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THE VIPER / P. 2
THE VIPER / P. 2

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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THE VIPER / Parte  II

 

Series & Trilogias Literarias

 

 

 

 

 

 

Capítulo Sete


A Bela lhe gelou o coração enquanto olhava aquele inferno. Por Deus bendito, William estava preso ali dentro!

Ouviu que os outros também se lamentavam ao perceber isso. Lachlan desembainhou uma das espadas que levava às costas e se voltou para o MacKay.

—Te retire com as mulheres e os meninos. Pode ser que alguém tenha ouvido.

Sua voz era serena. Firme. Controlada.

MacKay assentiu com sobriedade e dirigiu ao resto dos homens para pôr um pouco de ordem dentro daquele caos. Bela notou do que Lachlan pretendia fazer e abriu os olhos com horror. Agarrou-o pelo braço para detê-lo.

—Não podes entrar aí! É muito tarde. Não poderá resgatá-lo.

O velho poço de madeira estava envolto em chamas e ardia como isca, mas Lachlan se negava a entrar em razão. Seus olhos brilhavam com uma estranha intensidade.

—Tenho que tentar, maldita seja. Não penso em abandoná-lo. —Pôs-se a correr até o poço sem dar opção a Bela a seguir protestando.

Enrolou a capa na cabeça, abriu a ondulada porta de uma patada e correu para as chamas com a espada como única defesa diante das madeiras que desabavam.

—Não!

Bela ouviu como aquele grito dilacerador atravessava a floresta. A dor era tão assustadora que demorou em se dar conta de que era ela quem o emitia. Saiu atrás dele, mas alguém a agarrou por detrás: Magnus.

—Não podes entrar aí. Só conseguirá morrer na tentativa. Eles a necessitam, minha senhora.

A súplica de Magnus passou através da bruma de horror e a confusão. Necessitavam-na, e não havia nada que pudesse fazer por Lachlan, nem por William. Presa da emoção, assentiu e permitiu que Magnus a levasse enquanto as lágrimas saíam em ardentes fervuras de seus irritados olhos. Ele a separava das chamas e seu coração se encolhia de dor.

OH, Deus! Por que o tinha feito? Entrar nesse poço em chamas era um suicídio. Supunha-se que Lachlan era egoísta, um homem que só lutava por sua própria bolsa. Não se importavam com outros. Por que não podia atuar com fidelidade a seu caráter por uma só vez?

Necessitavam-no. Seu dever era permanecer com eles e protegê-los, não ser um herói. Perder a um homem já era uma desgraça, mas dois…

«Perder a ele.»

Ouviu um estrondo atrás dela. Bela olhou a seu redor e piscou sem poder acreditar o que viam seus olhos. Lachlan saía dentre os restos da porta do poço e arrastava a outro homem consigo. Aquilo não parecia real. Ele não parecia real. Como tinha sobrevivido àquilo? O normal seria que tivesse morrido. O normal seria que ambos tivessem morrido.

—Magnus? —perguntou com vacilação para que este confirmasse.

—Resgatou-o, minha senhora —disse o enorme highlander com um amplo sorriso— O resgatou.

Bela fechou os olhos e rezou em silencio em agradecimento, embargada por uma emoção que lhe oprimia a garganta. Seguiu ao Magnus, quem tinha saído ao encontro de Lachlan para lhe tirar William de cima e o afastar das chamas. Lachlan estava curvado, tossindo e lutando por devolver o ar a seus pulmões, mas William não se movia.

Bela se ajoelhou junto ao guerreiro inconsciente. Tinha o cabelo chamuscado e o rosto suja de negro pela fumaça. Não sabia se respirava ou não.

—O que posso fazer?

Lachlan a fulminou com o olhar.

—Que demônios fazes aqui? Vos disse que se fossem. Lhe deteve o coração. Tinha a voz áspera pela fumaça, o rosto quase tão negra como a do William e seus olhos a olhavam com uma intensidade que não era capaz de reconhecer. Mas nada disso importava. Estava vivo.

—Estais bem? —perguntou Bela com uma voz incapaz de ocultar seu medo, que bulia muito perto da superfície.

Parte de seu aborrecimento se dissipou. Seus olhares se encontraram e por um momento deu a impressão de que se separavam do resto do mundo. Bela não podia entender, mas a conexão que havia entre aquele homem e ela era primária, diferente a algo que tivesse experimentado antes. Se importava. Estava claro.

—Sim —disse em voz baixa— Estou bem. —Lachlan pareceu recompor-se e se voltou para o Magnus, que seguia examinando ao inconsciente William— Como está ele?

—Tem o pulso lento e a respiração fraca. Não sei.

De repente um som começou a retumbar no peito de William, que depois de aspirar uma baforada de ar entrecortada prorrompeu em um ataque de tosse que sacudiu todo seu corpo. Ficou de lado, fez-se um novelo e tossiu até que Bela pensou que seus pulmões não dariam mais de si.

Bela ergueu o olhar, cruzou seu olhar com a de Lachlan e sorriu com alívio, surpreendendo-se ao ver que sua boca esboçava um amplo sorriso como resposta. Conteve o fôlego. O coração lhe pulsava com força no peito. A transformação era assombrosa. O perigoso mercenário desalmado tinha desaparecido para converter-se em um homem de beleza quase juvenil que poderia lhe roubar o coração assim que ela o permitisse. Ficou transtornada ao reparar nisso.

—Como está?

Bela deu a volta e se encontrou com a rainha Elizabeth. Estava tão absorta que não percebeu que as mulheres se reuniram a seu redor.

—Não sei —respondeu.

William ouviu a pergunta da rainha entre seus violentos espasmos de tosse.

—Me… recuperarei —respondeu isso com uma voz que soava pior que a de Lachlan.

Magnus o ajudou ao ver que tentava levantar-se.

—Vá com calma. Tragaste muita fumaça.

—Poderia ter tragado muito mais —repôs William olhando a Lachlan— Obrigado. Devo-te a vida.

—Como tem a mãos? —perguntou Lachlan fazendo caso omisso a sua gratidão.

William as levantou e examinou o couro chamuscado de suas luvas.

—Queimaduras leves —disse— Já tive piores.

—Que demônios passou? —quis saber Lachlan.

—Devo ter usado muita pólvora. Derrubou toda a estrutura e uma viga me caiu na cabeça. —Então, William colocou a mão em seu cotun e sorriu. Tirou um cavalo esculpido em madeira e o entregou ao jovem conde— Mas ao menos consegui recuperar isto.

O menino resplandecia de alegria.

—Encontraste-o!

—Sim —disse William— Espero que não volte a perdê-lo.

O pirralho abriu os olhos de par em par e negou com a cabeça.

—Não o farei. Obrigado, sir William. E obrigado a você, sir Lachlan —disse voltando-se para ele.

Disse com tanta seriedade que nenhum dos dois teve jeito de corrigi-lo. Não eram cavalheiros. Mas tampouco eram soldados comuns. Bela franziu a testa enquanto passeava o olhar de Lachlan ao MacKay, e deste ao Gordon. Nenhum deles era cavalheiro. O qual pedia a gritos uma pergunta: o que eram? Havia algo entre aqueles três homens, um vínculo tão forte que levara Lachlan a entrar em um lugar em chamas para resgatar a um deles.

Magnus ajudou William a levantar-se e Bela se encontrou com Lachlan que lhe estendia a mão. Fundiu seus dedos com os dele e ao tocá-lo sentiu aquela inconfundível onda de calor. Seus olhos se encontraram. Ele também notou porque franziu o cenho enquanto a levantava.

—Faça que as mulheres se preparem —disse desviando o olhar— Temos que sair quanto antes. Se havia alguém nos arredores, deverá vir ver o que aconteceu.

Deu meia volta para partir, mas ela o deteve lhe pondo uma mão no braço. Lachlan ficou paralisado. Bela notava seus rígidos músculos esticando-se sob as pontas de seus dedos.

—Por que fez? —perguntou—Por que fostes atrás dele? Poderia ter morrido.

Lachlan a olhou e Bela sentiu que lhe encolhia o coração.

—Não te libertará de mim com tanta facilidade, condessa. Não sou tão fácil de matar —disse com um sorriso irônico.

Já suspeitava que era difícil de matar, mas estava evitando sua pergunta.

—Por que estais aqui em realidade?Por que lutam por Bruce?

Lachlan agüentou o olhar. Atravessava-a com ele.

—Já vos disse a razão.

—Sim, dinheiro e terras, mas eu acredito que não é só isso. O que há entre William, Magnus e você? E Boyd e Seton, já que estamos falando.

Sua expressão não mudou, mas a Bela dava a sensação de que enfrentava um muro impenetrável.

—O que significam esses homens para você?

Seu olhar era duro e sua voz inexpressiva.

—Guerreiros que estão temporalmente as minhas ordens —respondeu retirando o braço e caminhando para o resto dos homens— Não inventem nobres propósitos para meus atos, milady. Terá um grande desengano.

—Assim fica complicado confiar em você.

Lachlan a olhou atentamente.

—Confiar em mim é quão último deves fazer.

Partiu dali deixando-a com aquela advertência pouco sutil ressonando nos ouvidos. Pressentia que dizia a verdade, mas também sabia que tudo era muito mais complicado que isso. Algo tinha mudado. Bela já não o via como o malvado patife oportunista que só trabalhava em seu próprio benefício. Um homem egoísta não correria ao interior de um lugar em chamas para resgatar a um homem que já devia estar morto. Um homem desalmado não teria pensado que seu dever era enviar uma mensagem a sua filha.

Havia bondade nele, gostasse de admitir ou não. Queria que todos pensassem que era vil e insensível, um mercenário curtido ao qual nada importava, mas aquilo era simplesmente uma máscara. Depois dessa fachada de brincadeira e indiferença, Bela percebia a energia da dor e a inquietação que se concentrava em seu interior, disposta a explodir.

Algo no mais profundo de seu ser a exortava a confiar nele, apesar do que houvesse dito. E pela reação que tivera diante da ideia de sua morte, diria que já não lhe era indiferente. Em algum ponto durante os meses anteriores, Lachlan MacRuairi, o açoite das ilhas Ocidentais, tinha começado a lhe interessar. Tinha começado a lhe interessar bastante. E dava igual o que ele queria a fazer pensar. Bela sabia que também importava a ele.


Não tinha sentimentos nobres, maldita seja. E não necessitava que a condessa o olhasse como se os tivesse. Não abandonava seus homens. Era tão simples assim. Não pensava permitir que William morresse se estava em sua mão evitar.

Pode que aparecesse ante seus olhos o rosto de seu irmão adotivo, mas decidiu tira-lo da cabeça. Também então fez o quanto pôde, mas não foi suficiente. Desta vez tinha sido diferente. Mas, por mais que o incomodasse que a condessa acabasse de descobrir que acreditava em sua suposta nobreza, não tinha tempo para pensar nisso. Assim que achassem cavalos, algo nada fácil naquele terreno devastado pela guerra, se poriam em movimento. E em movimento estiveram durante os seguintes dois dias. As mulheres e os meninos compartilhavam os cavalos. Os homens cavalgavam junto a elas seguindo seu ritmo, às vezes ao galope, embora normalmente fossem ao trote. Conduzia-os incansavelmente e sem piedade, detendo-se só durante breves períodos para descansar. Os homens dormiram um par de horas em uma só ocasião. As mulheres faziam turnos para dormir sobre a sela.

No terceiro dia começou a chover. Uma chuva pesada e incessante, com redemoinhos de vento que aumentavam e fustigavam como um látego, minando suas forças e fazendo rachaduras em seus espíritos. Quando se aproximaram da costa de Moray, Lachlan ordenou a Gordon que se adiantasse para reconhecer o terreno. Retornou com más notícias. Não só o agitado mar era muito perigoso para viajar, mas sim além disso havia galeras patrulhando o litoral. Teriam que avançar para o norte. Lachlan reatou a marcha, esperando que o tempo mudasse. Não podia evitar o pressentimento de que seus inimigos estavam fechando o cerco sobre eles. Os navios de Moray lhe inquietavam. Virtualmente era como se seus inimigos soubessem para onde se dirigiam.

No seguinte dia ao anoitecer se detiveram para dar de beber aos cavalos à saída de Tain. Lachlan estava ajoelhado sobre um tosco mapa, discutindo a rota a seguir com Gordon e MacKay. Queria sair daquela zona com rapidez. Estavam nas terras de Ross, e dizer que o conde e ele não eram amigos era ser simpático. Ross supunha uma ameaça igual ou maior que seus perseguidores ingleses.

—Tomaremos a estrada do norte para Sutherland —disse indicando a rota no mapa— dali iremos a Caithness. Com um pouco de sorte, quando chegarmos a Wick o tempo tenha se acalmado o suficiente para cruzar até Orkney.

Aqueles eram os domínios de MacKay. Santo se encarregaria de que saíssem dali.

Lachlan previu a presença de Bela antes que esta falasse: começou a sentir formigamentos na pele e todas as terminações nervosas de seu corpo despertavam à vida.

—Não podemos avançar mais esta noite. Temos que descansar.

Voltou-se lentamente para vê-la.

—Ainda não.

—Temos que fazer —disse Bela com as bochechas ruborizadas de irritação— Os meninos não podem continuar assim, e algumas das mulheres estão tão fracas que os falta pouco para cair do cavalo. Estamos molhados até os ossos, temos fome e precisamos dormir mais horas.

Lachlan fez um gesto de severidade inapelável.

—Não podemos fazer outra coisa. Quando chegarmos ao Wick poderão dormir na galera.

—Não chegarão ao navio. A este ritmo é impossível. —Olhou-o fixamente nos olhos— por que faz isso? Por que nos força tanto?

Não queria alarmá-la desnecessariamente. Quão único tinha era um mau pressentimento.

—Até que cheguemos a Noruega não estaremos a salvo.

—Por favor, Lachlan. —Ouvir seu nome saindo de sua boca fazia que algo se esticasse em seu peito— Só terá que olhá-los. Não podem seguir.

Fez aquilo que tinha evitado de propósito. Seu olhar passeou pelas, que antes eram belas damas, agora tão desalinhadas como mendigas, que se derrubavam sobre as rochas e as árvores em busca de algo no que apoiar-se. O pequeno conde parecia um novelo sobre o colo de sua mãe, Mary Bruce estava adormecida com a bochecha apoiada sobre um tronco coberto de musgo, e Marjorie, a jovem princesa, estava adormecida nos braços da rainha.

—Tem um santuário em Tain —disse Bela— Poderíamos nos refugiar na capela de Saint Duthac para passar a noite.

Estava claro que tinha pensado antes de dizer. Tinha razão. O rei Malcolm tinha garantido a Tain o status de santuário há duzentos anos. Por lei e tradição era um lugar onde os fugitivos podiam proteger-se.

Lachlan pôs má cara. Era consciente de que tinha forçado a marcha ao máximo.

—Muito bem. Passaremos a noite em Tain. —ficou olhando ao céu e viu que a chuva se transformou em uma fina bruma— Se mudar o tempo, tentaremos conseguir uma galera ali.

Lachlan se arrependeu de opor-se a seus instintos e aceitar às demandas da condessa antes inclusive de chegar à igreja. Que demônios passava? Voltava a permitir que uma mulher controlasse suas ações. Não podia deixar que influísse nele. Aquela violenta atração, aquele… o que fosse que o fazia sentir daquele modo tinha que acabar. Não permitiria que uma mulher voltasse a ter esse tipo de poder sobre ele. Tinham assassinado a todos seus homens por culpa de uma mulher que lhe punha o pau duro. E uma vez mais aquela debilidade o atacava pelas costas.

Mas Bela não tinha nada a ver com sua esposa, ou sim? Não podia tirar da cabeça a imagem dela junto a Bruce. Corroía seu interior e lhe doía como uma chaga sob a pele.

Quando chegaram à velha capela, situada sobre um promontório que dava ao mar, Lachlan tinha um humor de cão. O edifício de pedras não media mais de dez por seis metros, contava com um teto de madeira abobadado, vários bancos, um altar de pedra e pouco mais. Felizmente, também estava deserto, já que era bastante tarde. Seguramente o sacerdote estaria dormindo na reitoria contigua.

Certificou-se de que as mulheres se acomodassem antes de partir para reconhecer o terreno para assegurar de que não tivessem os seguido. E, já que tinha parado de chover, também procuraria uma galera. Quanto antes se pusessem a caminho, melhor. Bela apareceu dobrando um canto mal fechou a porta de madeira e quase tropeça contra ele.

—Aonde vais? —perguntou escrutinando-o com o olhar— Ocorre algo? Parece zangado.

Embora duvidasse que ela percebesse o passo que tinha dado para aproximar-se mais, Lachlan sim, fazia. Sua suave fragrância de rosas subiu até ele causando estragos em todos seus sentidos —inclusive em seu sentido comum— e todos seus músculos se contraíram.

—Vou vigiar os arredores e procurar uma galera —disse com uma voz entrecortada e forçada.

Perguntava-se se saberia quanto esforço custava privar-se de tocá-la, privar-se de empurrá-la contra a porta e abandonar-se ao torvelinho que se agitava em seu interior. Talvez assim se livrasse daquele doloroso desejo que parecia consumi-lo. Bela tinha feito em migalhas oito anos de controle. Não gostava de sentir-se assim, maldita seja.

Apertou os dentes. «Faz seu trabalho.» Mas não sabia quanto mais poderia aguenta-lo. Bela o olhava com a cabeça inclinada para trás e Lachlan via uma sombra de tristeza em seus olhos.

—Temos que partir da Escócia? Não há nenhum outro lugar onde possamos nos ocultar?

Sabia que estava cansada, que não pensava racionalmente, que a ideia de abandonar a sua filha a estava destroçando. Mas a ira se apoderou dele. Já a tinha advertido do risco que correria, mas ela não quis escutá-lo. Havia um pedaço de Bela que ainda não se dava conta da magnitude daquele ato. A realidade era a mesma, estivessem na Noruega ou na Escócia.

—É que não entende, condessa?

O tom de escura brincadeira em suas palavras a fez retroceder um pouco.

—Que não entendo?

—Perdeu sua filha no mesmo momento em que coroou Bruce. Buchan jamais permitirá que leve a moça. Por isso poderia, inclusive a ter escondido em algum lugar da Inglaterra.

Bela se sobressaltou, mas ele se esforçou em controlar sua reação diante do rosto de estupefação que punha.

—Por que diz isso? Por que é tão cruel?

—Porque é a verdade, queira ou não queira vê-lo.

—Engana-se. Jamais cessarei em meu empenho por recuperar a minha filha. Encontrarei a maneira. Quando Robert…

A menção do nome do rei fez que se rompesse algo em seu interior. Agarrou-a pelo braço, querendo sacudi-la com tanta força como vontade tinha jogá-la pra cima.

—Robert? —disse com ironia— Bruce está acabado, Bela. Terá sorte se poder escapar do país com vida. Por que fez? Por que se arriscar tanto? —odeio-se a si mesmo por fazer essa pergunta, consciente da fraca emoção que a motivava.

Bela escrutinou seu rosto com o olhar. Era óbvio que não compreendia a intensidade que se ocultava atrás daquela pergunta.

—Porque acredito nele, e vale a pena lutar pelas coisas nas que alguém acredite. —Bela esperou que ele dissesse algo, provavelmente que se mostrasse de acordo com ela, e pareceu desencantada ao ver que não fazia— Não podia ficar de braços cruzados quando tinha a oportunidade de ajudar. Robert é a melhor opção que tem a Escócia para alcançar a liberdade. Vê o que aqueles que lhe precederam não viam: que para ganhar não temos simplesmente que derrotar aos ingleses no campo de batalha, a não ser evitar que nos nós derrotemos sozinhos. Fará o que seja necessário para unir a Escócia sob sua bandeira, embora isso signifique perdoar a velhos inimigos. E te enganas. Não está acabado. As lendas se forjam na derrota.

Aquele idealismo inesgotável em tudo que concernia a Bruce não fazia mais que alimentar as suspeitas de Lachlan.

—E essa é a única razão?

Bela entreabriu os olhos.

—O que outra razão poderia ter?

Lachlan não disse nada, simplesmente ficou olhando-a.

De repente a estupefação transformou seus traços. Abriu os olhos como pratos e soprou com exasperação. Se Lachlan estivesse em seu juízo, teria compreendido a consternada dor de seu olhar. Também teria dado conta de que aquela acusação a tinha ferido, de que tinha acertado onde mais lhe doía e encontrado outro ponto vulnerável em sua máscara de orgulho. E se pudesse pensar em algo que não fosse beijá-la com loucura, teria visto que se enganara, que uma vez mais o ciúmes fazia que atuasse como um imbecil.

Mas não estava em seu juízo. Consumiam-no sentimentos que não compreendia. Raiva, ciúmes, desejo e outra coisa que se negava a admitir com todas suas forças. Não podia pensar mais que aproximá-la a ele e beijá-la até que deixasse de sentir-se de tal modo, até que ela negasse suas tácitas acusações. Mas com só olhar soube que Bela não faria tal coisa.


A ferida não teria sido mais dolorosa embora a tivesse apunhalado com uma faca. Bela acreditava. Acaso todos os homens eram iguais? Era ciumento e suspeito, tão infame como seu marido. Pensava que por ter os seios grandes e os lábios carnudos não tinha honra. Lachlan acreditava que fazia tudo isso porque mantinha uma relação ilícita com Robert. Como podia pensar tal coisa? Como podia acreditar nos rumores? Não a conhecia absolutamente. Era incrível que se deixou enganar até o ponto de pensar que ele era diferente, que existia a remota possibilidade de que lhe importasse, embora fora só um pouco. Se ele acreditava que era uma fulana, não tinha intenção de desenganá-lo. Ergueu o queixo de maneira desafiante e o olhou com um brilho de pura perversão nos olhos. Jogou os ombros para trás e tirou peito para aproveitar-se melhor da situação.

Lachlan emitiu um som agudo e ficou completamente lívido.

Um profundo instinto feminino despertou no interior de Bela. Passou a língua pelo lábio inferior, como se fosse uma aranha faminta esperando sua próxima vítima. Entreabriu mais os olhos e agravou a voz de maneira sedutora.

—O que pensa?

Percebeu seu engano ao momento. Ou talvez fosse consciente do que aconteceria e o buscasse. Queria ter mais ainda mais motivo para odiá-lo.

Lachlan MacRuairi não era um homem ao qual devia provocar. Atraiu-a para si até a ter apertada contra esse poderoso peito no que ela se fixou mais vezes do que lhe convinha. Bela se sobressaltou quando seus corpos se tocaram. Era tão robusto… Um peito tão duro como um muro de granito. Era pra ter se sentido incômoda, intimidada, mas não era assim. A consciência visceral de sua fortaleza a fazia sentir segura e protegida. Quando ele baixou a cabeça e se deteve nesse aterrador e agonizante momento que ambos temiam e ansiavam, pareceu-lhe que o coração parava.

Finalmente, Lachlan cobriu sua boca de beijos e o gemido de satisfação que emitiu lhe chegou até os tornozelos. Aquele som primitivo tão masculino transpassava sua pele como lava fundida. Essa primeira vez que provou o sabor de seus lábios foi um choque. O coração quase saía do peito. A sensação explodia em seu interior. Tinha lábios tão quentes e suaves, de sabor delicioso. Como um vinho tinto, intenso, regado a especiarias. Sentiu que se embebia desse sabor, que se embebia dele. Como se um só roçar, como se prová-lo uma só vez, fosse suficiente para marca-la por toda vida. Sua boca se movia sobre a dela destramente, com paixão, pedindo uma resposta. Teria que afasta-lo de si. Aquilo estava mau. Não era o que devia acontecer. Normalmente não sentia nada. Mas dessa vez sim. Seu corpo se acendia, seu pulso se acelerava e seus sentidos se inflamavam com desejos desconhecidos.

Bela não entendia o que passava. Notava seu corpo muito quente e pesado. E depois esse insistente nó que se fazia no baixo ventre. Esperava o momento em que seu corpo se contraísse, que a invadisse aquela vaga sensação de repulsão quando sua boca se aproximasse da dela. Mas não acontecera. Para ser um patife que tomava quanto queria, seu beijo não tinha nada de agressivo. Sua paixão era cálida e apetecível, não fria e cruel. Não se tratava de um assalto nem de um ataque, mas sim de uma escura sedução. Lachlan fazia que quisesse rodear o seu pescoço com seus braços e aproximá-lo mais, derreter-se sob ele, acoplar cada uma de suas suaves curvas em todas as partes duras de seu corpo. Lachlan fazia que tivesse vontade de ceder ao desejo, de abrir a boca e oferecer livremente tudo aquilo que seu marido queria lhe arrebatar. Lachlan o fazia… desejá-lo.

Que Deus tivesse piedade dela. Desejava-o. Com toda sua alma. Mais do que jamais tinha desejado nada. Acreditava-se incapaz de sentir desejo. Pensava que era tão fria para a paixão como as acusações de seu marido sugeriam. Mas agora sentia. Sentia seu despertar em uma formigante onda de calor e prazer.

Apertou-se nele e saboreou a perversa sensação de apertar os seios contra seu torso. E então abriu a boca emitindo um suspiro. Lachlan deixou escapar um grunhido de satisfação quando viu que ela cedia. Queria castigá-la por fazê-lo perder o controle. Por abandonar-se à luxúria que ele jurou evitar. Tinha enlouquecido. Estava furioso. No limite. Mas sua raiva desapareceu assim que roçou seus lábios. Então o invadiu uma onda suave e poderosa. A ternura, maldita seja. Jamais poderia lhe machucar. Havia dito que nunca usaria a força, e disse a sério.

Deus, sim que seu sabor era doce. Mais doce do que Lachlan teria imaginado. Não poderia ter se afastado de Bela embora quisesse. Esperava que ela o afastasse, estava quase certo de que faria. Mas aquela inocente e hesitante resposta virtualmente o desarmou. A sensação de ter aqueles lábios sensuais abrindo-se sob sua boca o deixava louco. Colocou a língua e a beijou com mais intensidade, ferozmente, reclamando para si todo o espaço que ela estava disposta a conceder.

Bela respondia a seus beijos, e seus pequenos e doces gemidos o animavam a seguir. Notava como se grudava mais a ele, como o desejo se apoderava dela e seus beijos ganhavam urgência. A língua de Lachlan começou a desenhar círculos em sua boca. A princípio lentamente, e com maior rapidez à medida que tomavam forma as sensações que se agitavam entre eles.

Tinha esperado tanto tempo que acontecesse aquilo que não podia tomar com calma. O calor se expandia por suas veias. Tinha a pele ardendo. Tensa. Como se fosse muito pequena para seu corpo. Seus músculos se contraíram, esticando-se diante das sensações. Seu pau, contra ela, aumentou de tamanho e ficou duro. Notava cada uma dessas curvas voluptuosas sobre ele, mas não era suficiente. Mais perto. Tinha que aproximar-se mais. Afundou os dedos entre seus sedosos cabelos e lhe sustentou a cabeça enquanto a jogava contra a porta e grudava mais nela.

Aí. OH, Jesus, era justo aí! Quase sucumbiu diante da onda de calor.

Seus corpos se fundiram. O pau de Lachlan se apertava contra sua virilha, provocando-a com o impulso de investi-la. Aquilo estava muito bem. Aproximava-se muito à realidade. Sentia virtualmente o que seria deslizar-se em seu interior, como seria agarrá-la pelo traseiro com ambas as mãos, ficar em cima de suas pernas abertas e empurrar para o interior da suave e úmida racha.

Queria abrir o sutiã para sentir a carícia de seus mamilos eretos. Certeza que sua pele estaria ruborizada, quente, e o aroma das rosas seria ainda mais embriagador.

À medida que a beijava com mais intensidade e se abandonava a essa paixão, tanto tempo renegada, que se desatou em seu interior, o coração de Bela pulsava com maior violência.

Estava perdida em uma bruma de desejo jamais imaginada. Seus beijos ficaram mais insistentes. Cada vez que a língua de Lachlan roçava a sua com lascívia se avivavam mais as chamas. Sentia sua ereção entre as pernas e aquilo a alagava de desejos mais penetrantes ainda. Esfregou-se contra ela. Sua ligeira pressão com os quadris provocou uma sacudida de prazer que a percorreu todas as costas. Queria senti-lo dentro dela. Queria sentir como se esfregava…

«Deus bendito!»

A perversão de seus pensamentos a devolveu de repente à realidade. O que estava fazendo? Como pode sucumbir tão fácil e completamente? O que lhe estava passando? O calor da paixão se transformou em um arrebatamento de vergonha. Finalmente, depois de anos de suspeitas e ciúmes irracionais, a realidade transformava as acusações de seu marido.

—Te detenha! —disse afastando-se dele.

Lachlan se retirou com os olhos negros de desejo. De luxúria. E contemplar aquilo ao qual tanto temia a fez explodir.

—Como te atrevem a me tocar de tal forma? —disse depois de lhe esbofetear.

Bela não sabia qual dos dois estava mais surpreso pela violência de sua reação. Lachlan voltou o rosto lentamente e Bela ficou horrorizada ao ver a marca de sua mão.

—Ofende-lhe que eu a tenha tocado, condessa, ou simplesmente te zangas ter desfrutado disso?

A verdade que continha aquela acusação doeu. Um nó de pranto se formou em sua garganta.

—O que queres de mim?

Um tímido e lento sorriso lhe franziu o cenho sem chegar a afetar à dureza de seu olhar.

—Qual é a oferta?

O patife zombador havia retornado. O homem a que nada importava. Como pode pensar que era diferente?

—Só te importa o dinheiro, não é certo?

Seu olhar, de um verde mais penetrante do habitual, passeou por seu corpo de tal maneira que se sentiu suja.

—Não estava falando de dinheiro. —Bela se sobressaltou— Condessa, se quisesse tirar dinheiro de você, não teria mais que te levar eu mesmo diante de Eduardo.

—Surpreende-me que não o tenhas feito, sabendo que o ouro é o único que te importa. Não é você quem diz que Robert está acabado? A que parece nesta ocasião escolhestes o lado errado. O que acontecerá com toda essa fortuna que te prometeram?

—Sabes tudo sobre mim, verdade, condessa? —Lachlan a olhou fixamente e algo em seus olhos lhe fez querer retirar aquela provocação— Boa pergunta. Terei que pensar nisso. Sempre é bom sopesar as opções. E agora, se me desculpares, tenho coisas mais importantes às que atender —disse com uma reverência exagerada.

Bela esteve a ponto de dizer que voltasse. Sabia que tinha sido injusta, que o tinha culpado pela vergonha de ter caído em seus braços. Não era culpa dele que ela não o tivesse afastado de si da devida maneira.

Mas não o fez. Dizer que voltasse não teria mudado nada. Embora pudessem sair daquilo com vida, que tipo de futuro teriam? Ela era a esposa repudiada de outro homem. Entre eles não podia acontecer nada de bom. Assustavam-lhe esses sentimentos, a intensidade das emoções que a invadiam. Tinha medo do que poderia obrigá-la a fazer. Era melhor assim. Tinha que assegurar-se de que aquilo não acontecesse de novo.

Agora que tinha provado a paixão desejava não ter feito nunca. Embora tivesse se reunido junto ao resto do grupo na capela para tentar dormir, mantinha um ouvido pego à porta esperando sua volta. Mas Lachlan não retornou.

Justo depois do amanhecer despertou para ouvir que fechavam a porta. Era Magnus de novo. Tinha saído e entrado várias vezes durante a noite, certamente para fiscalizar os guardas que vigiavam no exterior.

—Deveria ter retornado —ouviu que dizia a William.

Bela se levantou repentinamente e correu a reunir-se com eles.

—Ocorre algo?

—Não sei —disse Magnus com sinceridade— Mas deveríamos reunir ao resto das mulheres e nos preparar para a marcha.

Mas quando fez já era muito tarde.

—Não podem fazer isto! —soou a voz do sacerdote, preludiando o que estava a ponto de chegar.

Através de uma das janelas arqueadas viram como o ancião, a escassos metros da porta da igreja, tentava bloquear a entrada com os braços abertos. Mas os soldados não fizeram o menor caso. O conde de Ross e ao menos cem dos soldados de sua guarda rodeavam a igreja.

Por todos os Santos, tinham-nos descoberto! Bela não acreditava. Não estava surpresa simplesmente pela descoberta, mas sim o flagrante caso a fazia pestanejar de incredulidade: Ross estava profanando o santuário da igreja. Ouviu que Magnus amaldiçoava. William e ele se olharam. Bela sabia que estavam dispostos a lutar. William negou com a cabeça. Estavam em desvantagem numérica, inclusive para guerreiros tão experientes.

—Poderiam ferir alguém —disse William.

Magnus assentiu com uma expressão tão sombria como jamais antes tinha visto nele.

Os homens seriam os primeiros aos que castigariam, encarcerariam ou executariam sem julgamento prévio.

—Vá —disse Bela— Salve a ti. Não podes fazer nada para nos ajudar.

Ambos pareceram ultrajados pela sugestão.

—Nosso dever é lhes proteger, minha senhora —disse Magnus— E isso será o que farei até meu último fôlego.

Enquanto Magnus saía para negociar sua rendição com o traiçoeiro conde de Ross, Bela procurou acalmar o pânico que se apoderava do resto das mulheres. Mas não havia nada que pudesse dizer. Depois de um mês ocultando-se e fugindo para salvar sua vida, tudo tinha acabado. Ross os levaria diante de Eduardo e ficariam a mercê do rei inglês.

Felizmente Lachlan não estava ali. Sem dúvida era uma sorte que tivesse conseguido escapar do mesmo destino. Mas onde estava? Estaria observando tudo? Um pedaço dela temia que fizesse algo precipitado para resgatá-los. A outra parte inclusive acreditava que seria capaz de fazer. Se tinha aprendido um pouco de Lachlan MacRuairi era que faria tudo para levar a cabo a missão. Tinha deslocado ao interior de um lugar em chamas sem pensar para salvar a vida de um homem, o que não faria por todos eles?

Quando saiu da capela de Saint Duthac para render-se ao conde do Ross e a recebeu o frio sol matutino, não pôde evitar rastrear os arredores com a esperança de vê-lo sair de entre as árvores correndo para eles.

Certamente o conde a estava observando. Ross era de idade e expressão parecidas com Buchan, e exatamente igual, severo e orgulhoso. Tinha passado seis anos nas prisões de Eduardo depois de sua captura no Dunbar. Bela jamais teria acreditado capaz de tamanha farsa.

—Procuras a alguém, condessa?

Bela tentou ocultar sua surpresa, mas o coração começou a pulsar a toda velocidade imediatamente. Ross tinha conhecimento de que Lachlan estava com eles, o qual significava que… OH, Deus, o que tinham feito com ele?

—Devo admitir que não pensei que Bruce seria tão insensato para pôr a um vadio oportunista como esse bastardo de MacRuairi a seu cargo —disse Ross com um sorriso petulante— Esse homem não é digno de confiança. Roubou-me durante danos. Mais inclusive do que poderiam pagar pela captura das damas de Bruce.

Bela resistiu a acreditar no que dizia, apesar de que ela também tivera a mesma ideia dele em um princípio.

Embora o tivesse acusado disso, jamais passou pela sua cabeça que Lachlan os tivesse traído. Estaria errada? Uma estranha inquietação se apoderou dela diante da só menção da palavra «pagar».

—Onde está? O que fez com ele?

Certamente sua voz delatou algo. Ross ergueu uma sobrancelha ao mesmo tempo em que tratava de adivinhar.

—Esse bastardo não merece sua preocupação, condessa. A ele devem que as tenhamos encontrado. Já não poderá ajudar. Mas não se preocupem. Lachlan MacRuairi conseguirá exatamente o que busca. Pagará todas suas dívidas.

Bela sentiu que lhe davam uma punhalada no ventre. «A ele devem que as tenhamos encontrado…»

«Não, ele não o faria.» Não acreditava que fosse capaz de tamanha traição, que os vendesse a Ross, sabendo o que seria deles.

«Não confie em mim…» Voltou a pensar naquela advertência.

Ross ordenou a seus homens que os colocassem todos em um carro e os levassem ao castelo de Auldern e partiu. William percebeu o horror de sua expressão. Aproximou-se dela antes que a empurrassem com rudeza ao interior do carro.

—Tem que ter algum engano, minha senhora. Nosso capitão jamais…

Sua voz se deteve o tempo que seus olhos se enchiam de incredulidade. Bela seguiu a trajetória de seu olhar e ficou sobressaltada. O coração pareceu murchar no interior de seu peito ao comprovar que se desvaneciam todas as esperanças de que estivesse enganada.

Lachlan estava ao pé da colina rodeado por um punhado de homens de Ross. Estava a olhando. E quando seus olhos se encontraram com os dela viu algo neles que não tinha engano: culpa.

O vazio abrasou seu coração, como se tivesse transpassado por uma estaca grande e quente. Confiava nele. Ela acreditava que… Deu-lhe as costas. De todas as decepções que tinha sofrido na vida, seu pai, seu marido…, essa era a que a rasgava com maior violência. Deveria ter aprendido a lição. Já não era uma adolescente de quinze anos, nenhuma menina que suplicava as migalhas de atenção que jogava seu pai.

Lachlan lhe tinha demonstrado o tipo de homem que era. Embora lhe dissesse que não confiasse nele, ela tinha inventado fantasias românticas que o convertiam em alguém diferente. Tinha chegado a convencer-se de que importava pra ele. Mas o único que ele queria era o que se escondia entre suas coxas, e uma vez negado isso…

Deus, não teria que ser tão doloroso.

—Gri…! —pareceu dizer Gordon enquanto o carro se afastava antes que um dos homens de Ross o empurrasse contra o chão o impedindo de terminar.

Que não gritasse? Isso tentava dizer? Bela notou de que aquilo carecia de importância. Nada mais a fazer, se de todas as formas os tinham apanhado?

Mary Bruce chorou sobre seu ombro enquanto o carro dava tombos pela estrada de Auldern e Bela tentou tranquiliza-la. A garota que tanto lembrava a sua filha ergueu o olhar com os olhos aterrorizados e alagados em lágrimas.

—O que será de nós, minha senhora?

—Não sei carinho. Suponho que passaremos algum tempo na torre. Não estará tão mal. Ouvi que alguns dos aposentos são muito bonitos.

Nenhuma das duas poderia ter imaginado quão errada estava.


Capítulo Oito


Onde está Nigel Bruce? E Da Haye?

E o valente Seton, onde está?

Onde está Sommerville, o gentil e livre?

E Fraser, fina flor da cavalaria?

Não os levaram ao patíbulo e os esquartejaram?

Não foram seus restos pasto dos abutres e cães?

E nós falamos com frieza de que outras vítimas tenham sua mesma sorte?


Sir Walter Scott,

O lorde das Ilhas, Canto II, XXVI


Castelo de Dunstaffnage, Lorn, 10 de outubro de 1308


Aquela era a informação que Lachlan estivera esperando. O rei não voltaria a dissuadi-lo. Fazia dois anos que se via obrigado a aguardar o momento oportuno. Acabou. Iria procurar Bela e ninguém poderia detê-lo. Nem Bruce, nem MacLeod. Diabos, nem tão sequer o maldito exército inglês completo.

O folguedo que o acompanhou até o momento de entrar na câmara do rei era prova suficiente de que tinha chegado a hora. Não celebrava só as bodas de Arthur Campbell e Anna MacDougall, mas também a capitulação de Ross, o último dos grandes da Escócia contrário ao rei Robert. O bode que tinha entregado a Bela e ao resto das mulheres a Eduardo agora declarava paz.

Bruce tinha escapado das garras da derrota segura e ressuscitava dentre as cinzas como a ave fênix, submetendo primeiro aos ingleses, e depois aos poderosos nobres escoceses que se opunham a ele. Bela estava certa: Bruce retornava milagrosamente à maneira em que se forjam as lendas. A fé que ela depositava no rei não era desmerecida. Eram eles que tinham falhado a Bela. Bruce. Ele mesmo. Todos.

Mas aquilo acabou. Uma vez submetidos MacDougall e Ross, não restavam mais desculpas. Não havia inimigos aos que derrotar que tivesse que antepor a seu resgate.

Lachlan passeava pela pequena sala com toda a calma de um leão enjaulado, enquanto esperava e procurava dominar a excitação que percorria seu interior. Deus sabia que tivera muitas decepções no passado. Informação errônea. Rumores de libertação. Negociações que não foram a nenhum pedaço. Inclusive uma tentativa de resgate fracassado. Estivera muito perto de conseguir, mas um dos guardas deu o alarme antes que Lachlan subisse à torre em que Eduardo tinha sua barbara prisão em forma de jaula. Os membros da Guarda dos Highlanders que lhe acompanharam e ele mesmo escaparam com vida com muita dificuldade.

A imagem de Bela dentro daquela abominação o perseguiria por vida. A via tão magra e pálida… Olhava à lonjura com uma expressão de desassossego que gelava a alma, e seus grandes e redondos olhos ressaltavam sobre seu rosto. Jamais havia se sentido tão impotente. Vê-la e não ser capaz de resgatá-la estivera a ponto de deixá-lo louco. Consolava-se pensando que a libertaram da jaula não muito depois daquilo, mas o fracasso o consumia por dentro.

Dessa vez seria diferente. Não voltaria a fracassar.

Passaram vários minutos até que ouviu abrir a porta. Primeiro entrou o rei e depois Tor MacLeod, o capitão da Guarda dos Highlanders, ou Chefe, como proclamava seu nome de guerra. Nenhum deles parecia contente de que os tivessem afastado dos festejos das bodas. O rei se sentou na poltrona que fazia de trono que até pouco ocupava John MacDougall, o lorde de Lorn, e o olhou com dureza.

—Imagino que se isto não podia esperar as poucas horas que ficam até a alvorada é porque afeta à condessa.

Lachlan olhou fixamente do outro extremo da mesa ao homem que tinha falado com tanta calma. Mas igual a ele, Lachlan sabia que Robert Bruce, rei da Escócia, era tudo menos calmo. Os dois anos que tinham transcorrido desde que prenderam às mulheres em Tain tinham sido quase tão duros para Bruce como para Lachlan. Quase. Mas não igual. Bruce não era o responsável que as tivessem capturado.

—A vão transladar. E a Mary também.

O rei se levantou da poltrona. Estava claro que Lachlan o tinha surpreendido.

—E como te inteirastes disso?

Lachlan deu de ombros.

—Tenho minhas fontes.

Bruce entreabriu os olhos.

—Espiões comprados? Maldita seja, Víbora, por que não me disse? É aí aonde vai parar todo o dinheiro que vos pago?

Lachlan franziu o cenho. Ele não dava explicações. Nem tão sequer ao rei.

MacLeod interveio para aliviar a tensão.

—Aonde as levarão?

Lachlan negou com a cabeça.

—Não sei. Não importa. É a oportunidade que estávamos esperando. Não terá melhor momento para o resgate que quando Bela saia do castelo.

O rei e MacLeod trocaram um olhar, mas nenhum deles se mostrou em desacordo.

—Não me surpreende que tenham decidido fazer algo respeito a Bela —disse Bruce depois de um momento— Uma vez morto Buchan e sem ninguém que o substituísse, De Monthermer pôde persuadir ao novo rei inglês para que a tirasse da jaula, mas após ninguém sabe o que fazer com ela. Ninguém a quer a seu redor. É uma mancha negra para a Inglaterra e para o primeiro Eduardo, e um símbolo muito poderoso da rebelião para deixá-la livre sem mais. Querem que desapareça. Certeza que a mandarão a um convento, ou a algum castelo remoto da Inglaterra. Mas isso não explica por que transladam também a Mary.

Nenhum deles tinha a resposta.

—Quando supõe que o farão? —perguntou MacLeod.

O capitão da Guarda dos Highlanders, um dos mais ferozes inimigos de Lachlan em outros tempos, queria conhecer todos os detalhes.

—Meu informante disse que dentro de alguns dias. Estão fazendo os preparativos. Por razões óbvias o mantêm em segredo.

—Como podemos estar seguros de que seu informante diz a verdade? —perguntou o rei— E se for uma armadilha?

Lachlan franziu mais os lábios.

—Esse é um risco que estou disposto a correr. Sairei esta noite.

Olhou a ambos, desafiando-os que discutissem sua decisão.

Fez-se silêncio. Lachlan pressentia que não gostaria do que viria depois. E não se enganara.

—Está seguro de que é boa ideia? —perguntou Bruce— Talvez fosse melhor que deixassem que MacLeod…

Lachlan se inclinou sobre a mesa.

—Não há ninguém aqui ou no inferno que me impeça de ir.

O rei fez caso omisso da ameaça, mas MacLeod franziu o sobrecenho.

—Tome cuidado, Víbora —disse— Não tome isto da maneira mais racional.

Isso era dizer pouco. Diabos, inclusive dizer que estava obcecado seria pouco. Lachlan, julgando-se responsável, jurou que libertaria Bela no momento em que viu como a jogavam naquela carreta. Quando soube a sorte que tinha mudado, a necessidade de tirá-la dali quase o pôs louco. Mas, graças a essa nova informação, tinha outra oportunidade. Iria, doesse a quem doesse. Aquela era sua missão.

—O rei tem motivos de sobra para mostrar-se reticente —acrescentou MacLeod.

—Nada mais certo —disse Bruce— Graças a John de Lorn, acaba de ser revelada sua identidade como membro de meu exército secreto. Agora mesmo é um dos homens mais procurados da Escócia. Se o capturarem os ingleses, eles torturarão até que revelem os nomes dos outros highlanders. Todos irão por você com esse oferecimento de trezentos marcos por sua cabeça. Precisa permanecer oculto por um tempo. Talvez possam visitar essa ilha a que chama de lar.

Lachlan lhe lançou um olhar de rebeldia. O rei não conseguiria distraí-lo falando de sua recompensa. Os três anos de serviço que Lachlan tinha acordado estavam plenamente cumpridos. A terra e o dinheiro que foi prometido seria dele assim que o rei celebrasse o primeiro conselho. Ao fim poderia saldar suas dívidas, e teria a solidão e a paz que tanto ansiava. Virtualmente estava já feito. Mas tinha uma missão final a cumprir antes de partir.

—Já me torturaram antes —disse secamente— Nada do que me façam conseguirá que revele os nomes de meus companheiros da guarda. Igual nada impedirá que faça isto. —falou olhando ao rei— Devo fazer.

Robert Bruce estudou seu rosto em silencio durante um momento antes de voltar para o MacLeod. O feroz chefe das Ilhas deu de ombros.

—Já sabia que não entraria em razão.

—Eu também. —O monarca suspirou com resignação. Voltou-se para o Lachlan e o fulminou com o olhar.

—Mais vale que tome cuidado.

Não necessitava que o rei dissesse isso. Não tinha nenhuma vontade de ser encerrado em outro fosso. Os buracos escuros não traziam boas lembranças. Conteve o calafrio involuntário. Arriscaria-se para libertá-la. Arriscaria tudo por isso.

—A quem posso levar?

O rei e MacLeod discutiram em privado durante um momento antes que este último respondesse.

—Assalto, Caçador, Aríete e Dragão.

Lachlan amaldiçoou em voz baixa. As habilidades como rastreador de Lamont seriam úteis, assim como o dom de estratégia de MacLean, mas passaria a metade do tempo tentando evitar que Boyd e Seton se matassem.

—E Santo e Templario? —perguntou Lachlan referindo-se a MacKay e Gordon.

—Virão comigo, Falcão e Flecha —disse MacLeod— Se forem transladar às duas, tentaremos libertar também a Mary.

Lachlan assentiu a contra gosto. Igual a Bela, a jovem Mary Bruce também estava pendurada numa jaula, no seu caso no castelo de Roxburgh.

Em princípio o primeiro Eduardo também quis pendurar na Torre de Londres à filha de Bruce, Marjorie, mas no final recebeu um indulto e foi enviada a um convento, como ocorreu com sua tia Christina.

A rainha, certamente graças à influência de seu poderoso pai, o fiel aliado de Eduardo, o conde do Ulster, estava em Burstwick sob prisão domiciliar. Ao pequeno conde de Mar o levaram a corte inglesa para que se educasse. Não teve tanta sorte entretanto o conde de Atholl, a quem tinham enviado as galeras.

A MacKay e a Gordon tomaram por soldados ordinários e os encerraram em Urquhart durante alguns meses, mas Lachlan e outros membros da Guarda dos Highlanders conseguiram libertá-los.

—E o resto das mulheres?

Bruce o olhou com tristeza.

—Segundo nossas notícias meu velho amigo Lamberton, o bispo de Saint Andrews, saiu do cárcere, mas segue confinado na Inglaterra. Também sabemos que estão tratando bem a minha esposa, a minha filha e a minha irmã Christina. Seguem muito ao sul para que tentemos as libertar. Mas quando for o momento adequado eu mesmo liderarei o maldito grupo de resgate.

Lachlan assentiu. Gostaria que libertasse todas as mulheres, mas o duro trato que estavam recebendo Bela e a jovem Mary fazia que fossem as primeiras às que resgatar.

Lachlan não perdeu um minuto uma vez, disposta sua equipe. Antes que cantasse o galo já estava cavalgando a galope para Berwick junto a seus companheiros.


Bela olhava pela pequena janela de seu aposento na torre e observava às pessoas que ia de um lado a outro pelo pátio de armas, ocupando-se de seus deveres e atividades diárias. Depois de mais de dois anos seus rostos eram familiares. Harry, a jovem cavalariço, que levava água aos cavalos, e Annie a jovenzinha da aldeia que parecia procurar sempre alguma desculpa para estar perto de Will, o fidalgo de livre verde e dourada que se destacava com o arco.

Aqueles é obvio, não eram seus nomes. Mas como seu único passatempo eram os bordados, tinha inventado nomes e histórias para os aldeãos e ocupantes do castelo. Havia ocasiões em que era bastante entretido, quase como ver uma peça de teatro. E mais importante que isso, era a melhor maneira de aliviar uma monotonia que se revelara como seu pior inimigo, já estivesse dentro ou fora da jaula.

Ficava ali quase todo dia. A janela era pequena, mas não havia grades que obstruíram a visão. Às vezes, durante uma fração de segundo, era capaz de esquecer a pequeno aposento que havia a suas costas, esquecer a asfixiante sensação de confinamento que persistia desde sua libertação da jaula três meses atrás, noventa e sete dias, para ser exato. Mas não olhava para cima. Jamais fazia. Era consciente de que a situação de sua câmara não era casual. Tinham-na posto em um aposento da torre que ficava em frente à jaula. Uma maneira mais de atormentá-la e manipulá-la, de que não esquecesse o que poderiam fazer com ela.

Como se pudesse esquecer. Não necessitava essa visão para lembrar o inferno de seu encarceramento. Carregava essas lembranças cada dia. Não sabia como tinha agüentado. Sua filha. Seu orgulho. O obstinado rechaço de deixar ganhar. De alguma forma tinha conseguido. Aprendeu a ignorar que sempre havia gente observando-a, que nunca tinha um momento de intimidade. Os olhares de compaixão. As grades. Combatia a sensação de fechamento caminhando com muita dificuldade e esticando seus membros cada manhã. Aliviava seu aborrecimento inventando histórias sobre as pessoas que povoavam o pátio.

A única coisa que não podia controlar era o frio. Tiritou ao lembrar. Em comparação, aquele pequeno e úmido aposento não tão gelado parecia um refúgio de calidez. Saiu da jaula mais magra, fraco e triste, mas com as costas reta e a cabeça bem alta.

Tinha passado uma vez por isso, mas não acreditava que pudesse suportar de novo. Não se deixou afetar pelo horror até que a tiraram da jaula. Mesmo assim, cada dia que passava tinha mais força e voltava a ser como antes.

A porta da câmara se abriu de repente. Bela ficou tensa; sabia quem era. Além do aborrecimento, a única nota constante ao longo de seu calvário era sir Simon, seu torturador pessoal. Deu a volta, consciente de que seria pior ignorá-lo.

Olhou-a entrecerrando os olhos, como se quisera achar algum mal no que fazia.

—Passa muito tempo olhando por essa janela.

Fez-lhe um nó na garganta o pânico. Aquela janela era quão único evitava que ficasse louca. Se adivinhasse quão importante era para ela… Sentiu que secava a boca. Umedeceu os lábios com um rápido movimento da língua, mas se arrependeu assim que viu o brilho nos olhos de Simon. Depois de dois anos sabia que era melhor não chamar a atenção sobre nenhum pedaço de seu corpo, especialmente a boca, mas seu nervosismo a traiu.

—Tinha fome, simplesmente, e me perguntava a hora. Trazes minha comida?

—Não sou seu maldito servo —disse Simon com raiva, como ela sabia que ocorreria.

Zangá-lo era a melhor forma de distraí-lo para que não advertisse sua debilidade.

Ergueu uma sobrancelha com arrogância, sabendo que brincava com fogo.

—Então o que quer?

Simon apertou os punhos, e a mandíbula.

—Irá.

Bela ficou com a boca aberta. Estava tão surpresa que por um momento se esqueceu de controlar sua reação. Tentou apaziguar a instantânea onda de esperança. Não podia ter ouvido bem.

—Vou? —perguntou.

—Sim.

Simon a observava e jogava com ela, sabendo perfeitamente o efeito que teriam suas palavras.

Bela se sentou em um tamborete e agarrou seu bordado como se não tivesse ouvido nada, obrigando-se a passar a agulha através da túnica de linho com seus trêmulos dedos. Falou com tanto desinteresse como pôde.

—Aonde terei que ir?

Teria acabado a guerra? Tinham negociado sua liberdade? Poderia retornar a sua casa ao fim?

—A um convento.

A dor pela decepção foi menor. Se não ia para casa, estava claro que um convento seria preferível a uma fortaleza armada como Berwick. Em um convento podia albergar a esperança de escapar.

Mas Simon sabia a direção que tomariam seus pensamentos, e só estava esperando para atormentá-la. Sorriu antes de voltar a falar.

—Há um convento de monjas carmelitas nos subúrbios do Berwick. Será transladada ali, onde tomarão os votos imediatamente.

Os votos? Por Deus bendito! Todos seus instintos se rebelaram imediatamente. Queria gritar que se negava, retorcer-se diante da só ideia. Os votos eram uma prisão da que nunca escaparia. Uma vez tomados já não havia volta atrás. Encerrariam-na por toda vida. A solidão, a monotonia, o isolamento não acabaria jamais. OH. Deus, teria que ter imaginado que seria um giro cruel.

Mas os anos que tinha passado controlando suas emoções com Buchan tinham rendido um bom serviço em seu cárcere em Berwick. Sua expressão não revelou absolutamente o horror que sentia. Mesmo assim, ele notava.

—Deveria estar feliz —disse provocando-a. Seus escuros olhos passearam pelo vestido de lã sem forma que Bela levava. Fazia tempo que não usava o fino vestido com o que a tinham encerrado, e aproveitava um feio e resistente descartado pelos servos do castelo. Aquela lã grosseiramente fiada era grossa e a pinicava, mas isso pouco importava. Era quente — Atuastes como uma monja durante danos —espetou, dirigindo um olhar grosseiro a sua virilha. Bela apertou as coxas instintivamente— Agora poderá ser uma.

Percebeu a amarga recriminação de sua voz. Quão fácil teria sido se tivesse acessado a suas demandas! Se o tivesse permitido usar seu corpo como Buchan fazia durante danos… Poderia ter conseguido mais carvão para o braseiro, mais mantas para seu nu jergón, melhor comida, uma multidão de pequenos luxos que teriam feito seu cárcere se não cômodo, ao menos suportável.

Mas não pôde fazer. E não só porque lhe repugnasse até o mais mínimo detalhe da pessoa do Simon. As manchas marrons de seus dentes. As bolinhas de caspa em seu gordurento cabelo. A capa de suor que fazia que seu rosto brilhasse como as escamas de um peixe. Não, submeter-se a ele teria sido algo indesculpável. Com seu marido tinha um dever. Com o Lachlan tinha acreditado estupidamente que existia algo especial entre eles. Mas com Simon venderia a si mesma. E antes morta que fazer reais os rumores. Primeiro sobre o Robert, e depois de sua captura, sobre Lachlan. Graças a Ross, disso não cabia a menor duvida. Não se importava que a chamassem de puta, mas não pensava converter-se em uma.

De maneira que tinha suportado o frio, a fome e dois anos de tortura inacabável. Em duas ocasiões o tinha levado muito longe e a ponto esteve de lhe custar a vida. Uma vez adoeceu pela comida meio podre que Simon lhe servia. E em outra ocasião castigou seus desafios lhe tirando as mantas em uma fria e chuvosa noite em que Bela esteve perto de morrer congelada.

Igual ao seu marido, Simon queria vê-la reagir.

Procurava uma forma de domá-la. Houve muitas vezes nesses dois anos em que quis dar-se por vencida. Mas uma coisa a fez seguir adiante: sua filha. Tinha que superar aquilo pela Joan.

—Ouvi que os aposentos são pequenos e que não há janelas —disse ele com sarcasmo. Bela reprimiu um calafrio. Mas embora ocultasse bem seu medo, Simon seguia adivinhando. – Quanto estás acostumada a isso, verdade, condessa? —acrescentou fazendo ênfase no último para logo golpeá-la com exagerada afetação— Ah, é verdade! Agora que Buchan morreu, o rei Eduardo, o segundo com esse nome, decidiu que já não é condessa.

Bela manteve o olhar e sorriu.

—Sim, agora só sou filha e irmã do mais poderoso e antigo conde da Escócia.

Simon ficou vermelho. Pode que fosse repudiada por seu marido e que um rei a tivesse despojado de seu título, mas seguia descendendo do sangue mais nobre da Escócia, e como tal, estava muito por cima de um bruto ordinário como ele.

Quando Margaret, o único contato que tinha com o mundo exterior, tinha-lhe levado a notícia da morte de seu marido meses atrás, Bela não sentiu nada. Nem felicidade porque o homem que lutava por vê-la morta há dois anos tivesse caído, nem sequer alívio, ao saber que jamais teria que voltar a vê-lo. Quão único pensou foi em sua filha. Joan tinha ficado sozinha. O que seria dela?

A morte de Buchan fez que se mostrasse mais determinada ainda a escapar desse pesadelo e a retornar junto a sua filha. Algo que jamais poderia fazer se tomasse os votos.

Simon cruzou a pequena câmara com três pernadas. Arrancou o bordado de suas mãos e a atraiu bruscamente para si.

Bela ficou pendurando como uma boneca de pano. Como estava acostumada com esse trato, nem resistia nem tinha medo. Simon era um valentão perverso e mal-encarado que a tocava e maltratava cada vez que tinha ocasião, mas o pior que se atrevia era a manuseá-la e lhe fazer algum que outro hematoma. Queria a violentar mais vezes das que ela podia contar, mas apesar do trato bárbaro que dispensavam os reis ingleses, parecia que não tinham cortado todos os laços com a cortesia. Seu status a protegia, e ela se encarregava de que não o esquecesse.

Simon aproximou tanto suo rosto a dela que Bela podia ver todos os poros negros de seu disforme nariz. Acostumada ao fétido aroma, mais que retorcer-se ao respirar seu rançoso fôlego, quão único fazia era enrugar o nariz.

—Não é mais que uma cadela arrogante e desprezível. Leva anos exibindo seus encantos para me tentar e que me afaste de meu dever. E agora a olhe: não é mais que um corvo pálido e fracote. Alegrará-me, me libertar de você. Mas será melhor que controle essa língua afiada —disse sacudindo-a com violência— As monjas não serão tão tolerantes como eu com seu pecaminoso orgulhoso.

Teria rido se pudesse reunir forças para isso. Ela o tentou? E ele era tolerante? Não tinha dúvida de que aquele bufão acreditava nisso realmente. Mas suas palavras minavam a pouca vaidade que sobrara. Os anos de cárcere cobrara tanto preço no exterior como no interior? Fazia dois anos que não se olhava em um espelho. Mas que importância teria isso em um convento?

Bela não respondeu, mas sim enfrentou à ira de Simon com um olhar mudo e impassível. Ele odiava que fizesse isso. E que o céu a ajudasse, porque não conseguia resistir a desafiá-lo, sem importar quão mal fossem as coisas. Era o mesmo defeito que mostrava ante seu marido, sempre.

Simon amaldiçoou e a separou de si.

—Estejas preparada para partir pela manhã. O oficial se apresentará aqui para lhe acompanhar.

Bela recolheu seu bordado como se aquele desagradável episódio não tivesse existido.

—Irei ao convento —disse em voz baixa— Mas ninguém pode me obrigar a me pôr o véu.

Permanecia com os olhos na agulha, colocando-a e tirando-a do pano. Por um momento pensou que não a tinha ouvido. Mas um olhar de soslaio sem levantar a cabeça disse que sim tinha feito. Um calafrio lhe percorreu as costas. Simon estava sorrindo.

Seu coração pulsou fortemente, consciente do que viria depois. Os ingleses contavam com a única arma que sempre a derrotaria.

—Pois é uma pena —disse. Apesar da trivialidade do tom de voz, Bela percebeu como dava voltas. Suas vitórias nunca duram muito— Conforme acredito, sir John estava reconsiderando sua petição.

Gelou-lhe o coração. Tentou não reagir, mas a esperança daquelas palavras a torturava.

—O oficial irá me deixar ver minha filha?

Um de seus maiores erros foi permitir que seus carcereiros soubessem o desespero que tinha por ver sua filha. Controlavam seu comportamento brandindo ante ela a promessa de contatar com Joan, como se fosse uma lebre a quem pusessem uma saborosa cenoura pendurada diante do focinho.

—Sua filha não deseja te ver.

Bela ficou tensa. Sir John havia dito que Joan tinha cortado laços com ela há anos, que se negava a contatar com a «rebelde escocesa». Bela ergueu o queixo.

—Nego-me a acreditar.

Simon encolheu seus largos ombros, que aos olhos de Bela o faziam parecer um personagem.

—Uma pena, tendo-a tão perto.

—Perto? —disse com a voz rouca e o coração na boca.

Simon sorriu como o monstro sádico que era.

—Sim. Não sabia? A garota está em Roxburgh para ir à bodas de sua prima.

Seu coração parou.

Roxburgh. Estava só a um dia de viagem. Por Deus bendito, tão perto! Bela assumiu que Joan permaneceria nas terras de Buchan, em Leicestershire, junto a seu tio William, até que se solucionasse o problema de sua tutela. Saber que sua filha estava tão perto foi como um ácido que corroía seu aparente controle.

Simon a observava cuidadosamente, consciente do alcance exato de suas palavras.

—Mas suponho que isso não importa, já que não a interessa a proposta de sir John —disse ao mesmo tempo que dava meia volta para partir.

Bela apertou os punhos tentando resistir, consciente de que era tudo um jogo, mas sentindo-se incapaz de fazer. Se houvesse alguma possibilidade…

—Do que se trata? O que é que propõe o oficial?

Sir John de Seagrave tinha sido nomeado Guardião da Escócia, de modo que sir John Spark era o novo oficial de Berwick.

Simon sorriu com sarcasmo. O sádico desfrutava.

—Sir John a permitirá escrever à menina e se assegurará de que recebas resposta. No caso de que sua filha deseje continuar a correspondência, a permitirá fazer, sempre que as monjas não tenham queixa de seu comportamento. Uma vez que tenham tomado os votos, a menina poderá a visitar tanto como lhe agrade.

Bela não podia respirar. Era aquilo possível? De verdade permitiriam finalmente contatar com sua filha? Ou não era mais que um novo truque para que demonstrasse submissão e acatamento?

—Por que teria que acreditar? Não é a primeira vez que o oficial faz promessas.

Quando a libertaram usaram a promessa de uma reunião com sua filha para mantê-la calma. Mas sempre que se aproximava o momento encontravam uma nova e leve infração para atrasar.

—Não está em posição de pedir nada. É uma rebelde. Uma traidora. Considere-te afortunada por não estar ainda pendurando dessa jaula da torre. Disse a sir John que é muito brando contigo. Assim o recompensa? Tomará o hábito, milady —disse com ironia— Ou não será a única que sofra as consequências.

Bela sabia que Simon não queria mais que assustá-la, mas funcionava. Depois da infrutífera tentativa de libertação da jaula pelos homens de Robert, seus captores a tinham advertido claramente que se escapasse seria Joan quem pagaria por isso.

Seu sorriso a provocava com malícia.

—Odeio pensar no dano que poderia sofrer uma jovenzinha sem ninguém que a proteja. Há uma poderosa febre expandindo-se pela Inglaterra neste momento. Já sabe quão fácil é pegar um resfriado.

A Bela gelou o sangue. O coração parecia pulsar nas têmporas.

—Ameaçaria a uma menina? Minha filha é a única herdeira do conde de Buchan, um súdito leal a seu rei. Permitiria ele, que o sangue de uma menina inocente manchasse suas mãos para castigar a uma mulher insignificante?

—Insignificante? —bramou— causastes a nosso monarca quase tantos problemas como o rei Hood. Sabe que o governador do Berwick teve que fazer uma lei contra usar rosas pálidas? Teria que tê-la esmagado sob meus pés, do mesmo modo que Eduardo fará com todos seus amigos rebeldes. —Entreabriu os olhos— E eu não ameacei ninguém, simplesmente fiz uma observação. Você não gostaria que a culpa das ações da mãe recaísse ainda mais sobre a filha, verdade? O rei pediu que se torne uma monja, e se eu fosse você baixaria a cabeça e encontraria um pouco de submissão para controlar esse endiabrado orgulho que possue.

Saiu dando uma batida. Bela ouviu como caía a trava sobre o fecho e depois o ruído da fechadura.

Ambas as precauções eram desnecessárias. Sabiam tão bem como ela que não faria nada que pusesse em perigo à pessoa que mais lhe importava no mundo. Seu destino estava selado no momento em que aquele homem entrou no aposento, e seu desafio era ilusório. Eduardo da Inglaterra possuiria todo o controle sobre Bela enquanto retivesse Joan.

Uma lágrima apareceu em seus olhos e sulcou sua bochecha. «Monja.» O resto de seus dias confinada em um convento. Ela não queria…

«Não.» Enxugou as lágrimas. Pouco importava o que ela quisesse. Faria o que fosse necessário para manter a salvo sua filha.


Capítulo Nove


Penetrar em uma fortaleza inimiga não era a mais sábia das decisões para nenhum dos homens de Bruce, mas em se tratando do mais procurado da Escócia, aquilo roçava a insensatez. Lachlan sabia por experiência própria o que lhe aconteceria se o apanhassem ou alguém o reconhecia. Que fosse capaz de suportar a tortura mais brutal não significava nem por indício que queria voltar para inferno, embora a indumentária adotada para sua incursão tivesse bastado para condená-lo. Não quis desperdiçar a oportunidade que tinha se apresentado. Teriam muitas mais possibilidades de êxito se a condessa estivesse informada e disposta para o momento do ataque. Além disso, que probabilidade tinha que o reconhecessem?

Lachlan cobriu melhor sua cabeça com o capuz do hábito enquanto seguia os passos do guarda do castelo escada acima. O jovem soldado inglês se virou para olhá-lo mais de uma vez, mas o capuz ocultava suas feições e sua cabeça encurvada não convidava à conversa. Se não tinha garantida a eternidade nos fogos do inferno, com aquilo a asseguraria. Era a última pessoa do mundo que devia levar roupas de clérigo. Deus saberia quantos pecados estaria cometendo simplesmente pelo fato de vestir aquele maldito vestuário. Pinicava como o demônio. Quem necessitava um cilício se havia lã como aquela?

Sua intenção era ficar com sua roupa e a armadura sob o hábito, mas Boyd e MacLean insistiram em que poderiam descobri-lo. Provavelmente o único que queriam aqueles bastardos era vê-lo sofrer. Seus quatro companheiros de guarda racharam de rir assim que colocou aquele maldito farrapo. Inclusive o mesmo Seton, que tinha suportado durante dos últimos anos os contínuos sarcasmos de Lachlan, já que o jovem cavalheiro era um alvo fácil, saiu de seu estado melancólico o tempo exato para rir dele. Lachlan deixou que se divertissem, mas quando tentaram raspar sua cabeça teve que os para. Acostumara-se a ter o cabelo curto, como os outros membros da guarda, mas não necessitava um maldito tonsurado no cocuruto. Só eles imaginam que o sacerdote também fosse monge.

Parecia que aquela ascensão pela escada com o guarda fora eterno, mas depois de subir cinco andares chegaram à última planta da torre. O homem que lhe precedia fez um movimento com a cabeça para saudar o sentinela da porta.

—O sacerdote —disse— Para ver a dama.

O outro franziu o sobrecenho. Lachlan não gostava de seu aspecto. Além de maior, era mais corpulento e suspeito que o que o tinha acompanhado à torre. Lachlan levava uma adaga presa à perna sob o maldito hábito, mas não queria usá-la. Os cadáveres seriam uma maneira segura de pôr aos outros de sobre aviso.

—Sir Simon não me informou que houvesse nenhuma visita para hoje —respondeu o guarda— Só a dama de companhia.

Lachlan adotou uma postura servil e piedosa, encurvando-se quanto podia para ocultar sua altura. Mas temia ter feito um pobre papel, já que não estava familiarizado com a piedade nem o servilismo. Tirou um pergaminho de suas roupas e o ofereceu ao guarda.

—Minhas instruções —disse com tanta humildade como pôde.

A expressão circunspeta do sentinela se fez mais afiada para ouvir o grave tom de sua voz, algo que não havia submissão fingida capaz de ocultar. O homem examinou a escura sombra no interior de seu capuz, mas pegou a carta.

Enquanto o guarda lia o pergaminho, Lachlan ficou olhando as mãos, cruzadas sobre o colo. «Merda.» Voltou a colocar rapidamente entre as dobras do hábito, desejando com toda sua alma que não tivessem visto as cicatrizes de batalha e seus rudes calos. Seria muito difícil explicar por que um sacerdote tinha mãos de guerreiro.

Operar nas sombras era muitíssimo mais fácil que aquilo. Mas jamais teria conseguido passar todos os guardas sem deixar ao menos um par de corpos no caminho. Tinha parecido uma intervenção divina poder interceptar ao jovem sacerdote na floresta que havia às portas do castelo, mas começava a ter suas dúvidas. Aquilo dava mau pressentimento.

O sentinela dobrou a carta passado um tempo que a Lachlan pareceu uma eternidade e a entregou de novo.

—Viestes a confessar à dama?

Lachlan assentiu. E ao ver que o homem não deixava de observá-lo, explicou-se.

—Me chamou para que me assegure de que a dama esteja preparada para partir pela manhã. Em corpo e alma —disse humildemente.

O sentinela ficou olhando-o um momento mais e logo grunhiu algo que Lachlan interpretou como sua aprovação, já que tirou as chaves de seu cinto e se dispôs a abrir a porta.

—Ned o esperará para acompanhá-lo à saída quando tiverem acabado. Não acredito que demorem muito. A dama está submetida a uma vigilância muito severa para fazer diabruras. Faz meses que não vê a ninguém à exceção de meu capitão e sua dama de companhia.

Lachlan se perguntou se devia fazer o sinal da cruz e dizer «que Deus o abençõe, filho». A situação parecia pedir uma atitude sacerdotal, mas tampouco queria exagerar. Seu disfarce já o punha em suficiente perigo. Seu olhar recaiu sobre as pontas de couro cru dos pequenos sapatos que tinha tomado emprestados junto ao hábito, e que devolveria ao sacerdote com igual alegria quando este acabasse de dormir a bebedeira. Não queria que vissem seu rosto, temeroso de que percebessem nele a excitação que percorria seu interior, uma excitação muito notória para ocultá-la.

Por fim chegara a hora. O momento que estivera esperando. A culminação de mais de dois anos de agonizantes atrasos à espera de libertar Bela do inferno que ele mesmo tinha posto. Sem querer, podia ser, mas isso não o eximia de culpa. Não tinha levado seus homens a um retiro, mas sim tinha conduzido aos homens de Ross até as mulheres.

Aconteceu durante um momento de distração. Estava furioso. Tentava acalmar as violentas e desconhecidas emoções que o atormentavam, esfriar seu fervente sangue, sob os efeitos secundários de um beijo que o tinha despojado de qualquer controle. Jesus, estivera a ponto de possuí-la ali mesmo, contra a porta da capela. Bela tinha todo o direito de detê-lo. De esbofeteá-lo. Mas isso não minimizava a dor que lhe tinha provocado o rechaço. O que havia naquela mulher que deixava nu seu lado mais escuro? Por que suas provocações o faziam perder os estribos? Tinha ficado tão absorto por seu desencontro com ela que não notou a ameaça. O desejo fez que faltasse a seu dever, e que capturassem aqueles cujo amparo se encarregava. Sabia que ela acreditava que os tinha traído. E embora não o tinha feito, a culpa era sua de todos os modos.

A porta se abriu.

Por mais que Lachlan se preparasse para esse momento, nada pôde diminuir a dilaceradora emoção que sacudiu suas vísceras ao pousar os olhos sobre ela pela primeira vez nesses dois anos. Suas pernas fraquejaram sem dar tempo a recompor-se. Deus, tinha recebido facadas no peito que doíam menos que aquilo.

Bela estava de costas no fundo da pequena câmara, e sua silhueta de pé se recortava a contraluz no entardecer. A sombra de sua figura era tão longa em suas lembranças que se surpreendeu ao comprovar seu pequeno tamanho. Tinha costas esquálidas e ombros tão estreitos como os de um menino. Era muito mais delicada de como a lembrava.

Bela olhou para a porta, mas não se voltou nem disse uma palavra. A fria prepotência daquele gesto liberou algo que nem tão sequer sabia que houvesse nele. «Medo», disse-se. Um medo profundamente enraizado que tivessem corrompido o espírito e o feroz orgulho que sempre o tinha enfurecido, mas que fazia dela uma mulher diferente de qualquer outra que conhecesse.

—Um sacerdote, minha senhora —disse o guarda, que esperou que Bela assentisse para fechar a porta.

Estavam sozinhos.

Depois de tantos meses a tinha tão perto que não necessitava mais que esticar o braço para tocá-la. Mas apesar de que virtualmente podia abranger toda a habitação abrindo os braços ela parecia estar muito longe. A desolação que mostrou seu rosto ao olhá-lo o deixou destroçado.

—O oficial mandou a um sacerdote? Deve temer por minha alma, quando toma essa consideração a véspera que entre em um convento.

Um convento? Assim que esse era o plano. Mas seu tom de voz lhe dizia que havia algo mais.

Lachlan, consciente de que o guarda podia estar escutando a conversa perfeitamente e sem saber como reagiria ela ao vê-lo, cruzou o aposento em duas rápidas passadas, cobriu-lhe a boca com a mão e a apertou fortemente para que não se movesse, suspeitando que desfrutasse tão pouco como na ocasião em que se conheceram.

Ficou tão impressionado ao tocá-la que esteve a ponto de soltá-la imediatamente. Pelo sangue de Cristo! Suas lembranças não eram erradas absolutamente. Que diabos tinham feito com ela? Estava só ossos, tão magra que quase podia quebrar. Aquelas suaves e voluptuosas curvas que tanto o torturavam tinham desaparecido por completo. Quão único era familiar era o peso de seus seios em seu braço. Por tudo mais sagrado, alguém pagaria por isso!

Mas tocá-la tinha sido um engano. Seu corpo bulia com outras lembranças, que ao que parecia não tinha esquecido. E não era Lachlan o único surpreso. Bela ficou paralisada diante daquele movimento inesperado. Mas então percebeu que ficava sobressaltada. Dirigiu o olhar a seu rosto, escondo entre as sombras do capuz.

Dois grandes olhos azuis dominavam um pálido semblante que as escuras olheiras e as grandes fossas marcados sob as maçãs do rosto faziam mais branco ainda. Uma mão lhe golpeou o peito. Magra e frágil, parecia uma sombra espectral da mulher que tinha conhecido. Seguia sendo formosa, mas aquela beleza, que em seu dia foi sensual e atrevida, era agora etérea e tão delicada que doía olhá-la.

Seu corpo, tudo que ficava dela, voltou-se frio e rígido como um cubo de gelo inclusive antes que tirasse o capuz. Olhou-o nos olhos e o atravessou com adagas de puro ódio. Merecia. Inclusive esperava que fosse assim, mas maldita seja, a parte mais insensata de seu ser confiava em que não esperasse o pior dele.

—O guarda —sussurrou— Tome cuidado. Acredito que está escutando.

Os olhos de Bela se incendiaram com rebeldia. Lachlan amaldiçoou em silêncio, consciente de que assim que afastasse a mão de sua boca Bela emitiria um grito que poria a toda a guarnição inglesa sobre ele. Sua aparência era frágil, mas seguia combativa. Aquilo supunha um alívio maior do que queria admitir. Não a tinham dominado. Esperava que fosse assim, mas não estava seguro depois de tudo pelo qual tinha passado. Ele sabia melhor que ninguém o preço que podia cobrar o sofrimento.

—Maldita seja, Bela. Estou aqui para ajudá-la. Me deem a oportunidade de me explicar antes de fazer uma loucura. Por favor —acrescentou, apelando a seus enfurecidos olhos.

Bela o olhou com suspeita, como se aquela súplica fosse algum ardil. Não a culpava. Inclusive ele mesmo estava surpreso. «Por favor?» Podia contar com os dedos de uma mão as vezes que tinha utilizado essas palavras, e mesmo assim, saíram de sua boca com total naturalidade. Os homens de Lorn o tinham torturado durante quase uma semana antes de poder arrancar-lhe isso.

Durante alguns instantes pareceu que não cederia, mas justo quando pensava em como diabos poderia solucioná-lo, Bela assentiu. Quando Lachlan a soltou ficou no mesmo lugar, olhando-o com tal intensidade que teve que retroceder um passo para lhe dar espaço. Não queria proporcionar nenhuma desculpa para mudar de opinião.

Bela ergueu o queixo e por um momento pareceu quão mesma ele lembrava, não a delicada criatura que tinha ante si.

—Um sacerdote? —disse com desdém— Me surpreende que não tenham ardido em chamas. É que não tive já suficiente castigo? O que, viestes a me dar o golpe final?

Saber ser merecedor de seu desprezo não evitava que lhe picasse o orgulho. Tinha o aspecto de um frágil objeto de porcelana, mas certas coisas não mudavam. Ainda era tão teimosa e orgulhosa como a lembrava e conservava essa habilidade única para o tirar de gonzo.

—Envia-me o rei —disse.

Bela emitiu um som de exasperação.

—Que rei comprou sua espada neste mês?

Lachlan apertou a mandíbula, lembrando-se que tinha que ser paciente.

—Sou leal a Bruce —disse solenemente— E assim foi durante os últimos três anos.

Seus olhos azul intenso brilharam de indignação.

—E esperam que acredite? Lutavam para Robert quando nos entregaram a Ross?

Agradou-lhe ver que suas pálidas bochechas se ruborizavam e adotavam uma cor mais saudável. Mas essa emoção também fazia que Bela erguesse o volume de sua voz. Lachlan levou um dedo aos lábios para lembrá-la a presença do guarda.

—Eu não os traí —disse cortando-a antes que começasse a discutir— Já sei o que pareceu, maldita seja, mas eu não disse a Ross onde os encontrar. Estava zangado quando a deixei na capela. Não atuei com a devida cautela e um de seus homens me viu rondando o porto quando tentava conseguir um birlinn. Seguiram-me até a da igreja e me rodearam antes que pudesse os advertir. Talvez fosse culpa minha, mas não os traí.

Dava a impressão de que Bela não acreditava uma só palavra do que estava contando.

—Sim, é uma coincidência. Assim que o viram, eles reconheceram e adivinharam que os conduziriam até nós?

—Aquilo não foi nenhuma coincidência. Estavam-nos esperando. —A piscada de seus olhos lhe disse que tinha conseguido. Surpreenderam-nos e traíram, mas não fui eu.

—Então quem? Por isso eu lembro foi o único que não levava grilhões.

Lachlan ignorou a afronta. Também ele levava grilhões, embora ela não visse de sua posição.

—Lembras ao ferreiro e a seu filho que levavam os grãos ao grande salão de Kildrummy a noite antes de nossa partida? —Bela assentiu com impaciência— Se inteirou de nossos planos e vendeu aos ingleses. Ouviram que iríamos para o norte. Foi o ferreiro quem pôs fogo aos grãos do grande salão dias depois, obrigando Nigel a render-se.

Ao ver a dor refletida em seus olhos Lachlan soube que tinha chegado a seus ouvidos a sorte que tiveram os homens de Kildrummy. Depois da rendição do castelo, passaram pela espada à maioria da guarnição. A Nigel Bruce o transladaram para o mesmo castelo de Berwick que se encontravam, onde o enforcaram e cortaram sua cabeça. Desejava com todas suas forças que não a tivessem obrigado a presenciar aquilo.

Mas o traidor ferreiro Osborn recebeu seu castigo. Aqueles mesmos ingleses pelos que traiu a seus compatriotas fundiram o ouro que tinham prometido e o obrigaram a engolir.

—Essa história é muito bonita, mas eu o vi junto ao Ross. Disseme que tinham dívidas com ele e que nós seríamos o pagamento. Como pode, Lachlan? —perguntou com voz trêmula — Já sei que não te importo com nada, mas e os outros? E os meninos? —A voz de Bela se quebrou e seu som rasgou algo profundo e impenetrável no interior de Lachlan— Sabem o que fizeram com Mary?

Suas palavras o esfolavam. Parecia que estivessem lhe arrancando a pele a tiras. Naqueles dois anos não tinha pensado em outra coisa. Ela não podia culpá-lo mais do que ele culpava a si mesmo. Mas, embora aceitasse sua responsabilidade pelo acontecido, não os tinha traído.

—Eu era o pagamento da dívida, Bela, não você. Ross tinha intenção de me matar, e o teria feito se não tivesse escapado. Gordon me contou as palavras de Ross e o que vocês pensaram, mas também eu levava grilhões. Ele tentou dizer isso antes que o levassem.

Um grito afogado escapou de seus lábios.

—William está vivo?

—Sim, e também MacKay. Encarceraram-nos, mas pudemos resgatá-los antes que os matassem.

—Pudemos?

Encolheu os ombros, sem dar importância ao deslize.

—Vários homens da guarda de Bruce.

Não lhe deu mais informação. Ela não sabia nada da Guarda de Highlanders e Lachlan preferia que seguisse sendo assim. Até que se visse inclinado a romper sua promessa de segredo, que não era o caso, a vida de Bela já corria suficiente perigo. Ter essa informação poderia fazer que a torturassem. Algo que ele era perfeitamente consciente.

A sombra de um sorriso suavizou seus traços durante um momento.

—Me alegro —disse— Margaret não pôde averiguar nada, assim acreditei que…

Sua voz se desvaneceu ao mesmo tempo em que ela se dava a volta e ficava olhando o entardecer através da janela. Bela acreditava que Gordon e MacKay tinham sofrido o mesmo destino que o conde de Atholl e Nigel Bruce.

Inspirou profundamente, como se tentasse recuperar a compostura. Quando se voltou para ele seu rosto era vazio de expressão.

—Muito bem. Já diz o que queria. Pode partir.

Um som procedente da porta atraiu a atenção de Lachlan. Provavelmente foi o guarda, perguntando-se o que os demorava tanto.

—Maldita seja, Bela. Não temos muito tempo. Juro que explicarei tudo quando sairmos daqui.

Bela foi para trás, como se pudesse queimar-se.

—Não irei a nenhum lugar contigo.

Ao ver que seguia sem acreditar em suas palavras Lachlan tirou um anel do dedo e o deu. Esperava convencê-la por si mesmo, mas não podia permitir o risco.

—Olhe —disse— Prova que o rei me envia. Disse que o reconheceria.

—Importa-me pouco a forma em que Robert pague por meu resgate, e que esteja dizendo a verdade ou não. —Bela lhe devolveu o anel sem mal olhá-lo— Não quero que me resgate. Nem você, nem ninguém.

Lachlan não acreditava. Dois anos infernais lutando para chegar ali e agora ela não queria partir. O que era aquilo? Alguma espécie de brincadeira macabra?

Deu um passo ao frente a modo de intimidação.

Bela se manteve firme e o desafiou olhando-o fixamente com seus grandes olhos azuis. O sangue se amontoava nas têmporas de Lachlan e o gênio que lutava por controlar se desatava. Suas mãos ansiavam agarrar seus braços e sacudi-la até que caísse em si. Possivelmente tivesse feito se pudesse acreditar ser capaz de conseguir sem chegar a beijá-la. Mas não se confiava em tocá-la. E menos sabendo como se sentia ele naquele momento. Estava muito sensível, muito frustrado e mais afetado por seu corpo. Tentava mostrar-se paciente e amável, mas embora vestisse de sacerdote estava muito claro que não era nenhum santo.

Ao ver-se com a soga no pescoço chegou a aproximar-se mais inclusive. Tinha que admitir que tinha desfrutado muito ao advertir seu pequeno ofego e a expressão de surpresa causadas pelo sobressalto. Pode se que o odiasse, mas ainda se sentia atraída para ele. Estava esticando o braço para tocá-la quando a porta se abriu.


Bela agradeceu que os interrompessem. Estar a sós com o Lachlan MacRuairi nunca tinha sido fácil, e o que acabava de lhe contar a tinha deixado como se desse seus primeiros passos em terra depois de passar anos em alto mar.

Nunca pensou que o veria de novo. Era parte de seu passado. Mal pensava nele. «Ao menos não tanto como antes», disse mordendo o lábio. A dor aguda de seu peito tinha diminuído até converter-se em uma pontada. Tinha se tornado um arrependimento a mais de um passado desagradável que não queria lembrar. Mas um pedaço dela sempre se perguntou o que faria no caso de voltar a vê-lo. Cravaria-lhe uma adaga nas costas como tinha feito ele com ela? Mandaria-o ao mesmo diabo que o tinha criado? Bateria? Choraria? Cairia de joelhos e suplicaria que lhe explicasse seus motivos?

Não tinha esperado a dor, a punhalada que atravessou seu peito no mesmo instante em que o viu, nem o torvelinho de emoções desencontradas que giravam em seu interior, fazendo parecer que cairia doente. E depois, durante um traiçoeiro segundo, sentiu algo mais. Ao olhar aquele rosto, que com os anos não tinha feito a não ser endurecer-se, amadurecer e embelezar-se de modo mais pecaminoso, sentiu uma saudade tão forte que ficou sem respiração.

Cortou o cabelo, mas o resto lhe era dolorosamente familiar. Olhando a mandíbula afiada, os olhos tão verdes que davam medo e a perigosa sensualidade de sua boca, lembrou com exatidão o que sentia ao beijá-lo, o modo em que o prazer a debilitava e a empurrava a pedir desesperadamente mais. Odiava-o por lembrar aquilo. Por confundi-la. Por convidá-la a acreditar nele. Em seus momentos de máxima debilidade um pedaço dela se perguntava se estaria enganada. Talvez não a tivesse traído. O anel de Robert parecia atestar de que Lachlan dizia a verdade.

Por que tinha que aparecer neste momento depois de dois anos de rezar e rezar para que a resgatassem de sua cruel prisão? Embora acreditasse em sua história, embora se arriscasse a pôr sua vida nas mãos de Lachlan uma vez mais, não podia partir. Não, se o que estava em jogo era sua filha.

As lágrimas alagaram seus olhos e a vergonha percorreu todo seu corpo. Preferia morrer antes que permitir que a visse chorar, condenar-se ao inferno antes que insinuar sua tortura e que soubesse quão desesperada estava por escapar. Não deixaria que entrevisse o pouco que lhe faltava para sucumbir.

Aliviada ao descobrir que a porta se abria e Margaret entrava no aposento, lutou por recuperar a compostura. Aquilo lhe brindou o necessário para recompor-se. Puxou uma profunda baforada de ar e a soltou lentamente para apaziguar as emoções agitadas que ameaçavam transbordar-se. Durante um momento chegou a pensar que ele a beijaria. Mas nunca tinha sido muito boa interpretando suas intenções e depois de dois anos de separação era virtualmente um estranho para ela. Embora em realidade não fosse.

O guarda ficou plantado atrás de Margaret enquanto esta entrava no aposento.

—Terminastes?

Lachlan respondeu antes que o fizesse ela.

—Virtualmente. Só um par de minutos mais.

Bela sentiu a ridícula necessidade de rir pela afetação de seu tom. Acreditava que essa era uma voz de sacerdote? Esse homem não possuía um pingo de piedade em todo o corpo. Inclusive com o capuz posto e a tentativa de encurvar-se para parecer inofensivo, Lachlan MacRuairi tinha todo aspecto de um bruto curtido na batalha. Um homem com um físico inegável e assustador. Era perverso que aquele fosse um dos traços que em um princípio a tivessem atraído.

Margaret se deteve em seco.

—Sinto muito. Não tinha intenção de interromper. Posso esperar…

—Não! —disse Bela, sem dar a oportunidade a Lachlan para mostrar-se de acordo. Não queria ficar a sós com ele— Como dizia o suficiente pai, já quase acabamos.

Margaret passeou seu olhar de Bela ao «sacerdote» e enrugou o cenho, surpresa.

—De acordo.

Bela temia que o guarda tivesse notado seu desassossego. Olhava-a com dureza, e teve que esforçar-se por expressar sua tranquilidade, olhando-o nos olhos sem vacilação até que fechou a porta.

Lachlan se tirou o capuz com irritação.

—Que diabos acredita que…? —o ofego de Margaret o interrompeu. Lachlan amaldiçoou para seus adentros, atravessou a Bela com o olhar como se pudesse culpa-la de sua própria ligeireza, e se voltou para sua prima— Lady Margaret —sussurrou inclinando levemente a cabeça—, sinto a surpreender. Vim tirar sua prima daqui, só que parece que se nega a vir.

Nesse momento a surpresa de Margaret se centrava em Bela.

—Do que está falando, Bela? É obvio que tem que partir. Se houver alguma possibilidade de ser livre…

Bela negou com a cabeça.

—Não posso.

Margaret olhou a Lachlan como se sua prima não houvesse dito nenhuma palavra. Bela lhe devia tanto… Estava dois anos ao seu lado, suportando os rigores daquele horrível castelo cada dia para atendê-la, lhe fazer companhia e levar as notícias que pudesse do mundo exterior. Mas aquela aliança imediata com o Lachlan, depois de tudo o que tinha feito, ou acreditavam que tinha feito, parecia um ato de traição.

—Qual é seu plano? —perguntou Margaret— Como pensa em tirá-la da torre?

—Da torre não —disse— Amanhã, no caminho. Viajará com a condessa?

Margaret assentiu, e Bela não se preocupou com corrigi-lo respeito a seu título.

—Bem. Meus homens e eu atacaremos a carruagem nos bosques nos arredores da cidade. Necessito que estejam preparadas. Não saiam até que tenha acabado tudo. Não quero que nenhuma das duas fique ferida.

Bela disse a si mesmo que era preferível fazer ouvidos surdos. Não faria mais que piorar. Mas seu coração pulsava com força.

—O que acontecerá se algo for mau? —perguntou Margaret— O oficial nos terá bem custodiadas.

—Não têm nada que temer, minha senhora. Meus homens se ocuparão dos soldados. Nem um exército completo se interporia em nosso caminho.

Talvez não, mas ela sim, faria.

—Eu não irei —disse Bela com resolução.

—Mas por que não? —perguntou Margaret, confusa— É que desejas tomar o hábito?

—O hábito? —espetou Lachlan.

Margaret assentiu.

—Querem obrigá-la a tomar o hábito.

Lachlan amaldiçoou.

Bela negou com a cabeça, temendo que as lágrimas que afogavam sua garganta se derramariam por completo se dizia uma palavra.

—Então por que não? —quis saber Margaret.

Lachlan franziu os lábios.

—Sua prima não confia em mim —disse, e tirou o anel de Robert da bolsa de couro que levava a cinto— trouxe uma prova de que me envia o rei, mas não me serviu para persuadi-la.

Não era por isso. Mas tinha razão: não confiava nele.

Margaret deu uma olhada ao anel e olhou a Bela.

—É o anel do rei, prima. Não acredito que tenha esquecido. O que outra razão poderia ter Lachlan para vir? A oportunidade vale a pena. Pode ser que não tenha outra.

O gesto firme do queixo de Bela começou a vacilar. Deus, acaso pensava que não sabia? Não havia força de vontade que evitasse que as lágrimas nublassem seus olhos. Podia lutar contra um deles, mas não contra os dois. Deixou-se cair sobre a cadeira, sentindo que fraquejavam suas pernas.

—Não posso —disse com voz quebrada.

Margaret correu a seu lado ao perceber seu desgosto. Agarrou sua mão e se ajoelhou a seus pés.

—O que acontece?

—Joan —disse Bela em voz baixa enquanto as lágrimas lhe rodavam pelas bochechas— Farão mal a Joan.

Explicou sucintamente as ameaças do Simon a sua filha e o acordo para contatar com ela se aceitasse a tomar o hábito. Tentava ignorar Lachlan, mas sentia seus olhos sobre ela.

—Filhos de uma cadela —murmurou este com raiva.

Bela ergueu o olhar para ele. Assentiu, surpresa pela compreensão que via em seu olhar.

—Sim.

Margaret lhe apertou a mão.

—Por que não me disse nada?

Bela deu de ombros.

—Não havia nada que pudesse fazer e não queria preocupar-te.

—Encontraremos uma forma de proteger sua filha —disse Lachlan— Não sofrerá nenhum dano.

Um suor gelado lhe percorreu as costas.

—Não me arriscarei. O que acontecerá senão a resgatam a tempo? Olhe o que fizeram comigo. O que fizeram com Mary. Acreditam que terão algum escrúpulo em fazer mal a outra menina? —Negou com a cabeça decididamente— Não, será melhor assim. Minha filha já sofreu o suficiente. Não deixarei que lhe façam mais dano por minha culpa. É um convento, não uma prisão. Talvez chegue a encontrar a paz com as monjas.

Ambos a olharam boquiabertos. Ela baixou o olhar, incapaz de enfrentar seus olhares.

—Maldita seja, Bela. Não está pensando devidamente. Juro-lhe que alguém se encarregará da garota. Não permitirei que lhe aconteça nada.

—Acredito lembrar que já me disseram algo parecido no passado —repôs ela erguendo o olhar par ele.

Lachlan se estremeceu. Bela não acreditava que ele fosse capaz de tal reação, mas ao que parece o tempo tinha o favorecido com um algo parecido à consciência. Franziu os lábios até que empalideceram. A maneira em que apertava os punhos e esticava seus músculos indicava que tentava conter-se. Estava claro que queria dizer algo, provavelmente a ela, mas dava a impressão de estar resolvido a controlar-se. Teria aprendido maneiras o patife? Talvez tivesse mudado mais do que parecia.

Margaret, que não tinha parado de perambular de um lado a outro enquanto eles falavam, deteve-se sobre seus passos.

—Acredito que talvez tenha a solução.

Bela não podia permitir um fiapo de esperança. Estava encurralada, sem maneira de escapar.

—Irei eu em seu lugar.

Bela dirigiu seu olhar para ela imediatamente.

—Não! De maneira nenhuma! Não permitirei que te sacrifique por mim.

—Não é um sacrifício —disse Margaret com um sorriso— É aquilo que sempre sonhei. Tinha planejado entrar contigo no convento de todas as maneiras. Simplesmente ocuparei seu lugar, Bela.

—Para sempre? —perguntou Bela— Porque assim é como será.

Margaret assentiu.

—Não mudarei de ideia. Isto é o que quero fazer.

Bela tentava controlar os batimentos de seu coração, dizer que aquilo era impossível.

—Não funcionará. Não podemos nos arriscar a que nos descubram.

—Funcionará —disse Margaret— Temos altura e portes parecidos. E acredito que não somos tão diferentes de aspecto —acrescentou olhando a Lachlan em busca de apoio.

Lachlan olhou uma e outra como se tivesse que considerar. Por que fazia que Bela se sentisse pior pelo fato de que alguma vez tivesse reparado em sua similitude? Sem dúvida, se a beleza etérea de sua prima não tinha comparação com ela no passado, no presente muito menos. Não tinha evitado o rosto de assombro que pôs ao vê-la. Se perguntava pelo preço que cobrou seu cárcere, agora tinha uma resposta. Dizia-se que aquilo não tinha importância. A beleza nunca o preocupou. Em realidade sempre supôs mais uma maldição que outra coisa. Mas o peso que sentia no peito lhe dizia que ainda tinha vaidade.

—Não, não são tão diferentes. O cabelo da condessa é mais claro e seus olhos azuis, em tanto que os seus são verdes, mas com o véu, e para quem não lhes conheça…

Margaret deu uma palmada.

—Vê? Pode funcionar.

Bela olhou Lachlan com raiva por animar sua prima, por animar a ambas. Aquilo já era suficientemente duro, e eles faziam mais duro ainda.

Mas seria possível que…?

—Teremos que mudar algo nos planos —disse Lachlan detendo-se a pensar— Preparar um acidente na estrada no lugar de um ataque direto. Criaremos uma distração e faremos a mudança enquanto dure o enredo. —Olhou a Margaret— Terá que procurar uma desculpa para não acompanhar Bela. Mas podemos fazer.

OH, Deus. Bela sentiu o inconfundível rumor da esperança em seu interior. Poderia funcionar realmente?

Poderia. Não conhecia ninguém no convento. Se conseguissem trocar uma pela outra sem que os homens do oficial percebessem… O coração pulsava a um ritmo frenético. Inclusive no caso de que alguém descobrisse a verdade, aquilo lhe daria tempo para chegar até sua filha e pô-la a salvo. Joan estava tão perto…

Apaziguou a emoção que a embargava e se voltou para a Margaret para lhe perguntar uma vez mais. Mas Lachlan se adiantou.

—Está certa, moça?

Um tímido sorriso aflorou nos lábios de Margaret.

—Jamais estive mais segura de nada na vida —disse tomando as mãos de Bela entre as suas— Aceitar os hábitos é minha vocação, querida prima. Agora poderá encontrar a tua.

Não lhe passou despercebida o olhar de soslaio que sua prima dirigiu a Lachlan. Mas Margaret se enganara ao pensar que Bela albergava algum pensamento nesse respeito. Poria seu destino nas mãos daquele patife uma vez mais para alcançar a liberdade, mas jamais arriscaria seu coração. Tivera suficientes enganos por toda a vida.

Lachlan, percebendo que a batalha estava ganha, não quis dar oportunidade de discutir de novo. Voltou a erguer o capuz, dirigiu-se para a porta e chamou.

—Estejam preparadas.

A porta se abriu e momentos depois já tinha desaparecido.

Bela ficou junto à janela, com o coração pulsando loucamente durante o que parecia uma eternidade. Ao fim, viu que a figura envolta na capa saía da torre e cruzava o pátio de armas até as portas. Teve que esperar para comprovar que a cruzava sem sofrer percalços para soltar a respiração.

Não temia por ele, mas sim por que se frustrasse sua oportunidade de escapar. Lachlan MacRuairi sempre engenhava para cair de pé. Embora seus próximos não o fizessem.


Capítulo Dez


Aquilo não funcionaria. Como poderiam distrair aos guardas o tempo suficiente para fazer a troca?

Bela ia na carruagem que a levaria do castelo de Berwick até o convento, procurando manter-se sentada enquanto aquele artefato desmantelado, que sem dúvida tinha visto tempos melhores, avançava dando tombos por caminhos cuja dureza e irregularidade aumentavam.

A carruagem era uma simples armação de madeira com um teto abobadado recoberto de couro, que deixava ver a frente e atrás, mas não dos lados. Apesar de que não houvesse uma porta que se pudesse fechar, não teve que sofrer a humilhação de ir amarrada. No caso de que as ameaças contra sua filha não refreassem seus desejos de fuga, fariam-no os vinte soldados armados que a acompanhavam.

A cada passo que davam Bela olhava ao exterior com mais insistência e seu coração pulsava com mais força, já que a campina aparecia apenas se saísse do burgo real de BerwickUpon-Tweed. Quase tinha amanhecido. O convento não podia estar muito longe. Teria algo saído errado? Talvez não esperasse que a transladassem tão cedo? Era ainda de noite quando saiu do castelo. Ou sua prima teria mudado de ideia?

O vazio que sentia no estômago se transformou em desgosto. Resignou-se a seu destino. Tinha aceitado. Permitir a esperança, ou melhor a segurança, de que recuperaria a liberdade para depois perdê-la de novo seria muito difícil de suportar. Não teria que te-los escutado. Não teria que ter acreditado. Mas Lachlan parecia muito crédulo, certo de que aquilo funcionaria. Agarrava-se desesperadamente a qualquer fio de esperança, por mais fino que fosse. Acaso não tinha aprendido nada daquela desgraçada viagem ao norte há dois anos? Como tinha se permitido o luxo de acreditar nele por um só instante?

A carruagem se deteve bruscamente. Quão único evitou que caísse do assento foi que se agarrava ao bordo do banco com todas suas forças. Ouviu vozes. Seu coração pulsou a toda velocidade, consciente de que tinha chegado o momento. Esperou um pouco antes de inspecionar a abertura traseira da carruagem e falou com o homem que tinha mais perto.

—Acontece algo? Por que nos paramos? —perguntou com medo a que advertissem a emoção em seu rosto, agradecida por estar oculto depois de um véu escuro. Certamente o soldado pensou que sua voz entrecortara pelo medo.

—Há uma carroça caída no caminho —respondeu— Nada do que tenha que te preocupar. Poremo-nos em marcha em alguns minutos. Alguns dos homens foram ajudar —acrescentou fazendo um gesto com a cabeça coberta pelo elmo.

Bela assentiu e procurou acalmar-se. Teria gostado de conhecer os planos de Lachlan e se havia algo em pudesse ajudar. Pelo que sabia, a carruagem seguia rodeado como mínimo por seis dos guardas do castelo.

Passaram cinco minutos que lhe pareceram intermináveis, à espera do desenvolvimento dos acontecimentos. Uma voz a fez voltar-se. Por seu marcado acento escocês soube que não se tratava de nenhum dos soldados.

—Este lugar não é seguro —disse o recém-chegado— Essas cordas não agüentarão muito. Se os troncos se soltarem antes que possamos endireitar o carro, poderiam cair sobre seus cavalos e sua carruagem.

Bela tirou a cabeça pela abertura.

—Qual é o problema?

O homem, que por sua singela vestimenta e constituição grande e musculosa semelhava um lavrador, pareceu surpreender-se ao ver uma mulher. Inclinou a cabeça cortesmente e adotou um tom mais receoso.

—Sinto a incomodar, minha senhora. Tivemos um acidente. A carroça que levamos os troncos caiu na colina mais adiante. Deveria sair do carro até que seus homens o separem da trajetória dos troncos.

—A dama está bem onde está —disse um dos soldados de sir John— Dêem a volta à carruagem! —gritou ao carreteiro.

A carruagem avançou alguns metros e se balançou levemente enquanto o condutor tentava fazer os cavalos virarem. Então, voltou a deter-se de repente.

—Não há espaço suficiente! —disse o carreteiro— O caminho é muito estreito nesta parte. Se ficarmos encalhados nessas sarjetas cheias de barro, terá que dizer adeus ao traslado. Tenho que retroceder.

Um grito de advertência chegou do caminho.

—Cuidado! —gritou o recém-chegado aos paralisados soldados, e olhou a Bela com cumplicidade— Fora do caminho! Romperam-se as cordas!

Bela não esperou que nenhum soldado fosse a seu encontro. Saltou pela abertura traseira da carruagem e correu para o estranho, consciente de que se tratava de um dos homens de Lachlan. Depois ouviu uma cacofonia confusa: o estrépito de madeira e rochas dos troncos ao cair sobre eles, os aterrorizados relinchos e gemidos dos cavalos, os gritos dos soldados.

O homem de Lachlan aproveitou o caos para escondê-la atrás de uma árvore. Assim que Bela pousou os pés no chão a fizeram dar meia volta e a puseram nas mãos de outro homem. Esse ela reconheceu. Não precisava nem vê-lo. Horrorizou-a saber que o identificava simplesmente pelo tato, pelo modo em que mudava o ar em torno deles, o comichão que sentia no estômago e a alteração de todas suas terminações nervosas. Que Deus a ajudasse por sua tremenda insensatez.

Subitamente sua prima apareceu junto a ela e adotou o posto que Bela acabara de deixar livre na árvore. Seus olhos se encontraram através de idênticos véus negros.

—Te cuide, prima —disse Margaret em voz baixa.

—Obrigada —murmurou Bela com lágrimas nos olhos, mas Lachlan já a levava dali.

Avançaram várias dezenas de metros até que se ocultaram em uma zona de arbustos frondosos. Lachlan a cobriu com o escudo protetor de seu peito e de seus braços e não a separou de si. Bela não pôde evitar deixar cair sobre ele, saborear sua calidez e sua força, absorvê-la. Fazia muito tempo que não se sentia a salvo. E apertada contra seu corpo, com o enorme braço rodeando-a estreitamente, era muito simples permitir um momento de debilidade, esquecer tudo que aconteceu e acreditar que podia confiar nele. Sentia-se segura e protegida pela primeira vez desde…

Desde a última vez que esteve em seus braços.

Tinha esquecido que era tão forte. Tinha esquecido o que se sentia ao estar rodeada por tantos músculos e tão duros como o aço. O coração deu um curioso tombo ao despertar a paixão feminina, tanto tempo adormecida, que se derramava por suas veias em uma corrente de ardente lava que nenhuma força de vontade era capaz de negar. Sua respiração se converteu em um ofego descontínuo que esperava que ele interpretasse como conseqüência do esforço.

Aquela traição de seu corpo não era bom. Não teria que sentir aquilo depois de tudo o que acontecido entre ambos. Não queria sentir nada por ele. A morte de seu marido não tinha mudado em nada as coisas. Lachlan MacRuairi lhe convinha tão pouco nesse momento como há dois anos.

Mas não podia separar-se dele.

—Vejamos se funcionou —sussurrou Lachlan a seu ouvido.

Bela ignorou o calafrio que percorria suas costas e tentou concentrar-se na cena que tinham diante deles. Os soldados tinham recuperado as posições rapidamente. Rodearam ao homem de Lachlan imediatamente e arrebataram Margaret dos braços. Durante um momento tenso pareceu ter uma discussão, até que Margaret disse algo a um dos soldados. Ato seguido o gigante se foi. Uma vez que libertaram o carro de sua pesada carga puderam endireitá-lo. Retiraram do caminho os troncos que tinham rodado colina abaixo em perigosa trajetória de colisão para o grupo, colocaram Margaret na carruagem, que por sorte tinha sobrevivido à investida dos troncos, e em menos de vinte minutos o grupo estava de novo a caminho para o convento.

Bela esperou que tivessem passado para falar.

—Acredita que estará bem?

Lachlan a pôs em pé e deu a volta para vê-la.

—Acredito que estará melhor que bem. Será feliz. Sua prima desejava fazer isto, Bela. Não têm por que se sentir culpada. —Não gostava da facilidade com que lia seus pensamentos. Ele não a conhecia. A conexão que havia entre ambos, se alguma vez tinha existido, quebrara-se há muito tempo— É possível que te surpreenda tanto sua decisão?

Bela agüentou o olhar daqueles maravilhosos olhos verdes que pareciam mais agudos e intensos que em suas lembranças. Tudo nele a impressionava mais do que lembrava. A escura beleza de seu rosto, sua altura, sua envergadura, a evidente musculatura de seu peito e seus braços. Deus, por que tinha que ser ele? É que Robert não podia enviar outro? Esses dois anos de encarceramento a tinham afetado mais do que teria gostado de admitir, e Lachlan já fazia que se sentisse fraca inclusive quando estava forte.

Obrigou-se a considerar a pergunta, e não as duras linhas de sua mandíbula sem barbear, nem a sensual curva de sua pecaminosa boca. Tinha razão. Não estava surpresa. Se havia alguém destinado a entrar em um convento, essa era Margaret.

—Não posso deixar de pensar que alguém descobrirá.

—Dois de meus homens ficarão vigiando o convento para assegurar-se de que não lhe aconteça nada. Está livre, Bela —disse apertando seus ombros para que prestasse atenção às palavras— Não voltará nunca mais a esse lugar.

A veemência de sua voz a comoveu profundamente. Olhou-o piscando até que suas palavras penetraram o véu. «Livre.» Por Deus santo, era livre! Tinha sonhado tanto com esse momento que agora que o tinha diante não parecia real. Ou talvez ela não quisesse que parecesse. Talvez tivesse medo de que algo a obrigasse a voltar. Era justamente esse medo que Lachlan queria neutralizar com suas palavras. Por que parecia compreender seus sentimentos melhor que ela mesma?

«Porque ele também passou por isso.» Ao perceber isso recebeu uma sacudida que reverberou por todo seu corpo. Ele também tinha sido prisioneiro. Seus olhos se encontraram em mútua compreensão. Bela queria dizer algo, mas não era capaz de encontrar as palavras.

—Obrigada —disse em voz baixa.

Parecia irônico o agradecer que a resgatasse quando achava o culpado de seu encarceramento. Bela não estava preparada ainda para absolvê-lo de toda culpa, mas a tinha salvado de que a encerraram por toda vida, e só por isso merecia sua gratidão.

Lachlan assentiu secamente e sua expressão de desconforto indicou que também ele apreciava a ironia daquilo.

—Venha —disse enquanto se internavam na floresta— Os outros estão esperando.

Por «outros» Bela acreditou que se referia a uma dúzia de homens ou, talvez vinte. Tinha que ter imaginado. Chegaram a uma pequena clareira entre as árvores junto a um celeiro, onde seus homens os esperavam com os cavalos. O grupo de resgate consistia em cinco guerreiros, embora tivesse que admitir que fosse um conjunto imponente: Lachlan, o homem que se passara pelo carreteiro, outros dois homens aos que reconhecia e um quinto, desconhecido. Bela notou que brotavam as primeiras lágrimas ao mesmo tempo em que um amplo sorriso se desenhava em seu rosto. A última vez que os tinha visto foi no castelo do Kildrummy, assim chegou a assumir que teriam sofrido o mesmo destino fatal que Nigel Bruce. Um dos momentos mais duros de seu cativeiro foi quando a obrigaram a presenciar a brutal execução de Nigel. O assassinato daquele cavalheiro dourado a perseguiria até a morte.

Correu para eles e pegou pela mão.

—Robbie! Sir Alex! Alegro-me tanto de vê-los…

Robbie Boyd e sir Alex Seton corresponderam a seu sorriso e a sua saudação. Foi sir Alex quem falou primeiro.

—Eu também me alegro de vê-la, minha senhora.

Aqueles dois anos tinham amadurecido ao jovem cavalheiro. A guerra e a tragédia tinham endurecido seu bonito e viçoso rosto de galante juventude. Cumpriram-se seus piores prognósticos a respeito do destino de seu irmão Christopher. O célebre irmão de Alex, um dos companheiros mais próximos de Bruce, foi executado pelo primeiro rei Eduardo pouco depois da batalha de Methven. Christina Bruce, que seguia cativa em um convento da Inglaterra, voltara a perder outro marido.

Robbie Boyd tinha o mesmo aspecto. Seguia sendo o homem mais forte que Bela tivesse visto. Aquele guerreiro de cabelo castanho, tão grande como uma montanha e com tantos músculos como cabiam em um corpo, parecia poder enfrentar ao exército inglês completo e ganhar a batalha.

—MacLean. Lamont —disse Lachlan apresentando aos outros dois homens— Lady Isabella MacDuff.

«Mais highlanders», pensou Bela. Bruce parecia ter se rodeado deles. Supôs que não era nada surpreendente. Os highlanders estavam acostumados a ser corpulentos e ferozes, e esses não eram uma exceção.

MacLean, o homem que a tinha tirado da carruagem, tinha o aspecto duro e selvagem de quem vive no campo de batalha. De altura similar a Lachlan, mas de compleição mais magra, o cabelo loiro lhe caía sobre um queixo que não via uma folha de barbear há tempos. Mas atrás de sua desarrumada barba, viam-se olhos de um azul penetrante e feições surpreendentemente refinadas e bem perfiladas.

O outro, Lamont, também era de altura incomum e largos ombros —começava a distinguir um padrão entre os homens de Robert—, com o cabelo escuro e curto, olhos claros e uma barba relativamente bem barbeada.

MacLean tinha mudado suas roupas de lavrador pelo colete de guerra acolchoado e as perneiras de couro negro que usavam o resto dos homens. Todos eles usavam capas de cor escura para ocultar as diversas armas que levavam. Não havia brasão nem nenhum outro sinal que os identificasse, algo compreensível, dado que estavam em território inimigo.

Bela saudou os homens e agradeceu sua ajuda.

Lachlan se dirigiu a um dos cavalos e tirou um fardo de uma das bolsas de couro atadas à sela.

—Pegue —disse lhe oferecendo vários objetos de lã—Vista-se com elas. Não são bonitas, mas estão limpas.

Bela deu uma da à roupa e ficou olhando-o com a boca aberta.

—Querem que ponha meias?

Lachlan deu de ombros como se não tivesse importância.

—Chamará menos a atenção vestida de homem, sobretudo se cruzamos com algum soldado. Te assegure de ocultar bem seus cabelos sob o gorro. —Bela quis discutir, mas o que ele dizia era um ponto razoável. Ir vestido de homem era muito melhor disfarce que um véu negro— Ali há uma antiga cabana florestal. —Assinalou um ponto entre as árvores a suas costas— Podem se trocar e comer algo. Tente descansar enquanto seja possível. Partiremos assim que anoiteça. Com tantos ingleses ao redor o melhor será correr o mínimo risco.

Bela ficou olhando-o, atônita. Acreditava que tinha compreendido.

—Não vou retornar a Escócia. Ainda não.

Todos a olharam com cara de surpresa. Exceto Lachlan.

Ele sabia com exatidão o que Bela queria fazer. Seu penetrante olhar permaneceu completamente firme. Inquebrável. Impassível. Preparado para batalha. Bela não precisava olhar no interior de seus desumanos olhos, nem seu muro de músculos de aço, para saber que não era um homem acostumado a perder.

—Não —disse Lachlan com uma voz que recusava qualquer discussão.

Aquela terminante e autoritária negação, sem mais explicação, sem tão sequer considerar o que ela tinha a dizer, doeu-lhe. Estava cansada de que os homens regessem seu destino. Deus sabia que não estavam à altura das circunstâncias. Tinha esperado esse momento durante muito tempo. Não pensava partir até que visse sua filha. E menos tendo-a tão perto. Que tentasse detê-la. Aquele mesmo orgulho que supôs ao mesmo tempo salvação e ruína para ela, despertou à vida. Ergueu o queixo e se converteu da cabeça aos pés na antiga a condessa régia que enfrentava cada patife embrutecido. Ele não era seu marido. Não tinha nenhuma autoridade sobre ela.

—Não sou um de seus homens para que me dê ordens.

A tentativa de pô-lo em seu lugar só serviu para reafirmar sua determinação. Era como se pudesse ver o muro de aço que o rodeava. Um muro que nada do que ela dissesse ou fizesse poderia penetrar.

—Incorreto, minha senhora. —Não passou despercebido o tom de brincadeira de sua grave voz— O rei me pôs no comando. Meu dever é a conduzir para um lugar seguro, e desta vez nada me impedirá de terminar isto. Se queres arriscar a vida para ver sua filha, faça quando houver outro.

«Terminar isto.» O seu coração paralisou. Não falava simplesmente da missão. Também falava dela. Queria terminar com ela. Parecia que tivesse fazendo isso desde o começo. Ignorou a estúpida pontada que sentia no peito. Ela tinha tanta vontade ou mais de livrar-se dele.

Lachlan deu meia volta e se afastou sem lhe dar tempo a protestar, como se o problema estivesse resolvido. Bela reprimiu sua furiosa réplica, consciente de quantos olhos havia postos nela. Agarrou com raiva as vergonhosas roupas e saiu em um torvelinho em direção à cabana. Mas se Lachlan MacRuairi pensava que aquilo tinha terminado se enganara por completo.


Ele sabia que Bela não retrocederia tão facilmente. Lachlan a ouviu chegar por suas costas menos de uma hora depois, enquanto descansava sentado em uma rocha junto ao estábulo, depois de sua parca refeição a base de carne-seca e tortas de aveia regada com cerveja. Voltou-se disposto a guerrear, mas nada pôde prepará-lo para a emoção que foi vê-la vestida de escudeiro.

«Ah, demônios.» Enganou-se ao pensar que não chamaria a atenção. Embora ficassem folgadas, aquelas meias finas permitiam intuir suas formas melhor que as grossas do traje de dama. Via a suave curva de seus quadris sobre suas torneadas e longas pernas, e adivinhava suas panturrilhas. A camisa larga e o espartilho de couro acolchoado tampouco ocultavam por completo o generoso volume de seus mais que femininos seios. Tinha deixado o gorro na cabana e seus loiros cabelos caíam soltos e úmidos sobre os ombros. Parecia delicada, limpa e de uma feminilidade inegável.

Bela ficou olhando-o com as mãos juntas e as bochechas acaloradas. Quando seus olhos se encontraram ergueu o queixo.

—Obrigada —disse pegando-o despreparado. Bela percebeu sua confusão, porque se explicou— Pelo banho.

Lachlan deu de ombros. Lembrou o bem que lhe tinha feito o banho quando escapou do inferno de seu cativeiro naquele fosso. Esfregou a imundície e o fedor da pele até virtualmente esfolar-se. Após isso não podia suportar estar sujo. Falcão, um dos outros membros da Guarda dos Highlanders, que além disso era seu primo, desfrutava muito burlando dele por isso. Importava-lhe uma merda. Preferia cheirar «doce como uma moça» a feder como um porco.

—Essa pequena banheira é tudo o que pudemos encontrar. Não acredito que o anterior ocupante se asseasse muito —acrescentou fazendo uma careta.

—Foi estupendo. Deixavam me banhar sempre que quisesse, mas Simon nunca permitia que esquentassem a água.

—Simon?

Bela contraiu o rosto.

—Meu carcereiro —explicou apuradamente— Onde estão os outros? —perguntou olhando a seu redor.

—Lamont e MacLean foram a vigiar o convento. Boyd e Seton voltarão logo. Estão reconhecendo o terreno. Esta parte da floresta está bastante tranquila, mas sempre tem a possibilidade de que haja trapaceiros ou caçadores furtivos. —Comestes algo? —Lachlan a olhou com dureza.

—Um pouco —respondeu Bela— Têm suficiente comida para alimentar a um exército aí dentro.

Lachlan franziu o sobrecenho.

—Está muito magra. Precisam te repor.

—Já sei que estou muito mudada, mas me abarrotar não fará que volte a ser como antes —disse Bela na defensiva.

«Maldição.» Tomou sua preocupação por crítica. Lachlan ficou de pé sem lembrar quão pequena era, até que se ergueu em frente a ela.

—Acredita que não sei? Eu passei pelo mesmo, Bela. Posso fazer uma ideia do que sentes. —Observou atentamente seu rosto— Segue gozando de uma beleza assustadora, mas já sei que as mudanças não sempre são fáceis de ver.

Bela parecia surpresa.

—Pareço formosa?

Seria boba? Tomou pelo queixo e a fez voltar o rosto.

—Parece-me a mulher mais formosa que jamais vi.

Bela abriu os olhos com emoção e Lachlan teve que fazer um esforço sobrenatural para não beijá-la. Estava tão perto… A suave fragrância de sua pele e seus cabelos recém-lavados se erguia dela para apanhá-lo. Para cativá-lo. O fazer esquecer a razão por que estava ali: cumprir com seu dever. Estar a seu lado depois de pensar tanto tempo sem ela era inclusive mais difícil do que tinha acreditado.

—Vá descansar —disse Lachlan bruscamente, afastando a mão de seu queixo— Temos um longo caminho pela frente.

—Eu não vou —afirmou com calma— Disse muito a sério. Não penso partir sem ver minha filha.

Pelo sangue de Cristo, sempre tinha que ser tão teimosa? Não tinha vontade de discutir com ela. Franziu o cenho.

—E eu também dizia a sério. Meu encargo é a conduzir até um lugar seguro, e isso é exatamente o que tenho intenção de fazer. —Ao ver suo rosto de obstinação, passou os dedos entre seus cabelos— Por Deus, Bela, tente compreender. Tenha paciência. Sua filha seguirá a salvo enquanto os ingleses pensem que está nesse convento. Não sabe que escapastes, mas cada minuto que passam em território inglês servirá para pô-la em perigo.

Para pô-los a todos em perigo. Suficientes inquietações. O preço que tinham posto à sua cabeça fazia dele um objetivo, além de que tinha muitos inimigos. Apesar da despreocupação mostrada diante de Bruce, Lachlan estava desesperado para sair dali quanto antes.

—Fui paciente durante três anos. Minha filha está a menos de vinte milhas. Vinte milhas —repetiu. A doce súplica de sua voz apelava a Lachlan sem piedade— É o mais perto que estive dela desde que a abandonei em Balvenie. Não posso partir sem ao menos tentar contato com ela. Agora que Buchan morreu está completamente sozinha, Lachlan. —Sua voz se quebrou— Só preciso me assegurar de que se encontra bem.

Lachlan não queria ouvir seu medo. Não queria ouvir seu desespero, maldita seja. Não queria baixar o olhar nem olhar seus enormes olhos azuis implorantes. Não queria lembrar a si mesmo que o espectro do marido já não se interpunha entre ambos.

Franziu o cenho. Não podia deixar-se influir. Sair à desesperada sem nenhuma informação e sem um plano seria o modo mais fácil de acabar em outra prisão inglesa. Era melhor esperar. Levar Bela a um lugar seguro e depois, quando fosse o momento adequado, fazer os planos para encontrar sua filha.

—Sinto muito. Não posso. Não é parte de minha missão.

Não era isso o que tinha que dizer. Bela desatou toda sua fúria.

—Isso é tudo o que significa isto para você, Lachlan? Uma missão a mais? Outra bolsa de prata que recolher? —Sua voz gotejava desprezo— Acreditei que teria mudado. Que após dois anos combatendo para Robert o fariam ver que há coisas pelas quais vale a pena lutar. Mas é exatamente o mesmo. O dinheiro é o único que te importa.

É obvio que o dinheiro era importante! Libertar Bela. Cumprir sua missão. Recolher sua recompensa. Pagar suas dívidas. Retirar-se em paz. Não cumprir mais que suas próprias ordens. Isso era quão único queria.

Inclinou a cabeça para olhar seu rosto, e ao ter tão perto suas formosas feições sentiu um arrebatamento de desejo impossível de conter. Não, não era isso quão único queria. Queria-a. Com a mesma intensidade, se não mais, que antes.

Apertou os punhos para não perder o controle. Tudo era culpa de Bela. Fazia que se confundisse. Não lhe importava nada, maldito seja. Não importavam Bruce nem a Guarda dos Highlanders. E é obvio, ela tampouco. Não tinha lealdade que se interpor em seu caminho. Nenhuma lealdade que pudesse traí-lo.

Era um bastardo egoísta. Um mercenário. Não muito melhor que o pirata de suas primeiras acusações. Em sua experiência só existiam três emoções com respeito às mulheres: desengano, ódio e desejo. Uma pobre bagagem ante uma das mulheres da mais alta linhagem da Escócia, que além disso se convertera em uma heroína.

Maldita seja por fazer isso com ele.

—Três anos —disse corrigindo-a. Fazia três anos que se unira aos outros membros da Guarda dos Highlanders na ilha de Skye para completar seu treinamento— E é obvio que o que me importa é o dinheiro. —Seus olhos adotaram uma expressão sarcástica e passearam pelas justas roupas de Bela com um olhar lascivo— Assim, a menos que pense em uma forma de me pagar, podemos dar por terminada a discussão.

Bela ficou sem fôlego devido ao sobressalto, com os olhos como pratos pelo assombro. Jogou a mão para trás para dar a bofetada que tanto merecia, mas antes que lhe cruzasse o rosto com ela, ele a agarrou pelo pulso e a retorceu nas costas, atraindo-a para si. Ali, corpo a corpo, Lachlan olhou seu furioso rosto, esse rosto que o tinha açoitado durante dois malditos anos, e não pôde evitar que seu corpo abandonasse a luta e desse lugar à fera da luxúria que rugia em seu interior.

Tinha sido um estúpido ao pensar que poderia controlar aquilo.

Pousou seus lábios sobre os dela. Quentes e famintos. Esfomeados, depois de dois anos de privações. Dois anos desejando a uma mulher que jamais seria dele.


Capítulo Onze


Lachlan grunhiu de prazer quando suas bocas se roçaram. Sabor maravilhoso. Doce, quente, e com o sutil aroma do vinho que ele tinha reservado para ela. Bela deu um pulo e Lachlan não soube se tinha sido de surpresa ou de protesto. Permaneceu rígida em seus braços durante um instante eterno, e ele pensou que o separaria de si. Mas então notou como seu corpo cedia e se fundia no abraço, estremecida pelo desejo.

Lachlan sentiu que uma onda de calor percorria seu corpo, invadido por desejos tanto tempo reprimidos. Ficou tenso. Palpitou. Seu coração bombeava sangue até o último rincão de suas veias. Afundou os dedos na suave umidade de seus cabelos e lhe sustentou o pescoço por trás para aproximar mais sua boca, atraindo-a para si ao mesmo tempo em que se embebia de todo seu ser. O doce aroma de sua pele flutuava no ar formando uma bruma de um aroma embriagador. Não parecia ter suficiente disso. Seu desejo superava qualquer experiência anterior. Quase se voltou louco ao ver que entreabria a boca. O sangue se amontoava em sua cabeça. Beijou-a com mais ardor, buscou-lhe a língua, reclamando cada centímetro de sua boca, e grunhiu de prazer quando respondeu timidamente a seus beijos. A inocência da reação virtualmente o desarmou.

Aquilo era muito bom. Tinha sonhado muito tempo com isso. Via-se incapaz de acalmar as perversas sensações que violentavam seu interior. Tinha muita sede dela. Seu corpo tinha sofrido excessivas privações.

Percorreu seu queixo com a boca e lhe beijou o pescoço, saboreando cada palmo de sua aveludada pele. Deus, o sabor era divino. Pura ambrosia para um homem que tinha passado tanta necessidade. Agarrou-lhe o traseiro e a empurrou para a coluna palpitante que era sua virilidade. Precisava tê-la mais perto, apertá-la contra si. Necessitava aquela íntima pressão, a deliciosa fricção dos corpos, um contra outro. Esfregou-se contra ela e ao ver que correspondia quase sai de sua própria pele. Bela pôs seu doce e feminino monte de Vênus contra seu pau e o apertou com tal intensidade que Lachlan não sabia quanto mais aguentaria. Dava-lhe tanto prazer, era uma cativante amostra do que seria estar dentro dela. Investir dentro e fora. Desenhar círculos com ela. Sentir a pressão do sangue. Encontrar o ritmo perfeito. Pela maneira em que Bela se movia ele sabia que se entenderiam à perfeição, que jamais teria sentido algo semelhante.

Afundou-se mais nela, apoiando o pau sobre sua fenda. Perfeito. Justo aí. Deu-lhe uma pequena investida. «Jesus!» Custava-lhe tanto esforço frear-se que tinha a frente perolada de suor. Parecia estar a ponto de explodir. O calor se deteve em sua virilha, concentrou-se no princípio de sua coluna e lhe fez contrair as nádegas.

Queria gozar. Queria gritar seu nome ao mesmo tempo em que colocava até o fundo e tomava cada dobra de seu corpo, reclamando-a para si com o mais íntimo dos atos. Seus movimentos se tornaram mais precipitados, esquecido de qualquer pretensão de controle. Seu corpo estava em chamas. Notou que em Bela acelerava a respiração e então soube que também ela notava: a urgência, a necessidade que invadia tanto a uma como a outro. Não havia nada entre eles. Nenhum marido que pudesse detê-la. Bela era livre. Bela era dele.

Lachlan pousou os lábios sobre a sensível e tenra pele de seu pescoço. Esfregou o nariz contra ela, repassou com sua língua e acabou devorando-a com toda a boca. Passou as mãos por seus ombros para lhe agarrar os seios. Quando aquelas suaves carnes se estenderam sobre as palmas de suas mãos, luxúria em estado puro percorreu seu corpo. Notava a força com que emergiam seus mamilos, duros como pedras. Não pôde conter-se. Eram muito extraordinários. Muito luxuriosos. Muito deliciosos ao tato. Precisava espremê-los, acariciá-los, ter em suas mãos aqueles globos de perfeita redondez e acariciar seus eretos mamilos.

O suave suspiro de prazer que escapou de seus lábios abertos o deixou transtornado. Tinha que saboreá-la. Tocar sua pele nua com a boca. Nada poderia opor-se a que beijasse as pontas daqueles suculentos e firmes mamilos e os chupasse, que os rodeasse com sua língua e os mordiscasse. Possuiria-a, e ser consciente disso fez que lhe fervesse o sangue. Ao final, depois de dois anos de desejo, Bela seria dele.

Baixou a língua pelo pescoço, entrando em seu decote. Afastou o tecido com o queixo e deu de presente aos olhos com a visão de sua pálida e cremosa pele. Algo o deixou paralisado. Afastou o tecido e abriu completamente o pescoço da camisa para ver melhor. Mas não tinha a menor duvida. Escuros hematomas salpicados turvavam a perfeição de sua delicada pele sob a o seio direito.

Marcas de dedos.

Seu coração voltou a pulsar. Com mais força. Mais alto. A paixão mudou a outra necessidade primária. A de matar. Certamente Bela notou aquilo que chamava sua atenção, porque se separou dele sobressaltada e fechou a gola de sua camisa numa tentativa de cobrir-se. Mas ele não pensava deixar passar, de modo que a agarrou pelo braço e a obrigou a olhá-lo.

—Quem lhe fez isto? —perguntou com o característico toque glacial do mais temido e perigoso homem das Highlands— Quem te fez mal?


Bela estava em outro mundo. Transportou-se a um lugar de sentimentos e sensações nunca antes visitado. O calor de seu beijo. A pressão de suas mãos. Notar seu corpo contra ela. Era muito. Gostava muito. Estava há muito tempo sozinha, e seu corpo reagia aos estímulos. Não tinha forças para lutar contra isso. Seu cárcere a tinha abrandado mais do que se atrevia a admitir. Estava fraca. Necessitada. E ele era sua força.

Mas Bela sabia que o cativeiro não era a única razão pela qual respondia com tal urgência e fome. Tratava-se de Lachlan. Ele possuía o poder suficiente para convertê-la em uma perdida atordoada. Nunca antes tinha reagido assim ante um homem. Nunca tinha sido capaz de compreendê-lo e tampouco o fazia nesse momento. A diferença era que já não se importava. Assim que se deixou levar pelas sensações e permitiu que a consumissem. Deixou que ele a conduzisse aonde quisesse. Levava muito tempo sem sentir nada e com ele voltava para a vida. Esse homem avivava sua paixão, tinha-a beijado e acariciado até que pareceu que vislumbrava o paraíso, para depois devolve-la de repente à terra: «Quem te fez mal?».

Bela uniu as pontas desfiadas da gola da camisa, desejando que seu maltratado orgulho se recompusesse com a mesma facilidade.

—Não é nada —disse tentando lhe dar as costas— Nada do que tenha que te preocupar.

Mas Lachlan não deixava que desse a volta. Agarrou-a pelo braço e a obrigou a olhá-lo.

—Eu direi se me preocupa ou não.

A fria calma de sua voz não a enganava. Estava furioso. Ergueu o olhar para olhá-lo e viu olhos verdes que mostravam o aterrorizante e malévolo olhar sem clemência de um mercenário. Tinha um aspecto tão temível e desumano como Bela se lembrava. O perigo latente que sempre flutuava a seu redor seguia ali.

Não se deu conta de que Simon tinha deixado marcas. O carcereiro tinha aparecido em sua câmara muito antes do amanhecer dessa mesma manhã. A iminente partida de Bela fazia que seu repertório de tentativas para levar-lhe à cama perdesse toda sutileza. Prometeu libertá-la a de tomar o hábito se permitisse que a possuísse, e quando ela o rechaçou passou da «petição» à ação. Apertou-lhe os seios e os retorceu com essas mãos brutais que tinha, grudou sua pestilenta boca a dela até que quase não pôde respirar e tentou penetrar entre suas pernas. Durante um instante pensou que não se deteria, que finalmente cairia sobre ela a ameaça de violação que tinha pendido sobre sua cabeça como uma tocha. Não obstante, Bela manteve a frieza, permitiu que a empurrasse contra o muro de pedra até que acreditou que a esmagaria, e ao final, conseguiu que a deixasse partir. Ao fim e ao cabo, isso não acrescentava muito aos vexames que tinha suportado durante daqueles anos. Então por que se sentia muitíssimo pior, agora que Lachlan era testemunha de sua vergonha?

Bela se enxugou as lágrimas que tinha derramado. Sentia-se como uma idiota. Que importância tinha isso?

—Meu carcereiro. Simon Fitzhugh.

Lachlan ficou olhando-a intensamente, com seu frio e horripilante olhar duro como o granito.

—Forçou-a?

A desolação de sua voz a fez estremecer da cabeça aos pés.

—Não, minha filiação traz certos benefícios —disse negando com a cabeça e com o olhar no chão. Sua tentativa de esboçar um sorriso irônico se diluiu, mas isso carecia de importância. Lachlan podia ver atrás de sua máscara de fanfarronice. Odiava a facilidade com que lia seus pensamentos— Há certas coisas que nem tão sequer os ingleses tolerariam.

—Mas quis fazer?

Bela não desejava seguir falando daquilo. Não gostava da sagaz intensidade de seu interrogatório, nem tampouco a que refletiam seus olhos quando a obrigava a olhá-lo.

—Era um bruto que me aterrorizava de vez em quando. Já passou, Lachlan. Não há nada que possa fazer para arrumar. Faz parte do passado. Quão único quero é me esquecer disso.


Essa era a verdade. Simon já não tinha nenhum poder sobre ela. Logo não seria mais que uma desagradável lembrança. Oxalá Lachlan tivesse sido tão fácil de esquecer. Ainda sentia o calor daqueles beijos em seus inchados lábios. Ainda notava aquela mão em seus seios, a frenética agitação de sua virilha, a forma em que sua barba raspava sua pele.

Como tinha conseguido desarmá-la tão rápida e completamente? Como conseguia fazê-la sentir tão fraco e vulnerável?

—Lamento, Bela. Sinto muito tudo pelo que tivestes que passar.

—Pois me leve até minha filha.

Sabia que estava jogando com seu sentimento de culpa, mas não importava.

Lachlan ficou em silêncio. Muito tempo. Seu rosto não dava pista alguma a respeito do que pensava. Bela se recompôs, tentou separar de si a lembrança daquele devastador beijo e lembrar o que em realidade importava. Deixou de lado o orgulho e fez o que a seus carcereiros teria gostado que fizesse: suplicar.

—Rogo-lhe isso, Lachlan. Levem-me junto a Joan, por favor. Preciso ver minha filha.

Seu pétreo rosto não se alterou. Nem a mais leve piscada. Nada que delatasse que seus rogos tinham algum efeito nele. Tinha-a beijado como se fosse impossível viver sem ela, mas isso não mudava nada.

—Sinto muito —disse Lachlan negando com a cabeça— É muito perigoso.

«Sinto muito?» As lágrimas começaram a rolar por seu rosto. Como podia ficar aí como se tal coisa, depois de tudo o que tinha passado, negar o único que a importava, aquilo que desejava com mais ansiedade que nada no mundo?

Odiou-o nesse momento. Odiou-o por ser forte e deixar descoberta sua própria debilidade. Odiou-o por beijá-la e a fazer acreditar que…No que tinha acreditado? Que os insensatos pensamentos que tinha albergado dois anos atrás eram certos? Que significava algo para ele realmente? Que sua missão não era a única razão pela que tinha ido procurá-la?

Bela ficou olhando-o, piscando através da cálida bruma de lágrimas. Olhava seu bonito rosto marcado pela batalha e desejava algo com todo seu ser, do mais profundo de sua alma, mas não sabia o que era. Quão único sabia era que ele não podia proporcionar-lhe. Ao que parecia sempre procurava algo nos homens que eles não podiam lhe oferecer. Subitamente, aquilo foi mais do que podia suportar. O beijo. Seu rechaço. Escapar do pesadelo do cárcere. Todas as emoções que tinha controlado, tudo o que o orgulho evitava verter começou a jorrar em um torrencial de lágrimas. Bela MacDuff, finalmente, derrubou-se.


Lachlan amaldiçoou, mas aquela vulgar imprecação só serviu para que ela chorasse com mais gana. Caiu ao chão de joelhos e abraçou a cintura, consumida pela dor, em uma sucessão de soluços estremecedores que faziam tremer seus ombros e enchiam suas bochechas de lágrimas, deixando Lachlan com a sensação de estar mais perdido que nunca. Não sabia o que devia fazer. Passou a mão pelos cabelos, como se os ratos do fosso de John de Lorn voltassem a subir por todo seu corpo. O cotun de couro que levava começou a lhe apertar muito. Não podia respirar.

Deus santo, não conseguiria agüentar aquilo. Não podia vê-la sofrer daquele modo. Cada uma de suas lágrimas parecia um ácido que corroi sua férrea determinação. Ajoelhou-se junto a ela sem saber o que fazer e a abraçou torpemente. Para sua surpresa ela não o afastou, mas sim se agarrou a ele como quem se aferra a um salva-vidas e afundou as unhas em seu peito qual garras de gato. Depois de um momento de pânico, quando notou de que não tinha nem ideia do que devia fazer, já que jamais tinha consolado a ninguém antes, encontrou-se acariciando as costas, lhe alisando o cabelo, sussurrando palavras tranquilizadoras, e ao final inclusive suplicando, algo com tal de que deixasse de chorar.

—Não chore, Bela. Por favor, não chore.

Odiava vê-la tão desventurada mas, maldita seja, sentia-se bem ao tê-la de novo entre os braços. Tinha passado muito tempo. Lembrava cada uma das vezes que a havia tocado, cada um de seus abraços. As lembranças pareciam estar gravadas a fogo em sua memória. Mas as lembranças não podiam equiparar a suavidade de seu cabelo, nem a delicada fragrância de sua pele. Saboreou a sensação de ter aquele corpo miúdo junto ao dele, com a bochecha apoiada em seu peito, apegando-se a ele com seus pequenos dedos como se fosse sua última esperança. Durante um instante quase se convenceu de que ela o necessitava. Sabia que se regozijava muito nisso mas, demônios, ele jamais tinha destaque por sua sensibilidade.

Ao final cessaram os soluços e Bela o olhou piscando através do véu de lágrimas.

—Se não me ajudares, irei sozinha.

Pelos ossos de Cristo! Menos mal que o necessitava. Embora estivesse destroçada ainda seguia sendo teimosa. Lachlan não podia agüentar mais.

—Maldita seja, Bela. Não irá sozinha a nenhum pedaço. —Bela o escrutinou, e a esperança que se refletia naquelas brilhantes profundezas de cor azul rompeu os últimos vestígios de determinação que ficavam nele.

—Isso quer dizer que me levará?

Podia comprometer-se a fazer isso? Lachlan supôs que sempre havia uma primeira vez para tudo. Mas desejava com todas suas forças que no final não acabasse arrependendo-se daquilo. Podia permitir um pequeno desvio, um muito pequeno.

—É muito arriscado a levar até ali. —Bela baixou o olhar— Mas… —E o olhou de novo— Tentarei fazer chegar uma mensagem.

O rosto de absoluta felicidade de Bela era quase mais difícil de agüentar que suas lágrimas.

—OH, Lachlan, obrigado…

—Não me agradeçam ainda —disse cortando-a— Não prometo nada. E deve jurar que fará tudo o que eu diga. Não se expor a nenhuma situação de perigo. Onde está sua filha?

— Roxburgh.

Lachlan arqueou uma sobrancelha.

—Está no castelo de Roxburgh?

Bela assentiu.

—Sim. Sua prima Alice Comyn se casará com Henry de Beaumont, a quem acabam de nomear oficial. —Provavelmente notou o interesse que transparecia sua voz— Tem alguma importância?

Lachlan negou com a cabeça.

—Não.

Mas sim, podia explicar por que transladavam da prisão Mary Bruce. Esperava que a tentativa de MacLeod e o resto de seus camaradas da Guarda dos Highlanders de libertar a Mary tivesse tido o mesmo êxito que o seu. Mas, ao contrário do que ocorria com Bela, não sabiam quando transladariam a Mary. Sabia que seus companheiros estariam ali ainda, e não queria interferir em seus planos, e tampouco daria a Bela, nem a ninguém, nenhuma informação que comprometesse a missão. Mas ao mesmo tempo as bodas podia servir de distração. Teria um monte de gente, e também de festejos.

—Quando é as bodas? —perguntou.

Bela negou com a cabeça, expressando sua curiosidade.

—Não sei —disse enquanto o olhava fixamente com aqueles olhos azuis que contrastavam com seu pálido semblante salpicado de lágrimas.

Lachlan sentiu que algo mudava nele, e notava muito acima e muito perto do coração para pensar que fosse luxúria. Em que diabos estava se convertendo?

—Diz a sério, Lachlan? Não dirá somente para me contentar? Levará-me ao Roxburgh de verdade?

Lachlan assentiu com gravidade. Não perderiam mais de um dia de viagem, mas tampouco se enganava. Cada minuto que passavam em território fronteiriço, já seja inglês ou escocês, era uma arriscada aposta. Se alguém os reconhecia… Melhor seria que se assegurasse por completo de que aquilo não acontecesse.

Embora Roxburgh estivesse tecnicamente na Escócia, os ingleses tinham abastecido as principais fortalezas da elite Escocesa.

—Iremos —disse— E já veremos o que averiguo, mas você não se aproximará do castelo. E digo sério, Bela. Entendem?

A severidade de sua voz caiu em saco furado. Bela assentiu com entusiasmo e logo o abraçou com todas suas forças. A gratidão era uma nova experiência para ele, e como lhe enchia o peito suspeitava que se não tomasse cuidado poderia acostumar-se facilmente.

O inteligente teria sido soltar-se de seu abraço, dar um passo atrás e seguir com suas obrigações. Mas jamais se comportava com inteligência quando tocava Bela MacDuff. De modo que deixou que o rodeasse com seus braços e saboreou a estranha paz que sobrevinha pelo mero feito de tê-la consigo.

Aquilo acabaria muito em breve.


Capítulo Doze


Como tinham uma comprida viagem à frente, Lachlan ordenou a Bela que descansasse enquanto esperavam o anoitecer. Uma espera que parecia interminável. Mas ao final, o último raio de sol passou entre as árvores e puderam se por em marcha. Tal como tinha prometido, MacLean e Lamont permaneceram em Berwick alguns dias mais vigiando o convento, então eram grupo formado por quatro pessoas: Boyd, Seton, Bela e Lachlan.

As viagens noturnas estavam repletas de perigos e iam a passo lento que ninguém estava acostumado, mas Boyd tinha crescido nos territórios de Marches e conhecia o terreno muito bem. Seus dotes rastreadores o permitiam cavalgar com passo firme por aquela estrada em penumbras que corria junto à margem do Tweed.

O instinto lhe dizia que deviam acelerar a marcha e sair daquela zona quanto antes, mas Lachlan era consciente da presença de Bela, muito consciente para estar tranqüilo. Sabia que teria que prestar atenção no caminho, mas na maioria das vezes se encontrava observando aquela esbelta figura que cavalgava alguns passos a frente para assegurar-se de que se encontrava bem. Ainda não acabava de acreditar que o tivesse convencido a fazer aquilo. Mas embora o espírito de Bela permanecesse intacto, ele seguia preocupado por sua fragilidade. Esse período de reclusão quase minou sua fortaleza física. Quando ele tinha recuperado a liberdade depois de seu encarceramento se havia sentido tão fraco como um gatinho recém-nascido.

Lachlan franziu o sobrecenho. Era imaginação dele, ou a cada milha que percorriam Bela se afundava mais na sela? Apesar de ser uma noite de outono bastante cálida levava uma manta aos ombros. Pôs cara de poucos amigos ao suspeitar a causa. Também ele estivera na prisão e sabia o frio que passava. Um tipo de frio que te leva a pensar que jamais voltará a estar quente. Mas o fosso gelado de seu cárcere não era uma jaula no alto de uma torre exposta a todos os elementos. Não podia fazer nem ideia. «Maldita seja.» Tinha que deixar de pensar nisso. Ficaria louco se continuasse.

Embora Bela tivesse um aspecto delicado e feminino, sua aparente fragilidade ocultava uma determinação de aço. Lachlan sempre admirou aquela fortaleza, mas nunca tinha sido consciente de sua verdadeira magnitude.

—Pegue —disse tirando o manto que levava nos ombros para dar-lhe enquanto continuavam a marcha— Começa a fazer frio.

Bela enrugou levemente a testa.

—Mas você só leva o cotun…

—Eu estou bem —insistiu— Tome.

Seus olhares se encontraram sob a pálida luz da lua, mas Bela não fez mais comentários, mas sim aceitou o manto e o passou pelos ombros. Lachlan viu o suspiro de alívio que deixou escapar ao proteger-se entre suas grossas dobras.

—Não é a primeira vez que me dá este manto—disse Bela olhando o do meio lado.

—Ah, sim? Não lembro. —Bela fez uma careta, como se soubesse que estava mentindo, assim Lachlan decidiu mudar de tema— Como te encontras?

—Estou bem —respondeu ela com firmeza ao mesmo tempo em que se levantava na sela.

Lachlan não sabia se tentava convencê-lo a ele ou a si mesma. Ficou olhando-a com vontade de acrescentar algo, mas não queria perturbá-la com lembranças ruins. No final acabou por assentir.

—Me faça saber se precisar descansar.

Bela fez gesto de protestar obstinadamente, mas ele a cortou olhando-a com dureza. Apesar da escuridão, Lachlan juraria que momentos antes de assentir suas bochechas se ruborizaram e adotaram um tom rosáceo.

—Como queira.

Não quis ir forçar, suspeitando que isso fosse tudo que poderia tirar dela.

Cavalgaram durante longas horas na noite. Embora cuidassem de evitar o contato com qualquer pessoa, e se afastariam do caminho todo o possível quando se aproximassem de um povoado, o perigo podia aparecer em qualquer canto. Lachlan se sentiria imensamente melhor quando retornassem às Highlands. Mas nesse passo era provável que demorassem um tempo a fazer.

Voltou o olhar para Bela justo no momento em que a cabeça pendia e seu corpo começava a ladear.

«Maldita seja!»

Lachlan gritou seu nome e avançou para agarrá-la. O sobressalto despertou a Bela, que deu uma cabeçada para frente ao mesmo tempo em que passava o braço pela cintura para sustentá-la. Já que era mais fácil, e que seu coração tinha padecido o suficiente, aproveitou o impulso para agarrá-la nos braços e acomodá-la sobre seu colo. Bela ficou tensa e girou a cabeça para olhá-lo na escuridão.

—O que fazes?

Lachlan franziu os lábios.

—A ti o que parece? Montará comigo —disse apertando-a mais forte contra seu peito.

Só para deixar claro, é obvio, não porque apertá-la era uma das melhores sensações do mundo. Bela abriu os olhos com surpresa.

—Isso não é necessário. Não sou nenhum menino.

—Pois não atue como tal —espetou— Está tão exausta que quase caiu do cavalo. Maldita seja, Bela, vos disse que descansasse.

—Fiz —repôs ela em protesto enquanto se deixava cair rendida sobre ele— Ou tentei. Mas estava muito emocionada.

Lachlan queria seguir zangado. Estar zangado era mais seguro, mas não pôde evitar abrandar-se.

—Por ver sua filha?

Bela assentiu com um radiante sorriso no rosto.

—Faz muito tempo que não a vejo.

Não havia nada acusador no tom de suas palavras, mas o sentimento de culpa era o mesmo.

—Sei.

Seus olhares se encontraram e toda uma vida de lembranças passou entre eles.

—Não o culpo —disse Bela em voz baixa— Já não. Tinham razão. Se tivesse levado minha filha, pode ser que ela houvesse…

A emoção de sua voz não lhe permitia continuar, mas Lachlan sabia a que se referia. Talvez tivesse compartilhado o destino da mãe, tal como aconteceu com Mary Bruce.

—Como é sua filha? —perguntou com a intenção de distraí-la.

E funcionou. O sorriso voltou para seu rosto.

—Inteligente. Tranquila. Não é que seja tímida, mas sim reservada. A cor de sua pele é de seu pai, mas seus olhos são como meus. —Bela franziu o cenho e o olhou com picardia— Mas isso não tenho que te dizer, já que a conhecestes em pessoa.

Lachlan sabia que se referia à mensagem que tinha levado a garota pouco depois de que partisse sua mãe, algo que ele não tinha admitido. Obviamente Bela não tinha acreditado. Lachlan não se incomodou em negar uma segunda vez, mas o surpreendia a fé que depositava nele depois de todo o acontecido. Tinha-o pego com a guarda baixa.

—É uma garota encantadora.

«Igual a sua mãe.»

Bela ergueu o olhar e o olhou como se estivesse adivinhando seus pensamentos. Lachlan sentiu um peso no peito, uma forte opressão motivada por uma emoção alheia a ele. Tinha esquecido aquilo. Tinha esquecido a intensidade dessa conexão e quão difícil era resistir a ela. Teve que obrigar-se a afastar o olhar.

—Descanse um pouco, Bela —disse com tanta severidade como pôde.

Ela parecia querer dizer algo mais, mas assentiu ao cabo de um momento. Não demorou muito em ficar adormecida. Momentos depois, Lachlan notou que deixava cair o corpo sobre ele e ouviu o suave e uniforme som de sua respiração. Sobreveio-lhe uma onda de satisfação. Alegrava-se de que estivesse a salvo, isso era tudo. Queria convencer-se de que desfrutava tanto agarrando-a mais forte do necessário porque assim podiam acelerar o passo. De fato, talvez tivessem que montar juntos até as Highlands. Só pela segurança de Bela e a de todos, é obvio.


Bela suspirou de satisfação e se apegou ainda mais na colcha quente, que cheirava a couro e especiarias. Sentia-se completamente segura e abrigada. De repente abriu o olho que não tinha coberto. Sua colcha era de seda, não de pele, e cheirava a lavanda, não a especiarias. Além disso, ela não tinha dormido tão quente e com uma colcha desde…

Bela se sobressaltou, mas ele a apertou fortemente entre seus braços: Lachlan.

—Tranquila, Bela. Está a salvo —disse ao vê-la desorientada.

A salvo. Sentiu que o alívio se estendia por todo seu ser como uma onda que em seguida deu lugar à gratidão. Estava em liberdade. Não era nenhum sonho. Ele não era um sonho.

Bela jogou a cabeça para trás para olhá-lo.

—Vieste me buscar. —Não estava acordada o tempo suficiente para levantar suas defesas, e a emoção e a surpresa de sua voz eram patentes— Não só desta vez, mas também antes. O resgate. Foram vocês.

O coração encolheu ao recordá-lo. Aquela noite Bela entreviu da janela aos dois homens que tinham saído correndo da torre pouco depois de que se ouvisse a explosão que a tinha despertado. Um deles olhou para cima e por um momento soube quem era, embora depois disse a si mesma que não podia ser. Ele a tinha traído. Mas agora pensava de modo diferente. Ele não a tinha traído de propósito. Acreditava no que lhe tinha contado. Um pedaço dela sempre soube.

Lachlan apertou a mandíbula. Uma estranha emoção sulcou seu rosto. Bela teria pensado que sofria por algo, no caso de não conhecê-lo tão bem.

—No mesmo momento em que vi que a colocaram naquela carreta jurei que a liberaria. Oxalá tivesse podido fazer antes.

—O que aconteceu naquele dia?

Embora já tivesse explicado sucintamente, Bela queria ouvir a história completa.

Lachlan se inquietou. Pela tensão de sua mandíbula via que aquele tema era desagradável. Parecia zangado, mas Bela sabia que não tinha nada a ver com ela, a não ser consigo mesmo.

—Já lhe contei quase tudo. Estava zangado e não estive tão atento como deveria. Um dos homens de Ross me viu perto do cais quando tentava conseguir um birlinn. Teve tempo de avisar ao Ross enquanto eu afogava minha pena em uma jarra de cerveja. Seguiram-me do botequim, e quando perceberam onde me dirigia me rodearam. Opus resistência, mas havia muitos homens e a cerveja diminuíra meus reflexos. Tombaram-me e me colocaram os grilhões. Recuperei a consciência justo quando você e o resto das mulheres saíam da capela.

—Grilhões —disse Bela— Isso era o que William tentava me dizer. Tinha visto os grilhões.

Lachlan assentiu.

—Tentei ir a seu encontro. Inclusive consegui tirar um dos grilhões sem que ninguém se desse conta. Mas Ross me vigiava de perto. Tinha motivos para desconfiar de mim. Não era a primeira vez que nos víamos.

—Eles o encarceraram?

—Durante alguns meses.

— E conseguiram escapar?

Lachlan assentiu.

—Mas naquele momento já a tinham confinado e me inteirei de que Bruce retornava a Escócia.

—Como soube? —perguntou Bela com o cenho franzido.

—Bruce tinha um espião em território inglês. Um homem que eu conhecia. Também me inteirei de que Gordon e MacKay estavam encarcerados em Urquhart. Dirigi-me para o sul para conseguir ajuda e ali me reencontrei com Bruce e o resto da Guarda de… —Deixou a frase em suspense antes de acrescentar— do exército. —Lachlan apertou mais a mandíbula— O rei demorou um ano mais em saber sua posição o suficiente para arriscar um resgate. E então, quando finalmente conseguimos chegar, fracassamos. —Negou com a cabeça com amargura— Deus, faltou tão pouco… Seton e eu estávamos já subindo a escada da torre, mas havia um soldado usando a casinha e nos ouviu chegar. Deu o alarme e Seton teve que detonar os explosivos antes do previsto. Mal tivemos tempo para sair dali. —Bela quase se alegrava de não saber até esse momento o perto que tinham estado de resgatá-la. A decepção teria sido muito mais difícil de suportar— O vi ali —disse com voz apagada, algo que Bela não soube a que atribuir.

Saber que a tinha visto em tais circunstâncias fez que se sentisse estranhamente vulnerável.

—Eu também acreditei te-la visto.

Era óbvio que tinha conseguido surpreendê-lo.

—Sério?

—Quando saía da torre olhou para cima enquanto outro homem puxava você.

—Era Seton —disse rotundamente enquanto a olhava aos olhos— Não queria ir.

—Obrigado —disse— Obrigado por vir me buscar duas vezes.

Franziu o cenho.

—Teria ido te buscar mil vezes mais —espetou ele olhando para outro lado, como se tivesse falado muito.

—Por que, Lachlan? Por que era tão importante isso para você? —Bela continha a respiração.

Parecia que ambos estivessem a bordo de um precipício. Mas Lachlan não saltou.

—Sempre cumpro com minha missão. Custe o que custar.

A missão. Cumprir com o trabalho. É obvio que esse era o motivo, e não ela. Faria o mesmo por qualquer um. A decepção lhe encolheu o coração, mas se repôs rapidamente.

Cavalgaram em silencio durante um momento. Gostava de apoiar-se contra ele e deixar-se agasalhar por sua calidez. Só de pensar no frio…

Algumas lembranças seriam mais difíceis de apagar que outras.

Quanto mais se aproximavam de Roxburgh mais se emocionava e se perguntava se Lachlan manteria sua palavra. Sabia que não gostava aquele desvio ao Roxburgh, que se arrependia de ter cedido a seus desejos, e não podia evitar perguntar se o teria feito simplesmente para contentá-la. Podia confiar nele? Tentaria fazer chegar a mensagem a sua filha realmente, ou só dizia para apaziguá-la?

Era óbvio que estava ansioso por sair de Marches. Tampouco podia culpá-lo por isso. As fronteiras seguiam debaixo de férreo controle inglês e eram um lugar perigoso para os partidários de Bruce. Mas Bela se perguntava se era isso o único que o preocupava. Jamais o tinha visto tão inquieto, nem tão sequer depois das batalhas de Methven e Dal Righ, quando os perseguiram por toda Escócia.

Entretanto, quando tentou perguntar por isso, Lachlan respondeu que é obvio que estava preocupado, que aquilo era loucura e que podiam retornar assim que recuperasse a prudência. Bela o fulminou com o olhar e não voltou a falar do tema.

A lua seguia brilhando sobre o escuro firmamento quando apareceram os primeiros fulgores do amanhecer no horizonte. Redemoinhos de névoa serpenteavam pelo curso do rio como o fôlego de um dragão. Um resplandecente manto de sereno cintilava sobre as verdes ribeiras. A sua direita, olhando ao norte, um denso arvoredo com os ramos vencidos por frondosos povoados de musgo, que pareciam as barbas de um druida, abraçava o caminho e oferecia proteção sob seus escuros braços a quem pudesse necessitar.

Se o perigo não tivesse espreitado atrás de cada árvore e curva do caminho, Bela teria apreciado a exuberante beleza verde da tranquila campina. Entretanto, em vez disso, a floresta parecia uma sinistra selva de sombras, o rio um caldeirão fumegante e o frio ar do amanhecer estava tão quieto que era horripilante.

Não obstante, o dia foi abrindo pouco a pouco. As sombras se dissiparam, obrigadas a revelar seus segredos sob o brilhante resplendor do amanhecer.

Lachlan entrou no arvoredo, conduziu-os para um pequeno promontório e deteve a marcha. Bela ficou sobressaltada. Frente a eles, do outro lado do vale, descansava o castelo de Roxburgh, estendido como uma pequena cidade sobre uma colina em forma de triângulo delimitada pelos rios Tweed e Teviot. Era uma vasta fortaleza com muros, torre e poternas bem custodiadas como Bela nunca antes tinha visto. Tinha fama de ser a mais inexpugnável da fronteira, mas jamais chegou a imaginar que fosse assim. Cinco, seis, sete… Pelo menos contou oito torres só para proteger o pátio principal.

Por Deus bendito. Como pensavam entrar em um lugar como esse sem que ninguém os visse? E como Lachlan encontraria a sua filha ali dentro?

Lachlan desmontou e consultou brevemente com Robbie Boyd antes de ajudá-la a descer do cavalo. Sir Alex se adiantou para tentar averiguar algo perguntando aos aldeãos, já que seu sotaque de Yorkshire chamava menos atenção.

—Esperaremos aqui até que volte Drag… Seton —se corrigiu.

Bela franziu o sobrecenho, perguntando-se o que quase disse, e assentiu. Mas não notou quão duro seria saber que sua filha estava tão perto e não poder fazer nada a respeito. Aquele castelo, que quase podia tocar com só alongar o braço, era uma tentação do diabo.

Felizmente, não tiveram que esperar muito tempo. Sir Alex apareceu cavalgando entre as árvores justa depois de que Bela acabasse o café da manhã de tortas de aveia e carne-seca que Lachlan tinha insistido em que tomasse, muito pesado. Não se alarmou por sua expressão séria. Acostumou-se às mudanças de humor do outrora alegre jovem cavalheiro.

A guerra tinha transformado sir Alex. O mesmo tinha acontecido com ela. A morte e o sofrimento faziam do mundo um lugar muito mais desumano.

Provavelmente Lachlan notou algo em seu rosto que Bela não soube ver.

—O que acontece?

—As bodas foi dias atrás —disse o cavalheiro. Os homens pareceram escutar como más notícias, e Bela se perguntou se teria algo que não tinham contado— Muitos dos convidados partiram —acrescentou.

«Ido?» A Bela deu um tombo o coração.

—E minha filha?

Sir Alex a olhou com compreensão.

—Não sei, minha senhora.

—Viu lady Mary? —perguntou Lachlan.

Seton negou com a cabeça.

«Mary? Por Deus bendito, não.»

—O que passou a Mary?

—Nada —disse Lachlan com urgência, mas a decepção de sua voz confirmava que ocultavam algo.

—Correm rumores de que a transladaram há algumas semanas —acrescentou sir Alex olhando-o fixamente.

Boyd amaldiçoou e Lachlan pôs má cara. Bela mudou o olhar de um a outro.

—O que acontece? O que me ocultam?

Ambos os homens trocaram olhares. Boyd deu de ombros no que parecia algum tipo de afirmação, e Lachlan explicou.

—A sua não era a única fuga planejada.

Bela conteve a respiração.

—Pensavam libertar também a Mary?

Por isso tinha topado ir? Bela acreditava que estavam ali para ajudá-la.

—Nós não, mas sim outros dos homens do rei. Mas parece que chegaram muito tarde.

Pobre Mary! O coração de Bela se compadeceu daquela garota que tinha compartilhado seu mesmo sofrimento. Era duro pensar nos amigos que seguiam prisioneiros enquanto ela tinha desfrutado de sua liberdade durante… Tinha passado só um dia?

—Mas certo que não se darão por vencidos.

—Jamais.

A firmeza de sua voz era estranhamente consoladora.

De repente um estrondo metálico procedente do castelo reclamou a atenção do grupo. Acabavam de subir as grades levadiças. De sua posição, Bela tinha uma excelente perspectiva da porta principal e da parte do interior das muralhas; apesar da hora, via-se pulular toda uma multidão. Estavam tirando cavalos dos estábulos e havia um grande número de soldados reunidos.

—Parece que alguém está a ponto de sair —disse sir Alex.

Bela sofreu um súbito ataque de pânico e se voltou para Lachlan.

—E se for minha filha?

Lachlan a olhou fixamente e falou com exagerada calma.

—Não há razão para acreditar nisso. Poderia ser qualquer um.

Bela apertou os punhos. Não fazia nenhuma graça que a tratassem como a uma desequilibrada ou uma delicada peça de porcelana que podia fazer-se pedacinhos em qualquer momento. Que seguissem a corrente. Que fossem condescendentes. É que não entendia quão importante era para ela? Nos dois anos de seu cárcere não tinha pensado em outra coisa. Não podia arriscar-se depois de chegar tão longe.

—E se fosse? —insistiu sem se importar parecer obstinada— Temos que averiguar.

Os olhos de Lachlan brilharam com aborrecimento.

—Não temos que averiguar nada. Ficará aqui. Eu irei averiguar.

Bela o olhou com cara de estupefação.

—Ides entrar no castelo agora?

O olhar de Lachlan adquiriu maior intensidade.

—Do que outro modo pensavam que faria chegar a mensagem a sua filha? É quase melhor que o faça agora, enquanto tenha essa multidão. Assim poderemos ir quanto antes deste maldito lugar —resmungou.

Bela mordeu o lábio com inquietação. De repente, lhe deixou intanquila a ideia de que Lachlan se aproximasse do castelo. Não gostava que ficasse em perigo por ela.

«Não quero que lhe ocorra nada.» Perceber isso não a surpreendeu tanto como devia. Cada vez era mais difícil mostrar-se indiferente sem o aborrecimento e a culpa que se servia para bloquear seus sentimentos.

—Como passará diante dos guardas? —perguntou.

—Deixe comigo.

Lachlan já tinha começado a dar instruções aos outros dois ao mesmo tempo em que se desprendia do arsenal de armamento que conduzia. Desabotoou-se os dois tahalies10 que levava às costas para suas espadas, desfez-se do arco e a machadinha de cabo curto da cintura, e ficou só com a lança.

—Mas… —Bela não podia deixar de olhar a formidável fortaleza.

O instinto maternal que a chamava a assegurar-se de que sua filha estava a salvo brigava com outra parte dela. Um pedaço que não era capaz de identificar, mas que dava provas de sua surpreendente força. Um pedaço que não queria deixá-lo partir, que não desejava permitir fazer algo que o pusesse em perigo. E não restava dúvida de que entrar nesse castelo seria enormemente arriscado.

Ao que parecia Lachlan advertiu sua intranquilidade.

—Confiem em mim, Bela. Sei o que faço. Basta que façam o que digo e que não se movam daqui até que eu volte.

Falava com tal autoridade que Bela tirou o chapéu assentindo como se fosse um mais de seus homens.

—Têm a carta?

Deus, como podia ter esquecido? Tinha passado redigindo-a quase o dia anterior todo enquanto eles esperavam para sair. Nem sequer assim ficou contente com o resultado. Mas tinha procurado evitar qualquer menção à libertação de seu cativeiro. Lachlan não queria correr riscos No caso de que a carta chegasse à mãos erradas. A segurança de Bela e a de sua filha dependiam de que ninguém soubesse que não estava naquele convento.

Tirou a missiva da bolsa de couro que levava a cintura e a entregou. No final as roupas de menino eram surpreendentemente cômodas e vantajosas. Ficaram olhando-se um momento depois de que Lachlan pegasse a carta. Ambos pareciam querer dizer algo, mas não sabiam o que.

Bela deu um passo em sua direção, mas se deteve. Embora não tivesse direito nem motivos para tocá-lo, isso não fazia que não sentisse o impulso de fazer. A lembrança daquele beijo ainda ardia. Mas então ele deu a volta e rompeu a conexão.

«Confie em mim.» Aquelas palavras ressonaram em sua mente enquanto observava como descia a colina e desaparecia entre as árvores. Bela tinha acreditado nele anteriormente para acabar abandonando a sua filha. Agora, igual aquela ocasião, sentia a inexplicável necessidade de confiar nele. A última vez que o tinha feito foi um erro. O que tinha nesse homem para que quisesse acreditar nele quando tudo indicava que devia fazer o contrário?


Lachlan caminhou dentre a multidão, fazendo o possível por parecer um soldado corrente. Não era nada extraordinário. Mesclou-se entre povoados desse modo, milhares de vezes. Não havia razão pela que pensar que perceberiam sua presença. Mas apesar disso estava intranqüilo. Sentia-se exposto. Muito mais que em nenhuma outra ocasião. Pelo amor de Deus, se até tinha os pêlos da nuca arrepiados!

Não entendia aquela estranha apreensão. Tinha vivido muitas situações horripilantes com a Guarda dos Highlanders durante os últimos anos. Levar a cabo missões perigosas que pareciam impossíveis sob as condições mais extremas era exatamente a razão de ser da Guarda dos Highlanders. Eram os melhores entre os melhores. Eram guerreiros mais fortes, mais rápidos, melhor adestrados e com mais experiência, homens que faziam aquilo que outros temiam. Diabos, antes nem tão sequer pensava no perigo. Mas durante os últimos dois dias havia sentido…

Demorou um instante em perceber. Demônios, tinha parecido um molho de nervos. E era um sentimento novo e inoportuno. Ele era um dos melhores guerreiros de elite da cristandade e estava parecendo um escudeiro adolescente em sua primeira batalha. Contraiu a mandíbula ao perceber a causa: Bela. Sua presença era que marcava a diferença. Fazia que se sentisse vulnerável. Diabos!

Estava caindo sob seu fluxo. Permitira que se aproximasse muito. Lachlan se zangou consigo mesmo, mas era muito tarde para fazer algo a respeito. O que tinha Bela MacDuff que o fazia perder a determinação, que levava a fazer algo com tal para deixa-la contente? Maldição, a missão não ia absolutamente como ele tinha antecipado. Supunha-se que liberta-la de sua prisão tinha que o fazer sair de seu eixo.

Levava dois anos dizendo-se que deixaria de pensar nela assim que a tivesse tirado dali, que as lembranças daquele beijo deixariam de atormentá-lo. Dizia-se que aquela estranha conexão entre ambos só estava em sua imaginação. Dizia-se que se havia encaprichado com ela simplesmente por seu fracasso na hora de protegê-la. Mas sabia que se enganara. A conexão era quão mesma. E seguia desejando-a com loucura, talvez mais que antes inclusive. Aqueles dois anos de luxúria contida cobraram seu preço. Tinha ficado patente que ignorar o desejo não funcionaria, nem tentar controlá-lo. Só uma coisa poderia funcionar. Teria que seduzi-la e chegar até o final com isso. Mas maldita seja, depois do que Bela tinha passado não podia lhe fazer isso.

Que momento para descobrir que tinha remorsos.

Lachlan fez uma careta de desgosto e procurou centrar-se na tarefa que tinha ante si. Mas não podia tirar da cabeça a sensação de caminhar com um enorme alvo à costas.

Como todos convidados tinham ido até Roxburgh para assistir à bodas, a aldeia que rodeava o castelo era um centro de atividade incessante. Tinham armado tendas em qualquer parte para albergar aos serventes adicionais e aos soldados, que tinham ultrapassado por completo a capacidade do castelo. E para cúmulo, era dia de mercado. Tinha bancas frente às carretas onde os camponeses transportavam seus produtos para vender ou permutar. Os vendedores de gado, peixe, fruta, verduras, cereais, qualquer especiaria que alguém pudesse imaginar, tecidos, joias, produtos de pele e inclusive um espadeiro gritavam as suas mercadorias.

Aquele era justamente o tipo de caos e distração que Lachlan necessitava. Seu plano, se pudesse chamar assim, era fazer-se passar por membro da comitiva familiar da esposa. Tinha feito antes com os Comyn, e supôs que assim sua tentativa de conseguir informação sobre a filha de Bela chamaria menos a atenção. É obvio, esse mesmo feito com os Comyn era o que fazia tão perigoso que se encontrasse ali. Esperava com toda sua alma não tropeçar com ninguém que pudesse reconhecê-lo. Ganhou muitos inimigos ao longo dos anos, tanto ingleses como escoceses. Em momentos como esse, a notoriedade se convertia em um inconveniente fatal.

Lachlan evitou aos homens e se concentrou nas mulheres. Entrava em conversas mundanas sobre as bodas, e quando podia, intercalava perguntas que esperava serem intrascendentes. Entradas e saídas dos nobres do castelo eram de um enorme interesse para os aldeãos. Todos falariam durante anos daquela ocasião em que tinham visto «lorde X» ou a «lady E». De modo que Lachlan não demorou em aprender os nomes daqueles que já tinham partido. Felizmente, nenhum dos Comyn parecia estar entre eles. Fofocava-se que Hugh Despenser, um dos favoritos do segundo Eduardo, partiria naquela manhã, e os aldeãos estavam ansiosos por ver, embora só de longe a tão ilustre membro da nobreza.

Confiando em que Joan ainda estaria no castelo, empregou mais tempo para continuar suas indagações. Uma das mulheres, uma faxineira que tinham mandado procurar verduras frescas para o festim do meio-dia, perguntou-lhe se era servente de alguma das damas de Comyn que estavam na torre do oficial, lhe oferecendo a primeira informação útil sobre a filha de Bela. Aquilo lhe disse por onde começar a procurar. Mas primeiro tinha que entrar no castelo.

Lachlan tinha recebido o nome de Víbora por sua habilidade para entrar e sair dos lugares sem ser visto. Mas não se tratava sozinho de ser habilidoso com as fechaduras e mover-se sigilosamente entre as sombras. Dependia também de seu engenho para interpretar a situação e tirar vantagem, de advertir as entradas e saídas que outros não viam. Caos, multidões e distrações lhe abriam tantas portas como sua espada.

Começou a avançar para o castelo, esperando a oportunidade adequada. As comprovações de acesso que se faziam às portas do castelo variavam. Em tempos de paz e a pleno dia os guardas estavam acostumados a fazer o olho cego, e era fácil entrar e sair do castelo. Mas estavam em Marches, um lugar onde rara vez reinava a paz, e Lachlan não pensava correr nenhum risco. Tinha que burlar ao sentinela para evitar perguntas. Se Templario estivesse com ele, teria sido fácil. As distrações eram o forte de Gordon. Essa era uma das razões pelas qual trabalhavam bem juntos.

Lachlan estava esperando sua entrada quando o vasto séquito de Despenser começou a sair. Os soldados obrigaram ao grupo de curiosos entre os que se encontrava a ficar de lado para deixá-los passar. Aquilo levou tempo. Embora não soubesse de quem se tratava, a importância do lorde era evidente pelo tamanho de sua comitiva. Lachlan contou não menos de uma dúzia de cavalheiros com pomposas armaduras integrais e um número de soldados quatro vezes maior, quase todos equipados com seu cavalo e ao menos uma cota de malha. Depois desse imponente desdobramento de forças ia o lorde em questão, vestido com roupas de veludo tão suntuosas como de um rei e montado num magnífico semental. Atrás de Despenser foram seus serventes pessoais, assim como um punhado de damas vestidas com roupas e joias coloridas que Lachlan imaginou que eram membros da família. As damas foram respaldadas por outra vintena de soldados. E finalmente fechavam a comitiva os carros carregados com arcas cheios de roupa, o equipamento de prata e o resto dos serventes a pé. Não lhe teria surpreendido nada ver uma coleção de bestas selvagens em jaulas douradas.

A cena era impressionante. Entre todos eles somariam um centena de pessoas que desciam o caminho do castelo até a aldeia. Uma multidão de aldeãos se apinhavam de ambos os lados à espera do grande lorde, e o grupo diminuiu a marcha para que os vissem melhor. Quando a comitiva de Despenser chegou ao mercado reduziu ainda mais o passo. Algumas das damas pareciam ter caído nas redes de um dos lojistas mais fervorosos.

Lachlan negou com a cabeça. Os ingleses e seus malditos cortejos. Sempre demoravam um século em chegar a qualquer parte. Ficaria louco se tivesse que ir nesse passo de tartaruga. Sua capacidade para deslocar-se com rapidez era uma das razões pelas que preferia trabalhar sozinho. Franziu o sobrecenho ao perceber de que levava certo tempo sem fazer. E diabos, por mais que custasse admitir, acostumou-se a trabalhar com os outros membros da Guarda dos Highlanders, em pequenos grupos, como nessa ocasião, ou todos juntos, como na recente batalha do Brander contra John MacDougall, lorde de Lorn. Derrotar ao que em outros tempos fora seu cunhado, quem o tinha torturado durante meses no fosso infernal em que o tinham encarcerado, fora mais do que gratificante, independentemente de que também Juliana o tivesse enganado. Ver morrer ao Lorn teria sido mais gratificante ainda, mas Lachlan aceitou deixá-lo com vida a pedido de Guardião. Não lhe fez nenhuma graça; mesmo assim, respeitou o acordo de todos os modos, algo que se surpreendeu fazendo mais de uma vez com outros membros da Guarda dos Highlanders.

Nunca teria esperado, mas durante dos últimos anos, seus companheiros ganharam no pulso seu exigente respeito. Se não fosse por ter que receber ordens de MacLeod, possivelmente lhe desse pena partir. Contudo, já tinha feito os serviços acordados. Aquela seria sua última missão. Iria assim que cobrasse sua recompensa. Não tinha razão alguma para permanecer ali. Não lhe pagavam por ficar até o final da guerra. Por agora Bruce tinha seu reino, ao menos até o rio Tay. Chegaria o momento da inevitável batalha contra os ingleses, mas essa não era sua luta. Lachlan permanecia à margem da política.

Bruce fazia que a coisa ficasse interessante. Protagonizou uma volta que contradizia todos os prognósticos. Ainda ficava muito para alcançar a vitória, mas tinha possibilidades.

Vendo que o grupo de Despenser seguia parado na aldeia, Lachlan se dispunha a dirigir sua atenção de novo ao castelo quando um sopro de brisa alcançou o véu de uma das damas e o levantou como se fosse um ondeante estandarte carmesim.

Um calafrio lhe percorreu as costas. Havia algo em seu perfil que lhe era familiar, o modo em que inclinava a cabeça enquanto escutava o que dizia o lojista, que sustentava junto a seu cabelo um sortido de laços de cetim. Lembrava a…

Veio o mundo em cima.

Por todos os demônios, era Joan! Tinha visto a garota uma só vez, fazia dois anos. Então era uma menina. Agora parecia muito maior que quatorze anos, e não a tinha reconhecido. Faltou pouco para que a perdesse.

Não se deteve considerar por que partia com Despenser. O único importante era que ia de Roxburgh. Cruzou a distância que os separava tão rápido como era possível fazer sem chamar a atenção. Se queria entregar a missiva de Bela, era melhor fazer enquanto Joan falava com o mercador.

Olhou a seu redor. Se pudesse maquinar alguma distração…

Seu olhar se dirigiu para a seguinte banca, no que havia um porco preso à carreta de um granjeiro. Perfeito. Desataria-o e faria como que o perseguissem para dirigir a Joan.

Ergueu o olhar. Maldição, seria melhor que se apressasse. Ao que parecia Despenser cansou de esperar. Estava girando a cabeça e dava meia volta para apressar às damas. Lachlan examinou à multidão que rodeava a Joan para determinar o caminho a seguir. Dispunha-se a desatar o porco quando reparou em duas pessoas que se moviam entre a multidão. O sangue gelou nas veias. Amaldiçoou sem poder acreditar o que viam seus olhos. Mas não havia engano possível. Apertou os punhos com força. Pelo sangue de Cristo que mataria aos dois. Esqueceu-se do porco e entrou na multidão para parar os pés antes que se consumasse o desastre.

Não conseguiu.


Capítulo Treze

Bela não podia ficar quieta. A ansiedade a consumia por dentro. Joan ainda estava no castelo? Estaria bem? Poderia encontrá-la Lachlan? O que aconteceria se o apanhavam? Não deixou de vigiar a poderosa fortaleza um só momento desde que ele partiu, como se o castelo pudesse responder a essas perguntas. De seu posto na colina distinguia as silhuetas, mas não os rostos das pessoas. A ladeira se interpunha entre ela e a aldeia, assim teve que esperar que Lachlan se aproximasse das portas. Estava segura de que o reconheceria, inclusive nesse matagal de couraças de couro e capas de lã marrom. Depois de uma hora esperando que aparecesse se perguntou se não o teria perdido.

Ou talvez… Não, Lachlan não mentiria de novo. Nisso não. Ao menos tentaria. Não era certo? Mas e se tinha aceitado ir ali só para ajudar a Mary em vez dela? Ver todos aqueles guardas custodiando as portas do castelo lhe lembrou do perigo ao qual enfrentavam. Não teria que ter pedido que se arriscasse fazer aquilo. Mas como não fazer, quando ele era o único meio de contatar com sua filha? Por Deus bendito, estava tão nervosa que não podia pensar com claridade.

Passeou seu olhar inquieto pelo pátio, onde o numeroso grupo que saía do castelo parecia ultimar seus preparativos. Onde estaria Joan? E se encontrava entre aquele grupo? Aquilo era absurdo. Lachlan tinha razão. Poderia estar em qualquer parte. Além disso, Bela não tinha visto ninguém no grupo cujo aspecto fosse familiar. Nem tampouco tinha reconhecido o brasão dos cavalheiros. Percorreu a multidão com o olhar e se deteve de repente. Um grupo de mulheres embelezadas com formosos vestidos tinham aparecido no pátio. Ficou imóvel, sentindo uma intuição que a estremeceu de cima abaixo. Uma das damas levava um vestido escarlate com um véu combinando. Bela ficou sobressaltada, com o coração em punho. Pareceu-lhe que todo seu interior saía dela e se derramava formando um atoleiro a seus pés. Cambaleou e procurou uma árvore em que apoiar-se. Suas pernas pareciam pura gelatina.

A cor preferida de Joan era o vermelho. Tinha sido assim desde pequena quando seu pai lhe disse que ficava muito bem. Ao ter o cabelo escuro, a pele clara e os lábios encarnados, essa cor atrevida lhe favorecia.

Aquela garota era Joan. Sabia que era ela.

E partia.

Joan estava montando em seu cavalo e se dispunha a seguir a longa procissão que saía do castelo. A Bela deu um novo ataque de pânico. Não podia permitir que sua filha fosse sem vê-la. Seus pés começaram a mover-se sem pedir permissão. Só podia pensar em aproximar-se mais. «Só uma olhada.» Seguiu o mesmo caminho pelo qual foi Lachlan e se escondeu entre as árvores. Um momento depois ouviu que alguém a seguia de perto. Sir Alex a agarrou pelo braço e a obrigou a deter-se. Estavam sozinhos, já que Boyd fazia turno de vigilância.

—Aonde diabos pensa que vai? —O jovem cavalheiro se turvou de vergonha ao perceber o que havia dito e tentou consertar— Minha senhora?

A Bela as blasfêmias não preocupavam. O único que importava era chegar até Joan antes que partisse.

—Minha filha está indo.

Sir Alex franziu o sobrecenho.

—Como podes estar segura?

—Vi-a.

—Desta distância é impossível —disse negando com a cabeça— Está muito longe para distinguir as feições.

A Bela pulsava o coração a toda velocidade. Não podia perder o tempo com isso. Para quando descesse todo o caminho até a aldeia, Joan teria desaparecido.

Tentou livrar-se dele.

—Não preciso ver seu rosto. Era ela. Estou segura. —Olhou com intensidade seus céticos olhos— É que pensa que não sou capaz de reconhecer minha própria filha?

Bela sabia que estava pondo voz de histérica, mas não se importou.

—Passaram alguns anos. Certamente terá mudado…

—É ela —insistiu, cansada da condescendência dos homens, embora fizessem por seu próprio bem— Sei que é ela —disse com os olhos chorosos— Rogo isso, sir Alex, devo… Tenho que lhe ver. Não me aproximarei muito.

Ficou olhando-o com uma expressão implorante, muito desesperada para envergonhar-se por suplicar e aproveitar-se da natureza cavalheiresca de Alex Seton.

Ele parecia estar em um dilema.

—MacRuairi não gostará. Queria que ficássemos aqui até que ele retornasse.

—Mas ele não sabe que ela esta indo. Não poderia localizá-la tão rápido. Não a encontrará —disse olhando por cima de seu ombro e percebendo que a comitiva começava a cruzar as portas— Por favor… —As lágrimas lhe escorregavam pelas bochechas de emoção— Não temos muito tempo. Não posso deixar que se vá. Não a vejo há três anos —acrescentou com voz quebrada.

Sir Alex amaldiçoou de novo.

—Víbora me matará —disse em um sussurro, para si— De acordo, mas não se moverá de meu lado nem meio palmo.

Bela teria se jogado sobre ele para abraçá-lo, mas não tinham tempo. Desceu pelo atalho acompanhada pelo cavalheiro de sério semblante. Quando chegaram à aldeia temeu que já fosse muito tarde. A multidão era tal que mal podia ver o caminho. Sir Alex a agarrou pelo braço antes que se afastasse mais.

—Ficamos aqui —disse com firmeza.

Bela ficou nas pontas dos pés para tentar ver algo entre a densa maré de aldeãos, mas não lhe serviu de nada. Ela era muito baixa e a multidão muito compacta. Jogou uma rápida olhada a seu redor. As roupas de menino funcionavam. Ninguém lhe emprestava atenção. Ficar ali era inútil, mas estava claro que tinha empurrado ao jovem cavalheiro até o limite de suas possibilidades. Jurou que se desculparia depois, e assim que sir Alex a soltou um pouco, saiu disparada para a multidão. Além de comentários tais como «puxa!» e «olhe este!», chegou sem incidentes ao pé do caminho, onde viu que a comitiva se deteve. Supôs que os protestos que ouvia as costas estavam dirigidas a sir Alex, a quem ouvia abrir caminho entre a multidão tentando segui-la. Ao contrário do menino que passou, o grande guerreiro atrapalhava e ninguém gostou. Uma vez que a alcançou não teve que olhá-lo para perceber a fúria que emanava.

—Você e eu teremos um longo bate-papo se sairmos desta —murmurou entre dentes.

Bela mordeu o lábio, consciente de que mais tarde se arrependeria, mas nesse momento estava muito ocupada tentando encontrar… Teve um nó no estômago. Fixou o olhar no rosto dolorosamente familiar da dama do vestido escarlate. Era sua filha. Soubera desde o começo, mas lhe ver o rosto…

O coração deu um tombo. Aquilo era completamente diferente.

Joan estava apenas a dez metros dela, concentrada em uma conversa com um mercador que sustentava um mostruário de coloridos laços junto a sua cabeça. Ao que parecia a divertiam os impetuosos esforços do velho por lhe vender algo, porque um sorriso apareceu em sua boca.

«Sorria.» Joan estava sorrindo.

Parte do medo de Bela se dissipou. Tudo indicava que sua filha estava bem. Mas Deus, quanto tinha mudado! A última vez que a tinha visto era como uma portinha, tinha os braços e as pernas longas e feições muito grandes para o pequeno rosto, com um corpo encantadoramente desajeitado, já que estava em processo de fazer-se mulher.

Mas seguia sendo uma menina. E agora…

Bela sentiu o coração apertar. Tinha o aspecto de mulher. Só tinha quatorze anos, mas parecia muito maior. Aqueles traços muito grandes de sua infância se viam agora refinados, e encaixavam perfeitamente naquele rosto de linhas amáveis com boca de coração. Aqueles grandes olhos azuis, a pele clara, os cabelos escuros e suas régias feições faziam de sua filha uma autêntica beleza.

Quanto se parecia a seu pai. De fato não se parecia em nada com ela salvo nos olhos, grandes e de cor azul intensa, como os dela. Inclusive sua compleição era diferente. Enquanto Bela era de estatura media e até pouco atrás tinha curvas generosas, Joan era alta e magra, com umas curvas de feminilidade inegável, mas de proporções mais modestas.

Deu-lhe um tombo ao coração quando notou de todas as coisas que perdera. Mais do que jamais saberia. Sua filha era toda uma mulher e ela perdeu cada um dos benditos minutos daquele processo. Embora fosse familiar em muitos aspectos, a jovem tinha ante si era em essência uma estranha.

Certamente sir Alex percebeu seu sobressalto, porque seguiu a direção de seu olhar.

—É essa sua filha?

Algo em sua voz fez que afastasse o olhar de Joan durante um momento. O cavalheiro parecia aniquilado.

—Sim —sussurrou Bela com voz grave— É essa.

—É preciosa.

A Bela não gostou da carga de masculinidade que intuiu nesse comentário.

—Tem quatorze anos —respondeu olhando-o com receio antes de voltar o olhar para sua filha.

Mas ela mesma tinha só quinze anos quando se casou com Buchan.

O cavalheiro fez uma careta.

—Parece mais velha.

Um homem se aproximou de Joan para falar com ela e as duas jovens que a acompanhavam. Bela não o reconheceu, mas por suas finas roupas e joias soube que devia ser alguém importante. O que tinha que ver esse homem com sua filha? Mal pensou isto e lhe acelerou o pulso. Joan se afastava do mercado e voltava para cavalo. Estava a ponto de partir. Perderia a oportunidade de fazê-la saber que pensava constantemente nela, que não tinha deixado de ter saudades, que sua determinação por recuperá-la jamais tinha fraquejado.

Já fora muito convencer a Lachlan para que a levasse ali, e seria impossível que acessasse a persegui-la pelos caminhos. Quando Joan se aproximou de seu cavalo, Bela ficou petrificada, como um cervo avistado por um caçador. Em um instante sua filha teria ido. Todos seus instintos lhe diziam que gritasse seu nome, que corresse para ela, abraçasse-a e a afastasse daquele pesadelo. Mas não podia. Não podia, por Deus bendito. Havia muitos soldados. Jamais conseguiriam escapar.

Bela olhou a seu redor com desespero. Tinha que fazer algo. Não podia deixá-la partir sem mais. Um sinal. Precisava lhe fazer um sinal para mostrar que estava com ela, que não a tinha esquecido. E a encontrou a poucos metros, sob a tenda de um mercador. Entenderia?

Sir Alex a agarrava pelo pulso com firmeza, não querendo arriscar-se que escapasse de novo. Mas a tenda estava bastante perto para agachar-se e… Bela agarrou a rosa pálida feita com seda que chamou sua atenção e a tirou da banca com destreza. O mercador estava tão absorto na procissão que não notou. Não obstante, sir Alex o fez.

—Maldita seja! —perjurou ao mesmo tempo em que tentava agarrá-la— Não faça nenhuma tolice.

Mas era muito tarde. O cérebro de Bela tinha deixado de funcionar assim que viu sua filha e só pensava com o coração. Aproveitou um momento de descuido e lançou a rosa de seda entre a multidão em direção a Joan, deixando-a cair um par de metros a sua esquerda.

—Merda! —amaldiçoou sir Alex ao ver o que tinha feito.

Bela tinha o olhar cravado em sua filha. Durante um instante pensou que não a veria, mas então Joan ficou paralisada como se a tivesse alcançado um raio, e apesar de que estava de perfil, Bela percebeu que empalidecia e abria os olhos com surpresa. Tinha entendido.

Infelizmente, não foi ela a única que se deu conta. Embora Bela quisesse chamar a atenção de sua filha somente, o lorde que caminhava diante dela se voltou ao perceber o movimento. Aquilo lhe pareceu mau. Não seria a rosa um símbolo mais popular do que ela pensava?

Joan dirigiu seu olhar à multidão. Bela jamais saberia se seus olhos teriam chegado a encontrar-se, nem se a teria reconhecido vestida de menino, já que nesse momento um homem a agarrou por trás, separou-a do braço de sir Alex e a levou arrastada.

Tinham-na apanhado.


Lady Joan Comyn estava feliz. Jamais em sua vida tinha ouvido adulações tão exageradas e não podia evitar sorrir ao homem que tentava lhe vender laços pelo triplo do preço que pagaria em Londres. Desde que seu pai morrera, três meses atrás, tivera escassos motivos para sorrir. De fato, fazia muito mais tempo que não tinha motivos, mas procurava não pensar em sua mãe. Era muito doloroso.

Agora sua vida era na Inglaterra. A respeito de seu novo tutor, sir Hugh Despenser, Joan não sabia o que pensar. Tinham tido pouco contato, e quando aparecia para insistir a que se apressassem, como nessa ocasião, se via mais impaciente e molesto que realmente furioso. Tinha a idade de seu pai, e sua posição como favorito do rei indicava que era um homem ardiloso, de modo que jamais pensava subestimá-lo.

Joan tentava não olhar à multidão, que se fixava em cada um de seus movimentos, mas não podia evitar sentir-se observada. Apesar de entender a fascinação que despertavam, sua natureza tímida e reservada fazia que se incomodasse quando a olhavam. Era algo compreensível, depois do que tinha passado com sua mãe. De repente, percebeu um movimento com a extremidade do olho. Ficou um momento olhando ao chão até perceber o que era. O coração lhe deu um tombo. Sentiu que sua respiração se detinha de repente. Sem pensar o que fazia, ajoelhou-se para recolher do chão o objeto e o sustentou na mão com exagerado respeito. Seus olhos se encheram de lágrimas.

«Quem..? O que significa isto?»

Voltou-se instintivamente para o lugar de onde procedia o objeto. Seus olhos percorreram a multidão em busca de uma resposta, mas havia tanta gente que era impossível adivinhar de onde o tinham jogado.

Entretanto havia um homem de cabelos dourados que se sobressaía do resto. Levava um moço magro agarrado pelo pulso e parecia zangado. Mas não era sua carranca que destacava. Alto, de largos ombros e musculoso, era um dos homens mais bonitos que tivesse visto. Embora perceber a beleza dos homens fosse algo completamente novo para ela, uma vez descoberto parecia impossível voltar atrás. No transcurso das bodas suas primas e ela tinham passado horas falando de homens.

Mas não havia nenhum que se parecesse com esse. Tinha todo o necessário para que o coração de uma jovenzinha saísse disparado, e ela não era nenhuma exceção. Calculou que teria pouco mais de vinte anos, apesar de que deixasse a barba para parecer mais velho. Pela espada que levava às costas e o simples peitilho de couro que usava como proteção soube que se tratava de um guerreiro. Mas não levava elmo, e seu cabelo loiro resplandecia como um chapéu dourado diante da resplandecente luz do sol. Com os cabelos curtos e um tanto alvoroçados, parecia que acabara de sair de um lago, e tivesse sacudido a água e ajeitado os cabelos no último momento.

Distraída pelo formoso jovem guerreiro, não notou de que a multidão tinha percebido sua reação e o objeto que a tinha provocado.

—É uma rosa pálida! —ouviu passar entre a multidão como as ondas de uma pedra atirada a um lago.

Embora os aldeãos não conhecessem a conexão que tinha aquilo com a infame lady Isabella MacDuff, todos o reconheciam como o símbolo da traição. Infelizmente também o fez seu tutor.

—O que é isso?

Joan não respondeu. Ao ver que sir Hugh entreabria os olhos soube que reconhecia do que se tratava. Deixou cair a rosa ao chão. Seu tutor observou à multidão que os rodeava como tinha feito ela antes.

—O que significa isto? Quem o atirou? —perguntou voltando-se para o mercador que tentou lhe vender sua mercadoria— fostes você?

O mercado negou com a cabeça de maneira veemente.

—Não, não, meu se… meu senhor —respondeu com voz trêmula .

A manhã tinha adotado uma aparência funesta. As pessoas, incômodas, moviam-se de um lado a outro e olhavam ao redor com receio. Joan queria ir dali quanto antes. Algo que lembrasse a seu tutor a existência de sua mãe tinha que causar problemas. Atreveu-se a olhar de novo ao jovem guerreiro. O que viu então fez que lhe gelasse o sangue. Outro homem, que também destacava por sua altura e compleição musculosa, tinha-se colocado a seu lado para encarregar-se do menino. Mas foi seu rosto o que fez tremer seu coração.

A primeira vez que o tinha visto ficou aterrorizada. Tinha sido dois anos atrás, quando o escuro guerreiro de aspecto ameaçador, com o rosto cheio de cicatrizes e aquele horripilante olhar, despertou-a de seu sono em sua câmara de Belvenie para explicar a razão pela que sua mãe a abandonara. Aquela foi a única informação direta que tinha obtido de sua mãe desde que partira, à exceção do que lhe contou William Lamberton, o bispo de Saint Andrews, em uma recente visita. O ódio que seu pai professava por essa «cadela renegada» que o tinha traído fazia deste um tema proibido.

O que estaria fazendo esse homem ali? Seria algum tipo de mensagem? Seu coração começou a pulsar desenfreadamente. Joan sabia o que tinha que fazer. Ergueu o queixo e ergueu a cabeça sem voltar o olhar para a multidão, com todo o desdém da herdeira de Buchan. Levantou o pé e o pôs sobre o lugar em que tinha soltado a rosa, esmagando as pétalas de seda com seu pequeno salto.

—Não é nada —disse a seu tutor— Nada que tenha significado para mim.

Sua mãe estava morta para ela. Tinha escolhido seu próprio caminho, igual a ela tinha feito com o seu.

Mas para ouvir o tímido lamento entre a multidão, seus olhos não se voltaram para o bonito guerreiro, nem tampouco para o aterrorizante, a não ser ao moço que havia entre ambos. Sentiu um arrepiante formigamento na pele. Havia algo estranho nele. Durante um instante seu coração deixou de funcionar, consumido pelo mais absoluto medo. Mas se obrigou a manter a calma. Ordenou a seus pulmões que inspirassem e exaltassem o ar.

«Não pode ser.»

Joan reprimiu um calafrio diante da sensação de ter visto um fantasma e retornou junto a seu tutor.


Lachlan estava tão furioso que não pensava com claridade. Ver Bela entre a multidão já era mau de por si, mas assim que agarrou a flor e entendeu o que se dispunha a fazer… Seu coração simplesmente deixou de pulsar. Por todos os infernos, não seria ele quem a matasse, a não ser ela que conseguiria acabar com ele!

E era muito provável que conseguisse se não lhe ocorresse uma forma de tirá-los dali. Rápido. Conseguiu alcançá-la segundos depois de que o fizesse Seton. Se havia alguém com quem estivesse mais furioso que com Bela, esse era Dragão. Nenhum dos companheiros da Guarda dos Highlanders tinha demorado tanto em ganhar seu respeito como o jovem inglês. Não era só porque suspeitasse que Seton tivesse entrado no grupo graças a seu irmão, mas também por sua atitude. Sua rígida adesão aos códigos de cavalaria contrastava sobremaneira com o estilo pirata de guerra que usava a Guarda dos Highlanders. A metade do tempo passeava por aí como se levasse uma lança metida no traseiro, algo que Lachlan não deixava de assinalar sempre que podia. Mas a habilidade de Dragão com a espada e seu sigilo se complementavam à perfeição com as qualidades de Lachlan, de modo que acabavam trabalhando juntos em muitas missões. Lachlan acreditava que podia confiar nele, mas teria que ter imaginado isso.

Agarrou Bela pelo pulso e a apoiou contra seu corpo, levando-lhe arrastada. Saber que estava a salvo, embora só fosse por um momento, suavizava seu aborrecimento o suficiente para evitar que lhe fizesse tudo o que tinha vontade de fazer. Mas quando aquilo acabasse… Olhou ao Seton por cima do gorro de Bela. Em sua defesa teria que dizer que o jovem cavalheiro lhe sustentou o olhar sem pestanejar. Não obstante, seu sério gesto dizia que era consciente de que aquilo lhe custaria muito caro. Sabiam comunicar-se em silêncio, depois de quase três anos trabalhando juntos em situações nas que qualquer ruído fortuito podia fazer a diferença entre a vida e a morte. Um simples movimento de cabeça e a expressão de seus olhos informaram ao Seton do que tinha que fazer. Ao ver que seu jovem companheiro tinha entendido as ordens Lachlan a deixou partir. Mas não foi fácil. Todos seus instintos lhe diziam que devia seguir agarrando-a e… e nada mais. Simplesmente seguir agarrando-a. Teve que reprimir o impulso de voltar a procurá-la quando Despenser percebeu o que tinha chamado a atenção de lady Joan. Maldita seja, aquilo não tinha boa pinta. Absolutamente.

Assim seria impossível seguir passando despercebidos. Parecia que todos os olhos da comitiva se voltaram para Bela e Seton. E havia pelo menos um par deles que expressavam reconhecimento. Lachlan conteve a respiração ao ver que lady Joan empalidecia. Seus olhares se encontraram durante um longo momento. Delataria-o? Identificaria-o como rebelde e o mandaria ao cadafalso?

Joan deu a volta e Lachlan suspirou aliviado, pensando que os informe que diziam que apoiava aos ingleses deviam ser falsos. Mas quando viu que esmagava a rosa com o salto, teve que pensar melhor. «Maldição.» O rechaço a sua mãe não podia ser mais claro. «OH, não!» Lachlan dirigiu o olhar para Bela. Seton a estava tirando pouco a pouco da multidão, mas não o suficientemente rápido. Só tinham conseguido avançar uns metros. Qualquer esperança de que não tivesse reparado em suas palavras ou em como esmagava a flor se desvaneceu assim que percebeu a expressão de seu rosto. Mal teve tempo de vê-la de perfil antes que Dragão a levasse, mas isso bastava. Lachlan sentiu uma pressão no peito. Vê-la sofrer… Maldita seja, aquilo fazia que também sofresse. Faria tudo para aliviar sua dor. Lady Joan esmagou o coração de sua mãe com a mesma firmeza com a que tinha esmagado aquela flor. Mas se enganara se pensava que isso seria pior. Um dos homens que cavalgava diante do grupo voltou sobre seus passos para investigar e percebeu a presença de Seton e Bela.

—Os dois, aonde vão?

Lachlan amaldiçoou. Nunca tinha sido uma pessoa devota, mas se tinha que começar algum dia a rogar ao céu, aquele teria sido o momento certo. O homem que acabava de olhar Bela era William Comyn, seu antigo cunhado. Infelizmente, tampouco Lachlan era um desconhecido para ele. De fato, da longa lista de pessoas desejosas de ver sua cabeça pendurando nas portas de um castelo, William Comyn era o primeiro deles. Tempo atrás o tinha humilhado no campo de batalha e aquilo perduraria por sempre na memória do orgulhoso nobre.

Lachlan ocultou seu rosto o melhor que pôde sob o capuz que levava, embora não teria servido de muito No caso de que se dirigisse a ele. Não obstante, naquele momento era Bela quem estava em perigo. Seton a cobriu com seu corpo e se voltou para enfrentar-se ao Comyn. Lachlan jamais se alegrou tanto de ouvir esse ditoso acento inglês.

—Ao castelo, meu senhor —disse— O menino deveria estar trabalhando e não ficar aqui boquiaberto admirando a beleza das damas.

Seton saudou com a cabeça e ofereceu seu radiante sorriso a Joan e ao resto das damas, que se ruborizaram de maneira encantadora. Teria que apresentar suas desculpas ao cavalheiro. Ao que parecia toda aquela galanteria e cavalheirismo não eram completamente inúteis. Entretanto, Comyn não se deixou impressionar e entreabriu os olhos.

—E você, moço? O que fazes aí, escondido?

Seton se afastou para mostrar Bela, consciente de que não ficava outra opção. Lachlan permaneceu imóvel, com todos seus sentidos em guarda, preparado para fazer quanto fosse necessário para defendê-la. Bàs roimh Gèill. Morrer antes de render-se. Esse era o lema da Guarda dos Highlanders e uma das poucas coisas em que todos estavam de acordo.

Bela tinha o olhar encurvado e o gorro lhe cobria quase todo o rosto. Isso, junto à perda de peso que o cárcere lhe tinha feito sofrer… Oxalá aquilo bastasse. Começou a sussurrar algo em voz baixa como resposta, e quando Lachlan olhou ao grupo do Despenser percebeu que lady Joan tinha o cenho franzido.

—O que disse? Fale alto, moço.

Seton deu um beliscão em Bela no ombro, um pouco mais forte do que Lachlan considerava necessário.

—Já ouvistes o senhor —disse, para depois voltar-se para ele e desculpar-se— É tímido, milord.

Lachlan sabia que aquilo não duraria muito mais. Aquele disfarce não seria convincente sob uma observação atenta.

Joan posou uma mão no braço de Comyn.

—Rogo-lhe, tio. Permitam que o moço volte para trabalho —disse deixando escapar uma risadinha— Lorde Despenser está desejando começar a viagem. Estou segura de que não foi com má intenção —acrescentou olhando a rosa esmagada.

Comyn apoiou sua mão sobre a de Joan com compreensão, mas não afastou o olhar de Seton e de Bela, que permaneciam imóveis entre uma multidão que os acolhia, contentes de que a atenção recaísse sobre outros. Lachlan tinha que desviar aquele foco de atenção, a ser possível sem dirigi-lo para si mesmo. Oxalá esse porco estivesse mais perto. Olhou a seu redor procurando algo que servisse de distração. Não tinha ao porco, mas sim galinhas. A poucos metros havia meia dúzia delas em uma jaula e um galo enorme preso a esta. Centrou nele seus esforços e foi aproximando-se da corda.

Comyn, ainda com o olhar fixo em Bela e Seton, abriu a boca para dizer algo, e Lachlan soube que sobrava pouco tempo. Fez como que se tropeçasse e cortou a corda com uma adaga escondida na mão ao mesmo tempo em que caía sobre a mesa que estava atada. Uma mesa cheia de cestos com ovos.

—Meus ovos! —gritou o granjeiro.

Diabos, «seus ovos» escorreram por todo o rosto. Lachlan ia limpar-se, mas depois se deteve. Em lugar disso melou o rosto com o feno que servia de ninho aos ovos nos cestos. O disfarce não podia ser mais incômodo.

Não lhe escapava o absurdo da situação. A farsa daquele dia adquiria proporções dramáticas. A multidão, surpresa por aquela repentina interrupção, começou a rir a gargalhadas. Não teria que perguntar o motivo, vendo-se ali no chão, coberto de palha e ovos. Lachlan se levantou e fez como se cambaleava.

—Sinto muito —disse atropeladamente, esperando dar a impressão de que seguia bêbado depois da noite de celebrações.

Mas o mercador já não prestava atenção. Lachlan ouviu vários cacarejos excitados e, segundos depois, os gritos mais desesperados inclusive do granjeiro, que entrava na multidão atrás da ave em fuga.

—Meu frango! Onde está meu galo?

—É essa coisinha brincalhona que tem em cima dos ovos! —gritou uma mulher entre a multidão.

Era perfeito. A multidão começou a rir com mais fervor, trocando uma enxurrada de piadas picantes a custas do pobre granjeiro. Mas Lachlan não pensava correr nenhum risco. Voltou a ficar em pé como pôde, estatelando-se dessa vez contra o marco de madeira da jaula. As galinhas se dispersaram. As pessoas que estavam perto se apressaram às capturar e a multidão se dispersou criando a confusão. Os aldeãos, antes cuidadosamente dispostos em fila, alagavam as ruas.

Lachlan se levantou finalmente e cambaleou como se estivesse enjoado. Uma mulher que havia junto a ele o agarrou pelo braço para sustentá-lo. Olhou para onde estavam Bela e Seton, mas tinham conseguido escapulir-se entre o caos. Felizmente, Comyn não pareceu perceber. Afastou-se do grupo de Despenser junto ao resto, para observar as galinhas que seguiam cacarejando por todos os lados. Lachlan não ficou para ver o que ocorria quando restaurasse a ordem. Murmurou umas palavras de agradecimento à mulher que o tinha ajudado a manter-se em pé e lhe pôs umas moedas na mão.

—Pelos ovos —disse.

E então fez aquilo que sabia fazer melhor: esfumar-se.

Ou ao menos acreditava nisso.

Capítulo Quatorze


Cavalgaram em galope para o norte com a intenção de deixar trás a seus perseguidores no caso de que tivessem decidido lhes caçar. Entretanto, as batidas de reconhecimento sempre retornavam sem notícias. Ao que parecia tinham conseguido escapar.

A boa sorte se aliou a eles e Bela sabia. Jamais teria imaginado. Pensava que sua filha seria quão única repararia na rosa. Não era mais que um adorno para um vestido. Não teria por que ter chamado tanto a atenção. Bela deixou cair os ombros. Não tinha sentido. Não havia desculpa possível que aliviasse a temeridade daquilo que tinha feito, colocando em perigo não só a si mesma, mas também a Lachlan e a sir Alex. Estavam furiosos com ela e tinham todo o direito de estar. E o que era o que tinha conseguido? Não tinha feito mais que obrigar a presenciar como sua filha a repudiava publicamente. «Nada que tenha significado para mim.» Parecia que aquelas palavras estavam destinadas precisamente a ela, e cada uma delas doía como uma flecha cravada no coração.

Havia alguma explicação. Não queria, não podia aceitar a perda de sua filha. O ato de coroar a Bruce já fora. Não podia custar também Joan. Bela queria fazer algo importante. Posicionar-se a favor de algo em que acreditava. Cumprir com seu clã e com seu país. Era isso tão ruim? É que não tinham posto a prova seus elevados ideais suficientemente? Talvez Joan não pensasse isso na realidade. Talvez não fosse mais que uma amostra de lealdade a seu tio e aquele homem que Bela agora identificava, sir Hugh Despenser, certamente seu novo tutor. Mas não parecia um ato falso. Deu a impressão de ser bastante real. Não saberia a verdade até que se encontrasse cara a cara com sua filha. Mas conseguiria fazer algum dia?

Cravou o olhar em Lachlan. Em suas costas, de fato, já que cavalgava atrás dele. Lachlan poderia ajudá-la. Embora nesse momento não pensasse em pedir. Estava tão zangado que nem sequer a olhava. Cada vez que tentava falar com ele respondia com uma brusca resposta monossilábica e voltava o rosto com frieza. A proximidade que sentia quando montavam no mesmo cavalo estava mais que esquecida. Bela contemplava a ideia de deixar cair da sela para que ordenasse voltar a montar com ele.

Sir Alex não a tratava com muita mais deferência, sobretudo depois da parada para dar de beber aos cavalos, em que Bela presenciou a violenta discussão que aquele teve com Lachlan. Por isso viu, o jovem cavalheiro tinha recebido um severo corretivo que demoraria em esquecer. Sir Alex agüentou em silêncio, com o rosto avermelhado pelo aborrecimento, aceitando cada golpe sem pronunciar uma só palavra em sua defesa.

Robbie Boyd era o único que falava com Bela usando frases completas, mas inclusive ele parecia decepcionado com ela. Aquilo fez que a viagem se convertesse em uma travessia longa, fatigante e solitária. Tinham percorrido uns trinta quilômetros desde que saíram de Roxburgh e fazia algumas horas que o prometedor dia se enchera de sombras. Quando Lachlan deu a ordem para deter a marcha mal podia manter-se erguida na sela. Os insucessos da manhã, a dura comitiva, a falta de dormir e a fome tinham acabado por derrubá-la.

Pararam em uma clareira ao pé de uma pequena montanha. Apesar de ser noite, Bela distinguiu à luz da lua um arroio que descia pela colina até o rio Tweed, que estava atrás deles. Não obstante, surpreendeu-lhe mais o forte aroma de brasas que levava a suave brisa. Quando Lachlan a ajudou a descer do cavalo se aventurou afazer outra pergunta, apesar do rosto de cão que tinha.

—Onde estamos?

—Peebles.

Bela abriu os olhos com surpresa. Tinham viajado um bom trecho. Peebles era um burgo real a uns trinta quilômetros de distância de Edimburgo. Virtualmente tinham saído de Marches, mas essa parte da Escócia seguia sob controle dos ingleses e o castelo do Peebles estaria sem dúvida protegido pelos soldados do rei Eduardo. Até esse momento tinham evitado cautelosamente cidades e aldeias de qualquer tamanho.

—É seguro?

Lachlan entreabriu os olhos até fazer deles uns brilhantes e perigosos sulcos de cor verde radioso. Por Deus, como feria aquele olhar atravessado!

—Muito menos perigoso que seu showzinho no mercado esta manhã.

Bela conteve a respiração. Sentia o calor que emanava a ira a ponto de desatar. Quase desejava que o fizesse para acabar com aquilo quanto antes.

—S…

«Sinto muito» esteve a ponto de dizer. Mas ele a cortou em seco.

—Temos que trocar os cavalos e tu descansar.

Lachlan partiu antes que Bela pudesse discutir-lhe Por ser uma pessoa que se negava a liderar a seu próprio clã, aquele guerreiro atuava como um autêntico líder. Sem dúvida tinha aperfeiçoado sua habilidade para falar mediante ordens e decretos.

Bela se sentou a comer enquanto os homens se encarregavam dos cavalos. Mas inclusive aquilo lhe custava um esforço enorme. A carne-seca estava dura e demorava uma eternidade em mastigá-la. O fazia com supremo cuidado, já que absolutamente desejava causar mais problemas engasgando-se.

Estava mordiscando uma torta de aveia quando viu que Lachlan e Boyd desapareciam na escuridão. Alguns minutos depois sir Alex caminhava para ela com um odre na mão.

—Pegue—disse, e lhe ofereceu a bebida— Certamente é mais forte do que está acostumada, mas lhe ajudará a relaxar. Foi um dia bem longo.

Dizer isso era sem dúvida amenizar. Bela aceitou o odre e o levou a boca, fazendo uma careta quando o ardente líquido de cor ambarina passou por sua garganta para logo lhe queimar o estômago. Mas aquele calor sentava bem. Depois do primeiro gole, os dois seguintes entraram com muita mais facilidade.

—Será melhor que me devolva isso —repôs Seton com um deixe de sarcasmo—, ou me acusarão de a embebedar.

Bela mordeu o lábio olhando-o da borda da rocha sobre a que estava sentada.

—Devo-lhes uma desculpa —disse ruborizando— Me aproveitei de sua amabilidade, e sinto muito.

Seton a olhou fixamente e logo deu de ombros com indiferença.

—Esta guerra afastou muitas mães de seus filhos. Sei que se a minha pudesse ver de novo a meus irmãos, não teria nada que a detivesse. —Sir Alex não tinha perdido só ao famoso sir Christopher pela barbárie de Eduardo, mas também a outro irmão. Ambos foram enforcados, baixados e esquartejados em Carlisle pouco depois da batalha de Methven— Ver sua filha depois de tanto tempo tem que ser difícil —disse voltando para ela.

—Sim —respondeu Bela com a voz quebrada ao lembrar a rosa esmagada— Mais difícil do que esperava. Temo-me que não pensei com claridade. Sinto ter causado tensão entre você e Lachlan —acrescentou depois de um momento.

Seton soltou uma gargalhada.

—Diabos, sempre há tensão com MacRuairi. Nunca fui amigo dele. Nem Tampouco de Boyd, já que falamos disso —acrescentou como caindo na conta.

Bela ficou circunspeta.

—Mas lutastes juntos durante todos estes anos, e pelo que vejo trabalha bem.

Bela tinha percebido que era certo. Havia sutis referências a respeito da viagem que tinham feito ao Kildrummy com sir Alex e Boyd há dois anos. Pode que a relação não fosse amistosa, mas ao menos não se percebia a animosidade que estava acostumado a ter entre os homens. Dava a impressão de que os guerreiros estavam mais cômodos e relaxados que antes. Bela não passava por cima das olhadas, os gestos, as formas de comunicação silenciosa que mudavam sem pensar, como se pudessem ler a mente do outro. Trabalhavam como uma equipe, e tinha razões para acreditar que caíam melhor uns aos outros do que eles mesmos pensavam.

Sir Alex deu de ombros.

—Era necessário, mas não seguirá sendo por muito tempo.

Bela arqueou as sobrancelhas.


—A que te refere?

E o soltou de repente.

—MacRuairi irá embora.

Caiu o mundo em cima.

—Vai? —repetiu Bela.

«Mas eu pensava que…»

—Acreditava que sabia. Virtualmente acabou os serviços acordados com Bruce. Seu resgate é sua última missão para o rei.

—Entendo —disse com uma pontada no peito.

Mas não entendia. Sentia uma queimação em seu interior. «Vai» Lachlan ia embora. Deus, mas por que lhe surpreendia tanto? Em nenhum momento havia dito que lutava por algo diferente ao dinheiro. Contudo, Bela albergava esperanças de que… de que com o tempo tivesse mudado de parecer.

Esperava que tivesse mudado.

E por que? Não lhe convinha em nenhum aspecto. Ou sim? Não tinham nada em comum. Pertenciam a dois mundos diferentes. Ela acreditava que valia a pena lutar pelas coisas nas que alguém acreditava, e ele não pensava que houvesse mais pelo que lutar que a si próprio. Assim havia dito. Ela já sabia. Mas em seu foro interno se negava a acreditar. Um pedaço dela pensava que não era tão indiferente como parecia, nem respeito a ela nem em relação à guerra.

Pouco depois Lachlan voltou a aparecer ao fundo da clareira e ficou olhando-os. Bela viu como apertava as mandíbulas inclusive daquela distância. Quando se dirigiu para eles deu uma vontade enorme de sair correndo.

—Há um abrigo do outro lado da colina. Não é grande coisa, mas posso arrumá-lo e fazer que seja suficientemente cômodo para que durma nele.

Ficou branca. O pouco que tinha comido ameaçava voltar. Sua frente perolou de suor. A ideia de dormir naquela pequena e escura cabana de pastores de pedra… A maldita jaula! Por todos os céus, acaso alguma vez poderia livrar-se dela?

—Não! —protestou— Faz uma noite agradável. Acredito que preferiria dormir ao relento —acrescentou depois, conseguindo controlar o pânico.

Lachlan a olhou fixamente, com uma expressão dura e impenetrável. Mas algo lhe dizia que percebia sua reação e sabia exatamente como se sentia. E o mais significativo de tudo, que o compreendia.

Seus olhos se alagaram em lágrimas. Aquela inesperada compreensão a tinha pego com a guarda baixa. Podia lutar contra o aborrecimento, mas aquele pouco de sensibilidade e amabilidade derrubava suas defesas e a deixava mais vulnerável do que nunca. Tão vulnerável que temia não poder proteger-se. Felizmente, Lachlan não a pressionou.

—Muito bem. Procure dormir. Sairemos ao amanhecer.


Lachlan queria poder seguir seu próprio conselho. Os guerreiros tinham que ser capazes de dormir em qualquer lugar por um breve espaço de tempo, mas naquela noite seu adestramento não tinha efeito. Estava transbordando pela inquietação, e também pelo aborrecimento. Nem tão sequer mergulhar no rio tinha ajudado. A necessidade premente de tirar os de Roxburgh e passar a zona fronteiriça de maneira segura o fazia que se concentrasse no objetivo, mas assim que detiveram a marcha, as emoções voltaram para ele com toda sua força. Não teria parado por nada do mundo, mas sabia que Bela precisava descansar e a pesar do perigo não queria pressioná-la. A única razão pela que evitava lhe dizer tudo o que pensava a respeito de sua incursão pelas ruas do Roxbugh daquela manhã era que Bela mal podia manter-se em pé.

Ficava furioso só de pensar nisso. Mas a raiva não lhe preocupava. Estava familiarizado com ela. O que não gostava era do outro sentimento. Estava completamente seguro de que se tratava de pânico. Se tivesse acontecido algo a Bela… Merda, aí estava de novo. Aquele sentimento. Aquela corrente instantânea de medo gelado misturado com impotência. Supunha-se que não afetava nada. Levara anos tornando sua pessoa impenetrável. Invulnerável. Alheio a tudo o que acontecia. Mas ela estava mudando isso e não gostava absolutamente. Graças a aquilo Deus estava a ponto de acabar. Em dois dias, três quando muito, reuniriam-se com Bruce em Dunstaffnage. A partir de então Bela MacDuff passaria a ser responsabilidade do rei. Mas havia alguma razão pela qual pensar nisso não fazia mais que aumentar seu aborrecimento.

Lachlan ouviu um ruído a suas costas e ficou paralisado. Instintivamente agarrou o punho da adaga que levava na coxa, disposto a dar meia volta e lançá-la assim que ouvisse outro ruído. Mas ouvir com tal claridade o ranger das pegadas sobre as folhas o fez duvidar. Embora as pisadas fossem ligeiras, a pessoa em questão não fazia nenhuma tentativa para ser sigilosa. Ficou imóvel de novo, dessa vez pelo aborrecimento. Deu a volta lentamente, apertando os punhos ao vê-la aproximar-se. Quando Bela chegou até ele o sangue pulsava com força em suas veias. Sentia-se como um leão enjaulado a ponto de saltar sobre sua presa. Um só passo a mais e estaria em cima dela.

—Volte para a cama —disse com uma voz que era um rouco grunhido.

Bela não sabia o perigo que enfrentava. Cada uma das pulsações de seu coração era uma investida, seus músculos estavam à espreita e todas as terminações nervosas de seu corpo tinham despertado à vida. Lachlan estava a ponto de perder o controle e não confiava em si mesmo naquele momento. E menos tendo-a tão perto.

Deus, inclusive podia cheirá-la. O fresco aroma de seu sabão se mesclava com a brisa noturna. Seguia vestindo com as roupas de moço, mas tinha jogado aos ombros um par de mantas para manter-se quente. Infelizmente as mantas não serviam para ocultar as marcadas curvas femininas que havia debaixo delas.

Bela o olhou com receio, mas não captou a advertência.

—Não podia dormir —disse olhando-o com o rosto banhado pela tênue luz da lua— Queria me desculpar.

Lachlan apertou os dentes.

—Por romper sua promessa, desobedecer minhas ordens ou estar a ponto de fazer que matassem a todos?

Lachlan apreciou o rubor de suas bochechas visíveis com aquela escassa luz.

—Por tudo. Não sei o que me aconteceu. —Bela brincava com as mãos. Não lembrava tê-la visto fazer isso antes, e notou de quão afetada estava. Algo que absolutamente o fazia sentir melhor— Estava esperando que passasse pelas portas do castelo quando a vi. Não via seu rosto, mas sabia que era Joan. Tinha que a ver de perto. Acreditei que não a encontrariam.

—Estava a ponto de lhe passar a nota quando a vi.

—Sério? —disse abrindo os olhos por causa da surpresa— Não acreditava que… —Bela mordeu o lábio— Quando sobre Mary, pensei que talvez aceitou ir a Roxburgh por motivos diferentes.

Não tinha acreditava nele. Lachlan não lhe tinha dado nenhum motivo para que fizesse, mas doía igualmente.

—Sou fiel a minhas promessas, Bela. Pode ser que não as faça muito frequentemente, mas quando as faço, cumpro-as.

Bela assentiu.

—Sinto muito.

—Posso entender sua vontade de vê-la. Mas que diabos lhes passou pela cabeça para atirar aquela flor?

Bela estremeceu e mordeu o lábio implorando compreensão em silêncio.

—Não sei. Não acreditava que alguém fosse entender, salvo ela. Não sabia que era um símbolo tão conhecido. Não podia permitir que partisse sem mais.

—Não sabiam que é o símbolo mais conhecido da rebelião?

Negou com a cabeça.

—Como saberia? —disse em tom desafiante.

Lachlan viu como suas mãos chegavam até os ombros de Bela sem ser consciente disso e começava a sacudi-la, deixando escapar todo seu medo e frustração em um só estalo de raiva furiosa.

—Maldita seja, Bela, poderiam a ter capturado! Vocês sabe quão afortunada foi de que Comyn não a reconhecesse? Pelo amor de Deus! No que estava pensando?

—Não estava pensando —disse escapando dele— Não têm por que gritar. Já disse que sinto muito. E além disso, por que te importa?

Lachlan teria se alegrado de que seguisse lutando, apesar de tudo que tinha passado. Teria que se alegrar muito. Mas nesse momento não estava de humor para que o desafiassem. Bela jogou a cabeça para trás e ficou olhando com sua desafiante expressão de condessa orgulhosa.

—Ou é que te preocupa que pusesse sua pele em perigo agora que estás tão perto de seu objetivo?

—De que diabos está falando?

—Esta é sua última missão, verdade?

—Quem…? —começou a perguntar até que notou exatamente quem tinha sido— Seton.

Esse maldito cavalheiro e ele deveriam manter outro papo.

—Era um segredo?

—Não.

Simplesmente estava esperando levá-la até Bruce para contar-lhe.

—Então é verdade?

—Sim, é verdade.

Bela o olhava como se esperasse que desse alguma explicação. Não tinha por que lhe contar nada. Não lhe devia nenhuma explicação.

—E já está. Simplesmente irá sem olhar atrás?

Esse era justamente o plano, maldita seja. Chiavam-lhe os dentes.

—O acordo era lutar durante três anos, e esses três anos estão no fim.

Bela não parecia acreditar no que ouvia.

—Assim recolherá seu dinheiro e voltará a vender sua espada ao melhor valor?

Seu rosto escureceu ao ouvir o desprezo com que falava.

—Tenho dívidas a pagar. —Estava claro que não poderia devolver a vida a quem tinha morrido por ele, mas sem dúvida poderia recompensar suas famílias. O dinheiro que lhe daria Bruce era o último pagamento de uma dívida que jamais poderia saldar. Claro que o que ele fizesse com o dinheiro não era de sua incumbência— Uma vez que pague minhas dívidas acabarei com tudo isto.

—Retornará ao seu clã?

Lachlan não passou despercebido o tom de esperança de suas palavras.

—Não —disse entre dentes.

—Não entendo. O vi junto com seus homens. É um bom líder. Por que foges sua responsabilidade?

Um bom líder? Lachlan conhecia quarenta e quatro homens que poderiam negar isso.

—Deixe estar, Bela.

Algo em sua voz a advertiu porque optou sabiamente por não se aprofundar na ferida.

—E então por que não fica e luta para Robert?

Essa não era sua luta, maldita seja. Talvez não se importasse quem ganhasse ou perdesse.

«Não me importa.»

Mas sabia que aquilo não era certo. Não era nem a metade de indiferente do que teria gostado de ser. De alguma forma e sem que ele se desse conta, tinham-lhe apanhado o ardor e a emoção da impossível, histórica e legendária ascensão de Robert Bruce de entre as cinzas da derrota. E embora seus companheiros da Guarda dos Highlanders pudessem lhe irritar em ocasiões, alguns mais que outros, eram os melhores guerreiros com os que jamais tinha lutado. Juntos podiam fazer coisas que nem em sonhos teriam imaginado.

Mas aquilo não mudava nada.

—Bruce já tem sua coroa —respondeu.

—Mas a guerra não acabou. Sabes tão bem como eu. A metade dos castelos escoceses seguem ocupados pelas guarnições inglesas, todos os enclaves importantes ao sul. Sim, Robert tem sua coroa, mas só governa na metade do país, e seu reinado não é absolutamente seguro. Tem muitos inimigos no interior que estão desejando vê-lo cair. E Eduardo não ignorará a Escócia para sempre. A guerra com a Inglaterra é inevitável. Ainda fica muito por fazer.

A paixão com a que falava fez que ficasse olhando-a com incredulidade. «Não.» Não podia…

—Não está querendo dizer que pensa em te envolver?

Ergueu o queixo daquela forma e o fulminou com o olhar.

—Uma vez minha filha esteja fora de perigo farei tudo que o rei necessite de mim.

Lachlan entreabriu os olhos. Obviamente aquela rosa pisoteada não a tinha feito esquecer a ideia de recuperar a sua filha. Aquela mulher era tão valente como teimosa. Pelo sangue de Cristo, e se voltasse a fazer um pouco arriscado? Acelerou-lhe o pulso até que conseguiu controlá-lo.

«Não é meu assunto», lembrou-se.

—Depois de tudo que passastes, ainda resta vontade de brigar? Tanta vontade têm de que lhes voltem a encerrar?

Bela empalideceu.

—É obvio que não! Vocês sabe como é isso. Foi horrível. O frio. Os barrotes. As intermináveis horas sem nada que fazer salvo evitar ficar louca. —Lançou-lhe um olhar furioso, obviamente zangado porque a jogasse de novo a aquelas desagradáveis lembranças— Mal posso ver uma porta fechada sem estremecer do pânico. Já o comprovou no abrigo.

—Como agüentou?

Bela ficou olhando-o fixamente.

—Como tu fizestes? —respondeu desafiando-o em voz baixa e encolhendo os ombros ao mesmo tempo em que lhe dava as costas, ao ver que não respondia— Pensava em minha família, em minha filha. Tinha que suportar por ela. —Voltou-se para ele com o mesmo brilho nos olhos— Por que me pergunta isso? Já sabe como que é.

—Porque isso é justamente o que enfrentará se seguirem por esse caminho. —Tinha que saber os riscos que corria— Já fez o suficiente, Bela. Aceite sua liberdade e não olhe atrás.

—É que não vê que não se trata de mim? Nunca se tratou que mim.

Lachlan não o via absolutamente. E jamais o faria. Esse era parte do problema. «Há coisas maiores que sua pessoa», havia dito ela uma vez.

—Valeu a pena?

Bela estremeceu como se a tivesse golpeado. Seu rosto desolado quase o fez querer retirar a pergunta. Tremeu-lhe o queixo.

—Tem que valer.

Aquela desesperada súplica que ouvia em sua voz não ficou sem efeito. Por um momento Lachlan acreditou que ele podia ser a pessoa que a ajudasse a assegurar-se de que valesse a pena. Ao que parecia também ela tinha albergado essa loucura entre seus pensamentos, porque não se deu por vencida.

—Acreditei que fostes dos que acabam os trabalhos, não dos que os deixam pela metade.

Aquelas palavras ardiam. Conhecia-o melhor do que queria admitir. «Não é minha luta…»

—Cumpri com o acordo. Para mim isto acabou.

Mas não para ela. Ela era uma lutadora. Continuaria lutando até que seu corpo ficasse sem fôlego. Inclusive por causas perdidas como ele mesmo.

—Então nada disto te importa? —seguiu provocando— Não te importa nada absolutamente? Nem tão sequer se Robert consegue libertar a Escócia da Inglaterra? Nem tão sequer que morram seus amigos?

Lachlan não queria mais que lhe fechar a boca. Aproximou-se e se ergueu sobre ela ameaçadoramente, apertando os punhos.

—Não são meus amigos.

—Ah, não? —desafiou-o. Sabia a próxima coisa que ia dizer. «Não o diga»— E eu, Lachlan? É que não importa…?

Lachlan a agarrou antes que pudesse acabar a frase e a empurrou contra uma árvore. Não queria que Bela importasse, nem que importasse nada daquilo. Mas ela seguia escavando e escavando até que começava a sair sangue.

Já tivera suficiente. Tinha-o empurrado muito longe.

Apertou seu corpo contra o dela, e lhe pôs o pau entre as pernas sem nenhum cuidado.

—Quer saber o único que me importa, Bela? Isto é a única coisa que me importa. Tenho tanta vontade de te foder que não sou capaz de pensar. Quero enterrar minha língua entre suas pernas e lamber até que goze em minha boca. —Bela ficou sem fôlego. Lachlan riu com desdém— Assim a menos que esteja preparada para se pôr de joelhos e por meu pau em sua incrível boca, pode me deixar em paz.

Bela queria dizer que fosse para o inferno. Isso era o que ele queria que ela fizesse. Mas Bela jamais fazia o que era pra ser feito. Em lugar disso lhe ofereceu um sorriso cúmplice, como se o compreendesse. Algo que era impossível, já que nem ele se entendia.

—Estou me aproximando muito da verdade, Lachlan? —Aquela sutil burla o enfureceu— Pode ser perverso e grosseiro quanto quiser. Não conseguirá me assustar.

Os olhos de Lachlan se escureceram. Talvez não a assustasse suas palavras. Mas é certo que podia assustá-la de outro modo. E caiu sobre sua boca com a ferocidade mais selvagem.

A tinha advertido.


Capítulo Quinze


Bela tinha empurrado Lachlan até o limite. Talvez isso fosse o que pretendia desde o começo. O calor, a paixão, a loucura entre ambos duravam muito tempo. Estava farta de lutar contra aquilo. Não havia nada que a detivesse. Buchan estava morto e seus deveres para ele, no caso de que tivesse algum, estavam mais que cumpridos. Seu longo cárcere, sem saber se algum dia recuperaria a liberdade, tinha-lhe ensinado a aproveitar sempre que podia os momentos de gozo e alegria que proporcionasse a vida. Talvez não pudesse voltar a desfrutá-los. Além disso, de alguma forma pressentia que aquilo daria cotas de prazer nunca alcançados. Queria experimentar a paixão uma vez na sua vida que fosse. Embora fosse só isso que ocorresse entre ambos. Sua oferta era clara e sempre tinha sido. Nunca tinha pedido nada mais que isso. E ela tampouco exigia mais dele. Ou sim?

Na aparência Lachlan não tinha mudado. Seguia sendo um bastardo. Seguia sendo o mesmo homem do que se diziam as más línguas que tinha traído a seu clã e assassinado a sua esposa. Seguia sendo um mercenário desumano que vendia sua espada ao melhor pagador e pretendia não acreditar em nada. Mas sabia que se importava muito mais do que aparentava. A maneira em que reagia a suas perguntas deixava claro. Quanto mais malvado e ogro era, mais claro ficava a Bela quanto o afetavam suas palavras. Usava sua língua viperina como arma e como escudo, para separar de seu lado aqueles que se aproximavam muito e evitar que o observassem atentamente, mas ela notava a profunda tristeza que albergava em seu interior. A escuridão não estava em sua alma, a não ser na espessa nuvem que pendia sobre sua cabeça.

Mesmo assim, surpreendeu-lhe muito que fosse tão grosseiro. Seu marido a tinha obrigado a suportar muitos atos licenciosos, mas nunca pedira isso. Pensar em que a boca de Lachlan se pousasse lá, e que sua cálida língua aprofundasse até o mais íntimo… Bela estremeceu só de pensar, e pensar em sua boca lá nele a deixava ruborizada, mas curiosa e quente. Quando começou a beijar soube que já não havia volta. Era um beijo quente e faminto, tão cru e primário como a paixão desatada entre ambos. O corpo de Lachlan se rendeu a suas formas e a beijou com mais ardor. Depois moldou o dela para adaptá-lo a seu rígido pau. Bela notava cada um de seus músculos, todos os salientes, cada borda resistente de seus músculos, à medida que o corpo dele parecia devorá-la e derreter-se com ela em uma perfeita fusão de calor.

Começou a descrever círculos com sua língua, pedindo, ou bem exigindo uma reação. E ela respondeu a seus beijos e devolveu cada uma de suas carnais investidas. Aquele escuro e especial sabor enchia seus sentidos e a isolava do resto do mundo. Não se tratava de ternos carinhos, nem de uma sutil sedução, mas sim da violenta conflagração entre as necessidades desesperadas para duas pessoas que não queriam mais que uma só coisa.

Aquela violenta necessidade, aquele desespero, aquela paixão… Jamais pensou que pudesse sentir-se assim. Nunca imaginou que algo pudesse ser de tal modo. Não acreditou que esse tipo de conexão com alguém lhe fosse destinada. Não parecia real que acontecesse a ela, que uma mulher cuja frigidez de anos, encontrasse prazer nos braços do homem mais perverso, temido e desprezado da Escócia. Mas não tudo era como o pintavam. Lachlan era um homem duro, mas não perverso. Ao menos não tanto como gostava de aparentar. Nunca tivera a ninguém que se preocupasse com ele. Jamais pode contar com ninguém. Simplesmente tinha que lhe dar uma oportunidade. Valia a pena lutar por ele.

Sua boca era tão apetitosa que o fogo de sua paixão se avivava com cada um dos movimentos enviesados de sua língua, cada vez que formava redemoinhos sobre ela. O calor de seus beijos parecia chegar até os dedos dos pés e arrastá-la consigo. Cada vez que roçava seus lábios seu coração pulsava com tanta força que tinha a impressão de que sairia do peito. Agarrou-o pelos ombros e arranhou o couro tachonado de seu cotun, sentindo que tinha que estar o mais perto possível dele. Era um homem enorme e forte, e Bela necessitava isso, o corpo do guerreiro, duro e inquebrável como o aço, mas tão reconfortante como a mais suave e cálida das mantas. Em seus braços jamais voltaria a sentir frio.

Bela gemeu de prazer quando Lachlan lhe agarrou o traseiro com suas descomunais mãos e a aproximou de sua ereção mais ainda. Sentiu-se embargada por um estranho estremecimento. Temor e excitação ao mesmo tempo. Parecia tão… grande. Sentia que a reclamava com cada centímetro do mastro de sua virilidade. «Como me arrumarei com isso para…?», pensou mordendo o lábio. Como o fariam? Aquilo tinha que doer à beça.

Mas então ele começou a mover os quadris lentamente, esfregando-se contra ela a um ritmo depravado que imitava os movimentos do amor, e deixou de preocupar-se. Seu corpo começava a transbordar de calor. A necessidade se fazia cada vez mais intensa. Um estalo de calidez alagou sua virilha, que notou úmida, e se concentrou ali até converter-se em um tenso e impaciente desejo. A pele ardia. Sua respiração era uma sucessão de ofegos entrecortados. Esfregou-se contra ele, aumentando a fricção e acrescentando seus apetites. Tinha necessidade de mover-se mais rápido. Com mais força. Arqueou o corpo sobre ele e lhe sobreveio a sensação de enfrentar ao desconhecido. Estava em plena ascensão, tentando alcançar algo que lhe escapava pelos dedos. Não reconhecia como seus os sons que ela mesma emitia. Não chegava a entender aqueles leves e prementes gemidos.

Lachlan deixou de beijá-la e lhe percorreu o pescoço com os lábios até afundar entre seus seios. Devorava-a, e sua barba sem fazer roçava deliciosamente a sensível pele. Ele também gemia tanto de prazer que parecia estar sofrendo.

Bela tomou fôlego. Seu corpo ficou imóvel, tremeu e se viu catapultado para um lugar de autêntico êxtase. Um lugar que visitava pela primeira vez. Desafogou todo esse agrado com os gemidos e seu corpo se desfez em mil raios de trêmulos resplendores.


A Lachlan importava pouco a ter aprisionada contra uma árvore. E tampouco lhe importava que Boyd e Seton pudessem voltar com os cavalos em qualquer momento. Assim que sua boca roçou a de Bela perdeu toda capacidade de raciocinar, e qualquer esperança de fazer aquilo com calma se desvaneceu no mesmo momento em que ela começou a esfregar-se contra ele. A confirmação de seu desejo atuava como um poderoso afrodisíaco. Quando seus tênues ofegos ficaram mais insistentes, ouviu que gemia de prazer entre as convulsões, e soube que a tinha levado a orgasmo…

Perdeu a cabeça. Só podia pensar em estar dentro dela e possuí-la. Fazê-la sua, diabos. Mas tinha passado muito tempo. Não poderia conseguir ser gentil. Na próxima vez. Jurou que a compensaria na seguinte ocasião. A próxima vez a faria desfrutar de verdade. A próxima vez saborearia cada dobra de sua pele. Mas nesse momento teria sorte se fosse capaz de agüentar sem gozar antes de tirar as meias.

Sua boca voltou a cair sobre a de Bela mal teve o último de seus espasmos. Deixou as perneiras colocadas e dedicou seus esforços a tirar as meias e baixar a calça o suficiente para liberar seu pau de tão estreita reclusão. Ao fazer, golpeou-lhe contra o ventre com força e o ar fresco que sentiu foi uma mão de santa contra o calor de sua pele, estirada até a dor. Tinha uma ereção de cavalo e estava a ponto de explodir ao menor contato. Nem tão sequer perdeu tempo em tocá-la. Tinha medo de acariciar sua delicada pele, tenra e rosada, umedecida com a prova de seu desejo, e entrar em um torvelinho do que não seria capaz de escapar.

Baixou-lhe aquelas meias convenientemente folgadas e a colocou ele mesmo em posição, levantando-a e se colocando entre suas pernas. Acariciou-a com a grossa ponta de seu pau e rugiu ao sentir a cálida umidade de seu orgasmo sobre sua sensível e suave carne.

Aquilo era muito. Estremeceu-se e apertou os punhos com força para conter a pressão que subia pela base de sua coluna. Deus, tinha uma tremenda vontade de gozar. Não podia esperar mais. Pôs uma mão nas costas para protegê-la das lascas da árvore e a investiu com um potente golpe possessivo. «Minha!» Ao fim. E jamais, nunca antes havia se sentido tão bem.

Bela gemeu em surpresa e abriu os olhos de par em par. Ele agüentou seu olhar, com a mandíbula muito apertada para murmurar palavras de afeto, ou desculpar-se por possuí-la com a habilidade de um escudeiro com sua primeira puta. Mas o dizia com os olhos. Olhos que se cravavam nela com toda a intensidade das violentas emoções que sacudiam seu interior. Emoções que ele não compreendia. Emoções com que seu peito se enchia ao olhá-la nos olhos e que enchiam seu ser com algo quente e suave. Queria agüentar mais com ela e fazer que esse momento fosse eterno. Mas tinha passado muito tempo. Tinha muita vontade de possuí-la. Aquilo era muito bom. Ela era muito gostosa. O corpo de Bela, um corpo quente e tenro, agarrava-o como um punho. Ficou dentro, metido totalmente nela, tentando manter inteiros aqueles últimos fios de controle, tentando lutar contra a assustadora necessidade de investir.

Voltou a beijá-la para ver se com isso se esquecia do aperto, mas estava tão quente que a pele ardia, o suor se acumulava sobre suas sobrancelhas e o sangue se amontoava em suas têmporas. Tinha tanta vontade de empurrar que mal podia pensar. Queria lhe acariciar a cabeça e passar os dedos entre seus sedosos cabelos, mas ainda os levava firmemente presos em uma trança que cobria com o gorro.

Bela o rodeou com seus braços e respondeu a seus beijos com a mesma paixão e entusiasmo que antes. Lachlan se sentia morrer cada vez que aquela língua o acariciava com ímpetos renovados. Seus músculos começaram a tremer do esforço por permanecer imóvel, e então começou a tiritar. Não podia fazer. Era uma força muito poderosa. Necessitava o movimento.

Afundou seu pau com força até o fundo. Já não podia agüentar mais. Aquilo era maravilhoso. E o fez de novo.

—OH, Deus. Não posso… —resmungou em seu sussurro— sinto muito. Faz muito tempo…

Lachlan se deixou ir e a penetrou uma vez mais com um masculino gemido de puro prazer. Um prazer mais cru, intenso e poderoso do que nunca antes havia sentido. Sua mente ficou em branco e em seu interior as sensações explodiram uma detrás de outra. Parecia que aquilo não ia terminar nunca. Foi voltando para a consciência pouco a pouco, enquanto sua respiração e seu pulso chegavam atrás com atraso.

«Jesus.» Não sabia nem como se aguentava em pé, por não falar de como a sustentava. Mas não parecia poder deixá-la ir. Não estava preparado para romper a conexão, embora Deus sabia que não tinha sido uma das longas. Fez uma careta. Inclusive quando era um moçinho tinha mais controle. Afastou-se um tanto dela para olhá-la nos olhos e ao ver que seguiam imersos em uma bruma de paixão, sentiu um novo arrebatamento de prazer.

—Jesus, Bela. Sinto muito.

Era possível estivesse tentando explicar-lhe ou compensá-la de algum modo. Falava muito sério quando dizia que tinha muita vontade de saboreá-la com a língua, mas justo nesse momento lhe arrepiou o pêlo da nuca.

Ouviu um ruído atrás deles.

As exaustas pernas de Lachlan e seus doloridos músculos despertaram assim que o instantâneo calor da batalha começou a correr por suas veias. Todos os músculos de seu corpo se ativaram.

Estavam tão conectados um ao outro que Bela notou a mudança imediatamente.

—O que acontece? —sussurrou.

Não tinha tempo para explicar estavam justamente atrás. Separou-se dela e a colocou no chão.

—Corre —ordenou com um temível e crispado tom de voz— Não te detenha nem olhe atrás. Simplesmente corre.

Bela abriu os olhos consumida pelo terror. Lachlan não pôde olhá-la, consciente de que tinha que atuar com rapidez. Se a agarravam a ela, não teria a mais mínima oportunidade. Deu a volta e subiu as calças ao mesmo tempo em que desembainhava uma das espadas que levava no tahalí das costas.

—Maldita seja, Bela —disse tirando a outra— Corre!

Nessa ocasião ela não duvidou. Lachlan ouviu o ruído das passadas a suas costas quando o primeiro dos homens apareceu na clareira. Mas qualquer esperança de que tivesse escapado sem ser vista se desvaneceu quando gritou outro dos homens.

—Corram, um deles escapou!

Ao menos uma dúzia de soldados a cavalo se dirigiram para ela. Outros, provavelmente o dobro, foram a ele. Lachlan os deixou chegar. Lutou como um possesso. Um após o outro, os atacantes foram caindo sob os habilidosos fios de suas duas espadas. Com uma parava os golpes; com a outra, cortava, atravessava e despedaçava. Ninguém podia pará-lo. Era indestrutível. Invencível.

Quase.

Mas todos os homens têm seu ponto fraco. E Lachlan soube que tinha encontrado o seu quando o resto dos soldados retornaram com Bela, que se retorcia sob o braço de um que sustentava uma faca em seu pescoço. Ele pensava que seu ponto fraco era a luxúria. Mas se enganara. Seu ponto fraco era Bela.

—Jogue as armas —disse o homem com desdém— Ou a moça morrerá.

Lachlan preferia morrer antes de render-se. Mas não estava disposto que matassem Bela.

Uma a uma, suas armas foram caindo ao chão.


Segundos antes Bela estava embargada pelas emoções, perguntando-se por que se desculpava Lachlan. Tinha terminado bem rápido, mas a sensação de tê-lo em seu interior, enchendo-se dele e reclamando-a de uma maneira jamais imaginada tinha sido incrível. E quando a fez explodir… Nunca havia sentido nada igual. E momentos depois era capturada por um grupo de vis rufiões que a metiam em um calabouço do castelo de Peebles. Estava aterrorizada. Nem tanto porque a tivessem capturado de novo como pelo ocorrido quando a separaram de Lachlan.

—Não me conhece —conseguiu sussurrar a ela antes que o levassem.

Nem sequer teve tempo para ponderar suas palavras. Prenderam-no, e o golpearam tão forte com o punho da espada que o derrubou sobre o chão como um boneco de pano.

—Não lhe faça mal —suplicou— Irei por minha própria vontade, mas não lhe façam mal, por favor.

O bruto que a capturou ficou olhando-a com uma cara estranha.

—E que demônios me importará que venha por sua vontade ou não? Virá conosco para animá-lo a falar, tanto se for sua vontade como não.

Bela mal pôde ocultar sua surpresa. Por Deus bendito, não sabiam quem era! Não era ela a quem procuravam. O que significava que foram detrás de Lachlan. Mas por que buscá-lo? Não teve que esperar muito para averiguar. Um homem lhe atou as mãos nas costas e a conduziu por trás até empurrá-la ao interior de uma pequena sala junto à poterna. Minutos depois jogaram também Lachlan no interior. Bela foi até ele, mas outro homem a agarrou antes que pudesse alcançá-lo.

—Temo que não —disse empurrando-a num banco de madeira.

Bela não podia afastar os olhos de Lachlan. Tinha o coração apertado. Havia muito sangue. Um pedaço de seu rosto estava completamente coberto de sangue. Fluía do corte que tinha na têmpora, formando um atoleiro sob sua cabeça. Seu corpo permanecia totalmente inerte.

As lágrimas não a deixavam respirar.

—Se não estancar a hemorragia dessa ferida ele morrerá.

O enorme bruto barbudo que parecia estar no comando riu dela.

—Não te preocupes. Sobreviverá. Ao menos até que consigamos a recompensa —acrescentou com uma risada sinistra.

O homem fez gestos a um dos outros três soldados que abarrotavam a pequena sela. O aposento, que teria três metros de comprimento e outros três de largura, estava bem iluminada com tochas a cada lado da entrada. Bela viu outra porta ao fundo da sela, mas não quis pensar no que teria detrás, já que o quarto da guarda estava acostumado a albergar também a masmorra do castelo.

O homem agarrou um balde do chão e esvaziou seu conteúdo em cima de Lachlan, quem imediatamente despertou e emitiu um leve gemido.

—Uma recompensa? —perguntou Bela a seu captor com o olhar fixo em Lachlan.

—Sim. Trezentos Marcos.

Bela ficou sobressaltada e dirigiu toda sua atenção à cabeça. Aquilo era uma fortuna.

—Mas por que?

O soldado entreabriu os olhos, escondendo-os sob suas espessas sobrancelhas.

—Quem é?

—Isabella —disse sem estar segura de se teriam ouvido seu nome— Maxwell —acrescentou, escolhendo o primeiro nome das Terras Baixas que lhe veio à cabeça.

—E que relação têm com o Lachlan MacRuairi?

—Com quem? —disse, lembrando as instruções de Lachlan.

Mas demorou em responder um pouco mais do necessário. O muito gigante sorriu sem deixar-se enganar.

—Obviamente, se estava disposto a render-se por você, não são é uma puta qualquer. —Negou com a cabeça e puxou as mechas de sua longa barba emaranhada— Não pude acreditar na minha sorte esta manhã quando o vi no mercado. Perguntava-me: «Que demônios estará fazendo Lachlan MacRuairi em Roxburgh com toda a Inglaterra perseguindo-o?». E a metade da Escócia também, já que o mencionamos.

Bela mordeu o lábio. Por Deus bendito, o que teria feito Lachlan para merecer tal recompensa? E por que não lhe disse que tinham posto um preço por sua cabeça? Não era de se admirar que se mostrasse tão resistente a visitar Roxburgh.

—Deixe-a em paz, Comyn —disse uma voz rouca do chão— Não sabe nada.

Bela sentiu que ficava lívida. Por Deus bendito, Comyn! Esse bruto devia ser um dos homens de seu cunhado. Embora apenas cruzara com sir William, irmão mais novo de Buchan, era um milagre que nenhum de seus homens a tivesse reconhecido.

Ainda.

O gigante barbudo se dirigiu para Lachlan e lhe chutou as costelas como a um cão. Fez uma careta, mas não emitiu som algum.

—Assim que te lembras de mim, né? Eu jamais me esquecerei de você. —O homem se despojou do elmo e Bela teve que reprimir seu assombro. Faltava-lhe uma orelha— E quanto ao que sabe a moça, averiguaremos mal chegue sir William. Não estará muito longe. Demorei alguns minutos em convencê-lo de que lhes tinha visto, mas uma vez feito isto… bom, digamos simplesmente que está desejando lhes ver. E espere que o rei Eduardo saiba que por fim tem em suas mãos a um dos membros do guarda secreta de Bruce.

Do que estava falando?

Bela ficou petrificada de repente. Ficou olhando Lachlan, completamente aniquilada. Margaret lhe tinha contado algumas das ridículas histórias que circulavam entre os camponeses sobre a existência de um grupo de guerreiros fantasma que lutavam para o Bruce. Guerreiros que pareciam sair do nada, que vestiam negro e se confundiam com a noite, que ocultavam seus rostos com elmos com nasal sujos de negro espectral. Um grupo de guerreiros de elite altamente capacitados, que se dizia que usavam nomes de guerra para preservar suas identidades. Bela tinha feito ouvidos surdos a aquelas histórias por parecer muito fantasiosas, o produto da imaginação febril de alguns aldeãos.

«Víbora.» De repente aquele nome voltava claramente para sua mente. Apenas notou no momento, mas lembrava à perfeição que sir Alex o tinha chamado Víbora. Deus bendito, seria certo? Seria Lachlan parte do exército de elite de Robert? Era certo. Deus santo, formava parte dele. Tinha-o aceito em seu seio, desfeito-se em seus braços e se sentia mais perto dele que de nenhum outro homem que tivesse conhecido, mas… sabia algo dele na realidade?

Lachlan a pegou com o olhar e Bela baixou o seu antes que alguém percebesse sua reação. Não obstante, tinha o coração na boca.

Lachlan ergueu a cabeça do chão e atravessou Comyn com o olhar.

—Se nos deixam partir agora, não lhes matarei.

Tendo em conta sua posição, preso como um ganso para assar e jogado no chão e jorrando sangue por todo o rosto, aquela fria proclamação fanfarrona teria que soar ridícula, mas o maléfico brilho de seus olhos conseguiu assustá-los por um momento.

Inclusive Bela se assustou. Aí estava aquele homem desprezado e temido em todos os mares. O pirata. O patife. O inclemente predador mercenário. Se era certo que o chamavam de Víbora, não era difícil adivinhar a razão: podia ser tão perverso e desumano como uma serpente.

Comyn foi o primeiro em recuperar-se. Riu e voltou a lhe chutar as costelas, dessa vez com mais força, mas Lachlan não pestanejou nem por essa.

—Não está em posição de fazer ameaças. Nem sequer você podem matar a quatro guerreiros armados com as mãos atadas à costas.

Lachlan se levantou rapidamente e os outros retrocederam como ato reflexo. Soltou uma gargalhada e franziu o cenho em uma careta de desprezo.

—Não sabes do que sou capaz.

Comyn, envergonhado de que os outros percebessem seu medo, riu e voltou a chutar Lachlan, nessa ocasião por debaixo do queixo. A cabeça lhe caiu para trás e golpeou secamente contra a parede.

—No lugar em que vamos, quão único poderá matar serão ratos.

Se Bela não o estivesse observando tão de perto, não teria percebido que sua pele empalidecia levemente, nem o brilho de pavor que transparecia em seu inquebrável olhar. Desapareceram tão rápido, Bela quase pensou que tinha imaginado. Mas então lembrou essa mesma expressão dois anos atrás, no túnel do castelo do Kildrummy, e soube que não eram imaginação dela. Infelizmente, seu captor também notou isso e seus olhos brilharam com malícia.

—Vocês não gosta muito de buracos escuros, verdade? Atirem-no à masmorra enquanto esperamos —disse a um dos homens— Pode ser que depois de um momento nesse buraco com os ratos possa afrouxar um pouco a língua quando chegar sir William.

O homem começou a puxar Lachlan em direção à porta que Bela tinha visto antes. Suspeitava que atrás dela tivesse um poço no chão e tampado com um ralo de madeira ou com barrotes de aço por onde passariam os prisioneiros até a masmorra que havia embaixo. Mas Lachlan, inclusive amarrado, oferecia resistência.

—Não penso entrar aí.

Outro homem teve que ajudar a segurá-lo e os dois o arrastaram para a porta. Bela experimentava o pânico de Lachlan como se fosse próprio. Sabia exatamente o que ele sentia.

—Alto! —gritou— Não podem colocá-lo aí.

Aquilo o deixaria louco. Como aconteceria a ela.

Tentou chegar até Lachlan, mas Comyn a agarrou pela trança que tinha sobre a cabeça e puxou. Voltou-lhe o rosto a luz para vê-la.

—Você e eu vamos nos conhecer melhor —disse passeando seu olhar lascivo pelo rosto de Bela— Ao princípio acreditei que MacRuairi estava com um menino, mas é muito mais bonita que qualquer moço que eu tenha visto. —Bela o olhou com cara de asco. O soldado lhe tocou o queixo com um sujo dedo, e teve que reprimir a vontade de abrir a boca e morder-lhe. Está paliducha e esquálida, mas sim, apetecível com sua boquinha de puta francesa.

—Ponham as mãos em cima dela e sua morte será a mais lenta e dolorosa possível —ameaçou Lachlan voltando o rosto enquanto os homens o empurravam para a porta.

Quanto mais se aproximava do fosso com mais violência lutava, esperneando, revolvendo-se, dando cotoveladas, fazendo o possível por demorar o processo. Ao final o bruto acabou por afastar Bela de um tapa e gritou a seus homens.

—Por todos os demônios, é que não podem controlar a um homem todo amarrado?!

O chefe cruzou o aposento com umas poucas passadas e o agarrou pela gola do cotun para erguê-lo e olhá-lo à cara. O sorriso de Lachlan lhe gelou o sangue.

—É sua última oportunidade —disse despreocupadamente— nos deixem partir ou morrerão.

Sua expressão serviu de advertência a Comyn porque o deixou ir com uma risada nervosa.

—Perdestes o julgamento.

Mal saíram essas palavras de sua boca, Lachlan lançou seu ataque. Deu meia volta e desenrolou as amarras, que por alguma razão já não estavam ligadas s seus pulsos. Com um suave movimento as jogou ao redor do pescoço do Comyn, cruzou as mãos, separou-as de um forte puxão e lhe quebrou os ossos antes que os outros dois tivessem tempo de reagir.

—Ao chão! —gritou a Bela ao mesmo tempo em que agarrava outro segmento da corrente, usava-o como laço contra os outros dois soldados e evitava que alcançassem suas armas.

Bela se atirou ao chão e viu como Lachlan tirava do cinturão uma das adagas de seus captores e lhes cortava o pescoço com elas. Ainda não tinham caído quando essa mesma faca sulcou o ar e alcançou ao último dos soldados entre seus assombrados olhos, fazendo um ruído seco ao cravar-se. Em questão de segundos Lachlan acabava de matar a quatro homens.

Seus olhares se encontraram.

—Está bem?

Bela pode falar, ainda surpresa pelo que acabava de ver e a incrível reviravolta que tomavam os acontecimentos.

—Como te livraste dos grilhões?

Lachlan negou com a cabeça.

—Depois. Temos que sair daqui. Poderiam entrar a qualquer momento. —Buscou entre a roupa dos soldados mortos e agarrou suas armas— O bom é que estamos perto da poterna, e com sorte, se estão esperando sir William, as grades levadiças estarão abertas. Toma —acrescentou lhe pondo uma adaga na mão— Sabe usá-la?

—Não —respondeu Bela movendo a cabeça— Mas farei o que possa se for necessário.

Lachlan sorriu e a aproximou de si para lhe dar um impetuoso e rude beijo.

—Esta é minha garota. Sempre disposta a lutar.

O coração lhe deu um tombo. «Minha garota.» Não queria dizer nada com isso, claro, mas essas palavras a encheram igualmente de uma emoção assustadora.

Lachlan se dirigiu para a porta e pôs a orelha nela para ouvir antes de abri-la.

—Já terminastes, sir…?

Isso foi tudo que pôde dizer o soldado antes que lhe cravasse o aço de sua espada no pescoço. Mas não estava só.

—Cuidado! —gritou Bela ao ver aparecer um segundo guarda do outro lado.

Era uma advertência desnecessária. Lachlan levava outra adaga na mão e já a tinha jogado. Arrastou aos homens até o quarto dos guardas de onde acabavam de sair e fechou a porta atrás dele.

Aproximou um dedo à boca para lhe pedir silencio e a levou consigo grudado à parede, ocultando-se na penumbra. A porta estava apenas a três metros deles, ao final daquele mesmo estreito corredor em que se encontrava a torre do quarto dos guardas. A estrutura se completava com outra torre similar no lado oposto. Ao final do corredor estava a ponte levadiça, e não menos de meia dúzia de homens armados que custodiavam a entrada. Lachlan tinha razão. A grade estava aberta. Mas mesmo assim Bela não sabia como escapariam diante dos narizes de seis sentinelas armados.

Lachlan se deteve a menos de dois metros da porta.

—Corre assim que eu me mova. Necessito que te ponha a salvo.

Bela assentiu ao compreendê-lo. O mesmo que antes: tivera que render-se simplesmente porque a tinham capturado. Lachlan podia cuidar-se. Disso não tinha dúvida. O que o punha em apuros era protegê-la. O exército secreto de Bruce… Por Deus bendito.

Não teve tempo para pensar. Instantes depois Lachlan começou a avançar e Bela seguiu seus passos de perto, sem deter-se quando enfrentou ao primeiro soldado, nem tampouco com o seguinte. Adiantou, afugentou a um dos guardas ameaçando-o com a adaga e pôs-se a correr sem olhar para trás pelo inclinado caminho. Nem tão sequer piscou ao ouvir os estremecedores golpes das espadas que reverberavam atrás dela, perturbando o tranqüilo ar da noite.

De repente ouviu um assobio de flechas que voavam sobre sua cabeça. Mas não foram dirigidas a eles, e sim para o castelo. Dois homens que tinham saído detrás dos edifícios exteriores da fortificação apareceram frente a ela entre as sombras.

Boyd e Seton. Levavam os cavalos.

Estava ainda a uns metros deles quando ouviu passos a suas costas. Lachlan a agarrou pelo pulso e a levou no colo os últimos passos até subi-la num dos cavalos.

—Obrigado pela ajuda —disse secamente enquanto se acomodava na sela.

Robbie sorriu.

—Demoraste. Começava a me preocupar.

—Que se foda —acreditou ouvir Bela como resposta.

Mas não podia estar certa. Estavam cavalgando e fugiam para salvar suas vidas afastando-se do castelo, que começava a despertar.

 

 

 


C O N T I N U A