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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


THEO
THEO

                                                                                                

 

 

 

 

Resisti a esbravejar de volta e respirei fundo, clamando por paciência. Eu nunca quis que fosse assim, porra! Se quisesse a merda de um casamento arranjado, tinha posto um anúncio no Estadão ou na Folha! A ideia era conhecer alguém que despertasse meu interesse e ver se essa pessoa continha os requisitos do pappoús, não o contrário!

Bom, a porra do encontro já estava agendada e confirmada, então não me restou outra saída a não ser ir até a moça.

Não serei hipócrita ao não reconhecer o quanto Valentina estava linda. Um vestido preto, fino, de tecido parecendo seda, colava-se ao seu corpo de tal maneira que eu tive certeza de que não usava calcinha. O modelo era na altura dos joelhos, sem muito decote, porém o suficiente para mostrar seus atributos a um bom observador. Os cabelos claros estavam soltos, penteados para trás, caindo sobre suas costas delgadas.

Ela entrou no carro e se sentou ao meu lado no banco traseiro enquanto Dionísio fechava a porta.

— Boa noite, Theodoros! — cumprimentou-me de forma educada e sutil, seus olhos azuis destacados por uma maquiagem bem feita. — Espero não o ter feito esperar muito.

— Boa noite! — Sorri. — Valeu a pena cada minuto. — Beijei sua mão. — Você está deslumbrante!

Ela apertou sua mão sobre a minha, e eu a puxei para um beijo.

Nada!

Encho o copo de uísque novamente, pensando em como pode uma mulher linda daquelas, com um corpo perfeito, um rosto e sorriso incríveis, isso sem contar em todos os outros atributos intelectuais, que ela tem bastante também, não conseguir sequer uma reação mínima do meu corpo?

Como é possível?!

Volto a pensar em como ela mesma reagiu, com um sorriso polido como se aquilo não passasse de um protocolo. Gelo tomou conta de todas as minhas veias e se concentrou diretamente no meu pau.

Pedi ao Dionísio que fosse até o endereço da galeria, fiquei a noite inteira com ela pendurada em meu braço enquanto comentava – com enorme conhecimento da área – sobre cada gravura ali exposta. Relaxei com a presença dela, com a afinidade que tínhamos com as artes e também com seu humor perspicaz e agradável.

Sem dúvidas, Valentina é uma ótima companhia, por isso mesmo a convidei para ir comigo ao baile de Ano Novo dos Villazzas.

No final da noite, voltei a tentar uma aproximação, e ela a recebeu com a mesma resignação de antes, porém, sem nenhuma paixão, assim como eu. Porra, ela era perfeita, mas onde estava a química entre nós? Onde estava o arrepio na pele ao meu toque? A reação do meu corpo a um simples sorriso dela?

Não tinha nada ali! Nenhuma chama, nem mesmo uma faísca.

Rio, voltando a tocar o piano, afastando a frustração que senti há algumas horas. A mulher certa com a reação errada, enquanto tive todas as reações certas com a última mulher com quem deveria ter tido!

O nome dela, dessa mulher tão exasperante que consegue criar uma revolução nos meus hormônios sexuais, flutua em minha cabeça como se fosse música: Maria Eduarda Hill.

Ao mesmo tempo em que decido tocar algo para cessar o mantra nominal, faço uma autoprovocação escolhendo uma música romântica e divertida na versão do ícone Frank Sinatra:

— My funny valentine! Sweet, comic valentine! You make me smile with my heart. Your looks are laughable, unphotographable, yet you're my favorite work of art. 4

É, penso quando paro de cantar e fico somente tocando, a noite vai ser longa. Ainda bem que tenho garrafas de uísque e repertórios musicais suficientes!

 

 

O som está uma merda, a bebida, quente, e a decoração, cafona demais! Procuro Rômulo no meio dos funcionários da Karamanlis, todos reunidos no refeitório para o almoço de final de ano em plena véspera de Natal.

Neste ano resolvemos não mais fazer duas festas separadas – para os funcionários e para os cargos acima de gerência da Karamanlis – e reunimos todos aqui mesmo no prédio da empresa. Abrimos apenas as portas do refeitório, que dão em uma espécie de terraço, onde o bufê colocou um toldo e umas cadeiras.

Não foi minha irmã caçula quem organizou a festa, infelizmente, senão não estava essa cafonice estranha.

Avisto Rômulo e faço sinal para que venha até mim, e ele o faz imediatamente, parando de conversar com alguns funcionários da TI – eu sei porque a maioria com cara de nerd aqui da empresa trabalha lá – e vem aos tropeços, “catando cavaco”, como diria Aluísio Azevedo5 se ainda estivesse entre nós, até se postar ao meu lado.

— Sim, doutor?

Tento conter uma risada e apenas balanço a cabeça, esperando que ele resgate o ar que perdeu no percurso para que eu lhe pergunte de quem foi a idiota ideia de contratar esse péssimo serviço!

— Rômulo, sobre a empresa que está organizando essa confraternização. — Ele arruma os óculos. — Nós pagamos por isso? — Aponto o dedo para todas as coisas penduradas na parede, inclusive os balões infláveis com os números formando 2019 em dourado.

— Claro que sim! — Sorri. — Não posso precisar o valor, porque isso é com o pessoal do doutor Millos, mas tenho certeza de que uma empresa como a Karamanlis não dá calote em ninguém.

Enche o peito de orgulho, o que me faz revirar os olhos, e abre um enorme sorriso.

— Volte lá a se divertir com o pessoal da TI! — Abano a mão na direção dos rapazes com óculos ao estilo Harry Potter.

Meu assistente insiste em me ajudar com algo mais, mesmo eu já o tendo dispensado, e somente quando o olho é que parece conceber a mensagem. Volta do mesmo modo que veio, mas dessa vez já não acho graça de seu jeito espalhafatoso de andar apressado.

Ando entre as pessoas, cumprimentando alguns que já conheço e atraindo a atenção dos demais, em busca de Millos. Está tudo tão mal organizado que não consigo ver entre uma mesa e outra por causa dos malditos balões dourados.

— Ei, irmãozinho! — Alex me para. — Aproveitando a festa?

Ele parece animado com um copo de cerveja na mão.

— Espero que não tenha vindo de moto! — repreendo-o.

— Preocupado com minha integridade física, oh, poderoso Theo!? — Ri, já visivelmente bêbado. — Vê só como seu nome já lembra a divindade que você é! Théos6!

Millos chega por trás dele, capturando meu olhar entediado, e o abraça pelos ombros.

— Alex, que festança, não? — comenta. — Eu nunca vi nosso pessoal tão à vontade e tão satisfeito com uma festa de final de ano!

— Você só pode estar brincando! — indigno-me ao ouvir isso. — Essa confraternização não chega aos pés da do ano passado!

Alex gargalha.

— Na do ano passado, o pessoal quase dormiu nas cadeiras com aquele sonzinho de jazz que foi colocado para agradar a um certo CEO! — Ele fica sério. — Você não conhece seus funcionários, não sabe do que eles gostam e...

— Chega, Alex! — Millos o chama sério.

— Foi ele quem organizou isso aqui? — pergunto ao Millos, apontando para a fuça do meu irmão caçula.

— Foi! — o petulante me enfrenta. — Olhe além do seu mundinho privilegiado, Théos! — Abre os braços, esbarrando em Millos, para demonstrar seu ponto. — A festa está no fim, todos foram dispensados a ir mais cedo para casa, mas... — cruza os braços — você está vendo alguém ir?

Sou obrigado a concordar com ele. Ninguém ficou na festa, no ano passado, depois da distribuição dos prêmios, e, neste ano, mesmo depois de termos feito os sorteios, todos continuam aqui, comendo, bebendo e – arregalo os olhos ao ver Rômulo e seus amigos se agitando – dançando!

Sim, a festa não está do meu gosto, mas, afinal, não foi feita para mim. Millos sorri, olhando para Alex, quando percebe que notei o sucesso que está sendo o evento. Foi meu irmão! O moleque realmente entende os funcionários como nenhum outro Karamanlis no poder o fez!

Sinto uma pontinha de orgulho, mas logo a deixo de lado, abandonada na escuridão de uma parte de mim que contém todos os sentimentos acerca de minha família.

— Bom trabalho! — elogio-o, e o garoto fica sério. — O pessoal parece realmente estar gostando!

— Vá se...

— Nós agradecemos! — Millos o interrompe no exato momento em que iria me mandar ter prazer comigo mesmo. — Foi um trabalho em equipe! Somos um só time dentro desta empresa.

Millos mal termina de falar e arrasta Alex para longe de mim, falando algo durante o trajeto.

Lembro-me de Alex ainda garoto, sobre meus ombros na piscina do condomínio onde moravam. Ele me seguia por toda parte, até mesmo quando eu não o queria por perto. Seus olhos brilhavam a cada coisa que eu fazia ou falava, eu era seu herói.

Ele estava muito errado!


A véspera de Natal foi uma tortura solitária!

Millos se enfiou em algum lugar para fazer sabe-se lá o quê e eu fiquei sozinho na cobertura, ouvindo meus discos, comendo uma ceia encomendada anteriormente por Vanda e vendo as sacadas dos outros apartamentos com pessoas comemorando, luzes piscando, músicas de Natal.

Nunca tivemos isso!

Millos e eu fomos criados com pappoús, e nossa família nunca comemorou o Natal por não achar a data importante, apenas uns dias a menos para se fazer dinheiro. Nossa giagiá7era quem ainda queria manter a tradição da festa do nascimento do Menino Jesus, porém, a tivemos tão pouco antes de sua morte que quase nem me lembro mais dos ritos e da comemoração.

Quanto aos outros, mal sei! Kostas foi criado com a família de sua mãe, na Inglaterra, até a adolescência, então provavelmente é católico ou anglicano, e as duas religiões comemoram a data. Quanto a Alex e Kyra, os dois tiveram Natais completos, pois eu ainda me lembro da árvore montada na sala principal do apartamento, pelo menos estava lá na última vez em que estive no imóvel; depois, não tenho notícia.

Não era de se esperar que, numa família tão complicada como a nossa, houvesse comemorações natalinas – ou quaisquer outras que envolvam união e fraternidade. Somos solitários como se fôssemos filhos únicos, e eu, infelizmente, divido essa culpa com Nikkós.

Recebi convites para cear com alguns amigos, inclusive Valentina me pediu para acompanhá-la na comemoração de sua família, porém, não quis. Natal não é uma época fácil para mim, e eu não queria que as outras pessoas se dessem conta disso e questionassem os motivos. Era melhor ficar sozinho mesmo!

O som triste e a voz melodiosa de Nat King Cole cantando Please take me back to toyland8 me fizeram rir ironicamente, pois eu nem sabia que tinha essa música naquele disco, afinal, era uma canção de Natal! Fui até o toca-discos e mudei a faixa, mas pouco ajudou, pois começou Unforgettable9.

Suspirei resignado e deixei a música tocar, sentando-me no sofá e deitando minha cabeça sobre o encosto, seguindo a música com os lábios, mas sem cantar.

Foi realmente a chamada “noite da fossa”, eu ali, sozinho, ouvindo canções que tocam fundo em qualquer pessoa, tomando meu uísque, enquanto o peru esfriava intacto sobre a mesa de jantar.

No dia seguinte, todo meu ar de frieza e invulnerabilidade já estava de volta, segui para a empresa – sim, em pleno feriado! – e adiantei muito os relatórios do final do ano para o conselho. Li todos os e-mails que Rômulo já havia classificado como importantes, respondi alguns, fiz anotações para pesquisar respostas para os outros. Fiquei um bom tempo olhando a Paulista, vazia como uma rua fantasma, e rindo de mim mesmo por estar ali perdendo tempo.

Recebi mais convites naquela noite, agora para noitadas pós-Natal, mas ainda não estava no clima. Exercitei-me sozinho na academia do apartamento, saindo de lá exausto, fiquei um tempo na sauna depois e, quase à 1h da manhã, estava nadando.

Dormi feito uma pedra!

Hoje acordei com uma ligação de Vanda, avisando que estaria de volta na primeira semana de janeiro, o que já animou minha manhã. Segui meu ritual para me preparar para o trabalho, troquei mensagens com algumas mulheres com quem já havia saído, inclusive com Valentina e, agora, já no carro, recebo uma ligação da Viviane.

— Como foi seu Natal? — pergunta.

— Não comemoro! Você sabe que acho besteira. — Ri. — E você?

— Muito bom e em ótima companhia! — Suspira. — Ah, encontrei Valentina ontem na festa da Alicinha. Ela me falou bastante de você.

Ergo a sobrancelha.

— É mesmo? Coisas boas ou ruins?

— Boas, claro! Por que ela diria coisas ruins a seu respeito?!

— Não sei, ela parecia tensa, distante... — Ouço Viviane respirar fundo. — Não sei, Vivi. Ela tem tudo o que meu avô aprovaria, mas...

— Vocês só saíram uma vez! Dê tempo ao tempo!

— Pode ser... — encerro o assunto, pois não estou certo de investir em uma relação com Valentina. — Vamos falar de negócios! Vi seu e-mail ontem com a repercussão do escultor! Meus parabéns!

— Ah, Theo, você sabe que eu nunca me engano com as artes! — Ri. — Quem dera fosse assim com as pessoas!

Respiro fundo, concordando, embora me ache um bom julgador de caráter. Terei pela frente poucos dias para finalizar todas as pendências e organizar planos de ação para o próximo ano. O conselho irá se reunir na sexta-feira, e, sempre depois dessa reunião de prestação de contas, acabo acumulando algum trabalho para fazer até a véspera de Ano Novo.

— Ela me disse que você a convidou para o Baile Branco e Preto dos Villazzas — Viviane volta a falar.

— Quem? — indago confuso.

— Valentina, Theo! — Ri. — Não me diga que convidou mais alguém!

Faço careta ao me lembrar do convite, levemente arrependido de tê-lo feito, pois poderia muito bem ir sozinho e conhecer alguém que despertasse mais tesão em mim do que a amiga de Viviane.

“Dê tempo ao tempo...” foi o que ela acabou de me falar. No entanto, acho que, em relação ao desejo, ou ele acontece ou simplesmente não existe. Tesão não é igual amizade, que se constrói com o tempo, ele é imediato! É certo que pode estar camuflado em algum outro tipo de sentimento, como a exasperação, a implicância, arrogância, mas está lá, ainda que negado.

— Não, não convidei mais ninguém, Vivi. — Respiro fundo. — Mas acho que fui apressado no convite. Valentina é perfeita, mas um tanto fria, e isso...

— Talvez ela só esteja tímida — justifica a amiga, e vejo lógica nisso. Devem ser tão estranhos e desconfortáveis para ela quanto são para mim, esses encontros arranjados. É antinatural demais, como se estivéssemos sendo empurrados um para o outro.

— Sim, é normal que ela esteja sem jeito, por isso não queria fazer dessa forma — friso mais uma vez meu incômodo com essa situação. — De qualquer maneira, já fiz o convite e seria uma babaquice sem tamanho retirá-lo.

— É um baile e tanto! Imagino que você tenha se dado folga na véspera do Ano Novo. — Faço careta ao pensar em mais um dia de trabalho perdido. — Soube que sua irmã é quem está organizando.

— Sim, é ela — sou curto ao confirmar, sem entrar em detalhe algum, mesmo porque eu nada sei sobre a Kyra. — Vivi, preciso desligar, estou chegando ao prédio e tenho uma apresentação para fazer depois de amanhã...

— Está certo! — Ri, sabendo que a estou dispensando. — Se não o vir mais, espero que tenha um feliz Ano Novo.

— Para você também!

Desligo o telefone e abro o app de agenda que uso para os meus compromissos, marcando o domingo como um dia de trabalho.

Minutos depois, já no elevador, recebo mensagem do Rômulo perguntando sobre essa anotação.

 

 

Cumprimento uns funcionários que entram no elevador, pronto para guardar o celular no bolso, quando ele treme em minha mão. Rômulo, em vez de esperar que eu chegue à sala, manda-me uma mensagem:

 

 

Gargalho no elevador, chamando a atenção das pessoas dentro dele. Sinceramente, não sei se Rômulo é puxa-saco demais ou se é só maluco!

 

 

— Ah, você está aí! — Millos me assusta entrando na sala de supetão, ainda mais por hoje ser domingo. Eu e Rômulo trabalhamos todo este fim de semana.

— Onde mais estaria, já que parte de amanhã e o feriado serão perdidos? — Aponto para a porta. — Usa-se bater antes de invadir.

Meu primo dá de ombros.

— Vim me despedir — informa e vai até o Rômulo. — Qualquer coisa que precisar, entre em contato com a Sâmela, ok?

— Sim, doutor Millos! — O assistente se levanta, seca a mão – não sei por que diabos ele sempre faz isso! – na lateral da calça e a estende ao meu primo. — Boas férias!

— Obrigado, Rômulo! — cumprimenta-o de volta. — Feliz Ano Novo! Espero que, ano que vem, seu chefe esteja mais suportável!

— Ah, doutor, meu chefe é ótimo! — ele sorri ao falar isso e me olha de esguelha.

— Você é um santo, Rômulo! Ou um louco!

Gargalho com a cara confusa do meu assistente e chamo o ingrato do meu primo para um abraço de despedida.

— Para onde vai? — inquiro.

— Te respondo no almoço.

Franzo a testa.

— Que almoço? — Olho para Rômulo, que dá de ombros, indicando que não há nada na agenda.

— Nosso almoço, agora, no restaurante onde você me abandonou naquela noite depois do encontro com a Duda Hill.

Cruzo os braços, sem focar muito nas lembranças daquela noite, ainda que sinta um leve tremor ao pensar na mulher conversando comigo ao balcão do bar.

— Millos, amanhã é véspera de Ano Novo, eu ainda tenho...

— Sem desculpas, Theo, hoje é domingo, e vocês dois nem deveriam estar aqui. E, conhecendo o seu assistente como conheço, tenho certeza de que o trabalho está bem adiantado!

— Pode ter certeza, doutor! — Rômulo confirma, orgulhoso.

Ainda tento negar por mais algum tempo, porém, meu primo está totalmente inflexível.

— Está certo, mas, ao invés daquele restaurante, vamos ao Vincenzo’s. — proponho, e ele aceita.

Vincenzo’s é o restaurante italiano de um chef amigo nosso, que fica no terraço do Villazza SP. Millos e Vince – apelido do dono – são amigos e companheiros de viagens de motos, assim como Frank, CEO da rede de hotéis Villazza.

Gosto muito de ir lá, mas, como não tenho tido tempo ultimamente, pouco tenho conseguido degustar do menu italiano de Vincenzo. Somos amigos desde que ele abriu o restaurante no Villazza SP, vindo com Frank de Curitiba para cá, pois antes comandava a cozinha de um restaurante do hotel de lá.

O homem, um chef competentíssimo, ganhou fama e notoriedade ao participar como jurado de um reality show de gastronomia na televisão. Espero que Millos tenha feito reserva, senão teremos que comer no mezanino sem cobertura, com uma bela vista de São Paulo, mas sem ar-refrigerado.

— 15 dias? — confirmo o tempo das férias com meu primo enquanto ele dirige.

— No máximo! — diz animado. — Tracei minha rota, já reservei hotéis ao longo do caminho. Se nada sair do programado, em 12 dias estou de volta e em 15, já na minha mesa.

— Bom, muito bom! — A notícia me satisfaz, principalmente por eu mesmo estar viajando em fevereiro. — Não vai ao aniversário do pappoús?

— Ano que vem, não, já até me desculpei com ele. Vou visitá-lo em julho. Terei que ir até Atenas para resolver umas coisas com meu pai, então aproveito e mato os dois coelhos de uma vez.

— Que horror essa comparação! — Rio. — Tudo bem com tio Vasilis?

Dá de ombros, sem saber o que responder, afinal, assim como eu, não fala com o pai há anos. Millos lamenta ser filho único exatamente por não ter para quem jogar o fardo de lidar com o pai, o que entendo bem, pois eu detestaria ver Nikkós, mesmo que por mera formalidade.

Chegamos ao Villazza, e, enquanto subimos para o terraço, mando mensagem para o Frank, porém, o carcamano está em reunião, ajustando os últimos detalhes do baile de amanhã.

Ah, sim, o bendito baile!

Valentina já me bombardeou de mensagens sobre o evento, dizendo o quanto está empolgada, detalhando sua roupa e me perguntando como eu preferia que ela usasse os cabelos, soltos ou presos. Achei um tanto absurdo demais tudo isso, principalmente sobre minha opinião, afinal, encontramo-nos uma vez e trocamos dois beijos bem insossos.

Munido de uma paciência hercúlea, respondi todas as suas mensagens e ressaltei o quanto meu dia estava corrido exatamente por conta desse evento na véspera do Ano Novo, dia em que normalmente trabalho e que perderei por sair mais cedo. Pelo visto, ela entendeu o recado e parou com suas mensagens ao estilo metralhadora.

Chegamos ao terraço e avistamos Vincenzo, com um enorme sorriso, já na porta a nos esperar. Estranho isso, não por ele estar nos aguardando, mas sorrindo desse jeito tão deslumbrado.

— Benvenuto! — saúda-nos. — Porra, eu estou suando frio aqui! — confessa.

— Diarreia? — Millos sacaneia.

— Não, coglione! — Rio ao ouvir o xingamento preferido do Frank. — Vocês vão ter o prazer de dividir o mezanino...

— Ah, caralho, o mezanino não! — resmungo tirando o paletó.

— Estamos com climatizadores lá fora e ombrelones, seu fresco! — todo o charme e sotaque italiano some quando ele me dá esse esporro, voltando às origens do Bixiga, bairro paulistano onde foi criado.

— Está certo, esquece o Theo! Quem está no mezanino? Alguma gostosa lá da sua emissora?

— Melhor que isso! — O chef parece bem empolgado. — Thierry Angelot!

Millos franze o cenho, e eu começo a gargalhar.

— Porra, Vince, é sério? Toda essa excitação por causa de um macho?

— Cala a boca, seu herege! — repreende-me. — Angelot, Millos!

Meu primo arregala os olhos.

— Do restaurante? O que ganhou a terceira estrela Michelin no guia deste ano?

— Voilà! — Vincenzo confirma. — O próprio!

Gosto muito de comer, mas, como não cozinho nada, nunca fui muito ligado a nomes de chefs ou restaurantes. Simplesmente, quando quero algo e estou fora do país, consulto o concierge do hotel ou vou pela indicação de amigos. No entanto, agora, sabendo se tratar do Angelot, o restaurante francês cujo jantar desfrutei há alguns anos, entendo a empolgação do Vince.

— O que ele faz aqui? — Millos inquire.

— Vai cozinhar amanhã — respondo, e Vincenzo confirma. — Frank comentou comigo que um chef internacional havia aceitado o convite para fazer o jantar do baile.

— Ah, porra, isso é sério?! — Millos gargalha. — Justamente este ano, que decidi não participar!

Caminhamos em direção ao mezanino, uma varanda um pouco mais elevada que o restaurante, com proteção de vidro na beirada do hotel e uma vista deslumbrante. Entro já olhando as mesas – são três delas – à procura do misterioso homem, pois nunca consegui cumprimentá-lo quando estive em seu restaurante. Avisto-o conversando animadamente em francês e quase tropeço ao ver a mulher que almoça – e ri muito, por sinal – em sua companhia.

— Duda Hill! — Millos sussurra.

— Vocês a conhecem? — Vincenzo nos encaminha até nossa mesa, no canto oposto onde o casal se encontra. — Ele chegou aqui com esse mulherão traduzindo tudo o que dizia, e eu, mesmo sabendo o idioma, me fingi de ignorante só para ouvi-la falar.

A lembrança do sotaque francês dela, da forma como seus lábios se movimentaram a cada palavra, trazem de volta a sensação luxuriante que senti, tendo a exata noção do que Vincenzo está falando. Crispo as mãos, respiro fundo e me sento bem de frente para a mesa dos dois.

Millos e Vince conversam baixinho, porém, não presto a mínima atenção a eles, tentando ouvir o que o baixinho – sim, porque o homem deve ter no máximo 1,60m de altura – diz a ponto de arrancar tantas risadas dela.

Infelizmente não consigo ver o rosto da Duda, tendo visão de suas costas mal cobertas pelo vestido estampado em verde, de alças muito finas que destacam seus ombros e nuca, uma vez que os cabelos estão presos em um coque no topo da cabeça.

— ...eles pediram à la carte e agora estão dividindo um tiramisù — ouço Vincenzo informar ao Millos.

— Dividindo? — questiono. — Denota certa intimidade dividir a sobremesa com alguém. — Millos ergue uma sobrancelha e dá um sorriso irônico. Não lhe faço caso, fingindo que não notei sua expressão. — Então, ao que parece, a dona do boteco realmente é uma chef de cuisine diplomada na França.

— Claro que é! — Millos me encara. — Achou que ela estava mentindo?

Dou de ombros, e Vincenzo pede licença para se retirar e voltar para a cozinha.

— Não faz sentido! O que está fazendo fritando batatas e asas de frango em um lugar como aquele se tem diploma e conhecimento de pessoas que poderiam empregá-la? — Faço sinal com a cabeça indicando o baixinho.

Millos se inclina sobre a mesa.

— O que o herdeiro mais velho de uma empresa internacional estava fazendo vendendo peixes? — Imediatamente fico sério, puto por ele estar mexendo nessa história tão antiga, porém que ainda sangra e incomoda. — Não dá para julgar a motivação de alguém sem conhecer sua história.

Antes que eu o mande ao caralho, um garçom aparece para anotar nossos pedidos, e concluímos pelo menu degustação em quatro tempos, inspirado no mar. Millos pede sua cerveja, como sempre, enquanto eu solicito ao sommelier que harmonize algum vinho com a comida pedida.

— E então... — volto a puxar o assunto das férias de Millos para não demonstrar interesse na outra mesa, mesmo que desvie meus olhos para lá a todo momento — para onde você vai ano que vem?

— Resolvi fazer uma rota aqui por perto mesmo, mas vou parando em algumas cidades para fazer turismo. — Acho interessante. — A ideia é seguir todas as rotas da Estrada Real.

— O que seria isso? — pergunto, pois já ouvi falar do assunto, mas nunca me fixei em nada sobre ele.

— São rotas comerciais criadas na época do Brasil Império. Pretendo seguir as quatro, saindo do Rio de Janeiro em direção a Minas, até Diamantina, depois voltar, passar por Ouro Preto e descer para o Sul de Minas, visitar umas cidades do interior e, por fim, chegar em Paraty, seguir pelo litoral até Santos e retornar para cá.

— Por que começar pelo Rio e não por aqui?

— Quero aproveitar um pouco o litoral norte. Isso não faz parte da Estrada Real, é por minha conta. Amanhã vou para o Rio pela Presidente Dutra e aproveito a queima de fogos em Copacabana.

— Vai ficar no Palace? — Millos confirma. — Já passei um Ano Novo lá, em...

Interrompo-me quando vejo o francês baixinho indo para dentro do salão. Olho na direção da mesa deles e vejo a Duda de pé, sozinha e de costas, contemplando a vista da cidade.

Sem falar nada com Millos, sigo até ela, munido com a vontade de provocá-la um pouco e também de sentir seu perfume.

— Me dê a boa notícia de que aceitou o emprego e vai vender o boteco para mim! — falo às suas costas, fazendo-a se virar para mim.

— Merde! — Põe a mão sobre o coração. — O que você... — Vê Millos sentado na outra ponta do mezanino. — Ah, merda! — resmunga para si mesma, voltando a olhar para a cidade lá embaixo. — Isso só pode ser alguma brincadeira do destino!

Rio e me encosto ao guarda-corpo de vidro, ao seu lado.

— Do destino? — debocho. — Não acredito nessas bobagens!

Ela me encara.

— Eu não me interesso pelo que você acredita ou não! — Aponta para minha mesa. — Sua comida começou a ser servida.

Levanto uma sobrancelha, meu olhar preso ao dela, e aquela mesma maldita tensão vibrando entre nós.

— Novamente... — olho-a intensamente — a comida não é o meu interesse no momento.

Ela segura o fôlego e desvia os olhos sem jeito ou talvez não querendo mostrar o quanto está mexida com minha presença, assim como fiquei e ainda estou com a dela. Um sorriso vitorioso se insinua em minha face. Ainda não entendo como é possível que eu sinta toda essa vontade, todo esse tesão apenas por estar perto dela. Não era para ser assim, principalmente por quem ela é e o que me impede de conseguir com sua teimosia.

Contudo, o mesmo magnetismo que me puxou até ela na primeira vez ainda continua exercendo seu poder, independentemente do que diz minha lógica.

— Então conhece o chef do Angelot? — volto a puxar assunto, resistente a me afastar.

— Sim! — sua voz soa um tanto exasperada. — Olha só, Theodoros Karamanlis, vamos encurtar o papo, ok? Não, eu não aceitei nenhum emprego e nunca — sorri malvadamente —, nunca vou vender o Hill para vocês. — Cruza os braços. — Seu primo já está comendo. Bom apetite!

Ah, Maria Eduarda Hill, você não tem ideia de com quem está lidando! Não vai se livrar de mim tão fácil assim.

— Se não é emprego... — rio — é um encontro? — minha voz sai tão debochada, tão incrédula, que ela enruga a testa por um momento antes de dar um enorme sorriso, muito teatral e falso por sinal.

— Não é da sua conta! — responde-me sem desfazer o sorriso, mas não volta a me dispensar.

— Interessante, Maria Eduarda — ouvir-me a chamando por seu nome completo apaga o sorrisinho de seu rosto, e me aproximo um pouco mais dela. — Uma cozinheira que conhece um chef do porte de Angelot, mas que prefere fritar bolinhos...

— Um homem que poderia estar degustando sua comida deliciosa — interrompe-me ironicamente —, mas que prefere ficar enchendo a paciência de uma mulher...

— ...mais deliciosa ainda! — completo sua frase e a vejo arregalar os olhos, pega de surpresa com o que eu disse.

Confesso que eu também estou. Realmente gosto de provocá-la, ver seus olhos castanhos brilharem de fúria e irritação. Gosto de saber que consigo fazê-la reagir sexualmente a mim, mesmo não querendo, da mesma forma como acontece comigo. No entanto, não tinha a intenção de deixar as coisas tão claras e nem ser tão direto quanto fui. O tesão falou mais alto, a vontade de senti-la, de tê-la é mais forte do que qualquer pensamento racional que ocupe minha mente.

Eu quero essa mulher!

Ficamos nos olhando do mesmo jeito que fizemos no restaurante naquela noite, a respiração pesada de ambos, a química forte atraindo meu corpo para o dela. Não sei como, mas, quando percebo, minha mão já está subindo pelo seu braço, contornando seu ombro, até que meus dedos roçam de leve sua bochecha.

Maria Eduarda fecha os olhos, e eu me aproximo mais, praticamente colando meu corpo ao seu, talvez o suficiente para que ela sinta como estou, como me deixa só com sua presença. Momentaneamente, esqueço onde estamos e, principalmente, quem somos. Só sinto o desejo pulsar nas pontas dos meus dedos, a sua pele queimando a minha, concentrando todo o tesão em minha virilha e fazendo com que meu pau fique pressionado nas calças de forma dolorosa.

Preciso beijá-la! É loucura, será um desastre, mas foda-se! Só preciso sentir o sabor, a textura, o calor dos seus lábios sob os meus e...

— Duda, tout est prêt, on peut commander le café ...10 — o baixinho interrompe nosso momento, e ela pula para trás, afastando-se de mim,

— Maláka11! — solto um palavrão em minha língua nativa, amaldiçoando o péssimo timer do filhote de cruz-credo francês.

O homem nos olha desconfiado a princípio, até me dirigir um olhar raivoso.

— Y a-t-il un problème?12

— Non, mon ami. C'est bien!13 — Duda responde. — Je ne veux pas de café. On peut y aller?14

— Oui! — o homenzinho responde, mas sem tirar os olhos de mim.

Vejo-a pegar a bolsa, passar por mim sem sequer um olhar e então aceitar o braço do francês. Por mais ridícula que seja minha reação, não gosto de assistir a outro homem a tocando.

— Maria Eduarda — chamo-a, e ela finalmente me olha. — Eu não desisto do que quero. — Ela suspira, e abro um sorriso. — De nada do que eu quero!


O Natal trouxe mais do que o sucesso do nosso menu de ceia para encomendas, trouxe também a oportunidade de rever um grande amigo!

Eu estava fisicamente esgotada depois de horas cozinhando sem parar, inclusive com a ajuda da tia Do Carmo e de Tessa, para pode dar conta de todas as encomendas que tivemos. Diversas famílias pediram o menu completo – desde a entrada até a sobremesa –, pelo que comemoramos muito, mesmo com a trabalheira que deu.

Demos conta e, ao final da noite, ceamos todos juntos no Hill, como a família que somos. Foi maravilhoso poder estar com quem eu amo, admiro e trabalho, pessoas que estão sempre ao meu lado não importa o que aconteça e que, a cada dia, me inspiram a continuar a lutar para não perder o bar e tudo o que conseguimos durante esses anos.

Um pouco depois da meia-noite, recebi a visita surpresa de Lara com seu marido, cunhada e sua enteada. O quarteto estava indo para a casa de um grande amigo de Cadu, Luti, pois no dia seguinte iriam para o interior almoçar com a família e não queriam deixar o outro roqueiro sozinho.

Arnaldo a bombardeou de perguntas sobre Marlon, porém, ela mal sabia informar, pois, após se formar, o antigo segurança do bar se mudou para o Rio de Janeiro. Lara relembrou os tempos de bartender e preparou drinques para todos, inclusive para nossas meninas, sem álcool, a fim de acompanharem o Cadu.

Foi uma reunião deliciosa, cheia de histórias de um ano corrido, durante o qual mal tivemos tempo de conversar, mas que não aplacou a força da nossa amizade.

No final da noite, já quase amanhecendo, dormi no quarto de minha filha, curtindo seu abraço gostoso e o frescor do ar-condicionado, satisfeita pelo sucesso do empreendimento de Natal, pela comemoração após e, claro, por poder ter minha família – mesmo tão pequena – ao meu lado.

Como já havia anunciado, não abri o bar no dia 25 de dezembro, aproveitei a ocasião dessa folga e fui passear com Tessa e tia Do Carmo. Fomos ao parque Ibirapuera e depois ao Villa-Lobos, onde minha filha se cansou de tanto andar na bicicleta que lhe demos – titia e eu – de presente.

À noitinha nos reunimos na frente da televisão, escolhemos – não sem uma boa briga – um filme na Netflix e comemos o que restou da ceia da noite anterior. Foi muito bom! Livrei-me das compras na terça-feira e ainda ganhei um tempo livre com as pessoas que amo. Não podia ter havido melhor presente de Natal para mim!

Contudo, houve um outro tão bom quanto!

Na sexta-feira, eu estava na preparação dos alimentos para mais uma noitada de final de ano no Hill quando recebemos um telefonema internacional. Sim, ligaram para o nosso telefone comercial! Fiquei nervosa, achando que pudesse ser notícia do agiota, mas então reconheci o sotaque de Thierry tentando – sem sucesso – falar em português.

Minha reação, logo após o susto, foi rir. Havia muitos anos não nos falávamos, mas seria impossível esquecer sua voz grave e máscula, que faz qualquer pessoa o imaginar como um homão de quase 2m de altura.

— Thierry, mon ami! — Estava tão surpresa e emocionada com aquela ligação que sentia a garganta apertada, mas continuei em francês: — Que enorme surpresa!

— Não seria se você tivesse deixado um telefone pessoal para contato! — respondeu em sua língua natal. — Duda, ma chérie! Estou tentando falar com você há algum tempo.

— Sinto muito, Thierry, eu mudei o número do telefone algumas vezes e acabei não o repassando aos amigos — justifiquei sem jeito. — Como vão as coisas? Tenho acompanhado o sucesso do Angelot e não estou nada surpresa! Nós sabíamos que seria um dos melhores da França! Trois étoiles, mon Dieu!15

Meu amigo riu, encantado com sua façanha.

— A tensão agora é manter! — confessou. — Mas não liguei para falar das Michelins, e sim para te fazer um convite.

— Convite?!

— Oui! Finalmente vou viajar para o Brasil! — abri um sorriso ao ouvir a novidade. — Fui convidado a assinar o jantar de uma festa no Ano Novo, em São Paulo.

— Aqui?! — Fiquei ainda mais surpresa. — Onde?

— Villazza SP! É um baile beneficente. Todo o dinheiro será doado, então abri mão do pagamento também.

— Ah, Thierry! — Fiquei muito orgulhosa e feliz por ele não ter mudado mesmo depois do sucesso. — É um gesto muito nobre.

— Sim, sim... mas tenho um problema.

— Qual? Se eu puder ajudar...

— Pode, sim! — Riu. — É por isso que fiquei tão desesperado atrás de seu contato. Minha souschef ficará responsável pela cozinha do Angelot durante minha ausência. — Fiquei surpresa por ele ser tão desprendido quanto a entregar sua cozinha para outra pessoa. Decerto confia muito na profissional que ela é. — A equipe de cozinheiros do hotel é muito boa, mas gostaria de ter você lá comigo.

— Eu?! — Tomei um susto. — Thierry, eu não entro em uma cozinha de alto nível há anos!

— Bobagem! Vamos nos encontrar assim que chegar à sua cidade.

— Quando? — Meu coração batia forte, de medo e ansiedade ao mesmo tempo.

— Depois de amanhã, estou arrumando as malas. Conhecerei a equipe na parte da manhã, então poderíamos almoçar. Você ouve minha proposta e, se aceitar, participa do treinamento à tarde.

Minhas mãos estavam frias e tensas, enquanto minha mente era povoada pelas lembranças de Paris, da euforia da cozinha, o medo de não agradar e todo o apoio de Thierry, que, na época, era chef de partie16 do restaurante onde trabalhávamos.

Ele foi meu maior incentivador e o que ficou mais abalado com minha decisão repentina de voltar ao Brasil, abandonando tudo. Era um grande amigo, mantivemos contato por um tempo depois do meu retorno, mas então papai morreu, e as coisas ficaram confusas demais.

Voltar a cozinhar, depois de tantos anos, ao lado dele não é apenas uma chance, é um privilégio!

— Onde nos encontramos? — perguntei, decidida a me dar essa oportunidade.

Agora, entrando pela primeira vez no suntuoso hotel dessa rede internacional, sinto minhas pernas tremendo como gelatina enquanto absorvo atentamente todos os detalhes da decoração. O saguão é lindo e imponente, o que me anima, pois espero que a cozinha seja um espetáculo.

Identifico-me a um dos recepcionistas, que me indica o elevador para o terraço assim que colhe meus dados, fazendo um pequeno cadastro por ser minha primeira vez no hotel.

Quando as portas do elevador se abrem, já no terraço, a primeira pessoa que vejo é Thierry. Recebo um abraço apertado e beijos na bochecha, uma saudação tão calorosa que nem parece que não nos falamos há anos. A amizade está intacta para ele também, assim como para mim.

— Você está linda! — elogia-me em francês. — Como pode todos esses anos se passarem e você ficar ainda mais bela?

Rio do exagero dele, tão característico, pois é um galanteador conhecido por suas maneiras lisonjeiras de tratar uma mulher.

— Você mudou pouco também, meu amigo!

— Infelizmente! — Ri de si mesmo. — Aumentei minha conta bancária e meu prestígio, mas continuo feio e baixinho.

— Isso nunca foi problema para você, mesmo quando não tinha dinheiro. — Ele estufa o peito, sabendo que é verdade. — As mulheres sempre ficavam deslumbradas com você.

— Minha linda, se a natureza não foi generosa te dando o rosto e o porte do Jason Statham, você tem que se aperfeiçoar com o que tem de melhor e tirar proveito disso.

Gargalho e o beijo, adorando saber que ele ainda é fã do famoso ator de filmes de ação. Seguimos de braços dados até o restaurante onde ele fez reserva, elogiando toda a estrutura existente no terraço do hotel.

Além do Vincenzo’s, há um bistrô de comida francesa no outro extremo do lugar, dando vista ao outro lado da cidade, e várias lojas de marcas internacionais, de vestuário, acessórios e joias, cabeleireiros e um SPA. No meio disso, vários jardins e locais para sentar, conversar ou mesmo aguardar enquanto alguém faz compras.

Eu nunca poderia imaginar que em cima do hotel houvesse tanta coisa!, penso deslumbrada. Já ia comentar com Thierry sobre a surpresa ao descobrir este espaço aqui, quando vejo quem nos espera na porta do restaurante.

Vincenzo Giacontti!

Desde que ele me convidou para almoçar no Villazza SP, eu já sabia que iríamos ao restaurante do Vincenzo, mas não esperava ser recebida pelo chef pessoalmente. O homem é uma estrela aqui no Brasil. Reconhecido como um dos maiores chefs de cozinha italiana do mundo, ele ainda tem um jeitão todo despojado e é muito bonito!

— Benvenuto! — cumprimenta-nos, claramente satisfeito ao ter Thierry no seu estabelecimento.

— J'avais hâte de rencontrer le célèbre chef cusinier et ami Frank! — Thierry o cumprimenta, porém, ele não diz nada.

Talvez o chef Giacontti não saiba o idioma!

— Ele estava ansioso por conhecer o famoso chef do Frank Villazza. — Sorrio. — Ao que parece, o amigo dele fez recomendações sobre você, chef.

Vincenzo me encara por alguns momentos antes de abrir um enorme sorriso que o deixa muito charmoso, ainda mais com o aparecimento de algumas ruguinhas.

— O prazer é todo meu em receber aqui um chef com o talento e prestígio de Angelot.

— Il a déclaré que c'est un plaisir de recevoir un chef cuisinier aussi talentueux et prestigieux que vous.17

— Obrigado! — Thierry arrisca o português e depois se supera: — Grazie!

Giacontti sorri, retribuindo o cumprimento e nos acompanha até um mezanino onde se tem uma impressionante vista da cidade de São Paulo, inclusive das copas das árvores do Ibirapuera ao longe.

Sentamo-nos protegidos do sol pelo ombrelone e refrescados por climatizadores, potentes ventiladores que soltam nuvens de umidade para amenizar a sensação de calor. Thierry me pergunta se quero provar o menu degustação ou se quero pedir à la carte. Prefiro pedir separadamente os pratos, apenas uma entrada e um prato principal, e ele me acompanha no pedido. Deixo-o escolher o vinho, apreciando seu bom gosto e perícia para harmonizar a bebida com todos os ingredientes dos pratos.

— Quero, antes de falar do trabalho, saber como estão as coisas — Thierry fala assim que o sommelier se afasta.

— Trabalho duro no bar do papai. — Sorrio quando ele faz careta. — Eu sei o que você pensa sobre minha decisão de voltar, mas...

— Duda, ma chérie, a questão não é o que eu penso, mas o que você fez! — Thierry continua incisivo como sempre foi. — Você simplesmente desistiu de uma carreira brilhante!

— Não sabemos disso, eu estava só começando!

— Oh, lala, como não? Eu fiquei louco com seu talento e sua técnica quando te conheci, sabia que iria longe! — Tento não pensar muito nisso, não olhar para trás, mesmo que as palavras dele calem fundo dentro de mim. — No mínimo, você seria minha souschef hoje, Duda!

— Já seria uma enorme honra!

— Bobagem! — Ele faz um gesto com a mão. — Você tem talento para ter seu próprio restaurante, ganhar três estrelas e ainda fazer pouco caso delas!

Rio com a forma como ele me vê. Sim, eu era dedicada e talentosa, mas havia muitos como eu; isso não significa que eu iria longe.

— Você sabe que eu não pude...

Ele suspira, balançando a cabeça.

— Ah, l’amour, l’amour, l’amour! — gargalho com a dramaticidade que emprega nas palavras. — O que não fazemos por amor, não é assim? — Rola os olhos. — Pure merde!

— Thierry... — Balanço a cabeça. — O que passou, passou, não posso mudar as escolhas que fiz. Quer saber mais? Faria tudo igual!

Ele bufa. Ficamos mudos enquanto um garçom serve nosso vinho e água.

— Encontrei Jean-Luc um tempo atrás em Nice — ele comenta. Levanto a sobrancelha. — Senti vontade de cortar as bolas dele e jogar para os peixes do mar! — Gargalho. — Não o fiz, claro, ia matar toda a vida marinha!

Pego sua mão.

— Eu senti demais sua falta!

— Eu também, Duda! — Thierry segura firme minha mão por cima da mesa. — Juro que não entendo o que aconteceu! Vocês pareciam tão apaixonados, tão perfeitos um para o outro, então ele simplesmente a abandonou no momento em que você mais precisava!

Bebo um gole do vinho.

— Há pessoas que não estão prontas para lidar com responsabilidades! — Dou de ombros. — Respeito a escolha dele, assim como respeitou a minha.

— Mas foi um canalha indo embora sem deixar destino e sem, ao menos, falar com você!

— Sim, ele foi covarde. Mas não precisei dele... dei um jeito.

— Abrindo mão dos seus sonhos! — exclama indignado.

— Não, Thierry, reformulando os meus sonhos.

— E como está Tessa?

Sorrio ao pensar na minha menina, meu peito se enchendo de orgulho pela criança maravilhosa que ela é. Eu faria e faço qualquer coisa pela sua felicidade, reformulo sonhos, desisto de projetos, qualquer coisa pela minha filha.

— Crescendo! — Abro o celular e lhe mostro uma foto.

— Mon Dieu! Linda como a mãe. — Encara-me emocionado. — Que os corações dos jovens dessa cidade sejam protegidos!

Gargalho, dando um tapinha em sua mão.

A entrada é servida, então começamos a discutir os detalhes do jantar de amanhã à noite. Thierry me explica a dinâmica, elogiando a equipe e o chef do restaurante do hotel. Contaremos com uma brigada de 50 cozinheiros, sendo que o chef passará a exercer a função de chef de partida, controlando a execução dos demais cozinheiros. Thierry e eu seremos os únicos fora da equipe, e, quando demonstro receio sobre a questão do ego do chef executivo do hotel, ele me acalma dizendo que já estão acostumados a auxiliar um chef convidado para bailes e outros eventos.

Fico surpresa, imaginando que o chef deva ganhar muito bem para que não se revolte contra isso, pois sei como são possessivos com suas cozinhas. Dificilmente um chef cede espaço a outro, e inclusive há muitos relatos de brigas feias entre chef e souschef exatamente por medo de perder o posto.

Acabamos nos lembrando de algumas histórias sobre nossa época no L’Amande e passamos toda a refeição, até a chegada do delicioso tiramisù, rindo das loucuras, nossas e dos outros, do tempo em que trabalhávamos como loucos dentro da cozinha de um restaurante uma estrela.

Na época, Thierry tinha acabado de ser promovido a souschef, pois ameaçou ir embora para o concorrente direto caso não preenchesse a vaga deixada por uma amiga nossa que decidiu abrir seu próprio negócio, uma padaria.

Trabalhamos quase dois anos juntos, desde meu estágio até o momento em que voltei para o Brasil, e sempre acalentamos o sonho de abrir um pequeno bistrô na Rue Saint-Honoré, oferecer alta gastronomia com preço justo e muita qualidade.

Enquanto dividimos o doce, ele me atualiza de algumas novidades sobre conhecidos em comum, sempre com seu jeito debochado e espalhafatoso, arrancando-me muitas gargalhadas.

— Preciso ir ao banheiro um minuto. — Thierry se levanta. — Não fuja com aquele chef grandão na minha ausência. — Ri. — Aposto que o homem sabe falar francês e ficou quieto só para ouvir sua voz sexy!

— Thierry! — repreendo, sem jeito.

Enquanto ele entra no restaurante, vou até o guarda-corpo para olhar a movimentação na entrada do hotel. Sinto um frio na barriga, e um arrepio cruza meu corpo, surpreendendo-me, pois nunca senti medo de altura.

— Me dê a boa notícia de que aceitou o emprego e vai vender o boteco para mim!

— Merde! — Ponho a mão sobre o coração, virando-me para ter certeza de que não estou em uma espécie de sonho acordada e que, realmente, Theodoros Karamanlis acabou de falar comigo. É mesmo ele! — O que você... — Olho para a outra mesa, buscando sua companhia e vejo Millos olhando para nós dois e parecendo muito interessado. — Ah, merda! — murmuro e dou as costas para ele, tentando acalmar as batidas do meu coração e o tremor nas minhas pernas. Estive fantasiando com esse homem durante toda a semana, e agora ele está aqui! Fecho os olhos, e o cheiro de seu perfume chega até minhas narinas, parecendo me tentar. — Isso só pode ser alguma brincadeira do destino! — lamento, e ele ri, postando-se ao meu lado.

— Do destino? — sua voz é irônica, e isso me irrita. — Não acredito nessas bobagens!

Olho para ele, as mãos segurando firme sobre a proteção de vidro, sentindo meu sangue ferver por ele estar aqui para atrapalhar um encontro tão tranquilo e gostoso com um velho amigo.

Nas minhas fantasias, Theo não é um Karamanlis, mas sim apenas aquele homem lindo de morrer, charmoso como o diabo, que eu conheci no bar de um restaurante. Ele não tem esse tom de deboche e nem me provoca com sua arrogância.

Decido ser dura com ele e deixar claro que não é bem-vindo ao meu lado.

— Eu não me interesso pelo que você acredita ou não! — respondo no momento em que vejo os garçons servindo o primeiro prato deles. Aponto para a mesa. — Sua comida começou a ser servida.

Ele não se move, nem mesmo olha para trás, encarando-me do mesmo jeito que fez no bar. Meu corpo traidor se aquece, e as imagens de todas as fantasias, de todas as maneiras que o imaginei me tocando, provocam arrepios de prazer pelo meu corpo.

— Novamente... a comida não é o meu interesse no momento.

Preciso reter o fôlego para não ofegar. Minha vagina se aperta e meus mamilos ficam duros contra o tecido do vestido. O desgraçado sabe mesmo seduzir, mesmo sendo direto como é. A autoconfiança dele é demais, faz parte de seu charme, demonstra a segurança de um homem que sabe o que precisa fazer para enlouquecer uma mulher.

A mesma sensação que tive com seu toque volta a me assolar, e tento com muito empenho não demonstrar o quanto ele mexe comigo.

— Então conhece o chef do Angelot? — pergunta como se não tivesse interesse, mas não consegue me enganar. Só não sei se o interesse é sobre o tipo de conhecimento que temos ou se espera que isso seja um almoço de negócios e que eu venda o Hill para me mudar para Paris a fim de trabalhar com Thierry.

— Sim. — Decido ser tão direta quanto ele. — Olha só, Theodoros Karamanlis, vamos encurtar o papo, ok? Não, eu não aceitei nenhum emprego e nunca — sorrio, dando-lhe um pouco do seu próprio veneno sedutor —, nunca vou vender o Hill para vocês. — Cruzo os braços e indico sua mesa com o olhar, querendo que ele me deixe em paz. — Seu primo já está comendo. Bom apetite!

— Se não é emprego... — ele continua, e tenho vontade de deixá-lo falando sozinho — é um encontro? — seu tom de deboche não me passa despercebido.

Ele acha estranho eu ter um encontro com Thierry? Abro um enorme sorriso, desejando que meu amigo estivesse por perto para poder beijá-lo e arrancar a prepotência da cara desse grego.

— Não é da sua conta!

— Interessante, Maria Eduarda — fico séria ao ouvi-lo me chamar assim, do mesmo jeito que fez quando nos conhecemos, lembrando-me de como me senti e percebendo que ele ainda exerce o mesmo poder sobre meus sentidos. — Uma cozinheira que conhece um chef do porte de Angelot, mas que prefere fritar bolinhos...

Ah, que imbecil!

Ignoro o clima sexual, a atração, o desejo e todas as merdas de fantasias que tive e que tenho com ele. Que homem soberbo! O que ele sabe sobre as escolhas que temos que fazer na vida? O que um homem que nasceu em berço de ouro sabe sobre sacrifícios e amor?

Perco a paciência e resmungo, lamentosa:

— Um homem que poderia estar degustando sua comida deliciosa, mas que prefere ficar enchendo a paciência de uma mulher...

— ...mais deliciosa ainda!

Puta que pariu!

Que voz é essa?!

Que olhar é esse?!

Vejo naquelas duas grandes safiras a verdade de suas palavras. Seu desejo, seu tesão por mim fica tão claro como o dia de hoje, evidente, impossível ignorar ou fingir que não vi. É como um reflexo do meu próprio, e fico confusa com isso. Nós nem ao menos gostamos um do outro, como é que sentimos essa atração tão poderosa assim?

Quando a ponta de seus dedos começa a deslizar pela minha pele, sinto meu corpo inteiro tremer. Tenho vontade de gemer de prazer com o toque, seus dedos deixando um rastro quente por onde passam, até chegar ao meu rosto.

O carinho é tão inesperado e tão fora do contexto de nossa conversa que me desarma. Fico aqui, passiva, apenas desfrutando das sensações, imaginando esses mesmos dedos sobre meu sexo, tocando meu clitóris, sentindo a umidade que já está presente.

Fecho os olhos e o sinto se aproximar de mim, o calor do seu corpo emanando até o meu, ultrapassando o tecido do vestido e impactando minha pele. Sinto o hálito quente de sua respiração sobre meu rosto e o pulsar de sua ereção em minha barriga.

Ah, meu Deus!

Não há mais dúvidas de que isso não é uma brincadeira. Theodoros Karamanlis me quer do mesmo jeito que eu o quero! Como é possível que duas pessoas que se detestam possam sentir tamanha luxúria? Eu quero me agarrar a ele, tocar seu pênis para sentir o calor. Quero suas mãos nos meus seios, sua boca na minha...

— Duda, tout est prêt, on peut commander le café ...

A voz de Thierry me arranca do transe sexual no qual estava. Pulo para trás, para longe do demônio que me confunde como ninguém e o escuto falar em outra língua.

— Maláka!

Pela entonação e o olhar gélido de Thierry, Theodoros soltou um palavrão bem cabeludo. Meu amigo me olha, questionador e preocupado.

— Y a-t-il un problème?

Pela reação de Theo, ele entende muito bem o francês.

— Non, mon ami. C'est bien! — respondo, querendo me afastar daqui o mais breve possível. — Je ne veux pas de café. On peut y aller?

— Oui!

Thierry não deixa de encarar Theo, e eu, temendo que um possa falar besteira para o outro, pego minha bolsa e vou até meu amigo, tomando-lhe o braço que me oferece. Saio sem me despedir do demônio, mas, claro, ele não pode ser ignorado, tem que dar a última palavra:

— Maria Eduarda. — Não consigo fingir que não ouvi, principalmente por ele ter usado meu nome inteiro. — Eu não desisto do que quero. — Suspiro, entendendo o que ele quer dizer. — De nada do que eu quero!

Thierry me puxa de leve para frente, e caminho consigo para dentro do salão, passando pelo Millos sem o cumprimentar. Tremo bastante, não de medo ou de nervosismo, mas de antecipação, de vontade, porque sei que ele não vai desistir.

Sim, Theodoros Karamanlis não quer somente tomar posse do que é meu.

Ele me quer!


Estou há meia hora esperando dentro do carro em frente ao prédio de Valentina, e nem sinal dela. Confiro as horas mais uma vez e respiro fundo, chateado por estar atrasado. Claro, a culpa não é totalmente dela, pois demorei a sair da empresa, mas mandei mensagem quando saí de casa, e ela afirmou que estava quase pronta.

Quando a porta é aberta pelo Dionísio, suspiro aliviado, vendo-a, deslumbrante, entrar no carro e se sentar ao meu lado.

— Boa noite, Theo, desculpe pelo atraso. — Sorri e se aproxima.

Seguro seu rosto e, cheio de esperança, beijo-a.

Dessa vez ela corresponde à altura do meu ímpeto, o que me impele a aprofundar a carícia, trazendo-a para mais perto de mim a fim de sentir seu corpo contra o meu. Sua pele é deliciosamente macia, cheirosa, o beijo, muito bom, e meu pau reage... porém, não o suficiente.

Separo-me dela assim que sinto o carro andar, e imediatamente Valentina pega um espelho em sua carteira, conferindo a maquiagem, sem falar nada ou mesmo trocar um olhar provocador comigo.

Porra!

Olho pela janela, as ruas passando, pensando se conseguirei viver com ela. Meu avô vai fazer 90 anos daqui pouco mais de um mês, e o tempo tem sido meu inimigo. Não posso decepcioná-lo, não quando já o fiz tantas vezes, e ele me perdoou e acolheu sem nunca me culpar ou me julgar por minhas escolhas.

Valentina é a mulher ideal, a brasileira que ele aceitaria.

Nunca pensei em me casar com uma grega, essa é a verdade. Moro há tantos anos aqui e só me relaciono com mulheres do país. A última vez em que tive uma relação com uma estrangeira, nem mesmo era grega, mas sim uma francesinha com cabelos coloridos, safada e faceira.

Um leve sorriso aparece no meu rosto ao pensar na mulher dos cabelos rosa. Ela anda um tanto sumida das minhas fantasias, talvez por agora estar interessado na dona do botequim.

Penso em Maria Eduarda e questiono se ela se agarraria a mim dentro deste carro, se se importaria com sua maquiagem ou se se entregaria ao beijo. Se teria pudores se eu a puxasse para meu colo, mesmo com Dio ao volante, ou rebolaria gostoso contra meu pau, gemendo na minha boca, enquanto eu sugasse sua língua como gostaria de fazer em sua boceta.

Interrompo os pensamentos, colocando as mãos sobre o colo, escondendo a ereção completa que os pensamentos me causaram, comparando ao estado “meia bomba” que o beijo de minha acompanhante me deixou.

Porra!

Já estou começando a chamar minhas ereções fora de hora de “efeito Duda Hill”. É pensar ou estar com a mulher que meu pênis se levanta a toda potência, pronto para servir, não importa onde seja: dentro do carro com outra mulher ao lado; no mezanino de um restaurante, tendo o observador Millos como expectador; ou mesmo no escritório, enquanto tento fazer meu trabalho, mas divago pensando no cheiro dela.

Caralho, a mulher virou uma obsessão!

O carro para na porta do Villazza SP, e uma horda de repórteres, a maioria de sites e revistas de fofoca, já nos aguarda sair. Dionísio sai ao mesmo tempo em que eu, dando a volta pela frente, enquanto eu o faço por trás do veículo, abrindo a porta do lado onde está Valentina.

Estendo minha mão para ela, auxiliando-a sair, enquanto chuvas de flashes nos alcançam.

— Odeio a imprensa — confessa baixinho.

— Somos dois! — Sorrio e a acompanho para dentro do hotel.

A suntuosa escada, réplica da existente no primeiro hotel Villazza na Itália, é o caminho que fazemos até o salão nobre, onde a decoração primorosa da minha irmã já nos saúda na recepção organizada, imitando a bilheteria antiga de um circo de luxo. Trocamos nossos convites por máscaras – a de Valentina é preta, e a minha, branca – e recebemos pulseiras com códigos de barras para que possamos entrar e sair do salão.

Valentina pede ajuda a uma das recepcionistas para fixar a pulseira em seu pulso, e eu a aguardo, conferindo no relógio o quanto estamos atrasados. O baile começou há mais de uma hora, e eu queria ter visto o discurso do Frank, ou mesmo do doutor Andreas Villazza, que neste ano sei que está aqui.

Uma mulher chama minha atenção. Ela está de costas para mim, pegando seus acessórios para entrar no salão, e seu vestido branco é todo bordado com cristais que refletem outras cores. Sua pele morena, cabelos negros presos em um coque e um corpo curvilíneo ressaltado pelo modelo do vestido me fazem pensar em uma sereia.

Ela se vira para entrar, e eu a reconheço. É uma das funcionárias da Kyra que trabalhou no evento de fim de ano da Karamanlis no ano passado. No entanto, não me recordo do nome.

Cumprimento-a com a cabeça, ela faz o mesmo e depois segue para o baile, enquanto eu ainda espero minha acompanhante.

— Pronto! — Valentina ri ao me mostrar a pulseira. — Achei que nunca ia prender. — Ri e alisa seu vestido branco. — Aquilo ali é burlar as regras, não? — Indica o vestido da sereia. — O fundo é branco, mas os cristais colorem o vestido!

— Eu gostei — respondo com sinceridade. — E, se burla as regras, o fez de forma inteligente.

Ela apenas assente, ficando muda até nossa entrada.

Puta merda, minha irmã se superou!, penso orgulhoso.

A decoração foi toda projetada de modo a dar a sensação de que estamos entrando em um circo antigo, com pesadas cortinas de veludo carmim e tecidos de brocado indo até o teto do grande salão, imitando o formato de uma tenda. Logo na entrada, dois malabares, com máscaras de bronze enormes – uma do sol e o outro da lua – nos saúdam, enquanto há trapezistas penduradas em argolas e tecidos no teto.

A luz baixa combinada com as velas em enormes castiçais e os enormes arranjos florais dão um tom especial à fantasia de se estar em um circo antigo, embora muito sofisticado. Um garçom – vestido de Pierrô, com sua tradicional tristeza de palhaço – nos oferece champanhe. Eu declino, e Valentina pega uma taça.

— Uau! — Ela parece tão deslumbrada quanto eu. — Isto aqui está incrível! Nem parece o salão nobre do hotel, e olha que já vim a muitas festas aqui!

— Eu também — confesso admirado.

— Olha o chão! — Ela aponta para algum tipo de tapete que cobriu toda a madeira do piso do salão e o transformou em um azul profundo cheio de estrelas brancas, como as antigas lonas de circo. — Quando muda a luz, elas brilham!

Fico olhando e confirmo que, em algum momento, luzes negras são acesas e as estrelas do chão parecem brilhar. Olho em volta para ver se identifico Kyra em algum canto – buscando uma bela mulher sem máscara e provavelmente vestida de preto –, mas não consigo ver muita coisa com a quantidade de pessoas transitando à nossa volta.

— Precisamos achar nossa mesa! — Valentina diz empolgada. — Sabe com quem estamos sentados?

— Provavelmente com minha família. — Dou de ombros. — Millos não veio, mas Alex e Kostas devem estar por aqui.

— Ah, vou adorar conhecê-los!

Ô, se arrependimento matasse!

Andamos entre as pessoas dançando, mesmo havendo uma pista separada só para isso, até encontramos a mesa com placa de reserva escrita com caligrafia profissional: Karamanlis.

— Eis a mesa! — Valentina comemora. — Eu amo essa música!

Escuto a canção famosa na voz do Tony Bennett e, como cavalheiro que tento ser, estendo a mão para ela, convidando-a a dançar. Ela abre um enorme sorriso, ajusta sua máscara, e seguimos os dois para a pista de dança.

Abraço-a junto a mim, seguindo o ritmo, mas sem realmente me esforçar para dançar bem, apenas guiando-a em passos simples. Sinto os dedos dela, que deveriam estar em meu ombro, aproximarem-se de meu pescoço, subindo e descendo em carícias. Franzo as sobrancelhas, sem realmente entender essa mulher.

Encaro-a e quase me assusto com o sorriso malicioso e o brilho em seus olhos.

— Eu queria um momento assim, junto com você, sem um motorista a assistir. — Aproxima-se. — Esperei por esse momento a semana toda, Theo.

Seus lábios tocam os meus devagar, olhos abertos, encarando-me sem parar. Aperto mais sua cintura, colando nossos corpos, tomando sua boca em busca finalmente da atração, do arrepio na pele e da reação do pau. Acontece, claro, tenho sangue nas veias, e ela é uma mulher linda, mas, ainda assim...

A música acaba, as luzes são todas acesas e o mestre de cerimônias aparece no palco, vestido com um smoking listrado de vermelho e branco, calças e sapatos pretos, uma bengala e uma enorme cartola preta na cabeça.

— Senhoras e senhores! — diz após os aplausos. — Respeitável público! Bem-vindos ao 10.º Baile Branco e Preto promovido pela Rede Villazza de Hotéis! Vocês já foram agraciados com a mensagem de abertura do Presidente Geral, doutor Andreas Villazza, e agora, antes de darmos início ao jantar, peço que recebam com aplausos o responsável pela Rede na América do Sul, doutor Francesco Villazza!

Frank sobe ao palco ao lado de Isabella, com aquele seu sorriso torto de sempre, adorando ser a estrela da festa. Conheço muito bem esse carcamano para saber que adora estar sob os holofotes!

— Buona notte! — saúda a todos. — É um enorme prazer tê-los aqui nesta noite especial. Como meu pai já nos abrilhantou contando a história dos primeiros Bailes Bianco e Nero nas nossas unidades italianas, não vou tomar o tempo de vocês falando de ano após ano dessa mesma tradição aqui no país. — Ele faz careta, e uma risada geral é ouvida. — Vou falar da importância desse baile! Como sabem, não o realizamos todos os anos, na verdade, é o segundo que a cidade de São Paulo recebe, pois os oito anteriores foram feitos em Curitiba. O intuito desta festa é muito maior do que apenas o entretenimento. Embora tenhamos o maior cuidado em oferecer o que existe de melhor para sua noite, essa não é a prioridade do baile. Minha avó foi uma médica incrível! Uma mulher à frente de seu tempo que, mesmo casada com um homem de família nobre, se dispôs a aplicar seus conhecimentos para ajudar o próximo, e nós continuamos seguindo seus preceitos. — Há uma chuva de aplausos quando a imagem de uma senhora muito distinta, vestida de branco, aparece no telão. — Este ano o conselho da Fundação Maria Eugenia Andretti escolheu instituições que trabalhem com crianças, seja na área de educação, esporte, lazer ou mesmo do social. — Logomarcas de três instituições aparecem.

Isabella é quem vai até o microfone com uma pasta na mão.

— A AcordSons é uma fundação familiar de músicos que levam a arte em forma de oficinas, cursos e patrocínio para músicos clássicos em comunidades onde há altos índices de violência praticada por ou contra crianças e adolescentes. — Imagens do local passam no telão. — A Brinquelândia é uma ONG que assegura o direito da criança de brincar, tão importante nos dias de hoje! Além de exercerem vigilância constante às denúncias de trabalho infantil, eles têm oficinas de artesanato, aulas de teatro e música, sempre com o foco na brincadeira e no lúdico. — Ouço umas palavras de ordem e aplausos de um grupo reunido em uma mesa à nossa esquerda. — E, por fim, a WaveAccess, criada há quase dois anos e que promove acessibilidade ao surf, provendo cursos, materiais e treinamento para crianças, jovens e adultos com necessidades especiais, sendo seu principal público o infantil.

Vejo as fotos do surfista Bernardo Novak aparecendo junto a um outro, mais velho e sem um dos braços, em uma praia lotada de crianças com as mais variadas necessidades especiais, físicas ou intelectuais.

Vejo a família Novak, cujo filho mais velho é casado com a caçula dos Villazzas, numa mesa à minha direita. Dona Cecília, Gilberto, Nicholas e Giovanna aplaudem com orgulho o garoto que, até um tempo atrás, era considerado a ovelha negra da família.

Feitas as apresentações, os anfitriões informam que há mais informações sobre cada instituição no livro do programa de leilão, onde, além de conter todas as peças do inventário a serem leiloadas, há fotos e histórias de cada uma das beneficiadas da noite.

Neste ano não doei nenhuma peça, mas pretendo adquirir algo.

— Eles disseram que toda a arrecadação do baile será destinada 100% para as três instituições, mas e o custo de montar esta estrutura? — Valentina questiona quando nos sentamos à mesa.

— Boa parte é bancada pela Rede, e o resto, por doações. — Ela arregala os olhos e sorri. — Muita gente contribuiu no país todo, pelo que Frank me contou. Já é um baile famoso!

Mal termino de falar e vejo Alex se aproximando com sua acompanhante. Ele franze as sobrancelhas ao ver Valentina, provavelmente questionando quem é a artista da vez, e eu reconheço sua melhor amiga, Samara, de braços dados com ele.

— Theo! — a moça, sempre muito simpática quando nos encontramos em eventos, cumprimenta-me. — Que bom vê-lo esta noite! — Olha para Valentina, esperando que eu as apresente.

— Samara Schneider, essa é Valentina de Sá e Campos. — Alex dá um sorriso debochado em minha direção, como se reconhecesse os sobrenomes dela. — Valentina, essa é a Samara, uma incrível designer de interiores.

— É um prazer, Valentina! — Ela vai até minha acompanhante.

Aproveito que as duas vão engatar em alguma conversa sobre conhecidos em comum e coloco minha atenção em meu irmão.

— Viu só esse trabalho da Kyra? — Aponto para tudo em volta.

— Claro! — Ri da minha pergunta. — Seria impossível não ver, já que estou aqui! — Rolo os olhos, e ele ri. — Já fui até cumprimentá-la, mas está tão ocupada que não consegui nem falar com ela direito.

— Imagino que esteja — concordo, mas ainda me sentindo muito orgulhoso, mesmo que nunca vá dizer isso a ela. — Viu o Kostas?

— Com saudade dos seus irmãos? — Senta-se e responde ao notar que não fiz caso de sua perguntinha ridícula: — Estava com uma loira gostosa lá perto do bar. O bourbon, você sabe!

Assinto, também sentindo falta do meu scotch. Como se meus pensamentos fossem ouvidos, uma linda Arlequina aparece com uma bandeja com copos, gelo e belas garrafas do meu segundo uísque preferido. É pena não ter o meu preferido!

— Caubói, por favor — solicito quando ela pergunta sobre minha bebida.

— O jantar já foi anunciado — Alex comenta. — Chegou agora?

— Sim, só consegui ouvir o discurso do Frank. Legal a fundação do seu amigo estar sendo beneficiada.

— Bê merece, o cara é um guerreiro! — Alex comenta. — Nick está muito orgulhoso do irmão.

— É, não deve ter sido fácil para ele, mas superou e ainda quis fazer a diferença. Isso é legal de se ver! — comento com ele.

Ficamos conversando um tempo como se não houvesse nenhum problema entre nós, falando sempre de trivialidades, de amigos conhecidos, trabalho e qualquer coisa que não seja nossa vida pessoal.

Ele não me pergunta sobre Valentina, e nem eu sobre Samara, mesmo porque sei que a amizade dos dois é longa, uma vez que o pai dela trabalhou para a Karamanlis durante muito tempo. Ele executou toda a parte de planejados de um dos empreendimentos na gestão do Nikkós. O homem era um design de móveis respeitado e com uma agenda apertada. Hoje, sei que ele não atende mais particulares, apenas empresas, mas teve um momento em que ter um móvel Schneider em casa era sinônimo de bom gosto e exclusividade.

— Família!

Viro-me ao ouvir a voz debochada de Kostas. O homem vem abraçado a uma loira com um vestido branco tão justo e transparente que pouca coisa de sua anatomia perfeita fica à imaginação.

— Bruninha, conheça os Karamanlis! — Ele aponta para Alex e mim. — Claro que você pode deixar seu cartão com eles depois, mas eu sou o mais bonito, não sou?

Ele segura a mulher pela cintura e a gira.

— Já bêbado? — Olho para Alex, que balança a cabeça.

— E mais uma vez com acompanhante paga! — Ele chega mais perto de mim. — Estou achando que nosso querido irmão é do outro time.

Gargalho alto, quase engasgando com meu uísque, o que chama a atenção das duas mulheres, que param de conversar e me olham.

— Perdoem-me, foi irresistível! — Bebo mais um gole. — Bom, certamente ele é arrogante e orgulhoso demais para “sair do armário”.

— Seria apenas mais um rejeitado pelo seu querido pappoús! — Alex diz antes de beber seu champanhe.

Olho para meu irmão sem saber o que dizer para aplacar essa dor que ele traz dentro de si desde criança. Quantas vezes menti a ele dizendo que Geórgios era um homem muito ocupado, mas que pensava nele. Quantas e quantas desculpas inventei ao menino para justificar o fato de nosso avô nunca o ter conhecido ou mesmo reconhecido como neto.

Alex se levanta e chama Samara para dançar. Valentina me olha, provavelmente esperando o mesmo de mim, vendo meus dois irmãos na pista com suas respectivas acompanhantes, mas finjo não entender. Não tenho vontade de dançar agora, não depois que as amargas lembranças voltaram a me atormentar.

Pego mais uma dose de uísque e respiro aliviado quando vejo o jantar começando a ser servido. Confiro o menu em cima da mesa para ver o que está no cardápio do chef Angelot e fico satisfeito com as escolhas dele.

A música muda, ficando mais suave e baixa, as luzes todas são acesas, e vejo um a um retornar à sua mesa para degustar a comida três estrelas do chef francês convidado da noite.


O jantar foi um sucesso total!

Nunca vi tamanho silêncio entre os convidados de um baile, efeito da perfeição de cores, texturas e sabores do chef Thierry Angelot. O tradicional menu em sete etapas consistiu em: aperitivo – camarões salteados com legumes envoltos em nori; entrada – mini tartar de salmão com tomate; prato principal – costelas de cordeiro com guisado de quinoa e espinafre; prato de queijos; um café especial; sobremesa – profiteroles; e, por fim, um digestivo que eu acabei por dispensar. Cada etapa foi harmonizada com um vinho diferente que eu neguei, pois não queria prejudicar o paladar do meu puro malte.

— Valeu cada centavo do convite! — ouvi uma pessoa comentar enquanto eu circulava pelo salão.

Encontrei alguns conhecidos – a maioria já não usava mais as máscaras – e fiquei um bom tempo conversando sobre negócios.

— Você veio, stronzo! — Frank me cumprimentou quando nos encontramos. — Vi seus irmãos na pista de dança, mas essa sua cara tediosa eu não vi.

— Sem ânimo para danças! — Dei de ombros. — Deve ser a idade.

Ele gargalhou, negando, pois é alguns anos mais velho que eu.

— Aposto que está andando por aqui babando no trabalho de sua irmã! — Sorri sem jeito, porque ele me conhece demais, na verdade é o único de fora da família que sabe os motivos que nos levaram a sermos tão fodidos desse jeito.

— Ela se superou! — confessei. — Kyra é melhor que todos nós, os homens Karamanlis. Começou sua empresa sem ajuda, batalhou para conseguir chegar aonde chegou. — Bebi mais um pouco. — Nós já pegamos tudo pronto.

— Nossas irmãs são desertoras, essa é a verdade! Não se abandona o negócio da família, nunca!

Ri dele, pois sei o quanto ainda o chateia sua própria irmã ter saído da Rede para montar sua própria agência de publicidade. Fiquei conversando um pouco mais com Frank, perguntando sobre as crianças – ele já tem três filhos – e sobre os negócios.

Há alguns anos nossa conversa seria sobre mulheres, uísque e negócios. Ele sempre com aquele cigarro na boca, tentando me convencer a comprar uma moto, coisa que nunca fiz e provavelmente nunca farei, pois elas não fazem minha cabeça. Prefiro carros potentes, confortáveis e cheios de segurança.

Em certo momento da noite, Kyra passou por mim, minha bela irmã com seu porte de deusa, cabelos cheios e escuros, olhos verdes e pele morena, vestida em um terninho preto básico, com um tablet na mão e um radiocomunicador na orelha.

Ela parou em seco quando me viu. Tentei sorrir e me aproximar, mas imediatamente ela se virou e saiu de perto como se eu fosse um leproso. Respirei fundo e bebi todo o conteúdo do copo.

Minutos depois, já de volta à mesa, ouvimos o aviso da contagem regressiva, e o salão explodiu em vivas e desejos de Feliz Ano Novo. Valentina se pendurou no meu pescoço e me beijou, desejando que o ano fosse especial para nós dois.

Houve música, comemoração e, por fim, o leilão começou.

Todos nos sentamos a nossas mesas, e os inscritos para os lances – já sabendo o que queriam comprar através do belo catálogo que tinha sido elaborado – receberam placas de identificação.

O leiloeiro apresentava a peça, saudava o doador, que geralmente se punha de pé para receber os aplausos de todos, e começava o jogo a partir de seu lance mínimo. Um dos momentos em que mais me diverti foi quando uma guitarra de blues – antiga e que pertencera a um dos grandes dessa área – foi disputada lance a lance por Frank e um outro homem. O negócio ficou tão acirrado que o doador, um integrante de uma banda de rock chamado Cadu, precisou mediar a situação.

Outro grande momento foi quando Nicholas Smythe-Fox doou um dos seus famosos potros PSI – Puro Sangue Inglês. Eu até dei um lance por diversão, até Alex participou da brincadeira, mas a coisa ficou feia mesmo entre Kostas e mais uns dois convidados – entre eles uma mulher. Meu irmão ficou a ver navios, e a dama levou o potro, o que, por si só, já me encheu de satisfação por ter vindo.

Acabei arrematando um final de semana em uma ilha particular em Angra dos Reis, uma doação do dono da ilha, um escritor de sobrenome Palmer. Não fazia ideia de quando poderia ir, mas briguei ferrenhamente para conseguir. Adoro o mar e podia me ver lá, na bela casa que apareceu no telão, desfrutando de paz e tranquilidade naquela linda baía de Ilha Grande.

O leilão durou mais de duas horas, mas foi muito divertido. Agora, prontos a voltar à sequência do baile, Valentina se pendura no meu braço e beija minha orelha.

— Eu adoro Angra! — sussurra. — Pensei que iria comprar alguma obra de arte. Fiquei surpresa por querer um final de semana em uma ilha particular. — Sorri. — Alguma ideia malvada?

Vagarosamente abro um sorriso, gostando da brincadeira, apreciando que ela esteja tão mais solta, sem todo aquele “protocolo” estranho de antes.

— Talvez — respondo em provocação, e ela faz um biquinho sexy.

A banda se posiciona para voltar a tocar, mas, antes da primeira nota, Frank aparece no palco.

— Atenção, por favor. — Uma luz se acende sobre ele. — Antes de voltarmos a dançar e a nos divertir, não posso deixar de cumprimentar publicamente o responsável pelo espetacular jantar desta noite, que, além de ter nos proporcionado a honra de provarmos sua comida, ainda doou seu cachê! Chef cuisinier Thierry Angelot, applaudissements, s'il vous plaît!

— C'est moi qui vous remercie de pouvoir participer — responde e olha para trás, chamando alguém para junto dele. Continua falando em francês: — Quero agradecer à maravilhosa equipe do chef Emílio, responsável pela cozinha do hotel, e à minha querida amiga. — Quase engasgo ao reconhecer a mulher ao lado dele. — Chef Maria Eduarda Hill, que foi minha souschef e ajudou a pensar e elaborar cada prato que experimentaram hoje.

Fico um tempo olhando para ela, ainda sem poder acreditar que estava aqui, neste baile, o tempo todo. Era óbvio! O almoço de ontem era por esse motivo, ela o estava ajudando na cozinha!

Maria Eduarda traduz tudo o que o chef falou para o português, e seu sorriso, mesmo de cima do palco, acerta-me em cheio, fazendo meu corpo estremecer, reavivando aquele momento que passamos ontem, antes de sermos interrompidos pelo chef.

Valentina fala algo em meu ouvido, mas não consigo prestar atenção, não consigo desviar os olhos da mulher sobre o palco, que ri e conversa em francês e em português com o chef e com o Frank.

Olho para Valentina, tentando entender o que porra está acontecendo comigo! Ela é perfeita em todos os sentidos, linda, jovem, bem-educada, de família tradicional, além de ser gostosa e sedutora quando quer. No entanto, não senti nem metade com ela grudada ao meu corpo, com a boca na minha, do que sinto agora, apenas ao olhar Duda Hill.

— Vamos? — ela pergunta.

— Para onde? — questiono, pois não ouvi nada do que ela esteve falando.

— Para meu apartamento. — Desliza as mãos pela lapela do meu smoking. — Estou cansada e querendo ficar um pouco a sós com você.

Novamente olho de soslaio para o palco, mas Duda e o chef já não estão mais por lá. A banda volta a tocar, e eu respiro fundo.

Preciso investir em Valentina, pois ela é mais do que somente uma trepada gostosa, pode ser a mulher com quem eu vá me casar e ter um filho. Duda e eu, apesar da atração, nunca passaríamos de uma aventura, e isso, sinceramente, eu já tive demais.

— Vamos!

Ela sorri com minha resposta e se despede de Samara.

Seguimos para fora do Villazza SP, porém, antes de chegarmos ao saguão, puxo-a para meus braços e a beijo, querendo sentir aquele mesmo tesão que senti há pouco apenas com a visão da cozinheira no palco.

A sua resposta é tão animada que acende um pouco meu desejo, mas ela logo se afasta de mim, puxando-me pela mão como se eu fosse um cachorrinho em seu encalço.

Ligo para o Dionísio, e, em menos de cinco minutos, o carro para na calçada do hotel. Seguimos para o endereço do apartamento de Valentina, com ela, talvez por causa da bebida, já quase em cima de mim, lambendo meu pescoço, falando coisas sujas em meu ouvido, e eu...

Bem, detesto esse clichê, mas devo admitir que isso nunca me aconteceu antes!

Não consigo tirar a porra da Duda Hill da cabeça, pensando que ela ainda está no hotel, sentindo o cheiro de seu perfume, o calor da sua pele, louco por descobrir de uma vez como é o sabor de sua boca.

— Theo? — Valentina me chama, e noto que já chegamos. — Tudo bem? Você parece um tanto desligado...

Fecho os olhos e respiro fundo.

— Acho que bebi demais. — Ela fica séria. — Estou com uma leve indisposição, então acho melhor deixarmos para nos ver outro dia.

— Tudo bem. — Dá de ombros, visivelmente frustrada. — Tem certeza?

Merda, Theo, o que você está fazendo?!

— Tenho, sim. Boa noite, Valentina! — Beijo sua testa.

Sua testa!

Ela não esconde a decepção e, sem nem mesmo esperar que Dionísio abra a porta do carro, sai, batendo-a ao fechá-la. Espero-a entrar na portaria e deito minha cabeça para trás, no encosto do carro.

— Tudo bem, chefe? — Dionísio pergunta preocupado. — Direto para casa?

Fico mudo, em guerra comigo mesmo, sabendo o que eu deveria ter feito, mas indo na direção contrária. Totalmente irracional!

— Volte para o Villazza o mais rápido que conseguir.


Estar de volta a uma cozinha profissional do nível da do hotel Villazza SP é, ao mesmo tempo, emocionante e horripilante. Estou longe desse mundo há tantos anos que tenho medo de ter desaprendido como tudo funciona, ter perdido o ritmo, sabendo da correria que é, ainda mais em um evento desse porte.

Chegamos cedo à cozinha, dividimos as tarefas por equipe de acordo com o menu que Thierry e eu fechamos ontem, depois do nosso almoço no Vincenzo’s.

Um tremor percorre meu corpo ao pensar que Theodoros Karamanlis provavelmente estará presente nesse baile, acompanhado de uma bela mulher, enquanto come o que preparei com tanto afinco. Se pudesse, iria colocar algum tipo de purgante em seu prato e...

Balanço a cabeça a fim de afastar esse pensamento ridículo. O homem mexe comigo, descompassa meu coração, aquece meu corpo, mas isso não é motivo para que eu me sinta tão vingativa por ele se divertir com outra.

Não, claro que não! Que ideia mais absurda!, penso, selando os cortes de carnes que serão mantidos em banho-maria, cozinhados em temperatura baixíssima, até o momento de serem colocados na grelha e empratados.

O que me move a ter pensamentos tão duros com relação ao CEO da Karamanlis certamente é sua insistência em querer tirar o que é meu, não qualquer outro motivo! Pouco me importa com quem ele sai e se diverte. Não temos e nunca teremos nada um com o outro!

Mentirosa!, acusa-me a consciência, mas não lhe dou ouvidos.

Thierry conta comigo para apresentar o menu mais sofisticado que a sociedade paulistana já provou em um baile, e, mesmo com um trabalho gigante pela frente, não vou ter meu foco desviado por nada, nem mesmo por Theodoros Karamanlis, seu olhar sedutor e toque irresistível.

— Tudo certo? — Thierry pergunta-me. — Preciso te ter atenta para traduzir tudo o que eu digo aos demais.

— Oui, chef! — Pisco para ele, enquanto prova o marinado que fiz para o cordeiro. — C’est bon?

— Parfait!

Não será fácil cuidar dos molhos e ajudá-lo a coordenar a brigada, mas é para isso que estou aqui. Vou até o pâtissier18 e o encontro com seus cozinheiros já bem adiantados na preparação da sobremesa. Mesmo antes do começo da correria louca que será essa cozinha durante o baile, já há a agitação crescente da preparação dos alimentos.

Cada uma das sete etapas precisará ter todos os pratos prontos, com intervalos mínimos entre uma e outra. Olho para o mapa do salão todo preenchido com o número de ocupantes de cada mesa e mais uma vez me pego pensando em onde Theo estará.

Respiro fundo, rememorando a ordem que chef Angelot e eu programamos para que os garçons possam servir. Luan, um dos boqueteiros19, foi instruído a organizar toda a distribuição dos pratos de acordo com os que liberarmos na boqueta.

— Olá! — uma mulher morena, com olhos de um tom de verde que só vi uma vez na vida, cumprimenta-me. — Você é a chef Hill?

— Sim! Em que posso ajudá-la?

— Sou Kyra Karamanlis, da ???p?20 Produções e Eventos. — Ela estende a mão, e eu, depois de passado o choque causado por seu sobrenome, saúdo-a. — Eu estive há pouco tempo com o chef Angelot, e ele me pediu para procurá-la. — Ela chama duas mulheres. — Essas são Marília e Andréia, trabalham comigo e irão permanecer na cozinha a fim de fazer uma ponte com minha equipe, por causa do cronograma.

— Ah, sim, ficamos sabendo disso ontem. — Sorrio. — Fiquem à vontade!

— Obrigada! — Elas sorriem e me cumprimentam também.

Vejo a Karamanlis conversar com suas funcionárias e, em seguida, sair da cozinha falando sem parar em seu radiocomunicador.

— Foi ela quem organizou tudo isso? — inquiro a uma delas – não sei se Marília ou Andréia –, apontando em direção ao salão.

Passei por lá há pouco tempo, e o que vi me impressionou muito. A suntuosidade, luxo e, principalmente, a riqueza nos detalhes fez com que eu tivesse a sensação de realmente estar entrando em um espetáculo como uma vez assisti no Cirque Du Soleil.

— Sim, foi Kyra quem fez todo o projeto de decoração. — Sorri. — Ficou impressionante, não?

— Sim, lindíssimo! — Olho para a minha bancada, ciente de que tenho que continuar o trabalho, porém, deixo a curiosidade falar mais forte. — O sobrenome dela, Karamanlis, tem ligação com a empresa imobiliária?

É a outra mulher quem me responde:

— Sim, ela é a caçula da família e não trabalha com eles, é independente.

Irmã ou prima do Theo?, tenho vontade de perguntar, mas não o faço, voltando para minha estação de serviço, adiantando o molho da entrada, deixando de lado qualquer pensamento ou curiosidade acerca dos Karamanlis.

 

 

— Gostaríamos de agradecer o empenho de cada um de vocês — traduzo as palavras de Thierry. — A forma como trabalharam, a perfeição e o cuidado com cada prato, cada elemento, foram dignos da melhor cozinha de um restaurante três estrelas. Agradeço ao Chef Emílio pelo prazer de compartilhar de sua cozinha e a oportunidade de conhecer o trabalho de cada um aqui nesta noite!

Thierry ergue sua taça de champanhe, e todos o seguimos, brindando pelo fim do trabalho executado sem nenhum percalço, seguindo corretamente o cronograma da organização e o do nosso menu.

Estou um bagaço, confesso, mas nunca me senti tão viva desde que deixei o L’Amande em Paris há sete anos. Cozinhar no Hill é uma delícia, meus companheiros de trabalho são únicos, divertidos e amigos de verdade. Contudo, trabalhar de novo em uma cozinha de alta gastronomia relembrou o motivo pelo qual eu estudei e me esforcei tanto.

Aquela agitação, os pratos sofisticados, os ingredientes de qualidade e a apresentação artística de cada prato reacenderam a chama dentro de mim. Amo cozinhar, mas há anos o venho fazendo apenas como um meio de ganhar meu pão de cada dia. Há anos não arrisco, não deixo a criatividade tomar conta de mim e o simples ofício de juntar ingredientes se tornar a arte de harmonizar sabores.

Ficamos horas cozinhando hoje, preparando prato por prato, etapa por etapa. A verdade é que nunca vi uma boqueta tão movimentada quanto a desta noite. Liberamos mais de 1200 pratos – desde o aperitivo até os queijos –, mais de 300 sobremesas, além do café e do licor.

Relaxamos depois, todos reunidos para cear o Ano Novo – ideia de Thierry – enquanto começava o leilão tão aguardado da noite.

Eu estava limpando minha estação quando Kyra Karamanlis entrou na cozinha mais uma vez e foi diretamente falar com Angelot. Segundo ela, Frank queria agradecer pelo jantar e por ele ter doado o cachê em prol das intuições beneficentes da noite.

Vi-o tirando o avental e vindo em minha direção.

— Duda, ma petite, j'ai besoin de toi pour m'accompagner.21

Foi assim que, com a dolma manchada, turbante cheio de pimentinhas desenhadas, fui parar em cima do palco, no meio da granfinada de São Paulo, mas com a preocupação de ser vista por apenas uma pessoa.

De onde eu estava, não era possível identificar ninguém, pois o salão estava escuro e boa parte dos convidados ainda estava usando as máscaras. No entanto, ainda sem poder vê-lo, sentia seu olhar sobre mim. Minha pele estava arrepiada, e eu sentia pequenos calafrios em minha coluna.

Em algum lugar daquela multidão, estava o homem que eu devia querer o mais longe possível de mim, mas que não deixava meus pensamentos nem por um minuto.

Traduzi o que Thierry falou, agradeci, em meu nome, a oportunidade diretamente para o CEO da rede Villazza – que por sinal não me era estranho; provavelmente já estampou muitas revistas da tia Do Carmo – e voltei para a cozinha a fim de terminar a limpeza e ir para casa.

— Duda! — Emílio, o chef executivo do restaurante do hotel, me chama, e paro de pensar na noite. — Você foi incrível esta noite! Thierry me disse que você mora aqui na cidade. — Assinto, e ele estende um cartão para que eu o pegue. — Tenho uma vaga para você em minha equipe se não estiver à frente de nenhuma cozinha.

Nem preciso dizer que meu coração disparou de felicidade. Olho em volta, adorando cada utensílio, cada estação organizada, pensando em como deve ser incrível trabalhar com ele aqui. Aceito o cartão.

— Eu agradeço, chef, mas no momento tenho meu próprio negócio.

— Ah, é mesmo? Onde? Eu adoraria experimentar um pouco de sua comida.

Sorrio.

— Hill Wings Pub. — Ele não disfarça sua surpresa. — Eu tenho um boteco na Vila Madalena.

— Um pub? Que inusitado!

Rio, achando engraçado que ele tenha ficado tão sem jeito.

— É de família, assumi quando meu pai faleceu. — Dou de ombros. — Não é alta gastronomia, mas me divirto cozinhando.

— Mas seu talento... — Ele respira fundo. — Enfim, você sabe o que é melhor. Se quiser voltar para uma cozinha francesa, tem lugar aqui comigo.

— Seria uma honra, chef — digo com sinceridade. — Obrigada.

Mal terminamos de falar, e uma agitação na entrada da cozinha chama nossa atenção.

— Ah, meu chefe! — ele comenta rindo. — Não fazia ideia de que viria aqui nos cumprimentar.

Frank Villazza vem caminhando até onde estamos, charmoso, com seu sorriso de lado e um porte de modelo, porém, não consigo ficar mais do que alguns segundos o observando. Meus olhos são atraídos para o homem ao seu lado, lindo, em um smoking de corte perfeito, com expressão séria e frios olhos azuis fixos nos meus.

Frank Villazza fala algo sobre vir nos cumprimentar pessoalmente. Vejo Emílio ir até ele, mas não consigo ouvir nada do que diz. O magnetismo de Theodoros Karamanlis me prende, simplesmente não posso parar de olhá-lo e, ao que parece, nem ele a mim.

No meio do discurso do Frank, Theo caminha em minha direção, porém, antes que me alcance, Thierry me chama e pergunta como irei para casa.

— Uber — informo, virando-me de costas para o irresistível grego. — Já ia chamar antes da entrada triunfal de Francesco Villazza.

— Ele já acabou! — Aponta, e eu olho para trás, vendo-o se despedir de Emílio. — Quer que eu a leve?

— Não precisa, Thierry. — Beijo sua bochecha. — Muito obrigada pela noite de hoje.

— Nos veremos amanhã no seu bar.

Sorrio, empolgada.

— Te espero lá!

Despeço-me de todos, pegando minha pequena mala contendo o uniforme, facas e turbantes – sempre levo mais de um por precaução – e saio do restaurante em direção à saída de funcionários do hotel.

Espero chegar à calçada e abro o app para pedir um carro, mas, antes que eu confirme a viagem, um Mercedes preto para bem na minha frente, e o vidro da porta traseira é aberto.

— Aceita uma carona?

Prendo a respiração, seguro forte o aparelho celular para não o derrubar no chão de tanto que estou trêmula e encaro Theodoros Karamanlis.

— Não — recuso. — Posso me virar sozinha. — Chacoalho o telefone para que veja que estou chamando o Uber.

— Não perguntei se sabia se virar sozinha, Maria Eduarda. — Dá um leve sorriso. — Sei que consegue, mas quero levá-la. Aceita?

Merde! Ele não facilita para mim falando desse jeito e com esse sorriso.

— Eu acho melhor não...

— Ei, é um pedido de trégua! — Agora abre o sorriso de forma que seus olhos se iluminam. — Está tarde para andar sozinha com um desconhecido.

Franzo as sobrancelhas.

— Você é um desconhecido.

Theodoros gargalha.

— Não, Duda, eu não sou. — Ele abre a porta do carro. — Entra, prometo que te deixo em casa inteira. — Dá um sorriso safado. — Prometo não morder... a não ser que me peça.

Um arrepio percorre minha coluna. Olho para o telefone em minha mão, com o pedido de confirmação da viagem para o motorista mais próximo vir me buscar, e para o homem me esperando, de porta aberta, sorriso malicioso e a mesma promessa de prazer que senti desde que nos encontramos pela primeira vez.

O que eu faço?


CONTINUA

Resisti a esbravejar de volta e respirei fundo, clamando por paciência. Eu nunca quis que fosse assim, porra! Se quisesse a merda de um casamento arranjado, tinha posto um anúncio no Estadão ou na Folha! A ideia era conhecer alguém que despertasse meu interesse e ver se essa pessoa continha os requisitos do pappoús, não o contrário!

Bom, a porra do encontro já estava agendada e confirmada, então não me restou outra saída a não ser ir até a moça.

Não serei hipócrita ao não reconhecer o quanto Valentina estava linda. Um vestido preto, fino, de tecido parecendo seda, colava-se ao seu corpo de tal maneira que eu tive certeza de que não usava calcinha. O modelo era na altura dos joelhos, sem muito decote, porém o suficiente para mostrar seus atributos a um bom observador. Os cabelos claros estavam soltos, penteados para trás, caindo sobre suas costas delgadas.

Ela entrou no carro e se sentou ao meu lado no banco traseiro enquanto Dionísio fechava a porta.

— Boa noite, Theodoros! — cumprimentou-me de forma educada e sutil, seus olhos azuis destacados por uma maquiagem bem feita. — Espero não o ter feito esperar muito.

— Boa noite! — Sorri. — Valeu a pena cada minuto. — Beijei sua mão. — Você está deslumbrante!

Ela apertou sua mão sobre a minha, e eu a puxei para um beijo.

Nada!

Encho o copo de uísque novamente, pensando em como pode uma mulher linda daquelas, com um corpo perfeito, um rosto e sorriso incríveis, isso sem contar em todos os outros atributos intelectuais, que ela tem bastante também, não conseguir sequer uma reação mínima do meu corpo?

Como é possível?!

Volto a pensar em como ela mesma reagiu, com um sorriso polido como se aquilo não passasse de um protocolo. Gelo tomou conta de todas as minhas veias e se concentrou diretamente no meu pau.

Pedi ao Dionísio que fosse até o endereço da galeria, fiquei a noite inteira com ela pendurada em meu braço enquanto comentava – com enorme conhecimento da área – sobre cada gravura ali exposta. Relaxei com a presença dela, com a afinidade que tínhamos com as artes e também com seu humor perspicaz e agradável.

Sem dúvidas, Valentina é uma ótima companhia, por isso mesmo a convidei para ir comigo ao baile de Ano Novo dos Villazzas.

No final da noite, voltei a tentar uma aproximação, e ela a recebeu com a mesma resignação de antes, porém, sem nenhuma paixão, assim como eu. Porra, ela era perfeita, mas onde estava a química entre nós? Onde estava o arrepio na pele ao meu toque? A reação do meu corpo a um simples sorriso dela?

Não tinha nada ali! Nenhuma chama, nem mesmo uma faísca.

Rio, voltando a tocar o piano, afastando a frustração que senti há algumas horas. A mulher certa com a reação errada, enquanto tive todas as reações certas com a última mulher com quem deveria ter tido!

O nome dela, dessa mulher tão exasperante que consegue criar uma revolução nos meus hormônios sexuais, flutua em minha cabeça como se fosse música: Maria Eduarda Hill.

Ao mesmo tempo em que decido tocar algo para cessar o mantra nominal, faço uma autoprovocação escolhendo uma música romântica e divertida na versão do ícone Frank Sinatra:

— My funny valentine! Sweet, comic valentine! You make me smile with my heart. Your looks are laughable, unphotographable, yet you're my favorite work of art. 4

É, penso quando paro de cantar e fico somente tocando, a noite vai ser longa. Ainda bem que tenho garrafas de uísque e repertórios musicais suficientes!

 

 

O som está uma merda, a bebida, quente, e a decoração, cafona demais! Procuro Rômulo no meio dos funcionários da Karamanlis, todos reunidos no refeitório para o almoço de final de ano em plena véspera de Natal.

Neste ano resolvemos não mais fazer duas festas separadas – para os funcionários e para os cargos acima de gerência da Karamanlis – e reunimos todos aqui mesmo no prédio da empresa. Abrimos apenas as portas do refeitório, que dão em uma espécie de terraço, onde o bufê colocou um toldo e umas cadeiras.

Não foi minha irmã caçula quem organizou a festa, infelizmente, senão não estava essa cafonice estranha.

Avisto Rômulo e faço sinal para que venha até mim, e ele o faz imediatamente, parando de conversar com alguns funcionários da TI – eu sei porque a maioria com cara de nerd aqui da empresa trabalha lá – e vem aos tropeços, “catando cavaco”, como diria Aluísio Azevedo5 se ainda estivesse entre nós, até se postar ao meu lado.

— Sim, doutor?

Tento conter uma risada e apenas balanço a cabeça, esperando que ele resgate o ar que perdeu no percurso para que eu lhe pergunte de quem foi a idiota ideia de contratar esse péssimo serviço!

— Rômulo, sobre a empresa que está organizando essa confraternização. — Ele arruma os óculos. — Nós pagamos por isso? — Aponto o dedo para todas as coisas penduradas na parede, inclusive os balões infláveis com os números formando 2019 em dourado.

— Claro que sim! — Sorri. — Não posso precisar o valor, porque isso é com o pessoal do doutor Millos, mas tenho certeza de que uma empresa como a Karamanlis não dá calote em ninguém.

Enche o peito de orgulho, o que me faz revirar os olhos, e abre um enorme sorriso.

— Volte lá a se divertir com o pessoal da TI! — Abano a mão na direção dos rapazes com óculos ao estilo Harry Potter.

Meu assistente insiste em me ajudar com algo mais, mesmo eu já o tendo dispensado, e somente quando o olho é que parece conceber a mensagem. Volta do mesmo modo que veio, mas dessa vez já não acho graça de seu jeito espalhafatoso de andar apressado.

Ando entre as pessoas, cumprimentando alguns que já conheço e atraindo a atenção dos demais, em busca de Millos. Está tudo tão mal organizado que não consigo ver entre uma mesa e outra por causa dos malditos balões dourados.

— Ei, irmãozinho! — Alex me para. — Aproveitando a festa?

Ele parece animado com um copo de cerveja na mão.

— Espero que não tenha vindo de moto! — repreendo-o.

— Preocupado com minha integridade física, oh, poderoso Theo!? — Ri, já visivelmente bêbado. — Vê só como seu nome já lembra a divindade que você é! Théos6!

Millos chega por trás dele, capturando meu olhar entediado, e o abraça pelos ombros.

— Alex, que festança, não? — comenta. — Eu nunca vi nosso pessoal tão à vontade e tão satisfeito com uma festa de final de ano!

— Você só pode estar brincando! — indigno-me ao ouvir isso. — Essa confraternização não chega aos pés da do ano passado!

Alex gargalha.

— Na do ano passado, o pessoal quase dormiu nas cadeiras com aquele sonzinho de jazz que foi colocado para agradar a um certo CEO! — Ele fica sério. — Você não conhece seus funcionários, não sabe do que eles gostam e...

— Chega, Alex! — Millos o chama sério.

— Foi ele quem organizou isso aqui? — pergunto ao Millos, apontando para a fuça do meu irmão caçula.

— Foi! — o petulante me enfrenta. — Olhe além do seu mundinho privilegiado, Théos! — Abre os braços, esbarrando em Millos, para demonstrar seu ponto. — A festa está no fim, todos foram dispensados a ir mais cedo para casa, mas... — cruza os braços — você está vendo alguém ir?

Sou obrigado a concordar com ele. Ninguém ficou na festa, no ano passado, depois da distribuição dos prêmios, e, neste ano, mesmo depois de termos feito os sorteios, todos continuam aqui, comendo, bebendo e – arregalo os olhos ao ver Rômulo e seus amigos se agitando – dançando!

Sim, a festa não está do meu gosto, mas, afinal, não foi feita para mim. Millos sorri, olhando para Alex, quando percebe que notei o sucesso que está sendo o evento. Foi meu irmão! O moleque realmente entende os funcionários como nenhum outro Karamanlis no poder o fez!

Sinto uma pontinha de orgulho, mas logo a deixo de lado, abandonada na escuridão de uma parte de mim que contém todos os sentimentos acerca de minha família.

— Bom trabalho! — elogio-o, e o garoto fica sério. — O pessoal parece realmente estar gostando!

— Vá se...

— Nós agradecemos! — Millos o interrompe no exato momento em que iria me mandar ter prazer comigo mesmo. — Foi um trabalho em equipe! Somos um só time dentro desta empresa.

Millos mal termina de falar e arrasta Alex para longe de mim, falando algo durante o trajeto.

Lembro-me de Alex ainda garoto, sobre meus ombros na piscina do condomínio onde moravam. Ele me seguia por toda parte, até mesmo quando eu não o queria por perto. Seus olhos brilhavam a cada coisa que eu fazia ou falava, eu era seu herói.

Ele estava muito errado!


A véspera de Natal foi uma tortura solitária!

Millos se enfiou em algum lugar para fazer sabe-se lá o quê e eu fiquei sozinho na cobertura, ouvindo meus discos, comendo uma ceia encomendada anteriormente por Vanda e vendo as sacadas dos outros apartamentos com pessoas comemorando, luzes piscando, músicas de Natal.

Nunca tivemos isso!

Millos e eu fomos criados com pappoús, e nossa família nunca comemorou o Natal por não achar a data importante, apenas uns dias a menos para se fazer dinheiro. Nossa giagiá7era quem ainda queria manter a tradição da festa do nascimento do Menino Jesus, porém, a tivemos tão pouco antes de sua morte que quase nem me lembro mais dos ritos e da comemoração.

Quanto aos outros, mal sei! Kostas foi criado com a família de sua mãe, na Inglaterra, até a adolescência, então provavelmente é católico ou anglicano, e as duas religiões comemoram a data. Quanto a Alex e Kyra, os dois tiveram Natais completos, pois eu ainda me lembro da árvore montada na sala principal do apartamento, pelo menos estava lá na última vez em que estive no imóvel; depois, não tenho notícia.

Não era de se esperar que, numa família tão complicada como a nossa, houvesse comemorações natalinas – ou quaisquer outras que envolvam união e fraternidade. Somos solitários como se fôssemos filhos únicos, e eu, infelizmente, divido essa culpa com Nikkós.

Recebi convites para cear com alguns amigos, inclusive Valentina me pediu para acompanhá-la na comemoração de sua família, porém, não quis. Natal não é uma época fácil para mim, e eu não queria que as outras pessoas se dessem conta disso e questionassem os motivos. Era melhor ficar sozinho mesmo!

O som triste e a voz melodiosa de Nat King Cole cantando Please take me back to toyland8 me fizeram rir ironicamente, pois eu nem sabia que tinha essa música naquele disco, afinal, era uma canção de Natal! Fui até o toca-discos e mudei a faixa, mas pouco ajudou, pois começou Unforgettable9.

Suspirei resignado e deixei a música tocar, sentando-me no sofá e deitando minha cabeça sobre o encosto, seguindo a música com os lábios, mas sem cantar.

Foi realmente a chamada “noite da fossa”, eu ali, sozinho, ouvindo canções que tocam fundo em qualquer pessoa, tomando meu uísque, enquanto o peru esfriava intacto sobre a mesa de jantar.

No dia seguinte, todo meu ar de frieza e invulnerabilidade já estava de volta, segui para a empresa – sim, em pleno feriado! – e adiantei muito os relatórios do final do ano para o conselho. Li todos os e-mails que Rômulo já havia classificado como importantes, respondi alguns, fiz anotações para pesquisar respostas para os outros. Fiquei um bom tempo olhando a Paulista, vazia como uma rua fantasma, e rindo de mim mesmo por estar ali perdendo tempo.

Recebi mais convites naquela noite, agora para noitadas pós-Natal, mas ainda não estava no clima. Exercitei-me sozinho na academia do apartamento, saindo de lá exausto, fiquei um tempo na sauna depois e, quase à 1h da manhã, estava nadando.

Dormi feito uma pedra!

Hoje acordei com uma ligação de Vanda, avisando que estaria de volta na primeira semana de janeiro, o que já animou minha manhã. Segui meu ritual para me preparar para o trabalho, troquei mensagens com algumas mulheres com quem já havia saído, inclusive com Valentina e, agora, já no carro, recebo uma ligação da Viviane.

— Como foi seu Natal? — pergunta.

— Não comemoro! Você sabe que acho besteira. — Ri. — E você?

— Muito bom e em ótima companhia! — Suspira. — Ah, encontrei Valentina ontem na festa da Alicinha. Ela me falou bastante de você.

Ergo a sobrancelha.

— É mesmo? Coisas boas ou ruins?

— Boas, claro! Por que ela diria coisas ruins a seu respeito?!

— Não sei, ela parecia tensa, distante... — Ouço Viviane respirar fundo. — Não sei, Vivi. Ela tem tudo o que meu avô aprovaria, mas...

— Vocês só saíram uma vez! Dê tempo ao tempo!

— Pode ser... — encerro o assunto, pois não estou certo de investir em uma relação com Valentina. — Vamos falar de negócios! Vi seu e-mail ontem com a repercussão do escultor! Meus parabéns!

— Ah, Theo, você sabe que eu nunca me engano com as artes! — Ri. — Quem dera fosse assim com as pessoas!

Respiro fundo, concordando, embora me ache um bom julgador de caráter. Terei pela frente poucos dias para finalizar todas as pendências e organizar planos de ação para o próximo ano. O conselho irá se reunir na sexta-feira, e, sempre depois dessa reunião de prestação de contas, acabo acumulando algum trabalho para fazer até a véspera de Ano Novo.

— Ela me disse que você a convidou para o Baile Branco e Preto dos Villazzas — Viviane volta a falar.

— Quem? — indago confuso.

— Valentina, Theo! — Ri. — Não me diga que convidou mais alguém!

Faço careta ao me lembrar do convite, levemente arrependido de tê-lo feito, pois poderia muito bem ir sozinho e conhecer alguém que despertasse mais tesão em mim do que a amiga de Viviane.

“Dê tempo ao tempo...” foi o que ela acabou de me falar. No entanto, acho que, em relação ao desejo, ou ele acontece ou simplesmente não existe. Tesão não é igual amizade, que se constrói com o tempo, ele é imediato! É certo que pode estar camuflado em algum outro tipo de sentimento, como a exasperação, a implicância, arrogância, mas está lá, ainda que negado.

— Não, não convidei mais ninguém, Vivi. — Respiro fundo. — Mas acho que fui apressado no convite. Valentina é perfeita, mas um tanto fria, e isso...

— Talvez ela só esteja tímida — justifica a amiga, e vejo lógica nisso. Devem ser tão estranhos e desconfortáveis para ela quanto são para mim, esses encontros arranjados. É antinatural demais, como se estivéssemos sendo empurrados um para o outro.

— Sim, é normal que ela esteja sem jeito, por isso não queria fazer dessa forma — friso mais uma vez meu incômodo com essa situação. — De qualquer maneira, já fiz o convite e seria uma babaquice sem tamanho retirá-lo.

— É um baile e tanto! Imagino que você tenha se dado folga na véspera do Ano Novo. — Faço careta ao pensar em mais um dia de trabalho perdido. — Soube que sua irmã é quem está organizando.

— Sim, é ela — sou curto ao confirmar, sem entrar em detalhe algum, mesmo porque eu nada sei sobre a Kyra. — Vivi, preciso desligar, estou chegando ao prédio e tenho uma apresentação para fazer depois de amanhã...

— Está certo! — Ri, sabendo que a estou dispensando. — Se não o vir mais, espero que tenha um feliz Ano Novo.

— Para você também!

Desligo o telefone e abro o app de agenda que uso para os meus compromissos, marcando o domingo como um dia de trabalho.

Minutos depois, já no elevador, recebo mensagem do Rômulo perguntando sobre essa anotação.

 

 

Cumprimento uns funcionários que entram no elevador, pronto para guardar o celular no bolso, quando ele treme em minha mão. Rômulo, em vez de esperar que eu chegue à sala, manda-me uma mensagem:

 

 

Gargalho no elevador, chamando a atenção das pessoas dentro dele. Sinceramente, não sei se Rômulo é puxa-saco demais ou se é só maluco!

 

 

— Ah, você está aí! — Millos me assusta entrando na sala de supetão, ainda mais por hoje ser domingo. Eu e Rômulo trabalhamos todo este fim de semana.

— Onde mais estaria, já que parte de amanhã e o feriado serão perdidos? — Aponto para a porta. — Usa-se bater antes de invadir.

Meu primo dá de ombros.

— Vim me despedir — informa e vai até o Rômulo. — Qualquer coisa que precisar, entre em contato com a Sâmela, ok?

— Sim, doutor Millos! — O assistente se levanta, seca a mão – não sei por que diabos ele sempre faz isso! – na lateral da calça e a estende ao meu primo. — Boas férias!

— Obrigado, Rômulo! — cumprimenta-o de volta. — Feliz Ano Novo! Espero que, ano que vem, seu chefe esteja mais suportável!

— Ah, doutor, meu chefe é ótimo! — ele sorri ao falar isso e me olha de esguelha.

— Você é um santo, Rômulo! Ou um louco!

Gargalho com a cara confusa do meu assistente e chamo o ingrato do meu primo para um abraço de despedida.

— Para onde vai? — inquiro.

— Te respondo no almoço.

Franzo a testa.

— Que almoço? — Olho para Rômulo, que dá de ombros, indicando que não há nada na agenda.

— Nosso almoço, agora, no restaurante onde você me abandonou naquela noite depois do encontro com a Duda Hill.

Cruzo os braços, sem focar muito nas lembranças daquela noite, ainda que sinta um leve tremor ao pensar na mulher conversando comigo ao balcão do bar.

— Millos, amanhã é véspera de Ano Novo, eu ainda tenho...

— Sem desculpas, Theo, hoje é domingo, e vocês dois nem deveriam estar aqui. E, conhecendo o seu assistente como conheço, tenho certeza de que o trabalho está bem adiantado!

— Pode ter certeza, doutor! — Rômulo confirma, orgulhoso.

Ainda tento negar por mais algum tempo, porém, meu primo está totalmente inflexível.

— Está certo, mas, ao invés daquele restaurante, vamos ao Vincenzo’s. — proponho, e ele aceita.

Vincenzo’s é o restaurante italiano de um chef amigo nosso, que fica no terraço do Villazza SP. Millos e Vince – apelido do dono – são amigos e companheiros de viagens de motos, assim como Frank, CEO da rede de hotéis Villazza.

Gosto muito de ir lá, mas, como não tenho tido tempo ultimamente, pouco tenho conseguido degustar do menu italiano de Vincenzo. Somos amigos desde que ele abriu o restaurante no Villazza SP, vindo com Frank de Curitiba para cá, pois antes comandava a cozinha de um restaurante do hotel de lá.

O homem, um chef competentíssimo, ganhou fama e notoriedade ao participar como jurado de um reality show de gastronomia na televisão. Espero que Millos tenha feito reserva, senão teremos que comer no mezanino sem cobertura, com uma bela vista de São Paulo, mas sem ar-refrigerado.

— 15 dias? — confirmo o tempo das férias com meu primo enquanto ele dirige.

— No máximo! — diz animado. — Tracei minha rota, já reservei hotéis ao longo do caminho. Se nada sair do programado, em 12 dias estou de volta e em 15, já na minha mesa.

— Bom, muito bom! — A notícia me satisfaz, principalmente por eu mesmo estar viajando em fevereiro. — Não vai ao aniversário do pappoús?

— Ano que vem, não, já até me desculpei com ele. Vou visitá-lo em julho. Terei que ir até Atenas para resolver umas coisas com meu pai, então aproveito e mato os dois coelhos de uma vez.

— Que horror essa comparação! — Rio. — Tudo bem com tio Vasilis?

Dá de ombros, sem saber o que responder, afinal, assim como eu, não fala com o pai há anos. Millos lamenta ser filho único exatamente por não ter para quem jogar o fardo de lidar com o pai, o que entendo bem, pois eu detestaria ver Nikkós, mesmo que por mera formalidade.

Chegamos ao Villazza, e, enquanto subimos para o terraço, mando mensagem para o Frank, porém, o carcamano está em reunião, ajustando os últimos detalhes do baile de amanhã.

Ah, sim, o bendito baile!

Valentina já me bombardeou de mensagens sobre o evento, dizendo o quanto está empolgada, detalhando sua roupa e me perguntando como eu preferia que ela usasse os cabelos, soltos ou presos. Achei um tanto absurdo demais tudo isso, principalmente sobre minha opinião, afinal, encontramo-nos uma vez e trocamos dois beijos bem insossos.

Munido de uma paciência hercúlea, respondi todas as suas mensagens e ressaltei o quanto meu dia estava corrido exatamente por conta desse evento na véspera do Ano Novo, dia em que normalmente trabalho e que perderei por sair mais cedo. Pelo visto, ela entendeu o recado e parou com suas mensagens ao estilo metralhadora.

Chegamos ao terraço e avistamos Vincenzo, com um enorme sorriso, já na porta a nos esperar. Estranho isso, não por ele estar nos aguardando, mas sorrindo desse jeito tão deslumbrado.

— Benvenuto! — saúda-nos. — Porra, eu estou suando frio aqui! — confessa.

— Diarreia? — Millos sacaneia.

— Não, coglione! — Rio ao ouvir o xingamento preferido do Frank. — Vocês vão ter o prazer de dividir o mezanino...

— Ah, caralho, o mezanino não! — resmungo tirando o paletó.

— Estamos com climatizadores lá fora e ombrelones, seu fresco! — todo o charme e sotaque italiano some quando ele me dá esse esporro, voltando às origens do Bixiga, bairro paulistano onde foi criado.

— Está certo, esquece o Theo! Quem está no mezanino? Alguma gostosa lá da sua emissora?

— Melhor que isso! — O chef parece bem empolgado. — Thierry Angelot!

Millos franze o cenho, e eu começo a gargalhar.

— Porra, Vince, é sério? Toda essa excitação por causa de um macho?

— Cala a boca, seu herege! — repreende-me. — Angelot, Millos!

Meu primo arregala os olhos.

— Do restaurante? O que ganhou a terceira estrela Michelin no guia deste ano?

— Voilà! — Vincenzo confirma. — O próprio!

Gosto muito de comer, mas, como não cozinho nada, nunca fui muito ligado a nomes de chefs ou restaurantes. Simplesmente, quando quero algo e estou fora do país, consulto o concierge do hotel ou vou pela indicação de amigos. No entanto, agora, sabendo se tratar do Angelot, o restaurante francês cujo jantar desfrutei há alguns anos, entendo a empolgação do Vince.

— O que ele faz aqui? — Millos inquire.

— Vai cozinhar amanhã — respondo, e Vincenzo confirma. — Frank comentou comigo que um chef internacional havia aceitado o convite para fazer o jantar do baile.

— Ah, porra, isso é sério?! — Millos gargalha. — Justamente este ano, que decidi não participar!

Caminhamos em direção ao mezanino, uma varanda um pouco mais elevada que o restaurante, com proteção de vidro na beirada do hotel e uma vista deslumbrante. Entro já olhando as mesas – são três delas – à procura do misterioso homem, pois nunca consegui cumprimentá-lo quando estive em seu restaurante. Avisto-o conversando animadamente em francês e quase tropeço ao ver a mulher que almoça – e ri muito, por sinal – em sua companhia.

— Duda Hill! — Millos sussurra.

— Vocês a conhecem? — Vincenzo nos encaminha até nossa mesa, no canto oposto onde o casal se encontra. — Ele chegou aqui com esse mulherão traduzindo tudo o que dizia, e eu, mesmo sabendo o idioma, me fingi de ignorante só para ouvi-la falar.

A lembrança do sotaque francês dela, da forma como seus lábios se movimentaram a cada palavra, trazem de volta a sensação luxuriante que senti, tendo a exata noção do que Vincenzo está falando. Crispo as mãos, respiro fundo e me sento bem de frente para a mesa dos dois.

Millos e Vince conversam baixinho, porém, não presto a mínima atenção a eles, tentando ouvir o que o baixinho – sim, porque o homem deve ter no máximo 1,60m de altura – diz a ponto de arrancar tantas risadas dela.

Infelizmente não consigo ver o rosto da Duda, tendo visão de suas costas mal cobertas pelo vestido estampado em verde, de alças muito finas que destacam seus ombros e nuca, uma vez que os cabelos estão presos em um coque no topo da cabeça.

— ...eles pediram à la carte e agora estão dividindo um tiramisù — ouço Vincenzo informar ao Millos.

— Dividindo? — questiono. — Denota certa intimidade dividir a sobremesa com alguém. — Millos ergue uma sobrancelha e dá um sorriso irônico. Não lhe faço caso, fingindo que não notei sua expressão. — Então, ao que parece, a dona do boteco realmente é uma chef de cuisine diplomada na França.

— Claro que é! — Millos me encara. — Achou que ela estava mentindo?

Dou de ombros, e Vincenzo pede licença para se retirar e voltar para a cozinha.

— Não faz sentido! O que está fazendo fritando batatas e asas de frango em um lugar como aquele se tem diploma e conhecimento de pessoas que poderiam empregá-la? — Faço sinal com a cabeça indicando o baixinho.

Millos se inclina sobre a mesa.

— O que o herdeiro mais velho de uma empresa internacional estava fazendo vendendo peixes? — Imediatamente fico sério, puto por ele estar mexendo nessa história tão antiga, porém que ainda sangra e incomoda. — Não dá para julgar a motivação de alguém sem conhecer sua história.

Antes que eu o mande ao caralho, um garçom aparece para anotar nossos pedidos, e concluímos pelo menu degustação em quatro tempos, inspirado no mar. Millos pede sua cerveja, como sempre, enquanto eu solicito ao sommelier que harmonize algum vinho com a comida pedida.

— E então... — volto a puxar o assunto das férias de Millos para não demonstrar interesse na outra mesa, mesmo que desvie meus olhos para lá a todo momento — para onde você vai ano que vem?

— Resolvi fazer uma rota aqui por perto mesmo, mas vou parando em algumas cidades para fazer turismo. — Acho interessante. — A ideia é seguir todas as rotas da Estrada Real.

— O que seria isso? — pergunto, pois já ouvi falar do assunto, mas nunca me fixei em nada sobre ele.

— São rotas comerciais criadas na época do Brasil Império. Pretendo seguir as quatro, saindo do Rio de Janeiro em direção a Minas, até Diamantina, depois voltar, passar por Ouro Preto e descer para o Sul de Minas, visitar umas cidades do interior e, por fim, chegar em Paraty, seguir pelo litoral até Santos e retornar para cá.

— Por que começar pelo Rio e não por aqui?

— Quero aproveitar um pouco o litoral norte. Isso não faz parte da Estrada Real, é por minha conta. Amanhã vou para o Rio pela Presidente Dutra e aproveito a queima de fogos em Copacabana.

— Vai ficar no Palace? — Millos confirma. — Já passei um Ano Novo lá, em...

Interrompo-me quando vejo o francês baixinho indo para dentro do salão. Olho na direção da mesa deles e vejo a Duda de pé, sozinha e de costas, contemplando a vista da cidade.

Sem falar nada com Millos, sigo até ela, munido com a vontade de provocá-la um pouco e também de sentir seu perfume.

— Me dê a boa notícia de que aceitou o emprego e vai vender o boteco para mim! — falo às suas costas, fazendo-a se virar para mim.

— Merde! — Põe a mão sobre o coração. — O que você... — Vê Millos sentado na outra ponta do mezanino. — Ah, merda! — resmunga para si mesma, voltando a olhar para a cidade lá embaixo. — Isso só pode ser alguma brincadeira do destino!

Rio e me encosto ao guarda-corpo de vidro, ao seu lado.

— Do destino? — debocho. — Não acredito nessas bobagens!

Ela me encara.

— Eu não me interesso pelo que você acredita ou não! — Aponta para minha mesa. — Sua comida começou a ser servida.

Levanto uma sobrancelha, meu olhar preso ao dela, e aquela mesma maldita tensão vibrando entre nós.

— Novamente... — olho-a intensamente — a comida não é o meu interesse no momento.

Ela segura o fôlego e desvia os olhos sem jeito ou talvez não querendo mostrar o quanto está mexida com minha presença, assim como fiquei e ainda estou com a dela. Um sorriso vitorioso se insinua em minha face. Ainda não entendo como é possível que eu sinta toda essa vontade, todo esse tesão apenas por estar perto dela. Não era para ser assim, principalmente por quem ela é e o que me impede de conseguir com sua teimosia.

Contudo, o mesmo magnetismo que me puxou até ela na primeira vez ainda continua exercendo seu poder, independentemente do que diz minha lógica.

— Então conhece o chef do Angelot? — volto a puxar assunto, resistente a me afastar.

— Sim! — sua voz soa um tanto exasperada. — Olha só, Theodoros Karamanlis, vamos encurtar o papo, ok? Não, eu não aceitei nenhum emprego e nunca — sorri malvadamente —, nunca vou vender o Hill para vocês. — Cruza os braços. — Seu primo já está comendo. Bom apetite!

Ah, Maria Eduarda Hill, você não tem ideia de com quem está lidando! Não vai se livrar de mim tão fácil assim.

— Se não é emprego... — rio — é um encontro? — minha voz sai tão debochada, tão incrédula, que ela enruga a testa por um momento antes de dar um enorme sorriso, muito teatral e falso por sinal.

— Não é da sua conta! — responde-me sem desfazer o sorriso, mas não volta a me dispensar.

— Interessante, Maria Eduarda — ouvir-me a chamando por seu nome completo apaga o sorrisinho de seu rosto, e me aproximo um pouco mais dela. — Uma cozinheira que conhece um chef do porte de Angelot, mas que prefere fritar bolinhos...

— Um homem que poderia estar degustando sua comida deliciosa — interrompe-me ironicamente —, mas que prefere ficar enchendo a paciência de uma mulher...

— ...mais deliciosa ainda! — completo sua frase e a vejo arregalar os olhos, pega de surpresa com o que eu disse.

Confesso que eu também estou. Realmente gosto de provocá-la, ver seus olhos castanhos brilharem de fúria e irritação. Gosto de saber que consigo fazê-la reagir sexualmente a mim, mesmo não querendo, da mesma forma como acontece comigo. No entanto, não tinha a intenção de deixar as coisas tão claras e nem ser tão direto quanto fui. O tesão falou mais alto, a vontade de senti-la, de tê-la é mais forte do que qualquer pensamento racional que ocupe minha mente.

Eu quero essa mulher!

Ficamos nos olhando do mesmo jeito que fizemos no restaurante naquela noite, a respiração pesada de ambos, a química forte atraindo meu corpo para o dela. Não sei como, mas, quando percebo, minha mão já está subindo pelo seu braço, contornando seu ombro, até que meus dedos roçam de leve sua bochecha.

Maria Eduarda fecha os olhos, e eu me aproximo mais, praticamente colando meu corpo ao seu, talvez o suficiente para que ela sinta como estou, como me deixa só com sua presença. Momentaneamente, esqueço onde estamos e, principalmente, quem somos. Só sinto o desejo pulsar nas pontas dos meus dedos, a sua pele queimando a minha, concentrando todo o tesão em minha virilha e fazendo com que meu pau fique pressionado nas calças de forma dolorosa.

Preciso beijá-la! É loucura, será um desastre, mas foda-se! Só preciso sentir o sabor, a textura, o calor dos seus lábios sob os meus e...

— Duda, tout est prêt, on peut commander le café ...10 — o baixinho interrompe nosso momento, e ela pula para trás, afastando-se de mim,

— Maláka11! — solto um palavrão em minha língua nativa, amaldiçoando o péssimo timer do filhote de cruz-credo francês.

O homem nos olha desconfiado a princípio, até me dirigir um olhar raivoso.

— Y a-t-il un problème?12

— Non, mon ami. C'est bien!13 — Duda responde. — Je ne veux pas de café. On peut y aller?14

— Oui! — o homenzinho responde, mas sem tirar os olhos de mim.

Vejo-a pegar a bolsa, passar por mim sem sequer um olhar e então aceitar o braço do francês. Por mais ridícula que seja minha reação, não gosto de assistir a outro homem a tocando.

— Maria Eduarda — chamo-a, e ela finalmente me olha. — Eu não desisto do que quero. — Ela suspira, e abro um sorriso. — De nada do que eu quero!


O Natal trouxe mais do que o sucesso do nosso menu de ceia para encomendas, trouxe também a oportunidade de rever um grande amigo!

Eu estava fisicamente esgotada depois de horas cozinhando sem parar, inclusive com a ajuda da tia Do Carmo e de Tessa, para pode dar conta de todas as encomendas que tivemos. Diversas famílias pediram o menu completo – desde a entrada até a sobremesa –, pelo que comemoramos muito, mesmo com a trabalheira que deu.

Demos conta e, ao final da noite, ceamos todos juntos no Hill, como a família que somos. Foi maravilhoso poder estar com quem eu amo, admiro e trabalho, pessoas que estão sempre ao meu lado não importa o que aconteça e que, a cada dia, me inspiram a continuar a lutar para não perder o bar e tudo o que conseguimos durante esses anos.

Um pouco depois da meia-noite, recebi a visita surpresa de Lara com seu marido, cunhada e sua enteada. O quarteto estava indo para a casa de um grande amigo de Cadu, Luti, pois no dia seguinte iriam para o interior almoçar com a família e não queriam deixar o outro roqueiro sozinho.

Arnaldo a bombardeou de perguntas sobre Marlon, porém, ela mal sabia informar, pois, após se formar, o antigo segurança do bar se mudou para o Rio de Janeiro. Lara relembrou os tempos de bartender e preparou drinques para todos, inclusive para nossas meninas, sem álcool, a fim de acompanharem o Cadu.

Foi uma reunião deliciosa, cheia de histórias de um ano corrido, durante o qual mal tivemos tempo de conversar, mas que não aplacou a força da nossa amizade.

No final da noite, já quase amanhecendo, dormi no quarto de minha filha, curtindo seu abraço gostoso e o frescor do ar-condicionado, satisfeita pelo sucesso do empreendimento de Natal, pela comemoração após e, claro, por poder ter minha família – mesmo tão pequena – ao meu lado.

Como já havia anunciado, não abri o bar no dia 25 de dezembro, aproveitei a ocasião dessa folga e fui passear com Tessa e tia Do Carmo. Fomos ao parque Ibirapuera e depois ao Villa-Lobos, onde minha filha se cansou de tanto andar na bicicleta que lhe demos – titia e eu – de presente.

À noitinha nos reunimos na frente da televisão, escolhemos – não sem uma boa briga – um filme na Netflix e comemos o que restou da ceia da noite anterior. Foi muito bom! Livrei-me das compras na terça-feira e ainda ganhei um tempo livre com as pessoas que amo. Não podia ter havido melhor presente de Natal para mim!

Contudo, houve um outro tão bom quanto!

Na sexta-feira, eu estava na preparação dos alimentos para mais uma noitada de final de ano no Hill quando recebemos um telefonema internacional. Sim, ligaram para o nosso telefone comercial! Fiquei nervosa, achando que pudesse ser notícia do agiota, mas então reconheci o sotaque de Thierry tentando – sem sucesso – falar em português.

Minha reação, logo após o susto, foi rir. Havia muitos anos não nos falávamos, mas seria impossível esquecer sua voz grave e máscula, que faz qualquer pessoa o imaginar como um homão de quase 2m de altura.

— Thierry, mon ami! — Estava tão surpresa e emocionada com aquela ligação que sentia a garganta apertada, mas continuei em francês: — Que enorme surpresa!

— Não seria se você tivesse deixado um telefone pessoal para contato! — respondeu em sua língua natal. — Duda, ma chérie! Estou tentando falar com você há algum tempo.

— Sinto muito, Thierry, eu mudei o número do telefone algumas vezes e acabei não o repassando aos amigos — justifiquei sem jeito. — Como vão as coisas? Tenho acompanhado o sucesso do Angelot e não estou nada surpresa! Nós sabíamos que seria um dos melhores da França! Trois étoiles, mon Dieu!15

Meu amigo riu, encantado com sua façanha.

— A tensão agora é manter! — confessou. — Mas não liguei para falar das Michelins, e sim para te fazer um convite.

— Convite?!

— Oui! Finalmente vou viajar para o Brasil! — abri um sorriso ao ouvir a novidade. — Fui convidado a assinar o jantar de uma festa no Ano Novo, em São Paulo.

— Aqui?! — Fiquei ainda mais surpresa. — Onde?

— Villazza SP! É um baile beneficente. Todo o dinheiro será doado, então abri mão do pagamento também.

— Ah, Thierry! — Fiquei muito orgulhosa e feliz por ele não ter mudado mesmo depois do sucesso. — É um gesto muito nobre.

— Sim, sim... mas tenho um problema.

— Qual? Se eu puder ajudar...

— Pode, sim! — Riu. — É por isso que fiquei tão desesperado atrás de seu contato. Minha souschef ficará responsável pela cozinha do Angelot durante minha ausência. — Fiquei surpresa por ele ser tão desprendido quanto a entregar sua cozinha para outra pessoa. Decerto confia muito na profissional que ela é. — A equipe de cozinheiros do hotel é muito boa, mas gostaria de ter você lá comigo.

— Eu?! — Tomei um susto. — Thierry, eu não entro em uma cozinha de alto nível há anos!

— Bobagem! Vamos nos encontrar assim que chegar à sua cidade.

— Quando? — Meu coração batia forte, de medo e ansiedade ao mesmo tempo.

— Depois de amanhã, estou arrumando as malas. Conhecerei a equipe na parte da manhã, então poderíamos almoçar. Você ouve minha proposta e, se aceitar, participa do treinamento à tarde.

Minhas mãos estavam frias e tensas, enquanto minha mente era povoada pelas lembranças de Paris, da euforia da cozinha, o medo de não agradar e todo o apoio de Thierry, que, na época, era chef de partie16 do restaurante onde trabalhávamos.

Ele foi meu maior incentivador e o que ficou mais abalado com minha decisão repentina de voltar ao Brasil, abandonando tudo. Era um grande amigo, mantivemos contato por um tempo depois do meu retorno, mas então papai morreu, e as coisas ficaram confusas demais.

Voltar a cozinhar, depois de tantos anos, ao lado dele não é apenas uma chance, é um privilégio!

— Onde nos encontramos? — perguntei, decidida a me dar essa oportunidade.

Agora, entrando pela primeira vez no suntuoso hotel dessa rede internacional, sinto minhas pernas tremendo como gelatina enquanto absorvo atentamente todos os detalhes da decoração. O saguão é lindo e imponente, o que me anima, pois espero que a cozinha seja um espetáculo.

Identifico-me a um dos recepcionistas, que me indica o elevador para o terraço assim que colhe meus dados, fazendo um pequeno cadastro por ser minha primeira vez no hotel.

Quando as portas do elevador se abrem, já no terraço, a primeira pessoa que vejo é Thierry. Recebo um abraço apertado e beijos na bochecha, uma saudação tão calorosa que nem parece que não nos falamos há anos. A amizade está intacta para ele também, assim como para mim.

— Você está linda! — elogia-me em francês. — Como pode todos esses anos se passarem e você ficar ainda mais bela?

Rio do exagero dele, tão característico, pois é um galanteador conhecido por suas maneiras lisonjeiras de tratar uma mulher.

— Você mudou pouco também, meu amigo!

— Infelizmente! — Ri de si mesmo. — Aumentei minha conta bancária e meu prestígio, mas continuo feio e baixinho.

— Isso nunca foi problema para você, mesmo quando não tinha dinheiro. — Ele estufa o peito, sabendo que é verdade. — As mulheres sempre ficavam deslumbradas com você.

— Minha linda, se a natureza não foi generosa te dando o rosto e o porte do Jason Statham, você tem que se aperfeiçoar com o que tem de melhor e tirar proveito disso.

Gargalho e o beijo, adorando saber que ele ainda é fã do famoso ator de filmes de ação. Seguimos de braços dados até o restaurante onde ele fez reserva, elogiando toda a estrutura existente no terraço do hotel.

Além do Vincenzo’s, há um bistrô de comida francesa no outro extremo do lugar, dando vista ao outro lado da cidade, e várias lojas de marcas internacionais, de vestuário, acessórios e joias, cabeleireiros e um SPA. No meio disso, vários jardins e locais para sentar, conversar ou mesmo aguardar enquanto alguém faz compras.

Eu nunca poderia imaginar que em cima do hotel houvesse tanta coisa!, penso deslumbrada. Já ia comentar com Thierry sobre a surpresa ao descobrir este espaço aqui, quando vejo quem nos espera na porta do restaurante.

Vincenzo Giacontti!

Desde que ele me convidou para almoçar no Villazza SP, eu já sabia que iríamos ao restaurante do Vincenzo, mas não esperava ser recebida pelo chef pessoalmente. O homem é uma estrela aqui no Brasil. Reconhecido como um dos maiores chefs de cozinha italiana do mundo, ele ainda tem um jeitão todo despojado e é muito bonito!

— Benvenuto! — cumprimenta-nos, claramente satisfeito ao ter Thierry no seu estabelecimento.

— J'avais hâte de rencontrer le célèbre chef cusinier et ami Frank! — Thierry o cumprimenta, porém, ele não diz nada.

Talvez o chef Giacontti não saiba o idioma!

— Ele estava ansioso por conhecer o famoso chef do Frank Villazza. — Sorrio. — Ao que parece, o amigo dele fez recomendações sobre você, chef.

Vincenzo me encara por alguns momentos antes de abrir um enorme sorriso que o deixa muito charmoso, ainda mais com o aparecimento de algumas ruguinhas.

— O prazer é todo meu em receber aqui um chef com o talento e prestígio de Angelot.

— Il a déclaré que c'est un plaisir de recevoir un chef cuisinier aussi talentueux et prestigieux que vous.17

— Obrigado! — Thierry arrisca o português e depois se supera: — Grazie!

Giacontti sorri, retribuindo o cumprimento e nos acompanha até um mezanino onde se tem uma impressionante vista da cidade de São Paulo, inclusive das copas das árvores do Ibirapuera ao longe.

Sentamo-nos protegidos do sol pelo ombrelone e refrescados por climatizadores, potentes ventiladores que soltam nuvens de umidade para amenizar a sensação de calor. Thierry me pergunta se quero provar o menu degustação ou se quero pedir à la carte. Prefiro pedir separadamente os pratos, apenas uma entrada e um prato principal, e ele me acompanha no pedido. Deixo-o escolher o vinho, apreciando seu bom gosto e perícia para harmonizar a bebida com todos os ingredientes dos pratos.

— Quero, antes de falar do trabalho, saber como estão as coisas — Thierry fala assim que o sommelier se afasta.

— Trabalho duro no bar do papai. — Sorrio quando ele faz careta. — Eu sei o que você pensa sobre minha decisão de voltar, mas...

— Duda, ma chérie, a questão não é o que eu penso, mas o que você fez! — Thierry continua incisivo como sempre foi. — Você simplesmente desistiu de uma carreira brilhante!

— Não sabemos disso, eu estava só começando!

— Oh, lala, como não? Eu fiquei louco com seu talento e sua técnica quando te conheci, sabia que iria longe! — Tento não pensar muito nisso, não olhar para trás, mesmo que as palavras dele calem fundo dentro de mim. — No mínimo, você seria minha souschef hoje, Duda!

— Já seria uma enorme honra!

— Bobagem! — Ele faz um gesto com a mão. — Você tem talento para ter seu próprio restaurante, ganhar três estrelas e ainda fazer pouco caso delas!

Rio com a forma como ele me vê. Sim, eu era dedicada e talentosa, mas havia muitos como eu; isso não significa que eu iria longe.

— Você sabe que eu não pude...

Ele suspira, balançando a cabeça.

— Ah, l’amour, l’amour, l’amour! — gargalho com a dramaticidade que emprega nas palavras. — O que não fazemos por amor, não é assim? — Rola os olhos. — Pure merde!

— Thierry... — Balanço a cabeça. — O que passou, passou, não posso mudar as escolhas que fiz. Quer saber mais? Faria tudo igual!

Ele bufa. Ficamos mudos enquanto um garçom serve nosso vinho e água.

— Encontrei Jean-Luc um tempo atrás em Nice — ele comenta. Levanto a sobrancelha. — Senti vontade de cortar as bolas dele e jogar para os peixes do mar! — Gargalho. — Não o fiz, claro, ia matar toda a vida marinha!

Pego sua mão.

— Eu senti demais sua falta!

— Eu também, Duda! — Thierry segura firme minha mão por cima da mesa. — Juro que não entendo o que aconteceu! Vocês pareciam tão apaixonados, tão perfeitos um para o outro, então ele simplesmente a abandonou no momento em que você mais precisava!

Bebo um gole do vinho.

— Há pessoas que não estão prontas para lidar com responsabilidades! — Dou de ombros. — Respeito a escolha dele, assim como respeitou a minha.

— Mas foi um canalha indo embora sem deixar destino e sem, ao menos, falar com você!

— Sim, ele foi covarde. Mas não precisei dele... dei um jeito.

— Abrindo mão dos seus sonhos! — exclama indignado.

— Não, Thierry, reformulando os meus sonhos.

— E como está Tessa?

Sorrio ao pensar na minha menina, meu peito se enchendo de orgulho pela criança maravilhosa que ela é. Eu faria e faço qualquer coisa pela sua felicidade, reformulo sonhos, desisto de projetos, qualquer coisa pela minha filha.

— Crescendo! — Abro o celular e lhe mostro uma foto.

— Mon Dieu! Linda como a mãe. — Encara-me emocionado. — Que os corações dos jovens dessa cidade sejam protegidos!

Gargalho, dando um tapinha em sua mão.

A entrada é servida, então começamos a discutir os detalhes do jantar de amanhã à noite. Thierry me explica a dinâmica, elogiando a equipe e o chef do restaurante do hotel. Contaremos com uma brigada de 50 cozinheiros, sendo que o chef passará a exercer a função de chef de partida, controlando a execução dos demais cozinheiros. Thierry e eu seremos os únicos fora da equipe, e, quando demonstro receio sobre a questão do ego do chef executivo do hotel, ele me acalma dizendo que já estão acostumados a auxiliar um chef convidado para bailes e outros eventos.

Fico surpresa, imaginando que o chef deva ganhar muito bem para que não se revolte contra isso, pois sei como são possessivos com suas cozinhas. Dificilmente um chef cede espaço a outro, e inclusive há muitos relatos de brigas feias entre chef e souschef exatamente por medo de perder o posto.

Acabamos nos lembrando de algumas histórias sobre nossa época no L’Amande e passamos toda a refeição, até a chegada do delicioso tiramisù, rindo das loucuras, nossas e dos outros, do tempo em que trabalhávamos como loucos dentro da cozinha de um restaurante uma estrela.

Na época, Thierry tinha acabado de ser promovido a souschef, pois ameaçou ir embora para o concorrente direto caso não preenchesse a vaga deixada por uma amiga nossa que decidiu abrir seu próprio negócio, uma padaria.

Trabalhamos quase dois anos juntos, desde meu estágio até o momento em que voltei para o Brasil, e sempre acalentamos o sonho de abrir um pequeno bistrô na Rue Saint-Honoré, oferecer alta gastronomia com preço justo e muita qualidade.

Enquanto dividimos o doce, ele me atualiza de algumas novidades sobre conhecidos em comum, sempre com seu jeito debochado e espalhafatoso, arrancando-me muitas gargalhadas.

— Preciso ir ao banheiro um minuto. — Thierry se levanta. — Não fuja com aquele chef grandão na minha ausência. — Ri. — Aposto que o homem sabe falar francês e ficou quieto só para ouvir sua voz sexy!

— Thierry! — repreendo, sem jeito.

Enquanto ele entra no restaurante, vou até o guarda-corpo para olhar a movimentação na entrada do hotel. Sinto um frio na barriga, e um arrepio cruza meu corpo, surpreendendo-me, pois nunca senti medo de altura.

— Me dê a boa notícia de que aceitou o emprego e vai vender o boteco para mim!

— Merde! — Ponho a mão sobre o coração, virando-me para ter certeza de que não estou em uma espécie de sonho acordada e que, realmente, Theodoros Karamanlis acabou de falar comigo. É mesmo ele! — O que você... — Olho para a outra mesa, buscando sua companhia e vejo Millos olhando para nós dois e parecendo muito interessado. — Ah, merda! — murmuro e dou as costas para ele, tentando acalmar as batidas do meu coração e o tremor nas minhas pernas. Estive fantasiando com esse homem durante toda a semana, e agora ele está aqui! Fecho os olhos, e o cheiro de seu perfume chega até minhas narinas, parecendo me tentar. — Isso só pode ser alguma brincadeira do destino! — lamento, e ele ri, postando-se ao meu lado.

— Do destino? — sua voz é irônica, e isso me irrita. — Não acredito nessas bobagens!

Olho para ele, as mãos segurando firme sobre a proteção de vidro, sentindo meu sangue ferver por ele estar aqui para atrapalhar um encontro tão tranquilo e gostoso com um velho amigo.

Nas minhas fantasias, Theo não é um Karamanlis, mas sim apenas aquele homem lindo de morrer, charmoso como o diabo, que eu conheci no bar de um restaurante. Ele não tem esse tom de deboche e nem me provoca com sua arrogância.

Decido ser dura com ele e deixar claro que não é bem-vindo ao meu lado.

— Eu não me interesso pelo que você acredita ou não! — respondo no momento em que vejo os garçons servindo o primeiro prato deles. Aponto para a mesa. — Sua comida começou a ser servida.

Ele não se move, nem mesmo olha para trás, encarando-me do mesmo jeito que fez no bar. Meu corpo traidor se aquece, e as imagens de todas as fantasias, de todas as maneiras que o imaginei me tocando, provocam arrepios de prazer pelo meu corpo.

— Novamente... a comida não é o meu interesse no momento.

Preciso reter o fôlego para não ofegar. Minha vagina se aperta e meus mamilos ficam duros contra o tecido do vestido. O desgraçado sabe mesmo seduzir, mesmo sendo direto como é. A autoconfiança dele é demais, faz parte de seu charme, demonstra a segurança de um homem que sabe o que precisa fazer para enlouquecer uma mulher.

A mesma sensação que tive com seu toque volta a me assolar, e tento com muito empenho não demonstrar o quanto ele mexe comigo.

— Então conhece o chef do Angelot? — pergunta como se não tivesse interesse, mas não consegue me enganar. Só não sei se o interesse é sobre o tipo de conhecimento que temos ou se espera que isso seja um almoço de negócios e que eu venda o Hill para me mudar para Paris a fim de trabalhar com Thierry.

— Sim. — Decido ser tão direta quanto ele. — Olha só, Theodoros Karamanlis, vamos encurtar o papo, ok? Não, eu não aceitei nenhum emprego e nunca — sorrio, dando-lhe um pouco do seu próprio veneno sedutor —, nunca vou vender o Hill para vocês. — Cruzo os braços e indico sua mesa com o olhar, querendo que ele me deixe em paz. — Seu primo já está comendo. Bom apetite!

— Se não é emprego... — ele continua, e tenho vontade de deixá-lo falando sozinho — é um encontro? — seu tom de deboche não me passa despercebido.

Ele acha estranho eu ter um encontro com Thierry? Abro um enorme sorriso, desejando que meu amigo estivesse por perto para poder beijá-lo e arrancar a prepotência da cara desse grego.

— Não é da sua conta!

— Interessante, Maria Eduarda — fico séria ao ouvi-lo me chamar assim, do mesmo jeito que fez quando nos conhecemos, lembrando-me de como me senti e percebendo que ele ainda exerce o mesmo poder sobre meus sentidos. — Uma cozinheira que conhece um chef do porte de Angelot, mas que prefere fritar bolinhos...

Ah, que imbecil!

Ignoro o clima sexual, a atração, o desejo e todas as merdas de fantasias que tive e que tenho com ele. Que homem soberbo! O que ele sabe sobre as escolhas que temos que fazer na vida? O que um homem que nasceu em berço de ouro sabe sobre sacrifícios e amor?

Perco a paciência e resmungo, lamentosa:

— Um homem que poderia estar degustando sua comida deliciosa, mas que prefere ficar enchendo a paciência de uma mulher...

— ...mais deliciosa ainda!

Puta que pariu!

Que voz é essa?!

Que olhar é esse?!

Vejo naquelas duas grandes safiras a verdade de suas palavras. Seu desejo, seu tesão por mim fica tão claro como o dia de hoje, evidente, impossível ignorar ou fingir que não vi. É como um reflexo do meu próprio, e fico confusa com isso. Nós nem ao menos gostamos um do outro, como é que sentimos essa atração tão poderosa assim?

Quando a ponta de seus dedos começa a deslizar pela minha pele, sinto meu corpo inteiro tremer. Tenho vontade de gemer de prazer com o toque, seus dedos deixando um rastro quente por onde passam, até chegar ao meu rosto.

O carinho é tão inesperado e tão fora do contexto de nossa conversa que me desarma. Fico aqui, passiva, apenas desfrutando das sensações, imaginando esses mesmos dedos sobre meu sexo, tocando meu clitóris, sentindo a umidade que já está presente.

Fecho os olhos e o sinto se aproximar de mim, o calor do seu corpo emanando até o meu, ultrapassando o tecido do vestido e impactando minha pele. Sinto o hálito quente de sua respiração sobre meu rosto e o pulsar de sua ereção em minha barriga.

Ah, meu Deus!

Não há mais dúvidas de que isso não é uma brincadeira. Theodoros Karamanlis me quer do mesmo jeito que eu o quero! Como é possível que duas pessoas que se detestam possam sentir tamanha luxúria? Eu quero me agarrar a ele, tocar seu pênis para sentir o calor. Quero suas mãos nos meus seios, sua boca na minha...

— Duda, tout est prêt, on peut commander le café ...

A voz de Thierry me arranca do transe sexual no qual estava. Pulo para trás, para longe do demônio que me confunde como ninguém e o escuto falar em outra língua.

— Maláka!

Pela entonação e o olhar gélido de Thierry, Theodoros soltou um palavrão bem cabeludo. Meu amigo me olha, questionador e preocupado.

— Y a-t-il un problème?

Pela reação de Theo, ele entende muito bem o francês.

— Non, mon ami. C'est bien! — respondo, querendo me afastar daqui o mais breve possível. — Je ne veux pas de café. On peut y aller?

— Oui!

Thierry não deixa de encarar Theo, e eu, temendo que um possa falar besteira para o outro, pego minha bolsa e vou até meu amigo, tomando-lhe o braço que me oferece. Saio sem me despedir do demônio, mas, claro, ele não pode ser ignorado, tem que dar a última palavra:

— Maria Eduarda. — Não consigo fingir que não ouvi, principalmente por ele ter usado meu nome inteiro. — Eu não desisto do que quero. — Suspiro, entendendo o que ele quer dizer. — De nada do que eu quero!

Thierry me puxa de leve para frente, e caminho consigo para dentro do salão, passando pelo Millos sem o cumprimentar. Tremo bastante, não de medo ou de nervosismo, mas de antecipação, de vontade, porque sei que ele não vai desistir.

Sim, Theodoros Karamanlis não quer somente tomar posse do que é meu.

Ele me quer!


Estou há meia hora esperando dentro do carro em frente ao prédio de Valentina, e nem sinal dela. Confiro as horas mais uma vez e respiro fundo, chateado por estar atrasado. Claro, a culpa não é totalmente dela, pois demorei a sair da empresa, mas mandei mensagem quando saí de casa, e ela afirmou que estava quase pronta.

Quando a porta é aberta pelo Dionísio, suspiro aliviado, vendo-a, deslumbrante, entrar no carro e se sentar ao meu lado.

— Boa noite, Theo, desculpe pelo atraso. — Sorri e se aproxima.

Seguro seu rosto e, cheio de esperança, beijo-a.

Dessa vez ela corresponde à altura do meu ímpeto, o que me impele a aprofundar a carícia, trazendo-a para mais perto de mim a fim de sentir seu corpo contra o meu. Sua pele é deliciosamente macia, cheirosa, o beijo, muito bom, e meu pau reage... porém, não o suficiente.

Separo-me dela assim que sinto o carro andar, e imediatamente Valentina pega um espelho em sua carteira, conferindo a maquiagem, sem falar nada ou mesmo trocar um olhar provocador comigo.

Porra!

Olho pela janela, as ruas passando, pensando se conseguirei viver com ela. Meu avô vai fazer 90 anos daqui pouco mais de um mês, e o tempo tem sido meu inimigo. Não posso decepcioná-lo, não quando já o fiz tantas vezes, e ele me perdoou e acolheu sem nunca me culpar ou me julgar por minhas escolhas.

Valentina é a mulher ideal, a brasileira que ele aceitaria.

Nunca pensei em me casar com uma grega, essa é a verdade. Moro há tantos anos aqui e só me relaciono com mulheres do país. A última vez em que tive uma relação com uma estrangeira, nem mesmo era grega, mas sim uma francesinha com cabelos coloridos, safada e faceira.

Um leve sorriso aparece no meu rosto ao pensar na mulher dos cabelos rosa. Ela anda um tanto sumida das minhas fantasias, talvez por agora estar interessado na dona do botequim.

Penso em Maria Eduarda e questiono se ela se agarraria a mim dentro deste carro, se se importaria com sua maquiagem ou se se entregaria ao beijo. Se teria pudores se eu a puxasse para meu colo, mesmo com Dio ao volante, ou rebolaria gostoso contra meu pau, gemendo na minha boca, enquanto eu sugasse sua língua como gostaria de fazer em sua boceta.

Interrompo os pensamentos, colocando as mãos sobre o colo, escondendo a ereção completa que os pensamentos me causaram, comparando ao estado “meia bomba” que o beijo de minha acompanhante me deixou.

Porra!

Já estou começando a chamar minhas ereções fora de hora de “efeito Duda Hill”. É pensar ou estar com a mulher que meu pênis se levanta a toda potência, pronto para servir, não importa onde seja: dentro do carro com outra mulher ao lado; no mezanino de um restaurante, tendo o observador Millos como expectador; ou mesmo no escritório, enquanto tento fazer meu trabalho, mas divago pensando no cheiro dela.

Caralho, a mulher virou uma obsessão!

O carro para na porta do Villazza SP, e uma horda de repórteres, a maioria de sites e revistas de fofoca, já nos aguarda sair. Dionísio sai ao mesmo tempo em que eu, dando a volta pela frente, enquanto eu o faço por trás do veículo, abrindo a porta do lado onde está Valentina.

Estendo minha mão para ela, auxiliando-a sair, enquanto chuvas de flashes nos alcançam.

— Odeio a imprensa — confessa baixinho.

— Somos dois! — Sorrio e a acompanho para dentro do hotel.

A suntuosa escada, réplica da existente no primeiro hotel Villazza na Itália, é o caminho que fazemos até o salão nobre, onde a decoração primorosa da minha irmã já nos saúda na recepção organizada, imitando a bilheteria antiga de um circo de luxo. Trocamos nossos convites por máscaras – a de Valentina é preta, e a minha, branca – e recebemos pulseiras com códigos de barras para que possamos entrar e sair do salão.

Valentina pede ajuda a uma das recepcionistas para fixar a pulseira em seu pulso, e eu a aguardo, conferindo no relógio o quanto estamos atrasados. O baile começou há mais de uma hora, e eu queria ter visto o discurso do Frank, ou mesmo do doutor Andreas Villazza, que neste ano sei que está aqui.

Uma mulher chama minha atenção. Ela está de costas para mim, pegando seus acessórios para entrar no salão, e seu vestido branco é todo bordado com cristais que refletem outras cores. Sua pele morena, cabelos negros presos em um coque e um corpo curvilíneo ressaltado pelo modelo do vestido me fazem pensar em uma sereia.

Ela se vira para entrar, e eu a reconheço. É uma das funcionárias da Kyra que trabalhou no evento de fim de ano da Karamanlis no ano passado. No entanto, não me recordo do nome.

Cumprimento-a com a cabeça, ela faz o mesmo e depois segue para o baile, enquanto eu ainda espero minha acompanhante.

— Pronto! — Valentina ri ao me mostrar a pulseira. — Achei que nunca ia prender. — Ri e alisa seu vestido branco. — Aquilo ali é burlar as regras, não? — Indica o vestido da sereia. — O fundo é branco, mas os cristais colorem o vestido!

— Eu gostei — respondo com sinceridade. — E, se burla as regras, o fez de forma inteligente.

Ela apenas assente, ficando muda até nossa entrada.

Puta merda, minha irmã se superou!, penso orgulhoso.

A decoração foi toda projetada de modo a dar a sensação de que estamos entrando em um circo antigo, com pesadas cortinas de veludo carmim e tecidos de brocado indo até o teto do grande salão, imitando o formato de uma tenda. Logo na entrada, dois malabares, com máscaras de bronze enormes – uma do sol e o outro da lua – nos saúdam, enquanto há trapezistas penduradas em argolas e tecidos no teto.

A luz baixa combinada com as velas em enormes castiçais e os enormes arranjos florais dão um tom especial à fantasia de se estar em um circo antigo, embora muito sofisticado. Um garçom – vestido de Pierrô, com sua tradicional tristeza de palhaço – nos oferece champanhe. Eu declino, e Valentina pega uma taça.

— Uau! — Ela parece tão deslumbrada quanto eu. — Isto aqui está incrível! Nem parece o salão nobre do hotel, e olha que já vim a muitas festas aqui!

— Eu também — confesso admirado.

— Olha o chão! — Ela aponta para algum tipo de tapete que cobriu toda a madeira do piso do salão e o transformou em um azul profundo cheio de estrelas brancas, como as antigas lonas de circo. — Quando muda a luz, elas brilham!

Fico olhando e confirmo que, em algum momento, luzes negras são acesas e as estrelas do chão parecem brilhar. Olho em volta para ver se identifico Kyra em algum canto – buscando uma bela mulher sem máscara e provavelmente vestida de preto –, mas não consigo ver muita coisa com a quantidade de pessoas transitando à nossa volta.

— Precisamos achar nossa mesa! — Valentina diz empolgada. — Sabe com quem estamos sentados?

— Provavelmente com minha família. — Dou de ombros. — Millos não veio, mas Alex e Kostas devem estar por aqui.

— Ah, vou adorar conhecê-los!

Ô, se arrependimento matasse!

Andamos entre as pessoas dançando, mesmo havendo uma pista separada só para isso, até encontramos a mesa com placa de reserva escrita com caligrafia profissional: Karamanlis.

— Eis a mesa! — Valentina comemora. — Eu amo essa música!

Escuto a canção famosa na voz do Tony Bennett e, como cavalheiro que tento ser, estendo a mão para ela, convidando-a a dançar. Ela abre um enorme sorriso, ajusta sua máscara, e seguimos os dois para a pista de dança.

Abraço-a junto a mim, seguindo o ritmo, mas sem realmente me esforçar para dançar bem, apenas guiando-a em passos simples. Sinto os dedos dela, que deveriam estar em meu ombro, aproximarem-se de meu pescoço, subindo e descendo em carícias. Franzo as sobrancelhas, sem realmente entender essa mulher.

Encaro-a e quase me assusto com o sorriso malicioso e o brilho em seus olhos.

— Eu queria um momento assim, junto com você, sem um motorista a assistir. — Aproxima-se. — Esperei por esse momento a semana toda, Theo.

Seus lábios tocam os meus devagar, olhos abertos, encarando-me sem parar. Aperto mais sua cintura, colando nossos corpos, tomando sua boca em busca finalmente da atração, do arrepio na pele e da reação do pau. Acontece, claro, tenho sangue nas veias, e ela é uma mulher linda, mas, ainda assim...

A música acaba, as luzes são todas acesas e o mestre de cerimônias aparece no palco, vestido com um smoking listrado de vermelho e branco, calças e sapatos pretos, uma bengala e uma enorme cartola preta na cabeça.

— Senhoras e senhores! — diz após os aplausos. — Respeitável público! Bem-vindos ao 10.º Baile Branco e Preto promovido pela Rede Villazza de Hotéis! Vocês já foram agraciados com a mensagem de abertura do Presidente Geral, doutor Andreas Villazza, e agora, antes de darmos início ao jantar, peço que recebam com aplausos o responsável pela Rede na América do Sul, doutor Francesco Villazza!

Frank sobe ao palco ao lado de Isabella, com aquele seu sorriso torto de sempre, adorando ser a estrela da festa. Conheço muito bem esse carcamano para saber que adora estar sob os holofotes!

— Buona notte! — saúda a todos. — É um enorme prazer tê-los aqui nesta noite especial. Como meu pai já nos abrilhantou contando a história dos primeiros Bailes Bianco e Nero nas nossas unidades italianas, não vou tomar o tempo de vocês falando de ano após ano dessa mesma tradição aqui no país. — Ele faz careta, e uma risada geral é ouvida. — Vou falar da importância desse baile! Como sabem, não o realizamos todos os anos, na verdade, é o segundo que a cidade de São Paulo recebe, pois os oito anteriores foram feitos em Curitiba. O intuito desta festa é muito maior do que apenas o entretenimento. Embora tenhamos o maior cuidado em oferecer o que existe de melhor para sua noite, essa não é a prioridade do baile. Minha avó foi uma médica incrível! Uma mulher à frente de seu tempo que, mesmo casada com um homem de família nobre, se dispôs a aplicar seus conhecimentos para ajudar o próximo, e nós continuamos seguindo seus preceitos. — Há uma chuva de aplausos quando a imagem de uma senhora muito distinta, vestida de branco, aparece no telão. — Este ano o conselho da Fundação Maria Eugenia Andretti escolheu instituições que trabalhem com crianças, seja na área de educação, esporte, lazer ou mesmo do social. — Logomarcas de três instituições aparecem.

Isabella é quem vai até o microfone com uma pasta na mão.

— A AcordSons é uma fundação familiar de músicos que levam a arte em forma de oficinas, cursos e patrocínio para músicos clássicos em comunidades onde há altos índices de violência praticada por ou contra crianças e adolescentes. — Imagens do local passam no telão. — A Brinquelândia é uma ONG que assegura o direito da criança de brincar, tão importante nos dias de hoje! Além de exercerem vigilância constante às denúncias de trabalho infantil, eles têm oficinas de artesanato, aulas de teatro e música, sempre com o foco na brincadeira e no lúdico. — Ouço umas palavras de ordem e aplausos de um grupo reunido em uma mesa à nossa esquerda. — E, por fim, a WaveAccess, criada há quase dois anos e que promove acessibilidade ao surf, provendo cursos, materiais e treinamento para crianças, jovens e adultos com necessidades especiais, sendo seu principal público o infantil.

Vejo as fotos do surfista Bernardo Novak aparecendo junto a um outro, mais velho e sem um dos braços, em uma praia lotada de crianças com as mais variadas necessidades especiais, físicas ou intelectuais.

Vejo a família Novak, cujo filho mais velho é casado com a caçula dos Villazzas, numa mesa à minha direita. Dona Cecília, Gilberto, Nicholas e Giovanna aplaudem com orgulho o garoto que, até um tempo atrás, era considerado a ovelha negra da família.

Feitas as apresentações, os anfitriões informam que há mais informações sobre cada instituição no livro do programa de leilão, onde, além de conter todas as peças do inventário a serem leiloadas, há fotos e histórias de cada uma das beneficiadas da noite.

Neste ano não doei nenhuma peça, mas pretendo adquirir algo.

— Eles disseram que toda a arrecadação do baile será destinada 100% para as três instituições, mas e o custo de montar esta estrutura? — Valentina questiona quando nos sentamos à mesa.

— Boa parte é bancada pela Rede, e o resto, por doações. — Ela arregala os olhos e sorri. — Muita gente contribuiu no país todo, pelo que Frank me contou. Já é um baile famoso!

Mal termino de falar e vejo Alex se aproximando com sua acompanhante. Ele franze as sobrancelhas ao ver Valentina, provavelmente questionando quem é a artista da vez, e eu reconheço sua melhor amiga, Samara, de braços dados com ele.

— Theo! — a moça, sempre muito simpática quando nos encontramos em eventos, cumprimenta-me. — Que bom vê-lo esta noite! — Olha para Valentina, esperando que eu as apresente.

— Samara Schneider, essa é Valentina de Sá e Campos. — Alex dá um sorriso debochado em minha direção, como se reconhecesse os sobrenomes dela. — Valentina, essa é a Samara, uma incrível designer de interiores.

— É um prazer, Valentina! — Ela vai até minha acompanhante.

Aproveito que as duas vão engatar em alguma conversa sobre conhecidos em comum e coloco minha atenção em meu irmão.

— Viu só esse trabalho da Kyra? — Aponto para tudo em volta.

— Claro! — Ri da minha pergunta. — Seria impossível não ver, já que estou aqui! — Rolo os olhos, e ele ri. — Já fui até cumprimentá-la, mas está tão ocupada que não consegui nem falar com ela direito.

— Imagino que esteja — concordo, mas ainda me sentindo muito orgulhoso, mesmo que nunca vá dizer isso a ela. — Viu o Kostas?

— Com saudade dos seus irmãos? — Senta-se e responde ao notar que não fiz caso de sua perguntinha ridícula: — Estava com uma loira gostosa lá perto do bar. O bourbon, você sabe!

Assinto, também sentindo falta do meu scotch. Como se meus pensamentos fossem ouvidos, uma linda Arlequina aparece com uma bandeja com copos, gelo e belas garrafas do meu segundo uísque preferido. É pena não ter o meu preferido!

— Caubói, por favor — solicito quando ela pergunta sobre minha bebida.

— O jantar já foi anunciado — Alex comenta. — Chegou agora?

— Sim, só consegui ouvir o discurso do Frank. Legal a fundação do seu amigo estar sendo beneficiada.

— Bê merece, o cara é um guerreiro! — Alex comenta. — Nick está muito orgulhoso do irmão.

— É, não deve ter sido fácil para ele, mas superou e ainda quis fazer a diferença. Isso é legal de se ver! — comento com ele.

Ficamos conversando um tempo como se não houvesse nenhum problema entre nós, falando sempre de trivialidades, de amigos conhecidos, trabalho e qualquer coisa que não seja nossa vida pessoal.

Ele não me pergunta sobre Valentina, e nem eu sobre Samara, mesmo porque sei que a amizade dos dois é longa, uma vez que o pai dela trabalhou para a Karamanlis durante muito tempo. Ele executou toda a parte de planejados de um dos empreendimentos na gestão do Nikkós. O homem era um design de móveis respeitado e com uma agenda apertada. Hoje, sei que ele não atende mais particulares, apenas empresas, mas teve um momento em que ter um móvel Schneider em casa era sinônimo de bom gosto e exclusividade.

— Família!

Viro-me ao ouvir a voz debochada de Kostas. O homem vem abraçado a uma loira com um vestido branco tão justo e transparente que pouca coisa de sua anatomia perfeita fica à imaginação.

— Bruninha, conheça os Karamanlis! — Ele aponta para Alex e mim. — Claro que você pode deixar seu cartão com eles depois, mas eu sou o mais bonito, não sou?

Ele segura a mulher pela cintura e a gira.

— Já bêbado? — Olho para Alex, que balança a cabeça.

— E mais uma vez com acompanhante paga! — Ele chega mais perto de mim. — Estou achando que nosso querido irmão é do outro time.

Gargalho alto, quase engasgando com meu uísque, o que chama a atenção das duas mulheres, que param de conversar e me olham.

— Perdoem-me, foi irresistível! — Bebo mais um gole. — Bom, certamente ele é arrogante e orgulhoso demais para “sair do armário”.

— Seria apenas mais um rejeitado pelo seu querido pappoús! — Alex diz antes de beber seu champanhe.

Olho para meu irmão sem saber o que dizer para aplacar essa dor que ele traz dentro de si desde criança. Quantas vezes menti a ele dizendo que Geórgios era um homem muito ocupado, mas que pensava nele. Quantas e quantas desculpas inventei ao menino para justificar o fato de nosso avô nunca o ter conhecido ou mesmo reconhecido como neto.

Alex se levanta e chama Samara para dançar. Valentina me olha, provavelmente esperando o mesmo de mim, vendo meus dois irmãos na pista com suas respectivas acompanhantes, mas finjo não entender. Não tenho vontade de dançar agora, não depois que as amargas lembranças voltaram a me atormentar.

Pego mais uma dose de uísque e respiro aliviado quando vejo o jantar começando a ser servido. Confiro o menu em cima da mesa para ver o que está no cardápio do chef Angelot e fico satisfeito com as escolhas dele.

A música muda, ficando mais suave e baixa, as luzes todas são acesas, e vejo um a um retornar à sua mesa para degustar a comida três estrelas do chef francês convidado da noite.


O jantar foi um sucesso total!

Nunca vi tamanho silêncio entre os convidados de um baile, efeito da perfeição de cores, texturas e sabores do chef Thierry Angelot. O tradicional menu em sete etapas consistiu em: aperitivo – camarões salteados com legumes envoltos em nori; entrada – mini tartar de salmão com tomate; prato principal – costelas de cordeiro com guisado de quinoa e espinafre; prato de queijos; um café especial; sobremesa – profiteroles; e, por fim, um digestivo que eu acabei por dispensar. Cada etapa foi harmonizada com um vinho diferente que eu neguei, pois não queria prejudicar o paladar do meu puro malte.

— Valeu cada centavo do convite! — ouvi uma pessoa comentar enquanto eu circulava pelo salão.

Encontrei alguns conhecidos – a maioria já não usava mais as máscaras – e fiquei um bom tempo conversando sobre negócios.

— Você veio, stronzo! — Frank me cumprimentou quando nos encontramos. — Vi seus irmãos na pista de dança, mas essa sua cara tediosa eu não vi.

— Sem ânimo para danças! — Dei de ombros. — Deve ser a idade.

Ele gargalhou, negando, pois é alguns anos mais velho que eu.

— Aposto que está andando por aqui babando no trabalho de sua irmã! — Sorri sem jeito, porque ele me conhece demais, na verdade é o único de fora da família que sabe os motivos que nos levaram a sermos tão fodidos desse jeito.

— Ela se superou! — confessei. — Kyra é melhor que todos nós, os homens Karamanlis. Começou sua empresa sem ajuda, batalhou para conseguir chegar aonde chegou. — Bebi mais um pouco. — Nós já pegamos tudo pronto.

— Nossas irmãs são desertoras, essa é a verdade! Não se abandona o negócio da família, nunca!

Ri dele, pois sei o quanto ainda o chateia sua própria irmã ter saído da Rede para montar sua própria agência de publicidade. Fiquei conversando um pouco mais com Frank, perguntando sobre as crianças – ele já tem três filhos – e sobre os negócios.

Há alguns anos nossa conversa seria sobre mulheres, uísque e negócios. Ele sempre com aquele cigarro na boca, tentando me convencer a comprar uma moto, coisa que nunca fiz e provavelmente nunca farei, pois elas não fazem minha cabeça. Prefiro carros potentes, confortáveis e cheios de segurança.

Em certo momento da noite, Kyra passou por mim, minha bela irmã com seu porte de deusa, cabelos cheios e escuros, olhos verdes e pele morena, vestida em um terninho preto básico, com um tablet na mão e um radiocomunicador na orelha.

Ela parou em seco quando me viu. Tentei sorrir e me aproximar, mas imediatamente ela se virou e saiu de perto como se eu fosse um leproso. Respirei fundo e bebi todo o conteúdo do copo.

Minutos depois, já de volta à mesa, ouvimos o aviso da contagem regressiva, e o salão explodiu em vivas e desejos de Feliz Ano Novo. Valentina se pendurou no meu pescoço e me beijou, desejando que o ano fosse especial para nós dois.

Houve música, comemoração e, por fim, o leilão começou.

Todos nos sentamos a nossas mesas, e os inscritos para os lances – já sabendo o que queriam comprar através do belo catálogo que tinha sido elaborado – receberam placas de identificação.

O leiloeiro apresentava a peça, saudava o doador, que geralmente se punha de pé para receber os aplausos de todos, e começava o jogo a partir de seu lance mínimo. Um dos momentos em que mais me diverti foi quando uma guitarra de blues – antiga e que pertencera a um dos grandes dessa área – foi disputada lance a lance por Frank e um outro homem. O negócio ficou tão acirrado que o doador, um integrante de uma banda de rock chamado Cadu, precisou mediar a situação.

Outro grande momento foi quando Nicholas Smythe-Fox doou um dos seus famosos potros PSI – Puro Sangue Inglês. Eu até dei um lance por diversão, até Alex participou da brincadeira, mas a coisa ficou feia mesmo entre Kostas e mais uns dois convidados – entre eles uma mulher. Meu irmão ficou a ver navios, e a dama levou o potro, o que, por si só, já me encheu de satisfação por ter vindo.

Acabei arrematando um final de semana em uma ilha particular em Angra dos Reis, uma doação do dono da ilha, um escritor de sobrenome Palmer. Não fazia ideia de quando poderia ir, mas briguei ferrenhamente para conseguir. Adoro o mar e podia me ver lá, na bela casa que apareceu no telão, desfrutando de paz e tranquilidade naquela linda baía de Ilha Grande.

O leilão durou mais de duas horas, mas foi muito divertido. Agora, prontos a voltar à sequência do baile, Valentina se pendura no meu braço e beija minha orelha.

— Eu adoro Angra! — sussurra. — Pensei que iria comprar alguma obra de arte. Fiquei surpresa por querer um final de semana em uma ilha particular. — Sorri. — Alguma ideia malvada?

Vagarosamente abro um sorriso, gostando da brincadeira, apreciando que ela esteja tão mais solta, sem todo aquele “protocolo” estranho de antes.

— Talvez — respondo em provocação, e ela faz um biquinho sexy.

A banda se posiciona para voltar a tocar, mas, antes da primeira nota, Frank aparece no palco.

— Atenção, por favor. — Uma luz se acende sobre ele. — Antes de voltarmos a dançar e a nos divertir, não posso deixar de cumprimentar publicamente o responsável pelo espetacular jantar desta noite, que, além de ter nos proporcionado a honra de provarmos sua comida, ainda doou seu cachê! Chef cuisinier Thierry Angelot, applaudissements, s'il vous plaît!

— C'est moi qui vous remercie de pouvoir participer — responde e olha para trás, chamando alguém para junto dele. Continua falando em francês: — Quero agradecer à maravilhosa equipe do chef Emílio, responsável pela cozinha do hotel, e à minha querida amiga. — Quase engasgo ao reconhecer a mulher ao lado dele. — Chef Maria Eduarda Hill, que foi minha souschef e ajudou a pensar e elaborar cada prato que experimentaram hoje.

Fico um tempo olhando para ela, ainda sem poder acreditar que estava aqui, neste baile, o tempo todo. Era óbvio! O almoço de ontem era por esse motivo, ela o estava ajudando na cozinha!

Maria Eduarda traduz tudo o que o chef falou para o português, e seu sorriso, mesmo de cima do palco, acerta-me em cheio, fazendo meu corpo estremecer, reavivando aquele momento que passamos ontem, antes de sermos interrompidos pelo chef.

Valentina fala algo em meu ouvido, mas não consigo prestar atenção, não consigo desviar os olhos da mulher sobre o palco, que ri e conversa em francês e em português com o chef e com o Frank.

Olho para Valentina, tentando entender o que porra está acontecendo comigo! Ela é perfeita em todos os sentidos, linda, jovem, bem-educada, de família tradicional, além de ser gostosa e sedutora quando quer. No entanto, não senti nem metade com ela grudada ao meu corpo, com a boca na minha, do que sinto agora, apenas ao olhar Duda Hill.

— Vamos? — ela pergunta.

— Para onde? — questiono, pois não ouvi nada do que ela esteve falando.

— Para meu apartamento. — Desliza as mãos pela lapela do meu smoking. — Estou cansada e querendo ficar um pouco a sós com você.

Novamente olho de soslaio para o palco, mas Duda e o chef já não estão mais por lá. A banda volta a tocar, e eu respiro fundo.

Preciso investir em Valentina, pois ela é mais do que somente uma trepada gostosa, pode ser a mulher com quem eu vá me casar e ter um filho. Duda e eu, apesar da atração, nunca passaríamos de uma aventura, e isso, sinceramente, eu já tive demais.

— Vamos!

Ela sorri com minha resposta e se despede de Samara.

Seguimos para fora do Villazza SP, porém, antes de chegarmos ao saguão, puxo-a para meus braços e a beijo, querendo sentir aquele mesmo tesão que senti há pouco apenas com a visão da cozinheira no palco.

A sua resposta é tão animada que acende um pouco meu desejo, mas ela logo se afasta de mim, puxando-me pela mão como se eu fosse um cachorrinho em seu encalço.

Ligo para o Dionísio, e, em menos de cinco minutos, o carro para na calçada do hotel. Seguimos para o endereço do apartamento de Valentina, com ela, talvez por causa da bebida, já quase em cima de mim, lambendo meu pescoço, falando coisas sujas em meu ouvido, e eu...

Bem, detesto esse clichê, mas devo admitir que isso nunca me aconteceu antes!

Não consigo tirar a porra da Duda Hill da cabeça, pensando que ela ainda está no hotel, sentindo o cheiro de seu perfume, o calor da sua pele, louco por descobrir de uma vez como é o sabor de sua boca.

— Theo? — Valentina me chama, e noto que já chegamos. — Tudo bem? Você parece um tanto desligado...

Fecho os olhos e respiro fundo.

— Acho que bebi demais. — Ela fica séria. — Estou com uma leve indisposição, então acho melhor deixarmos para nos ver outro dia.

— Tudo bem. — Dá de ombros, visivelmente frustrada. — Tem certeza?

Merda, Theo, o que você está fazendo?!

— Tenho, sim. Boa noite, Valentina! — Beijo sua testa.

Sua testa!

Ela não esconde a decepção e, sem nem mesmo esperar que Dionísio abra a porta do carro, sai, batendo-a ao fechá-la. Espero-a entrar na portaria e deito minha cabeça para trás, no encosto do carro.

— Tudo bem, chefe? — Dionísio pergunta preocupado. — Direto para casa?

Fico mudo, em guerra comigo mesmo, sabendo o que eu deveria ter feito, mas indo na direção contrária. Totalmente irracional!

— Volte para o Villazza o mais rápido que conseguir.


Estar de volta a uma cozinha profissional do nível da do hotel Villazza SP é, ao mesmo tempo, emocionante e horripilante. Estou longe desse mundo há tantos anos que tenho medo de ter desaprendido como tudo funciona, ter perdido o ritmo, sabendo da correria que é, ainda mais em um evento desse porte.

Chegamos cedo à cozinha, dividimos as tarefas por equipe de acordo com o menu que Thierry e eu fechamos ontem, depois do nosso almoço no Vincenzo’s.

Um tremor percorre meu corpo ao pensar que Theodoros Karamanlis provavelmente estará presente nesse baile, acompanhado de uma bela mulher, enquanto come o que preparei com tanto afinco. Se pudesse, iria colocar algum tipo de purgante em seu prato e...

Balanço a cabeça a fim de afastar esse pensamento ridículo. O homem mexe comigo, descompassa meu coração, aquece meu corpo, mas isso não é motivo para que eu me sinta tão vingativa por ele se divertir com outra.

Não, claro que não! Que ideia mais absurda!, penso, selando os cortes de carnes que serão mantidos em banho-maria, cozinhados em temperatura baixíssima, até o momento de serem colocados na grelha e empratados.

O que me move a ter pensamentos tão duros com relação ao CEO da Karamanlis certamente é sua insistência em querer tirar o que é meu, não qualquer outro motivo! Pouco me importa com quem ele sai e se diverte. Não temos e nunca teremos nada um com o outro!

Mentirosa!, acusa-me a consciência, mas não lhe dou ouvidos.

Thierry conta comigo para apresentar o menu mais sofisticado que a sociedade paulistana já provou em um baile, e, mesmo com um trabalho gigante pela frente, não vou ter meu foco desviado por nada, nem mesmo por Theodoros Karamanlis, seu olhar sedutor e toque irresistível.

— Tudo certo? — Thierry pergunta-me. — Preciso te ter atenta para traduzir tudo o que eu digo aos demais.

— Oui, chef! — Pisco para ele, enquanto prova o marinado que fiz para o cordeiro. — C’est bon?

— Parfait!

Não será fácil cuidar dos molhos e ajudá-lo a coordenar a brigada, mas é para isso que estou aqui. Vou até o pâtissier18 e o encontro com seus cozinheiros já bem adiantados na preparação da sobremesa. Mesmo antes do começo da correria louca que será essa cozinha durante o baile, já há a agitação crescente da preparação dos alimentos.

Cada uma das sete etapas precisará ter todos os pratos prontos, com intervalos mínimos entre uma e outra. Olho para o mapa do salão todo preenchido com o número de ocupantes de cada mesa e mais uma vez me pego pensando em onde Theo estará.

Respiro fundo, rememorando a ordem que chef Angelot e eu programamos para que os garçons possam servir. Luan, um dos boqueteiros19, foi instruído a organizar toda a distribuição dos pratos de acordo com os que liberarmos na boqueta.

— Olá! — uma mulher morena, com olhos de um tom de verde que só vi uma vez na vida, cumprimenta-me. — Você é a chef Hill?

— Sim! Em que posso ajudá-la?

— Sou Kyra Karamanlis, da ???p?20 Produções e Eventos. — Ela estende a mão, e eu, depois de passado o choque causado por seu sobrenome, saúdo-a. — Eu estive há pouco tempo com o chef Angelot, e ele me pediu para procurá-la. — Ela chama duas mulheres. — Essas são Marília e Andréia, trabalham comigo e irão permanecer na cozinha a fim de fazer uma ponte com minha equipe, por causa do cronograma.

— Ah, sim, ficamos sabendo disso ontem. — Sorrio. — Fiquem à vontade!

— Obrigada! — Elas sorriem e me cumprimentam também.

Vejo a Karamanlis conversar com suas funcionárias e, em seguida, sair da cozinha falando sem parar em seu radiocomunicador.

— Foi ela quem organizou tudo isso? — inquiro a uma delas – não sei se Marília ou Andréia –, apontando em direção ao salão.

Passei por lá há pouco tempo, e o que vi me impressionou muito. A suntuosidade, luxo e, principalmente, a riqueza nos detalhes fez com que eu tivesse a sensação de realmente estar entrando em um espetáculo como uma vez assisti no Cirque Du Soleil.

— Sim, foi Kyra quem fez todo o projeto de decoração. — Sorri. — Ficou impressionante, não?

— Sim, lindíssimo! — Olho para a minha bancada, ciente de que tenho que continuar o trabalho, porém, deixo a curiosidade falar mais forte. — O sobrenome dela, Karamanlis, tem ligação com a empresa imobiliária?

É a outra mulher quem me responde:

— Sim, ela é a caçula da família e não trabalha com eles, é independente.

Irmã ou prima do Theo?, tenho vontade de perguntar, mas não o faço, voltando para minha estação de serviço, adiantando o molho da entrada, deixando de lado qualquer pensamento ou curiosidade acerca dos Karamanlis.

 

 

— Gostaríamos de agradecer o empenho de cada um de vocês — traduzo as palavras de Thierry. — A forma como trabalharam, a perfeição e o cuidado com cada prato, cada elemento, foram dignos da melhor cozinha de um restaurante três estrelas. Agradeço ao Chef Emílio pelo prazer de compartilhar de sua cozinha e a oportunidade de conhecer o trabalho de cada um aqui nesta noite!

Thierry ergue sua taça de champanhe, e todos o seguimos, brindando pelo fim do trabalho executado sem nenhum percalço, seguindo corretamente o cronograma da organização e o do nosso menu.

Estou um bagaço, confesso, mas nunca me senti tão viva desde que deixei o L’Amande em Paris há sete anos. Cozinhar no Hill é uma delícia, meus companheiros de trabalho são únicos, divertidos e amigos de verdade. Contudo, trabalhar de novo em uma cozinha de alta gastronomia relembrou o motivo pelo qual eu estudei e me esforcei tanto.

Aquela agitação, os pratos sofisticados, os ingredientes de qualidade e a apresentação artística de cada prato reacenderam a chama dentro de mim. Amo cozinhar, mas há anos o venho fazendo apenas como um meio de ganhar meu pão de cada dia. Há anos não arrisco, não deixo a criatividade tomar conta de mim e o simples ofício de juntar ingredientes se tornar a arte de harmonizar sabores.

Ficamos horas cozinhando hoje, preparando prato por prato, etapa por etapa. A verdade é que nunca vi uma boqueta tão movimentada quanto a desta noite. Liberamos mais de 1200 pratos – desde o aperitivo até os queijos –, mais de 300 sobremesas, além do café e do licor.

Relaxamos depois, todos reunidos para cear o Ano Novo – ideia de Thierry – enquanto começava o leilão tão aguardado da noite.

Eu estava limpando minha estação quando Kyra Karamanlis entrou na cozinha mais uma vez e foi diretamente falar com Angelot. Segundo ela, Frank queria agradecer pelo jantar e por ele ter doado o cachê em prol das intuições beneficentes da noite.

Vi-o tirando o avental e vindo em minha direção.

— Duda, ma petite, j'ai besoin de toi pour m'accompagner.21

Foi assim que, com a dolma manchada, turbante cheio de pimentinhas desenhadas, fui parar em cima do palco, no meio da granfinada de São Paulo, mas com a preocupação de ser vista por apenas uma pessoa.

De onde eu estava, não era possível identificar ninguém, pois o salão estava escuro e boa parte dos convidados ainda estava usando as máscaras. No entanto, ainda sem poder vê-lo, sentia seu olhar sobre mim. Minha pele estava arrepiada, e eu sentia pequenos calafrios em minha coluna.

Em algum lugar daquela multidão, estava o homem que eu devia querer o mais longe possível de mim, mas que não deixava meus pensamentos nem por um minuto.

Traduzi o que Thierry falou, agradeci, em meu nome, a oportunidade diretamente para o CEO da rede Villazza – que por sinal não me era estranho; provavelmente já estampou muitas revistas da tia Do Carmo – e voltei para a cozinha a fim de terminar a limpeza e ir para casa.

— Duda! — Emílio, o chef executivo do restaurante do hotel, me chama, e paro de pensar na noite. — Você foi incrível esta noite! Thierry me disse que você mora aqui na cidade. — Assinto, e ele estende um cartão para que eu o pegue. — Tenho uma vaga para você em minha equipe se não estiver à frente de nenhuma cozinha.

Nem preciso dizer que meu coração disparou de felicidade. Olho em volta, adorando cada utensílio, cada estação organizada, pensando em como deve ser incrível trabalhar com ele aqui. Aceito o cartão.

— Eu agradeço, chef, mas no momento tenho meu próprio negócio.

— Ah, é mesmo? Onde? Eu adoraria experimentar um pouco de sua comida.

Sorrio.

— Hill Wings Pub. — Ele não disfarça sua surpresa. — Eu tenho um boteco na Vila Madalena.

— Um pub? Que inusitado!

Rio, achando engraçado que ele tenha ficado tão sem jeito.

— É de família, assumi quando meu pai faleceu. — Dou de ombros. — Não é alta gastronomia, mas me divirto cozinhando.

— Mas seu talento... — Ele respira fundo. — Enfim, você sabe o que é melhor. Se quiser voltar para uma cozinha francesa, tem lugar aqui comigo.

— Seria uma honra, chef — digo com sinceridade. — Obrigada.

Mal terminamos de falar, e uma agitação na entrada da cozinha chama nossa atenção.

— Ah, meu chefe! — ele comenta rindo. — Não fazia ideia de que viria aqui nos cumprimentar.

Frank Villazza vem caminhando até onde estamos, charmoso, com seu sorriso de lado e um porte de modelo, porém, não consigo ficar mais do que alguns segundos o observando. Meus olhos são atraídos para o homem ao seu lado, lindo, em um smoking de corte perfeito, com expressão séria e frios olhos azuis fixos nos meus.

Frank Villazza fala algo sobre vir nos cumprimentar pessoalmente. Vejo Emílio ir até ele, mas não consigo ouvir nada do que diz. O magnetismo de Theodoros Karamanlis me prende, simplesmente não posso parar de olhá-lo e, ao que parece, nem ele a mim.

No meio do discurso do Frank, Theo caminha em minha direção, porém, antes que me alcance, Thierry me chama e pergunta como irei para casa.

— Uber — informo, virando-me de costas para o irresistível grego. — Já ia chamar antes da entrada triunfal de Francesco Villazza.

— Ele já acabou! — Aponta, e eu olho para trás, vendo-o se despedir de Emílio. — Quer que eu a leve?

— Não precisa, Thierry. — Beijo sua bochecha. — Muito obrigada pela noite de hoje.

— Nos veremos amanhã no seu bar.

Sorrio, empolgada.

— Te espero lá!

Despeço-me de todos, pegando minha pequena mala contendo o uniforme, facas e turbantes – sempre levo mais de um por precaução – e saio do restaurante em direção à saída de funcionários do hotel.

Espero chegar à calçada e abro o app para pedir um carro, mas, antes que eu confirme a viagem, um Mercedes preto para bem na minha frente, e o vidro da porta traseira é aberto.

— Aceita uma carona?

Prendo a respiração, seguro forte o aparelho celular para não o derrubar no chão de tanto que estou trêmula e encaro Theodoros Karamanlis.

— Não — recuso. — Posso me virar sozinha. — Chacoalho o telefone para que veja que estou chamando o Uber.

— Não perguntei se sabia se virar sozinha, Maria Eduarda. — Dá um leve sorriso. — Sei que consegue, mas quero levá-la. Aceita?

Merde! Ele não facilita para mim falando desse jeito e com esse sorriso.

— Eu acho melhor não...

— Ei, é um pedido de trégua! — Agora abre o sorriso de forma que seus olhos se iluminam. — Está tarde para andar sozinha com um desconhecido.

Franzo as sobrancelhas.

— Você é um desconhecido.

Theodoros gargalha.

— Não, Duda, eu não sou. — Ele abre a porta do carro. — Entra, prometo que te deixo em casa inteira. — Dá um sorriso safado. — Prometo não morder... a não ser que me peça.

Um arrepio percorre minha coluna. Olho para o telefone em minha mão, com o pedido de confirmação da viagem para o motorista mais próximo vir me buscar, e para o homem me esperando, de porta aberta, sorriso malicioso e a mesma promessa de prazer que senti desde que nos encontramos pela primeira vez.

O que eu faço?


CONTINUA

Resisti a esbravejar de volta e respirei fundo, clamando por paciência. Eu nunca quis que fosse assim, porra! Se quisesse a merda de um casamento arranjado, tinha posto um anúncio no Estadão ou na Folha! A ideia era conhecer alguém que despertasse meu interesse e ver se essa pessoa continha os requisitos do pappoús, não o contrário!

Bom, a porra do encontro já estava agendada e confirmada, então não me restou outra saída a não ser ir até a moça.

Não serei hipócrita ao não reconhecer o quanto Valentina estava linda. Um vestido preto, fino, de tecido parecendo seda, colava-se ao seu corpo de tal maneira que eu tive certeza de que não usava calcinha. O modelo era na altura dos joelhos, sem muito decote, porém o suficiente para mostrar seus atributos a um bom observador. Os cabelos claros estavam soltos, penteados para trás, caindo sobre suas costas delgadas.

Ela entrou no carro e se sentou ao meu lado no banco traseiro enquanto Dionísio fechava a porta.

— Boa noite, Theodoros! — cumprimentou-me de forma educada e sutil, seus olhos azuis destacados por uma maquiagem bem feita. — Espero não o ter feito esperar muito.

— Boa noite! — Sorri. — Valeu a pena cada minuto. — Beijei sua mão. — Você está deslumbrante!

Ela apertou sua mão sobre a minha, e eu a puxei para um beijo.

Nada!

Encho o copo de uísque novamente, pensando em como pode uma mulher linda daquelas, com um corpo perfeito, um rosto e sorriso incríveis, isso sem contar em todos os outros atributos intelectuais, que ela tem bastante também, não conseguir sequer uma reação mínima do meu corpo?

Como é possível?!

Volto a pensar em como ela mesma reagiu, com um sorriso polido como se aquilo não passasse de um protocolo. Gelo tomou conta de todas as minhas veias e se concentrou diretamente no meu pau.

Pedi ao Dionísio que fosse até o endereço da galeria, fiquei a noite inteira com ela pendurada em meu braço enquanto comentava – com enorme conhecimento da área – sobre cada gravura ali exposta. Relaxei com a presença dela, com a afinidade que tínhamos com as artes e também com seu humor perspicaz e agradável.

Sem dúvidas, Valentina é uma ótima companhia, por isso mesmo a convidei para ir comigo ao baile de Ano Novo dos Villazzas.

No final da noite, voltei a tentar uma aproximação, e ela a recebeu com a mesma resignação de antes, porém, sem nenhuma paixão, assim como eu. Porra, ela era perfeita, mas onde estava a química entre nós? Onde estava o arrepio na pele ao meu toque? A reação do meu corpo a um simples sorriso dela?

Não tinha nada ali! Nenhuma chama, nem mesmo uma faísca.

Rio, voltando a tocar o piano, afastando a frustração que senti há algumas horas. A mulher certa com a reação errada, enquanto tive todas as reações certas com a última mulher com quem deveria ter tido!

O nome dela, dessa mulher tão exasperante que consegue criar uma revolução nos meus hormônios sexuais, flutua em minha cabeça como se fosse música: Maria Eduarda Hill.

Ao mesmo tempo em que decido tocar algo para cessar o mantra nominal, faço uma autoprovocação escolhendo uma música romântica e divertida na versão do ícone Frank Sinatra:

— My funny valentine! Sweet, comic valentine! You make me smile with my heart. Your looks are laughable, unphotographable, yet you're my favorite work of art. 4

É, penso quando paro de cantar e fico somente tocando, a noite vai ser longa. Ainda bem que tenho garrafas de uísque e repertórios musicais suficientes!

 

 

O som está uma merda, a bebida, quente, e a decoração, cafona demais! Procuro Rômulo no meio dos funcionários da Karamanlis, todos reunidos no refeitório para o almoço de final de ano em plena véspera de Natal.

Neste ano resolvemos não mais fazer duas festas separadas – para os funcionários e para os cargos acima de gerência da Karamanlis – e reunimos todos aqui mesmo no prédio da empresa. Abrimos apenas as portas do refeitório, que dão em uma espécie de terraço, onde o bufê colocou um toldo e umas cadeiras.

Não foi minha irmã caçula quem organizou a festa, infelizmente, senão não estava essa cafonice estranha.

Avisto Rômulo e faço sinal para que venha até mim, e ele o faz imediatamente, parando de conversar com alguns funcionários da TI – eu sei porque a maioria com cara de nerd aqui da empresa trabalha lá – e vem aos tropeços, “catando cavaco”, como diria Aluísio Azevedo5 se ainda estivesse entre nós, até se postar ao meu lado.

— Sim, doutor?

Tento conter uma risada e apenas balanço a cabeça, esperando que ele resgate o ar que perdeu no percurso para que eu lhe pergunte de quem foi a idiota ideia de contratar esse péssimo serviço!

— Rômulo, sobre a empresa que está organizando essa confraternização. — Ele arruma os óculos. — Nós pagamos por isso? — Aponto o dedo para todas as coisas penduradas na parede, inclusive os balões infláveis com os números formando 2019 em dourado.

— Claro que sim! — Sorri. — Não posso precisar o valor, porque isso é com o pessoal do doutor Millos, mas tenho certeza de que uma empresa como a Karamanlis não dá calote em ninguém.

Enche o peito de orgulho, o que me faz revirar os olhos, e abre um enorme sorriso.

— Volte lá a se divertir com o pessoal da TI! — Abano a mão na direção dos rapazes com óculos ao estilo Harry Potter.

Meu assistente insiste em me ajudar com algo mais, mesmo eu já o tendo dispensado, e somente quando o olho é que parece conceber a mensagem. Volta do mesmo modo que veio, mas dessa vez já não acho graça de seu jeito espalhafatoso de andar apressado.

Ando entre as pessoas, cumprimentando alguns que já conheço e atraindo a atenção dos demais, em busca de Millos. Está tudo tão mal organizado que não consigo ver entre uma mesa e outra por causa dos malditos balões dourados.

— Ei, irmãozinho! — Alex me para. — Aproveitando a festa?

Ele parece animado com um copo de cerveja na mão.

— Espero que não tenha vindo de moto! — repreendo-o.

— Preocupado com minha integridade física, oh, poderoso Theo!? — Ri, já visivelmente bêbado. — Vê só como seu nome já lembra a divindade que você é! Théos6!

Millos chega por trás dele, capturando meu olhar entediado, e o abraça pelos ombros.

— Alex, que festança, não? — comenta. — Eu nunca vi nosso pessoal tão à vontade e tão satisfeito com uma festa de final de ano!

— Você só pode estar brincando! — indigno-me ao ouvir isso. — Essa confraternização não chega aos pés da do ano passado!

Alex gargalha.

— Na do ano passado, o pessoal quase dormiu nas cadeiras com aquele sonzinho de jazz que foi colocado para agradar a um certo CEO! — Ele fica sério. — Você não conhece seus funcionários, não sabe do que eles gostam e...

— Chega, Alex! — Millos o chama sério.

— Foi ele quem organizou isso aqui? — pergunto ao Millos, apontando para a fuça do meu irmão caçula.

— Foi! — o petulante me enfrenta. — Olhe além do seu mundinho privilegiado, Théos! — Abre os braços, esbarrando em Millos, para demonstrar seu ponto. — A festa está no fim, todos foram dispensados a ir mais cedo para casa, mas... — cruza os braços — você está vendo alguém ir?

Sou obrigado a concordar com ele. Ninguém ficou na festa, no ano passado, depois da distribuição dos prêmios, e, neste ano, mesmo depois de termos feito os sorteios, todos continuam aqui, comendo, bebendo e – arregalo os olhos ao ver Rômulo e seus amigos se agitando – dançando!

Sim, a festa não está do meu gosto, mas, afinal, não foi feita para mim. Millos sorri, olhando para Alex, quando percebe que notei o sucesso que está sendo o evento. Foi meu irmão! O moleque realmente entende os funcionários como nenhum outro Karamanlis no poder o fez!

Sinto uma pontinha de orgulho, mas logo a deixo de lado, abandonada na escuridão de uma parte de mim que contém todos os sentimentos acerca de minha família.

— Bom trabalho! — elogio-o, e o garoto fica sério. — O pessoal parece realmente estar gostando!

— Vá se...

— Nós agradecemos! — Millos o interrompe no exato momento em que iria me mandar ter prazer comigo mesmo. — Foi um trabalho em equipe! Somos um só time dentro desta empresa.

Millos mal termina de falar e arrasta Alex para longe de mim, falando algo durante o trajeto.

Lembro-me de Alex ainda garoto, sobre meus ombros na piscina do condomínio onde moravam. Ele me seguia por toda parte, até mesmo quando eu não o queria por perto. Seus olhos brilhavam a cada coisa que eu fazia ou falava, eu era seu herói.

Ele estava muito errado!


A véspera de Natal foi uma tortura solitária!

Millos se enfiou em algum lugar para fazer sabe-se lá o quê e eu fiquei sozinho na cobertura, ouvindo meus discos, comendo uma ceia encomendada anteriormente por Vanda e vendo as sacadas dos outros apartamentos com pessoas comemorando, luzes piscando, músicas de Natal.

Nunca tivemos isso!

Millos e eu fomos criados com pappoús, e nossa família nunca comemorou o Natal por não achar a data importante, apenas uns dias a menos para se fazer dinheiro. Nossa giagiá7era quem ainda queria manter a tradição da festa do nascimento do Menino Jesus, porém, a tivemos tão pouco antes de sua morte que quase nem me lembro mais dos ritos e da comemoração.

Quanto aos outros, mal sei! Kostas foi criado com a família de sua mãe, na Inglaterra, até a adolescência, então provavelmente é católico ou anglicano, e as duas religiões comemoram a data. Quanto a Alex e Kyra, os dois tiveram Natais completos, pois eu ainda me lembro da árvore montada na sala principal do apartamento, pelo menos estava lá na última vez em que estive no imóvel; depois, não tenho notícia.

Não era de se esperar que, numa família tão complicada como a nossa, houvesse comemorações natalinas – ou quaisquer outras que envolvam união e fraternidade. Somos solitários como se fôssemos filhos únicos, e eu, infelizmente, divido essa culpa com Nikkós.

Recebi convites para cear com alguns amigos, inclusive Valentina me pediu para acompanhá-la na comemoração de sua família, porém, não quis. Natal não é uma época fácil para mim, e eu não queria que as outras pessoas se dessem conta disso e questionassem os motivos. Era melhor ficar sozinho mesmo!

O som triste e a voz melodiosa de Nat King Cole cantando Please take me back to toyland8 me fizeram rir ironicamente, pois eu nem sabia que tinha essa música naquele disco, afinal, era uma canção de Natal! Fui até o toca-discos e mudei a faixa, mas pouco ajudou, pois começou Unforgettable9.

Suspirei resignado e deixei a música tocar, sentando-me no sofá e deitando minha cabeça sobre o encosto, seguindo a música com os lábios, mas sem cantar.

Foi realmente a chamada “noite da fossa”, eu ali, sozinho, ouvindo canções que tocam fundo em qualquer pessoa, tomando meu uísque, enquanto o peru esfriava intacto sobre a mesa de jantar.

No dia seguinte, todo meu ar de frieza e invulnerabilidade já estava de volta, segui para a empresa – sim, em pleno feriado! – e adiantei muito os relatórios do final do ano para o conselho. Li todos os e-mails que Rômulo já havia classificado como importantes, respondi alguns, fiz anotações para pesquisar respostas para os outros. Fiquei um bom tempo olhando a Paulista, vazia como uma rua fantasma, e rindo de mim mesmo por estar ali perdendo tempo.

Recebi mais convites naquela noite, agora para noitadas pós-Natal, mas ainda não estava no clima. Exercitei-me sozinho na academia do apartamento, saindo de lá exausto, fiquei um tempo na sauna depois e, quase à 1h da manhã, estava nadando.

Dormi feito uma pedra!

Hoje acordei com uma ligação de Vanda, avisando que estaria de volta na primeira semana de janeiro, o que já animou minha manhã. Segui meu ritual para me preparar para o trabalho, troquei mensagens com algumas mulheres com quem já havia saído, inclusive com Valentina e, agora, já no carro, recebo uma ligação da Viviane.

— Como foi seu Natal? — pergunta.

— Não comemoro! Você sabe que acho besteira. — Ri. — E você?

— Muito bom e em ótima companhia! — Suspira. — Ah, encontrei Valentina ontem na festa da Alicinha. Ela me falou bastante de você.

Ergo a sobrancelha.

— É mesmo? Coisas boas ou ruins?

— Boas, claro! Por que ela diria coisas ruins a seu respeito?!

— Não sei, ela parecia tensa, distante... — Ouço Viviane respirar fundo. — Não sei, Vivi. Ela tem tudo o que meu avô aprovaria, mas...

— Vocês só saíram uma vez! Dê tempo ao tempo!

— Pode ser... — encerro o assunto, pois não estou certo de investir em uma relação com Valentina. — Vamos falar de negócios! Vi seu e-mail ontem com a repercussão do escultor! Meus parabéns!

— Ah, Theo, você sabe que eu nunca me engano com as artes! — Ri. — Quem dera fosse assim com as pessoas!

Respiro fundo, concordando, embora me ache um bom julgador de caráter. Terei pela frente poucos dias para finalizar todas as pendências e organizar planos de ação para o próximo ano. O conselho irá se reunir na sexta-feira, e, sempre depois dessa reunião de prestação de contas, acabo acumulando algum trabalho para fazer até a véspera de Ano Novo.

— Ela me disse que você a convidou para o Baile Branco e Preto dos Villazzas — Viviane volta a falar.

— Quem? — indago confuso.

— Valentina, Theo! — Ri. — Não me diga que convidou mais alguém!

Faço careta ao me lembrar do convite, levemente arrependido de tê-lo feito, pois poderia muito bem ir sozinho e conhecer alguém que despertasse mais tesão em mim do que a amiga de Viviane.

“Dê tempo ao tempo...” foi o que ela acabou de me falar. No entanto, acho que, em relação ao desejo, ou ele acontece ou simplesmente não existe. Tesão não é igual amizade, que se constrói com o tempo, ele é imediato! É certo que pode estar camuflado em algum outro tipo de sentimento, como a exasperação, a implicância, arrogância, mas está lá, ainda que negado.

— Não, não convidei mais ninguém, Vivi. — Respiro fundo. — Mas acho que fui apressado no convite. Valentina é perfeita, mas um tanto fria, e isso...

— Talvez ela só esteja tímida — justifica a amiga, e vejo lógica nisso. Devem ser tão estranhos e desconfortáveis para ela quanto são para mim, esses encontros arranjados. É antinatural demais, como se estivéssemos sendo empurrados um para o outro.

— Sim, é normal que ela esteja sem jeito, por isso não queria fazer dessa forma — friso mais uma vez meu incômodo com essa situação. — De qualquer maneira, já fiz o convite e seria uma babaquice sem tamanho retirá-lo.

— É um baile e tanto! Imagino que você tenha se dado folga na véspera do Ano Novo. — Faço careta ao pensar em mais um dia de trabalho perdido. — Soube que sua irmã é quem está organizando.

— Sim, é ela — sou curto ao confirmar, sem entrar em detalhe algum, mesmo porque eu nada sei sobre a Kyra. — Vivi, preciso desligar, estou chegando ao prédio e tenho uma apresentação para fazer depois de amanhã...

— Está certo! — Ri, sabendo que a estou dispensando. — Se não o vir mais, espero que tenha um feliz Ano Novo.

— Para você também!

Desligo o telefone e abro o app de agenda que uso para os meus compromissos, marcando o domingo como um dia de trabalho.

Minutos depois, já no elevador, recebo mensagem do Rômulo perguntando sobre essa anotação.

 

 

Cumprimento uns funcionários que entram no elevador, pronto para guardar o celular no bolso, quando ele treme em minha mão. Rômulo, em vez de esperar que eu chegue à sala, manda-me uma mensagem:

 

 

Gargalho no elevador, chamando a atenção das pessoas dentro dele. Sinceramente, não sei se Rômulo é puxa-saco demais ou se é só maluco!

 

 

— Ah, você está aí! — Millos me assusta entrando na sala de supetão, ainda mais por hoje ser domingo. Eu e Rômulo trabalhamos todo este fim de semana.

— Onde mais estaria, já que parte de amanhã e o feriado serão perdidos? — Aponto para a porta. — Usa-se bater antes de invadir.

Meu primo dá de ombros.

— Vim me despedir — informa e vai até o Rômulo. — Qualquer coisa que precisar, entre em contato com a Sâmela, ok?

— Sim, doutor Millos! — O assistente se levanta, seca a mão – não sei por que diabos ele sempre faz isso! – na lateral da calça e a estende ao meu primo. — Boas férias!

— Obrigado, Rômulo! — cumprimenta-o de volta. — Feliz Ano Novo! Espero que, ano que vem, seu chefe esteja mais suportável!

— Ah, doutor, meu chefe é ótimo! — ele sorri ao falar isso e me olha de esguelha.

— Você é um santo, Rômulo! Ou um louco!

Gargalho com a cara confusa do meu assistente e chamo o ingrato do meu primo para um abraço de despedida.

— Para onde vai? — inquiro.

— Te respondo no almoço.

Franzo a testa.

— Que almoço? — Olho para Rômulo, que dá de ombros, indicando que não há nada na agenda.

— Nosso almoço, agora, no restaurante onde você me abandonou naquela noite depois do encontro com a Duda Hill.

Cruzo os braços, sem focar muito nas lembranças daquela noite, ainda que sinta um leve tremor ao pensar na mulher conversando comigo ao balcão do bar.

— Millos, amanhã é véspera de Ano Novo, eu ainda tenho...

— Sem desculpas, Theo, hoje é domingo, e vocês dois nem deveriam estar aqui. E, conhecendo o seu assistente como conheço, tenho certeza de que o trabalho está bem adiantado!

— Pode ter certeza, doutor! — Rômulo confirma, orgulhoso.

Ainda tento negar por mais algum tempo, porém, meu primo está totalmente inflexível.

— Está certo, mas, ao invés daquele restaurante, vamos ao Vincenzo’s. — proponho, e ele aceita.

Vincenzo’s é o restaurante italiano de um chef amigo nosso, que fica no terraço do Villazza SP. Millos e Vince – apelido do dono – são amigos e companheiros de viagens de motos, assim como Frank, CEO da rede de hotéis Villazza.

Gosto muito de ir lá, mas, como não tenho tido tempo ultimamente, pouco tenho conseguido degustar do menu italiano de Vincenzo. Somos amigos desde que ele abriu o restaurante no Villazza SP, vindo com Frank de Curitiba para cá, pois antes comandava a cozinha de um restaurante do hotel de lá.

O homem, um chef competentíssimo, ganhou fama e notoriedade ao participar como jurado de um reality show de gastronomia na televisão. Espero que Millos tenha feito reserva, senão teremos que comer no mezanino sem cobertura, com uma bela vista de São Paulo, mas sem ar-refrigerado.

— 15 dias? — confirmo o tempo das férias com meu primo enquanto ele dirige.

— No máximo! — diz animado. — Tracei minha rota, já reservei hotéis ao longo do caminho. Se nada sair do programado, em 12 dias estou de volta e em 15, já na minha mesa.

— Bom, muito bom! — A notícia me satisfaz, principalmente por eu mesmo estar viajando em fevereiro. — Não vai ao aniversário do pappoús?

— Ano que vem, não, já até me desculpei com ele. Vou visitá-lo em julho. Terei que ir até Atenas para resolver umas coisas com meu pai, então aproveito e mato os dois coelhos de uma vez.

— Que horror essa comparação! — Rio. — Tudo bem com tio Vasilis?

Dá de ombros, sem saber o que responder, afinal, assim como eu, não fala com o pai há anos. Millos lamenta ser filho único exatamente por não ter para quem jogar o fardo de lidar com o pai, o que entendo bem, pois eu detestaria ver Nikkós, mesmo que por mera formalidade.

Chegamos ao Villazza, e, enquanto subimos para o terraço, mando mensagem para o Frank, porém, o carcamano está em reunião, ajustando os últimos detalhes do baile de amanhã.

Ah, sim, o bendito baile!

Valentina já me bombardeou de mensagens sobre o evento, dizendo o quanto está empolgada, detalhando sua roupa e me perguntando como eu preferia que ela usasse os cabelos, soltos ou presos. Achei um tanto absurdo demais tudo isso, principalmente sobre minha opinião, afinal, encontramo-nos uma vez e trocamos dois beijos bem insossos.

Munido de uma paciência hercúlea, respondi todas as suas mensagens e ressaltei o quanto meu dia estava corrido exatamente por conta desse evento na véspera do Ano Novo, dia em que normalmente trabalho e que perderei por sair mais cedo. Pelo visto, ela entendeu o recado e parou com suas mensagens ao estilo metralhadora.

Chegamos ao terraço e avistamos Vincenzo, com um enorme sorriso, já na porta a nos esperar. Estranho isso, não por ele estar nos aguardando, mas sorrindo desse jeito tão deslumbrado.

— Benvenuto! — saúda-nos. — Porra, eu estou suando frio aqui! — confessa.

— Diarreia? — Millos sacaneia.

— Não, coglione! — Rio ao ouvir o xingamento preferido do Frank. — Vocês vão ter o prazer de dividir o mezanino...

— Ah, caralho, o mezanino não! — resmungo tirando o paletó.

— Estamos com climatizadores lá fora e ombrelones, seu fresco! — todo o charme e sotaque italiano some quando ele me dá esse esporro, voltando às origens do Bixiga, bairro paulistano onde foi criado.

— Está certo, esquece o Theo! Quem está no mezanino? Alguma gostosa lá da sua emissora?

— Melhor que isso! — O chef parece bem empolgado. — Thierry Angelot!

Millos franze o cenho, e eu começo a gargalhar.

— Porra, Vince, é sério? Toda essa excitação por causa de um macho?

— Cala a boca, seu herege! — repreende-me. — Angelot, Millos!

Meu primo arregala os olhos.

— Do restaurante? O que ganhou a terceira estrela Michelin no guia deste ano?

— Voilà! — Vincenzo confirma. — O próprio!

Gosto muito de comer, mas, como não cozinho nada, nunca fui muito ligado a nomes de chefs ou restaurantes. Simplesmente, quando quero algo e estou fora do país, consulto o concierge do hotel ou vou pela indicação de amigos. No entanto, agora, sabendo se tratar do Angelot, o restaurante francês cujo jantar desfrutei há alguns anos, entendo a empolgação do Vince.

— O que ele faz aqui? — Millos inquire.

— Vai cozinhar amanhã — respondo, e Vincenzo confirma. — Frank comentou comigo que um chef internacional havia aceitado o convite para fazer o jantar do baile.

— Ah, porra, isso é sério?! — Millos gargalha. — Justamente este ano, que decidi não participar!

Caminhamos em direção ao mezanino, uma varanda um pouco mais elevada que o restaurante, com proteção de vidro na beirada do hotel e uma vista deslumbrante. Entro já olhando as mesas – são três delas – à procura do misterioso homem, pois nunca consegui cumprimentá-lo quando estive em seu restaurante. Avisto-o conversando animadamente em francês e quase tropeço ao ver a mulher que almoça – e ri muito, por sinal – em sua companhia.

— Duda Hill! — Millos sussurra.

— Vocês a conhecem? — Vincenzo nos encaminha até nossa mesa, no canto oposto onde o casal se encontra. — Ele chegou aqui com esse mulherão traduzindo tudo o que dizia, e eu, mesmo sabendo o idioma, me fingi de ignorante só para ouvi-la falar.

A lembrança do sotaque francês dela, da forma como seus lábios se movimentaram a cada palavra, trazem de volta a sensação luxuriante que senti, tendo a exata noção do que Vincenzo está falando. Crispo as mãos, respiro fundo e me sento bem de frente para a mesa dos dois.

Millos e Vince conversam baixinho, porém, não presto a mínima atenção a eles, tentando ouvir o que o baixinho – sim, porque o homem deve ter no máximo 1,60m de altura – diz a ponto de arrancar tantas risadas dela.

Infelizmente não consigo ver o rosto da Duda, tendo visão de suas costas mal cobertas pelo vestido estampado em verde, de alças muito finas que destacam seus ombros e nuca, uma vez que os cabelos estão presos em um coque no topo da cabeça.

— ...eles pediram à la carte e agora estão dividindo um tiramisù — ouço Vincenzo informar ao Millos.

— Dividindo? — questiono. — Denota certa intimidade dividir a sobremesa com alguém. — Millos ergue uma sobrancelha e dá um sorriso irônico. Não lhe faço caso, fingindo que não notei sua expressão. — Então, ao que parece, a dona do boteco realmente é uma chef de cuisine diplomada na França.

— Claro que é! — Millos me encara. — Achou que ela estava mentindo?

Dou de ombros, e Vincenzo pede licença para se retirar e voltar para a cozinha.

— Não faz sentido! O que está fazendo fritando batatas e asas de frango em um lugar como aquele se tem diploma e conhecimento de pessoas que poderiam empregá-la? — Faço sinal com a cabeça indicando o baixinho.

Millos se inclina sobre a mesa.

— O que o herdeiro mais velho de uma empresa internacional estava fazendo vendendo peixes? — Imediatamente fico sério, puto por ele estar mexendo nessa história tão antiga, porém que ainda sangra e incomoda. — Não dá para julgar a motivação de alguém sem conhecer sua história.

Antes que eu o mande ao caralho, um garçom aparece para anotar nossos pedidos, e concluímos pelo menu degustação em quatro tempos, inspirado no mar. Millos pede sua cerveja, como sempre, enquanto eu solicito ao sommelier que harmonize algum vinho com a comida pedida.

— E então... — volto a puxar o assunto das férias de Millos para não demonstrar interesse na outra mesa, mesmo que desvie meus olhos para lá a todo momento — para onde você vai ano que vem?

— Resolvi fazer uma rota aqui por perto mesmo, mas vou parando em algumas cidades para fazer turismo. — Acho interessante. — A ideia é seguir todas as rotas da Estrada Real.

— O que seria isso? — pergunto, pois já ouvi falar do assunto, mas nunca me fixei em nada sobre ele.

— São rotas comerciais criadas na época do Brasil Império. Pretendo seguir as quatro, saindo do Rio de Janeiro em direção a Minas, até Diamantina, depois voltar, passar por Ouro Preto e descer para o Sul de Minas, visitar umas cidades do interior e, por fim, chegar em Paraty, seguir pelo litoral até Santos e retornar para cá.

— Por que começar pelo Rio e não por aqui?

— Quero aproveitar um pouco o litoral norte. Isso não faz parte da Estrada Real, é por minha conta. Amanhã vou para o Rio pela Presidente Dutra e aproveito a queima de fogos em Copacabana.

— Vai ficar no Palace? — Millos confirma. — Já passei um Ano Novo lá, em...

Interrompo-me quando vejo o francês baixinho indo para dentro do salão. Olho na direção da mesa deles e vejo a Duda de pé, sozinha e de costas, contemplando a vista da cidade.

Sem falar nada com Millos, sigo até ela, munido com a vontade de provocá-la um pouco e também de sentir seu perfume.

— Me dê a boa notícia de que aceitou o emprego e vai vender o boteco para mim! — falo às suas costas, fazendo-a se virar para mim.

— Merde! — Põe a mão sobre o coração. — O que você... — Vê Millos sentado na outra ponta do mezanino. — Ah, merda! — resmunga para si mesma, voltando a olhar para a cidade lá embaixo. — Isso só pode ser alguma brincadeira do destino!

Rio e me encosto ao guarda-corpo de vidro, ao seu lado.

— Do destino? — debocho. — Não acredito nessas bobagens!

Ela me encara.

— Eu não me interesso pelo que você acredita ou não! — Aponta para minha mesa. — Sua comida começou a ser servida.

Levanto uma sobrancelha, meu olhar preso ao dela, e aquela mesma maldita tensão vibrando entre nós.

— Novamente... — olho-a intensamente — a comida não é o meu interesse no momento.

Ela segura o fôlego e desvia os olhos sem jeito ou talvez não querendo mostrar o quanto está mexida com minha presença, assim como fiquei e ainda estou com a dela. Um sorriso vitorioso se insinua em minha face. Ainda não entendo como é possível que eu sinta toda essa vontade, todo esse tesão apenas por estar perto dela. Não era para ser assim, principalmente por quem ela é e o que me impede de conseguir com sua teimosia.

Contudo, o mesmo magnetismo que me puxou até ela na primeira vez ainda continua exercendo seu poder, independentemente do que diz minha lógica.

— Então conhece o chef do Angelot? — volto a puxar assunto, resistente a me afastar.

— Sim! — sua voz soa um tanto exasperada. — Olha só, Theodoros Karamanlis, vamos encurtar o papo, ok? Não, eu não aceitei nenhum emprego e nunca — sorri malvadamente —, nunca vou vender o Hill para vocês. — Cruza os braços. — Seu primo já está comendo. Bom apetite!

Ah, Maria Eduarda Hill, você não tem ideia de com quem está lidando! Não vai se livrar de mim tão fácil assim.

— Se não é emprego... — rio — é um encontro? — minha voz sai tão debochada, tão incrédula, que ela enruga a testa por um momento antes de dar um enorme sorriso, muito teatral e falso por sinal.

— Não é da sua conta! — responde-me sem desfazer o sorriso, mas não volta a me dispensar.

— Interessante, Maria Eduarda — ouvir-me a chamando por seu nome completo apaga o sorrisinho de seu rosto, e me aproximo um pouco mais dela. — Uma cozinheira que conhece um chef do porte de Angelot, mas que prefere fritar bolinhos...

— Um homem que poderia estar degustando sua comida deliciosa — interrompe-me ironicamente —, mas que prefere ficar enchendo a paciência de uma mulher...

— ...mais deliciosa ainda! — completo sua frase e a vejo arregalar os olhos, pega de surpresa com o que eu disse.

Confesso que eu também estou. Realmente gosto de provocá-la, ver seus olhos castanhos brilharem de fúria e irritação. Gosto de saber que consigo fazê-la reagir sexualmente a mim, mesmo não querendo, da mesma forma como acontece comigo. No entanto, não tinha a intenção de deixar as coisas tão claras e nem ser tão direto quanto fui. O tesão falou mais alto, a vontade de senti-la, de tê-la é mais forte do que qualquer pensamento racional que ocupe minha mente.

Eu quero essa mulher!

Ficamos nos olhando do mesmo jeito que fizemos no restaurante naquela noite, a respiração pesada de ambos, a química forte atraindo meu corpo para o dela. Não sei como, mas, quando percebo, minha mão já está subindo pelo seu braço, contornando seu ombro, até que meus dedos roçam de leve sua bochecha.

Maria Eduarda fecha os olhos, e eu me aproximo mais, praticamente colando meu corpo ao seu, talvez o suficiente para que ela sinta como estou, como me deixa só com sua presença. Momentaneamente, esqueço onde estamos e, principalmente, quem somos. Só sinto o desejo pulsar nas pontas dos meus dedos, a sua pele queimando a minha, concentrando todo o tesão em minha virilha e fazendo com que meu pau fique pressionado nas calças de forma dolorosa.

Preciso beijá-la! É loucura, será um desastre, mas foda-se! Só preciso sentir o sabor, a textura, o calor dos seus lábios sob os meus e...

— Duda, tout est prêt, on peut commander le café ...10 — o baixinho interrompe nosso momento, e ela pula para trás, afastando-se de mim,

— Maláka11! — solto um palavrão em minha língua nativa, amaldiçoando o péssimo timer do filhote de cruz-credo francês.

O homem nos olha desconfiado a princípio, até me dirigir um olhar raivoso.

— Y a-t-il un problème?12

— Non, mon ami. C'est bien!13 — Duda responde. — Je ne veux pas de café. On peut y aller?14

— Oui! — o homenzinho responde, mas sem tirar os olhos de mim.

Vejo-a pegar a bolsa, passar por mim sem sequer um olhar e então aceitar o braço do francês. Por mais ridícula que seja minha reação, não gosto de assistir a outro homem a tocando.

— Maria Eduarda — chamo-a, e ela finalmente me olha. — Eu não desisto do que quero. — Ela suspira, e abro um sorriso. — De nada do que eu quero!


O Natal trouxe mais do que o sucesso do nosso menu de ceia para encomendas, trouxe também a oportunidade de rever um grande amigo!

Eu estava fisicamente esgotada depois de horas cozinhando sem parar, inclusive com a ajuda da tia Do Carmo e de Tessa, para pode dar conta de todas as encomendas que tivemos. Diversas famílias pediram o menu completo – desde a entrada até a sobremesa –, pelo que comemoramos muito, mesmo com a trabalheira que deu.

Demos conta e, ao final da noite, ceamos todos juntos no Hill, como a família que somos. Foi maravilhoso poder estar com quem eu amo, admiro e trabalho, pessoas que estão sempre ao meu lado não importa o que aconteça e que, a cada dia, me inspiram a continuar a lutar para não perder o bar e tudo o que conseguimos durante esses anos.

Um pouco depois da meia-noite, recebi a visita surpresa de Lara com seu marido, cunhada e sua enteada. O quarteto estava indo para a casa de um grande amigo de Cadu, Luti, pois no dia seguinte iriam para o interior almoçar com a família e não queriam deixar o outro roqueiro sozinho.

Arnaldo a bombardeou de perguntas sobre Marlon, porém, ela mal sabia informar, pois, após se formar, o antigo segurança do bar se mudou para o Rio de Janeiro. Lara relembrou os tempos de bartender e preparou drinques para todos, inclusive para nossas meninas, sem álcool, a fim de acompanharem o Cadu.

Foi uma reunião deliciosa, cheia de histórias de um ano corrido, durante o qual mal tivemos tempo de conversar, mas que não aplacou a força da nossa amizade.

No final da noite, já quase amanhecendo, dormi no quarto de minha filha, curtindo seu abraço gostoso e o frescor do ar-condicionado, satisfeita pelo sucesso do empreendimento de Natal, pela comemoração após e, claro, por poder ter minha família – mesmo tão pequena – ao meu lado.

Como já havia anunciado, não abri o bar no dia 25 de dezembro, aproveitei a ocasião dessa folga e fui passear com Tessa e tia Do Carmo. Fomos ao parque Ibirapuera e depois ao Villa-Lobos, onde minha filha se cansou de tanto andar na bicicleta que lhe demos – titia e eu – de presente.

À noitinha nos reunimos na frente da televisão, escolhemos – não sem uma boa briga – um filme na Netflix e comemos o que restou da ceia da noite anterior. Foi muito bom! Livrei-me das compras na terça-feira e ainda ganhei um tempo livre com as pessoas que amo. Não podia ter havido melhor presente de Natal para mim!

Contudo, houve um outro tão bom quanto!

Na sexta-feira, eu estava na preparação dos alimentos para mais uma noitada de final de ano no Hill quando recebemos um telefonema internacional. Sim, ligaram para o nosso telefone comercial! Fiquei nervosa, achando que pudesse ser notícia do agiota, mas então reconheci o sotaque de Thierry tentando – sem sucesso – falar em português.

Minha reação, logo após o susto, foi rir. Havia muitos anos não nos falávamos, mas seria impossível esquecer sua voz grave e máscula, que faz qualquer pessoa o imaginar como um homão de quase 2m de altura.

— Thierry, mon ami! — Estava tão surpresa e emocionada com aquela ligação que sentia a garganta apertada, mas continuei em francês: — Que enorme surpresa!

— Não seria se você tivesse deixado um telefone pessoal para contato! — respondeu em sua língua natal. — Duda, ma chérie! Estou tentando falar com você há algum tempo.

— Sinto muito, Thierry, eu mudei o número do telefone algumas vezes e acabei não o repassando aos amigos — justifiquei sem jeito. — Como vão as coisas? Tenho acompanhado o sucesso do Angelot e não estou nada surpresa! Nós sabíamos que seria um dos melhores da França! Trois étoiles, mon Dieu!15

Meu amigo riu, encantado com sua façanha.

— A tensão agora é manter! — confessou. — Mas não liguei para falar das Michelins, e sim para te fazer um convite.

— Convite?!

— Oui! Finalmente vou viajar para o Brasil! — abri um sorriso ao ouvir a novidade. — Fui convidado a assinar o jantar de uma festa no Ano Novo, em São Paulo.

— Aqui?! — Fiquei ainda mais surpresa. — Onde?

— Villazza SP! É um baile beneficente. Todo o dinheiro será doado, então abri mão do pagamento também.

— Ah, Thierry! — Fiquei muito orgulhosa e feliz por ele não ter mudado mesmo depois do sucesso. — É um gesto muito nobre.

— Sim, sim... mas tenho um problema.

— Qual? Se eu puder ajudar...

— Pode, sim! — Riu. — É por isso que fiquei tão desesperado atrás de seu contato. Minha souschef ficará responsável pela cozinha do Angelot durante minha ausência. — Fiquei surpresa por ele ser tão desprendido quanto a entregar sua cozinha para outra pessoa. Decerto confia muito na profissional que ela é. — A equipe de cozinheiros do hotel é muito boa, mas gostaria de ter você lá comigo.

— Eu?! — Tomei um susto. — Thierry, eu não entro em uma cozinha de alto nível há anos!

— Bobagem! Vamos nos encontrar assim que chegar à sua cidade.

— Quando? — Meu coração batia forte, de medo e ansiedade ao mesmo tempo.

— Depois de amanhã, estou arrumando as malas. Conhecerei a equipe na parte da manhã, então poderíamos almoçar. Você ouve minha proposta e, se aceitar, participa do treinamento à tarde.

Minhas mãos estavam frias e tensas, enquanto minha mente era povoada pelas lembranças de Paris, da euforia da cozinha, o medo de não agradar e todo o apoio de Thierry, que, na época, era chef de partie16 do restaurante onde trabalhávamos.

Ele foi meu maior incentivador e o que ficou mais abalado com minha decisão repentina de voltar ao Brasil, abandonando tudo. Era um grande amigo, mantivemos contato por um tempo depois do meu retorno, mas então papai morreu, e as coisas ficaram confusas demais.

Voltar a cozinhar, depois de tantos anos, ao lado dele não é apenas uma chance, é um privilégio!

— Onde nos encontramos? — perguntei, decidida a me dar essa oportunidade.

Agora, entrando pela primeira vez no suntuoso hotel dessa rede internacional, sinto minhas pernas tremendo como gelatina enquanto absorvo atentamente todos os detalhes da decoração. O saguão é lindo e imponente, o que me anima, pois espero que a cozinha seja um espetáculo.

Identifico-me a um dos recepcionistas, que me indica o elevador para o terraço assim que colhe meus dados, fazendo um pequeno cadastro por ser minha primeira vez no hotel.

Quando as portas do elevador se abrem, já no terraço, a primeira pessoa que vejo é Thierry. Recebo um abraço apertado e beijos na bochecha, uma saudação tão calorosa que nem parece que não nos falamos há anos. A amizade está intacta para ele também, assim como para mim.

— Você está linda! — elogia-me em francês. — Como pode todos esses anos se passarem e você ficar ainda mais bela?

Rio do exagero dele, tão característico, pois é um galanteador conhecido por suas maneiras lisonjeiras de tratar uma mulher.

— Você mudou pouco também, meu amigo!

— Infelizmente! — Ri de si mesmo. — Aumentei minha conta bancária e meu prestígio, mas continuo feio e baixinho.

— Isso nunca foi problema para você, mesmo quando não tinha dinheiro. — Ele estufa o peito, sabendo que é verdade. — As mulheres sempre ficavam deslumbradas com você.

— Minha linda, se a natureza não foi generosa te dando o rosto e o porte do Jason Statham, você tem que se aperfeiçoar com o que tem de melhor e tirar proveito disso.

Gargalho e o beijo, adorando saber que ele ainda é fã do famoso ator de filmes de ação. Seguimos de braços dados até o restaurante onde ele fez reserva, elogiando toda a estrutura existente no terraço do hotel.

Além do Vincenzo’s, há um bistrô de comida francesa no outro extremo do lugar, dando vista ao outro lado da cidade, e várias lojas de marcas internacionais, de vestuário, acessórios e joias, cabeleireiros e um SPA. No meio disso, vários jardins e locais para sentar, conversar ou mesmo aguardar enquanto alguém faz compras.

Eu nunca poderia imaginar que em cima do hotel houvesse tanta coisa!, penso deslumbrada. Já ia comentar com Thierry sobre a surpresa ao descobrir este espaço aqui, quando vejo quem nos espera na porta do restaurante.

Vincenzo Giacontti!

Desde que ele me convidou para almoçar no Villazza SP, eu já sabia que iríamos ao restaurante do Vincenzo, mas não esperava ser recebida pelo chef pessoalmente. O homem é uma estrela aqui no Brasil. Reconhecido como um dos maiores chefs de cozinha italiana do mundo, ele ainda tem um jeitão todo despojado e é muito bonito!

— Benvenuto! — cumprimenta-nos, claramente satisfeito ao ter Thierry no seu estabelecimento.

— J'avais hâte de rencontrer le célèbre chef cusinier et ami Frank! — Thierry o cumprimenta, porém, ele não diz nada.

Talvez o chef Giacontti não saiba o idioma!

— Ele estava ansioso por conhecer o famoso chef do Frank Villazza. — Sorrio. — Ao que parece, o amigo dele fez recomendações sobre você, chef.

Vincenzo me encara por alguns momentos antes de abrir um enorme sorriso que o deixa muito charmoso, ainda mais com o aparecimento de algumas ruguinhas.

— O prazer é todo meu em receber aqui um chef com o talento e prestígio de Angelot.

— Il a déclaré que c'est un plaisir de recevoir un chef cuisinier aussi talentueux et prestigieux que vous.17

— Obrigado! — Thierry arrisca o português e depois se supera: — Grazie!

Giacontti sorri, retribuindo o cumprimento e nos acompanha até um mezanino onde se tem uma impressionante vista da cidade de São Paulo, inclusive das copas das árvores do Ibirapuera ao longe.

Sentamo-nos protegidos do sol pelo ombrelone e refrescados por climatizadores, potentes ventiladores que soltam nuvens de umidade para amenizar a sensação de calor. Thierry me pergunta se quero provar o menu degustação ou se quero pedir à la carte. Prefiro pedir separadamente os pratos, apenas uma entrada e um prato principal, e ele me acompanha no pedido. Deixo-o escolher o vinho, apreciando seu bom gosto e perícia para harmonizar a bebida com todos os ingredientes dos pratos.

— Quero, antes de falar do trabalho, saber como estão as coisas — Thierry fala assim que o sommelier se afasta.

— Trabalho duro no bar do papai. — Sorrio quando ele faz careta. — Eu sei o que você pensa sobre minha decisão de voltar, mas...

— Duda, ma chérie, a questão não é o que eu penso, mas o que você fez! — Thierry continua incisivo como sempre foi. — Você simplesmente desistiu de uma carreira brilhante!

— Não sabemos disso, eu estava só começando!

— Oh, lala, como não? Eu fiquei louco com seu talento e sua técnica quando te conheci, sabia que iria longe! — Tento não pensar muito nisso, não olhar para trás, mesmo que as palavras dele calem fundo dentro de mim. — No mínimo, você seria minha souschef hoje, Duda!

— Já seria uma enorme honra!

— Bobagem! — Ele faz um gesto com a mão. — Você tem talento para ter seu próprio restaurante, ganhar três estrelas e ainda fazer pouco caso delas!

Rio com a forma como ele me vê. Sim, eu era dedicada e talentosa, mas havia muitos como eu; isso não significa que eu iria longe.

— Você sabe que eu não pude...

Ele suspira, balançando a cabeça.

— Ah, l’amour, l’amour, l’amour! — gargalho com a dramaticidade que emprega nas palavras. — O que não fazemos por amor, não é assim? — Rola os olhos. — Pure merde!

— Thierry... — Balanço a cabeça. — O que passou, passou, não posso mudar as escolhas que fiz. Quer saber mais? Faria tudo igual!

Ele bufa. Ficamos mudos enquanto um garçom serve nosso vinho e água.

— Encontrei Jean-Luc um tempo atrás em Nice — ele comenta. Levanto a sobrancelha. — Senti vontade de cortar as bolas dele e jogar para os peixes do mar! — Gargalho. — Não o fiz, claro, ia matar toda a vida marinha!

Pego sua mão.

— Eu senti demais sua falta!

— Eu também, Duda! — Thierry segura firme minha mão por cima da mesa. — Juro que não entendo o que aconteceu! Vocês pareciam tão apaixonados, tão perfeitos um para o outro, então ele simplesmente a abandonou no momento em que você mais precisava!

Bebo um gole do vinho.

— Há pessoas que não estão prontas para lidar com responsabilidades! — Dou de ombros. — Respeito a escolha dele, assim como respeitou a minha.

— Mas foi um canalha indo embora sem deixar destino e sem, ao menos, falar com você!

— Sim, ele foi covarde. Mas não precisei dele... dei um jeito.

— Abrindo mão dos seus sonhos! — exclama indignado.

— Não, Thierry, reformulando os meus sonhos.

— E como está Tessa?

Sorrio ao pensar na minha menina, meu peito se enchendo de orgulho pela criança maravilhosa que ela é. Eu faria e faço qualquer coisa pela sua felicidade, reformulo sonhos, desisto de projetos, qualquer coisa pela minha filha.

— Crescendo! — Abro o celular e lhe mostro uma foto.

— Mon Dieu! Linda como a mãe. — Encara-me emocionado. — Que os corações dos jovens dessa cidade sejam protegidos!

Gargalho, dando um tapinha em sua mão.

A entrada é servida, então começamos a discutir os detalhes do jantar de amanhã à noite. Thierry me explica a dinâmica, elogiando a equipe e o chef do restaurante do hotel. Contaremos com uma brigada de 50 cozinheiros, sendo que o chef passará a exercer a função de chef de partida, controlando a execução dos demais cozinheiros. Thierry e eu seremos os únicos fora da equipe, e, quando demonstro receio sobre a questão do ego do chef executivo do hotel, ele me acalma dizendo que já estão acostumados a auxiliar um chef convidado para bailes e outros eventos.

Fico surpresa, imaginando que o chef deva ganhar muito bem para que não se revolte contra isso, pois sei como são possessivos com suas cozinhas. Dificilmente um chef cede espaço a outro, e inclusive há muitos relatos de brigas feias entre chef e souschef exatamente por medo de perder o posto.

Acabamos nos lembrando de algumas histórias sobre nossa época no L’Amande e passamos toda a refeição, até a chegada do delicioso tiramisù, rindo das loucuras, nossas e dos outros, do tempo em que trabalhávamos como loucos dentro da cozinha de um restaurante uma estrela.

Na época, Thierry tinha acabado de ser promovido a souschef, pois ameaçou ir embora para o concorrente direto caso não preenchesse a vaga deixada por uma amiga nossa que decidiu abrir seu próprio negócio, uma padaria.

Trabalhamos quase dois anos juntos, desde meu estágio até o momento em que voltei para o Brasil, e sempre acalentamos o sonho de abrir um pequeno bistrô na Rue Saint-Honoré, oferecer alta gastronomia com preço justo e muita qualidade.

Enquanto dividimos o doce, ele me atualiza de algumas novidades sobre conhecidos em comum, sempre com seu jeito debochado e espalhafatoso, arrancando-me muitas gargalhadas.

— Preciso ir ao banheiro um minuto. — Thierry se levanta. — Não fuja com aquele chef grandão na minha ausência. — Ri. — Aposto que o homem sabe falar francês e ficou quieto só para ouvir sua voz sexy!

— Thierry! — repreendo, sem jeito.

Enquanto ele entra no restaurante, vou até o guarda-corpo para olhar a movimentação na entrada do hotel. Sinto um frio na barriga, e um arrepio cruza meu corpo, surpreendendo-me, pois nunca senti medo de altura.

— Me dê a boa notícia de que aceitou o emprego e vai vender o boteco para mim!

— Merde! — Ponho a mão sobre o coração, virando-me para ter certeza de que não estou em uma espécie de sonho acordada e que, realmente, Theodoros Karamanlis acabou de falar comigo. É mesmo ele! — O que você... — Olho para a outra mesa, buscando sua companhia e vejo Millos olhando para nós dois e parecendo muito interessado. — Ah, merda! — murmuro e dou as costas para ele, tentando acalmar as batidas do meu coração e o tremor nas minhas pernas. Estive fantasiando com esse homem durante toda a semana, e agora ele está aqui! Fecho os olhos, e o cheiro de seu perfume chega até minhas narinas, parecendo me tentar. — Isso só pode ser alguma brincadeira do destino! — lamento, e ele ri, postando-se ao meu lado.

— Do destino? — sua voz é irônica, e isso me irrita. — Não acredito nessas bobagens!

Olho para ele, as mãos segurando firme sobre a proteção de vidro, sentindo meu sangue ferver por ele estar aqui para atrapalhar um encontro tão tranquilo e gostoso com um velho amigo.

Nas minhas fantasias, Theo não é um Karamanlis, mas sim apenas aquele homem lindo de morrer, charmoso como o diabo, que eu conheci no bar de um restaurante. Ele não tem esse tom de deboche e nem me provoca com sua arrogância.

Decido ser dura com ele e deixar claro que não é bem-vindo ao meu lado.

— Eu não me interesso pelo que você acredita ou não! — respondo no momento em que vejo os garçons servindo o primeiro prato deles. Aponto para a mesa. — Sua comida começou a ser servida.

Ele não se move, nem mesmo olha para trás, encarando-me do mesmo jeito que fez no bar. Meu corpo traidor se aquece, e as imagens de todas as fantasias, de todas as maneiras que o imaginei me tocando, provocam arrepios de prazer pelo meu corpo.

— Novamente... a comida não é o meu interesse no momento.

Preciso reter o fôlego para não ofegar. Minha vagina se aperta e meus mamilos ficam duros contra o tecido do vestido. O desgraçado sabe mesmo seduzir, mesmo sendo direto como é. A autoconfiança dele é demais, faz parte de seu charme, demonstra a segurança de um homem que sabe o que precisa fazer para enlouquecer uma mulher.

A mesma sensação que tive com seu toque volta a me assolar, e tento com muito empenho não demonstrar o quanto ele mexe comigo.

— Então conhece o chef do Angelot? — pergunta como se não tivesse interesse, mas não consegue me enganar. Só não sei se o interesse é sobre o tipo de conhecimento que temos ou se espera que isso seja um almoço de negócios e que eu venda o Hill para me mudar para Paris a fim de trabalhar com Thierry.

— Sim. — Decido ser tão direta quanto ele. — Olha só, Theodoros Karamanlis, vamos encurtar o papo, ok? Não, eu não aceitei nenhum emprego e nunca — sorrio, dando-lhe um pouco do seu próprio veneno sedutor —, nunca vou vender o Hill para vocês. — Cruzo os braços e indico sua mesa com o olhar, querendo que ele me deixe em paz. — Seu primo já está comendo. Bom apetite!

— Se não é emprego... — ele continua, e tenho vontade de deixá-lo falando sozinho — é um encontro? — seu tom de deboche não me passa despercebido.

Ele acha estranho eu ter um encontro com Thierry? Abro um enorme sorriso, desejando que meu amigo estivesse por perto para poder beijá-lo e arrancar a prepotência da cara desse grego.

— Não é da sua conta!

— Interessante, Maria Eduarda — fico séria ao ouvi-lo me chamar assim, do mesmo jeito que fez quando nos conhecemos, lembrando-me de como me senti e percebendo que ele ainda exerce o mesmo poder sobre meus sentidos. — Uma cozinheira que conhece um chef do porte de Angelot, mas que prefere fritar bolinhos...

Ah, que imbecil!

Ignoro o clima sexual, a atração, o desejo e todas as merdas de fantasias que tive e que tenho com ele. Que homem soberbo! O que ele sabe sobre as escolhas que temos que fazer na vida? O que um homem que nasceu em berço de ouro sabe sobre sacrifícios e amor?

Perco a paciência e resmungo, lamentosa:

— Um homem que poderia estar degustando sua comida deliciosa, mas que prefere ficar enchendo a paciência de uma mulher...

— ...mais deliciosa ainda!

Puta que pariu!

Que voz é essa?!

Que olhar é esse?!

Vejo naquelas duas grandes safiras a verdade de suas palavras. Seu desejo, seu tesão por mim fica tão claro como o dia de hoje, evidente, impossível ignorar ou fingir que não vi. É como um reflexo do meu próprio, e fico confusa com isso. Nós nem ao menos gostamos um do outro, como é que sentimos essa atração tão poderosa assim?

Quando a ponta de seus dedos começa a deslizar pela minha pele, sinto meu corpo inteiro tremer. Tenho vontade de gemer de prazer com o toque, seus dedos deixando um rastro quente por onde passam, até chegar ao meu rosto.

O carinho é tão inesperado e tão fora do contexto de nossa conversa que me desarma. Fico aqui, passiva, apenas desfrutando das sensações, imaginando esses mesmos dedos sobre meu sexo, tocando meu clitóris, sentindo a umidade que já está presente.

Fecho os olhos e o sinto se aproximar de mim, o calor do seu corpo emanando até o meu, ultrapassando o tecido do vestido e impactando minha pele. Sinto o hálito quente de sua respiração sobre meu rosto e o pulsar de sua ereção em minha barriga.

Ah, meu Deus!

Não há mais dúvidas de que isso não é uma brincadeira. Theodoros Karamanlis me quer do mesmo jeito que eu o quero! Como é possível que duas pessoas que se detestam possam sentir tamanha luxúria? Eu quero me agarrar a ele, tocar seu pênis para sentir o calor. Quero suas mãos nos meus seios, sua boca na minha...

— Duda, tout est prêt, on peut commander le café ...

A voz de Thierry me arranca do transe sexual no qual estava. Pulo para trás, para longe do demônio que me confunde como ninguém e o escuto falar em outra língua.

— Maláka!

Pela entonação e o olhar gélido de Thierry, Theodoros soltou um palavrão bem cabeludo. Meu amigo me olha, questionador e preocupado.

— Y a-t-il un problème?

Pela reação de Theo, ele entende muito bem o francês.

— Non, mon ami. C'est bien! — respondo, querendo me afastar daqui o mais breve possível. — Je ne veux pas de café. On peut y aller?

— Oui!

Thierry não deixa de encarar Theo, e eu, temendo que um possa falar besteira para o outro, pego minha bolsa e vou até meu amigo, tomando-lhe o braço que me oferece. Saio sem me despedir do demônio, mas, claro, ele não pode ser ignorado, tem que dar a última palavra:

— Maria Eduarda. — Não consigo fingir que não ouvi, principalmente por ele ter usado meu nome inteiro. — Eu não desisto do que quero. — Suspiro, entendendo o que ele quer dizer. — De nada do que eu quero!

Thierry me puxa de leve para frente, e caminho consigo para dentro do salão, passando pelo Millos sem o cumprimentar. Tremo bastante, não de medo ou de nervosismo, mas de antecipação, de vontade, porque sei que ele não vai desistir.

Sim, Theodoros Karamanlis não quer somente tomar posse do que é meu.

Ele me quer!


Estou há meia hora esperando dentro do carro em frente ao prédio de Valentina, e nem sinal dela. Confiro as horas mais uma vez e respiro fundo, chateado por estar atrasado. Claro, a culpa não é totalmente dela, pois demorei a sair da empresa, mas mandei mensagem quando saí de casa, e ela afirmou que estava quase pronta.

Quando a porta é aberta pelo Dionísio, suspiro aliviado, vendo-a, deslumbrante, entrar no carro e se sentar ao meu lado.

— Boa noite, Theo, desculpe pelo atraso. — Sorri e se aproxima.

Seguro seu rosto e, cheio de esperança, beijo-a.

Dessa vez ela corresponde à altura do meu ímpeto, o que me impele a aprofundar a carícia, trazendo-a para mais perto de mim a fim de sentir seu corpo contra o meu. Sua pele é deliciosamente macia, cheirosa, o beijo, muito bom, e meu pau reage... porém, não o suficiente.

Separo-me dela assim que sinto o carro andar, e imediatamente Valentina pega um espelho em sua carteira, conferindo a maquiagem, sem falar nada ou mesmo trocar um olhar provocador comigo.

Porra!

Olho pela janela, as ruas passando, pensando se conseguirei viver com ela. Meu avô vai fazer 90 anos daqui pouco mais de um mês, e o tempo tem sido meu inimigo. Não posso decepcioná-lo, não quando já o fiz tantas vezes, e ele me perdoou e acolheu sem nunca me culpar ou me julgar por minhas escolhas.

Valentina é a mulher ideal, a brasileira que ele aceitaria.

Nunca pensei em me casar com uma grega, essa é a verdade. Moro há tantos anos aqui e só me relaciono com mulheres do país. A última vez em que tive uma relação com uma estrangeira, nem mesmo era grega, mas sim uma francesinha com cabelos coloridos, safada e faceira.

Um leve sorriso aparece no meu rosto ao pensar na mulher dos cabelos rosa. Ela anda um tanto sumida das minhas fantasias, talvez por agora estar interessado na dona do botequim.

Penso em Maria Eduarda e questiono se ela se agarraria a mim dentro deste carro, se se importaria com sua maquiagem ou se se entregaria ao beijo. Se teria pudores se eu a puxasse para meu colo, mesmo com Dio ao volante, ou rebolaria gostoso contra meu pau, gemendo na minha boca, enquanto eu sugasse sua língua como gostaria de fazer em sua boceta.

Interrompo os pensamentos, colocando as mãos sobre o colo, escondendo a ereção completa que os pensamentos me causaram, comparando ao estado “meia bomba” que o beijo de minha acompanhante me deixou.

Porra!

Já estou começando a chamar minhas ereções fora de hora de “efeito Duda Hill”. É pensar ou estar com a mulher que meu pênis se levanta a toda potência, pronto para servir, não importa onde seja: dentro do carro com outra mulher ao lado; no mezanino de um restaurante, tendo o observador Millos como expectador; ou mesmo no escritório, enquanto tento fazer meu trabalho, mas divago pensando no cheiro dela.

Caralho, a mulher virou uma obsessão!

O carro para na porta do Villazza SP, e uma horda de repórteres, a maioria de sites e revistas de fofoca, já nos aguarda sair. Dionísio sai ao mesmo tempo em que eu, dando a volta pela frente, enquanto eu o faço por trás do veículo, abrindo a porta do lado onde está Valentina.

Estendo minha mão para ela, auxiliando-a sair, enquanto chuvas de flashes nos alcançam.

— Odeio a imprensa — confessa baixinho.

— Somos dois! — Sorrio e a acompanho para dentro do hotel.

A suntuosa escada, réplica da existente no primeiro hotel Villazza na Itália, é o caminho que fazemos até o salão nobre, onde a decoração primorosa da minha irmã já nos saúda na recepção organizada, imitando a bilheteria antiga de um circo de luxo. Trocamos nossos convites por máscaras – a de Valentina é preta, e a minha, branca – e recebemos pulseiras com códigos de barras para que possamos entrar e sair do salão.

Valentina pede ajuda a uma das recepcionistas para fixar a pulseira em seu pulso, e eu a aguardo, conferindo no relógio o quanto estamos atrasados. O baile começou há mais de uma hora, e eu queria ter visto o discurso do Frank, ou mesmo do doutor Andreas Villazza, que neste ano sei que está aqui.

Uma mulher chama minha atenção. Ela está de costas para mim, pegando seus acessórios para entrar no salão, e seu vestido branco é todo bordado com cristais que refletem outras cores. Sua pele morena, cabelos negros presos em um coque e um corpo curvilíneo ressaltado pelo modelo do vestido me fazem pensar em uma sereia.

Ela se vira para entrar, e eu a reconheço. É uma das funcionárias da Kyra que trabalhou no evento de fim de ano da Karamanlis no ano passado. No entanto, não me recordo do nome.

Cumprimento-a com a cabeça, ela faz o mesmo e depois segue para o baile, enquanto eu ainda espero minha acompanhante.

— Pronto! — Valentina ri ao me mostrar a pulseira. — Achei que nunca ia prender. — Ri e alisa seu vestido branco. — Aquilo ali é burlar as regras, não? — Indica o vestido da sereia. — O fundo é branco, mas os cristais colorem o vestido!

— Eu gostei — respondo com sinceridade. — E, se burla as regras, o fez de forma inteligente.

Ela apenas assente, ficando muda até nossa entrada.

Puta merda, minha irmã se superou!, penso orgulhoso.

A decoração foi toda projetada de modo a dar a sensação de que estamos entrando em um circo antigo, com pesadas cortinas de veludo carmim e tecidos de brocado indo até o teto do grande salão, imitando o formato de uma tenda. Logo na entrada, dois malabares, com máscaras de bronze enormes – uma do sol e o outro da lua – nos saúdam, enquanto há trapezistas penduradas em argolas e tecidos no teto.

A luz baixa combinada com as velas em enormes castiçais e os enormes arranjos florais dão um tom especial à fantasia de se estar em um circo antigo, embora muito sofisticado. Um garçom – vestido de Pierrô, com sua tradicional tristeza de palhaço – nos oferece champanhe. Eu declino, e Valentina pega uma taça.

— Uau! — Ela parece tão deslumbrada quanto eu. — Isto aqui está incrível! Nem parece o salão nobre do hotel, e olha que já vim a muitas festas aqui!

— Eu também — confesso admirado.

— Olha o chão! — Ela aponta para algum tipo de tapete que cobriu toda a madeira do piso do salão e o transformou em um azul profundo cheio de estrelas brancas, como as antigas lonas de circo. — Quando muda a luz, elas brilham!

Fico olhando e confirmo que, em algum momento, luzes negras são acesas e as estrelas do chão parecem brilhar. Olho em volta para ver se identifico Kyra em algum canto – buscando uma bela mulher sem máscara e provavelmente vestida de preto –, mas não consigo ver muita coisa com a quantidade de pessoas transitando à nossa volta.

— Precisamos achar nossa mesa! — Valentina diz empolgada. — Sabe com quem estamos sentados?

— Provavelmente com minha família. — Dou de ombros. — Millos não veio, mas Alex e Kostas devem estar por aqui.

— Ah, vou adorar conhecê-los!

Ô, se arrependimento matasse!

Andamos entre as pessoas dançando, mesmo havendo uma pista separada só para isso, até encontramos a mesa com placa de reserva escrita com caligrafia profissional: Karamanlis.

— Eis a mesa! — Valentina comemora. — Eu amo essa música!

Escuto a canção famosa na voz do Tony Bennett e, como cavalheiro que tento ser, estendo a mão para ela, convidando-a a dançar. Ela abre um enorme sorriso, ajusta sua máscara, e seguimos os dois para a pista de dança.

Abraço-a junto a mim, seguindo o ritmo, mas sem realmente me esforçar para dançar bem, apenas guiando-a em passos simples. Sinto os dedos dela, que deveriam estar em meu ombro, aproximarem-se de meu pescoço, subindo e descendo em carícias. Franzo as sobrancelhas, sem realmente entender essa mulher.

Encaro-a e quase me assusto com o sorriso malicioso e o brilho em seus olhos.

— Eu queria um momento assim, junto com você, sem um motorista a assistir. — Aproxima-se. — Esperei por esse momento a semana toda, Theo.

Seus lábios tocam os meus devagar, olhos abertos, encarando-me sem parar. Aperto mais sua cintura, colando nossos corpos, tomando sua boca em busca finalmente da atração, do arrepio na pele e da reação do pau. Acontece, claro, tenho sangue nas veias, e ela é uma mulher linda, mas, ainda assim...

A música acaba, as luzes são todas acesas e o mestre de cerimônias aparece no palco, vestido com um smoking listrado de vermelho e branco, calças e sapatos pretos, uma bengala e uma enorme cartola preta na cabeça.

— Senhoras e senhores! — diz após os aplausos. — Respeitável público! Bem-vindos ao 10.º Baile Branco e Preto promovido pela Rede Villazza de Hotéis! Vocês já foram agraciados com a mensagem de abertura do Presidente Geral, doutor Andreas Villazza, e agora, antes de darmos início ao jantar, peço que recebam com aplausos o responsável pela Rede na América do Sul, doutor Francesco Villazza!

Frank sobe ao palco ao lado de Isabella, com aquele seu sorriso torto de sempre, adorando ser a estrela da festa. Conheço muito bem esse carcamano para saber que adora estar sob os holofotes!

— Buona notte! — saúda a todos. — É um enorme prazer tê-los aqui nesta noite especial. Como meu pai já nos abrilhantou contando a história dos primeiros Bailes Bianco e Nero nas nossas unidades italianas, não vou tomar o tempo de vocês falando de ano após ano dessa mesma tradição aqui no país. — Ele faz careta, e uma risada geral é ouvida. — Vou falar da importância desse baile! Como sabem, não o realizamos todos os anos, na verdade, é o segundo que a cidade de São Paulo recebe, pois os oito anteriores foram feitos em Curitiba. O intuito desta festa é muito maior do que apenas o entretenimento. Embora tenhamos o maior cuidado em oferecer o que existe de melhor para sua noite, essa não é a prioridade do baile. Minha avó foi uma médica incrível! Uma mulher à frente de seu tempo que, mesmo casada com um homem de família nobre, se dispôs a aplicar seus conhecimentos para ajudar o próximo, e nós continuamos seguindo seus preceitos. — Há uma chuva de aplausos quando a imagem de uma senhora muito distinta, vestida de branco, aparece no telão. — Este ano o conselho da Fundação Maria Eugenia Andretti escolheu instituições que trabalhem com crianças, seja na área de educação, esporte, lazer ou mesmo do social. — Logomarcas de três instituições aparecem.

Isabella é quem vai até o microfone com uma pasta na mão.

— A AcordSons é uma fundação familiar de músicos que levam a arte em forma de oficinas, cursos e patrocínio para músicos clássicos em comunidades onde há altos índices de violência praticada por ou contra crianças e adolescentes. — Imagens do local passam no telão. — A Brinquelândia é uma ONG que assegura o direito da criança de brincar, tão importante nos dias de hoje! Além de exercerem vigilância constante às denúncias de trabalho infantil, eles têm oficinas de artesanato, aulas de teatro e música, sempre com o foco na brincadeira e no lúdico. — Ouço umas palavras de ordem e aplausos de um grupo reunido em uma mesa à nossa esquerda. — E, por fim, a WaveAccess, criada há quase dois anos e que promove acessibilidade ao surf, provendo cursos, materiais e treinamento para crianças, jovens e adultos com necessidades especiais, sendo seu principal público o infantil.

Vejo as fotos do surfista Bernardo Novak aparecendo junto a um outro, mais velho e sem um dos braços, em uma praia lotada de crianças com as mais variadas necessidades especiais, físicas ou intelectuais.

Vejo a família Novak, cujo filho mais velho é casado com a caçula dos Villazzas, numa mesa à minha direita. Dona Cecília, Gilberto, Nicholas e Giovanna aplaudem com orgulho o garoto que, até um tempo atrás, era considerado a ovelha negra da família.

Feitas as apresentações, os anfitriões informam que há mais informações sobre cada instituição no livro do programa de leilão, onde, além de conter todas as peças do inventário a serem leiloadas, há fotos e histórias de cada uma das beneficiadas da noite.

Neste ano não doei nenhuma peça, mas pretendo adquirir algo.

— Eles disseram que toda a arrecadação do baile será destinada 100% para as três instituições, mas e o custo de montar esta estrutura? — Valentina questiona quando nos sentamos à mesa.

— Boa parte é bancada pela Rede, e o resto, por doações. — Ela arregala os olhos e sorri. — Muita gente contribuiu no país todo, pelo que Frank me contou. Já é um baile famoso!

Mal termino de falar e vejo Alex se aproximando com sua acompanhante. Ele franze as sobrancelhas ao ver Valentina, provavelmente questionando quem é a artista da vez, e eu reconheço sua melhor amiga, Samara, de braços dados com ele.

— Theo! — a moça, sempre muito simpática quando nos encontramos em eventos, cumprimenta-me. — Que bom vê-lo esta noite! — Olha para Valentina, esperando que eu as apresente.

— Samara Schneider, essa é Valentina de Sá e Campos. — Alex dá um sorriso debochado em minha direção, como se reconhecesse os sobrenomes dela. — Valentina, essa é a Samara, uma incrível designer de interiores.

— É um prazer, Valentina! — Ela vai até minha acompanhante.

Aproveito que as duas vão engatar em alguma conversa sobre conhecidos em comum e coloco minha atenção em meu irmão.

— Viu só esse trabalho da Kyra? — Aponto para tudo em volta.

— Claro! — Ri da minha pergunta. — Seria impossível não ver, já que estou aqui! — Rolo os olhos, e ele ri. — Já fui até cumprimentá-la, mas está tão ocupada que não consegui nem falar com ela direito.

— Imagino que esteja — concordo, mas ainda me sentindo muito orgulhoso, mesmo que nunca vá dizer isso a ela. — Viu o Kostas?

— Com saudade dos seus irmãos? — Senta-se e responde ao notar que não fiz caso de sua perguntinha ridícula: — Estava com uma loira gostosa lá perto do bar. O bourbon, você sabe!

Assinto, também sentindo falta do meu scotch. Como se meus pensamentos fossem ouvidos, uma linda Arlequina aparece com uma bandeja com copos, gelo e belas garrafas do meu segundo uísque preferido. É pena não ter o meu preferido!

— Caubói, por favor — solicito quando ela pergunta sobre minha bebida.

— O jantar já foi anunciado — Alex comenta. — Chegou agora?

— Sim, só consegui ouvir o discurso do Frank. Legal a fundação do seu amigo estar sendo beneficiada.

— Bê merece, o cara é um guerreiro! — Alex comenta. — Nick está muito orgulhoso do irmão.

— É, não deve ter sido fácil para ele, mas superou e ainda quis fazer a diferença. Isso é legal de se ver! — comento com ele.

Ficamos conversando um tempo como se não houvesse nenhum problema entre nós, falando sempre de trivialidades, de amigos conhecidos, trabalho e qualquer coisa que não seja nossa vida pessoal.

Ele não me pergunta sobre Valentina, e nem eu sobre Samara, mesmo porque sei que a amizade dos dois é longa, uma vez que o pai dela trabalhou para a Karamanlis durante muito tempo. Ele executou toda a parte de planejados de um dos empreendimentos na gestão do Nikkós. O homem era um design de móveis respeitado e com uma agenda apertada. Hoje, sei que ele não atende mais particulares, apenas empresas, mas teve um momento em que ter um móvel Schneider em casa era sinônimo de bom gosto e exclusividade.

— Família!

Viro-me ao ouvir a voz debochada de Kostas. O homem vem abraçado a uma loira com um vestido branco tão justo e transparente que pouca coisa de sua anatomia perfeita fica à imaginação.

— Bruninha, conheça os Karamanlis! — Ele aponta para Alex e mim. — Claro que você pode deixar seu cartão com eles depois, mas eu sou o mais bonito, não sou?

Ele segura a mulher pela cintura e a gira.

— Já bêbado? — Olho para Alex, que balança a cabeça.

— E mais uma vez com acompanhante paga! — Ele chega mais perto de mim. — Estou achando que nosso querido irmão é do outro time.

Gargalho alto, quase engasgando com meu uísque, o que chama a atenção das duas mulheres, que param de conversar e me olham.

— Perdoem-me, foi irresistível! — Bebo mais um gole. — Bom, certamente ele é arrogante e orgulhoso demais para “sair do armário”.

— Seria apenas mais um rejeitado pelo seu querido pappoús! — Alex diz antes de beber seu champanhe.

Olho para meu irmão sem saber o que dizer para aplacar essa dor que ele traz dentro de si desde criança. Quantas vezes menti a ele dizendo que Geórgios era um homem muito ocupado, mas que pensava nele. Quantas e quantas desculpas inventei ao menino para justificar o fato de nosso avô nunca o ter conhecido ou mesmo reconhecido como neto.

Alex se levanta e chama Samara para dançar. Valentina me olha, provavelmente esperando o mesmo de mim, vendo meus dois irmãos na pista com suas respectivas acompanhantes, mas finjo não entender. Não tenho vontade de dançar agora, não depois que as amargas lembranças voltaram a me atormentar.

Pego mais uma dose de uísque e respiro aliviado quando vejo o jantar começando a ser servido. Confiro o menu em cima da mesa para ver o que está no cardápio do chef Angelot e fico satisfeito com as escolhas dele.

A música muda, ficando mais suave e baixa, as luzes todas são acesas, e vejo um a um retornar à sua mesa para degustar a comida três estrelas do chef francês convidado da noite.


O jantar foi um sucesso total!

Nunca vi tamanho silêncio entre os convidados de um baile, efeito da perfeição de cores, texturas e sabores do chef Thierry Angelot. O tradicional menu em sete etapas consistiu em: aperitivo – camarões salteados com legumes envoltos em nori; entrada – mini tartar de salmão com tomate; prato principal – costelas de cordeiro com guisado de quinoa e espinafre; prato de queijos; um café especial; sobremesa – profiteroles; e, por fim, um digestivo que eu acabei por dispensar. Cada etapa foi harmonizada com um vinho diferente que eu neguei, pois não queria prejudicar o paladar do meu puro malte.

— Valeu cada centavo do convite! — ouvi uma pessoa comentar enquanto eu circulava pelo salão.

Encontrei alguns conhecidos – a maioria já não usava mais as máscaras – e fiquei um bom tempo conversando sobre negócios.

— Você veio, stronzo! — Frank me cumprimentou quando nos encontramos. — Vi seus irmãos na pista de dança, mas essa sua cara tediosa eu não vi.

— Sem ânimo para danças! — Dei de ombros. — Deve ser a idade.

Ele gargalhou, negando, pois é alguns anos mais velho que eu.

— Aposto que está andando por aqui babando no trabalho de sua irmã! — Sorri sem jeito, porque ele me conhece demais, na verdade é o único de fora da família que sabe os motivos que nos levaram a sermos tão fodidos desse jeito.

— Ela se superou! — confessei. — Kyra é melhor que todos nós, os homens Karamanlis. Começou sua empresa sem ajuda, batalhou para conseguir chegar aonde chegou. — Bebi mais um pouco. — Nós já pegamos tudo pronto.

— Nossas irmãs são desertoras, essa é a verdade! Não se abandona o negócio da família, nunca!

Ri dele, pois sei o quanto ainda o chateia sua própria irmã ter saído da Rede para montar sua própria agência de publicidade. Fiquei conversando um pouco mais com Frank, perguntando sobre as crianças – ele já tem três filhos – e sobre os negócios.

Há alguns anos nossa conversa seria sobre mulheres, uísque e negócios. Ele sempre com aquele cigarro na boca, tentando me convencer a comprar uma moto, coisa que nunca fiz e provavelmente nunca farei, pois elas não fazem minha cabeça. Prefiro carros potentes, confortáveis e cheios de segurança.

Em certo momento da noite, Kyra passou por mim, minha bela irmã com seu porte de deusa, cabelos cheios e escuros, olhos verdes e pele morena, vestida em um terninho preto básico, com um tablet na mão e um radiocomunicador na orelha.

Ela parou em seco quando me viu. Tentei sorrir e me aproximar, mas imediatamente ela se virou e saiu de perto como se eu fosse um leproso. Respirei fundo e bebi todo o conteúdo do copo.

Minutos depois, já de volta à mesa, ouvimos o aviso da contagem regressiva, e o salão explodiu em vivas e desejos de Feliz Ano Novo. Valentina se pendurou no meu pescoço e me beijou, desejando que o ano fosse especial para nós dois.

Houve música, comemoração e, por fim, o leilão começou.

Todos nos sentamos a nossas mesas, e os inscritos para os lances – já sabendo o que queriam comprar através do belo catálogo que tinha sido elaborado – receberam placas de identificação.

O leiloeiro apresentava a peça, saudava o doador, que geralmente se punha de pé para receber os aplausos de todos, e começava o jogo a partir de seu lance mínimo. Um dos momentos em que mais me diverti foi quando uma guitarra de blues – antiga e que pertencera a um dos grandes dessa área – foi disputada lance a lance por Frank e um outro homem. O negócio ficou tão acirrado que o doador, um integrante de uma banda de rock chamado Cadu, precisou mediar a situação.

Outro grande momento foi quando Nicholas Smythe-Fox doou um dos seus famosos potros PSI – Puro Sangue Inglês. Eu até dei um lance por diversão, até Alex participou da brincadeira, mas a coisa ficou feia mesmo entre Kostas e mais uns dois convidados – entre eles uma mulher. Meu irmão ficou a ver navios, e a dama levou o potro, o que, por si só, já me encheu de satisfação por ter vindo.

Acabei arrematando um final de semana em uma ilha particular em Angra dos Reis, uma doação do dono da ilha, um escritor de sobrenome Palmer. Não fazia ideia de quando poderia ir, mas briguei ferrenhamente para conseguir. Adoro o mar e podia me ver lá, na bela casa que apareceu no telão, desfrutando de paz e tranquilidade naquela linda baía de Ilha Grande.

O leilão durou mais de duas horas, mas foi muito divertido. Agora, prontos a voltar à sequência do baile, Valentina se pendura no meu braço e beija minha orelha.

— Eu adoro Angra! — sussurra. — Pensei que iria comprar alguma obra de arte. Fiquei surpresa por querer um final de semana em uma ilha particular. — Sorri. — Alguma ideia malvada?

Vagarosamente abro um sorriso, gostando da brincadeira, apreciando que ela esteja tão mais solta, sem todo aquele “protocolo” estranho de antes.

— Talvez — respondo em provocação, e ela faz um biquinho sexy.

A banda se posiciona para voltar a tocar, mas, antes da primeira nota, Frank aparece no palco.

— Atenção, por favor. — Uma luz se acende sobre ele. — Antes de voltarmos a dançar e a nos divertir, não posso deixar de cumprimentar publicamente o responsável pelo espetacular jantar desta noite, que, além de ter nos proporcionado a honra de provarmos sua comida, ainda doou seu cachê! Chef cuisinier Thierry Angelot, applaudissements, s'il vous plaît!

— C'est moi qui vous remercie de pouvoir participer — responde e olha para trás, chamando alguém para junto dele. Continua falando em francês: — Quero agradecer à maravilhosa equipe do chef Emílio, responsável pela cozinha do hotel, e à minha querida amiga. — Quase engasgo ao reconhecer a mulher ao lado dele. — Chef Maria Eduarda Hill, que foi minha souschef e ajudou a pensar e elaborar cada prato que experimentaram hoje.

Fico um tempo olhando para ela, ainda sem poder acreditar que estava aqui, neste baile, o tempo todo. Era óbvio! O almoço de ontem era por esse motivo, ela o estava ajudando na cozinha!

Maria Eduarda traduz tudo o que o chef falou para o português, e seu sorriso, mesmo de cima do palco, acerta-me em cheio, fazendo meu corpo estremecer, reavivando aquele momento que passamos ontem, antes de sermos interrompidos pelo chef.

Valentina fala algo em meu ouvido, mas não consigo prestar atenção, não consigo desviar os olhos da mulher sobre o palco, que ri e conversa em francês e em português com o chef e com o Frank.

Olho para Valentina, tentando entender o que porra está acontecendo comigo! Ela é perfeita em todos os sentidos, linda, jovem, bem-educada, de família tradicional, além de ser gostosa e sedutora quando quer. No entanto, não senti nem metade com ela grudada ao meu corpo, com a boca na minha, do que sinto agora, apenas ao olhar Duda Hill.

— Vamos? — ela pergunta.

— Para onde? — questiono, pois não ouvi nada do que ela esteve falando.

— Para meu apartamento. — Desliza as mãos pela lapela do meu smoking. — Estou cansada e querendo ficar um pouco a sós com você.

Novamente olho de soslaio para o palco, mas Duda e o chef já não estão mais por lá. A banda volta a tocar, e eu respiro fundo.

Preciso investir em Valentina, pois ela é mais do que somente uma trepada gostosa, pode ser a mulher com quem eu vá me casar e ter um filho. Duda e eu, apesar da atração, nunca passaríamos de uma aventura, e isso, sinceramente, eu já tive demais.

— Vamos!

Ela sorri com minha resposta e se despede de Samara.

Seguimos para fora do Villazza SP, porém, antes de chegarmos ao saguão, puxo-a para meus braços e a beijo, querendo sentir aquele mesmo tesão que senti há pouco apenas com a visão da cozinheira no palco.

A sua resposta é tão animada que acende um pouco meu desejo, mas ela logo se afasta de mim, puxando-me pela mão como se eu fosse um cachorrinho em seu encalço.

Ligo para o Dionísio, e, em menos de cinco minutos, o carro para na calçada do hotel. Seguimos para o endereço do apartamento de Valentina, com ela, talvez por causa da bebida, já quase em cima de mim, lambendo meu pescoço, falando coisas sujas em meu ouvido, e eu...

Bem, detesto esse clichê, mas devo admitir que isso nunca me aconteceu antes!

Não consigo tirar a porra da Duda Hill da cabeça, pensando que ela ainda está no hotel, sentindo o cheiro de seu perfume, o calor da sua pele, louco por descobrir de uma vez como é o sabor de sua boca.

— Theo? — Valentina me chama, e noto que já chegamos. — Tudo bem? Você parece um tanto desligado...

Fecho os olhos e respiro fundo.

— Acho que bebi demais. — Ela fica séria. — Estou com uma leve indisposição, então acho melhor deixarmos para nos ver outro dia.

— Tudo bem. — Dá de ombros, visivelmente frustrada. — Tem certeza?

Merda, Theo, o que você está fazendo?!

— Tenho, sim. Boa noite, Valentina! — Beijo sua testa.

Sua testa!

Ela não esconde a decepção e, sem nem mesmo esperar que Dionísio abra a porta do carro, sai, batendo-a ao fechá-la. Espero-a entrar na portaria e deito minha cabeça para trás, no encosto do carro.

— Tudo bem, chefe? — Dionísio pergunta preocupado. — Direto para casa?

Fico mudo, em guerra comigo mesmo, sabendo o que eu deveria ter feito, mas indo na direção contrária. Totalmente irracional!

— Volte para o Villazza o mais rápido que conseguir.


Estar de volta a uma cozinha profissional do nível da do hotel Villazza SP é, ao mesmo tempo, emocionante e horripilante. Estou longe desse mundo há tantos anos que tenho medo de ter desaprendido como tudo funciona, ter perdido o ritmo, sabendo da correria que é, ainda mais em um evento desse porte.

Chegamos cedo à cozinha, dividimos as tarefas por equipe de acordo com o menu que Thierry e eu fechamos ontem, depois do nosso almoço no Vincenzo’s.

Um tremor percorre meu corpo ao pensar que Theodoros Karamanlis provavelmente estará presente nesse baile, acompanhado de uma bela mulher, enquanto come o que preparei com tanto afinco. Se pudesse, iria colocar algum tipo de purgante em seu prato e...

Balanço a cabeça a fim de afastar esse pensamento ridículo. O homem mexe comigo, descompassa meu coração, aquece meu corpo, mas isso não é motivo para que eu me sinta tão vingativa por ele se divertir com outra.

Não, claro que não! Que ideia mais absurda!, penso, selando os cortes de carnes que serão mantidos em banho-maria, cozinhados em temperatura baixíssima, até o momento de serem colocados na grelha e empratados.

O que me move a ter pensamentos tão duros com relação ao CEO da Karamanlis certamente é sua insistência em querer tirar o que é meu, não qualquer outro motivo! Pouco me importa com quem ele sai e se diverte. Não temos e nunca teremos nada um com o outro!

Mentirosa!, acusa-me a consciência, mas não lhe dou ouvidos.

Thierry conta comigo para apresentar o menu mais sofisticado que a sociedade paulistana já provou em um baile, e, mesmo com um trabalho gigante pela frente, não vou ter meu foco desviado por nada, nem mesmo por Theodoros Karamanlis, seu olhar sedutor e toque irresistível.

— Tudo certo? — Thierry pergunta-me. — Preciso te ter atenta para traduzir tudo o que eu digo aos demais.

— Oui, chef! — Pisco para ele, enquanto prova o marinado que fiz para o cordeiro. — C’est bon?

— Parfait!

Não será fácil cuidar dos molhos e ajudá-lo a coordenar a brigada, mas é para isso que estou aqui. Vou até o pâtissier18 e o encontro com seus cozinheiros já bem adiantados na preparação da sobremesa. Mesmo antes do começo da correria louca que será essa cozinha durante o baile, já há a agitação crescente da preparação dos alimentos.

Cada uma das sete etapas precisará ter todos os pratos prontos, com intervalos mínimos entre uma e outra. Olho para o mapa do salão todo preenchido com o número de ocupantes de cada mesa e mais uma vez me pego pensando em onde Theo estará.

Respiro fundo, rememorando a ordem que chef Angelot e eu programamos para que os garçons possam servir. Luan, um dos boqueteiros19, foi instruído a organizar toda a distribuição dos pratos de acordo com os que liberarmos na boqueta.

— Olá! — uma mulher morena, com olhos de um tom de verde que só vi uma vez na vida, cumprimenta-me. — Você é a chef Hill?

— Sim! Em que posso ajudá-la?

— Sou Kyra Karamanlis, da ???p?20 Produções e Eventos. — Ela estende a mão, e eu, depois de passado o choque causado por seu sobrenome, saúdo-a. — Eu estive há pouco tempo com o chef Angelot, e ele me pediu para procurá-la. — Ela chama duas mulheres. — Essas são Marília e Andréia, trabalham comigo e irão permanecer na cozinha a fim de fazer uma ponte com minha equipe, por causa do cronograma.

— Ah, sim, ficamos sabendo disso ontem. — Sorrio. — Fiquem à vontade!

— Obrigada! — Elas sorriem e me cumprimentam também.

Vejo a Karamanlis conversar com suas funcionárias e, em seguida, sair da cozinha falando sem parar em seu radiocomunicador.

— Foi ela quem organizou tudo isso? — inquiro a uma delas – não sei se Marília ou Andréia –, apontando em direção ao salão.

Passei por lá há pouco tempo, e o que vi me impressionou muito. A suntuosidade, luxo e, principalmente, a riqueza nos detalhes fez com que eu tivesse a sensação de realmente estar entrando em um espetáculo como uma vez assisti no Cirque Du Soleil.

— Sim, foi Kyra quem fez todo o projeto de decoração. — Sorri. — Ficou impressionante, não?

— Sim, lindíssimo! — Olho para a minha bancada, ciente de que tenho que continuar o trabalho, porém, deixo a curiosidade falar mais forte. — O sobrenome dela, Karamanlis, tem ligação com a empresa imobiliária?

É a outra mulher quem me responde:

— Sim, ela é a caçula da família e não trabalha com eles, é independente.

Irmã ou prima do Theo?, tenho vontade de perguntar, mas não o faço, voltando para minha estação de serviço, adiantando o molho da entrada, deixando de lado qualquer pensamento ou curiosidade acerca dos Karamanlis.

 

 

— Gostaríamos de agradecer o empenho de cada um de vocês — traduzo as palavras de Thierry. — A forma como trabalharam, a perfeição e o cuidado com cada prato, cada elemento, foram dignos da melhor cozinha de um restaurante três estrelas. Agradeço ao Chef Emílio pelo prazer de compartilhar de sua cozinha e a oportunidade de conhecer o trabalho de cada um aqui nesta noite!

Thierry ergue sua taça de champanhe, e todos o seguimos, brindando pelo fim do trabalho executado sem nenhum percalço, seguindo corretamente o cronograma da organização e o do nosso menu.

Estou um bagaço, confesso, mas nunca me senti tão viva desde que deixei o L’Amande em Paris há sete anos. Cozinhar no Hill é uma delícia, meus companheiros de trabalho são únicos, divertidos e amigos de verdade. Contudo, trabalhar de novo em uma cozinha de alta gastronomia relembrou o motivo pelo qual eu estudei e me esforcei tanto.

Aquela agitação, os pratos sofisticados, os ingredientes de qualidade e a apresentação artística de cada prato reacenderam a chama dentro de mim. Amo cozinhar, mas há anos o venho fazendo apenas como um meio de ganhar meu pão de cada dia. Há anos não arrisco, não deixo a criatividade tomar conta de mim e o simples ofício de juntar ingredientes se tornar a arte de harmonizar sabores.

Ficamos horas cozinhando hoje, preparando prato por prato, etapa por etapa. A verdade é que nunca vi uma boqueta tão movimentada quanto a desta noite. Liberamos mais de 1200 pratos – desde o aperitivo até os queijos –, mais de 300 sobremesas, além do café e do licor.

Relaxamos depois, todos reunidos para cear o Ano Novo – ideia de Thierry – enquanto começava o leilão tão aguardado da noite.

Eu estava limpando minha estação quando Kyra Karamanlis entrou na cozinha mais uma vez e foi diretamente falar com Angelot. Segundo ela, Frank queria agradecer pelo jantar e por ele ter doado o cachê em prol das intuições beneficentes da noite.

Vi-o tirando o avental e vindo em minha direção.

— Duda, ma petite, j'ai besoin de toi pour m'accompagner.21

Foi assim que, com a dolma manchada, turbante cheio de pimentinhas desenhadas, fui parar em cima do palco, no meio da granfinada de São Paulo, mas com a preocupação de ser vista por apenas uma pessoa.

De onde eu estava, não era possível identificar ninguém, pois o salão estava escuro e boa parte dos convidados ainda estava usando as máscaras. No entanto, ainda sem poder vê-lo, sentia seu olhar sobre mim. Minha pele estava arrepiada, e eu sentia pequenos calafrios em minha coluna.

Em algum lugar daquela multidão, estava o homem que eu devia querer o mais longe possível de mim, mas que não deixava meus pensamentos nem por um minuto.

Traduzi o que Thierry falou, agradeci, em meu nome, a oportunidade diretamente para o CEO da rede Villazza – que por sinal não me era estranho; provavelmente já estampou muitas revistas da tia Do Carmo – e voltei para a cozinha a fim de terminar a limpeza e ir para casa.

— Duda! — Emílio, o chef executivo do restaurante do hotel, me chama, e paro de pensar na noite. — Você foi incrível esta noite! Thierry me disse que você mora aqui na cidade. — Assinto, e ele estende um cartão para que eu o pegue. — Tenho uma vaga para você em minha equipe se não estiver à frente de nenhuma cozinha.

Nem preciso dizer que meu coração disparou de felicidade. Olho em volta, adorando cada utensílio, cada estação organizada, pensando em como deve ser incrível trabalhar com ele aqui. Aceito o cartão.

— Eu agradeço, chef, mas no momento tenho meu próprio negócio.

— Ah, é mesmo? Onde? Eu adoraria experimentar um pouco de sua comida.

Sorrio.

— Hill Wings Pub. — Ele não disfarça sua surpresa. — Eu tenho um boteco na Vila Madalena.

— Um pub? Que inusitado!

Rio, achando engraçado que ele tenha ficado tão sem jeito.

— É de família, assumi quando meu pai faleceu. — Dou de ombros. — Não é alta gastronomia, mas me divirto cozinhando.

— Mas seu talento... — Ele respira fundo. — Enfim, você sabe o que é melhor. Se quiser voltar para uma cozinha francesa, tem lugar aqui comigo.

— Seria uma honra, chef — digo com sinceridade. — Obrigada.

Mal terminamos de falar, e uma agitação na entrada da cozinha chama nossa atenção.

— Ah, meu chefe! — ele comenta rindo. — Não fazia ideia de que viria aqui nos cumprimentar.

Frank Villazza vem caminhando até onde estamos, charmoso, com seu sorriso de lado e um porte de modelo, porém, não consigo ficar mais do que alguns segundos o observando. Meus olhos são atraídos para o homem ao seu lado, lindo, em um smoking de corte perfeito, com expressão séria e frios olhos azuis fixos nos meus.

Frank Villazza fala algo sobre vir nos cumprimentar pessoalmente. Vejo Emílio ir até ele, mas não consigo ouvir nada do que diz. O magnetismo de Theodoros Karamanlis me prende, simplesmente não posso parar de olhá-lo e, ao que parece, nem ele a mim.

No meio do discurso do Frank, Theo caminha em minha direção, porém, antes que me alcance, Thierry me chama e pergunta como irei para casa.

— Uber — informo, virando-me de costas para o irresistível grego. — Já ia chamar antes da entrada triunfal de Francesco Villazza.

— Ele já acabou! — Aponta, e eu olho para trás, vendo-o se despedir de Emílio. — Quer que eu a leve?

— Não precisa, Thierry. — Beijo sua bochecha. — Muito obrigada pela noite de hoje.

— Nos veremos amanhã no seu bar.

Sorrio, empolgada.

— Te espero lá!

Despeço-me de todos, pegando minha pequena mala contendo o uniforme, facas e turbantes – sempre levo mais de um por precaução – e saio do restaurante em direção à saída de funcionários do hotel.

Espero chegar à calçada e abro o app para pedir um carro, mas, antes que eu confirme a viagem, um Mercedes preto para bem na minha frente, e o vidro da porta traseira é aberto.

— Aceita uma carona?

Prendo a respiração, seguro forte o aparelho celular para não o derrubar no chão de tanto que estou trêmula e encaro Theodoros Karamanlis.

— Não — recuso. — Posso me virar sozinha. — Chacoalho o telefone para que veja que estou chamando o Uber.

— Não perguntei se sabia se virar sozinha, Maria Eduarda. — Dá um leve sorriso. — Sei que consegue, mas quero levá-la. Aceita?

Merde! Ele não facilita para mim falando desse jeito e com esse sorriso.

— Eu acho melhor não...

— Ei, é um pedido de trégua! — Agora abre o sorriso de forma que seus olhos se iluminam. — Está tarde para andar sozinha com um desconhecido.

Franzo as sobrancelhas.

— Você é um desconhecido.

Theodoros gargalha.

— Não, Duda, eu não sou. — Ele abre a porta do carro. — Entra, prometo que te deixo em casa inteira. — Dá um sorriso safado. — Prometo não morder... a não ser que me peça.

Um arrepio percorre minha coluna. Olho para o telefone em minha mão, com o pedido de confirmação da viagem para o motorista mais próximo vir me buscar, e para o homem me esperando, de porta aberta, sorriso malicioso e a mesma promessa de prazer que senti desde que nos encontramos pela primeira vez.

O que eu faço?


CONTINUA

Resisti a esbravejar de volta e respirei fundo, clamando por paciência. Eu nunca quis que fosse assim, porra! Se quisesse a merda de um casamento arranjado, tinha posto um anúncio no Estadão ou na Folha! A ideia era conhecer alguém que despertasse meu interesse e ver se essa pessoa continha os requisitos do pappoús, não o contrário!

Bom, a porra do encontro já estava agendada e confirmada, então não me restou outra saída a não ser ir até a moça.

Não serei hipócrita ao não reconhecer o quanto Valentina estava linda. Um vestido preto, fino, de tecido parecendo seda, colava-se ao seu corpo de tal maneira que eu tive certeza de que não usava calcinha. O modelo era na altura dos joelhos, sem muito decote, porém o suficiente para mostrar seus atributos a um bom observador. Os cabelos claros estavam soltos, penteados para trás, caindo sobre suas costas delgadas.

Ela entrou no carro e se sentou ao meu lado no banco traseiro enquanto Dionísio fechava a porta.

— Boa noite, Theodoros! — cumprimentou-me de forma educada e sutil, seus olhos azuis destacados por uma maquiagem bem feita. — Espero não o ter feito esperar muito.

— Boa noite! — Sorri. — Valeu a pena cada minuto. — Beijei sua mão. — Você está deslumbrante!

Ela apertou sua mão sobre a minha, e eu a puxei para um beijo.

Nada!

Encho o copo de uísque novamente, pensando em como pode uma mulher linda daquelas, com um corpo perfeito, um rosto e sorriso incríveis, isso sem contar em todos os outros atributos intelectuais, que ela tem bastante também, não conseguir sequer uma reação mínima do meu corpo?

Como é possível?!

Volto a pensar em como ela mesma reagiu, com um sorriso polido como se aquilo não passasse de um protocolo. Gelo tomou conta de todas as minhas veias e se concentrou diretamente no meu pau.

Pedi ao Dionísio que fosse até o endereço da galeria, fiquei a noite inteira com ela pendurada em meu braço enquanto comentava – com enorme conhecimento da área – sobre cada gravura ali exposta. Relaxei com a presença dela, com a afinidade que tínhamos com as artes e também com seu humor perspicaz e agradável.

Sem dúvidas, Valentina é uma ótima companhia, por isso mesmo a convidei para ir comigo ao baile de Ano Novo dos Villazzas.

No final da noite, voltei a tentar uma aproximação, e ela a recebeu com a mesma resignação de antes, porém, sem nenhuma paixão, assim como eu. Porra, ela era perfeita, mas onde estava a química entre nós? Onde estava o arrepio na pele ao meu toque? A reação do meu corpo a um simples sorriso dela?

Não tinha nada ali! Nenhuma chama, nem mesmo uma faísca.

Rio, voltando a tocar o piano, afastando a frustração que senti há algumas horas. A mulher certa com a reação errada, enquanto tive todas as reações certas com a última mulher com quem deveria ter tido!

O nome dela, dessa mulher tão exasperante que consegue criar uma revolução nos meus hormônios sexuais, flutua em minha cabeça como se fosse música: Maria Eduarda Hill.

Ao mesmo tempo em que decido tocar algo para cessar o mantra nominal, faço uma autoprovocação escolhendo uma música romântica e divertida na versão do ícone Frank Sinatra:

— My funny valentine! Sweet, comic valentine! You make me smile with my heart. Your looks are laughable, unphotographable, yet you're my favorite work of art. 4

É, penso quando paro de cantar e fico somente tocando, a noite vai ser longa. Ainda bem que tenho garrafas de uísque e repertórios musicais suficientes!

 

 

O som está uma merda, a bebida, quente, e a decoração, cafona demais! Procuro Rômulo no meio dos funcionários da Karamanlis, todos reunidos no refeitório para o almoço de final de ano em plena véspera de Natal.

Neste ano resolvemos não mais fazer duas festas separadas – para os funcionários e para os cargos acima de gerência da Karamanlis – e reunimos todos aqui mesmo no prédio da empresa. Abrimos apenas as portas do refeitório, que dão em uma espécie de terraço, onde o bufê colocou um toldo e umas cadeiras.

Não foi minha irmã caçula quem organizou a festa, infelizmente, senão não estava essa cafonice estranha.

Avisto Rômulo e faço sinal para que venha até mim, e ele o faz imediatamente, parando de conversar com alguns funcionários da TI – eu sei porque a maioria com cara de nerd aqui da empresa trabalha lá – e vem aos tropeços, “catando cavaco”, como diria Aluísio Azevedo5 se ainda estivesse entre nós, até se postar ao meu lado.

— Sim, doutor?

Tento conter uma risada e apenas balanço a cabeça, esperando que ele resgate o ar que perdeu no percurso para que eu lhe pergunte de quem foi a idiota ideia de contratar esse péssimo serviço!

— Rômulo, sobre a empresa que está organizando essa confraternização. — Ele arruma os óculos. — Nós pagamos por isso? — Aponto o dedo para todas as coisas penduradas na parede, inclusive os balões infláveis com os números formando 2019 em dourado.

— Claro que sim! — Sorri. — Não posso precisar o valor, porque isso é com o pessoal do doutor Millos, mas tenho certeza de que uma empresa como a Karamanlis não dá calote em ninguém.

Enche o peito de orgulho, o que me faz revirar os olhos, e abre um enorme sorriso.

— Volte lá a se divertir com o pessoal da TI! — Abano a mão na direção dos rapazes com óculos ao estilo Harry Potter.

Meu assistente insiste em me ajudar com algo mais, mesmo eu já o tendo dispensado, e somente quando o olho é que parece conceber a mensagem. Volta do mesmo modo que veio, mas dessa vez já não acho graça de seu jeito espalhafatoso de andar apressado.

Ando entre as pessoas, cumprimentando alguns que já conheço e atraindo a atenção dos demais, em busca de Millos. Está tudo tão mal organizado que não consigo ver entre uma mesa e outra por causa dos malditos balões dourados.

— Ei, irmãozinho! — Alex me para. — Aproveitando a festa?

Ele parece animado com um copo de cerveja na mão.

— Espero que não tenha vindo de moto! — repreendo-o.

— Preocupado com minha integridade física, oh, poderoso Theo!? — Ri, já visivelmente bêbado. — Vê só como seu nome já lembra a divindade que você é! Théos6!

Millos chega por trás dele, capturando meu olhar entediado, e o abraça pelos ombros.

— Alex, que festança, não? — comenta. — Eu nunca vi nosso pessoal tão à vontade e tão satisfeito com uma festa de final de ano!

— Você só pode estar brincando! — indigno-me ao ouvir isso. — Essa confraternização não chega aos pés da do ano passado!

Alex gargalha.

— Na do ano passado, o pessoal quase dormiu nas cadeiras com aquele sonzinho de jazz que foi colocado para agradar a um certo CEO! — Ele fica sério. — Você não conhece seus funcionários, não sabe do que eles gostam e...

— Chega, Alex! — Millos o chama sério.

— Foi ele quem organizou isso aqui? — pergunto ao Millos, apontando para a fuça do meu irmão caçula.

— Foi! — o petulante me enfrenta. — Olhe além do seu mundinho privilegiado, Théos! — Abre os braços, esbarrando em Millos, para demonstrar seu ponto. — A festa está no fim, todos foram dispensados a ir mais cedo para casa, mas... — cruza os braços — você está vendo alguém ir?

Sou obrigado a concordar com ele. Ninguém ficou na festa, no ano passado, depois da distribuição dos prêmios, e, neste ano, mesmo depois de termos feito os sorteios, todos continuam aqui, comendo, bebendo e – arregalo os olhos ao ver Rômulo e seus amigos se agitando – dançando!

Sim, a festa não está do meu gosto, mas, afinal, não foi feita para mim. Millos sorri, olhando para Alex, quando percebe que notei o sucesso que está sendo o evento. Foi meu irmão! O moleque realmente entende os funcionários como nenhum outro Karamanlis no poder o fez!

Sinto uma pontinha de orgulho, mas logo a deixo de lado, abandonada na escuridão de uma parte de mim que contém todos os sentimentos acerca de minha família.

— Bom trabalho! — elogio-o, e o garoto fica sério. — O pessoal parece realmente estar gostando!

— Vá se...

— Nós agradecemos! — Millos o interrompe no exato momento em que iria me mandar ter prazer comigo mesmo. — Foi um trabalho em equipe! Somos um só time dentro desta empresa.

Millos mal termina de falar e arrasta Alex para longe de mim, falando algo durante o trajeto.

Lembro-me de Alex ainda garoto, sobre meus ombros na piscina do condomínio onde moravam. Ele me seguia por toda parte, até mesmo quando eu não o queria por perto. Seus olhos brilhavam a cada coisa que eu fazia ou falava, eu era seu herói.

Ele estava muito errado!


A véspera de Natal foi uma tortura solitária!

Millos se enfiou em algum lugar para fazer sabe-se lá o quê e eu fiquei sozinho na cobertura, ouvindo meus discos, comendo uma ceia encomendada anteriormente por Vanda e vendo as sacadas dos outros apartamentos com pessoas comemorando, luzes piscando, músicas de Natal.

Nunca tivemos isso!

Millos e eu fomos criados com pappoús, e nossa família nunca comemorou o Natal por não achar a data importante, apenas uns dias a menos para se fazer dinheiro. Nossa giagiá7era quem ainda queria manter a tradição da festa do nascimento do Menino Jesus, porém, a tivemos tão pouco antes de sua morte que quase nem me lembro mais dos ritos e da comemoração.

Quanto aos outros, mal sei! Kostas foi criado com a família de sua mãe, na Inglaterra, até a adolescência, então provavelmente é católico ou anglicano, e as duas religiões comemoram a data. Quanto a Alex e Kyra, os dois tiveram Natais completos, pois eu ainda me lembro da árvore montada na sala principal do apartamento, pelo menos estava lá na última vez em que estive no imóvel; depois, não tenho notícia.

Não era de se esperar que, numa família tão complicada como a nossa, houvesse comemorações natalinas – ou quaisquer outras que envolvam união e fraternidade. Somos solitários como se fôssemos filhos únicos, e eu, infelizmente, divido essa culpa com Nikkós.

Recebi convites para cear com alguns amigos, inclusive Valentina me pediu para acompanhá-la na comemoração de sua família, porém, não quis. Natal não é uma época fácil para mim, e eu não queria que as outras pessoas se dessem conta disso e questionassem os motivos. Era melhor ficar sozinho mesmo!

O som triste e a voz melodiosa de Nat King Cole cantando Please take me back to toyland8 me fizeram rir ironicamente, pois eu nem sabia que tinha essa música naquele disco, afinal, era uma canção de Natal! Fui até o toca-discos e mudei a faixa, mas pouco ajudou, pois começou Unforgettable9.

Suspirei resignado e deixei a música tocar, sentando-me no sofá e deitando minha cabeça sobre o encosto, seguindo a música com os lábios, mas sem cantar.

Foi realmente a chamada “noite da fossa”, eu ali, sozinho, ouvindo canções que tocam fundo em qualquer pessoa, tomando meu uísque, enquanto o peru esfriava intacto sobre a mesa de jantar.

No dia seguinte, todo meu ar de frieza e invulnerabilidade já estava de volta, segui para a empresa – sim, em pleno feriado! – e adiantei muito os relatórios do final do ano para o conselho. Li todos os e-mails que Rômulo já havia classificado como importantes, respondi alguns, fiz anotações para pesquisar respostas para os outros. Fiquei um bom tempo olhando a Paulista, vazia como uma rua fantasma, e rindo de mim mesmo por estar ali perdendo tempo.

Recebi mais convites naquela noite, agora para noitadas pós-Natal, mas ainda não estava no clima. Exercitei-me sozinho na academia do apartamento, saindo de lá exausto, fiquei um tempo na sauna depois e, quase à 1h da manhã, estava nadando.

Dormi feito uma pedra!

Hoje acordei com uma ligação de Vanda, avisando que estaria de volta na primeira semana de janeiro, o que já animou minha manhã. Segui meu ritual para me preparar para o trabalho, troquei mensagens com algumas mulheres com quem já havia saído, inclusive com Valentina e, agora, já no carro, recebo uma ligação da Viviane.

— Como foi seu Natal? — pergunta.

— Não comemoro! Você sabe que acho besteira. — Ri. — E você?

— Muito bom e em ótima companhia! — Suspira. — Ah, encontrei Valentina ontem na festa da Alicinha. Ela me falou bastante de você.

Ergo a sobrancelha.

— É mesmo? Coisas boas ou ruins?

— Boas, claro! Por que ela diria coisas ruins a seu respeito?!

— Não sei, ela parecia tensa, distante... — Ouço Viviane respirar fundo. — Não sei, Vivi. Ela tem tudo o que meu avô aprovaria, mas...

— Vocês só saíram uma vez! Dê tempo ao tempo!

— Pode ser... — encerro o assunto, pois não estou certo de investir em uma relação com Valentina. — Vamos falar de negócios! Vi seu e-mail ontem com a repercussão do escultor! Meus parabéns!

— Ah, Theo, você sabe que eu nunca me engano com as artes! — Ri. — Quem dera fosse assim com as pessoas!

Respiro fundo, concordando, embora me ache um bom julgador de caráter. Terei pela frente poucos dias para finalizar todas as pendências e organizar planos de ação para o próximo ano. O conselho irá se reunir na sexta-feira, e, sempre depois dessa reunião de prestação de contas, acabo acumulando algum trabalho para fazer até a véspera de Ano Novo.

— Ela me disse que você a convidou para o Baile Branco e Preto dos Villazzas — Viviane volta a falar.

— Quem? — indago confuso.

— Valentina, Theo! — Ri. — Não me diga que convidou mais alguém!

Faço careta ao me lembrar do convite, levemente arrependido de tê-lo feito, pois poderia muito bem ir sozinho e conhecer alguém que despertasse mais tesão em mim do que a amiga de Viviane.

“Dê tempo ao tempo...” foi o que ela acabou de me falar. No entanto, acho que, em relação ao desejo, ou ele acontece ou simplesmente não existe. Tesão não é igual amizade, que se constrói com o tempo, ele é imediato! É certo que pode estar camuflado em algum outro tipo de sentimento, como a exasperação, a implicância, arrogância, mas está lá, ainda que negado.

— Não, não convidei mais ninguém, Vivi. — Respiro fundo. — Mas acho que fui apressado no convite. Valentina é perfeita, mas um tanto fria, e isso...

— Talvez ela só esteja tímida — justifica a amiga, e vejo lógica nisso. Devem ser tão estranhos e desconfortáveis para ela quanto são para mim, esses encontros arranjados. É antinatural demais, como se estivéssemos sendo empurrados um para o outro.

— Sim, é normal que ela esteja sem jeito, por isso não queria fazer dessa forma — friso mais uma vez meu incômodo com essa situação. — De qualquer maneira, já fiz o convite e seria uma babaquice sem tamanho retirá-lo.

— É um baile e tanto! Imagino que você tenha se dado folga na véspera do Ano Novo. — Faço careta ao pensar em mais um dia de trabalho perdido. — Soube que sua irmã é quem está organizando.

— Sim, é ela — sou curto ao confirmar, sem entrar em detalhe algum, mesmo porque eu nada sei sobre a Kyra. — Vivi, preciso desligar, estou chegando ao prédio e tenho uma apresentação para fazer depois de amanhã...

— Está certo! — Ri, sabendo que a estou dispensando. — Se não o vir mais, espero que tenha um feliz Ano Novo.

— Para você também!

Desligo o telefone e abro o app de agenda que uso para os meus compromissos, marcando o domingo como um dia de trabalho.

Minutos depois, já no elevador, recebo mensagem do Rômulo perguntando sobre essa anotação.

 

 

Cumprimento uns funcionários que entram no elevador, pronto para guardar o celular no bolso, quando ele treme em minha mão. Rômulo, em vez de esperar que eu chegue à sala, manda-me uma mensagem:

 

 

Gargalho no elevador, chamando a atenção das pessoas dentro dele. Sinceramente, não sei se Rômulo é puxa-saco demais ou se é só maluco!

 

 

— Ah, você está aí! — Millos me assusta entrando na sala de supetão, ainda mais por hoje ser domingo. Eu e Rômulo trabalhamos todo este fim de semana.

— Onde mais estaria, já que parte de amanhã e o feriado serão perdidos? — Aponto para a porta. — Usa-se bater antes de invadir.

Meu primo dá de ombros.

— Vim me despedir — informa e vai até o Rômulo. — Qualquer coisa que precisar, entre em contato com a Sâmela, ok?

— Sim, doutor Millos! — O assistente se levanta, seca a mão – não sei por que diabos ele sempre faz isso! – na lateral da calça e a estende ao meu primo. — Boas férias!

— Obrigado, Rômulo! — cumprimenta-o de volta. — Feliz Ano Novo! Espero que, ano que vem, seu chefe esteja mais suportável!

— Ah, doutor, meu chefe é ótimo! — ele sorri ao falar isso e me olha de esguelha.

— Você é um santo, Rômulo! Ou um louco!

Gargalho com a cara confusa do meu assistente e chamo o ingrato do meu primo para um abraço de despedida.

— Para onde vai? — inquiro.

— Te respondo no almoço.

Franzo a testa.

— Que almoço? — Olho para Rômulo, que dá de ombros, indicando que não há nada na agenda.

— Nosso almoço, agora, no restaurante onde você me abandonou naquela noite depois do encontro com a Duda Hill.

Cruzo os braços, sem focar muito nas lembranças daquela noite, ainda que sinta um leve tremor ao pensar na mulher conversando comigo ao balcão do bar.

— Millos, amanhã é véspera de Ano Novo, eu ainda tenho...

— Sem desculpas, Theo, hoje é domingo, e vocês dois nem deveriam estar aqui. E, conhecendo o seu assistente como conheço, tenho certeza de que o trabalho está bem adiantado!

— Pode ter certeza, doutor! — Rômulo confirma, orgulhoso.

Ainda tento negar por mais algum tempo, porém, meu primo está totalmente inflexível.

— Está certo, mas, ao invés daquele restaurante, vamos ao Vincenzo’s. — proponho, e ele aceita.

Vincenzo’s é o restaurante italiano de um chef amigo nosso, que fica no terraço do Villazza SP. Millos e Vince – apelido do dono – são amigos e companheiros de viagens de motos, assim como Frank, CEO da rede de hotéis Villazza.

Gosto muito de ir lá, mas, como não tenho tido tempo ultimamente, pouco tenho conseguido degustar do menu italiano de Vincenzo. Somos amigos desde que ele abriu o restaurante no Villazza SP, vindo com Frank de Curitiba para cá, pois antes comandava a cozinha de um restaurante do hotel de lá.

O homem, um chef competentíssimo, ganhou fama e notoriedade ao participar como jurado de um reality show de gastronomia na televisão. Espero que Millos tenha feito reserva, senão teremos que comer no mezanino sem cobertura, com uma bela vista de São Paulo, mas sem ar-refrigerado.

— 15 dias? — confirmo o tempo das férias com meu primo enquanto ele dirige.

— No máximo! — diz animado. — Tracei minha rota, já reservei hotéis ao longo do caminho. Se nada sair do programado, em 12 dias estou de volta e em 15, já na minha mesa.

— Bom, muito bom! — A notícia me satisfaz, principalmente por eu mesmo estar viajando em fevereiro. — Não vai ao aniversário do pappoús?

— Ano que vem, não, já até me desculpei com ele. Vou visitá-lo em julho. Terei que ir até Atenas para resolver umas coisas com meu pai, então aproveito e mato os dois coelhos de uma vez.

— Que horror essa comparação! — Rio. — Tudo bem com tio Vasilis?

Dá de ombros, sem saber o que responder, afinal, assim como eu, não fala com o pai há anos. Millos lamenta ser filho único exatamente por não ter para quem jogar o fardo de lidar com o pai, o que entendo bem, pois eu detestaria ver Nikkós, mesmo que por mera formalidade.

Chegamos ao Villazza, e, enquanto subimos para o terraço, mando mensagem para o Frank, porém, o carcamano está em reunião, ajustando os últimos detalhes do baile de amanhã.

Ah, sim, o bendito baile!

Valentina já me bombardeou de mensagens sobre o evento, dizendo o quanto está empolgada, detalhando sua roupa e me perguntando como eu preferia que ela usasse os cabelos, soltos ou presos. Achei um tanto absurdo demais tudo isso, principalmente sobre minha opinião, afinal, encontramo-nos uma vez e trocamos dois beijos bem insossos.

Munido de uma paciência hercúlea, respondi todas as suas mensagens e ressaltei o quanto meu dia estava corrido exatamente por conta desse evento na véspera do Ano Novo, dia em que normalmente trabalho e que perderei por sair mais cedo. Pelo visto, ela entendeu o recado e parou com suas mensagens ao estilo metralhadora.

Chegamos ao terraço e avistamos Vincenzo, com um enorme sorriso, já na porta a nos esperar. Estranho isso, não por ele estar nos aguardando, mas sorrindo desse jeito tão deslumbrado.

— Benvenuto! — saúda-nos. — Porra, eu estou suando frio aqui! — confessa.

— Diarreia? — Millos sacaneia.

— Não, coglione! — Rio ao ouvir o xingamento preferido do Frank. — Vocês vão ter o prazer de dividir o mezanino...

— Ah, caralho, o mezanino não! — resmungo tirando o paletó.

— Estamos com climatizadores lá fora e ombrelones, seu fresco! — todo o charme e sotaque italiano some quando ele me dá esse esporro, voltando às origens do Bixiga, bairro paulistano onde foi criado.

— Está certo, esquece o Theo! Quem está no mezanino? Alguma gostosa lá da sua emissora?

— Melhor que isso! — O chef parece bem empolgado. — Thierry Angelot!

Millos franze o cenho, e eu começo a gargalhar.

— Porra, Vince, é sério? Toda essa excitação por causa de um macho?

— Cala a boca, seu herege! — repreende-me. — Angelot, Millos!

Meu primo arregala os olhos.

— Do restaurante? O que ganhou a terceira estrela Michelin no guia deste ano?

— Voilà! — Vincenzo confirma. — O próprio!

Gosto muito de comer, mas, como não cozinho nada, nunca fui muito ligado a nomes de chefs ou restaurantes. Simplesmente, quando quero algo e estou fora do país, consulto o concierge do hotel ou vou pela indicação de amigos. No entanto, agora, sabendo se tratar do Angelot, o restaurante francês cujo jantar desfrutei há alguns anos, entendo a empolgação do Vince.

— O que ele faz aqui? — Millos inquire.

— Vai cozinhar amanhã — respondo, e Vincenzo confirma. — Frank comentou comigo que um chef internacional havia aceitado o convite para fazer o jantar do baile.

— Ah, porra, isso é sério?! — Millos gargalha. — Justamente este ano, que decidi não participar!

Caminhamos em direção ao mezanino, uma varanda um pouco mais elevada que o restaurante, com proteção de vidro na beirada do hotel e uma vista deslumbrante. Entro já olhando as mesas – são três delas – à procura do misterioso homem, pois nunca consegui cumprimentá-lo quando estive em seu restaurante. Avisto-o conversando animadamente em francês e quase tropeço ao ver a mulher que almoça – e ri muito, por sinal – em sua companhia.

— Duda Hill! — Millos sussurra.

— Vocês a conhecem? — Vincenzo nos encaminha até nossa mesa, no canto oposto onde o casal se encontra. — Ele chegou aqui com esse mulherão traduzindo tudo o que dizia, e eu, mesmo sabendo o idioma, me fingi de ignorante só para ouvi-la falar.

A lembrança do sotaque francês dela, da forma como seus lábios se movimentaram a cada palavra, trazem de volta a sensação luxuriante que senti, tendo a exata noção do que Vincenzo está falando. Crispo as mãos, respiro fundo e me sento bem de frente para a mesa dos dois.

Millos e Vince conversam baixinho, porém, não presto a mínima atenção a eles, tentando ouvir o que o baixinho – sim, porque o homem deve ter no máximo 1,60m de altura – diz a ponto de arrancar tantas risadas dela.

Infelizmente não consigo ver o rosto da Duda, tendo visão de suas costas mal cobertas pelo vestido estampado em verde, de alças muito finas que destacam seus ombros e nuca, uma vez que os cabelos estão presos em um coque no topo da cabeça.

— ...eles pediram à la carte e agora estão dividindo um tiramisù — ouço Vincenzo informar ao Millos.

— Dividindo? — questiono. — Denota certa intimidade dividir a sobremesa com alguém. — Millos ergue uma sobrancelha e dá um sorriso irônico. Não lhe faço caso, fingindo que não notei sua expressão. — Então, ao que parece, a dona do boteco realmente é uma chef de cuisine diplomada na França.

— Claro que é! — Millos me encara. — Achou que ela estava mentindo?

Dou de ombros, e Vincenzo pede licença para se retirar e voltar para a cozinha.

— Não faz sentido! O que está fazendo fritando batatas e asas de frango em um lugar como aquele se tem diploma e conhecimento de pessoas que poderiam empregá-la? — Faço sinal com a cabeça indicando o baixinho.

Millos se inclina sobre a mesa.

— O que o herdeiro mais velho de uma empresa internacional estava fazendo vendendo peixes? — Imediatamente fico sério, puto por ele estar mexendo nessa história tão antiga, porém que ainda sangra e incomoda. — Não dá para julgar a motivação de alguém sem conhecer sua história.

Antes que eu o mande ao caralho, um garçom aparece para anotar nossos pedidos, e concluímos pelo menu degustação em quatro tempos, inspirado no mar. Millos pede sua cerveja, como sempre, enquanto eu solicito ao sommelier que harmonize algum vinho com a comida pedida.

— E então... — volto a puxar o assunto das férias de Millos para não demonstrar interesse na outra mesa, mesmo que desvie meus olhos para lá a todo momento — para onde você vai ano que vem?

— Resolvi fazer uma rota aqui por perto mesmo, mas vou parando em algumas cidades para fazer turismo. — Acho interessante. — A ideia é seguir todas as rotas da Estrada Real.

— O que seria isso? — pergunto, pois já ouvi falar do assunto, mas nunca me fixei em nada sobre ele.

— São rotas comerciais criadas na época do Brasil Império. Pretendo seguir as quatro, saindo do Rio de Janeiro em direção a Minas, até Diamantina, depois voltar, passar por Ouro Preto e descer para o Sul de Minas, visitar umas cidades do interior e, por fim, chegar em Paraty, seguir pelo litoral até Santos e retornar para cá.

— Por que começar pelo Rio e não por aqui?

— Quero aproveitar um pouco o litoral norte. Isso não faz parte da Estrada Real, é por minha conta. Amanhã vou para o Rio pela Presidente Dutra e aproveito a queima de fogos em Copacabana.

— Vai ficar no Palace? — Millos confirma. — Já passei um Ano Novo lá, em...

Interrompo-me quando vejo o francês baixinho indo para dentro do salão. Olho na direção da mesa deles e vejo a Duda de pé, sozinha e de costas, contemplando a vista da cidade.

Sem falar nada com Millos, sigo até ela, munido com a vontade de provocá-la um pouco e também de sentir seu perfume.

— Me dê a boa notícia de que aceitou o emprego e vai vender o boteco para mim! — falo às suas costas, fazendo-a se virar para mim.

— Merde! — Põe a mão sobre o coração. — O que você... — Vê Millos sentado na outra ponta do mezanino. — Ah, merda! — resmunga para si mesma, voltando a olhar para a cidade lá embaixo. — Isso só pode ser alguma brincadeira do destino!

Rio e me encosto ao guarda-corpo de vidro, ao seu lado.

— Do destino? — debocho. — Não acredito nessas bobagens!

Ela me encara.

— Eu não me interesso pelo que você acredita ou não! — Aponta para minha mesa. — Sua comida começou a ser servida.

Levanto uma sobrancelha, meu olhar preso ao dela, e aquela mesma maldita tensão vibrando entre nós.

— Novamente... — olho-a intensamente — a comida não é o meu interesse no momento.

Ela segura o fôlego e desvia os olhos sem jeito ou talvez não querendo mostrar o quanto está mexida com minha presença, assim como fiquei e ainda estou com a dela. Um sorriso vitorioso se insinua em minha face. Ainda não entendo como é possível que eu sinta toda essa vontade, todo esse tesão apenas por estar perto dela. Não era para ser assim, principalmente por quem ela é e o que me impede de conseguir com sua teimosia.

Contudo, o mesmo magnetismo que me puxou até ela na primeira vez ainda continua exercendo seu poder, independentemente do que diz minha lógica.

— Então conhece o chef do Angelot? — volto a puxar assunto, resistente a me afastar.

— Sim! — sua voz soa um tanto exasperada. — Olha só, Theodoros Karamanlis, vamos encurtar o papo, ok? Não, eu não aceitei nenhum emprego e nunca — sorri malvadamente —, nunca vou vender o Hill para vocês. — Cruza os braços. — Seu primo já está comendo. Bom apetite!

Ah, Maria Eduarda Hill, você não tem ideia de com quem está lidando! Não vai se livrar de mim tão fácil assim.

— Se não é emprego... — rio — é um encontro? — minha voz sai tão debochada, tão incrédula, que ela enruga a testa por um momento antes de dar um enorme sorriso, muito teatral e falso por sinal.

— Não é da sua conta! — responde-me sem desfazer o sorriso, mas não volta a me dispensar.

— Interessante, Maria Eduarda — ouvir-me a chamando por seu nome completo apaga o sorrisinho de seu rosto, e me aproximo um pouco mais dela. — Uma cozinheira que conhece um chef do porte de Angelot, mas que prefere fritar bolinhos...

— Um homem que poderia estar degustando sua comida deliciosa — interrompe-me ironicamente —, mas que prefere ficar enchendo a paciência de uma mulher...

— ...mais deliciosa ainda! — completo sua frase e a vejo arregalar os olhos, pega de surpresa com o que eu disse.

Confesso que eu também estou. Realmente gosto de provocá-la, ver seus olhos castanhos brilharem de fúria e irritação. Gosto de saber que consigo fazê-la reagir sexualmente a mim, mesmo não querendo, da mesma forma como acontece comigo. No entanto, não tinha a intenção de deixar as coisas tão claras e nem ser tão direto quanto fui. O tesão falou mais alto, a vontade de senti-la, de tê-la é mais forte do que qualquer pensamento racional que ocupe minha mente.

Eu quero essa mulher!

Ficamos nos olhando do mesmo jeito que fizemos no restaurante naquela noite, a respiração pesada de ambos, a química forte atraindo meu corpo para o dela. Não sei como, mas, quando percebo, minha mão já está subindo pelo seu braço, contornando seu ombro, até que meus dedos roçam de leve sua bochecha.

Maria Eduarda fecha os olhos, e eu me aproximo mais, praticamente colando meu corpo ao seu, talvez o suficiente para que ela sinta como estou, como me deixa só com sua presença. Momentaneamente, esqueço onde estamos e, principalmente, quem somos. Só sinto o desejo pulsar nas pontas dos meus dedos, a sua pele queimando a minha, concentrando todo o tesão em minha virilha e fazendo com que meu pau fique pressionado nas calças de forma dolorosa.

Preciso beijá-la! É loucura, será um desastre, mas foda-se! Só preciso sentir o sabor, a textura, o calor dos seus lábios sob os meus e...

— Duda, tout est prêt, on peut commander le café ...10 — o baixinho interrompe nosso momento, e ela pula para trás, afastando-se de mim,

— Maláka11! — solto um palavrão em minha língua nativa, amaldiçoando o péssimo timer do filhote de cruz-credo francês.

O homem nos olha desconfiado a princípio, até me dirigir um olhar raivoso.

— Y a-t-il un problème?12

— Non, mon ami. C'est bien!13 — Duda responde. — Je ne veux pas de café. On peut y aller?14

— Oui! — o homenzinho responde, mas sem tirar os olhos de mim.

Vejo-a pegar a bolsa, passar por mim sem sequer um olhar e então aceitar o braço do francês. Por mais ridícula que seja minha reação, não gosto de assistir a outro homem a tocando.

— Maria Eduarda — chamo-a, e ela finalmente me olha. — Eu não desisto do que quero. — Ela suspira, e abro um sorriso. — De nada do que eu quero!


O Natal trouxe mais do que o sucesso do nosso menu de ceia para encomendas, trouxe também a oportunidade de rever um grande amigo!

Eu estava fisicamente esgotada depois de horas cozinhando sem parar, inclusive com a ajuda da tia Do Carmo e de Tessa, para pode dar conta de todas as encomendas que tivemos. Diversas famílias pediram o menu completo – desde a entrada até a sobremesa –, pelo que comemoramos muito, mesmo com a trabalheira que deu.

Demos conta e, ao final da noite, ceamos todos juntos no Hill, como a família que somos. Foi maravilhoso poder estar com quem eu amo, admiro e trabalho, pessoas que estão sempre ao meu lado não importa o que aconteça e que, a cada dia, me inspiram a continuar a lutar para não perder o bar e tudo o que conseguimos durante esses anos.

Um pouco depois da meia-noite, recebi a visita surpresa de Lara com seu marido, cunhada e sua enteada. O quarteto estava indo para a casa de um grande amigo de Cadu, Luti, pois no dia seguinte iriam para o interior almoçar com a família e não queriam deixar o outro roqueiro sozinho.

Arnaldo a bombardeou de perguntas sobre Marlon, porém, ela mal sabia informar, pois, após se formar, o antigo segurança do bar se mudou para o Rio de Janeiro. Lara relembrou os tempos de bartender e preparou drinques para todos, inclusive para nossas meninas, sem álcool, a fim de acompanharem o Cadu.

Foi uma reunião deliciosa, cheia de histórias de um ano corrido, durante o qual mal tivemos tempo de conversar, mas que não aplacou a força da nossa amizade.

No final da noite, já quase amanhecendo, dormi no quarto de minha filha, curtindo seu abraço gostoso e o frescor do ar-condicionado, satisfeita pelo sucesso do empreendimento de Natal, pela comemoração após e, claro, por poder ter minha família – mesmo tão pequena – ao meu lado.

Como já havia anunciado, não abri o bar no dia 25 de dezembro, aproveitei a ocasião dessa folga e fui passear com Tessa e tia Do Carmo. Fomos ao parque Ibirapuera e depois ao Villa-Lobos, onde minha filha se cansou de tanto andar na bicicleta que lhe demos – titia e eu – de presente.

À noitinha nos reunimos na frente da televisão, escolhemos – não sem uma boa briga – um filme na Netflix e comemos o que restou da ceia da noite anterior. Foi muito bom! Livrei-me das compras na terça-feira e ainda ganhei um tempo livre com as pessoas que amo. Não podia ter havido melhor presente de Natal para mim!

Contudo, houve um outro tão bom quanto!

Na sexta-feira, eu estava na preparação dos alimentos para mais uma noitada de final de ano no Hill quando recebemos um telefonema internacional. Sim, ligaram para o nosso telefone comercial! Fiquei nervosa, achando que pudesse ser notícia do agiota, mas então reconheci o sotaque de Thierry tentando – sem sucesso – falar em português.

Minha reação, logo após o susto, foi rir. Havia muitos anos não nos falávamos, mas seria impossível esquecer sua voz grave e máscula, que faz qualquer pessoa o imaginar como um homão de quase 2m de altura.

— Thierry, mon ami! — Estava tão surpresa e emocionada com aquela ligação que sentia a garganta apertada, mas continuei em francês: — Que enorme surpresa!

— Não seria se você tivesse deixado um telefone pessoal para contato! — respondeu em sua língua natal. — Duda, ma chérie! Estou tentando falar com você há algum tempo.

— Sinto muito, Thierry, eu mudei o número do telefone algumas vezes e acabei não o repassando aos amigos — justifiquei sem jeito. — Como vão as coisas? Tenho acompanhado o sucesso do Angelot e não estou nada surpresa! Nós sabíamos que seria um dos melhores da França! Trois étoiles, mon Dieu!15

Meu amigo riu, encantado com sua façanha.

— A tensão agora é manter! — confessou. — Mas não liguei para falar das Michelins, e sim para te fazer um convite.

— Convite?!

— Oui! Finalmente vou viajar para o Brasil! — abri um sorriso ao ouvir a novidade. — Fui convidado a assinar o jantar de uma festa no Ano Novo, em São Paulo.

— Aqui?! — Fiquei ainda mais surpresa. — Onde?

— Villazza SP! É um baile beneficente. Todo o dinheiro será doado, então abri mão do pagamento também.

— Ah, Thierry! — Fiquei muito orgulhosa e feliz por ele não ter mudado mesmo depois do sucesso. — É um gesto muito nobre.

— Sim, sim... mas tenho um problema.

— Qual? Se eu puder ajudar...

— Pode, sim! — Riu. — É por isso que fiquei tão desesperado atrás de seu contato. Minha souschef ficará responsável pela cozinha do Angelot durante minha ausência. — Fiquei surpresa por ele ser tão desprendido quanto a entregar sua cozinha para outra pessoa. Decerto confia muito na profissional que ela é. — A equipe de cozinheiros do hotel é muito boa, mas gostaria de ter você lá comigo.

— Eu?! — Tomei um susto. — Thierry, eu não entro em uma cozinha de alto nível há anos!

— Bobagem! Vamos nos encontrar assim que chegar à sua cidade.

— Quando? — Meu coração batia forte, de medo e ansiedade ao mesmo tempo.

— Depois de amanhã, estou arrumando as malas. Conhecerei a equipe na parte da manhã, então poderíamos almoçar. Você ouve minha proposta e, se aceitar, participa do treinamento à tarde.

Minhas mãos estavam frias e tensas, enquanto minha mente era povoada pelas lembranças de Paris, da euforia da cozinha, o medo de não agradar e todo o apoio de Thierry, que, na época, era chef de partie16 do restaurante onde trabalhávamos.

Ele foi meu maior incentivador e o que ficou mais abalado com minha decisão repentina de voltar ao Brasil, abandonando tudo. Era um grande amigo, mantivemos contato por um tempo depois do meu retorno, mas então papai morreu, e as coisas ficaram confusas demais.

Voltar a cozinhar, depois de tantos anos, ao lado dele não é apenas uma chance, é um privilégio!

— Onde nos encontramos? — perguntei, decidida a me dar essa oportunidade.

Agora, entrando pela primeira vez no suntuoso hotel dessa rede internacional, sinto minhas pernas tremendo como gelatina enquanto absorvo atentamente todos os detalhes da decoração. O saguão é lindo e imponente, o que me anima, pois espero que a cozinha seja um espetáculo.

Identifico-me a um dos recepcionistas, que me indica o elevador para o terraço assim que colhe meus dados, fazendo um pequeno cadastro por ser minha primeira vez no hotel.

Quando as portas do elevador se abrem, já no terraço, a primeira pessoa que vejo é Thierry. Recebo um abraço apertado e beijos na bochecha, uma saudação tão calorosa que nem parece que não nos falamos há anos. A amizade está intacta para ele também, assim como para mim.

— Você está linda! — elogia-me em francês. — Como pode todos esses anos se passarem e você ficar ainda mais bela?

Rio do exagero dele, tão característico, pois é um galanteador conhecido por suas maneiras lisonjeiras de tratar uma mulher.

— Você mudou pouco também, meu amigo!

— Infelizmente! — Ri de si mesmo. — Aumentei minha conta bancária e meu prestígio, mas continuo feio e baixinho.

— Isso nunca foi problema para você, mesmo quando não tinha dinheiro. — Ele estufa o peito, sabendo que é verdade. — As mulheres sempre ficavam deslumbradas com você.

— Minha linda, se a natureza não foi generosa te dando o rosto e o porte do Jason Statham, você tem que se aperfeiçoar com o que tem de melhor e tirar proveito disso.

Gargalho e o beijo, adorando saber que ele ainda é fã do famoso ator de filmes de ação. Seguimos de braços dados até o restaurante onde ele fez reserva, elogiando toda a estrutura existente no terraço do hotel.

Além do Vincenzo’s, há um bistrô de comida francesa no outro extremo do lugar, dando vista ao outro lado da cidade, e várias lojas de marcas internacionais, de vestuário, acessórios e joias, cabeleireiros e um SPA. No meio disso, vários jardins e locais para sentar, conversar ou mesmo aguardar enquanto alguém faz compras.

Eu nunca poderia imaginar que em cima do hotel houvesse tanta coisa!, penso deslumbrada. Já ia comentar com Thierry sobre a surpresa ao descobrir este espaço aqui, quando vejo quem nos espera na porta do restaurante.

Vincenzo Giacontti!

Desde que ele me convidou para almoçar no Villazza SP, eu já sabia que iríamos ao restaurante do Vincenzo, mas não esperava ser recebida pelo chef pessoalmente. O homem é uma estrela aqui no Brasil. Reconhecido como um dos maiores chefs de cozinha italiana do mundo, ele ainda tem um jeitão todo despojado e é muito bonito!

— Benvenuto! — cumprimenta-nos, claramente satisfeito ao ter Thierry no seu estabelecimento.

— J'avais hâte de rencontrer le célèbre chef cusinier et ami Frank! — Thierry o cumprimenta, porém, ele não diz nada.

Talvez o chef Giacontti não saiba o idioma!

— Ele estava ansioso por conhecer o famoso chef do Frank Villazza. — Sorrio. — Ao que parece, o amigo dele fez recomendações sobre você, chef.

Vincenzo me encara por alguns momentos antes de abrir um enorme sorriso que o deixa muito charmoso, ainda mais com o aparecimento de algumas ruguinhas.

— O prazer é todo meu em receber aqui um chef com o talento e prestígio de Angelot.

— Il a déclaré que c'est un plaisir de recevoir un chef cuisinier aussi talentueux et prestigieux que vous.17

— Obrigado! — Thierry arrisca o português e depois se supera: — Grazie!

Giacontti sorri, retribuindo o cumprimento e nos acompanha até um mezanino onde se tem uma impressionante vista da cidade de São Paulo, inclusive das copas das árvores do Ibirapuera ao longe.

Sentamo-nos protegidos do sol pelo ombrelone e refrescados por climatizadores, potentes ventiladores que soltam nuvens de umidade para amenizar a sensação de calor. Thierry me pergunta se quero provar o menu degustação ou se quero pedir à la carte. Prefiro pedir separadamente os pratos, apenas uma entrada e um prato principal, e ele me acompanha no pedido. Deixo-o escolher o vinho, apreciando seu bom gosto e perícia para harmonizar a bebida com todos os ingredientes dos pratos.

— Quero, antes de falar do trabalho, saber como estão as coisas — Thierry fala assim que o sommelier se afasta.

— Trabalho duro no bar do papai. — Sorrio quando ele faz careta. — Eu sei o que você pensa sobre minha decisão de voltar, mas...

— Duda, ma chérie, a questão não é o que eu penso, mas o que você fez! — Thierry continua incisivo como sempre foi. — Você simplesmente desistiu de uma carreira brilhante!

— Não sabemos disso, eu estava só começando!

— Oh, lala, como não? Eu fiquei louco com seu talento e sua técnica quando te conheci, sabia que iria longe! — Tento não pensar muito nisso, não olhar para trás, mesmo que as palavras dele calem fundo dentro de mim. — No mínimo, você seria minha souschef hoje, Duda!

— Já seria uma enorme honra!

— Bobagem! — Ele faz um gesto com a mão. — Você tem talento para ter seu próprio restaurante, ganhar três estrelas e ainda fazer pouco caso delas!

Rio com a forma como ele me vê. Sim, eu era dedicada e talentosa, mas havia muitos como eu; isso não significa que eu iria longe.

— Você sabe que eu não pude...

Ele suspira, balançando a cabeça.

— Ah, l’amour, l’amour, l’amour! — gargalho com a dramaticidade que emprega nas palavras. — O que não fazemos por amor, não é assim? — Rola os olhos. — Pure merde!

— Thierry... — Balanço a cabeça. — O que passou, passou, não posso mudar as escolhas que fiz. Quer saber mais? Faria tudo igual!

Ele bufa. Ficamos mudos enquanto um garçom serve nosso vinho e água.

— Encontrei Jean-Luc um tempo atrás em Nice — ele comenta. Levanto a sobrancelha. — Senti vontade de cortar as bolas dele e jogar para os peixes do mar! — Gargalho. — Não o fiz, claro, ia matar toda a vida marinha!

Pego sua mão.

— Eu senti demais sua falta!

— Eu também, Duda! — Thierry segura firme minha mão por cima da mesa. — Juro que não entendo o que aconteceu! Vocês pareciam tão apaixonados, tão perfeitos um para o outro, então ele simplesmente a abandonou no momento em que você mais precisava!

Bebo um gole do vinho.

— Há pessoas que não estão prontas para lidar com responsabilidades! — Dou de ombros. — Respeito a escolha dele, assim como respeitou a minha.

— Mas foi um canalha indo embora sem deixar destino e sem, ao menos, falar com você!

— Sim, ele foi covarde. Mas não precisei dele... dei um jeito.

— Abrindo mão dos seus sonhos! — exclama indignado.

— Não, Thierry, reformulando os meus sonhos.

— E como está Tessa?

Sorrio ao pensar na minha menina, meu peito se enchendo de orgulho pela criança maravilhosa que ela é. Eu faria e faço qualquer coisa pela sua felicidade, reformulo sonhos, desisto de projetos, qualquer coisa pela minha filha.

— Crescendo! — Abro o celular e lhe mostro uma foto.

— Mon Dieu! Linda como a mãe. — Encara-me emocionado. — Que os corações dos jovens dessa cidade sejam protegidos!

Gargalho, dando um tapinha em sua mão.

A entrada é servida, então começamos a discutir os detalhes do jantar de amanhã à noite. Thierry me explica a dinâmica, elogiando a equipe e o chef do restaurante do hotel. Contaremos com uma brigada de 50 cozinheiros, sendo que o chef passará a exercer a função de chef de partida, controlando a execução dos demais cozinheiros. Thierry e eu seremos os únicos fora da equipe, e, quando demonstro receio sobre a questão do ego do chef executivo do hotel, ele me acalma dizendo que já estão acostumados a auxiliar um chef convidado para bailes e outros eventos.

Fico surpresa, imaginando que o chef deva ganhar muito bem para que não se revolte contra isso, pois sei como são possessivos com suas cozinhas. Dificilmente um chef cede espaço a outro, e inclusive há muitos relatos de brigas feias entre chef e souschef exatamente por medo de perder o posto.

Acabamos nos lembrando de algumas histórias sobre nossa época no L’Amande e passamos toda a refeição, até a chegada do delicioso tiramisù, rindo das loucuras, nossas e dos outros, do tempo em que trabalhávamos como loucos dentro da cozinha de um restaurante uma estrela.

Na época, Thierry tinha acabado de ser promovido a souschef, pois ameaçou ir embora para o concorrente direto caso não preenchesse a vaga deixada por uma amiga nossa que decidiu abrir seu próprio negócio, uma padaria.

Trabalhamos quase dois anos juntos, desde meu estágio até o momento em que voltei para o Brasil, e sempre acalentamos o sonho de abrir um pequeno bistrô na Rue Saint-Honoré, oferecer alta gastronomia com preço justo e muita qualidade.

Enquanto dividimos o doce, ele me atualiza de algumas novidades sobre conhecidos em comum, sempre com seu jeito debochado e espalhafatoso, arrancando-me muitas gargalhadas.

— Preciso ir ao banheiro um minuto. — Thierry se levanta. — Não fuja com aquele chef grandão na minha ausência. — Ri. — Aposto que o homem sabe falar francês e ficou quieto só para ouvir sua voz sexy!

— Thierry! — repreendo, sem jeito.

Enquanto ele entra no restaurante, vou até o guarda-corpo para olhar a movimentação na entrada do hotel. Sinto um frio na barriga, e um arrepio cruza meu corpo, surpreendendo-me, pois nunca senti medo de altura.

— Me dê a boa notícia de que aceitou o emprego e vai vender o boteco para mim!

— Merde! — Ponho a mão sobre o coração, virando-me para ter certeza de que não estou em uma espécie de sonho acordada e que, realmente, Theodoros Karamanlis acabou de falar comigo. É mesmo ele! — O que você... — Olho para a outra mesa, buscando sua companhia e vejo Millos olhando para nós dois e parecendo muito interessado. — Ah, merda! — murmuro e dou as costas para ele, tentando acalmar as batidas do meu coração e o tremor nas minhas pernas. Estive fantasiando com esse homem durante toda a semana, e agora ele está aqui! Fecho os olhos, e o cheiro de seu perfume chega até minhas narinas, parecendo me tentar. — Isso só pode ser alguma brincadeira do destino! — lamento, e ele ri, postando-se ao meu lado.

— Do destino? — sua voz é irônica, e isso me irrita. — Não acredito nessas bobagens!

Olho para ele, as mãos segurando firme sobre a proteção de vidro, sentindo meu sangue ferver por ele estar aqui para atrapalhar um encontro tão tranquilo e gostoso com um velho amigo.

Nas minhas fantasias, Theo não é um Karamanlis, mas sim apenas aquele homem lindo de morrer, charmoso como o diabo, que eu conheci no bar de um restaurante. Ele não tem esse tom de deboche e nem me provoca com sua arrogância.

Decido ser dura com ele e deixar claro que não é bem-vindo ao meu lado.

— Eu não me interesso pelo que você acredita ou não! — respondo no momento em que vejo os garçons servindo o primeiro prato deles. Aponto para a mesa. — Sua comida começou a ser servida.

Ele não se move, nem mesmo olha para trás, encarando-me do mesmo jeito que fez no bar. Meu corpo traidor se aquece, e as imagens de todas as fantasias, de todas as maneiras que o imaginei me tocando, provocam arrepios de prazer pelo meu corpo.

— Novamente... a comida não é o meu interesse no momento.

Preciso reter o fôlego para não ofegar. Minha vagina se aperta e meus mamilos ficam duros contra o tecido do vestido. O desgraçado sabe mesmo seduzir, mesmo sendo direto como é. A autoconfiança dele é demais, faz parte de seu charme, demonstra a segurança de um homem que sabe o que precisa fazer para enlouquecer uma mulher.

A mesma sensação que tive com seu toque volta a me assolar, e tento com muito empenho não demonstrar o quanto ele mexe comigo.

— Então conhece o chef do Angelot? — pergunta como se não tivesse interesse, mas não consegue me enganar. Só não sei se o interesse é sobre o tipo de conhecimento que temos ou se espera que isso seja um almoço de negócios e que eu venda o Hill para me mudar para Paris a fim de trabalhar com Thierry.

— Sim. — Decido ser tão direta quanto ele. — Olha só, Theodoros Karamanlis, vamos encurtar o papo, ok? Não, eu não aceitei nenhum emprego e nunca — sorrio, dando-lhe um pouco do seu próprio veneno sedutor —, nunca vou vender o Hill para vocês. — Cruzo os braços e indico sua mesa com o olhar, querendo que ele me deixe em paz. — Seu primo já está comendo. Bom apetite!

— Se não é emprego... — ele continua, e tenho vontade de deixá-lo falando sozinho — é um encontro? — seu tom de deboche não me passa despercebido.

Ele acha estranho eu ter um encontro com Thierry? Abro um enorme sorriso, desejando que meu amigo estivesse por perto para poder beijá-lo e arrancar a prepotência da cara desse grego.

— Não é da sua conta!

— Interessante, Maria Eduarda — fico séria ao ouvi-lo me chamar assim, do mesmo jeito que fez quando nos conhecemos, lembrando-me de como me senti e percebendo que ele ainda exerce o mesmo poder sobre meus sentidos. — Uma cozinheira que conhece um chef do porte de Angelot, mas que prefere fritar bolinhos...

Ah, que imbecil!

Ignoro o clima sexual, a atração, o desejo e todas as merdas de fantasias que tive e que tenho com ele. Que homem soberbo! O que ele sabe sobre as escolhas que temos que fazer na vida? O que um homem que nasceu em berço de ouro sabe sobre sacrifícios e amor?

Perco a paciência e resmungo, lamentosa:

— Um homem que poderia estar degustando sua comida deliciosa, mas que prefere ficar enchendo a paciência de uma mulher...

— ...mais deliciosa ainda!

Puta que pariu!

Que voz é essa?!

Que olhar é esse?!

Vejo naquelas duas grandes safiras a verdade de suas palavras. Seu desejo, seu tesão por mim fica tão claro como o dia de hoje, evidente, impossível ignorar ou fingir que não vi. É como um reflexo do meu próprio, e fico confusa com isso. Nós nem ao menos gostamos um do outro, como é que sentimos essa atração tão poderosa assim?

Quando a ponta de seus dedos começa a deslizar pela minha pele, sinto meu corpo inteiro tremer. Tenho vontade de gemer de prazer com o toque, seus dedos deixando um rastro quente por onde passam, até chegar ao meu rosto.

O carinho é tão inesperado e tão fora do contexto de nossa conversa que me desarma. Fico aqui, passiva, apenas desfrutando das sensações, imaginando esses mesmos dedos sobre meu sexo, tocando meu clitóris, sentindo a umidade que já está presente.

Fecho os olhos e o sinto se aproximar de mim, o calor do seu corpo emanando até o meu, ultrapassando o tecido do vestido e impactando minha pele. Sinto o hálito quente de sua respiração sobre meu rosto e o pulsar de sua ereção em minha barriga.

Ah, meu Deus!

Não há mais dúvidas de que isso não é uma brincadeira. Theodoros Karamanlis me quer do mesmo jeito que eu o quero! Como é possível que duas pessoas que se detestam possam sentir tamanha luxúria? Eu quero me agarrar a ele, tocar seu pênis para sentir o calor. Quero suas mãos nos meus seios, sua boca na minha...

— Duda, tout est prêt, on peut commander le café ...

A voz de Thierry me arranca do transe sexual no qual estava. Pulo para trás, para longe do demônio que me confunde como ninguém e o escuto falar em outra língua.

— Maláka!

Pela entonação e o olhar gélido de Thierry, Theodoros soltou um palavrão bem cabeludo. Meu amigo me olha, questionador e preocupado.

— Y a-t-il un problème?

Pela reação de Theo, ele entende muito bem o francês.

— Non, mon ami. C'est bien! — respondo, querendo me afastar daqui o mais breve possível. — Je ne veux pas de café. On peut y aller?

— Oui!

Thierry não deixa de encarar Theo, e eu, temendo que um possa falar besteira para o outro, pego minha bolsa e vou até meu amigo, tomando-lhe o braço que me oferece. Saio sem me despedir do demônio, mas, claro, ele não pode ser ignorado, tem que dar a última palavra:

— Maria Eduarda. — Não consigo fingir que não ouvi, principalmente por ele ter usado meu nome inteiro. — Eu não desisto do que quero. — Suspiro, entendendo o que ele quer dizer. — De nada do que eu quero!

Thierry me puxa de leve para frente, e caminho consigo para dentro do salão, passando pelo Millos sem o cumprimentar. Tremo bastante, não de medo ou de nervosismo, mas de antecipação, de vontade, porque sei que ele não vai desistir.

Sim, Theodoros Karamanlis não quer somente tomar posse do que é meu.

Ele me quer!


Estou há meia hora esperando dentro do carro em frente ao prédio de Valentina, e nem sinal dela. Confiro as horas mais uma vez e respiro fundo, chateado por estar atrasado. Claro, a culpa não é totalmente dela, pois demorei a sair da empresa, mas mandei mensagem quando saí de casa, e ela afirmou que estava quase pronta.

Quando a porta é aberta pelo Dionísio, suspiro aliviado, vendo-a, deslumbrante, entrar no carro e se sentar ao meu lado.

— Boa noite, Theo, desculpe pelo atraso. — Sorri e se aproxima.

Seguro seu rosto e, cheio de esperança, beijo-a.

Dessa vez ela corresponde à altura do meu ímpeto, o que me impele a aprofundar a carícia, trazendo-a para mais perto de mim a fim de sentir seu corpo contra o meu. Sua pele é deliciosamente macia, cheirosa, o beijo, muito bom, e meu pau reage... porém, não o suficiente.

Separo-me dela assim que sinto o carro andar, e imediatamente Valentina pega um espelho em sua carteira, conferindo a maquiagem, sem falar nada ou mesmo trocar um olhar provocador comigo.

Porra!

Olho pela janela, as ruas passando, pensando se conseguirei viver com ela. Meu avô vai fazer 90 anos daqui pouco mais de um mês, e o tempo tem sido meu inimigo. Não posso decepcioná-lo, não quando já o fiz tantas vezes, e ele me perdoou e acolheu sem nunca me culpar ou me julgar por minhas escolhas.

Valentina é a mulher ideal, a brasileira que ele aceitaria.

Nunca pensei em me casar com uma grega, essa é a verdade. Moro há tantos anos aqui e só me relaciono com mulheres do país. A última vez em que tive uma relação com uma estrangeira, nem mesmo era grega, mas sim uma francesinha com cabelos coloridos, safada e faceira.

Um leve sorriso aparece no meu rosto ao pensar na mulher dos cabelos rosa. Ela anda um tanto sumida das minhas fantasias, talvez por agora estar interessado na dona do botequim.

Penso em Maria Eduarda e questiono se ela se agarraria a mim dentro deste carro, se se importaria com sua maquiagem ou se se entregaria ao beijo. Se teria pudores se eu a puxasse para meu colo, mesmo com Dio ao volante, ou rebolaria gostoso contra meu pau, gemendo na minha boca, enquanto eu sugasse sua língua como gostaria de fazer em sua boceta.

Interrompo os pensamentos, colocando as mãos sobre o colo, escondendo a ereção completa que os pensamentos me causaram, comparando ao estado “meia bomba” que o beijo de minha acompanhante me deixou.

Porra!

Já estou começando a chamar minhas ereções fora de hora de “efeito Duda Hill”. É pensar ou estar com a mulher que meu pênis se levanta a toda potência, pronto para servir, não importa onde seja: dentro do carro com outra mulher ao lado; no mezanino de um restaurante, tendo o observador Millos como expectador; ou mesmo no escritório, enquanto tento fazer meu trabalho, mas divago pensando no cheiro dela.

Caralho, a mulher virou uma obsessão!

O carro para na porta do Villazza SP, e uma horda de repórteres, a maioria de sites e revistas de fofoca, já nos aguarda sair. Dionísio sai ao mesmo tempo em que eu, dando a volta pela frente, enquanto eu o faço por trás do veículo, abrindo a porta do lado onde está Valentina.

Estendo minha mão para ela, auxiliando-a sair, enquanto chuvas de flashes nos alcançam.

— Odeio a imprensa — confessa baixinho.

— Somos dois! — Sorrio e a acompanho para dentro do hotel.

A suntuosa escada, réplica da existente no primeiro hotel Villazza na Itália, é o caminho que fazemos até o salão nobre, onde a decoração primorosa da minha irmã já nos saúda na recepção organizada, imitando a bilheteria antiga de um circo de luxo. Trocamos nossos convites por máscaras – a de Valentina é preta, e a minha, branca – e recebemos pulseiras com códigos de barras para que possamos entrar e sair do salão.

Valentina pede ajuda a uma das recepcionistas para fixar a pulseira em seu pulso, e eu a aguardo, conferindo no relógio o quanto estamos atrasados. O baile começou há mais de uma hora, e eu queria ter visto o discurso do Frank, ou mesmo do doutor Andreas Villazza, que neste ano sei que está aqui.

Uma mulher chama minha atenção. Ela está de costas para mim, pegando seus acessórios para entrar no salão, e seu vestido branco é todo bordado com cristais que refletem outras cores. Sua pele morena, cabelos negros presos em um coque e um corpo curvilíneo ressaltado pelo modelo do vestido me fazem pensar em uma sereia.

Ela se vira para entrar, e eu a reconheço. É uma das funcionárias da Kyra que trabalhou no evento de fim de ano da Karamanlis no ano passado. No entanto, não me recordo do nome.

Cumprimento-a com a cabeça, ela faz o mesmo e depois segue para o baile, enquanto eu ainda espero minha acompanhante.

— Pronto! — Valentina ri ao me mostrar a pulseira. — Achei que nunca ia prender. — Ri e alisa seu vestido branco. — Aquilo ali é burlar as regras, não? — Indica o vestido da sereia. — O fundo é branco, mas os cristais colorem o vestido!

— Eu gostei — respondo com sinceridade. — E, se burla as regras, o fez de forma inteligente.

Ela apenas assente, ficando muda até nossa entrada.

Puta merda, minha irmã se superou!, penso orgulhoso.

A decoração foi toda projetada de modo a dar a sensação de que estamos entrando em um circo antigo, com pesadas cortinas de veludo carmim e tecidos de brocado indo até o teto do grande salão, imitando o formato de uma tenda. Logo na entrada, dois malabares, com máscaras de bronze enormes – uma do sol e o outro da lua – nos saúdam, enquanto há trapezistas penduradas em argolas e tecidos no teto.

A luz baixa combinada com as velas em enormes castiçais e os enormes arranjos florais dão um tom especial à fantasia de se estar em um circo antigo, embora muito sofisticado. Um garçom – vestido de Pierrô, com sua tradicional tristeza de palhaço – nos oferece champanhe. Eu declino, e Valentina pega uma taça.

— Uau! — Ela parece tão deslumbrada quanto eu. — Isto aqui está incrível! Nem parece o salão nobre do hotel, e olha que já vim a muitas festas aqui!

— Eu também — confesso admirado.

— Olha o chão! — Ela aponta para algum tipo de tapete que cobriu toda a madeira do piso do salão e o transformou em um azul profundo cheio de estrelas brancas, como as antigas lonas de circo. — Quando muda a luz, elas brilham!

Fico olhando e confirmo que, em algum momento, luzes negras são acesas e as estrelas do chão parecem brilhar. Olho em volta para ver se identifico Kyra em algum canto – buscando uma bela mulher sem máscara e provavelmente vestida de preto –, mas não consigo ver muita coisa com a quantidade de pessoas transitando à nossa volta.

— Precisamos achar nossa mesa! — Valentina diz empolgada. — Sabe com quem estamos sentados?

— Provavelmente com minha família. — Dou de ombros. — Millos não veio, mas Alex e Kostas devem estar por aqui.

— Ah, vou adorar conhecê-los!

Ô, se arrependimento matasse!

Andamos entre as pessoas dançando, mesmo havendo uma pista separada só para isso, até encontramos a mesa com placa de reserva escrita com caligrafia profissional: Karamanlis.

— Eis a mesa! — Valentina comemora. — Eu amo essa música!

Escuto a canção famosa na voz do Tony Bennett e, como cavalheiro que tento ser, estendo a mão para ela, convidando-a a dançar. Ela abre um enorme sorriso, ajusta sua máscara, e seguimos os dois para a pista de dança.

Abraço-a junto a mim, seguindo o ritmo, mas sem realmente me esforçar para dançar bem, apenas guiando-a em passos simples. Sinto os dedos dela, que deveriam estar em meu ombro, aproximarem-se de meu pescoço, subindo e descendo em carícias. Franzo as sobrancelhas, sem realmente entender essa mulher.

Encaro-a e quase me assusto com o sorriso malicioso e o brilho em seus olhos.

— Eu queria um momento assim, junto com você, sem um motorista a assistir. — Aproxima-se. — Esperei por esse momento a semana toda, Theo.

Seus lábios tocam os meus devagar, olhos abertos, encarando-me sem parar. Aperto mais sua cintura, colando nossos corpos, tomando sua boca em busca finalmente da atração, do arrepio na pele e da reação do pau. Acontece, claro, tenho sangue nas veias, e ela é uma mulher linda, mas, ainda assim...

A música acaba, as luzes são todas acesas e o mestre de cerimônias aparece no palco, vestido com um smoking listrado de vermelho e branco, calças e sapatos pretos, uma bengala e uma enorme cartola preta na cabeça.

— Senhoras e senhores! — diz após os aplausos. — Respeitável público! Bem-vindos ao 10.º Baile Branco e Preto promovido pela Rede Villazza de Hotéis! Vocês já foram agraciados com a mensagem de abertura do Presidente Geral, doutor Andreas Villazza, e agora, antes de darmos início ao jantar, peço que recebam com aplausos o responsável pela Rede na América do Sul, doutor Francesco Villazza!

Frank sobe ao palco ao lado de Isabella, com aquele seu sorriso torto de sempre, adorando ser a estrela da festa. Conheço muito bem esse carcamano para saber que adora estar sob os holofotes!

— Buona notte! — saúda a todos. — É um enorme prazer tê-los aqui nesta noite especial. Como meu pai já nos abrilhantou contando a história dos primeiros Bailes Bianco e Nero nas nossas unidades italianas, não vou tomar o tempo de vocês falando de ano após ano dessa mesma tradição aqui no país. — Ele faz careta, e uma risada geral é ouvida. — Vou falar da importância desse baile! Como sabem, não o realizamos todos os anos, na verdade, é o segundo que a cidade de São Paulo recebe, pois os oito anteriores foram feitos em Curitiba. O intuito desta festa é muito maior do que apenas o entretenimento. Embora tenhamos o maior cuidado em oferecer o que existe de melhor para sua noite, essa não é a prioridade do baile. Minha avó foi uma médica incrível! Uma mulher à frente de seu tempo que, mesmo casada com um homem de família nobre, se dispôs a aplicar seus conhecimentos para ajudar o próximo, e nós continuamos seguindo seus preceitos. — Há uma chuva de aplausos quando a imagem de uma senhora muito distinta, vestida de branco, aparece no telão. — Este ano o conselho da Fundação Maria Eugenia Andretti escolheu instituições que trabalhem com crianças, seja na área de educação, esporte, lazer ou mesmo do social. — Logomarcas de três instituições aparecem.

Isabella é quem vai até o microfone com uma pasta na mão.

— A AcordSons é uma fundação familiar de músicos que levam a arte em forma de oficinas, cursos e patrocínio para músicos clássicos em comunidades onde há altos índices de violência praticada por ou contra crianças e adolescentes. — Imagens do local passam no telão. — A Brinquelândia é uma ONG que assegura o direito da criança de brincar, tão importante nos dias de hoje! Além de exercerem vigilância constante às denúncias de trabalho infantil, eles têm oficinas de artesanato, aulas de teatro e música, sempre com o foco na brincadeira e no lúdico. — Ouço umas palavras de ordem e aplausos de um grupo reunido em uma mesa à nossa esquerda. — E, por fim, a WaveAccess, criada há quase dois anos e que promove acessibilidade ao surf, provendo cursos, materiais e treinamento para crianças, jovens e adultos com necessidades especiais, sendo seu principal público o infantil.

Vejo as fotos do surfista Bernardo Novak aparecendo junto a um outro, mais velho e sem um dos braços, em uma praia lotada de crianças com as mais variadas necessidades especiais, físicas ou intelectuais.

Vejo a família Novak, cujo filho mais velho é casado com a caçula dos Villazzas, numa mesa à minha direita. Dona Cecília, Gilberto, Nicholas e Giovanna aplaudem com orgulho o garoto que, até um tempo atrás, era considerado a ovelha negra da família.

Feitas as apresentações, os anfitriões informam que há mais informações sobre cada instituição no livro do programa de leilão, onde, além de conter todas as peças do inventário a serem leiloadas, há fotos e histórias de cada uma das beneficiadas da noite.

Neste ano não doei nenhuma peça, mas pretendo adquirir algo.

— Eles disseram que toda a arrecadação do baile será destinada 100% para as três instituições, mas e o custo de montar esta estrutura? — Valentina questiona quando nos sentamos à mesa.

— Boa parte é bancada pela Rede, e o resto, por doações. — Ela arregala os olhos e sorri. — Muita gente contribuiu no país todo, pelo que Frank me contou. Já é um baile famoso!

Mal termino de falar e vejo Alex se aproximando com sua acompanhante. Ele franze as sobrancelhas ao ver Valentina, provavelmente questionando quem é a artista da vez, e eu reconheço sua melhor amiga, Samara, de braços dados com ele.

— Theo! — a moça, sempre muito simpática quando nos encontramos em eventos, cumprimenta-me. — Que bom vê-lo esta noite! — Olha para Valentina, esperando que eu as apresente.

— Samara Schneider, essa é Valentina de Sá e Campos. — Alex dá um sorriso debochado em minha direção, como se reconhecesse os sobrenomes dela. — Valentina, essa é a Samara, uma incrível designer de interiores.

— É um prazer, Valentina! — Ela vai até minha acompanhante.

Aproveito que as duas vão engatar em alguma conversa sobre conhecidos em comum e coloco minha atenção em meu irmão.

— Viu só esse trabalho da Kyra? — Aponto para tudo em volta.

— Claro! — Ri da minha pergunta. — Seria impossível não ver, já que estou aqui! — Rolo os olhos, e ele ri. — Já fui até cumprimentá-la, mas está tão ocupada que não consegui nem falar com ela direito.

— Imagino que esteja — concordo, mas ainda me sentindo muito orgulhoso, mesmo que nunca vá dizer isso a ela. — Viu o Kostas?

— Com saudade dos seus irmãos? — Senta-se e responde ao notar que não fiz caso de sua perguntinha ridícula: — Estava com uma loira gostosa lá perto do bar. O bourbon, você sabe!

Assinto, também sentindo falta do meu scotch. Como se meus pensamentos fossem ouvidos, uma linda Arlequina aparece com uma bandeja com copos, gelo e belas garrafas do meu segundo uísque preferido. É pena não ter o meu preferido!

— Caubói, por favor — solicito quando ela pergunta sobre minha bebida.

— O jantar já foi anunciado — Alex comenta. — Chegou agora?

— Sim, só consegui ouvir o discurso do Frank. Legal a fundação do seu amigo estar sendo beneficiada.

— Bê merece, o cara é um guerreiro! — Alex comenta. — Nick está muito orgulhoso do irmão.

— É, não deve ter sido fácil para ele, mas superou e ainda quis fazer a diferença. Isso é legal de se ver! — comento com ele.

Ficamos conversando um tempo como se não houvesse nenhum problema entre nós, falando sempre de trivialidades, de amigos conhecidos, trabalho e qualquer coisa que não seja nossa vida pessoal.

Ele não me pergunta sobre Valentina, e nem eu sobre Samara, mesmo porque sei que a amizade dos dois é longa, uma vez que o pai dela trabalhou para a Karamanlis durante muito tempo. Ele executou toda a parte de planejados de um dos empreendimentos na gestão do Nikkós. O homem era um design de móveis respeitado e com uma agenda apertada. Hoje, sei que ele não atende mais particulares, apenas empresas, mas teve um momento em que ter um móvel Schneider em casa era sinônimo de bom gosto e exclusividade.

— Família!

Viro-me ao ouvir a voz debochada de Kostas. O homem vem abraçado a uma loira com um vestido branco tão justo e transparente que pouca coisa de sua anatomia perfeita fica à imaginação.

— Bruninha, conheça os Karamanlis! — Ele aponta para Alex e mim. — Claro que você pode deixar seu cartão com eles depois, mas eu sou o mais bonito, não sou?

Ele segura a mulher pela cintura e a gira.

— Já bêbado? — Olho para Alex, que balança a cabeça.

— E mais uma vez com acompanhante paga! — Ele chega mais perto de mim. — Estou achando que nosso querido irmão é do outro time.

Gargalho alto, quase engasgando com meu uísque, o que chama a atenção das duas mulheres, que param de conversar e me olham.

— Perdoem-me, foi irresistível! — Bebo mais um gole. — Bom, certamente ele é arrogante e orgulhoso demais para “sair do armário”.

— Seria apenas mais um rejeitado pelo seu querido pappoús! — Alex diz antes de beber seu champanhe.

Olho para meu irmão sem saber o que dizer para aplacar essa dor que ele traz dentro de si desde criança. Quantas vezes menti a ele dizendo que Geórgios era um homem muito ocupado, mas que pensava nele. Quantas e quantas desculpas inventei ao menino para justificar o fato de nosso avô nunca o ter conhecido ou mesmo reconhecido como neto.

Alex se levanta e chama Samara para dançar. Valentina me olha, provavelmente esperando o mesmo de mim, vendo meus dois irmãos na pista com suas respectivas acompanhantes, mas finjo não entender. Não tenho vontade de dançar agora, não depois que as amargas lembranças voltaram a me atormentar.

Pego mais uma dose de uísque e respiro aliviado quando vejo o jantar começando a ser servido. Confiro o menu em cima da mesa para ver o que está no cardápio do chef Angelot e fico satisfeito com as escolhas dele.

A música muda, ficando mais suave e baixa, as luzes todas são acesas, e vejo um a um retornar à sua mesa para degustar a comida três estrelas do chef francês convidado da noite.


O jantar foi um sucesso total!

Nunca vi tamanho silêncio entre os convidados de um baile, efeito da perfeição de cores, texturas e sabores do chef Thierry Angelot. O tradicional menu em sete etapas consistiu em: aperitivo – camarões salteados com legumes envoltos em nori; entrada – mini tartar de salmão com tomate; prato principal – costelas de cordeiro com guisado de quinoa e espinafre; prato de queijos; um café especial; sobremesa – profiteroles; e, por fim, um digestivo que eu acabei por dispensar. Cada etapa foi harmonizada com um vinho diferente que eu neguei, pois não queria prejudicar o paladar do meu puro malte.

— Valeu cada centavo do convite! — ouvi uma pessoa comentar enquanto eu circulava pelo salão.

Encontrei alguns conhecidos – a maioria já não usava mais as máscaras – e fiquei um bom tempo conversando sobre negócios.

— Você veio, stronzo! — Frank me cumprimentou quando nos encontramos. — Vi seus irmãos na pista de dança, mas essa sua cara tediosa eu não vi.

— Sem ânimo para danças! — Dei de ombros. — Deve ser a idade.

Ele gargalhou, negando, pois é alguns anos mais velho que eu.

— Aposto que está andando por aqui babando no trabalho de sua irmã! — Sorri sem jeito, porque ele me conhece demais, na verdade é o único de fora da família que sabe os motivos que nos levaram a sermos tão fodidos desse jeito.

— Ela se superou! — confessei. — Kyra é melhor que todos nós, os homens Karamanlis. Começou sua empresa sem ajuda, batalhou para conseguir chegar aonde chegou. — Bebi mais um pouco. — Nós já pegamos tudo pronto.

— Nossas irmãs são desertoras, essa é a verdade! Não se abandona o negócio da família, nunca!

Ri dele, pois sei o quanto ainda o chateia sua própria irmã ter saído da Rede para montar sua própria agência de publicidade. Fiquei conversando um pouco mais com Frank, perguntando sobre as crianças – ele já tem três filhos – e sobre os negócios.

Há alguns anos nossa conversa seria sobre mulheres, uísque e negócios. Ele sempre com aquele cigarro na boca, tentando me convencer a comprar uma moto, coisa que nunca fiz e provavelmente nunca farei, pois elas não fazem minha cabeça. Prefiro carros potentes, confortáveis e cheios de segurança.

Em certo momento da noite, Kyra passou por mim, minha bela irmã com seu porte de deusa, cabelos cheios e escuros, olhos verdes e pele morena, vestida em um terninho preto básico, com um tablet na mão e um radiocomunicador na orelha.

Ela parou em seco quando me viu. Tentei sorrir e me aproximar, mas imediatamente ela se virou e saiu de perto como se eu fosse um leproso. Respirei fundo e bebi todo o conteúdo do copo.

Minutos depois, já de volta à mesa, ouvimos o aviso da contagem regressiva, e o salão explodiu em vivas e desejos de Feliz Ano Novo. Valentina se pendurou no meu pescoço e me beijou, desejando que o ano fosse especial para nós dois.

Houve música, comemoração e, por fim, o leilão começou.

Todos nos sentamos a nossas mesas, e os inscritos para os lances – já sabendo o que queriam comprar através do belo catálogo que tinha sido elaborado – receberam placas de identificação.

O leiloeiro apresentava a peça, saudava o doador, que geralmente se punha de pé para receber os aplausos de todos, e começava o jogo a partir de seu lance mínimo. Um dos momentos em que mais me diverti foi quando uma guitarra de blues – antiga e que pertencera a um dos grandes dessa área – foi disputada lance a lance por Frank e um outro homem. O negócio ficou tão acirrado que o doador, um integrante de uma banda de rock chamado Cadu, precisou mediar a situação.

Outro grande momento foi quando Nicholas Smythe-Fox doou um dos seus famosos potros PSI – Puro Sangue Inglês. Eu até dei um lance por diversão, até Alex participou da brincadeira, mas a coisa ficou feia mesmo entre Kostas e mais uns dois convidados – entre eles uma mulher. Meu irmão ficou a ver navios, e a dama levou o potro, o que, por si só, já me encheu de satisfação por ter vindo.

Acabei arrematando um final de semana em uma ilha particular em Angra dos Reis, uma doação do dono da ilha, um escritor de sobrenome Palmer. Não fazia ideia de quando poderia ir, mas briguei ferrenhamente para conseguir. Adoro o mar e podia me ver lá, na bela casa que apareceu no telão, desfrutando de paz e tranquilidade naquela linda baía de Ilha Grande.

O leilão durou mais de duas horas, mas foi muito divertido. Agora, prontos a voltar à sequência do baile, Valentina se pendura no meu braço e beija minha orelha.

— Eu adoro Angra! — sussurra. — Pensei que iria comprar alguma obra de arte. Fiquei surpresa por querer um final de semana em uma ilha particular. — Sorri. — Alguma ideia malvada?

Vagarosamente abro um sorriso, gostando da brincadeira, apreciando que ela esteja tão mais solta, sem todo aquele “protocolo” estranho de antes.

— Talvez — respondo em provocação, e ela faz um biquinho sexy.

A banda se posiciona para voltar a tocar, mas, antes da primeira nota, Frank aparece no palco.

— Atenção, por favor. — Uma luz se acende sobre ele. — Antes de voltarmos a dançar e a nos divertir, não posso deixar de cumprimentar publicamente o responsável pelo espetacular jantar desta noite, que, além de ter nos proporcionado a honra de provarmos sua comida, ainda doou seu cachê! Chef cuisinier Thierry Angelot, applaudissements, s'il vous plaît!

— C'est moi qui vous remercie de pouvoir participer — responde e olha para trás, chamando alguém para junto dele. Continua falando em francês: — Quero agradecer à maravilhosa equipe do chef Emílio, responsável pela cozinha do hotel, e à minha querida amiga. — Quase engasgo ao reconhecer a mulher ao lado dele. — Chef Maria Eduarda Hill, que foi minha souschef e ajudou a pensar e elaborar cada prato que experimentaram hoje.

Fico um tempo olhando para ela, ainda sem poder acreditar que estava aqui, neste baile, o tempo todo. Era óbvio! O almoço de ontem era por esse motivo, ela o estava ajudando na cozinha!

Maria Eduarda traduz tudo o que o chef falou para o português, e seu sorriso, mesmo de cima do palco, acerta-me em cheio, fazendo meu corpo estremecer, reavivando aquele momento que passamos ontem, antes de sermos interrompidos pelo chef.

Valentina fala algo em meu ouvido, mas não consigo prestar atenção, não consigo desviar os olhos da mulher sobre o palco, que ri e conversa em francês e em português com o chef e com o Frank.

Olho para Valentina, tentando entender o que porra está acontecendo comigo! Ela é perfeita em todos os sentidos, linda, jovem, bem-educada, de família tradicional, além de ser gostosa e sedutora quando quer. No entanto, não senti nem metade com ela grudada ao meu corpo, com a boca na minha, do que sinto agora, apenas ao olhar Duda Hill.

— Vamos? — ela pergunta.

— Para onde? — questiono, pois não ouvi nada do que ela esteve falando.

— Para meu apartamento. — Desliza as mãos pela lapela do meu smoking. — Estou cansada e querendo ficar um pouco a sós com você.

Novamente olho de soslaio para o palco, mas Duda e o chef já não estão mais por lá. A banda volta a tocar, e eu respiro fundo.

Preciso investir em Valentina, pois ela é mais do que somente uma trepada gostosa, pode ser a mulher com quem eu vá me casar e ter um filho. Duda e eu, apesar da atração, nunca passaríamos de uma aventura, e isso, sinceramente, eu já tive demais.

— Vamos!

Ela sorri com minha resposta e se despede de Samara.

Seguimos para fora do Villazza SP, porém, antes de chegarmos ao saguão, puxo-a para meus braços e a beijo, querendo sentir aquele mesmo tesão que senti há pouco apenas com a visão da cozinheira no palco.

A sua resposta é tão animada que acende um pouco meu desejo, mas ela logo se afasta de mim, puxando-me pela mão como se eu fosse um cachorrinho em seu encalço.

Ligo para o Dionísio, e, em menos de cinco minutos, o carro para na calçada do hotel. Seguimos para o endereço do apartamento de Valentina, com ela, talvez por causa da bebida, já quase em cima de mim, lambendo meu pescoço, falando coisas sujas em meu ouvido, e eu...

Bem, detesto esse clichê, mas devo admitir que isso nunca me aconteceu antes!

Não consigo tirar a porra da Duda Hill da cabeça, pensando que ela ainda está no hotel, sentindo o cheiro de seu perfume, o calor da sua pele, louco por descobrir de uma vez como é o sabor de sua boca.

— Theo? — Valentina me chama, e noto que já chegamos. — Tudo bem? Você parece um tanto desligado...

Fecho os olhos e respiro fundo.

— Acho que bebi demais. — Ela fica séria. — Estou com uma leve indisposição, então acho melhor deixarmos para nos ver outro dia.

— Tudo bem. — Dá de ombros, visivelmente frustrada. — Tem certeza?

Merda, Theo, o que você está fazendo?!

— Tenho, sim. Boa noite, Valentina! — Beijo sua testa.

Sua testa!

Ela não esconde a decepção e, sem nem mesmo esperar que Dionísio abra a porta do carro, sai, batendo-a ao fechá-la. Espero-a entrar na portaria e deito minha cabeça para trás, no encosto do carro.

— Tudo bem, chefe? — Dionísio pergunta preocupado. — Direto para casa?

Fico mudo, em guerra comigo mesmo, sabendo o que eu deveria ter feito, mas indo na direção contrária. Totalmente irracional!

— Volte para o Villazza o mais rápido que conseguir.


Estar de volta a uma cozinha profissional do nível da do hotel Villazza SP é, ao mesmo tempo, emocionante e horripilante. Estou longe desse mundo há tantos anos que tenho medo de ter desaprendido como tudo funciona, ter perdido o ritmo, sabendo da correria que é, ainda mais em um evento desse porte.

Chegamos cedo à cozinha, dividimos as tarefas por equipe de acordo com o menu que Thierry e eu fechamos ontem, depois do nosso almoço no Vincenzo’s.

Um tremor percorre meu corpo ao pensar que Theodoros Karamanlis provavelmente estará presente nesse baile, acompanhado de uma bela mulher, enquanto come o que preparei com tanto afinco. Se pudesse, iria colocar algum tipo de purgante em seu prato e...

Balanço a cabeça a fim de afastar esse pensamento ridículo. O homem mexe comigo, descompassa meu coração, aquece meu corpo, mas isso não é motivo para que eu me sinta tão vingativa por ele se divertir com outra.

Não, claro que não! Que ideia mais absurda!, penso, selando os cortes de carnes que serão mantidos em banho-maria, cozinhados em temperatura baixíssima, até o momento de serem colocados na grelha e empratados.

O que me move a ter pensamentos tão duros com relação ao CEO da Karamanlis certamente é sua insistência em querer tirar o que é meu, não qualquer outro motivo! Pouco me importa com quem ele sai e se diverte. Não temos e nunca teremos nada um com o outro!

Mentirosa!, acusa-me a consciência, mas não lhe dou ouvidos.

Thierry conta comigo para apresentar o menu mais sofisticado que a sociedade paulistana já provou em um baile, e, mesmo com um trabalho gigante pela frente, não vou ter meu foco desviado por nada, nem mesmo por Theodoros Karamanlis, seu olhar sedutor e toque irresistível.

— Tudo certo? — Thierry pergunta-me. — Preciso te ter atenta para traduzir tudo o que eu digo aos demais.

— Oui, chef! — Pisco para ele, enquanto prova o marinado que fiz para o cordeiro. — C’est bon?

— Parfait!

Não será fácil cuidar dos molhos e ajudá-lo a coordenar a brigada, mas é para isso que estou aqui. Vou até o pâtissier18 e o encontro com seus cozinheiros já bem adiantados na preparação da sobremesa. Mesmo antes do começo da correria louca que será essa cozinha durante o baile, já há a agitação crescente da preparação dos alimentos.

Cada uma das sete etapas precisará ter todos os pratos prontos, com intervalos mínimos entre uma e outra. Olho para o mapa do salão todo preenchido com o número de ocupantes de cada mesa e mais uma vez me pego pensando em onde Theo estará.

Respiro fundo, rememorando a ordem que chef Angelot e eu programamos para que os garçons possam servir. Luan, um dos boqueteiros19, foi instruído a organizar toda a distribuição dos pratos de acordo com os que liberarmos na boqueta.

— Olá! — uma mulher morena, com olhos de um tom de verde que só vi uma vez na vida, cumprimenta-me. — Você é a chef Hill?

— Sim! Em que posso ajudá-la?

— Sou Kyra Karamanlis, da ???p?20 Produções e Eventos. — Ela estende a mão, e eu, depois de passado o choque causado por seu sobrenome, saúdo-a. — Eu estive há pouco tempo com o chef Angelot, e ele me pediu para procurá-la. — Ela chama duas mulheres. — Essas são Marília e Andréia, trabalham comigo e irão permanecer na cozinha a fim de fazer uma ponte com minha equipe, por causa do cronograma.

— Ah, sim, ficamos sabendo disso ontem. — Sorrio. — Fiquem à vontade!

— Obrigada! — Elas sorriem e me cumprimentam também.

Vejo a Karamanlis conversar com suas funcionárias e, em seguida, sair da cozinha falando sem parar em seu radiocomunicador.

— Foi ela quem organizou tudo isso? — inquiro a uma delas – não sei se Marília ou Andréia –, apontando em direção ao salão.

Passei por lá há pouco tempo, e o que vi me impressionou muito. A suntuosidade, luxo e, principalmente, a riqueza nos detalhes fez com que eu tivesse a sensação de realmente estar entrando em um espetáculo como uma vez assisti no Cirque Du Soleil.

— Sim, foi Kyra quem fez todo o projeto de decoração. — Sorri. — Ficou impressionante, não?

— Sim, lindíssimo! — Olho para a minha bancada, ciente de que tenho que continuar o trabalho, porém, deixo a curiosidade falar mais forte. — O sobrenome dela, Karamanlis, tem ligação com a empresa imobiliária?

É a outra mulher quem me responde:

— Sim, ela é a caçula da família e não trabalha com eles, é independente.

Irmã ou prima do Theo?, tenho vontade de perguntar, mas não o faço, voltando para minha estação de serviço, adiantando o molho da entrada, deixando de lado qualquer pensamento ou curiosidade acerca dos Karamanlis.

 

 

— Gostaríamos de agradecer o empenho de cada um de vocês — traduzo as palavras de Thierry. — A forma como trabalharam, a perfeição e o cuidado com cada prato, cada elemento, foram dignos da melhor cozinha de um restaurante três estrelas. Agradeço ao Chef Emílio pelo prazer de compartilhar de sua cozinha e a oportunidade de conhecer o trabalho de cada um aqui nesta noite!

Thierry ergue sua taça de champanhe, e todos o seguimos, brindando pelo fim do trabalho executado sem nenhum percalço, seguindo corretamente o cronograma da organização e o do nosso menu.

Estou um bagaço, confesso, mas nunca me senti tão viva desde que deixei o L’Amande em Paris há sete anos. Cozinhar no Hill é uma delícia, meus companheiros de trabalho são únicos, divertidos e amigos de verdade. Contudo, trabalhar de novo em uma cozinha de alta gastronomia relembrou o motivo pelo qual eu estudei e me esforcei tanto.

Aquela agitação, os pratos sofisticados, os ingredientes de qualidade e a apresentação artística de cada prato reacenderam a chama dentro de mim. Amo cozinhar, mas há anos o venho fazendo apenas como um meio de ganhar meu pão de cada dia. Há anos não arrisco, não deixo a criatividade tomar conta de mim e o simples ofício de juntar ingredientes se tornar a arte de harmonizar sabores.

Ficamos horas cozinhando hoje, preparando prato por prato, etapa por etapa. A verdade é que nunca vi uma boqueta tão movimentada quanto a desta noite. Liberamos mais de 1200 pratos – desde o aperitivo até os queijos –, mais de 300 sobremesas, além do café e do licor.

Relaxamos depois, todos reunidos para cear o Ano Novo – ideia de Thierry – enquanto começava o leilão tão aguardado da noite.

Eu estava limpando minha estação quando Kyra Karamanlis entrou na cozinha mais uma vez e foi diretamente falar com Angelot. Segundo ela, Frank queria agradecer pelo jantar e por ele ter doado o cachê em prol das intuições beneficentes da noite.

Vi-o tirando o avental e vindo em minha direção.

— Duda, ma petite, j'ai besoin de toi pour m'accompagner.21

Foi assim que, com a dolma manchada, turbante cheio de pimentinhas desenhadas, fui parar em cima do palco, no meio da granfinada de São Paulo, mas com a preocupação de ser vista por apenas uma pessoa.

De onde eu estava, não era possível identificar ninguém, pois o salão estava escuro e boa parte dos convidados ainda estava usando as máscaras. No entanto, ainda sem poder vê-lo, sentia seu olhar sobre mim. Minha pele estava arrepiada, e eu sentia pequenos calafrios em minha coluna.

Em algum lugar daquela multidão, estava o homem que eu devia querer o mais longe possível de mim, mas que não deixava meus pensamentos nem por um minuto.

Traduzi o que Thierry falou, agradeci, em meu nome, a oportunidade diretamente para o CEO da rede Villazza – que por sinal não me era estranho; provavelmente já estampou muitas revistas da tia Do Carmo – e voltei para a cozinha a fim de terminar a limpeza e ir para casa.

— Duda! — Emílio, o chef executivo do restaurante do hotel, me chama, e paro de pensar na noite. — Você foi incrível esta noite! Thierry me disse que você mora aqui na cidade. — Assinto, e ele estende um cartão para que eu o pegue. — Tenho uma vaga para você em minha equipe se não estiver à frente de nenhuma cozinha.

Nem preciso dizer que meu coração disparou de felicidade. Olho em volta, adorando cada utensílio, cada estação organizada, pensando em como deve ser incrível trabalhar com ele aqui. Aceito o cartão.

— Eu agradeço, chef, mas no momento tenho meu próprio negócio.

— Ah, é mesmo? Onde? Eu adoraria experimentar um pouco de sua comida.

Sorrio.

— Hill Wings Pub. — Ele não disfarça sua surpresa. — Eu tenho um boteco na Vila Madalena.

— Um pub? Que inusitado!

Rio, achando engraçado que ele tenha ficado tão sem jeito.

— É de família, assumi quando meu pai faleceu. — Dou de ombros. — Não é alta gastronomia, mas me divirto cozinhando.

— Mas seu talento... — Ele respira fundo. — Enfim, você sabe o que é melhor. Se quiser voltar para uma cozinha francesa, tem lugar aqui comigo.

— Seria uma honra, chef — digo com sinceridade. — Obrigada.

Mal terminamos de falar, e uma agitação na entrada da cozinha chama nossa atenção.

— Ah, meu chefe! — ele comenta rindo. — Não fazia ideia de que viria aqui nos cumprimentar.

Frank Villazza vem caminhando até onde estamos, charmoso, com seu sorriso de lado e um porte de modelo, porém, não consigo ficar mais do que alguns segundos o observando. Meus olhos são atraídos para o homem ao seu lado, lindo, em um smoking de corte perfeito, com expressão séria e frios olhos azuis fixos nos meus.

Frank Villazza fala algo sobre vir nos cumprimentar pessoalmente. Vejo Emílio ir até ele, mas não consigo ouvir nada do que diz. O magnetismo de Theodoros Karamanlis me prende, simplesmente não posso parar de olhá-lo e, ao que parece, nem ele a mim.

No meio do discurso do Frank, Theo caminha em minha direção, porém, antes que me alcance, Thierry me chama e pergunta como irei para casa.

— Uber — informo, virando-me de costas para o irresistível grego. — Já ia chamar antes da entrada triunfal de Francesco Villazza.

— Ele já acabou! — Aponta, e eu olho para trás, vendo-o se despedir de Emílio. — Quer que eu a leve?

— Não precisa, Thierry. — Beijo sua bochecha. — Muito obrigada pela noite de hoje.

— Nos veremos amanhã no seu bar.

Sorrio, empolgada.

— Te espero lá!

Despeço-me de todos, pegando minha pequena mala contendo o uniforme, facas e turbantes – sempre levo mais de um por precaução – e saio do restaurante em direção à saída de funcionários do hotel.

Espero chegar à calçada e abro o app para pedir um carro, mas, antes que eu confirme a viagem, um Mercedes preto para bem na minha frente, e o vidro da porta traseira é aberto.

— Aceita uma carona?

Prendo a respiração, seguro forte o aparelho celular para não o derrubar no chão de tanto que estou trêmula e encaro Theodoros Karamanlis.

— Não — recuso. — Posso me virar sozinha. — Chacoalho o telefone para que veja que estou chamando o Uber.

— Não perguntei se sabia se virar sozinha, Maria Eduarda. — Dá um leve sorriso. — Sei que consegue, mas quero levá-la. Aceita?

Merde! Ele não facilita para mim falando desse jeito e com esse sorriso.

— Eu acho melhor não...

— Ei, é um pedido de trégua! — Agora abre o sorriso de forma que seus olhos se iluminam. — Está tarde para andar sozinha com um desconhecido.

Franzo as sobrancelhas.

— Você é um desconhecido.

Theodoros gargalha.

— Não, Duda, eu não sou. — Ele abre a porta do carro. — Entra, prometo que te deixo em casa inteira. — Dá um sorriso safado. — Prometo não morder... a não ser que me peça.

Um arrepio percorre minha coluna. Olho para o telefone em minha mão, com o pedido de confirmação da viagem para o motorista mais próximo vir me buscar, e para o homem me esperando, de porta aberta, sorriso malicioso e a mesma promessa de prazer que senti desde que nos encontramos pela primeira vez.

O que eu faço?


CONTINUA

Resisti a esbravejar de volta e respirei fundo, clamando por paciência. Eu nunca quis que fosse assim, porra! Se quisesse a merda de um casamento arranjado, tinha posto um anúncio no Estadão ou na Folha! A ideia era conhecer alguém que despertasse meu interesse e ver se essa pessoa continha os requisitos do pappoús, não o contrário!

Bom, a porra do encontro já estava agendada e confirmada, então não me restou outra saída a não ser ir até a moça.

Não serei hipócrita ao não reconhecer o quanto Valentina estava linda. Um vestido preto, fino, de tecido parecendo seda, colava-se ao seu corpo de tal maneira que eu tive certeza de que não usava calcinha. O modelo era na altura dos joelhos, sem muito decote, porém o suficiente para mostrar seus atributos a um bom observador. Os cabelos claros estavam soltos, penteados para trás, caindo sobre suas costas delgadas.

Ela entrou no carro e se sentou ao meu lado no banco traseiro enquanto Dionísio fechava a porta.

— Boa noite, Theodoros! — cumprimentou-me de forma educada e sutil, seus olhos azuis destacados por uma maquiagem bem feita. — Espero não o ter feito esperar muito.

— Boa noite! — Sorri. — Valeu a pena cada minuto. — Beijei sua mão. — Você está deslumbrante!

Ela apertou sua mão sobre a minha, e eu a puxei para um beijo.

Nada!

Encho o copo de uísque novamente, pensando em como pode uma mulher linda daquelas, com um corpo perfeito, um rosto e sorriso incríveis, isso sem contar em todos os outros atributos intelectuais, que ela tem bastante também, não conseguir sequer uma reação mínima do meu corpo?

Como é possível?!

Volto a pensar em como ela mesma reagiu, com um sorriso polido como se aquilo não passasse de um protocolo. Gelo tomou conta de todas as minhas veias e se concentrou diretamente no meu pau.

Pedi ao Dionísio que fosse até o endereço da galeria, fiquei a noite inteira com ela pendurada em meu braço enquanto comentava – com enorme conhecimento da área – sobre cada gravura ali exposta. Relaxei com a presença dela, com a afinidade que tínhamos com as artes e também com seu humor perspicaz e agradável.

Sem dúvidas, Valentina é uma ótima companhia, por isso mesmo a convidei para ir comigo ao baile de Ano Novo dos Villazzas.

No final da noite, voltei a tentar uma aproximação, e ela a recebeu com a mesma resignação de antes, porém, sem nenhuma paixão, assim como eu. Porra, ela era perfeita, mas onde estava a química entre nós? Onde estava o arrepio na pele ao meu toque? A reação do meu corpo a um simples sorriso dela?

Não tinha nada ali! Nenhuma chama, nem mesmo uma faísca.

Rio, voltando a tocar o piano, afastando a frustração que senti há algumas horas. A mulher certa com a reação errada, enquanto tive todas as reações certas com a última mulher com quem deveria ter tido!

O nome dela, dessa mulher tão exasperante que consegue criar uma revolução nos meus hormônios sexuais, flutua em minha cabeça como se fosse música: Maria Eduarda Hill.

Ao mesmo tempo em que decido tocar algo para cessar o mantra nominal, faço uma autoprovocação escolhendo uma música romântica e divertida na versão do ícone Frank Sinatra:

— My funny valentine! Sweet, comic valentine! You make me smile with my heart. Your looks are laughable, unphotographable, yet you're my favorite work of art. 4

É, penso quando paro de cantar e fico somente tocando, a noite vai ser longa. Ainda bem que tenho garrafas de uísque e repertórios musicais suficientes!

 

 

O som está uma merda, a bebida, quente, e a decoração, cafona demais! Procuro Rômulo no meio dos funcionários da Karamanlis, todos reunidos no refeitório para o almoço de final de ano em plena véspera de Natal.

Neste ano resolvemos não mais fazer duas festas separadas – para os funcionários e para os cargos acima de gerência da Karamanlis – e reunimos todos aqui mesmo no prédio da empresa. Abrimos apenas as portas do refeitório, que dão em uma espécie de terraço, onde o bufê colocou um toldo e umas cadeiras.

Não foi minha irmã caçula quem organizou a festa, infelizmente, senão não estava essa cafonice estranha.

Avisto Rômulo e faço sinal para que venha até mim, e ele o faz imediatamente, parando de conversar com alguns funcionários da TI – eu sei porque a maioria com cara de nerd aqui da empresa trabalha lá – e vem aos tropeços, “catando cavaco”, como diria Aluísio Azevedo5 se ainda estivesse entre nós, até se postar ao meu lado.

— Sim, doutor?

Tento conter uma risada e apenas balanço a cabeça, esperando que ele resgate o ar que perdeu no percurso para que eu lhe pergunte de quem foi a idiota ideia de contratar esse péssimo serviço!

— Rômulo, sobre a empresa que está organizando essa confraternização. — Ele arruma os óculos. — Nós pagamos por isso? — Aponto o dedo para todas as coisas penduradas na parede, inclusive os balões infláveis com os números formando 2019 em dourado.

— Claro que sim! — Sorri. — Não posso precisar o valor, porque isso é com o pessoal do doutor Millos, mas tenho certeza de que uma empresa como a Karamanlis não dá calote em ninguém.

Enche o peito de orgulho, o que me faz revirar os olhos, e abre um enorme sorriso.

— Volte lá a se divertir com o pessoal da TI! — Abano a mão na direção dos rapazes com óculos ao estilo Harry Potter.

Meu assistente insiste em me ajudar com algo mais, mesmo eu já o tendo dispensado, e somente quando o olho é que parece conceber a mensagem. Volta do mesmo modo que veio, mas dessa vez já não acho graça de seu jeito espalhafatoso de andar apressado.

Ando entre as pessoas, cumprimentando alguns que já conheço e atraindo a atenção dos demais, em busca de Millos. Está tudo tão mal organizado que não consigo ver entre uma mesa e outra por causa dos malditos balões dourados.

— Ei, irmãozinho! — Alex me para. — Aproveitando a festa?

Ele parece animado com um copo de cerveja na mão.

— Espero que não tenha vindo de moto! — repreendo-o.

— Preocupado com minha integridade física, oh, poderoso Theo!? — Ri, já visivelmente bêbado. — Vê só como seu nome já lembra a divindade que você é! Théos6!

Millos chega por trás dele, capturando meu olhar entediado, e o abraça pelos ombros.

— Alex, que festança, não? — comenta. — Eu nunca vi nosso pessoal tão à vontade e tão satisfeito com uma festa de final de ano!

— Você só pode estar brincando! — indigno-me ao ouvir isso. — Essa confraternização não chega aos pés da do ano passado!

Alex gargalha.

— Na do ano passado, o pessoal quase dormiu nas cadeiras com aquele sonzinho de jazz que foi colocado para agradar a um certo CEO! — Ele fica sério. — Você não conhece seus funcionários, não sabe do que eles gostam e...

— Chega, Alex! — Millos o chama sério.

— Foi ele quem organizou isso aqui? — pergunto ao Millos, apontando para a fuça do meu irmão caçula.

— Foi! — o petulante me enfrenta. — Olhe além do seu mundinho privilegiado, Théos! — Abre os braços, esbarrando em Millos, para demonstrar seu ponto. — A festa está no fim, todos foram dispensados a ir mais cedo para casa, mas... — cruza os braços — você está vendo alguém ir?

Sou obrigado a concordar com ele. Ninguém ficou na festa, no ano passado, depois da distribuição dos prêmios, e, neste ano, mesmo depois de termos feito os sorteios, todos continuam aqui, comendo, bebendo e – arregalo os olhos ao ver Rômulo e seus amigos se agitando – dançando!

Sim, a festa não está do meu gosto, mas, afinal, não foi feita para mim. Millos sorri, olhando para Alex, quando percebe que notei o sucesso que está sendo o evento. Foi meu irmão! O moleque realmente entende os funcionários como nenhum outro Karamanlis no poder o fez!

Sinto uma pontinha de orgulho, mas logo a deixo de lado, abandonada na escuridão de uma parte de mim que contém todos os sentimentos acerca de minha família.

— Bom trabalho! — elogio-o, e o garoto fica sério. — O pessoal parece realmente estar gostando!

— Vá se...

— Nós agradecemos! — Millos o interrompe no exato momento em que iria me mandar ter prazer comigo mesmo. — Foi um trabalho em equipe! Somos um só time dentro desta empresa.

Millos mal termina de falar e arrasta Alex para longe de mim, falando algo durante o trajeto.

Lembro-me de Alex ainda garoto, sobre meus ombros na piscina do condomínio onde moravam. Ele me seguia por toda parte, até mesmo quando eu não o queria por perto. Seus olhos brilhavam a cada coisa que eu fazia ou falava, eu era seu herói.

Ele estava muito errado!


A véspera de Natal foi uma tortura solitária!

Millos se enfiou em algum lugar para fazer sabe-se lá o quê e eu fiquei sozinho na cobertura, ouvindo meus discos, comendo uma ceia encomendada anteriormente por Vanda e vendo as sacadas dos outros apartamentos com pessoas comemorando, luzes piscando, músicas de Natal.

Nunca tivemos isso!

Millos e eu fomos criados com pappoús, e nossa família nunca comemorou o Natal por não achar a data importante, apenas uns dias a menos para se fazer dinheiro. Nossa giagiá7era quem ainda queria manter a tradição da festa do nascimento do Menino Jesus, porém, a tivemos tão pouco antes de sua morte que quase nem me lembro mais dos ritos e da comemoração.

Quanto aos outros, mal sei! Kostas foi criado com a família de sua mãe, na Inglaterra, até a adolescência, então provavelmente é católico ou anglicano, e as duas religiões comemoram a data. Quanto a Alex e Kyra, os dois tiveram Natais completos, pois eu ainda me lembro da árvore montada na sala principal do apartamento, pelo menos estava lá na última vez em que estive no imóvel; depois, não tenho notícia.

Não era de se esperar que, numa família tão complicada como a nossa, houvesse comemorações natalinas – ou quaisquer outras que envolvam união e fraternidade. Somos solitários como se fôssemos filhos únicos, e eu, infelizmente, divido essa culpa com Nikkós.

Recebi convites para cear com alguns amigos, inclusive Valentina me pediu para acompanhá-la na comemoração de sua família, porém, não quis. Natal não é uma época fácil para mim, e eu não queria que as outras pessoas se dessem conta disso e questionassem os motivos. Era melhor ficar sozinho mesmo!

O som triste e a voz melodiosa de Nat King Cole cantando Please take me back to toyland8 me fizeram rir ironicamente, pois eu nem sabia que tinha essa música naquele disco, afinal, era uma canção de Natal! Fui até o toca-discos e mudei a faixa, mas pouco ajudou, pois começou Unforgettable9.

Suspirei resignado e deixei a música tocar, sentando-me no sofá e deitando minha cabeça sobre o encosto, seguindo a música com os lábios, mas sem cantar.

Foi realmente a chamada “noite da fossa”, eu ali, sozinho, ouvindo canções que tocam fundo em qualquer pessoa, tomando meu uísque, enquanto o peru esfriava intacto sobre a mesa de jantar.

No dia seguinte, todo meu ar de frieza e invulnerabilidade já estava de volta, segui para a empresa – sim, em pleno feriado! – e adiantei muito os relatórios do final do ano para o conselho. Li todos os e-mails que Rômulo já havia classificado como importantes, respondi alguns, fiz anotações para pesquisar respostas para os outros. Fiquei um bom tempo olhando a Paulista, vazia como uma rua fantasma, e rindo de mim mesmo por estar ali perdendo tempo.

Recebi mais convites naquela noite, agora para noitadas pós-Natal, mas ainda não estava no clima. Exercitei-me sozinho na academia do apartamento, saindo de lá exausto, fiquei um tempo na sauna depois e, quase à 1h da manhã, estava nadando.

Dormi feito uma pedra!

Hoje acordei com uma ligação de Vanda, avisando que estaria de volta na primeira semana de janeiro, o que já animou minha manhã. Segui meu ritual para me preparar para o trabalho, troquei mensagens com algumas mulheres com quem já havia saído, inclusive com Valentina e, agora, já no carro, recebo uma ligação da Viviane.

— Como foi seu Natal? — pergunta.

— Não comemoro! Você sabe que acho besteira. — Ri. — E você?

— Muito bom e em ótima companhia! — Suspira. — Ah, encontrei Valentina ontem na festa da Alicinha. Ela me falou bastante de você.

Ergo a sobrancelha.

— É mesmo? Coisas boas ou ruins?

— Boas, claro! Por que ela diria coisas ruins a seu respeito?!

— Não sei, ela parecia tensa, distante... — Ouço Viviane respirar fundo. — Não sei, Vivi. Ela tem tudo o que meu avô aprovaria, mas...

— Vocês só saíram uma vez! Dê tempo ao tempo!

— Pode ser... — encerro o assunto, pois não estou certo de investir em uma relação com Valentina. — Vamos falar de negócios! Vi seu e-mail ontem com a repercussão do escultor! Meus parabéns!

— Ah, Theo, você sabe que eu nunca me engano com as artes! — Ri. — Quem dera fosse assim com as pessoas!

Respiro fundo, concordando, embora me ache um bom julgador de caráter. Terei pela frente poucos dias para finalizar todas as pendências e organizar planos de ação para o próximo ano. O conselho irá se reunir na sexta-feira, e, sempre depois dessa reunião de prestação de contas, acabo acumulando algum trabalho para fazer até a véspera de Ano Novo.

— Ela me disse que você a convidou para o Baile Branco e Preto dos Villazzas — Viviane volta a falar.

— Quem? — indago confuso.

— Valentina, Theo! — Ri. — Não me diga que convidou mais alguém!

Faço careta ao me lembrar do convite, levemente arrependido de tê-lo feito, pois poderia muito bem ir sozinho e conhecer alguém que despertasse mais tesão em mim do que a amiga de Viviane.

“Dê tempo ao tempo...” foi o que ela acabou de me falar. No entanto, acho que, em relação ao desejo, ou ele acontece ou simplesmente não existe. Tesão não é igual amizade, que se constrói com o tempo, ele é imediato! É certo que pode estar camuflado em algum outro tipo de sentimento, como a exasperação, a implicância, arrogância, mas está lá, ainda que negado.

— Não, não convidei mais ninguém, Vivi. — Respiro fundo. — Mas acho que fui apressado no convite. Valentina é perfeita, mas um tanto fria, e isso...

— Talvez ela só esteja tímida — justifica a amiga, e vejo lógica nisso. Devem ser tão estranhos e desconfortáveis para ela quanto são para mim, esses encontros arranjados. É antinatural demais, como se estivéssemos sendo empurrados um para o outro.

— Sim, é normal que ela esteja sem jeito, por isso não queria fazer dessa forma — friso mais uma vez meu incômodo com essa situação. — De qualquer maneira, já fiz o convite e seria uma babaquice sem tamanho retirá-lo.

— É um baile e tanto! Imagino que você tenha se dado folga na véspera do Ano Novo. — Faço careta ao pensar em mais um dia de trabalho perdido. — Soube que sua irmã é quem está organizando.

— Sim, é ela — sou curto ao confirmar, sem entrar em detalhe algum, mesmo porque eu nada sei sobre a Kyra. — Vivi, preciso desligar, estou chegando ao prédio e tenho uma apresentação para fazer depois de amanhã...

— Está certo! — Ri, sabendo que a estou dispensando. — Se não o vir mais, espero que tenha um feliz Ano Novo.

— Para você também!

Desligo o telefone e abro o app de agenda que uso para os meus compromissos, marcando o domingo como um dia de trabalho.

Minutos depois, já no elevador, recebo mensagem do Rômulo perguntando sobre essa anotação.

 

 

Cumprimento uns funcionários que entram no elevador, pronto para guardar o celular no bolso, quando ele treme em minha mão. Rômulo, em vez de esperar que eu chegue à sala, manda-me uma mensagem:

 

 

Gargalho no elevador, chamando a atenção das pessoas dentro dele. Sinceramente, não sei se Rômulo é puxa-saco demais ou se é só maluco!

 

 

— Ah, você está aí! — Millos me assusta entrando na sala de supetão, ainda mais por hoje ser domingo. Eu e Rômulo trabalhamos todo este fim de semana.

— Onde mais estaria, já que parte de amanhã e o feriado serão perdidos? — Aponto para a porta. — Usa-se bater antes de invadir.

Meu primo dá de ombros.

— Vim me despedir — informa e vai até o Rômulo. — Qualquer coisa que precisar, entre em contato com a Sâmela, ok?

— Sim, doutor Millos! — O assistente se levanta, seca a mão – não sei por que diabos ele sempre faz isso! – na lateral da calça e a estende ao meu primo. — Boas férias!

— Obrigado, Rômulo! — cumprimenta-o de volta. — Feliz Ano Novo! Espero que, ano que vem, seu chefe esteja mais suportável!

— Ah, doutor, meu chefe é ótimo! — ele sorri ao falar isso e me olha de esguelha.

— Você é um santo, Rômulo! Ou um louco!

Gargalho com a cara confusa do meu assistente e chamo o ingrato do meu primo para um abraço de despedida.

— Para onde vai? — inquiro.

— Te respondo no almoço.

Franzo a testa.

— Que almoço? — Olho para Rômulo, que dá de ombros, indicando que não há nada na agenda.

— Nosso almoço, agora, no restaurante onde você me abandonou naquela noite depois do encontro com a Duda Hill.

Cruzo os braços, sem focar muito nas lembranças daquela noite, ainda que sinta um leve tremor ao pensar na mulher conversando comigo ao balcão do bar.

— Millos, amanhã é véspera de Ano Novo, eu ainda tenho...

— Sem desculpas, Theo, hoje é domingo, e vocês dois nem deveriam estar aqui. E, conhecendo o seu assistente como conheço, tenho certeza de que o trabalho está bem adiantado!

— Pode ter certeza, doutor! — Rômulo confirma, orgulhoso.

Ainda tento negar por mais algum tempo, porém, meu primo está totalmente inflexível.

— Está certo, mas, ao invés daquele restaurante, vamos ao Vincenzo’s. — proponho, e ele aceita.

Vincenzo’s é o restaurante italiano de um chef amigo nosso, que fica no terraço do Villazza SP. Millos e Vince – apelido do dono – são amigos e companheiros de viagens de motos, assim como Frank, CEO da rede de hotéis Villazza.

Gosto muito de ir lá, mas, como não tenho tido tempo ultimamente, pouco tenho conseguido degustar do menu italiano de Vincenzo. Somos amigos desde que ele abriu o restaurante no Villazza SP, vindo com Frank de Curitiba para cá, pois antes comandava a cozinha de um restaurante do hotel de lá.

O homem, um chef competentíssimo, ganhou fama e notoriedade ao participar como jurado de um reality show de gastronomia na televisão. Espero que Millos tenha feito reserva, senão teremos que comer no mezanino sem cobertura, com uma bela vista de São Paulo, mas sem ar-refrigerado.

— 15 dias? — confirmo o tempo das férias com meu primo enquanto ele dirige.

— No máximo! — diz animado. — Tracei minha rota, já reservei hotéis ao longo do caminho. Se nada sair do programado, em 12 dias estou de volta e em 15, já na minha mesa.

— Bom, muito bom! — A notícia me satisfaz, principalmente por eu mesmo estar viajando em fevereiro. — Não vai ao aniversário do pappoús?

— Ano que vem, não, já até me desculpei com ele. Vou visitá-lo em julho. Terei que ir até Atenas para resolver umas coisas com meu pai, então aproveito e mato os dois coelhos de uma vez.

— Que horror essa comparação! — Rio. — Tudo bem com tio Vasilis?

Dá de ombros, sem saber o que responder, afinal, assim como eu, não fala com o pai há anos. Millos lamenta ser filho único exatamente por não ter para quem jogar o fardo de lidar com o pai, o que entendo bem, pois eu detestaria ver Nikkós, mesmo que por mera formalidade.

Chegamos ao Villazza, e, enquanto subimos para o terraço, mando mensagem para o Frank, porém, o carcamano está em reunião, ajustando os últimos detalhes do baile de amanhã.

Ah, sim, o bendito baile!

Valentina já me bombardeou de mensagens sobre o evento, dizendo o quanto está empolgada, detalhando sua roupa e me perguntando como eu preferia que ela usasse os cabelos, soltos ou presos. Achei um tanto absurdo demais tudo isso, principalmente sobre minha opinião, afinal, encontramo-nos uma vez e trocamos dois beijos bem insossos.

Munido de uma paciência hercúlea, respondi todas as suas mensagens e ressaltei o quanto meu dia estava corrido exatamente por conta desse evento na véspera do Ano Novo, dia em que normalmente trabalho e que perderei por sair mais cedo. Pelo visto, ela entendeu o recado e parou com suas mensagens ao estilo metralhadora.

Chegamos ao terraço e avistamos Vincenzo, com um enorme sorriso, já na porta a nos esperar. Estranho isso, não por ele estar nos aguardando, mas sorrindo desse jeito tão deslumbrado.

— Benvenuto! — saúda-nos. — Porra, eu estou suando frio aqui! — confessa.

— Diarreia? — Millos sacaneia.

— Não, coglione! — Rio ao ouvir o xingamento preferido do Frank. — Vocês vão ter o prazer de dividir o mezanino...

— Ah, caralho, o mezanino não! — resmungo tirando o paletó.

— Estamos com climatizadores lá fora e ombrelones, seu fresco! — todo o charme e sotaque italiano some quando ele me dá esse esporro, voltando às origens do Bixiga, bairro paulistano onde foi criado.

— Está certo, esquece o Theo! Quem está no mezanino? Alguma gostosa lá da sua emissora?

— Melhor que isso! — O chef parece bem empolgado. — Thierry Angelot!

Millos franze o cenho, e eu começo a gargalhar.

— Porra, Vince, é sério? Toda essa excitação por causa de um macho?

— Cala a boca, seu herege! — repreende-me. — Angelot, Millos!

Meu primo arregala os olhos.

— Do restaurante? O que ganhou a terceira estrela Michelin no guia deste ano?

— Voilà! — Vincenzo confirma. — O próprio!

Gosto muito de comer, mas, como não cozinho nada, nunca fui muito ligado a nomes de chefs ou restaurantes. Simplesmente, quando quero algo e estou fora do país, consulto o concierge do hotel ou vou pela indicação de amigos. No entanto, agora, sabendo se tratar do Angelot, o restaurante francês cujo jantar desfrutei há alguns anos, entendo a empolgação do Vince.

— O que ele faz aqui? — Millos inquire.

— Vai cozinhar amanhã — respondo, e Vincenzo confirma. — Frank comentou comigo que um chef internacional havia aceitado o convite para fazer o jantar do baile.

— Ah, porra, isso é sério?! — Millos gargalha. — Justamente este ano, que decidi não participar!

Caminhamos em direção ao mezanino, uma varanda um pouco mais elevada que o restaurante, com proteção de vidro na beirada do hotel e uma vista deslumbrante. Entro já olhando as mesas – são três delas – à procura do misterioso homem, pois nunca consegui cumprimentá-lo quando estive em seu restaurante. Avisto-o conversando animadamente em francês e quase tropeço ao ver a mulher que almoça – e ri muito, por sinal – em sua companhia.

— Duda Hill! — Millos sussurra.

— Vocês a conhecem? — Vincenzo nos encaminha até nossa mesa, no canto oposto onde o casal se encontra. — Ele chegou aqui com esse mulherão traduzindo tudo o que dizia, e eu, mesmo sabendo o idioma, me fingi de ignorante só para ouvi-la falar.

A lembrança do sotaque francês dela, da forma como seus lábios se movimentaram a cada palavra, trazem de volta a sensação luxuriante que senti, tendo a exata noção do que Vincenzo está falando. Crispo as mãos, respiro fundo e me sento bem de frente para a mesa dos dois.

Millos e Vince conversam baixinho, porém, não presto a mínima atenção a eles, tentando ouvir o que o baixinho – sim, porque o homem deve ter no máximo 1,60m de altura – diz a ponto de arrancar tantas risadas dela.

Infelizmente não consigo ver o rosto da Duda, tendo visão de suas costas mal cobertas pelo vestido estampado em verde, de alças muito finas que destacam seus ombros e nuca, uma vez que os cabelos estão presos em um coque no topo da cabeça.

— ...eles pediram à la carte e agora estão dividindo um tiramisù — ouço Vincenzo informar ao Millos.

— Dividindo? — questiono. — Denota certa intimidade dividir a sobremesa com alguém. — Millos ergue uma sobrancelha e dá um sorriso irônico. Não lhe faço caso, fingindo que não notei sua expressão. — Então, ao que parece, a dona do boteco realmente é uma chef de cuisine diplomada na França.

— Claro que é! — Millos me encara. — Achou que ela estava mentindo?

Dou de ombros, e Vincenzo pede licença para se retirar e voltar para a cozinha.

— Não faz sentido! O que está fazendo fritando batatas e asas de frango em um lugar como aquele se tem diploma e conhecimento de pessoas que poderiam empregá-la? — Faço sinal com a cabeça indicando o baixinho.

Millos se inclina sobre a mesa.

— O que o herdeiro mais velho de uma empresa internacional estava fazendo vendendo peixes? — Imediatamente fico sério, puto por ele estar mexendo nessa história tão antiga, porém que ainda sangra e incomoda. — Não dá para julgar a motivação de alguém sem conhecer sua história.

Antes que eu o mande ao caralho, um garçom aparece para anotar nossos pedidos, e concluímos pelo menu degustação em quatro tempos, inspirado no mar. Millos pede sua cerveja, como sempre, enquanto eu solicito ao sommelier que harmonize algum vinho com a comida pedida.

— E então... — volto a puxar o assunto das férias de Millos para não demonstrar interesse na outra mesa, mesmo que desvie meus olhos para lá a todo momento — para onde você vai ano que vem?

— Resolvi fazer uma rota aqui por perto mesmo, mas vou parando em algumas cidades para fazer turismo. — Acho interessante. — A ideia é seguir todas as rotas da Estrada Real.

— O que seria isso? — pergunto, pois já ouvi falar do assunto, mas nunca me fixei em nada sobre ele.

— São rotas comerciais criadas na época do Brasil Império. Pretendo seguir as quatro, saindo do Rio de Janeiro em direção a Minas, até Diamantina, depois voltar, passar por Ouro Preto e descer para o Sul de Minas, visitar umas cidades do interior e, por fim, chegar em Paraty, seguir pelo litoral até Santos e retornar para cá.

— Por que começar pelo Rio e não por aqui?

— Quero aproveitar um pouco o litoral norte. Isso não faz parte da Estrada Real, é por minha conta. Amanhã vou para o Rio pela Presidente Dutra e aproveito a queima de fogos em Copacabana.

— Vai ficar no Palace? — Millos confirma. — Já passei um Ano Novo lá, em...

Interrompo-me quando vejo o francês baixinho indo para dentro do salão. Olho na direção da mesa deles e vejo a Duda de pé, sozinha e de costas, contemplando a vista da cidade.

Sem falar nada com Millos, sigo até ela, munido com a vontade de provocá-la um pouco e também de sentir seu perfume.

— Me dê a boa notícia de que aceitou o emprego e vai vender o boteco para mim! — falo às suas costas, fazendo-a se virar para mim.

— Merde! — Põe a mão sobre o coração. — O que você... — Vê Millos sentado na outra ponta do mezanino. — Ah, merda! — resmunga para si mesma, voltando a olhar para a cidade lá embaixo. — Isso só pode ser alguma brincadeira do destino!

Rio e me encosto ao guarda-corpo de vidro, ao seu lado.

— Do destino? — debocho. — Não acredito nessas bobagens!

Ela me encara.

— Eu não me interesso pelo que você acredita ou não! — Aponta para minha mesa. — Sua comida começou a ser servida.

Levanto uma sobrancelha, meu olhar preso ao dela, e aquela mesma maldita tensão vibrando entre nós.

— Novamente... — olho-a intensamente — a comida não é o meu interesse no momento.

Ela segura o fôlego e desvia os olhos sem jeito ou talvez não querendo mostrar o quanto está mexida com minha presença, assim como fiquei e ainda estou com a dela. Um sorriso vitorioso se insinua em minha face. Ainda não entendo como é possível que eu sinta toda essa vontade, todo esse tesão apenas por estar perto dela. Não era para ser assim, principalmente por quem ela é e o que me impede de conseguir com sua teimosia.

Contudo, o mesmo magnetismo que me puxou até ela na primeira vez ainda continua exercendo seu poder, independentemente do que diz minha lógica.

— Então conhece o chef do Angelot? — volto a puxar assunto, resistente a me afastar.

— Sim! — sua voz soa um tanto exasperada. — Olha só, Theodoros Karamanlis, vamos encurtar o papo, ok? Não, eu não aceitei nenhum emprego e nunca — sorri malvadamente —, nunca vou vender o Hill para vocês. — Cruza os braços. — Seu primo já está comendo. Bom apetite!

Ah, Maria Eduarda Hill, você não tem ideia de com quem está lidando! Não vai se livrar de mim tão fácil assim.

— Se não é emprego... — rio — é um encontro? — minha voz sai tão debochada, tão incrédula, que ela enruga a testa por um momento antes de dar um enorme sorriso, muito teatral e falso por sinal.

— Não é da sua conta! — responde-me sem desfazer o sorriso, mas não volta a me dispensar.

— Interessante, Maria Eduarda — ouvir-me a chamando por seu nome completo apaga o sorrisinho de seu rosto, e me aproximo um pouco mais dela. — Uma cozinheira que conhece um chef do porte de Angelot, mas que prefere fritar bolinhos...

— Um homem que poderia estar degustando sua comida deliciosa — interrompe-me ironicamente —, mas que prefere ficar enchendo a paciência de uma mulher...

— ...mais deliciosa ainda! — completo sua frase e a vejo arregalar os olhos, pega de surpresa com o que eu disse.

Confesso que eu também estou. Realmente gosto de provocá-la, ver seus olhos castanhos brilharem de fúria e irritação. Gosto de saber que consigo fazê-la reagir sexualmente a mim, mesmo não querendo, da mesma forma como acontece comigo. No entanto, não tinha a intenção de deixar as coisas tão claras e nem ser tão direto quanto fui. O tesão falou mais alto, a vontade de senti-la, de tê-la é mais forte do que qualquer pensamento racional que ocupe minha mente.

Eu quero essa mulher!

Ficamos nos olhando do mesmo jeito que fizemos no restaurante naquela noite, a respiração pesada de ambos, a química forte atraindo meu corpo para o dela. Não sei como, mas, quando percebo, minha mão já está subindo pelo seu braço, contornando seu ombro, até que meus dedos roçam de leve sua bochecha.

Maria Eduarda fecha os olhos, e eu me aproximo mais, praticamente colando meu corpo ao seu, talvez o suficiente para que ela sinta como estou, como me deixa só com sua presença. Momentaneamente, esqueço onde estamos e, principalmente, quem somos. Só sinto o desejo pulsar nas pontas dos meus dedos, a sua pele queimando a minha, concentrando todo o tesão em minha virilha e fazendo com que meu pau fique pressionado nas calças de forma dolorosa.

Preciso beijá-la! É loucura, será um desastre, mas foda-se! Só preciso sentir o sabor, a textura, o calor dos seus lábios sob os meus e...

— Duda, tout est prêt, on peut commander le café ...10 — o baixinho interrompe nosso momento, e ela pula para trás, afastando-se de mim,

— Maláka11! — solto um palavrão em minha língua nativa, amaldiçoando o péssimo timer do filhote de cruz-credo francês.

O homem nos olha desconfiado a princípio, até me dirigir um olhar raivoso.

— Y a-t-il un problème?12

— Non, mon ami. C'est bien!13 — Duda responde. — Je ne veux pas de café. On peut y aller?14

— Oui! — o homenzinho responde, mas sem tirar os olhos de mim.

Vejo-a pegar a bolsa, passar por mim sem sequer um olhar e então aceitar o braço do francês. Por mais ridícula que seja minha reação, não gosto de assistir a outro homem a tocando.

— Maria Eduarda — chamo-a, e ela finalmente me olha. — Eu não desisto do que quero. — Ela suspira, e abro um sorriso. — De nada do que eu quero!


O Natal trouxe mais do que o sucesso do nosso menu de ceia para encomendas, trouxe também a oportunidade de rever um grande amigo!

Eu estava fisicamente esgotada depois de horas cozinhando sem parar, inclusive com a ajuda da tia Do Carmo e de Tessa, para pode dar conta de todas as encomendas que tivemos. Diversas famílias pediram o menu completo – desde a entrada até a sobremesa –, pelo que comemoramos muito, mesmo com a trabalheira que deu.

Demos conta e, ao final da noite, ceamos todos juntos no Hill, como a família que somos. Foi maravilhoso poder estar com quem eu amo, admiro e trabalho, pessoas que estão sempre ao meu lado não importa o que aconteça e que, a cada dia, me inspiram a continuar a lutar para não perder o bar e tudo o que conseguimos durante esses anos.

Um pouco depois da meia-noite, recebi a visita surpresa de Lara com seu marido, cunhada e sua enteada. O quarteto estava indo para a casa de um grande amigo de Cadu, Luti, pois no dia seguinte iriam para o interior almoçar com a família e não queriam deixar o outro roqueiro sozinho.

Arnaldo a bombardeou de perguntas sobre Marlon, porém, ela mal sabia informar, pois, após se formar, o antigo segurança do bar se mudou para o Rio de Janeiro. Lara relembrou os tempos de bartender e preparou drinques para todos, inclusive para nossas meninas, sem álcool, a fim de acompanharem o Cadu.

Foi uma reunião deliciosa, cheia de histórias de um ano corrido, durante o qual mal tivemos tempo de conversar, mas que não aplacou a força da nossa amizade.

No final da noite, já quase amanhecendo, dormi no quarto de minha filha, curtindo seu abraço gostoso e o frescor do ar-condicionado, satisfeita pelo sucesso do empreendimento de Natal, pela comemoração após e, claro, por poder ter minha família – mesmo tão pequena – ao meu lado.

Como já havia anunciado, não abri o bar no dia 25 de dezembro, aproveitei a ocasião dessa folga e fui passear com Tessa e tia Do Carmo. Fomos ao parque Ibirapuera e depois ao Villa-Lobos, onde minha filha se cansou de tanto andar na bicicleta que lhe demos – titia e eu – de presente.

À noitinha nos reunimos na frente da televisão, escolhemos – não sem uma boa briga – um filme na Netflix e comemos o que restou da ceia da noite anterior. Foi muito bom! Livrei-me das compras na terça-feira e ainda ganhei um tempo livre com as pessoas que amo. Não podia ter havido melhor presente de Natal para mim!

Contudo, houve um outro tão bom quanto!

Na sexta-feira, eu estava na preparação dos alimentos para mais uma noitada de final de ano no Hill quando recebemos um telefonema internacional. Sim, ligaram para o nosso telefone comercial! Fiquei nervosa, achando que pudesse ser notícia do agiota, mas então reconheci o sotaque de Thierry tentando – sem sucesso – falar em português.

Minha reação, logo após o susto, foi rir. Havia muitos anos não nos falávamos, mas seria impossível esquecer sua voz grave e máscula, que faz qualquer pessoa o imaginar como um homão de quase 2m de altura.

— Thierry, mon ami! — Estava tão surpresa e emocionada com aquela ligação que sentia a garganta apertada, mas continuei em francês: — Que enorme surpresa!

— Não seria se você tivesse deixado um telefone pessoal para contato! — respondeu em sua língua natal. — Duda, ma chérie! Estou tentando falar com você há algum tempo.

— Sinto muito, Thierry, eu mudei o número do telefone algumas vezes e acabei não o repassando aos amigos — justifiquei sem jeito. — Como vão as coisas? Tenho acompanhado o sucesso do Angelot e não estou nada surpresa! Nós sabíamos que seria um dos melhores da França! Trois étoiles, mon Dieu!15

Meu amigo riu, encantado com sua façanha.

— A tensão agora é manter! — confessou. — Mas não liguei para falar das Michelins, e sim para te fazer um convite.

— Convite?!

— Oui! Finalmente vou viajar para o Brasil! — abri um sorriso ao ouvir a novidade. — Fui convidado a assinar o jantar de uma festa no Ano Novo, em São Paulo.

— Aqui?! — Fiquei ainda mais surpresa. — Onde?

— Villazza SP! É um baile beneficente. Todo o dinheiro será doado, então abri mão do pagamento também.

— Ah, Thierry! — Fiquei muito orgulhosa e feliz por ele não ter mudado mesmo depois do sucesso. — É um gesto muito nobre.

— Sim, sim... mas tenho um problema.

— Qual? Se eu puder ajudar...

— Pode, sim! — Riu. — É por isso que fiquei tão desesperado atrás de seu contato. Minha souschef ficará responsável pela cozinha do Angelot durante minha ausência. — Fiquei surpresa por ele ser tão desprendido quanto a entregar sua cozinha para outra pessoa. Decerto confia muito na profissional que ela é. — A equipe de cozinheiros do hotel é muito boa, mas gostaria de ter você lá comigo.

— Eu?! — Tomei um susto. — Thierry, eu não entro em uma cozinha de alto nível há anos!

— Bobagem! Vamos nos encontrar assim que chegar à sua cidade.

— Quando? — Meu coração batia forte, de medo e ansiedade ao mesmo tempo.

— Depois de amanhã, estou arrumando as malas. Conhecerei a equipe na parte da manhã, então poderíamos almoçar. Você ouve minha proposta e, se aceitar, participa do treinamento à tarde.

Minhas mãos estavam frias e tensas, enquanto minha mente era povoada pelas lembranças de Paris, da euforia da cozinha, o medo de não agradar e todo o apoio de Thierry, que, na época, era chef de partie16 do restaurante onde trabalhávamos.

Ele foi meu maior incentivador e o que ficou mais abalado com minha decisão repentina de voltar ao Brasil, abandonando tudo. Era um grande amigo, mantivemos contato por um tempo depois do meu retorno, mas então papai morreu, e as coisas ficaram confusas demais.

Voltar a cozinhar, depois de tantos anos, ao lado dele não é apenas uma chance, é um privilégio!

— Onde nos encontramos? — perguntei, decidida a me dar essa oportunidade.

Agora, entrando pela primeira vez no suntuoso hotel dessa rede internacional, sinto minhas pernas tremendo como gelatina enquanto absorvo atentamente todos os detalhes da decoração. O saguão é lindo e imponente, o que me anima, pois espero que a cozinha seja um espetáculo.

Identifico-me a um dos recepcionistas, que me indica o elevador para o terraço assim que colhe meus dados, fazendo um pequeno cadastro por ser minha primeira vez no hotel.

Quando as portas do elevador se abrem, já no terraço, a primeira pessoa que vejo é Thierry. Recebo um abraço apertado e beijos na bochecha, uma saudação tão calorosa que nem parece que não nos falamos há anos. A amizade está intacta para ele também, assim como para mim.

— Você está linda! — elogia-me em francês. — Como pode todos esses anos se passarem e você ficar ainda mais bela?

Rio do exagero dele, tão característico, pois é um galanteador conhecido por suas maneiras lisonjeiras de tratar uma mulher.

— Você mudou pouco também, meu amigo!

— Infelizmente! — Ri de si mesmo. — Aumentei minha conta bancária e meu prestígio, mas continuo feio e baixinho.

— Isso nunca foi problema para você, mesmo quando não tinha dinheiro. — Ele estufa o peito, sabendo que é verdade. — As mulheres sempre ficavam deslumbradas com você.

— Minha linda, se a natureza não foi generosa te dando o rosto e o porte do Jason Statham, você tem que se aperfeiçoar com o que tem de melhor e tirar proveito disso.

Gargalho e o beijo, adorando saber que ele ainda é fã do famoso ator de filmes de ação. Seguimos de braços dados até o restaurante onde ele fez reserva, elogiando toda a estrutura existente no terraço do hotel.

Além do Vincenzo’s, há um bistrô de comida francesa no outro extremo do lugar, dando vista ao outro lado da cidade, e várias lojas de marcas internacionais, de vestuário, acessórios e joias, cabeleireiros e um SPA. No meio disso, vários jardins e locais para sentar, conversar ou mesmo aguardar enquanto alguém faz compras.

Eu nunca poderia imaginar que em cima do hotel houvesse tanta coisa!, penso deslumbrada. Já ia comentar com Thierry sobre a surpresa ao descobrir este espaço aqui, quando vejo quem nos espera na porta do restaurante.

Vincenzo Giacontti!

Desde que ele me convidou para almoçar no Villazza SP, eu já sabia que iríamos ao restaurante do Vincenzo, mas não esperava ser recebida pelo chef pessoalmente. O homem é uma estrela aqui no Brasil. Reconhecido como um dos maiores chefs de cozinha italiana do mundo, ele ainda tem um jeitão todo despojado e é muito bonito!

— Benvenuto! — cumprimenta-nos, claramente satisfeito ao ter Thierry no seu estabelecimento.

— J'avais hâte de rencontrer le célèbre chef cusinier et ami Frank! — Thierry o cumprimenta, porém, ele não diz nada.

Talvez o chef Giacontti não saiba o idioma!

— Ele estava ansioso por conhecer o famoso chef do Frank Villazza. — Sorrio. — Ao que parece, o amigo dele fez recomendações sobre você, chef.

Vincenzo me encara por alguns momentos antes de abrir um enorme sorriso que o deixa muito charmoso, ainda mais com o aparecimento de algumas ruguinhas.

— O prazer é todo meu em receber aqui um chef com o talento e prestígio de Angelot.

— Il a déclaré que c'est un plaisir de recevoir un chef cuisinier aussi talentueux et prestigieux que vous.17

— Obrigado! — Thierry arrisca o português e depois se supera: — Grazie!

Giacontti sorri, retribuindo o cumprimento e nos acompanha até um mezanino onde se tem uma impressionante vista da cidade de São Paulo, inclusive das copas das árvores do Ibirapuera ao longe.

Sentamo-nos protegidos do sol pelo ombrelone e refrescados por climatizadores, potentes ventiladores que soltam nuvens de umidade para amenizar a sensação de calor. Thierry me pergunta se quero provar o menu degustação ou se quero pedir à la carte. Prefiro pedir separadamente os pratos, apenas uma entrada e um prato principal, e ele me acompanha no pedido. Deixo-o escolher o vinho, apreciando seu bom gosto e perícia para harmonizar a bebida com todos os ingredientes dos pratos.

— Quero, antes de falar do trabalho, saber como estão as coisas — Thierry fala assim que o sommelier se afasta.

— Trabalho duro no bar do papai. — Sorrio quando ele faz careta. — Eu sei o que você pensa sobre minha decisão de voltar, mas...

— Duda, ma chérie, a questão não é o que eu penso, mas o que você fez! — Thierry continua incisivo como sempre foi. — Você simplesmente desistiu de uma carreira brilhante!

— Não sabemos disso, eu estava só começando!

— Oh, lala, como não? Eu fiquei louco com seu talento e sua técnica quando te conheci, sabia que iria longe! — Tento não pensar muito nisso, não olhar para trás, mesmo que as palavras dele calem fundo dentro de mim. — No mínimo, você seria minha souschef hoje, Duda!

— Já seria uma enorme honra!

— Bobagem! — Ele faz um gesto com a mão. — Você tem talento para ter seu próprio restaurante, ganhar três estrelas e ainda fazer pouco caso delas!

Rio com a forma como ele me vê. Sim, eu era dedicada e talentosa, mas havia muitos como eu; isso não significa que eu iria longe.

— Você sabe que eu não pude...

Ele suspira, balançando a cabeça.

— Ah, l’amour, l’amour, l’amour! — gargalho com a dramaticidade que emprega nas palavras. — O que não fazemos por amor, não é assim? — Rola os olhos. — Pure merde!

— Thierry... — Balanço a cabeça. — O que passou, passou, não posso mudar as escolhas que fiz. Quer saber mais? Faria tudo igual!

Ele bufa. Ficamos mudos enquanto um garçom serve nosso vinho e água.

— Encontrei Jean-Luc um tempo atrás em Nice — ele comenta. Levanto a sobrancelha. — Senti vontade de cortar as bolas dele e jogar para os peixes do mar! — Gargalho. — Não o fiz, claro, ia matar toda a vida marinha!

Pego sua mão.

— Eu senti demais sua falta!

— Eu também, Duda! — Thierry segura firme minha mão por cima da mesa. — Juro que não entendo o que aconteceu! Vocês pareciam tão apaixonados, tão perfeitos um para o outro, então ele simplesmente a abandonou no momento em que você mais precisava!

Bebo um gole do vinho.

— Há pessoas que não estão prontas para lidar com responsabilidades! — Dou de ombros. — Respeito a escolha dele, assim como respeitou a minha.

— Mas foi um canalha indo embora sem deixar destino e sem, ao menos, falar com você!

— Sim, ele foi covarde. Mas não precisei dele... dei um jeito.

— Abrindo mão dos seus sonhos! — exclama indignado.

— Não, Thierry, reformulando os meus sonhos.

— E como está Tessa?

Sorrio ao pensar na minha menina, meu peito se enchendo de orgulho pela criança maravilhosa que ela é. Eu faria e faço qualquer coisa pela sua felicidade, reformulo sonhos, desisto de projetos, qualquer coisa pela minha filha.

— Crescendo! — Abro o celular e lhe mostro uma foto.

— Mon Dieu! Linda como a mãe. — Encara-me emocionado. — Que os corações dos jovens dessa cidade sejam protegidos!

Gargalho, dando um tapinha em sua mão.

A entrada é servida, então começamos a discutir os detalhes do jantar de amanhã à noite. Thierry me explica a dinâmica, elogiando a equipe e o chef do restaurante do hotel. Contaremos com uma brigada de 50 cozinheiros, sendo que o chef passará a exercer a função de chef de partida, controlando a execução dos demais cozinheiros. Thierry e eu seremos os únicos fora da equipe, e, quando demonstro receio sobre a questão do ego do chef executivo do hotel, ele me acalma dizendo que já estão acostumados a auxiliar um chef convidado para bailes e outros eventos.

Fico surpresa, imaginando que o chef deva ganhar muito bem para que não se revolte contra isso, pois sei como são possessivos com suas cozinhas. Dificilmente um chef cede espaço a outro, e inclusive há muitos relatos de brigas feias entre chef e souschef exatamente por medo de perder o posto.

Acabamos nos lembrando de algumas histórias sobre nossa época no L’Amande e passamos toda a refeição, até a chegada do delicioso tiramisù, rindo das loucuras, nossas e dos outros, do tempo em que trabalhávamos como loucos dentro da cozinha de um restaurante uma estrela.

Na época, Thierry tinha acabado de ser promovido a souschef, pois ameaçou ir embora para o concorrente direto caso não preenchesse a vaga deixada por uma amiga nossa que decidiu abrir seu próprio negócio, uma padaria.

Trabalhamos quase dois anos juntos, desde meu estágio até o momento em que voltei para o Brasil, e sempre acalentamos o sonho de abrir um pequeno bistrô na Rue Saint-Honoré, oferecer alta gastronomia com preço justo e muita qualidade.

Enquanto dividimos o doce, ele me atualiza de algumas novidades sobre conhecidos em comum, sempre com seu jeito debochado e espalhafatoso, arrancando-me muitas gargalhadas.

— Preciso ir ao banheiro um minuto. — Thierry se levanta. — Não fuja com aquele chef grandão na minha ausência. — Ri. — Aposto que o homem sabe falar francês e ficou quieto só para ouvir sua voz sexy!

— Thierry! — repreendo, sem jeito.

Enquanto ele entra no restaurante, vou até o guarda-corpo para olhar a movimentação na entrada do hotel. Sinto um frio na barriga, e um arrepio cruza meu corpo, surpreendendo-me, pois nunca senti medo de altura.

— Me dê a boa notícia de que aceitou o emprego e vai vender o boteco para mim!

— Merde! — Ponho a mão sobre o coração, virando-me para ter certeza de que não estou em uma espécie de sonho acordada e que, realmente, Theodoros Karamanlis acabou de falar comigo. É mesmo ele! — O que você... — Olho para a outra mesa, buscando sua companhia e vejo Millos olhando para nós dois e parecendo muito interessado. — Ah, merda! — murmuro e dou as costas para ele, tentando acalmar as batidas do meu coração e o tremor nas minhas pernas. Estive fantasiando com esse homem durante toda a semana, e agora ele está aqui! Fecho os olhos, e o cheiro de seu perfume chega até minhas narinas, parecendo me tentar. — Isso só pode ser alguma brincadeira do destino! — lamento, e ele ri, postando-se ao meu lado.

— Do destino? — sua voz é irônica, e isso me irrita. — Não acredito nessas bobagens!

Olho para ele, as mãos segurando firme sobre a proteção de vidro, sentindo meu sangue ferver por ele estar aqui para atrapalhar um encontro tão tranquilo e gostoso com um velho amigo.

Nas minhas fantasias, Theo não é um Karamanlis, mas sim apenas aquele homem lindo de morrer, charmoso como o diabo, que eu conheci no bar de um restaurante. Ele não tem esse tom de deboche e nem me provoca com sua arrogância.

Decido ser dura com ele e deixar claro que não é bem-vindo ao meu lado.

— Eu não me interesso pelo que você acredita ou não! — respondo no momento em que vejo os garçons servindo o primeiro prato deles. Aponto para a mesa. — Sua comida começou a ser servida.

Ele não se move, nem mesmo olha para trás, encarando-me do mesmo jeito que fez no bar. Meu corpo traidor se aquece, e as imagens de todas as fantasias, de todas as maneiras que o imaginei me tocando, provocam arrepios de prazer pelo meu corpo.

— Novamente... a comida não é o meu interesse no momento.

Preciso reter o fôlego para não ofegar. Minha vagina se aperta e meus mamilos ficam duros contra o tecido do vestido. O desgraçado sabe mesmo seduzir, mesmo sendo direto como é. A autoconfiança dele é demais, faz parte de seu charme, demonstra a segurança de um homem que sabe o que precisa fazer para enlouquecer uma mulher.

A mesma sensação que tive com seu toque volta a me assolar, e tento com muito empenho não demonstrar o quanto ele mexe comigo.

— Então conhece o chef do Angelot? — pergunta como se não tivesse interesse, mas não consegue me enganar. Só não sei se o interesse é sobre o tipo de conhecimento que temos ou se espera que isso seja um almoço de negócios e que eu venda o Hill para me mudar para Paris a fim de trabalhar com Thierry.

— Sim. — Decido ser tão direta quanto ele. — Olha só, Theodoros Karamanlis, vamos encurtar o papo, ok? Não, eu não aceitei nenhum emprego e nunca — sorrio, dando-lhe um pouco do seu próprio veneno sedutor —, nunca vou vender o Hill para vocês. — Cruzo os braços e indico sua mesa com o olhar, querendo que ele me deixe em paz. — Seu primo já está comendo. Bom apetite!

— Se não é emprego... — ele continua, e tenho vontade de deixá-lo falando sozinho — é um encontro? — seu tom de deboche não me passa despercebido.

Ele acha estranho eu ter um encontro com Thierry? Abro um enorme sorriso, desejando que meu amigo estivesse por perto para poder beijá-lo e arrancar a prepotência da cara desse grego.

— Não é da sua conta!

— Interessante, Maria Eduarda — fico séria ao ouvi-lo me chamar assim, do mesmo jeito que fez quando nos conhecemos, lembrando-me de como me senti e percebendo que ele ainda exerce o mesmo poder sobre meus sentidos. — Uma cozinheira que conhece um chef do porte de Angelot, mas que prefere fritar bolinhos...

Ah, que imbecil!

Ignoro o clima sexual, a atração, o desejo e todas as merdas de fantasias que tive e que tenho com ele. Que homem soberbo! O que ele sabe sobre as escolhas que temos que fazer na vida? O que um homem que nasceu em berço de ouro sabe sobre sacrifícios e amor?

Perco a paciência e resmungo, lamentosa:

— Um homem que poderia estar degustando sua comida deliciosa, mas que prefere ficar enchendo a paciência de uma mulher...

— ...mais deliciosa ainda!

Puta que pariu!

Que voz é essa?!

Que olhar é esse?!

Vejo naquelas duas grandes safiras a verdade de suas palavras. Seu desejo, seu tesão por mim fica tão claro como o dia de hoje, evidente, impossível ignorar ou fingir que não vi. É como um reflexo do meu próprio, e fico confusa com isso. Nós nem ao menos gostamos um do outro, como é que sentimos essa atração tão poderosa assim?

Quando a ponta de seus dedos começa a deslizar pela minha pele, sinto meu corpo inteiro tremer. Tenho vontade de gemer de prazer com o toque, seus dedos deixando um rastro quente por onde passam, até chegar ao meu rosto.

O carinho é tão inesperado e tão fora do contexto de nossa conversa que me desarma. Fico aqui, passiva, apenas desfrutando das sensações, imaginando esses mesmos dedos sobre meu sexo, tocando meu clitóris, sentindo a umidade que já está presente.

Fecho os olhos e o sinto se aproximar de mim, o calor do seu corpo emanando até o meu, ultrapassando o tecido do vestido e impactando minha pele. Sinto o hálito quente de sua respiração sobre meu rosto e o pulsar de sua ereção em minha barriga.

Ah, meu Deus!

Não há mais dúvidas de que isso não é uma brincadeira. Theodoros Karamanlis me quer do mesmo jeito que eu o quero! Como é possível que duas pessoas que se detestam possam sentir tamanha luxúria? Eu quero me agarrar a ele, tocar seu pênis para sentir o calor. Quero suas mãos nos meus seios, sua boca na minha...

— Duda, tout est prêt, on peut commander le café ...

A voz de Thierry me arranca do transe sexual no qual estava. Pulo para trás, para longe do demônio que me confunde como ninguém e o escuto falar em outra língua.

— Maláka!

Pela entonação e o olhar gélido de Thierry, Theodoros soltou um palavrão bem cabeludo. Meu amigo me olha, questionador e preocupado.

— Y a-t-il un problème?

Pela reação de Theo, ele entende muito bem o francês.

— Non, mon ami. C'est bien! — respondo, querendo me afastar daqui o mais breve possível. — Je ne veux pas de café. On peut y aller?

— Oui!

Thierry não deixa de encarar Theo, e eu, temendo que um possa falar besteira para o outro, pego minha bolsa e vou até meu amigo, tomando-lhe o braço que me oferece. Saio sem me despedir do demônio, mas, claro, ele não pode ser ignorado, tem que dar a última palavra:

— Maria Eduarda. — Não consigo fingir que não ouvi, principalmente por ele ter usado meu nome inteiro. — Eu não desisto do que quero. — Suspiro, entendendo o que ele quer dizer. — De nada do que eu quero!

Thierry me puxa de leve para frente, e caminho consigo para dentro do salão, passando pelo Millos sem o cumprimentar. Tremo bastante, não de medo ou de nervosismo, mas de antecipação, de vontade, porque sei que ele não vai desistir.

Sim, Theodoros Karamanlis não quer somente tomar posse do que é meu.

Ele me quer!


Estou há meia hora esperando dentro do carro em frente ao prédio de Valentina, e nem sinal dela. Confiro as horas mais uma vez e respiro fundo, chateado por estar atrasado. Claro, a culpa não é totalmente dela, pois demorei a sair da empresa, mas mandei mensagem quando saí de casa, e ela afirmou que estava quase pronta.

Quando a porta é aberta pelo Dionísio, suspiro aliviado, vendo-a, deslumbrante, entrar no carro e se sentar ao meu lado.

— Boa noite, Theo, desculpe pelo atraso. — Sorri e se aproxima.

Seguro seu rosto e, cheio de esperança, beijo-a.

Dessa vez ela corresponde à altura do meu ímpeto, o que me impele a aprofundar a carícia, trazendo-a para mais perto de mim a fim de sentir seu corpo contra o meu. Sua pele é deliciosamente macia, cheirosa, o beijo, muito bom, e meu pau reage... porém, não o suficiente.

Separo-me dela assim que sinto o carro andar, e imediatamente Valentina pega um espelho em sua carteira, conferindo a maquiagem, sem falar nada ou mesmo trocar um olhar provocador comigo.

Porra!

Olho pela janela, as ruas passando, pensando se conseguirei viver com ela. Meu avô vai fazer 90 anos daqui pouco mais de um mês, e o tempo tem sido meu inimigo. Não posso decepcioná-lo, não quando já o fiz tantas vezes, e ele me perdoou e acolheu sem nunca me culpar ou me julgar por minhas escolhas.

Valentina é a mulher ideal, a brasileira que ele aceitaria.

Nunca pensei em me casar com uma grega, essa é a verdade. Moro há tantos anos aqui e só me relaciono com mulheres do país. A última vez em que tive uma relação com uma estrangeira, nem mesmo era grega, mas sim uma francesinha com cabelos coloridos, safada e faceira.

Um leve sorriso aparece no meu rosto ao pensar na mulher dos cabelos rosa. Ela anda um tanto sumida das minhas fantasias, talvez por agora estar interessado na dona do botequim.

Penso em Maria Eduarda e questiono se ela se agarraria a mim dentro deste carro, se se importaria com sua maquiagem ou se se entregaria ao beijo. Se teria pudores se eu a puxasse para meu colo, mesmo com Dio ao volante, ou rebolaria gostoso contra meu pau, gemendo na minha boca, enquanto eu sugasse sua língua como gostaria de fazer em sua boceta.

Interrompo os pensamentos, colocando as mãos sobre o colo, escondendo a ereção completa que os pensamentos me causaram, comparando ao estado “meia bomba” que o beijo de minha acompanhante me deixou.

Porra!

Já estou começando a chamar minhas ereções fora de hora de “efeito Duda Hill”. É pensar ou estar com a mulher que meu pênis se levanta a toda potência, pronto para servir, não importa onde seja: dentro do carro com outra mulher ao lado; no mezanino de um restaurante, tendo o observador Millos como expectador; ou mesmo no escritório, enquanto tento fazer meu trabalho, mas divago pensando no cheiro dela.

Caralho, a mulher virou uma obsessão!

O carro para na porta do Villazza SP, e uma horda de repórteres, a maioria de sites e revistas de fofoca, já nos aguarda sair. Dionísio sai ao mesmo tempo em que eu, dando a volta pela frente, enquanto eu o faço por trás do veículo, abrindo a porta do lado onde está Valentina.

Estendo minha mão para ela, auxiliando-a sair, enquanto chuvas de flashes nos alcançam.

— Odeio a imprensa — confessa baixinho.

— Somos dois! — Sorrio e a acompanho para dentro do hotel.

A suntuosa escada, réplica da existente no primeiro hotel Villazza na Itália, é o caminho que fazemos até o salão nobre, onde a decoração primorosa da minha irmã já nos saúda na recepção organizada, imitando a bilheteria antiga de um circo de luxo. Trocamos nossos convites por máscaras – a de Valentina é preta, e a minha, branca – e recebemos pulseiras com códigos de barras para que possamos entrar e sair do salão.

Valentina pede ajuda a uma das recepcionistas para fixar a pulseira em seu pulso, e eu a aguardo, conferindo no relógio o quanto estamos atrasados. O baile começou há mais de uma hora, e eu queria ter visto o discurso do Frank, ou mesmo do doutor Andreas Villazza, que neste ano sei que está aqui.

Uma mulher chama minha atenção. Ela está de costas para mim, pegando seus acessórios para entrar no salão, e seu vestido branco é todo bordado com cristais que refletem outras cores. Sua pele morena, cabelos negros presos em um coque e um corpo curvilíneo ressaltado pelo modelo do vestido me fazem pensar em uma sereia.

Ela se vira para entrar, e eu a reconheço. É uma das funcionárias da Kyra que trabalhou no evento de fim de ano da Karamanlis no ano passado. No entanto, não me recordo do nome.

Cumprimento-a com a cabeça, ela faz o mesmo e depois segue para o baile, enquanto eu ainda espero minha acompanhante.

— Pronto! — Valentina ri ao me mostrar a pulseira. — Achei que nunca ia prender. — Ri e alisa seu vestido branco. — Aquilo ali é burlar as regras, não? — Indica o vestido da sereia. — O fundo é branco, mas os cristais colorem o vestido!

— Eu gostei — respondo com sinceridade. — E, se burla as regras, o fez de forma inteligente.

Ela apenas assente, ficando muda até nossa entrada.

Puta merda, minha irmã se superou!, penso orgulhoso.

A decoração foi toda projetada de modo a dar a sensação de que estamos entrando em um circo antigo, com pesadas cortinas de veludo carmim e tecidos de brocado indo até o teto do grande salão, imitando o formato de uma tenda. Logo na entrada, dois malabares, com máscaras de bronze enormes – uma do sol e o outro da lua – nos saúdam, enquanto há trapezistas penduradas em argolas e tecidos no teto.

A luz baixa combinada com as velas em enormes castiçais e os enormes arranjos florais dão um tom especial à fantasia de se estar em um circo antigo, embora muito sofisticado. Um garçom – vestido de Pierrô, com sua tradicional tristeza de palhaço – nos oferece champanhe. Eu declino, e Valentina pega uma taça.

— Uau! — Ela parece tão deslumbrada quanto eu. — Isto aqui está incrível! Nem parece o salão nobre do hotel, e olha que já vim a muitas festas aqui!

— Eu também — confesso admirado.

— Olha o chão! — Ela aponta para algum tipo de tapete que cobriu toda a madeira do piso do salão e o transformou em um azul profundo cheio de estrelas brancas, como as antigas lonas de circo. — Quando muda a luz, elas brilham!

Fico olhando e confirmo que, em algum momento, luzes negras são acesas e as estrelas do chão parecem brilhar. Olho em volta para ver se identifico Kyra em algum canto – buscando uma bela mulher sem máscara e provavelmente vestida de preto –, mas não consigo ver muita coisa com a quantidade de pessoas transitando à nossa volta.

— Precisamos achar nossa mesa! — Valentina diz empolgada. — Sabe com quem estamos sentados?

— Provavelmente com minha família. — Dou de ombros. — Millos não veio, mas Alex e Kostas devem estar por aqui.

— Ah, vou adorar conhecê-los!

Ô, se arrependimento matasse!

Andamos entre as pessoas dançando, mesmo havendo uma pista separada só para isso, até encontramos a mesa com placa de reserva escrita com caligrafia profissional: Karamanlis.

— Eis a mesa! — Valentina comemora. — Eu amo essa música!

Escuto a canção famosa na voz do Tony Bennett e, como cavalheiro que tento ser, estendo a mão para ela, convidando-a a dançar. Ela abre um enorme sorriso, ajusta sua máscara, e seguimos os dois para a pista de dança.

Abraço-a junto a mim, seguindo o ritmo, mas sem realmente me esforçar para dançar bem, apenas guiando-a em passos simples. Sinto os dedos dela, que deveriam estar em meu ombro, aproximarem-se de meu pescoço, subindo e descendo em carícias. Franzo as sobrancelhas, sem realmente entender essa mulher.

Encaro-a e quase me assusto com o sorriso malicioso e o brilho em seus olhos.

— Eu queria um momento assim, junto com você, sem um motorista a assistir. — Aproxima-se. — Esperei por esse momento a semana toda, Theo.

Seus lábios tocam os meus devagar, olhos abertos, encarando-me sem parar. Aperto mais sua cintura, colando nossos corpos, tomando sua boca em busca finalmente da atração, do arrepio na pele e da reação do pau. Acontece, claro, tenho sangue nas veias, e ela é uma mulher linda, mas, ainda assim...

A música acaba, as luzes são todas acesas e o mestre de cerimônias aparece no palco, vestido com um smoking listrado de vermelho e branco, calças e sapatos pretos, uma bengala e uma enorme cartola preta na cabeça.

— Senhoras e senhores! — diz após os aplausos. — Respeitável público! Bem-vindos ao 10.º Baile Branco e Preto promovido pela Rede Villazza de Hotéis! Vocês já foram agraciados com a mensagem de abertura do Presidente Geral, doutor Andreas Villazza, e agora, antes de darmos início ao jantar, peço que recebam com aplausos o responsável pela Rede na América do Sul, doutor Francesco Villazza!

Frank sobe ao palco ao lado de Isabella, com aquele seu sorriso torto de sempre, adorando ser a estrela da festa. Conheço muito bem esse carcamano para saber que adora estar sob os holofotes!

— Buona notte! — saúda a todos. — É um enorme prazer tê-los aqui nesta noite especial. Como meu pai já nos abrilhantou contando a história dos primeiros Bailes Bianco e Nero nas nossas unidades italianas, não vou tomar o tempo de vocês falando de ano após ano dessa mesma tradição aqui no país. — Ele faz careta, e uma risada geral é ouvida. — Vou falar da importância desse baile! Como sabem, não o realizamos todos os anos, na verdade, é o segundo que a cidade de São Paulo recebe, pois os oito anteriores foram feitos em Curitiba. O intuito desta festa é muito maior do que apenas o entretenimento. Embora tenhamos o maior cuidado em oferecer o que existe de melhor para sua noite, essa não é a prioridade do baile. Minha avó foi uma médica incrível! Uma mulher à frente de seu tempo que, mesmo casada com um homem de família nobre, se dispôs a aplicar seus conhecimentos para ajudar o próximo, e nós continuamos seguindo seus preceitos. — Há uma chuva de aplausos quando a imagem de uma senhora muito distinta, vestida de branco, aparece no telão. — Este ano o conselho da Fundação Maria Eugenia Andretti escolheu instituições que trabalhem com crianças, seja na área de educação, esporte, lazer ou mesmo do social. — Logomarcas de três instituições aparecem.

Isabella é quem vai até o microfone com uma pasta na mão.

— A AcordSons é uma fundação familiar de músicos que levam a arte em forma de oficinas, cursos e patrocínio para músicos clássicos em comunidades onde há altos índices de violência praticada por ou contra crianças e adolescentes. — Imagens do local passam no telão. — A Brinquelândia é uma ONG que assegura o direito da criança de brincar, tão importante nos dias de hoje! Além de exercerem vigilância constante às denúncias de trabalho infantil, eles têm oficinas de artesanato, aulas de teatro e música, sempre com o foco na brincadeira e no lúdico. — Ouço umas palavras de ordem e aplausos de um grupo reunido em uma mesa à nossa esquerda. — E, por fim, a WaveAccess, criada há quase dois anos e que promove acessibilidade ao surf, provendo cursos, materiais e treinamento para crianças, jovens e adultos com necessidades especiais, sendo seu principal público o infantil.

Vejo as fotos do surfista Bernardo Novak aparecendo junto a um outro, mais velho e sem um dos braços, em uma praia lotada de crianças com as mais variadas necessidades especiais, físicas ou intelectuais.

Vejo a família Novak, cujo filho mais velho é casado com a caçula dos Villazzas, numa mesa à minha direita. Dona Cecília, Gilberto, Nicholas e Giovanna aplaudem com orgulho o garoto que, até um tempo atrás, era considerado a ovelha negra da família.

Feitas as apresentações, os anfitriões informam que há mais informações sobre cada instituição no livro do programa de leilão, onde, além de conter todas as peças do inventário a serem leiloadas, há fotos e histórias de cada uma das beneficiadas da noite.

Neste ano não doei nenhuma peça, mas pretendo adquirir algo.

— Eles disseram que toda a arrecadação do baile será destinada 100% para as três instituições, mas e o custo de montar esta estrutura? — Valentina questiona quando nos sentamos à mesa.

— Boa parte é bancada pela Rede, e o resto, por doações. — Ela arregala os olhos e sorri. — Muita gente contribuiu no país todo, pelo que Frank me contou. Já é um baile famoso!

Mal termino de falar e vejo Alex se aproximando com sua acompanhante. Ele franze as sobrancelhas ao ver Valentina, provavelmente questionando quem é a artista da vez, e eu reconheço sua melhor amiga, Samara, de braços dados com ele.

— Theo! — a moça, sempre muito simpática quando nos encontramos em eventos, cumprimenta-me. — Que bom vê-lo esta noite! — Olha para Valentina, esperando que eu as apresente.

— Samara Schneider, essa é Valentina de Sá e Campos. — Alex dá um sorriso debochado em minha direção, como se reconhecesse os sobrenomes dela. — Valentina, essa é a Samara, uma incrível designer de interiores.

— É um prazer, Valentina! — Ela vai até minha acompanhante.

Aproveito que as duas vão engatar em alguma conversa sobre conhecidos em comum e coloco minha atenção em meu irmão.

— Viu só esse trabalho da Kyra? — Aponto para tudo em volta.

— Claro! — Ri da minha pergunta. — Seria impossível não ver, já que estou aqui! — Rolo os olhos, e ele ri. — Já fui até cumprimentá-la, mas está tão ocupada que não consegui nem falar com ela direito.

— Imagino que esteja — concordo, mas ainda me sentindo muito orgulhoso, mesmo que nunca vá dizer isso a ela. — Viu o Kostas?

— Com saudade dos seus irmãos? — Senta-se e responde ao notar que não fiz caso de sua perguntinha ridícula: — Estava com uma loira gostosa lá perto do bar. O bourbon, você sabe!

Assinto, também sentindo falta do meu scotch. Como se meus pensamentos fossem ouvidos, uma linda Arlequina aparece com uma bandeja com copos, gelo e belas garrafas do meu segundo uísque preferido. É pena não ter o meu preferido!

— Caubói, por favor — solicito quando ela pergunta sobre minha bebida.

— O jantar já foi anunciado — Alex comenta. — Chegou agora?

— Sim, só consegui ouvir o discurso do Frank. Legal a fundação do seu amigo estar sendo beneficiada.

— Bê merece, o cara é um guerreiro! — Alex comenta. — Nick está muito orgulhoso do irmão.

— É, não deve ter sido fácil para ele, mas superou e ainda quis fazer a diferença. Isso é legal de se ver! — comento com ele.

Ficamos conversando um tempo como se não houvesse nenhum problema entre nós, falando sempre de trivialidades, de amigos conhecidos, trabalho e qualquer coisa que não seja nossa vida pessoal.

Ele não me pergunta sobre Valentina, e nem eu sobre Samara, mesmo porque sei que a amizade dos dois é longa, uma vez que o pai dela trabalhou para a Karamanlis durante muito tempo. Ele executou toda a parte de planejados de um dos empreendimentos na gestão do Nikkós. O homem era um design de móveis respeitado e com uma agenda apertada. Hoje, sei que ele não atende mais particulares, apenas empresas, mas teve um momento em que ter um móvel Schneider em casa era sinônimo de bom gosto e exclusividade.

— Família!

Viro-me ao ouvir a voz debochada de Kostas. O homem vem abraçado a uma loira com um vestido branco tão justo e transparente que pouca coisa de sua anatomia perfeita fica à imaginação.

— Bruninha, conheça os Karamanlis! — Ele aponta para Alex e mim. — Claro que você pode deixar seu cartão com eles depois, mas eu sou o mais bonito, não sou?

Ele segura a mulher pela cintura e a gira.

— Já bêbado? — Olho para Alex, que balança a cabeça.

— E mais uma vez com acompanhante paga! — Ele chega mais perto de mim. — Estou achando que nosso querido irmão é do outro time.

Gargalho alto, quase engasgando com meu uísque, o que chama a atenção das duas mulheres, que param de conversar e me olham.

— Perdoem-me, foi irresistível! — Bebo mais um gole. — Bom, certamente ele é arrogante e orgulhoso demais para “sair do armário”.

— Seria apenas mais um rejeitado pelo seu querido pappoús! — Alex diz antes de beber seu champanhe.

Olho para meu irmão sem saber o que dizer para aplacar essa dor que ele traz dentro de si desde criança. Quantas vezes menti a ele dizendo que Geórgios era um homem muito ocupado, mas que pensava nele. Quantas e quantas desculpas inventei ao menino para justificar o fato de nosso avô nunca o ter conhecido ou mesmo reconhecido como neto.

Alex se levanta e chama Samara para dançar. Valentina me olha, provavelmente esperando o mesmo de mim, vendo meus dois irmãos na pista com suas respectivas acompanhantes, mas finjo não entender. Não tenho vontade de dançar agora, não depois que as amargas lembranças voltaram a me atormentar.

Pego mais uma dose de uísque e respiro aliviado quando vejo o jantar começando a ser servido. Confiro o menu em cima da mesa para ver o que está no cardápio do chef Angelot e fico satisfeito com as escolhas dele.

A música muda, ficando mais suave e baixa, as luzes todas são acesas, e vejo um a um retornar à sua mesa para degustar a comida três estrelas do chef francês convidado da noite.


O jantar foi um sucesso total!

Nunca vi tamanho silêncio entre os convidados de um baile, efeito da perfeição de cores, texturas e sabores do chef Thierry Angelot. O tradicional menu em sete etapas consistiu em: aperitivo – camarões salteados com legumes envoltos em nori; entrada – mini tartar de salmão com tomate; prato principal – costelas de cordeiro com guisado de quinoa e espinafre; prato de queijos; um café especial; sobremesa – profiteroles; e, por fim, um digestivo que eu acabei por dispensar. Cada etapa foi harmonizada com um vinho diferente que eu neguei, pois não queria prejudicar o paladar do meu puro malte.

— Valeu cada centavo do convite! — ouvi uma pessoa comentar enquanto eu circulava pelo salão.

Encontrei alguns conhecidos – a maioria já não usava mais as máscaras – e fiquei um bom tempo conversando sobre negócios.

— Você veio, stronzo! — Frank me cumprimentou quando nos encontramos. — Vi seus irmãos na pista de dança, mas essa sua cara tediosa eu não vi.

— Sem ânimo para danças! — Dei de ombros. — Deve ser a idade.

Ele gargalhou, negando, pois é alguns anos mais velho que eu.

— Aposto que está andando por aqui babando no trabalho de sua irmã! — Sorri sem jeito, porque ele me conhece demais, na verdade é o único de fora da família que sabe os motivos que nos levaram a sermos tão fodidos desse jeito.

— Ela se superou! — confessei. — Kyra é melhor que todos nós, os homens Karamanlis. Começou sua empresa sem ajuda, batalhou para conseguir chegar aonde chegou. — Bebi mais um pouco. — Nós já pegamos tudo pronto.

— Nossas irmãs são desertoras, essa é a verdade! Não se abandona o negócio da família, nunca!

Ri dele, pois sei o quanto ainda o chateia sua própria irmã ter saído da Rede para montar sua própria agência de publicidade. Fiquei conversando um pouco mais com Frank, perguntando sobre as crianças – ele já tem três filhos – e sobre os negócios.

Há alguns anos nossa conversa seria sobre mulheres, uísque e negócios. Ele sempre com aquele cigarro na boca, tentando me convencer a comprar uma moto, coisa que nunca fiz e provavelmente nunca farei, pois elas não fazem minha cabeça. Prefiro carros potentes, confortáveis e cheios de segurança.

Em certo momento da noite, Kyra passou por mim, minha bela irmã com seu porte de deusa, cabelos cheios e escuros, olhos verdes e pele morena, vestida em um terninho preto básico, com um tablet na mão e um radiocomunicador na orelha.

Ela parou em seco quando me viu. Tentei sorrir e me aproximar, mas imediatamente ela se virou e saiu de perto como se eu fosse um leproso. Respirei fundo e bebi todo o conteúdo do copo.

Minutos depois, já de volta à mesa, ouvimos o aviso da contagem regressiva, e o salão explodiu em vivas e desejos de Feliz Ano Novo. Valentina se pendurou no meu pescoço e me beijou, desejando que o ano fosse especial para nós dois.

Houve música, comemoração e, por fim, o leilão começou.

Todos nos sentamos a nossas mesas, e os inscritos para os lances – já sabendo o que queriam comprar através do belo catálogo que tinha sido elaborado – receberam placas de identificação.

O leiloeiro apresentava a peça, saudava o doador, que geralmente se punha de pé para receber os aplausos de todos, e começava o jogo a partir de seu lance mínimo. Um dos momentos em que mais me diverti foi quando uma guitarra de blues – antiga e que pertencera a um dos grandes dessa área – foi disputada lance a lance por Frank e um outro homem. O negócio ficou tão acirrado que o doador, um integrante de uma banda de rock chamado Cadu, precisou mediar a situação.

Outro grande momento foi quando Nicholas Smythe-Fox doou um dos seus famosos potros PSI – Puro Sangue Inglês. Eu até dei um lance por diversão, até Alex participou da brincadeira, mas a coisa ficou feia mesmo entre Kostas e mais uns dois convidados – entre eles uma mulher. Meu irmão ficou a ver navios, e a dama levou o potro, o que, por si só, já me encheu de satisfação por ter vindo.

Acabei arrematando um final de semana em uma ilha particular em Angra dos Reis, uma doação do dono da ilha, um escritor de sobrenome Palmer. Não fazia ideia de quando poderia ir, mas briguei ferrenhamente para conseguir. Adoro o mar e podia me ver lá, na bela casa que apareceu no telão, desfrutando de paz e tranquilidade naquela linda baía de Ilha Grande.

O leilão durou mais de duas horas, mas foi muito divertido. Agora, prontos a voltar à sequência do baile, Valentina se pendura no meu braço e beija minha orelha.

— Eu adoro Angra! — sussurra. — Pensei que iria comprar alguma obra de arte. Fiquei surpresa por querer um final de semana em uma ilha particular. — Sorri. — Alguma ideia malvada?

Vagarosamente abro um sorriso, gostando da brincadeira, apreciando que ela esteja tão mais solta, sem todo aquele “protocolo” estranho de antes.

— Talvez — respondo em provocação, e ela faz um biquinho sexy.

A banda se posiciona para voltar a tocar, mas, antes da primeira nota, Frank aparece no palco.

— Atenção, por favor. — Uma luz se acende sobre ele. — Antes de voltarmos a dançar e a nos divertir, não posso deixar de cumprimentar publicamente o responsável pelo espetacular jantar desta noite, que, além de ter nos proporcionado a honra de provarmos sua comida, ainda doou seu cachê! Chef cuisinier Thierry Angelot, applaudissements, s'il vous plaît!

— C'est moi qui vous remercie de pouvoir participer — responde e olha para trás, chamando alguém para junto dele. Continua falando em francês: — Quero agradecer à maravilhosa equipe do chef Emílio, responsável pela cozinha do hotel, e à minha querida amiga. — Quase engasgo ao reconhecer a mulher ao lado dele. — Chef Maria Eduarda Hill, que foi minha souschef e ajudou a pensar e elaborar cada prato que experimentaram hoje.

Fico um tempo olhando para ela, ainda sem poder acreditar que estava aqui, neste baile, o tempo todo. Era óbvio! O almoço de ontem era por esse motivo, ela o estava ajudando na cozinha!

Maria Eduarda traduz tudo o que o chef falou para o português, e seu sorriso, mesmo de cima do palco, acerta-me em cheio, fazendo meu corpo estremecer, reavivando aquele momento que passamos ontem, antes de sermos interrompidos pelo chef.

Valentina fala algo em meu ouvido, mas não consigo prestar atenção, não consigo desviar os olhos da mulher sobre o palco, que ri e conversa em francês e em português com o chef e com o Frank.

Olho para Valentina, tentando entender o que porra está acontecendo comigo! Ela é perfeita em todos os sentidos, linda, jovem, bem-educada, de família tradicional, além de ser gostosa e sedutora quando quer. No entanto, não senti nem metade com ela grudada ao meu corpo, com a boca na minha, do que sinto agora, apenas ao olhar Duda Hill.

— Vamos? — ela pergunta.

— Para onde? — questiono, pois não ouvi nada do que ela esteve falando.

— Para meu apartamento. — Desliza as mãos pela lapela do meu smoking. — Estou cansada e querendo ficar um pouco a sós com você.

Novamente olho de soslaio para o palco, mas Duda e o chef já não estão mais por lá. A banda volta a tocar, e eu respiro fundo.

Preciso investir em Valentina, pois ela é mais do que somente uma trepada gostosa, pode ser a mulher com quem eu vá me casar e ter um filho. Duda e eu, apesar da atração, nunca passaríamos de uma aventura, e isso, sinceramente, eu já tive demais.

— Vamos!

Ela sorri com minha resposta e se despede de Samara.

Seguimos para fora do Villazza SP, porém, antes de chegarmos ao saguão, puxo-a para meus braços e a beijo, querendo sentir aquele mesmo tesão que senti há pouco apenas com a visão da cozinheira no palco.

A sua resposta é tão animada que acende um pouco meu desejo, mas ela logo se afasta de mim, puxando-me pela mão como se eu fosse um cachorrinho em seu encalço.

Ligo para o Dionísio, e, em menos de cinco minutos, o carro para na calçada do hotel. Seguimos para o endereço do apartamento de Valentina, com ela, talvez por causa da bebida, já quase em cima de mim, lambendo meu pescoço, falando coisas sujas em meu ouvido, e eu...

Bem, detesto esse clichê, mas devo admitir que isso nunca me aconteceu antes!

Não consigo tirar a porra da Duda Hill da cabeça, pensando que ela ainda está no hotel, sentindo o cheiro de seu perfume, o calor da sua pele, louco por descobrir de uma vez como é o sabor de sua boca.

— Theo? — Valentina me chama, e noto que já chegamos. — Tudo bem? Você parece um tanto desligado...

Fecho os olhos e respiro fundo.

— Acho que bebi demais. — Ela fica séria. — Estou com uma leve indisposição, então acho melhor deixarmos para nos ver outro dia.

— Tudo bem. — Dá de ombros, visivelmente frustrada. — Tem certeza?

Merda, Theo, o que você está fazendo?!

— Tenho, sim. Boa noite, Valentina! — Beijo sua testa.

Sua testa!

Ela não esconde a decepção e, sem nem mesmo esperar que Dionísio abra a porta do carro, sai, batendo-a ao fechá-la. Espero-a entrar na portaria e deito minha cabeça para trás, no encosto do carro.

— Tudo bem, chefe? — Dionísio pergunta preocupado. — Direto para casa?

Fico mudo, em guerra comigo mesmo, sabendo o que eu deveria ter feito, mas indo na direção contrária. Totalmente irracional!

— Volte para o Villazza o mais rápido que conseguir.


Estar de volta a uma cozinha profissional do nível da do hotel Villazza SP é, ao mesmo tempo, emocionante e horripilante. Estou longe desse mundo há tantos anos que tenho medo de ter desaprendido como tudo funciona, ter perdido o ritmo, sabendo da correria que é, ainda mais em um evento desse porte.

Chegamos cedo à cozinha, dividimos as tarefas por equipe de acordo com o menu que Thierry e eu fechamos ontem, depois do nosso almoço no Vincenzo’s.

Um tremor percorre meu corpo ao pensar que Theodoros Karamanlis provavelmente estará presente nesse baile, acompanhado de uma bela mulher, enquanto come o que preparei com tanto afinco. Se pudesse, iria colocar algum tipo de purgante em seu prato e...

Balanço a cabeça a fim de afastar esse pensamento ridículo. O homem mexe comigo, descompassa meu coração, aquece meu corpo, mas isso não é motivo para que eu me sinta tão vingativa por ele se divertir com outra.

Não, claro que não! Que ideia mais absurda!, penso, selando os cortes de carnes que serão mantidos em banho-maria, cozinhados em temperatura baixíssima, até o momento de serem colocados na grelha e empratados.

O que me move a ter pensamentos tão duros com relação ao CEO da Karamanlis certamente é sua insistência em querer tirar o que é meu, não qualquer outro motivo! Pouco me importa com quem ele sai e se diverte. Não temos e nunca teremos nada um com o outro!

Mentirosa!, acusa-me a consciência, mas não lhe dou ouvidos.

Thierry conta comigo para apresentar o menu mais sofisticado que a sociedade paulistana já provou em um baile, e, mesmo com um trabalho gigante pela frente, não vou ter meu foco desviado por nada, nem mesmo por Theodoros Karamanlis, seu olhar sedutor e toque irresistível.

— Tudo certo? — Thierry pergunta-me. — Preciso te ter atenta para traduzir tudo o que eu digo aos demais.

— Oui, chef! — Pisco para ele, enquanto prova o marinado que fiz para o cordeiro. — C’est bon?

— Parfait!

Não será fácil cuidar dos molhos e ajudá-lo a coordenar a brigada, mas é para isso que estou aqui. Vou até o pâtissier18 e o encontro com seus cozinheiros já bem adiantados na preparação da sobremesa. Mesmo antes do começo da correria louca que será essa cozinha durante o baile, já há a agitação crescente da preparação dos alimentos.

Cada uma das sete etapas precisará ter todos os pratos prontos, com intervalos mínimos entre uma e outra. Olho para o mapa do salão todo preenchido com o número de ocupantes de cada mesa e mais uma vez me pego pensando em onde Theo estará.

Respiro fundo, rememorando a ordem que chef Angelot e eu programamos para que os garçons possam servir. Luan, um dos boqueteiros19, foi instruído a organizar toda a distribuição dos pratos de acordo com os que liberarmos na boqueta.

— Olá! — uma mulher morena, com olhos de um tom de verde que só vi uma vez na vida, cumprimenta-me. — Você é a chef Hill?

— Sim! Em que posso ajudá-la?

— Sou Kyra Karamanlis, da ???p?20 Produções e Eventos. — Ela estende a mão, e eu, depois de passado o choque causado por seu sobrenome, saúdo-a. — Eu estive há pouco tempo com o chef Angelot, e ele me pediu para procurá-la. — Ela chama duas mulheres. — Essas são Marília e Andréia, trabalham comigo e irão permanecer na cozinha a fim de fazer uma ponte com minha equipe, por causa do cronograma.

— Ah, sim, ficamos sabendo disso ontem. — Sorrio. — Fiquem à vontade!

— Obrigada! — Elas sorriem e me cumprimentam também.

Vejo a Karamanlis conversar com suas funcionárias e, em seguida, sair da cozinha falando sem parar em seu radiocomunicador.

— Foi ela quem organizou tudo isso? — inquiro a uma delas – não sei se Marília ou Andréia –, apontando em direção ao salão.

Passei por lá há pouco tempo, e o que vi me impressionou muito. A suntuosidade, luxo e, principalmente, a riqueza nos detalhes fez com que eu tivesse a sensação de realmente estar entrando em um espetáculo como uma vez assisti no Cirque Du Soleil.

— Sim, foi Kyra quem fez todo o projeto de decoração. — Sorri. — Ficou impressionante, não?

— Sim, lindíssimo! — Olho para a minha bancada, ciente de que tenho que continuar o trabalho, porém, deixo a curiosidade falar mais forte. — O sobrenome dela, Karamanlis, tem ligação com a empresa imobiliária?

É a outra mulher quem me responde:

— Sim, ela é a caçula da família e não trabalha com eles, é independente.

Irmã ou prima do Theo?, tenho vontade de perguntar, mas não o faço, voltando para minha estação de serviço, adiantando o molho da entrada, deixando de lado qualquer pensamento ou curiosidade acerca dos Karamanlis.

 

 

— Gostaríamos de agradecer o empenho de cada um de vocês — traduzo as palavras de Thierry. — A forma como trabalharam, a perfeição e o cuidado com cada prato, cada elemento, foram dignos da melhor cozinha de um restaurante três estrelas. Agradeço ao Chef Emílio pelo prazer de compartilhar de sua cozinha e a oportunidade de conhecer o trabalho de cada um aqui nesta noite!

Thierry ergue sua taça de champanhe, e todos o seguimos, brindando pelo fim do trabalho executado sem nenhum percalço, seguindo corretamente o cronograma da organização e o do nosso menu.

Estou um bagaço, confesso, mas nunca me senti tão viva desde que deixei o L’Amande em Paris há sete anos. Cozinhar no Hill é uma delícia, meus companheiros de trabalho são únicos, divertidos e amigos de verdade. Contudo, trabalhar de novo em uma cozinha de alta gastronomia relembrou o motivo pelo qual eu estudei e me esforcei tanto.

Aquela agitação, os pratos sofisticados, os ingredientes de qualidade e a apresentação artística de cada prato reacenderam a chama dentro de mim. Amo cozinhar, mas há anos o venho fazendo apenas como um meio de ganhar meu pão de cada dia. Há anos não arrisco, não deixo a criatividade tomar conta de mim e o simples ofício de juntar ingredientes se tornar a arte de harmonizar sabores.

Ficamos horas cozinhando hoje, preparando prato por prato, etapa por etapa. A verdade é que nunca vi uma boqueta tão movimentada quanto a desta noite. Liberamos mais de 1200 pratos – desde o aperitivo até os queijos –, mais de 300 sobremesas, além do café e do licor.

Relaxamos depois, todos reunidos para cear o Ano Novo – ideia de Thierry – enquanto começava o leilão tão aguardado da noite.

Eu estava limpando minha estação quando Kyra Karamanlis entrou na cozinha mais uma vez e foi diretamente falar com Angelot. Segundo ela, Frank queria agradecer pelo jantar e por ele ter doado o cachê em prol das intuições beneficentes da noite.

Vi-o tirando o avental e vindo em minha direção.

— Duda, ma petite, j'ai besoin de toi pour m'accompagner.21

Foi assim que, com a dolma manchada, turbante cheio de pimentinhas desenhadas, fui parar em cima do palco, no meio da granfinada de São Paulo, mas com a preocupação de ser vista por apenas uma pessoa.

De onde eu estava, não era possível identificar ninguém, pois o salão estava escuro e boa parte dos convidados ainda estava usando as máscaras. No entanto, ainda sem poder vê-lo, sentia seu olhar sobre mim. Minha pele estava arrepiada, e eu sentia pequenos calafrios em minha coluna.

Em algum lugar daquela multidão, estava o homem que eu devia querer o mais longe possível de mim, mas que não deixava meus pensamentos nem por um minuto.

Traduzi o que Thierry falou, agradeci, em meu nome, a oportunidade diretamente para o CEO da rede Villazza – que por sinal não me era estranho; provavelmente já estampou muitas revistas da tia Do Carmo – e voltei para a cozinha a fim de terminar a limpeza e ir para casa.

— Duda! — Emílio, o chef executivo do restaurante do hotel, me chama, e paro de pensar na noite. — Você foi incrível esta noite! Thierry me disse que você mora aqui na cidade. — Assinto, e ele estende um cartão para que eu o pegue. — Tenho uma vaga para você em minha equipe se não estiver à frente de nenhuma cozinha.

Nem preciso dizer que meu coração disparou de felicidade. Olho em volta, adorando cada utensílio, cada estação organizada, pensando em como deve ser incrível trabalhar com ele aqui. Aceito o cartão.

— Eu agradeço, chef, mas no momento tenho meu próprio negócio.

— Ah, é mesmo? Onde? Eu adoraria experimentar um pouco de sua comida.

Sorrio.

— Hill Wings Pub. — Ele não disfarça sua surpresa. — Eu tenho um boteco na Vila Madalena.

— Um pub? Que inusitado!

Rio, achando engraçado que ele tenha ficado tão sem jeito.

— É de família, assumi quando meu pai faleceu. — Dou de ombros. — Não é alta gastronomia, mas me divirto cozinhando.

— Mas seu talento... — Ele respira fundo. — Enfim, você sabe o que é melhor. Se quiser voltar para uma cozinha francesa, tem lugar aqui comigo.

— Seria uma honra, chef — digo com sinceridade. — Obrigada.

Mal terminamos de falar, e uma agitação na entrada da cozinha chama nossa atenção.

— Ah, meu chefe! — ele comenta rindo. — Não fazia ideia de que viria aqui nos cumprimentar.

Frank Villazza vem caminhando até onde estamos, charmoso, com seu sorriso de lado e um porte de modelo, porém, não consigo ficar mais do que alguns segundos o observando. Meus olhos são atraídos para o homem ao seu lado, lindo, em um smoking de corte perfeito, com expressão séria e frios olhos azuis fixos nos meus.

Frank Villazza fala algo sobre vir nos cumprimentar pessoalmente. Vejo Emílio ir até ele, mas não consigo ouvir nada do que diz. O magnetismo de Theodoros Karamanlis me prende, simplesmente não posso parar de olhá-lo e, ao que parece, nem ele a mim.

No meio do discurso do Frank, Theo caminha em minha direção, porém, antes que me alcance, Thierry me chama e pergunta como irei para casa.

— Uber — informo, virando-me de costas para o irresistível grego. — Já ia chamar antes da entrada triunfal de Francesco Villazza.

— Ele já acabou! — Aponta, e eu olho para trás, vendo-o se despedir de Emílio. — Quer que eu a leve?

— Não precisa, Thierry. — Beijo sua bochecha. — Muito obrigada pela noite de hoje.

— Nos veremos amanhã no seu bar.

Sorrio, empolgada.

— Te espero lá!

Despeço-me de todos, pegando minha pequena mala contendo o uniforme, facas e turbantes – sempre levo mais de um por precaução – e saio do restaurante em direção à saída de funcionários do hotel.

Espero chegar à calçada e abro o app para pedir um carro, mas, antes que eu confirme a viagem, um Mercedes preto para bem na minha frente, e o vidro da porta traseira é aberto.

— Aceita uma carona?

Prendo a respiração, seguro forte o aparelho celular para não o derrubar no chão de tanto que estou trêmula e encaro Theodoros Karamanlis.

— Não — recuso. — Posso me virar sozinha. — Chacoalho o telefone para que veja que estou chamando o Uber.

— Não perguntei se sabia se virar sozinha, Maria Eduarda. — Dá um leve sorriso. — Sei que consegue, mas quero levá-la. Aceita?

Merde! Ele não facilita para mim falando desse jeito e com esse sorriso.

— Eu acho melhor não...

— Ei, é um pedido de trégua! — Agora abre o sorriso de forma que seus olhos se iluminam. — Está tarde para andar sozinha com um desconhecido.

Franzo as sobrancelhas.

— Você é um desconhecido.

Theodoros gargalha.

— Não, Duda, eu não sou. — Ele abre a porta do carro. — Entra, prometo que te deixo em casa inteira. — Dá um sorriso safado. — Prometo não morder... a não ser que me peça.

Um arrepio percorre minha coluna. Olho para o telefone em minha mão, com o pedido de confirmação da viagem para o motorista mais próximo vir me buscar, e para o homem me esperando, de porta aberta, sorriso malicioso e a mesma promessa de prazer que senti desde que nos encontramos pela primeira vez.

O que eu faço?

 


                                           CONTINUA