homem que media quase meio metro mais que ela e que quase a dobrava em peso — Não sabe que pode infectar-se?
—O olharei mais tarde.
—Eu olharei agora — disse desafiando-o com o olhar — Não irá daqui até que coloque algo nestas feridas.
Erik sacudiu a cabeça. Ali estava de novo, lhe dando ordens uma vez mais. Aquilo estava convertendo-se em um cacoete, um cacoete que Erik teria que acabar. Assim que deixasse suas mãos tranquilas.
—Não sabia que se importava — disse para provocá-la.
Ignorou aquele comentário, algo que fazia com suma facilidade para seu gosto, e o arrastou até a cadeira.
—Sente-se — ordenou.
Também teria que trabalhar nesse tom que lhe falava. Entretanto, passados uns minutos que lhe dedicou todos seus cuidados, decidiu que era possível que lhe permitisse intrometer por um pouco mais de tempo. Podia chegar a acostumar-se a isso. Por outro lado, perturbava mais sua presença do que teria gostado que ele percebesse. Quando começou a dar voltas pela habitação em busca das coisas que necessitaria, precaveu-se da nervosa que ficava ao ver que ele a estava observando. Um nervosismo que foi mais patente no momento em que se deteve ante sua figura e ficou entre seus joelhos, roçando-o levemente. Sentiu-se como a aranha de Bruce tecendo sua rede. Tinha-a apanhada, embora ela ainda não soubesse. Roçava-lhe a coxa com a perna e podia notar sua respiração. As mãos dela tremeram ao posar a terrina de água quente sobre a mesa que havia junto à cadeira. Estavam tão perto que podia apreciar como lhe acelerava o pulso no pescoço. Erik sorriu. Isso gostava mais. A pequena babá não era de tudo imune a seus encantos. Vê-la assim agitada quase o recompensava pelos problemas que tinha causado… Mas somente quase.
Ele tampouco permaneceu impávido, sobre tudo quando ela se inclinou para lhe colocar a mão na terrina da água quente e seus cabelos caíram para diante, acariciando sua pele como um denso véu de seda. Aproximou sua cabeça um pouco mais e aspirou a embriagadora fragrância de flores enquanto lutava por controlar a necessidade de sepultar seu rosto naquelas escuras mechas e abandonar-se a incrível suavidade que lhe faria nadar em uma espiral de nuvens vaporosas. Diabos, aquela atmosfera exuberante que havia na habitação acabaria por voltá-lo louco. Incorporou-se nervosamente no assento e ela elevou a vista com cara de preocupação.
—Ocorre algo? Tenho-lhe feito mal?
—Absolutamente — disse ele negando com a cabeça. Mas bem se tratava de um trepidar insistente — Pode me tocar o quanto queira.
Ao ver que sorria timidamente e assentia sem mais, chegou a pensar que não tinha advertido a sugestiva entonação de sua voz. Até que lhe apertou a mão de um modo não muito amável.
—Ai! —disse estremecendo de dor. Aquela pequena diabinha o tinha feito de propósito — Isso dói.
Ellie elevou a vista com aqueles grandes olhos cor mel frisados de verde e piscou mostrando uma expressão inocente. Erik não se precaveu até esse momento dessas espessas pestanas cor azeviche que tinha.
—Ah, sim? —perguntou — Não é tão duro como parece. Terei que andar com mais cuidado.
Erik entreabriu os olhos disposto a não provocá-la mais até que tivesse terminado. Mas resultou que não era necessária provocação alguma porque aquela cercania já fazia o suficiente para angustiá-la. Embora não o olhasse, podia advertir como suas bochechas acendiam de calor cada vez mais, à medida que terminava de limpar a areia e a sujeira de suas feridas e secava suas mãos em um pano branco limpo.
Ellie contraía suas feições, fazendo ver que não a afetava absolutamente, mas as diminutas linhas brancas que se formavam na comissura de seus lábios a delatavam. Erik notava a tensão que irradiava e era consciente que Ellie tinha todos seus sentidos a flor da pele. Ah, apostaria que tinha arrepiado o pelo da nuca.
Sim, aquilo gostava mais. Esse era o tipo de reação que ele compreendia. Voltava a pisar sobre terreno firme. Seu terreno. Teve que conter o sorriso quando ela se inclinou para frente para pegar o pote de unguento que tinha encontrado sobre a estante e lhe roçou o ombro com um de seus seios. Deu um pulo como se queimasse, como se aquele corpo escuro não tivesse entrado antes em contato com um homem. Era isso possível? Ficou um tanto surpreso. Parecia um desperdício que uma moça de sua idade, que devia rondar os vinte e cinco, não conhecesse as carícias de um homem. Era o suficiente maior para ter já um par de filhos próprios em lugar de cuidar dos de outros. A que estava esperando?
Tinha seu escuro cabelo ante ele, concentrada em aplicar sálvia fresca em suas feridas e em fazer uma bandagem com tiras de tecido que cobrisse as palmas de suas mãos entre os dedos polegares e indicador, de maneira que tivesse mobilidade. Vendo-a operar de tal forma, Erik não pôde evitar pressionar suas coxas contra as dela, obtendo uma satisfação exagerada ao comprovar que atava com estupidez o último nó da outra mão. Somente tinha que pestanejar para tê-la em seu colo. Era tentador, realmente tentador. Fazia muito tempo que não estava tão excitado.
Assim que terminou sua tarefa, Ellie tentou afastar-se dele.
—Bom, pronto — disse com exagerada alegria, como se seu corpo não suspirasse por ele — Trabalho terminado.
Erik a agarrou pelo pulso e a atraiu para si; não estava disposto a deixá-la partir ainda.
—Obrigado — disse com uma voz aveludada que a surpreendeu.
—De nada — respondeu sem olhá-lo aos olhos.
Tentou olhar para outro lado, mas Erik tomou pelo queixo e a obrigou a enfrentar seu olhar. Os lábios de Ellie se entreabriram e o pulso de seu pescoço revoou sobre seus nódulos como as asas de uma mariposa. Ele mesmo não sabia exatamente o que pretendia, mas não podia evitar pensar no que gostava de vê-la excitada. E em que queria excitá-la um pouco mais. E em quão penoso era chegar a sua idade sem ter conhecido as carícias de um homem.
—Me deixe partir — conseguiu dizer com voz trêmula.
A pobrezinha estava tão nervosa como uma moça que nunca beijou. Demônios, era provável que nunca antes a tivessem beijado. Seus lábios se fixaram naquela boca. Quando não a tinha contraída para expressar sua desaprovação, era uma boca formosa, rosada, viçosa, com uma suave curva que a fazia sensual. Era um crime deixar intacta uma boca como aquela. Demônios, far-lhe-ia esse favor. O lábio superior se levantou mostrando uma curva enigmática. Chame um dever cristão. Não aconteceria nada se fazia uma exceção uma vez a sua regra de «nunca perder o tempo com donzelas».
Passou seu polegar sobre aquele ponto no que seu queixo marcava mais a teima e o apaziguou com uma suave carícia. Sua pele tinha um tato de outro mundo, tão tersa e sedosa como a nata. Ellie pôs cara de surpresa.
—M-mas o que, o que faz?
Erik sorriu deixando que a gema de seu dedo passeasse pela cheia almofada de seu lábio inferior. A alteração de sua respiração enviou espasmos de calor a sua virilha.
—Vou te beijar — disse
Suas pupilas se dilataram. Parecia ter deixado de respirar.
—Por quê? —quase gritou.
Os olhos de Ellie esquadrinhavam seu rosto com tanta atenção que Erik não acreditava que se desse conta de que apertava suas coxas contra ela e a atraía para seu colo. Passou uma de suas enfaixadas mãos por sua cintura e a deixou descansar sobre a leve elevação de seu quadril.
—Ninguém a beijou antes, não é certo, Ellie?
Emudecida, negou com a cabeça, vendo-se incapaz de mentir ante seu próprio assombro. Erik aproximou seu rosto ainda mais e voltou a percorrer sua boca com o polegar, satisfeito ao ver que tremia e que seus lábios se abriam. Aquilo era um convite muito doce para ser ignorado, assim roçou seus lábios contra os dela. Com carinho. Brandamente. O mais delicado dos contatos. Deixando que se acostumasse a aquela sensação.
Era algo que tinha feito centenas de vezes antes, mas seus sentidos estalaram ao sentir o contato. Parecia estar em outro mundo. Como era possível ter uns lábios tão suaves e de tão doce sabor? Teve vontade de inundar-se dentro deles. De inundar-se dentro dela.
Afastou os lábios um tanto perplexo e olhou seus olhos entreabertos. Sim, assim era exatamente como deviam estar. Olhos delicados e sonhadores, em uma espera suplicante por suas carícias. E não imperturbáveis e insensíveis. Franziu o cenho ao pensar em quão estranho era que seu coração pulsasse de tal maneira e que tivesse tanta vontade de beijá-la. Voltou a roçar sua boca, com um pouco mais de paixão desta vez, atrasando-se sobre ela para saboreá-la. Doce? Diabos, aquela boca era puro caramelo dissolvendo-se debaixo dele. Beijou-a com mais força, movendo sua boca sobre a dela com avidez e esquecendo-se por completo do dever cristão. Tudo no que podia pensar era nessa aveludada tez, seus doces e suaves lábios, o sabor a mel e o encantador perfume de sua pele. Sentia-se arrasado por uma deliciosa e sensual ressaca que o afogava em desejo líquido. Não podia acreditar que estivesse tão excitado por um simples beijo. Maldita seja, tinha o membro tão duro como um pau.
Aproximou-a mais a seu corpo e a deixou jazer completamente sobre seu colo, pensando que aquilo serviria de alívio. Mas sentir o traseiro dela contra sua ereção, tão somente separado por um fino tecido, somente serviu para aumentar sua agonia e fazê-lo suspirar por mais. Muito mais.
Ellie fez um ligeiro ruído ao sentir como toda sua dureza se rendia contra ela de maneira tão íntima, um pouco por surpresa e um pouco por algo mais profundo, eco de uma sensualidade que jamais teria podido supor, mas que morria por explorar.
As bandagens de sua mão não impediram que metesse os dedos em seu cabelo para agarrá-la pela nuca e atrair sua boca completamente para a dele.
«Só um pouco», prometeu-se, para depois pressioná-la com seus próprios lábios para que abrisse os seus. «Deus.» O primeiro contato de sua língua no interior de sua boca o fez gemer de autêntico prazer.
Ellie ficou estupefata ante aquela inesperada invasão, mas ele voltou a arremeter antes que lhe desse tempo para afastar-se. Entrelaçou sua língua com a dela em uma descarada e sedutora carícia, repetindo-o uma e outra vez até que sentiu como seu corpo se enternecia.
Gostava de senti-la assim, sumida na calidez e derretida entre seus braços. Sentir que tinha a pele ardendo, a respiração entrecortada, que seu corpo se preparava para suas carícias. Estaria molhada? Percorria esse calor sua virilha? Inchavam-se os carnudos lábios de seu sexo? Tremiam? Morriam por que os tocasse?
Mas que demônios lhe ocorria? Conhecia o desejo, mas isto era… Era algo que ia além. Havia algo nessa moça que o fazia sentir de um modo diferente, por mais que não tivesse ideia do que poderia ser. O calor que o atendia se fazia cada vez maior. Por todo seu corpo. Não somente pela virilha.
De repente, sentiu-se incomodado e começou a separar-se dela; assim o teria feito se não sentisse como Ellie colocava indecisa sua língua. Sua inocente resposta obrou nele de maneira inusitada. Foi como se aquele pequeno ataque acendesse um fogo em seu interior. Em lugar de afastar-se, aproximou-a mais para abraçá-la por completo. Seus mamilos se apertaram contra seu peito à medida que o beijo se voltava mais apaixonado, à medida que apertava sua língua contra a dela e a fazia circular por toda sua boca. Deus, aquilo era incrível. E ela respondeu saindo ao encontro de sua língua com a sua própria, primeiro inocentemente e depois com mais confiança, animada pelos gemidos que ele emitia. Deu-lhe vontade de rugir de orgulho masculino quando sentiu que Ellie rodeava sua nuca com os braços. O que lhe faltava em experiência o supria melhor com o entusiasmo. Que desperdício deixar que uma paixão como aquela permanecesse encerrada e se murchasse. Aquela moça tinha um dom.
Sua reação provocava nele um estranho efeito. Parecia estar perdendo o controle. Cada vez a beijava com mais paixão. De maneira mais úmida. Mais atrevida. Beijava-a de tal maneira que roubava os tesouros de sua boca como se tivesse intenção de deixá-la sem sentido.
Ellie tinha tanto calor que quase se derretia em seus braços. Ele parecia não cansar-se de tocá-la. Sua mão se encontrou com a pequena curva de seu seio, nada parecido às carnes brandas e flácidas às que estava acostumado, a não ser firme e flexível, com uma redondes que mal cobria a palma de sua mão. Queria os apertar e os amassar, tomar o pequeno botão de seus mamilos entre seus dedos e beliscá-lo até esticá-lo por completo, mas o ritmo endiabrado de seu coração o obrigou a tomar-lhe com calma. Provocou-a com os lábios e a língua até que ela esqueceu o peso da mão que tinha sobre seu seio. Então o agarrou com ternura e começou a rodear o mamilo com seu polegar até que ela gemeu e dobrou o corpo sobre sua mão. Somente podia pensar em ir descendo por seu pescoço com a língua, abrir de um puxão a camisola, rodear esse pequeno e terso botão com a língua, metê-lo na boca e lambê-lo com todas suas forças. Seu corpo estava a ponto de ebulição, o coração pulsava a toda pressa e o sangue bombeava até suas orelhas. Sabia que estava a ponto de cometer uma loucura, mas não era capaz de controlar-se. Queria estar dentro dela, sentir como toda ela palpitava a seu redor. Não podia pensar em outra coisa.
Subitamente a porta se abriu.
Ellie saltou de seu colo como se tivesse se queimado e Erik se levantou quase logo após ela, como se jogassem um balde de água fria em cima.
Mas «que diabos?» Nem ele mesmo sabia se referia ao beijo ou à interrupção. Ficou abobalhado. Aniquilado!
Sua mão se dirigiu instantaneamente para o punho da adaga que levava a cintura, mas a soltou ao precaver-se que se tratava de Domnall e Duncan, que levavam a um capengante Randolph entre os dois. Apesar de ter que lutar para que o sangue que fervia por suas veias se esfriasse, sua mente conseguiu esclarecer-se.
—O que aconteceu?
Domnall lhe dirigiu um olhar cheio de curiosidade, dando-se conta obviamente do que acontecia. Ellie não era seu tipo e ambos sabiam. Suas amantes habituais não estavam acostumadas a ser fêmeas fraquinhas e sem muito atrativo.
—Desmaiou. Dizia estar ardendo de febre.
Ellie proferiu um som de angústia.
—O coloquem aqui — indicou aos homens, levando-os até a cama embutida na parede e voltando para seu papel de babá eficiente com uma rapidez pasmosa, como se não tivesse estado segundos antes desfazendo-se entre seus braços.
Erik amaldiçoou e levou as mãos à cabeça, sem ter a certeza de estar zangado com Randolph ou consigo mesmo. Esse beijo tinha deixado transtornado a alguém, mas por todos os deuses que não parecia ser ela.
Capítulo 8
— Ellie!
A moça estremeceu ao ouvir a voz do Falcão, que provocou um brutal estrondo, perturbando a tranquilidade daquele ensolarado dia de inverno e fazendo que quase caísse o montão de roupa branca que sustentava nos braços. «Senhor, o que terei feito agora?» Mal tinham transcorrido quarenta e oito horas do momento em que perdeu a cabeça e permitiu que ele a beijasse, momento a partir do qual tinha passado o tempo ignorando-a, ou repreendendo-a por algo que fizesse mau.
Apesar de ser ele que a animou a mostrar-se de alguma utilidade, nada do que fazia lhe parecia adequado. Se Ellie se oferecia a ajudar Meg para levar a comida a seus homens, ele dizia que se misturava em seus assuntos. Ela tão somente tinha sugerido que recolhessem um pouco as coisas que estavam no meio, porque aquela cova estava bagunçada. Se tentava ajudar nas costuras das mulheres do povoado, acusava-a de querer ganhar suas simpatias para que a ajudassem a escapar, uma ideia que, uma vez sugerida por ele mesmo, já não poderia culpá-la por explorar. Inclusive a tinha proibido atender Thomas quando este se encontrava em pleno delírio por medo que ouvisse algo que não devia. Quem poderia imaginar que os ladrões tinham segredos tão importantes? Felizmente, a febre de Thomas remeteu no dia anterior e, embora ainda se encontrava débil, o jovem pirata se recuperaria.
—Ellie! —voltou a gritar Falcão lhe provocando calafrios de novo.
Os músculos de suas costas se esticaram ante a expectativa de uma nova topada, ao tempo que dava a volta lentamente, justo no momento que ele aparecia por trás do escarpado e cruzava o prado com violentos passos. Assim que se precaveu de seu corrosivo olhar, deu-lhe vontade de correr para salvar os dez metros que a separavam da porta. Talvez com Meg e Thomas na habitação seus gritos se aplacassem? Mas o duvidava, já que não parecia lhe importar absolutamente a presença de Duncan ao outro lado do jardim.
Ao que parecia, o excelente humor com que contava o capitão se estendia a todos, salvo a ela. Inclusive Thomas se precaveu e apontou que jamais tinha visto falcão tão anti-social com uma garota. A Ellie isto teria agradado em extremo há não ser porque aquilo implicava ter que suportar todo o impacto de seu mau caráter. A fé que tinha uma figura imponente! Sua boca formava uma linha inflexível e seus olhos eram puros raios de luz azul brilhante. Aquele loiro nórdico que exibia era capaz de tornar da cor do gelo em um impetuoso abrir e fechar de olhos. E apesar de já não temer que lhe fizesse mal, a experiência de ter a um pirata furioso elevando-se contra ela e rugindo resultava intimidante em seu conjunto.
Colocou a roupa branca, recém lavada, sobre uma rocha e se incorporou para olhá-lo, cegada pelo brilho que a luz do sol fazia sobre suas armas e os pequenos rebites de metal incrustados sobre seu cotun de couro negro. Em qualquer caso, resultava igualmente impressionante sem sua armadura, algo do que estava segura que ele era plenamente consciente.
Quando Falcão se deteve menos de meio metro dela, seu corpo a traiu: ruborizou-se por tê-lo tão perto. Por que tinha que cheirar tão bem? E por que tinha que estar como um touro? Como ia reagir quando quão único podia fazer era cheirar aquela cálida pele enfeitada com o ligeiro aroma de seu sabão e tudo que podia pensar era na força de seus braços ao agarrá-la e a firmeza de seu torso apertando-se contra seus seios?
—Não ouviu como a chamava? —perguntou mostrando sua cólera.
Ellie o olhou de modo desafiante. Ao menos nesta ocasião não lhe voltaria o rosto. Embora o palpitar de seu peito tinha diminuído, não acabava de desaparecer. Tentava convencer-se que não lhe doía seu irritante comportamento nem que a tivesse estado evitando depois do beijo.
—Acredito que toda a ilha ouviu como me chamava — repôs ela com indiferença.
Em seus olhos azuis se viu refletida toda a frieza do aço da espada que levava à costas; nada podia estar mais longe daquele cálido e subjugador olhar que tinha quando a beijou. Não queria pensar nisso, mas seu olhar tropeçou com seus lábios e recordou melhor do que devia as tórridas sensações provocadas por aquela boca, mãe de todas as perfeições. Nem em sonhos imaginava que um beijo pudesse parecer-se com aquilo, que o desejo pudesse ser tão forte, que cada um dos rincões de seu corpo se mostraria tão perversamente receptivo. Aquela boca era muito suave e cálida, cada uma das destras carícias de seus lábios e sua língua muito sedutora. Aquele homem tinha sabor de trevas, a uísque e a prazeres inconfessáveis e diabólicos. A força com a que Ellie tinha reagido a tais dons era algo que surpreendia a ela mais que a ninguém. Pensava ser imune aos desejos da carne. Mas jamais antes havia sentido desse modo. Era a primeira vez que não se via capaz de dominar suas próprias sensações. O contato tinha bastado para embriagá-la de desejo. Encontrou a si mesma respondendo a seus avanços, devolvendo os beijos, desfazendo-se ante ele, querendo estar mais perto ainda, percebendo com muita claridade o duro impulso daquele sexo sobre seu traseiro. E depois, quando rodeou um de seus seios com a mão… Sentiu um calafrio ao recordar a facilidade com que tinha caído em sua armadilha de sedução. Mas no que teria estado pensando?
Zangada consigo mesma por recordar aquilo que prometeu esquecer, como tão facilmente fazia ele, não se incomodou em ocultar sua impaciência.
—Queria algo? Estou ocupada.
A maneira em que Falcão entreabriu os olhos inspirava terror.
—Estou seguro disso. Há alguma razão pela que meus homens andem meio nus junto ao fogo, em lugar de exercitando-se como ordenei que façam?
Ellie não pôde evitar encolher-se de ombros mostrando sua indiferença, apesar de saber que aquilo o zangaria ainda mais.
—Não sei. Eu sugeri que nadassem e que praticassem com a espada mais tarde, com a esperança que assim se asseariam um pouco.
Erik parecia a ponto de explodir. Estava claro que Ellie não devia desfrutar tanto no que fazia.
—Ordenou a meus homens que nadassem?
—Sugeri — corrigiu ela com a voz mais autoritária que pôde — Me pareceu o mais eficaz. Como vi que suas roupas pareciam um asco, ofereci-me para lavá-las. Temo que com a lã não se podia fazer muito, salvo lhe dar uma boa escovada.
Seus homens levavam uma ampla gama de objetos das variadas influências que prevaleciam nas ilhas Ocidentais, entre as que se incluíam a tradicional lã que se fechava com cinturão, os tecidos escoceses e cotuns gaélicos, as meias nórdicas e suas coloristas túnicas e vestimentas cavalheirescas, tais como os calções de linho ou as perneiras, algumas de lã, enquanto que as roupas mais finas eram de couro. Thomas era o único que vestia uma cota de malha interior e pernis de aço, mas o cotun de couro negro do capitão e as pernas das calças recobertas com peças de metal eram tanto ou mais elegantes que estas. Obviamente a pirataria resultava uma ocupação lucrativa.
—A metade da roupa já está pronta — disse Ellie assinalando o montão que tinha deixado sobre a rocha — O resto não estará preparado até passado o meio-dia. — Olhou-o de cima abaixo e aspirou uma grande baforada de ar, inalando o forte aroma de sua essência masculina. Enrugou o nariz como se o aroma lhe resultasse desagradável, algo que não podia estar mais longe da verdade — Se quiser acrescentar suas roupas ao montão, ocupar-me-ei de que lhe sejam devolvidas.
O rosto de Erik se tornou tão sombrio que quase se arrependeu de provocá-lo. Quase. Mas depois da maneira em que tinha deixado seu corpo feito água e logo atuado como se aquele beijo jamais tivesse tido lugar, estava disposta a obter prazer de onde pudesse. Aquele beijo que fazia cambalear seus alicerces não significava nada para ele. Tratava-se de algo que, sem dúvida, já tinha feito centenas de vezes com um incontável número de mulheres. Inclusive agora, que seu corpo lutava por se liberar da visceral lembrança de suas carícias, ele permanecia ante ela intrépido e insensível.
Aquela reação que adotava, ou melhor dizendo, sua falta total de reação, era a melhor razão para afastar-se dele. Jamais tomava algo a sério, e nada tinha que pudesse penetrar essa armação de galanteria que mostrava com todos menos com ela. Inclusive pensar nele era atuar como uma ingênua. Tinha-a beijado porque lhe dava lástima. E se por acaso fosse pouco saber-se patética, via-se mais humilhada ainda ao pensar em quão rápido tinha sucumbido a seus encantos. Ao que parecia, a resistência que opunha a seu belo rosto não se estendia a aquela talentosa boca.
Repetia a si mesma que aquilo não tinha significado nada. Não podia ter deixado mais claro. Qualquer mulher que pensasse outra coisa, que desse tanta importância a um simples beijo, estava chamando a gritos à decepção e ao desamor. Não tinha intenção alguma de seguir os mesmos trágicos passos de sua mãe. Se entregasse seu coração a um homem, não seria para que este o atirasse ao lixo. Seu pai amava com muita liberdade para limitar seu coração a uma só mulher, algo em nada diferente ao homem que tinha ante si. Mas por que pensava sequer nisso? O amor não era para ela.
—Você se ocupou disto tudo, sem ajuda? —disse Falcão olhando para o montão de roupa branca.
Ellie tentou evitar que suas bochechas se sobressaltassem sem conseguir.
—Algumas mulheres da vila se ofereceram a me ajudar.
Ao ver o trabalho que lhe estava custando, tiveram piedade dela.
—Me deixe ver suas mãos — disse Falcão com rosto severo, franzindo os lábios com força.
—Tenho que devolver isto — respondeu ela, voltando a cabeça com esse gesto que sabia que ele odiava, em uma tentativa por distraí-lo, ao tempo que se agachava para recolher a roupa.
Erik tinha se desfeito já das bandagens, de modo que quando a agarrou pelo pulso, Ellie se sobressaltou pelo contato. Sua pele se arrepiou como se recebesse o impacto de uma multidão de raios pequenos.
—Me mostre as mãos, Ellie — grunhiu em uma voz que fez que lhe subisse um calafrio pelas costas — Agora.
Apertou forte os lábios. Não era mais que um valentão enorme. Tentou pôr as mãos fora de seu alcance, mas ele a obrigou às abrir e emitiu um grosseiro palavrão ao vê-las.
—Não é nada — disse ela afastando a mão — E não deveria usar uma linguagem tão soez. É sintoma de mentes débeis.
Se esperava que aquele tom disciplinador o distrairia, estava muito equivocada.
—Boas feridas. O que esteve fazendo? Com tais bolhas e úlceras parece que as meteu em escórias e logo açulou contra as rochas.
Elevou o queixo, muito envergonhada para reconhecer que tinha calculado mal as proporções de alvejante e água até que Meg a tinha corrigido. Em qualquer caso a culpa era dele.
—Foi você quem me disse que fizesse algo útil — disse fincando o dedo em seu peito, algo que era como tentar amolgar o granito — Assim deixe de se queixar que o faça.
Erik baixou a vista até sua mão e Ellie se apressou a afastá-la de seu peito.
—Não me referia que se convertesse em uma faxineira. Com certeza jamais antes tinha feito isso.
Suas bochechas se ruborizaram.
—E o que importa isso? Vi algo que precisava ser feito e o tenho feito. —Com um pouco de ajuda, tinha que admitir.
Da parte inferior da boca de Falcão surgiu um tic que não pressagiava nada bom. Aquele sinal de mau caráter lhe resultou fascinante. Era como uma pequena mácula em sua impassível fachada.
—Bem, pois não o fará de novo. Seus dias como lavadeira se acabaram.
—Por quê? Que importância tem isso para você?
Seu gesto se enfureceu mais se pudesse, como se não gostasse da pergunta. Estava muito acostumado que as coisas fossem de seu gosto. Ellie apostava que podia contar com os dedos de uma mão as vezes que lhe haviam dito «não» em sua vida.
—Porque sou responsável para que chegue em sua casa inteira e não permitirei que me acusem de lhe obrigar a fazer trabalhos forçados.
Ellie sabia que estava brincando com fogo, mas não pôde aguentar a risada.
—Pensava que os vikings gostavam de ter escravos. —Seus olhos brilharam de ira, mas antes que ele pudesse responder acrescentou —: O que lhe importa o que pensem os outros? É um pirata ou não?
O estava desafiando que se mostrasse em desacordo com ela. Pode ser que tivesse aspecto de pirata, mas não atuava como tal absolutamente, ao menos em relação à ideia que ela tinha feito dos piratas. Os piratas eram gente sem escrúpulos nem moral, corsários sanguinários do mar, e não pícaros de bom aspecto que resgatavam seus cativos das águas por duas vezes e lhes prometiam devolvê-los a casa, mostrando-se preocupados quando suas mãos se gretavam e ulceravam. Aquilo não se enquadrava. Mas se não era assim, que outra coisa podia estar fazendo ali na cova? E por que fugia dos ingleses?
Falcão aceitou o desafio daquele olhar fulminando-a com o seu e dando um passo à frente, como se soubesse o quanto inquietava a jovem ter um robusto guerreiro de dois metros ante ela.
—Acaso duvida, Ellie? —Lady Elyne, esteve a ponto de corrigir ela. Somente sua família a chamava Ellie e ainda não se acostumou que essa intimidade proviesse daquela profunda e aveludada voz — Acreditava que já tínhamos deixado isso claro.
Ellie lutou com todas suas forças para não dar um passo atrás. Por que tinha que ser tão alto? Como podia ter uns ombros tão largos e braços tão musculosos? Forjados na batalha? Não acreditava. Certamente tinha feito de si um homem forte de propósito, para que as mulheres caíssem rendidas a seus pés. Viu-se obrigada a levantar a cabeça de novo para olhá-lo.
—Fizemos. Fiz — se corrigiu. Aspirou uma grande baforada de ar para tranquilizar-se, precavendo-se com horror da facilidade com que a alterava — O que ocorre é que parece ter umas incomuns maneiras de nobre para ser um pirata. Além disso, por que o chamou um dos pescadores do povoado de taoiseach? —Aquela era uma palavra para referir-se ao chefe de um clã.
Se não estivesse estado tão perto, não teria podido advertir a dureza do brilho de seus olhos momentos antes que a escondesse atrás de um sorriso forçado.
—Me deixe adivinhar: o velho Magnus? A maioria das vezes não se lembra nem de seu próprio nome — explicou, para acrescentar após um pausa —: Acredito saber de onde provém esta repentina mudança de atitude.
—Ah, sim? —disse Ellie elevando uma sobrancelha.
—Sim — asseverou ao tempo que assentia. Falcão posou a vista sobre sua boca e Ellie começou a notar que seus poros emanavam um calor como a lava de um vulcão em erupção — Acredito que está se perguntando como é possível que desfrutasse com o beijo de um pirata.
—Não desfrutei — disse com uma cara em que a ira fez estragos de fogo.
Mas a forma que ele a olhava fez que parasse em seco seus protestos. Não lhe cabia a menor duvida que, se acrescentava uma só palavra dele, tinha toda a intenção de provar que se equivocava. Ruborizou-se ainda mais, enquanto ele continuava perseguindo-a.
—Assim que se convenceu que devo ser outra coisa.
A vergonha a superava. Era certo aquilo? Tinha cegado sua visão esse beijo de tal forma que somente via o que ela queria? Não! Havia algo mais. Estava segura. Se era certo que ele mal tinha aspecto de pirata, muito menos o tinha Thomas. Tinha passado a vida rodeada de cavalheiros, e esse jovem estava educado no código de cavalaria da cabeça aos pés.
Falcão, quem sabia qual seria seu verdadeiro nome, aproximava-se de tal modo com a única intenção de distraí-la. E funcionava. Estava tão perto que via como sua incipiente barba sombreava as duras linhas de sua mandíbula, aquelas finas estrias que tinham saído ao redor de seus olhos de tantos dias ao sol e tantos sorrisos, o moreno em forma de V que marcava no pescoço do bico de seu cotun e a suave e sensual curva dessa incrível boca, a escassos centímetros da sua, em que seu olhar tinha ficado detido.
Ellie se precaveu que Erik estava completamente quieto, que tinha todos os músculos do corpo em tensão. Seus olhares se encontraram. Ellie estremeceu, surpreendida pela crua intensidade de seus olhos. Olhava-a como se… como se toda sua contenção pendesse de um fino fio. Mas do que se continha? De estrangulá-la? Não. Estava zangado, mas havia algo mais que não era capaz de identificar, algo quente e intenso, algo que fazia que se sentisse estranha, que a inquietava, como se de repente não se sentisse cômoda em sua própria pele. Voltou a sentir aquele comichão no lugar íntimo que havia entre suas pernas. Envergonhou-se das reações de seu corpo e baixou o olhar. Enquanto isso, ele apertava os punhos, abrindo-os e fechando-os, como se pretendesse assim recuperar o controle sobre si mesmo. Ao que parecia, teve o efeito desejado.
—Não lavará mais nem se encarregará de nenhuma outra coisa parecida. O comunicarei a meus homens.
Ellie voltou a elevar o olhar. Do que ia tudo aquilo? Estava zangado porque tinha invadido seu terreno? Somente queria ser de ajuda.
—Bem. Da próxima vez seus homens podem acampar por aí com suas vestimentas sujas e putrefatas e conseguir assim que os ingleses lhes localizem somente seguindo esse aroma nauseabundo que desprendem. Que mais me dá? Pode se consumir em uma masmorra inglesa junto ao resto dos criminosos até o dia do julgamento final.
Os olhos de Erik se entreabriram como se quisesse discutir, mas depois pensou melhor e luziu esse devastador sorriso dele, mostrando uma vez mais o afável pícaro ao que lhe importava um cominho. Por uma vez aquilo não a zangou. Sentia-se mais segura desse modo.
—Vê — disse ele languidamente com um brilho diabólico em seus olhos azuis — Não é tão difícil ser razoável.
Ellie soprou de uma maneira imprópria para uma dama.
—Não será pelo razoável que se mostra você — assinalou entre dentes.
—O que diz, Ellie? Não pude ouvi-lo.
—Nada — disse tercamente — E o que, rogo que me diga, supõe-se que devo fazer até o dia indeterminável em que finalmente se digne a me levar de volta para casa?
Erik se encolheu de ombros e se dispôs a partir.
—É uma moça inteligente. Estou seguro de que pensará em algo. Thomas começa a sentir-se melhor. Por que não o manipula por um tempo?
—Eu não mani… —repôs detendo suas palavras e apertando os dentes. Não valia a pena protestar. Esse homem não tinha remédio.
Agora era ela a que apertava os punhos à medida que o via afastar-se com passo desenvolto e para cúmulo assobiando, o muito trapaceiro. Algum dia veria como esse arrogante e irresistível sorriso se apagava desse rosto muito arrumado. Pode ser que então descobrisse o que se ocultava atrás dele.
Erik continuava assobiando dois dias depois desse encontro no jardim, enquanto subia com calma o caminho que levava até a moradia de Meg, não para ver a moça, conforme se dizia, a não ser para comprovar o estado de Randolph. Ao estar este doente, a Erik não ficava mais alternativa que aguardar o momento oportuno em Spoon, ao invés de ir a Islay para reunir-se com Bruce. Mas depois de tantos meses fugindo não estava acostumado a ficar muito tempo em um lugar e começava a sofrer uma estranha inquietação, ou ao menos essas eram as razões que ele mesmo se dava.
Surpreendia-lhe ter tido tão poucas notícias dos moradores da casa. Tampouco se queixava. Não, estava encantado que aquela pequena mandona tivesse entrado por fim em razão e deixasse de interferir em seus homens e de desafiá-lo a cada instante. Já estava suficiente ocupado com o que tinha, vigiando o galeão de soldados ingleses que tinha atracado no dia anterior na ilha para perguntar aos aldeãos se sabiam algo de um navio com um falcão. Felizmente tinham ancorado na parte sul da ilha e se limitaram a uma inspeção superficial do terreno. Abandonaram o lugar ameaçando quanto puderam, mas a coisa não passou a maiores.
Sim, tinha razões mais que suficientes para sentir-se contente. Não só os ingleses partiram, estavam a salvo deles, e a moça cumpria por fim com o prometido, mas sim ainda bulia em seu interior o júbilo que sempre seguia ao cumprimento de uma missão. Diabos, sentia-se tão magnânimo que estava disposto a conceder que talvez a reação ante a lavagem da roupa de seus homens tivesse sido desmedida. Certo era que o fedor da cova tinha melhorado. Mas o havia posto furioso retornar de uma missão de reconhecimento ao outro lado da ilha e encontrar seus homens escondidos na cova mortos de calor e com o traseiro ao ar. Aquela babá mandona tinha intimidado a alguns dos guerreiros mais temidos da cristandade, seus próprios guerreiros, para que lhe dessem suas roupas. Já tinha tido mais que suficientes inferências por sua parte. Por Deus bendito, por mais que não fosse a prisioneira típica, tratava-se de uma prisioneira, assim devia começar a atuar como tal. Um pouco de submissão não estaria mal para começar.
Mas Ellie não atuava do modo devido absolutamente. Esse era o problema. Talvez se o fizesse, poderia deixar de pensar nela. Aquilo não tinha sentido. Não estava acostumado a perder tempo com mulheres do tipo babá magricela e insossa, por mais sangue que tivesse bombeado em suas veias aquele inocente beijo dele. Jamais consideraria sequer casar-se com alguém que não se cumprisse à riqueza e prestígio de seu clã, e as mulheres com as que estava acostumado a ir à cama não eram donzelas, e além disso… Enfim, que eram mais bonitas e tinham uns peitos muito maiores. Apesar de ela ter essa tez tão luminosa, uns olhos de cor incomum, largas pestanas azeviche e uns pezinhos tentadores que caíam sobre sua mão de maneira tão convidativa, isso não a convertia em uma mulher apta para o posto.
Mas o certo era que, quando teve aquele pequeno montículo de carne entre suas mãos…, tampouco havia sentido que lhe faltasse algo. Em realidade a sensação tinha sido incrível. Mas isso não queria dizer que estivesse interessado nela. O qual não explicava por que tinha faltado tão pouco para que voltasse a beijá-la quando estavam no jardim. Parecia que com somente estar a três metros dela seu corpo ficasse em guarda. Era algo ridículo, por não mencionar o desconforto que supunha. Mas aquilo não lhe preocupava absolutamente. Depois de quase uma semana sem ter provado uma mulher, era normal que mostrasse os sinais da privação, um descuido que seria fácil de remediar. Quem sabe, talvez depois de comprovar o estado de Randolph se unisse ao resto de seus homens no botequim da vila.
Com esse feliz pensamento acrescentado a outros, cruzou a verde colina brunida pelo frio do inverno e franziu o cenho, estranhando ao ver que Duncan não estava em seu posto. Tinha ordenado a seu parente que a vigiasse, nem tanto para evitar que escapasse, já que não chegaria muito longe, para assegurar-se que nada lhe acontecia em caso de tentar. Sob sua vigilância, não desceria pelos escarpados. Enquanto estivesse sob seu protetorado, Ellie era responsabilidade dele. Uma responsabilidade que tinha decidido delegar a seu primo após aquele beijo.
Mas logo se esqueceria daquela convidada problemática, assim como desses igualmente problemáticos pensamentos que o espreitavam. Embora ainda tinha uma presença considerável de patrulhas inglesas na área, Erik já tinha sido açoitado em suficientes ocasiões por esses cães ingleses para saber que cedo ou tarde se dariam por vencidos. E se não o faziam, tampouco o preocupava: seria capaz de passar ante seus narizes quando fosse necessário. Ainda tinham tempo mais que suficiente até que se visse obrigado a encontrar-se com os MacQuillan para conduzi-los a Rathlin.
Enquanto isso já tinha encontrado uma maneira de enviar notícias a Bruce. A opção mais óbvia, por não falar da mais rápida e direta, era o castelo de seu primo Angus Og MacDonald em Dunaverty, já que estava a tão somente três quilômetros de Spoon. Resultava irônico que Dunaverty fosse o mesmo castelo de que tinha escapado com Bruce há quatro meses. Apesar de estar ocupado pelos ingleses nesse momento, seu primo ainda contava com homens em seu interior. Sabia que se era capaz de enviar uma mensagem a Angus Og, este se encarregaria que chegasse a Bruce. Angus Og tinha uma vasta rede de homens dispersos com o passar do litoral oeste. Erik sabia melhor que ninguém. Tinha servido durante quase uma década sob as ordens de seu primo, lorde de Islay, e o homem mais poderoso das ilhas Ocidentais, até que Bruce o recrutou para sua Guarda dos Highlanders. Ao princípio, Erik tinha se mostrado resistente a abandonar o serviço daquele homem que tanto tinha feito por ele. Tinha somente sete anos quando seu pai morreu, e era muito jovem para proteger-se sozinho das manipuladoras manobras de seus parentes os MacDougall, que com a desculpa de ajudá-lo queriam apoderar-se de suas terras. Foi Angus Og que protegeu a ele e a sua família, lhe ensinando o significado da palavra lealdade. Foi Angus Og que fez dele um homem. Mas seu primo tinha insistido que devia unir-se a Bruce, e lhe devia muito para não cumprir seus desejos. E também era uma forma de recuperar as terras que os MacDougall tinham usurpado à morte de seu pai.
As lutas de poder entre os dois ramos mais poderosos de descendentes de Somerled, os MacDonald e os MacDougall, dominavam a políticas das terras do West Highland. Naquele momento eram os MacDougall, que tinham se alinhado ao bando de Eduardo, que eram favorecidos, mas aquilo mudaria quando Bruce reclamasse sua coroa. Ver sofrer John MacDougall de Lorn seria tão satisfatório como ver Eduardo voltar para a Inglaterra com seu rabo de cão inglês entre as pernas.
Erik podia fazer que sua mensagem chegasse de navio, mas seria muito mais singelo fazê-lo nadando, ao menos mais singelo para ele. Os guardas do castelo se alertariam ao ver um bote, mas jamais esperariam que alguém chegasse a nado. Sorriu. Aquilo seria inesperado, perigoso, extremo. Tal e como gostava das coisas. E funcionou. A noite anterior tinha nadado os três quilômetros e meio que separam a ilha de Spoon de Dunaverty e entregou a mensagem a um dos homens de seu primo.
À medida que se aproximava da porta da casa de Meg, ouviu o alvoroço afogado da risada de Duncan misturado com outro muito mais suave, quase infantil, o timbre da voz de uma mulher. Não de Meg, conforme reconheceu ao momento, a não ser o de Ellie. Havia algo naquele som que não lhe sentou nada bem. Bateu na porta por educação e a abriu imediatamente depois. Ficou gelado. Duncan tinha sua mão ao redor da cintura de Ellie elevando-a no ar, enquanto ela alargava o braço para alcançar algo que havia em uma das grandes prateleiras de armazenagem embutidas junto às vigas do teto. Mas Erik não via mais que os olhos de seu parente cravados no traseiro dela, cuja surpreendentemente acentuada curva se revelava com toda claridade através do velho leine que lhe tinham emprestado, cujo pano estava gasto pelo uso.
Ellie e Duncan se viram surpreendidos pela interrupção. As mãos de Duncan escorregaram da cintura de Ellie, e esta gritou, vendo que caía ao chão. Mas Duncan se arrumou para pegá-la em seus braços antes que isso acontecesse. «Do mais oportuno», pensou Erik, com todos os nervos a ponto de arrebentar. A cara de surpresa de Ellie se transformou em pura diversão ao encontrar-se com os olhos de Duncan, e ambos voltaram a cair em risadas de novo. E ignorando a presença de Erik por completo.
—Acredito que ao final teria sido melhor pegar a escada —disse Ellie, mostrando imediatamente certa preocupação no olhar — Têm bem o braço?
—Meu braço está perfeitamente, moça, tal e como lhe disse — assegurou Duncan entre risadas — Poderia levantar uma coisinha como você com um só braço, ferido ou não. Terá que me dar outra oportunidade de prová-lo ou meu orgulho ferido não poderá reparar-se. Além disso, isto é muito mais divertido que uma escada — acrescentou piscando um dos olhos.
Erik quase sentiu pena por seu parente, consciente que Ellie era impermeável a tentativas de sedução muito mais versados que essas pobres tentativas de galanteria. Imaginava já a réplica cortante que lhe daria quando se viu surpreendido ao comprovar que as bochechas dela se ruborizavam de um modo muito virginal. Pode ser que ficasse estupefato, mas não por isso deixava de pensar em arrebatar Ellie dos braços de seu primo e talvez logo lhe apagar esse estúpido sorriso com um bom murro. Erik o olhou com os olhos entreabertos. Sua mãe dizia que os primos se pareciam, mas ele não o via assim. O cabelo de Duncan era mais escuro, Erik media ao menos cinco centímetros mais que ele e superava em vinte quilogramas de puro músculo seu parente três anos mais novo.
Ao final Ellie recordou que estava ali e olhou em sua direção brevemente para logo assinalar a Duncan a presença de Erik com a cabeça.
—Talvez deveríamos comprovar o que deseja seu capitão antes de tentá-lo de novo?
Duncan não parecia ter pressa alguma para soltá-la no chão, até que se encontrou com o olhar de seu primo. Surpreso por esse olhar, pôs os pés dela sobre o chão a contra gosto. Erik sentiu que seu sangue se moderava um tanto.
—Queria algo, capitão?
Erik tentou lutar contra a inexplicável ira que sentia por seu familiar.
—Por que não está em seu posto? —perguntou.
Ellie se colocou frente a ele. Erik teria rido se aquele gesto protetor o irritasse muito.
—É minha culpa — disse — Meg me pediu que preparasse uma tintura para quando Thomas despertasse e, como não podia alcançar o romeiro que pendura do teto, pedi a Duncan que me ajudasse a trazer a escada que há fora.
—E eu lhe disse que não necessitávamos uma escada — apontou Duncan sorrindo à garota com consideração.
Desde quando se converteu aquele primo que somente pensava na guerra em um pilantra de tal nível?
—Duncan foi de grande ajuda — afirmou Ellie.
Erik notou como lhe chiavam os dentes. «Sim, seguro que foi de grande ajuda.»
—Lamento-o muitíssimo, mas necessitam Duncan no acampamento.
Seu primo arqueou uma sobrancelha de repente, como se soubesse que Erik mentia.
—Necessitam-me? —Mas, ao que parecia, o olhar de Erik deve tê-lo convencido. — Temo que esse romeiro terá que esperar, moça —se desculpou Duncan — Mas voltarei.
«E um corno, que vai voltar.» Se Erik não podia confiar em que seu próprio primo se controlasse, ver-se-ia obrigado a vigiar à moça ele mesmo. Depois de tudo, era responsável por ela. Um beijo não significava que não soubesse controlar-se. Simplesmente tinha se surpreendido muito que uma garotinha tão ordinária pudesse… excitá-lo tanto. Estava seguro que a novidade já estava superada.
Mas assim que Duncan fechou a porta atrás de si, aquela habitação lhe pareceu muito pequena. Ellie foi para junto do fogo e o observou mantendo distância, como se pressentisse também aquela estranha energia na habitação. Entretanto, aquilo não fazia a não ser revolucionar mais a inquietação que fervia em seu interior, como se pudesse ver as curvas de seus seios e seus quadris a contra luz do fogo. Precisava lhe conseguir mais roupa. Um bom pano de lã robusta poderia servir.
—Ocorre algo? —perguntou Ellie.
Erik se esforçou por manter uns traços imperturbáveis ao precaver-se que a olhava com má cara.
—Não.
—Queria algo?
«A ti.» Mas zangado com aquele pensamento indiscreto, disse secamente:
—Queria ver como estava Thomas. Onde está?
Ellie assinalou em direção ao outro lado da habitação, ao lugar que havia camas de armar embutidas na parede.
—Está descansando. Meg diz que é o melhor para ele neste momento. Ontem à noite Mhairi teve por fim seu bebê e Meg foi ver como estava —acrescentou antecipando-se a sua pergunta — É um menino. Chamou-o Alastair.
—Um bom nome — disse Erik.
«O nome de meu pai.» Muitos dos habitantes das ilhas honravam aos chefes dos clãs pondo seu nome a seus próprios filhos. Aquele gesto, depois de tantos anos sob o domínio dos MacDougall, comoveu-o.
Ellie ficou olhando-o com ar pensativo.
—Está mudado —disse finalmente — Nunca lhe tinha visto sem sua armadura.
O acanhamento era algo que Erik nunca tinha sentido antes, mas abaixo daquele olhar atento de olhos castanhos a que nada escapava, começou a experimentá-lo. Banhou-se e trocou de vestimenta devido à gordura de foca com que tinha melado seu corpo para sua rota a nado, certamente não por nada que ela tinha dito.
—Já se vê. Não há ouro que saquear nem donzelas que resgatar para esta noite — repôs ele com um sorriso — Inclusive os piratas tomam uma noite de descanso de vez em quando.
Ellie sorriu pela metade. Melhor isso que nada, supôs Erik.
A moça se aproximou dele e depois, ante seu assombro, tomou entre seus dedos o pescoço de sua vestimenta de seda cor granada.
—É preciosa — disse com admiração. Por um estranho momento, ao baixar a vista e ver sua carinha ante o fogo, também ela parecia preciosa. Sentia uma inusitada pressão no peito, como se aquela túnica lhe apertasse muito — O bordado é delicioso.
—Fez-me minha irmã — disse em um tom de voz estranhamente tosco.
—Têm uma irmã?
—Uma irmã não, cinco.
—Pequenas?
—Todas maiores que eu — disse ao tempo que negava com a cabeça.
—Irmãos?
—Sou o único varão.
—Ah — disse ela assentindo, como se compreendesse alguma coisa de repente.
Ao Erik não gostou do tom que utilizou.
—O que?
—Nada — repôs ela encolhendo-se de ombros — Simplesmente explica algumas coisas.
Antes que lhe desse tempo de responder algo, ela voltou a assombrá-lo recolocando uma mecha de cabelo que lhe caía sobre a têmpora. Erik conteve a respiração, e seu corpo, todo ele, ficou em tensão ante o contato. Voltava a cheirá-la. Centenas de mulheres usavam o sabão com tintura de lavanda, por que nela cheirava diferente? E aqueles cabelos longos com a suavidade da seda… dava-lhe vontade de enterrar seu rosto neles e de ver como se esparramavam sobre seu peito. As mulheres o tocavam a todo momento. Nem sequer estava acostumado a precaver-se disso. E entretanto, nesse momento sim o notava. Todo seu corpo o fazia. Deus, não podia nem respirar. O calor se concentrava em sua virilha e seu pulso pulsava a um ritmo rápido e forte. Estava a somente uns segundos de lhe passar o braço ao redor da cintura e apertá-la contra ele. Quase podia sentir os dardos de seus mamilos cerceando seu peito.
—Têm algo no cabelo — disse ela descuidadamente, sem ser consciente do dano que estava infligindo em seus sentidos. Ellie retirou a mão, lhe permitindo pensar de novo, e examinou com os dedos o que tinha tirado — Parece graxa negra de algum tipo.
—Provavelmente seja fuligem da fogueira — disse sem lhe dar importância.
—Não parece fuligem — repôs ela enrugando o nariz. Olhava-o com tanta intensidade que Erik pensou por um momento que seguiria questionando-o a respeito da graxa, mas em lugar disso esboçou um sorriso e disse —: Leva o cabelo muito curto. Pensava que os highlanders preferiam o cabelo comprido e as barbas, ao estilo de seus ancestrais vikings.
—Alguns sim — disse rindo e acariciando o queixo — Me incomoda a coceira. É que você não gosta? —perguntou sem que lhe desse tempo a refrear-se.
Ellie elevou a vista ao céu sem dar-se conta de que em realidade o havia dito a sério. Ele mesmo não soube como explicar quando se precaveu de que de fato era uma pergunta séria.
—Terá que se esforçar um pouco mais se espera que te faça um elogio. Pelo que sei, já ouviu mais dos que a maioria terá em toda sua vida.
Descobriu a si mesmo sorrindo. Tinha razão, mas por algum estranho motivo sentia necessidade de saber o que ela pensava.
—E você é muito cínica para uma moça de sua idade. Me diga, como chegou a formar parte do séquito do conde? Parece jovem para ser babá.
—Minha mãe — disse Ellie com a cabeça encurvada e a voz tomada — Eu a substitui quando ela…
Quando ela morreu. Erik assentiu, consciente que assim acontecia pelo geral. Embora não era uma posição hereditária, como muitas outras no serviço das famílias nobres, era assim como se cobriam as baixas das babás na prática.
—Sinto muito, moça. Quanto faz disso?
A Ellie tremeram os ombros e ele sentiu a necessidade premente de apertá-la entre seus braços e lhe oferecer consolo. Uma necessidade que era muito mais inquietante que a luxúria que tinha sentido momentos antes. Com a maioria das mulheres não teria duvidado um momento, mas tocar Ellie tinha algo que o punha à defensiva. Era como aproximar muito a chama de uma vela a um pergaminho.
—Fará três anos em maio. —Quando Ellie o olhou aos olhos, Erik sentiu algo que se esticava em seu interior, algo tão próximo à vulnerabilidade que inclusive afetava a sua ardilosa fachada de homem de poucas palavras — Uma febre.
Erik assentiu, sem dar pista alguma da batalha que travava em seu interior. Experimentou um alívio tremendo quando ela olhou para outro lado e pôde esclarecer seus pensamentos.
—Rand… —disse detendo-se a tempo. Diabos, não podia acreditar que esteve a ponto de escapar isso — Thomas está se recuperando?
Ellie assentiu.
—Ainda não come muito, mas deve andar por seus próprios pés em poucos dias.
—Alegra-me ouvi-lo.
Aquilo era, sem dúvida, boas notícias. Não o fazia nenhuma graça a ideia de chegar a Rathlin com o sobrinho de Bruce doente ou com febre.
—Queria unir-se a você hoje, mas Meg o ameaçou amarrá-lo se tentasse levantar-se.
—Esses jogos com ele seriam uma perda de tempo — repôs Erik secamente.
Surpreendeu-lhe que ela risse em lugar de repreendê-lo pela piada. Seus olhares se encontraram por um instante até que ele afastou a vista, coibido pela conexão e a intimidade que se desprendiam da compreensão mútua. Pisava em um terreno no que não se sentia cômodo. Não estava acostumado a ter conversações pessoais desse tipo. Ele entretinha a outros. Os fazia rir. Isso é o que a gente queria dele. Todos menos ela.
Felizmente, Meg escolheu aquele momento para voltar, cortando em seco aquela corrente que fluía de um a outro. Com Meg, voltava a pisar sobre terra firme. As conversações íntimas não eram para ele. Durante o resto daquela tarde Erik se dedicou a entreter às damas, e também a Randolph quando este despertou, com seu arsenal de divertidas histórias de aventuras em alto mar. Inclusive Ellie parecia estar passando um bom momento. Mas uma ou duas vezes Erik a pegou estudando seu rosto com esse observador olhar dela que parecia ver muito além do que lhe teria gostado, e teve a impressão que a tinha decepcionado em algo. O que não podia explicar era por que isso lhe importava tanto.
Não chegou a aparecer pelo botequim. Depois do jantar, tomou o posto que tinha deixado Duncan no exterior da casa. A moça era responsabilidade dele. Era sua obrigação. E pelo tempo que estivesse junto a eles seria ele quem a vigiaria. Não era nada que pudesse ir-se das mãos.
Capítulo 9
Castelo de Finlaggan, Islay
— Pela Santa Cruz, mas onde está? —disse Bruce dando um soco sobre a mesa e pulverizando pelo chão os sinais que tinha colocado com cuidado sobre um mapa de toscos traços — Já tínhamos que ter notícias deles.
Aquela inusitada explosão de raiva assombrou aos homens que se reuniam na câmara do conselho, que ficaram em silêncio. Formavam o núcleo íntimo do rei, ou ao menos o que ficava dele. Daquela comitiva de cavalheiros extensa em outros tempos, somente ficavam a seu lado Nelly Campbell, James Douglas, Roberto Hay, James Stewart e seu irmão Eduardo. De sua louvada Guarda dos Highlanders só subtraíam Chefe, Tor MacLeod; Flecha, Gregor MacGregor, e o recentemente chegado Aríete; Boyd.
O ambiente que se respirava na câmara se devia precisamente a Boyd e às funestas notícias que havia trazido consigo. Os olhos de Bruce ardiam com uma rude dor incessante, virtualmente impossível de aplacar. Seu querido irmão Nigel estava morto, como também estava o melhor de seus amigos, seu salvador na batalha de Methven, sir Christopher Seton. Também o leal conde de Atholl. Tratava-se do primeiro conde que se executava na Escócia depois de duzentos anos.
Seton tinha sido traído por MacNab no lago Doon, onde tinha se refugiado depois da batalha. Pouco depois que Bruce fugiu da Escócia, Nigel e o conde foram decapitados em Berwick, depois de sua captura no castelo de Kildrummy junto a Boyd, o qual pôde engenhar para escapar e ser o portador dessas horríveis notícias. Aquelas eram as primeiras novas que Bruce tinha de seus amigos e família desde que tinham escapado de Dunaverty para o tenebroso mundo das ilhas Ocidentais. Uma parte dele ansiava voltar para a escuridão por medo a quão seguinte pudesse ocorrer. Tentava convencer-se que sua esposa e sua filha estavam a salvo. Tinham que estar.
Mas seu irmão, Por Deus bendito! De seus quatro irmãos, Nigel, tão arrumado e zombador, sempre foi seu favorito. Tinha muito em comum com seu marinheiro desaparecido: atrevido, de proporções descomunais e sempre com uma brincadeira nos lábios. O tipo de homens ao redor dos que se agrupam as mulheres e que os homens sonham ser.
—Se Falcão não está aqui, alguma razão haverá —disse MacLeod olhando-o com firmeza — Nos fará chegar notícias assim que possa. Ainda contamos com muito tempo.
Mas já fazia uma semana que não sabiam nada de MacSorley. O marinheiro teria que ter se reunido com eles após de seu encontro com os irlandeses, e mal ficava uma semana para o ataque a duas frentes com o que Bruce queria recuperar seu reino. Seus irmãos, Thomas e Alexander, estavam preparados para partir a Irlanda e organizar o ataque do sul, em Galloway. Bruce precisava chegar com seus homens até Arran para dispor o ataque do norte, em Turnberry.
—Como demônios pode estar tão tranqüilo? —inquiriu — Meus irmãos contrataram seus homens para o ataque do sul. Mas onde estão meus mercenários? Supõe-se que temos que reunir o exército em Rathlin em poucos dias. — Dali navegariam até Arran — Como vou liderar um ataque sem homens?
—Os terá ali.
Ao maldito MacLeod lhe corria gelo pelas veias. O semblante pétreo do highlander jamais se via traído por emoção alguma.
—Como pode estar tão seguro?
—Porque conheço Falcão. Pode contar com ele. Fá-lo-á, embora tenha que levar aos mercenários a nado ele mesmo.
—Conseguiremo-lo — assegurou MacGregor reforçando assim a confiança de seu capitão — Tenho a certeza que está escondido em algum lugar, à espera de poder nos enviar notícias. Com toda a atividade dos ingleses no canal, provavelmente tente atuar com prudência.
—Falcão? —disse Bruce com incredulidade — Esse não tem nem um grama de prudência nos ossos.
—A mim mesmo não foi fácil lhe encontrar, senhor — assinalou Boyd.
—E como o conseguiu? —perguntou Bruce.
Sua sobrevivência dependia de que somente soubessem onde se encontrava uns poucos escolhidos, os homens que se encontravam na sala e o resto dos membros da Guarda dos Highlanders. Inclusive seu amigo Guillermo Lamberton, o bispo de Sant Andrew, ver-se-ia em apuros para encontrá-lo. Outra pessoa que esperava estivesse a salvo.
O corpulento guerreiro o olhou aos olhos.
—Graças a um amigo comum — disse com cara de poucos amigos.
Bruce assentiu ao compreender a fonte de seu aborrecimento. Embora nenhum membro da Guarda dos Highlanders o agradeceria, Arthur Campbell estava resultando ser inclusive mais útil do que Bruce pensava. Campbell foi obrigado a sair da guarda ao fracassar em uma prova, e após isto tinha passado a render seus serviços de cavalheiro ao bando inimigo. Ao menos isso é o que parecia. Em realidade estava fazendo trabalhos de espionagem para Bruce. Este acreditava de importância vital estender o segredo inclusive a quase todos os irmãos da Guarda dos Highlanders de Campbell. Agora que o via com perspectiva, dava-se conta de que aquilo tinha sido um engano, mas ainda tinha que acostumar-se à fraternidade tão íntima que existia entre os membros da guarda.
—E ainda não sabemos nada de minha esposa?
—Não, meu senhor — disse Boyd negando com expressão de tristeza — Nada desde que saíram de Kildrummy fugindo dos ingleses.
Boyd e seu companheiro da Guarda dos Highlanders, o jovem cavalheiro inglês Alex Setton, chamado Dragão, ficaram para atrás para dar tempo a Nigel e às mulheres de fugir. Boyd e Setton foram feitos prisioneiros, mas conseguiram escapar, com certa ajuda, antes que os executassem. Mas pouco depois, quando Alex teve notícia de que tinham traído a seu irmão no lago Doon, separaram-se.
—Estão em boas mãos, meu senhor — disse Boyd.
Bruce assentiu, desejando poder confiar em Víbora, Lachlan MacRuairi; e nos outros dois membros da Guarda dos Highlanders que acompanhavam às mulheres: William Gordon, conhecido como Templário, e Magnus MacKay, ao que chamavam Santo.
—Igual está seu sobrinho —apontou MacLeod, em referência a Randolph, que navegava junto a Falcão.
A Deus rogava por isso. Tudo dependia de que Falcão conseguisse chegar a tempo com esses homens. Já não havia espaço para mais fracassos. Tinha esgotado seu suprimento quanto a escapadas pelos fios. Nem sequer os gatos tinham tantas vidas. MacGregor, o qual era tão afamado por suas habilidades com o arco como pela beleza de seu rosto, sorriu.
—Rogo a Deus que Falcão estará sentado em uma praia qualquer, entretendo a metade da população feminina do povoado ou ilha em que se refugiou.
—Pois serão três quartos para quando der sinais de vida — disse Boyd secamente.
Bruce sorriu pela primeira vez desde que atracou em Islay e se encontrou com que, em lugar do esperado Falcão, era Boyd quem aguardava sua chegada.
—Certamente esteja certo.
Do exterior chegou um alvoroço que reclamou sua atenção. MacLeod se apressou a investigá-lo e, quando retornou um momento mais tarde junto a um jovem pescador, fez com um meio sorriso no rosto, ante a que Bruce suspeitou que logo contagiaria também a ele.
—Do que se trata?
O feroz chefe highland o olhou aos olhos.
—Temos notícias.
Fizeram passar o pescador, que, obviamente intimidado pelos homens reunidos naquela sala, falou com voz vacilante.
—Atraso sem importância. Forças contratadas. Procedam conforme o planejado.
Conduziram o pescador para o exterior e Bruce ordenou que lhe dessem de comer e o recompensassem pela viagem. Quando voltaram a estar a sós, Bruce se dirigiu para seu irmão, um dos três que ficavam.
—Eduardo, quero que vá com Aríete até Arran e fiscalizem toda a zona de Broderik, em particular o castelo de Lochranza. O resto de nós porá rumo a Rathlin como tínhamos planejado, para esperar Falcão.
—Vê, senhor —disse MacGregor — Não há nada do que preocupar-se.
Rogava a Deus para que assim fosse. Não era somente ele a não ser todo o futuro de uma nação o que dependia do afamado navegante.
Capítulo 10
Ellie tentou sepultar sua cabeça sob o travesseiro tudo o que pôde para afogar aquele horrível som, mas as animadas risadas atravessavam com facilidade sua almofada fofa com fibras de lã de cordeiro. Por Deus, mas que horas eram? Separou o travesseiro do rosto e abriu os olhos para voltar a fechá-los imediatamente depois, ao receber os raios de luz que penetravam através do véu da cama e apunhalavam sua cabeça como danosas adagas. Grunhiu. Era já de dia. Tão cedo…
Inspirou com aborrecimento e se resignou a confrontar o inevitável. Era hora de levantar-se. Fez suas abluções e orações matinais, tentando ignorar as risadas e vozes que chegavam da cozinha, disposta ao outro lado do edifício. Não era provável que Duncan se mostrasse tão buliçoso pela manhã. Acaso podia algo ser divertido a essa hora do dia tão inoportuna? Embora seus aposentos formavam parte da mesma estadia, as duas camas do muro oeste estavam separadas por uma partição de madeira cravada entre dois postes, outorgando a estas mais privacidade das frequentes visitas que os nichos que havia na parede de frente, parte na qual dormia Thomas.
Já com o rosto lavado, o cabelo penteado e os dentes limpos, Ellie sentiu uma leve melhoria ao surgir de trás do biombo para confrontar o dia. Mas ao descobrir de quem provinham aquelas risadas, esteve a ponto de retornar à cama e voltar a enterrar sua cabeça sob o travesseiro. Não se tratava de Duncan. O capitão pirata tinha deixado a fina túnica da noite anterior e voltava a vestir seu traje de guerreiro. Estava sentado em uma das cadeiras de madeira de Meg, totalmente depravado, com suas largas pernas revestidas de couro esticadas frente a ele e um amplo sorriso que percorria seu infamemente animado rosto. Como era possível que alguém estivesse tão contente pela manhã? Ela se sentia como uma bruxa velha e gasta até chegado o meio-dia. Falcão arqueou uma sobrancelha.
—Olhe quem acorda por fim. Pensávamos que dormiria todo o dia.
Pelo que ela sabia, o dia era tão recente que doía. Não podia ter passado muito tempo da aurora. Embora os dias se faziam mais longos, o sol de inverno não aparecia pelo horizonte até as oito.
—Bom dia, Ellie — disse Meg tão animada como ele — Tomará o de sempre para o café da manhã?
Ellie assentiu com gratidão e se afundou no banco que havia junto à mesa.
—Obrigada, Meg, agradecer-lhes-ei isso eternamente.
Tinha chegado a apaixonar-se por aquele singelo prato matinal: pão recém feito, ovos passados pela água, fatias de presunto ou arenques defumados e uma beberagem de ervas especial, cuja mescla, receita secreta de Meg, Ellie tinha se prometido levar consigo antes de partir, em caso de que algum dia se levantasse cedo para ver como a preparava.
—Onde está Duncan? —perguntou enquanto rompia uma fogaça de pão e a comia lentamente, saboreando a deliciosa combinação de aveia e centeio torrados.
O olhar do capitão se aguçou de uma maneira quase imperceptível.
—Já se recuperou do braço, assim pode voltar para suas tarefas. Temo que estará comigo durante os próximos dias.
Seu pulso se acelerou ao momento.
—Estou segura de que isso não será necessário — se apressou a dizer — Não necessito uma babá. Dei-lhe minha palavra que…
—Pouco importa como tenha acontecido — disse ele cortando suas palavras com um olhar a Meg cheio de significado — Até que possa lhe devolver a sua família, estará sob meu amparo.
Ellie se precaveu de seu engano: tinha esquecido que Meg não sabia que a retinham contra sua vontade. Embora Ellie não estava preocupada com sua família e o que deviam estar pensando era porque inclusive ela mesma o tinha esquecido. Os dias passados tinham sido incríveis, excitantes e, recordando o beijo, o mais afastado do aborrecimento que poderia imaginar. É mais, viver com Meg a fazia espiar um mundo completamente diferente daquela vida acomodada de privilégios e obrigações que conhecia. A ironia seguia cevando-se com ela: nunca antes teve tanta liberdade como durante esse cativeiro. Livre de responsabilidades, do dever e do que se esperava dela, dos pensamentos de futuro. E se sentia culpada por desfrutar tanto.
Sendo honesta consigo mesma, tinha que admitir que em tudo aquilo tinha um pouco de culpa o homem que estava sentado frente a ela. Era ele quem resultava excitante, e seu coração pulsava a um ritmo mais rápido simplesmente estando a seu redor. Era como um ídolo de ouro, não pela cor e a beleza de seu rosto, mas sim pela força sem igual de sua personalidade. Como as moscas ao mel, assim sentia sua atração, mas sabia perfeitamente que não devia aproximar-se muito.
É obvio, tratava-se de um sedutor insofrível e contava com esse sorriso petulante, garantia absoluta da extrema confiança que tinha em si mesmo, o tipo de homem que jamais tomava nada a sério, mas havia momentos que ela se perguntava se não escondia algo mais profundo. Talvez não tivesse a fatuidade de seu pai e fosse capaz de experimentar emoções reais. A noite passada acreditou ter visto um espiono disto ao sentir uma verdadeira conexão enquanto falavam de suas famílias. Sentiu-se horrível ao lhe mentir, e por um momento considerou inclusive contar a verdade, mas então voltou Meg e ele se converteu de novo naquele malicioso entretido e provocador em torno do qual tudo era diversão, mas a quem ela jamais poderia levar a sério. Podia lhe cair bem, mas sabia que nem por isso tinha que confiar nele. Estava metido em algo, e pelo que podia inferir de quando estiveram na cova, tinha algo a ver com seu pai. Era mais singelo que as coisas permanecessem como estavam.
O que não compreendia era por que motivo erigiu a si mesmo em seu guarda-costas. Lembrou-se de quão zangado parecia estar com Duncan a noite passada e confiava que não fosse ela a culpada. O certo era que tinha acabado tomando carinho por Duncan durante os últimos dias. Recordava a seu irmão John, que acabava de ser nomeado cavalheiro e não falava mais que de guerras e combates. Por desgraça, não era capaz de encontrar nada no capitão que recordasse a algum de seus irmãos, assim que as coisas não seriam igualmente fáceis com ele. O que pretendia?
—Como quiser — disse olhando-o com receio e encolhendo de ombros com indiferença — Espero que esteja cômodo em sua rocha.
É obvio, ele não permitiria que as coisas fossem assim fáceis. Recostou-se na cadeira e cruzou os braços fazendo que seus músculos ressaltassem, mostrando descaradamente toda sua força viril. O mundo lhe caiu em cima. Por Deus Santo! Ellie sorveu a beberagem para umedecer a boca, seca de repente, mas não pôde fazer nada quanto ao revoo que sentia na boca do estômago.
—Vou dar um passeio — disse ele — Tinha pensado que talvez desejasse vir comigo.
Sozinha? Com ele? Não, não acreditava. Não queria tomar parte em nenhuma de suas picardias.
—Temo que hoje não pode ser —disse com fingido pesar, consciente de que Meg a observava — Tenho que ficar com Thomas enquanto Meg atende a suas obrigações.
Algo que, pelo que via Ellie, parecia não ter fim, desde cuidar de sua própria moradia até servir como curadora e parteira no povoado.
—Acreditei que disse que Thomas precisava descansar — assinalou.
—E assim é — concedeu.
—O moço estará bem — interpôs Meg — Vão e se divirtam.
Ellie a olhou e sorriu sem vontade, tentando pôr cara de agradecimento enquanto pensava em uma forma graciosa de sair do passo.
—Faz um dia esplêndido — disse o capitão açulando-a como quem oferece um caramelo a um menino — Pensei que talvez você gostaria de ver algo mais da ilha.
Ficou ali exibindo esse sorriso nada inocente, sabendo exatamente o que fazia. Maldita praga de homem engenhoso que a tentava. Como podia saber que estava ansiosa por explorar a ilha? Uma hipótese acertada ao azar, sem dúvida. Resultava humilhante pensar que podia ser tão transparente. A sensatez de Ellie entrou em conflito com seu sentido de aventura. Podia escolher entre ficar ali e jogar dezenas de partidas de gamão com calhaus quando Thomas despertasse ou aproveitar a oportunidade de ver a ilha, como morria por fazer. Não havia muita batalha para dirimir.
—Como poderia me negar? —disse com chateio.
O sorriso de Erik seguiu igualmente imperturbável e incorrigível.
—De maneira nenhuma.
—Quando partiremos?
—Assim que tenha se vestido — respondeu Falcão.
Ellie franziu o cenho enquanto baixava a vista para sua leine4 emprestada. Do que estava falando? Pode ser que fosse velho, mas não havia nada mau naquele vestido: milhares de mulheres irlandesas e escocesas os levavam diariamente.
—Falcão é muito considerado. Olhe o que trouxe — disse Meg assinalando para o que parecia ser uma vestimenta de lã que repousava dobrada sobre o banco junto a ela — Pensou que talvez tivesse frio.
Ellie arqueou as sobrancelhas, surpreendida uma vez mais por mostrar tanta preocupação. Não podia mais que voltar a perguntar-se o que trazia entre mãos.
—Obrigada — disse.
Meg tinha tido a generosidade de lhe emprestar aquele tradicional leine de linho, para que o pusesse sobre sua arruinada camisola, e umas velhas alpargatas de couro, mas aquele acertado vestido de lã, apesar de não ser tão fino como os objetos que estava acostumada, parecia-se mais às roupas que estava acostumada a vestir.
—De onde o conseguiu?
Meg e ele trocaram olhares e Falcão fez uma careta com a boca.
—Segredos de pirata, temo.
Uma pilhagem espoliada de algum de seus saques? Ellie entreabriu os olhos tentando considerar se falava a sério ou não. Suspeitando que não queria mais que provocá-la, equilibrou-se para o vestido e logo se retirou atrás do biombo para colocá-lo.
Um par de minutos depois voltou a aparecer sentindo-se mais ela mesma do que o tinha feito em dias. O vestido ficava grande de seios e cintura, algo que já esperava, mas de comprimento quase estava bem. Ellie esteve a ponto de rodopiar pela emoção, mas em lugar disso lhe fez um leve gesto com a cabeça.
—Nos colocamos em marcha?
Despediu-se de Meg e saíram da alargada casa para dirigir-se ao interior da ilha em direção sul.
Tinha razão. Fazia um dia esplêndido. O sol brilhava, o céu estava limpo e o plácido frescor alternava com a névoa que ainda brotava da erva dos brejos, criando uma vaporosa bruma. O gélido ar se enchia com uma prazerosa e salgada brisa marinha. Enquanto caminhavam, Ellie elevava a vista para o sol para saborear sua suave e cálida carícia na pele. Por um momento voltou a sentir-se como uma menina, vagando pela exuberante campina irlandesa até que suas alpargatas se cobriam de lodo e seu vestido se enrugava e ficava perdido de manchas de erva. Daquilo gostava até a loucura. E que longe parecia ficar agora. Sentiu uma pontada de saudade e pesar ao saber que jamais voltaria para essa ilha. Aqueles dias de liberdade logo teriam que acabar.
Caminhavam cotovelo com cotovelo a um ritmo que não lhe custava seguir e que suspeitava seria um passo muito lento para ele. Mas não parecia ter pressa alguma. Nunca parecia estar em um apuro.
—Aonde vamos? —perguntou.
—Já o verá — disse ele com um enigmático sorriso.
Começou a abrir a boca para reclamar uma explicação, mas não o fez. Além de ter a certeza de que não a daria, agradecia o suficiente estar no exterior para que aquilo lhe importasse. Por agora podia seguir seu jogo.
O olhou de esguelha. Até o sol parecia abraçar a ele, pendurando nas loiras nervuras de seus cabelos e no intenso bronzeado de sua pele, banhando-o em um quente resplendor dourado. Era algo virtualmente cegador.
«Sempre tenho o vento a favor», havia dito em uma ocasião. Tinha razão. Como seria isso de ser tão favorecido e caminhar pela vida com uma confiança tão inquebrável? Não só tinha sido bento com um belo rosto, um corpo poderoso e, conforme podia inferir, umas extraordinárias qualidades como guerreiro, mas sim também era divertido, galhardo e especialmente estimável. Devia ser uma sensação maravilhosa. Mas não era possível que estivesse também um pouco encerrado em si mesmo? Tudo aquilo parecia ir em uma única direção. A gente se aproximava dele pelo que ele lhes oferecia, já fosse através de palavras ou do tato. Mas o que recebia ele em troca? Talvez isso fosse o que a fazia diferente: ela não queria nada dele.
—Surpreende-me que possa se separar de seus homens durante tanto tempo. Não têm nada que fazer? Algo como arremeter por aí com esse espadão que têm?
—Asseguro-lhe que nunca arremeto por aí com meu espadão — disse ele fazendo uma careta perversa com a boca.
O rubor subiu pelas bochechas de Ellie ao dar-se conta de que não se referia absolutamente às armas, a não ser a algo completamente diferente.
—Não me referia a… —balbuciou.
Falcão riu de prazer, deleitando-se enormemente em pô-la nervosa.
—Esteve me espiando, Ellie?
—É obvio que não! —protestou.
Mas suas bochechas se acaloraram mais se pudesse, e ele, cão velho, soube que estava mentindo. Esse dia não tinha tido a intenção de ir buscá-lo. Simplesmente se encontrava perto da borda do escarpado, casualmente olhou para a praia em que os homens tinham acampado e o viu praticando com a espada, a tocha e a maça de guerra. Ficou ali hipnotizada por aqueles violentos golpes que se supunham um exercício, maravilhada ante a potência e força que desdobrava em cada uma de suas investidas. Estava acostumada a ver os combates formais entre cavalheiros, mas não havia nada de civilizado nesse desumano, incontrolado estilo de combate que tinham os highlanders. Era normal que tivesse curiosidade. Esquecia a sua conveniência que aquela curiosidade atendia especialmente a um impressionante membro em particular.
Ele parecia contente de caminhar em silêncio, embora às vezes lhe assinalava alguma granja, identificando seus donos, o nome de uma planta ou uma vista bonita. Estava cômoda. Muito cômoda. Como se pudesse ser feliz durante muito tempo caminhando junto a ele. Aquele pensamento errante a fez voltar para a realidade de repente. Que os céus a ajudassem, precisava chegar em casa antes de perder completamente a cabeça.
—Quanto tempo mais planeja ficar aqui? —soltou sem mais rodeios.
—Cuidado, pequena — disse com um de seus encantadores sorrisos — Ou ferirá meus tenros sentimentos me fazendo pensar que não desfruta de minha companhia.
—Guarde esse sorriso irresistível para quem sabe apreciá-lo.
Seus azuis olhos revoaram de satisfação.
—Irresistível? De verdade pensa isso?
Aquele homem não tinha remédio absolutamente. Ellie não podia fazer ideia de como era quando menino. Compadecia-se da que tinha sido sua babá.
—Suponho que para a maioria das mulheres sim.
—Mas uma completa perda de tempo para você? É uma mulher difícil de impressionar, babá Ellie — disse negando com a cabeça.
—Difícil não, simplesmente não me afeta as mutretas óbvias.
—Sério? —perguntou com uma sombra de desafio nos olhos — A outra noite não parecia pensar o mesmo.
Ellie se esforçou para manter uma calma na voz que traía a repentina alteração de seu pulso.
—Aquilo foi um engano — disse medindo as palavras.
—Assim é como o chama? —respondeu com um sarcasmo desafiador.
Sua arrogância era irritante. Para ele não era mais que uma pobre babá pouco agraciada que tinha que sentir-se agradecida pela momentânea atenção que um homem como ele lhe tinha devotado. Jamais o permitiria saber até que ponto a tinha afetado aquilo. Como inclusive agora, vendo sob o sol sua doce boca torcida em uma careta zombadora, o único em que podia pensar era no efeito incrível que tinham tido aqueles lábios sobre os seus. E aquela debilidade resultava humilhante.
Ele estava seguro de si mesmo. Pois bem, também ela estava segura de si mesma e não pensava cair em sua armadilha. Fez provisão de sua expressão mais indiferente e relaxada.
—Ambos sabemos que aquilo não foi nada, o resultado natural da cercania, avançada a noite e o calor que fazia na habitação. Poderia ter sido qualquer uma.
Erik se deteve e a agarrou pelo braço com uma cara que não mostrava emoção alguma, salvo pela apenas perceptível tensão nos lábios.
—É um grande alívio que tome a situação com tal maturidade.
A brutalidade com que disse isso fez que o sangue de Ellie bulisse em seu interior.
—Somos dois adultos. Não têm que se preocupar de que me afeiçoe. Dificilmente poderia cair presa de um homem como você — acrescentou rindo nervosamente.
O gesto dele se torceu e seu olhar a atravessou com aqueles olhos azuis.
—É isso verdade? —disse com uma pausa que voltava perigosas suas palavras.
«Jamais desafie ao diabo.» Precaveu-se ao ponto de seu engano e tentou matizá-lo lhe fazendo saber que não tentava desafiá-lo. Somente o havia dito por razões práticas, mas ele o tinha tomado como uma crítica.
—Quão único quero dizer é que somos muito diferentes. Não há mais que nos ver. —Aquelas diferenças estavam à vista — Estou segura de que não sou o tipo de mulher ao que acostuma beijar.
—Tão bem crê me conhecer?
—Conheço os de seu tipo. Pessoas despreocupadas, encantadoras, inalteráveis. As mulheres lhe amam e você devolve a elas esse amor. A todas elas. A vida é para você uma brincadeira privada e jamais toma nada a sério.
—Equivoca-se — disse em um tom sombrio — Há coisas que tomo muito a sério.
O coração começou a pulsar mais rápido ao ver como a olhava. Como se estivesse disposto a mostrar o que queria dizer e não fosse ficar em um simples beijo. Baixo essa luz, era um homem muito mais perigoso. Intenso. Furioso. De uma virilidade brutal. Seu coração se angustiou de uma estranha maneira enquanto permanecia ali imóvel, consciente que deveria dar um passo atrás, mas incapaz de fazer que seus pés se movessem.
—Sabe o que é que acredito, Ellie? Acredito que você gostou desse beijo e muito. Acredito que queria mais. Muito mais. Acredito que por uma vez queria se deixar levar e viver a vida. Acredito que foi responsável durante tanto tempo e se privou tanto de qualquer tipo de sentimento que esqueceu o que é divertir-se.
Ellie tragou saliva vendo o quanto tinha acertado em sua descrição. Acaso era tão transparente? Sentiu arder seus olhos de raiva.
—Assim crê que sou uma virgem ressecada a que não lhe viria mal um pouco de excitação e decidiu se compadecer de mim?
Os olhos de Falcão se acenderam. Deu um passo mais à frente, e o calor que emanava seu corpo alagou o de Ellie.
—Compaixão não foi absolutamente o que senti.
A terra se desmoronou a seus pés. Luxúria. A isso era ao que se referia, e dar-se conta disso fez que o formigamento que já sentia em todas suas terminações nervosas se convertesse em um calor exasperante. Pensar que ele pudesse sentir luxúria por uma mulher como ela era algo inexplicável. Esse tipo de homem não estava acostumado a incomodar-se em olhá-la duas vezes. Tentou ignorar sua cercania, mas seu alto e musculoso corpo se abatia sobre ela ante a brilhante luz do sol e a envolvia com sua fera essência masculina. Erik pôs uma mão em sua cintura e Ellie sentiu como se a marcassem. Como se fosse dele.
Seu coração pulsava contra suas costelas. Deus, ia beijá-la outra vez. Por um temerário momento, até que a prudência e o sentido de sobrevivência tomaram as rédeas, quis que o fizesse. Mas não podia permitir que ele percebesse a intensidade com que seu corpo reagia ante ele. Somente serviria para que o usasse em seu contrário. Não pensava converter-se em seu brinquedo. Em um desafio. Uma mulher mais das que caía rendida a seus pés. Uma mais na longa lista de conquistas de um assaltante viking. Apesar de cada um de seus instintos pedir a gritos que se rendesse, obrigou a si mesma a permanecer valorosamente ante ele, sem dar sinal algum que a afetava aquilo, do trepidar que sua presença provocava em seu corpo.
—Não necessito que me diga como viver minha vida. Quem é você para me julgar? Um homem que pavoneia seu sorriso e faz que tudo se volte uma brincadeira para evitar ter nenhum compromisso verdadeiro com ninguém.
Agora a expressão do rosto dele era tão séria que se perguntou se não teria ido muito longe.
—Não sabe do que fala.
Entretanto, sim sabia. Tinha estado rodeada de perfeição durante toda sua vida e sabia quão destrutivo resultava apaixonar-se por ela.
—Tudo é fácil para você. Caem-lhe bem às pessoas sem necessidade de se esforçar. Por que teria que cair mau? É bonito, engenhoso, encantador, irresistivelmente arrumado. Tudo lhe vem dado de tal forma que jamais têm que trabalhar para chegar a algo mais profundo.
—E quem diz que necessito algo mais profundo? Talvez seja feliz tal como estou.
Ellie elevou a vista para encontrar-se com seu olhar e fez uma careta com a boca, a triste emulação de um sorriso.
—A isso é exatamente ao que me refiro.
Não era o tipo de homem que pudesse lhe roubar o coração. Ela necessitava uma conexão mais profunda. Ele não tomava nada a sério, em tanto que ela era justamente o contrário. Pode ser que se sentisse atraída por ele, mas aquelas mesmas coisas que a provocavam, como a excitação, seu espírito indomável e rebelde, resultavam perigosas para ela. Esse homem lhe romperia o coração assim que tivesse ocasião de fazê-lo.
Erik era absolutamente feliz tal como estava. Não necessitava que lhe desse lições nenhuma babá estirada de grandes olhos cor avelã e boca sabichona, que além disso resultava ter uma das bocas mais luxuriosas e desejáveis que era capaz de recordar. Acaso era sua culpa cair bem às pessoas? Por que tinha que tomar tudo tão a sério? Acaso não podia relaxar e desfrutar um pouco? Não sabia por que estava tão zangado. «Dificilmente poderia cair presa de um homem como você.» Assim é como tinha começado. Deveria estar agradecido que não acreditasse estar apaixonada por ele. Mas havia algo na forma em que o disse, como se fosse algo natural, que o fazia sentir-se vazio. Como se lhe tivesse medido com uma vara de babás invisível e o resultado ficou pequeno. Aquilo era algo absurdo, absolutamente ridículo, de loucos. Jamais tinha ficado com pouco ou nada na vida.
E por que diabos tinha que mostrar-se tão sensata em tudo isso? Era a ele a quem correspondia ser razoável: «não foi nada sério», «é algo natural», aquelas frases tocava as dizer ele. Quem tinha que fazer que a outra pessoa não sofresse, fazer que a queda não fosse tão dura, não era ela, a não ser ele.
Seus olhos olharam com astúcia a forma em que pulsava seu delicado pulso sob o pescoço. Possivelmente não fosse tão impassível como se esforçava mostrar. Talvez não o fosse absolutamente. Sentia a tentação de comprová-lo. Era uma tentação enorme. Sentia um perverso desejo de empurrar e empurrar contra a resistência que mostrava até que se quebrasse e desse passo à curiosa e aventureira mulher que percebia enterrada debaixo daquela máscara imperiosa. De provar que ela não era diferente das demais.
Mas não estava seguro de querer descobrir para onde conduziria, ou talvez fosse porque sabia perfeitamente aonde os levaria. A encontrar-se com ela sob seu corpo. Ou conhecendo Ellie, talvez fosse ela sobre seu corpo.
Ah, diabos! Não podia parar de mover-se devido ao nervosismo. Esses pequenos seios turgentes. Suas mãos rodeando essa cinturinha esbelta. Esses longos cabelos negros balançando sobre seus ombros enquanto ela cavalgava sobre seu corpo e possivelmente tentava lhe tirar a iniciativa. Uma vez feita a imagem, era difícil afastá-la de sua cabeça. Mas aquilo jamais funcionaria. Gostava das mulheres que não reclamavam de nada, e Ellie, com aqueles penetrantes olhos e suas inquisitivas perguntas, exigiria muito mais do que poderia lhe dar. Por todos os diabos, gostava que sua vida fosse tal e como era.
Retirou o braço de seu quadril e retrocedeu um passo.
—Partiremos ao final da semana.
Estivesse Randolph recuperado ou não, teriam que encontrar-se com os MacQuillan no dia treze. Ellie ficou olhando-o durante um longo tempo e ele teria passado um mês inteiro sem fornicar, ou pelo menos vários dias mais, por saber o que pensava. Estaria decepcionada por não tê-la beijado? Ou era ele quem se sentia decepcionado por ela? Depois de uma pausa incômoda, Ellie lhe perguntou: —Aonde me levará?
Sabia por que perguntava, mas não estava em disposição de poder levá-la para casa. Ainda não.
—Venha — disse conduzindo-a por um atalho — Já não está muito longe.
Caminharam uns quinze minutos mais até que a brisa aguda trazendo o aroma do mar e ante eles apareceu o lugar ao que se dirigiam. Não sabia se Ellie teria se precavido de que acabavam de atravessar a pequena ilha, que mal media dois quilômetros do norte ao sul e algo mais disto ao oeste.
Ellie viu a imensa formação de rochas em forma de arco ao pé do escarpado e se voltou para ele com certa excitação.
—É ali aonde vamos?
—Sim — respondeu com um sorriso entusiasta.
Aquele arco era algo mais que uma magnífica vista, também provia uma visão inultrapassável das rotas marítimas ao sul e ao oeste, de onde poderia comprovar a posição dos ingleses. Era em um lugar perto desse ponto onde o galeão inglês tinha ancorado dias atrás.
—Posso subir em cima? —perguntou.
Talvez Ellie lhe influíra de algum modo, porque somente se viu tentado pela metade de contra-atacar com um comentário jocoso.
—Se crê que é capaz de fazê-lo… É mais perigoso do que parece daqui.
Ellie lhe dirigiu um olhar de descrédito e saiu virtualmente correndo para a borda do escarpado. Ao Falcão o coração esteve a ponto de parar em várias ocasiões, mas o certo é que chegou até o mais alto com uma surpreendente facilidade.
—É precioso! —disse dirigindo-se para ele com um olhar de puro júbilo no rosto.
E então o coração de Erik sim se deteve.
Era ela quem estava preciosa. Radiante. Seus traços não tinham mudado, mas algo nela era diferente. Era como se a visse pela primeira vez. Toda ela. Não só a soma de seus traços ou o tamanho de seus seios, a não ser algo completamente diferente. Algo real. Algo importante. Pode ser que Ellie fosse mandona, exigente e muito séria, mas também era uma jovem moça generosa, inteligente e sensível que tinha sido separada de sua família de uma maneira muito pouco apropriada. Uma pessoa que tinha resistido as difíceis circunstâncias com uma flexibilidade prodigiosa. Uma pessoa que não tinha chorado nem se queixado, mas sim aceitava sua situação com uma resolução e determinação sossegadas. E alguém que parecia não ter problema algum em lhe emendar como se tratasse de um colegial peralta. Diabos, admirava-a tanto como o exasperava.
—Devo supor que têm feito isto mais de uma vez? —disse afastando-se da incômoda direção que tomavam seus pensamentos.
—Faz muito tempo — respondeu ela com um sorriso.
Apostava que não seria tanto. Ainda podia reconhecer à menina que foi em suas rosadas bochechas e no brilho de seus olhos. Olhou-o de soslaio.
—Rirá de mim, mas de menina minha única ambição era percorrer todas as ilhas que houvesse entre a Irlanda e a Noruega.
—Não me parece algo digno de risada — disse após tomar seu tempo para admirá-la.
Compreendia aquele ímpeto perfeitamente. Muito. Eram mais parecidos do que queria reconhecer. Ela tinha um espírito aventureiro. Também ele sentia a excitação de conhecer novos lugares, de ver novas coisas, de alargar o estreito mundo no que vivia. De subir a uma rocha e permanecer assim, como se estivesse nos limites do mundo, e perguntar-se pelas pessoas que tinham estado ali antes dele. Teve que olhar para outro lado. Não gostava das estranhas sensações que enchiam seu estômago.
Pouco depois estavam ambos no mais alto do arco natural, contemplando o imenso espaço azul que se estendia ante eles.
—Que tranquilo está tudo — sussurrou Ellie.
Uma rajada de vento puxava uma mecha de seu cabelo e fazia que se pegasse ao rosto, até que ela o escondeu atrás da orelha.
Tinha toda a razão. As rotas estavam surpreendentemente limpas salvo por vários botes de pesca. Erik se perguntou se os ingleses já teriam se dado por vencidos.
Um momento depois apareceu pelo sul um ponto branco de uma vela na distância que respondia a sua pergunta. E não estavam em posição de repouso como se achavam normalmente, a não ser espreitando de maneira ativa. Ao que parecia, tinha-os zangado mais do que acreditava. Ellie não se precaveu porque tinha o olhar fixo no oeste. Assinalou para a lonjura.
—É aquilo…?
Erik percebeu como o tom de sua voz mudava com a emoção. Olhou-a e assentiu com a cabeça.
—Sim, é a costa de Antrim.
Irlanda. Sua casa.
—Tão perto — disse com nostalgia.
Não deve olhá-la. Sua angélica carinha se viu banhada com uma tristeza tão intensa que deu vontade de tomá-la em seus braços imediatamente e fazer o que fosse necessário para que se apagasse.
—Sente falta da sua família? —surpreendeu a si mesmo perguntando.
—Acreditam que morri — disse com o queixo trêmulo. Falcão sentiu tal angústia que seu peito ardia — Já sofreram muito ultimamente.
—Sua mãe?
Assentiu, tentando reprimir as lágrimas.
—E meu irmão mais velho.
Maldita seja, Ellie não se precaveu disso.
Erik tomou uma decisão. Não podia fazer nada para mudar as circunstâncias, ao menos até que se livrasse do ataque, mas podia aliviar algo sua tristeza e preocupação. De todos os modos teria que voltar para Dunaverty essa mesma noite. Não ocorreria nada.
—O que lhe parece se me encarrego de lhes enviar uma mensagem dizendo que está a salvo?
Ellie sorveu suas lágrimas e o olhou incrédula com seus olhos grandes e escrutinadores.
—Fala a sério?
Falcão assentiu de maneira solene.
—Com uma condição.
O olhar de Ellie se encheu de preocupação e ele se perguntou que estaria passando por sua cabeça.
—Que condição?
—Que tente desfrutar durante o tempo que fique na ilha.
—Não poderia — disse ela aterrorizada. Erik pôs uma cara cética pela resposta. Ellie juntou suas sobrancelhas até as converter em um delicado V — E por que teria que se importar? —perguntou.
Não sabia. Simplesmente era assim. Queria vê-la sorrir. Queria vê-la feliz.
—É por seu próprio bem, não pelo meu. Assim, trato feito?
Ellie inclinou a cabeça. Observava-o com tal intensidade que parecia querer olhar através dele. Teve que resistir a inexplicável necessidade que sentia de revolver-se. Não estava acostumado que o olhassem dessa forma, além da superfície. Mas deve ter gostado do que viu nele porque um largo sorriso iluminou seu rosto.
—Quando poderá enviá-la?
—Bastará fazendo-o esta noite? —disse lhe devolvendo o sorriso.
Aquilo deve ter superado as expectativas que tinha feito porque de repente o rodeou com seus braços.
—Obrigada — sussurrou contra a pele de seu cotun.
Erik teria jurado que podia sentir o suave contato de sua respiração em sua própria pele, expandindo-se através de todo seu ser com um quente resplendor. Ao olhar aquela diminuta mulher que se amassava contra ele, essa cabeça acetinada que brilhava como mogno à luz do sol, o longo bater de suas escuras pestanas acariciando as aveludadas bochechas que se apertavam contra seu peito, algo se removeu em seu interior. Uma tremenda onda de amparo foi crescendo dentro dele.
—Não há de que — disse enquanto passava seus braços por seu esbelto corpo com um sentimento que somente podia ser descrito como contenção.
Era algo estranho, mas por mais mulheres que tinha abraçado dessa mesma forma ao longo de sua vida, com nenhuma delas havia se sentido igual.
Capítulo 11
A primeira sacudida sempre era a pior. A aguda explosão de frio o obrigava a contrair os pulmões involuntariamente e fazia que seu corpo se visse privado de qualquer sensação. Então o frio penetrava em seus ossos de maneira assustadora e após isto sentia uma letargia que nublava sua mente e com o que parecia que todos seus órgãos funcionassem lentamente.
Aqueles primeiros segundos posteriores ao mergulho no mar de inverno eram algo ao que Erik jamais pôde acostumar-se. Não havia modo de preparação nem quantidade de gordura de foca alguma que pudesse remediar isso. Mas uma vez que a comoção se amortecia e começava a nadar, sua cabeça ficava ao mando e esquecia por completo a temperatura. Centrava-se na braçada, em manter uma respiração constante e na missão que tinha que cumprir. Não havia muitas pessoas dispostas a nadar em mar aberto através das traiçoeiras correntes no mais cru da noite a temperaturas que deixariam à maioria dos homens inconscientes em menos de uma hora. Mas felizmente para Bruce, Erik não formava parte dessa maioria.
Foram suas habilidades, tanto navegando pelos mares como mergulhando através deles, as que tinham chamado a atenção de Bruce desde o começo. A Guarda dos Highlanders tinha sido organizada precisamente para esse tipo de ações sob condições extremas que pareciam impossíveis de levar a cabo. Bruce tinha eleito ele mesmo aos melhores guerreiros de cada disciplina individual e os tinha unido para que formassem uma só força de combate de elite, uma ideia que parecia simples a primeira vista, mas que em realidade era revolucionária. Nunca antes membros de diferentes clãs tinham sido reunidos em uma só guarda, não unidos por laços de sangue, mas sim por um propósito comum: liberar a Escócia da tirania dos ingleses e restaurar a coroa de Bruce, um homem digno de levar o título de rei.
A guarda tinha dado a Erik um propósito na vida, uma razão de ser, que jamais antes lhe tinha revelado. Sabia que o que faziam era de uma importância capital: seria recordado ao longo dos anos. Sempre que sua empreitada resultasse bem-sucedida. Erik não enganava a si mesmo. A situação de Bruce era funesta. Eduardo da Inglaterra queria sangue. Que Bruce recuperasse seu reino não era somente uma questão de planejamento sério e guerreiros ferozes, mas sim de sorte. Algo que a Erik jamais tinha faltado.
Assim que abandonou o refúgio da baía e entrou em águas abertas, a corrente se intensificou e as ondas se fizeram maiores, com o que necessitava mais energia e concentração. Guiava-se pela luz da lua que brilhava sobre o escuro mar, agradecido que os céus estivessem relativamente limpos. Mas sabia que naquele inverno era uma variável que podia mudar a qualquer momento. Um dos ditos preferidos da gente das ilhas era: «Se você não gostar do tempo, espera um minuto e verá». Por sorte para ele, os dias anteriores não tinha chovido, e esse dia tudo parecia indicar que seguiria igual.
Deus, adorava nadar na escuridão. Que paz. Que solidão. Que desafio enfrentar à natureza em toda sua onipotente majestade. Aquilo de arriscar-se até o limite e depois sentir a euforia que percorria suas veias quando conseguia seu propósito era algo sem igual.
Uma hora mais tarde, Erik já contemplava a ameaçadora sombra do imenso castelo de Dunaverty. Postado sobre uma rocha, com algum significativo respeito ao de Dunluce, situado em um promontório na ponta sul de Kintyre, aquele castelo tinha sido estrategicamente localizado a convocação de antigos fortes desde tempos imemoriais. Em seu dia a praça forte de seus ancestrais noruegueses, o castelo tinha passado às mãos de seu primo Angus Og das mãos de seu tataravô Somerled, o poderoso rei das ilhas, que obsequiava o clã de Erik com seu próprio nome: MacSorley, os filhos de Somerled. Certamente a pequena babá encontraria apropriado que Somerled significasse «viajante do estio», uma referência implícita a «fazer de viking».
O longo périplo a nado e a água fria tinham acabado com suas forças, mas, à medida que Erik se aproximava, seu sangue bulia com novos arrebatamentos de energia. O verdadeiro perigo estava ainda por chegar. Encontrava-se já ante as grades que comunicavam o castelo com o mar. Igual à última vez, ia coberto com gordura de foca da cabeça aos pés. Não só o ajudava a isolar do frio, mas sim servia para camuflar-se na noite, assim que do mesmo modo que o fez a vez anterior, deveria lhe servir para passar debaixo das grades sem ser visto. Aquela grade tinha sido concebida para que não entrassem navios, mas não previa a entrada de um homem a nado. Os ingleses tinham necessitado meses de assédio para atravessar os muros do castelo. Ele necessitaria menos de um minuto. Inspirou profundamente e se inundou na escuridão sepulcral. A profundidade da água mal transbordava os dez pés nesse ponto, assim bastaram uns segundos para que chegasse até o fundo rochoso. Usando este como guia, deslizou pelo leito marinho até que soube que tinha atravessado as barras. Então saiu à superfície, cuidando de não emitir ruído algum. Ao abrir os olhos, encontrou-se ante a luz das tochas de uma câmara de pedra com aparência cavernosa nos mesmos mesentérios do castelo de Dunaverty. Estava dentro.
Mas não sozinho.
Erik ficou completamente quieto e deixou de respirar ao advertir o solitário guarda que fazia a ronda junto à grade. Mas a sorte seguia de seu lado. O inglês mal olhou à superfície da água. Por que ia fazê-lo? A grade estava fechada. A não ser que houvesse navios capazes de inundar-se sob a água, o guarda não tinha nada que temer. Ao menos isso foi o que Erik pensou. Sorriu ante tão absurda ocorrência.
Esperou que a luz do guarda se desvanecesse na distância antes de elevar seu corpo da água apoiando-se na plataforma de pedra que servia como mole.
A rajada de ar frio se sentia como se fossem pontas de gelo que atravessavam sua pele. Esteve a ponto de usar o «assassinato silencioso», que seu primo Víbora, Lachlan MacRuairi, tinha aperfeiçoado: uma adaga cravada nas costas atravessando os pulmões; somente para conseguir um pouco de roupa. Mas Erik sabia que era melhor que suas idas e vindas passassem inadvertidas. Bruce queria que a Guarda dos Highlanders operasse nas sombras, não só para que custasse mais detectá-la, mas sim para que crescesse o medo que infundia nos corações do inimigo. Assim, nu à exceção da gordura negra que banhava seu corpo e a adaga que levava a cintura, Erik subiu a escada, atravessou o lôbrego túnel e desceu para as abóbadas inferiores do castelo. Dirigiu-se para as cozinhas, mantendo o corpo pego à parede, escondido entre as sombras. Igual a anterior ocasião, ninguém cruzou seu caminho.
O incremento gradual do calor, que seu corpo trêmulo sentia com fruição, advertia-lhe que estava perto de seu destino. Assim que passou sob o arco de pedra que dava entrada às cozinhas, sentiu a bem-vinda onda de calor de seus fogões, que permaneciam acesos dia e noite. Rebuscando entre os claros e escuros da habitação, sentiu o alívio de ver a silhueta de um homem que dormia ante o fogo enrolado em sua manta escocesa.
Seamus MacDonald era um dos melhores cozinheiros das Highlands. Angus Og se mostrava resistente a ver-se privado de suas habilidades, mas compreendia que seria de melhor uso como cozinheiro dos ingleses. Quase a totalidade da servidão do castelo estava constituída por homens de seu primo. Os ingleses levavam consigo multidão de soldados e armas, mas faziam uso dos locais como mão de obra. Seus arrogantes cavalheiros, acostumados ao feudalismo, não acreditavam que os vassalos constituíam um perigo, incapazes de compreender que a maioria das posições na servidão das Highlands eram um sinal de prestígio.
—Seamus — sussurrou golpeando ligeiramente o homem com um pé.
Consciente do perigo de despertar um highlander, afastou-se, o qual resultou ser uma boa ideia, quando o velho saltou de seu assento adaga em mão como se fosse um moço de vinte anos.
—Acreditei que estaria me esperando — disse Erik da escuridão com um sorriso no rosto.
O cozinheiro grosseiro, algo que segundo a experiência de Erik ia sempre unido, olhou-o com cara de desagrado.
—E por que crê que durmo aqui em lugar da minha cômoda cama? —Seu olhar passeou pelo corpo e os cabelos enegrecidos de Erik — Pelos pregos de Cristo! Parece que saiu de um pântano. Se cubra antes que mate alguém com essa coisa — disse lhe lançando uma manta.
Erik sorriu. Tal e como disse antes, a vida tinha sido generosa com ele em todos os aspectos.
—Às moças não parece se importar.
O velho pôs-se a rir.
—O que necessita desta vez?
Seamus nunca tinha sido dado às cortesias.
—Temos notícias de nosso amigo?
—Ainda não — disse o cozinheiro negando com a cabeça.
—Mas pode fazer chegar a mensagem?
—Meu homem partiu no dia seguinte. Se tivesse acontecido algo, já saberia.
Erik assentiu. Teria preferido que lhe confirmassem que sua mensagem tinha chegado, mas teria que conformar-se com aquilo no momento.
—Terei que dormir mais noites no chão? —perguntou Seamus.
—Talvez algumas mais. Espero poder voltar uma vez mais antes de partirmos.
—Tome cuidado, moço. Os ingleses procuram a nosso amigo, mas também buscam a você. Puseram um preço de duzentos Marcos a sua cabeça.
—Nada mais? —disse Erik com decepção fingida.
Seamus não fez sequer o gesto de rir. Era uma fortuna. Não tanto como os trezentos que ofereciam pelo Wallace, mas mais do que tinham devotado por qualquer homem, à exceção de Bruce.
—Não é para tomar-lhe a risada, moço. Algo mau se traz entre mãos.
—Preocupa-se muito, velho — disse. Mas depois, ao ver a cara de preocupação de seu amigo, suspirou — Prometo que tomarei cuidado. Me acredite, tenho tanta vontade como você de ver o interior de uma masmorra inglesa. Enquanto esperamos que isto aconteça, tenho outra coisa que lhe pedir — continuou depois de uma breve pausa.
—Uma mensagem?
—Sim. Mas nesta ocasião a Irlanda. Têm alguém ali?
As sobrancelhas de Seamus se franziram tanto que pareciam duas larvas cinzas peludas. Mexeu em sua larga e cheia barba.
—Sim. O que necessita?
—Contatar com alguém do serviço de Ulster.
—É de nosso amigo?
Erik negou com a cabeça, sem surpreender-se que Seamus pensasse que se tratava de uma mensagem de Bruce para algum dos familiares de sua esposa.
—É uma longa história, mas necessito que diga ao mordomo do conde que Ellie, a babá, está a salvo e será devolvida logo a seu lar.
Erik notou que o outro homem sentia curiosidade, mas sabia que não convinha fazer perguntas. De repente o velho ficou circunspeto.
—O que acontece? —disse Erik.
—Não poderia ser que a moça tivesse algo que ver no incomum ardor dos ingleses em seu rastreamento?
Erik considerou a pergunta e o descartou rapidamente. Inclusive no caso que tivessem conectado à babá desaparecida com a mulher que tinha pedido ajuda da água, não era provável que os ingleses tomassem tanto interesse por uma moça irlandesa de tão pouca importância.
—Não — disse negando-o com a cabeça — É a mim a quem procuram.
—Quase não posso imaginar o que fez para irritá-los a tal ponto.
Erik sorriu por resposta.
—Quanto demorará para chegar?
—Um dia, dois no máximo — disse Seamus encolhendo-se de ombros.
—Bem — disse lhe dando uns golpezinhos nas costas — Durma um pouco, velho. Voltarei dentro de uns dias se me for possível. —Desenrolou a manta que tinha sobre os ombros e a deu — É melhor que leve isto.
Teria que desfazer-se dela antes de meter-se na água. Não era necessário danificar uma boa manta só para estar quente um momento mais. Seamus o olhou de cima abaixo e meneou a cabeça.
—Quase me mata de susto quando lhe vi. Acreditava que o diabo tinha mandado um dos seus por mim.
—Ainda não, velho — disse Erik rindo — Ainda ficam uns quantos anos que expiar por seus últimos sessenta anos de caveira.
—Sessenta? —disse Seamus soprando — Ainda tenho quarenta e nove, casulo.
Erik riu com vontade e partiu dali. Estava a meio caminho do túnel quando sentiu o primeiro comichão de intranquilidade, a primeira sensação que algo ia mau. Sabia que se aproximava alguém inclusive antes de ouvir o som. Tirou a adaga de seu cinto, deteve-se junto à parede e pôs o ouvido. Um momento depois, os murmúrios das longínquas vozes lhe confirmaram o que já tinham advertido seus instintos. Mas em lugar de um só guarda como esperava, encontrou com ao menos uma dezena de homens que vinham da porta marinha. Provavelmente tinha chegado um galeão. Não podiam ser mais inoportunos.
Normalmente Erik não pensaria duas vezes abordar a uma dezena de homens com uma só mão. Seu adestramento era bom. Estar nu e ter tão somente uma adaga por arma simplesmente lhe daria alguma oportunidade de opor resistência. Mas, maldita seja, não podia fazê-lo. Apesar de cada centímetro de sua pele se rebelasse contra fugir de um desafio, não queria alertar os ingleses de sua presença deixando uma montanha de corpos pulverizados para constatá-la. Não, se podia evitá-lo. Aquilo não só cortaria os laços de comunicação com Dunaverty, mas também chamaria a atenção indiscretamente sobre uma área que estava muito perto de Arran a uma semana do ataque planejado.
Consciente que não poderia passar ante eles naquele estreito túnel, Erik começou a retroceder para a cozinha, em cujas abóbadas se esconderia até que passasse o perigo. Ao menos esse era o plano. Não era mau, se não fosse porque assim que se resguardou na primeira despensa, seu primeiro olhar pela habitação não foi capaz de advertir ao moço que devia estar acurrucado entre os sacos e barris de farinha, cevada e aveia. Estava tão imerso em tentar ouvir a conversação dos soldados que se aproximavam que não percebeu o movimento atrás dele até que foi muito tarde.
Ao dar meia volta, viu que o menino abria a boca para gritar e arremetia contra ele com uma faca da escuridão. Erik reagiu ao momento e lhe pôs uma mão na boca enquanto o imobilizava contra a parede com o antebraço. Atuou com rapidez suficiente para afogar o grito em sua maior parte, mas não o suficiente para evitar que a folha da faca lhe cortasse a barriga. Erik estremeceu ao sentir aquela dor penetrante e a umidade do sangue que corria por seu estômago, mas não fez nenhum ruído. Os olhos do menino se abriram atemorizados ao cruzar com seu olhar.
Erik não podia acreditar. Um moço que não teria mais de sete ou oito anos, que provavelmente estava ao cargo de espantar os ratos da comida, não só tinha conseguido saltar sobre ele, mas tinha conseguido feri-lo. Não queria nem pensar no perto que tinha estado aquela faca de castrá-lo.
Erik agradeceu como nunca que não estivessem seus companheiros da guarda a seu lado para vê-lo, porque estariam rindo daquilo por toda a vida. Especialmente Seton e MacGregor, que eram os que mais sofriam seus sarcasmos. Mas isso era culpa deles por lhe dar isso de bandeja. Seton por ser um maldito inglês e MacGregor por essa cara de menino bonito que tinha.
—O que foi isso? —ouviu dizer a alguém atrás da porta.
Ficou completamente imóvel. O menor ruído provocaria o desastre. Manteve seus olhos nos do menino e negou com a cabeça, lhe advertindo em silêncio que não fizesse ruído. Os olhos do menino se abriram mais. O pequeno estava tão aterrorizado que não podia fazer mais que olhar Erik como se estivesse vendo um fantasma.
«Se afastem», exortou Erik aos soldados do túnel desde seu silêncio. Mas foi em vão. Um momento depois ouviu como uma voz autoritária ordenava: —Comprova-o, William.
Erik agarrou o menino e se deslizou até atrás da porta sem fazer ruído algum. Tinha a esperança que William não tomasse muito a sério.
A porta se abriu. Conteve a respiração e apertou o menino até quase asfixiá-lo para evitar que fizesse nenhum movimento. Podia ouvir a respiração de William através dos largos painéis de madeira da porta. Um momento mais tarde uma tocha entrava na sala e a enchia com sua luz. Todos seus músculos estavam em tensão e preparados para soltar o menino à mínima e lutar. Uma parte dele, aquela que não pensava nas consequências de seus atos, esperava que lhe dessem aquela desculpa.
—Aqui não há nada — disse o soldado da porta — Deve ter sido um rato.
A porta se fechou pouco depois, mas Erik esperou que o som dos passos se extinguisse para deixar o menino no chão.
—Nada de gritar, moço — disse em gaélico — Não quero te fazer mal.
Afastou a mão com cuidado da boca do menino, o qual se escapuliu até o rincão mais afastado da habitação e se escondeu atrás de um grande tonel.
—Rogo-lhe isso, serei bom. Não me leve ao inferno com você — resmungou com voz tremente — Prometo atender a minha mamãe.
O primeiro instinto de Erik foi acalmar ao apavorado menino. Mas logo recordou os comentários de Seamus momentos antes e se precaveu que os temores do menino poderiam solucionar o problema de deixar testemunhas de sua presença no lugar. Se o menino contava a qualquer o que tinha visto, pensariam que eram imaginações dele. Talvez muitos homens não duvidariam na hora de matar ao menino, mas Erik sabia distinguir a linha entre o assassinato de inocentes. Igual a Ellie, aquele menino simplesmente estava no lugar errado no momento errado.
Tirou de seu interior a voz mais horripilante que pôde para dizer:
—Fecha os olhos, não te mova e não faça som algum até chegue a manhã, ou do contrário voltarei. Entendeu?
O menino não disse nada, mas Erik tinha motivo para acreditar que assentia de maneira frenética. Pensou em procurar algo para proteger sua ferida, mas sabia que cairia quando estivesse na água. Saiu da câmara, não sem antes comprovar com cautela que o caminho estava livre. Mas consciente de como se pulverizavam as histórias sobre o exército fantasma por toda a campina, não pôde resistir a fazer ao menino uma última advertência.
—Diga a quão ingleses deixem a Escócia ou pagarão um alto preço se não o fizerem. Vamos por eles.
Ouviu-o resfolegar, o qual lhe indicou que o menino devia ter ouvido os rumores. Bruce sabia que o medo podia ser uma arma muito poderosa contra seus inimigos, de modo que tinha espalhado histórias a respeito de um exército fantasma de malfeitores que tinha a intenção de perseguir a cada um de quão ingleses houvesse na Escócia.
Bastante seguro de que o menino não se moveria dali até o dia seguinte, Erik não quis arriscar mais e se apressou a atravessar o túnel para o mole, desta vez sem interrupções. Tampou a ferida do estômago com a mão para controlar a hemorragia como pudesse. Ao deter-se para examiná-la sob a luz da tocha, sentiu o alívio de comprovar que embora sangrava bastante não parecia profunda. Entretanto, a água salgada arderia como o inferno. Ao menos tinha a sorte de que em poucos segundos a água fria o deixaria tão intumescido que não poderia senti-lo.
Esperava com toda sua alma que não houvesse muitos tubarões rondando. Pode ser que a luta livre com tubarões fosse um de seus passatempos sendo menino, mas tinha perdido o gosto depois que um deles esteve a ponto de lhe arrancar uma mão. Não havia nada que assustasse a Erik, mas enfrentar um tubarão de noite estava muito perto de consegui-lo.
Quarenta minutos depois, felizmente sem ter visto nenhum tubarão, Erik saiu da água e se viu rodeado por seus homens antes de chegar à beira da praia. A longa travessia, além da perda de sangue, o tinham debilitado quase até o ponto de lhe provocar um desmaio. Mas tinha conseguido.
Quando Domnall viu como brotava sangue do corpo do capitão, ficou alvoroçado como uma velha e quis mandar chamar Meg imediatamente, mas Erik não queria despertar, a nenhuma das duas. Ellie precisava dormir. Zangava-se como um urso furioso quando despertava cedo. A ferida podia esperar até a manhã seguinte. Não obstante, estava desejando contar a Ellie que a missão tinha sido um êxito, quase total, embora com aquele recente descobrimento seria muito arriscado tentar voltar a Dunaverty breve. A garota precisava divertir-se e ele estava disposto a lhe ensinar como.
Ellie estava terminando seu bolo, umas sobras de pão de centeio que Meg tinha orvalhado com açúcar e metido no forno de noite até secá-lo e convertê-lo em um doce delicioso e rangente, quando alguém bateu na porta. Pensando que seria Falcão, surpreendeu-a encontrar-se com Duncan. Devolveu-lhe o bom dia e se voltou imediatamente para Meg, que vinha de levar a bandeja a Thomas.
—Meg, necessitamos que baixe ao acampamento para costurar uma ferida quando puder —disse com um sorriso.
—Vou pegar minhas coisas — respondeu ela lhe devolvendo o sorriso.
—Tão cedo faz lhe exercitar o capitão? —perguntou Ellie. Já tinham chamado um par de vezes a Meg para atender feridas sofridas em seus «treinamentos».
Duncan sorriu. Como a quase todo mundo, adorava provocá-la com o de que se levantava tão tarde.
—Já é quase meio-dia para a maioria de nós, moça. Mas não, não estávamos nos exercitando. É o capitão.
Ellie saltou da cadeira antes de dar-se conta do que fazia.
—O que lhe ocorreu? —disse com o pulso acelerado pelo terror. A noite passada disse que enviaria a mensagem a sua família. Acaso tinha ocorrido algo? —Está ferido?
Duncan a olhou estranhando e então ela se deu conta que tinha exagerado em sua reação. Tentou acalmar seu frenético pulso. «Mas o que é o que me passa?».
—Não, moça. Somente é um arranhão.
Ellie não podia nem imaginar o que significaria «somente é um arranhão» para guerreiros tão duros como Falcão e seus homens. Enquanto seguia Meg e Duncan pelo atalho que levava a praia onde os homens tinham o acampamento, tinha visões de membros pendurando e tripas saindo. Agradeceu que nenhum fizesse comentários a respeito de que os acompanhasse. Não estava muito segura se podia explicá-lo, salvo dizendo que queria comprovar por si mesma que estava bem. Pelo único que lhe importava era porque pudesse haver-se feito mal tentando lhe fazer um favor. Entretanto, aquilo não explicava que sentisse pulsar seu coração como se alguém lhe pisasse no peito.
Havia toda uma multidão ao redor do fogo ao fundo da cova, mas todos se afastaram quando viram chegar Meg, descobrindo o capitão, estendido no chão sobre uma manta disposta em cima de uma rocha plana.
A Ellie o mundo caiu em cima. Não porque seu rosto se visse tão pálido em contraste com as extensas manchas negras que cobriam sua pele, nem pelo enorme talho que atravessava seu estômago em diagonal, mas sim porque não levava nem o cotun, nem veste, leine ou coisa alguma para cobrir seu torso. Aquele torso tão largo, musculoso e nu. Levou seu olhar até a manta que o cobria a partir da zona baixa da cintura, e a boca ficou seca. Ou estava muito confundida ou o resto de seu corpo também estava nu.
«Deus Santo.» As palmas de suas mãos suaram e começou a sentir um nó no estômago. Era um exemplar magnífico. Musculoso mas magro. O largo escudo de seu peito estava tão perfeitamente cinzelado como a parede de rochas que tinha atrás de si. Seus braços recebiam as formas redondas dos blocos de músculos. Sua barriga, lisa e cortada, estava coberta por estreitas e rígidas linhas de aço. Se havia uma só grama de carne restante nesse corpo era impossível vê-lo.
Ellie devia ter oculto esse instinto feminino primário no mais profundo de seu interior, disposto a ativar-se quando se exibia de maneira aberta a força física. Não necessitava que a protegessem, mas se alguma vez o fazia, aquele seria o homem que queria a seu lado. Devia ser extraordinário no campo de batalha.
Os olhos de Erik se cravaram nos seus. Sustentou seu olhar. Não a deixavam olhar a outro lado. Eram tão conscientes um do outro que não poderia ter quebrado quão corrente fluía entre ambos por mais que tivesse querido.
Algo ocorria, embora não sabia do que se tratava. Era como se por um momento todas as máscaras e pretensões desaparecessem e encontrassem um homem e uma mulher cara a cara. Não um pirata e sua prisioneira. Não a divindade dourada e a mulher que não era mais que passável. Não o homem que fugia da justiça e a filha do conde prometida a um dos homens mais poderosos da Inglaterra. Por um momento pareceu que nada daquilo importasse.
Ele nunca a tinha olhado antes com tanta intensidade. Nem com tanta seriedade. Ellie temia que pudesse adivinhar seus pensamentos, sua preocupação, seu medo, e sua reação feminina ante a nudez de seu corpo. Este não era um homem ao que nada importasse. Tratava-se de alguém com desejos profundos e fera intensidade. Era um homem ao qual poderia apreciar. Aquele pensamento a comoveu e a aterrou a um tempo. Sentiu como se apertassem seu peito, e teve que obrigar-se a ir atrás de Meg para não ceder à necessidade de correr até ele e comprovar como estava por ela mesma.
—O que tem feito desta vez? —perguntou Meg.
Erik deixou de olhá-la finalmente e a máscara de afabilidade voltou para seu lugar.
—Só um probleminha com uma faca. Não me parece que seja nada grave, mas Domnall insistiu em que desse uma olhada. Eu lhe disse que às garotas gostam das cicatrizes, mas já sabe o cabeçudo que fica.
Domnall resmungou.
—Não quero arrastar seu maldito cadáver por todas as ilhas. Isso é tudo.
Erik riu e se voltou para Ellie, a qual estava pálida.
—Que não se engane com toda essa fanfarronice, moça. Não o diz a sério. Estou bem.
—Por que não deixa que eu veja o perto que está das portas da morte? —disse Meg.
Ajoelhou-se junto a ele para examinar a ferida, e Ellie se moveu com ela para ficar a seu lado. O «arranhão» era um feio corte irregular de uns quinze centímetros que corria por debaixo de suas costelas até chegar a seu lado direito. Estava coberto de areia e do que parecia ser uma gordura escura. A mesma gordura que tinha advertido em seu cabelo outro dia. Pelas extensas manchas que tinha pensou que teria estado coberto com ela dos pés à cabeça, embora tivesse se lavado ou tivesse tirado o resto. Isto lhe disse que teria realizado alguma travessia a nado. E o tinha feito antes. O que levava nas mãos? Uma vez mais lhe assaltou a sensação de que era algo mais que um pirata.
Meg a olhou meio de lado.
—Ellie, venha aqui e me ajude com isto. —Seus olhos, movidos pelo instinto de sobrevivência, abriram-se de terror. Tocar seu corpo era quão último queria fazer. Ficou paralisada — Ellie? —disse de novo.
Obrigou a si mesma a ajoelhar-se junto a Meg, já que todos os olhares estavam postos nela, incluído o de Falcão.
—O que necessita que faça?
—Limpe a ferida o melhor que possa com este trapo, enquanto eu enrosco a agulha. E também necessitarei que segure a ferida enquanto a costuro.
Ellie tragou saliva e assentiu. Umedeceu o trapo na água fria que Meg tinha transladado a uma pequena terrina do cântaro e se dispôs a limpar o corte, com cuidado de não tocar sua pele nua com os dedos enquanto tentava tirar da ferida a gordura negra e a areia fina do mar. Mas era muito consciente daqueles músculos escuros que havia debaixo dela e de que Erik a observava. Era como se ele também sentisse a tensão. Como se o afetasse tanto como a ela que tivesse suas mãos sobre ele. Infelizmente não podia demorar o contato para sempre.
—Ponha as mãos aqui, Ellie — disse Meg, lhe ensinando como tinha que as pôr.
Ellie aspirou fundo e deslizou as mãos a ambos os lados da ferida, uma descansando levemente sobre as costelas e a outra na parte baixa do quadril. Juraria que pôde sentir como surgia uma faísca pela corrente de calor que emanava sob suas mãos. Falcão se sobressaltou pelo contato e Ellie retirou as mãos.
—Sinto muito. Tenho-lhe feito mal?
Começou a negar com a cabeça, mas logo disse:
—Sim, arde um pouco mais do que pensava.
As sobrancelhas de Ellie se franziram um tanto.
—Tentarei ter mais cuidado.
Voltou a tocá-lo e, embora desta vez não se sobressaltou, ela sabia que lhe estava causando certa dor. Tinha a boca em tensão e todos os músculos de seu corpo pareciam duros. Mas aquilo dava a impressão de produzir o efeito contrário nela. Podia sentir o calor e a energia sob as mãos e morria por lhe cobrir o corpo de carícias, por comprovar a força que brotava sob as pontas de seus dedos, acariciar as rígidas bandas de músculos que delineavam seu estômago, por colocar seus dedos sob a borda da manta.
Falcão emitiu um ruído surdo de dor do mais profundo da garganta e se retorceu, sentindo-se incômodo, como se soubesse o que ela estava pensando. Mas então Meg deu um forte puxão do fio ao tirar a agulha da pele e Ellie compreendeu que sua tarefa tinha acabado.
—Obrigada, Ellie — disse Meg depois de um momento. Olhava a Falcão com uma cara estranha — Acredito que a partir daqui poderei me arrumar sozinha.
Ellie afastou as mãos reprimindo um suspiro de alívio e as colocou com rapidez sobre seu colo. O capitão também pareceu relaxar.
—Como lhe ocorreu? —disse em uma tentativa de romper aquele incômodo silêncio.
—Não, moça. Não lhe pergunte isso — protestou Domnall.
Falcão o fulminou com o olhar como recriminação e procedeu a contar uma longa e dramática história segundo a qual tinha saído para tomar um banho noturno quando se encontrou com um contingente dos piores rufiões ingleses que tinha visto em sua vida, todos com armaduras e armados até os dentes, é obvio, que acossavam a um galeão cheio de freiras e órfãos em direção à sagrada ilha de Iona. Difícil era que ele ignorasse tal velhacaria, claro, pensou ela, pois, como todos sabiam, os piratas eram conhecidos por sua adesão à justiça, assim saltou à abordagem para ajudá-los, derrotando a todos os rufiões só com uma adaga. Mas ai! Tinha saído ao resgate de um menino que um inglês queria jogar pela amurada. Chegou a tempo de salvar o menino, mas um dos rufiões arrumou para lhe dar um golpe antes que Falcão o despachasse.
Quando acabou com a história, Meg já tinha terminado de costurá-lo e o olhava com algo parecido ao culto pelo herói nos olhos.
—Essa história é extraordinária — disse Ellie. Órfãos e além monjas. Talvez muito, mas se havia algo que não lhe faltava eram modos de entreter — Há algo certo nela?
Domnall tossiu para dissimular sua risada e Falcão o olhou com vontade de matá-lo.
—A moça lhe pegou, capitão — disse Domnall uma vez que pôde conter-se — Jamais pensei que chegaria o dia.
—E bem? —insistiu Ellie. Falcão se encolheu de ombros — Já imaginava —disse em um tom impertinente — Se o da pirataria vai mau, poderia se converter em bardo.
Erik riu sem pingo algum de arrependimento.
—Foi pelos órfãos, verdade?
—Entre outras coisas. A quantidade de homens também. Não há ninguém que possa derrotar a vinte homens com somente uma adaga.
Domnall franziu o cenho.
—O capitão sim. — Ellie olhou ao homem maior esperando vê-lo sorrir, mas parecia falar a sério — Já o fez outras vezes.
—É que não tem trabalho que fazer, Domnall? — disse Falcão com severidade — Acreditava que tinha que substituir os equipamentos do barco.
Ellie mal podia acreditá-lo. O fanfarrão estava envergonhado. Podia elaborar histórias totalmente ridículas a respeito de seus lucros, mas quando contava a verdade, voltava-se subitamente modesto. Era algo intrigante, inesperado…, encantador inclusive. Enquanto Ellie tentava digerir o fato de que fosse capaz de derrotar a vinte homens sozinho — Como podia aquilo ser possível?— Domnall e os outros saíram da cova. Meg passeou seu olhar de Erik até ela, com uma interrogação. Incomodada pela observação da outra mulher, Ellie disse: —Acredito que deveria voltar para ver como segue Thomas.
Meg negou com a cabeça.
—Por que não fica? Eu irei ver como está Thomas. —Voltou o rosto em direção a Falcão, mas falou como se ele não estivesse ali — Se assegure que não se levante ao menos em uma hora, até que a sálvia que acabo de pôr na sutura tenha tempo de secar-se.
Aquela substância pegajosa semelhante à cola não se parecia com nada que ela tinha visto antes, mas tal e como tinha comprovado com a sutura do braço de Duncan, pelo visto, funcionava à perfeição para cicatrizar as feridas.
—Uma hora? —protestou — Tenho coisas que fazer.
—Terá que esperar — disse Meg com mais firmeza da que lhe tinha ouvido nunca antes. Talvez não estivesse tão cegada por ele como ela pensava.
Meg se foi sem lhe dar tempo para pensar em nenhuma razão que objetar. Ao menos não estavam sozinhos. Ficavam vários homens rondando pela parte traseira da cova. Ellie se sentou em uma rocha que havia frente a ele, em uma tentativa de sentir-se cômoda, algo que não era fácil com aquele impressionante torso dominando seu campo de visão. Quem teria podido supor que os músculos eram algo tão… misterioso? Tentava não olhá-los, mas era mais fácil dizê-lo que fazê-lo. Elevou a vista para lhe olhar no rosto, mas seus olhos se encontraram com algo na parte superior de seu braço. Parecia algum tipo de marca, mas com aquela gordura que o cobria era difícil de identificar.
—O que é isso? —perguntou assinalando essa parte do braço.
O gesto de Falcão se torceu de modo apenas perceptível.
—Nada — disse cobrindo os ombros com a manta — Uma velha cicatriz.
Aquilo não se parecia com nenhuma cicatriz das que ela tinha visto em sua vida. «Está ocultando algo.» Tal e como fazia ela mesma, teve que recordar-se. Mas de repente aqueles segredos se erigiam como um muro. Por um momento se esqueceu que esse muro também servia para protegê-la, e sentiu a necessidade de derrubá-lo. De conhecê-lo realmente.
—Deve ter sido um bom fogo — disse. Erik a olhou com cara de surpresa, mas Ellie o desafiou com o olhar para lhe confirmar que sabia que estava mentindo — A fuligem. Têm-na por toda parte. —Erik lhe sustentou o olhar, mas não disse nada. Provavelmente para evitar mentir de novo — Vai me dizer o que aconteceu em realidade? —perguntou em voz baixa — Como lhe feriram?
De novo não disse nada, o qual supunha que resultava suficiente como resposta. Não queria confiar nela. Essa tênue trégua a que tinham chegado era tudo o que podia esperar. Não queria aprofundar mais. Ellie não tinha por que sentir-se tão decepcionada.
—Um menino de sete anos se jogou sobre mim.
—Ah — se burlou ela negando com a cabeça ante essa ridícula explicação. Não era capaz de tomar nada a sério — Simplesmente me diga: foi por causa do que lhe pedi?
—Não — disse ele categoricamente — Não tem nada a ver com você. É um arranhão. Nada mais, Ellie. Minha vida jamais correu perigo.
Tinha o pressentimento que lhe dizia a verdade e sentiu um alívio inexplicável por isso. Estava confundida ante os estranhos e divergentes sentimentos que lhe causava, mas tinha clara uma coisa: não queria que acontecesse nada a Erik.
Seu pai poria sua cabeça em uma lança se conseguia apanhá-lo. Expulsou aquele terrível pensamento de sua mente. Jamais chegaria a isso. Ela conseguiria protegê-lo de algum modo.
—Está seguro?
Erik sorriu.
—Não se liberará de sua promessa tão facilmente. Se não fosse pelo unguento de Meg, encarregar-me-ia de que cumprisse agora mesmo.
O coração lhe deu um tombo.
—Significa isso que…?
—Sim, sua mensagem está a caminho.
Ellie suspirou aliviada, como se tivesse tirado uma pedra de cima. Sua família seguiria preocupada, mas ao menos saberiam que estava viva.
—Obrigada — disse com olhos cheios de calor.
—Não me agradeça ainda, moça — repôs ele com um brilho diabólico nos olhos. Não era o típico fulgor despreocupado que tão fácil lhe resultava rechaçar, a não ser algo malicioso, cheio de promessas — É minha durante os próximos dias.
«Minha.» Seu coração se angustiou de uma estranha maneira. O modo em que disse aquilo fez que sentisse uma onda de calor e excitação percorrendo suas veias. «Não significa nada», disse-se. Não obstante, pela primeira vez em sua vida, Ellie se perguntou se não teria tomado mais do que poderia administrar.
Deus, adorava perturbá-la. Erik deu uma olhada a suas suaves bochechas rosadas e sentiu uma onda de satisfação plena. Era horrível de sua parte desfrutar tanto incomodando-a, mas ela mesma o estava atormentando fazia dias, assim que o correto parecia que não fosse o único torturado.
Podia negar tudo o que quisesse, mas Ellie era incapaz de permanecer indiferente ante ele. Tinha visto seu rosto quando ela se apressou a entrar na cova. Estava preocupada com ele e, quando posou seu olhar sobre seu peito, sentiu algo completamente diferente. Erik tinha muita experiência observando os olhares das mulheres, mas não recordava ver-se tão afetado fisicamente por uma como aquela. Também havia sentido então uma profunda onda de satisfação, mas nesta ocasião algo mais abaixo, e muito mais rígida.
Mas aquela rigidez não tinha ponto de comparação com a que sentiu quando lhe pôs as mãos em cima. Erik franziu o cenho. Quase sentiu como saía de sua própria pele. Ter as mãos sobre seu peito, e depois mais abaixo, em sua barriga, com os dedos tão perto de seu membro, tinha-o feito enlouquecer de desejo. Morria por agarrá-la e subi-la em cima dele. Tinha a certeza de que todos quantos se encontravam ali, salvo Ellie, precaveram-se de sua reação. Mas também ela o tinha notado. Que o percebesse e que lançasse esses olhares de curiosidade para a parte baixa da manta não fazia a não ser aumentar sua agonia. Aquele desejo que sentia pela pequena babá se fazia mais e mais difícil de ignorar e agora que sabia que Ellie sentia o mesmo… Quase estava tentado a reconsiderar sua decisão de ficar com ela nos próximos dias. Mas uma vez cumpridos os exercícios de treinamento da jornada, não havia muito que fazer até que pudessem partir para reunir-se com os McQuillan, e a moça merecia um pouco de diversão. Seria molesto, mas a luxúria não era algo impossível de controlar.
Ellie se levantou para remover as brasas do fogo, mais por fazer algo que porque fosse realmente necessário, conforme suspeitava ele. Uma vez que teve retornado à rocha frente a ele em que estava sentada, já tinha recuperado a compostura e também aquele olhar franco que rechaçava qualquer tolice a que Erik era muito aficionado. Pensou que era certo que tinha pego o truque. Não deixava passar nada. E embora aquilo deveria o incomodar, em realidade resultava mais relaxante ter a alguém que não esperasse nada dele. Ellie não falava por falar, nem tentava seduzi-lo como era habitual, o que significava que acabavam conversando de todo tipo de coisas, de coisas pessoais. Se ao menos não fosse tão observadora e intrometida… Não podia acreditar que tivesse descoberto sua tatuagem no braço. Era consciente que suspeitava que ele não era quem dizia ser, mas não fazia ideia do que pensaria se precavesse de que levava o leão rampante, o símbolo do reino da Escócia e a marca que tinham tatuada no braço todos os membros da Guarda dos Highlanders. Quanto demoraria depois disto em suspeitar que estava metido na rebelião encabeçada por Bruce? Apostava que não lhe custaria muito.
Ellie cravou aqueles enormes olhos castanhos matizados de verde sobre ele e arqueou uma sobrancelha com delicadeza.
—E sempre quis ser pirata ou a historia de salvar monjas e órfãos é uma afeição que desenvolveu recentemente?
Riu. Já sabia ele que não seria tão fácil dissuadi-la.
—Isso vai no sangue. Recorda?
—Sim, claro que o recordo — disse observando seu gesto antes de voltar a lhe olhar aos olhos — Mas por que será que penso que há muito mais por trás do que me conta? O que poderia fazer que um homem como você se volte um proscrito?
«Um homem como você.» A fé que depositava nele, independentemente do que lhe tivesse contado ou não, era algo que lhe resultava incômodo. Aquela mentira, que em princípio carecia de importância, já não dava resultado. Parecia desconjurado. Mas era mais seguro que ela ignorasse suas relações com Bruce, não só pela missão a não ser para mantê-la a salvo. A fúria de Eduardo era implacável e não parecia lhe importar a quem esmagasse em seu caminho. Não podia dizer toda a verdade, mas supôs que não aconteceria nada por contar somente um pouco.
—As razões típicas, tenho que supor. Roubaram as terras de meu clã. Fizemos o que devíamos fazer.
Esperava que ela discutisse aquela premissa inicial, mas o único que fez foi olhá-lo de maneira pensativa.
—Como lhe roubaram?
Sabia que rondava terras perigosas, de modo que mediu suas palavras.
—Meu pai morreu quando eu era jovem. Um de meus parentes pensou que poderia tirar proveito disso. Fez que atuava em meu nome e reclamou as terras para si. —John de Lorn, aquela ave de rapina bastarda de MacDougall, pensava que podia controlar todas as ilhas, sem importar que as terras fossem deles ou de outro — Teria me matado se não fosse por outro de meus parentes me tomou a seu serviço. Devo tudo a esse homem.
Ellie o olhava com tanta intensidade que Erik teve medo de ter contado muito.
—Embora lhe obrigaram a levar esta vida em um princípio, deve se dar conta de que isto não pode continuar para sempre.
—A que se refere?
Ellie lhe assinalou a fenda que tinha no estômago.
—Me é difícil imaginar que os piratas vivam muito tempo. Um destes dias seus perseguidores o apanharão.
Se soubesse toda a verdade… Sua situação era mais precária ainda. Havia muitas possibilidades de que estivesse morto em uma semana. Estavam a ponto de lançar um ataque de várias centenas de homens contra o total das tropas do exército mais poderoso da cristandade. Inclusive no caso de terem êxito, não havia garantia alguma que se unissem mais homens à bandeira de Bruce; não o tinham feito antes, quando a posição deste era muito mais forte. Seguindo qualquer tipo de estimativa racional, Bruce e seus seguidores estavam condenados ao fracasso. Mas Erik seguia confiando em que podiam ganhar. Lutariam com um estilo de combate que nem Eduardo nem nenhum deles tinham visto jamais. Técnicas de combate highland. Técnicas de combate pirata. Eduardo não saberia de onde o atacavam.
—Sou muito bom como pirata — disse com uma piscada.
Ellie emitiu um som de exasperação, algo muito parecido a um bufado.
—Não duvido. Mas certamente quererá algo mais da vida que ir correndo de ilha em ilha com pouco mais que uma cova e uma ou duas mulheres esperando em cada porto.
Aquilo soava perfeito para ele, mas lhe dava a sensação de que estava a ponto de ouvir mais razões pelas quais não o era. Provavelmente se arrependeria de perguntá-lo.
—Como o que?
—Matrimônio. Família. Amor.
Esboçou um sorriso malicioso.
—Deste último já tenho mais que suficiente.
Ellie elevou a vista ao teto.
—Não é o mesmo.
Ali estava de novo, pensando que ela sabia mais que ninguém. É obvio que se casaria, acabaria fazendo-o. Mas quando o fizesse, seria para incrementar o poder de seu clã. Se sua esposa lhe parecia atrativa e lhe caía bem, seria tudo muito mais agradável, pode ser, mas não era algo necessário. Seus pais se levaram bastante bem, pelo que recordava, e aquilo esteve muito longe de ser, em um princípio, um matrimônio por amor.
Erik arqueou uma sobrancelha.
—E você é perita nisso? Não sabia que era tão romântica, Ellie. —Olhou-a de cima abaixo, atrasando-se em seu sutiã — Que mais esconde debaixo dessa fachada de babá meticulosa?
—Nada que lhe concirna — disse em um tom altivo. Suas bochechas se coloriram de um vermelho delicioso — E não sou romântica. Mas ao menos sei a diferença que há entre o desejo e o amor. Embora não me surpreende que você não o faça.
As feições de Erik se contraíram ao perceber o ligeiro desdém de sua voz, imaginando de novo à pequena babá com sua vara de medir. Já o tinha analisado e estudado o suficiente. Sua vida estava bem. Não era ele que estava mais reprimido e rígido que uma monja de Lent.
—E o que tem você, Ellie? O que quer você?
Ficou aniquilada. A pergunta parecia tê-la pego de surpresa, como se jamais a tivesse exposto. Não obstante, uma vez considerada, a resposta não pareceu fazê-la muito feliz. O sorriso melancólico que se desenhou em seus lábios foi para ele como uma punhalada. Tinha a estranha necessidade de tomá-la entre seus braços e fazer que esquecesse tudo aquilo que a entristecia. Ellie não o olhou aos olhos, mas sim seguiu contemplando as fumegantes brasas.
—O que eu queira pouco importa.
—É claro que importa — disse ele amavelmente — Se trata de sua vida. Sempre há uma alternativa.
Suas palavras tiveram o efeito contrário ao desejado. Em lugar de lhe dar ânimo, provocaram que seus ombros se esticassem e que aqueles olhos castanhos se acendessem até voltar-se verdes de cólera.
—Para você é fácil dizê-lo. Não têm que se ater às regras. É um foragido sem responsabilidades, lealdade, nem sentido da responsabilidade. Faz o que gosta e quando quer.
Não podia estar mais equivocada. Que não tinha responsabilidades? Não só era responsável por contratar a quase todas as forças de ataque de Bruce, também era o encarregado de conduzi-los através do fortemente custodiado canal do Norte até Arran para lançar dali o ataque. Nada era mais importante que a lealdade para ele. Sua lealdade com Bruce. Lealdade para a guarda. A lealdade e obrigações que tinha para seu clã para reclamar suas terras. Essa era a razão de que estivesse ali e de que o perseguissem os ingleses. Era a razão pela que seguiria Bruce até o campo de batalha sem que lhe importassem as possibilidades de êxito. Era a razão pela qual não podia falhar em sua missão. Não só acreditava na recuperação da coroa de Bruce. Também acreditava em sua pessoa. O fracasso era algo inconcebível. Bruce e seus companheiros da guarda contavam com ele e estava decidido a morrer antes de lhes falhar.
Teria se zangado se não fosse pelo tom de inveja que percebeu em sua voz. Ellie desejava aquilo que pensava que ele possuía: liberdade. Obviamente não via saída alguma para escapar do que a preocupava. Ficou observando-a, cativado por esse ar de autoridade, sua calada confiança em si mesma, a elegância na elevação de seu queixo e a graça real de seu porte. Tudo nela remetia à babá formal e severa. O que era que lhe escapava? Tratava-se de algo que não podia identificar com certeza, mas estava seguro de que Ellie escondia algo mais que o que se apreciava a simples vista. O que ocultava? E por que diabos ele dava importância? Quaisquer que fossem os segredos da pequena babá, não afetavam absolutamente a sua missão. Tão somente devia preocupar-se que nada, incluída ela, pusesse em perigo sua missão.
Erik negou com a cabeça. Como fazia ela para que toda conversação se convertesse em algo de suma importância? Pensava encarregar-se pessoalmente, como de uma missão se tratasse, não só de que sorrisse nos dias vindouros, mas de lhe ensinar que nem tudo na vida tinha que ser tão fastidiosamente sério.
—Não faço sempre o que quero — disse ele seriamente, olhando-a aos olhos.
Ao diabo com tudo. Já estava farto de lutar contra aquela estranha atração que rugia entre os dois, e muito mais depois do desejo que tinha apreciado em seu rosto pouco antes. Uma vez que pudesse tirar toda essa luxúria de seu corpo, sua estranha fascinação pela moça desapareceria. Que fosse ainda uma donzela não lhe preocupava. Era capaz de controlar a si mesmo.
—Se o fizesse, não me teria detido em um beijo, e lhe asseguro que, é obvio, não teria ficado dormindo ao raso as últimas noites, sozinho.
A descarada declaração de Falcão recebeu como resposta uma rápida inspiração de ar que fez que ardesse de excitação só de pensar no que poderia ocorrer. Interpretou-o como uma amostra de reconhecimento.
—Não deveria dizer tais coisas — disse ela ruborizando-se.
—Por que não? Te desejo. E sabe o que?
Ellie o olhou com temor.
—Você também me deseja.
—Equivoca-se — se apressou a dizer olhando para outro lado — Sei que deve ser duro para essa arrogante cabeça aceitá-lo, mas nem todos acreditam que é irresistível.
«Isso já o veremos.» Sorriu; estava disposto a permitir que se contentasse por um tempo com aquela mentira. Entretanto, acabava de jogar a luva. E morria por ver os problemas que teria para resistir a recolhê-lo, embora ansiava mais ainda o momento em que realmente o fizesse. Já que Erik MacSorley não duvidava nem por um segundo que ao final acabaria fazendo-o.
Capítulo 12
Ralph de Monthermer era um homem paciente. Esta faculdade se forjou durante o mês que tinha passado na torre, esperando que Eduardo decidisse se devia lhe privar de sua cabeça pela aquela ofensa traidora de casar-se com sua filha sem permissão. Igual a aquele momento, também agora sua paciência se via recompensada.
Durante dias esteve procurando lady Elyne e ao infame navio falcão — com cuidado de que não se estendesse a notícia do desaparecimento, por medo que aquele velhaco o aproveitasse para pedir um resgate —, com a pele queimada pelo vento, dor nas costas e uns braços duros como única recompensa. Aqueles bárbaros beligerantes não faziam mais que obstaculizar sua busca. Os homens das ilhas lhe davam refúgio, estava seguro disso. Mas encontrar um navio entre as centenas de ilhas que povoavam a costa oeste da Escócia era como tentar encontrar um alfinete no fundo do oceano. Mas ao fim, tinham chegado notícias.
Essa mesma manhã Finn, o mordomo do conde, tinha recebido uma mensagem que assegurava que «Ellie, a babá» estava a salvo e logo seria devolvida a seu lar. Não podia ser outra. Lady Elyne era inteligente. Teria se precavido de que era melhor manter sua identidade oculta. O mensageiro desapareceu antes que pudessem interrogá-lo, mas Ralph tinha seguido sua pista todo o dia. Somente era questão de tempo que encontrassem lady Elyne e ao foragido que a tinha capturado.
Ralph saltou pela amurada para plantar-se sobre o embarcador e deixou que seus homens amarrassem o galeão, sem deter-se até passar sob a grade de ferro do castelo de Dunluce. Desprendeu-se do capacete de ferro de um puxão e o jogou em um dos homens que saía correndo a seu encontro para assisti-lo. Passou uma mão por seus alvoroçados cabelos e deixou que outro dos guardas o liberasse da pesada capa que levava sobre seu capote e armadura de cavalheiro. Embora já não era um simples cavalheiro. O rei havia tornado a nomeá-lo conde, um título que tinha gozado previamente, mas ao que se viu obrigado a renunciar depois da morte de sua esposa. Ainda sentia de maneira atroz a cruel dor que atravessava seu coração. Daria tudo o que possuía, seu títulos, suas riquezas, sua vida, por recuperar a Juana. Mas agora sua mulher estava morta e o tinham nomeado conde de Atholl, condado que se achava livre depois da execução do anterior conde, que tinha tomado a funesta decisão de seguir Bruce. Ralph torceu o gesto ao pensar nisso. Não o fazia graça a sede de sangue de Eduardo, mas o rei era implacável. Sua raiva por Bruce, ao que tinha tratado como um filho, e para seus seguidores, não conhecia limites. Ralph não queria sequer imaginar os extremos aos que o rei poderia chegar para esmagar aquela rebelião, pois temia que o que presenciaria não gostaria absolutamente.
As correntes da cota de malha tilintavam a seu passo pela sala. Sua chegada estava anunciada, de modo que o conde e sua família, entre a que se incluía essa pessoa a que queria evitar, esperavam-no. Embora procurava não olhá-la, a presença de lady Mathilda era óbvia por como bulia o sangue em seu interior. Enfurecia-se sentir-se atraído por aquela moça, em lugar de fazê-lo por sua irmã, a que estava prometido. Aquilo não estava bem. Não só porque estiva prometido com sua irmã, mas sim porque não fazia mais que dezesseis meses que Juana o tinha deixado. As reações de seu corpo lhe pareciam uma traição à mulher que tinha amado com todo seu coração. Lady Elyne era a opção correta. Não era uma mulher vivaz e selvagem, a não ser serena e majestosa. Jamais o envergonharia na corte com qualquer pensamento impulsivo que pudesse sair de sua boca, por mais encantador que este pudesse ser, e além disso seria uma mãe carinhosa com seus filhos. E o que era mais importante: nunca lhe faria esquecer o amor que ele tinha professado a sua esposa.
—Encontraste-os? —inquiriu Ulster assim que apareceu na enorme habitação.
Ralph podia notar o peso do olhar de lady Mathilda sobre ele, mas não olhou em sua direção.
—Ainda não, mas fechamos o cerco. —Todos esperavam que se explicasse — Seguimos a pista de um mensageiro que chegou de navio a Ballycastle esta mesma manhã de Kintyre.
Tinham tido sorte. O mensageiro não se preocupou em cobrir bem seus rastros, embora o mais provável era que não esperasse que caísse sobre ele toda a força de dois condes por fazer chegar uma mensagem a respeito de uma babá. Quando Ralph chegou com uma frota repleta de soldados ingleses armados até os dentes, não lhe resultou muito difícil persuadir às pessoas que falassem. A Ulster aquilo não pareceu impressionar.
—Essa mensagem pôde originar-se de qualquer lugar.
—Sim — concedeu Ralph assentindo — Mas não acredito. Acredito que estão perto. Acredito que o rei tem razão.
O rei Eduardo estava convencido que Bruce planejava algo. Aquela era a razão pela que tinha ordenado que tanto Ralph como Ulster partissem com suas frotas até a costa de Ayrshire na Escócia o antes possível. Ficariam a caminho assim que amanhecesse.
—Por que? —perguntou Ulster — O que averiguou?
—O pesqueiro vinha do povo que há junto ao castelo de Dunaverty. Quando interroguei ao oficial a cargo da guarnição, mencionou algo interessante. Disse que não houve nada incomum além das clássicas visões de fantasmas.
—O que tem isso a ver com Ellie? —inquiriu lady Mathilda.
Agora já não podia evitar olhá-la por mais tempo. Procurou conter-se, mas não pôde impedir que seu coração desse um tombo ao encontrar-se com seu olhar. Mathilda tinha tentado submeter seu selvagem matagal de cachos dourados em um coque sobre a cabeça, mas alguns de seus desencaminhados cachos de cabelo seguiam caindo ao redor do rosto e ao longo de seu ebúrneo pescoço. Seus grandes olhos celestes continuavam avermelhados pela tensão, mas já não se viam inchados de tanto chorar. Tratava-se simplesmente de uma das criaturas mais formosas que jamais tinha visto. Serenou sua reação e a sepultou sob o esmagador peso da culpa, ali onde devia permanecer, conseguindo que em sua resposta não se percebesse mais que uma preocupação fraternal.
—Ao princípio não estava seguro que tivesse algo a ver com lady Elyne. As pessoas das Highlands são muito supersticiosas e veem fantasmas e fadas por todos os lados. Mas depois recordei algo que tinha ouvido a respeito de uma banda de malfeitores fantasmas a que viram de vez em quando nos arredores de Turnberry e Ayr os meses passados.
—E pensa que esses fantasmas estão relacionados com Bruce e seus homens — disse Ulster.
—Sim, acredito que assim poderia ser. —Relatou o interrogatório que tinha submetido ao menino que disse ter visto o suposto fantasma — Se esse fantasma for a fonte de nossa mensagem, acredito que deve estar perto do castelo. Ao menos é um ponto de partida.
—Crê que lhe levará até o Bruce? —perguntou John.
—Assim pensa o rei — respondeu Ralph. As ordens do rei tinham sido claras: siga a pista do navio do falcão e encontrará Bruce.
—Nada disso me importa — disse lady Mathilda —, com tal de que encontre a Ellie.
Ao ouvir esse doce rogo de seus lábios, soube que não lhe falharia, não podia fazê-lo. Mathilda contava com ele. Encontraria lady Elyne e a devolveria a casa a salvo, custasse o que custasse. E ao fazê-lo, fecharia uma porta que em realidade jamais tinha estado aberta.
Capítulo 13
— Aonde iremos hoje? Poderei ver por fim a cova da que me falaram?
Ellie se cuidava para não mostrar excitação ou curiosidade em sua voz, mas, depois de dois dias juntos, Falcão não era tão fácil de enganar. Podia fingir toda a indiferença que ela quisesse, mas ele sabia que estava passando bem.
Ellie estava passando muito bem. O espírito aventureiro e a natureza atrevida de Falcão eram contagiosos. A fazia rir, cravava-a e a provocava até que não ficava mais remédio que unir-se a suas graças. Dado seu caráter afável, era singelo sentir-se cômodo junto a ele. Desde quando não se relaxava tanto? Desde quando não sentia tanta felicidade? Matty tinha razão. As mortes de sua mãe e seu irmão tinham feito que se esquecesse de passar bem. Esqueceu de desfrutar, de sorrir, de relaxar. Esqueceu do que era caminhar descalça pela areia da praia com o vento deslizando entre seus cabelos. Entretanto, depois de experimentar essas sensações, como poderia voltar para essa confinada existência que a aguardava em um matrimônio que não desejava?
Aí estava. Pela primeira vez dava voz a um pensamento que seu corpo a vinha alertando fazia tempo. Não queria casar com Ralph de Monthermer. Supôs que devia agradecer por dar-se conta disso à ingrata pergunta do capitão.
Falcão estava equivocado. Não tinha escolha. Era a filha do conde de Ulster. Quando chegasse o momento, partiria sem olhar para trás. Faria o que devia, mas até que chegasse esse momento aproveitaria cada instante de felicidade que pudesse desfrutar. Assim teria algo que recordar durante os longos e solitários dias futuros em que se encontrasse nos aposentos da torre sem nada em que ocupar-se salvo a costura. Sentiu uma pontada no coração e teve medo de que muitas dessas lembranças estivessem ligadas ao homem que naquele momento tinha a seu lado.
«Te desejo.» Ouvi-lo dizer em voz alta fazia que custasse ainda mais ignorar seu próprio desejo. Durante os últimos dias, embarcaram em uma delicada dança de evasivas, mas aquelas palavras persistiam no ar como uma gigantesca ave marinha. Não era capaz de compreender por que se sentia atraída por alguém tão claramente inapropriado para ela. Se por acaso a experiência do amor não correspondido e o coração quebrado de sua mãe não fossem suficiente exemplo, além disso se tratava de um foragido. Um homem açoitado pela justiça, uma nuvem de perigo, com os nós de uma soga ou a folha afiada de uma tocha como único destino. Seu corpo não parecia ater-se a essas razões, mas enquanto seu coração o fizesse, não tinha que se preocupar.
—Não, hoje não veremos a cova — disse.
Ellie franziu os lábios tentando não mostrar sua decepção.
—Começo a me perguntar se realmente existe essa cova submarina.
Falcão sorriu.
—Existe, mas hoje tenho uma surpresa diferente programada — disse alargando o braço e jogando uma pedra ao longe no mar.
—Não deveria fazer isso — lhe repreendeu—Abrirá a ferida.
—A ferida está bem e pensei que deixaria de atuar como uma babá.
—Deixarei de atuar como uma babá quando você deixar de atuar como um menino teimoso —replicou com acrimônia — Só porque me pareça ser a única mulher nesta ilha que não pensa que faça tudo bem…
—Não só nesta ilha.
Ellie elevou a vista ao céu.
—É impossível. Bem, faça como quiser. Abra um canal. Terá a dez mulheres fazendo fila para lhe atender da cabeça aos pés.
Erik negou com a cabeça.
—Sabia que tinha se incomodado. Disse-lhe isso, eu não sabia que apareceria por ali.
A passada noite Meg tinha preparado uma cesta com comida para que Ellie a levasse ao acampamento de Falcão. Acabava de chegar quando apareceram outras três mulheres na cova com a mesma ideia.
—Não estava molesta. Estive encantada de poder voltar para meu jogo com Thomas.
«Mentirosa.» Depois daquele divertido dia explorando algumas das covas ao sul da baía, onde ele tinha mencionado aquela suposta cova submarina, experimentou uma decepção maiúscula. E depois, algo que ia muito além disso, quando uma das mulheres, uma loira formosa e exuberante, deu-lhe um intenso e longo beijo como saudação. O fato de ele não o devolver não fazia que fosse diferente. Tampouco a tinha rechaçado.
Ellie partiu dali assim que pôde. O ardor que sentia no peito era um sério aviso de que embora o estivesse passando fenomenal aquilo somente era temporário. Não significava nada especial. Não podia esquecer-se disso.
Quantas vezes tinha visto sua mãe tentando ocultar seu desgosto quando seu marido punha seus olhos em outra mulher? «Não pode evitá-lo — dizia então sua mãe com fingido bom humor — Olhe quão formoso é. As mulheres o adoram.»
Possivelmente Ellie tinha captado a atenção do capitão por agora, mas aquilo não duraria muito. Suspeitava que aqueles avanços somente estavam impulsionados pela novidade que supunha o rechaço. Ele era competitivo e ela supunha uma provocação. Se tivesse sido menos esperta, teria caído rendida a seus pés como teria feito qualquer outra mulher. Mas havia uma parte dela que se perguntava se não era possível que estivesse sendo muito cética, se não seria possível que também ele sentisse essa conexão.
—Parece que o moço e você têm muito em comum — disse Falcão.
—É certo — concedeu enquanto se perguntava pela expressão de dureza que adotava seu rosto. Thomas e ela compartilhavam muitos interesses: o xadrez, o gamão, a poesia, a falcoaria. Estava convencida que se tratava de alguém da nobreza. Mas Thomas fugia de suas perguntas com quase a mesma maestria que demonstrava o capitão — Não gosta que o chamem de «moço». Thomas já é um homem.
—Sério?
Havia algo glacial em sua voz que lhe provocou calafrios. Olhou-a meio de lado antes de jogar outra pedra ao mar. Falcão fez um gesto de dor e ela se voltou para ele completamente preocupada.
—O que acontece? Dói-lhe?
Lhe dedicou um sorriso incorrigível.
—Não, somente queria ver se se importava.
Ellie meneou a cabeça. Era um homem totalmente impossível. Mas já não lhe incomodava. Embora nem por isso deixaria que ele soubesse.
—Volte a fazê-lo e não terá que fingir.
Erik simplesmente sorriu, talvez com muita complacência para seu gosto.
—Não têm curiosidade pela surpresa?
—Do que me serve ter curiosidade se souber que não me dirá isso por mais que lhe pergunte?
—Existe outras formas de persuadir, Ellie.
Havia algo em sua voz que fez que lhe ardesse a pele e seus joelhos se voltassem de gelatina. Aquela estranha e crepitante tensão que havia entre ambos se fazia cada vez mais e mais difícil de resistir. Simplesmente estar ali, tão perto dele, convertia-se em uma experiência quase insuportável. A tentava com os olhos e a seduzia com sua proximidade. Tocá-lo era muito fácil. Era muito fácil deitar sobre ele e pressionar a palma da mão contra aquele peito de firmeza impossível, com esses contornos e linhas que tão vividamente retinha em sua memória, e sentir o calor que irradiava sob as pontas de seus dedos. Queria voltar a provar sua boca, sentir como se deslizava sobre a sua. E por que tinha que resistir? Era ele quem a estava empurrando. Todas as demais o faziam.
Mas esse era precisamente o problema. Ellie não queria ser como as demais, e com um homem como ele não poderia aspirar a ser outra coisa. Embora em ocasiões se perguntasse se… Mas se conteve. Desvelar aquele condicional era tão perigoso que não podia permitir fazê-lo. Por que pensava nisso sequer? Gostasse de estar ou não, o certo era que se comprometeu. Ignorou seu convite e disse: —Quando têm planejado me mostrar essa surpresa?
—Dentro de umas horas — respondeu ele assinalando para o brumoso céu que nos últimos dias se mostrou inusualmente limpo para um mês de fevereiro — Parece que fará sol todo o dia.
Tinha razão. E mais tarde, quando descobriu no que consistia a surpresa, agradeceu que assim fosse.
Ali estava, completamente pega a ele, apesar de suas intenções de não tocá-lo, contemplando da abrupta ladeira como rompiam as ondas sob uns penhascos de apenas pouco mais de seis metros.
—Está de brincadeira. Esta é a surpresa?
Erik sorriu ao tempo que negava com a cabeça.
—A surpresa vem depois e não é nenhuma brincadeira.
Apesar que o dia fosse relativamente quente, Ellie tremeu de frio.
—Estamos em pleno inverno.
—A água fria não lhe arredou o outro dia.
Ellie soltou uma gargalhada e contemplou a balsa de cor azul marinha que tinha ante si. Era difícil acreditar que tão somente tivessem passado nove dias da Candelaria.
—E olhe aonde me levou isso. Por não falar de que necessitei dois dias para entrar em calor.
Ele sorriu.
—Desta vez não lhe custará tanto. Prometo isso.
Houve algo na forma em que o disse que fez que lhe picasse a curiosidade. Olhou-o de maneira inquisitiva, mas ele continuou com seu imperturbável olhar de cumplicidade.
«Irresistível», pensou Ellie. Quase.
—Vamos, Ellie. Você adora nadar — disse. Como podia saber? — Seguro que você adora. Nada como uma sereia.
Suas bochechas se acaloraram. Aquele elogio a satisfazia muito. Sobre tudo vindo do melhor nadador que tinha visto.
Falcão se desprendeu de suas armas, colocou-as sob uma rocha em que não seria visível pelo caminho, e começou a despojar-se de suas roupas, as atirando ao chão descuidadamente. Ellie estava tão petrificada que sequer sentia a necessidade de dobrá-las por ele.
—Onde está seu sentido de aventura?
Não podia elaborar uma resposta. O pulso pulsava muito rápido enquanto observava como ia tirando cada uma de suas capas. Aquele homem não tinha vergonha alguma. Por que teria que ter com um corpo que era como uma arma afiada pronta para a guerra? Erik se dispôs a tirar a singela vestimenta que levava sob o cotun; Ellie era consciente que o seguinte seria seus calções de linho.
—Não! —gritou em um arrebatamento de terror de donzela, guiada também por seu inato sentido de sobrevivência.
Falcão esboçou um sorriso e ela se deu conta que somente a estava provando. «Incorrigível.» Mas ao menos não se via obrigada a conter-se ante seu peito nu… e demais.
Erik soltou uma gargalhada, e o som aveludado de sua voz reverberou entre seus ossos.
—Como quiser — disse se encolhendo de ombros — Se tiver medo, pode ficar olhando.
Olhou-o com aborrecimento.
—Não tenho nenhum…
«Desgraçado!» Já não estava ali. Jogou-se do penhasco fazendo o salto do anjo e se inundou na água com a graça natural de alguém que leva toda a vida se atirando das rochas ao mar, como indubitavelmente era o caso.
Ellie permaneceu ali uns minutos dando golpezinhos com os pés, olhando o mar e o céu, distraindo-se com qualquer coisa para não olhar ao homem que nadava abaixo dela. Como sempre, havia um fluxo contínuo de navios patrulhando as rotas marinhas, e um bom número deles pareciam ser galeões ingleses. Era algo ao que tinha chegado a acostumar-se durante suas excursões pela ilha. Mas parecia haver um número maior que o habitual. Sentiu uma pontada de apreensão ao se perguntar o que seria que estava acontecendo. Havia ocasiões nas que lhe custava muito recordar que existia um mundo além dos limites daquela ilha. Dirigiu seu olhar para a espada que Erik tinha escondido entre as rochas a seus pés. Enquanto entreabria os olhos para proteger do resplendor que desprendia, precaveu-se de que tinha uma inscrição no punho. Tirou a espada para poder lê-la, sabedora que era costume dos guerreiros inscrever algo significativo nelas: «Dìleas an còmhnaidh» («Sempre fiel»). Ficou pensando. Aquela era uma estranha lenda para um pirata mulherengo. Tinha esperado algo mais parecido a «decapitadora» ou «sanguinária».
Ouviu um mergulho de cabeça e voltou a olhar abaixo. O muito canalha parecia estar passando o melhor momento de sua vida. Ellie se conteve uns cinco minutos como muito.
Murmurou vários dos insultos favoritos de seus irmãos, tirou a manta que levava aos ombros, seus sapatos emprestados, as meias e o vestido, dobrou tudo e o amontoou sobre uma rocha.
Tão somente vestida com a camisola com que tinha chegado, aproximou-se dos penhascos até que os dedos de seus pés alcançaram a borda. Deu-lhe calafrios e não só pelas rajadas de vento. Seu coração revoava como as asas de uma mariposa. Esperava que fosse como montar a cavalo, porque fazia ao menos cinco anos que não se lançava ao mar das rochas. Fechou os olhos, aspirou uma boa baforada de ar e se atirou. Por um momento sentiu que planava sobre o mar. O ar sustentou seu leve corpo durante um longo instante antes de atravessá-lo com uma forte rajada de vento enquanto mergulhava para a água. Arqueou as costas, dobrou os joelhos e as pegou ao peito fazendo um novelo antes de inclinar-se para frente, ao tempo que seu corpo se esticava para mergulhar ao chegar à água.
A comoção do frio lhe impregnou até os ossos. Mergulhou uns quantos pés e logo ascendeu e saiu à superfície de maneira abrupta. Antes que pudesse retomar o fôlego, já o tinha a seu lado. Sorriu com vontade pela excitação, embora se surpreendeu ao ver a fera expressão que se desenhava no rosto de Erik. Voltava a ter esse aterrador aspecto viking, mas nesse momento, com a cara jorrando de água e os cabelos para trás, lhe via algo mais pálido.
—Por todos os diabos, no que estava pensando? Supõe-se que tinha que saltar. Podia ter quebrado o pescoço, maldita seja!
Ellie se partiu na risada, algo que, ao que parecia, não fez a não ser enfurecê-lo mais.
—Foi divertido. Fazia anos que não me atirava de cabeça. —Olhou-o com desaprovação — E devo insistir que deixe de amaldiçoar na minha presença.
Antes de mergulhar para escapar de suas garras por muito pouco, teve ocasião de ouvir a enxurrada de imprecações que ele soltou. Mas era impossível pretender nadar mais rápido que ele, assim que sua fuga durou pouco. Erik passou um braço pela cintura e a atraiu para a superfície junto a ele. Ellie se sentia como se a pegassem contra um muro de pedra enorme. Um muro de pedra com montões e montões de músculos duros como as rochas. Nem se incomodou em tentar escapar; lutar resultava inútil. Era muito consciente do poder daquele corpo que se pegava ao seu de maneira tão íntima. As pernas enredadas e os seios esmagados contra seu torso… Era simplesmente perfeito.
Ele a olhou diretamente aos olhos com uma força que revelava toda a potência de um furacão. Essa era a razão pela que o desejava tanto as mulheres. As fazia sentir como se fossem a pessoa mais importante do mundo. A única pessoa do mundo.
—Acredito que já se divertiu suficiente por hoje — disse ele em voz baixa e rouca.
—Onde está seu sentido de aventura? —não pôde reprimir lhe devolver.
—Ali atrás, onde ficou meu coração, depois que se atirasse de tal forma —disse secamente.
Ela esteve a ponto de lhe responder, mas o viu tão zangado que decidiu não tentar à sorte rindo dele de novo. Não, estando tão perto. Não, quando estava tão segura do que desataria sua provocação. Desejava-a. Podia sentir a rigidez em seu próprio estômago e isso a fazia atuar com cautela. Sua sensatez lutava com as sacudidas não muito discretas que convulsionavam seu corpo. Não, não existia tal luta. Em realidade não.
Ele ficou olhando-a com o gesto torcido e cara de lhe perdoar a vida. Ellie se sobressaltou ao ver que as arrudas pontas de seus dedos acariciavam sua bochecha. Juraria que seus olhos estavam cheios de ternura. Ele tentou recolocar uma de suas molhadas mechas de cabelo atrás de sua orelha, e ela, ao não saber o que pretendia, ficou sem respiração. Seu polegar se atrasou durante um instante de agonia no que margeou o perfil de seu queixo. O coração estava a ponto de sair do peito. Ele devia sentir, tinha que ser consciente do que provocava nela. É obvio que sabia. Fazia isso milhares de vezes. Mas por que a olhava de maneira tão intensa, tão tenra, como se tratasse de alguém especial.
Não, ela não era especial, por mais que ele a fizesse sentir desse modo. Isso o fazia com todas. Não significava nada absolutamente. Mas aquele olhar…
Desejar desesperadamente aquilo que não devia era algo que a deixava totalmente confundida. Os olhos dele procuraram nos dela como se tentassem encontrar resposta a uma pergunta que tinha ficado no ar. Sentiu como seu braço se estreitava a seu redor ao tempo que a aproximava mais para ele. Ellie sabia que ia beijá-la e não o deteve. Queria sentir aqueles lábios sobre os seus, comprovar se a sensação era tão incrível como recordava. E o era.
Sentiu-se bem. Como se assim devesse ser. Como se sua boca tivesse sido concebida para tal fim: unir-se a dele. Seus lábios eram quentes, da finura da seda, e se juntaram com os seus numa suave e tenra carícia, ficando ali durante um longo instante antes de voltar a afastar-se. Aquela brevidade era a razão de seu devastador poder. Ellie desejava muito mais. Provar não tinha feito a não ser lhe recordar a paixão desatada entre eles. Uma paixão que estava enrolada, tensa, disposta a sair disparada. Depois daquela repentina separação, seu coração deu um tombo. Seu corpo ansiava esse contato. Mas agora já tinha passado.
—Por que fez isso? —balbuciou.
Erik agitou a cabeça, divertido.
—É que tudo tem que ter uma razão?
Sua resposta foi automática:
—Sim.
Erik riu com vontade.
—Não pode relaxar e desfrutar do momento, fazer algo simplesmente porque gosta?
A paixão pela paixão? O desejo pelo desejo? Tratava-se de uma ideia completamente estranha para ela, um anátema para sua posição e suas responsabilidades. Pois claro que não podia. Ou sim?
—Venha — disse — Acredito que será melhor que lhe mostre essa surpresa. Vejamos a rapidez que sabe nadar. Façamos uma corrida até a borda.
—Isso não será uma corrida — disse ela tentando ainda pôr em ordem seus confusos pensamentos — Vi como nada.
Erik fez uma careta.
—Dar-lhe-ei a vantagem.
Mesmo assim ganhou. Ellie subiu até a borda junto a ele, tiritando e exausta pelo esforço da corrida. O tênue calor do sol de inverno mal podia filtrar-se por seus rígidos membros. Abraçou a si mesma e esfregou a pele tentando voltar a si.
—A próxima vez, em lugar de me dar vantagem, terei que insistir em que não use as pernas.
Erik riu e ela teve a sensação de que mesmo assim ganharia.
—Nada rápido — disse — Para ser uma…
—Não o diga — advertiu ameaçadoramente, embora todo o efeito ficou diluído com sua tremedeira — Meus irmãos aprenderam rápido a não cometer esse engano. Posse não ser mais que uma moça, mas posso ter muita criatividade no que toca à vingança.
Examinou-a com o olhar. Seus olhos pousaram sobre sua pouco protegida silhueta de tal maneira que fez que o gelado sangue dela se esquentasse e que sua franzida pele ficasse em tensão. Sob sua empapada camisola, seus mamilos se endureceram.
—Não o ponho em dúvida — disse.
Agarrou-a pela mão de improviso e se dirigiu de novo aos penhascos com ela.
—Podemos saltar outra vez? —perguntou.
—Diabos. —Teve que conter-se — Não. Não quer ver a surpresa?
Olhou a seu redor.
—Onde está?
—Justo diante de seu nariz.
Deu uma olhada a seu redor e, ao princípio, somente viu a larga extensão de areia da praia que entrava para a verde ladeira a um lado e ao outro o abrupto pendente de penhascos. Então reparou nela. A uns vinte metros da borda do mar, encaixada entre a colina e os penhascos, havia uma pequena construção. A não ser pela estreita porta de madeira e a esteira de fumaça que surgia da parte superior era virtualmente impossível vê-la a primeira vista. Muito pequena para ser uma casa, suas paredes e teto de pedra se fundiam perfeitamente com a paisagem.
—O que é? —perguntou.
—Prometi-lhe que não teria frio, não é certo? Isto é o que meus ancestrais estavam acostumados a fazer depois de tomar um banho no inverno.
A excitação fez que Ellie abrisse os olhos de par em par.
—Uma sauna?
Assentiu, surpreso que adivinhasse tão facilmente.
—Tinha visto uma antes?
—Não — disse negando com a cabeça — Mas sempre quis fazê-lo.
Ellie se apressou a alcançá-lo, tentando não fixar-se em como o linho de sua úmida vestimenta e seus calções se pegavam a seu prodigioso corpo, nem na maneira em que os músculos de suas pernas se esticavam ao caminhar.
Falcão abriu a porta, e a onda de calor a golpeou como o martelo de um ferreiro.
—Se apresse — disse animando-a a que entrasse — Não deixe que escape o ar.
Ele se resguardou sob o marco da porta e Ellie seguiu imediatamente seus passos. O calor era assustador. Sufocante. Parecia como estar dentro de uma fogueira. Ao princípio lhe custava respirar. O vapor enchia seus pulmões de um ar denso e úmido. Mas sua pele gelada se alagou ao momento de um calor que a empapava e lhe provocava formigamentos. Depois da brilhante luz do sol, seus olhos demoraram um momento em acostumar-se à penumbra. Olhou ao redor daquela pequena habitação. Parecia uma cova redonda de barro. O teto era baixo, menos de dois metros, conforme imaginou, já que Falcão tinha que abaixar a cabeça, e as paredes não mediam mais de três. O solo parecia estar feito com grandes pedras planas, mas o resto parecia escavado na própria rocha. Havia um forno de pedra a sua esquerda que se elevava nas alturas sobre um montão de rochas. Justo frente a este, ao outro lado da porta, havia uns bancos de pedra construídos na parede. Um estava a uma altura normal para sentar-se e o outro um pouco mais acima. Junto à porta, descansavam vários baldes de água.
—Para que são? —perguntou.
—Que impaciente. Supõe-se que terá que esperar até o final, mas posso lhe mostrar isso agora se quiser. —Ellie assentiu com a cabeça — Fique aí. —Conduziu-a até o centro do chão de pedra aonde parecia haver uma pequena abertura. —Feche os olhos.
—Por quê?
—Quer que lhe mostre isso ou não?
Ellie fez uma careta e fechou os olhos. Sentia sua presença atrás dela e todos seus sentidos se ativaram ante o alerta, perguntando-se o que se dispunha a fazer. Uma parte dela albergava certa esperança.
—Preparada? —perguntou.
Pôde notar a risada que se escondia atrás de suas palavras e começou a suspeitar… Mas já era muito tarde. Instantes depois, um balde de água fria caía sobre sua cabeça.
Ficou ali paralisada pela comoção, permitindo que a água escorregasse por seu corpo. Estava claro que aquela pequena abertura a seus pés era um deságue. Ouviu como Erik se partia de risada depois da cortina de água.
—Sinto-o — disse — Não pude resistir.
Ellie afastou o cabelo do rosto, o jogou para trás e começou a balbuciar com fúria, o qual não fez a não ser fazer Erik rir com mais ganha. Ao dar-se conta do aspecto ridículo que devia ter, o gesto de seu rosto mudou e não pôde evitar rir com ele. Agora que a impressão lhe tinha passado, dava-se conta de quão refrescante tinha sido a água. E o seria ainda mais, teve que supor, após um bom tempo sentada nesse calor. Escorreu o cabelo e sacudiu sua camisola. Ao menos já não lhe dava a sensação de ter todo o cabelo e o corpo cheios de sal.
Olhou o outro balde.
—Posso? —perguntou.
—Todo seu — disse ele com um sorriso.
Era mais pesado do que parecia e necessitou ajuda para passá-lo por cima de sua cabeça, mas instantes depois uma enchente de água fria jorrava sobre o corpo dele como a melhor cascata na primavera. Erik sacudiu a cabeça e a orvalhou de água para depois tornar o cabelo para trás. A beleza de seu rosto era impressionante, inclusive empapado de água.
—Ah, que bem me veio. Sente-se — disse assinalando o mais baixo dos dois bancos que havia na parede de barro — Em uns minutos desejará jogar outro balde.
Tinha razão. Sua pele já estava seca, embora o cabelo e a camisola ainda se achavam úmidos. Fez o que lhe havia dito e se sentou no banco sem surpreender-se de que ele se sentasse junto a ela. Aquilo relaxava tanto que resultava estranho. Estar sentada ali junto a ele em um silêncio cômodo, desfrutando daquele reparador calor. Quando o ambiente começou a estar muito quente, jogou uma jarra de água sobre as rochas e a habitação se encheu com um maravilhoso vapor frio. Sob o peso de seu cabelo, acumulava-se a umidade. Fez um nó com ele, se o recolocou atrás da cabeça e a apoiou contra o segundo banco. Podia chegar a ficar adormecida assim. Suspirou de puro deleite.
—Isto é o céu. Poderia ficar aqui toda a vida.
Erik riu.
—As rochas se esfriarão logo. Mas ainda ficam umas horas.
Abriu os olhos, alarmada pelo tom de sua voz.
—Não o diz a sério — disse.
Lhe dirigiu um olhar que a derreteu por completo; um olhar que falava com claridade de como gostaria de passar as horas seguintes.
—Eu sim.
Seguiu olhando-a e ela sentiu um estranho estremecimento que enviou um comichão por todo seu corpo.
—Me trouxe aqui para me seduzir?
A ele parecia se divertir com sua franqueza.
—Quer que o faça?
—Não — disse negando com a cabeça com mais firmeza do que sentia — Não posso.
Aquele brilho de diversão dos olhos dele foi substituído por algo diferente. Uma determinação de ferro. Ellie teve a horrível sensação que a dança de sedução dos últimos dias tinha acabado.
Falcão não fez movimento algum. Seguia recostado com a cabeça apoiada contra o banco, aparentemente de tudo depravado. Então por que dava a impressão que era uma serpente recolhida disposta para o bote? Erik se inclinou sobre ela e lhe pareceu que seu coração sairia pela boca.
—Por que não? Não sente curiosidade, Ellie?
Ela negou com a cabeça. Tinha todo o aspecto daquele depredador do qual recebia o nome, e Ellie se sentia como uma suculenta lebre.
Os olhos de Erik passearam por todo seu corpo e se detiveram nos seios. Sob o peso desse intenso olhar, seus mamilos se endureceram. Intuía-se o perigo na escuridão de seu olhar. Sabia o que estava a ponto de ocorrer, mas Ellie era incapaz inclusive de respirar; não podia fazer nada salvo esperar. Erik esticou o braço e, com o mais delicado dos tatos, acariciou o dela com o dorso da mão. No interior daqueles pulmões que pareciam haver-se esquecido de respirar soou o assobio de um fôlego. O coração dela pulsava fortemente, e assim que aquele dedo riscou a curva de seus quadris e de sua cintura, até chegar a suave ondulação de seus seios, despertaram todos seus sentidos.
«OH, Deus.» Seu corpo todo tremia, antecipando-se à sensação. Liberava seu fôlego em pequenos e profundos ofegos. A fina camisola de linho deixava passar o calor de sua mão. Tão perto. Até que ele, finalmente, tocou o lugar que ela queria e rodeou a protuberante ponta de seu mamilo com a rugosa gema de seu dedo, fazendo-a gemer e estremecer de prazer.
—Posso lhe dar prazer, tè bheag. Mais prazer do que jamais sonhou.
Já o estava sentindo. Suas coxas se contraíam ante o formigamento, a umidade, a pesadez que sentia nos seios e seus mamilos eretos, ante o prazer de sua enorme mão. Aquele sedutor tato tão leve era uma autêntica loucura. O desejo lambia seu corpo com chamas de calor líquido. Estava excitada. Inquieta. Desejava-o. Cada uma de suas terminações nervosas clamava ao céu pelo prazer que lhe prometia. Queria que aquelas mãos invadissem todo seu corpo, que a agarrassem, tocassem-na e a marcassem com sua paixão. Queria ceder à tentação.
O prazer pelo prazer. Nada mais. Acaso não podia esquecer-se de todo o resto e desfrutar da experiência? Isso é o que ele inspirava. Fazia que as mulheres sucumbissem ao prazer. Mas ela não era como as demais. Era muito sensata para deixar-se levar daquele modo.
Falcão deve ter intuído dessa luta interior. Rodeou seu seio com uma mão e brincou com ele, apertando levemente enquanto beliscava o mamilo entre os dedos.
—Deixe que lhe mostre isso, Ellie. Permita desfrutar do prazer que lhe ofereço. Somente uma pequena amostra — disse — Me deterei quando quiser que o faça —acrescentou olhando-a nos olhos.
Não sabia por que, mas confiava nele. Ou talvez fosse que tinha tanta vontade daquilo que oferecia que teria acreditado algo.
Ellie tomou sua decisão. Por uma vez não queria ter que pensar. Não havia nenhum perigo que lhe rompesse o coração. Era muito inteligente para deixar que suas emoções tomassem parte nisso. Tinha a oportunidade de provar a paixão, algo que sabia que não poderia encontrar em sua cama matrimonial. Talvez estivesse mau. Um pecado aos olhos de Deus. Mas jurou ser virtuosa pelo que ficava de vida em troca de ter esse momento. Tudo aquilo acabaria muito em breve. Aqueles idílios dias logo ficariam no esquecimento. Voltaria para casa junto a seu pai e se casaria com Ralph, tal e como era sua obrigação. Mas nesse momento desejava fazer aquilo. Nesse momento desejava Falcão.
A espera se converteu em uma tortura. Esses pequenos ofegos que Ellie emitia estavam voltando-o louco. Podia sentir como sua paixão lutava por sair à superfície, disposta a liberar-se. Santo Cristo, estava virtualmente tiritando sob seus dedos. Rodeou aquele sumo com sua mão com uma respiração entrecortada e profunda, beliscando seu pequeno mamilo até pô-lo completamente ereto, sentindo a necessidade de tê-lo em sua boca e roçá-lo com a língua enquanto o mordiscava e chupava. Tinha uma ereção de cavalo. Os últimos dias já tinham sido o suficiente duros estando tão perto dela, tocando-a, cheirando sua fragrância, observando-a germinar como uma flor ante o sol. Mas, Por Deus bendito, vê-la na sauna tinha levado sua luxúria a lugares inimagináveis. Não podia pensar em nada mais erótico que ela descansando sobre esse banco. Contemplando-a ali, com os olhos fechados, as bochechas ruborizadas e suas mechas de cabelo molhados, parecia uma mulher que acabasse de ser violada até não poder mais. Não podia resistir à tentação. Sua paciência, a qual teria que reconhecer que nunca tinha sido muita, tinha chegado ao limite. Desejava-a, do mesmo modo que ela desejava a ele. Por que se empenhava tanto em opor resistência? Não estava acostumado que o rechaçassem, mas Ellie o fazia constantemente. A chama de desejo que se acendia entre um e outro estava fora de controle. Mal podia pensar em outra coisa. Inclusive sua missão, apesar de somente ficarem dias para o ataque, parecia ter ficado em um segundo plano. Talvez fosse essa urgência que o empurrava, a consciência de que logo acabaria seu tempo com ela. Erik sabia que a incomum intensidade daquele desejo se devia às circunstâncias. Não estava acostumado a passar tanto tempo com uma mulher que o atraía sem dar rédea solta a essa atração. Não estava acostumado que lhe negassem o que desejava. E entretanto, surpreendia-lhe quão bem tinha passado junto a ela. Não tinha estado tanto tempo sem deitar com uma mulher desde o treinamento que tinha recebido em Skye para a Guarda dos Highlanders. Mas então não foi algo voluntário, a não ser uma mera consequência da falta de oportunidades. Assombrou-lhe um tanto precaver-se que a causa de sua abstinência nesta ocasião tinha sido outra. Contava com oportunidades mais que suficientes para aliviar essa tensão. Por que não o tinha feito? Porque só queria a ela.
Rechaçou aquela incômoda apreciação antes que chegasse a tomar forma. Não podia ser essa a causa. Gostava da moça, inclusive a admirava, mas não era diferente a nenhuma outra. Talvez um pouco mais mandona. Podia ser mais inteligente, que se mostrasse menos inclinada a acreditar em tudo que saísse de sua boca. E decididamente lhe resultava mais frustrante. Mas não mais especial que qualquer outra mulher que tivesse querido levar a cama. Assim que liberasse algo dessa tensão, as águas voltariam a seu leito. Manteve seu olhar durante o que pareceu uma eternidade, mas tão somente foram uns segundos. Quando ela assentiu, uma rajada de pura satisfação masculina surgiu em seu interior. Já se dispunha a tomá-la entre seus braços quando ela o deteve.
—Espere. —ficou paralisado. «Por favor que não mude de opinião.» — Não me tirará…
Dava-lhe muita vergonha continuar a frase, mas ele adivinhou o que pensava. Não pôde evitar divertir-se com isso. Parecia estar preocupada de que não fosse capaz de controlar-se. A ideia que a luxúria pudesse ganhar a partida dele, e especialmente com uma virgem sem experiência, era tão ridícula que o fez sorrir.
—Seguirá sendo virgem — lhe prometeu. Sua virtude ficaria intacta para seu marido.
Entrecerrou os olhos com suspicácia. Seria essa a razão de que resistisse? Tinha a alguém em mente? Sentiu um arrebatamento de cólera ao precaver-se do pouco que sabia dela. Teve a tentação de perguntar, mas era consciente de que aquilo não era assunto dele. Embora isso não significava que não fosse pôr todo seu empenho em apagar qualquer homem de sua cabeça. Não podia esperar mais para fazê-la gemer. Que gemesse por ele. Somente por ele. Inclinou-se sobre ela para beijá-la de novo, e quando lhe passou as mãos pelo pescoço e se entregou a ele, seu peito se encheu de satisfação. Ao fim.
Capítulo 14
Ellie sentiu como se algo explodisse em seu interior quando o rodeou com seus braços e notou o roçar dos lábios de Falcão sobre sua boca. Todos aqueles sentimentos, paixão e desejo reprimidos até o momento saíram desprendidos em uma onda de calor e emoção. Toda dúvida ficou resolvida ao momento. Desejava fazer isso. Desejava o Falcão. Mais do que jamais tinha desejado nada na vida. Os remorsos podiam esperar. No momento se sentia muito bem. O sentia muito bem.
Jamais esqueceria a suavidade daqueles lábios, o quente aroma de seu fôlego, a incrível firmeza de seu corpo, o calor que desprendia sua pele. Desejava inundar-se em seu interior e não deixá-lo partir. Teria gostado de pensar que aquilo duraria para sempre, de que não teria que viver o resto de sua vida com a lembrança desse primeiro beijo.
Seus lábios, amáveis mas insistentes, reclamavam com urgência a resposta que ela morria por oferecer. Respondeu a seu beijo com todo o ardor da paixão inocente que bulia em seu interior desde que a beijou a primeira vez. Entretanto, ele parecia contente de poder tomar seu tempo, de arrastar cada um de seus roces, cada uma de suas carícias, ao fazer que se voltasse louca imaginando o seguinte passo. Ele tinha prometido prazer e o estava dando. Mas não com a rapidez que ela queria. Ellie era consciente de que ele tinha feito isso antes, sem dúvida, mais vezes do que gostaria de saber. O controle e a deliberação de seus atos faziam que não esquecesse essa realidade, mas queria provar sua paixão, como seria sentir seu desejo por ela plenamente, saber que não estava sozinha naquela loucura que a embargava.
Ellie estava recostada no assento com o corpo de Falcão inclinado sobre ela, mas aquilo não era suficiente. Morria por ter um contato mais direto. Precisava sentir o peso de seu corpo grande e duro contra o dela. O puxou para aproximá-lo mais em uma tentativa de satisfazer seus desejos de modo tácito, mas somente conseguiu que ele elevasse a cabeça e risse.
—Paciência, té bheag. Quero que goze ao máximo.
Mas acaso era tolo ou o que?
—Já é…
—Nada de intromissões, Ellie — disse pondo um dedo em seus lábios — Quer que me detenha ou deixará que faça isto a meu modo?
Passou por sua cabeça pô-lo a prova, ao fim e ao cabo não era ela quão única ofegava, mas decidiu não arriscar-se. Agora que aquela dança diabólica tinha começado já não queria parar até alcançar o grau máximo de satisfação, de modo que assentiu.
—Boa garota — disse ele pondo a boca no lugar que estava o dedo.
Aquilo de torturá-la com cada uma dessas lentas e deliberadas carícias para que ela morresse de vontade para que continuasse somente podia fazê-lo um homem desumano. Quando por fim a obrigou a abrir os lábios e sentiu a deliciosa calidez de sua língua movendo-se no interior de sua boca, gemeu de alívio. Embora já não fosse uma surpresa, a sensação era suficientemente nova para lhe provocar calafrios. Sentia como se todo seu corpo se partisse em dois. Mas agora estava preparada para responder. Sua língua rodeou a dele e seus esforços se viram recompensados com um profundo rugido masculino que reverberou até as pontas de seus pés. Aquilo supôs todo o ânimo que necessitava. Ao notar que Falcão perdia o controle, derramou nesse beijo com todas suas energias. E funcionou. Com cada uma de suas voluptuosas carícias, os beijos dele se voltavam mais exigentes, mais provocadores, mais profundos, mais úmidos.
Ellie estava muito excitada. O ar úmido e quente da sauna enfurecia seus sentidos. Todas as sensações eram intensas e seu corpo se mostrava ansioso, sensível, sufocado de calor. Seus mamilos, duros e agudos, morriam para que ele os tocasse, já fosse com a mão ou sentindo a pressão de seu peito. O suave montículo entre suas pernas estava muito úmido, vibrante e palpitante de desejo. Não sabia o que cabia esperar.
Colocou os dedos sob sua regata com desespero e advertiu como suas carícias provocavam que toda aquela firme extensão de músculos se esticasse sob o molhado linho. Tinha tão fresca a lembrança de seu peito nu que lhe dava vontade de romper a regata para tocar sua cálida pele, de moldar aqueles largos ombros com as palmas de suas mãos, passá-las sobre os redondos músculos de seus braços, as rochas planas de suas costas e seu abdômen. Seria possível que sentisse ele essa ansiedade?
A língua de Falcão desceu por sua bochecha para aproveitar o pescoço e atrasar-se na sensível curva de seu ombro. Quando se dispôs a soltar os cordões da camisola, Ellie sentiu pulsar seu coração com tal violência que mal podia controlar a respiração. O tórrido ar roçou levemente seu seio nu antes que a mão dele o cobrisse por completo. O contato daquela arruda e calosa mão, que sustentava seu seio e trabalhava laboriosamente com os dedos sobre o mamilo até pô-los completamente eretos, a fez ofegar de puro prazer.
«Deus, é preciosa.» Ellie o olhou com os olhos entrecerrados e sentiu uma vergonha enorme ao precaver-se de que estava observando seus seios como se jamais tivesse visto nada igual, como se esses pequenos montículos de carne pudessem comparar-se de alguma forma a aqueles outros de proporções muito mais generosas. «Têm os mamilos tão pequenos e rosados… —disse roçando um deles com o dedo simplesmente para enfatizar sua apreciação — Acredito que são os mamilos mais doces que jamais vi.»
Sua pele se arrepiou ao perceber sobre o corpo o quente fôlego de uma boca da que a separavam escassos centímetros. Bastou que a roçasse com a língua para que ofegasse pela impressão. Quando Falcão a olhou nos olhos justo antes de cobri-la com seus beijos, Ellie advertiu um matiz de escuridão em seu olhar que não soube interpretar. Seu corpo se viu invadido por lascas quentes de prazer. Arqueou-se sobre sua boca intuitivamente e afundou os dedos entre a suavidade de seus cabelos para agarrá-lo pela nuca, ansiosa por que apertasse com mais força. Falcão meteu o mamilo na boca e o mordeu entre seus dentes com a fricção justa para fazê-la gritar de prazer.
Deus, aquilo era incrível. Parecia que lhe estivesse tirando algo das vísceras. E por cada endiabrada sensação que aquela boca provocava em seu seio, havia uma resposta no tenro lugar que se escondia entre suas pernas: uma palpitação, um calor, uma urgência.
Falcão emitiu um brusco gemido do mais profundo de sua garganta e moveu o corpo de Ellie com delicadeza para introduzir a mão pela borda da camisola que penetrava entre suas pernas. O roce daqueles dedos em sua coxa fez que despertasse de seu confundido devaneio. Ficou em tensão, apertou com força as coxas e lhe agarrou a mão.
—Não. Não pode fazer isso.
Falcão levantou a cabeça e afastou a boca de seu seio com um sorriso.
—Se tranquilize, amor. Não há nada do que preocupar-se — disse olhando-a nos olhos — Só vou te tocar com os dedos. Você gostará.
Mas não era aquilo muito… íntimo?
Ellie mordeu o lábio e ele se aproximou dela para beijá-la.
—Confie em mim — sussurrou junto a sua boca.
Depois disto, beijou-a com tal força e insistência que Ellie se viu na necessidade de lhe deixar fazer. Lentamente suas pernas foram cedendo e ao pouco retirou a mão. Um momento depois soube quanta razão tinha. O primeiro roce de seus dedos a fez tremer. O segundo instou todo seu corpo a que pedisse mais. E o terceiro… o terceiro acabou com um dedo que se introduziu até o mais profundo e a fez gemer e pensar que via as portas do céu. Falcão afastou sua boca da dela e sentiu sua respiração entrecortada. «Deus, que molhada e suave está.» Pelo tom em que disse, Ellie supôs que aquilo seria algo bom. Ele seguia movendo o dedo em círculos, com a palma da mão apoiada contra seu montículo. O calor formava redemoinhos em seu interior e sentiu como se formava algo duro e de contornos definidos. Então ele começou a mover seu dedo com mais rapidez, a colocá-lo e tirá-lo, e ela não teve mais remédio que apertar-se mais contra ele.
Erik tinha dificuldade para controlar seu acelerado pulso. Se Ellie seguia mostrando-se assim receptiva, acabaria com ele. Quem podia imaginar que atrás dessa aparência puritana se escondia o coração arrebatador de uma sedutora nata? Tinha acertado ao pensar que essa mulher encerrava uma paixão natural em seu interior, mas o que não esperava era que se entregasse a ela com tanto entusiasmo, como se quisesse aproveitar o tempo perdido. Diabos, era algo que quase escapava das mãos. Era Ellie quem saía ganhando por estar à altura do desafio. Mas mesmo assim, custava-lhe Deus e ajuda recordar que não podia afundar-se dentro dela, especialmente quando à medida que seu dedo acariciava aquele pequeno inferno molhado, aproximava seus pequenos quadris à mão e aqueles pequenos seios que lhe faziam água na boca se bamboleavam tão perto de seu rosto.
Os seios de Ellie o tinham surpreendido enormemente. Começava a pensar que talvez se precipitou ao não oferecer mais atenção aos seios pequenos. O que lhe faltava em tamanho e peso o supriam melhor com sua forma. Essas duas colinas ebúrneas de pura nata batida eram a coisa mais deliciosa que jamais viu. Redondos e firmes, cabiam perfeitamente em sua mão, e esses pequenos mamilos hipnotizadores… Sua virilha rugia de calor. Aquelas preciosidades rosadas recordavam a dois bagos amadurecidos, perfeitas para mordiscar. E ao roçar com a língua, também seu sabor era igualmente doce.
Ellie gemia e se retorcia em suas mãos. «Precioso.» Falcão observava como o prazer subia pelo rosto dela e notava a sua vez uma estranha pressão no peito, uma ânsia insuportável por algo que jamais havia sentido antes. Aquela luxúria era de um tipo diferente. Era um sentimento mais importante. Significativo. Não queria simplesmente que gozasse, mas sim a desejava com uma ferocidade que atendia todo seu corpo.
«Cristo.» O suor se acumulava sobre suas sobrancelhas enquanto fazia o que podia por tomar-lhe com calma. Mas estava tão úmida e quente… e sua pele era tão suave e aveludada… Entre as reações desumanas de seu próprio corpo e os pequenos gritos de Ellie tinha a sensação que logo sofreria um ataque. Não era capaz de recordar a última vez que tinha desejado algo com tanto desespero. Tinha o membro tão duro e fazia tal pressão contra seu estômago que inclusive doía. O sangue se acumulava em suas orelhas. Talvez aquilo da sauna não tivesse sido tão boa ideia. O calor estava diminuindo seus sentidos. Dava a impressão que lhe ardia a pele. Tudo sentia com mais força, mais quente, mais intenso. E se via rodeado pela suave fragrância feminina de sua pele.
«Relaxe. Respira.»
Mas não servia de nada. Notava uma forte opressão no peito, e tinha os músculos em tensão. Mas que demônios estava ocorrendo? Aquilo não ia absolutamente da maneira em que ele tinha planejado. Queria tomar-lhe com calma, prolongar cada um dos momentos, cada uma das carícias, fazer que a primeira vez de Ellie fosse perfeita. E em lugar disso, parecia-lhe que suas mãos fossem dois trambolhos trementes. Seus movimentos eram irregulares e torpes, além de correr o perigo de manchar as meias como um molecote inexperiente. Sua reputação de amante habilidoso e paciente estava sofrendo um severo revés.
Ellie, por sua parte, gemia de maneira quase descontrolada, e sua respiração eram puros fôlegos ofegantes. «Por favor…» Aquele doce pedido de liberação despertou todo instinto masculino primário para fazê-la sua. Não podia pensar mais que em fazer farrapos suas roupas e unir seus corpos até que ambos escorregassem pelo suor, até que estivesse dentro dela investindo-a e os gritos de prazer ressonassem em seus ouvidos. Não poderia suportar aquilo durante muito tempo.
Ele sabia que lhe faltava pouco. Tão pouco que sequer resistiria ao que estava a ponto de fazer. Pouco importava o que ele estivesse sofrendo. Prometeu que faria disso uma experiência que ela jamais esqueceria. Ellie emitiu um sensual som de frustração quando notou que ele retirava a mão. Sentia como se tivesse ido em progressão ascendente para cotas extraordinárias para depois ver-se afastada no último momento.
—Não se preocupe, amor. Isto não fará mais que melhorar — disse com voz tensa e entrecortada — Preciso lhe saborear.
Os beijos estavam bem, pensou Ellie. Qualquer coisa para liberar o prazer que se escondia em seu interior. Erik a fez deitar-se com delicadeza no banco e ficou de joelhos. Lentamente, foi subindo a borda de sua camisola por cima de suas coxas. Inclinou a cabeça. Um raio de lucidez atravessou aquela bruma.
O coração de Ellie começou a bater contra seu peito. Todo seu corpo estremeceu pela comoção e algo que se parecia vergonhosamente à antecipação do prazer. Mas não, inclusive pensar nisso era algo diabólico. Não podia ser que fosse a…
Tentou fechar as pernas por instinto, mas já era muito tarde para isso. Lambeu-a, e o prazer foi tão intenso que toda objeção ficou dissolvida em uma piscina de puro calor líquido. Chegado este ponto, morreria de vergonha, se era preciso, antes que fazê-lo parar. Jamais tinha imaginado que uma sensação pudesse ser tão extraordinária. Falcão tinha as mãos sobre seus quadris e a agarrava firmemente.
—Abra os olhos, Ellie. —Ela fez o que pedia — Quero que observe como lhe dou prazer.
Olharam-se fixamente. Por que ver sua boca tão perto fazia que o desejasse com mais força? Por que a sensação era tão erótica e descamada? Tremia de desejo, morria de vontade. Jamais em sua vida havia se sentido tão vulnerável. Mas por algum motivo confiava que com ele tudo sairia bem.
Beijou-a com suavidade e ela se derreteu. Sua boca era tão plácida e cálida. Erik introduziu a língua em seu interior e a fez circular até que ela começou a mover os quadris por si mesma, até que Ellie pensou que morreria do prazer. O beijo se voltou mais violento e sua língua chegava mais e mais profundo. Em círculos, arremetendo com ela, sugando… E também usando os dedos. Seus quadris se erguiam para encontrar com sua boca. Estava justo ali. Podia sentir como se concentrava.
—OH, Deus! —gemeu.
Não podia detê-lo. A pressão seguia ascendendo.
—Isso, amor — murmurou ele — Goze por mim.
À medida que aquela tensa bola de sensações explodia em seu interior, toda ela se desfazia, sem poder parar de gritar. Pegou o corpo a sua boca e ali ficou até que o último dos espasmos de prazer emergiu de seu corpo. Pouco a pouco seu pulso foi tranquilizando-se e voltou para a consciência. Ele tinha se separado dela, mas seguia agarrando o tecido de sua camisola entre os dedos. Tinha a cabeça inclinada e mantinha o tipo com tal frieza que, se não fosse por sua dificultosa respiração, teria pensado que se tratava de um espírito.
—O que acontece?
Ellie pôs uma mão sobre seu ombro, ante o qual ele estremeceu. Elevou a vista e a olhou. Seu belo rosto estava compungido e tenso. Seus azuis olhos tinham um olhar triste. Parecia estar sofrendo indizivelmente.
—Nada — disse de modo brusco. Elevou os ombros ao tempo que respirou de maneira profunda e entrecortada. E depois de modo mais carinhoso acrescentou —: Se quer conservar sua virgindade, terá que me dar um minuto.
Quando por fim se deu conta de que lutava para conter-se, Ellie abriu os olhos, surpreendida.
—OH — disse sentando-se e recompondo a camisola. Erik não tinha satisfeito seu desejo de prazer. Funcionaria do mesmo modo para ele que para ela? Sentir-se-ia igual a ela quando ele tinha retirado a mão? mordeu o lábio — Há algo que possa… fazer?
Franziu o cenho e negou com a cabeça.
—Me ocuparei disso mais tarde.
Que se ocuparia disso? Como o faria? De repente se fez à ideia.
—Não! —Não queria que fosse com outra mulher — Por favor, quero fazê-lo. Me ensine como.
O coração de Erik se deteve. Não podia acreditar no que ouvia. Já lhe havia custado o suficiente controlar-se. Ver como gozava lhe tinha levado a tais cotas de desejo que a ponto esteve de perder a consciência. Tinha-o levado até o limite de seu controle, de onde não faltava mais que um ligeiro empurrãozinho para cair ao vazio. Aquela oferta era algo quase superior ao que qualquer um poderia suportar.
—Não sabe o que oferece — disse negando com a cabeça.
Por Deus bendito, se ainda era virgem!
Ellie pôs uma mão sobre seu joelho e fez que seu sangue fervesse mais e seus músculos ficassem rígidos. O suor lhe caía pelas sobrancelhas, e não era pela sauna.
—O que sei é que quero lhe dar prazer. —Suas bochechas se ruborizaram de uma maneira adorável — Quero lhe dar prazer como me deu —mordeu o lábio e o olhou com incerteza — É isso possível?
Lógico, se era possível! E de um bom número de maneiras.
Erik fechou os olhos e lutou por controlar-se, mas sabia que carecia das forças necessárias para discutir. A ideia de que pusesse as mãos sobre seu membro, porque a boca não se atrevia nem a imaginá-lo, era muito tentadora para rechaçá-la.
Ela queria lhe dar prazer. Normalmente era ele quem dava, já fosse agradado nos aposentos ou entretenimento ao redor de uma fogueira. Não estava acostumado que alguém pensasse no que ele necessitava. Mas Ellie não parecia atuar nunca da maneira usual.
—Me diga — o provocou ela em voz baixa.
Olhou-a aos olhos e cada um dos centímetros de seu corpo se esticou como um arco a ponto de lançar sua flecha. Tinha um gesto tão forçado no rosto que mal podia emitir palavras.
—Não posso.
Em lugar disso o que fez foi lhe mostrar como. Levou sua mão até ele sem deixar de olhá-la aos olhos.
Rugiu de prazer, primeiro pelo contato, mas também pelo ruidinho de surpresa tão erótico que surgiu dos lábios entreabertos dela. Ellie tragou saliva com certo esforço, mas quando Erik viu que não afastava a mão deu as graças a todos os deuses nos que era capaz de pensar. Enquanto ela movia sua mão ao redor de seu membro, ele tentou saborear a sensação tanto como pôde. Corria o perigo de gozar simplesmente com o primeiro contato. Estava claro que aquilo não duraria muito. Sua tão elogiada resistência o abandonaria em breves momentos. Ellie estava minando sua reputação. Embora ninguém poderia acreditá-lo. Demônios, nem sequer ele acreditava.
A Ellie a impressão lhe passou em seguida. Entretanto, Erik quase desejou que retornasse a ela quando sua pequena babá, cheia de curiosidade, começou a examinar suas reações com atenção minuciosa. Acariciava-o brandamente, como se temesse romper-lhe enquanto ele morria por agarrar essa sua mãozinha com firmeza e pô-la ao redor para que o tocasse com firmeza até lhe fazer perder os sentidos. Primeiro Ellie comprovou o comprimento mediante subidas e descidas da mão e logo fez uma tentativa de rodeá-lo para ver sua grossura. Mas suas mãos eram pequenas e seu pênis enorme, assim mal podia abranger a metade dele. Deu-lhe um ligeiro apertão e puxou ele com cuidado. Ele emitiu um som indeterminável, a meio caminho entre a dor e o prazer. Todo seu ser se contraiu e começou a palpitar.
Ellie afastou a mão.
—Sinto muito. Tenho-lhe feito mal?
Negou com a cabeça enquanto o sangue subia por suas orelhas de maneira infernal. Tinha tanta vontade de gozar que mal podia pensar.
—Não, Por Deus. —Seu olhar se acendeu ao ver seu rosto de preocupação — É perfeito.
Ellie sorriu fazendo que o calor que sentia nas orelhas se expandisse por todo seu peito. Quando voltou a tocá-lo, o suspiro de alívio de Falcão chegou até sua mão, tanto que este se recostou e fechou os olhos, tentando não pensar no que o fazia. Mas ao mesmo tempo saboreava cada uma das escuras sensações: a calidez, o indeciso roce da ponta de seus dedos em tanto que riscava o caminho de abaixo até o mais alto de sua grossa e sensível cabeça, e a deliciosa pressão que sentiu quando ao fim o rodeou com sua mão.
Ellie mediu a cintura de seus calções. O coração de Erik pulsava com força pela excitação. Conteve o fôlego e rogou a aqueles deuses de novo.
Devem ter lhe escutado.
—Parece-lhe se…?
Assentiu, enquanto seu corpo se via envolto em uma tensa espera. Ellie tentou torpemente desabotoar os cordões. Por Cristo Nosso Senhor! Como era possível que alguém de tamanha eficiência demorasse tanto?
Ao fim conseguiu liberá-lo e sua ereção apareceu em todo seu esplendor. Os olhos de Ellie estavam atônitos. Depois se atreveu a olhá-lo no rosto.
—Têm um aspecto muito mais poderoso que outros homens que vi antes.
Erik se esforçou por reprimir seu sorriso sem muito êxito. Na hora de escolher a palha nunca havia escolhido a mais curta.
—É você têm uma boa base de comparação?
Ellie se ruborizou de modo tão violento que Erik teria sorrido se não fosse por não poder suportar seu próprio sofrimento.
—É obvio que não! Mas tenho irmãos e vi suficientes homens fazerem suas necessidades no campo.
Estava muito excitado para levar a provocação mais longe.
—Ponha sua mão sobre mim, Ellie.
Olhou-o com precaução e alargou a mão com indecisão para tocá-lo. Erik gemeu ao sentir o contato com sua pele e depois ao ver a surpresa que expressavam seus olhos.
—Que suave é.
Duro. Isso teria sido mais exato. Mas não tinha forças para discutir a respeito de semântica.
Ela continuou com suas explorações. Aqueles ofegos e pequenas observações de donzela a ponto estavam de voltá-lo louco. Teve que apertar bem os dentes ante a necessidade que sentia de dar investidas contra sua mão e dar rédea solta à luxúria que incendiava seu interior.
Quando passou o polegar sobre a ponta para pulverizar a espessa gota que tinha surgido na sensível cabeça de seu pênis e ela umedeceu os lábios de maneira instintiva, já não pôde aguentar mais. O tempo das explorações tinha acabado. Agarrou-a pelo pulso e a olhou nos olhos.
—Está me matando.
O rosto de Ellie se via muito agradado.
—Sério?
«Pequena raposa» Dirigiu-a com sua própria mão.
—Acaricie-me assim Ellie.
Ensinou-lhe como tinha que fazer com a mão para extrair seu leite, e que aplicasse a pressão justa e que encontrasse o ritmo apropriado. Somente podia dizer uma coisa dela: aprendia mais rápido que o demônio. Com somente uns quantos bombeamentos, já sentia como se intensificava a pressão na base de sua espinha dorsal. Os testículos se contraíram totalmente. Os músculos do abdômen se esticaram. Lutava por reprimir a descarga. Não queria que tudo acabasse muito rápido. Queria prolongar ao máximo cada momento de prazer. Mas já estava a ponto.
—Aí esta — conseguiu dizer entre dentes. «Cristo.»
Ficou em tensão. Estava a ponto de gozar, de liberar sua luxúria como tantas outras vezes antes. Então cometeu um engano. Olhou-a nos olhos e sentiu como se inundava em uma corrente mais forte que nenhuma das que tinha tido que confrontar no mar. Uma corrente que o arrastava às profundidades. Afogava-se em um redemoinho de emoções muito vivas para resistir. Sentia uma conexão com ela que jamais tinha experimentado antes. Era algo primário. Algo intenso. E mais poderoso do que pensava que fosse possível. Era muito. Sentia-se exposto. Como se ela tivesse deixado ao descoberto uma parte dele que jamais tinha sido antes revelada. Queria deixar de olhá-la. Mas não podia. Seu coração pulsava com força. Algo se apertava contra seu peito. Emitiu um áspero gemido e arremeteu contra sua mão ferozmente ao tempo que a pressão se expandia e os espasmos profundos e vibrantes saíam de sua virilha.
Ellie aguentou seu impulso sem deixar de olhá-lo nos olhos, sem lhe permitir partir, espremendo dele até a última gota de prazer. Caiu desabado, exausto e sem forças, sentindo como se acabasse de finalizar um dos exercícios de treinamento de MacLeod. Quando seu pulso e respiração voltaram a normalidade, elevou a cabeça e a encontrou observando-o com uma adorável expressão maravilhada em seu rosto. Tinha o aspecto de ter desentranhado um fascinante mistério.
Seu peito se encheu de ternura. A tomou pelo queixo e olhou o interior de seus luminosos olhos castanhos frisados de verde para lhe dar um suave beijo nos lábios.
—Obrigado.
Ellie se ruborizou de satisfação.
—Nunca pensei que…
Não acabou de expressar seu pensamento, mas ele sabia o que queria dizer.
«Nunca pensei que seria assim.»
E não o era. Ao menos para ele. Não havia sentido tanta excitação desde… Céus Santos, nem sequer recordava ter estado tão excitado na vida. Sua pequena babá estava se revelando como uma surpresa muito prazerosa. E ainda não tinha terminado.
—Posso fazê-lo outra vez? —perguntou ela com essa alegria que alagava os olhos de um menino nas festas do solstício de inverno.
Gemeu de prazer. Acaso tentava acabar com ele?
—Os homens necessitam um pouco de tempo para descansar, moça.
Mas assim que a sustentou em seus braços, começou a beijá-la de novo, colocou-lhe a mão entre as pernas e a acariciou até levá-la a um novo clímax, resultou que não necessitava tanto tempo como pensava.
A sauna. Tinha que ser isso.