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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


THEO
THEO

                                                                                                 

 

 

 

 

Ri do seu exagero, afinal, a Vivi não tem nada de fria. Millos implica com ela pelo simples fato de a mulher ter personalidade e não se deixar comandar por ninguém. No primeiro momento ele se sentiu atraído, Vivi é um espetáculo aos olhos, e ela também não disfarçou o interesse. No entanto, bastaram alguns minutos de conversa para que se odiassem.

— Hoje ela conseguiu algo incrível — comentei. — Valentina de Sá e Campos, já ouviu falar?

Ele riu.

— Dela não, mas conheço os sobrenomes. Família paulistana tradicional, bom currículo. — Cruzou os braços e me olhou debochado. — A futura senhora Theodoros Karamanlis?

— Talvez — fui sincero. — Conversei um pouco com ela nesta noite, achei-a divertida, inteligente e sedutora. A princípio achei que era muito nova, mas é madura e independente, cheia de opinião. Gosto do tipo.

— Eu sei. — Ele se levantou e foi pegar mais cerveja. — Foi Viviane quem te apresentou a ela? — Assenti. — Não sei se gosto disso, mas boa sorte.

Gargalhei pela implicância dele com a Vivi e resolvi desviar o assunto. Falamos da Karamanlis, de música, de motos e, por fim, já muito bêbado e com sono, caí sobre o sofá dele e acordei há pouco, com torcicolo e com uma puta dor de cabeça.

— Ei! — Millos me saúda estendendo uma xícara de café. — Você está destruído!

O desgraçado ri, mas nem posso mandá-lo tomar no cu, porque minha cabeça trepida parecendo que há uma britadeira no meu cérebro. Maldita cerveja! Malditos bolinhos envenenados da Duda Hill!

— Cara, você é fraco para minha cerveja! — Millos ri. — Ficou boa, não é? — Apenas assinto, ainda tomando o café para melhorar meu ânimo. — O que está programado para fazer nesse final de semana?

— Vou trabalhar. Como saí um pouco mais cedo ontem por causa do vernissage, Rômulo separou umas pastas para que eu lesse nesse final de semana. Coisa chata, principalmente da pauta da reunião do conselho.

— Por falar no conselho... — Ele se senta ao meu lado no sofá e apoia os pés descalços sobre a mesinha de centro. — Ontem tive notícia do Kostas. — Ri. — Parece que tomou um toco feio da Kika e está cuspindo marimbondos.

Gargalho, esquecendo a dor.

— Como queria ter visto esse embate!

— Eu também.

Bufo, mesmo divertido, lembrando que o meu problema continua.

— Preciso trazê-la de volta para a empresa com urgência. Há vários projetos dos hunters parados, e o Rômulo não está dando conta de organizá-los.

Millos rola de rir no sofá.

— Esse seu assistente é muito estranho. Sinceramente não entendo como você ainda o mantém trabalhando contigo!

— Gosto de ele ser metódico. — Dou de ombros. — É organizado, embora meio desastrado, nunca perde um prazo e faz tudo o que eu peço.

— Seu próprio espelho, não é? Nunca conheci ninguém mais chato que você para organização.

Ergo uma sobrancelha para ele e olho em volta para seu loft cheio de espaço, mas sem nenhuma lógica ou senso de estilo. Millos gosta de coisas rústicas, e respeito isso, acho legal, mas é tão bagunceiro que seus móveis caros de design parecem ser cacarecos de alguma casa demolida.

Os únicos locais arrumados são: a cozinha, o “laboratório” de cerveja (como ele mesmo se refere ao local) e onde dorme. O resto... tem peças de motos para todos os lados, mesmo a oficina ficando na parte de baixo do galpão que ele chama de loft, tem barris com os ingredientes que compra para a fabricação de cerveja, roupas, discos e óculos (nunca vi tantos para uma só pessoa) espalhados por todos os lados.

O homem é um caos completo em casa, mas, se alguém entrar na sala dele na empresa, vai acreditar que é o epítome da organização. Não entendo como consegue!

— Bem, sobre a Kika, eu posso te adiantar que não precisa se preocupar — Millos continua. — Falei com ela ontem, e vai voltar.

Expiro o ar, aliviado.

— Porra, Millos, porque não me contou antes? É um alívio do cacete não ter que lidar com mais esse problema e...

— Mas ela não quer ser mudada de andar.

— O quê? Ela está fazendo exigências?

Millos penteia a barba com os dedos, enervando-me com sua calma.

— Demonstramos desespero ao mandar o Kostas pedir arrego. — Concordo com ele nesse ponto. — Ela quer aumento, continuar no andar e... — Tenta conter o sorriso, e prevejo que vem bomba, mas ele vai dar um doce do cacete para falar.

Perco a paciência e esbravejo:

— O que mais ela quer?!

— Carta branca para mandar seu irmão se foder à vontade.

— Porra!

Ponho as mãos na cabeça, sentindo a dor de cabeça voltar com tudo e ouvindo a risada debochada do Millos.

Eles querem me enlouquecer, só pode!

 

 

A dor de cabeça me acompanhou ao longo de todo o final de semana. Tomei analgésico, antiácido e – seguindo os conselhos do meu primo – mais um pouco de cerveja. No entanto, não consegui me livrar do incômodo insistente.

Trabalhei o sábado inteiro, recebendo ligações do Rômulo quase de hora em hora, a ponto de ficar puto com ele e mandá-lo caçar algo para se divertir e me deixar em paz. Compreendo que ele queira me ajudar, mas, às vezes, sua dedicação exacerbada me estressa.

Recebi um convite para jantar de uma antiga amante que vinha a São Paulo de tempos em tempos, mas neguei. Queria apenas relaxar um pouco em casa depois de ter trabalhado em páginas e mais páginas de relatórios com uma dor de cabeça chata a me distrair.

Pedi comida em um restaurante de comida vegana, achando que pudesse ser a gordura dos bolinhos do Hill – velha e rançosa, com certeza – que me deu essa indisposição e resolvi assistir a alguns filmes antigos. Sou fã de “O poderoso chefão”, então comecei a assistir a cada um deles de novo.

Novamente dormi em um sofá, mas acordei melhor e resolvi correr um pouco. Passei umas duas horas no Ibirapuera e, na volta, encomendei o almoço de domingo, sentindo-me um pouco órfão sem a Vanda em casa.

Liguei para Millos a fim de fazermos algum programa à tarde, mas ele estava com alguma mulher em algum clube ou lugar que só Deus sabia, então voltei aos relatórios, e isso consumiu o resto do dia.

Debaixo do chuveiro, rememorando este final de semana de merda, ouço meu telefone tocar, mas o ignoro. Coloquei os jatos no mais forte possível para tentar aliviar um pouco a tensão que venho acumulando nesses dias. A verdade é que preciso trepar um pouco, divertir-me, talvez fazer uma viagem ou passar um final de semana com alguém sem pensar no trabalho.

A imagem da Valentina vem à minha mente, sua conversa gostosa, seu sorriso bonito. Contudo, ainda não me sinto completamente certo de que devo me envolver com ela, principalmente por uma questão: não senti muita atração.

Sei que isso é de momento e que pode mudar, principalmente se a convivência for boa. Nem sempre sentimos atração pela pessoa no primeiro encontro, e já vivi anos demais para saber que até um primeiro encontro explosivo pode depois esfriar e o tesão ser extinto, então, não me baseio apenas nessas primeiras impressões.

Fecho os olhos e penso na garota da boate há alguns anos. Ela vem preenchendo minhas fantasias há muito tempo, talvez por ter sido gostoso daquela vez e não ter tido mais notícia dela.

Mal lembro do seu rosto, de tão bêbado que estava, sempre quando fantasio vejo os cabelos e me lembro da loucura que foi nossa transa naquele banheiro.

O telefone volta a tocar, e desligo o chuveiro, saindo do boxe para ver quem é o chato. Rio ao ver o nome do Millos. Na mosca!

— Já terminou sua maluquice sexual com a “submissa” da vez? — provoco.

— Vá se foder e não se meta nos meus assuntos — rosna. — Liguei para saber se amanhã pode ir comigo a um restaurante que um amigo inaugurou nos Jardins.

— Boa comida ou é boteco?

— Não, seu fresco, é coisa fina! Vanda ainda não estará de volta, não é?

Suspiro, resignado.

— Não, ela ainda vai ficar um tempo no Rio de Janeiro. Está certo, amanhã combinamos isso melhor no escritório.

— Okay! — diz animado. — Vai almoçar no refeitório junto aos funcionários?

— Sempre há uma primeira vez, não é? — Deixo a toalha no suporte e sigo para o closet. — Além do mais, confio que servimos algo de qualidade aos funcionários.

Millos ri.

— Essa eu quero ver! Nos encontramos no almoço, então! Boa noite, Theo.

— Boa noite!

Desligo o telefone e me olho no espelho, lembrando-me do tempo em que comia qualquer coisa e em qualquer lugar, na maioria das vezes sujo e fedendo a peixe, sentindo-me feliz e livre.

— Quem é você, Theodoros Karamanlis?


O dia nem bem amanheceu, e eu já estava suando na academia com a Sandra. Hoje, sem Millos, o treino foi mais tranquilo, seguindo o ritmo normal dos exercícios. Tomei meu café sozinho na cozinha – café puro mesmo – sentindo imensamente a falta da Vanda, de sua conversa matutina animada e seus cuidados. Posso não admitir sempre, mas gosto de ser cuidado, de sentir esse afeto, coisa tão rara na minha vida.

Limpei os pensamentos e saí para trabalhar.

— Bom dia, Dionísio! — cumprimentei o motorista como em todos os dias, já pegando meu jornal para me inteirar sobre as principais notícias do dia. — Hoje vou almoçar na empresa, mas, à noite, vou sair do escritório direto para jantar com Millos.

— Levo o doutor ou trago o carro?

— Traz o carro, vou dirigindo.

Ele assentiu, e seguimos viagem em silêncio, ele concentrado no trânsito, e eu, nas notícias de economia do país e do mundo.

Cheguei à empresa já apagando incêndios. Um dos projetos de um cliente foi reprovado por uma comissão municipal, então Kostas teve que intervir mandando seus advogados e acompanhando todo o processo. Eu, como CEO, fiquei aguentando a aporrinhação do gerente responsável pela implantação da empresa multinacional aqui no Brasil.

Nem vi a hora passar, mal tomei meus cafés tão tradicionais ao longo da manhã, irritado com esse problema, com o Rômulo borboleteando ao meu redor me enchendo de perguntas: “quer café?”, “ligo para o doutor Konstantinos?”, “quer um calmante?”. Eu quase explodi de raiva, sentindo meu estômago fritar e a cabeça estourar.

Desci para o refeitório faltavam alguns minutos para o meio-dia e, para meu espanto, ainda não tinha nenhuma refeição pronta. Conferi as horas no Omega, um dos relógios mais precisos do mundo, e estranhei a demora. Rômulo apareceu e, quando lhe questionei o atraso, fiquei sabendo que o almoço era servido a partir da 1h da tarde.

Voltei para o escritório sob a insistência de Rômulo para me encomendar o almoço em algum restaurante.

— Não! Hoje vou comer no refeitório — insisti.

Millos me lançou um desafio por eu nunca ter comido na empresa desde que foi inaugurado o refeitório para os funcionários. Pensamos no restaurante para facilitar a vida de todos e, como tínhamos espaço, decidimos montar a estrutura. Estive presente no primeiro dia, na inauguração, há alguns anos, mas depois disso não botei mais os pés no local.

Exatamente às 13h desci novamente pensando em usufruir de um almoço tranquilo e nutritivo, porém, o que encontrei me deixou sem ação. Primeiro, os funcionários ficaram estarrecidos ao me ver ali; percebi em seguida que apenas o baixo escalão da empresa – de coordenadores para baixo – estava comendo ali. Não havia nenhum gerente ou diretor no meio dos mais de 100 funcionários da companhia.

Contudo, o que mais me surpreendeu foi a comida. Não, não era ruim, pelo contrário, era bem preparada, mas sem nenhuma opção para substituição.

— E quem não pode comer carne vermelha? — questionei ao Rômulo, e ele apenas corou, fingindo não ouvir. — Há cardápios diferentes ao longo da semana?

Rômulo continuava a montar seu prato sem emitir qualquer resposta, o que não é nada típico dele, e isso me irritou. Quando não era para falar, o homem tagarelava, mas, quando eu precisava de respostas, ficava mudo!

— Rômulo! — chamei-o de modo mais enérgico. — Eu estou tentando entender o que...

— Não, não há! — escuto a voz do Alex e me viro para encará-lo. — E seu querido assistente não sabe informar porque não come aqui também. — Meu irmão pegou um prato e se serviu naturalmente. — A questão do restaurante entrou em pauta numa reunião de diretoria, mas o senhor todo-poderoso do Olimpo achou que não era uma questão relevante para a economia da empresa e pulou o assunto.

Olhei de esguelha para Rômulo buscando confirmar a informação, e ele atestou. Xinguei mentalmente.

— Uma empresa é feita de mais do que números, Theodoros Karamanlis — seu desprezo pelo sobrenome era evidente. — E, quando fiz a proposta do restaurante, era para que, além de economizar o tempo dos funcionários e agilizar o serviço, também tivéssemos convívio com eles, porém, adivinha quem foi o primeiro a pular do barco e a incentivar o “alto escalão” a ir junto?

Bufei de raiva.

— Quem é o responsável pela gestão do restaurante? — ignorei o discurso do meu irmão idealista e perguntei ao Rômulo.

— É terceirizada, a mesma empresa do pessoal da manutenção.

Merda!

— Marque uma reunião com ela e peça ao Kostas para avaliar o contrato. — Rômulo mais do que depressa escreveu em seu tablet inseparável. — Dispare um memorando para todos os diretores e gerentes, lembrando da existência do restaurante e informando que, a quem for almoçar fora, será necessário cumprir o horário, ou seja, uma hora e nenhum minuto a mais.

Rômulo arregalou os olhos e assentiu.

— Eu pouco vejo você e percebo que nem é preciso! Você não mudou nada, o mesmo prepotente de sempre. — Alex passou por mim, ainda se servindo no bufê, rindo de deboche, e percebi olhares curiosos em nossa direção.

— Eu preciso lembrar que você também faz parte da diretoria e tem acesso irrestrito ao conselho? — Cheguei perto para falar baixo: — Se fosse meu projeto, nunca deixaria chegar aonde chegou só porque não sou o CEO. Isso demonstra que está mais preocupado em ir contra a direção do que lutando pelo bem-estar dos funcionários. Não é minha função tomar conta de tudo, não sou absolutista, eu delego e confio naqueles a quem passo esse poder. — Ele fechou a cara, perdendo o ar de superioridade. — Não tenho intenção alguma de prejudicar os que trabalham comigo, pelo contrário. Mas assumo meu erro em não ter frequentado o local para dar exemplo.

— Mas o doutor também não tem horário certo para almoçar, por isso...

Balancei a cabeça em negativa, freando a defesa de Rômulo. Não tinha desculpas, o exemplo era meu, e eu tinha falhado. Terminei de fazer meu prato, sentei-me a uma mesa com Rômulo e almocei mesmo sentindo um nó na garganta por ter mostrado falha e ter sido repreendido pelo Alex na frente de todo mundo.

Merda!

Ao longo do dia, a repercussão do almoço do CEO no restaurante da empresa, bem como o efeito do memorando para os diretores e gerentes agitaram a tarde na Karamanlis. Percebi todo mundo mais atento, mesmo na correria de sempre.

Tive uma resposta positiva da equipe de Kostas com relação ao projeto vetado e pude passar a boa notícia ao nosso cliente. Recebi vários relatórios dos setores e subsidiárias ao longo do dia, inclusive da K-Eng, dirigida pelo Alex.

Meu irmão é um sonhador idealista, defensor dos fracos e oprimidos, um rebelde que só trabalha conosco para contrariar a família. Cospe sobre nosso sobrenome, mas faz questão de ostentá-lo para afrontar o pappoús. Sempre achamos que ele tentaria afundar a empresa em represália ao tratamento que teve na infância, mas não, ele não só assumiu uma empresa praticamente independente como a fez crescer. Todavia, ainda sinto que há algo por trás disso.

Estaciono o carro na vaga do restaurante, afastando as lembranças do dia e conferindo o endereço que Millos me enviou por mensagem. Estar sem o Dionísio nesta noite é bom, porque vou moderar a bebida, afinal é segunda-feira, e prefiro tomar um copo de uísque quando estiver no meu apartamento.

Tenho expectativa de o jantar ser bom; já o almoço foi complicado e indigesto com a discussão com o Alex e a demonstração de que deixei as coisas correrem soltas demais. Claro que não sou arrogante a ponto de achar que meu irmão não estava com a razão sobre as coisas que me disse, afinal, ele convive mais com os funcionários que eu, mas não gostei de ser contrariado na frente de todos.

Entro no restaurante, e a primeira coisa que percebo é a arquitetura do lugar e a decoração de bom gosto. Isso realmente não diz muita coisa acerca da qualidade gastronômica deles, mas já conta pontos em matéria de conforto. Uma recepcionista, bem-vestida e muito bonita, cumprimenta-me, e lhe dou o nome de Millos, que foi quem fez a reserva.

— Ah, doutor Karamanlis, ele ainda não chegou, mas o senhor pode esperá-lo no bar, tudo bem?

Respiro fundo, conferindo as horas e calculando que ele – se viesse de moto, como sempre – já deveria estar aqui. Olho contrariado para o bar, logo na entrada do restaurante, e meus olhos são imediatamente atraídos para uma mulher vestida de preto, com os cabelos longos, castanhos e lisos, tomando uma taça de vinho.

Não consigo ver todo o seu rosto, apenas o perfil, e isso é suficiente para que eu queira vê-la toda.

— Tudo bem — concordo com a recepcionista, que me aponta o bar.

Caminho para lá e me sento na poltrona alta ao lado da bela mulher. Não a olho, prestando atenção ao bartender que vem pegar meu pedido.

— Scotch, por favor. — Ele pergunta a marca. — The Macallan.

Sorrio satisfeito ao vê-lo pegar exatamente a garrafa que costumo beber e, então, de esguelha, olho para a mulher ao meu lado, procurando algum indício de indisponibilidade – ou problema –, como uma aliança em seu dedo.

Ela não usa nem mesmo anéis. No entanto, o que chama minha atenção são as unhas curtas, bem cuidadas, mas sem esmalte. Hoje em dia o que as mulheres mais fazem é colorir as unhas! Como eu gosto de arte, logo sou atraído pela variedade de cores e a combinação com as mãos e os formatos. Porém, não com ela; suas mãos são lindas, dedos longos, sem precisar de nenhum tipo de enfeite.

Subo o olhar e a encontro me olhando também.

— Boa noite! — cumprimento-a sorrindo assim que o bartender deixa meu copo no balcão.

— Boa noite! — ela responde. Sua voz me causa uma sensação de frenesi, e fico imediatamente excitado. Ela é linda em todos os sentidos da palavra. Seu rosto é delicado, proporcional, olhos expressivos, nariz fino e uma boca generosa. Fico imaginando como será seu sorriso aberto, não apenas esse polido e educado que me dá agora.

Paro de encará-la para não a constranger e tomo um gole do uísque, questionando se devo ou não puxar conversa com ela.

Não sou inseguro, nunca fui, mas às vezes uma mulher só quer estar quieta bebendo sem alguém para importuná-la, por isso sempre espero ver algum indício de que quer papo antes de abordar.

Dou outra olhada de soslaio.

Vamos lá! Quero saber quem você é!


— É a primeira vez que venho aqui — é ela quem faz o movimento, e gosto disso, uma mulher decidida. — Estou surpresa pelo requinte sem a frieza esperada desses restaurantes com esse nível. O pessoal é simpático e organizado.

Rio.

— Você é da área — constato e me viro para ela, girando a poltrona em sua direção.

— Sou. — Sorri finalmente, e me sinto extasiado com a perfeição do gesto. Os olhos ficam levemente puxadinhos, e sua face inteira se ilumina. A mulher fica absurdamente linda quando sorri. Meu interesse é real agora. — Mas hoje vim como cliente.

— Eu só venho como cliente — brinco. — Não sei fritar um ovo!

Ela ri de novo e toma um gole de seu vinho.

— O que seria dos restaurantes se todos soubessem ou gostassem de cozinhar? — Levanta sua taça em minha direção. — Aos que são apenas clientes e podem desfrutar de uma deliciosa refeição sem ficar avaliando cada nuance do prato.

— Justo! — Brindo com ela. — Qual sua formação?

— Cozinha francesa. Diplôme de cuisini e pâtisserie.

Uau!

Meu corpo inteiro vibra e meu pau reage ao som do seu perfeito sotaque francês. Acompanho sua boca em volta da borda da taça de vinho, o leve ondular de sua garganta sorvendo a bebida e sua língua resgatando os resquícios da bebida em seus lábios.

Abaixo a cabeça e bebo um longo gole do uísque, tentando não parecer um tarado assediador, mas louco para perguntar se ela prefere na minha casa ou na dela.

— Pelo francês perfeito presumo que tenha estudado na França... — Ela concorda com um sorriso. — Le Cordón Bleu?

— Naturellement. Estudar gastronomia na França sem ser em Le Cordón Bleu é como ir a Roma e não ver o Papa!

Gargalho com sua comparação e a saúdo com minha bebida.

— É como ir até a Escócia e não provar um verdadeiro uísque.

Levo o copo até a boca e acompanho o olhar dela em mim.

— Sua escolha de bebida me surpreendeu — ela comenta, e franzo o cenho, olhando meu bom e velho single malte e me perguntando qual é o problema com ele. — É uma bebida conservadora, nada sofisticada, ao meu entender, não combinou muito. — Aponta para mim.

Finjo-me de ofendido, embora segure a risada, e cruzo os braços.

— E você é uma entendida em bebidas também? — provoco-a.

A risada dela é tão melodiosa que parece música, seus olhos se iluminam e as bochechas ficam levemente rosadas. Perfeita!

— Nem queira saber! — Beberica um pouco do seu vinho. — Praticamente cresci cercada delas.

— Hum... — Sorrio. — O que combinaria mais comigo, então?

Sou submetido a um olhar avaliador, passando pela minha roupa, sapatos e rosto. Sinto tão intensamente sua atenção sobre mim que é como se ela pudesse olhar além das minhas roupas. Estou exposto, nu, cada músculo aquecendo à medida que seus olhos percorrem meu corpo, concentrando ainda mais desejo em minha virilha. Porra, que delícia!

— Pelo estilo de roupas e o Omega que usa no pulso — ergo a sobrancelha, surpreso pelo bom olho que ela tem —, um Dry Martini.

Gargalho sem me conter, e ela me segue, ambos divertidos pela comparação que ela faz. James Bond? Sim, eu sei que o mais famoso espião dos cinemas só usa relógios da Omega, mas não me vejo com uma taça de Dry Martini na mão, exigindo do bartender: “batido e não mexido”. Gosto de pensar que sou mais rústico que isso. A prova é meu single malte caubói.

— A sofisticação é só uma casca, pode acreditar. Estou longe de ser tão refinado quanto o Bond, ou tão habilidoso. — Ela levanta uma sobrancelha questionadora, demonstrando que não acredita nessa minha “humildade”. — A propósito... — respiro fundo, indo devagar — meu nome é Theo.

Mais uma vez seu sorriso faz meu pau reagir, ficando dolorosamente duro e pulsando na cueca. Que porra de atração é essa? O que essa mulher tem? É divertida, a conversa está fluindo bem, além de ser linda, mas essa atração... não é assim que acontece, ainda mais em um ambiente tão frio quanto o em que estamos.

— Maria Eduarda. — Ela estende a mão, e eu a seguro.

Tudo em volta parece vibrar, e noto que ela também sente isso. Meu sorriso se expande. Não tiro os olhos dos seus. A energia gerada pelo toque esquenta meu corpo e aumenta minha percepção do dela.

Maria Eduarda tem um belo pescoço, e o cheiro suave de um bom perfume parece advir exatamente do ponto onde eu gostaria de passar minha língua. Os ombros são delicados, os braços longos e sem nenhum contorno muscular demonstram que ela não mantém regularidade de exercícios, sendo magra ao natural. Os peitos no decote do vestido são pequenos, porém, redondos e firmes.

O vestido, embora justo, tem um tamanho comportado, por isso não posso ver suas coxas – o que é uma pena –, tão somente as panturrilhas e uns pés lindos – esses, sim, com as unhas pintadas de vermelho – em sandálias de cor clara.

Apesar de ser uma mulher atraente e bonita, não é uma beleza exótica. Sem o sorriso, ela passaria a ser apenas mais uma mulher bonita como muitas outras que existem por aí, porém, não para mim. Algo nela chamou minha atenção desde o primeiro momento. Mesmo com ela de costas, sem nem ao menos ver seu rosto direito, senti-me atraído.

Agora ela me deixa em chamas, tentado a ser direto e lhe propor uma noite de pura sacanagem. Eu o faria se o local fosse mais descontraído e tivesse mais abertura da parte dela, não só a confirmação de que se sente atraída por mim. Em uma boate, por exemplo, eu seria mais efusivo.

— É um prazer enorme encontrá-la aqui — mesmo sendo sutil, quero deixar claro que ela chamou minha atenção. — Salvou minha noite, pode ter certeza.

Ela sorri e solta minha mão.

— Quase não vim — confessa e dá de ombros. — Assunto chato, companhia chata.

Gosto da sua sinceridade.

— Negócios? — Ela assente, e eu adoro a notícia. — Geralmente os meus jantares têm o mesmo motivo.

— Então veio para uma reunião também?

Nego com a cabeça antes de responder:

— Não, hoje só vim comer. Meu primo é amigo do dono daqui e me recomendou o restaurante.

— Isso é bom, espero que esteja à altura da sua expectativa.

— Ainda que não esteja, Maria Eduarda — cruzo os braços e a encaro —, no momento estou ligando o foda-se para a comida ou o restaurante.

Ela fica séria, mas não desvia os olhos.

— É mesmo?

Não respondo de imediato, curtindo esse jogo entre nós. Aposto que ela sabe o motivo pelo qual não tenho mais nenhum interesse na gastronomia do local. Ela quer que eu diga! Quer que eu dê o passo adiante, que demonstre o interesse claramente, o que é um ótimo sinal.

Deixo o silêncio e o ar vibrar entre nós por mais alguns momentos, sem tirar meus olhos de suas belíssimas íris castanhas.

— Porque minha fome é outra desde que encontrei você aqui. — Ela segura o fôlego. — Porque nossa conversa está cada vez mais interessante. — Abaixo o tom de voz: — Porque olhar você e sentir seu cheiro acordaram meus sentidos mais do que qualquer nuance de um prato é capaz de fazer.

Minhas mãos coçam de vontade de tocá-la, de sentir novamente aquela energia sexual percorrendo meu corpo, emanando dela. Não o faço porque ainda não vi sinais suficientes para avançar a esse ponto, e eu sempre espero a permissão de uma mulher para tocá-la.

— Você nem me conhece — ela responde um pouco ofegante.

— Estou louco para conhecer. — Encosto-me melhor à poltrona e me afasto um pouco dela para demonstrar que não a estou pressionando. — Não tenho pressa, Maria Eduarda, só preciso que saiba que você me atrai e que, embora esteja sentado aqui, estou louco para segurar sua nuca e provar o sabor desse vinho que bebe, diretamente nos seus lábios.

Ela suspira e desvia o olhar.

Esse é o momento quando ou eu tomo um fora, ou venço o jogo. Porém, podem dizer que é arrogância, eu sou um homem vivido e, se cheguei até aqui, se me expus dessa forma, é porque estou apostando minhas fichas em que o tesão é recíproco.

— E se eu for casada ou comprometida?

Bingo!

Pela entonação da pergunta, sei que ela não é.

— Eu me desculparei, mesmo ainda sentindo esse desejo maluco de te beijar, e me levantarei, indo para a mesa que meu primo reservou. Não trepo com comprometidas.

Ela levanta as sobrancelhas e assume uma expressão provocadora.

— Não trepa? — Ri, cínica. — Você é muito confiante achando que basta jogar meia dúzia de palavras em cima de uma mulher sozinha em um bar para garantir uma trepada.

— Eu sou confiante. — Aproximo-me a fim de lhe demonstrar de onde vem minha confiança. — Mas não são as “meia dúzias de palavras” que vão fazer você ter vontade de trepar comigo. — Seguro sua mão e com a outra deslizo meu dedo indicador do seu punho até o cotovelo, vendo todos seus pelos se arrepiarem com o leve contato. — É isso!

Maria Eduarda fica um tempo olhando o trajeto do meu dedo sobre sua pele, assistindo, como eu, à deliciosa reação causada por meu toque. Não falamos nada, apenas acompanhamos o leve vai e vem que eu faço no seu antebraço, apreciando o contato. É nítido para mim que ela está avaliando todas as possibilidades e talvez tentando entender como isso é possível.

Já não escuto mais nada, os sons das conversas, a música clássica baixa que toca, a correria do bartender limpando copos, organizando garrafas ou preparando aperitivos. Tudo ao redor some, e só sinto a potência do tesão que ela despertou em mim, esperando que sinta o mesmo e que admita isso.

Ela sorri, mas puxa a mão, rompendo o contato.

— Como já disse, a gente nem se conhece.

— Sou paciente, Maria Eduarda. — Recebo um sorriso tímido. — Vou adorar cada momento até te conhecer. — Afasto-me dela novamente e peço mais uma dose de uísque. — Aceita mais uma taça?

Aponto, mas ela nega, olhando para a entrada do restaurante.

— Infelizmente, não. — Respira fundo. — Meu compromisso chato acaba de chegar.

Viro-me para ver quem é o sortudo que vai jantar com ela, mas só vejo o Millos entrando com uma cara debochada e um sorriso contido. Olho para Maria Eduarda novamente e confirmo que ela não só se levantou à espera do Millos, como parece muito contrariada com a presença dele.

Por que Millos iria marcar para jantar com uma mulher e comigo ao mesmo tempo? As palavras “jantar de negócios” me causam um alerta, mas me recuso a enveredar pelo rumo que meus pensamentos querem ir.

— Ah, desculpem o atraso! — Millos exclama, indo cumprimentá-la. — Que bom que já se conheceram. — Maria Eduarda franze a testa e me encara. — Theo, eu acho que chegou a hora de conversarmos pessoalmente com a Duda.

Porra!

Levanto-me como se tivesse sentado em um formigueiro, estarrecido demais para articular qualquer palavra educada que não seja um palavrão bem cabeludo.

Duda? Olho-a de cima a baixo sem poder acreditar que a mulher que me atraiu como se tivesse um ímã é a infernal dona do boteco que tem feito minha vida um suplício por causa de sua teimosia.

— Theodoros Karamanlis? — ela parece tão chocada quanto eu e já não há nada além de desprezo em sua voz ao falar meu nome.

Desvio um olhar mortal para meu primo, que, além de parecer surpreso, está também muito interessado nessa interação entre nós.

Eu vou te matar, seu filho da puta!


— Aceita mais uma taça?

Minha vontade é de aceitar e pagar para ver Theo jogando todo seu charme para mim, usando armas pesadas para conseguir provar que temos realmente toda essa química que ele demonstrou com um simples roçar de dedos em meu braço.

E temos, sim! Não sou hipócrita a ponto de me enganar dizendo que não senti nada por ele. Assim que se sentou ao meu lado aqui, a esse balcão, meus olhos foram imediatamente atraídos para ele. Quando me cumprimentou, sua voz fez meu corpo inteiro reagir de uma forma estranha, e tive a nítida sensação de que o conhecia de algum lugar.

Porém, foi só quando se virou em minha direção, depois de eu ter puxado assunto descaradamente, que fiquei sem fôlego. Seus olhos são de um azul que eu nunca poderia esquecer caso já os tivesse visto. No entanto, a sensação de reconhecimento persiste. Ele é muito bonito, além de ter um sorriso de arrancar a calcinha de qualquer mulher.

Se Manola estivesse aqui comigo, com certeza iria dizer que ficou emocionada e que molhou a calcinha. Entretanto, aprendi com o tempo e com as responsabilidades a ser mais comedida e a não me deixar levar sem pensar. Um rosto e um corpo bonitos não querem dizer muita coisa sobre o caráter de alguém.

Estou para aceitar a proposta de mais uma taça e alongar o papo, mas minha visão periférica capta um movimento na entrada do restaurante, e me sinto murchar ao ver Millos Karamanlis adentrando. Esse homem não se cansa de tentar comprar o Hill, é um saco!

Quando me ligou, eu estava pronta para dizer um sonoro NÃO a ele, mas insistiu que era importante, que tinha uma situação que me interessava e por isso achava melhor conversarmos para tentar um acordo. Isso me deixou intrigada e temerosa, por isso estou aqui, neste momento, tendo que recusar a companhia agradável e intrigante do Theo.

— Infelizmente, não — respiro fundo, respondendo ao delicioso oferecimento desse deus com cuja companhia o destino me presenteou enquanto eu esperava pelo diabo. — Meu compromisso chato acaba de chegar.

Levanto-me, resignada, para receber o homem barbudo e muito estiloso, devo confessar, mas que é uma pedra no meu sapato.

Millos abre um sorriso e se aproxima para me saudar como sempre faz, com um beijo na bochecha e um curto aperto de mãos. Tenho verdadeiro trauma dele, de estar sempre rodeando minha vida à espera de um fracasso que o deixe comprar o bar da minha família, minha casa, o legado do meu pai. Contudo, tenho de admitir que, embora pondo pressão, ele sempre me tratou muito bem e com muita simpatia.

— Ah, desculpem o atraso! — Ele olha para o Theo e depois para mim. — Que bom que já se conheceram. — O quê? Como assim? Eles se conhecem?! — Theo, eu acho que chegou a hora de conversarmos pessoalmente com a Duda.

Millos Karamanlis conhece o Theo!

Meu sensual companheiro de bar se levanta e me encara de um jeito completamente alarmado. O olhar sedutor sumiu, bem como seu sorriso franco e relaxado. Agora apenas incredulidade está estampada em seu rosto bonito.

Oh, meu Deus, não pode ser!

Claro que eu acharia que o conhecia, afinal, já vi fotos suas em revistas da alta sociedade e em jornais, embora creia que nenhuma delas lhe tenha feito jus. O homem ao meu lado não é simplesmente “Theo”, é o diretor da porcaria da empresa que comprou toda a quadra onde fica o Hill e que vem tentando de todas as formas me tirar do meu lugar!

— Theodoros Karamanlis? — minha voz soa tão incrédula como me sinto.

Como não percebi quem era esse homem? Como pude me sentir atraída por ele a tal ponto de fantasiar uma noite ao seu lado? Eu o quis como havia muito tempo não me lembrava de ter querido alguém, uma atração que não sentia desde a época em que ainda pensava que tinha o mundo aos meus pés e que conquistaria tudo o que sonhasse ter.

Millos fica um tempo com a sobrancelha erguida, olhando de um para o outro, até que resolve quebrar o gelo.

— Podemos ir para a mesa?

Eu o olho ainda sem entender que tipo de palhaçada é essa. Eles fizeram de propósito? Será que Theo veio primeiro para tentar me seduzir, afinal, nós nunca fomos apresentados, ou foi só uma coincidência ele ter chegado antes e aí resolveu brincar comigo?

Não é possível que ele não soubesse que eu sou a Duda Hill!

— Millos, o que você pretende, afinal? — Theo questiona com a voz demonstrando toda sua irritação.

— Eu não acho que temos algo para conversar. — Pego minha bolsa, que estava pendurada na poltrona giratória. — Não vou mudar de opinião, não pretendo vender o Hill.

— Por que não? — Theo questiona de repente, e eu o olho. — O que uma chef formada por Le Cordón Bleu pode querer com um boteco? — Fecho minhas mãos com força na alça da bolsa. — Ou esse papinho de Paris e seus diplomas é só um sonho fantasioso de uma dona de bar?

Millos emite um palavrão baixo, prevendo que o tempo irá fechar. Ele me conhece bem, já me irritou várias vezes e saiu do Hill com uma resposta à altura.

— O que eu quero ou não só diz respeito a mim, doutor Theodoros Karamanlis — tento falar o mais baixo possível, mas meus olhos brilham de indignação, e espero que ele entenda a mensagem. — O boteco é meu, faço com ele o que eu quiser, e de uma coisa você pode ter certeza: Não. Vou. Vender. Para. Vocês! Ficou claro agora, ou preciso desenhar? — Olho para o Millos.

— Ei! Vamos nos sentar à mesa e conversar com calma! — ele tenta apaziguar o clima tenso entre mim e Theodoros. — Theo... — pede sua colaboração, mas o homem parece estar soltando fogo pelas ventas e não lhe dá atenção. — Vocês estão chamando a atenção dos outros clientes e...

— Foda-se! — falo em uníssono a Theodoros, e Millos ri, mesmo ainda nervoso.

O maître aparece para nos conduzir até a mesa reservada, e Millos faz um gesto para que o sigamos até lá. Encaro Theodoros Karamanlis por um tempo, ambos medindo forças para ver quem cede primeiro.

— Vamos? — Theodoros pergunta, e eu assinto, passando por ele sem nem ao menos emitir uma palavra. A mesa que Millos reservou é discreta, no fundo do salão, sem nenhuma outra por perto. Sento-me com as costas eretas, sem tirar a alça da bolsa do ombro, mostrando a eles a minha contrariedade por estar ali.

— Vamos fazer um pedido?

— Não, Millos, não pretendo ficar para comer — sou direta. — Preciso apenas que me fale sobre o assunto que não quis adiantar pelo telefone. O que vocês têm a ponto de me fazer querer fechar um acordo?

Theodoros olha para ele parecendo muito mais irritado e bufa de raiva. Millos balança a cabeça e começa a explicar:

— Duda, há alguns meses estamos de posse de uma...

— Enorme quantia de dinheiro — Theodoros o interrompe. — A proposta de compra aumentou, e seria interessante a senhorita reconsiderá-la, afinal, pode abrir um pequeno bistrô para exercer o que aprendeu em Paris.

— O quê? — Millos o encara, confuso. — Olha, eu desisto! — Chama um garçom e pede uma cerveja. — Eu realmente acho que podemos chegar a um acordo, mas vocês dois são teimosos como mulas!

— Não quero nenhum acordo com vocês! — declaro. — Tudo o que quero é que parem de ficar rondando minha propriedade como dois abutres!

— Boa definição, senhorita Hill. — Theodoros se inclina por sobre a mesa para ficar mais próximo a mim. — Seu negócio está agonizante e em breve perecerá, e, quando isso acontecer, irá lamentar não ter abaixado um pouco sua crista e ter aceitado minha oferta, porque só sobrará carcaça aos abutres!

— Theo! — Millos o repreende, mas depois começa a rir. — Que conversa de doido, viu? Não esperava por isso! — Bebe sua cerveja. — Confesso que está um pouco divertido.

— Vá se foder, Millos! — mal fala isso e volta a me olhar. — Não irei repetir a oferta, Duda Hill. A aconselho a aceitar o mais rápido possível.

Meus olhos faíscam de raiva, mas meu corpo traidor se arrepia inteiro ante a expressão dele. O homem é sexy demais, insuportavelmente arrogante, mas ainda assim, muito sexy!

— Não estou interessada — uso o mesmo tom de voz que ele. — Vendo para qualquer um, menos para vocês. — Ponho-me de pé. — Espero que desfrutem do jantar sem minha companhia. Eu não conseguiria comer aqui com vocês sem ter uma enorme indigestão.

Theodoros se põe de pé também, e Millos, com um sorriso debochado, cruza os braços e fica só esperando o próximo passo do seu chefe.

— Não diga depois que não a avisei, Duda Hill.

Rio, passando perto dele para sair do salão.

— Não tenho medo de suas ameaças, Theodoros Karamanlis. — Aproximo-me para falar bem perto do seu ouvido: — Cão que ladra não morde!

Ele segura meu braço e abre um sorriso – puta merda! – cheio de malícia.

— Eu morderei, Maria Eduarda, e o farei tão gostoso que você pedirá mais!

Olho para sua mão em meu braço, e ele me solta. Respiro fundo para controlar o formigamento em meu corpo e a tremedeira em minhas pernas e saio do restaurante o mais rápido possível.

— Deseja que traga seu carro, senhorita? — o manobrista me aborda na porta do restaurante.

— Po-por favor! — Merda! Respiro fundo mais uma vez. — Sim, obrigada.

Não é possível que esse homem ainda continue mexendo com minha libido desse jeito! Durante todo o tempo em que estávamos lá medindo forças, essa tensão sexual nunca deixou de pairar entre nós. Acho até que o Millos percebeu isso!

Droga! É o Theodoros Karamanlis, Duda! Inimigo, o diabo em pessoa, que quer fazer de tudo para destruir tudo o que você tem, tudo pelo qual você lutou para manter depois que seu pai se foi!

Claro que seria muito fácil aceitar uma oferta melhor, pagar as dívidas e abrir um “bistrô”, como ele mesmo aconselhou, mas só eu sei o quanto meus pais amavam aquele pedacinho no meio da Vila Madalena, o quanto se orgulhavam de tê-lo comprado juntos, com muita luta e esforço.

Não vou deixar que um homem arrogante ponha tudo ao chão e destrua todas as lembranças que tenho daquele lugar. Não só do Hill, mas da casa onde mamãe e papai passaram seus últimos momentos antes de me deixarem. Não! De jeito algum eu irei permitir isso! Se precisar vender, o farei para alguém que se comprometa a manter o imóvel, e não para uma empresa que quer demolir tudo para erguer ali algum prédio ou shopping!

Entro no carro e dirijo para casa, ainda sentindo o toque dele reverberando pelo meu corpo, sua voz arrepiando os pelos da minha nuca e seu olhar... Há algo naquele olhar que me desperta lembranças, talvez pela tonalidade – a mesma do mediterrâneo –, ou o jeito de me olhar como se estivesse realmente faminto.

Chego a casa e encontro tia Do Carmo jantando sozinha na sala e assistindo à novela.

— Ué, não ia jantar fora? — questiona quando ataco suas panelas.

— Ia, mas o lugar estava tóxico demais para meu estômago. — Ela franze a testa, sem entender, e eu rio. — A companhia era desagradável.

— Ah, sim.

— Cadê a Tessa? — pergunto enquanto me sirvo de deliciosas costelinhas de porco e angu, sentindo meu estômago roncar e minha boca salivar. Adoro a comida dela!

— Chegou da escola, fez dever, tomou banho, jantou e dormiu. — Rio do relatório completo. — Aquela menina é um anjo!

— Sim, ela é! — concordo, cheia de orgulho.

— Descobriu, pelo menos, o que aquele pessoal da Karamanlis queria?

Sento-me ao seu lado no sofá com o prato na mão.

— Aumentaram a proposta! — Dou de ombros. — E acabei conhecendo o CEO, Theodoros Karamanlis.

— Hum, já vi fotos dele naquela revista que assino. — Rolo os olhos, pois sempre achei um desperdício de dinheiro comprar uma revista que fica cobrindo a vida de artistas e da alta sociedade paulistana. — O homem é um pedaço de mau caminho.

Acompanho-a em suas risadinhas, achando uma graça que minha tia, solteirona e virgem, fale isso de um homem. Eu nunca soube o motivo pelo qual ela nunca quis se casar, nem mesmo namorar. Perguntei a ela se algum dia teve pretensão de ser religiosa, mas negou, dizendo que não tinha o dom.

Tia Do Carmo é uma caixinha de segredos bem guardados, essa é a verdade. Do mesmo jeito que ela adora acompanhar a vida alheia nas revistas e nos programas de fofocas, não abre a boca para falar da sua, nem mesmo para mim.

Ela é como uma mãe para mim e cuida de Tessa com tanto amor e dedicação que eu não poderia pensar em uma avó melhor para minha menina, mas não quer saber de arrumar alguém, nem mesmo para se distrair um pouco.

Há uns dois anos veio trabalhar conosco um senhor muito bem-apessoado, Joaquim, que ficava na recepção. O homem arrastou um bonde pela minha tia – que é uma linda senhora de 55 anos –, mas ela nem ao menos lhe deu um segundo olhar.

Enfim, eu aprendi a aceitar que ela é feliz assim, mesmo porque não estou indo para um caminho diferente, pois mal tenho tempo para namorar alguém. Além do meu namorado francês, tive mais uns dois já aqui no Brasil. Claro que já tive algumas transas avulsas, sem nenhum compromisso, mas já faz tanto tempo que nem isso acontece que, se hímen se regenerasse, o meu certamente já estaria completo de novo.

— Ele é bonito, sim, mas muito arrogante! — informo, tentando não demonstrar o quanto fiquei interessada no Theo. — De qualquer forma, recusei mais uma vez a proposta.

— Você tem certeza disso, minha filha? O sumiço do agiota tem tirado meu sono. Você sabe como essas pessoas são, por mais que sejam conhecidos. Além do mais, te vejo trabalhar como louca e entregar o dinheiro todo para custear essas dívidas. — Ela aponta para a casa, cheia dos mesmos móveis da época do casamento dos meus pais. — Duda, a gente mal tem se aguentado em pé!

— Não nos falta nada, tia!

— Não, Duda, não estou me queixando. Realmente não nos falta nada, temos comida, um teto, e Tessa pode estudar em uma boa escola, mas vale a pena se sacrificar do jeito que está fazendo? Você não tem tempo nem para namorar!

Gargalho.

— Essa é uma das minhas menores preocupações, tia.

— Eu sei, filha, e é isso que me preocupa. — Passa a mão no meu rosto, e fecho os olhos, gostando do carinho. — Há muitos anos você só cuida das pessoas, Duda. Assume responsabilidades demais e esquece de cuidar de si mesma.

— Estou bem! — afirmo, mas meu coração entende e concorda com ela. — Assim que terminar de pagar tudo o que devemos, vou poder cuidar de mim também, não se preocupe.

Ela suspira, resignada, pois me conhece bem e sabe que sou muito teimosa. Decidi lutar até o fim para manter a única coisa que me resta e não vou descansar até conseguir estar em paz com isso, mesmo que um certo CEO muito gostoso me encha de ameaças.

Inclusive uma que pareceu mais uma promessa...


Maria Eduarda passa por mim deixando para trás o rastro delicioso do seu perfume, agitando meu corpo. Tenho vontade de segurá-la por mais tempo, de sair com ela para algum lugar onde possamos dar vazão à atração que sentimos um pelo outro desde que nos encontramos no bar do restaurante.

Todavia, não dá para simplesmente ignorar quem somos!

Fico um tempo de pé, mesmo depois de ela já ter saído do restaurante, raciocinando quais seriam as consequências se Millos simplesmente não tivesse aparecido. Olho para meu primo, tranquilo, tomando sua cerveja e provavelmente a enchendo de defeitos.

— Isso foi a pior merda que você já aprontou! — digo, atraindo a sua atenção. — E olha que você tem um longo currículo de merdas!

— Vá se foder, Theo! — Fica sério. — Eu só estava tentando um acordo entre nós.

Rio, seco, não achando nenhuma graça e não comprando nem um pouco essa conversa mole de “acordo”. Millos nunca dá ponto sem nó e me conhece bem para saber que Duda seria extremamente atraente para mim. O desgraçado fez de caso pensado, só nunca irá admitir.

Pego o celular, que deixei em cima da mesa, e, sem nenhuma palavra ou mesmo um olhar, afasto-me de Millos, indo em direção à saída do restaurante.

Ouço-o me chamar, mas não me segue, e ando decidido até a calçada, encontro o manobrista e peço meu carro. Não tenho mais clima para jantar, muito menos para olhar aquela cara debochada. Bufo, frustrado demais, com fome e com o desejo sexual insatisfeito.

Porra!

Já no carro, não dirijo diretamente para casa, mas a esmo, pensando na loucura que foi o começo da noite. O conhecimento de quem era a mulher ao meu lado deveria ter sido suficiente para aplacar minha vontade de devorá-la toda, mas nem mesmo a diminuiu.

É uma das raras atrações fortes que já me aconteceram. Geralmente não é assim, é mais um jogo de disponibilidade e vontade, uma mulher gostosa e interessante e pronto! Raramente sou atraído a alguma como aconteceu com Maria Eduarda hoje. Eu olhei para ela e a quis.

É primitivo demais até para mim, mas aconteceu. Quem ela era, o que fazia ou mesmo sua disponibilidade – embora, se fosse casada, não rolaria – não importaram para mim naquele momento. Depois, a conversa, o sorriso, o jeito como o corpo dela reagiu ao meu, tudo isso só potencializou o que foi sentido ao primeiro olhar.

Duda Hill!

Paro o carro em frente ao boteco antigo na Vila Madalena, olhando sua fachada recentemente reformada, o sobrenome da família dela na entrada e algo que nunca me chamou atenção antes, um segundo andar com janelas grandes de vidro, seguindo a mesma arquitetura do bar, tijolos à mostra e cimento queimado.

Franzo o cenho ao me lembrar do dia em que estive no local, pois não vi nenhum mezanino ou mesmo escada de acesso. Há uma porta ao lado da fachada principal, pintada com outra cor, mas que não pertence ao prédio vizinho, já de propriedade da Karamanlis.

Ela mora em cima do bar? Novamente olho para o alto e, no exato momento, uma luz se acende em um dos cômodos, iluminando a janela com cortinas claras. Um apartamento!

Como eu nunca soube disso? Para mim, o imóvel era puramente comercial, como todos os outros do entorno, nunca sequer desconfiei que a irritante mulher pudesse morar no local.

Uma sombra passa pela janela, e meu pau pulsa na calça só pela possibilidade de ser Maria Eduarda se preparando para dormir. Fecho os olhos, aproveitando a total falta de movimentação na rua – ao que parece ninguém funciona às segundas-feiras – e imagino como ela seria apenas vestindo uma calcinha ou até uma camisola sexy.

Toco-me sobre a calça, sentindo como já estou em completa ereção, então abro os olhos e xingo, voltando a pôr o carro em movimento e saindo daqui o mais rápido possível. Eu pareço um maldito stalker tarado, parado em frente ao que suponho ser o apartamento dela e fantasiando.

Caralho!

 

 

Termino de assinar o último documento e o entrego para Rômulo, que sai apressado a fim de entregá-lo para o jurídico. Temos um maldito setor de correspondência e vários boys para esse trabalho, mas meu assistente é tão controlador com suas responsabilidades que ele mesmo gosta de entregar os documentos e de pegar a assinatura de quem os recebeu no caderno de protocolo antes de os colocar no sistema.

Eu sei que é motivo de piadinha aqui seu jeito burocrático, mas é exatamente por isso que confio nele para lidar com minhas coisas na empresa. Rômulo é responsável, organizado e sua “burocracia” nada mais é do que uma forma de nos garantir, proteger nosso trabalho e a companhia.

Gemo, colocando a mão na têmpora, amaldiçoando-me por ter consumido uma garrafa inteira de uísque ontem, depois que cheguei a casa, frustrado demais sexualmente e puto comigo mesmo por estar me sentindo assim pela Duda Hill.

Troquei mensagens com Millos, ameaçando sua integridade física por conta da palhaçada de ontem. Claro que ele fingiu não ter feito de propósito, mas se esqueceu de que o conheço bem. Eu só não sei o que ele pretende ainda. Contudo, não há dúvidas de que está tramando algo.

Uma notificação de mensagem chega ao meu celular. Pego-o, lendo a mensagem deixada pela Viviane acerca de um concerto musical e uma exposição de gravuras que irá acontecer esta semana. Dispenso, sem nenhuma vontade de comparecer, mas ela insiste.

 

 

 

Sim, ela tem razão!

Preciso estar focado no que realmente é importante para mim nesse momento. Uma atração como aconteceu entre mim e Maria Eduarda ontem é garantia de uma foda inesquecível, mas só isso, não resolve meu problema, e o tempo está se encurtando cada vez mais. Preciso de uma esposa e de um filho!

 

 

 

Envio a mensagem para ela e me recosto na cadeira, olhos fechados e dedos nas têmporas, querendo a porra de um analgésico para poder trabalhar sem que pareça que está ocorrendo alguma demolição na minha cabeça. Não devia ter bebido tanto sem ter comido nada!

Cheguei a casa já arrancando a roupa e entrando no banho. Demorei por lá, esperando que os jatos fortes de água fria abaixassem a temperatura do meu corpo e trouxessem minha racionalidade de volta. Não costumo me impressionar tanto assim por uma mulher; poucas foram as que mexeram comigo dessa forma.

Olhei para baixo, e lá estava a evidência de que nem mesmo a água iria resolver o problema. Encostei a testa na parede fria e toquei meu pau, gemendo com a sensação, pronto para gozar apenas com os estímulos da noite.

Eu gosto muito de trepar, adoro ser masturbado por mãos femininas – às vezes, pés também –, mas nunca fui um punheteiro. Nunca! O prazer de me tocar nunca se comparou ao de ser tocado, por isso, quase não me masturbo. Porém, ontem, não teve jeito! O cheiro do perfume dela estava impregnado em minhas narinas, a sensação de sua pele se arrepiando sob meu toque, o sorriso, os olhares... Em poucos minutos gozei como um louco, sujando a parede do boxe, gemendo dolorosamente de vontade de senti-la.

Pela primeira vez em muito tempo, os cabelos cor-de-rosa não apareceram durante meu gozo, e amaldiçoei essa percepção. A verdade é que troquei o objeto da minha fantasia. No entanto, diferentemente da garota de anos atrás, agora eu tenho um rosto, um nome e sei onde mora.

— Estou fodido! — falo em voz alta, achando que estou sozinho no escritório.

— Vou pegar um comprimido, chefe! — a voz de Rômulo faz com que eu me aprume, arregalando os olhos em sua direção.

— Mas que porra, Rômulo! Como você consegue ser tão silencioso às vezes? — digo emputecido por estar fantasiando com a mulher de novo em pleno horário de trabalho e sob as vistas do meu assistente.

— Eu percebi que o doutor está com dores de cabeça. — Ele vasculha sua bolsa. — E... Ah! Achei! — Sorri como se tivesse inventado a fórmula da água. — Paracetamol!

Ele vai até o aparador onde ficam as bebidas a fim de pegar um copo d´água para eu tomar com o comprimido, porém, peço que me traga café.

— Tem certeza? — titubeia.

— Vai acelerar a absorção e fará efeito mais rápido.

— Chefe, isso é perigoso!

— Anda logo, porra, tem uma britadeira no meu cérebro!

Ele fica nervoso, suas mãos tremem, fazendo o café respingar sobre o móvel, e eu bufo de impaciência. Rômulo é prestativo, um ótimo funcionário, mas me questiona muito, além de ser um tanto desastrado.

Mal engulo o comprimido, e o traidor, quer dizer, Millos entra no escritório.

— Tive uma ideia e vim dividi-la com você. — Olha a xícara na minha mão. — Cheguei em boa hora! Eu gostaria de um café também! — pede ao Rômulo, e eu fecho a cara.

— Esse não é o trabalho dele — corto-o. — Rômulo, vá até o jurídico e veja se Kostas já conseguiu adiantar a papelada que faltava.

— Sim, doutor! — O assistente sai correndo da sala.

— Quer a porra do café? Pegue você mesmo! Não dê ordens ao meu assistente!

Millos levanta as mãos pedindo calma e vai até a máquina, escolhendo um sabor e um tipo de preparação antes de voltar para próximo de mim.

A dor de cabeça aumentou um pouco, mas espero que, com o remédio do Santo Rômulo, eu melhore em breve. Além disso, não quero dar bandeira de que enchi a cara na noite passada e suportar as provocações de Millos.

— Qual foi a magnífica ideia que o fez levantar a bunda de sua cadeira e vir até aqui encher meu saco?

Millos ri.

— Estamos de bom humor hoje, hein? — Pega o café e se senta. — Você quer tirar a Duda Hill do imóvel, não é? — Franzo o cenho para ele, achando desnecessário responder, esperando que tenha sido uma pergunta retórica, para o bem de sua inteligência. — Já reparou que o único pub daquela quadra é o dela?

— Você comeu merda no café da manhã? — pergunto, e ele ri. — Claro que ele é o único, os outros imóveis já estão todos vazios porque compramos todos!

— Do outro lado da rua têm duas casas de show, uma boate de strip de luxo, dois restaurantes de comida japonesa e uma pizzaria famosa. — Ele cruza os braços. — Esse foi um dos motivos de o pub ter ficado tão movimentado, a diversidade de empreendimentos próximos. É uma área à qual os jovens vão para se divertir, e ela conseguiu agregar boa comida e boa música em um só local.

Faz sentido, claro. Ela aproveitou o movimento já existente e ofereceu um diferencial, um lugar para dançar, curtir com os amigos, arranjar companhia e ainda comer seus bolinhos famosos e premiados. Sorrio de leve, sentindo-me levemente excitado por ela ter tanto tino. Gosto de mulheres inteligentes!

— Você a isolou no momento em que comprou todos os imóveis e mandou os estabelecimentos fecharem. Ela é a única opção da área...

Ele se interrompe ao ouvir uma batida à porta.

— Pode entrar — autorizo, sabendo que não é o Rômulo.

Kostas aparece, seu tamanho e largura preenchendo a entrada da sala, o olhar azul e arrogante, o sorriso debochado e os cabelos negros penteados para trás com uma espécie de pomada de brilho molhado. Meu irmão é a cópia do nosso pai, e isso chega a me causar arrepios.

— Bom dia! — cumprimenta Millos e se senta ao seu lado. — Theodoros, tenho uma notícia boa e uma ruim, qual quer primeiro? — Dá risadas debochadas, e Millos o segue.

Isso é sério? Levanto uma sobrancelha, olhando-o carrancudo.

— Fala logo, Kostas! — ordeno.

— Bem, já que você não tem nenhum senso de humor. — Pisca para Millos. — Nós já sabíamos disso, mas não custava tentar! — Meu primo assente, e eu bufo de raiva. — Vou começar pela boa. Já ingressamos com o pedido de execução da nota promissória.

— Já não era sem tempo! Preciso comemorar por você ter conseguido fazer seu trabalho?

O desgraçado ri.

— A ruim, no entanto, também é sobre isso. — Ele me estende umas folhas. — Duda Hill deu entrada no inventário judicial após a morte do pai.

Leio os papéis, mas pouco entendo de legislações e procedimentos legais, então espero que ele pare de fazer cu doce e prossiga com suas explicações.

— Que merda! — Millos exclama, e isso é o suficiente para me deixar tenso.

— O que isso significa, porra?

Kostas se levanta, anda até o aparador e se serve de água.

— Você poderia ter bourbon aqui — comenta como se estivesse aqui para uma visita social. Xingo-o. — O processo não cumpriu nem metade de seu caminho natural, caro irmão. Já está aberto há quase quatro anos e pouco avançou, e isso porque tem apenas um imóvel a ser herdado por uma única herdeira. — Ele ri. — Adivinha qual?

O Hill! Merda!

— O que isso significa em nossos planos de adquirir aquela pocilga? — Irrito-me.

— Bem, assim que for declarado o débito por causa da confissão de dívida – a promissória –, nós vamos ser credores do espólio. — Bufo pelo uso dos termos técnicos desnecessários.

É Millos quem vem ao meu resgate.

— O homem está morto, Theo, não temos como cobrar dele, apenas dos bens que ele deixou, entendeu? Isso obriga a Duda a vender ou entregar o Hill em troca da dívida. — Sorrio, achando a notícia ótima. — Mas somente quando o inventário fechar, o que pode levar anos ainda.

— O quê?! — Levanto-me, esquecendo por completo a dor de cabeça.

— É isso, caro irmão! — Kostas dá de ombros. — Seja bem-vindo à realidade da justiça brasileira, em que inventários simples duram, em média, de oito a dez anos!

— Não há outra forma de recebermos?

— Não. — Kostas ri, satisfeito. — A dívida está no nome do pai dela, então só alcança bens deixados por ele.

— A vantagem é que ela não pode vender para outro também, não é? — Millos questiona.

— Teoricamente, não, mas se o comprador não se importar em não ter a escritura, ela consegue vender, sim. Tem muita gente que faz isso. Não é legal, mas faz.

— Puta que pariu! — explodo, virando-me em direção à vidraça.

— O jeito é tentar comprar, Theo, e alegar que somos credores e que, por isso mesmo, ela só pode vender para nós — Millos fala, e Kostas concorda.

— Ela não vai vender, disse ontem!

Sou um homem muito teimoso, sempre fui, e reconheço um igual de longe! Quando Duda Hill disse ontem que não ia vender para a Karamanlis, vi a teimosia brilhando em seus olhos.

— Além do mais, pelo que soube, os negócios vão bem — Kostas complementa, deixando-me ainda mais raivoso. — Ela não precisa vender.

Olho para Millos, e ele arregala os olhos ao ver a determinação nos meus.

— Fale de sua ideia!


O despertador me acorda pela segunda vez no dia. Tenho vontade de esconder a cabeça debaixo do travesseiro e fingir que não estou ouvindo, deixar que entre em modo “soneca” e que, com isso, eu ganhe mais alguns minutos na cama.

Suspiro, abro os olhos lentamente e pego o maldito telefone para cancelar o despertador. Ganhar minutos na cama significa perder minutos do dia, e isso definitivamente é uma coisa à qual não posso me dar ao luxo. Tenho que trabalhar, organizar minha cozinha e ser a primeira a estar nela quando os demais chegarem.

Espalho-me na antiga cama de casal dos meus pais, abrindo os braços em forma de cruz e esticando todo o meu corpo. Carreguei tanto peso hoje que, nessas horas, sinto falta de não ter um homem fortão trabalhando comigo nesse negócio pesado que é transportar as compras. Tento relaxar meus músculos, fecho os olhos e deixo a mente vagar por um segundo.

Em meio aos pensamentos de paz, natureza e tranquilidade, lindos olhos azuis aparecem, sedutores, emoldurados por cílios longos e escuros que fizeram sombra em seu rosto quando ele olhou minha pele se arrepiando ao seu contato. No mesmo momento sinto um gelo na barriga – desses que sentimos quando descemos uma ladeira inesperadamente de carro –, e um tremor perpassa pelo meu corpo, desde as pontas dos dedos até a raiz dos cabelos.

Emito um grunhido de irritação por, mais uma vez, Theodoros Karamanlis se infiltrar nos momentos em que busco relaxamento e pensamentos positivos para enfrentar o dia. Tem sido assim desde aquele maldito jantar, há quase uma semana!

Sento-me, notando o quanto estou suada, pois há alguns meses meu ar-condicionado do quarto teve uma pane elétrica, e não tive nem tempo, nem dinheiro para chamar a assistência técnica. O verão chegou com tudo este ano, e as temperaturas estão ameaçando bater recordes desde o final da primavera. Vou precisar arrumar o ar ou então ir dormir no quarto da tia Do Carmo.

Confiro as horas, meio-dia e alguns minutos, e sigo rápido para tomar a terceira chuveirada do dia!

O expediente no Hill durou até às 2h35 da manhã, quando gentilmente convidamos nosso último cliente a sair. Passei a encerrar mais cedo em dias de semana, pois sábado e domingo vamos até às 4h da manhã. Fechei a cozinha para pedidos exatamente à 1h para que desse tempo de todos os quitutes ficarem prontos e nossos clientes irem embora até às 2h30. Entretanto, sempre fica um agarrado a uma cerveja num canto, sempre!

A música ao vivo, de terça a domingo – menos quando temos campeonatos de futebol, pois aí na quarta-feira transmitimos os jogos – anima o pessoal e por isso mesmo precisa ser encerrada uma hora depois do fechamento da cozinha. Há toda uma preparação para que os clientes entendam que a hora de “dar tchau” chegou.

Hoje, sábado, é o dia mais desgastante para mim, pois a cozinha irá funcionar a todo vapor até às 3h30 da manhã, aceitando pedidos até uma hora antes disso, e o bar só será fechado às 4h. E adivinhem quem fecha o bar? Exatamente, eu!

Ou seja, terei 14 horas de trabalho incessante pela frente, a partir das 2h da tarde, sendo que noite passada não aguentei ficar acordada para ir até o CEAGESP, dormi às 3h e acordei às 4h, correndo para poder pegar um pouco do pescado bom, pois a venda para o atacado começa na madrugada e vai até às 6h da manhã. Descarreguei tudo no restaurante e voltei para a cama às 9h, por isso, sim, estou acordando ao meio-dia!

Saio do banho e já coloco a calça preta – uniforme do Hill –, uma camiseta branca por causa do calor e calço chinelos. Separo o uniforme, que minha tia já deixa passado, a dolma, o avental e meus turbantes. Deixarei os cabelos secarem para depois fazer um coque alto, bem firme, para que nenhum fio possa se desprender.

— Boa tarde! — tia Do Carmo me cumprimenta assim que apareço na sala. — Vai almoçar agora?

— Vou. — Suspiro, sentando-me. — E a Tessa?

— Acabou de ir para o inglês com a Marcela e a Diana. — Assinto, lamentando não ter me encontrado com ela aqui, mesmo que depois dê uma xeretada na minha cozinha.

Mal tenho tempo para ela! Sinto-me mal por isso, tento compensar, mas queria ser mais presente e sei que Tessa sente essa necessidade tanto quanto eu. Porém, minha menina já é tão madura que entende que essa rotina louca na qual vivo não é por minha escolha.

Tia Do Carmo me serve de sua comida simples, bem temperada e absurdamente viciante, e eu não penso em mais nada a não ser apreciar a iguaria. Ao longe, enquanto como, ouço o barulho da máquina de costuras dela, em seu quarto, trabalhando sem parar. Ela é teimosa e está sempre aceitando encomendas de reparos ou confecção de roupas, principalmente para o pessoal da igreja que frequenta.

Somos farinha do mesmo saco, teimosas ao extremo, e ela me culpa por eu recriminá-la por querer ajudar. Não é só por teimosia ou orgulho que peço tanto a ela para que se poupe, pois se aposentou há alguns anos por invalidez exatamente por passar horas e horas costurando desde menina e com isso ter ganhado algumas hérnias de disco ao longo de sua coluna.

A verdade é que, se não fosse pelas dívidas, eu poderia dar uma vida bem melhor a elas. O Hill vai muito bem, cada vez mais conhecido, atraindo clientes para essa área que nem é tão famosa por ter bares. Contudo, o boca a boca tem se espalhado pela cidade e trazido com ele nossos clientes.

Termino de comer, lavo a louça e termino de me arrumar para descer e só voltar no meio da madrugada. Faço uma oração curta antes de descer e grito para tia Do Carmo:

— Tia, estou no Hill se precisar de algo!

— Vai com Deus, minha filha! — grita de volta, cessando a costura. — Tente descansar em alguns momentos!

Apenas rio, porque a cozinha é uma correria aos finais de semana, e é impossível me sentar por uns minutos sem que alguma coisa desande, já que atendemos em média 400 clientes por sábado e uns 350 no domingo. O volume de comida que processamos é tão grande que fazemos compras nas madrugadas de terça, quinta e sábado.

Poderia até ir ao CEAGESP menos vezes, mas prefiro trabalhar com os ingredientes o mais frescos possível e, graças à câmara fria que instalamos, já me dei ao luxo de parar de ir todas as madrugadas. Vou sempre às terças e sábados e deixo Manola se virar na quinta-feira. A mulher adora ir para lá e demora o dobro do tempo que eu levo, sempre conversando com os comerciantes, pechinchando horrores e fazendo amizades. Como ela é sozinha, está sempre com o caderninho de telefone preenchido para quando quer companhia, e como trabalha como louca aqui, seu lugar de fazer contatos é lá na central de abastecimento.

Confesso que me divirto muito com suas histórias, assim como todo o resto de nós da cozinha.

Abro a entrada principal do bar, pois, infelizmente, quando papai montou o local, não pensou em saída de emergência, mesmo porque na sua época era todo aberto, então, quando transformei o boteco em um pub, tivemos que sacrificar a porta usada para carga e descarga e transformá-la para que estivéssemos em dia com a legislação dos bombeiros e da própria prefeitura.

Sempre que entro, já deixo a porta de aço aberta e tranco somente a de vidro, deixando um pouco de sol entrar através das paredes de vidro temperado.

Sigo diretamente para a cozinha, mas anotando mentalmente tudo o que precisará ser limpo com mais afinco, resultado da noite anterior. No bar, sempre tenho a satisfação de passar e ver o asseio do Kiko, seus utensílios todos nos lugares, limpos e secos, as chopeiras sem nenhum traço de respingo de chope, o chão brilhando.

Abro a cozinha, e o cheiro dos produtos de limpeza que usamos há algumas horas, assim que encerramos as atividades, recepciona-me. Faço meu coque, como sempre, ponho o turbante, lavo as mãos e começo a trabalhar, colocando alguns alimentos de molho, descongelando outros e conferindo as receitas, bem como o funcionamento de todos os equipamentos.

Ouço o barulho da porta, e uma risada preenche o lugar, indicando que Manola chegou junto ao seu fiel escudeiro, Arnaldo.

— Boa tarde, chef! — ela me cumprimenta, indo para o banheiro dos funcionários. — Hoje o Naldo está impossível!

— Você é que não aguenta ouvir umas verdades, Manola. — Arnaldo vem até onde estou e me dá um beijo na testa. — Carinha de cansada hoje, boneca!

— Dia de compras... — Aponto para a caixa de camarão no gelo que tirei da câmara para ele limpar. — Divirta-se!

— Ai, minha santa protetora dos dedos furados! — geme.

— Use luvas! — Manola grita, vindo do banheiro trajando o uniforme, seus cabelos ruivos presos em uma trança e seu turbante cheio de beijos já na cabeça. — No dia em que você perder um dedo, ainda processa a Duda!

— Deus me livre, Manola! — Bato na bancada de inox, e ela ri.

— É na madeira, querida! — Joga um beijo para mim e as luvas de fio de aço para o Arnaldo. — Não vai te proteger contra o camarão, mas quando for limpar as carnes, faça o favor de usá-las!

— Oui, chef! — ele debocha.

— Abusado! — diz, pegando as panelas guardadas e já as colocando no fogão. — Vou adiantar os molhos enquanto a Ana não chega. Ela ia levar o filho ao dentista hoje.

— Eu sei — concordo ainda lavando as folhas e temperos. — Cláudia também vem mais tarde hoje, mas adiantou muito suas sobremesas ontem. Trabalhou dobrado!

— Estou louca por aquela torta de duas mousses que fez! — Geme e estala a língua. — Adoro maracujá com chocolate, e a danada não me deixou pegar nem uma provinha!

— Diabetes te diz algo? — Arnaldo alfineta.

— Tenho pré, idiota! — Ressalta: —Pré-diabetes!

Rolo os olhos, já antevendo uma discussão sobre a quantidade de açúcar que ela não deve ingerir.

Minhas tardes são sempre assim, entre o trabalho na preparação para a noite e as conversas, discussões ou músicas dos meus colegas de trabalho. É bom, faz o tempo passar depressa e não deixa o serviço tedioso.

— Terminou aquela receita nova que estava escrevendo? — Arnaldo me pergunta um tempo depois.

— Ainda faltam uns ajustes, mas estou sem tempo para testar. — Dou de ombros. — Final de ano, né?

— Por falar nisso... — Manola se aproxima. — Como andam as encomendas? O pessoal gostou do menu deste ano?

— A Hana me entregou ontem uma pequena lista de encomendas. Ao que parece, o menu foi bem aceito, sim.

Manola bate palmas, e eu sorrio aliviada.

Todo ano abrimos o Hill e servimos pequenas ceias para o pessoal que não quer ter trabalho, mas percebemos que seria mais interessante, para nós e para nossos clientes, se houvesse um menu prévio e as encomendas entregues em casa.

Como começamos o delivery este ano, programei um menu com três tipos de proteínas – peru, bacalhau e presunto – e vários tipos de acompanhamento. As variações vão desde a mais simples e barata até as sofisticadas, dignas de um chef de cuisine, mais caras.

Por incrível que possa parecer, o menu luxo tem vendido mais do que o comum, e isso, além de me dar muito orgulho de ver minhas receitas tão bem aceitas, ainda me concede maior lucro.

Por conta desse menu especial, não abriremos o Hill para o público na véspera do Natal, daqui a alguns dias, e nem no dia, retomando as atividades somente no dia 26 de dezembro. Teremos que trabalhar muito para atender aos pedidos, mas tenho certeza de que daremos conta e que em pouco tempo encomendar a ceia no Hill será uma tradição.

É preciso manter a fé depois de tudo o que já passei na minha vida; sem ela, eu esmoreço. Não digo propriamente uma fé religiosa, mas a de desejar boas coisas, pensar positivo, manter a chama da esperança acesa de que tudo vai dar certo.

— Boa tarde! — a voz de Tessa faz meu sorriso se agigantar, e paro o que estou fazendo para ir abraçar minha pequena menina. — Ei, mãe, não!

Ela tenta correr ao ver minhas mãos molhadas, mas, quando a alcanço, explode em gargalhadas e me abraça apertado.

— Estava com saudades! Como foi a aula?

— Legal! — Faz um joia com a mão. — Ei, tia Manola!

— Tia uma ova! — Manola repreende, mas ri. — Sou no máximo sua irmã mais velha, pirralha!

Tessa gargalha de novo e faz gesto de que Manola é maluca, rodando o indicador ao lado da cabeça, e Arnaldo libera sua estridente gargalhada ao concordar com a menina.

— Quer alguma coisa especial daqui hoje? — pergunto, mas sem muita esperança.

— Não, tia Do Carmo disse que vai fazer lasanha à noite, e você não faz lasanha aqui!

— Não faço! — Cutuco suas bochechas com os indicadores bem onde elas formam covinhas quando Tessa sorri. — Cláudia fez uma torta especial. Vou levar para você mais tarde.

— Tem chocolate? — indaga animada.

— Tem, sim, pirralha! — é Manola quem responde. — E se ela tiver direito a um pedaço, eu, como irmã mais velha, também tenho!

Tessa mostra a língua para ela, Arnaldo ri, e eu balanço a cabeça, pois as duas parecem realmente irmãs, brigam e implicam uma com a outra, mas se adoram. Minha pequena se despede, e a acompanho até a entrada do bar, só voltando para a cozinha ao vê-la fechar a porta do acesso ao nosso apartamento.

Deus do Céu, como é bom ver minha menina feliz!

A segurança e a felicidade de Tessa são minhas prioridades, e vê-la crescendo tendo essas duas coisas me dá ânimo para aguentar mais um dia de trabalho e não pensar em coisas ruins. Nem mesmo nos Karamanlis, ainda que um deles tenha mexido comigo de tal forma que volta e meia está nos meus pensamentos – e não pelo motivo pelo qual deveria estar!


— Me and Mrs. Mrs. Jones, Mrs. Jones, Mrs. Jones, Mrs. Jones, we've got a thing going on. — Dedilho o arranjo ao piano, sentindo o peso dessa canção sobre mim e volto a cantar: — We both know that it's wrong, but it's much too strong to let it go now.3

Há anos não toco essa música tão famosa na voz do Billy Paul, mas algo me impulsionou a fazê-lo esta noite. Nada específico, creio eu. Contudo, meu interior está conturbado como há muito tempo não o sinto.

O paletó do terno que vesti hoje está em cima de uma das cadeiras da sala de jantar, a gravata precariamente pendurada sobre a borda do piano, enquanto estou aqui, camisa social semiaberta, mangas arregaçadas, uma garrafa de uísque em cima do instrumento e meu copo já quase vazio. Não parei de tocar desde que cheguei do concerto musical e apresentação de novos artistas de gravuras que ocorreu em uma galeria de artes aqui perto.

A verdade é que, desde quando Viviane me mandou o convite, não tive nenhum interesse em ir, embora fosse algo que geralmente chamaria minha atenção. Tive uma semana fodida demais, e não havia nenhum clima para entretenimentos. Tudo o que eu queria era uma massagem gostosa e uma trepada de alívio.

Termino a música e recosto a cabeça nas teclas do piano, quase não me reconhecendo. Não estou normal! Talvez essa época do ano, próxima demais do Natal, mexa comigo, evoque sentimentos que há muito tempo pensei ter perdido.

Sinto falta da Vanda nesta casa! Olho em volta e bebo o restante da dose de uísque. Tudo está tão vazio, tão silencioso, tão... estéril. Não tenho mais ninguém me esperando quando chego do trabalho, nenhum cheiro de tempero quando entro na cozinha – ou mesmo de café, porque o dela é incrível –, não há conversas amenas.

Não há nada!

Balanço a cabeça, irritado com o rumo dos pensamentos, com a energia negativa deles dentro de mim. Maldita semana!

O desastre começou na segunda-feira com aquele encontro deliciosamente desastroso com Duda Hill; depois aumentou com a notícia que o filho da mãe do Kostas nos deu sobre o imóvel onde funciona o Hill Wings.

A proposta de Millos ressoa em meus ouvidos, e, por mais que eu não ache muito sentido no que me propõe, penso se não é um caminho a seguir. Nunca fui um homem de indecisões. No entanto, entendo que, nesse assunto em particular, não posso me mover por impulso.

Volto a escutar a voz de meu primo como se estivesse aqui e o ouço apresentar todos os motivos para embasar sua ideia.

— Nosso erro foi deixá-la sozinha naquela rua, sem nenhuma concorrência! — argumentou.

— Quando fechamos a compra do último imóvel, aquilo lá ainda era só um pé-sujo com meia dúzia de clientes bêbados — justifiquei em contrapartida. — Não tínhamos com o que nos preocupar!

— Esse foi o erro do coelho naquela fábula — Kostas ironizou. — A arrogância do “já está no papo!”.

— Você falando de arrogância? — Ri, e Millos disfarçou seu riso também. — Não tem se olhado no espelho, não?

Kostas apoiou seu indicador logo abaixo da sobrancelha, ao lado do olho e me deu um meio sorriso e um olhar de desprezo. Ergui minha sobrancelha e balancei a cabeça, enfrentando-o. Se o bostinha achava que iria me intimidar como faz com seus advogados, estava muito enganado!

— Já terminaram de testar a testosterona de ambos? — Millos reclamou. — Minha ideia faz todo sentido! Se alugarmos algumas lojas próximas ao estabelecimento dela, damos a concorrência necessária para que recue um pouco no crescimento que vem tendo!

— Sabe o que não entendo? — Kostas interferiu. — Se ela vem fazendo tanto sucesso quanto vocês gostam de afirmar, por que não quitou a maldita promissória?

— Talvez não tivesse tido o suficiente ainda, pois, como o “agiota” mesmo informou, ela andava pagando os “juros” para que ele continuasse paciente — respondi. — Ademais, ela não poderia pegar um empréstimo para quitar uma dívida como essa.

— A verdade é que o pilantra nunca iria liberá-la da dívida. — Concordei com o ponto apresentado pelo Millos. — Gastamos quase o dobro do que a promissória realmente vale, e ele já tinha recebido anos de juros da Duda. O homem é um espertalhão!

— Então você acha que, colocando mais alguns bares naquela rua, teremos mais chances de quebrá-la? — inquiri. Millos assentiu, mas vi um leve sorriso no rosto de Kostas e, sinceramente, não gostei dele. — Como controlaríamos isso?

— Kostas! — Millos aponta. — Podemos amarrar bem o contrato de aluguel, especificando a atividade que o locador deve exercer.

— Isso é legal? — perguntei.

— Não posso dizer no contrato o que ele deve vender, mas posso amarrá-lo à atividade que já exerce, ou seja, se trocar de ramo, deixa o imóvel. — Olha para o Millos. — O pessoal da corretagem, que por sinal é subordinado ao nosso querido e esperto primo, é quem deve ter em mente quais são os tipos de locadores que devem aceitar.

Concordei, mas ainda não estava completamente convencido.

— Pense na questão. — Millos se pôs de pé. — Tempo é o que não falta, pelo que Kostas disse.

Meu irmão o acompanhou, o sorriso estranho ainda em seu rosto, como se estivesse acontecendo algo que só eu não soubesse.

Dali em diante, tudo pareceu ainda pior! Os dias se arrastaram até esta sexta-feira, vários setores da empresa dando problemas justamente nesta época em que o pessoal já parece estar entrando em ritmo de festas e esquecendo um pouco a nossa tão famosa correria paulistana.

Só soube que Valentina seria minha acompanhante nos eventos artísticos no meio do expediente, quando Viviane me ligou para perguntar se eu tinha o endereço do apartamento da moça.

— Você me disse que ela estaria lá, não que iria comigo! — resmunguei. — Nós mal trocamos algumas palavras naquele vernissage!

— Theo, meu querido, você quer ou não quer uma maldita esposa?! — minha sócia perdeu a paciência.

— Porra, mas não assim! Não precisava agir tão descaradamente como se eu estivesse desesperado, merda!

— Ela é a melhor candidata com que você já esbarrou por aí! É amante das artes como você, vem de uma família tradicional e rica como a sua, é linda, jovem e tem todos os infindáveis requisitos que você listou para a futura senhora Karamanlis! Dê uma chance a ela!


CONTINUA
Acordei de ressaca hoje, e não foi por causa da quantidade de bebida que ingeri no vernissage; aquela quantidade, eu nem consideraria como beber. Viviane ficou puta por ter encarecido o orçamento com garrafas do meu uísque preferido e eu não estar bebendo, por isso, depois do evento, reuni todas as que sobraram e trouxe para meu apartamento.

Pensei que ia passar uma noite solitária, acompanhado apenas de um single malte e discos de jazz, mas, no meio da minha encenação de lobo solitário, Millos ligou me convidando para ir até seu loft. Neguei várias vezes, mas a porra do homem estava tão excitado com a cerveja que havia feito que não parava de insistir.

Resultado? A bebida realmente estava um espetáculo! Enchemos a cara, mesmo sob meus protestos, pois nunca curti muito beber cerveja, e comemos uns tira-gostos tão saborosos que teci elogios a sua habilidade na cozinha.

— Ah, não fui eu quem preparou, não! — Riu. — Encomendei no Hill.

Quase cuspi aquela porra para longe e o fuzilei com os olhos.

— Porra, eu querendo que aquela merda feche e você comprando lá? Está do lado de quem afinal?

— Do meu estômago! — respondeu comendo mais um dos bolinhos. — Estava com vontade de ter um acompanhamento, mas sem nenhum saco para preparar. Me lembrei do dia em que fomos lá e quis conferir se ainda continuavam tão gostosos!

— Ainda não te perdoo por aquela arapuca! — acusei.

Há uns dois anos, Millos me convidou para comemorar seu aniversário, coisa que vez ou outra fazemos quando ele está em clima de festa. Eu lhe disse que o encontraria no local, mas ele insistiu em me buscar em casa, e, quando chegamos e percebi que era no Hill, fiquei bem puto, mas a curiosidade de saber o motivo pelo qual o boteco estava se tornando um sucesso me impulsionou a entrar.

O que eu não contava era que, além de a mim, o filho da puta tinha convidado meus irmãos. Ficamos lá os quatro como se fôssemos bons amigos, compartilhando da armadilha de Millos. Aposto que Kostas e Alex detestaram cada momento, mas sorrimos, bebemos e experimentamos os quitutes da tal da Duda Hill.

Mesmo não gostando de admitir, era fato que a mulher sabia o que estava fazendo na cozinha. Os bolinhos tão tradicionais de um boteco tinham um requinte diferente, embora mantivessem a essência. Era como se ela conseguisse melhorar o que já era perfeito, e isso, tenho que admitir, é um dom.

Confessei isso ao meu primo? Nem sob tortura! Repreendi-o por ter comprado lá, aleguei que ela podia ter mandado envenenar os quitutes – fazendo um drama desnecessário, culpa da bebida –, mas não parei de comer.

— Ah, pedi a Sami para comprar para mim — respondeu.

— Você ainda está saindo com ela? — questionei surpreso, pois havia muito tempo não via a motoqueira que, de vez em quando, orbitava em volta dele.

— Não! Somos amigos, já disse isso, mas parece que você só enxerga a boceta de uma mulher, come até suas “amigas” — fez referência a Viviane.

— Por que você não gosta dela? — Provoquei: — Porque ela é independente, dona de si mesma e diz o que pensa?

— Não! Eu não curto mulher assim para comer, mas não tem nada a ver com o fato de eu achá-la fria e calculista, e nunca escondi isso de você. Aquela mulher gela meu sangue!

Ri do seu exagero, afinal, a Vivi não tem nada de fria. Millos implica com ela pelo simples fato de a mulher ter personalidade e não se deixar comandar por ninguém. No primeiro momento ele se sentiu atraído, Vivi é um espetáculo aos olhos, e ela também não disfarçou o interesse. No entanto, bastaram alguns minutos de conversa para que se odiassem.

— Hoje ela conseguiu algo incrível — comentei. — Valentina de Sá e Campos, já ouviu falar?

Ele riu.

— Dela não, mas conheço os sobrenomes. Família paulistana tradicional, bom currículo. — Cruzou os braços e me olhou debochado. — A futura senhora Theodoros Karamanlis?

— Talvez — fui sincero. — Conversei um pouco com ela nesta noite, achei-a divertida, inteligente e sedutora. A princípio achei que era muito nova, mas é madura e independente, cheia de opinião. Gosto do tipo.

— Eu sei. — Ele se levantou e foi pegar mais cerveja. — Foi Viviane quem te apresentou a ela? — Assenti. — Não sei se gosto disso, mas boa sorte.

Gargalhei pela implicância dele com a Vivi e resolvi desviar o assunto. Falamos da Karamanlis, de música, de motos e, por fim, já muito bêbado e com sono, caí sobre o sofá dele e acordei há pouco, com torcicolo e com uma puta dor de cabeça.

— Ei! — Millos me saúda estendendo uma xícara de café. — Você está destruído!

O desgraçado ri, mas nem posso mandá-lo tomar no cu, porque minha cabeça trepida parecendo que há uma britadeira no meu cérebro. Maldita cerveja! Malditos bolinhos envenenados da Duda Hill!

— Cara, você é fraco para minha cerveja! — Millos ri. — Ficou boa, não é? — Apenas assinto, ainda tomando o café para melhorar meu ânimo. — O que está programado para fazer nesse final de semana?

— Vou trabalhar. Como saí um pouco mais cedo ontem por causa do vernissage, Rômulo separou umas pastas para que eu lesse nesse final de semana. Coisa chata, principalmente da pauta da reunião do conselho.

— Por falar no conselho... — Ele se senta ao meu lado no sofá e apoia os pés descalços sobre a mesinha de centro. — Ontem tive notícia do Kostas. — Ri. — Parece que tomou um toco feio da Kika e está cuspindo marimbondos.

Gargalho, esquecendo a dor.

— Como queria ter visto esse embate!

— Eu também.

Bufo, mesmo divertido, lembrando que o meu problema continua.

— Preciso trazê-la de volta para a empresa com urgência. Há vários projetos dos hunters parados, e o Rômulo não está dando conta de organizá-los.

Millos rola de rir no sofá.

— Esse seu assistente é muito estranho. Sinceramente não entendo como você ainda o mantém trabalhando contigo!

— Gosto de ele ser metódico. — Dou de ombros. — É organizado, embora meio desastrado, nunca perde um prazo e faz tudo o que eu peço.

— Seu próprio espelho, não é? Nunca conheci ninguém mais chato que você para organização.

Ergo uma sobrancelha para ele e olho em volta para seu loft cheio de espaço, mas sem nenhuma lógica ou senso de estilo. Millos gosta de coisas rústicas, e respeito isso, acho legal, mas é tão bagunceiro que seus móveis caros de design parecem ser cacarecos de alguma casa demolida.

Os únicos locais arrumados são: a cozinha, o “laboratório” de cerveja (como ele mesmo se refere ao local) e onde dorme. O resto... tem peças de motos para todos os lados, mesmo a oficina ficando na parte de baixo do galpão que ele chama de loft, tem barris com os ingredientes que compra para a fabricação de cerveja, roupas, discos e óculos (nunca vi tantos para uma só pessoa) espalhados por todos os lados.

O homem é um caos completo em casa, mas, se alguém entrar na sala dele na empresa, vai acreditar que é o epítome da organização. Não entendo como consegue!

— Bem, sobre a Kika, eu posso te adiantar que não precisa se preocupar — Millos continua. — Falei com ela ontem, e vai voltar.

Expiro o ar, aliviado.

— Porra, Millos, porque não me contou antes? É um alívio do cacete não ter que lidar com mais esse problema e...

— Mas ela não quer ser mudada de andar.

— O quê? Ela está fazendo exigências?

Millos penteia a barba com os dedos, enervando-me com sua calma.

— Demonstramos desespero ao mandar o Kostas pedir arrego. — Concordo com ele nesse ponto. — Ela quer aumento, continuar no andar e... — Tenta conter o sorriso, e prevejo que vem bomba, mas ele vai dar um doce do cacete para falar.

Perco a paciência e esbravejo:

— O que mais ela quer?!

— Carta branca para mandar seu irmão se foder à vontade.

— Porra!

Ponho as mãos na cabeça, sentindo a dor de cabeça voltar com tudo e ouvindo a risada debochada do Millos.

Eles querem me enlouquecer, só pode!

 

 

A dor de cabeça me acompanhou ao longo de todo o final de semana. Tomei analgésico, antiácido e – seguindo os conselhos do meu primo – mais um pouco de cerveja. No entanto, não consegui me livrar do incômodo insistente.

Trabalhei o sábado inteiro, recebendo ligações do Rômulo quase de hora em hora, a ponto de ficar puto com ele e mandá-lo caçar algo para se divertir e me deixar em paz. Compreendo que ele queira me ajudar, mas, às vezes, sua dedicação exacerbada me estressa.

Recebi um convite para jantar de uma antiga amante que vinha a São Paulo de tempos em tempos, mas neguei. Queria apenas relaxar um pouco em casa depois de ter trabalhado em páginas e mais páginas de relatórios com uma dor de cabeça chata a me distrair.

Pedi comida em um restaurante de comida vegana, achando que pudesse ser a gordura dos bolinhos do Hill – velha e rançosa, com certeza – que me deu essa indisposição e resolvi assistir a alguns filmes antigos. Sou fã de “O poderoso chefão”, então comecei a assistir a cada um deles de novo.

Novamente dormi em um sofá, mas acordei melhor e resolvi correr um pouco. Passei umas duas horas no Ibirapuera e, na volta, encomendei o almoço de domingo, sentindo-me um pouco órfão sem a Vanda em casa.

Liguei para Millos a fim de fazermos algum programa à tarde, mas ele estava com alguma mulher em algum clube ou lugar que só Deus sabia, então voltei aos relatórios, e isso consumiu o resto do dia.

Debaixo do chuveiro, rememorando este final de semana de merda, ouço meu telefone tocar, mas o ignoro. Coloquei os jatos no mais forte possível para tentar aliviar um pouco a tensão que venho acumulando nesses dias. A verdade é que preciso trepar um pouco, divertir-me, talvez fazer uma viagem ou passar um final de semana com alguém sem pensar no trabalho.

A imagem da Valentina vem à minha mente, sua conversa gostosa, seu sorriso bonito. Contudo, ainda não me sinto completamente certo de que devo me envolver com ela, principalmente por uma questão: não senti muita atração.

Sei que isso é de momento e que pode mudar, principalmente se a convivência for boa. Nem sempre sentimos atração pela pessoa no primeiro encontro, e já vivi anos demais para saber que até um primeiro encontro explosivo pode depois esfriar e o tesão ser extinto, então, não me baseio apenas nessas primeiras impressões.

Fecho os olhos e penso na garota da boate há alguns anos. Ela vem preenchendo minhas fantasias há muito tempo, talvez por ter sido gostoso daquela vez e não ter tido mais notícia dela.

Mal lembro do seu rosto, de tão bêbado que estava, sempre quando fantasio vejo os cabelos e me lembro da loucura que foi nossa transa naquele banheiro.

O telefone volta a tocar, e desligo o chuveiro, saindo do boxe para ver quem é o chato. Rio ao ver o nome do Millos. Na mosca!

— Já terminou sua maluquice sexual com a “submissa” da vez? — provoco.

— Vá se foder e não se meta nos meus assuntos — rosna. — Liguei para saber se amanhã pode ir comigo a um restaurante que um amigo inaugurou nos Jardins.

— Boa comida ou é boteco?

— Não, seu fresco, é coisa fina! Vanda ainda não estará de volta, não é?

Suspiro, resignado.

— Não, ela ainda vai ficar um tempo no Rio de Janeiro. Está certo, amanhã combinamos isso melhor no escritório.

— Okay! — diz animado. — Vai almoçar no refeitório junto aos funcionários?

— Sempre há uma primeira vez, não é? — Deixo a toalha no suporte e sigo para o closet. — Além do mais, confio que servimos algo de qualidade aos funcionários.

Millos ri.

— Essa eu quero ver! Nos encontramos no almoço, então! Boa noite, Theo.

— Boa noite!

Desligo o telefone e me olho no espelho, lembrando-me do tempo em que comia qualquer coisa e em qualquer lugar, na maioria das vezes sujo e fedendo a peixe, sentindo-me feliz e livre.

— Quem é você, Theodoros Karamanlis?


O dia nem bem amanheceu, e eu já estava suando na academia com a Sandra. Hoje, sem Millos, o treino foi mais tranquilo, seguindo o ritmo normal dos exercícios. Tomei meu café sozinho na cozinha – café puro mesmo – sentindo imensamente a falta da Vanda, de sua conversa matutina animada e seus cuidados. Posso não admitir sempre, mas gosto de ser cuidado, de sentir esse afeto, coisa tão rara na minha vida.

Limpei os pensamentos e saí para trabalhar.

— Bom dia, Dionísio! — cumprimentei o motorista como em todos os dias, já pegando meu jornal para me inteirar sobre as principais notícias do dia. — Hoje vou almoçar na empresa, mas, à noite, vou sair do escritório direto para jantar com Millos.

— Levo o doutor ou trago o carro?

— Traz o carro, vou dirigindo.

Ele assentiu, e seguimos viagem em silêncio, ele concentrado no trânsito, e eu, nas notícias de economia do país e do mundo.

Cheguei à empresa já apagando incêndios. Um dos projetos de um cliente foi reprovado por uma comissão municipal, então Kostas teve que intervir mandando seus advogados e acompanhando todo o processo. Eu, como CEO, fiquei aguentando a aporrinhação do gerente responsável pela implantação da empresa multinacional aqui no Brasil.

Nem vi a hora passar, mal tomei meus cafés tão tradicionais ao longo da manhã, irritado com esse problema, com o Rômulo borboleteando ao meu redor me enchendo de perguntas: “quer café?”, “ligo para o doutor Konstantinos?”, “quer um calmante?”. Eu quase explodi de raiva, sentindo meu estômago fritar e a cabeça estourar.

Desci para o refeitório faltavam alguns minutos para o meio-dia e, para meu espanto, ainda não tinha nenhuma refeição pronta. Conferi as horas no Omega, um dos relógios mais precisos do mundo, e estranhei a demora. Rômulo apareceu e, quando lhe questionei o atraso, fiquei sabendo que o almoço era servido a partir da 1h da tarde.

Voltei para o escritório sob a insistência de Rômulo para me encomendar o almoço em algum restaurante.

— Não! Hoje vou comer no refeitório — insisti.

Millos me lançou um desafio por eu nunca ter comido na empresa desde que foi inaugurado o refeitório para os funcionários. Pensamos no restaurante para facilitar a vida de todos e, como tínhamos espaço, decidimos montar a estrutura. Estive presente no primeiro dia, na inauguração, há alguns anos, mas depois disso não botei mais os pés no local.

Exatamente às 13h desci novamente pensando em usufruir de um almoço tranquilo e nutritivo, porém, o que encontrei me deixou sem ação. Primeiro, os funcionários ficaram estarrecidos ao me ver ali; percebi em seguida que apenas o baixo escalão da empresa – de coordenadores para baixo – estava comendo ali. Não havia nenhum gerente ou diretor no meio dos mais de 100 funcionários da companhia.

Contudo, o que mais me surpreendeu foi a comida. Não, não era ruim, pelo contrário, era bem preparada, mas sem nenhuma opção para substituição.

— E quem não pode comer carne vermelha? — questionei ao Rômulo, e ele apenas corou, fingindo não ouvir. — Há cardápios diferentes ao longo da semana?

Rômulo continuava a montar seu prato sem emitir qualquer resposta, o que não é nada típico dele, e isso me irritou. Quando não era para falar, o homem tagarelava, mas, quando eu precisava de respostas, ficava mudo!

— Rômulo! — chamei-o de modo mais enérgico. — Eu estou tentando entender o que...

— Não, não há! — escuto a voz do Alex e me viro para encará-lo. — E seu querido assistente não sabe informar porque não come aqui também. — Meu irmão pegou um prato e se serviu naturalmente. — A questão do restaurante entrou em pauta numa reunião de diretoria, mas o senhor todo-poderoso do Olimpo achou que não era uma questão relevante para a economia da empresa e pulou o assunto.

Olhei de esguelha para Rômulo buscando confirmar a informação, e ele atestou. Xinguei mentalmente.

— Uma empresa é feita de mais do que números, Theodoros Karamanlis — seu desprezo pelo sobrenome era evidente. — E, quando fiz a proposta do restaurante, era para que, além de economizar o tempo dos funcionários e agilizar o serviço, também tivéssemos convívio com eles, porém, adivinha quem foi o primeiro a pular do barco e a incentivar o “alto escalão” a ir junto?

Bufei de raiva.

— Quem é o responsável pela gestão do restaurante? — ignorei o discurso do meu irmão idealista e perguntei ao Rômulo.

— É terceirizada, a mesma empresa do pessoal da manutenção.

Merda!

— Marque uma reunião com ela e peça ao Kostas para avaliar o contrato. — Rômulo mais do que depressa escreveu em seu tablet inseparável. — Dispare um memorando para todos os diretores e gerentes, lembrando da existência do restaurante e informando que, a quem for almoçar fora, será necessário cumprir o horário, ou seja, uma hora e nenhum minuto a mais.

Rômulo arregalou os olhos e assentiu.

— Eu pouco vejo você e percebo que nem é preciso! Você não mudou nada, o mesmo prepotente de sempre. — Alex passou por mim, ainda se servindo no bufê, rindo de deboche, e percebi olhares curiosos em nossa direção.

— Eu preciso lembrar que você também faz parte da diretoria e tem acesso irrestrito ao conselho? — Cheguei perto para falar baixo: — Se fosse meu projeto, nunca deixaria chegar aonde chegou só porque não sou o CEO. Isso demonstra que está mais preocupado em ir contra a direção do que lutando pelo bem-estar dos funcionários. Não é minha função tomar conta de tudo, não sou absolutista, eu delego e confio naqueles a quem passo esse poder. — Ele fechou a cara, perdendo o ar de superioridade. — Não tenho intenção alguma de prejudicar os que trabalham comigo, pelo contrário. Mas assumo meu erro em não ter frequentado o local para dar exemplo.

— Mas o doutor também não tem horário certo para almoçar, por isso...

Balancei a cabeça em negativa, freando a defesa de Rômulo. Não tinha desculpas, o exemplo era meu, e eu tinha falhado. Terminei de fazer meu prato, sentei-me a uma mesa com Rômulo e almocei mesmo sentindo um nó na garganta por ter mostrado falha e ter sido repreendido pelo Alex na frente de todo mundo.

Merda!

Ao longo do dia, a repercussão do almoço do CEO no restaurante da empresa, bem como o efeito do memorando para os diretores e gerentes agitaram a tarde na Karamanlis. Percebi todo mundo mais atento, mesmo na correria de sempre.

Tive uma resposta positiva da equipe de Kostas com relação ao projeto vetado e pude passar a boa notícia ao nosso cliente. Recebi vários relatórios dos setores e subsidiárias ao longo do dia, inclusive da K-Eng, dirigida pelo Alex.

Meu irmão é um sonhador idealista, defensor dos fracos e oprimidos, um rebelde que só trabalha conosco para contrariar a família. Cospe sobre nosso sobrenome, mas faz questão de ostentá-lo para afrontar o pappoús. Sempre achamos que ele tentaria afundar a empresa em represália ao tratamento que teve na infância, mas não, ele não só assumiu uma empresa praticamente independente como a fez crescer. Todavia, ainda sinto que há algo por trás disso.

Estaciono o carro na vaga do restaurante, afastando as lembranças do dia e conferindo o endereço que Millos me enviou por mensagem. Estar sem o Dionísio nesta noite é bom, porque vou moderar a bebida, afinal é segunda-feira, e prefiro tomar um copo de uísque quando estiver no meu apartamento.

Tenho expectativa de o jantar ser bom; já o almoço foi complicado e indigesto com a discussão com o Alex e a demonstração de que deixei as coisas correrem soltas demais. Claro que não sou arrogante a ponto de achar que meu irmão não estava com a razão sobre as coisas que me disse, afinal, ele convive mais com os funcionários que eu, mas não gostei de ser contrariado na frente de todos.

Entro no restaurante, e a primeira coisa que percebo é a arquitetura do lugar e a decoração de bom gosto. Isso realmente não diz muita coisa acerca da qualidade gastronômica deles, mas já conta pontos em matéria de conforto. Uma recepcionista, bem-vestida e muito bonita, cumprimenta-me, e lhe dou o nome de Millos, que foi quem fez a reserva.

— Ah, doutor Karamanlis, ele ainda não chegou, mas o senhor pode esperá-lo no bar, tudo bem?

Respiro fundo, conferindo as horas e calculando que ele – se viesse de moto, como sempre – já deveria estar aqui. Olho contrariado para o bar, logo na entrada do restaurante, e meus olhos são imediatamente atraídos para uma mulher vestida de preto, com os cabelos longos, castanhos e lisos, tomando uma taça de vinho.

Não consigo ver todo o seu rosto, apenas o perfil, e isso é suficiente para que eu queira vê-la toda.

— Tudo bem — concordo com a recepcionista, que me aponta o bar.

Caminho para lá e me sento na poltrona alta ao lado da bela mulher. Não a olho, prestando atenção ao bartender que vem pegar meu pedido.

— Scotch, por favor. — Ele pergunta a marca. — The Macallan.

Sorrio satisfeito ao vê-lo pegar exatamente a garrafa que costumo beber e, então, de esguelha, olho para a mulher ao meu lado, procurando algum indício de indisponibilidade – ou problema –, como uma aliança em seu dedo.

Ela não usa nem mesmo anéis. No entanto, o que chama minha atenção são as unhas curtas, bem cuidadas, mas sem esmalte. Hoje em dia o que as mulheres mais fazem é colorir as unhas! Como eu gosto de arte, logo sou atraído pela variedade de cores e a combinação com as mãos e os formatos. Porém, não com ela; suas mãos são lindas, dedos longos, sem precisar de nenhum tipo de enfeite.

Subo o olhar e a encontro me olhando também.

— Boa noite! — cumprimento-a sorrindo assim que o bartender deixa meu copo no balcão.

— Boa noite! — ela responde. Sua voz me causa uma sensação de frenesi, e fico imediatamente excitado. Ela é linda em todos os sentidos da palavra. Seu rosto é delicado, proporcional, olhos expressivos, nariz fino e uma boca generosa. Fico imaginando como será seu sorriso aberto, não apenas esse polido e educado que me dá agora.

Paro de encará-la para não a constranger e tomo um gole do uísque, questionando se devo ou não puxar conversa com ela.

Não sou inseguro, nunca fui, mas às vezes uma mulher só quer estar quieta bebendo sem alguém para importuná-la, por isso sempre espero ver algum indício de que quer papo antes de abordar.

Dou outra olhada de soslaio.

Vamos lá! Quero saber quem você é!


— É a primeira vez que venho aqui — é ela quem faz o movimento, e gosto disso, uma mulher decidida. — Estou surpresa pelo requinte sem a frieza esperada desses restaurantes com esse nível. O pessoal é simpático e organizado.

Rio.

— Você é da área — constato e me viro para ela, girando a poltrona em sua direção.

— Sou. — Sorri finalmente, e me sinto extasiado com a perfeição do gesto. Os olhos ficam levemente puxadinhos, e sua face inteira se ilumina. A mulher fica absurdamente linda quando sorri. Meu interesse é real agora. — Mas hoje vim como cliente.

— Eu só venho como cliente — brinco. — Não sei fritar um ovo!

Ela ri de novo e toma um gole de seu vinho.

— O que seria dos restaurantes se todos soubessem ou gostassem de cozinhar? — Levanta sua taça em minha direção. — Aos que são apenas clientes e podem desfrutar de uma deliciosa refeição sem ficar avaliando cada nuance do prato.

— Justo! — Brindo com ela. — Qual sua formação?

— Cozinha francesa. Diplôme de cuisini e pâtisserie.

Uau!

Meu corpo inteiro vibra e meu pau reage ao som do seu perfeito sotaque francês. Acompanho sua boca em volta da borda da taça de vinho, o leve ondular de sua garganta sorvendo a bebida e sua língua resgatando os resquícios da bebida em seus lábios.

Abaixo a cabeça e bebo um longo gole do uísque, tentando não parecer um tarado assediador, mas louco para perguntar se ela prefere na minha casa ou na dela.

— Pelo francês perfeito presumo que tenha estudado na França... — Ela concorda com um sorriso. — Le Cordón Bleu?

— Naturellement. Estudar gastronomia na França sem ser em Le Cordón Bleu é como ir a Roma e não ver o Papa!

Gargalho com sua comparação e a saúdo com minha bebida.

— É como ir até a Escócia e não provar um verdadeiro uísque.

Levo o copo até a boca e acompanho o olhar dela em mim.

— Sua escolha de bebida me surpreendeu — ela comenta, e franzo o cenho, olhando meu bom e velho single malte e me perguntando qual é o problema com ele. — É uma bebida conservadora, nada sofisticada, ao meu entender, não combinou muito. — Aponta para mim.

Finjo-me de ofendido, embora segure a risada, e cruzo os braços.

— E você é uma entendida em bebidas também? — provoco-a.

A risada dela é tão melodiosa que parece música, seus olhos se iluminam e as bochechas ficam levemente rosadas. Perfeita!

— Nem queira saber! — Beberica um pouco do seu vinho. — Praticamente cresci cercada delas.

— Hum... — Sorrio. — O que combinaria mais comigo, então?

Sou submetido a um olhar avaliador, passando pela minha roupa, sapatos e rosto. Sinto tão intensamente sua atenção sobre mim que é como se ela pudesse olhar além das minhas roupas. Estou exposto, nu, cada músculo aquecendo à medida que seus olhos percorrem meu corpo, concentrando ainda mais desejo em minha virilha. Porra, que delícia!

— Pelo estilo de roupas e o Omega que usa no pulso — ergo a sobrancelha, surpreso pelo bom olho que ela tem —, um Dry Martini.

Gargalho sem me conter, e ela me segue, ambos divertidos pela comparação que ela faz. James Bond? Sim, eu sei que o mais famoso espião dos cinemas só usa relógios da Omega, mas não me vejo com uma taça de Dry Martini na mão, exigindo do bartender: “batido e não mexido”. Gosto de pensar que sou mais rústico que isso. A prova é meu single malte caubói.

— A sofisticação é só uma casca, pode acreditar. Estou longe de ser tão refinado quanto o Bond, ou tão habilidoso. — Ela levanta uma sobrancelha questionadora, demonstrando que não acredita nessa minha “humildade”. — A propósito... — respiro fundo, indo devagar — meu nome é Theo.

Mais uma vez seu sorriso faz meu pau reagir, ficando dolorosamente duro e pulsando na cueca. Que porra de atração é essa? O que essa mulher tem? É divertida, a conversa está fluindo bem, além de ser linda, mas essa atração... não é assim que acontece, ainda mais em um ambiente tão frio quanto o em que estamos.

— Maria Eduarda. — Ela estende a mão, e eu a seguro.

Tudo em volta parece vibrar, e noto que ela também sente isso. Meu sorriso se expande. Não tiro os olhos dos seus. A energia gerada pelo toque esquenta meu corpo e aumenta minha percepção do dela.

Maria Eduarda tem um belo pescoço, e o cheiro suave de um bom perfume parece advir exatamente do ponto onde eu gostaria de passar minha língua. Os ombros são delicados, os braços longos e sem nenhum contorno muscular demonstram que ela não mantém regularidade de exercícios, sendo magra ao natural. Os peitos no decote do vestido são pequenos, porém, redondos e firmes.

O vestido, embora justo, tem um tamanho comportado, por isso não posso ver suas coxas – o que é uma pena –, tão somente as panturrilhas e uns pés lindos – esses, sim, com as unhas pintadas de vermelho – em sandálias de cor clara.

Apesar de ser uma mulher atraente e bonita, não é uma beleza exótica. Sem o sorriso, ela passaria a ser apenas mais uma mulher bonita como muitas outras que existem por aí, porém, não para mim. Algo nela chamou minha atenção desde o primeiro momento. Mesmo com ela de costas, sem nem ao menos ver seu rosto direito, senti-me atraído.

Agora ela me deixa em chamas, tentado a ser direto e lhe propor uma noite de pura sacanagem. Eu o faria se o local fosse mais descontraído e tivesse mais abertura da parte dela, não só a confirmação de que se sente atraída por mim. Em uma boate, por exemplo, eu seria mais efusivo.

— É um prazer enorme encontrá-la aqui — mesmo sendo sutil, quero deixar claro que ela chamou minha atenção. — Salvou minha noite, pode ter certeza.

Ela sorri e solta minha mão.

— Quase não vim — confessa e dá de ombros. — Assunto chato, companhia chata.

Gosto da sua sinceridade.

— Negócios? — Ela assente, e eu adoro a notícia. — Geralmente os meus jantares têm o mesmo motivo.

— Então veio para uma reunião também?

Nego com a cabeça antes de responder:

— Não, hoje só vim comer. Meu primo é amigo do dono daqui e me recomendou o restaurante.

— Isso é bom, espero que esteja à altura da sua expectativa.

— Ainda que não esteja, Maria Eduarda — cruzo os braços e a encaro —, no momento estou ligando o foda-se para a comida ou o restaurante.

Ela fica séria, mas não desvia os olhos.

— É mesmo?

Não respondo de imediato, curtindo esse jogo entre nós. Aposto que ela sabe o motivo pelo qual não tenho mais nenhum interesse na gastronomia do local. Ela quer que eu diga! Quer que eu dê o passo adiante, que demonstre o interesse claramente, o que é um ótimo sinal.

Deixo o silêncio e o ar vibrar entre nós por mais alguns momentos, sem tirar meus olhos de suas belíssimas íris castanhas.

— Porque minha fome é outra desde que encontrei você aqui. — Ela segura o fôlego. — Porque nossa conversa está cada vez mais interessante. — Abaixo o tom de voz: — Porque olhar você e sentir seu cheiro acordaram meus sentidos mais do que qualquer nuance de um prato é capaz de fazer.

Minhas mãos coçam de vontade de tocá-la, de sentir novamente aquela energia sexual percorrendo meu corpo, emanando dela. Não o faço porque ainda não vi sinais suficientes para avançar a esse ponto, e eu sempre espero a permissão de uma mulher para tocá-la.

— Você nem me conhece — ela responde um pouco ofegante.

— Estou louco para conhecer. — Encosto-me melhor à poltrona e me afasto um pouco dela para demonstrar que não a estou pressionando. — Não tenho pressa, Maria Eduarda, só preciso que saiba que você me atrai e que, embora esteja sentado aqui, estou louco para segurar sua nuca e provar o sabor desse vinho que bebe, diretamente nos seus lábios.

Ela suspira e desvia o olhar.

Esse é o momento quando ou eu tomo um fora, ou venço o jogo. Porém, podem dizer que é arrogância, eu sou um homem vivido e, se cheguei até aqui, se me expus dessa forma, é porque estou apostando minhas fichas em que o tesão é recíproco.

— E se eu for casada ou comprometida?

Bingo!

Pela entonação da pergunta, sei que ela não é.

— Eu me desculparei, mesmo ainda sentindo esse desejo maluco de te beijar, e me levantarei, indo para a mesa que meu primo reservou. Não trepo com comprometidas.

Ela levanta as sobrancelhas e assume uma expressão provocadora.

— Não trepa? — Ri, cínica. — Você é muito confiante achando que basta jogar meia dúzia de palavras em cima de uma mulher sozinha em um bar para garantir uma trepada.

— Eu sou confiante. — Aproximo-me a fim de lhe demonstrar de onde vem minha confiança. — Mas não são as “meia dúzias de palavras” que vão fazer você ter vontade de trepar comigo. — Seguro sua mão e com a outra deslizo meu dedo indicador do seu punho até o cotovelo, vendo todos seus pelos se arrepiarem com o leve contato. — É isso!

Maria Eduarda fica um tempo olhando o trajeto do meu dedo sobre sua pele, assistindo, como eu, à deliciosa reação causada por meu toque. Não falamos nada, apenas acompanhamos o leve vai e vem que eu faço no seu antebraço, apreciando o contato. É nítido para mim que ela está avaliando todas as possibilidades e talvez tentando entender como isso é possível.

Já não escuto mais nada, os sons das conversas, a música clássica baixa que toca, a correria do bartender limpando copos, organizando garrafas ou preparando aperitivos. Tudo ao redor some, e só sinto a potência do tesão que ela despertou em mim, esperando que sinta o mesmo e que admita isso.

Ela sorri, mas puxa a mão, rompendo o contato.

— Como já disse, a gente nem se conhece.

— Sou paciente, Maria Eduarda. — Recebo um sorriso tímido. — Vou adorar cada momento até te conhecer. — Afasto-me dela novamente e peço mais uma dose de uísque. — Aceita mais uma taça?

Aponto, mas ela nega, olhando para a entrada do restaurante.

— Infelizmente, não. — Respira fundo. — Meu compromisso chato acaba de chegar.

Viro-me para ver quem é o sortudo que vai jantar com ela, mas só vejo o Millos entrando com uma cara debochada e um sorriso contido. Olho para Maria Eduarda novamente e confirmo que ela não só se levantou à espera do Millos, como parece muito contrariada com a presença dele.

Por que Millos iria marcar para jantar com uma mulher e comigo ao mesmo tempo? As palavras “jantar de negócios” me causam um alerta, mas me recuso a enveredar pelo rumo que meus pensamentos querem ir.

— Ah, desculpem o atraso! — Millos exclama, indo cumprimentá-la. — Que bom que já se conheceram. — Maria Eduarda franze a testa e me encara. — Theo, eu acho que chegou a hora de conversarmos pessoalmente com a Duda.

Porra!

Levanto-me como se tivesse sentado em um formigueiro, estarrecido demais para articular qualquer palavra educada que não seja um palavrão bem cabeludo.

Duda? Olho-a de cima a baixo sem poder acreditar que a mulher que me atraiu como se tivesse um ímã é a infernal dona do boteco que tem feito minha vida um suplício por causa de sua teimosia.

— Theodoros Karamanlis? — ela parece tão chocada quanto eu e já não há nada além de desprezo em sua voz ao falar meu nome.

Desvio um olhar mortal para meu primo, que, além de parecer surpreso, está também muito interessado nessa interação entre nós.

Eu vou te matar, seu filho da puta!


— Aceita mais uma taça?

Minha vontade é de aceitar e pagar para ver Theo jogando todo seu charme para mim, usando armas pesadas para conseguir provar que temos realmente toda essa química que ele demonstrou com um simples roçar de dedos em meu braço.

E temos, sim! Não sou hipócrita a ponto de me enganar dizendo que não senti nada por ele. Assim que se sentou ao meu lado aqui, a esse balcão, meus olhos foram imediatamente atraídos para ele. Quando me cumprimentou, sua voz fez meu corpo inteiro reagir de uma forma estranha, e tive a nítida sensação de que o conhecia de algum lugar.

Porém, foi só quando se virou em minha direção, depois de eu ter puxado assunto descaradamente, que fiquei sem fôlego. Seus olhos são de um azul que eu nunca poderia esquecer caso já os tivesse visto. No entanto, a sensação de reconhecimento persiste. Ele é muito bonito, além de ter um sorriso de arrancar a calcinha de qualquer mulher.

Se Manola estivesse aqui comigo, com certeza iria dizer que ficou emocionada e que molhou a calcinha. Entretanto, aprendi com o tempo e com as responsabilidades a ser mais comedida e a não me deixar levar sem pensar. Um rosto e um corpo bonitos não querem dizer muita coisa sobre o caráter de alguém.

Estou para aceitar a proposta de mais uma taça e alongar o papo, mas minha visão periférica capta um movimento na entrada do restaurante, e me sinto murchar ao ver Millos Karamanlis adentrando. Esse homem não se cansa de tentar comprar o Hill, é um saco!

Quando me ligou, eu estava pronta para dizer um sonoro NÃO a ele, mas insistiu que era importante, que tinha uma situação que me interessava e por isso achava melhor conversarmos para tentar um acordo. Isso me deixou intrigada e temerosa, por isso estou aqui, neste momento, tendo que recusar a companhia agradável e intrigante do Theo.

— Infelizmente, não — respiro fundo, respondendo ao delicioso oferecimento desse deus com cuja companhia o destino me presenteou enquanto eu esperava pelo diabo. — Meu compromisso chato acaba de chegar.

Levanto-me, resignada, para receber o homem barbudo e muito estiloso, devo confessar, mas que é uma pedra no meu sapato.

Millos abre um sorriso e se aproxima para me saudar como sempre faz, com um beijo na bochecha e um curto aperto de mãos. Tenho verdadeiro trauma dele, de estar sempre rodeando minha vida à espera de um fracasso que o deixe comprar o bar da minha família, minha casa, o legado do meu pai. Contudo, tenho de admitir que, embora pondo pressão, ele sempre me tratou muito bem e com muita simpatia.

— Ah, desculpem o atraso! — Ele olha para o Theo e depois para mim. — Que bom que já se conheceram. — O quê? Como assim? Eles se conhecem?! — Theo, eu acho que chegou a hora de conversarmos pessoalmente com a Duda.

Millos Karamanlis conhece o Theo!

Meu sensual companheiro de bar se levanta e me encara de um jeito completamente alarmado. O olhar sedutor sumiu, bem como seu sorriso franco e relaxado. Agora apenas incredulidade está estampada em seu rosto bonito.

Oh, meu Deus, não pode ser!

Claro que eu acharia que o conhecia, afinal, já vi fotos suas em revistas da alta sociedade e em jornais, embora creia que nenhuma delas lhe tenha feito jus. O homem ao meu lado não é simplesmente “Theo”, é o diretor da porcaria da empresa que comprou toda a quadra onde fica o Hill e que vem tentando de todas as formas me tirar do meu lugar!

— Theodoros Karamanlis? — minha voz soa tão incrédula como me sinto.

Como não percebi quem era esse homem? Como pude me sentir atraída por ele a tal ponto de fantasiar uma noite ao seu lado? Eu o quis como havia muito tempo não me lembrava de ter querido alguém, uma atração que não sentia desde a época em que ainda pensava que tinha o mundo aos meus pés e que conquistaria tudo o que sonhasse ter.

Millos fica um tempo com a sobrancelha erguida, olhando de um para o outro, até que resolve quebrar o gelo.

— Podemos ir para a mesa?

Eu o olho ainda sem entender que tipo de palhaçada é essa. Eles fizeram de propósito? Será que Theo veio primeiro para tentar me seduzir, afinal, nós nunca fomos apresentados, ou foi só uma coincidência ele ter chegado antes e aí resolveu brincar comigo?

Não é possível que ele não soubesse que eu sou a Duda Hill!

— Millos, o que você pretende, afinal? — Theo questiona com a voz demonstrando toda sua irritação.

— Eu não acho que temos algo para conversar. — Pego minha bolsa, que estava pendurada na poltrona giratória. — Não vou mudar de opinião, não pretendo vender o Hill.

— Por que não? — Theo questiona de repente, e eu o olho. — O que uma chef formada por Le Cordón Bleu pode querer com um boteco? — Fecho minhas mãos com força na alça da bolsa. — Ou esse papinho de Paris e seus diplomas é só um sonho fantasioso de uma dona de bar?

Millos emite um palavrão baixo, prevendo que o tempo irá fechar. Ele me conhece bem, já me irritou várias vezes e saiu do Hill com uma resposta à altura.

— O que eu quero ou não só diz respeito a mim, doutor Theodoros Karamanlis — tento falar o mais baixo possível, mas meus olhos brilham de indignação, e espero que ele entenda a mensagem. — O boteco é meu, faço com ele o que eu quiser, e de uma coisa você pode ter certeza: Não. Vou. Vender. Para. Vocês! Ficou claro agora, ou preciso desenhar? — Olho para o Millos.

— Ei! Vamos nos sentar à mesa e conversar com calma! — ele tenta apaziguar o clima tenso entre mim e Theodoros. — Theo... — pede sua colaboração, mas o homem parece estar soltando fogo pelas ventas e não lhe dá atenção. — Vocês estão chamando a atenção dos outros clientes e...

— Foda-se! — falo em uníssono a Theodoros, e Millos ri, mesmo ainda nervoso.

O maître aparece para nos conduzir até a mesa reservada, e Millos faz um gesto para que o sigamos até lá. Encaro Theodoros Karamanlis por um tempo, ambos medindo forças para ver quem cede primeiro.

— Vamos? — Theodoros pergunta, e eu assinto, passando por ele sem nem ao menos emitir uma palavra. A mesa que Millos reservou é discreta, no fundo do salão, sem nenhuma outra por perto. Sento-me com as costas eretas, sem tirar a alça da bolsa do ombro, mostrando a eles a minha contrariedade por estar ali.

— Vamos fazer um pedido?

— Não, Millos, não pretendo ficar para comer — sou direta. — Preciso apenas que me fale sobre o assunto que não quis adiantar pelo telefone. O que vocês têm a ponto de me fazer querer fechar um acordo?

Theodoros olha para ele parecendo muito mais irritado e bufa de raiva. Millos balança a cabeça e começa a explicar:

— Duda, há alguns meses estamos de posse de uma...

— Enorme quantia de dinheiro — Theodoros o interrompe. — A proposta de compra aumentou, e seria interessante a senhorita reconsiderá-la, afinal, pode abrir um pequeno bistrô para exercer o que aprendeu em Paris.

— O quê? — Millos o encara, confuso. — Olha, eu desisto! — Chama um garçom e pede uma cerveja. — Eu realmente acho que podemos chegar a um acordo, mas vocês dois são teimosos como mulas!

— Não quero nenhum acordo com vocês! — declaro. — Tudo o que quero é que parem de ficar rondando minha propriedade como dois abutres!

— Boa definição, senhorita Hill. — Theodoros se inclina por sobre a mesa para ficar mais próximo a mim. — Seu negócio está agonizante e em breve perecerá, e, quando isso acontecer, irá lamentar não ter abaixado um pouco sua crista e ter aceitado minha oferta, porque só sobrará carcaça aos abutres!

— Theo! — Millos o repreende, mas depois começa a rir. — Que conversa de doido, viu? Não esperava por isso! — Bebe sua cerveja. — Confesso que está um pouco divertido.

— Vá se foder, Millos! — mal fala isso e volta a me olhar. — Não irei repetir a oferta, Duda Hill. A aconselho a aceitar o mais rápido possível.

Meus olhos faíscam de raiva, mas meu corpo traidor se arrepia inteiro ante a expressão dele. O homem é sexy demais, insuportavelmente arrogante, mas ainda assim, muito sexy!

— Não estou interessada — uso o mesmo tom de voz que ele. — Vendo para qualquer um, menos para vocês. — Ponho-me de pé. — Espero que desfrutem do jantar sem minha companhia. Eu não conseguiria comer aqui com vocês sem ter uma enorme indigestão.

Theodoros se põe de pé também, e Millos, com um sorriso debochado, cruza os braços e fica só esperando o próximo passo do seu chefe.

— Não diga depois que não a avisei, Duda Hill.

Rio, passando perto dele para sair do salão.

— Não tenho medo de suas ameaças, Theodoros Karamanlis. — Aproximo-me para falar bem perto do seu ouvido: — Cão que ladra não morde!

Ele segura meu braço e abre um sorriso – puta merda! – cheio de malícia.

— Eu morderei, Maria Eduarda, e o farei tão gostoso que você pedirá mais!

Olho para sua mão em meu braço, e ele me solta. Respiro fundo para controlar o formigamento em meu corpo e a tremedeira em minhas pernas e saio do restaurante o mais rápido possível.

— Deseja que traga seu carro, senhorita? — o manobrista me aborda na porta do restaurante.

— Po-por favor! — Merda! Respiro fundo mais uma vez. — Sim, obrigada.

Não é possível que esse homem ainda continue mexendo com minha libido desse jeito! Durante todo o tempo em que estávamos lá medindo forças, essa tensão sexual nunca deixou de pairar entre nós. Acho até que o Millos percebeu isso!

Droga! É o Theodoros Karamanlis, Duda! Inimigo, o diabo em pessoa, que quer fazer de tudo para destruir tudo o que você tem, tudo pelo qual você lutou para manter depois que seu pai se foi!

Claro que seria muito fácil aceitar uma oferta melhor, pagar as dívidas e abrir um “bistrô”, como ele mesmo aconselhou, mas só eu sei o quanto meus pais amavam aquele pedacinho no meio da Vila Madalena, o quanto se orgulhavam de tê-lo comprado juntos, com muita luta e esforço.

Não vou deixar que um homem arrogante ponha tudo ao chão e destrua todas as lembranças que tenho daquele lugar. Não só do Hill, mas da casa onde mamãe e papai passaram seus últimos momentos antes de me deixarem. Não! De jeito algum eu irei permitir isso! Se precisar vender, o farei para alguém que se comprometa a manter o imóvel, e não para uma empresa que quer demolir tudo para erguer ali algum prédio ou shopping!

Entro no carro e dirijo para casa, ainda sentindo o toque dele reverberando pelo meu corpo, sua voz arrepiando os pelos da minha nuca e seu olhar... Há algo naquele olhar que me desperta lembranças, talvez pela tonalidade – a mesma do mediterrâneo –, ou o jeito de me olhar como se estivesse realmente faminto.

Chego a casa e encontro tia Do Carmo jantando sozinha na sala e assistindo à novela.

— Ué, não ia jantar fora? — questiona quando ataco suas panelas.

— Ia, mas o lugar estava tóxico demais para meu estômago. — Ela franze a testa, sem entender, e eu rio. — A companhia era desagradável.

— Ah, sim.

— Cadê a Tessa? — pergunto enquanto me sirvo de deliciosas costelinhas de porco e angu, sentindo meu estômago roncar e minha boca salivar. Adoro a comida dela!

— Chegou da escola, fez dever, tomou banho, jantou e dormiu. — Rio do relatório completo. — Aquela menina é um anjo!

— Sim, ela é! — concordo, cheia de orgulho.

— Descobriu, pelo menos, o que aquele pessoal da Karamanlis queria?

Sento-me ao seu lado no sofá com o prato na mão.

— Aumentaram a proposta! — Dou de ombros. — E acabei conhecendo o CEO, Theodoros Karamanlis.

— Hum, já vi fotos dele naquela revista que assino. — Rolo os olhos, pois sempre achei um desperdício de dinheiro comprar uma revista que fica cobrindo a vida de artistas e da alta sociedade paulistana. — O homem é um pedaço de mau caminho.

Acompanho-a em suas risadinhas, achando uma graça que minha tia, solteirona e virgem, fale isso de um homem. Eu nunca soube o motivo pelo qual ela nunca quis se casar, nem mesmo namorar. Perguntei a ela se algum dia teve pretensão de ser religiosa, mas negou, dizendo que não tinha o dom.

Tia Do Carmo é uma caixinha de segredos bem guardados, essa é a verdade. Do mesmo jeito que ela adora acompanhar a vida alheia nas revistas e nos programas de fofocas, não abre a boca para falar da sua, nem mesmo para mim.

Ela é como uma mãe para mim e cuida de Tessa com tanto amor e dedicação que eu não poderia pensar em uma avó melhor para minha menina, mas não quer saber de arrumar alguém, nem mesmo para se distrair um pouco.

Há uns dois anos veio trabalhar conosco um senhor muito bem-apessoado, Joaquim, que ficava na recepção. O homem arrastou um bonde pela minha tia – que é uma linda senhora de 55 anos –, mas ela nem ao menos lhe deu um segundo olhar.

Enfim, eu aprendi a aceitar que ela é feliz assim, mesmo porque não estou indo para um caminho diferente, pois mal tenho tempo para namorar alguém. Além do meu namorado francês, tive mais uns dois já aqui no Brasil. Claro que já tive algumas transas avulsas, sem nenhum compromisso, mas já faz tanto tempo que nem isso acontece que, se hímen se regenerasse, o meu certamente já estaria completo de novo.

— Ele é bonito, sim, mas muito arrogante! — informo, tentando não demonstrar o quanto fiquei interessada no Theo. — De qualquer forma, recusei mais uma vez a proposta.

— Você tem certeza disso, minha filha? O sumiço do agiota tem tirado meu sono. Você sabe como essas pessoas são, por mais que sejam conhecidos. Além do mais, te vejo trabalhar como louca e entregar o dinheiro todo para custear essas dívidas. — Ela aponta para a casa, cheia dos mesmos móveis da época do casamento dos meus pais. — Duda, a gente mal tem se aguentado em pé!

— Não nos falta nada, tia!

— Não, Duda, não estou me queixando. Realmente não nos falta nada, temos comida, um teto, e Tessa pode estudar em uma boa escola, mas vale a pena se sacrificar do jeito que está fazendo? Você não tem tempo nem para namorar!

Gargalho.

— Essa é uma das minhas menores preocupações, tia.

— Eu sei, filha, e é isso que me preocupa. — Passa a mão no meu rosto, e fecho os olhos, gostando do carinho. — Há muitos anos você só cuida das pessoas, Duda. Assume responsabilidades demais e esquece de cuidar de si mesma.

— Estou bem! — afirmo, mas meu coração entende e concorda com ela. — Assim que terminar de pagar tudo o que devemos, vou poder cuidar de mim também, não se preocupe.

Ela suspira, resignada, pois me conhece bem e sabe que sou muito teimosa. Decidi lutar até o fim para manter a única coisa que me resta e não vou descansar até conseguir estar em paz com isso, mesmo que um certo CEO muito gostoso me encha de ameaças.

Inclusive uma que pareceu mais uma promessa...


Maria Eduarda passa por mim deixando para trás o rastro delicioso do seu perfume, agitando meu corpo. Tenho vontade de segurá-la por mais tempo, de sair com ela para algum lugar onde possamos dar vazão à atração que sentimos um pelo outro desde que nos encontramos no bar do restaurante.

Todavia, não dá para simplesmente ignorar quem somos!

Fico um tempo de pé, mesmo depois de ela já ter saído do restaurante, raciocinando quais seriam as consequências se Millos simplesmente não tivesse aparecido. Olho para meu primo, tranquilo, tomando sua cerveja e provavelmente a enchendo de defeitos.

— Isso foi a pior merda que você já aprontou! — digo, atraindo a sua atenção. — E olha que você tem um longo currículo de merdas!

— Vá se foder, Theo! — Fica sério. — Eu só estava tentando um acordo entre nós.

Rio, seco, não achando nenhuma graça e não comprando nem um pouco essa conversa mole de “acordo”. Millos nunca dá ponto sem nó e me conhece bem para saber que Duda seria extremamente atraente para mim. O desgraçado fez de caso pensado, só nunca irá admitir.

Pego o celular, que deixei em cima da mesa, e, sem nenhuma palavra ou mesmo um olhar, afasto-me de Millos, indo em direção à saída do restaurante.

Ouço-o me chamar, mas não me segue, e ando decidido até a calçada, encontro o manobrista e peço meu carro. Não tenho mais clima para jantar, muito menos para olhar aquela cara debochada. Bufo, frustrado demais, com fome e com o desejo sexual insatisfeito.

Porra!

Já no carro, não dirijo diretamente para casa, mas a esmo, pensando na loucura que foi o começo da noite. O conhecimento de quem era a mulher ao meu lado deveria ter sido suficiente para aplacar minha vontade de devorá-la toda, mas nem mesmo a diminuiu.

É uma das raras atrações fortes que já me aconteceram. Geralmente não é assim, é mais um jogo de disponibilidade e vontade, uma mulher gostosa e interessante e pronto! Raramente sou atraído a alguma como aconteceu com Maria Eduarda hoje. Eu olhei para ela e a quis.

É primitivo demais até para mim, mas aconteceu. Quem ela era, o que fazia ou mesmo sua disponibilidade – embora, se fosse casada, não rolaria – não importaram para mim naquele momento. Depois, a conversa, o sorriso, o jeito como o corpo dela reagiu ao meu, tudo isso só potencializou o que foi sentido ao primeiro olhar.

Duda Hill!

Paro o carro em frente ao boteco antigo na Vila Madalena, olhando sua fachada recentemente reformada, o sobrenome da família dela na entrada e algo que nunca me chamou atenção antes, um segundo andar com janelas grandes de vidro, seguindo a mesma arquitetura do bar, tijolos à mostra e cimento queimado.

Franzo o cenho ao me lembrar do dia em que estive no local, pois não vi nenhum mezanino ou mesmo escada de acesso. Há uma porta ao lado da fachada principal, pintada com outra cor, mas que não pertence ao prédio vizinho, já de propriedade da Karamanlis.

Ela mora em cima do bar? Novamente olho para o alto e, no exato momento, uma luz se acende em um dos cômodos, iluminando a janela com cortinas claras. Um apartamento!

Como eu nunca soube disso? Para mim, o imóvel era puramente comercial, como todos os outros do entorno, nunca sequer desconfiei que a irritante mulher pudesse morar no local.

Uma sombra passa pela janela, e meu pau pulsa na calça só pela possibilidade de ser Maria Eduarda se preparando para dormir. Fecho os olhos, aproveitando a total falta de movimentação na rua – ao que parece ninguém funciona às segundas-feiras – e imagino como ela seria apenas vestindo uma calcinha ou até uma camisola sexy.

Toco-me sobre a calça, sentindo como já estou em completa ereção, então abro os olhos e xingo, voltando a pôr o carro em movimento e saindo daqui o mais rápido possível. Eu pareço um maldito stalker tarado, parado em frente ao que suponho ser o apartamento dela e fantasiando.

Caralho!

 

 

Termino de assinar o último documento e o entrego para Rômulo, que sai apressado a fim de entregá-lo para o jurídico. Temos um maldito setor de correspondência e vários boys para esse trabalho, mas meu assistente é tão controlador com suas responsabilidades que ele mesmo gosta de entregar os documentos e de pegar a assinatura de quem os recebeu no caderno de protocolo antes de os colocar no sistema.

Eu sei que é motivo de piadinha aqui seu jeito burocrático, mas é exatamente por isso que confio nele para lidar com minhas coisas na empresa. Rômulo é responsável, organizado e sua “burocracia” nada mais é do que uma forma de nos garantir, proteger nosso trabalho e a companhia.

Gemo, colocando a mão na têmpora, amaldiçoando-me por ter consumido uma garrafa inteira de uísque ontem, depois que cheguei a casa, frustrado demais sexualmente e puto comigo mesmo por estar me sentindo assim pela Duda Hill.

Troquei mensagens com Millos, ameaçando sua integridade física por conta da palhaçada de ontem. Claro que ele fingiu não ter feito de propósito, mas se esqueceu de que o conheço bem. Eu só não sei o que ele pretende ainda. Contudo, não há dúvidas de que está tramando algo.

Uma notificação de mensagem chega ao meu celular. Pego-o, lendo a mensagem deixada pela Viviane acerca de um concerto musical e uma exposição de gravuras que irá acontecer esta semana. Dispenso, sem nenhuma vontade de comparecer, mas ela insiste.

 

 

 

Sim, ela tem razão!

Preciso estar focado no que realmente é importante para mim nesse momento. Uma atração como aconteceu entre mim e Maria Eduarda ontem é garantia de uma foda inesquecível, mas só isso, não resolve meu problema, e o tempo está se encurtando cada vez mais. Preciso de uma esposa e de um filho!

 

 

 

Envio a mensagem para ela e me recosto na cadeira, olhos fechados e dedos nas têmporas, querendo a porra de um analgésico para poder trabalhar sem que pareça que está ocorrendo alguma demolição na minha cabeça. Não devia ter bebido tanto sem ter comido nada!

Cheguei a casa já arrancando a roupa e entrando no banho. Demorei por lá, esperando que os jatos fortes de água fria abaixassem a temperatura do meu corpo e trouxessem minha racionalidade de volta. Não costumo me impressionar tanto assim por uma mulher; poucas foram as que mexeram comigo dessa forma.

Olhei para baixo, e lá estava a evidência de que nem mesmo a água iria resolver o problema. Encostei a testa na parede fria e toquei meu pau, gemendo com a sensação, pronto para gozar apenas com os estímulos da noite.

Eu gosto muito de trepar, adoro ser masturbado por mãos femininas – às vezes, pés também –, mas nunca fui um punheteiro. Nunca! O prazer de me tocar nunca se comparou ao de ser tocado, por isso, quase não me masturbo. Porém, ontem, não teve jeito! O cheiro do perfume dela estava impregnado em minhas narinas, a sensação de sua pele se arrepiando sob meu toque, o sorriso, os olhares... Em poucos minutos gozei como um louco, sujando a parede do boxe, gemendo dolorosamente de vontade de senti-la.

Pela primeira vez em muito tempo, os cabelos cor-de-rosa não apareceram durante meu gozo, e amaldiçoei essa percepção. A verdade é que troquei o objeto da minha fantasia. No entanto, diferentemente da garota de anos atrás, agora eu tenho um rosto, um nome e sei onde mora.

— Estou fodido! — falo em voz alta, achando que estou sozinho no escritório.

— Vou pegar um comprimido, chefe! — a voz de Rômulo faz com que eu me aprume, arregalando os olhos em sua direção.

— Mas que porra, Rômulo! Como você consegue ser tão silencioso às vezes? — digo emputecido por estar fantasiando com a mulher de novo em pleno horário de trabalho e sob as vistas do meu assistente.

— Eu percebi que o doutor está com dores de cabeça. — Ele vasculha sua bolsa. — E... Ah! Achei! — Sorri como se tivesse inventado a fórmula da água. — Paracetamol!

Ele vai até o aparador onde ficam as bebidas a fim de pegar um copo d´água para eu tomar com o comprimido, porém, peço que me traga café.

— Tem certeza? — titubeia.

— Vai acelerar a absorção e fará efeito mais rápido.

— Chefe, isso é perigoso!

— Anda logo, porra, tem uma britadeira no meu cérebro!

Ele fica nervoso, suas mãos tremem, fazendo o café respingar sobre o móvel, e eu bufo de impaciência. Rômulo é prestativo, um ótimo funcionário, mas me questiona muito, além de ser um tanto desastrado.

Mal engulo o comprimido, e o traidor, quer dizer, Millos entra no escritório.

— Tive uma ideia e vim dividi-la com você. — Olha a xícara na minha mão. — Cheguei em boa hora! Eu gostaria de um café também! — pede ao Rômulo, e eu fecho a cara.

— Esse não é o trabalho dele — corto-o. — Rômulo, vá até o jurídico e veja se Kostas já conseguiu adiantar a papelada que faltava.

— Sim, doutor! — O assistente sai correndo da sala.

— Quer a porra do café? Pegue você mesmo! Não dê ordens ao meu assistente!

Millos levanta as mãos pedindo calma e vai até a máquina, escolhendo um sabor e um tipo de preparação antes de voltar para próximo de mim.

A dor de cabeça aumentou um pouco, mas espero que, com o remédio do Santo Rômulo, eu melhore em breve. Além disso, não quero dar bandeira de que enchi a cara na noite passada e suportar as provocações de Millos.

— Qual foi a magnífica ideia que o fez levantar a bunda de sua cadeira e vir até aqui encher meu saco?

Millos ri.

— Estamos de bom humor hoje, hein? — Pega o café e se senta. — Você quer tirar a Duda Hill do imóvel, não é? — Franzo o cenho para ele, achando desnecessário responder, esperando que tenha sido uma pergunta retórica, para o bem de sua inteligência. — Já reparou que o único pub daquela quadra é o dela?

— Você comeu merda no café da manhã? — pergunto, e ele ri. — Claro que ele é o único, os outros imóveis já estão todos vazios porque compramos todos!

— Do outro lado da rua têm duas casas de show, uma boate de strip de luxo, dois restaurantes de comida japonesa e uma pizzaria famosa. — Ele cruza os braços. — Esse foi um dos motivos de o pub ter ficado tão movimentado, a diversidade de empreendimentos próximos. É uma área à qual os jovens vão para se divertir, e ela conseguiu agregar boa comida e boa música em um só local.

Faz sentido, claro. Ela aproveitou o movimento já existente e ofereceu um diferencial, um lugar para dançar, curtir com os amigos, arranjar companhia e ainda comer seus bolinhos famosos e premiados. Sorrio de leve, sentindo-me levemente excitado por ela ter tanto tino. Gosto de mulheres inteligentes!

— Você a isolou no momento em que comprou todos os imóveis e mandou os estabelecimentos fecharem. Ela é a única opção da área...

Ele se interrompe ao ouvir uma batida à porta.

— Pode entrar — autorizo, sabendo que não é o Rômulo.

Kostas aparece, seu tamanho e largura preenchendo a entrada da sala, o olhar azul e arrogante, o sorriso debochado e os cabelos negros penteados para trás com uma espécie de pomada de brilho molhado. Meu irmão é a cópia do nosso pai, e isso chega a me causar arrepios.

— Bom dia! — cumprimenta Millos e se senta ao seu lado. — Theodoros, tenho uma notícia boa e uma ruim, qual quer primeiro? — Dá risadas debochadas, e Millos o segue.

Isso é sério? Levanto uma sobrancelha, olhando-o carrancudo.

— Fala logo, Kostas! — ordeno.

— Bem, já que você não tem nenhum senso de humor. — Pisca para Millos. — Nós já sabíamos disso, mas não custava tentar! — Meu primo assente, e eu bufo de raiva. — Vou começar pela boa. Já ingressamos com o pedido de execução da nota promissória.

— Já não era sem tempo! Preciso comemorar por você ter conseguido fazer seu trabalho?

O desgraçado ri.

— A ruim, no entanto, também é sobre isso. — Ele me estende umas folhas. — Duda Hill deu entrada no inventário judicial após a morte do pai.

Leio os papéis, mas pouco entendo de legislações e procedimentos legais, então espero que ele pare de fazer cu doce e prossiga com suas explicações.

— Que merda! — Millos exclama, e isso é o suficiente para me deixar tenso.

— O que isso significa, porra?

Kostas se levanta, anda até o aparador e se serve de água.

— Você poderia ter bourbon aqui — comenta como se estivesse aqui para uma visita social. Xingo-o. — O processo não cumpriu nem metade de seu caminho natural, caro irmão. Já está aberto há quase quatro anos e pouco avançou, e isso porque tem apenas um imóvel a ser herdado por uma única herdeira. — Ele ri. — Adivinha qual?

O Hill! Merda!

— O que isso significa em nossos planos de adquirir aquela pocilga? — Irrito-me.

— Bem, assim que for declarado o débito por causa da confissão de dívida – a promissória –, nós vamos ser credores do espólio. — Bufo pelo uso dos termos técnicos desnecessários.

É Millos quem vem ao meu resgate.

— O homem está morto, Theo, não temos como cobrar dele, apenas dos bens que ele deixou, entendeu? Isso obriga a Duda a vender ou entregar o Hill em troca da dívida. — Sorrio, achando a notícia ótima. — Mas somente quando o inventário fechar, o que pode levar anos ainda.

— O quê?! — Levanto-me, esquecendo por completo a dor de cabeça.

— É isso, caro irmão! — Kostas dá de ombros. — Seja bem-vindo à realidade da justiça brasileira, em que inventários simples duram, em média, de oito a dez anos!

— Não há outra forma de recebermos?

— Não. — Kostas ri, satisfeito. — A dívida está no nome do pai dela, então só alcança bens deixados por ele.

— A vantagem é que ela não pode vender para outro também, não é? — Millos questiona.

— Teoricamente, não, mas se o comprador não se importar em não ter a escritura, ela consegue vender, sim. Tem muita gente que faz isso. Não é legal, mas faz.

— Puta que pariu! — explodo, virando-me em direção à vidraça.

— O jeito é tentar comprar, Theo, e alegar que somos credores e que, por isso mesmo, ela só pode vender para nós — Millos fala, e Kostas concorda.

— Ela não vai vender, disse ontem!

Sou um homem muito teimoso, sempre fui, e reconheço um igual de longe! Quando Duda Hill disse ontem que não ia vender para a Karamanlis, vi a teimosia brilhando em seus olhos.

— Além do mais, pelo que soube, os negócios vão bem — Kostas complementa, deixando-me ainda mais raivoso. — Ela não precisa vender.

Olho para Millos, e ele arregala os olhos ao ver a determinação nos meus.

— Fale de sua ideia!


O despertador me acorda pela segunda vez no dia. Tenho vontade de esconder a cabeça debaixo do travesseiro e fingir que não estou ouvindo, deixar que entre em modo “soneca” e que, com isso, eu ganhe mais alguns minutos na cama.

Suspiro, abro os olhos lentamente e pego o maldito telefone para cancelar o despertador. Ganhar minutos na cama significa perder minutos do dia, e isso definitivamente é uma coisa à qual não posso me dar ao luxo. Tenho que trabalhar, organizar minha cozinha e ser a primeira a estar nela quando os demais chegarem.

Espalho-me na antiga cama de casal dos meus pais, abrindo os braços em forma de cruz e esticando todo o meu corpo. Carreguei tanto peso hoje que, nessas horas, sinto falta de não ter um homem fortão trabalhando comigo nesse negócio pesado que é transportar as compras. Tento relaxar meus músculos, fecho os olhos e deixo a mente vagar por um segundo.

Em meio aos pensamentos de paz, natureza e tranquilidade, lindos olhos azuis aparecem, sedutores, emoldurados por cílios longos e escuros que fizeram sombra em seu rosto quando ele olhou minha pele se arrepiando ao seu contato. No mesmo momento sinto um gelo na barriga – desses que sentimos quando descemos uma ladeira inesperadamente de carro –, e um tremor perpassa pelo meu corpo, desde as pontas dos dedos até a raiz dos cabelos.

Emito um grunhido de irritação por, mais uma vez, Theodoros Karamanlis se infiltrar nos momentos em que busco relaxamento e pensamentos positivos para enfrentar o dia. Tem sido assim desde aquele maldito jantar, há quase uma semana!

Sento-me, notando o quanto estou suada, pois há alguns meses meu ar-condicionado do quarto teve uma pane elétrica, e não tive nem tempo, nem dinheiro para chamar a assistência técnica. O verão chegou com tudo este ano, e as temperaturas estão ameaçando bater recordes desde o final da primavera. Vou precisar arrumar o ar ou então ir dormir no quarto da tia Do Carmo.

Confiro as horas, meio-dia e alguns minutos, e sigo rápido para tomar a terceira chuveirada do dia!

O expediente no Hill durou até às 2h35 da manhã, quando gentilmente convidamos nosso último cliente a sair. Passei a encerrar mais cedo em dias de semana, pois sábado e domingo vamos até às 4h da manhã. Fechei a cozinha para pedidos exatamente à 1h para que desse tempo de todos os quitutes ficarem prontos e nossos clientes irem embora até às 2h30. Entretanto, sempre fica um agarrado a uma cerveja num canto, sempre!

A música ao vivo, de terça a domingo – menos quando temos campeonatos de futebol, pois aí na quarta-feira transmitimos os jogos – anima o pessoal e por isso mesmo precisa ser encerrada uma hora depois do fechamento da cozinha. Há toda uma preparação para que os clientes entendam que a hora de “dar tchau” chegou.

Hoje, sábado, é o dia mais desgastante para mim, pois a cozinha irá funcionar a todo vapor até às 3h30 da manhã, aceitando pedidos até uma hora antes disso, e o bar só será fechado às 4h. E adivinhem quem fecha o bar? Exatamente, eu!

Ou seja, terei 14 horas de trabalho incessante pela frente, a partir das 2h da tarde, sendo que noite passada não aguentei ficar acordada para ir até o CEAGESP, dormi às 3h e acordei às 4h, correndo para poder pegar um pouco do pescado bom, pois a venda para o atacado começa na madrugada e vai até às 6h da manhã. Descarreguei tudo no restaurante e voltei para a cama às 9h, por isso, sim, estou acordando ao meio-dia!

Saio do banho e já coloco a calça preta – uniforme do Hill –, uma camiseta branca por causa do calor e calço chinelos. Separo o uniforme, que minha tia já deixa passado, a dolma, o avental e meus turbantes. Deixarei os cabelos secarem para depois fazer um coque alto, bem firme, para que nenhum fio possa se desprender.

— Boa tarde! — tia Do Carmo me cumprimenta assim que apareço na sala. — Vai almoçar agora?

— Vou. — Suspiro, sentando-me. — E a Tessa?

— Acabou de ir para o inglês com a Marcela e a Diana. — Assinto, lamentando não ter me encontrado com ela aqui, mesmo que depois dê uma xeretada na minha cozinha.

Mal tenho tempo para ela! Sinto-me mal por isso, tento compensar, mas queria ser mais presente e sei que Tessa sente essa necessidade tanto quanto eu. Porém, minha menina já é tão madura que entende que essa rotina louca na qual vivo não é por minha escolha.

Tia Do Carmo me serve de sua comida simples, bem temperada e absurdamente viciante, e eu não penso em mais nada a não ser apreciar a iguaria. Ao longe, enquanto como, ouço o barulho da máquina de costuras dela, em seu quarto, trabalhando sem parar. Ela é teimosa e está sempre aceitando encomendas de reparos ou confecção de roupas, principalmente para o pessoal da igreja que frequenta.

Somos farinha do mesmo saco, teimosas ao extremo, e ela me culpa por eu recriminá-la por querer ajudar. Não é só por teimosia ou orgulho que peço tanto a ela para que se poupe, pois se aposentou há alguns anos por invalidez exatamente por passar horas e horas costurando desde menina e com isso ter ganhado algumas hérnias de disco ao longo de sua coluna.

A verdade é que, se não fosse pelas dívidas, eu poderia dar uma vida bem melhor a elas. O Hill vai muito bem, cada vez mais conhecido, atraindo clientes para essa área que nem é tão famosa por ter bares. Contudo, o boca a boca tem se espalhado pela cidade e trazido com ele nossos clientes.

Termino de comer, lavo a louça e termino de me arrumar para descer e só voltar no meio da madrugada. Faço uma oração curta antes de descer e grito para tia Do Carmo:

— Tia, estou no Hill se precisar de algo!

— Vai com Deus, minha filha! — grita de volta, cessando a costura. — Tente descansar em alguns momentos!

Apenas rio, porque a cozinha é uma correria aos finais de semana, e é impossível me sentar por uns minutos sem que alguma coisa desande, já que atendemos em média 400 clientes por sábado e uns 350 no domingo. O volume de comida que processamos é tão grande que fazemos compras nas madrugadas de terça, quinta e sábado.

Poderia até ir ao CEAGESP menos vezes, mas prefiro trabalhar com os ingredientes o mais frescos possível e, graças à câmara fria que instalamos, já me dei ao luxo de parar de ir todas as madrugadas. Vou sempre às terças e sábados e deixo Manola se virar na quinta-feira. A mulher adora ir para lá e demora o dobro do tempo que eu levo, sempre conversando com os comerciantes, pechinchando horrores e fazendo amizades. Como ela é sozinha, está sempre com o caderninho de telefone preenchido para quando quer companhia, e como trabalha como louca aqui, seu lugar de fazer contatos é lá na central de abastecimento.

Confesso que me divirto muito com suas histórias, assim como todo o resto de nós da cozinha.

Abro a entrada principal do bar, pois, infelizmente, quando papai montou o local, não pensou em saída de emergência, mesmo porque na sua época era todo aberto, então, quando transformei o boteco em um pub, tivemos que sacrificar a porta usada para carga e descarga e transformá-la para que estivéssemos em dia com a legislação dos bombeiros e da própria prefeitura.

Sempre que entro, já deixo a porta de aço aberta e tranco somente a de vidro, deixando um pouco de sol entrar através das paredes de vidro temperado.

Sigo diretamente para a cozinha, mas anotando mentalmente tudo o que precisará ser limpo com mais afinco, resultado da noite anterior. No bar, sempre tenho a satisfação de passar e ver o asseio do Kiko, seus utensílios todos nos lugares, limpos e secos, as chopeiras sem nenhum traço de respingo de chope, o chão brilhando.

Abro a cozinha, e o cheiro dos produtos de limpeza que usamos há algumas horas, assim que encerramos as atividades, recepciona-me. Faço meu coque, como sempre, ponho o turbante, lavo as mãos e começo a trabalhar, colocando alguns alimentos de molho, descongelando outros e conferindo as receitas, bem como o funcionamento de todos os equipamentos.

Ouço o barulho da porta, e uma risada preenche o lugar, indicando que Manola chegou junto ao seu fiel escudeiro, Arnaldo.

— Boa tarde, chef! — ela me cumprimenta, indo para o banheiro dos funcionários. — Hoje o Naldo está impossível!

— Você é que não aguenta ouvir umas verdades, Manola. — Arnaldo vem até onde estou e me dá um beijo na testa. — Carinha de cansada hoje, boneca!

— Dia de compras... — Aponto para a caixa de camarão no gelo que tirei da câmara para ele limpar. — Divirta-se!

— Ai, minha santa protetora dos dedos furados! — geme.

— Use luvas! — Manola grita, vindo do banheiro trajando o uniforme, seus cabelos ruivos presos em uma trança e seu turbante cheio de beijos já na cabeça. — No dia em que você perder um dedo, ainda processa a Duda!

— Deus me livre, Manola! — Bato na bancada de inox, e ela ri.

— É na madeira, querida! — Joga um beijo para mim e as luvas de fio de aço para o Arnaldo. — Não vai te proteger contra o camarão, mas quando for limpar as carnes, faça o favor de usá-las!

— Oui, chef! — ele debocha.

— Abusado! — diz, pegando as panelas guardadas e já as colocando no fogão. — Vou adiantar os molhos enquanto a Ana não chega. Ela ia levar o filho ao dentista hoje.

— Eu sei — concordo ainda lavando as folhas e temperos. — Cláudia também vem mais tarde hoje, mas adiantou muito suas sobremesas ontem. Trabalhou dobrado!

— Estou louca por aquela torta de duas mousses que fez! — Geme e estala a língua. — Adoro maracujá com chocolate, e a danada não me deixou pegar nem uma provinha!

— Diabetes te diz algo? — Arnaldo alfineta.

— Tenho pré, idiota! — Ressalta: —Pré-diabetes!

Rolo os olhos, já antevendo uma discussão sobre a quantidade de açúcar que ela não deve ingerir.

Minhas tardes são sempre assim, entre o trabalho na preparação para a noite e as conversas, discussões ou músicas dos meus colegas de trabalho. É bom, faz o tempo passar depressa e não deixa o serviço tedioso.

— Terminou aquela receita nova que estava escrevendo? — Arnaldo me pergunta um tempo depois.

— Ainda faltam uns ajustes, mas estou sem tempo para testar. — Dou de ombros. — Final de ano, né?

— Por falar nisso... — Manola se aproxima. — Como andam as encomendas? O pessoal gostou do menu deste ano?

— A Hana me entregou ontem uma pequena lista de encomendas. Ao que parece, o menu foi bem aceito, sim.

Manola bate palmas, e eu sorrio aliviada.

Todo ano abrimos o Hill e servimos pequenas ceias para o pessoal que não quer ter trabalho, mas percebemos que seria mais interessante, para nós e para nossos clientes, se houvesse um menu prévio e as encomendas entregues em casa.

Como começamos o delivery este ano, programei um menu com três tipos de proteínas – peru, bacalhau e presunto – e vários tipos de acompanhamento. As variações vão desde a mais simples e barata até as sofisticadas, dignas de um chef de cuisine, mais caras.

Por incrível que possa parecer, o menu luxo tem vendido mais do que o comum, e isso, além de me dar muito orgulho de ver minhas receitas tão bem aceitas, ainda me concede maior lucro.

Por conta desse menu especial, não abriremos o Hill para o público na véspera do Natal, daqui a alguns dias, e nem no dia, retomando as atividades somente no dia 26 de dezembro. Teremos que trabalhar muito para atender aos pedidos, mas tenho certeza de que daremos conta e que em pouco tempo encomendar a ceia no Hill será uma tradição.

É preciso manter a fé depois de tudo o que já passei na minha vida; sem ela, eu esmoreço. Não digo propriamente uma fé religiosa, mas a de desejar boas coisas, pensar positivo, manter a chama da esperança acesa de que tudo vai dar certo.

— Boa tarde! — a voz de Tessa faz meu sorriso se agigantar, e paro o que estou fazendo para ir abraçar minha pequena menina. — Ei, mãe, não!

Ela tenta correr ao ver minhas mãos molhadas, mas, quando a alcanço, explode em gargalhadas e me abraça apertado.

— Estava com saudades! Como foi a aula?

— Legal! — Faz um joia com a mão. — Ei, tia Manola!

— Tia uma ova! — Manola repreende, mas ri. — Sou no máximo sua irmã mais velha, pirralha!

Tessa gargalha de novo e faz gesto de que Manola é maluca, rodando o indicador ao lado da cabeça, e Arnaldo libera sua estridente gargalhada ao concordar com a menina.

— Quer alguma coisa especial daqui hoje? — pergunto, mas sem muita esperança.

— Não, tia Do Carmo disse que vai fazer lasanha à noite, e você não faz lasanha aqui!

— Não faço! — Cutuco suas bochechas com os indicadores bem onde elas formam covinhas quando Tessa sorri. — Cláudia fez uma torta especial. Vou levar para você mais tarde.

— Tem chocolate? — indaga animada.

— Tem, sim, pirralha! — é Manola quem responde. — E se ela tiver direito a um pedaço, eu, como irmã mais velha, também tenho!

Tessa mostra a língua para ela, Arnaldo ri, e eu balanço a cabeça, pois as duas parecem realmente irmãs, brigam e implicam uma com a outra, mas se adoram. Minha pequena se despede, e a acompanho até a entrada do bar, só voltando para a cozinha ao vê-la fechar a porta do acesso ao nosso apartamento.

Deus do Céu, como é bom ver minha menina feliz!

A segurança e a felicidade de Tessa são minhas prioridades, e vê-la crescendo tendo essas duas coisas me dá ânimo para aguentar mais um dia de trabalho e não pensar em coisas ruins. Nem mesmo nos Karamanlis, ainda que um deles tenha mexido comigo de tal forma que volta e meia está nos meus pensamentos – e não pelo motivo pelo qual deveria estar!


— Me and Mrs. Mrs. Jones, Mrs. Jones, Mrs. Jones, Mrs. Jones, we've got a thing going on. — Dedilho o arranjo ao piano, sentindo o peso dessa canção sobre mim e volto a cantar: — We both know that it's wrong, but it's much too strong to let it go now.3

Há anos não toco essa música tão famosa na voz do Billy Paul, mas algo me impulsionou a fazê-lo esta noite. Nada específico, creio eu. Contudo, meu interior está conturbado como há muito tempo não o sinto.

O paletó do terno que vesti hoje está em cima de uma das cadeiras da sala de jantar, a gravata precariamente pendurada sobre a borda do piano, enquanto estou aqui, camisa social semiaberta, mangas arregaçadas, uma garrafa de uísque em cima do instrumento e meu copo já quase vazio. Não parei de tocar desde que cheguei do concerto musical e apresentação de novos artistas de gravuras que ocorreu em uma galeria de artes aqui perto.

A verdade é que, desde quando Viviane me mandou o convite, não tive nenhum interesse em ir, embora fosse algo que geralmente chamaria minha atenção. Tive uma semana fodida demais, e não havia nenhum clima para entretenimentos. Tudo o que eu queria era uma massagem gostosa e uma trepada de alívio.

Termino a música e recosto a cabeça nas teclas do piano, quase não me reconhecendo. Não estou normal! Talvez essa época do ano, próxima demais do Natal, mexa comigo, evoque sentimentos que há muito tempo pensei ter perdido.

Sinto falta da Vanda nesta casa! Olho em volta e bebo o restante da dose de uísque. Tudo está tão vazio, tão silencioso, tão... estéril. Não tenho mais ninguém me esperando quando chego do trabalho, nenhum cheiro de tempero quando entro na cozinha – ou mesmo de café, porque o dela é incrível –, não há conversas amenas.

Não há nada!

Balanço a cabeça, irritado com o rumo dos pensamentos, com a energia negativa deles dentro de mim. Maldita semana!

O desastre começou na segunda-feira com aquele encontro deliciosamente desastroso com Duda Hill; depois aumentou com a notícia que o filho da mãe do Kostas nos deu sobre o imóvel onde funciona o Hill Wings.

A proposta de Millos ressoa em meus ouvidos, e, por mais que eu não ache muito sentido no que me propõe, penso se não é um caminho a seguir. Nunca fui um homem de indecisões. No entanto, entendo que, nesse assunto em particular, não posso me mover por impulso.

Volto a escutar a voz de meu primo como se estivesse aqui e o ouço apresentar todos os motivos para embasar sua ideia.

— Nosso erro foi deixá-la sozinha naquela rua, sem nenhuma concorrência! — argumentou.

— Quando fechamos a compra do último imóvel, aquilo lá ainda era só um pé-sujo com meia dúzia de clientes bêbados — justifiquei em contrapartida. — Não tínhamos com o que nos preocupar!

— Esse foi o erro do coelho naquela fábula — Kostas ironizou. — A arrogância do “já está no papo!”.

— Você falando de arrogância? — Ri, e Millos disfarçou seu riso também. — Não tem se olhado no espelho, não?

Kostas apoiou seu indicador logo abaixo da sobrancelha, ao lado do olho e me deu um meio sorriso e um olhar de desprezo. Ergui minha sobrancelha e balancei a cabeça, enfrentando-o. Se o bostinha achava que iria me intimidar como faz com seus advogados, estava muito enganado!

— Já terminaram de testar a testosterona de ambos? — Millos reclamou. — Minha ideia faz todo sentido! Se alugarmos algumas lojas próximas ao estabelecimento dela, damos a concorrência necessária para que recue um pouco no crescimento que vem tendo!

— Sabe o que não entendo? — Kostas interferiu. — Se ela vem fazendo tanto sucesso quanto vocês gostam de afirmar, por que não quitou a maldita promissória?

— Talvez não tivesse tido o suficiente ainda, pois, como o “agiota” mesmo informou, ela andava pagando os “juros” para que ele continuasse paciente — respondi. — Ademais, ela não poderia pegar um empréstimo para quitar uma dívida como essa.

— A verdade é que o pilantra nunca iria liberá-la da dívida. — Concordei com o ponto apresentado pelo Millos. — Gastamos quase o dobro do que a promissória realmente vale, e ele já tinha recebido anos de juros da Duda. O homem é um espertalhão!

— Então você acha que, colocando mais alguns bares naquela rua, teremos mais chances de quebrá-la? — inquiri. Millos assentiu, mas vi um leve sorriso no rosto de Kostas e, sinceramente, não gostei dele. — Como controlaríamos isso?

— Kostas! — Millos aponta. — Podemos amarrar bem o contrato de aluguel, especificando a atividade que o locador deve exercer.

— Isso é legal? — perguntei.

— Não posso dizer no contrato o que ele deve vender, mas posso amarrá-lo à atividade que já exerce, ou seja, se trocar de ramo, deixa o imóvel. — Olha para o Millos. — O pessoal da corretagem, que por sinal é subordinado ao nosso querido e esperto primo, é quem deve ter em mente quais são os tipos de locadores que devem aceitar.

Concordei, mas ainda não estava completamente convencido.

— Pense na questão. — Millos se pôs de pé. — Tempo é o que não falta, pelo que Kostas disse.

Meu irmão o acompanhou, o sorriso estranho ainda em seu rosto, como se estivesse acontecendo algo que só eu não soubesse.

Dali em diante, tudo pareceu ainda pior! Os dias se arrastaram até esta sexta-feira, vários setores da empresa dando problemas justamente nesta época em que o pessoal já parece estar entrando em ritmo de festas e esquecendo um pouco a nossa tão famosa correria paulistana.

Só soube que Valentina seria minha acompanhante nos eventos artísticos no meio do expediente, quando Viviane me ligou para perguntar se eu tinha o endereço do apartamento da moça.

— Você me disse que ela estaria lá, não que iria comigo! — resmunguei. — Nós mal trocamos algumas palavras naquele vernissage!

— Theo, meu querido, você quer ou não quer uma maldita esposa?! — minha sócia perdeu a paciência.

— Porra, mas não assim! Não precisava agir tão descaradamente como se eu estivesse desesperado, merda!

— Ela é a melhor candidata com que você já esbarrou por aí! É amante das artes como você, vem de uma família tradicional e rica como a sua, é linda, jovem e tem todos os infindáveis requisitos que você listou para a futura senhora Karamanlis! Dê uma chance a ela!


CONTINUA
Acordei de ressaca hoje, e não foi por causa da quantidade de bebida que ingeri no vernissage; aquela quantidade, eu nem consideraria como beber. Viviane ficou puta por ter encarecido o orçamento com garrafas do meu uísque preferido e eu não estar bebendo, por isso, depois do evento, reuni todas as que sobraram e trouxe para meu apartamento.

Pensei que ia passar uma noite solitária, acompanhado apenas de um single malte e discos de jazz, mas, no meio da minha encenação de lobo solitário, Millos ligou me convidando para ir até seu loft. Neguei várias vezes, mas a porra do homem estava tão excitado com a cerveja que havia feito que não parava de insistir.

Resultado? A bebida realmente estava um espetáculo! Enchemos a cara, mesmo sob meus protestos, pois nunca curti muito beber cerveja, e comemos uns tira-gostos tão saborosos que teci elogios a sua habilidade na cozinha.

— Ah, não fui eu quem preparou, não! — Riu. — Encomendei no Hill.

Quase cuspi aquela porra para longe e o fuzilei com os olhos.

— Porra, eu querendo que aquela merda feche e você comprando lá? Está do lado de quem afinal?

— Do meu estômago! — respondeu comendo mais um dos bolinhos. — Estava com vontade de ter um acompanhamento, mas sem nenhum saco para preparar. Me lembrei do dia em que fomos lá e quis conferir se ainda continuavam tão gostosos!

— Ainda não te perdoo por aquela arapuca! — acusei.

Há uns dois anos, Millos me convidou para comemorar seu aniversário, coisa que vez ou outra fazemos quando ele está em clima de festa. Eu lhe disse que o encontraria no local, mas ele insistiu em me buscar em casa, e, quando chegamos e percebi que era no Hill, fiquei bem puto, mas a curiosidade de saber o motivo pelo qual o boteco estava se tornando um sucesso me impulsionou a entrar.

O que eu não contava era que, além de a mim, o filho da puta tinha convidado meus irmãos. Ficamos lá os quatro como se fôssemos bons amigos, compartilhando da armadilha de Millos. Aposto que Kostas e Alex detestaram cada momento, mas sorrimos, bebemos e experimentamos os quitutes da tal da Duda Hill.

Mesmo não gostando de admitir, era fato que a mulher sabia o que estava fazendo na cozinha. Os bolinhos tão tradicionais de um boteco tinham um requinte diferente, embora mantivessem a essência. Era como se ela conseguisse melhorar o que já era perfeito, e isso, tenho que admitir, é um dom.

Confessei isso ao meu primo? Nem sob tortura! Repreendi-o por ter comprado lá, aleguei que ela podia ter mandado envenenar os quitutes – fazendo um drama desnecessário, culpa da bebida –, mas não parei de comer.

— Ah, pedi a Sami para comprar para mim — respondeu.

— Você ainda está saindo com ela? — questionei surpreso, pois havia muito tempo não via a motoqueira que, de vez em quando, orbitava em volta dele.

— Não! Somos amigos, já disse isso, mas parece que você só enxerga a boceta de uma mulher, come até suas “amigas” — fez referência a Viviane.

— Por que você não gosta dela? — Provoquei: — Porque ela é independente, dona de si mesma e diz o que pensa?

— Não! Eu não curto mulher assim para comer, mas não tem nada a ver com o fato de eu achá-la fria e calculista, e nunca escondi isso de você. Aquela mulher gela meu sangue!

Ri do seu exagero, afinal, a Vivi não tem nada de fria. Millos implica com ela pelo simples fato de a mulher ter personalidade e não se deixar comandar por ninguém. No primeiro momento ele se sentiu atraído, Vivi é um espetáculo aos olhos, e ela também não disfarçou o interesse. No entanto, bastaram alguns minutos de conversa para que se odiassem.

— Hoje ela conseguiu algo incrível — comentei. — Valentina de Sá e Campos, já ouviu falar?

Ele riu.

— Dela não, mas conheço os sobrenomes. Família paulistana tradicional, bom currículo. — Cruzou os braços e me olhou debochado. — A futura senhora Theodoros Karamanlis?

— Talvez — fui sincero. — Conversei um pouco com ela nesta noite, achei-a divertida, inteligente e sedutora. A princípio achei que era muito nova, mas é madura e independente, cheia de opinião. Gosto do tipo.

— Eu sei. — Ele se levantou e foi pegar mais cerveja. — Foi Viviane quem te apresentou a ela? — Assenti. — Não sei se gosto disso, mas boa sorte.

Gargalhei pela implicância dele com a Vivi e resolvi desviar o assunto. Falamos da Karamanlis, de música, de motos e, por fim, já muito bêbado e com sono, caí sobre o sofá dele e acordei há pouco, com torcicolo e com uma puta dor de cabeça.

— Ei! — Millos me saúda estendendo uma xícara de café. — Você está destruído!

O desgraçado ri, mas nem posso mandá-lo tomar no cu, porque minha cabeça trepida parecendo que há uma britadeira no meu cérebro. Maldita cerveja! Malditos bolinhos envenenados da Duda Hill!

— Cara, você é fraco para minha cerveja! — Millos ri. — Ficou boa, não é? — Apenas assinto, ainda tomando o café para melhorar meu ânimo. — O que está programado para fazer nesse final de semana?

— Vou trabalhar. Como saí um pouco mais cedo ontem por causa do vernissage, Rômulo separou umas pastas para que eu lesse nesse final de semana. Coisa chata, principalmente da pauta da reunião do conselho.

— Por falar no conselho... — Ele se senta ao meu lado no sofá e apoia os pés descalços sobre a mesinha de centro. — Ontem tive notícia do Kostas. — Ri. — Parece que tomou um toco feio da Kika e está cuspindo marimbondos.

Gargalho, esquecendo a dor.

— Como queria ter visto esse embate!

— Eu também.

Bufo, mesmo divertido, lembrando que o meu problema continua.

— Preciso trazê-la de volta para a empresa com urgência. Há vários projetos dos hunters parados, e o Rômulo não está dando conta de organizá-los.

Millos rola de rir no sofá.

— Esse seu assistente é muito estranho. Sinceramente não entendo como você ainda o mantém trabalhando contigo!

— Gosto de ele ser metódico. — Dou de ombros. — É organizado, embora meio desastrado, nunca perde um prazo e faz tudo o que eu peço.

— Seu próprio espelho, não é? Nunca conheci ninguém mais chato que você para organização.

Ergo uma sobrancelha para ele e olho em volta para seu loft cheio de espaço, mas sem nenhuma lógica ou senso de estilo. Millos gosta de coisas rústicas, e respeito isso, acho legal, mas é tão bagunceiro que seus móveis caros de design parecem ser cacarecos de alguma casa demolida.

Os únicos locais arrumados são: a cozinha, o “laboratório” de cerveja (como ele mesmo se refere ao local) e onde dorme. O resto... tem peças de motos para todos os lados, mesmo a oficina ficando na parte de baixo do galpão que ele chama de loft, tem barris com os ingredientes que compra para a fabricação de cerveja, roupas, discos e óculos (nunca vi tantos para uma só pessoa) espalhados por todos os lados.

O homem é um caos completo em casa, mas, se alguém entrar na sala dele na empresa, vai acreditar que é o epítome da organização. Não entendo como consegue!

— Bem, sobre a Kika, eu posso te adiantar que não precisa se preocupar — Millos continua. — Falei com ela ontem, e vai voltar.

Expiro o ar, aliviado.

— Porra, Millos, porque não me contou antes? É um alívio do cacete não ter que lidar com mais esse problema e...

— Mas ela não quer ser mudada de andar.

— O quê? Ela está fazendo exigências?

Millos penteia a barba com os dedos, enervando-me com sua calma.

— Demonstramos desespero ao mandar o Kostas pedir arrego. — Concordo com ele nesse ponto. — Ela quer aumento, continuar no andar e... — Tenta conter o sorriso, e prevejo que vem bomba, mas ele vai dar um doce do cacete para falar.

Perco a paciência e esbravejo:

— O que mais ela quer?!

— Carta branca para mandar seu irmão se foder à vontade.

— Porra!

Ponho as mãos na cabeça, sentindo a dor de cabeça voltar com tudo e ouvindo a risada debochada do Millos.

Eles querem me enlouquecer, só pode!

 

 

A dor de cabeça me acompanhou ao longo de todo o final de semana. Tomei analgésico, antiácido e – seguindo os conselhos do meu primo – mais um pouco de cerveja. No entanto, não consegui me livrar do incômodo insistente.

Trabalhei o sábado inteiro, recebendo ligações do Rômulo quase de hora em hora, a ponto de ficar puto com ele e mandá-lo caçar algo para se divertir e me deixar em paz. Compreendo que ele queira me ajudar, mas, às vezes, sua dedicação exacerbada me estressa.

Recebi um convite para jantar de uma antiga amante que vinha a São Paulo de tempos em tempos, mas neguei. Queria apenas relaxar um pouco em casa depois de ter trabalhado em páginas e mais páginas de relatórios com uma dor de cabeça chata a me distrair.

Pedi comida em um restaurante de comida vegana, achando que pudesse ser a gordura dos bolinhos do Hill – velha e rançosa, com certeza – que me deu essa indisposição e resolvi assistir a alguns filmes antigos. Sou fã de “O poderoso chefão”, então comecei a assistir a cada um deles de novo.

Novamente dormi em um sofá, mas acordei melhor e resolvi correr um pouco. Passei umas duas horas no Ibirapuera e, na volta, encomendei o almoço de domingo, sentindo-me um pouco órfão sem a Vanda em casa.

Liguei para Millos a fim de fazermos algum programa à tarde, mas ele estava com alguma mulher em algum clube ou lugar que só Deus sabia, então voltei aos relatórios, e isso consumiu o resto do dia.

Debaixo do chuveiro, rememorando este final de semana de merda, ouço meu telefone tocar, mas o ignoro. Coloquei os jatos no mais forte possível para tentar aliviar um pouco a tensão que venho acumulando nesses dias. A verdade é que preciso trepar um pouco, divertir-me, talvez fazer uma viagem ou passar um final de semana com alguém sem pensar no trabalho.

A imagem da Valentina vem à minha mente, sua conversa gostosa, seu sorriso bonito. Contudo, ainda não me sinto completamente certo de que devo me envolver com ela, principalmente por uma questão: não senti muita atração.

Sei que isso é de momento e que pode mudar, principalmente se a convivência for boa. Nem sempre sentimos atração pela pessoa no primeiro encontro, e já vivi anos demais para saber que até um primeiro encontro explosivo pode depois esfriar e o tesão ser extinto, então, não me baseio apenas nessas primeiras impressões.

Fecho os olhos e penso na garota da boate há alguns anos. Ela vem preenchendo minhas fantasias há muito tempo, talvez por ter sido gostoso daquela vez e não ter tido mais notícia dela.

Mal lembro do seu rosto, de tão bêbado que estava, sempre quando fantasio vejo os cabelos e me lembro da loucura que foi nossa transa naquele banheiro.

O telefone volta a tocar, e desligo o chuveiro, saindo do boxe para ver quem é o chato. Rio ao ver o nome do Millos. Na mosca!

— Já terminou sua maluquice sexual com a “submissa” da vez? — provoco.

— Vá se foder e não se meta nos meus assuntos — rosna. — Liguei para saber se amanhã pode ir comigo a um restaurante que um amigo inaugurou nos Jardins.

— Boa comida ou é boteco?

— Não, seu fresco, é coisa fina! Vanda ainda não estará de volta, não é?

Suspiro, resignado.

— Não, ela ainda vai ficar um tempo no Rio de Janeiro. Está certo, amanhã combinamos isso melhor no escritório.

— Okay! — diz animado. — Vai almoçar no refeitório junto aos funcionários?

— Sempre há uma primeira vez, não é? — Deixo a toalha no suporte e sigo para o closet. — Além do mais, confio que servimos algo de qualidade aos funcionários.

Millos ri.

— Essa eu quero ver! Nos encontramos no almoço, então! Boa noite, Theo.

— Boa noite!

Desligo o telefone e me olho no espelho, lembrando-me do tempo em que comia qualquer coisa e em qualquer lugar, na maioria das vezes sujo e fedendo a peixe, sentindo-me feliz e livre.

— Quem é você, Theodoros Karamanlis?


O dia nem bem amanheceu, e eu já estava suando na academia com a Sandra. Hoje, sem Millos, o treino foi mais tranquilo, seguindo o ritmo normal dos exercícios. Tomei meu café sozinho na cozinha – café puro mesmo – sentindo imensamente a falta da Vanda, de sua conversa matutina animada e seus cuidados. Posso não admitir sempre, mas gosto de ser cuidado, de sentir esse afeto, coisa tão rara na minha vida.

Limpei os pensamentos e saí para trabalhar.

— Bom dia, Dionísio! — cumprimentei o motorista como em todos os dias, já pegando meu jornal para me inteirar sobre as principais notícias do dia. — Hoje vou almoçar na empresa, mas, à noite, vou sair do escritório direto para jantar com Millos.

— Levo o doutor ou trago o carro?

— Traz o carro, vou dirigindo.

Ele assentiu, e seguimos viagem em silêncio, ele concentrado no trânsito, e eu, nas notícias de economia do país e do mundo.

Cheguei à empresa já apagando incêndios. Um dos projetos de um cliente foi reprovado por uma comissão municipal, então Kostas teve que intervir mandando seus advogados e acompanhando todo o processo. Eu, como CEO, fiquei aguentando a aporrinhação do gerente responsável pela implantação da empresa multinacional aqui no Brasil.

Nem vi a hora passar, mal tomei meus cafés tão tradicionais ao longo da manhã, irritado com esse problema, com o Rômulo borboleteando ao meu redor me enchendo de perguntas: “quer café?”, “ligo para o doutor Konstantinos?”, “quer um calmante?”. Eu quase explodi de raiva, sentindo meu estômago fritar e a cabeça estourar.

Desci para o refeitório faltavam alguns minutos para o meio-dia e, para meu espanto, ainda não tinha nenhuma refeição pronta. Conferi as horas no Omega, um dos relógios mais precisos do mundo, e estranhei a demora. Rômulo apareceu e, quando lhe questionei o atraso, fiquei sabendo que o almoço era servido a partir da 1h da tarde.

Voltei para o escritório sob a insistência de Rômulo para me encomendar o almoço em algum restaurante.

— Não! Hoje vou comer no refeitório — insisti.

Millos me lançou um desafio por eu nunca ter comido na empresa desde que foi inaugurado o refeitório para os funcionários. Pensamos no restaurante para facilitar a vida de todos e, como tínhamos espaço, decidimos montar a estrutura. Estive presente no primeiro dia, na inauguração, há alguns anos, mas depois disso não botei mais os pés no local.

Exatamente às 13h desci novamente pensando em usufruir de um almoço tranquilo e nutritivo, porém, o que encontrei me deixou sem ação. Primeiro, os funcionários ficaram estarrecidos ao me ver ali; percebi em seguida que apenas o baixo escalão da empresa – de coordenadores para baixo – estava comendo ali. Não havia nenhum gerente ou diretor no meio dos mais de 100 funcionários da companhia.

Contudo, o que mais me surpreendeu foi a comida. Não, não era ruim, pelo contrário, era bem preparada, mas sem nenhuma opção para substituição.

— E quem não pode comer carne vermelha? — questionei ao Rômulo, e ele apenas corou, fingindo não ouvir. — Há cardápios diferentes ao longo da semana?

Rômulo continuava a montar seu prato sem emitir qualquer resposta, o que não é nada típico dele, e isso me irritou. Quando não era para falar, o homem tagarelava, mas, quando eu precisava de respostas, ficava mudo!

— Rômulo! — chamei-o de modo mais enérgico. — Eu estou tentando entender o que...

— Não, não há! — escuto a voz do Alex e me viro para encará-lo. — E seu querido assistente não sabe informar porque não come aqui também. — Meu irmão pegou um prato e se serviu naturalmente. — A questão do restaurante entrou em pauta numa reunião de diretoria, mas o senhor todo-poderoso do Olimpo achou que não era uma questão relevante para a economia da empresa e pulou o assunto.

Olhei de esguelha para Rômulo buscando confirmar a informação, e ele atestou. Xinguei mentalmente.

— Uma empresa é feita de mais do que números, Theodoros Karamanlis — seu desprezo pelo sobrenome era evidente. — E, quando fiz a proposta do restaurante, era para que, além de economizar o tempo dos funcionários e agilizar o serviço, também tivéssemos convívio com eles, porém, adivinha quem foi o primeiro a pular do barco e a incentivar o “alto escalão” a ir junto?

Bufei de raiva.

— Quem é o responsável pela gestão do restaurante? — ignorei o discurso do meu irmão idealista e perguntei ao Rômulo.

— É terceirizada, a mesma empresa do pessoal da manutenção.

Merda!

— Marque uma reunião com ela e peça ao Kostas para avaliar o contrato. — Rômulo mais do que depressa escreveu em seu tablet inseparável. — Dispare um memorando para todos os diretores e gerentes, lembrando da existência do restaurante e informando que, a quem for almoçar fora, será necessário cumprir o horário, ou seja, uma hora e nenhum minuto a mais.

Rômulo arregalou os olhos e assentiu.

— Eu pouco vejo você e percebo que nem é preciso! Você não mudou nada, o mesmo prepotente de sempre. — Alex passou por mim, ainda se servindo no bufê, rindo de deboche, e percebi olhares curiosos em nossa direção.

— Eu preciso lembrar que você também faz parte da diretoria e tem acesso irrestrito ao conselho? — Cheguei perto para falar baixo: — Se fosse meu projeto, nunca deixaria chegar aonde chegou só porque não sou o CEO. Isso demonstra que está mais preocupado em ir contra a direção do que lutando pelo bem-estar dos funcionários. Não é minha função tomar conta de tudo, não sou absolutista, eu delego e confio naqueles a quem passo esse poder. — Ele fechou a cara, perdendo o ar de superioridade. — Não tenho intenção alguma de prejudicar os que trabalham comigo, pelo contrário. Mas assumo meu erro em não ter frequentado o local para dar exemplo.

— Mas o doutor também não tem horário certo para almoçar, por isso...

Balancei a cabeça em negativa, freando a defesa de Rômulo. Não tinha desculpas, o exemplo era meu, e eu tinha falhado. Terminei de fazer meu prato, sentei-me a uma mesa com Rômulo e almocei mesmo sentindo um nó na garganta por ter mostrado falha e ter sido repreendido pelo Alex na frente de todo mundo.

Merda!

Ao longo do dia, a repercussão do almoço do CEO no restaurante da empresa, bem como o efeito do memorando para os diretores e gerentes agitaram a tarde na Karamanlis. Percebi todo mundo mais atento, mesmo na correria de sempre.

Tive uma resposta positiva da equipe de Kostas com relação ao projeto vetado e pude passar a boa notícia ao nosso cliente. Recebi vários relatórios dos setores e subsidiárias ao longo do dia, inclusive da K-Eng, dirigida pelo Alex.

Meu irmão é um sonhador idealista, defensor dos fracos e oprimidos, um rebelde que só trabalha conosco para contrariar a família. Cospe sobre nosso sobrenome, mas faz questão de ostentá-lo para afrontar o pappoús. Sempre achamos que ele tentaria afundar a empresa em represália ao tratamento que teve na infância, mas não, ele não só assumiu uma empresa praticamente independente como a fez crescer. Todavia, ainda sinto que há algo por trás disso.

Estaciono o carro na vaga do restaurante, afastando as lembranças do dia e conferindo o endereço que Millos me enviou por mensagem. Estar sem o Dionísio nesta noite é bom, porque vou moderar a bebida, afinal é segunda-feira, e prefiro tomar um copo de uísque quando estiver no meu apartamento.

Tenho expectativa de o jantar ser bom; já o almoço foi complicado e indigesto com a discussão com o Alex e a demonstração de que deixei as coisas correrem soltas demais. Claro que não sou arrogante a ponto de achar que meu irmão não estava com a razão sobre as coisas que me disse, afinal, ele convive mais com os funcionários que eu, mas não gostei de ser contrariado na frente de todos.

Entro no restaurante, e a primeira coisa que percebo é a arquitetura do lugar e a decoração de bom gosto. Isso realmente não diz muita coisa acerca da qualidade gastronômica deles, mas já conta pontos em matéria de conforto. Uma recepcionista, bem-vestida e muito bonita, cumprimenta-me, e lhe dou o nome de Millos, que foi quem fez a reserva.

— Ah, doutor Karamanlis, ele ainda não chegou, mas o senhor pode esperá-lo no bar, tudo bem?

Respiro fundo, conferindo as horas e calculando que ele – se viesse de moto, como sempre – já deveria estar aqui. Olho contrariado para o bar, logo na entrada do restaurante, e meus olhos são imediatamente atraídos para uma mulher vestida de preto, com os cabelos longos, castanhos e lisos, tomando uma taça de vinho.

Não consigo ver todo o seu rosto, apenas o perfil, e isso é suficiente para que eu queira vê-la toda.

— Tudo bem — concordo com a recepcionista, que me aponta o bar.

Caminho para lá e me sento na poltrona alta ao lado da bela mulher. Não a olho, prestando atenção ao bartender que vem pegar meu pedido.

— Scotch, por favor. — Ele pergunta a marca. — The Macallan.

Sorrio satisfeito ao vê-lo pegar exatamente a garrafa que costumo beber e, então, de esguelha, olho para a mulher ao meu lado, procurando algum indício de indisponibilidade – ou problema –, como uma aliança em seu dedo.

Ela não usa nem mesmo anéis. No entanto, o que chama minha atenção são as unhas curtas, bem cuidadas, mas sem esmalte. Hoje em dia o que as mulheres mais fazem é colorir as unhas! Como eu gosto de arte, logo sou atraído pela variedade de cores e a combinação com as mãos e os formatos. Porém, não com ela; suas mãos são lindas, dedos longos, sem precisar de nenhum tipo de enfeite.

Subo o olhar e a encontro me olhando também.

— Boa noite! — cumprimento-a sorrindo assim que o bartender deixa meu copo no balcão.

— Boa noite! — ela responde. Sua voz me causa uma sensação de frenesi, e fico imediatamente excitado. Ela é linda em todos os sentidos da palavra. Seu rosto é delicado, proporcional, olhos expressivos, nariz fino e uma boca generosa. Fico imaginando como será seu sorriso aberto, não apenas esse polido e educado que me dá agora.

Paro de encará-la para não a constranger e tomo um gole do uísque, questionando se devo ou não puxar conversa com ela.

Não sou inseguro, nunca fui, mas às vezes uma mulher só quer estar quieta bebendo sem alguém para importuná-la, por isso sempre espero ver algum indício de que quer papo antes de abordar.

Dou outra olhada de soslaio.

Vamos lá! Quero saber quem você é!


— É a primeira vez que venho aqui — é ela quem faz o movimento, e gosto disso, uma mulher decidida. — Estou surpresa pelo requinte sem a frieza esperada desses restaurantes com esse nível. O pessoal é simpático e organizado.

Rio.

— Você é da área — constato e me viro para ela, girando a poltrona em sua direção.

— Sou. — Sorri finalmente, e me sinto extasiado com a perfeição do gesto. Os olhos ficam levemente puxadinhos, e sua face inteira se ilumina. A mulher fica absurdamente linda quando sorri. Meu interesse é real agora. — Mas hoje vim como cliente.

— Eu só venho como cliente — brinco. — Não sei fritar um ovo!

Ela ri de novo e toma um gole de seu vinho.

— O que seria dos restaurantes se todos soubessem ou gostassem de cozinhar? — Levanta sua taça em minha direção. — Aos que são apenas clientes e podem desfrutar de uma deliciosa refeição sem ficar avaliando cada nuance do prato.

— Justo! — Brindo com ela. — Qual sua formação?

— Cozinha francesa. Diplôme de cuisini e pâtisserie.

Uau!

Meu corpo inteiro vibra e meu pau reage ao som do seu perfeito sotaque francês. Acompanho sua boca em volta da borda da taça de vinho, o leve ondular de sua garganta sorvendo a bebida e sua língua resgatando os resquícios da bebida em seus lábios.

Abaixo a cabeça e bebo um longo gole do uísque, tentando não parecer um tarado assediador, mas louco para perguntar se ela prefere na minha casa ou na dela.

— Pelo francês perfeito presumo que tenha estudado na França... — Ela concorda com um sorriso. — Le Cordón Bleu?

— Naturellement. Estudar gastronomia na França sem ser em Le Cordón Bleu é como ir a Roma e não ver o Papa!

Gargalho com sua comparação e a saúdo com minha bebida.

— É como ir até a Escócia e não provar um verdadeiro uísque.

Levo o copo até a boca e acompanho o olhar dela em mim.

— Sua escolha de bebida me surpreendeu — ela comenta, e franzo o cenho, olhando meu bom e velho single malte e me perguntando qual é o problema com ele. — É uma bebida conservadora, nada sofisticada, ao meu entender, não combinou muito. — Aponta para mim.

Finjo-me de ofendido, embora segure a risada, e cruzo os braços.

— E você é uma entendida em bebidas também? — provoco-a.

A risada dela é tão melodiosa que parece música, seus olhos se iluminam e as bochechas ficam levemente rosadas. Perfeita!

— Nem queira saber! — Beberica um pouco do seu vinho. — Praticamente cresci cercada delas.

— Hum... — Sorrio. — O que combinaria mais comigo, então?

Sou submetido a um olhar avaliador, passando pela minha roupa, sapatos e rosto. Sinto tão intensamente sua atenção sobre mim que é como se ela pudesse olhar além das minhas roupas. Estou exposto, nu, cada músculo aquecendo à medida que seus olhos percorrem meu corpo, concentrando ainda mais desejo em minha virilha. Porra, que delícia!

— Pelo estilo de roupas e o Omega que usa no pulso — ergo a sobrancelha, surpreso pelo bom olho que ela tem —, um Dry Martini.

Gargalho sem me conter, e ela me segue, ambos divertidos pela comparação que ela faz. James Bond? Sim, eu sei que o mais famoso espião dos cinemas só usa relógios da Omega, mas não me vejo com uma taça de Dry Martini na mão, exigindo do bartender: “batido e não mexido”. Gosto de pensar que sou mais rústico que isso. A prova é meu single malte caubói.

— A sofisticação é só uma casca, pode acreditar. Estou longe de ser tão refinado quanto o Bond, ou tão habilidoso. — Ela levanta uma sobrancelha questionadora, demonstrando que não acredita nessa minha “humildade”. — A propósito... — respiro fundo, indo devagar — meu nome é Theo.

Mais uma vez seu sorriso faz meu pau reagir, ficando dolorosamente duro e pulsando na cueca. Que porra de atração é essa? O que essa mulher tem? É divertida, a conversa está fluindo bem, além de ser linda, mas essa atração... não é assim que acontece, ainda mais em um ambiente tão frio quanto o em que estamos.

— Maria Eduarda. — Ela estende a mão, e eu a seguro.

Tudo em volta parece vibrar, e noto que ela também sente isso. Meu sorriso se expande. Não tiro os olhos dos seus. A energia gerada pelo toque esquenta meu corpo e aumenta minha percepção do dela.

Maria Eduarda tem um belo pescoço, e o cheiro suave de um bom perfume parece advir exatamente do ponto onde eu gostaria de passar minha língua. Os ombros são delicados, os braços longos e sem nenhum contorno muscular demonstram que ela não mantém regularidade de exercícios, sendo magra ao natural. Os peitos no decote do vestido são pequenos, porém, redondos e firmes.

O vestido, embora justo, tem um tamanho comportado, por isso não posso ver suas coxas – o que é uma pena –, tão somente as panturrilhas e uns pés lindos – esses, sim, com as unhas pintadas de vermelho – em sandálias de cor clara.

Apesar de ser uma mulher atraente e bonita, não é uma beleza exótica. Sem o sorriso, ela passaria a ser apenas mais uma mulher bonita como muitas outras que existem por aí, porém, não para mim. Algo nela chamou minha atenção desde o primeiro momento. Mesmo com ela de costas, sem nem ao menos ver seu rosto direito, senti-me atraído.

Agora ela me deixa em chamas, tentado a ser direto e lhe propor uma noite de pura sacanagem. Eu o faria se o local fosse mais descontraído e tivesse mais abertura da parte dela, não só a confirmação de que se sente atraída por mim. Em uma boate, por exemplo, eu seria mais efusivo.

— É um prazer enorme encontrá-la aqui — mesmo sendo sutil, quero deixar claro que ela chamou minha atenção. — Salvou minha noite, pode ter certeza.

Ela sorri e solta minha mão.

— Quase não vim — confessa e dá de ombros. — Assunto chato, companhia chata.

Gosto da sua sinceridade.

— Negócios? — Ela assente, e eu adoro a notícia. — Geralmente os meus jantares têm o mesmo motivo.

— Então veio para uma reunião também?

Nego com a cabeça antes de responder:

— Não, hoje só vim comer. Meu primo é amigo do dono daqui e me recomendou o restaurante.

— Isso é bom, espero que esteja à altura da sua expectativa.

— Ainda que não esteja, Maria Eduarda — cruzo os braços e a encaro —, no momento estou ligando o foda-se para a comida ou o restaurante.

Ela fica séria, mas não desvia os olhos.

— É mesmo?

Não respondo de imediato, curtindo esse jogo entre nós. Aposto que ela sabe o motivo pelo qual não tenho mais nenhum interesse na gastronomia do local. Ela quer que eu diga! Quer que eu dê o passo adiante, que demonstre o interesse claramente, o que é um ótimo sinal.

Deixo o silêncio e o ar vibrar entre nós por mais alguns momentos, sem tirar meus olhos de suas belíssimas íris castanhas.

— Porque minha fome é outra desde que encontrei você aqui. — Ela segura o fôlego. — Porque nossa conversa está cada vez mais interessante. — Abaixo o tom de voz: — Porque olhar você e sentir seu cheiro acordaram meus sentidos mais do que qualquer nuance de um prato é capaz de fazer.

Minhas mãos coçam de vontade de tocá-la, de sentir novamente aquela energia sexual percorrendo meu corpo, emanando dela. Não o faço porque ainda não vi sinais suficientes para avançar a esse ponto, e eu sempre espero a permissão de uma mulher para tocá-la.

— Você nem me conhece — ela responde um pouco ofegante.

— Estou louco para conhecer. — Encosto-me melhor à poltrona e me afasto um pouco dela para demonstrar que não a estou pressionando. — Não tenho pressa, Maria Eduarda, só preciso que saiba que você me atrai e que, embora esteja sentado aqui, estou louco para segurar sua nuca e provar o sabor desse vinho que bebe, diretamente nos seus lábios.

Ela suspira e desvia o olhar.

Esse é o momento quando ou eu tomo um fora, ou venço o jogo. Porém, podem dizer que é arrogância, eu sou um homem vivido e, se cheguei até aqui, se me expus dessa forma, é porque estou apostando minhas fichas em que o tesão é recíproco.

— E se eu for casada ou comprometida?

Bingo!

Pela entonação da pergunta, sei que ela não é.

— Eu me desculparei, mesmo ainda sentindo esse desejo maluco de te beijar, e me levantarei, indo para a mesa que meu primo reservou. Não trepo com comprometidas.

Ela levanta as sobrancelhas e assume uma expressão provocadora.

— Não trepa? — Ri, cínica. — Você é muito confiante achando que basta jogar meia dúzia de palavras em cima de uma mulher sozinha em um bar para garantir uma trepada.

— Eu sou confiante. — Aproximo-me a fim de lhe demonstrar de onde vem minha confiança. — Mas não são as “meia dúzias de palavras” que vão fazer você ter vontade de trepar comigo. — Seguro sua mão e com a outra deslizo meu dedo indicador do seu punho até o cotovelo, vendo todos seus pelos se arrepiarem com o leve contato. — É isso!

Maria Eduarda fica um tempo olhando o trajeto do meu dedo sobre sua pele, assistindo, como eu, à deliciosa reação causada por meu toque. Não falamos nada, apenas acompanhamos o leve vai e vem que eu faço no seu antebraço, apreciando o contato. É nítido para mim que ela está avaliando todas as possibilidades e talvez tentando entender como isso é possível.

Já não escuto mais nada, os sons das conversas, a música clássica baixa que toca, a correria do bartender limpando copos, organizando garrafas ou preparando aperitivos. Tudo ao redor some, e só sinto a potência do tesão que ela despertou em mim, esperando que sinta o mesmo e que admita isso.

Ela sorri, mas puxa a mão, rompendo o contato.

— Como já disse, a gente nem se conhece.

— Sou paciente, Maria Eduarda. — Recebo um sorriso tímido. — Vou adorar cada momento até te conhecer. — Afasto-me dela novamente e peço mais uma dose de uísque. — Aceita mais uma taça?

Aponto, mas ela nega, olhando para a entrada do restaurante.

— Infelizmente, não. — Respira fundo. — Meu compromisso chato acaba de chegar.

Viro-me para ver quem é o sortudo que vai jantar com ela, mas só vejo o Millos entrando com uma cara debochada e um sorriso contido. Olho para Maria Eduarda novamente e confirmo que ela não só se levantou à espera do Millos, como parece muito contrariada com a presença dele.

Por que Millos iria marcar para jantar com uma mulher e comigo ao mesmo tempo? As palavras “jantar de negócios” me causam um alerta, mas me recuso a enveredar pelo rumo que meus pensamentos querem ir.

— Ah, desculpem o atraso! — Millos exclama, indo cumprimentá-la. — Que bom que já se conheceram. — Maria Eduarda franze a testa e me encara. — Theo, eu acho que chegou a hora de conversarmos pessoalmente com a Duda.

Porra!

Levanto-me como se tivesse sentado em um formigueiro, estarrecido demais para articular qualquer palavra educada que não seja um palavrão bem cabeludo.

Duda? Olho-a de cima a baixo sem poder acreditar que a mulher que me atraiu como se tivesse um ímã é a infernal dona do boteco que tem feito minha vida um suplício por causa de sua teimosia.

— Theodoros Karamanlis? — ela parece tão chocada quanto eu e já não há nada além de desprezo em sua voz ao falar meu nome.

Desvio um olhar mortal para meu primo, que, além de parecer surpreso, está também muito interessado nessa interação entre nós.

Eu vou te matar, seu filho da puta!


— Aceita mais uma taça?

Minha vontade é de aceitar e pagar para ver Theo jogando todo seu charme para mim, usando armas pesadas para conseguir provar que temos realmente toda essa química que ele demonstrou com um simples roçar de dedos em meu braço.

E temos, sim! Não sou hipócrita a ponto de me enganar dizendo que não senti nada por ele. Assim que se sentou ao meu lado aqui, a esse balcão, meus olhos foram imediatamente atraídos para ele. Quando me cumprimentou, sua voz fez meu corpo inteiro reagir de uma forma estranha, e tive a nítida sensação de que o conhecia de algum lugar.

Porém, foi só quando se virou em minha direção, depois de eu ter puxado assunto descaradamente, que fiquei sem fôlego. Seus olhos são de um azul que eu nunca poderia esquecer caso já os tivesse visto. No entanto, a sensação de reconhecimento persiste. Ele é muito bonito, além de ter um sorriso de arrancar a calcinha de qualquer mulher.

Se Manola estivesse aqui comigo, com certeza iria dizer que ficou emocionada e que molhou a calcinha. Entretanto, aprendi com o tempo e com as responsabilidades a ser mais comedida e a não me deixar levar sem pensar. Um rosto e um corpo bonitos não querem dizer muita coisa sobre o caráter de alguém.

Estou para aceitar a proposta de mais uma taça e alongar o papo, mas minha visão periférica capta um movimento na entrada do restaurante, e me sinto murchar ao ver Millos Karamanlis adentrando. Esse homem não se cansa de tentar comprar o Hill, é um saco!

Quando me ligou, eu estava pronta para dizer um sonoro NÃO a ele, mas insistiu que era importante, que tinha uma situação que me interessava e por isso achava melhor conversarmos para tentar um acordo. Isso me deixou intrigada e temerosa, por isso estou aqui, neste momento, tendo que recusar a companhia agradável e intrigante do Theo.

— Infelizmente, não — respiro fundo, respondendo ao delicioso oferecimento desse deus com cuja companhia o destino me presenteou enquanto eu esperava pelo diabo. — Meu compromisso chato acaba de chegar.

Levanto-me, resignada, para receber o homem barbudo e muito estiloso, devo confessar, mas que é uma pedra no meu sapato.

Millos abre um sorriso e se aproxima para me saudar como sempre faz, com um beijo na bochecha e um curto aperto de mãos. Tenho verdadeiro trauma dele, de estar sempre rodeando minha vida à espera de um fracasso que o deixe comprar o bar da minha família, minha casa, o legado do meu pai. Contudo, tenho de admitir que, embora pondo pressão, ele sempre me tratou muito bem e com muita simpatia.

— Ah, desculpem o atraso! — Ele olha para o Theo e depois para mim. — Que bom que já se conheceram. — O quê? Como assim? Eles se conhecem?! — Theo, eu acho que chegou a hora de conversarmos pessoalmente com a Duda.

Millos Karamanlis conhece o Theo!

Meu sensual companheiro de bar se levanta e me encara de um jeito completamente alarmado. O olhar sedutor sumiu, bem como seu sorriso franco e relaxado. Agora apenas incredulidade está estampada em seu rosto bonito.

Oh, meu Deus, não pode ser!

Claro que eu acharia que o conhecia, afinal, já vi fotos suas em revistas da alta sociedade e em jornais, embora creia que nenhuma delas lhe tenha feito jus. O homem ao meu lado não é simplesmente “Theo”, é o diretor da porcaria da empresa que comprou toda a quadra onde fica o Hill e que vem tentando de todas as formas me tirar do meu lugar!

— Theodoros Karamanlis? — minha voz soa tão incrédula como me sinto.

Como não percebi quem era esse homem? Como pude me sentir atraída por ele a tal ponto de fantasiar uma noite ao seu lado? Eu o quis como havia muito tempo não me lembrava de ter querido alguém, uma atração que não sentia desde a época em que ainda pensava que tinha o mundo aos meus pés e que conquistaria tudo o que sonhasse ter.

Millos fica um tempo com a sobrancelha erguida, olhando de um para o outro, até que resolve quebrar o gelo.

— Podemos ir para a mesa?

Eu o olho ainda sem entender que tipo de palhaçada é essa. Eles fizeram de propósito? Será que Theo veio primeiro para tentar me seduzir, afinal, nós nunca fomos apresentados, ou foi só uma coincidência ele ter chegado antes e aí resolveu brincar comigo?

Não é possível que ele não soubesse que eu sou a Duda Hill!

— Millos, o que você pretende, afinal? — Theo questiona com a voz demonstrando toda sua irritação.

— Eu não acho que temos algo para conversar. — Pego minha bolsa, que estava pendurada na poltrona giratória. — Não vou mudar de opinião, não pretendo vender o Hill.

— Por que não? — Theo questiona de repente, e eu o olho. — O que uma chef formada por Le Cordón Bleu pode querer com um boteco? — Fecho minhas mãos com força na alça da bolsa. — Ou esse papinho de Paris e seus diplomas é só um sonho fantasioso de uma dona de bar?

Millos emite um palavrão baixo, prevendo que o tempo irá fechar. Ele me conhece bem, já me irritou várias vezes e saiu do Hill com uma resposta à altura.

— O que eu quero ou não só diz respeito a mim, doutor Theodoros Karamanlis — tento falar o mais baixo possível, mas meus olhos brilham de indignação, e espero que ele entenda a mensagem. — O boteco é meu, faço com ele o que eu quiser, e de uma coisa você pode ter certeza: Não. Vou. Vender. Para. Vocês! Ficou claro agora, ou preciso desenhar? — Olho para o Millos.

— Ei! Vamos nos sentar à mesa e conversar com calma! — ele tenta apaziguar o clima tenso entre mim e Theodoros. — Theo... — pede sua colaboração, mas o homem parece estar soltando fogo pelas ventas e não lhe dá atenção. — Vocês estão chamando a atenção dos outros clientes e...

— Foda-se! — falo em uníssono a Theodoros, e Millos ri, mesmo ainda nervoso.

O maître aparece para nos conduzir até a mesa reservada, e Millos faz um gesto para que o sigamos até lá. Encaro Theodoros Karamanlis por um tempo, ambos medindo forças para ver quem cede primeiro.

— Vamos? — Theodoros pergunta, e eu assinto, passando por ele sem nem ao menos emitir uma palavra. A mesa que Millos reservou é discreta, no fundo do salão, sem nenhuma outra por perto. Sento-me com as costas eretas, sem tirar a alça da bolsa do ombro, mostrando a eles a minha contrariedade por estar ali.

— Vamos fazer um pedido?

— Não, Millos, não pretendo ficar para comer — sou direta. — Preciso apenas que me fale sobre o assunto que não quis adiantar pelo telefone. O que vocês têm a ponto de me fazer querer fechar um acordo?

Theodoros olha para ele parecendo muito mais irritado e bufa de raiva. Millos balança a cabeça e começa a explicar:

— Duda, há alguns meses estamos de posse de uma...

— Enorme quantia de dinheiro — Theodoros o interrompe. — A proposta de compra aumentou, e seria interessante a senhorita reconsiderá-la, afinal, pode abrir um pequeno bistrô para exercer o que aprendeu em Paris.

— O quê? — Millos o encara, confuso. — Olha, eu desisto! — Chama um garçom e pede uma cerveja. — Eu realmente acho que podemos chegar a um acordo, mas vocês dois são teimosos como mulas!

— Não quero nenhum acordo com vocês! — declaro. — Tudo o que quero é que parem de ficar rondando minha propriedade como dois abutres!

— Boa definição, senhorita Hill. — Theodoros se inclina por sobre a mesa para ficar mais próximo a mim. — Seu negócio está agonizante e em breve perecerá, e, quando isso acontecer, irá lamentar não ter abaixado um pouco sua crista e ter aceitado minha oferta, porque só sobrará carcaça aos abutres!

— Theo! — Millos o repreende, mas depois começa a rir. — Que conversa de doido, viu? Não esperava por isso! — Bebe sua cerveja. — Confesso que está um pouco divertido.

— Vá se foder, Millos! — mal fala isso e volta a me olhar. — Não irei repetir a oferta, Duda Hill. A aconselho a aceitar o mais rápido possível.

Meus olhos faíscam de raiva, mas meu corpo traidor se arrepia inteiro ante a expressão dele. O homem é sexy demais, insuportavelmente arrogante, mas ainda assim, muito sexy!

— Não estou interessada — uso o mesmo tom de voz que ele. — Vendo para qualquer um, menos para vocês. — Ponho-me de pé. — Espero que desfrutem do jantar sem minha companhia. Eu não conseguiria comer aqui com vocês sem ter uma enorme indigestão.

Theodoros se põe de pé também, e Millos, com um sorriso debochado, cruza os braços e fica só esperando o próximo passo do seu chefe.

— Não diga depois que não a avisei, Duda Hill.

Rio, passando perto dele para sair do salão.

— Não tenho medo de suas ameaças, Theodoros Karamanlis. — Aproximo-me para falar bem perto do seu ouvido: — Cão que ladra não morde!

Ele segura meu braço e abre um sorriso – puta merda! – cheio de malícia.

— Eu morderei, Maria Eduarda, e o farei tão gostoso que você pedirá mais!

Olho para sua mão em meu braço, e ele me solta. Respiro fundo para controlar o formigamento em meu corpo e a tremedeira em minhas pernas e saio do restaurante o mais rápido possível.

— Deseja que traga seu carro, senhorita? — o manobrista me aborda na porta do restaurante.

— Po-por favor! — Merda! Respiro fundo mais uma vez. — Sim, obrigada.

Não é possível que esse homem ainda continue mexendo com minha libido desse jeito! Durante todo o tempo em que estávamos lá medindo forças, essa tensão sexual nunca deixou de pairar entre nós. Acho até que o Millos percebeu isso!

Droga! É o Theodoros Karamanlis, Duda! Inimigo, o diabo em pessoa, que quer fazer de tudo para destruir tudo o que você tem, tudo pelo qual você lutou para manter depois que seu pai se foi!

Claro que seria muito fácil aceitar uma oferta melhor, pagar as dívidas e abrir um “bistrô”, como ele mesmo aconselhou, mas só eu sei o quanto meus pais amavam aquele pedacinho no meio da Vila Madalena, o quanto se orgulhavam de tê-lo comprado juntos, com muita luta e esforço.

Não vou deixar que um homem arrogante ponha tudo ao chão e destrua todas as lembranças que tenho daquele lugar. Não só do Hill, mas da casa onde mamãe e papai passaram seus últimos momentos antes de me deixarem. Não! De jeito algum eu irei permitir isso! Se precisar vender, o farei para alguém que se comprometa a manter o imóvel, e não para uma empresa que quer demolir tudo para erguer ali algum prédio ou shopping!

Entro no carro e dirijo para casa, ainda sentindo o toque dele reverberando pelo meu corpo, sua voz arrepiando os pelos da minha nuca e seu olhar... Há algo naquele olhar que me desperta lembranças, talvez pela tonalidade – a mesma do mediterrâneo –, ou o jeito de me olhar como se estivesse realmente faminto.

Chego a casa e encontro tia Do Carmo jantando sozinha na sala e assistindo à novela.

— Ué, não ia jantar fora? — questiona quando ataco suas panelas.

— Ia, mas o lugar estava tóxico demais para meu estômago. — Ela franze a testa, sem entender, e eu rio. — A companhia era desagradável.

— Ah, sim.

— Cadê a Tessa? — pergunto enquanto me sirvo de deliciosas costelinhas de porco e angu, sentindo meu estômago roncar e minha boca salivar. Adoro a comida dela!

— Chegou da escola, fez dever, tomou banho, jantou e dormiu. — Rio do relatório completo. — Aquela menina é um anjo!

— Sim, ela é! — concordo, cheia de orgulho.

— Descobriu, pelo menos, o que aquele pessoal da Karamanlis queria?

Sento-me ao seu lado no sofá com o prato na mão.

— Aumentaram a proposta! — Dou de ombros. — E acabei conhecendo o CEO, Theodoros Karamanlis.

— Hum, já vi fotos dele naquela revista que assino. — Rolo os olhos, pois sempre achei um desperdício de dinheiro comprar uma revista que fica cobrindo a vida de artistas e da alta sociedade paulistana. — O homem é um pedaço de mau caminho.

Acompanho-a em suas risadinhas, achando uma graça que minha tia, solteirona e virgem, fale isso de um homem. Eu nunca soube o motivo pelo qual ela nunca quis se casar, nem mesmo namorar. Perguntei a ela se algum dia teve pretensão de ser religiosa, mas negou, dizendo que não tinha o dom.

Tia Do Carmo é uma caixinha de segredos bem guardados, essa é a verdade. Do mesmo jeito que ela adora acompanhar a vida alheia nas revistas e nos programas de fofocas, não abre a boca para falar da sua, nem mesmo para mim.

Ela é como uma mãe para mim e cuida de Tessa com tanto amor e dedicação que eu não poderia pensar em uma avó melhor para minha menina, mas não quer saber de arrumar alguém, nem mesmo para se distrair um pouco.

Há uns dois anos veio trabalhar conosco um senhor muito bem-apessoado, Joaquim, que ficava na recepção. O homem arrastou um bonde pela minha tia – que é uma linda senhora de 55 anos –, mas ela nem ao menos lhe deu um segundo olhar.

Enfim, eu aprendi a aceitar que ela é feliz assim, mesmo porque não estou indo para um caminho diferente, pois mal tenho tempo para namorar alguém. Além do meu namorado francês, tive mais uns dois já aqui no Brasil. Claro que já tive algumas transas avulsas, sem nenhum compromisso, mas já faz tanto tempo que nem isso acontece que, se hímen se regenerasse, o meu certamente já estaria completo de novo.

— Ele é bonito, sim, mas muito arrogante! — informo, tentando não demonstrar o quanto fiquei interessada no Theo. — De qualquer forma, recusei mais uma vez a proposta.

— Você tem certeza disso, minha filha? O sumiço do agiota tem tirado meu sono. Você sabe como essas pessoas são, por mais que sejam conhecidos. Além do mais, te vejo trabalhar como louca e entregar o dinheiro todo para custear essas dívidas. — Ela aponta para a casa, cheia dos mesmos móveis da época do casamento dos meus pais. — Duda, a gente mal tem se aguentado em pé!

— Não nos falta nada, tia!

— Não, Duda, não estou me queixando. Realmente não nos falta nada, temos comida, um teto, e Tessa pode estudar em uma boa escola, mas vale a pena se sacrificar do jeito que está fazendo? Você não tem tempo nem para namorar!

Gargalho.

— Essa é uma das minhas menores preocupações, tia.

— Eu sei, filha, e é isso que me preocupa. — Passa a mão no meu rosto, e fecho os olhos, gostando do carinho. — Há muitos anos você só cuida das pessoas, Duda. Assume responsabilidades demais e esquece de cuidar de si mesma.

— Estou bem! — afirmo, mas meu coração entende e concorda com ela. — Assim que terminar de pagar tudo o que devemos, vou poder cuidar de mim também, não se preocupe.

Ela suspira, resignada, pois me conhece bem e sabe que sou muito teimosa. Decidi lutar até o fim para manter a única coisa que me resta e não vou descansar até conseguir estar em paz com isso, mesmo que um certo CEO muito gostoso me encha de ameaças.

Inclusive uma que pareceu mais uma promessa...


Maria Eduarda passa por mim deixando para trás o rastro delicioso do seu perfume, agitando meu corpo. Tenho vontade de segurá-la por mais tempo, de sair com ela para algum lugar onde possamos dar vazão à atração que sentimos um pelo outro desde que nos encontramos no bar do restaurante.

Todavia, não dá para simplesmente ignorar quem somos!

Fico um tempo de pé, mesmo depois de ela já ter saído do restaurante, raciocinando quais seriam as consequências se Millos simplesmente não tivesse aparecido. Olho para meu primo, tranquilo, tomando sua cerveja e provavelmente a enchendo de defeitos.

— Isso foi a pior merda que você já aprontou! — digo, atraindo a sua atenção. — E olha que você tem um longo currículo de merdas!

— Vá se foder, Theo! — Fica sério. — Eu só estava tentando um acordo entre nós.

Rio, seco, não achando nenhuma graça e não comprando nem um pouco essa conversa mole de “acordo”. Millos nunca dá ponto sem nó e me conhece bem para saber que Duda seria extremamente atraente para mim. O desgraçado fez de caso pensado, só nunca irá admitir.

Pego o celular, que deixei em cima da mesa, e, sem nenhuma palavra ou mesmo um olhar, afasto-me de Millos, indo em direção à saída do restaurante.

Ouço-o me chamar, mas não me segue, e ando decidido até a calçada, encontro o manobrista e peço meu carro. Não tenho mais clima para jantar, muito menos para olhar aquela cara debochada. Bufo, frustrado demais, com fome e com o desejo sexual insatisfeito.

Porra!

Já no carro, não dirijo diretamente para casa, mas a esmo, pensando na loucura que foi o começo da noite. O conhecimento de quem era a mulher ao meu lado deveria ter sido suficiente para aplacar minha vontade de devorá-la toda, mas nem mesmo a diminuiu.

É uma das raras atrações fortes que já me aconteceram. Geralmente não é assim, é mais um jogo de disponibilidade e vontade, uma mulher gostosa e interessante e pronto! Raramente sou atraído a alguma como aconteceu com Maria Eduarda hoje. Eu olhei para ela e a quis.

É primitivo demais até para mim, mas aconteceu. Quem ela era, o que fazia ou mesmo sua disponibilidade – embora, se fosse casada, não rolaria – não importaram para mim naquele momento. Depois, a conversa, o sorriso, o jeito como o corpo dela reagiu ao meu, tudo isso só potencializou o que foi sentido ao primeiro olhar.

Duda Hill!

Paro o carro em frente ao boteco antigo na Vila Madalena, olhando sua fachada recentemente reformada, o sobrenome da família dela na entrada e algo que nunca me chamou atenção antes, um segundo andar com janelas grandes de vidro, seguindo a mesma arquitetura do bar, tijolos à mostra e cimento queimado.

Franzo o cenho ao me lembrar do dia em que estive no local, pois não vi nenhum mezanino ou mesmo escada de acesso. Há uma porta ao lado da fachada principal, pintada com outra cor, mas que não pertence ao prédio vizinho, já de propriedade da Karamanlis.

Ela mora em cima do bar? Novamente olho para o alto e, no exato momento, uma luz se acende em um dos cômodos, iluminando a janela com cortinas claras. Um apartamento!

Como eu nunca soube disso? Para mim, o imóvel era puramente comercial, como todos os outros do entorno, nunca sequer desconfiei que a irritante mulher pudesse morar no local.

Uma sombra passa pela janela, e meu pau pulsa na calça só pela possibilidade de ser Maria Eduarda se preparando para dormir. Fecho os olhos, aproveitando a total falta de movimentação na rua – ao que parece ninguém funciona às segundas-feiras – e imagino como ela seria apenas vestindo uma calcinha ou até uma camisola sexy.

Toco-me sobre a calça, sentindo como já estou em completa ereção, então abro os olhos e xingo, voltando a pôr o carro em movimento e saindo daqui o mais rápido possível. Eu pareço um maldito stalker tarado, parado em frente ao que suponho ser o apartamento dela e fantasiando.

Caralho!

 

 

Termino de assinar o último documento e o entrego para Rômulo, que sai apressado a fim de entregá-lo para o jurídico. Temos um maldito setor de correspondência e vários boys para esse trabalho, mas meu assistente é tão controlador com suas responsabilidades que ele mesmo gosta de entregar os documentos e de pegar a assinatura de quem os recebeu no caderno de protocolo antes de os colocar no sistema.

Eu sei que é motivo de piadinha aqui seu jeito burocrático, mas é exatamente por isso que confio nele para lidar com minhas coisas na empresa. Rômulo é responsável, organizado e sua “burocracia” nada mais é do que uma forma de nos garantir, proteger nosso trabalho e a companhia.

Gemo, colocando a mão na têmpora, amaldiçoando-me por ter consumido uma garrafa inteira de uísque ontem, depois que cheguei a casa, frustrado demais sexualmente e puto comigo mesmo por estar me sentindo assim pela Duda Hill.

Troquei mensagens com Millos, ameaçando sua integridade física por conta da palhaçada de ontem. Claro que ele fingiu não ter feito de propósito, mas se esqueceu de que o conheço bem. Eu só não sei o que ele pretende ainda. Contudo, não há dúvidas de que está tramando algo.

Uma notificação de mensagem chega ao meu celular. Pego-o, lendo a mensagem deixada pela Viviane acerca de um concerto musical e uma exposição de gravuras que irá acontecer esta semana. Dispenso, sem nenhuma vontade de comparecer, mas ela insiste.

 

 

 

Sim, ela tem razão!

Preciso estar focado no que realmente é importante para mim nesse momento. Uma atração como aconteceu entre mim e Maria Eduarda ontem é garantia de uma foda inesquecível, mas só isso, não resolve meu problema, e o tempo está se encurtando cada vez mais. Preciso de uma esposa e de um filho!

 

 

 

Envio a mensagem para ela e me recosto na cadeira, olhos fechados e dedos nas têmporas, querendo a porra de um analgésico para poder trabalhar sem que pareça que está ocorrendo alguma demolição na minha cabeça. Não devia ter bebido tanto sem ter comido nada!

Cheguei a casa já arrancando a roupa e entrando no banho. Demorei por lá, esperando que os jatos fortes de água fria abaixassem a temperatura do meu corpo e trouxessem minha racionalidade de volta. Não costumo me impressionar tanto assim por uma mulher; poucas foram as que mexeram comigo dessa forma.

Olhei para baixo, e lá estava a evidência de que nem mesmo a água iria resolver o problema. Encostei a testa na parede fria e toquei meu pau, gemendo com a sensação, pronto para gozar apenas com os estímulos da noite.

Eu gosto muito de trepar, adoro ser masturbado por mãos femininas – às vezes, pés também –, mas nunca fui um punheteiro. Nunca! O prazer de me tocar nunca se comparou ao de ser tocado, por isso, quase não me masturbo. Porém, ontem, não teve jeito! O cheiro do perfume dela estava impregnado em minhas narinas, a sensação de sua pele se arrepiando sob meu toque, o sorriso, os olhares... Em poucos minutos gozei como um louco, sujando a parede do boxe, gemendo dolorosamente de vontade de senti-la.

Pela primeira vez em muito tempo, os cabelos cor-de-rosa não apareceram durante meu gozo, e amaldiçoei essa percepção. A verdade é que troquei o objeto da minha fantasia. No entanto, diferentemente da garota de anos atrás, agora eu tenho um rosto, um nome e sei onde mora.

— Estou fodido! — falo em voz alta, achando que estou sozinho no escritório.

— Vou pegar um comprimido, chefe! — a voz de Rômulo faz com que eu me aprume, arregalando os olhos em sua direção.

— Mas que porra, Rômulo! Como você consegue ser tão silencioso às vezes? — digo emputecido por estar fantasiando com a mulher de novo em pleno horário de trabalho e sob as vistas do meu assistente.

— Eu percebi que o doutor está com dores de cabeça. — Ele vasculha sua bolsa. — E... Ah! Achei! — Sorri como se tivesse inventado a fórmula da água. — Paracetamol!

Ele vai até o aparador onde ficam as bebidas a fim de pegar um copo d´água para eu tomar com o comprimido, porém, peço que me traga café.

— Tem certeza? — titubeia.

— Vai acelerar a absorção e fará efeito mais rápido.

— Chefe, isso é perigoso!

— Anda logo, porra, tem uma britadeira no meu cérebro!

Ele fica nervoso, suas mãos tremem, fazendo o café respingar sobre o móvel, e eu bufo de impaciência. Rômulo é prestativo, um ótimo funcionário, mas me questiona muito, além de ser um tanto desastrado.

Mal engulo o comprimido, e o traidor, quer dizer, Millos entra no escritório.

— Tive uma ideia e vim dividi-la com você. — Olha a xícara na minha mão. — Cheguei em boa hora! Eu gostaria de um café também! — pede ao Rômulo, e eu fecho a cara.

— Esse não é o trabalho dele — corto-o. — Rômulo, vá até o jurídico e veja se Kostas já conseguiu adiantar a papelada que faltava.

— Sim, doutor! — O assistente sai correndo da sala.

— Quer a porra do café? Pegue você mesmo! Não dê ordens ao meu assistente!

Millos levanta as mãos pedindo calma e vai até a máquina, escolhendo um sabor e um tipo de preparação antes de voltar para próximo de mim.

A dor de cabeça aumentou um pouco, mas espero que, com o remédio do Santo Rômulo, eu melhore em breve. Além disso, não quero dar bandeira de que enchi a cara na noite passada e suportar as provocações de Millos.

— Qual foi a magnífica ideia que o fez levantar a bunda de sua cadeira e vir até aqui encher meu saco?

Millos ri.

— Estamos de bom humor hoje, hein? — Pega o café e se senta. — Você quer tirar a Duda Hill do imóvel, não é? — Franzo o cenho para ele, achando desnecessário responder, esperando que tenha sido uma pergunta retórica, para o bem de sua inteligência. — Já reparou que o único pub daquela quadra é o dela?

— Você comeu merda no café da manhã? — pergunto, e ele ri. — Claro que ele é o único, os outros imóveis já estão todos vazios porque compramos todos!

— Do outro lado da rua têm duas casas de show, uma boate de strip de luxo, dois restaurantes de comida japonesa e uma pizzaria famosa. — Ele cruza os braços. — Esse foi um dos motivos de o pub ter ficado tão movimentado, a diversidade de empreendimentos próximos. É uma área à qual os jovens vão para se divertir, e ela conseguiu agregar boa comida e boa música em um só local.

Faz sentido, claro. Ela aproveitou o movimento já existente e ofereceu um diferencial, um lugar para dançar, curtir com os amigos, arranjar companhia e ainda comer seus bolinhos famosos e premiados. Sorrio de leve, sentindo-me levemente excitado por ela ter tanto tino. Gosto de mulheres inteligentes!

— Você a isolou no momento em que comprou todos os imóveis e mandou os estabelecimentos fecharem. Ela é a única opção da área...

Ele se interrompe ao ouvir uma batida à porta.

— Pode entrar — autorizo, sabendo que não é o Rômulo.

Kostas aparece, seu tamanho e largura preenchendo a entrada da sala, o olhar azul e arrogante, o sorriso debochado e os cabelos negros penteados para trás com uma espécie de pomada de brilho molhado. Meu irmão é a cópia do nosso pai, e isso chega a me causar arrepios.

— Bom dia! — cumprimenta Millos e se senta ao seu lado. — Theodoros, tenho uma notícia boa e uma ruim, qual quer primeiro? — Dá risadas debochadas, e Millos o segue.

Isso é sério? Levanto uma sobrancelha, olhando-o carrancudo.

— Fala logo, Kostas! — ordeno.

— Bem, já que você não tem nenhum senso de humor. — Pisca para Millos. — Nós já sabíamos disso, mas não custava tentar! — Meu primo assente, e eu bufo de raiva. — Vou começar pela boa. Já ingressamos com o pedido de execução da nota promissória.

— Já não era sem tempo! Preciso comemorar por você ter conseguido fazer seu trabalho?

O desgraçado ri.

— A ruim, no entanto, também é sobre isso. — Ele me estende umas folhas. — Duda Hill deu entrada no inventário judicial após a morte do pai.

Leio os papéis, mas pouco entendo de legislações e procedimentos legais, então espero que ele pare de fazer cu doce e prossiga com suas explicações.

— Que merda! — Millos exclama, e isso é o suficiente para me deixar tenso.

— O que isso significa, porra?

Kostas se levanta, anda até o aparador e se serve de água.

— Você poderia ter bourbon aqui — comenta como se estivesse aqui para uma visita social. Xingo-o. — O processo não cumpriu nem metade de seu caminho natural, caro irmão. Já está aberto há quase quatro anos e pouco avançou, e isso porque tem apenas um imóvel a ser herdado por uma única herdeira. — Ele ri. — Adivinha qual?

O Hill! Merda!

— O que isso significa em nossos planos de adquirir aquela pocilga? — Irrito-me.

— Bem, assim que for declarado o débito por causa da confissão de dívida – a promissória –, nós vamos ser credores do espólio. — Bufo pelo uso dos termos técnicos desnecessários.

É Millos quem vem ao meu resgate.

— O homem está morto, Theo, não temos como cobrar dele, apenas dos bens que ele deixou, entendeu? Isso obriga a Duda a vender ou entregar o Hill em troca da dívida. — Sorrio, achando a notícia ótima. — Mas somente quando o inventário fechar, o que pode levar anos ainda.

— O quê?! — Levanto-me, esquecendo por completo a dor de cabeça.

— É isso, caro irmão! — Kostas dá de ombros. — Seja bem-vindo à realidade da justiça brasileira, em que inventários simples duram, em média, de oito a dez anos!

— Não há outra forma de recebermos?

— Não. — Kostas ri, satisfeito. — A dívida está no nome do pai dela, então só alcança bens deixados por ele.

— A vantagem é que ela não pode vender para outro também, não é? — Millos questiona.

— Teoricamente, não, mas se o comprador não se importar em não ter a escritura, ela consegue vender, sim. Tem muita gente que faz isso. Não é legal, mas faz.

— Puta que pariu! — explodo, virando-me em direção à vidraça.

— O jeito é tentar comprar, Theo, e alegar que somos credores e que, por isso mesmo, ela só pode vender para nós — Millos fala, e Kostas concorda.

— Ela não vai vender, disse ontem!

Sou um homem muito teimoso, sempre fui, e reconheço um igual de longe! Quando Duda Hill disse ontem que não ia vender para a Karamanlis, vi a teimosia brilhando em seus olhos.

— Além do mais, pelo que soube, os negócios vão bem — Kostas complementa, deixando-me ainda mais raivoso. — Ela não precisa vender.

Olho para Millos, e ele arregala os olhos ao ver a determinação nos meus.

— Fale de sua ideia!


O despertador me acorda pela segunda vez no dia. Tenho vontade de esconder a cabeça debaixo do travesseiro e fingir que não estou ouvindo, deixar que entre em modo “soneca” e que, com isso, eu ganhe mais alguns minutos na cama.

Suspiro, abro os olhos lentamente e pego o maldito telefone para cancelar o despertador. Ganhar minutos na cama significa perder minutos do dia, e isso definitivamente é uma coisa à qual não posso me dar ao luxo. Tenho que trabalhar, organizar minha cozinha e ser a primeira a estar nela quando os demais chegarem.

Espalho-me na antiga cama de casal dos meus pais, abrindo os braços em forma de cruz e esticando todo o meu corpo. Carreguei tanto peso hoje que, nessas horas, sinto falta de não ter um homem fortão trabalhando comigo nesse negócio pesado que é transportar as compras. Tento relaxar meus músculos, fecho os olhos e deixo a mente vagar por um segundo.

Em meio aos pensamentos de paz, natureza e tranquilidade, lindos olhos azuis aparecem, sedutores, emoldurados por cílios longos e escuros que fizeram sombra em seu rosto quando ele olhou minha pele se arrepiando ao seu contato. No mesmo momento sinto um gelo na barriga – desses que sentimos quando descemos uma ladeira inesperadamente de carro –, e um tremor perpassa pelo meu corpo, desde as pontas dos dedos até a raiz dos cabelos.

Emito um grunhido de irritação por, mais uma vez, Theodoros Karamanlis se infiltrar nos momentos em que busco relaxamento e pensamentos positivos para enfrentar o dia. Tem sido assim desde aquele maldito jantar, há quase uma semana!

Sento-me, notando o quanto estou suada, pois há alguns meses meu ar-condicionado do quarto teve uma pane elétrica, e não tive nem tempo, nem dinheiro para chamar a assistência técnica. O verão chegou com tudo este ano, e as temperaturas estão ameaçando bater recordes desde o final da primavera. Vou precisar arrumar o ar ou então ir dormir no quarto da tia Do Carmo.

Confiro as horas, meio-dia e alguns minutos, e sigo rápido para tomar a terceira chuveirada do dia!

O expediente no Hill durou até às 2h35 da manhã, quando gentilmente convidamos nosso último cliente a sair. Passei a encerrar mais cedo em dias de semana, pois sábado e domingo vamos até às 4h da manhã. Fechei a cozinha para pedidos exatamente à 1h para que desse tempo de todos os quitutes ficarem prontos e nossos clientes irem embora até às 2h30. Entretanto, sempre fica um agarrado a uma cerveja num canto, sempre!

A música ao vivo, de terça a domingo – menos quando temos campeonatos de futebol, pois aí na quarta-feira transmitimos os jogos – anima o pessoal e por isso mesmo precisa ser encerrada uma hora depois do fechamento da cozinha. Há toda uma preparação para que os clientes entendam que a hora de “dar tchau” chegou.

Hoje, sábado, é o dia mais desgastante para mim, pois a cozinha irá funcionar a todo vapor até às 3h30 da manhã, aceitando pedidos até uma hora antes disso, e o bar só será fechado às 4h. E adivinhem quem fecha o bar? Exatamente, eu!

Ou seja, terei 14 horas de trabalho incessante pela frente, a partir das 2h da tarde, sendo que noite passada não aguentei ficar acordada para ir até o CEAGESP, dormi às 3h e acordei às 4h, correndo para poder pegar um pouco do pescado bom, pois a venda para o atacado começa na madrugada e vai até às 6h da manhã. Descarreguei tudo no restaurante e voltei para a cama às 9h, por isso, sim, estou acordando ao meio-dia!

Saio do banho e já coloco a calça preta – uniforme do Hill –, uma camiseta branca por causa do calor e calço chinelos. Separo o uniforme, que minha tia já deixa passado, a dolma, o avental e meus turbantes. Deixarei os cabelos secarem para depois fazer um coque alto, bem firme, para que nenhum fio possa se desprender.

— Boa tarde! — tia Do Carmo me cumprimenta assim que apareço na sala. — Vai almoçar agora?

— Vou. — Suspiro, sentando-me. — E a Tessa?

— Acabou de ir para o inglês com a Marcela e a Diana. — Assinto, lamentando não ter me encontrado com ela aqui, mesmo que depois dê uma xeretada na minha cozinha.

Mal tenho tempo para ela! Sinto-me mal por isso, tento compensar, mas queria ser mais presente e sei que Tessa sente essa necessidade tanto quanto eu. Porém, minha menina já é tão madura que entende que essa rotina louca na qual vivo não é por minha escolha.

Tia Do Carmo me serve de sua comida simples, bem temperada e absurdamente viciante, e eu não penso em mais nada a não ser apreciar a iguaria. Ao longe, enquanto como, ouço o barulho da máquina de costuras dela, em seu quarto, trabalhando sem parar. Ela é teimosa e está sempre aceitando encomendas de reparos ou confecção de roupas, principalmente para o pessoal da igreja que frequenta.

Somos farinha do mesmo saco, teimosas ao extremo, e ela me culpa por eu recriminá-la por querer ajudar. Não é só por teimosia ou orgulho que peço tanto a ela para que se poupe, pois se aposentou há alguns anos por invalidez exatamente por passar horas e horas costurando desde menina e com isso ter ganhado algumas hérnias de disco ao longo de sua coluna.

A verdade é que, se não fosse pelas dívidas, eu poderia dar uma vida bem melhor a elas. O Hill vai muito bem, cada vez mais conhecido, atraindo clientes para essa área que nem é tão famosa por ter bares. Contudo, o boca a boca tem se espalhado pela cidade e trazido com ele nossos clientes.

Termino de comer, lavo a louça e termino de me arrumar para descer e só voltar no meio da madrugada. Faço uma oração curta antes de descer e grito para tia Do Carmo:

— Tia, estou no Hill se precisar de algo!

— Vai com Deus, minha filha! — grita de volta, cessando a costura. — Tente descansar em alguns momentos!

Apenas rio, porque a cozinha é uma correria aos finais de semana, e é impossível me sentar por uns minutos sem que alguma coisa desande, já que atendemos em média 400 clientes por sábado e uns 350 no domingo. O volume de comida que processamos é tão grande que fazemos compras nas madrugadas de terça, quinta e sábado.

Poderia até ir ao CEAGESP menos vezes, mas prefiro trabalhar com os ingredientes o mais frescos possível e, graças à câmara fria que instalamos, já me dei ao luxo de parar de ir todas as madrugadas. Vou sempre às terças e sábados e deixo Manola se virar na quinta-feira. A mulher adora ir para lá e demora o dobro do tempo que eu levo, sempre conversando com os comerciantes, pechinchando horrores e fazendo amizades. Como ela é sozinha, está sempre com o caderninho de telefone preenchido para quando quer companhia, e como trabalha como louca aqui, seu lugar de fazer contatos é lá na central de abastecimento.

Confesso que me divirto muito com suas histórias, assim como todo o resto de nós da cozinha.

Abro a entrada principal do bar, pois, infelizmente, quando papai montou o local, não pensou em saída de emergência, mesmo porque na sua época era todo aberto, então, quando transformei o boteco em um pub, tivemos que sacrificar a porta usada para carga e descarga e transformá-la para que estivéssemos em dia com a legislação dos bombeiros e da própria prefeitura.

Sempre que entro, já deixo a porta de aço aberta e tranco somente a de vidro, deixando um pouco de sol entrar através das paredes de vidro temperado.

Sigo diretamente para a cozinha, mas anotando mentalmente tudo o que precisará ser limpo com mais afinco, resultado da noite anterior. No bar, sempre tenho a satisfação de passar e ver o asseio do Kiko, seus utensílios todos nos lugares, limpos e secos, as chopeiras sem nenhum traço de respingo de chope, o chão brilhando.

Abro a cozinha, e o cheiro dos produtos de limpeza que usamos há algumas horas, assim que encerramos as atividades, recepciona-me. Faço meu coque, como sempre, ponho o turbante, lavo as mãos e começo a trabalhar, colocando alguns alimentos de molho, descongelando outros e conferindo as receitas, bem como o funcionamento de todos os equipamentos.

Ouço o barulho da porta, e uma risada preenche o lugar, indicando que Manola chegou junto ao seu fiel escudeiro, Arnaldo.

— Boa tarde, chef! — ela me cumprimenta, indo para o banheiro dos funcionários. — Hoje o Naldo está impossível!

— Você é que não aguenta ouvir umas verdades, Manola. — Arnaldo vem até onde estou e me dá um beijo na testa. — Carinha de cansada hoje, boneca!

— Dia de compras... — Aponto para a caixa de camarão no gelo que tirei da câmara para ele limpar. — Divirta-se!

— Ai, minha santa protetora dos dedos furados! — geme.

— Use luvas! — Manola grita, vindo do banheiro trajando o uniforme, seus cabelos ruivos presos em uma trança e seu turbante cheio de beijos já na cabeça. — No dia em que você perder um dedo, ainda processa a Duda!

— Deus me livre, Manola! — Bato na bancada de inox, e ela ri.

— É na madeira, querida! — Joga um beijo para mim e as luvas de fio de aço para o Arnaldo. — Não vai te proteger contra o camarão, mas quando for limpar as carnes, faça o favor de usá-las!

— Oui, chef! — ele debocha.

— Abusado! — diz, pegando as panelas guardadas e já as colocando no fogão. — Vou adiantar os molhos enquanto a Ana não chega. Ela ia levar o filho ao dentista hoje.

— Eu sei — concordo ainda lavando as folhas e temperos. — Cláudia também vem mais tarde hoje, mas adiantou muito suas sobremesas ontem. Trabalhou dobrado!

— Estou louca por aquela torta de duas mousses que fez! — Geme e estala a língua. — Adoro maracujá com chocolate, e a danada não me deixou pegar nem uma provinha!

— Diabetes te diz algo? — Arnaldo alfineta.

— Tenho pré, idiota! — Ressalta: —Pré-diabetes!

Rolo os olhos, já antevendo uma discussão sobre a quantidade de açúcar que ela não deve ingerir.

Minhas tardes são sempre assim, entre o trabalho na preparação para a noite e as conversas, discussões ou músicas dos meus colegas de trabalho. É bom, faz o tempo passar depressa e não deixa o serviço tedioso.

— Terminou aquela receita nova que estava escrevendo? — Arnaldo me pergunta um tempo depois.

— Ainda faltam uns ajustes, mas estou sem tempo para testar. — Dou de ombros. — Final de ano, né?

— Por falar nisso... — Manola se aproxima. — Como andam as encomendas? O pessoal gostou do menu deste ano?

— A Hana me entregou ontem uma pequena lista de encomendas. Ao que parece, o menu foi bem aceito, sim.

Manola bate palmas, e eu sorrio aliviada.

Todo ano abrimos o Hill e servimos pequenas ceias para o pessoal que não quer ter trabalho, mas percebemos que seria mais interessante, para nós e para nossos clientes, se houvesse um menu prévio e as encomendas entregues em casa.

Como começamos o delivery este ano, programei um menu com três tipos de proteínas – peru, bacalhau e presunto – e vários tipos de acompanhamento. As variações vão desde a mais simples e barata até as sofisticadas, dignas de um chef de cuisine, mais caras.

Por incrível que possa parecer, o menu luxo tem vendido mais do que o comum, e isso, além de me dar muito orgulho de ver minhas receitas tão bem aceitas, ainda me concede maior lucro.

Por conta desse menu especial, não abriremos o Hill para o público na véspera do Natal, daqui a alguns dias, e nem no dia, retomando as atividades somente no dia 26 de dezembro. Teremos que trabalhar muito para atender aos pedidos, mas tenho certeza de que daremos conta e que em pouco tempo encomendar a ceia no Hill será uma tradição.

É preciso manter a fé depois de tudo o que já passei na minha vida; sem ela, eu esmoreço. Não digo propriamente uma fé religiosa, mas a de desejar boas coisas, pensar positivo, manter a chama da esperança acesa de que tudo vai dar certo.

— Boa tarde! — a voz de Tessa faz meu sorriso se agigantar, e paro o que estou fazendo para ir abraçar minha pequena menina. — Ei, mãe, não!

Ela tenta correr ao ver minhas mãos molhadas, mas, quando a alcanço, explode em gargalhadas e me abraça apertado.

— Estava com saudades! Como foi a aula?

— Legal! — Faz um joia com a mão. — Ei, tia Manola!

— Tia uma ova! — Manola repreende, mas ri. — Sou no máximo sua irmã mais velha, pirralha!

Tessa gargalha de novo e faz gesto de que Manola é maluca, rodando o indicador ao lado da cabeça, e Arnaldo libera sua estridente gargalhada ao concordar com a menina.

— Quer alguma coisa especial daqui hoje? — pergunto, mas sem muita esperança.

— Não, tia Do Carmo disse que vai fazer lasanha à noite, e você não faz lasanha aqui!

— Não faço! — Cutuco suas bochechas com os indicadores bem onde elas formam covinhas quando Tessa sorri. — Cláudia fez uma torta especial. Vou levar para você mais tarde.

— Tem chocolate? — indaga animada.

— Tem, sim, pirralha! — é Manola quem responde. — E se ela tiver direito a um pedaço, eu, como irmã mais velha, também tenho!

Tessa mostra a língua para ela, Arnaldo ri, e eu balanço a cabeça, pois as duas parecem realmente irmãs, brigam e implicam uma com a outra, mas se adoram. Minha pequena se despede, e a acompanho até a entrada do bar, só voltando para a cozinha ao vê-la fechar a porta do acesso ao nosso apartamento.

Deus do Céu, como é bom ver minha menina feliz!

A segurança e a felicidade de Tessa são minhas prioridades, e vê-la crescendo tendo essas duas coisas me dá ânimo para aguentar mais um dia de trabalho e não pensar em coisas ruins. Nem mesmo nos Karamanlis, ainda que um deles tenha mexido comigo de tal forma que volta e meia está nos meus pensamentos – e não pelo motivo pelo qual deveria estar!


— Me and Mrs. Mrs. Jones, Mrs. Jones, Mrs. Jones, Mrs. Jones, we've got a thing going on. — Dedilho o arranjo ao piano, sentindo o peso dessa canção sobre mim e volto a cantar: — We both know that it's wrong, but it's much too strong to let it go now.3

Há anos não toco essa música tão famosa na voz do Billy Paul, mas algo me impulsionou a fazê-lo esta noite. Nada específico, creio eu. Contudo, meu interior está conturbado como há muito tempo não o sinto.

O paletó do terno que vesti hoje está em cima de uma das cadeiras da sala de jantar, a gravata precariamente pendurada sobre a borda do piano, enquanto estou aqui, camisa social semiaberta, mangas arregaçadas, uma garrafa de uísque em cima do instrumento e meu copo já quase vazio. Não parei de tocar desde que cheguei do concerto musical e apresentação de novos artistas de gravuras que ocorreu em uma galeria de artes aqui perto.

A verdade é que, desde quando Viviane me mandou o convite, não tive nenhum interesse em ir, embora fosse algo que geralmente chamaria minha atenção. Tive uma semana fodida demais, e não havia nenhum clima para entretenimentos. Tudo o que eu queria era uma massagem gostosa e uma trepada de alívio.

Termino a música e recosto a cabeça nas teclas do piano, quase não me reconhecendo. Não estou normal! Talvez essa época do ano, próxima demais do Natal, mexa comigo, evoque sentimentos que há muito tempo pensei ter perdido.

Sinto falta da Vanda nesta casa! Olho em volta e bebo o restante da dose de uísque. Tudo está tão vazio, tão silencioso, tão... estéril. Não tenho mais ninguém me esperando quando chego do trabalho, nenhum cheiro de tempero quando entro na cozinha – ou mesmo de café, porque o dela é incrível –, não há conversas amenas.

Não há nada!

Balanço a cabeça, irritado com o rumo dos pensamentos, com a energia negativa deles dentro de mim. Maldita semana!

O desastre começou na segunda-feira com aquele encontro deliciosamente desastroso com Duda Hill; depois aumentou com a notícia que o filho da mãe do Kostas nos deu sobre o imóvel onde funciona o Hill Wings.

A proposta de Millos ressoa em meus ouvidos, e, por mais que eu não ache muito sentido no que me propõe, penso se não é um caminho a seguir. Nunca fui um homem de indecisões. No entanto, entendo que, nesse assunto em particular, não posso me mover por impulso.

Volto a escutar a voz de meu primo como se estivesse aqui e o ouço apresentar todos os motivos para embasar sua ideia.

— Nosso erro foi deixá-la sozinha naquela rua, sem nenhuma concorrência! — argumentou.

— Quando fechamos a compra do último imóvel, aquilo lá ainda era só um pé-sujo com meia dúzia de clientes bêbados — justifiquei em contrapartida. — Não tínhamos com o que nos preocupar!

— Esse foi o erro do coelho naquela fábula — Kostas ironizou. — A arrogância do “já está no papo!”.

— Você falando de arrogância? — Ri, e Millos disfarçou seu riso também. — Não tem se olhado no espelho, não?

Kostas apoiou seu indicador logo abaixo da sobrancelha, ao lado do olho e me deu um meio sorriso e um olhar de desprezo. Ergui minha sobrancelha e balancei a cabeça, enfrentando-o. Se o bostinha achava que iria me intimidar como faz com seus advogados, estava muito enganado!

— Já terminaram de testar a testosterona de ambos? — Millos reclamou. — Minha ideia faz todo sentido! Se alugarmos algumas lojas próximas ao estabelecimento dela, damos a concorrência necessária para que recue um pouco no crescimento que vem tendo!

— Sabe o que não entendo? — Kostas interferiu. — Se ela vem fazendo tanto sucesso quanto vocês gostam de afirmar, por que não quitou a maldita promissória?

— Talvez não tivesse tido o suficiente ainda, pois, como o “agiota” mesmo informou, ela andava pagando os “juros” para que ele continuasse paciente — respondi. — Ademais, ela não poderia pegar um empréstimo para quitar uma dívida como essa.

— A verdade é que o pilantra nunca iria liberá-la da dívida. — Concordei com o ponto apresentado pelo Millos. — Gastamos quase o dobro do que a promissória realmente vale, e ele já tinha recebido anos de juros da Duda. O homem é um espertalhão!

— Então você acha que, colocando mais alguns bares naquela rua, teremos mais chances de quebrá-la? — inquiri. Millos assentiu, mas vi um leve sorriso no rosto de Kostas e, sinceramente, não gostei dele. — Como controlaríamos isso?

— Kostas! — Millos aponta. — Podemos amarrar bem o contrato de aluguel, especificando a atividade que o locador deve exercer.

— Isso é legal? — perguntei.

— Não posso dizer no contrato o que ele deve vender, mas posso amarrá-lo à atividade que já exerce, ou seja, se trocar de ramo, deixa o imóvel. — Olha para o Millos. — O pessoal da corretagem, que por sinal é subordinado ao nosso querido e esperto primo, é quem deve ter em mente quais são os tipos de locadores que devem aceitar.

Concordei, mas ainda não estava completamente convencido.

— Pense na questão. — Millos se pôs de pé. — Tempo é o que não falta, pelo que Kostas disse.

Meu irmão o acompanhou, o sorriso estranho ainda em seu rosto, como se estivesse acontecendo algo que só eu não soubesse.

Dali em diante, tudo pareceu ainda pior! Os dias se arrastaram até esta sexta-feira, vários setores da empresa dando problemas justamente nesta época em que o pessoal já parece estar entrando em ritmo de festas e esquecendo um pouco a nossa tão famosa correria paulistana.

Só soube que Valentina seria minha acompanhante nos eventos artísticos no meio do expediente, quando Viviane me ligou para perguntar se eu tinha o endereço do apartamento da moça.

— Você me disse que ela estaria lá, não que iria comigo! — resmunguei. — Nós mal trocamos algumas palavras naquele vernissage!

— Theo, meu querido, você quer ou não quer uma maldita esposa?! — minha sócia perdeu a paciência.

— Porra, mas não assim! Não precisava agir tão descaradamente como se eu estivesse desesperado, merda!

— Ela é a melhor candidata com que você já esbarrou por aí! É amante das artes como você, vem de uma família tradicional e rica como a sua, é linda, jovem e tem todos os infindáveis requisitos que você listou para a futura senhora Karamanlis! Dê uma chance a ela!

 


                                      CONTINUA