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Series & Trilogias Literarias
LACHLAN «Víbora» MacRuairi é um dos membros mais destacados da Guarda dos Highlanders: um guerreiro ao qual convém ter a seu lado, mas o qual não se pode confiar desde que uma amarga traição lhe roubou a capacidade de se preocupar com nada ou ninguém.
Agora só professa lealdade a si mesmo, embora tudo muda quando lhe é atribuída a missão de proteger e levar sã e salva Bela MacDuff à coroação do rei.
A orgulhosa e exuberante condessa o desafiará a liderar a maior das batalhas: amar de novo.
Lachlan sentiu-se atraído pela estranha emoção que viu nos olhos dela. Curiosidade. Atração.
E o mais perigoso e tentador de todos: possibilidade. Ele quase pode acreditar que ela queria dizer isso. Seu olhar caiu sobre sua boca. Ele se inclinou mais perto. Lábios entreabertos, instintivamente.
Ele sufocou uma maldição. O desejo aumentou dentro dele, quente, primitivo e cru. Ele poderia beijá-la. E Deus, ele queria. Queria tanto que o assustava. Cristo, ele quase podia sentir o gosto dela em seus lábios.
Ele teve o cuidado de esconder seu desejo após a noite, no lago, mas ainda estava lá, latente apenas sob a superfície. E ele o sentia agora. Sentia-o levantar-se e prendê-lo em suas garras de aço, tentando puxá-lo. Sua mão se estendeu. Lentamente. Com cuidado. Como se ela fosse a mais delicada porcelana, seu dedo roçou o lado de seu rosto.
Seu coração preso em seu peito. Jesus! Ele gemeu. Assim, condenadamente macia. Tão suave e aveludada. Sua grande mão cheia de cicatrizes de batalha parecia ridícula contra algo tão belo. Ele inclinou o queixo, sentindo-se cair, atraído pela promessa em seus olhos. Sua boca desceu…
Ele se apegou ao último momento de lucidez…
PREFÁCIO
O período de março de 1306, quando Robert Bruce faz a sua tentativa desesperada para a coroa escocesa, no final do verão de 1308, quando ele derrota os MacDougalls na Batalha de Brander, marca uma das mais dramáticas quedas e reviravoltas na história subsequente.
Em setembro de 1306, seis meses após, Bruce é coroado rei em Scone por Isabella MacDuff, condessa de Buchan, sua causa é tudo, mas mesmo assim ele perdeu. Ele é forçado a fugir de seu reino, refugiando-se nas brumas sombrias das ilhas ocidentais.
No entanto, das garras da derrota certa, com a ajuda de seu bando secreto de guerreiros de elite conhecido como os Guardiões das Highlanders, Bruce retorna para a Escócia, seis meses depois e derrota não apenas os ingleses, mas também os nobres escoceses que estão contra ele.
Mas isso é apenas metade da história. Nem todos partidários de Bruce escapam da ira do rei mais poderoso da cristandade: Edward Plantageneta, rei da Inglaterra, o autodenominado —Hammer of the Scots1— Muitos pagaram o preço final, mas outros ainda estão sofrendo para a chamada liberdade.
Nestes tempos impiedosos, quando a linha entre a vida e a morte é apenas uma sombra, mais uma vez Bruce invoca os lendários guerreiros dos Guardiões das Highlanders para definitivamente torná-los livres.
PRÓLOGO
“Porque ela não se abateu com a espada, ela não morrerá pela espada, mas por conta da coroação ilegal que realizou, seja ela confinada em uma jaula de pedra e ferro feita em forma de uma cruz, e que seja pendurado fora, ao ar livre em Berwick, que tanto na vida e depois de sua morte, ela possa ser um espetáculo opróbrio2 e eterno para os viajantes.”
Ordem de Edward I aprisionando Isabella MacDuff, condessa de Buchan.
Berwick Castle, BerwickUpon-Tweed, meados de Setembro 1306
Eles viriam por ela. Bella ouviu a porta abrir e viu o oficial ladeado por um punhado de guardas, mas em sua mente ainda não quis aceitar a verdade. Isso não estava acontecendo. Isto não podia ser acontecendo. Nas semanas que tinha levado em construir sua prisão especial, ela disse a si mesma que alguém viria intervir. Alguém ia pôr fim a esta barbárie disfarçada de justiça.
Alguém poderia vir ajudá-la.
Talvez Edward fosse ceder, como ele tinha feito para a filha de Robert Bruce e esposa, e mandá-la para um convento em vez disso? Ou talvez o outrora marido de Bella, o Conde de Buchan, iria ver além de seu ódio e implorar por clemência em seu nome? Mesmo que seus inimigos não fizessem nada, com certeza ela podia contar com seus amigos? Seu irmão pode usar sua influência como um dos favoritos do filho do rei para ajudá-la, ou Robert… Robert faria alguma coisa. Afinal ela arriscou a coroá-lo rei, ele não a abandonaria.
Em seus momentos mais fracos, ainda convenceu a si mesma que poderia ter errado sobre Lachlan MacRuairi. Talvez quando ele ouvisse o que Edward planejava fazer com ela, ele viria e encontraria uma maneira para tirá-la da terrível punição.
Ela disse a si mesma que estes homens não a deixariam para ter este destino horrível.
Mas ninguém havia chegado. Ninguém interveio. Edward tinha a intenção de fazer um exemplo dela. Seu marido a desprezava. Seu irmão era um prisioneiro, mesmo que um favorecido.
Bruce estava lutando por sua vida. E Lachlan… ele foi o único que a colocá-la aqui.
Ela estava sozinha, mas tinha sua prima Margaret, que servia como assistente. Uma concessão que Edward tinha feito para ela, por seu sangue nobre. O oficial de Berwick Castle, Sir John de Seagrave, um dos comandantes de Edward na campanha contra a Escócia, limpou a garganta desconfortavelmente. Ele não iria olhar em seus olhos. Aparentemente, mesmo o lacaio de Edward não parecia aprovar o seu rei - ou sua “justiça”— neste dia.
—É hora, minha senhora.
O flash de pânico veio tão forte e rápido que parou seu coração. Ela congelou como uma corça na vista caçador. Mas então o instinto, em conjunto com seu pulso explodiu em uma corrida frenética. Ela sentiu o impulso irresistível de correr, fugir para salvar-se da seta que visava seu coração.
Talvez adivinhando seus pensamentos, um dos guardas se adiantou para agarrar seu braço e arrastou-a a seus pés. Ela se encolheu ao seu toque. Sir Simon Fitzhugh, o cruel capitão da guarda, fez sua pele arrepiar com seu rosto suado, hálito azedo e lascivos olhares.
Ele puxou-a para a porta e por um momento o seu corpo resistiu. Ela se inclinou para trás, seus pés firmemente plantados no chão de pedra, recusando-se a se mover.
Até que ela o viu sorrir. A centelha animada em seus olhos lhe disse que agia como que ele queria.
Ele queria que ela resistisse. Ele queria ver seu medo. Ele queria arrastá-la por todo o pátio na frente de todas essas pessoas e vê-la humilhada.
A rigidez deslizou de seus membros como a resistência saiu dela. Ela deu-lhe um olhar gelado.
—Tire suas mãos de mim— Ele ficou vermelho de raiva pelo desprezo altivo em sua voz, e Bella sabia que tinha sido um erro. Ela pagaria por suas palavras mais tarde, quando estivesse completamente à sua misericórdia. Ele não iria abusar dela como pessoa.
Mesmo tendo sido marcada como um rebelde e considerada culpada de traição, ela ainda era uma condessa.
Mas ele iria encontrar milhões de maneiras de punição exata e tornar sua vida miserável? Nos próximos… Seu coração ficou preso em outro suspiro duro de pânico. Dias? Meses? Ela tentou engolir.
Deus a ajude… anos? Ela empurrou de volta a bile que subiu em sua garganta, mas seu estômago estava fechado, enquanto seguia o oficial para fora da pequena sala da casa da guarda que havia servido como sua temporária prisão.
A primeira coisa que notou sobre a intensificação fora, após mais de um mês de prisão não foi o brilho da luz do dia, o frescor do ar ou a vastidão da multidão se reuniu para assistir seu tormento, mas a nitidez do vento e do penetrante frio de gelar os ossos. As camadas pesadas de lã que ela vestiu como proteção parecia agora como fina gaze, como sua camisa.
Estava congelando, e ainda era Setembro. O que seria quando chegassem dezembro e janeiro? Quando ela estivesse empoleirada no alto da torre sem nada para protegê-la do brutal vento leste, somente as barras de ferro frio da sua prisão gaiola? Um arrepio percorreu-a.
Seu algoz notou.
—Sente como um dos piores invernos este ano, não é, condessa? —Simon zombou, e então apontou em direção a torre. —Eu me pergunto quão acolhedor que jaula vai faze-la se sentir no granizo e neve? —Ele se inclinou para mais perto, o seu hálito fétido chamuscou sua pele. —Eu poderia estar disposto a ajudar mantê-la quente, se você pedir com jeito.
Seus olhos caíram para seus seios. Embora ela estivesse coberta até o pescoço em camadas de espessa lã, se sentia imunda. Como se o desejo em seus olhos de alguma forma a tocou, e nem mesmo uma quantidade de banhos eliminaria o mau cheiro.
Ela estremeceu com repulsa e lutou o desejo de seguir a direção de sua mão. Não olhe. Ela não podia olhar. Se olhasse para a gaiola nunca seria capaz de fazer isso.
Eles teriam de arrastá-la por todo o pátio depois de tudo.
Ela engoliu o nó de medo, recusando-se a deixá-lo saber que ele tinha lhe dado nojo.
—Eu prefiro congelar até a morte.
Seus olhos brilharam, ao ouvir a verdade em suas palavras. Ele cuspiu no chão, a centímetros da borda de ouro bordado do vestido fino.
—Cadela altiva! Você não vai ficar tão orgulhosa em uma semana ou duas.
Ele estava errado. Orgulho era tudo que havia sobrado.
Orgulho iria mantê-la forte. Orgulho iria ajudá-la a sobreviver.
Ela era uma MacDuff, a partir da linha antiga de Mormaers de Fife3 - o maior de todos os escoceses de famílias nobres. Ela era a filha e irmã de um conde, e repudiada esposa de outro.
Um rei Inglês não tinha o direito de julgar sobre ela.
Mas ele tinha, e de uma forma particularmente bárbara. Ela era para ser um exemplo. Um impedimento para os rebeldes, que tinha ousado apoiar Robert Bruce para o trono da Escócia. Seu sangue nobre não a tinha salvado, nem o fato de ser mulher. Edward Plantageneta, rei da Inglaterra, não se importava que ela fosse uma mulher.
Ela se atreveu a coroar um —rebelde— rei, e para que servisse de exemplo ela ia ser pendurada em uma gaiola na torre mais alta de Berwick Castle, aberta aos elementos e para que todos os que passavam por ali pudessem ver e serem avisados.
Bella nunca poderia imaginar como um ato lhe custaria tanto. Sua filha. Sua liberdade. E agora… isso.
Ela queria fazer algo importante. Para ajudar seu país. Para fazer a coisa certa. Ela nunca quis ser um símbolo.
Não era para ser assim. Deus, que tola idealista havia sido. Assim como Lachlan a acusou. Ela fora presunçosa. Tão autoconfiante. Tão convicta que estava certa.
Agora, olhe para ela. Não! Ele não estava certo, ele não estava. Ela não podia deixá-lo estar certo. Então tudo seria para nada. Ela não podia pensar sobre o bandido. Doía muito. Como ele pode ter feito isso?
Não agora. Mais tarde, teria uma abundância de tempo para amaldiçoar Lachlan MacRuairi de volta para o diabo, que o abrigava. Ela apertou suas mãos ao lado, tentando reunir força. Não demonstraria medo. Ela não iria deixá-los quebra-la. Mas seu coração tamborilou em sua garganta quando marchou lentamente pelo pátio.
Levou um momento para perceber o que estava errada. A multidão se reuniu para testemunhar a sua punição devia estar gritando, zombando, proferindo insultos, chamando-lhe por nomes, e jogando frutas podres e restos de comida para ela. Mas foi um silêncio mortal.
O povo da outrora maior cidade comerciante da Escócia estavam intimamente familiarizado com o Rei cruel da Inglaterra. Dez anos atrás, Berwick tinha sido destruída e seus habitantes massacrados em uma das maiores atrocidades cometidas na longa e destrutiva guerra entre a Escócia e a Inglaterra. Mulheres, filhos - ninguém foi poupado no embargo de Berwick, que durou dois longos, dias sangrentos e custou a vida de milhares de pessoas.
O silêncio da multidão era um protesto. A condenação.
Uma advertência do rei Edward do erro terrível que está sendo feito neste dia. Emoção cresceu em seu peito. Ela sentiu o calor das lágrimas queimar na parte de trás de seus olhos, a mostra inesperada de apoio ameaçando tirar os fios frágeis de orgulho mal segurados.
Nem todo mundo a abandonara. De repente, ela pegou o flash de um movimento pelo canto do olho. Ela recuou instintivamente, pensando que alguém tinha finalmente decidido jogar alguma coisa nela. Mas em vez de uma maçã ou um ovo podre, ela olhou para seus pés e viu o botão de uma rosa perfeita.
Um dos guardas tentou pará-la quando ela se abaixou para pegá-lo, mas ela acenou com ele.
—É apenas uma rosa— disse ela em voz alta.
—Será que as flores dão medo ao Exército de Edward?
O golpe não foi perdido na multidão, e ela ouviu o murmúrio de vaias e guinchos. Os cavaleiros de Edward era suposto a flor da cavalaria. Mas não havia nada cavalheiresco sobre a ação que estava sendo feito neste dia.
Simon teria jogado fora de sua mão, mas Sir John deteve.
—Deixa com ela. Por piedade, que mal vai fazer?
Bella enfiou o rosa no broche MacDuff que fechava o seu manto forrado de pele, e depois inclinou a cabeça para a multidão em silêncio reconhecimento da sua solidariedade. O botão de rosa – aparentemente insignificante - deu-lhe força. Ela não tinha sido abandonada por todos. Seus compatriotas estavam com ela.
Mas quando ela entrou na torre, ela fez isso sozinha. Envolvida na escuridão repentina como um túmulo. Pensamentos do que a aguardavam. Cada passo se tornou mais lento, mais pesado, mais difícil de fazer como subir a escada. Era como se ela fosse a pé cada vez mais fundo em um pântano, afogamento, e fosse impotente para sair.
Ela tentou afastar o medo, mas era como uma isca em uma matilha de lobos famintos. De alguma forma ela conseguiu chegar ao topo. Ela ficou na escada e o oficial se atrapalhou com a nova fechadura na porta das ameias da torre. Um guarda seria postado ali também. Eles não estavam dispostos a qualquer chance de fuga.
Finalmente, a porta se abriu. A súbita rajada de vento bateu as suas costas. Querido Deus! Era muito mais frio do que ela temia. Instintivamente, ela puxou de volta, não querendo ir mais longe, mas os guardas atrás dela começaram a caminhar, obrigando-a seguir em frente para o telhado.
O vento soprava ao seu redor, quase a rasgar o manto de seus ombros. Se reuniram em torno dela, agarrando-a firmemente, e seguiram os guardas para as ameias. Quando pararam, ela sabia que o tempo tinha acabado. Ela não poderia evitar mais.
Lentamente, ela levantou o olhar para ver a punição de Edward pela primeira vez. Um grito assustado saiu da sua garganta. Ela sabia o que esperar, mas seus joelhos bambearam assim mesmo. Lá, embutida no parapeito, era a sua gaiola de ferro na forma de uma cruz. Mas o cristianismo era a coisa mais distante de sua mente enquanto ela contemplava a monstruosidade.
As paredes eram de madeira de treliça4, atravessada por barras de ferro e segura a parede com parapeito de pedra e ferro. Era tão pequena - tão limitada - não mais 3,60m de largura por quatro metros de profundidade. Meu Deus, ela apenas seria capaz de se mover. Não havia nem mesmo uma cama, apenas um pallet5 . O pequeno braseiro único daria pouco conforto contra o frio intenso. Um rústico banco foi construído em um canto, e em outro havia uma estranha caixa de madeira …Seu estômago caiu, percebendo o que era. Ela não teria sequer permissão em deixar a gaiola para usar o “banheiro”. A caixa era uma privada.
Ela cambaleou, dominado pelo horror. Com medo, nem mesmo seu formidável orgulho ficaria em suspenso. Instintivamente, ela recuou, mas seu carcereiro estava lá para impedi-la.
—Um segundo pensamento, condessa? Eu diria que é tarde demais para isso. Você deveria ter pensado melhor antes de desafiar o maior rei de toda a cristandade.
Bella tinha vergonha de admitir que, enquanto ficou ali olhando para a gaiola horrível, sabendo que ela tinha que ir e não sabendo quando ela poderia sair, ela se perguntava se o bárbaro estava certo. Naquele momento sua crença, a convicção de que ela tinha feito, vacilou sob a força do medo.
Mas só por um momento. Era apenas uma gaiola, disse a si mesma. Poderia ser pior. Acusações de seu marido e suas suspeitas. Sendo caçada em toda a Escócia como um cão. Traição por um homem que nunca deveria ter confiado. E o pior de tudo, a separação de sua filha.
Sua filha lhe daria força. Ela teria que sobreviver a isso para ver Joan novamente. Ela olhou o demônio em linha reta no olho.
—Ele não é meu rei— E depois de cabeça alta, Bella MacDuff, condessa de Buchan, caminhou até o portão de ferro da gaiola.
Capítulo um
Balvenie Castle, Moray, seis meses antes.
Bella estava distraída, sua mente girando com tudo o que ela tinha que fazer antes de sair. O broche! Não conseguia esquecer o broche MacDuff para a cerimônia.
Não notou a falta de guardas fora de sua porta até que fosse tarde demais. Um homem pegou-a de surpresa, agarrando-a por trás quando entrou no quarto dela.
Seu coração saltou para sua garganta em estado de choque e pânico, logo percebendo o perigo irradiando a partir do intruso. Ele era grande e forte e tão flexível como rocha. Mas não seria tomada sem uma luta.
Ela atacou tentando se libertar, mas só fez a seu atacante apertar mais. Ela tentou gritar, mas sua mão abafava qualquer som.
—Calma— uma voz rouca sussurrou em seu ouvido. —Não vou fazer nenhum dano. Estou aqui para levá-la para Scone.
Ela se acalmou, suas palavras penetrando a névoa de terror. Scone? Mas só iria amanhã Scone. E os homens de Robert aguardariam por ela na floresta, em seu caminho de volta da igreja, não no castelo. Seu coração batia descontroladamente enquanto tentava classificá-lo, tentou decidir se iria acreditar nele, ao mesmo tempo consciente da força do braço revestido de couro firmemente em torno de seu peito. Deus amado, o bárbaro poderia quebrá-la em dois com um duro apertão!
Ficaram ali assim por um minuto em semi-escuridão, imóvel, enquanto ele esperou por suas palavras para afundar.
—Você entende?— A voz grave fez pouco para tranquilizá-la, mas que escolha ela tinha? Ela não podia nem respirar com a mão cobrindo a boca assim, firmemente. Além disso, ele poderia tê-la matado se era fosse que ele pretendia.
Com esse pensamento agradável filtrando através de sua mente, ela balançou a cabeça. Lentamente - com cautela - ele a soltou. Uma vez que o ar havia retornado para seus pulmões, Bella virou com raiva e indignação.
—O que é o significado disto? Que… — Ela engasgou com a visão dele. Embora apenas pouco de luz fosse transmitida através da janela da torre com a noite, quase caiu, houve suficiente para saber que ela tinha razão para temê-lo. Ele não era o tipo de homem que qualquer mulher gostaria de estar sozinha no escuro – ou na luz do dia, para qualquer assunto, e seu coração deu um salto involuntário.
Bom Deus no céu, poderia este homem realmente ter sido enviado por Robert?
Construído para intimidar, ele era alto, ombros largos e embalados com camadas e camadas de músculo. Ele exala em cada centímetro que era um guerreiro poderoso: sólido, forte e mortal.
Mas ele não era um cavaleiro. Um olhar disselhe isso. Ele tinha a aparência de um homem que nasceu para lutar. Não em um cavalo branco, vestido de cota e armadura, mas um bárbaro que gostava de brigar na terra. Ele parecia ter armas suficientes amarrados a seu corpo para equipar um pequeno exército, incluindo o punho de duas espadas que ela podia ver sobressaindo nas costas. Ele usava uma armadura leve: apenas um cotun couro preto e calças de couro cravejada de pequenos rebites de aço. Sua cota limitava-se a um capuz para proteger a seu pescoço e nuca.
Mas foram seus olhos que a deteve.
Sob o leme de aço do medonho nasal eram absolutamente acesos, a cor tão penetrante na escuridão, que parecia brilhar. Ela nunca tinha visto olhos como os dele em toda sua vida. Um calafrio percorreu sua espinha, espalhando-se na superfície de sua pele como uma folha espinhosa de gelo.
Olhos de gato, pensou ela. Feral olhos de gato. Gelados em sua intensidade e inegavelmente predatórios.
—Lachlan MacRuairi— disse ele, respondendo sua pergunta inacabada. —Sinto muito por surpreender você assim, condessa, mas não poderia ter evitado. Nós não temos muito tempo.
Pela segunda vez naquela noite Bela ficava sem palavras por causa do assombro. Lachlan MacRuairi? Abriu os olhos diante da surpresa. Esse era o homem que Robert tinha mandado para escoltá-la a salvo até o Scone? Um mercenário? E não qualquer mercenário, a não ser um homem cujas proezas nas ilhas Ocidentais o convertiam no guerreiro mais famoso da Escócia, o maior açoite dos mares no reino dos piratas. Estava claro que houve um engano. Lachlan MacRuairi venderia a sua mãe ao melhor lance, se pudesse encontrar a uma mãe que o reclamasse como filho. Era um bastardo em tudo, exceto por seu sangue, herdeiro de um dos maiores senhorios das ilhas Ocidentais. Embora Christina das Ilhas, sua meio-irmã legítima, tivesse recebido as terras, ele seguia sendo o chefe titular do clã. Entretanto, tinha ignorado suas obrigações e responsabilidades, abandonando a seus companheiros de clã para perseguir seus próprios fins. Era um vilão desumano como jamais houve outro e os rumores era que tinha assassinado a sua própria esposa.
Bela não podia acreditar. Não podia acreditar que com tudo o que ela arriscava, Robert mandasse a esse… esse… Mas se não era mais que um patife!
Esforçou-se para ver na escuridão e captar os detalhes que tinha passado por cima. Por todos os Santos, só bastava olhá-lo! Inclusive tinha o aspecto de um bandido. Apostaria que suas barbas não tinham visto a sombra de uma navalha em uma semana. Uma fina cicatriz lhe percorria a parte inferior da bochecha, e seu olhar era tão duro e cortante que racharia até as rochas. Sob o elmo, seu cabelo negro caía em grossas mechas desgrenhadas que lhe chegavam até o queixo. A parte da face que via parecia cinzelada a partir de um bloco de duro e frio granito. Bela notou, não sem surpresa, de que seu olhar enigmático, a mandíbula quadrada, as maçãs do rosto marcadas e sua larga boca poderiam passar por atraentes, inclusive exageradamente atraentes, se não estivessem dispostos em um ângulo tão ameaçador. Uma pena que destroçasse esse rosto, um coração tão vil.
Quando seus olhos se encontraram Bela notou de que não era ela quão única observava. Ele a contemplava com a mesma intensidade. Sentia como a percorria com o olhar na penumbra. Aquele repentino brilho a incomodou, embora não soube por que. Estava acostumada a ver esse brilho no olhar dos homens. Mal tinha treze anos quando começaram a notá-la, justo no momento em que seus seios se incharam, seus quadris se curvaram e seu rosto perdeu a redondez própria da infância. Após os homens a olhavam de um modo diferente. Como se só quisessem uma coisa dela. Tinha aprendido a ignorá-los. Mas com ele parecia ser diferente. Sentia uma ameaça que jamais antes tinha experimentado. Acelerou seu pulso e sua pele se tingiu de um estranho rubor. Deu um passo atrás instintivamente ao notar isso.
Ele notou sua reação e endureceu o olhar.
—Lachlan MacRuairi —repetiu sem ocultar sua impaciência— Me enviou Bruce.
—Já sei quem és - respondeu Bela, incapaz de evitar o desgosto que refletia sua voz.
Apertando as comissuras de seus lábios pareceram franzir-se mais ainda.
—Sei que não me esperava esta noite, mas houve uma mudança de planos.
Bela esteve a ponto de rir ante o absurdo do caso. Dizer que não o esperava era pouco. No que pensava Robert, enviando a seu encontro um homem como aquele? Estava arriscando tudo para ir a Scone e por a coroa sobre sua cabeça. Para cumprir com o dever de seu irmão, a quem tinham retido na corte inglesa de Eduardo.
Bela tinha ficado estupefata na semana anterior quando sua mãe, Joan de Clare, foi a ela com tal proposição. Por essa coroa na cabeça de Robert Bruce, um homem declarado rebelde e foragido, não significava só desafiar ao mais poderoso rei da cristandade, Eduardo da Inglaterra, mas também a seu marido. John Comyn, conde de Buchan, que procedia de uma das famílias mais poderosas da Escócia, os inimigos e rivais mais ferozes dos Bruce. Essa rivalidade tornou-se encarniçada há poucas semanas, quando Robert esfaqueou o primo de seu marido, o lorde de Badenoch, diante do altar maior do monastério do Dumfries.
Nesse momento seu marido estava na Inglaterra, exigindo justiça pela morte de ser primo diante do rei Eduardo. Buchan desprezava ao Robert Bruce e preferia ter como rei Eduardo antes que Bruce no trono. Não atendia a razões. O bem da Escócia empalidecia diante da força de seu ódio. Seu marido jamais lhe perdoaria o que estava a ponto de fazer. Consideraria seu dever como um ato de traição. Seria o fim de seu matrimônio, ou do pouco que ficava dele.
Mas os MacDuff possuíam o direito hereditário de nomear aos reis da Escócia, e sem a presença de um deles a cerimônia seria posta em julgamento. Tal como estavam as coisas, a conflito de Robert pelo trono iria de com os nobres mais importantes da Escócia, incluído seu marido. Para estabelecer a legitimidade de seu reinado entre outros, Bruce necessitaria todo o simbolismo e as adesões à tradição com que pudesse contar. Inclusive assim, seria um desafio. Robert estava imerso em uma luta longa e complicada. Sua causa era tudo menos segura. Bela não se enganava. Ao fazer aquilo, ao ficar publicamente do lado de Bruce, seu futuro também seria incerto. O rei inglês que reclamava a Escócia como seu próprio senhorio a declararia rebelde. Se Robert perdesse, se não encontrasse suficiente apoios entre a nobreza escocesa, não teria nenhuma possibilidade contra Eduardo. E sem lugar a dúvidas desafiar a Eduardo Plantageneta supunha um grande risco.
Bela pediu conselho a sua mãe. Embora acabasse de casar-se com um dos homens de Bruce não insistiria a coroá-lo por essa única razão. Igual a Bela, sua mãe queria uma Escócia livre da tirania inglesa e ambas acreditavam que Robert Bruce era o homem adequado para consegui-lo. A fé que tinha sua mãe na causa de Robert Bruce era tão forte como a sua. Eduardo Plantageneta oprimia o pescoço dos escoceses com sua mão de ferro cada vez com mais força, e Robert Bruce significava seu último fôlego. Se havia alguém que pudesse conseguir, esse era ele.
Bela tinha que assumir o risco. Em muitos aspectos era o momento que tinha esperado durante toda sua vida. A oportunidade de fazer algo verdadeiramente importante. Uma ocasião de dar o rosto por aquilo em que acreditava. O dever, a lealdade, antepor o bem da Escócia e de sua família a suas necessidades pessoais. Aquelas não eram meras palavras ou ideais, a não ser algo real. Algo pelo qual valia a pena lutar.
O dever a tinha obrigado a apoiar a seu marido durante muito tempo, mas Buchan jamais ganhou sua lealdade. Pelo bem de sua filha tinha agüentado seus arrebatamentos de ciúmes, suas suspeitas e sua luxúria obsessiva. Teria abandonado tudo por proteger a sua filha, Joan, que levava o nome de sua avó, se seu marido não tivesse mencionado que pretendia desposar à menina de doze anos com um de seus cupinxas que a quadruplicava em idade. Bela morreria antes de permitir isso.
Acessou a coroar a Robert Bruce somente quando sua mãe assegurou que poderia levar Joan com ela. Mas uma vez viu o homem encarregado de acompanhá-la e se perguntou no que se colocou. Se Lachlan MacRuairi era o tipo de pessoa em que Robert confiava, a rebelião estava condenada ao fracasso antes de começar.
Quanto teria tido que lhe pagar? Duvidava de que houvesse dinheiro suficiente para assegura a lealdade de um patife como MacRuairi.
MacRuairi cruzou os braços, um gesto de impaciência que o enorme tamanho destes convertia em algo ameaçador. Músculos como aqueles só podiam forjar-se no campo de batalha. Em muitos campos de batalha.
—Há algum problema?
—Eu pensava… —respondeu Bela olhando atrás dele para a escuridão, com a esperança de ver um grupo de cavalheiros de brilhante armadura sair dentre as sombras. Ele entreabriu os olhos até que quase não se viam, como se soubesse exatamente o que estava pensando.
— Onde está o resto dos homens? —terminou dizendo sem muita convicção.
Pergunta que pareceu lhe divertir, se o gesto torcido de sua boca podia interpretar-se como um sorriso.
—Estão esperando embaixo.
—Como conseguistes entrar? O que fez com o guarda?
—Os guardas —corrigiu ele olhando-a com dureza— Espero que Buchan não suspeite nada.
Bela esteve a ponto de rir. Tudo que seu marido fazia era suspeitar. Em vão, embora aquilo já não importasse. Mas ela sabia que Lachlan se referia a seu plano para coroar Bruce.
—Não é por isso que me vigia.
Dirigiu-lhe um olhar inquisitivo, mas não perguntou a que se referia. Em qualquer caso ela não teria contado. O patife tinha esquecido suas boas maneiras corteses, se podiam chamar-se assim, e estava ansioso para cumprir seu encargo. Deslocou-se até a janela e se aventurou a olhar ao pátio que tinham abaixo, procurando manter-se fora de vista.
—Venha - disse agarrando-a pelo cotovelo e fazendo que todos seus nervos ficassem tensos— Temos que ir. Não sobra muito tempo. Agarres sua capa e o resto das coisas que queira levar contigo. Mas faça rápido.
Do que estava falando? Supunha-se que não tinham que sair até o dia seguinte. Não tinha nada preparado. Escapuliu antes do jantar para poder começar a recolher seus pertences.
—Não irei a nenhum lugar até que não me digas o que passa aqui.
Não acreditava possível que seu rosto ficasse mais ameaçador. Aproximou-se dela e a atravessou com seus horripilantes e penetrantes olhos. Verdes, constatou. Inclusive naquela escuridão brilhavam como duas esmeraldas raiadas de dourado à luz do sol.
—Que passa aqui? —repetiu ele agarrando-a pelos ombros e empurrando-a para a janela— O que passa são esses estandartes na lonjura, justamente atrás daquelas árvores. Em dez minutos seu marido e seus homens estarão cruzando as portas, e se eu estivesse em seu lugar não iria querer seguir aqui quando chegar.
Ficou sem respiração e completamente lívida. Seus olhos procuraram o olhar inclemente do patife e encontraram a resposta a sua pergunta. Seu marido sabia. De algum modo Buchan se inteirou de seus planos.
E que Deus a ajudasse, porque a mataria.
Lachlan a viu empalidecer e quase se arrependeu de sua dureza. Quase. Mas lhe doía a forma em que o olhava aquela condessinha arrogante, a maneira em que estremecia quando a tocava. E não deveria fazer.
Bem sabia Deus que estava acostumado às suspeitas e ao desdém. Que demônios, era algo que sempre tinha merecido. Bastardo. Desumano. Predador. Pirata oportunista. Essas eram algumas das coisas mais aduladoras que diziam. A maioria delas eram certas. Inclusive para os outros membros da Guarda dos Highlanders era suspeito. Não lhe importava uma merda o que outros pensassem. Normalmente. Mas o desprezo que via naqueles grandes e resplandecentes olhos azuis o crispavam. De fato havia umas quantas coisas em Bela MacDuff que o crispavam. Jesus! Ainda sentia o açoite da luxúria que reverberava através de seu corpo. Não havia sentido nada parecido desde que… Ficou com a boca seca. Não sentia nada assim desde a primeira vez que esteve com Juliana. Se havia uma coisa que lhe gelava o sangue era pensar nessa cadela mentirosa que teve como esposa. Mas Juliana já não formava parte de suas preocupações, e isto era assim fazia oito benditos anos. Estava onde lhe correspondia: no inferno, torturando ao diabo.
Na superfície, Bella MacDuff não parecia qualquer coisa com sua esposa morta. Juliana tinha sido alta e magra, com traços delicados, e cabelo como preto como a noite e como seu coração. A condessa era justamente e deliciosamente oposta, com cabelos cor de linho dourado e traços marcantes, de estatura média, e curvilínea. Muito curvilínea, se o peso dos seios em seu braço fosse uma indicação.
Ambas as mulheres eram atraentes – belas mesmo - mas isso não foi o que as fez comparar. Foi essa qualidade indefinível, que “je ne sais quoi”6 que os franceses chamavam, que mexeu com o seu sangue. Foi a inclinação nos olhos, a curva sensual da boca, a sensualidade primitiva que agarrava um homem pelas bolas e não o deixa ir.
Elas eram o tipo de mulheres os homens queriam para foder. E muito.
Deveria ter se limitado a isso com Juliana, é provável que economizasse muitos problemas. Mas a luxúria lhe impediu de ver a verdade sobre sua esposa até que era muito tarde. Seu pau fez um estúpido dele em uma ocasião. Não ocorreria de novo.
«Tomes cuidado com a condessa —havia dito Bruce com um enigmático sorriso— Poderia… lhes distrair.»
Ao menos já compreendia a advertência de Bruce. Mas o rei não tinha com que preocupar-se. Lachlan não permitiria que a luxúria o fizesse fracassar em sua missão. Já tinha suficientes problemas. Aquela tarefa medianamente singela tinha acrescentado um complicado giro fazia uma hora quando MacKay interceptou dois soldados da guarda de Buchan em seu caminho ao castelo para preparar a chegada do conde. A volta de Buchan em si mesmo não representaria um grande problema. Poderiam proceder com o plano de interceptar à condessa e a sua filha quando voltassem do culto dominical, a única ocasião em que ela tinha permissão para abandonar o castelo. Mas Lachlan sabia melhor que ninguém que as missões rara vez aconteciam segundo o previsto. Em seu interrogatório aos cavaleiros, MacKay averiguou que o conde estava a par da coroação e do papel que a condessa desempenharia nela.
Isso mudava tudo. Assim que o conde voltasse, o castelo estaria tão fechado como as pernas de uma monja e duvidava que a condessa desfrutasse de mais saídas nos próximos meses, nem sequer para ir à igreja.
MacKay calculou que teriam uma hora.
Lachlan necessitou um quarto dessa hora para atravessar as portas do castelo e quase o dobro para encontrar à condessa, o qual o deixava com cinco minutos, mais ou menos, antes que Gordon preparasse a escapada. Estava mais que claro que não havia tempo para desvanecer os receios que sua arrogante companheirazinha tivesse a respeito de que Lachlan era a escolta adequada para ela. Não obstante, aquelas duras palavras pareceram trabalhar de maneira milagrosa em sua atitude. O medo era uma poderosa ferramenta de motivação. A condessa correu para o armário, tirou uma capa escura que em seguida jogou aos ombros e pegou de uma pequena estante um pequeno cofre de madeira com intrincados desenhos gravado.
Lachlan confirmou a hipótese de que se tratava de seu porta-joias quando ao abrir a tampa descobriu um tesouro de ouro e joias digno de um sultão. «Pelas chagas de Cristo!» Esperava vê-la esvaziar o conteúdo do cofre na bolsa de finos bordados que levava presa à cintura, mas em lugar disso ela pegou uma única joia, fechou a tampa e devolveu o porta-jóias ao armário.
Uma vez que fez isto se voltou para ele.
—Estou preparada.
—Isso é tudo o que levará? —perguntou olhando para onde estava o cofre.
A condessa entreabriu os olhos, como se pensasse que o levaria ele mesmo. Maldição, esteve mais que tentado em fazer. Umas joias como aquelas saldariam muitas dívidas.
—O resto pertence a meu marido. Esta é a única peça que importa.
Só alguém que tinha sido rica durante toda a vida poderia falar de tal modo. Era fácil mostrar superioridade moral quando ia vestida com ornamentos com as que se poderia alimentar a um povoado inteiro durante semanas. Lachlan a examinou com atenção, do robusto diadema de ouro que segurava seu brilhante e longo cabelo, até a fina malha com bordados de ouro de seu vestido, a capa forrada de pele, o pesado colar de pérolas e safiras, seus estilizados e delicados dedos carregados de anéis e as pontas de suas refinadas sapatilhas de seda.
Lachlan notou de que ela sabia o que estava pensando pelo modo em que suas bochechas se ruborizaram.
—Se tiverem terminado, podemos recolher a minha filha - disse erguendo o queixo.
Ah, diabos! Esqueceu-se da menina. O que não compreendia era por que motivo insistiria alguém em arrastar consigo a uma jovenzinha à guerra por toda Escócia. Mas fazer perguntas não era seu trabalho. Durantes três anos faria qualquer tarefa que Bruce lhe encomendasse. Se era agradável ou desagradável pouco importava, embora suspeitasse que era isso mesmo o porque tinha ganho seu posto na equipe secreta de guerreiros de elite de Bruce. Também tinha outras qualidades. Era implacável na batalha, um ás com a espada e tinha uma habilidade incomum para entrar e sair de qualquer lugar. Mas um homem com poucos escrúpulos sempre era apreciado na guerra.
Fazia quanto fosse necessário para cumprir sua tarefa. A guerra era um poço de imundícies. Todos se sujavam. Todos. A única diferença entre o resto e Lachlan era que ele não pretendia o contrário nem disfarçava suas desculpas de causas nobres ou patriotismo. A política o importava um rabanete. Entre os mercenários não havia lugar para convicções. Assim era mais simples. Tinha feito acordo em lutar para Bruce somente por uma razão: tinha dívidas a pagar, tanto pessoais como financeiras. O acordo que tinha feito com Bruce satisfaria ambas. Estava cansado de fazer o trabalho sujo de outros. Se tudo ia bem, não teria que fazer mais. Tomaria sua recompensa, liquidaria suas dívidas e teria suficiente dinheiro para ir a algum lugar e desaparecer. Qualquer ilha remota do oeste bastaria. Não responderia a ninguém mais que a si mesmo. Mas para que isso ocorresse Bruce tinha que ser rei. Se Isabella MacDuff ia ajudar a fazer isso possível, mais valia levar-lhe com ele. E a sua filha.
—Onde está? —perguntou.
A condessa mordeu o lábio. Um gesto inocente que com uma boca como aquela se transformava em algo inequivocamente erótico. Por Deus! Não era momento para pensar naquela boca rosada enroscada totalmente em… Sentiu um forte inchaço na virilha e afastou o olhar com rapidez, molestado por seu estranho deslize.
—Deixei-a no salão —disse Isabella em um tom que denotava a ansiedade crescente em sua tentativa de explicar-se— Ainda não tinha acabado de comer. Não sabia que… —continuou com uma voz que se extinguia— Acreditava que tínhamos até manhã.
A condessa lhe apertou o braço e todo seu corpo se estremeceu diante do contato. Parecia que o tinha alcançado um raio. Era a primeira vez que o tocava voluntariamente, mas duvidava que se desse conta do que fazia. O medo por sua filha tinha tomado as rédeas.
—Não podemos partir sem ela - rogou antecipando-se à discussão.
A súplica daquele belo rosto que o olhava de baixo não ficava sem efeito. Aqueles grandes olhos azuis de sobrancelhas arqueadas e longos cílios negros como o tição, seu nariz reto, sua imaculada pele sedosa, e uma boca tão sensual que seria a inveja de qualquer rameira… A muitos homens custaria Deus e ajuda resistir.
Mas ele não era como a maioria.
Lachlan franziu os lábios. No geral não tinha papas na língua. Deveria dizer que a distração que lhes permitiria escapar impediria de acessar ao salão que aconteceria em qualquer momento, e que havia uma possibilidade entre vinte de que chegassem até onde estava a garota antes que se desatassem todos os infernos. Mas o desespero de sua voz o deteve. Pode ser que Isabella MacDuff estivesse a ponto de trair seu marido para coroar seu rival, mas era óbvio que amava a sua filha. Dado que ele seria o último homem a quem comovesse a emoção, um rosto bonita ou um fantástico par de seios, soube que havia outra razão para que se mordesse a língua: a missão. Seu instinto o advertia de que se dissesse a verdade ela resistiria. E não podiam permitir-se esse atraso. Nem nenhum outro. No ponto em que estavam sairiam com tão pouca vantagem que seria perigoso.
—Um de meus homens a recolherá - disse lembrando quão ansiosa estava por vislumbrar entre as sombras alguma outra pessoa que a escoltasse.
Perguntou-se como reagiria quando descobrisse que só eram três homens.
Talvez dissesse a sério… ao menos durante um minuto. Mas logo que saíram do aposento uma sucessão de estalos ensurdecedores estremeceu o ar vespertino. O tempo acabou.
Bela se amaldiçoou por ter abandonado Joan no salão enquanto ela voltava para seus aposentos a fim de preparar seus pertences para o dia seguinte. Dizia a si mesma que não podia ter adivinhado. Mas isso servia pouco para apaziguar o ataque de medo e ansiedade que lhe percorria o peito. Não queria que sua excessivamente curiosa filha ficasse a fazer perguntas. Era mais seguro, tanto para Joan como para ela, que não soubesse quais eram seus planos. Qualquer mínimo deslize poderia resultar em desastre.
Mas o desastre tinha chegado de todas as formas. Como tinha descoberto seu marido? Isso pouco importava. O único importante era que tinha descoberto. A ira de Buchan não teria limites. Depois de todos esses anos de acusações sem sentido e suspeitas de traição, Bela tinha acabado fazendo algo que dava sentido a sua raiva.
Seguiu ao desacreditado mercenário de Robert pelo corredor iluminado com tochas até a escada da torre da comemoração e depois pelo pátio de armas. Não quis saber o que tinha feito com o guarda que seu marido tinha posto para vigiá-la, mas agradeceu sair da torre sem que se produzisse nenhum incidente. Entretanto, assim que pôs um pé na pavimentação do pátio, uma explosão explodiu em seus ouvidos fez tremer a terra sob seus pés. Um momento depois se produzia outra explosão e um inferno de chamas iluminava o escurecido céu.
Armou-se a barafunda. As pessoas saiam em massa dos edifícios que albergavam os muros do castelo em direção ao pátio de armas. Ouviam-se chiados de mulheres, gritos de homens, o retumbar dos…
—Cuidado! —gritou MacRuairi, e a empurrou a um lado ao mesmo tempo em que uma correria de cavalos aterrorizados passava junto a eles.
O retumbar dos cascos dos cavalos… Se livrou por tão pouco que tinha o coração em um punho. Os estábulos. Tinham posto fogo aos estábulos e a construção de madeira, repleta de feno, ardia como a isca. O fogo pareceu consumir a noite e o ar se encheu de fumaça.
—Joan!
Por Deus bendito, sua filha! Rumou para o salão, mas Lachlan se antecipou a seus movimentos e a pegou.
—Alguém se ocupará da garota. Temos que ir. Esta distração não manterá ocupados aos guardas muito mais tempo.
As garras do pânico apertavam seu coração com seu punho gelado. Lutou, mas ele a tinha tão bem presa que não conseguiu mover-se.
—Não posso ir sem minha filha.
Obrigou-a a voltar-se com brutalidade, com a boca franzida até ficar reduzida a uma fina linha branca. Ela conteve o fôlego ao notar pela primeira vez o quão perigoso podia chegar a ser esse homem. Tinha um aspecto tão ameaçador e malvado como advertia sua reputação. Deveria estar aterrorizada, e entretanto sentia um estranho formigamento na pele. Em meio daquele caos se excitou do modo mais inoportuno. Cortou-lhe a respiração. Cheirava o couro de seu cotun, o aroma que emanava de sua pele e seu fôlego de especiarias. Mas por cima de tudo, era plenamente consciente do calor e a fortaleza do corpo que se apertava contra o seu. O corpo de um guerreiro.
A confusão se apoderou de todo seu ser. Suas bochechas se inflamaram com um calor escaldante. O que estava passando? É que depois de tantos anos pensando que seus sentidos estavam mortos seu corpo decidia ressuscitar nesse momento? E que reagisse ante um homem como aquele era algo que ia além da decência.
O tom duro de sua voz a devolveu de repente à realidade.
—Olhe condessa. Se queres sair daqui antes que seu marido chegue, teremos que partir agora. Sua filha não corre perigo. As chamas não estão perto do salão. Fiz gestos a meus homens quando saíamos da torre. Foram recolhê-la.
—Mas…
—Decida-se! —disse cortando seus protestos— Se queres sair daqui, tem que ser agora mesmo. Está disposta a fazer, sim ou não?
Bela ficou olhando em vão ao outro lado do pátio, desejando que sua filha se materializasse de algum modo depois da fumaça. Todos seus instintos lhe diziam que devia correr em direção ao caos para encontrá-la. Mas dado que o pânico inicial tinha passado, dava-se conta de que ele tinha razão. O fogo não era tão grande como parecia em princípio, e não estava perto do salão.
—Estais seguro de que seus homens o terão entendido? Terá ido alguém a procurá-la? Não irão sem ela?
Lachlan endureceu o rosto, mas a olhou sem pestanejar.
—Sim.
Bela lhe manteve o olhar, consciente de que não havia razão alguma para confiar nele. De fato, tudo indicava que tinha motivos mais que sobrados para não fazer. Mas não ficava mais remédio. Tinha tomado sua decisão quando acessou a coroar ao Robert.
Assentiu. Que Deus a ajudasse. Assentiu com a esperança de não ter tomado a pior decisão de sua vida. Permitiu que a tirasse do castelo e que a arrastasse junto ao resto dos espectadores aterrorizados. Os guardas, ocupados em sufocar o fogo e apanhar aos valiosos cavalos de seu marido antes que desaparecessem na campina, não lhes emprestaram a menor atenção. O rufião a arrastou consigo para as árvores. Ela não deixava de olhar atrás para tentar localizar a sua filha entre a multidão. Joan ia vestida de vermelho, com um vestido granada intenso com bordados de linho, ouro e pérolas.
—Onde está? —perguntou passado um momento— Não a vejo. —Lachlan não respondeu, mas sim a puxou e entrou cada vez mais na floresta. Logo perderia de vista o castelo totalmente— Os Detenha! —disse retrocedendo e plantando os calcanhares no chão— Onde se encontram seus homens? Onde está meu…?
Bela emudeceu para ouvir agudos assobios atrás dela. Lachlan respondeu à chamada e momentos depois se aproximaram até eles dois cavaleiros que levavam um par de cavalos adicionais, um dos quais reconheceu como o de seu marido.
—Tem-na? —perguntou um dos cavaleiros.
Igual a Lachlan, nenhum dos dois homens vestia como os cavalheiros. Ambos usavam elmos com nasal enegrecidos, cotas de guerra acolchoadas de couro negro e arrebitadas com peças de metal, e tàrtans escuros de corte estranho.
—Sim - respondeu Lachlan.
—Algum problema? —perguntou o outro.
—Nada que não pudesse resolver. —Lachlan tomou as rédeas de um dos cavalos.
Bela olhou a seu redor, esperando ver mais homens.
—Onde está o resto da escolta?
O menor dos dois cavaleiros, que tinha falado primeiro, sorriu.
—Nós somos o resto da escolta, minha senhora.
Bela dirigiu seu olhar a Lachlan .
—E então quem foi a procurar a minha filha?
Lachlan nem tão sequer pestanejou. Nada indicava a menor expressão de desconforto. Parecia justamente o que era, um patife perverso e desumano.
Deu de ombros com indiferença.
—Era impossível. Não tínhamos tempo. Olhe - disse assinalando para o castelo— Já têm tudo sob controle. Os guardas voltaram para a porta.
Mas Bela não queria olhar. Sentia como o horror crescia em seu interior à medida que se inteirava do que ele dizia, pelo que lhe tinha feito.
—Mentiste-me! —exclamou atravessando-o com o olhar com uma voz trêmula pela raiva.
Mas sua ira não causava nenhum efeito nele.
—Fiz o que tinha que fazer para que saíssemos dali. —Sem desculpas nem arrependimento, simplesmente «isso é o que há», parecia lhe dizer— A garota estará melhor no castelo. O lugar ao qual vamos não é lugar para crianças.
A ira se desatou em seu interior como um torvelinho. Como se atrevia! Era ela quem tinha que decidir onde estaria a salvo sua filha.
— Essa decisão não correspondia a ti.
—Sim, correspondia-me. Meu dever é a levar ao Scone.
—Seu dever é nos levar ao Scone a mim e a minha filha.
Lachlan franziu a boca de maneira quase imperceptível, mas além disso não pareceu lhe afetar absolutamente. Enquanto isso o coração de Bela se rompia em milhares de pedaços minúsculos. Olhou para as portas do castelo onde estava reunida a guarda. Cada célula de seu corpo lhe exigia que voltasse ali, por mais insensato que fosse. Joan era a pessoa mais importante no mundo para ela. Necessitava-a. Como ia abandona-la? Não era assim como tinham que ser as coisas. Nunca tivera intenção de… Olhou aos outros dois homens em busca de ajuda, mas o único que viu em seus olhos foi comiseração.
O patife se cansou de esperar.
—Então o que decides, condessa? Virás conosco ao Scone e manterá a promessa que fizera a Bruce, ou voltará junto a sua filha e seu marido?
Estava claro que lhe importava quase nada.
Bela jamais desprezou a ninguém como naquele momento. Percebeu a sutil provocação de suas palavras. Ele sabia que estava apanhada. Não podia retornar, inclusive no caso de que pudesse esquecer sua responsabilidade e voltar as costas a Bruce e a todo seu povo. Se seu marido a agarrava…
Não poderia proteger sua filha da tumba.
A emoção se apoderou dela e fez que lhe ardessem a garganta, os olhos e o peito. Tinha sido uma idiota por confiar em uma só palavra que saísse da boca embusteira de Lachlan MacRuairi. Tinha vontade de amaldiçoá-lo, de golpeá-lo, de desatar sua ira contra ele como uma louca. Tinha vontade de derrubar-se e chorar no chão toda sua desolação. Mas todos esses anos controlando suas emoções valiam para algo. «Jamais mostre sua debilidade. Nunca ofereça a possibilidade de que lhe firam.» Enquanto se obrigava a acalmar sua cólera, jurou que algum dia apagaria a careta de indolência do cruel e bonito rosto de Lachlan MacRuairi.
Tomou as rédeas que lhe oferecia sem dizer nada mais e permitiu que a ajudasse a montar no cavalo. Quando empreenderam a marcha Bela endireitou as costas até fazer dela um muro de aço que não deixava traslucir as demolidoras emoções que a destroçavam por dentro. «Não será por muito tempo», disse-se. Do mesmo modo que tinha chegado ao dela, Robert encontraria a forma de chegar aos corações do povo assim que reinasse. Mas Bela não descansaria até que voltasse a ter a sua filha entre seus braços.
Capítulo Dois
Lachlan se sentou em uma rocha junto a Gordon e MacKay e saboreou com gosto a singela comida composta de carne-seca de vitela e torta de aveia. O ardente olhar da mulher que o fulminava do fundo da caverna não lhe inquietava o mais mínimo. Importava-lhe um corno o que pensasse. Fez o que tinha que fazer para tirá-la dali o quão antes possível. A mentira, a astúcia e a rapina eram partes da guerra. Sabendo a engrenagem que ela mesma estava a ponto de pôr em funcionamento seria melhor que se acostumasse a isso.
Não era que estivesse na melhor posição para julgá-lo. Pelo amor de Deus, se acabava de abandonar seu marido para coroar a seu rival mais encarniçado. Se Buchan não fosse um crápula malvado e insofrível poderia inclusive se compadecer desse bastardo. Ele sabia melhor que nenhum outro homem que não podia esperar lealdade de ninguém, e muito menos de uma esposa. No caso de que Lachlan necessitasse ainda mais raciocínio para não voltar a casar-se, algo que estava muito longe de ser verdade, o seu seria outro exemplo esclarecedor. Que fora ao inferno. Faria o necessário para salvar a missão. Não havia forma de recolher sua filha a tempo. Tinham montado nos cavalos apenas um minuto antes que se ouvisse a correria de cascos do exército que se aproximava. Não tinha por que sentir-se culpado. A missão dependia de sua decisão. Realizar sua tarefa era quão único importava.
E voltaria a fazer, maldita seja.
Embora a próxima vez não a olharia nos olhos. O orgulho não tinha conseguido mascarar a expressão de seus olhos quando partiram dali, abandonando a sua filha. Havia visto suficientes homens torturados para reconhecer. Agonia. Pura agonia, crua e simples.
Lachlan deu outro bocado à carne-seca para mitigar a leve pressão que oprimia seu peito, consciente de que estava muito acima para que fosse fome. Fez uma súbita careta e alcançou seu odre para tomar um longo gole de uisge-beatha. Gordon o estava observando.
—Passa algo a sua comida?
—Esta maldita carne-seca está rançosa.
—A minha tem sabor bom.
Lachlan deu de ombros e deu outro longo gole. O fogo líquido do uísque apagava o sabor de algo. Percebia o olhar de MacKay, mas o feroz highlander não disse nada. Não precisava fazer. Notava-se claramente sua desaprovação.
Magnus MacKay procedia das montanhas do norte da Escócia. Era um dos filhos de cadela mais duros com os que Lachlan se encontrara: alto, de grande musculatura e quase tão forte como Robbie Boyd, era capaz de sobreviver nas condições mais extremas e variadas. Um dos poucos lugares nos que não se sentia cômodo era em cima de um cavalo. Na melhor das circunstâncias não era dos cavaleiros mais elegantes, nas piores parecia manter a posição em sua sela por pura força de vontade. Depois da angustiosa noite que tinham passado, a metade da qual tinha transcorrido sob uma chuva torrencial, a condessa não era quão única necessitava um descanso.
Lachlan não caía bem ao MacKay, mas essa era a norma geral. Não passaria nada enquanto não se intrometesse em seus assuntos. Estava mais claro que a água que não era camaradagem o que procurava quando se uniu ao grupo secreto e seleto de guerreiros fantasmas de Bruce. Tinha que admitir que se tratasse de um conceito intrigante. Os melhores guerreiros de cada disciplina da guerra reunidos em uma força de elite. Já tinha visto do que eram capazes. Mas não poderiam ganhar a guerra sozinhos, e Lachlan se mostrava cético quanto a cavalheiros como Robert Bruce, educados no código de cavalaria, adaptassem-se às táticas furtivas dos highlanders.
Era sem dúvida o melhor grupo de homens com o que Lachlan tinha lutado. Mas isso não significava que queria ganhar sua confiança, nem que ele estivesse disposto a confiar neles. A traição de sua esposa lhe tinha ensinado uma dura lição em relação à confiança, uma lição que tinha acabado com a vida de seus homens e tinha confiscado seus bens e o desonrado injustamente. Assim se tornara o que restou: ser um assassino profissional que vivia por e para a espada.
—Tem algo que dizer, Santo? —desafiou Lachlan ao MacKay, usando o nome que MacSorley tinha escolhido para mofar do gigante.
O apelido não fazia referência a sua piedade, mas sim a que MacKay nunca falava de mulheres, enquanto o resto dos homens não conversavam de outra coisa, já estivessem em uma missão, uma batalha ou longe de casa, sentados junto ao fogo de noite. Lachlan tinha intenção de averiguar qual era o motivo.
—A condessa tem razão - disse MacKay soltando a estranha ferramenta em que trabalhava. Sempre procurava encontrar formas de fazer as armas mais eficientes, quer dizer, mortíferas— Supõe que tínhamos que trazê-la a ela, e também à garota.
—Já explicou o que passou - interveio Gordon antes que Lachlan o mandasse a passeio— Não teríamos tido tempo.
William Gordon possuía uma única destreza, e não era a de ser um dos poucos aos que caía bem Lachlan. Sabia como fabricar trovões e fazer fogo voador com a antiga receita de pó negro que seu avô tinha levado daTerra Santa.
—Talvez não —concedeu o teimoso highlander—, mas se nos tivesse contado seu plano poderíamos ter ajudado.
—Como? —desafiou-o Lachlan— Nada que pudessem fazer teria mudado as coisas. Minha missão era conseguir que entrássemos no castelo e encontrar à mulher. Gordon e você se encarregavam da distração. Não necessito que você nem nenhum outro vigie o que faço. —Quão único teriam conseguido era estorvar-me, pensou, e eles sabiam tão bem como ele— A tirei dali, sim ou não?
—Sim, tirou-a —disse MacKay olhando-o fixamente— Mas se eu fosse você, vigiaria minhas costas durante um tempo.
Ao menos nisso ambos estavam de acordo.
Gordon tinha tirado a capa que levava sobre os ombros para desaparecer na noite, enrolá-la fortemente com as mãos e escorrer a água da chuva sobre a terra que tinha a seus pés.
—Tinha razão em algo mais —disse a Lachlan em voz baixa— Este não é lugar para pirralhos - acrescentou sentindo um calafrio— Como eu gostaria de poder acender um fogo.
Mas não podiam arriscar-se. Embora Lachlan esperasse ter posto uma boa distância entre o Buchan e eles, não podiam estar seguros do tempo que teriam levado descobrir a fuga de sua esposa.
Ao dar conta de que aquele par de pupilas de fogo já não perfuravam suas costas, Lachlan olhou dissimuladamente ao final da caverna e viu que a condessa tinha aceitado seu conselho de descansar enquanto pudesse. Não ficariam ali durante muito tempo.
Gordon o seguiu com o olhar.
—É uma mulher muito valente —disse com evidente admiração— Me pergunto por que o faz. —Isso também se perguntava Lachlan— Uma mulher excepcional.
—Não acredito que seu marido pense o mesmo - respondeu com dissimulação.
—Esse bastardo briguento. É um tirano igual de desprezível que Eduardo. Tem idade para ser seu pai e ela está… —Deixou em suspense as palavras e Lachlan sentiu uma irritação absurda ao saber exatamente aonde dirigia Gordon seus pensamentos. Ao mesmo lugar que foram os de Lachlan cada vez que a olhava: a seu pau. Por essa mesma razão evitava olhá-la— Tem algo difícil de expressar com palavras. —«Sensualidade. Sedução. Sexo», pensou Lachlan. Gordon deu de ombros, dando-se por vencido— É um desperdício que esteja com um velho. Buchan não se merece essa bênção.
Lachlan arqueou uma sobrancelha.
—Então a juventude e a beleza desculpam a traição? —Era hora de provar sua teoria— Espero que seja igual e condescendente com sua esposa. —Embora falasse com o Gordon, observou ao MacKay, e viu que o enorme highlander ficava paralisado— Já sabe que ainda está em tempo de pensar melhor o seu casamento. Não te casará até…
—Ainda não há data —disse Gordon— Nos prometemos justo antes que fizéssemos o adestramento em Skye.
MacKay não tinha feito nenhum movimento. Normalmente quando saía o tema das bodas iminente do Gordon se levantava e partia imediatamente.
Pode ser que o pressentimento de Lachlan fosse errôneo.
—Então tem tempo de sobra para te salvar —disse— Pode acreditar no que te digo. O matrimônio é a peste negra da alma. Uma esposa fará sua vida miserável.
Era impossível irritar ao Gordon. Simplesmente sorriu.
—Uma só uva azeda não danifica todo um barril de vinho. Não todas as mulheres são como sua esposa.
—Graças a Deus - respondeu Lachlan estremecendo-se.
Gordon tinha razão. Mas o desastre podia passar a qualquer. Não passava a vida pensando na traição de Juliana, mas lhe custava muito esquecê-la. E tinha muito claro que não queria saltar nesse poço negro de novo.
—Além disso, não poderia me liberar disso embora quisesse - disse Gordon sorrindo e negando com a cabeça— Os esponsais têm tanta validade como o contrato de matrimônio. A honra me obriga a cumpri-lo.
Lachlan emitiu um áspero som que pretendia ser uma risada.
—A honra não tem nada a ver com o matrimônio - disse voltando a fixar-se no MacKay— Como é sua prometida? Feia como uma porca ou formosa como essa condessa que temos ali?
—Não sei. —Gordon deu de ombros.
Aquilo surpreendeu a Lachlan .
—Não a conhece?
Gordon negou com a cabeça.
—Foi um acerto de nossos pais. —Uns pais que Lachlan sabia que se opunham a Bruce— Cresci com seu irmão —acrescentou a modo de explicação.
Pode que ao fim e ao cabo Lachlan não tivesse se enganado. Viu que MacKay se dispunha a levantar-se, mas o deteve.
—Os Sutherland são seus amigos, verdade, Santo? —disse com ironia. A prometida de Gordon era Helen de Moray, a filha do conde de Sutherland, e havia poucas inimizades mais longas e intensas que as que mantinham os MacKay e os Sutherland— Alguma vez viu à sua filha?
A mão do MacKay se abateu com força sobre a manga da faca que sustentava. «Interessante.»
—Sim - disse com todo o entusiasmo de alguém a quem lhe arrancam um dente.
Gordon não ocultou sua surpresa.
—Não havia isso dito.
MacKay deu de ombros com indiferença, embora Lachlan suspeitasse que fosse algo menos indiferente ao tema.
—Não me pareceu importante.
Lachlan pressentiu o ponto fraco e foi dar onde mais doía.
—E o que pensa você, Santo? Necessitará nosso amigo Gordon várias jarras de uísque para passar o mau de foder a sua esposa, ou estará desejoso de afundar o membro entre suas suaves e aveludadas coxas?
Durante um instante se perguntou se teria exagerado. MacKay o olhava como se quisesse matá-lo. Mas a expressão do rosto mudou tão rápido que pensou que tinha imaginado. Embora não fosse assim.
—É um bastardo da pior índole, MacRuairi. Não sei por que demônios Bruce pensou que podia ser parte desta equipe. É um veneno.
Lachlan sorriu.
—Justamente por isso me quer o Bruce.
Silencioso e mortífero. A arma perfeita.
Teria dito mais, mas ao ver a inquietação no rosto de Gordon deixou o tema correr.
Bela despertou sobressaltada. Olhou a seu redor, viu aqueles muros de pedra desconhecidos e durante um momento não soube onde se encontrava. Depois recuperou a memória e todo o desespero e aflição da noite anterior a enrolaram com novas forças.
«Mantém a salvo a minha filha. Por favor, mantém a salvo minha filha.»
Buchan não lhe faria mal. Ao menos fisicamente. Joan era o único bem que existia entre os dois. As injúrias iracundas de seu marido e suas irracionais suspeitas nunca salpicaram à filha. Buchan amava à tranquila menina de olhos grandes e comovedores tanto como podia amar a qualquer um. Joan levava a marca de seu pai em seu cabelo moreno, seus olhos azuis e seus traços de beleza clássica.
Graças a Deus.
Seu marido a tinha acusado de muitas coisas horríveis ao longo dos anos, mas nunca de dar a luz a uma filha bastarda. A mesma Bela era uma menina quando teve Joan. Acabava de fazer dezesseis anos. Lembrava perfeitamente o momento em que estava incorporada na cama sustentando ao bebê e esperando a que seu marido fosse ver o pequeno milagre que tinha em seus braços.
Naquele instante teria perdoado tudo. Inclusive a brutal maneira que a tinha despojado de sua virgindade no dia das bodas. Com quinze anos de idade era muito jovem para deitar-se com ele. Mas Buchan parecia um cão no cio e não pôde esperar para lhe tirar a roupa, atirá-la na cama, e obrigá-la que abrisse as pernas e afundar seu membro endurecido em seu interior, sem levar em conta sua inocência e sua juventude. E pensar que antes que se casassem parecera tão bonito, com seu cabelo escuros e seus olhos claros. Mais velho sim, mas ainda no melhor de sua maturidade. Não era especialmente alto, mas há vinte anos era cavalheiro. Renomado pelo mesmo rei Alexander quando tinha só vinte e um anos de idade. E, além disso, possuía a força e a compleição muscular de um guerreiro. Mas chegou a odiar essa força física que a atraía em princípio. Odiava a forma como podia dominá-la por completo.
E mesmo assim, teria esquecido todos os desencantos sofridos durante seu primeiro ano de matrimônio no dia do nascimento de sua filha se ele tivesse mostrado um mínimo de amabilidade para ela. Se a tivesse encarado com um pouco parecido ao afeto, em lugar de com instinto de posse e luxúria.
Mas em lugar disso a olhou uma só vez e disse:
—Podes que seja melhor que esteja sempre grávida. Está mais gorda que uma vaca velha. Assim ninguém te quererá.
Suas palavras acabaram com qualquer pensamento de felicidade. Desde aquele momento em adiante Bela soube perfeitamente no que consistia seu matrimônio: ela era sua “escrava” e ele seu amo ciumento.
Lutou contra isso da única maneira que podia, acessando a suas demandas, já que era seu dever, mas com estoica indiferença. Quanto mais procurava humilhá-la Buchan tentando provocar uma reação nela, com mais frieza se comportava Bela. Até que deixou de sentir absolutamente.
Mas o mais duro eram os ciúmes e as suspeitas. Não era culpa dela que os homens a olhassem. Vestia-se com recato, inclusive com severidade. Arrumava o cabelo de maneira pouco atraente. E ele seguia acusando-a de provocá-los, de incitá-los com seu olhar e seu sorriso.
Deixou de ir com ele a corte. Retirava-se a um segundo plano quando os visitavam os homens. Mantinha o olhar baixo e nunca sorria. Mas ele via seus esforços com desconfiança e a acusava de deitar-se com amantes imaginários às escondidas.
Acusava-a sem importar o que fizesse. Bela começou a cansar de defender-se, até que ao final se deu por vencida. Começou a vestir como queria, a levar o cabelo como queria e a falar com outros homens se desejava muito. Fez ouvidos surdos a suas acusações e aprendeu a viver em uma prisão de suspeitas, sonhando com o dia em que se livraria dele.
Mas jamais pensou que ocorreria de tal modo.
Consolava-se como podia de sua situação, pensando que embora seu marido a odiasse pelo que tinha feito nunca pagaria com sua filha. Isso esperava. Mas o que pensaria Joan quando soubesse que sua mãe se foi sem lhe dizer nada? Buchan podia ser muito cruel e calculado. Muito vingativo. Temia que seu marido envenenasse a mente da menina e a pusesse contra a ela. Se ao menos pudesse contar seus planos ao Joan, assim ela saberia que não tinha intenção de abandoná-la.
Bela se ergueu e sacudiu o cansaço que aquela cabeçada tão logo tinha mitigado. Era difícil relaxar quando sabia que seu marido andava por aí a procurando. O nó de angústia que tinha no estômago desde que saíram de Balvenie, era seu fiel companheiro. Enlouqueceria de ira. E o fato de que aquilo tivesse a ver com Robert Bruce o pioraria. Dessa vez não valeriam de nada suas ameaças de castrá-lo quando dormisse se lhe batesse de novo.
Viu William Gordon à entrada da caverna aninhado contra a parede. Seguiu a direção de seu olhar e se inquietou ao ver o que atraía sua atenção. Parecia que Lachlan MacRuairi e Magnus MacKay tinham uma acalorada discussão a pouca distância deles, em uma pequena clareira entre as árvores. Bom, ao menos era MacKay. MacRuairi o olhava com seu sorriso indolente, como se nada no mundo lhe importasse. A ira que lhe inspirava aquele patife não tinha diminuído absolutamente com o passar do exaustivo trajeto a cavalo da noite anterior, e o dia parecia ir pelo mesmo caminho. Deus, que vontade tinha de livrar-se dele. Não demoraria muito. Os homens tinham dito que demorariam dois dias de galope até Scone, o que significaria chegar uma noite antes da coroação.
Bela se levantou e se dirigiu para Gordon.
—Não parece que seu amigo tenha muita avaliação de ti-disse sentando-se em uma rocha frente a ele.
O jovem guerreiro esboçou um simpático sorriso. Possuía um atrativo juvenil: uma massa ondulada de cabelo castanho, olhos de um azul rutilado e dentes brancos perfeitamente alinhados. Sob circunstâncias normais o teria encontrado imponente, mas seu físico não intimidava tanto quando o comparava com MacRuairi e MacKay. De primeiro momento Bela teve a sensação de encontrar-se diante de alguém afável, o tipo de homem que sempre caía nas graças das pessoas, uma impressão que corroboraram suas seguintes palavras.
—MacRuairi? Ah, não é tão mau como parece. —Bela, que suspeitava que fosse ainda pior do que parecia, resistiu a tentação de soprar de maneira pouco feminina— Me temo que não teve a oportunidade de causar uma grande primeira impressão, mas não podia fazer outra coisa.
—Não têm que te desculpar por ele —disse Bela com um gesto de desdém— Simplesmente admira-me que Robert se mescle com uma pessoa como essa. Aliar-se com um pirata briguento e mercenário como Lachlan MacRuairi não ganhará o favor do resto dos nobres. Pergunto-me quanto custou comprar sua lealdade, ou sua lealdade temporária, melhor dizendo.
Bela deixou de falar de repente. Sentiu um formigamento de calor que ruborizou toda sua pele e notou que o sangue corria mais rápido por suas veias. Tinha o pressentimento de que Lachlan estava justo atrás dela.
—Não o suficiente —disse MacRuairi rotundamente— Prepara os cavalos-acrescentou dirigindo-se ao Gordon— Partiremos assim que volte MacKay.
O jovem guerreiro os deixou para cumprir com suas obrigações.
Bela se levantou e não viu mais que sinceridade ao escrutinar seu rosto.
—Assim não negas?
Lachlan a olhou nos olhos. Tirou o elmo, e ela teve que admitir que à fria luz do amanhecer sua presença era impressionante. Quer dizer, sempre que se gostasse dos patifes escuros e perigosos transbordantes de virilidade, algo que era humilhante reconhecer. Seu cabelo ondulado e negro, os impactantes olhos verdes e seus cinzelados traços tão bem esculpidos outorgavam um atrativo que incitava a pecar. Só notar isso era um pecado em si mesmo. Porque, por mais que quisesse pretender outra coisa, não se tratava de uma observação abstrata como as que tinham feito anteriormente nas estranhas ocasiões em que a permitiam estar perto de um homem bonito. A aceleração do pulso, o sobressalto de sua respiração e o formigamento que sentia na pele eram inequívocos.
Pelo amor de Deus, o que estava passando?
Talvez seu marido tivesse razão. Uma só noite fora daquela prisão e seu corpo reagia como o de uma mulher que se encontrava com um cavalheiro bonito pela primeira vez. Só que Lachlan MacRuairi não era nenhum cavalheiro, e Bela era uma mulher adulta com suficiente experiência. Era desconcertante saber que podia ser tão superficial, se não ela, ao menos seu corpo. Não importava quão agradável fosse de ver. Não havia nada remotamente não atraente em Lachlan MacRuairi.
—Por que teria que fazer? —disse encolhendo os ombros com naturalidade— O dinheiro é tão boa razão como qualquer outra para combater. De fato é melhor razão que a maioria.
Aquele homem não tinha vergonha.
—É que não te importa nada do que acontece a seu redor?
Sua boca se torceu em um gesto irônico.
—Claro! Há muitas coisas que me importam.
Bela ergueu o queixo com desdém.
—Coisas que não sejam o ouro e a prata?
—Também mostro certa inclinação pelas terras.
Seu sorriso a enfurecia, embora não sabia por que. Não podia esperar que um homem que não tinha mais lealdade que sua própria bolsa pudesse compreendê-lo.
—Não há nada mais pelo que lutaria? Alguma coisa pela que se sacrificaria? O que ocorre com a integridade e as crenças? O que acontece ao dever e a responsabilidade? E o que opinas sobre o bem para Escócia e seu clã?
Lachlan riu de tal forma que a fez sentir como se acabasse de sair de um convento.
—Senhor, és divertidíssima, condessa! Que paixão, que convicção. Mas vejamos se esses seus ideais seguem firmes dentro de um ou dois meses.
Bela apertou os punhos para reprimir as infantis ganas que tinha de esbofeteá-lo e apagar esse sorriso condescendente de seu rosto. Aquela atitude cínica e egoísta era a culpada dos males da Escócia.
—Não acredita em Robert? Não acredita em sua vitória?
Lachlan deu de ombros com indiferença.
—Se tudo sair bem, Bruce terá uma oportunidade. Mas é uma aposta contra um inimigo muito poderoso - disse olhando-a severamente— Eduardo não perdoará a aqueles que o desafiarem. —Seus olhos passearam por seu corpo com frieza, mas aquilo pareceu ter o efeito oposto nela, já que o calor se expandiu por toda sua pele— Por mais que se trate de uma formosa condessa.
—Já sei ao que me arrisco - respondeu Bela ruborizada.
Tinha que lutar pelo que acreditava. Se não, como ia esperar que o fizessem os outros? Se todos fossem como ele, jamais liberariam a Escócia do punho de ferro de Eduardo. Algumas coisas estavam por cima da própria pessoa, e essa era uma delas. Bela acreditava em Robert Bruce. Acreditava que a Escócia tinha que ser sacudida da dominação inglesa e que ele era o homem adequado para conseguir.
Estava fazendo o correto.
—Sério? —perguntou Lachlan olhando-a com atenção— Já veremos.
Voltou-se para olhar um cavaleiro que aproximava. Tratava-se de MacKay, e pela expressão que viu em seu rosto estava claro que algo ia mal.
—Temos um problema - disse.
Seu aspecto não era tão feroz como o de Lachlan, mas aquele arisco guerreiro era igual e imponente. Embora não ameaçador, ao menos não tanto como MacRuairi. E era um desses poucos homens que a olhavam sem um brilho de luxúria nos olhos.
—Buchan? —perguntou Lachlan atrás a soltar uma imprecação.
—Sim. —O gigante assentiu com seriedade.
—Está logo atrás? —perguntou Gordon ao mesmo tempo em que ia a seu encontro com os cavalos.
—Sim, e também a frente. Bloqueou o caminho a meia milha daqui.
Bela tentou dominar o violento acesso de pânico que sacudiu seu peito.
—Mas como nos encontrou?
Dirigiu sua pergunta ao MacKay, embora fosse Lachlan quem respondeu.
—Sabia que caminho tomaríamos para chegar ao Scone. Nossos rastros não devem ter sido muito difíceis de seguir. Confiei em que a chuva nos ajudaria. Certamente descobriu seu desaparecimento imediatamente - acrescentou olhando aos outros dois.
Um suor gelado percorreu as costas de Bela.
—Assim sabe onde estamos?
—Suspeita que estamos nesta zona —disse MacKay.
—Então nos afastamos do caminho e vamos a outra direção? —Ao ver que nenhum dos homens respondia o temor voltou a acelerar seu coração— Qual é o problema?
O patife foi o primeiro em falar.
—Não é tão fácil. Ao sul temos um rio e ao norte terreno pantanoso. Com tanta chuva seria muito perigoso tentar cruzar levando os cavalos.
—Quer dizer que escolheu para descansar um lugar no qual não teríamos escapatória?
Dirigiu sua pergunta a Lachlan , que era quem parecia estar no comando. Sua expressão não mudou, mas ela sabia que aquela crítica o tinha enfurecido. Seus olhos verdes esmeralda brilhavam com mais intensidade.
—Detive-me porque os cavalos precisavam descansar e porque estavam a ponto de cair da sela. Esta caverna está oculta e é o único lugar que conheço no que podíamos nos manter a salvo neste território. E também está seca, algo que pensei que apreciariam.
Bela se ruborizou, consciente de que tinha razão.
—Então estamos presos?
—No momento sim.
Como podia permanecer tão tranqüilo quando ela estava a bordo da histeria?
—Isso é tudo? Não têm nenhum plano?
Lachlan sorriu. Com tanto perigo sorriu! Senão estivesse tão furiosa, teria podido inclusive reparar nas rugas no canto de seus olhos.
—Sim, ficar onde estamos.
—Durante quanto tempo?
Faltavam só dois dias para a coroação.
—Até que se dê por vencido, ou… —disse Lachlan MacRuairi, e não terminou a frase.
—Ou o que? —perguntou ela, sem estar segura de querer saber.
—Ou até que se aproxime muito.
Capítulo Três
Lachlan retornou à caverna ao anoitecer. Sabia que deveria estar cansado depois desse longo dia reconhecendo o terreno e seguindo aos homens de Buchan até assegurar-se de que partiram, mas seu corpo bulia de inquietação. Depois de quase dois dias de espera se sentia como um leão da ménagerie7 do rei Eduardo encerrado em uma jaula minúscula, embora tivesse sido uma loucura tentar ganhar uma corrida dos homens de Buchan com a condessa a reboque e sem cavalos descansados.
Não era a primeira vez que desejava ser ele quem tomasse a dianteira para avisar a Bruce do atraso, em lugar de Gordon.
Mandar ao MacKay não teria tido sentido. Necessitavam a um cavaleiro destro e capaz que pudesse burlar as defesas de Buchan. Lachlan teria servido, mas Bruce o tinha posto no comando.
Gostasse ou não, aquela era sua missão.
Ou o que ficava dela. A coroação estava prevista para o dia seguinte e seguiam virtualmente a duas jornadas do caminho.
Tinha subestimado os recursos e a determinação de Buchan. Devia ter na metade de seus homens batendo os campos em busca de sua esposa. Houve momentos em que estiveram perto de achá-los, mas o lugar que Lachlan tinha escolhido para ocultar-se era bom, e ao fim parecia que até o último dos homens de Buchan abandonava a busca. Para assegurar-se esperariam mais umas horas antes de partir. Já quase tinham terminado, graças a Deus! Estava ansioso por esquecer-se daquela missão.
Os últimos dias tinham sido um inferno e Bela MacDuff seu demônio particular. Teria gostado de dizer que porque era um chateio, porque fazia solicitações irrealizáveis, criticava-os ou se queixava da situação. Mas não podia. De fato tinha que admitir que se adaptou bastante bem a suas pouco luxuosas instalações. A maioria dos nobres que conhecia teriam se sentado em uma rocha esperando que lhes servissem ou teriam passado o tempo se queixando de seu malfadado destino. Mas aquela condessinha orgulhosa tomou como algo pessoal o trabalho de varrer a caverna, tirar as teias de aranhas e limpar os poucos utensílios de comida, e se oferecia para ajudar sempre que tinha a ocasião. Para ajudar ao MacKay, claro, não a ele.
Embora parecesse delicada e vulnerável, tinha garra. Bela MacDuff era uma mulher atrevida, forte e orgulhosa, algo que convidava a pensar que poucas coisas poderiam acabar com ela. Inferno, tendo em conta o que faria, precisaria contar com toda essa força. Mas o que o punha tensa não era fosse geniosa, nem que fosse mimada. O que alterava seus nervos eram as reações que provocava nele. Bastava uma palavra de sua sensual boca, que olhasse essas voluptuosas curvas ou cheirasse sua doce essência feminina para ver-se imerso em espirais de luxúria cada vez mais difíceis de ignorar. Aquela caverna era muito pequena. Lachlan cometeu o engano de tropeçar com ela sozinho uma vez, e esteve a ponto de sair de sua própria pele. Ao seu pau pouco parecia importar que ela o desprezasse. Essa debilidade o enfurecia. Era como se se desataram de repente todas as reações que tinha estado controlando durante tantos anos.
Preparou-se mentalmente para entrar na caverna. Estava a ponto de dar o assobio que advertia de sua presença quando ouviu risadas que o fizeram deter-se em seco. O suave e aveludado som de sua voz flutuava atravessando a escuridão, roçando sobre sua pele como uma cálida carícia e lhe pondo todos os nervos tensos. Todos os músculos de seu corpo endureceram. Apertou os punhos em uma tentativa de sufocar o acesso de calor quase instantâneo que sofria cada vez que se encontrava a pouca distância dela.
—Isto é delicioso —ouviu que dizia.
Inclusive sua voz era sedutora. Suave e melosa como pudim quente.
Quando MacKay balbuciou sua resposta Lachlan suspeitou que o feroz guerreiro se desfizesse com o elogio e sentiu um arrebatamento de ira. Entrou uns passos na caverna para dar uma olhada ao interior. A luz se refletia na suave cascata de cabelos loiros que descia resplandecendo por suas costas. Lachlan imaginou que caíam sobre seu próprio corpo como um quente véu de cetim. Tinha vontade de afundar seus dedos entre eles, de que acariciassem seu rosto, de aspirar sua profunda e embriagadora fragrância.
«Diabos.» Sentia a chamada desse frio ardor. De novo.
—Quem poderia imaginar que esse peixe cru estivesse tão delicioso! —Bela agarrou outra parte de peixe da terrina que MacKay tinha esculpido a partir de um pedaço de madeira. Que atento, o muito bode— Com o que fez o molho?
MacKay fez uma careta de satisfação e Lachlan apertou os punhos ainda mais.
—Com vinho e ervas, isso só.
—E tudo isto o encontrastes por aqui perto? É um homem com qualidades muito úteis, Magnus MacKay.
Lachlan sentiu uma grande irritação. MacKay juntou umas quantas ervas e lhe lançava flores como se tivesse convertido a água em vinho. Ele passava horas, dias, sob a chuva, assegurando-se de que ninguém se aproximava para preservar suas vidas e quão único conseguia era que o fulminasse com o olhar quando se via obrigada a reconhecer sua existência.
Não gostava dessa escura sensação que bulia em seu interior. Uma sensação que o chamava a dar um murro no MacKay, em sua estupenda mandíbula sem nenhum motivo. Não havia nada impróprio na maneira em que se comportavam. A condessa simplesmente parecia congraçar-se com o enorme highlander de um modo sincero, algo que criava um marcado contraste com o rechaço que sentia a Lachlan. Mas que o rechaçassem não era nada novo, assim não havia razão para que lhe incomodasse tanto.
MacKay deu de ombros, obviamente sobressaltado, mas também obviamente agradado.
—Não é difícil quando sabe o que buscas.
Ela voltou a rir.
—Mas nisso mesmo consiste, não é certo? Pediria-lhes que me ensinassem, mas temo que sou uma inútil na hora de distinguir as plantas. Joan é a que…
Bela se deteve repentinamente e Lachlan respirou fundo. Voltava a sentir aquela molesta pontada no peito. Teria pensado que era culpa se acreditasse que seria capaz de senti-la. Mas ele não desperdiçava o tempo fustigando-se por questões que não podia mudar.
Quando Bela acabou a frase Lachlan notou da emoção que embargava sua voz.
—… Minha filha é a que se entende bem com as plantas.
A rouca voz do highlander adotou um tom surpreendentemente amável.
—Estais preocupada com a menina.
A condessa assentiu. Embora estivesse olhando para outro lado, Lachlan sabia que seus olhos estavam alagados em lágrimas. Ocorria cada vez que tocava no nome da garota.
—Não fará mal Buchan a ela, não é? —perguntou MacKay com seu sotaque resistente.
—Não —respondeu ela negando com a cabeça— Não acredito, ao menos. Mas não disse a Joan quais eram meus planos. Nunca lhe contei que tinha intenção de levá-la comigo. E temo que lhe esquentará a cabeça com todo tipo de mentiras terríveis. Somente espero que…
Sua voz se apagou. Mas depois esticou a mandíbula e franziu os lábios.
Lachlan não era o único que tinha adivinhado o que estava pensando.
—Me sinto tão mal, quase como a condessa —disse MacKay—, mas nem MacRuairi nem ninguém poderia resgatar sua filha a tempo, tendo a explosão preparada e seu marido tão perto. Apesar de que o vi sair gracioso de algumas situações impossíveis, asseguro-lhe que inclusive ele teria tido problemas para tirar uma mulher e a sua filha às escondidas de uma fortaleza como Balvenie vigiada por seu marido e seus homens.
Maldita seja! Lachlan não necessitava que MacKay o defendesse. Entrou na caverna, ignorando seu gesto de reprovação por não dar o sinal combinado, e se deteve um par de metros de onde estavam sentados. Resistiu a tentação de aspirar seu aroma. Como diabos podia cheirar tão bem depois de dois dias naquela caverna? Amaldiçoou uma vez mais a MacKay, nessa ocasião por ter dado aquele condenado sabão.
Bela, com os olhos ainda chorosos da emoção, dirigiu-lhe um rápido olhar. A molesta pontada no peito o assaltou com mais força.
—Sinto muito —disse com aborrecimento, sem saber que demônios fazia— Lamento que nos víssemos obrigados a abandonar a sua filha.
Lachlan juraria que ouviu como a boca do MacKay se abria de repente. A condessa parecia igualmente surpresa. Ergueu olhar de novo, mas dessa vez não desviou o olhar imediatamente. Permaneceu escrutinando seu semblante, e Lachlan, embora soubesse que não expressava emoção alguma em seu rosto, sentiu-se incômodo. Do mais incômodo dos incômodos.
—Mas não lamenta ter mentido.
—Não —disse negando com a cabeça— Tinha que a tirar dali. Teria se negado, e não tínhamos tempo para discussões.
—E se não eu não quisesse partir sem minha filha? Acaso parou a pensar nisso?
Lachlan a olhou com firmeza e determinação.
—Talvez tenha que estar agradecida por não a obrigar a tomar essa decisão.
Ficou sobressaltada e seus olhos foram se abrindo à medida que as palavras a golpeavam com crueldade. Estava tão zangada pela mentira que não pensou no que teria acontecido no caso de que ele tivesse sido sincero: teria se visto obrigada a escolher entre sua filha e a promessa de coroar a Bruce. Teria tido que escolher entre aqueles altos ideais e seu amor como mãe.
Suo rosto de angústia indicou a Lachlan que acabava de se dar conta disso.
—Tente conciliar o sonho —disse— Esta tarde partiu o último dos homens de seu marido. Partiremos dentro de algumas horas e faremos todo o caminho de uma vez. Não estou seguro de até quando nos esperará Bruce.
A condessa parecia aliviada pela mudança de tema.
—Estais seguro de que William conseguiu chegar a Scone?
—Sim. Mas não pensei que Buchan nos atrasaria tanto. Pode ser que Bruce diga que é muito arriscado esperar ali a que o coroem.
Bela assentiu e pediu permissão para ficar uns momentos a sós. Lachlan procurou não olhá-la enquanto partia. MacKay se levantou e começou a recolher suas coisas. Ele se encarregaria de vigiar enquanto Lachlan dormia, ou tentava dormir tendo-a tão perto.
Lachlan sentiu o peso do olhar de MacKay uns instantes, até que ao final decidiu falar.
—Deixa-a em paz, MacRuairi. A moça já sofreu muito. Buchan fez um inferno de sua vida.
Lachlan se adiantou e imaginou o pior.
—O que quer dizer? É que lhe bate?
MacKay o olhou atentamente, avaliando a veemência de sua reação.
—Não sei. Mas estava atormentada. Tinha-a encerrada sob chave todo o tempo.
Lachlan se disse que aquilo explicava o guarda que havia em sua porta e os outros dois ao pé da escada.
—Por quê?
—Por que é um maldito controlador que quer ter a sua esposa bem atada.
Franziu o sobrecenho. Ele conhecia melhor que ninguém a força destrutiva do ciúme. Já fossem justificados ou não. Perguntou-se se ele estaria ciumento nesse caso.
Ficou olhando MacKay com suspeita.
—Por que diabos te contou tudo isso?
—Não me contou isso. Reconstruí-o eu com os comentários que tem feito. Quanto a por que, eu não a olho como você —disse fazendo uma pausa e cravando seus olhos nos dele— por que te interessa tanto?
—Não me interessa.
Mas sim dava um novo enfoque às razões pelas que tinha traído a seu marido. Estava claro que MacKay não acreditava.
—Vi como a olhas. É uma mulher bonita. Uma mulher bonita e casada, que já terá suficientes problemas sem que você vá suspirando atrás dela.
Lachlan não necessitava que MacKay nem nenhum outro lhe desse uma lição. É obvio que lhe excitava. Teria que ser um eunuco para que não o fizesse. Mas já tinha perdido a cabeça por uma mulher que lhe punha quente. E com uma era suficiente.
E pelo que ele sabia, MacKay tinha problemas próprios que preocupar-se.
—E se a quisesse, o que te faz pensar que um contrato de matrimônio ia deter-me?
MacKay lhe dirigiu um olhar de asco enquanto se dispunha a sair da cova.
—MacLeod tem razão. Tem tanta moral quanto uma serpente.
Víbora, assim era como MacLeod o chamava. Que diabos, pode ser que o chefe da Guarda dos Highlanders tivesse razão. Por isso estava ali, não era certo? Por realizar o trabalho sem fazer perguntas.
Lachlan sorriu, incapaz de resistir.
—Tem sim, mas ao menos não vou atrás da prometida de meu melhor amigo.
Soube que sua flecha tinha dado no alvo quando viu tremer ao MacKay. Lachlan permaneceu espectador ante qualquer sinal de movimento, sem afastar o olhar das mãos do highlander. Não o pegaria de surpresa se dispunha a tirar uma arma. Mas embora sentisse a negra ira que se apoderava dele, MacKay era muito bom guerreiro para deixar que a provocação de Lachlan o afetasse.
—Te afaste de meu caminho, MacRuairi. Pulveriza seu veneno por outro lugar.
E saiu da caverna sem dizer nada mais.
Bela adorava montar a cavalo. Era uma das poucas liberdades que seu marido lhe permitia, embora sob o atento olhar de uma dúzia de guardiães cujo propósito não era protegê-la, a não ser evitar que se escapulisse e tivesse alguma relação ilícita com o contingente de amantes que a esperava.
Ainda assim, depois de passar quarenta horas sentada sobre os arreios não achava que teria vontade de voltar a ver um cavalo na vida. Acreditava ser uma boa amazona. Mas quando a obrigaram a afastar-se dos caminhos, entrar em terrenos irregulares e dificultosos e levar um ritmo implacável, teve que reconsiderar. Comparada com os dois guerreiros que a acompanhavam, sentia-se como um pirralho ao qual tivessem preso no cavalo. Ela sabia que faziam paradas ocasionais só em seu próprio benefício e dos cavalos. MacKay começava a dar amostras de cansaço, mas MacRuairi parecia que pudesse cavalgar durante quarenta horas mais.
Que fazia um pirata ser tão bom cavaleiro? Os GallGaedhil, descendentes de Somerled, eram peritos marinhos, nascidos virtualmente em suas galeras8.
Olhou por volta do lado que cavalgava MacRuairi seguindo-a de perto e em seguida se arrependeu. Embora ele afastasse o olhar imediatamente, Bela captou fugazmente seu olhar. Um olhar quente, ardente, tempestuoso. A luxúria em sua forma mais crua e primitiva.
Aquilo a surpreendeu tanto que quase ficou sem respiração de angústia. Mas por mais que pretendesse ignorá-lo, a onda de calor a percorria por dentro. Sentia um comichão de nervosismo no estômago e um formigamento de excitação ardente em certo lugar indevido.
Não era a primeira vez que interceptava uma dessas olhadas de soslaio. Desejava-a, mas não queria que ela percebesse. Era como o resto dos homens que a olhavam pensando em uma única coisa. Só que ele controlava melhor.
Bela fora objeto da luxúria frenética de um homem anteriormente. Não precisava repetir essa experiência. Sua falta de resposta enfureceu seu marido desde o começo. Era como se pensasse que podia obrigá-la a excitar-se por meio de demandas cada vez mais exigentes. Bela, independente do que ele pedisse ou fizesse, negava-se a acovardar-se. Negava-se a dar a satisfação de vê-la envergonhada.
Não fazia muito tempo que Bela notou de que ele acreditava realmente que podia obrigá-la a sentir prazer, e ao comprovar que não era assim decidiu culpá-la, acusando a de ser frígida e um inseto estranho. O irônico era que um só olhar provocador de Lachlan MacRuairi a tinha excitado mais que qualquer das coisas que seu marido lhe tinha feito.
Por mais desconcertante que fosse sua reação se alegrou ao ver que ele estava tão disposto a ignorá-la como ela a ele. Ao que parecia não era Bela quão única desejava acabar a viagem quanto antes.
Cavalgaram durante um par de horas mais, nas quais os homens se alternaram para ir à cabeça ou fim do grupo. Cavalgaram até que ela pensou que já não poderia continuar.
Bela mudou de posição sobre a sela, e ele devia estar olhando-a outra vez, porque disse:
—Deteremo-nos mais a frente para dar de beber aos cavalos. Dentro de algumas horas estaremos nos arredores de Scone.
O alívio que sentiu ao saber que não só fariam uma parada, mas sim logo acabaria seu suplício fez que se esquecesse de todo o resto. Suspirou profundamente sem ter em conta a quem tinha diante e sorriu.
—Graças a Deus!
Por um momento Lachlan pareceu ficar surpreso, desconcertado inclusive.
Era a primeira vez que lhe dedicava um sorriso. De fato, era a primeira vez que o olhava sem mostrar receio nem raiva. Ela notou ao mesmo tempo em que ele.
Sustentaram o olhar durante um instante que durou muito e depois Bela afastou o olhar, sentindo-se estranhamente coibida e extremamente consciente de que estavam sozinhos.
Quando Lachlan voltou a falar detectou no tom de sua voz uma precaução que não era habitual nele, como se temesse romper essa trégua temporária.
—Acredito que todos nos alegraremos quando isto acabar —Seus olhos se encontraram com os dela novamente e sentiu como a atravessava um estranho prazer. Seus olhos eram… intensos. Penetrantes… não, fascinantes. Eram tão claros, de uma cor tão vibrante que não pareciam reais— agüentastes muito bem, minha senhora. Lamento ter tido que forçar tanto, mas valerá a pena se tivermos alguma possibilidade de chegar a tempo a Scone.
Bela ficou tão aniquilada por sua segunda desculpa como ficara pela primeira. Lachlan MacRuairi parecia um homem incapaz de desculpar-se por nada, e não sabia muito bem o que esperar disso.
Não sabia muito bem o que esperar dele.
Via-se obrigada a reconhecer que tinha razão em uma coisa. Tinha-a liberado de ter que tomar a horrenda decisão de abandonar a sua filha. Mesmo assim, tinha mentido e sabia que era melhor não confiar nele, mas talvez não fosse o patife desalmado que ela tinha imaginado a princípio.
Os patifes desalmados não a cobriam com uma capa a noite, quando dormia protegida em uma caverna enquanto eles passavam horas sob a fria chuva. Na manhã do dia anterior, quando despertou quente e cômoda, reconheceu em seguida a capa azul marinho e cinza que ele sempre levava aos ombros. Mas isso não explicava como, nem por que, tinha acabado cobrindo-a com ela.
Também era difícil não admirar a fria eficiência com que cumpria com seu trabalho. Salvo pelos breves descansos, fazia a maior parte da vigilância, dormindo pouco e passando horas intermináveis sob a chuva. Quando um dos cavalos escapou e se meteu em um pântano foi Lachlan quem passou uma hora entre aquela imundície que cheirava a putrefação e impregnava até os ossos, para resgatá-lo.
Perguntava-se o que teria feito dele uma pessoa tão cínica. Era possível que a ele importasse tudo tão pouco? Parecia-lhe um mistério e não podia evitar ter um pingo de curiosidade. Franziu o sobrecenho. Não. Muita curiosidade.
—Acredita que nos esperarão? —perguntou voltando para aquilo no que devia pensar.
Lachlan arqueou uma sobrancelha.
—Queres que o façam?
A pergunta a agarrou de surpresa. Depois de tudo o que tinha sofrido para chegar até ali é obvio que teria que desejar que terminasse. Mas depois de vários dias fugindo dos homens de seu marido se perguntou se estaria realmente preparada para o que estava por chegar.
Ao perceber que seus pensamentos iam perigosamente para onde MacRuairi a tinha advertido no princípio se ergueu e o olhou nos olhos.
—É obvio que sim.
Não é que fosse sua obrigação, mas sim também era o correto. Robert Bruce não só era a melhor opção da Escócia para libertar-se da tirania inglesa, também era um homem capaz de unir a Escócia sob seu comando. Bela cumpriria com sua parte para que aquilo acontecesse. Era sua oportunidade de fazer algo importante. Merecia ser mais que um par de pernas abertas para acalmar a luxúria de um homem.
Lachlan desmontou do cavalo, atou as rédeas a uma árvore e a ajudou a desmontar. Bela fez tudo o que pôde por não sentir o contato de suas mãos nos quadris. Teria preferido que Magnus estivesse com eles. Ele não a fazia sentir tão… nervosa.
Magnus a olhava como um amigo.
MacRuairi a olhava como se quisesse lhe tirar a roupa e lamber cada centímetro de seu corpo. Esse pensamento teria que tê-la enojado. Mas em lugar disso fez que acelerasse seu pulso e que sua pele ardesse de calor. Fosse o que fosse, esse sentimento parecia mais persistente e exigente, e não gostava absolutamente.
—Conseguirá nos encontrar Magnus? —perguntou percebendo a sutil inquietação de sua própria voz.
O rosto de Lachlan se escureceu ao ouvir que nomeava ao outro. Soltou-a tão repentinamente que suas pernas, pura gelatina depois da comprida viagem, fraquejaram.
—Sim. Encontrará-nos. Estejas preparada para quando chegar.
Despediu-se dela com uma leve inclinação de cabeça e se dispôs a encarregar-se dos cavalos. Bela ficou circunspeta e o observou, tentando compreender o que tinha feito para provocar sua ira. Fazia um momento estavam falando virtualmente com normalidade.
Tirou um par de coisas do fardo que tinha preso aos arreios e se dirigiu à borda do lago.
—Aonde vais? —perguntou Lachlan.
—Me lavar. —E quando viu que ele discutiria o cortou em seco— Não penso coroar ao novo rei da Escócia com o aspecto de uma mendiga.
Lachlan entreabriu os olhos e a contemplou com seu horripilante olhar enviesado.
—Tome cuidado. Permaneça onde possa a ver.
Bela agradeceu ter se voltado de costas e que não a visse ruborizar-se. Sua intenção era lavar-se e ficar bonita, e não pensava o deixar olhar.
Atendeu com rapidez a sua necessidade mais premente e depois de olhar fugazmente a seu redor começou a despir-se. Apertou com força os dentes e mergulhou no lago gelado. Em pouco mais de dois minutos já tinha saído. Lavou o cabelo o melhor que pôde com o sabão que lhe tinha dado MacKay e depois usou um pano para esfregar a pele até onde podia chegar.
—Condessa!
Estremeceu-se. Soava como se estivesse furioso.
—Estou aqui! —disse. Envolveu o cabelo apressadamente com um pano limpo e, como melhor pôde, secou-se com a toalha já encharcada— Só necessito um minuto.
Foi apegar sua regata tiritando convulsamente, mas antes que pudesse passar pela cabeça alguém a agarrou pelas costas. O original pensamento de que pudesse ser MacRuairi se desvaneceu assim que cheirou o ar. Porque MacRuairi parecia mostrar uma inusitada inclinação pela limpeza para ser um patife. Sempre cheirava… bem. A calidez e a couro, com um sutil aroma de virilidade. E o homem que a tinha agarrado cheirava a suor e a cebolas podres.
Por Deus bendito, tinham-na capturado!
Gelou-lhe o sangue e o terror se apoderou dela pondo em alerta seus sentidos. Embora fosse dolorosamente consciente de sua nudez, seu primeiro impulso foi escapar. Tentou espernear e gritar, mas o homem lhe tinha abafado a boca com uma mão enquanto imobilizava seus quadris com a outra e a arrastava para o interior da floresta.
—Não complique isso mais do que já está, minha senhora —a advertiu com um áspero sussurro— O conde está ansioso por vê-la —disse entre risadas— Embora aposto que lhe surpreenderá ver tanto de você. —Percebeu algo em sua voz que a paralisou. Quando a mão enluvada do homem subiu até lhe apertar um seio soube que não tinha sido sem querer. Invadiu-a um medo completamente diferente ao anterior— Ops! —sussurrou em seu ouvido. Bela tentou desembaraçar-se de suas asquerosas garras, mas isso só serviu para que apertasse mais forte— Não admira que seu marido tenha tanta vontade de tê-la de volta. Jamais vi umas tetas como estas. Se não estivessem casada com Buchan, cobraria minha recompensa agora mesmo.
Bela ouviu um ruído que chegava por trás e se sobressaltou. O coração encolheu ao distinguir o inconfundível som do aço golpeando contra o aço. Também seu captor tinha ouvido.
—Quando o resto de meus homens se ocuparam do rebelde poderá gritar quanto queira.
«OH, Deus. Lachlan!» A pontada que sentiu no coração foi extraordinariamente forte. Não era o homem que ela teria escolhido como escolta, mas o fato de que estivesse lutando por sua vida ou que possivelmente acabasse morto a deixou angustiada nesse momento. Surpreendentemente angustiada.
Bela deixou o corpo flácido, como se decidisse abandonar a luta. Mas embora MacRuairi não pudesse ajudá-la, não tinha intenção de permitir que esse homem a levasse de novo junto a seu marido. Lutaria até que não pudesse mais.
Sua submissão aparente funcionou. Acrescentando a isso o fato de que a floresta parecia ter emudecido de repente, seu captor acabou por relaxar um pouco.
Bela viu a oportunidade e a aproveitou. Mordeu a enorme mão tão forte como pôde, bateu seu calcanhar no peito de seu pé e lhe deu uma forte cotovelada em seu forte ventre. O homem grunhiu e a soltou, mais pela surpresa que pela força dos golpes. Bela correu para o primeiro vão que viu entre as árvores, consciente de que só tinha uns segundos antes que se recuperasse.
—Maldita cadel…
Um arrepiante golpe seco afogou o resto do insulto.
Bela se aventurou a olhar e viu que se cambaleava como um carvalho enorme a ponto de cair. O punho de uma adaga saía de seu pescoço. Antes que se desabasse no chão MacRuairi emergiu silenciosamente dentre as árvores. Agachou-se sobre o moribundo, tirou a adaga e lhe rachou o pescoço de lado a lado com fria eficiência, pondo ponto e final à ameaça.
Seus olhos olharam para ela através da peneira de folhas, ramos e samambaias.
—Encontra-te bem? —perguntou com uma voz surpreendentemente afetada. Aquilo fez que desse uma estranha vontade de chorar, como quando era menina e sua mãe perguntava isso mesmo depois de que ocorresse algo horrível. Tinha a garganta tão tensa de emoção que não pôde mais que assentir— Agora estais a salvo. Podes sair.
O alívio se estendeu até o mais profundo de seu ser, arrasando seus olhos em lágrimas. Bela saiu ao claro e Lachlan ficou tão rígido como uma pedra assim que a viu. Esqueceu-se de que estava nua até esse momento. Ele não afastou o olhar de seus olhos, mas lhe dava a sensação de que tinha visto tudo. Apesar disso, teria deslocado até ele. Faria algo incrivelmente estúpido e teria se jogado a cálida solidez de seu peito e seus braços, com a única esperança de sentir-se a salvo. Mas seu olhar a deteve.
Se acreditava que alguma vez o havia visto furioso estava claro que se enganara. Apertava com força a mandíbula, tinha os lábios brancos de franzi-los e olhos tão frios e duros como cubos de gelo verde. Viu como retorcia a empunhadura da adaga que ainda tinha na mão. Todos seus músculos pareciam tensos, rígidos de raiva. Bela não podia afastar o olhar do músculo que se movia alarmantemente sob seu queixo. Havia algo muito mais perigoso em sua fria forma de controlar-se que na ardente ira com a que se encontrara antes. O que acontecia?
Bela retrocedeu, mas ele chegou junto a ela com um par de largas passadas. Agarrou-a pelo cotovelo e a ergueu com força até seu musculoso peito. Que Deus a ajudasse, sentia todos seus músculos, todos seus relevos, cada um dos duros segmentos de sua musculatura. Seu coração vibrava e não era só pelo medo.
—Se queria um homem que a ajudasse a se banhar, só tinham que pedir. —ficou sobressaltada, surpresa por essa acusação— Te disse que não se afastasse de meu olhar —disse sacudindo-a— por que fugistes? O que acreditava que estava fazendo?
Um nó de lágrimas se formou em sua garganta e começaram a arder os olhos. Não compreendia por que estava tão furioso. Parecia igual seu marido. Gritando. Acusando-a. Intimidando-a.
—Só queria me lavar. Não pensei que…
—Não pensastes absolutamente. Maldita seja, não sabem o que poderia ter passado? Eles poderiam ter matado!
Isto último disse gritando e o eco de suas palavras ressonou no ar da floresta durante um instante. Aquilo pareceu aplacar sua raiva. Soltou-a de repente, como se tivesse se queimado.
Ficaram olhando-se em silencio durante um longo momento. Sua respiração irregular obrigava a seu peito a bombear constantemente. Ele não pareceu se dar conta mas, para maior vergonha, tinha os mamilos duros e sentia uma estranha pressão nos seios. Lachlan estremeceu como se lhe doesse algo, mas se recuperou rapidamente. Para quando voltou a falar sua voz era outra vez tranquila e desapaixonada. Indiferente. Não estava mesclada de… medo? Não, não podia ser medo. O medo significaria que se importava. Mas Lachlan MacRuairi não se preocupava com ninguém.
—Na próxima vez faça o que eu lhe diga e não terá nenhum problema.
Seus olhos ardiam pelas lágrimas de impotência. Como se atrevia a culpá-la do que tinha ocorrido? Ela não fugira provocando que a capturassem. Era óbvio que aqueles homens estavam esperando-os. A teriam levado, embora não se afastando de seu olhar.
—Possivelmente se fizeres seu trabalho melhor, não haja uma próxima vez.
Arrependeu-se de suas palavras quase antes que saíssem de sua boca. Aquilo era tão injusto quanto ele. Estivera protegendo-a e não batendo o terreno adiante para avistar o perigo. Era MacKay quem estava reconhecendo o terreno, mas esperava que os seguissem e não que houvesse homens esperando-os tão perto de Scone.
Lachlan arqueou uma sobrancelha. Mais que enfurecê-lo, pelo visto aquele comentário o tinha impressionado.
—Mantenha esse espírito, condessa. Irá necessitar.
Bela apertou os dentes. Odiava quando lhe falava daquela forma. Como se ele soubesse algo que ela desconhecia. O frio e calculador mercenário contra a idealista infantil. Era fácil ser cínico quando não se acreditava em nada. Apertou os punhos para resistir a vontade de lhe tirar essa careta do rosto com uma bofetada.
—Vades ao inferno, MacRuairi.
Lachlan riu.
—Chegas tarde, condessa. Já estive ali. —Baixou o olhar um milímetro com uma expressão dura como o gelo— Pelo amor de Deus, ponha alguma roupa.
Se o que queria era envergonhá-la com sua nudez, aquilo não ia funcionar. Fazia tempo que tinha perdido o pudor. Seu marido a tinha obrigado que ficasse nua frente a ele durante horas, comentando cada centímetro de seu corpo, tocando-a, lhe dizendo o que pensava lhe fazer com todo luxo de detalhes, tentando humilhá-la e obrigá-la a reagir de algum modo. Era invulnerável. Aqueles seios, quadris e membros nus que via não eram ela. MacRuairi não a estava vendo absolutamente.
Negou-se a deixar-se intimidar pelo desprezo de sua voz e caminhou sem ter pressa com a cabeça bem alta até a borda do lago. Percebeu o peso de seu olhar enquanto se vestia, mas quando se voltou seu rosto era uma máscara glacial. Uma vez que terminou, o seguiu em silencio até os cavalos. Ao que parecia já havia dito tudo. Mas quando viu a meia dúzia de homens que tinha matado sozinho se deteve horrorizada e lhe cortou a respiração.
—Guerra, condessa, em todo seu esplendor —disse ele confundindo sua surpresa com censura— Acostume-se a isso. Isto é só o princípio.
Estava a ponto de lhe agradecer o que tinha feito para salvá-la, mas fechou a boca. Para que ia incomodar se? O mais provável era que simplesmente voltasse a gritar ou a provocá-la com essa língua mordaz que tinha. Por mais que em ocasiões parecesse diferente, Lachlan MacRuairi era um bárbaro perverso e briguento, melhor seria que o lembrasse bem. Contudo, ao fim compreendia por que Robert o tinha contratado. Pode que pusesse em dúvida sua lealdade, mas um homem que matava com tal eficiência supunha um valor enorme e acirrado em qualquer exército.
MacKay lhes alcançou uma hora mais tarde, mas ela e MacRuairi não voltaram a se falar. Quando finalmente chegaram à abadia de Scone receberam as decepcionantes notícias de que a coroação tinha acontecido dois dias antes, em Hill of Credulity. Mas essa decepção durou pouco. Estavam celebrando em segredo uma segunda cerimônia entre as antigas pedras dos druidas. Era possível que chegassem a tempo se se apressassem. Galoparam pela campina com o MacRuairi encabeçando a comitiva e percorreram a curta distância que separava a abadia de Scone Wood, e dali até o círculo de pedras dos druidas. A convocação escolhida por Bruce para a cerimônia não a surpreendia. Eduardo tinha usurpado dez anos atrás dos escoceses Stone of Destiny, o lugar tradicional no qual se coroavam seus reis. As pedras dos druidas representavam um vínculo com o passado da Escócia, e um símbolo, igual a ela mesma, da força e continuidade do reino.
À medida que subiam pela colina e o círculo de pedras aparecia ante seus olhos, o cativante som dos gaiteiros atravessava o ar e lhes chegava até a alma. Bela conteve a respiração, maravilhada com o olhar que tinha ante si. Dourados raios de luz se estendiam como dedos entre as misteriosas pedras, como se a mesma mão de Deus chegasse do céu para benzer aquele sagrado acontecimento.
Robert estava de pé diante da maior de todas, magnificamente embelezado com seus ornamentos reais. A seu redor só tinha congregados algumas testemunhas. Reconheceu à sua esquerda a William Lamberton, o bispo de Saint Andrews, mas não ao guerreiro de formidável aspecto que havia a sua direita. Uma vez que se detiveram viu Christina Fraser entre os guerreiros alinhados ante ele. Bela saltou de seu cavalo e correu para Robert, ignorando a tentativa de MacRuairi em ajudá-la e o aborrecimento em seu rosto.
—Majestade —disse fazendo uma reverência— vim logo que me foi possível. Espero não ter chegado muito tarde.
Não pôde resistir dirigir um olhar mordaz a MacRuairi, nem Tampouco sentir-se satisfeita ao ver que franzia o cenho.
Robert lhe ofereceu esse amplo sorriso fraternal com que ganhou sua eterna lealdade há tantos anos.
—Não, Bela. Não chegastes muito tarde. Nunca é muito tarde. Não quando arriscastes tanto para estar aqui.
Bela lhe devolveu o sorriso. Pode até que não queria voltar a vê-lo, mas ao menos MacRuairi fez seu trabalho. Tinham chegado a tempo.
Momentos depois, Bela se achava em frente à última esperança da Escócia, o homem no que acreditava com todo seu coração, e atendia ao recitado que fazia o bispo de sua descendência do grande rei Kenneth MacAlpin, o primeiro rei dos escoceses, estabelecendo a linhagem de Robert e seu direito ao trono. Quando o prelado finalizou, Bela se adiantou com o broche dos MacDuff bem visível em sua capa e foi ocupar seu lugar na história, reclamando o direito hereditário que possuía sua família: o direito a coroar a um rei.
O bispo lhe entregou a coroa. O peso da responsabilidade estava em suas mãos. Sabia a importância do que estava ponto de fazer, mas chegado o momento Bela não se deteve nem vacilou. Com mãos firmes, ergueu a diadema de ouro ao céu, permitindo que o sol se refletisse nela com um halo de luz cegante, e a colocou na cabeça de Robert. Depois disto, Bela repetiu as palavras pronunciadas dois dias antes, amparada na força de todos seus ancestrais e na absoluta certeza da retidão da causa pela que tinha desafiado a um marido e a um rei: «Beannachd Do Righ Alban». Deus benza ao rei da Escócia. Talvez fossem as mesmas palavras de dois dias antes, mas havia uma diferença importante: desta vez eram ditas por uma MacDuff.
Bela sentiu que o alívio se estendia por seu corpo. Estava feito. E não havia volta.
Com o dever completo, ficou a um lado e observou como foram acometendo uma a uma as testemunhas para reverenciar ao rei. Quando chegou o turno de Lachlan ficou tensa e se inquietou instantaneamente. O patife não a ajudou muito. Fulminou-a com o olhar e depois ergueu uma sobrancelha com um sorriso cínico. Bela se ruborizou e sentiu bulir a ira através de sua pele. Que lhe partisse um raio, ela sabia o que fazia.
Mas fossem quais fossem as consequências daquele dia, agradecia que por fim tivesse acabado. Embora mais agradecida estivesse de não ter que ver de novo Lachlan MacRuairi jamais.
Capítulo Quatro
Strathtummel, Atholl, finais de julho de 1306
«Jamais» chegou quatro meses depois.
Apesar de tudo que tinha saído mal, e tinham saído mal muitas coisas, Bela nunca pensou que chegaria a tal ponto. Fugindo para sobreviver como… foragidos. Rei Hood era como chamavam os ingleses a Robert. E se correspondia dolorosamente com a realidade.
Olhou os grandes olhos azuis de sua aterrorizada prima Margaret, totalmente aberto em seu pálido rosto.
—Está segura, Margaret? A rainha disse que tínhamos que abandonar ao rei e ao resto do exército?
Margaret assentiu; as lágrimas lhe rodavam pelas bochechas.
—Disseme que pegássemos nossas coisas. Sairemos dentro de uma hora.
O medo no rosto de Margaret era notório. Não era a primeira vez que se arrependia de levá-la como dama de companhia. A tímida e doce moça não era feita para aquilo.
Ninguém era feito para aquilo.
No transcurso do último mês tinham visto mais guerra, morte e sangue da que quisesse ver durante toda uma vida. O frágil apoio que Robert tinha conseguido nos meses que sucederam à coroação enquanto Eduardo mobilizava a suas tropas para partir contra os «rebeldes» se desmoronou depois da derrota de Methven. Robert acessou ali a um encontro com os ingleses para reivindicar-se rei. Mas em lugar disso, encontrou-se com as artimanhas de Aymer do Valence, quem deixou a um lado as regras da cavalaria e atacou antes da hora para a batalha.
A aposta por uma vitória decisiva que confirmasse o reinado de Robert fracassou de maneira miserável e desastrosa. Os partidários do rei que ficavam tinham saído escaldados, e eles se viam obrigados a buscar refúgio nas colinas de Atholl enquanto tentavam recuperar-se e somar mais homens a sua causa. Mas foram poucos os que responderam à chamada. Antes de Methven o apoio que recebia Robert era menos exíguo. Mais da metade do país se aliou contra ele, entre eles o marido de Bela e outros nobres poderosos. Depois de Methven inclusive aqueles que simpatizavam com Bruce tinham muito medo para opor-se à fúria de Eduardo e suas promessas de castigo. A captura de Simon Fraser e sua subsequente execução seguindo um processo horrendamente similar ao do Wallace serviu a todos como aviso das consequências.
Bela, a rainha Elizabeth, Marjorie, filha de Robert com sua primeira esposa, e duas de suas irmãs, Christina e Mary, tiveram que refugiar-se junto a eles. Durante no mês anterior tinham vivido da terra como vulgares foragidos nos bosques próximos às ribeiras do lago Trummel, em umas cabanas construídas apressadamente e rodeadas por uma simples paliçada, amparados por Duncan o Forte, o chefe do clã Donnachaidh.
No dia anterior, com os ingleses a ponto de caça-los ao este, Robert tentou dirigir-se para o oeste, mas se encontrou com John MacDougall, lorde de Lorn, e um milhar de homens de seu clã, que fechavam o caminho no Dal Righ. Lutou contra eles com as poucas centenas de soldados que ficavam e quase não viveu para contar. Um dos sequazes de Lorn o agarrou e lhe arrancou literalmente a capa dos ombros, levando o broche consigo.
Mas nem sequer aquele refúgio temporário lhes servia, e se viam obrigados a fugir de novo. Felizmente, Joan não estava ali. MacRuairi tinha razão: aquele não era lugar para sua filha. Ao final acertou em um bom número de coisas.
Tinha subestimado em grande medida a ira do rei Eduardo contra seus «súditos» rebeldes. Seu martelo tinha caído sobre eles com toda a força. Inclusive a cabeça de Bela tinha um preço. E tinha içado a infame «bandeira do dragão», um sinal que prometia ser nada misericordioso com os rebeldes. Poderiam as matar sem as submeter a julgamento e as violentar impunemente.
Reprimiu o calafrio e separou de sua cabeça a Lachlan MacRuairi para voltar a consolar a sua prima.
Não tinha ouvido falar muito do mercenário após coroação, embora tampouco fosse que tivesse ido perguntando por aí. Tal como avançava a guerra o mais provável era que já tivesse trocado de lado. Apertou a mandíbula. O único em que deveria pensar era em ficar a salvo para encontrar um modo de recuperar a sua filha. Esses quatro meses pareciam uma eternidade. Mas ao menos não tinham obrigado a Joan a casar-se. A «traição» de Bela foi suficiente para acabar com essa ameaça.
Acariciou o cabelo de sua prima enquanto a aterrorizada menina chorava sobre seu ombro.
—O que será de nós? —soluçou Margaret— Como chegaremos ao Kildrummy com só poucos homens para nos proteger?
Bela não disse nada. O que poderia dizer, quando nem ela mesma sabia? A ideia de que o rei fizesse partir as mulheres com uma pequena escolta de cavalheiros como amparo lhe parecia aterrorizante, tão aterrorizante como a Margaret.
Sua prima ergueu o olhar com os olhos vermelhos e inchados de tanto chorar.
—Nem tão sequer ouvi falar do homem que nos levará. Lachlan MaC… MaC…
Bela ficou tensa.
—MacRuairi?
—Isso —respondeu sua prima assentindo com veemência— O conhece?
A Bela mudou o rosto por completo.
—Foi um dos homens que me trouxe de Balvenie.
Nos meses de frustração e separação forçosa de sua filha - seu marido a tinha desafiado a que tentasse voltar a procurá-la— Bela tinha contado a sua prima virtualmente todo o acontecido. A dor pela separação não tinha diminuído, mas sim piorava a cada dia que passava. Não se atrevia a perguntar-se quando poderia voltar a ver sua filha. A resposta era muito dolorosa para considerar.
Mas ao menos Joan sabia que Bela não a tinha abandonado deliberadamente. Umas semanas depois da coroação Robert disse que tinham mandado uma mensagem a sua filha. Não lhe contou os detalhes, mas sim lhe assegurou que Joan estava a par de tudo. A Bela comoveu aquele gesto de consideração do rei.
Margaret ficou sem fôlego.
—O mesmo que te mentiu sobre Joan?
Quando viu que Bela assentia sua prima ficou horrorizada.
Tampouco ela podia acreditar. O rei não só as obrigava a partir, mas sim, além disso, confiava sua família a um homem que não tinha escrúpulos em aceitar que só era leal a sua própria bolsa. A desconfiança que lhe inspirava MacRuairi não era a única objeção. Depois de seu último encontro não queria ter que confiar sua segurança nem nenhuma outra coisa a aquele homem. E talvez houvesse algo mais importante, e era que não gostava da maneira em que reagia ante ele. Lachlan MacRuairi a fazia sentir-se incômoda.
—Não se preocupe, prima. Falarei com o Robert e chegaremos ao fundo desta questão. Tem que ter algum engano.
Bela foi ao encontro do monarca e deixou que Margaret recolhesse seus escassos pertences. Não se achava no salão do rei, como chamavam os soldados à cabana real. A rainha confirmou o que havia dito sua prima e a encaminhou para as beiradas do lago, onde estava acampado o que restara do exército. Bela se apressou a chegar até ali, mas a cena que encontrou não fez mais que aumentar sua ansiedade. O exército restante parecia um desastre. Teria uns duzentos homens, muitos deles feridos e sangrando, outros inclusive com membros seccionados, no mesmo chão em que se derrubaram ou onde os tinham deixado depois da retirada do dia anterior.
O fedor era terrível. Cobriu a boca para evitar as náuseas. Deveria estar acostumada. Mas o aroma do sangue, o suor e outros fluídos corporais fermentando entre toda aquela asquerosa imundície era algo ao que acreditava que nunca se acostumaria.
Os homens corriam de um lado para outro, desmantelando tendas, recolhendo suas coisas. Não perceberam sua presença. Ou se faziam, estavam muito ocupados para dar importância. O exército fugia em disparada para salvar a vida. Deus bendito, como era possível que acontecesse aquilo?
Ao final distinguiu Edward Bruce entre os homens. Não lhe caía muito bem o irmão mais novo de Robert. Sir Edward era instável, irascível e arrogante. No campo de batalha virtualmente igualava ao Robert, mas faltavam o cavalheirismo e a galanteria próprias de seu irmão.
—O rei —disse— Onde está? Tenho que falar com ele.
Edward passeou o olhar por seu corpo. Embora seus duros olhos de ébano não refletissem nada, Bela pressentia seus ímpios pensamentos.
—Está ocupado. O que necessita? Não poderei lhes agradar eu mesmo?
Bela entreabriu os olhos, notando o que sugeria, se não o tom ao menos sim suas palavras. Sabia o que se dizia dela. As mentiras desumanas que seu marido tinha feito correr para desprestigiá-la tinham se estendido inclusive até seu próprio acampamento. Enfurecia-a que Edward Bruce insinuasse sequer as mentiras de seu marido. Ele deveria mostrar-se mais sensato.
—É ao rei a quem preciso —disse em um tom que sugeria que não necessitava um substituto, especialmente o irmão mais novo. Sabia o sensível que era Edward às comparações com seu irmão— É importante.
Edward lhe dirigiu um olhar cáustico. O golpe tinha sortido efeito.
—Está por ali —respondeu assinalando a um grupo de homens afastado junto aos estábulos em que descansavam os poucos e preciosos cavalos de guerra do rei— Mas se fosse você esperaria que termine.
O rei parecia ter uma reunião importante. Reconheceu a alguns dos cavalheiros de confiança de Robert: sir Neil Campbell, sir James Douglas, o conde de Atholl, e alguns outros entre os que estavam William Gordon e Magnus MacKay.
Embora sempre gostasse de ver aqueles dois homens e tinha desfrutado falando com eles todas as ocasiões em que seus caminhos se cruzaram durante dos últimos meses, havia algo no lugar em que ocupavam no exército do rei que a confundia. Para simples soldados, pareciam formar uma companhia de inusitada importância.
Frequentemente os via junto a um grupo no que estava incluído um que gozava da preciosa confiança do rei: um chefe de clã das Highlands Ocidentais procedente da ilha do Skye que respondia com nome de Tor MacLeod. Havia algo naqueles homens que ressaltava. Não somente sua impressionante fortaleza e tamanho, porque os highlanders estavam acostumados a ser altos e musculosos, a não ser o ar de autoridade e comando que os envolvia.
Comiam com o resto dos soldados, dormiam junto a eles e lutavam a seu lado, mas logo desapareciam durante dias, semanas inteiras, continuamente, sem dar explicações. Era estranho.
Seguiu o conselho do Edward. Felizmente não teve que esperar muito. O encontro acabou minutos depois e os homens começaram a dispersar-se.
Todos menos um.
Uma estranha comoção sacudiu seu corpo. O coração começou a pulsar com força. Lachlan MacRuairi não tinha mudado nesses meses desde seu último encontro. Se acaso o via mais desalinhado. Levava o cabelo mais longo, tinha mais barba, seu cotun de couro negro estava mais sujo e manchado de sangue, e ao que parecia tinha acrescentado mais arma ao arsenal que levava preso às costas.
Seu rosto também se via mais afiado e enxuto.
Entretanto, aquilo não fazia mais que aumentar seu perigoso atrativo.
Bela franziu os lábios. Obviamente algumas coisas não mudavam. Seguia sendo um diabo bonito que exsudava um tipo incerto de virilidade masculina. E ela, a tenor da aceleração entrecortada de seu pulso, parecia seguir percebendo-o.
Tinha que pôr fim a aquilo. Fosse ou não uma esposa repudiada, aquela inexplicável atração que sentia por Lachlan MacRuairi não estava bem. Já tivera suficientes problemas em sua vida. Não precisava criar mais com aquele reconhecido pirata bastardo que a olhava como se só servisse para lhe satisfazer. Algo que ela sabia exatamente como fazer. Tinham-na adestrado bem.
Bela cruzou a clareira, abriu caminho entre o caos e se aproximou do estábulo por um lado. Não estava segura se devia interromper, assim esperou captar a atenção de Robert, embora os dois homens estivessem muito ocupados discutindo para perceber de que ela andava por ali. Sua intenção não era escutar o que diziam, mas não falavam precisamente em voz baixa.
—Encontre outro —espetou Lachlan— Ponham o cargo a Douglas ou ao Atholl. Eu farei melhor serviço no oeste com Falcão.
Bela franziu o cenho; perguntava-se quem seria o tal Falcão, até que caiu em conta de quem falava. Teria sorrido senão estivesse em uma situação tão comprometedora. MacRuairi estava opondo objeções às levar.
—Sou eu quem decide como devem me servir, não você. Está desacatando minhas ordens?
Bela ficou paralisada ao ver a reação de Lachlan diante da provocação do rei. Apertava tanto os dentes que a boca se pôs branca. Seus olhos cintilavam com provocação. Estava muito quieto. Muito quieto. Como uma serpente enroscada a ponto de atacar. Bela percebeu a reticente tensão de sua voz quando Lachlan respondeu finalmente.
—Não, não as desacato. Estou lhes pedindo que reconsiderem. Não foi para isto que me alistei.
Para que, então? Acaso o moviam o dever e a responsabilidade? Não deveria lhe surpreender. Um homem que ignorava seu próprio clã dificilmente poderia ser um líder. Mas por mais ameaçador que pudesse ser MacRuairi, Robert Bruce era um dos reis mais valiosos da cristandade e não dava um passo atrás ante ninguém, nem sequer ante um malicioso corta-pescoços coberto de músculos.
—Para isto é exatamente para o que se alistaram. Por que pensam que quero que estejam ao comando?
Ficaram olhando-se durante um bom momento. Bela virtualmente podia ouvir a tensão que crepitava entre ambos.
Ao final Lachlan assentiu.
—Prepararei os cavalos.
Bela observou com frustração como entrava nos estábulos. Seria bom que convencesse ao Robert, mas teria que encarregar-se ela de fazê-lo cair em razão. O rei começou a caminhar em sua direção, e era possível que tivesse passado a seu lado sem vê-la se ela não o tivesse detido.
—Senhor, um momento, se lhes agradar.
O rei ergueu o olhar e a olhou. Bela se esforçou por romper a máscara de tensão e esboçou um sorriso. Seu coração se encheu de tristeza ao ver quanto tinha mudado o monarca. Robert Bruce tinha o aspecto de um homem derrotado, de um homem ao qual estiveram a ponto de matar, duas vezes, de alguém que tinha visto morrer a seu lado, incontáveis amigos. Parecia um fugitivo que não achava um lugar seguro onde ocultar-se. Bela sentiu um nó na garganta. Jamais pensou que veria o rosto de Robert Bruce tão abatido.
Quando conheceu o bonito e jovem escudeiro que tinha chegado como aprendiz para ajudar a seu pai, era uma menina não muito mais velha que Joan. Já à idade de dezessete anos parecia um homem imponente. Galante e encantador, beliscou-lhe o nariz e disse que algum dia daria o que falar. Coragem para dar e repartir, disse.
O que não sabia era que necessitaria até o último pingo dessa coragem quando se casasse.
Robert foi o único homem que a fez pensar que suas opiniões importavam. Era como o irmão mais velho que nunca teve. Paciente. Interessava-se no que ela dizia. Amável. E sobre tudo, era um protetor implacável. Nos anos que passou junto a ele antes que morresse seu pai, tinha a salvado de incontáveis surras. O pai de Bela era um homem cruel, de temperamento imprevisível, e tendia a lhe bater cada vez que o contrariava, algo que ocorria frequentemente. Mas Robert tinha uma habilidade assombrosa para distraí-lo, para desviar a atenção da garota torpe que jogava o pão, sorvia a sopa com barulho ou ria muito alto. Quando alguns parentes assassinaram seu pai ficou desolada, mas não pela morte de alguém que lhe parecia um tirano estranho, mas sim porque sabia que aquilo significaria que Robert teria que partir de sua casa.
Uma vez que se casara o viu em poucas ocasiões, até alguns anos, quando coincidiram em Londres. Seu rosto se obscureceu diante daquelas humilhantes lembranças. Foi a primeira vez que seu marido lhe bateu. Tinha a descoberto falando com Robert e viu sua amizade como outra coisa. Ela queria a Robert como a um irmão, e depois como um súdito leal iria querer a seu rei, mas nada mais. Entretanto, seu marido tentou fazer daquele sentimento algo ilícito.
—É certo, Robert? Manda-nos embora?
A tristeza de seus olhos lhe partiu o coração.
—Não lhes abandono, Bela. Dou-lhes uma oportunidade. —Quando viu que o interrogava com o olhar, explicou-se— Me perseguirão.
É obvio. Tentava afugentar a seus inimigos para dar às mulheres uma oportunidade de escapar. Inclusive nesse momento tentava encontrar o modo de protegê-las.
—Nigel resiste no Kildrummy —disse fazendo referência ao mais novo dos irmãos— Estarão a salvo ali por um tempo. Mas se os ingleses se aproximarem muito, dei ordens ao Vi… —acrescentou deixando o nome em suspense— ordenei ao MacRuairi que as leve a Noruega junto a minha irmã e a rainha.
Percebeu a expressão do rosto de Bela, mas ergueu uma mão para sossegar seus protestos.
—Já sei que não o achas simpático, mas passou muitos meses na Noruega quando era jovem. —Aquilo não era surpreendente. Dos descendentes de Somerled GallGaedhil de origem nórdica, entre os quais se incluía os MacDougall, os MacDonald e os MacRuairi, eram estes últimos os que tinham laços mais estreitos com os noruegueses— Conhece o país e pode lhes conduzir até ali se for preciso. Já sabem como são estes highlanders ocidentais em seus navios.
Os piratas eram excelentes marinheiros, mas isso não significava que queria confiar sua vida a um deles.
—Não é que não seja simpático —explicou— É que não confio nele.
Robert examinou seu rosto com expressão severa.
—Há algo que não me tenham contado, Bela? Fez algo ofensivo que…?
Ela negou com a cabeça bruscamente, interrompendo ao rei.
—Não, não tem nada a ver com isso.
Olhadas quentes e sensuais não contavam, por mais que pudessem lhe afetar.
—Então não parece o bastante hábil?
Bela voltou a negar com a cabeça, lembrando a meia dúzia de homens que tinha derrubado na floresta. Era difícil queixar-se daquilo.
—É sua lealdade o que questiono. Como podes estar seguro a quem outorga sua fidelidade? Esse homem é pouco menos que um canalha.
Robert fez uma careta, a primeira amostra de regozijo que via em muito tempo.
—Sim, sim que é. Mas não têm nada que temer, Bela. Quando MacRuairi diz que fará algo cumpre com sua palavra. O que é complicado, é chegar a um acordo com ele.
Aquela apreciação não a consolava muito.
—Rogo-lhes isso, Robert —disse tomando-o pelo braço e ruborizando-se— Não pude evitar ouvir a discussão… —continuou, mordendo o lábio— Ele Tampouco quer vir conosco. Deixou de lado aos homens de seu próprio clã. O que lhes faz pensar que nos acompanhará? Não há nenhum outro que possa nos levar?
Robert negou com a cabeça.
—Já tomei uma decisão, Bela. Não peço que confiem nele. Peço-lhe que confies em mim.
Confiava nele. Inclusive depois de tudo o que tinha passado seguia acreditando em Robert, e essa convicção não se fora. A Escócia tinha perdido a seu paladino e sua esperança de liberdade.
—É obvio que confio em você —disse inclinando a cabeça como mostra de adesão, com os olhos arrasados em lágrimas ao se dar conta de tudo que perdeu e o que estava por perder.
—Pois vá, moça, e recolha suas coisas. Não resta muito tempo. Lorde de Lorn virá nos caçar.
Lhe fez um nó na garganta ao compreender que o rei se estava despedindo dela.
—Aonde irão vocês? O que farão?
O olhar de desolação voltou para seus olhos.
—Iremos à costa. Tenho amigos no oeste. Rearmaremo-nos. Conseguiremos mais tropas e tentaremos de novo.
Nenhum dos dois acreditava nisso. A causa de Robert Bruce estava perdida. Teria sorte se pudesse escapar da Escócia com vida. Começaram a cair as lágrimas.
—Adeus, Robert.
O rei tomou entre seus braços e a estreitou com força.
—Adeus, mucosa —Apesar das circunstâncias e do pranto Bela sorriu ao lembrar como a chamava quando eram pequenos— Cuide de minha esposa. —Vacilou— Isto está sendo duro para ela. Elizabeth não está acostumada violência. Não tem seu espírito de luta. —retirou-se e a olhou uma última vez— Sinto muito Bela. Nunca quis…
Sua voz se apagou.
—Não têm do que te desculpar. Não tenho feito nada que não repetisse hoje mesmo. Tu és o Leão.
O símbolo do reino da Escócia. E dizia a sério, apesar de tudo o que tinha acontecido e do incerto destino que esperava a todos eles.
Ficou olhando como se afastava Robert e voltou para os bosques com um suspiro. Só restava rezar para que o rei soubesse o que estava fazendo.
Ergueu o olhar e se assustou ao encontrar-se olhando diretamente aos olhos do muito patife MacRuairi. O coração lhe deu um tombo. Não podia afastar o olhar. Estava presa, capturada pela força da conexão. Tinha esquecido a intensidade do brilho de seus olhos. Penetravam em seu interior com calidez.
A atração percorria sua pele como um fogo abrasador e a fez ruborizar-se. Dava-se conta de que, para sua decepção, suas reações ante ele não tinham mudado, se acaso não eram mais intensas. Mas o pulso não só lhe acelerava pelas reações que provocava nela. Só olhando-o aos olhos soube que tinha ouvido sua conversa. Estava furioso. E mais que isso. Viu algo selvagem e primitivo em seus olhos. Algo que a instigava a dar meia volta e sair correndo. Mas fazia tempo que tinha aprendido a não mostrar suas debilidades. Tinha sobrevivido a seu matrimônio por meio do controle de suas emoções. Submissão estóica e indiferença, nada de medo nem lágrimas. Um homem poderia controlar seu corpo, mas nunca sua vontade.
Bela ergueu o queixo e se obrigou a caminhar para Lachlan sem evidenciar o ritmo frenético dos batimentos de seu coração. Seus olhos se encontraram em um duelo silencioso.
—Condessa —disse ele inclinando a cabeça, com um inconfundível tom de brincadeira em sua voz.
Ela evitou a ironia e arqueou uma sobrancelha em resposta.
—Surpreende-me que siga por aqui.
Lachlan sorriu, mas dava a impressão de que seu comentário o tinha incomodado mais do que queria admitir.
—Até que me façam uma oferta melhor.
Bela sabia que a estava provocando, mas isso não evitou que franzissem os lábios. Sua tentativa de combater o aborrecimento com desdém não estava funcionando. Lachlan MacRuairi não tinha nada a ver com o Buchan. Não havia um ápice de debilidade nele. Não bastariam um par de palavras e um frio olhar para desafiá-lo. Mas não pensava permitir que a intimidasse. Olhou-o de cima abaixo.
—Quanto vale alugar um mercenário nestes dias?
MacRuairi ficou em silencio durante um minuto. Bela lhe manteve o olhar.
—Mais do que poderias pagar.
Havia algo em sua voz que ela não era capaz de identificar, mas a fazia sentir como se tivesse feito algo mau. Como se tivesse transpassado sua aparentemente impenetrável fachada burlesca e lhe doesse. Como se fosse igual a ela, bom em ocultar suas emoções. Bela simplesmente tinha pensado que não as tinha.
Mas quando deu meia volta e se afastou teve que perguntar-se por que estava tão furioso um homem ao qual nada lhe importava.
Lachlan entrou como um torvelinho na tenda que compartilhava com alguns dos homens, ignorou ao Gordon e começou a colocar suas coisas na bolsa de couro que estava acostumado a ter atada aos arreios.
Negava-se a reconhecer a queimação que sentia no peito e a violência das emoções que percorriam seu sangue. Não tinha tempo para essas estupidezes. Gostasse ou não, teria que liderar o grupo. Precisava concentrar-se em levar a cabo sua missão. Quanto antes acabasse tudo, antes poderia retornar ao oeste junto a seus parentes e antes deixaria de sofrer seu corpo por ela.
Mas não podia desembaraçar-se da imagem que tinha na cabeça. Colocou a mão até o fundo da bolsa pensando nisso. Quando saiu do improvisado estábulo e viu Bela e Bruce, naquela cena, ou melhor, a intimidade que se desprendia dela, doeu-lhe como um murro no estômago. Suas palavras lhe tinham incomodado, mas o que o fazia ferver o sangue eram seus métodos de persuasão. Bela e Bruce estavam tão juntos que pareciam amantes. Seus seios, tão grandes e voluptuosos que poderiam tentar a um monge, roçavam o corpo do rei. E a maneira em que lhe tocava o braço, inclinava a cabeça e suplicava com essa suave e solícita boca só chamava a pensar em uma coisa.
Desde aquele dia na floresta não pode pensar em nada mais. A lembrança de sua nudez seguia torturando-o. Ao que parecia os quatro meses nas ilhas não tinham apaziguado a luxúria que sentia por ela, mas sim, a julgar pelos ciúmes que o consumiam, não fez a não ser piorar.
«Robert.» O nome de batismo do rei tinha saído com assombrosa facilidade de seus lábios. Tal como o pronunciaria uma amante. Seriam certos os rumores?
Não quis acreditar. Não porque pensasse que Bruce fosse incapaz disso, já que o rei tinha uma quantidade de filhos bastardos mais que razoável, mas acreditava que ela era diferente. De fato tinha chegado inclusive a admirá-la, bastante estranho nele. Mas se dava crédito ao que acabara de ver, pode que houvesse algo de certo nas tentativas de Buchan para desprestigiar a sua mulher por adúltera e sua afirmação de que tinha arriscado tanto para coroar a Bruce só porque se tratava de seu amante.
Com Escócia sob o interdito, a dispensa papal se fazia impossível, mas Buchan a tinha repudiado igualmente. Um divórcio a mensa et thoro, de mesa e cama, permitia ao casal viver separadamente, mas nunca voltar a casar-se. A anulação era a única forma de conseguir isso. Em qualquer caso, se pudesse validar-se de alguma forma, sua filha passaria a ser ilegítima.
Seria certo? Talvez isso explicasse por que o tinha feito, por que tinha arriscado tanto para coroar a Bruce.
Lachlan colocou a capa adicional que usava como coberta na bolsa com tanta força, que fez tremer toda a tenda.
—Mas que demônios te passa, Víbora?
Lachlan olhou ao redor para assegurar-se de que não havia ninguém perto antes de responder.
—Nada —lhe espetou— Tome cuidado com o que diz, Gordon. Esta não é uma de nossas típicas missões.
Quando Bruce lhes deu nomes de guerra na cerimônia privativa depois da segunda coroação, fez para preservar suas identidades como membros da secreta Guarda dos Highlanders. Durante das missões usavam seus nomes de guerra, mas o resto do tempo tinham que mesclar-se entre o exército como se fossem soldados ordinários. A Guarda dos Highlanders nem tão sequer existia oficialmente.
À medida que se acrescentava o mistério a respeito do grupo secreto e seleto de guerreiros, Lachlan soube que manter suas identidades ocultas seria difícil, mas imperativo. O segredo não só acrescentava um halo místico ao grupo, mas tornava mais difícil que os assassinassem. Os nomes de guerra seriam úteis nesse respeito.
Surpreendeu-lhe que Bruce lhe desse o apelido de Víbora mas, como nesse nome havia mais razão que brincadeira, não pôde mais que estar de acordo. O apelido, originalmente cunhado por MacLeod como um insulto pela venenosa disposição de Lachlan, caiu como uma luva. Igual à serpente, era escorregadio na hora de evitar a captura e seu ataque era silencioso e mortífero. Tinham-no escolhido por sua capacidade para entrar e sair dos lugares sem ser visto, algo que era útil para obter informação e libertar pessoas.
Seus ancestrais nórdicos tinham apelidos como Erik Tocha Sangrenta ou Thorfinn Arrebenta Crânios, assim que Víbora Tampouco estava tão mal.
Infelizmente sua advertência não despistou ao Gordon.
—Não entendo. Acreditava que odiava te submeter às ordens de MacLeod e que agradeceria a oportunidade de estar ao comando.
Gordon tinha razão. Não gostava de aceitar ordens de ninguém, especialmente de MacLeod. Havia poucos homens que se equiparassem a ele no campo de batalha, mas um deles era o líder da Guarda dos Highlanders. Mesmo assim, não querer estar a suas ordens não significava que queria ser responsável pelas mulheres do rei.
A condessa acreditava que faltava com sua responsabilidade ao negar-se a liderar aos homens de seu clã. E estava certo. Depois de que conduzira a quarenta e quatro de seus homens a uma armadilha mortal por cometer a insensatez de confiar em sua esposa, tinha cedido sua responsabilidade como chefe a seu irmão mais novo.
A luxúria o cegara tanto que não fora capaz de advertir que sua jovem esposa estava cansando-se dele. Mimada e muito formosa para que lhe fizesse bem, Juliana se arrependia de ter se casado impulsivamente com Lachlan, embora fosse um chefe de clã, por ser bastardo não contava com as terras que acompanhavam ao título. Ao encontrar a um candidato mais proveitoso, convenceu a seu irmão, John de Lorn, de que MacRuairi tentava traí-lo. E em lugar de um ataque surpresa dos MacDonald com um pequeno grupo, Lachlan e seus homens se encontraram ante mais de uma centena de soldados ingleses esperando-os na baía de Kentra. Os MacDonald, seus inimigos e parentes, deram-no por morto quando o encontraram, com uma lança lhe atravessando um ombro. Foi o único sobrevivente. Homens, amigos, que tinha conhecido toda a vida, que confiavam nele, foram sacrificados como porcos ante seus próprios olhos. Era um milagre que ele tivesse sobrevivido. Ou uma maldição, dependendo de como se olhasse.
Por razões que ainda não compreendia, o mais novo dos irmãos MacDonald o tinha ajudado a escapar das masmorras do castelo da família. Mas quando Lachlan voltou dentre os mortos e soube que sua mulher estava comprometida com outro homem e se transladara junto a seu irmão ao castelo do Dunstaffnage se encontrou saindo de um cárcere para entrar em outro. Angus Og o tinha advertido, mas ele não quis escutar. Tinham-no declarado traidor, confiscaram seus bens e riquezas e o converteram no bode expiatório necessário para Lorn, que tentava fazer as pazes com os ingleses e procurava alguém a quem culpar dos recentes ataques sofridos pelos homens do rei.
Caído em desgraça, declarado rebelde e sob suspeita de ter assassinado a sua já falecida esposa, Lachlan sabia que era melhor para todos se partisse, tanto para sua família, seu clã, como para si mesmo. De modo que tinha navegado até a Irlanda para converter-se em mercenário de qualquer um que quisesse pagar seu preço.
Seus ombros se esticaram. Que não desejasse liderar ao grupo não significava que queria ouvir Bela MacDuff com a mesma cantinela: «Surpreende-me que sigas por aqui».
Seu desdém ardia. Não o conhecia, maldita seja. Acreditava que o conhecia só por sua reputação, mas que ele pedisse dinheiro por lutar não significava que fosse desleal. Significava que era prático. Cínico, talvez, mas também honesto. Quando acordava fazer algo o fazia. Até pode que Lachlan não desejasse liderar o grupo das damas, mas isso não queria dizer que não fosse fazer seu trabalho. Por Deus bendito, por que lhe importava o mínimo o que ela pensasse?
—Serei mais útil no oeste —disse ao Gordon— Deus saberá em que confusões se meterá MacSorley se não estiver ali para vigiá-lo.
Gordon riu, embora Lachlan não se propusesse ser gracioso. Erik MacSorley era o melhor marinheiro do reino dos navegantes e gostava de provar sempre que tinha oportunidade. Como resultado, acabava metido em confusões continuamente.
—Ah! Acreditei que era pela condessa.
Lachlan deixou o que estava fazendo por tempo suficiente para atravessar com o olhar ao Gordon.
—E que demônios te faz pensar isso?
Se havia algum sinal de advertência no tom de sua voz, Gordon não teve em conta. Lachlan sabia que andava por terreno pantanoso. Gordon começava a pensar que era amigo dele. Mas Lachlan não tinha amigos. Não mais.
—Não pude evitar notar que a última vez que se separaram não o fizeram nos melhores termos. Parecia um pouco… tenso.
O sorriso no rosto de Gordon ardia mais do que deveria.
—Uma situação que não demorei em remediar —mentiu— Um par de nádegas aveludadas é tão bom como qualquer outro.
Gordon negou com a cabeça.
—Tem todo um dom para a poesia, MacRuairi. Se algum dia necessitar a um bardo, já sei a quem chamarei.
Antes que pudesse lhe fazer mais perguntas em relação à condessa, Lachlan ordenou que reunisse a todo o grupo para que se encontrassem nos estábulos. O rei tinha decidido deixar que as damas ficassem com os poucos cavalos restantes. Bruce e os escassos homens que o acompanhariam se dirigiam para os brejos e as montanhas, e ali os cavalos só serviriam para atrasar sua marcha.
Lachlan seguiu os passos de Gordon minutos depois, já calmo de seu arrebatamento, mas não completamente comedido. Estava mais zangado consigo mesmo que outra coisa. Teria que mostrar mais controle.
Se sua própria reação depois do ataque na floresta não tinha servido de advertência, isso sim deveria fazer. A imagem de seu corpo nu… essa visão o tinha açoitado durante quatro malditos meses. Senhor, seu corpo ficava duro só pensando. Havia pedido a Deus ajuda para controlar-se, impedir que seus olhos não se embebessem de cada curva daquela cremosa pele nua. Um só olhar tinha bastado para levá-lo a abismo. Deus, esses seios… pecaminosamente grandes, de perfeita redondez, e acabando em mamilos rosados e eretos. A boca se enchia d’água só de pensar neles.
Bela MacDuff tinha nascido para as fantasias dos homens. Gostava mais do que tinha gostado de mulher alguma. Sabia instintivamente que depois de anos de autocontrole chegaria a mulher que o faria ceder.
Aquela noite se enfureceu consigo mesmo, e também com ela. De modo que explodiu. Não só de desejo, também se deu conta de que tinha medo. Gelou-lhe o sangue vê-la tão vulnerável entre os braços de seu captor. E nesse momento estava ciumento, pelo amor de Deus. Que demônios estava passando? Sabia o pouco que lhe convinha cair nessa debilidade. Os ciúmes induzidos pela luxúria já tinham semeado suficiente destruição em sua vida. A última vez que teve pessoas a seu cargo permitiu que suas emoções o distraíssem. Seus homens perderam a vida por causa disso e ele tinha sido despojado de tudo que tinha. Estava tão perto de recuperar tudo e não pensava voltar para aquele caminho de maneira nenhuma. Tinha trabalhado muito duro para arriscá-lo.
Sopesou a bolsa de ouro que tinha atada à cintura. Bruce tinha mantido sua promessa até o momento, e Lachlan tinha intenção de cumprir a sua. Faria que esse ouro chegasse às ilhas assim que tivesse a oportunidade. Outro pagamento de uma dívida que pensava saldar em dois anos e meio.
O que gostava tanto em Bela MacDuff? Sua língua afiada? Seu corpo de rameira? Não sabia. Mas dado que por mais tentado que estivesse não poderia tampá-la com um saco durante dos próximos, Deus sabia quantos dias, tentaria evitá-la o melhor que pudesse.
Em qualquer caso tinha a sensação de que pôr às mulheres a salvo o manteria muito ocupado para poder preocupar-se com uma moça, por mais chamativa que fosse Uma suspeita que confirmou minutos depois quando jogou a primeira olhada a sua nova responsabilidade.
«Ah, Deus.»
O homem conhecido como o mercenário mais temido das ilhas Ocidentais, alguém que jamais se retirava de uma briga por menos probabilidades de vencer que houvesse, queria partir, sair correndo dali. Convertera-se em um mercenário justamente para evitar esse tipo de situações. O rei pedia muito. Não havia dívida, terras, nem quantidade de moedas que pudessem pagar aquilo.
Um, dois, três… E três meninos, maldita seja! E mais mulheres das que queria contar.
«Senhor.» Pareceu-lhe adoecer. Não tinha nenhuma necessidade daquilo. Como diabos poderia percorrer com eles as mais de cem milhas através do terreno mais dificultoso da Escócia para pô-los a salvo enquanto a metade do exército inglês lhes pisava nos calcanhares?
O atrevido olhar de olhos azuis de Bela MacDuff se encontrou com o seu e pareceu adivinhar o que pensava. O desafio que insinuava era tudo que necessitava para esporeá-lo à ação. Tinha um trabalho que fazer, diabos, e pensava levá-lo a cabo. Mas o peso da responsabilidade caía sobre seus ombros. Já tinham morrido suficientes pessoas sob sua supervisão.
Organizou aos homens rapidamente e lhes deu instruções para a primeira parte da viagem, mas lhes custou mais tempo do que esperado arrumar os cavalos, já que algumas das damas tinham uma experiência limitada como amazona.
Ele, por sua parte, tinha pouca experiência comandando a um grupo de mulheres. Os guerreiros curtidos não tinham ternos sentimentos, e certamente não pareciam a ponto de romper a chorar quando alguém lhe dava um par de ordens.
Quando uma das mulheres se opôs a montar com MacKay no cavalo de guerra faltou pouco para que a frustração tirasse o pior dele. Estava a um segundo de levantá-la pelo pulso e montá-la ele mesmo, ou de lhe dizer que se não queria subir ao maldito cavalo podia esperar ali a que a escoltassem os ingleses, quando encontrou consolo onde não esperava.
A condessa lhe pôs uma mão no braço. Ficou paralisado e um violento inchaço o sobressaltou. Seu amável tato teve um efeito tranqüilizador imediato. Ela ergueu o olhar para ele e Lachlan ficou por um momento à deriva no mar azul de seus olhos.
«Preciosa», pensou. Tinha cílios tão longos e aveludados como as asas de um corvo.
—Talvez possa lhes servir de ajuda.
Tinha esquecido quão delicada era sua voz, como se estendia por sua pele até lhe impregnar os ossos. Quando o olhava desse modo, com afeto e compreensão, parecia-lhe que o coração sairia do peito. Aquela reação desconhecida o sobressaltava. Até esse momento tinha sobrevivido graças a seu agudo sentido do perigo, mas agora seu instinto o alertava. Raios, era melhor quando não pensava mais que em atirar-lhe. Lachlan, que não queria deixar a descoberto a intensidade de suas reações, se arrumou para assentir, mais agradecido pela ajuda do que quisesse admitir. Momentos depois, após umas palavras de ânimo da condessa, a mulher subia ao cavalo com o MacKay. Agradeceu que Bela sugerisse também o resto dos emparelhamentos, já que parecia ter bom conhecimento da relativa habilidade para a equitação de cada uma das damas, e assim puderam partir em menos tempo do que Lachlan acreditava possível.
Uma rainha, uma princesa, duas condessas, cinco damas de companhia, a irmã mais nova de um rei, dois condes, um deles de só quatro anos, e um jovem cavalheiro ansioso por dar provas de sua valia. Cinco membros da Guarda dos Highlanders eram tudo que se interpunha entre eles e o exército mais poderoso e vingativo da cristandade.
Lachlan não dava sinais da sensação de fatalidade que se apoderava dele, mas seguiu a esteira do grupo para o interior dos bosques e as colinas de Atholl como uma escura sombra maléfica.
Capítulo Cinco
Bela não sabia durante quanto tempo mais seria capaz de agüentar. Chegava ao ponto de ruptura, os três dias que tinha passado tentando evitar aos ingleses e procurando evitar que a metade do grupo viesse abaixo por causa do pânico. Não podia dar mais de si.
Convencia-se de que aquilo era devido ao sempre presente medo do que aconteceria No caso de que os capturassem, à pressão que supunha infundir ânimos a todos, em especial aos meninos, e ao cansaço extenuante de cavalgar durante todo o dia e ter muito medo para dormir bem pelas noites. Sua crispação não tinha absolutamente a ver com o homem que as guiava.
—Estou cansada —disse lady Mary Bruce.
A Bela lhe encolheu o coração ao olhar à garota que cavalgava junto a ela. Sempre que via Mary pensava em sua filha. Tinham virtualmente a mesma idade, embora não se parecessem em nada fisicamente, nem Tampouco no caráter. Joan se mostrava tão taciturna e reservada como Mary atrevida e aberta, e apesar de que ambas fossem de tez morena, Mary tinha um ano mais e seu corpo era o de uma mulher. Embora constante lembrete de sua filha fosse doloroso, a irmã de Robert despertava nela um apaixonado instinto de amparo.
—Sei, carinho. Sei. —Bela era consciente de que todos estavam cansados. Mas tinham que continuar avançando para Kildrummy. Quando chegassem ao castelo estariam a salvo. Ao menos isso esperava — Quer montar um momento com o Magnus?
As únicas mulheres que tinham arreios próprios eram Bela, a irmã de Robert, Christina, a rainha Elizabeth e sua dama de honra. As outras mulheres e os meninos foram alternando; algumas vezes montavam sozinhos e outras com algum dos homens. Depois de várias horas de trajeto se estabeleceram certas preferências quanto a companheiros de cavalo. O conde de Mar, de quatro anos de idade, filho de Christina Bruce com seu primeiro marido, preferia viajar com seu novo meio-irmão, sir Alexander Seton. Christopher, segundo marido de Christina, estava desaparecido desde Methven e o medo a sua perda pendia sobre todos como uma escura nuvem, já que era um dos melhores cavalheiros da cristandade.
Marjorie, a filha que Robert tivera com sua primeira esposa, estava sob o amparo de um dos guerreiros de aspecto mais ameaçador que Bela jamais vira. Robert Boyd era oriundo de Marches Escocesa, e Bela duvidava muito que houvesse alguém de constituição física comparável em qualquer lado da fronteira. Se a pura força bruta contava para algo, diria que a princesa estava nas melhores mãos. E ao igual acontecera com sir Alex, também Boyd tinha um irmão desaparecido por cuja vida se temia.
Mary cavalgava com Magnus, e às vezes com Lachlan, quem parecia disposto a compartilhar cavalo com qualquer menos com Bela. Embora não era que lhe importasse.
—por agora estou bem —disse Mary negando com a cabeça. Bela sabia a quem esperava. Ou muito se enganara, ou a adolescente mostrava preferência por seu infame líder. Mary a olhou com seus enormes olhos negros cheios de inquietação e falou quase com um sussurro— Acredita que terá acontecido algo?
Bela negou com a cabeça com veemência.
—Não —disse firmemente, percebendo um medo na voz da moça que lhe lembrava ao seu— Não.
Mas onde estava Fazia muito que partira. Lachlan saiu com sir James Douglas e William Gordon depois do café da manhã para bater os arredores em busca de soldados inimigos e outros grupos de guerreiros. Não só os perseguiam os ingleses; mas seus próprios patrícios também queriam os caçar. Os homens se alternavam para reconhecer o terreno constantemente, mas nunca tinham demorado tanto.
—Não teriam que ter retornado?
Bela ouviu expressar a Margaret seus próprios pensamentos. Embora sua prima cavalgasse atrás delas, já que logo que cabiam dois cavalos por aquele estreito penhasco, estava o bastante perto para ouvir a pergunta da Mary. Também Margaret parecia preocupada. Além de muito frágil e assustada, pensou Bela com um ressentimento pouco cristão.
Não poderia mostrar nunca, mas assim era exatamente como se sentia. O resto das mulheres e os meninos necessitavam a alguém que fosse forte, e esse alguém tinha que ser Bela. Todos os olhares estavam pousados nela, e faria o impossível para que não viessem abaixo. Inclusive… mentir.
—Estou convencida de que voltarão em seguida —assegurou a sua prima— O capitão disse que estariam fora quase todo o dia.
O olhar de Mary sugeria que não era tão crédula como Margaret, mas nenhuma comentou que se aproximava o anoitecer. Uma das poucas coisas positivas de sua crua situação era que estavam na metade do verão. Ao contrário que em sua última viagem mal chovia, e as noites nas montanhas eram frias mas não insuportáveis.
O ruído de cascos de cavalos que se aproximava deles impediu de prolongar a conversa. Durante alguns momentos, Bela duvidou se seriam amigos ou inimigos. O coração pulsava com força em seu paralisado corpo. Os guerreiros restantes se abriram em leque para formar uma barreira. Mas só eram quatro, e Bela sabia que aquilo podia significar o fim da viagem.
«Por Deus bendito! O que será de nós?»
Bela viu aparecer três homens depois da curva que tinham ante si e se fixou imediatamente no cavaleiro que cavalgava a frente. Fechou os olhos e deixou que o alívio se expandisse por todo seu ser. Essa intensidade de emoções certificava a confiança que tinha chegado a depositar nele. Ninguém podia estar mais surpreso que ela mesma. Lachlan os conduziu até ali com uma habilidade e determinação extraordinárias. Por tratar-se de um homem que evitava sua responsabilidade como chefe de clã era um líder de excelentes qualidades. Não só competente, mas também carismático, via-se obrigada a admitir. Pode que não lhe caísse muito bem ao resto dos homens, à exceção de William, mas aceitavam suas ordens sem pigarrear. Possivelmente fosse cínico e oportunista, mas também lúcido, seguro e eficiente. Tinha os levado por terrenos que pareciam infranqueáveis e até o momento sempre tinha engenhado para esquivar aos incontáveis grupos que os perseguiam.
Mantinha-os a salvo.
Mas Bela sabia que também ele tinha chegado a confiar nela, e suspeitava que aquilo fosse uma raridade. Nisso se pareciam, teve que admitir. Por mais capacidade de decisão e eficiência que tivesse, não contava com muita experiência dirigindo a mulheres e meninos. Bela se compadeceu dele ao perceber de sua frustração no primeiro dia, e durante das seguintes jornadas formaram uma sociedade tácita nascida da necessidade: ele se ocupava de sua segurança e ela de seus ânimos.
Não lhe importava se essa era a única razão pela qual falava com ela. Mas se dissesse a si mesmo não significava que acreditasse. Aquele homem a atraía quisesse ela ou não.
Ao ver os cavaleiros de perto empalideceu. Chegavam sujos, esfarrapados, cobertos de pó e de manchas de cor vermelha escura que não podiam ser mais que sangue, cheios de cortes e hematomas de diferentes tamanhos. Felizmente, nenhuma das feridas parecia grave.
—Que raios passou! —gritou reagindo Robert Boyd, ou Robbie, como o chamavam seus companheiros.
—Uma emboscada —disse MacRuairi com gravidade. Esperou que os gritos de horror e a angústia das damas cessassem antes de explicar— Nos esperavam na ravina, a poucas milhas daqui.
«Esperavam», disse-se Bela.
—Quantos eram? —perguntou MacKay.
Lachlan deu de ombros, mas Douglas respondeu com orgulho.
—Uma vintena. Pode até que houvesse algum mais.
A Bela deu um tombo o coração. Por Deus bendito! Poderiam te-los matado.
—Estão mortos? —quis saber Boyd.
—Sim —respondeu Douglas— Eu mesmo matei a cinco deles. E o conde derrubou a quase tantos como eu —acrescentou detrás dirigir o olhar ao Atholl.
Bela imaginou quem tinha acabado com o resto.
—Quais eram? —perguntou MacKay.
—Os homens de Comyn —respondeu Lachlan olhando a Bela como se queria comprovar se lhe angustiava ouvir que a perseguiam os homens de seu marido— Alguém virá buscá-los cedo ou tarde. Teremos que ir por outro caminho.
Bela reprimiu sua queixa, sabendo que aquilo não traria nada bom. Os «caminhos» que atravessavam a montanha eram escassos e qualquer um que se saísse da rota principal seria duro e à força.
Duro era dizer pouco. Quando MacRuairi deu o sinal de parada para passar a noite, estavam todos a ponto de desfalecer. Bela deteve seu cavalo e esperou a que a ajudassem a desmontar. Margaret, que também tinha cavalgado sozinha, esperava igualmente. Mas ao contrário dela não teve que aguardar muito. Olhou para sua prima bem a tempo de ver como Lachlan se aproximava e tomava pela cintura para baixá-la. Ao final o patife podia mostrar-se mais atento, com qualquer um menos com ela. Havia algo de reverencial inclusive na forma em que olhava sua prima. Nada a ver com os ardentes e luxuriosos olhares que dedicava a ela, como se a visse nua todo o tempo.
Bela sentiu uma pontada no peito e afastou o olhar. Mas a seu coração não podia enganar tão facilmente. Teria gostado que um homem a olhasse assim, embora fosse uma só vez. Margaret não tinha culpa. Sua prima era tão doce e inocente como uma noviça. A veneração de MacRuairi era merecida. Bela não possuía nenhuma dessas qualidades.
Magnus a ajudou a desmontar depois de atender lady Mary, a quem o cansaço convenceu de que devia cavalgar com ele. Mas isso não tinha diminuído o interesse que o líder despertava na garota. Parecia inclusive menos satisfeita que ela mesma com os cuidados que dispensava à sua prima.
—Sua prima é muito doce.
Bela esteve a ponto de rir. Não acreditava que Mary percebesse de que tinha o sobrecenho franzido.
—Sim, é —reconheceu.
Mary parecia estar dando muitas voltas a algo.
—Acredita que será certo o que dizem dele?
O brilho de emoção que percebia em seus olhos a pôs nervosa. Sabia que certas mulheres encontravam irresistíveis aos homens perigosos e que a razão principal desse atrativo eram suas diabruras. «Quem poderia ser tão boba e insensata?», pensou com tristeza.
Bela considerou qual seria a melhor resposta para ela, tendo em conta que não queria estimular a curiosidade da garota. Embora sua própria experiência lhe dissesse que aquilo era impossível. Os homens como MacRuairi despertavam a curiosidade das mulheres. Faziam que quisessem escavar até o fundo e encontrar a semente de bondade entre o mal, inclusive sabendo que o mais provável era que estivesse completamente podre.
Não era mais que o mecanismo da intriga e a curiosidade, dizia a si mesma.
—Suspeito que terá algo de certo e um pouco de exagero —disse sem comprometer-se.
Mary o olhou um instante dantes de afastar o olhar.
—Crê que matou a sua esposa?
Bela fez como que não se surpreendia e olhou à garota com severidade.
—Não deveria repetir tais coisas. Pois claro que não é certo. —Esquecia oportunamente que também ela se tinha perguntado— Pensa que seu irmão poria ao cargo de sua família a um homem que matou sua própria esposa?
Mary teve a gentileza de ruborizar-se, mas não era uma garota que se assustasse facilmente.
—Não inventei isso. Não faço mais que repetir o que se diz por aí.
Bela arqueou uma sobrancelha.
—Como crê que se sentiria se te ouvisse repetir tal coisa?
Em realidade ela mesma duvidava que lhe importasse muito, mas Mary não sabia isso, e o que contava era o significado da lição.
Mary abriu bem os olhos.
—Não o contará, não é?
Bela simulou refletir. Franziu o cenho ao tentar conter a risada pela expressão de horror que punha a garota.
—Não o farei se promete ir dormir justo depois do jantar. Nada de escutar as conversas dos homens fora da tenda.
Mary riu em lugar de envergonhar-se.
—É que me parecem… muito instrutivas.
Bela reprimiu a risada. Sem dúvida eram mais que muito instrutivas.
—Promete?
A garota assentiu.
—Estou tão cansada que não poderia ficar desperta embora quisesse.
Bela sabia exatamente a que se referia. Estava desejando deixar cair em sua improvisada cama feito com peles de animais e grosas tàrtans de lã. Pode que essa noite inclusive conciliasse o sonho.
Lachlan se sentou sozinho na escuridão e prestou atenção aos sons da floresta. Era o ponto morto da noite: duas horas, talvez três, depois da meia-noite. Era seu momento preferido do dia. Todos outros dormiam. Normalmente aqueles sons o apaziguavam, mas nada podia tranquilizar a inquietação que bulia aquela noite em seu interior. Ofereceu-se como voluntário para fazer a vigilância porque sabia que não poderia dormir. E menos ainda, com o desenfreio da batalha correndo através de suas veias. Seus pensamentos derivaram para uma das três tendas que tinha atrás. Infelizmente, esse não era o único desenfreio que bulia por seu corpo.
Contrariado, levantou-se do tronco no que descansava e começou a patrulhar os arredores. Precisava mover-se, mas maldita a hora, suas obrigações não conseguiam distraí-lo; nem sequer tinha conseguido um banho em um lago gelado, nem tão sequer estar com outras mulheres.
Por exemplo, com sua prima. Margaret MacDuff era doce, inocente e sem complicações, o tipo de mulher que não lhe pediria nada e jamais lhe complicaria a vida. Entretanto, levá-la à cama era a última coisa que lhe passava pela cabeça ao olhá-la. Seus belos traços eram serenos e angélicos, mas não tentadores. Não lhe alterava o sangue, nem fazia que se esticassem seus músculos, não o punha nervoso, e Tampouco seus sentidos ficavam embargados com a fragrância do maldito sabão de flores com o que teria se lavado aquela manhã. Quem demônios teria dito que ele distinguiria entre lavanda e rosas?
Não lhe importava absolutamente que Margaret falasse com MacKay e Gordon durante todo o dia. Não lhe afetava. Podia pensar racionalmente, respirar com tranquilidade e permanecer junto a ela sem que lhe pusesse duro como um escudeiro com sua primeira donzela. Com uma mulher como Margaret nunca se zangaria, e certo que jamais ficaria ciumento. Comparada com sua orgulhosa e enérgica prima, que parecia não perder uma ocasião para desafiá-lo, Margaret era doce, agradável e respeitosa.
E insípida.
E desapaixonada.
Tão tímida como um gatinho.
Teria medo de tocá-la, por não falar das coisas que gostaria de fazer com a condessa e jamais faria com ela. Margaret jamais teria o valor de seguir suas convicções, embora fossem ingênuas, nem de fazer o que acreditava seu dever sabendo que se converteria em uma traidora. Jamais possuiria a força para comandar a um aterrorizado grupo de mulheres e meninos em umas condições que desesperariam ao mais curtido dos soldados.
Lachlan amaldiçoou para seus pensamentos enquanto se adentrava no arvoredo. Por mais que queria centrar seu desassossego em um desejo reprimido sabia que havia algo mais. Na realidade era isso o que o incomodava. Jesus, estava desejando voltar para as ilhas. Era um ilhéu, não podia passar muito tempo em terra sem voltar-se louco. Porque essa tinha que ser a única explicação para que pensasse nela. Pensar em qualquer mulher fora da cama era um equívoco.
Aferrou-se a essa ideia e expulsou de sua cabeça qualquer pensamento alheio à tarefa que lhe ocupava. Rodeou o acampamento para comprovar que tudo estava em ordem e voltou para seu posto entre as árvores, nas imediações do lugar onde passavam a noite. Agarrou um ramo de tomilho para mascá-lo e justo quando estava acomodando-se contra uma árvore ouviu um ruído.
Atirou o ramo e adotou a posição de combate. Seus sentidos se aguçaram. Todos seus músculos se esticaram ao momento. Dirigiu seu olhar para o lago, onde tinha ouvido o rumor, para tentar ver algo entre a escuridão, mas nem tão sequer sua adestrada visão noturna era capaz de penetrar a densa floresta.
Avançou lentamente. Em silêncio. Escondido depois das árvores, aproximava-se do inimigo com o sigilo de um predador e máxima cautela. A um lado do lago havia uma colina, algo que lhe trouxe lembranças da recente emboscada. Ao aproximar-se ouviu sussurros e ficou admirado. Falavam em voz baixa, mas pronunciar uma só palavra durante um ataque teria sido um disparate. Além disso, os sons provinham da zona do lago e não da colina, que teria sido o lugar propício para uma emboscada.
Vislumbrou um resplendor branco entre as negras sombras que tinha ante si. Ao afinar o olhar distinguiu duas figuras. «Demônios.» Não era um ataque absolutamente, a não serem duas das mulheres. Ficou de boca aberta. Uma delas era a condessa.
Preparou-se para um sermão, mas nesse momento o dominava a ira. Pelo sangue de Cristo, é que não sabiam que era perigoso andar aí fora de noite?
—Não podia agüentar mais —ouviu que dizia a silhueta menor. Se não se enganava era Mary, a irmã mais nova de Bruce— Tinha que ir.
A condessa a olhava com as mãos apoiadas na cintura, como se não pudesse acreditar.
—Teria que ter me despertado. É perigoso sair sozinha do acampamento de noite.
Aquele tom de voz fazia pensar a Lachlan em sua mãe, algo que rara vez acontecia.
Tinham começado a afastar-se da borda do lago quando se detiveram, alarmadas por um ruído que chegava da colina que tinham sobre suas cabeças. A Lachlan veio o mundo em cima. Gritou para adverti-las, mas já era muito tarde. Sua presença tinha surpreendido um animal, provavelmente um cervo, que provocou um pequeno deslizamento de rochas ao sair em correria. Por desgraça uma delas, do tamanho de um odre, rodava ladeira abaixo em direção à cabeça de Mary Bruce.
A garota não notou o perigo. Mas a condessa sim. Equilibrou-se sobre Mary sem duvidar e a separou da trajetória justo antes que a pedra impactasse atrás delas. Lachlan se moveu tão rápido como pôde, mas não a agarrou a tempo. A condessa tropeçou, voou pelos ares e caiu ao chão fazendo um ruído que gelou seu sangue.
Demorou um segundo chegar a seu lado.
—Por Deus, Bela, estás bem? —perguntou tomando-a pelos ombros com delicadeza para lhe dar a volta.
Não reconhecia sua própria voz. Soava… pastosa. Rouca. «Preocupada.»
Bela abriu os olhos e o olhou, ainda atordoada.
—Creio… acredito que sim.
O alívio se estendeu como uma cálida onda por todo seu ser.
Mary estava ajoelhada do outro lado, com os olhos grandes totalmente abertos.
—Não vi a pedra. Não queria que acontecesse nada.
Lachlan franziu o cenho. Estava a ponto de dar um bom sermão à menina, mas Bela o deteve agarrando-o brandamente pelo braço.
Como demônios pôde consegui-lo?
—Estou bem —disse a condessa à garota tentando acalmá-la. Levantou-se e limpou o pó da roupa, mas logo fez uma careta de dor. Girou as palmas para que ele visse a sujeira e as pedras incrustadas em sua suave pele. Ocultou suas mãos à garota e sorriu— Um par de arranhões, isso é tudo.
Para dar fé disso se levantou. Com sua ajuda. Lachlan parecia não poder deixá-la partir e não lhe soltava os braços. Bela tentou tranquilizar-se, mas ele advertiu que ficava tensa e jogava todo o peso de seu corpo do lado esquerdo.
—Estou bem —repetiu lhe suplicando em silêncio que não dissesse nada.
Lachlan franziu o cenho. Estava claro que ele não sabia nada de crianças, mas Mary Bruce parecia já com idade suficiente para suportar que dissessem que sua escapada noturna tinha resultado no que parecia uma entorse de tornozelo, e que poderia ter sido muitíssimo pior.
A condessa caminhou até o lago sem deixar de sorrir, padecendo o que ele supunha uma dor considerável.
—Vou lavar-me um pouco. Pode se encarregar de que Mary retorne à tenda?
A garota parecia estar indecisa, olhando a um e outra alternadamente. Estava claro que queria ficar, mas também estava que tinha vontade de ir com ele. Lachlan entreabriu os olhos e se perguntou que intenções teria a menina.
—Esperarei —decidiu Mary.
Bela negou com a cabeça.
—Precisa descansar. Eu não demorarei nada.
—Tem razão —acrescentou Lachlan— Temos um longo dia pela frente. Eu me encarregarei de que a condessa volte em perfeitas condições.
—Isso não é… —repôs Bela abrindo os olhos com apreensão.
—Insisto. —Lachlan resolveu a discussão com voz desafiante.
Não se livraria dele com tanta facilidade. Não até que desse uma olhada nesse tornozelo.
—Obrigado, minha senhora —disse a garota com todo o aspecto de estar a ponto de chorar— Obrigado pelo que fez.
A condessa tinha salvado à garota evitando o perigo que ela mesma corria. Não lhe surpreendia.
—Qualquer um teria feito o mesmo —disse, e parecia acreditar realmente nisso. Mas se enganara. A esposa de Lachlan jamais teria feito nada parecido— Vá descansar carinho —disse com uma doçura que lhe provocou uma estranha angústia no peito— Te verei pela manhã.
Lachlan não pareceu perceber os olhares furtivos que Mary lhe dedicava no caminho de volta, ou no caso de que fizesse, evitou-a. Não custou muito adivinhar que a garota queria ficar a sós com ele. Senhor, isso era o único que lhe faltava, ter que evitar os cuidados de uma garota que poderia ser sua filha.
Estava a ponto de fazer trinta e três anos. Por que se tinha unido à causa? Tinha que lembrar a si mesmo: em dois anos suas dívidas estariam saldadas; dois anos mais e gozaria da independência e a solidão que tanto ansiava.
Quando acompanhou a Mary a sua tenda e despertou ao Gordon para que fizesse a guarda, Lachlan teve que reconsiderar sua pressa em livrar-se da menina. Sabia que a condessa não queria que a moça visse suas feridas, mas estar a sós com Bela MacDuff não era uma boa ideia. Teria que ter mandado Gordon. Mas Tampouco queria mandar ao Gordon, demônios.
Entrou na floresta para retornar ao lago pisando com força, quase desejando que alguém saltasse de entre as árvores e o atacasse. Não viria mal uma boa briga.
Atuava como um idiota. Desejava-a. E o que? Tinha desejado a um montão de mulheres em sua vida. Não havia nada especial em…
Assim que espionou a borda do lago ficou paralisado a ponto de dar um passo. A boca lhe secou. Tudo lhe secou. Parecia que ele mesmo emanava um calor que o secava da cabeça aos pés. «Outra vez não.»
Bela estava sentada sobre uma rocha à borda do lago, com o vestido arregaçado para colocar o tornozelo na água fria. Inteligente, mas não era nisso no que ele pensava. Só podia pensar na delicada perfeição daquelas pernas tão bem torneadas. Cada centímetro de sua suave e sedosa pele estava gravado a fogo em sua memória.
«Maldita seja.» Avançou com determinação e a mandíbula completamente apertada. Tinha que ser capaz de fazer.
Se por acaso servia de consolo, que não era o caso, ela parecia tão incômoda como ele mesmo. E Tampouco lhe reconfortava saber que não era o único que notava a tensão. Ela também se sentia atraída por ele, mas obviamente a ideia de sentir-se atraída por um bastardo reconhecido que vivia de sua espada não era nada apetecível. Representava tudo que ela desprezava: um mercenário que não acreditava em nada, o oposto a seu exacerbado patriotismo.
—Encontra-se bem Mary?
—A menina está bem —disse ajoelhando-se a seu lado— Como está seu tornozelo?
—Dói um pouco.
Lachlan arqueou uma sobrancelha.
—Um pouco. —Ela o olhou fixamente, como o desafiando— Está quebrado?
Bela mordeu o lábio. «Jesus.» Não podia fazer mais fácil?
—Acredito que não.
—Me deixe vê-lo.
Bela vacilou, mas esse tom seco de formalidade a convencê-la. Tirou o pé da água e o pôs em alto para que o examinasse. Lachlan apertava tanto os dentes que lhe surpreendeu não ouvir como se partiam. Continha-se ao máximo, mas nada podia prepará-lo para a maciez da delicada e aveludada pele que estava tocando. Teve que reprimir-se com todas suas forças para não estender a mão por toda a perna. E depois repeti-lo com a língua. Só de saber que estava tão perto do doce engaste entre suas pernas seu corpo por completo ficava quente e duro.
Bela estremeceu diante do contato. Era quase insuportável ser consciente do efeito que suas carícias tinham nela. «Não a olhe.» Assim que visse algo remotamente parecido ao desejo cometeria uma loucura. O suor se acumulava sobre suas sobrancelhas. Todos os músculos de seu corpo se esticaram para suportar. As chamas da luxúria o rodeavam e ameaçavam queimando os últimos fios dos que pendia seu controle.
«Te concentre. Está ferida, caramba!»
Tinha que andar com cuidado. Bela MacDuff era perigosa. Havia um trabalho pendente e não podia permitir-se nenhuma distração. Não se pensava sair dessa com vida. Dois países inteiros os perseguiam.
Lachlan sustentou o pé, recuperando a compostura. Para a força que aparentava Bela tinha ossos tão finos e delicados como os de um pássaro. Jamais na vida tinha visto um pé tão delicioso. Pouco maior que sua mão, seus dedos minúsculos, o arco elevado, e o tornozelo fino, embora ligeiramente inchado, assemelhavam-no ao pé de uma fada.
«Está ferida», teve que lembrar-se. Mas dessa vez a estava tocando, não simplesmente olhando-a. Fervia-lhe o sangue. Rodeou o tornozelo lentamente com a mão, pressionou com cuidado sobre a superfície inchada e se alegrou ao comprovar que não lhe causava muito dor. Dobrou o pé um pouco para assegurar-se, mas ela tinha razão: não estava quebrado. Contudo, não seria cômodo caminhar durante s seguintes dias. Não poderia cavalgar sozinha. Alguém teria que ir com ela. Franziu os lábios sem saber por que aquela ideia lhe incomodava tanto.
Voltou a pôr a perna na água com cuidado e afastou as mãos como se tivesse sobrevivido a um martírio. Diabos, preferiria andar sobre brasas que voltar a passar por aquilo. Levantou-se e se aventurou a olhar em sua direção, dizendo-se que estava muito escuro para apreciar o ligeiro rubor de suas bochechas.
—Terá que enfaixá-lo quando retornar ao acampamento. Se não souber como, posso lhe ensinar.
—Sei como fazer —disse Bela imediatamente.
Obviamente ela tinha tão pouca vontade como ele de que lhe pusesse as mãos em cima. Reprimiu o repentino aborrecimento.
—Como têm as mãos?
—Não muito mal —respondeu ao mesmo tempo que as mostrava.
Estavam cheias de arranhões e completamente machucadas. Aquela dama tinha a mesma fortaleza de espírito de um highlander.
—MacKay tem salvia. Ponha um pouco e procure cobrir as mãos com luvas ou com um trapo.
Quando Bela assentiu, Lachlan viu que tinha algo sob o queixo. Esticou o braço e a pegou pelo queixo com dois dedos para que inclinasse a cabeça para cima. Amaldiçoou.
—Têm um arranhão no queixo.
Bela o tocou de maneira instintiva e estremeceu ao notar a pele descarnada. A admiração que sentia por ela era quase tão molesta como o desejo. Quase.
Lachlan se agachou para umedecer uma ponta de seu tártan na água.
—Não é preciso que faça isso —se apressou a dizer.
Mas ele ignorou seus protestos e procedeu a aplicar o pano empapado sob seu queixo para limpar a sujeira. Estava perto dela, muito perto. O suficiente para pô-la nervosa. Tão perto que podia cheirar a sutil fragrância de sua pele. «Hoje rosas, maldita seja.» Notou que a Bela lhe cortava a respiração. Olhou-a aos olhos e viu quão sobressaltada estava.
Mas então cometeu um engano. Olhou para baixo e se fixou em um jorro de água que corria por seu pescoço até o decote da regata, essa regata que graças a seu tártan encharcado estava completamente molhada e grudava a seus incríveis seios.
Ficou a boca seca. Não, feita água. Suas lembranças não lhe rendiam justiça. Seus mamilos, de uma redondez perfeita, grandes e luxuriosos, estavam tão eretos que pareciam dois bagos diminutos pedindo que as mordiscassem.
O desejo o golpeou com toda sua força. Um tipo de desejo totalmente diferente. Um desejo quente e visceral que reclamava cada centímetro de seu próprio corpo. Contraiu os músculos para conter-se.
Ela se estremeceu e se cobriu rapidamente com o bordo da capa.
—Não! —exclamou— Não me olhe desse modo. —Algo em seu tom de voz penetrou entre a bruma do desejo e Lachlan voltou a olhá-la aos olhos— O que fará agora, me rasgar a roupa como se só fosse um pedaço de carne para satisfazer os prazeres dos homens? —Prorrompeu em um seco soluço— me atirar ao chão e me dizer que estava pedindo a gritos? Que mereço isso? —agarrou os seios e os ofereceu provocadoramente— Que só valho para isto, que se pareço uma puta será porque sou uma puta?
Lachlan amaldiçoou em voz baixa. Não só porque suas palavras o envergonhassem, algo que surpreendentemente era certo, mas sim pelo que revelavam. De repente tudo começava a encaixar. Compreendeu a cautela e a dor com o que às vezes reagia ante seu desejo. Pelo sangue de Cristo, o que tinha feito Buchan com ela? Teria matado a aquele bastardo nesse momento.
Apertou os punhos com força.
—Conte quem disse isso— me contem o que ele lhe fez.
Bela riu amargamente.
—Queres que lhes conte todos os detalhes sórdidos? —Entreabriu os olhos e depois deixou cair as pálpebras para adotar a grotesca máscara de uma mulher perdida— Quer saber exatamente tudo o que me ensinou para agradá-lo? —continuou dizendo com voz baixa e rouca. Seus olhos escorregaram pelo corpo de Lachlan até fixar-se no vulto entre suas pernas. Um vulto que cada vez se inchava mais, incapaz de discernir quanto mal havia em reagir a aquilo. Passou a língua pelo lábio inferior com precisão felina. Inclinou-se para frente e o olhou debaixo de suas largas pestanas— Quer que lhes ensine isso, Lachlan, que faça uma demonstração de minhas habilidades?
—Não siga —disse agarrando-a, furioso tanto consigo mesmo por sua reação como com ela por atuar de tal forma— Não me referia a isso.
O rosto de Bela se desprendeu da máscara de luxúria e adotou de novo a expressão de raiva e dor que a precedia.
—Então o que? Queres saber como me coagiu para que cumprisse com minhas obrigações maritais desde que tinha quinze anos? Quinze, Lachlan. Não muito mais velha que Mary e Marjorie. —Ao ver que fazia uma careta de asco, Bela decidiu se aprofundar na ferida— Mas não lhe bastou com que submetesse a ele e me convertesse mais em puta que em esposa. Supunha-se que eu tinha que desfrutar, e como não o fazia, tentou me obrigar também a isso. Pode imaginar o que significa sentir-se tão impotente, que controlem até a última de suas ações? —Sim, ele podia imaginar. Que lhe obriguem a fazer algo e logo o castigue com acusações e suspeitas por não desfrutar disso? Porque estava claro que se não obtinha prazer com ele era porque que buscava em outro lugar. Com uma boca e um corpo como estes, o que outra coisa podia fazer?
A Lachlan deu vergonha admitir que ele tinha chegado a essa mesma conclusão. Teria se enganado em relação à cena de Bela com Bruce?
—Nem todos os homens são assim —disse em voz baixa.
Bela se mofou agramente com um bufo que mais pareceu um grito.
—Vejo o modo em que me olha. Negará que me desejas?
Lachlan a olhou com dureza.
—Não, não negarei. É uma mulher formosa. Mas jamais obrigaria a uma mulher a fazer algo que ela não quer.
Por mal que fossem as coisas com a Juliana ao final, jamais lhe passou pela cabeça a ideia de intimidá-la ou usar sua força física para controlá-la. Só um homem fraco tentaria dominar a alguém a quem tinha o dever de proteger.
—Esperam que acredite isso? Com tudo que lutastes na batalha? Para os homens é normal tomar as mulheres como seu despojo de guerra.
—Pode que seja assim para alguns, mas não para mim. Apesar do que possa acreditar, tenho alguns princípios. Há certas fronteiras que nem sequer eu cruzaria. —Manteve o olhar para que visse a verdade em seus olhos— Uma delas é uma mulher que não quer manter relações.
A ela, em realidade se referia a ela. Não a tocaria porque acreditava que ela não queria.
E é obvio que não queria. Só estava confusa porque a havia tocado, isso era tudo. Bela jamais havia sentido nada parecido. A suave carícia de seus dedos a tinha feito sucumbir em uma miríade de sensações desconhecidas. Sensações endemoninhadas. Sensações deliciosas.
A carne lhe tinha arrepiado diante do contato. Enquanto lhe examinava o tornozelo era dolorosamente consciente de cada ponto em que a tocava, da calidez de seus dedos, do áspero roce das durezas sobre sua pele. Quando sua mão se aproximou da panturrilha teve que conter a respiração, e por um momento pensou, Deus, inclusive desejou que subisse mais. O calor se estendeu até a última das dobras de seu corpo e se concentrou em uma cálida contração entre as pernas. Desejo. Aquilo era desejo. Acreditava-se incapaz de responder às carícias de um homem. Enganara-se.
Lachlan a tocava com tanta ternura que por um instante pensou que talvez ele fosse diferente. Que a estranha conexão entre ambos queria dizer algo. Que talvez, e só talvez, lhe importasse um pouco. Isso fazia que a expressão de seus olhos ao olhar sua regata molhada fosse tão cruel. Via os seios, não à mulher. Nenhum homem se incomodou em ver mais à frente. Só por uma vez teria gostado que um homem a olhasse a ela. Tudo que ele oferecia era aquilo mesmo do que ela acabava de escapar. Jamais voltaria a passar por isso.
Sentia-se estúpida. Tinha bastado uma só suave carícia para que se convertesse em uma patética adolescente doente de amor. Estaria tão desesperada por encontrar alguém a quem importasse que uma simples carícia a emocionasse?
Reagiu de modo tão exagerado porque a tinha feito sentir algo diferente. Isso a levou a mostrar mais do que queria. Nunca tinha contado a ninguém o que acabava de explicar a ele. Nem tão sequer a sua mãe, embora suspeitasse que ela pudesse imaginar.
—Se está preparada —disse— posso a levar nos braços à tenda.
Suas pupilas se dilataram de medo. Não, pelo amor de Deus!
—Isso não será necessário —disse Bela apressadamente.
Agora essa expressão a meio caminho entre o tédio e a brincadeira que ela encontrava tão impenetrável e desconcertante retornava a seu rosto, mas o movimento do músculo sob sua mandíbula o fazia pensar que estava molesto pela veemência de sua reação.
—Acredito que serei capaz de me controlar durante alguns minutos, condessa.
—Não é por isso. —ruborizou-se ao perceber de que sua reticência o ofendia. É que tinha que acreditar que um mercenário, alguém que não tinha problemas em admitir que se vendia ao melhor pagador, mostraria-se resistente a forçar a uma mulher? Surpreendentemente assim era— Acredito em ti.
Era sua própria vontade o que a preocupava.
Lachlan manteve o olhar um instante e assentiu. Antes que pudesse encontrar mais objeções a levantou da rocha e tomou entre seus braços como se fosse uma menina. Bela ficou sem fôlego em resposta e o abraçou instintivamente para não cair. Mas em realidade não corria nenhum risco de cair. Pelo esforço que lhe custava levá-la poderia ser uma menina.
Certamente a musculatura de seus braços e o escudo resistente de seu peito tivessem algo que ver. Já tinha percebido antes que era forte, é obvio. Sua compleição e altura eram tão poderosas que era difícil não fazer. Mas senti-lo em suas próprias carnes era diferente. Não esperava que seu corpo fora tão quente. Seu calor a subjugava e a fazia sentir um tanto estranha. Derretia-se completamente em seu calidez.
Bela voltou a cabeça e apoiou a bochecha contra seu ombro para que não visse sua reação. Aspirou sua cálida e masculina essência, voltando a pensar em quão estranho era que um patife como ele cheirasse tão bem. Devia banhar-se mais que nenhum outro homem que conhecia. Ao que parecia tinha um gosto estranho pelos rios gelados. Até sem querer, Bela relaxou. Lachlan a conduziu em silencio durante uns momentos, orientando-se facilmente pela floresta em penumbras. Quando o olhou de soslaio viu que não se barbeara fazia dias e que a barba obscurecia sua mandíbula como uma sombra. Aquilo lhe dava um aspecto ainda mais perigoso. Até que notou de seus cílios. Nunca antes se fixara em quão longos eram. Era estranho encontrar esse indício de delicadeza em um semblante cuja dureza se transluzia em todo o resto.
Bela franziu o cenho ao ver aparecer esse tic de novo. Seria possível que lhe custasse mais esforço levá-la do que ela imaginava? Então notou algo mais. Tinha novas feridas e hematomas no rosto, mas nenhuma tão grande como a que lhe atravessava a bochecha. Estirou o braço inconscientemente e a acariciou com os dedos. Pareceu-lhe que ele se incomodava, mas essa sensação desapareceu antes que pudesse estar segura disso.
—Isso deve doer —disse Bela, mas Lachlan deu de ombros como se carecesse de importância— Como lhe fizeram isso?
Pensava que não responderia, mas ao final explicou.
—Dei as costas a um que tinha uma adaga.
Só era parte da história, mas estava claro que não lhe contaria o resto.
—Fizeram isso quando esteve na prisão?
Houve algo inconfundível na tensão de seus músculos. Tentou apaziguar sua reação erguendo uma sobrancelha com sarcasmo, mas estavam muito juntos para que Bela passasse por cima.
—Não sabia que conhecia tão bem minha história, condessa.
Tentou não ruborizar-se sob seu olhar acusador.
—É quase um segredo.
—É certo isso? E o que sabes dele?
Suas palavras eram frias, mas Bela pressentia a emoção que se ocultava detrás delas. De repente soube exatamente como se sentiu Mary quando a repreendeu por difundir rumores: culpada e à defensiva.
—Que traíra seu cunhado, John MacDougall, lorde de Lorn, na batalha, e que o capturou e o fez prisioneiro.
—Isso é o que dizem? —Lachlan riu com uma risada áspera e rude.
—Negas?
Bela notou de que desejava que o fizesse com todas suas forças.
Chegaram à tenda antes que ela se desse conta.
—Se querem saber algo, perguntem-me isso Mas não deveriam acreditar tudo o que se diz por aí, condessa.
Incomodou-lhe a sutil provocação que apreciava em sua voz. Acaso não lhe importava nada?
—Refere-te a coisas como assassinar a sua esposa?
Ficou paralisado. Seus olhos brilharam com irritação e Bela desejou imediatamente poder retirar a pergunta.
—Não —disse sem alterar a voz . Isso é certo.
Bela ficou angustiada. Tinha a surpreendido, o que evidentemente era sua intenção, mas pressentia que não estava contando toda a história. Antes que pudesse seguir perguntando, Lachlan inclinou a cabeça com dissimulação.
—Boa noite, condessa. Descanse um pouco. Amanhã teremos um longo dia.
E dizendo isso, deu meia volta e se afastou dali para desaparecer entre as sombras.
Capítulo Seis
Jamais em sua vida ficou Lachlan tão contente ao ver algumas almenas. A característica muralha em forma de escudo do castelo do Kildrummy se erguia entre a paisagem montanhosa como se tratasse do paraíso dos guerreiros da Valhalla.
Os condes de Mar construíram Kildrummy, com seus muros de pedra e suas seis torres enormes, não só como fortaleza defensiva mas também como testemunho majestoso da riqueza de seu condado. Mas Lachlan não se alegrava de vê-lo porque o considerasse um dos mais belos da Escócia. Não, alegrava-se porque os últimos dois dias de trajeto tinham sido uma tortura. Por sua própria culpa. Em que raios estivera pensando?
Pelas chagas de Cristo, a suavidade de sua pele queimava inclusive através do grosso couro de seu cotun. Parecia ter gravadas a fogo cada uma das curvas e formas de suas costas. E esse traseiro… Grunhiu. Dois dias com esse redondo e suave traseiro apoiado contra sua virilha era mais do que qualquer homem poderia suportar. Nem tão sequer era capaz de respirar sem ser plenamente consciente dela. O ar que a circundava parecia empapado com o leve aroma das rosas.
Bela se recostou sobre ele e suspirou em sonhos de maneira contida enquanto acomodava melhor as costas sobre seu peito, deixando que sua sedosa cabeça repousasse sob seu queixo. Quando dormia esquecia todos seus receios. E ele gostava. A mais não poder. Seus braços seguraram seu corpo com mais força. Para que não caísse da sela, é obvio. Teria que deixa-la cavalgar com algum dos outros. Mas à manhã seguinte do acidente, quando estavam junto aos cavalos decidindo com quem deveria montar, encontrou-se a si mesmo lhe ordenando que montasse com ele.
Não era porque ela queria montar com o MacKay, maldita seja. E é obvio, era porque não pudesse aceitar a ideia de que outro homem a tocasse. Simplesmente, não queria ver-se obrigado a esquivar os flertes pueris de Mary Bruce todo o dia. Além disso, a condessa tinha o tornozelo machucado e pode que qualquer outro se esquecesse disso. Mas teria pensado melhor se soubesse quão duro seria lhe rodear a cintura durante horas enquanto ricocheteavam em seu braço aqueles incríveis seios, cuja forma e tamanho estavam gravados em sua memória.
Olhou abaixo e o invadiu uma emoção desconhecida, de modo que voltou o olhar imediatamente ao caminho que tinha ante si. Maldição, por que tinha essa aparência tão doce? A orgulhosa condessa, com esses pequenos cachos de cabelo loiro quase branco na têmpora, aqueles escuros e longos cílios que corcoveavam sobre sua cremosa pele, e suas atrevidas feições suavizadas pelo estado de repouso, parecia virtualmente vulnerável quando descansava o rosto contra seu peito.
Fosse o que fosse, essa emoção que o embargava era molesta. O fazia sentir-se protetor, Deus, mesmo não quisesse. Um sentimento que por sorte se desvaneceu assim que ela despertou e o olhou com seus resplandecentes olhos. Mas daquilo não gostava absolutamente. Seu controle estava falhando. Não podia pensar bem quando a tinha tão perto, algo que era perigoso para todos. Precisava fazer algo. Estava claro que combater esse desejo enlouquecedor que sentia por ela não estava funcionando. Tinha durado muito. Tinha que encontrar um modo de mitigá-lo.
Bela despertou como se soubesse o que estava pensando. Lachlan soube que tinha despertado quando sentiu que esticava as costas e se separava dele. Apertou a mandíbula. Não porque lhe importasse. Bela endireitou as costas mais ainda de repente.
—Chegamos?
Lachlan a olhou e apreciou um alívio em seus olhos que ia em consonância com a emoção da voz.
—Sim —respondeu tentando evitar quão perto que estava de sua boca.
Então seus olhos se impregnaram de algo diferente.
—Obrigado —disse Bela o fazendo ver que se tratava de gratidão.
Teve essa incômoda sensação no peito de novo e afastou o rosto bruscamente.
—Não me agradeça ainda.
—A que te refere?
—Os ingleses não se darão por vencidos tão facilmente. Pode que inclusive estejam nos perseguindo neste momento.
Quando advertiu o calafrio que agitou seu corpo quase se arrependeu de sua franqueza. Mas lhe ocultar a verdade não serviria para mantê-la a salvo. Ela tinha que saber exatamente a que se enfrentava: ao rei mais poderoso, obcecado e vingativo de toda a cristandade que tinha saído em busca de sangue. Bela MacDuff se tornara uma poderosa inimiga ao coroar Bruce. Lachlan desejou com toda sua alma que aquilo valesse a pena. Embora os últimos raios de sol se extinguissem com o entardecer, Lachlan entrevia o medo e a preocupação de seus obstinados traços.
—Mas ao menos teremos uma pausa. Não nos encontrarão tão logo. Não disseram que não nos seguiram?
Ele negou com a cabeça.
—Ao que sabemos não.
Com um pouco de sorte, os ingleses não se dariam conta de que as damas se separaram do resto do exército. Ou do que ficava dele.
—A quem querem é ao Rob, ao rei. Seguirão para o oeste.
Nessa ocasião Lachlan não disse o que pensava. O rei Eduardo não procurava vingança simplesmente. Se descobrirem que as damas tinham desaparecido também, perseguiriam-nas. E mais, o castelo de Kildrummy, dada sua situação estratégica em um cruzamento de caminhos que levava ao Buchan e ao Atholl ao norte, era um prezado baluarte, inclusive sem Bela nem a rainha.
Ela tomou seu silêncio por uma afirmação e relaxou levemente enquanto entravam no caminho que subia até Kildrummy. O castelo estava em uma colina, rodeado por um amplo fosso à frente e com inclinação pendente do rio por detrás, umas defesas naturais que se faziam virtualmente inexpugnáveis dada a fortaleza do próprio castelo. Suas altas e grossas muralhas estavam coroadas com numerosas torres que o defendiam dos invasores que se aventuravam a cruzar o fosso. A enorme torre da comemoração, conhecida como a torre de Neve, tinha uma altura de sete andares e muros que em alguns lugares alcançavam os cinco metros de espessura.
Lachlan soube que algo ia mal antes mesmo de cruzar a estreita ponte que conduzia às duas torres que davam entrada à parte principal do castelo. Embora tivesse anoitecido, ainda tinha suficiente luz para que os vilãos rondassem pelo lugar. Entretanto, estava deserto.
Virtualmente notava a tensão no ar. Dava-lhe a sensação de que se Gordon não lhes tivesse adiantado para avisar ao Nigel Bruce de sua chegada, teriam se encontrado as grades levadiças baixadas, as portas travadas e as frestas das torres repletas de arqueiros.
Procurou não compartilhar sua inquietação com a condessa, já que não queria apagar o sorriso de alívio que mostrou ao passar sob as portas. Mas assim que entraram no pátio de armas viu que seu instinto tinha sido preciso. Entre a multidão desmoralizada que se reuniu para lhes dar boas-vindas seus olhos se encontraram com os de Gordon, que lhe fez um gesto negativo com a cabeça.
«Maldição.»
Lachlan se apressou a desmontar do cavalo e ajudou a Bela, tratando com cuidado seu tornozelo, que já parecia reposto. Uma vez que Nigel Bruce saudou sua cunhada, suas irmãs, neta, sobrinha e a Bela, o jovem cavalheiro se dirigiu para ele e lhe estendeu a mão.
—MacRuairi.
Lachlan devolveu o firme apertão de antebraços. Nigel Bruce, igual a Gordon e MacSorley, era um homem que a todos caía bem. O irmão predileto de Bruce era engenhoso, cortês e tinha um temperamento equilibrado que era atraente a outros. Lachlan também tinha ficado impressionado ao vê-lo no campo de batalha, onde mostrava uma ferocidade difícil de encontrar entre seus semelhantes da nobreza.
—Me alegro de vê-los —disse o jovem cavalheiro— Mas temo que não seja durante muito tempo.
Apesar de que falava em voz baixa Bela o ouviu, e aquele momentâneo alívio que Lachlan tinha visto ao atravessar as portas do castelo se esfumou por completo.
—O que acontece? —perguntou.
Nigel lhe ofereceu um sorriso apagado.
—Venham —disse— Deves estar exausta e faminta. Podem comer e sentar comodamente junto ao fogo enquanto eu vos conto o que acontece.
Mas Lachlan já sabia o que o jovem Bruce lhes diria: os ingleses estavam a caminho.
Bela escutou ao irmão mais novo de Robert com um desgosto crescente na boca do estômago. Aquele santuário de segurança que esperava encontrar em Kildrummy se revelava como uma cruel miragem. Um pesadelo da qual não poderia despertar. Quanto mais poderia agüentar? O perigo constante. Viver em fuga perpétua. Quando aquilo teria fim?
—O príncipe de Gales chegou em Aberdeen antes de ontem —disse Nigel— Inclusive arrastando seus maquinário de guerra não demorariam mais de alguns dias em cobrir as quarenta milhas até aqui. Saberemos com certeza quando voltar os batedores, mas minhas expectativas são que acampem esta noite perto de Alford e os tenhamos às portas antes de cair o sol amanhã.
Bela, Christina Bruce e a rainha, quão únicas permaneceram no estrado depois da refeição para ouvir os homens falar dos planos, trocaram olhares de angústia.
—Partiremos para a costa amanhã, para fazer a viagem a Noruega —disse Lachlan.
Bela reprimiu uma exclamação.
Noruega! Estava muito longe.
Nigel negou com a cabeça.
—Não podem ir de navio. Daqui não, ao menos. Esperam que meu irmão escape por mar e Eduardo tem a toda sua frota patrulhando a costa da ponta de Buchan até Berwick. —Nigel cortou em seco os protestos de MacRuairi— Já sei que vós os ilhéus se arrumam com uma galera, mas sua tripulação serão mulheres e meninos, não guerreiros acostumados a isso. Não posso prescindir de muitos homens. Necessitaremos a todos os soldados dos que possamos dispor se quisermos conservar o castelo para meu irmão. Viajar por terra será seguro, ao menos até que cheguem ao estuário. Quando chegarem em Buchan poderão conseguir uma galera.
Bela não podia permanecer calada um minuto mais.
—Mas por que temos que ir? Por que não podemos simplesmente ficar aqui com vós?
Lachlan cravou o olhar nela. Bela advertiu a compaixão de seu olhar e soube que tinha deixado ver muito. Ele adivinhava a razão pela que não queria fugir para a Noruega. Estar separada de Joan durante dos últimos meses já tinha sido muito duro. Mas abandonar a Escócia…
—Só será durante um breve período de tempo —disse com cautela.
Saltaram-lhe as lágrimas. Dessa vez ambos sabiam que estava mentindo.
—Mas este castelo é uma das fortalezas mais inexpugnáveis da Escócia. Foi construída para agüentar inclusive os ataques do Warwolf de Eduardo —disse referindo-se à catapulta mais famoso do rei da Inglaterra— Não será mais seguro permanecer atrás destes muros que ser perseguidos por toda a campina?
Mesmo que não adivinhasse sua origem, Nigel advertia a angústia de Bela igualmente.
—Suportastes alguma vez um assédio, minha senhora? —Ao ver que negava com a cabeça continuou— Não desejará fazer. Preciso agüentar no castelo até que retorne meu irmão. Podem transcorrer meses.
Bela tragou saliva. «Ou mais tempo.»
—Recebi ordens de levá-las a Noruega se os ingleses se aproximassem muito —disse Lachlan.
Apertou os punhos. Todos os ossos de seu corpo se retorciam diante da ideia de abandonar o castelo. De abandonar Escócia. De abandonar a sua filha, de novo.
A rainha pôs a mão sobre a dela.
—Assim dispôs Robert —disse com gentileza.
Bela assentiu a olhá-la durante um instante e ver seu próprio medo refletido no rosto da mulher.
«Me perdoe, Joan. Juro que não passará muito mais tempo.»
A distância seria maior, mas seu objetivo jamais mudaria: estreitar a sua filha entre seus braços logo que fosse possível.
Sentiu de novo o peso do olhar de Lachlan, e ao voltar, o surpreendeu ver que a observava com aborrecimento. O que tinha feito agora?
—Ao menos temos uma vantagem —disse Lachlan voltando o olhar ao Nigel.
—Que vantagem poderíamos ter? —perguntou Christina Bruce.
—Nigel disse que havia espiões e grupos de guerreiros errantes que certamente os terão advertido de nossa chegada. Se pudermos sair do castelo sem que nos vejam, pensarão que estamos dentro e não irão atrás de nós.
—Mas como poderemos sair sem que nos vejam? —perguntou a rainha.
—Segue existindo o passadiço que atravessa a antiga câmara cisterna para o poço do outro lado do rio? —perguntou Lachlan ao Nigel.
—Conhecem-no? —disse este erguendo uma sobrancelha— Sim, ainda existe. O poço secou faz anos e já não é necessário, já que um novo foi cavado ao pé da torre de Neve. Faz muito tempo que esse passadiço não é usado. Eu não apostaria em seu estado de conservação.
Lachlan explicou seu plano. Cruzariam a cisterna antes do amanhecer, enveredariam-se pelo passadiço que descia a inclinada parede da ribeirinha do rio até chegar à câmara da cisterna e sairiam do outro lado no túnel que dava no poço abandonado. Poderiam vestir-se com roupas singelas e cobrir-se com capas escuras, e viajar a pé até que conseguissem cavalos.
—Não poderão levar muitas coisas —advertiu.
Nenhuma das mulheres disse nada. Tampouco ficava muito. Tinham abandonado a maioria de seus pertences na fuga de Methven.
—Mas terá umas sessenta milhas daqui até Moray —exclamou Christina Bruce— Meu filho não poderá caminhar tanto.
—Encontraremos cavalos assim que possamos. Até então nos alternaremos para levar ao pequeno conde —disse Lachlan.
Tinha planos para tudo, pensou com tristeza Bela, que ansiava encontrar uma razão para evitar a partida. Distinguiu um movimento com a extremidade do olho. Um homem de uns quarenta anos, com uns braços enormes que rivalizavam com os do Robbie Boyd, passou junto à mesa com um saco de grão em cada ombro. Nisso logo o seguiu outro. E depois outro mais. Esperou que os homens terminassem de discutir os planos antes de perguntar a Nigel: —O que estão fazendo?
—O ferreiro e seu filho estão ajudando a transladar os grãos ao interior do grande salão para quando começar o assédio.
Suas pupilas se dilataram ao entender. O grande salão era de pedra, de maneira que não arderia com tanta facilidade se o fogo alcançasse os muros. A gravidade de tudo que recaía sobre eles fez que lhe formasse um nó no estômago.
Bela permaneceu sentada à mesa quando a maioria já partira para começar os preparativos. Sua prima e algumas outras damas tinham retornado depois de deitar aos meninos e Lachlan se aproximou delas para informá-las do plano. Por seus pálidos rostos se via que não recebiam as notícias com agrado. Todas estavam exaustas e assustadas, e ele parecia tentar acalmar suas inquietações. Muito galante por sua parte, pensou Bela com uma pontada no peito. Uma pontada que se agravou ao ver que partia com elas do grande salão. Observou-os partir sem saber por que se sentia tão abandonada de repente.
—Não o interessa nenhuma delas, sabes?
Bela deu a volta e se encontrou com William Gordon. Nem tão sequer tinha ouvido aproximar-se. Ruborizaram-lhe as bochechas.
—A quem?
William sorriu ante sua tentativa de fingir ignorância.
—MacRuairi. Simplesmente se sente cômodo com elas porque está a salvo.
«E comigo não?»
William riu ao adivinhar o que pensava.
—Exato. Evita-a de propósito.
Bela, envergonhada, tentou convencê-lo para que não se fizesse uma ideia equivocada.
—Dá no mesmo para mim. Jamais será o tipo de homem pelo qual se interessaria uma dama.
Algo que ela precisava lembrar-se.
Bela não mentia, mas sentiu remorsos na consciência ao dizer. Parecia uma dissimulada. Mas um bastardo, um mercenário desalmado, um ruim de má fama não era um candidato adequado para uma dama de sua linhagem. Embora não fosse tão irredimível como tinha pensado em um princípio.
William franziu o sobrecenho.
—Não o julguem com tanta inclemência. MacRuairi já passou por muito.
A perigosa faísca da curiosidade reacendeu se.
—O que queres dizer?
O jovem guerreiro deu de ombros.
—Pergunte a ele. Ele te contará isso.
Bela ocultou sua decepção com indiferença.
—Dá igual. Não tem importância. —E mudou de tema para que William não tivesse uma impressão errônea— Virá conosco?
—Sim —respondeu com um sorriso de compaixão— a Noruega não está tão longe, minha senhora. Das ilhas se demora menos em chegar a Noruega a navio que a Edimburgo. Poderá contatar com sua filha no caso de que necessite. Saberá que não restou outra opção.
Bela sorriu e notou que as lágrimas voltavam a emanar de seus olhos. William era um homem gentil.
—Sei, mas obrigado por dizer. Ao menos Joan sabe que não queria abandoná-la. Isso me consola. Agradeço ao Robert que pensasse em lhe mandar uma mensagem.
Gordon abriu os olhos de par em par.
—Bruce não teve nada a ver com isso.
—Mas me disse que um mensageiro informou a Joan.
—Sim, mas não foi o rei quem ordenou.
—Então quem…?
Sua voz se abaixou até apagar-se. Interrogou William silenciosamente com o olhar. Este se retirou da mesa e olhou para o outro lado do estrado.
—Quem acredita que foi?
Bela ficou estupefata ao seguir seu olhar. Lachlan tinha retornado ao salão e falava com Nigel. Era ele quem tinha feito chegar a mensagem a Joan? Mas por quê? Por que ia fazer algo assim? Aquilo era algo gentil e considerado, duas palavras que não estavam acostumados a ir a sua mente quando pensava nele. O teria julgado mal? Acaso não era o patife oportunista, fiel só a sua própria bolsa, que em princípio tinha pensado? Acaso não era imune a tudo que ocorria a seu redor? Importariam-o mais as coisas do que deixava transluzir? Importaria-o… ela?
Surpreendeu-lhe comprovar a vontade que tinha de que aquilo fosse certo.
Mal tinha esboçado essa pergunta em sua mente quando Nigel tirou uma pequena bolsa de couro de seu sporran, que tinha atado à cintura, e a deu a Lachlan, quem rapidamente guardou no cotun. Era como uma bofetada no rosto. Não havia nobres propósitos possíveis escondidos sob sua fachada de mercenário. Jamais tinha pretendido outra coisa. Por que tinha ela que o fazer passar por alguém diferente? Bela sabia a resposta: para encontrar uma desculpa para sua ilógica atração por ele.
Saiu do salão sentindo-se idiota, mas nada zangada consigo mesma. Se apressava seus passos era porque tinha muito que fazer antes de partir. Não estava fugindo. E se piscava talvez com muita frequência era porque o ar seco que desprendia o fogo do lar fazia que lhe ardessem os olhos.
Que diabos passava? Por que saía fugindo do salão como alma que levava o diabo? Lachlan a seguiu até a porta e depois ao pátio de armas.
—Condessa!
Ele soube que Bela o tinha ouvido porque estremeceu, mas ela não se deteve, de modo que a alcançou e a agarrou pelo braço.
—Maldita seja, mas o que te passa?
Tinha os olhos frágeis à luz das tochas.
—Nada —disse tentando escapar— me deixe. —Lachlan lhe soltou o braço, surpreso pela frieza de sua voz— Queria algo de mim? —disse sem olhá-lo, com voz indiferente.
Lachlan, confuso, franziu o cenho.
—Deveriam ter mais cuidado com seu tornozelo. Caminhava muito depressa e sem olhar.
Deus, soava como uma babá! Essa mulher o estava atordoando.
—Terei isso em conta.
—Maldita seja, Bela. O que é o que acontece? Por que está tão zangada? É por causa da Noruega? Não podemos ficar. Acredito que sabes disso. São ordens do rei —lhe lembrou.
A Lachlan não lhe tinha escapado o que era o que a tinha persuadido. «Assim o dispôs Robert», havia dito a rainha. Estava claro que Bruce exercia um grande poder sobre ela. Pergunta que a Lachlan seguia lhe rondando a cabeça era: por que razão?
—E que preço tem nossa segurança?
O desprezo que advertiu em sua voz o deixou surpreso.
—Do que estás falando?
—Vi como Nigel lhe deu essa bolsa com moedas. Não sei por que me surpreende. Certamente venderiam sua própria mãe se lhes oferecessem suficiente dinheiro.
Ficou paralisado, com todos os músculos do corpo rígidos. Obrigou-se a relaxar pouco a pouco. Um sorriso torceu seu rosto.
—Não teriam dado muito por ela.
Bela ficou sem fôlego, estupefata.
—Como podem dizer algo tão horrível?
Lachlan deu de ombros com indiferença.
—É a verdade.
Bela ficou observando-o em silencio durante um momento. Lachlan soube que pressentia o complicado daquela história quando lhe perguntou por ela.
—Quem era?
—Uma princesa de Gales a quem meu pai jogou o olho em um de seus saques e decidiu levar, seguindo a tradição de meus ancestrais nórdicos, tão aficionados a fazer escravos.
Não perdia tempo em amarguras. O passado era passado e não se podia mudar.
—O que aconteceu ela?
Manteve-lhe o olhar e decidiu lhe contar a verdade por mais feia que parecesse.
—Se suicidou depois do nascimento de meu irmão mais novo para não levar mais filhos bastardos em seu ventre.
Aquela pequena e formosa mulher que um dia tinha sido princesa, odiava vê-los. Foram os serventes quem os tinha criado a ele e seus irmãos.
Bela lhe pôs uma mão no braço.
—Sinto muito.
Estava de volta de toda compaixão, mas aceitou seu gesto com uma inclinação de cabeça.
Uma gargalhada rouca brotou de sua garganta.
—No final ela ganhou —A condessa franziu o cenho e ele respondeu a sua silenciosa pergunta— Morreu amaldiçoando a meu pai, e suas maldições se cumpriram.
Bela vacilou.
—O que disse?
—Que meu pai não teria outros filhos varões. E não os teve. Deixou um dos reinos mais antigos das ilhas Ocidentais sem um herdeiro legítimo.
—Pode ser que sua irmã herdasse a terra, mas mesmo assim poderia ter sido chefe do clã. —Lachlan permaneceu em silêncio— por que deu as costas a seu clã?
«Estão melhores sem mim.»
—É muito mais lucrativo escoltar a condessas —disse sorrindo, incapaz de resistir a tentação.
Bela franziu um tanto os lábios, mas suas palavras não arderam tanto como ele esperava. Não teria por que lhe incomodar que tivesse chegado a essa conclusão a respeito do dinheiro. Normalmente o dava por garantido. Não se envergonhava do que fazia. E é obvio não tinha que dar explicações a ninguém. Mas o incomodava que o desprezasse, maldita seja. Pela primeira vez em muito tempo lhe importava a opinião de alguém.
E tinha mais que claro que aquilo não gostava.
—Enviou uma mensagem a minha filha?
Essa rápida mudança de tema o desarmou. Demorou em responder algo mais que o necessário.
—Do que estais falando?
Sua irritação não a deteve. Talvez estivesse perdendo as faculdades mentais.
—Alguém levou uma mensagem a minha filha. Não foste tu que mandaste?
Lachlan manteve o olhar sob a luz da lua, procurando algo que não confiava em encontrar.
—Acaso importa?
Bela não respondeu imediatamente.
—Eu acredito que sim.
Lachlan se sentiu impulsionado pela estranha emoção que via em seus olhos. Curiosidade. Atração. E o mais perigoso e tentador: possibilidade.
Quase podia acreditar nisso.
Baixou o olhar até sua boca e se aproximou. Quando viu que ela entreabria os lábios por instinto amaldiçoou sufocando um juramento. Um entendimento primitivo, quente e cru se expandiu por todo seu ser. Podia beijá-la. E Por Deus, queria fazer. Tinha tanta vontade que lhe dava medo. Senhor, virtualmente estava saboreando seus lábios.
Tentara ocultar seu desejo desde aquela noite no lago, mas sempre esteve latente, justo sob a superfície. E agora o sentia. Sentia como se erguia para agarrá-lo com firmeza do aço e inundá-lo em seu interior.
Aproximou uma mão. Lentamente. Com cuidado. Acariciou sua bochecha como se tratasse da peça de porcelana mais delicada. O coração lhe deu um tombo. Jesus! Incrivelmente suave. Uma pele tão macia e aveludada como a de uma menina. Sua enorme mão costurada com tantas cicatrizes se via ridícula em comparação com algo tão belo.
Tomou pelo queixo cedendo à tentação, cativado pela promessa de seus olhos. Inclinou a cabeça…
Conteve-se no último momento.
Retirou a mão. Que raios estava lhe passando? Não gostava absolutamente aquela sensação. Parecia virtualmente… Jesus, parecia ternura! Mas só um idiota poderia acreditar que aconteceria algo entre eles. Ele era um bastardo. Um homem a quem tinham arrebatado suas terras e sua reputação. Um canalha. Não se envergonhava disso, mas era realista. Ela tinha curiosidade, isso era tudo. Estava intrigada pelo que percebia como uma contradição de seu caráter. Acreditou ver nele algo digno de salvação. Mas nele tudo era escuro.
Lachlan não queria que nenhum dos dois se confundisse.
—Não —mentiu em voz baixa— Não tive nada a ver com isso.
Viu em seu olhar que aquilo lhe doía, mas se obrigou a ignorá-lo. Deu um passo atrás e inclinou levemente a cabeça.
—Boa noite, minha senhora. Tenham mais cuidado ao andar. Necessitará de todas suas forças durante nos próximos dias.
Afastou-se dali, fazendo como que não se dava conta de que ela o olhava todo o tempo.
«Mentia» Bela não sabia como, mas estava segura disso. Lachlan tinha enviado essa mensagem a sua filha. Por que não queria reconhecê-lo? Pela mesma razão que tentava assustá-la dizendo que tinha matado a sua esposa? Sabia que estava escondendo um pedaço muito importante da história.
O teria afastado de um empurrão, é obvio. Estava quase segura. A prudência teria prevalecido antes que sua boca roçasse a dela. No meio desse desejo subjugador teria sido capaz de compreender que ceder à estranha atração que os aproximava era algo absolutamente errado.
Mesmo que seu marido a tivesse repudiado, também a tinha humilhado com suas acusações durante muitos anos para esquecer-se delas. Lachlan jamais poderia ser seu marido, a não ser simplesmente um assunto ilícito. Permitir que a tocasse faria dela justamente aquilo do que sempre a tinha acusado Buchan.
Estava contente de que ele a tivesse rechaçado. Contente de que ele percebesse seu engano antes dela. Contente de que tivesse posto fim a suas ilusões. Qualquer fio de amabilidade que tivesse visto em seu interior era um equívoco. Por mais que seu coração se compadecesse por ouvi-lo falar de sua mãe ele não necessitava nem queria sua compaixão. Tinha narrado a história como se não fosse o protagonista dela. Sem emoção. Com distância. De maneira objetiva. Era como se estivesse fazendo um relatório para um de seus generais. Os insucessos de sua infância já não tinham importância para ele.
Nada tinha importância para ele. Melhor seria que isso deixasse sempre presente. Embora ele em certas ocasiões a fizesse esquecer. Inspirou uma boa baforada de ar e obrigou seu peito oprimido a respirar entrecortadamente. A dor desapareceria.
Mas não o fez. Seguiu queimando durante toda aquela muito curta noite e depois, nas cruéis e escuras horas que precediam ao amanhecer, viu-se obrigada a enfrentá-lo de novo. Voltou a surgir com forças renovadas quando seu olhar reparou nela entre a pequena multidão de viajantes reunida para a partida. Sua indiferença ardia como uma bofetada e a devolvia bruscamente à realidade. Era o homem encarregado de liderá-los para pô-los a salvo, a todos eles. Essa deveria ser sua primeira e única preocupação. Era curioso que aceitasse sua liderança com tanta facilidade quando apenas uma semana atrás se rebelava tão ferozmente contra ele. Mas fosse um patife ou não, Robert estava certo. Se havia alguém que pudesse conduzi-los a um lugar seguro, esse era Lachlan.
Embora não pudesse lhe confiar nada mais, sim podia confiar sua vida.
—Não tirem os capuzes —disse Lachlan— Temos que nos camuflar na noite tudo o que possamos.
Aquelas robustas capas de lã escura que tanto pinicavam não seriam fáceis de distinguir na escuridão. Só os veria durante um momento ao cruzar a portinhola para baixar à câmara da cisterna, mas era melhor não correr nenhum risco.
—Estão preparados? —perguntou examinando às mulheres e aos meninos que tinha diante de si.
Depois de um momento de vacilação todos assentiram.
O seguinte som que Bela ouviu foi o da grade ao abrir-se, lenta e tão silenciosamente como era possível fazer. Desbocou-lhe o coração. Contemplou os pálidos e angustiados rostos, e soube que ela não era quão única a ter medo. O grupo era virtualmente o mesmo que tinha chegado ali no dia anterior: a rainha e a filha de Robert, Marjory; Mary Bruce, Christina Bruce e seu filho, o conde; Margaret e as outras damas de companhia; Atholl, Magnus, William, outros dois soldados que não conhecia e é obvio Lachlan. De seus anteriores companheiros faltavam sir James Douglas, que tinha saído para entregar uma mensagem ao rei, se pudesse localizá-lo; e Robbie Boyd e Alex Seton, que tinham ficado com Nigel para defender o castelo.
Uma vez que as portas foram abertas, Lachlan inspecionou rapidamente o exterior e começou a fazê-los passar. Magnus ia primeiro, liderando o grupo, que formava uma longa e serpenteante fileira. O jovem conde começou a falar, mas sua mãe o fez calar rapidamente.
—Sua vez, condessa.
Bela olhou a seu redor, percebendo que era a última. Assentiu e baixou os degraus da poterna9. Não ouvia os passos de Lachlan, que se movia com tanto silêncio quanto um fantasma, mas sabia que estava ali.
A muralha tinha sido construída junto a borda da inclinada ribeira que os nativos chamavam «a guarida de trás» para aproveitar as defesas naturais. Uma escada em caracol escavada na terra conectava o castelo com a antiga câmara cisterna e o poço do outro lado do canal. Só tiveram que caminhar alguns metros pelo exterior até chegar à entrada, coberta com um a tala de madeira meio apodrecida e escurecida pelos anos de desuso.
Magnus tinha levantado a madeira e limpado o espaço suficiente para que entrassem pela abertura. William liderou o grupo para baixar a estreita escada construída no rosto do escarpado. Aquilo era como descer ao interior de um buraco negro. Felizmente, Bela via o leve resplendor das tochas no túnel que tinham ante eles. Assim que deu o primeiro passo para o interior lhe embargou o frio aroma do musgo e a terra molhada. O último brilho da lua se refletiu nos fantasmagóricos olhos de Lachlan. Esperava que assentisse com a cabeça para respirar, um gesto de impaciência, algo. O que não esperava era ver seu rosto constrangido pela dor, e que apertasse tanto os dentes que tivesse os lábios brancos e um brilho nos olhos que só podia ser de pânico. Mas aquele olhar se desvaneceu em seguida e seu rosto ficou coberto pela penumbra.
—Não tema nada —disse em voz baixa— Só tem que andar devagar. Eu acenderei a tocha em um minuto.
Mas inclusive com as tochas era difícil ver algo, e levou bastante tempo baixar a escada para chegar à câmara da cisterna abobadada.
William amaldiçoou.
—O que acontece? —perguntou Lachlan.
—Há uma porta no túnel que leva ao poço. Está fechada.
—Me deixe ver.
Lachlan atravessou e tirou algo de sua bolsa. Bela se aproximou para tentar ver o que era. Parecia um prego. Deu a sensação de que o colocava pela fechadura e o movia. Um momento depois a abriu.
—Talvez não tenha puxado com suficiente força —disse William secamente.
—Como fez isso? —sussurrou Mary a seu lado.
Bela franziu o sobrecenho.
—Não sei.
Passaram pela porta e se encontraram com o túnel. Depois chegaram a outra escada e tiveram que esperar alguns minutos enquanto alguns dos homens subiam ao poço para assegurar-se de que não houvesse ninguém rondando por ali.
Emergiram da escuridão do passadiço tão sigilosamente como podiam fazer dezessete pessoas, entraram em um poço de madeira cheio de teias de aranhas e detritos, e finalmente receberam o fresco ar do amanhecer em todo seu esplendor.
—Não encontro meu cavalinho —soluçou a voz de um pequeno— Se… caiu.
Por como tremia a voz ao pequeno conde, Bela soube que estava a ponto de chorar. Christina Bruce se ajoelhou junto a seu filho, tentando acalmá-lo e sossegá-lo ao mesmo tempo.
—Não deixou no castelo? —perguntou
O menino negou com a cabeça enquanto seus olhos se alagavam em lágrimas.
—Levava-o na bolsa.
—E o tiraste?
—No aposento que dava medo —disse ao mesmo tempo em que assentia.
Christina secou com um dedo as lágrimas que começavam a escorrer pelas bochechas.
—Então certamente se perdeu, meu amor. Conseguiremos um novo quando chegarmos a Noruega.
O pequeno negou com a cabeça e soluçou com mais furor.
—Papai o fez para mim.
Christina ergueu o olhar e Bela sentiu como as lágrimas lhe formavam um nó na garganta. Apenas fazia um ano o menino tinha perdido a seu pai. E o homem que o substituía estava desaparecido. A guerra já havia tirado muito daquele menino.
—Sinto muito, meu amor —disse Christina.
Lachlan tinha se aproximado. Baixou o olhar e olhou ao menino.
—O que acontece?
Bela explicou. William estava junto à porta do poço e certamente ouviu o que diziam, porque atuou antes que Lachlan pudesse detê-lo.
—Eu irei procurar. Tenho que bloquear a entrada de todos os modos. Sigam. Já os alcanço.
Lachlan mudou a expressão, mas não discutiu.
Saíram do poço e, liderados por Magnus e um dos outros soldados, entraram no denso arvoredo que o rodeava. Alguns minutos mais tarde Bela ouviu um ensurdecedor e impactante ruído.
Cravou o olhar em Lachlan.
—O que foi isso?
—Nada com que preocupar-se. Gordon está assegurando de que ninguém possa usar o túnel para aproximar-se do castelo. Teria que ter sido destruído faz anos.
Mas mal saíram essas palavras de sua boca ouviu um potente estalo a suas costas seguido do inconfundível aroma acre da fumaça no ar.
Lachlan amaldiçoou.
Bela se voltou bem a tempo para ver como o poço ardia em chamas.