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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


TRÊS AMORES / A. J. Cronin
TRÊS AMORES / A. J. Cronin

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Logo que acabou de se vestir, Lucy dirigiu-se à janela do seu quarto; de Frank, porém, não havia ainda nem sinal. Distraída, deixou-se ficar atrás da cortina de renda, tendo nos olhos a branca extensão da estrada que beirava o estuário e que levava à cidade, distante dali quase dois quilómetros.
Estaria deserta a estrada não fosse a presença do velho Bowie e do seu cão mestiço: aquele, cozinhando o reumatismo dos seus velhos ossos, sentado sobre o muro baixo que cercava seu pequeno estaleiro, e o outro, adormecido com a cabeça entre as patas, estendido no chão quente do sol. Porque o sol estava magnífico nessa tarde de agosto, reluzindo através do braço de mar como meedas que bailassem, tocando Ardfillan com um resplandecente brilho, fazendo dos telhados e das altas chaminés de Port Doran, para além da água, uma cidade cintilante e misteriosa.
Lucy já conhecia tão bem essa paisagem! O brilho da água apertada entre os braços da curva baía, os bosques do promontório de Ardmore ensombrados por uma cerração azulada, as fendas das montanhas do oeste majestosamente escarpadas, avultando contra a pálida cortina do céu. Hoje, porém, transfigurada, enfeitava-se de uma fugaz aparência de beleza que de algum modo a inspirava.
- Outono! suspirou ela,; de pura felicidade.
Seu olhar, resguardando-se da claridade, viajou através da estrada até o estaleiro de Bowie e se deteve na imagem do filho brincando a bordo do Iagle, ajudando - ou estorvando.

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- Dave, enquanto este trabalhava no convés da pequena lancha amarrada à estacada de pedra cinzenta. Provavelmente estorvando, pensou ela, reprimindo severamente todo o seu amor materno.
Voltou-se, esboçando um sorriso, postou-se ante o guarda-roupa de carvalho e, já agora com a seriedade instintiva da mulher defronte do espelho, contemplou a própria imagem.
Não era alta - "um pedacinho de gente", havia-a chamado condescendeiitemente seu irmão Richard - porém, sob o vestido de mousseline, suas formas nítidas desenhavam-se
com uma graça juvenil. Parecia ridiculamente inexperiente e jovem, dando mais a impressão de ter dezesseis anos que vinte e seis, como o dissera uma vez Frank escapando
à sua habitual reserva em um inesperado momento de apreciação. Tinha o rosto pequeno, franco e esperto, tendendo a uma natural vivacidade, mas também inclinado à
impetuosidade; a pele era fresca e, marcada agora pelo quente sol de verão, ostentava delicado viço. Os olhos, largamente espaçados, eram azues: de um azul opaco,
riscado de traços mais escuros, que permaneciam malhados de reluzentes pontos de luz. Olhos singularmente cândidos e reveladores. A boca caracterizava-se por ligeira
curva ascendente. A longa linha do pescoço fundia-se suavemente com a do queixo. Toda a sua expressão respirava franqueza, alguma coisa de constante, vivo e caloroso
em sua sinceridade.
Levou a mão aos cabelos castanho-escuro, mirou-se apenas por um momento; depois, dobrando o vestido de algodão simples que usara durante o dia, guardou-o no fundo
da gaveta do armário e. fazendo uma rápida inspeção para se certificar de que tudo estava em ordem no quarto, notou o brilho do linóleo, o arranjo da colcha da cama,
fez com a cabeça um aceno de satisfação, rodou sobre si mesma e desceu as escadas.
Estava mais atrasada que de costume - sexta-feira era seu dia de limpeza geral - mas o cheiro da casa limpa, sem manchas, um odor mixto de cera de abelhas, sabão
e terebentina, que para as narinas de uma boa dona de casa é como si fosse incenso, elevou-se para justificar seu atraso em vestir-se.
Tinha um justo e discreto orgulho da perfeição imaculada da sua casa, a pequena e isolada habitação - por cortesia chamada vila - tão aprazivelmente situada nos
arredores de Ardfillan. Lucy gostava de seu lar, gostava também de vê-lo brilhar. E agora, no interior da cozinha, voltando-se para a porta aberta para a copa, interrogou:
- Netta! Está tudo pronto?
- Agora mesmo, Missis Moore - foi a resposta resmungada através de uns lábios que seguravam um grampo e que pertenciam a Netta, a criada, que terminava uma tardia
foilette defronte do pequeno espelho quebrado sobre a pia.
- Mister Moore deve estar para chegar, - continuou LUCY pensativa. Ouvi o trem descer. Se eu fosse você, ia cuidar dos ovos. Quatro ovos.
- Está bem, Missis Moore - respondeu a criada, com certa condescendência.
- E cuidado quando ferverem, Netta. Ponha um pouco de vinagre na água para que se tornem firmes. Mas, não vá esquecer...
- Não vou esquecer, Missis Moore.
Os lábios, agora livres, protestaram contra a possibilidade de tal omissão, e nesse mesmo momento, Netta confirmou a declaração com uma enfática entrada pela porta da copa.
Era uma correta rapariga de dezessete anos, disposta, susceptível, reticente e amável, si bem que, através da sua amabilidade, revelasse a obstinação da sua raça.
Conhecendo seu valor por instinto hereditário e o valor da sua robusta estirpe, ela não consentiria, a despeito da sua boa vontade para o trabalho, em tornar-se
servil. Nenhuma coação arrancaria daquela rude e independente boca as palavras "Meu senhor" ou "Minha senhora". Em vez disso, mantinha uma pressuposta equidade para
com seus patrões, dirigindo-se-lhes em termos civis e não servis, tais como "Mister e Missis Moore". Em certas ocasiões, até uma ligeira superioridade transparecia
involuntariamente
nos seus modos, como si, conciente do desarrazoado das doutrinas peculiares aos Moores ela as pesasse desfavoravelmente quanto ao seu próprio valor e correção.
Agora, contudo, sorrindo, acrescentou contrafeita:
- Desde que comecei a usar o penteado para cima, levo mais tempo me vestindo.
Lucy pensou consigo mesma que ela levava mais tempo para se vestir desde que Dave Bowie começara a olhar para ela. E disse alto:
- Pica-lhe bem. E Dave gosta desse penteado?
Netta, em resposta, fez um sinal afirmativo com a cabeça
- e que coquetismo de moça e ternas esperanças não exprimiu esse aceno! - batendo secamente um ovo na borda da frigideira.
- Ele! - exclamou sem acrescentar mais nada. E enrubesceu violentamente, dirigindo-se à garrafa de vinagre.
Lucy, que se tinha deixado ficar ali, de pé, vigiando os movimentos da rapariga, disfarçou um sorriso. Subitamente teve a percepção da própria felicidade, um contentamento
ingénuo mesclado de um sentimento agradável de perfeição, essa sensação de frescura pessoal e de asseio depois de vestir-se,
com a convicção de merecer esse conforto. Aquele momento da chegada de Frank da cidade era sempre agradável e o hábito não o havia modificado: vestida e pronta,
seu trabalho cumprido, a casa limpa, esperava-o e sentia sempre um pequeno alvoroço na calorosa expectativa, encaminhou-se para o estreito vestíbulo, abriu a porta
de frente e pôs-se a passear pelo atalho pedregoso. O pequeno jardim quadrado, com seus tabuleiros de caleeolárias, lobélias e gerânios - uma combinação tida, nesse
ano de Jubileu de Diamante, como sendo a última palavra da arte de horticultura - florescia brilhante sob seus olhos apreciativos. Delicadamente arrancou uma erva
daninha que embaraçava o mais voluptuoso do" gerânios; delicadamente também, a arremessou para longe. Depois, caminhando para o portão, abriu-o.
Agora, havia movimento na estrada; numa rápida sequência de movimentos sonoros, Lucy viu seu filho correndo para ela, enquanto sua sombra alegremente lhe trotava
ao lado.
- Mamãe! foi dizendo imediatamente, com ar de quem trazia boas novas. - Estive trabalhando no Eagle com Dave.
- Não diga! exclamou Lucy, fingindo-se incrédula.
- É verdade, confirmou ele, com todo o entusiasmo próprio dos oito anos, pelo sensacional - e ele me deixou atar um cabo.
- Não é possível! E depois? murmurou ela, pensando nas sardas que ele tinha no nariz, que aliás era (francamente chato, ao passo que as sardas eram simples pontinhas.
Admitiu mentalmente que no mundo existiam outros narizes e outras sardas, mas, para ela, a combinação daquele nariz e daquelas sardas era irresistível.
Um menino bem desenvolvido para a sua idade, pensava; Lucy muitas vezes - "fino" era talvez a palavra - de cabelos castanhos e com os olhos castanho-claro do pai.
Outros meninos? Naturalmente teriam suas qualidades, mas não como Peter!
- Posso ir jogar bolas de gude? perguntou ele ingenuamente.
- Bolas de gude? disse Lucy com real incredulidade. Onde arranjou você bolas de gude?
Peter sorriu mostrando lacunas entre os dentes que cresciam, e aquele sorriso encantou-a; depois baixou as pestanas que eram - pareceu-lhe - muito pretas, realçando
a frescura do fruto das suas faces.
- Foi assim, explicou meditativamente, batendo com a ponta do sapato contra o muro, - eles estavam começando a jogar hoje, então, eu pedi duas bolas emprestadas
a um menino. Aí, joguei com ele, sabe? e ganhei. Então paguei a ele, sabe? Está vendo como foi, mamãe?
- Ai.! está bem! respondeu ela controlando os lábios. Peter cruzou as mãos nas costas, estofou o peito e postou-se melhor para vê-la.
- Foi uma coisa direita, não foi! falou ele olhando de soslaio. É como se faz... pelo menos, como eu fiz. Agora, tenho quinze bolas para dentro do meu jarro. - Ele
havia pedido ultimamente a sua mãe um jarro de tampa de metal, onde, com avaro interesse, acumulava todos os seus pequenos tesouros. - E se você me deixar jogar
ainda, eu posso ganhar mais.
- Veremos, respondeu ela com um ar judicioso, que tirou todo o espinho da recusa. Acho que você, de qualquer modo, primeiro vai tomar chá. Seu pai daqui a pouco
estará
em casa.
- Ah, disse Peter, com ar de quem recebeu uma confidência,- depois refletiu alto: - Será que ele me trará alguma coisa?
- Entre e vá lavar as mãos. - E para justificar sua exigência, acrescentou: - Estão uma vergonha.
- Você sabe, explicou Peter examinando os dedos e as linhas das suas palmas suadas, si você trabalhasse no Eagle! E esse nó na corda, ufa!
Calou-se e, começando subitamente a assoviar, voltou-se e tomou o caminho da casa.
Depois do menino ter entrado, o olhar de Lucy voltou a cair sobre a estrada, na expectativa do aparecimento do marido. Um momento depois, com efeito, este se achava
à vista, caminhando displicentemente em sua direção. Era tão dele aquele porte moroso, que involuntariamente ela fez com a lingua um ligeiro ruido meio de afeição,
meio de impaciência ; e de repente, por associação instintiva, teve o sentimento da feliz combinação do seu casamento.
"Realmente", pensou, afirmando tacitamente a harmonia existente entre os dois. "Foi bom que eu tomasse conta de Frank". E demorando o pensamento na sua felicidade,
no sucesso raro do seu estado presente, voltou atrás, através dos anos. Sorriu a essas recordações. Frank, na lua de mel, contrafeito, descuidado ou ignorante das
atitudes corretas à
mesa. Inteiramente desambientado. "Um rústico!" na expressão de seu irmão Riehard.
Ridículo haver encontrado o marido naquele hotelzinho "The Kyle" e ainda por cima em Ardbeg! Não era muito nobilitante, antes, realmente, muitíssimo vulgar mesmo.
E, contudo, Frank e ela, atraídos pelo próprio contraste das suas qualidades, ligaram-se um ao outro irresistivelmente. Não fora possível fugir a isso. Ambos emocionados,
naquela tarde bela e lânguida, exatamente como esta, quando as agulhas secas dos pinheiros do bosque de Craigmore pareciam quentes às palmas úmidas das suas mãos
e a resina exalava um pesado e violento perfume. Abaixo deles, a curva da baía em torno o zumbir dos insetos, e, dentro dela, a felicidade impetuosa, ardente, suave...
e o jovem Moore bem mais à vontade do que à mesa!
Mas Richard tinha sido severo, antagónico, insistindo em ridicularizar sua união com um mesquinho caixeiro-viajanteApesar de Moore professar - com alguma indiferença
- a mesma religião, Richard não gostava dele. - Um João Ninguém, dizia, - o produto de pais irlandeses expatriados pela fome; camponeses arruinados pela perda de
duas colheitas de batata, quando os nabos eram jogados ao povo faminto e a carroça vazia se enchia dos corpos que jaziam à beira da estrada. Vinham para Escócia
esses irlandeses, gerar sua prolífera raça; uma gente misturada, que abastece a marinha " a lavoura ou, quando mais elevada, produz o boo Tímaker e o estalajadeiro;
uma raça indesejável e grosseira.
Era um parentesco desagradável para Richard, orgulhoso do seu berço escocês e do sangue dos Murray, e que, mais tarde, por um capricho da esposa, havia vinculado
seu pedigree a um ramo dos descendentes de James II.
Fora um acontecimento simples, de desfecho rápido: Richard e ela desavieram-se por isso, como por muitas outras coisas. Como si fosse admitir que alguém controlasse
sua escolha! Frank e ela haviam saído simplesmente para casar, naquele dia, há nove anos.
É is por que se achava aí, esperando no portão, consciente da sua felicidade, sabendo firme e desassombradamente que fizera bem em amá-lo.
Frank se aproximava. Ela acenou com o braço, um aceno discreto, sem dúvida, mas um aceno, em todo caso, uma ação francamente estranha aos costumes da época. Nesse
tempo em que o espírito moderno influenciava ainda levemente os usos e costumes, as esposas normais não
saudavam seus companheiros de matrimónio com tais modos. Acenar com o braço não ficava bem! E Frank também, levantando a mão para responder, confirmou o ato, estabelecendo
a certeza de um comportamento insólito.
- Alo! bradou ela em desafio, sorrindo, muito antes dele tê-la atingido.
- Alo, Lucy!
Era um homem de trinta anos, alto, solidamente construído, não muito bem vestido, de atitudes descuidadas, que o faziam tender a curvar-se. De cabelos castanho-claro,
tez um pouco avermelhada, olhos que possuiam uma especial e límpida cor de avelã, dentes de uma impressionante brancura. Alguma coisa nele - seu ar ocioso, seu porte
negligente, uma indiferença nos. ofhos, mesclada a certa reserva - dava-lhe o cunho de uma curiosa individualidade, como se tivesse avaliado indolentemente o universo
e achado que seria apenas digno de suspeitosa ironia.
?- Você está atrasado, disse ela com vivacidade, notando com satisfação, mais por ele que por si própria, que a melancolia que tantas vezes lhe ensombrava o olhar
estava ausente.
- Pensei que tivesse perdido o trem das 4,30.
- Moore nunca perde nada, respondeu ele alegremente - a não ser suas orações. Confie em F. J. Moore
- Você se esqueceu da minha encomenda? perguntou Lucy, em tom muito significativo, quando já se encaminhavam para casa, lado a lado.
Frank olhou-a de lado, com menos confiança, esfregando a mão vagarosamente pela face.
- Uma lata de sardinhas! respondeu lentamente. Poderei trazer-lhe uma na próxima sexta-feira, para me penitenciar. - Os lábios de Lucy crisparam-se. Tinha desejado
tanto aquela encomenda, e ele a esquecera durante toda a semana. Isso era muito dele: esquecia tudo o aniversário dela, o de Peter e mesmo o próprio. Mais de uma
vez confessara ignorar essa importante data.
- Sardinha não é carne, respondeu ele gravemente. Ela sacudiu a cabeça, rindo contra a vontade.
- É! assim que você está hoje, não é? disse.
E entraram na pequena sala de refeições que ficava entre a sala de visitas e a cozinha, na estreita sequência de peças do rés-do-chão da casa. Não havia complicações
na arquitetura da vila. E ali, quando Peter puxou o cordão da campainha a pedido da mãe, os três se instalaram para o chá,
- E O que é que se fez hoje? perguntou Moore, depois que Netta fez sua ruidosa entrada, como um pé de vento, e retirou-se do mesmo modo intempestivo. - Quantos assassinatos
essa manhã?
- As coisas de sempre, respondeu calmamente Lucy, passando-lhe as torradas. A não ser que - segundo parece
- seu filho está agora entesourando bolas de gude.
Os olhos de Moore pousaram-se por um momento no menino sorridente.
- Grande Shylock, esse! murmurou com a boca cheia de ovos.
- Encontrei Miss Hocking na cidade, esta manhã, contou Lucy.
Ele a olhou por cima da borda da chícara - habitualmente ficava na mesa numa posição curvada - e disse com amável zombaria:
- A "Fragata", querida! e que achou ela para dizer de si mesma?
Compreendendo que ele estava de bom humor, Lucy sacudiu a cabeça alegremente, sem se dignar responder.
- Esquisito! persistiu ele, não posso descobrir o tamanho do seu pé, de modo algum.
- Você está se tornando ridículo, como de costume, Frank.
., Neste momento, a campainha da porta soou discretamente, fazendo Peter exclamar: - Correio! - e a um sinal de cabeça da sua mãe, deslizou da cadeira e correu à
entrada. Voltou com uma carta, exclamando com um-xar de triunfo:
- É para você, mamãe!
Lucy tomou o envelope e examinou-o, exclamando depois placidamente: - Já a esperava.
Um pequeno ar petulante assomou ao rosto de Moore, que, tirando um palito do bolso do casaco, se reclinou na cadeira e ficou observando-a, enquanto lia.
- De Edward, sem dúvida, disse com ironia antes que ela terminasse a leitura, pensando no seu mais regular correspondente. - Que quer saber agora Sua Reverência?
Do estado das nossas almas ou fala do estado do seu fígado?
Mas Lucy não respondeu. Em realidade, não o ouviu, enquanto mexia silenciosamente os lábios, os olhos sérios pregados na carta. Sempre que lia, sua absorção era
completa.
- E então, insistiu ele, será que Miss Regan está com cachumba, ou que ?
Peter, que conhecia a governante do tio Edward e que tinha uma triste experiência da cachumba, teve um pequeno riso escarninho a esta associação de ideias.
Mas a carta não era de Edward.
- É de Anna, disse Lucy afinal, pondo de lado a folha de papel com uma expressão prazenteira. - Ela vem aí. Joe virá trazê-la de Levenford na próxima terça-feira.
- Anna! exclamou Moore, com voz completamente alterada, e deixou cair a carta que havia apanhado para um breve exame, Anna vem aí ? E para que foi que você a convidou
Lucy franziu os sobrolhos por causa do tom em que ele lhe falava - e perante o filho!
- Você se esquece de que ela é sua prima, respondeu, e que é apenas uma questão de simples hospitalidade tê-la aqui por uma semana.
- Hospitalidade e Aborrecimentos e nada mais, é o que você quer dizer. . .
- Meu caro Frank, argumentou ela, com uma lógica irretorquível, teria sido por acaso um aborrecimento Anna e seu pai lhe darem hospitalidade, quando você foi a Belfast?
E por mais de três meses, ainda por cima!
- Foi a negócio que eu lá estive: eis por que tive de ficar com eles, respondeu Frank inquieto. Já lhe disse que não quero ser incomodado aqui por causa de Anna.
- Está bem, serei então a incomodada, tornou Lucy, mantendo sua calma, mesmo em face do seu supremo desar-a razoado. - Lembre-se de que eu nunca a vi antes. Quero
conhecê-la.
- Conhecê-la coisa nenhuma! disse ele aborrecido. Não a quero em minha casa. nem quero aqui ninguém de sua espécie, concluiu, esquecido de que se referia a seus
próprios parentes.
Lucy franziu a testa. Esse desejo, tão antagónico ao seu próprio, de evitar relações, de estar isolado, era um dos aspectos de Frank que sempre a enfadavam. Numa
explosão involuntária de seu temperamento, indignou-se:
- Ora essa! Que mal há em termos Anna aqui? Você está sempre enxotando seus parentes, até mesmo os seus irmãos. Paz restrições a Edward porque é padre, e Joe não
lhe agrada porque é hoteleiro. E agora, Anna!
- O padre e o estalajadeiro! ecoou Frank de mau humor, - uma boa parelha! Que fizeram eles por mim, ou por alguém neste mundo? E lhe digo, de novo, que não quero
Anna aqui.
- Por que não quer que ela venha? - Porque não quero, eis aí!
- Você está certo de que é perfeito e de que se pode dar o luxo de tomar tal atitude?
- Você devia sabê-lo. Casou comigo, não é mesmo? retrucou Frank com enfado.
Lucy mordeu o lábio inferior, que tremia de indignação, conciente de que uma nuvem tomara conta da pequena e clara sala, desde que o carteiro batera à porta para
trazer uma carta de Anna Galton. B só porque a convidara para passar alguns dias com eles! Seria isso algum crime imperdoável?
Anna, nascida e criada em Levenford, tinha ido há dez anos para a Irlanda com seu pai, que, sócio da firma Lennox Galton - a firma em que trabalhava Frank, - se
estabelecera em Belfast para chefiar a parte de exportação dos negócios. Agora, morto o velho Galton, Anna regressara para entrar em entendimento com Lennox a respeito
da herança que lhe cabia, e pensou muito naturalmente em visitar seus parentes, depois de uma tão longa ausência. Já estivera quinze dias com Joe em Levenford; provavelmente
iria a Port Doran visitar Bdward; nada, pois, mais natural do que vir também a Ardfillan. Era um ato de cortesia. Mais que isso, pois quando Frank tinha sido obrigado
a ir a Belfast, cinco anos atrás, para tomar conta da agência, por causa da doença do velho Galton - o primeiro ataque da angina que acabou por matá-lo - tinha sido
admiravelmente bem tratado por sua prima durante mais de três meses. Para Lucy, fora um grande conforto saber que Frank estava em segurança, pois conhecia seu modo
displicente e temia que lhe dessem leitos úmidos e má comida, em hotéis negligentes. Todos os males, enfim, que lhe poderiam advir por separar-se dela. Heis agora
Frank protestando contra essa hospitalidade que ela oferecia em paga daquilo tudo. Esse pensamento lhe provocava indignação e com um esforço, porém, comprimiu os
lábios, sufocando as palavras que trazia prontas na ponta da língua.
 Por um momento, houve silêncio; depois Moore, vagarosamente, ergueu-se com um ar um pouco contrafeito; tirou o indefectivel maço verde de cigarros do bolso, acendeu
um deles. com os pés sobre o tapete de pele de carneiro, o ombro encostado ao mármore da lareira, puxou uma fumaça observando a mulher pelo canto dos olhos.
- Foi uma briga feia essa de hoje! disse por fim, ainda constrangido.
Era em realidade uma desculpa. Lucy sorriu imediatamente, renovando assim a corrente normal de sentimentos entre eles e, tacitamente, evitando o motivo da discórdia,,
declarou:
- Tenho algo a dizer sobre isto a Mister Lennox, um destes. dias. E há de ser muito breve!
- Que quer você dizer? perguntòu ele surpreendido.
- Você verá! -? E fez um pequeno aceno de suficiência que lhe era costumeiro. - vou convidá-lo para jantar na próxima semana.
Sem responder, Frank olhou para a esposa enquanto ela, levantando-se, começava a tirar a mesa; depois seu olhar, insensivelmente, vagueou até a janela e !fixou-se
lá fora. Peter escapara e fora reunir-se a outros meninos que jogavam bola. Moore, preguiçosamente, refletia: Que fazia ele com um filho? Quando criança, também
jogara bola. E agora! É curioso como as crianças vêm chegando... como acontecem! E Anna que vem aí... é uma ideia desagradável. Ele a não queria em seu lar. Mas
que bela tarde! Podia ir lá fora e cortar a grama... Depois pensou que não o faria. Talvez amanhã... Amanhã - era uma grande palavra para Moore. Indolentemente se
instalou no sofá perto da janela; sacou o maço verde; acendeu outro cigarro, soltou a fumaça pelas narinas. Depois, disse:
- Lennox vai levar avante aquela ideia.
Lucy imobilizou-se no seu afã de tirar a mesa, considerando a informação, que já tinha sido por ela intimamente estudada. O fato era que a firma - a mesma de oito
anos passados, tendo agora Lennox como único proprietário - que importava produtos irlandeses, havia resolvido fazer importação, da Holanda, de um novo produto sintético:
a margarina. Palavra odiosa! Substância mais odiosa ainda! Contudo Lucy não hesitou, pensando na imperiosidade desse novo substituto da manteiga. Era bastante que
Lennox se propusesse estender seu pequeno negócio. Ela era favorável àquilo porque acalentava ambições para Frank nesse sentido. Já era tempo dele avançar, e ela
queria estar na origem desse avanço.
Nem sempre Lucy podia definir a posição do marido, talvez porque não gostasse de fazê-lo; era-lhe suficiente dizer que Frank estava "com" Lennox Galton, o que dava
impressão de confiança e de salário razoável. Apesar do seu
leal eufemismo, o lugar, friamente descrito, era meramente o de simples caixeiro-viajante. Isso não era direito, nem justo. Desejava para Frank algo de melhor, alguma
coisa também mais importante do que isso. Queria que "ele vencesse", e já havia mentalmente formulado um projeto. Falara nisso a Frank e via que ele se esquivava
com as palavras: - "Naturalmente que vamos ver o que se pode fazer. Dê-nos um pouco de tempo". Ou então com pretensa ingenuidade: - "vou falar com L. amanhã". -
Mas nunca o fizera, ela tinha a certeza, apesar da sua asserção frequente de que já tinha tomado a medida do pé do velho. Isso era muito dele; quantas vezes ela
se tinha irritado com suas vacilações! Agora, porém, com os contemplativos olhos fixos no marido, disse:
- Talvez seja isso o que nos vai pôr para diante, Frank. Não que eu goste da tal margarina, - ocultava sua ambição sob uma nuvem de sátira, - não hei de tê-la em
minha casa. Não há, nada como a manteiga.
- Em todo caso, é uma ideia boa... e barata. - Frank não pôde articular nenhum outro argumento em favor da margarina. - E Lennox tem ideias largas. Creio que posso
vender isso para ele. - Bocejou. - Gostaria de morrer como nomem rico, si não me enforcarem antes. Pode ser, porém, uma combinação de ambas as coisas. Últimas palavras
do milionário no patíbulo: - "Muito queridos confrades, sou um homem inocente. Nunca fiz nada neste mundo a não ser derramar lágrimas sobre meus escapulários!" Calou-se
olhando para fora da janela em direção à praia, onde Netta, que tinha ido chamar Peter por ser já hora de dormir, cumpria agora o último ato da pantomima noturna,
empurrando vivamente a criança para o portão.
Ao ouvir os passos de ambos, no jardim, Lucy deixou a sala, levando a bandeja sobrecarregada. Moore "deu boanoite ao filho que veiu ter com ele apresentando-me uma
face efervescente sob a transpiração; depois ficou esperando. Era-lhe fácil esperar. De algum modo isto sintetizava seu carater. Parecia sempre estar esperando alguma
coisa, um pouco nervoso, um pouco sombrio, como si prevísse que um desastre cairia sobre ele, algum dia. Era um estranho animal, si bem que tivesse também suas habilidades.
Podia, por exemplo, descascar toda uma maçã em uma só fatia intacta de casca finíssima; imitava com perfeição uma ave canora, assoviando; podia descobrir moluscos
na praia de Ardmore e frigi-los de modo a tentar um anacoreta. Era sem rival no manejo do palito, cuja ponta às vezes lhe
assomava meditativamente dos lábios. Possuía um curioso humorísmo. Quando alguém comentava - o que era muito frequente - a excepcional beleza dos seus dentes, dizia
com seriedade: "São assim porque eu os limpava com nabos quando era pequeno". E só ele mesmo se lembraria de, acompanhado por sua mulher, vestida em seus melhores
trajes domingueiros, parar à pequena distância da sua própria casa e perguntar gravemente ao velho Bowie onde é que ela ficava.
- Desculpe-me, Mister Bowie, falava ele, delicado e sério. Pode-me dizer onde mora Mister Moore? ?- E quando o estupefacto velho, que tinha setenta anos e uma tendência
apoplética, apontava a sua casa com um dedo meio paralítico, Moore acolhia sua informação com a nesma cerimoniosa gravidade.
- Obrigado, Mister Bowie, quer aceitar isso? e tirando uma caixa de fósforos do bolso, recompensava o surpreendido ancião com um único fósforo. Depois, de cabeça
no
ar, afastava-se assoviando "Boyne Water". Lucy ficava furiosa. Contudo, Moore, às vezes, era assim.
Raramente, porém, era mais alegre; em certas épocas tinha assustadoras crises de melancolia e então ficava imóvel, sentado defronte da lareira com os olhos escusos
fixos nas crepitantes chamas.
Tinha, sobretudo, pouca inclinação para as amizades, e estas sempre eram as mais estranhas: o caçador de coelhos de Gielston Woods, um consertador de estradas que
britava pedras através do Point, e esse mesmo velho Bowie, que ele apelidava de o "Antigo Marinheiro" e a quem ameaçava sempre de ensinar a arte do tricot. Não que
ele soubesse tricotar... mas assim era Moore. F. J. Moore, indolente, sonhador, imitador de pássaros, sobre quem parecia pairar um indefinível e melancólico presságio
de desgraça que o fazia por vezes exclamar sombriamente: "Estou caminhando para um mau fim. Ou fazem de mim um lord, ou me enforcam. É certo!"
Agora achava-se confortavelmente sentado no sofá e Lucy havia voltado. com vivacidade ela apanhou seu trabalho de renda irlandesa e sentou-se junto dele.
- Que é que há nesse jornal? perguntou prazenteira. Você pode ao menos informar sua pobre mulher das novidades desta noite.
Frank apanhou o jornal da tarde e passou os olhos pelas notícias, procurando alguma coisa de interesse menos
superficial. Lia um pedaço aqui e ali, acrescentando seus comentários, que eram sempre sensatamente céticos. Sua atitude dizia "Acredite si quiser!" ou "Você sabe
o que eles dizem nos jornais". Mas ouvia de boa vontade a opinião de Luky, que até solicitava claramente. A pedido dela, leu alto um curto artigo sobre modas femininas:
ela se interessava por vestidos - um pouco demasiadamente, afirmava ele - e Lucy escutou atentamente, desistindo do seu trabalho e acenando duas ou três vezes a
cabeça, em sinal de aprovação. Finalmente o jornal esgotou-se e ele o deixou cair.
- Apanhe um livro! sugeriu ela depois de alguns momentos, partindo nos dentes um fio de seda e enfiando novamente a agulha.
Frank, porém, não tinha muita inclinação para livros; às vezes se entretinha com uma revista. Costumava ler Photo-lits, não porque gostasse muito, mas pode-se assim,
contar Uma anedota a um freguês, nesses tempos de hoje! Mas Lucy opusera-se firmemente a isso, no dia em que Peter correra para ela com um exemplar nas mãos fazendo
perguntas sobre as "senhoras de pernas grossas". Assim cruzou as mãos na nuca e encostou-se no macio estofado de crina.
- É mais simples não fazer coisa nenhuma, replicou. vou ficar quieto, por algum tempo. - Ficou ali, olhando para a esposa, enquanto, gradualmente, a escuridão invadia
a sala. com a sombra crescente, subia nele uma quente e carinhosa conciência da proximidade da mulher. Afinal Lucy articulou uma pequena exclamação.
- Não posso mais enxergar, disse, sorrindo para ele; e seu sorriso era fascinante na sala sombria. Tenho que acender a lâmpada.
- Para que? perguntou Frank intencional. Para que precisamos nós de lâmpada?
- Para trabalhar à sua luz, ora essa!
- Ah! você já trabalhou bastante por esta noite.
Sua mão estendeu-se para detê-la, deslizou-lhe pelos ombros e atraiu-a para si. A renda irlandesa, tão ricamente lavrada, resvalou desprezada, do regaço de Lucy.
Passiva e feliz, ela achegou-se ao marido. Sim, era feliz. Não negava sua ventura, nem lhe faltava uma ingénua confiança no futuro. E gostava tanto, oh! tanto, de
Frank! Por alguns momentos assim ficaram, enquanto o derradeiro e desmaiado raio de luz do crepúsculo abandonava suavemente a sala. Então, gradualmente, Lucy sentiu
a mão dele se insinuar sob a blusa do vestido e mover-se levemente, acariciadora.
Era um sinal, um pequeno sinal que usavam. Seu busto ergueu-se e, inclinando-se para ele, pesou cálidamente sobre o lado do marido e, na sombra, ela novamente sorriu.
Sabia o que aquilo queria dizer! Era bem de Frank, isso de voltar-se para ela, inesperadamente, ali, daquele modo espontâneo. E murmurou, provocante, ao seu ouvido:
- Você precisa ter juízo, sabe, quando Anna estiver aqui!
Frank fez um gesto como se fosse falar, porém não o fez. Depois não teve mais oportunidade para isso, porque ela premiu os lábios quentes contra sua face.
- Eu te amo, Frank, murmurou. Tu bem o sabes.
II
Na terça-feira seguinte, às cinco e meia, a carruagem - conduzida por Joe desde Levenford, trazendo o próprio Joseph, sua irmã. Poly, Anna e a bagagem desta, estacionou
em frente à casa, fazendo antes um floreio. O floreio porque Joe estava sentado na boleia - era inevitável e dava importância. Joe, apeando-se, agradeceu ao fatigado
cavalo normando, atirando-lhe uma afetuosa palmada no flanco suado, e deu um pequeno estalido de aprovação com a língua. Tinha um ar profissional, lidando com o
cavalo. Joe era, afinal de contas, profissional em tudo; não havia nada que o grande Joe não conhecesse! Maravilhosa oniciência esta, em quem não lia coisa alguma,
assinava o nome com dificuldade e mal usava o inglês da rainha com afável desprezo! Em seu próprio idioma, tudo "corria facilmente" a Joe, o que não era para admirar.
Realmente, ele era um taverneiro; vendia bebidas. Mas, que tinha isso ? Era sabido que protegia os fregueses contra seus instintos viciosos por uma judiciosa mistura
da sua mercadoria com a água escocesa.
Alto - não tanto quanto gordo - tinha o volume adequado a um taverneiro e possuía toda a cordialidade dos homens grandes. O bom Humor brilhava-lhe nos olhos negros,
pequenos e profundos: passas de corinto no sebo da sua face pálida; as narinas, confortavelmente amplas; os dentes, que exibia no largo sorriso, brilhavam fortes
e regulares como marfim. Sobre a cabeça, que se estreitava no topo, assentava-se um chapéu de copa baixa, que trazia propositadamente
inclinado; o guarda-pó curto estava desabotoado e os sapatos, para combinar com o terno azul, eram de um belo tom ocre. Era o tipo acabado do .cidadão imponente.
Já não era jovem, sem dúvida - tinha cincoenta anos - mas seu espírito
- ah! o espírito de Joe era eterno! Numerosos incidentes históricos atestavam amplamente a capacidade e grandeza do seu estofo. Por exemplo, aquela ocasião em que
vendeu suavemente a um gravador bêbedo - que, certo dia, se dispusera levianamente a provar champagne - uma garrafa de ginger ale; aquela outra em que, tendo adquirido
um papagaio que haviam garantido saber cantar, como não o ouvisse articular canção alguma no primeiro dia, matara-o e recheara-o imediatamente; e finalmente, aquela
em que, por ter sido convidado para um banquete eclesiástico, entrou a jejuar por quarenta e oito horas - coisa inteiramente fora dos seus hábitos - para fazer mais
justiça ao suntuoso repasto.
Assim era Joe, o inimitável, que entrava nesse momento no jardim, tendo atrás de si sua irmã Polly, dois anos mais nova que ele, bamboleando-se um pouco, o que era
explicável, dada a medida da sua cintura e a manifesta importância das suas saias.
Não era tão alta quanto Joe; era, porém, mais gorda, tão gorda que tinha um aspecto quase curvado que, aparentemente, lhe diminuía a estatura. Até seus cabelos lhe
caíam um pouco pelas costas. De rosto redondo e vermelho, vasta papada, busto avantajado, estômago pendente, trajava um rico vestido e; si bem que este pudesse ofender
o olhar, ao menos havia nele certo capital empatado. As cores tinham tido o condão de agradá-la. Por cima de tudo, trazia uma enorme capa de peles, fora da estação,
para a viagem; e agora arquejava.
Chegados ao limiar da porta, Polly tomou fôlego, enquanto Joe anunciava sua chegada com uma série de turbulentos toques de campainha. Fazia bem ver este par tão
tranquilizante, tão cheio de confortável deleite de viver. Quando Netta abriu a porta de par em par, Joe tomou Polly pelo braço, exclamando galantemente:
- Entremos; para que ficar aí parada, como um porco vigiando o açougueiro?
- Não posso passar por cima de você, posso? respondeu Polly à brincadeira do irmão, como um comediante leal ouvindo a deixa.
Era visível o quanto gostava de Joe. A admiração misturara-se abertamente à afeição fraternal nesses cinco anos que passara a tomar conta da casa dele.
Joe lhe deu um gaiato empurrão como recompensa e, voltando-se alegremente, gritou:
- Anna! Entre cá, rapariga! Que está você fazendo aí parada? - E no mesmo segundo estava ele no salãozinho sacudindo jovialmente o braço de Lucy - fazia-lhe sempre
muita festa nas raras ocasiões em que se encontravam - e esboçava uma luta de box com Peter, enquanto chamava alto pelo irmão.
- Frankie, dê um ar de sua graça, rapaz!
- Frankie vai descer agora mesmo, disse Lucy rapidamente. com dificuldade ela induziu o marido a subir para se barbear e trocar de roupa, e ela própria, tendo abandonado
naquele momento o avental, estava ainda quente e agitada das suas atividades na cozinha. - Estou contentíssima por vê-los, declarou. Mas Anna, onde está Anna? -
e seus olhos brilhantes pesquisaram vivamente por cima do ombro de Joe.
- Anna! gritou Joe novamente.
Anna adiantou-se -; não, em absoluto, pela solicitação dele - com um ar negligente, os modos passivos e compostos. Era morena e alta, de vestido discreto, de boa
aparência, tinha menos de trinta anos, o rosto pálido, cerrado, os olhos castanhos, grandes, escuros, quase impassíveis, lábios carnudos. Toda a sua expressão meio
sorridente, meio desdenhosa, trazia uma curiosa ambiguidade: a um tempo defensiva e hostil.
- Então você é Anna, disse Lucy sorrindo e oferecendo-lhe a mão. Estou muito, muito contente por você ter vindo.
- Obrigada, respondeu Anna gentilmente. Sua voz era tranquila, surpreendentemente cultivada. Sua aparência geral, considerando sua origem e ambiente, deu a Lucy
um súbito e inesperado prazer. "Gostarei dela, pensou. Estou satisfeita por tê-la convidado".
- E eu não tenho pena de me ver livre dela, exclamou Polly com um sacudir alegre das suas plumas - trazia no chapéu penas de avestruz de um tom purpurino. Francamente
que não tenho. Ela tem impedido Joe de trabalhar, toda esta quinzena. E ele, um homem decente, com uma irmã esfaimada nos braços!
Peter, trajando o saiote escocês, que vestia nas grandes ocasiões, deixou escapar um riso espontâneo, mas imediatamente corou; haviam-lhe dito previamente que devia
se limitar a ser visto e não ouvido.

Nesse momento todos se encaminharam para a sala de refeições, agora elegantemente posta para as amenidades de um grande chá. Era uma vista imponente. Tudo o que
Lucy possuia de melhor estava sobre a mesa. O linho mais fino, a cutelaria mais brilhante, o porta biscoitos de prata que havia sido de sua mãe - Richard desejara
aquele portabiscoitos mas não o obtivera! - e o serviço de porcelana pintada a mão que fora do seu casamento e que miraculosamente se conservava intacto através
dos anos. E sobre a mesa havia iguarias escolhidas: carne fria, panquecas, bolos de aveia, um fiambre prometedor; o isolador de crochet junto do centro da mesa autorizava
a pensar-se que viria algum prato quente. Era fora de dúvida que esse repasto havia custado a Lucy um imenso trabalho. Era um fato, também, que o tom dessas assembleias
familiares feria por vezes seu senso de estrito decoro. Tudo isso, porém, ela pôs de parte com seu modo decidido. Esses eram os parentes de Frank e ela tinha obrigações
sociais para com eles.
Joe, entretanto, fixava a mesa com um olhar eloquente:
- Sim senhor! abaixando-se um pouco o cinto, tudo se há de arranjar, disse ele alegremente, desabotoando o colete e dando pancadinhas no estômago com um ar de simpática
compreensão.
Enquanto isso, Polly fazia uma indolente, porém íntima inspeção das fotografias, manuseando os enfeites e a louça sobre o aparador.
?- Mas o que é feito desse meu irmão?, exclamou Joe impaciente. Onde está ele! falando com alguém a respeito de cães ?
Nesse momento Frank entrava na sala, trazendo aquela expressão perturbada, resultado do seu esforço para parecer natural e à vontade.
- Como vai o corpo, rapaz? berrou Joe imediatamente.
Frank acenou com a cabeça, sem entusiasmo, depois parou desajeitadamente defronte de Anna e hesitou; sua melhor roupa ajustava-se-lhe mal ao corpo.
- Então, Anna, você está de volta, disse.
- Claro, Frank. Pensei que você não me conhecesse mais, respondeu ela com seu rápido sorriso.
- Keconheci-a muito bem, falou ele com voz constrangida : você não mudou nada desde aquele tempo em que estive lá.
- Está bem, respondeu ela simplesmente. Tinha um ar agradável e em seu semblante transparecia uma notável tranquilidade.
- Mister Lennox deve vir aqui mais tarde, disse Lucy quebrando o silêncio que se estabelecera. Mas nós não esperaremos. Ele disse que viria depois do chá.
Sentaram-se para a refeição na maior harmonia. Netta surgiu bruscamente com uma bandeja fumegante; Lucy corou levemente por vê-la assim impetuosa, e fez-se atenta
às necessidades dos seus hóspedes.
- Espero que esteja gostando do passeio, observou voltando-se com amabilidade para Anna. Peter arranjou um pique-nique para você, e nós fomos convidados para passar
um dia com Edward em Port Doran. Talvez você vá ficar lá também alguns dias, não é mesmo?
?- Não, disse Ânna pensativa. Não creio que vá passar dias lá.
- Você nunca foi muito amiga do Ned, en, Anna? articulou Polly através de uma torrada.
- Ned, respondeu Anna lentamente, recordando o Eev. Pé. Moore. É um padre tão bom quanto se pode encontrar
. em qualquer lugar.
- Que é isso, Anna? disse Joe mastigando jocosamente, percebendo talvez um laivo de ironia onde não havia nenhuma. Respeite as vestes sacerdotais!
- E que boa governante ele tinha! Miss Regan, continuou ela, imperturbável. Cuidava dele como o anjo da guarda. Uma boa mulher!
Nada havia para rir, nessas palavras; contudo, Joe riu,
Polly sufocou uma risada e mesmo Frank sorriu um pouco.
Lucy não compreendeu. Seu rubor acentuou-se e ela olhou
para Anna, com a atenção despertada por um não sei que
de sutil no ar da outra. O minuto, porém, passou. Anna
"ncontrou seu olhar, e disse meigamente:
- Também eu não vejo a graça que isso tenha! Depois de um silêncio, Joe tornou:
- Que bela refeição, sim senhor! Você sabe, Frank, que tem uma mulher que é um regalo?
- Obrigado pela informação, disse o interpelado secamente. Não perguntei por isso. Mas Joe não se ofendeu.
- É isso mesmo, rapaz, como pobre viuvo que sou, eu
 o invejo e, deixando de lado os Dez Mandamentos, minha pobre Katie - que Deus haja - não poderia organizar uma
refeição como esta, nem mesmo para se salvar do purgatório. Lucy agitou-se, inquieta. Essas reuniões de família iam muito bem, desde que a reserva de Frank se dissipasse.
Mas até agora isso não acontecera. Ela estava conciente de que esse constrangimento persistia, a despeito dos esforços que fazia para anulá-lo, e Lucy estava habituada
a ver seus esforços reduzidos a nada. Franzindo um pouco o cenho com um modo vivamente imperioso, dirigiu-se a ele por sobre os crisântemos amarelos do centro da
mesa.
- Vamos, Frank, você não está sendo amável com sua prima. Passe-lhe os pãezinhos.
- Ele vai indo muito bem, disse Anna com um sorriso. Ainda não voltou a si do choque que teve quando me tornou a ver.
- Choque! ora essa! exclamou Lucy com um olhar de censura ao marido enquanto este, de mau humor, avançava o prato de pãezinhos. Depois, voltando-se para Ánna com
uma amabilidade propositadamente compensadora, perguntou:
- Então, gostou de voltar a Levenford?
- Gostei e não gostei, disse Anna imparcialmente.
- Ela quer dizer, explicou Polly, que detesta o lugar.
- Já sei o que é, disse Lucy sorrindo para Anna. Deixou o coração na Irlanda.
Houve uma pausa perceptível no movimento de mastigação geral, uma breve lacuna enquanto Joe, Polly, e até Frank, lançaram um rápido olhar em direção a Anna.
- Talvez sim, respondeu esta, talvez não. Seguiu-se um silêncio. Lucy ficou embaraçada e não
gostou dessa sensação de perplexidade. Ia para falar, quando Frank, que tão raramente aventurava uma frase, afastou subitamente a cadeira da mesa, e declarou:
- Já que acabamos, vamos indo para a sala de visitas. Houve um movimento geral em direção à sala. Joe tirou
do bolso um charuto e, conservando-lhe cuidadosamente o anel escarlate, acendeu-o com espalhafato. Polly, abanando-se lentamente, acomodou-se perto da janela. Anna
sentou-se no sofá e Frank tomando seu lugar favorito no canto da lareira, o olhar flutuando no espaço, iniciou sisudas investigações com um palito.
Lucy parou na porta com. o braço em torno dos ombros de Peter.
- Desculpe-me, disse ela, preciso levar o pequeno para a cama.
- Não, mamãe, insinuou ele, é ainda muito cedo!
- Deixe-o ficar um pouquinho mais! sugeriu Ana.
- Não pode ser, tornou Lucy constrangida, é uma regra
que tracei. Sete horas!
O menino fez um beicinho:
- Tio Joe prometeu que me daria um penny e não deu,
choramingou.
- Essa é boa! exclamou Joe, não é que esqueci? - com
 um gesto senhoril, desvencilhou-se do charuto e, depois de
muito esforço, apresentou uma moeda de cobre.
- Diga muito obrigado, disse Lucy um pouco asperamente. O gesto do filho tivera um sabor de usura demasiado forte para seu gosto. Um dono de casa pedir dinheiro
ao seu convidado! - retirou-se abruptamente, um pouco perplexa e de cenho ligeiramente franzido, contrariada por algo
que não podia definir. Parando no patamar, falou-lhe: -
Peter, você não devia ter feito isso.
- Desculpe, mamãe, disse Peter sorrindo. guardou
cuidadosamente o penny em seu jarro.
Uma vez em cima, Lucy pensou que poderia ter chamado
Anna para ajudá-la a dar banho na criança. Isso teria sido
"delicado" e teriam uma conversa mais íntima em torno da
banheira! Incontestavelmente Anna era muito tímida para
ter sugerido isso; ela própria teria que romper essa reserva
de Anna: fazê-la sentir-se como em sua casa.
Assim refletindo, havia quase terminado, quando ouviu
um retinir discreto na campainha da porta, que anunciava
a chegada de Mister Lennox. Instintivamente, apressou os
movimentos.
Apesar de ter seu escritório em Glasgow, Lennox morava
também em Ardfillan, no alto da montanha; e era uma notável distinção feita aos Moore "o vir vê-los", como secamente explicava em suas visitas ocasionais. A despeito
daquela secura, Lucy gostava de Lennox e tinha as melhores razões para cultivar relações com ele. Calmo, perspicaz, tolerante, era conhecido como um homem de ideias
largas; si assim não
fosse, como teria podido associar-se a Galton, naquele tempo?
Um escocês e um irlandês juntos em uma firma! Era pior
que um pagão com um judeu! Lennox, contudo, o fizera.
Galton tinha relações na praça e ele o capital, e agora, com
a morte de Galton, Lucy sabia que ele planejava mais altos
voos: a extensão dos seus interesses à importação da Holanda, da sua nova mercadoria sintética. Essa noite não lançaria seu estratagema, porém prepararia o terreno
para isso. Conciente de que até aquele momento havia manuseado Lennox
com muito tacto, ela já entrevia o próximo triunfo. Deu boa-noite a Peter, beijando-o, e apressou-se a reunir-se a seus hóspedes na sala.
Ao entrar, encontrou Joe falando com seu modo espalhafatoso, de si e dos seus triunfos, sob a calorosa aprovação de Polly.
- Deixe que nos chamem de mesquinhos irlandeses! Dizem que nada somos. Pensa que eu os contradigo? Nem uma palavra! Basta que nos observem e nós lhes mostraremos.
Pergunte a qualquer um, em Levenford, quem é o grande Joe Moore! Eles me conhecem por lá! e bastante bem. Não tive as oportunidades que teve o resto da família,
porém, fiz meu caminho e juntei um bocado de dinheiro, por sinal! Vendia jornais quando era garoto e agora sou diretor do "Green Football Club" e Presidente da "A.
O. H." local. Pode ser que não seja muito, mas é bastante para se ir levando a vida.
- Deixe isso com Joe! disse Polly meneando a cabeça com os olhos semi-cerrados.
Lennox contemplava o copo de whisky em sua frente. Era um homem de estatura média e barba grisalha; tinha cincoenta anos, respirava conforto e vestia-se de grossa
casemira de boa qualidade mas de corte execrável; os olhos -discretamente velados, a boca pequena e enrugada, as mãos avultando nos bolsos das calças, o colete estranhamente
agressivo com uma notável bateria de lápis agudamente apontados. Era uma característica sua, trazer consigo os lápis fora das horas de escritório. Taciturno por
inclinação, -cauteloso por disposição, cultivava a sagacidade como outros cultivam a destreza, vivendo exclusivamente - ao que parecia - para seu pequeno e sólido
negócio. Uma especial "cara fechada" caracterizava-lhe o aspecto exterior; assumia às vezes um ar de profunda preocupação. Sem brilho, sem artifício, era dotado
de uma penetração inata. Assim era Lennox: lento, sagaz e concentrado.
- Eh! Eh! fez ele com uma voz exquisita e seca, você é um homem notável. Não há a menor dúvida! - Era impossível julgar, pelo seu tom, si o elogio era autêntico.
Depois voltando-se para Lucy: - E como vai o elemento "scocês? disse com uma leve insinuação de aliança, com que "e dirigia a ela, muitas vezes.
- Bem, como sempre, respondeu ela sorrindo. Peter "stá ligeiramente resfriado, mas não é nada de grave. E a
nova ideia, Mister Lennox? perguntou, pronta em apanhar uma oportunidade. Está indo para diante?
- Eu estava agora mesmo dizendo aqui, replicou Lennox
- que estou realmente decidido. Estive em Leith ontem, arranjando as coisas lá nas docas.
- Vai ser muita coisa para o senhor realizar sozinho, observou Lucy inclinando-se para ele com imensa solicitude.
Lennox acariciou a barba, depois o ponto mais saliente da sua face calculadora.
- Talvez, retrucou cautelosamente. Talvez seja! Bailou uma pergunta nos lábios de Lucy, porém, antes
que pudesse falar, Joe interrompeu estouvadamente:
- A propósito, Anna. Que faz você com seus "cobres"? Seu velho deve ter-lhe deixado uma boa "bolada"...
- É, Joe, disse ela suavemente, mas, como você, eu também sou caridosa, e o clero apela para mim tanto como para você, segundo você o diz sempre. - Depois, levantando-se
repentinamente, olhou para Lucy. ?- Estou cansada, Lucy. Você reparará si eu for para cima! Não se preocupe em me acompanhar.
- Mas eu irei, disse Lucy calorosamente, pondo-se de pé. Agradara-lhe extraordinariamente que Anna a tivesse assim chamado, pelo seu nome de batismo. - Está tudo
pronto, à sua espera.
Deixaram a sala, juntas.
Joe esfregou o queixo com a mão gorda.
- E Anna está melhor agora do que antes, observou tranquilamente. Ela e eu nos demos admiravelmente nessa última quinzena.
- Demasiado bem, replicou Polly, agitando-se. Anna é uma criatura exquisita, Joe Moore, e você sabe disso muito bem.
Houve uma pausa; depois Joe levantou vagarosamente a cabeça e fixando o irmão com um olhar mais direto que de costume:
- Será que Lucy sabe o que há sobre Sua Alteza? perguntou sutilmente, acenando com a cabeça na direção em que Anna desaparecera.
Frank corou, enfiando as mãos nos bolsos:
- Não sabe, respondeu constrangido, e não vale a pena dizer agora coisa alguma.
- Está direito, rapaz, está direito, disse Joe mansamente. Não adianta bater novamente sobre essa tecla. Não há motivo algum para isso.
- Devo dizer, falou Lennox olhando cautelosamente para seu charuto, devo dizer que a achei muito compreensiva quando da liquidação dos nossos negócios. Sim, digo-o
em sua honra.
- Ah! nunca se poderá conseguir tirar as manchas de um leopardo! disse Polly com um inusitado senso poético. E Anna nunca se poderá libertar delas.
- Deixemo-nos disso, observou Joe. Afinal, somos apenas humanos. Não se pode ser canonizado antes de ser cadáver.
Enquanto falava, Lucy irrompeu na sala. Ao entrar, pareceu-lhe que um olhar de entendimento havia passado entre os quatro; um relâmpago que a galvanizou, mas que
subitamente desapareceu.
- Que há por aqui? perguntou sorrindo, e olhando todos um por um. Parece que vocês estiveram conspirando. Vamos, aproximem as caieiras do fogo.
1- Não, Lucy, disse Joe a contragosto; está escurecendo. Precisamos ir andando.
- Em absoluto! protestou ela vivamente. É muito cedo. Não poderíamos fazer um pouco de música? - Quase sempre Lennox lhe pedia uma "toada". Quasi sempre, também,
Polly arranjava um jeito de cantar, especialmente uma comovente balada em que sentimentos de piedade e patriotismo se intercalavam sutilmente, e começava assim:
"A poor Irish soldier, a Catholic dragoon, Was-a-writing to his mother by the light of-
-the moon".
Contudo, dessa vez, Joe sacudiu a cabeça.
- Tenho que regressar para contar meus lucros, disse enquanto erguia a corpulência. Vamos, Polly.
Lennox terminou seu whisky e olhou o relógio:
- vou andando também, avisou, já é muito tarde para mim, como sabem.
Lucy protestou, vendo que sua festa estava terminando cedo demais, sem que ela de modo algum o pudesse impedir.
- Quer vir jantar aqui na próxima semana, Mister Lennox? insistiu. Espero que não se recuse.
- vou pensar nisso, disse ele, o que, com seu modo seco, equivalia a uma cordial afirmativa. Mesmo assim Lucy teve um vago sentimento de recusa. Belutante, acompanhouos
até o portão, onde se deixou ficar, tomando o braço de Frank, enquanto Joe içava Polly na carruagem, acendia os pavios das lâmpadas e sacudia o transido cavalo branco.
Quando mergulharam corajosamente na noite, Lennox executou uma partida menos dramática. Havia prometido vir jantar no domingo seguinte. Lucy contentou-se com essa
perspectiva; porém, como sentia que a tarde não fora um sucesso absoluto, disse depois de um momento:
- Tudo correu muito bem, não acha, Frankf
- Podia ter sido pior!
- Mas, Ánna! exclamou ela meditativa. Acho que é preciso algum tempo para conhecê-la. É um pouco reservada, não é mesmo?
- Eu não a convidei a vir aqui, minha cara, replicou Frank com insólito arrebatamento.
Lucy nada respondeu, mas olhou-o tranquilamente, com um pouco de curiosidade; depois de algum tempo, sorriu-lhe e ele sorriu para ela.
Não falaram. A noite, em torno, era silêncio e mistério. Não havia lua, nem poeira de estrelas,. por isso a escuridão era forte. Uma asa de morcego -bateu, invisível,
no ar que estava pesado do cheiro da grama orvalhada; de um campo distante vinha um perfume de feno cortado, fresco e úmido, que flutuava em redor deles. O doce
langor da noite pareceu envolvê-la e, num ímpeto de ternura, Lucy achegou-se para Frank. Ela e o marido tinham rusgas, mas, mesmo assim, nada podia diminuir o amor
que lhe dedicava. Num gesto de posse, passou o braço pelos seus ombros.
- É tarde, Frank, disse em voz baixa. Vamos para dentro.
- III -
NA manhã seguinte, enquanto Lucy tomava o café com o marido, chegou o telegrama de Richard.
Um telegrama naquela casa era um acontecimento sensacional. Enquanto abria nervosamente o frágil sobrescrito, Lucy preparava o espírito para alguma calamidade. Mas
não era uma calamidade; era apenas um aborrecimento, e sua exclamação continha uma mistura de irritação e alívio.
- Que coisa! exclamou com os olhos brilhantes de contrariedade. Veja se isso não é desagradável! - com o rosto preocupado, a testa franzida, tinha uma expressão
infantil de decepção.
Moore leu alto o telegrama que lhe era apresentado:
- "Querida Lucy - Peço vir por alguns dias, Eva enferma. Richard".
- Que grande topete! declarou ele. "Querida Lucy", está muito engraçado.
- É um aborrecimento, assentiu Lucy com voz irritada. Especialmente com Anna aqui. Que irá ela pensar?
- Mas você não está imaginando ir! Novamente ela apanhou o telegrama.
- "Por alguns dias", leu alto, em tom pensativo. Até terça-feira, talvez. - Suspirou e disse: - Acho que preciso ir.
- Naturalmente, exprobrou Frank. Você sabe que eles só a querem quando precisam de você. É o único modo de você saber do seu irmão. Há uns dois anos, não é isso?
a mesma coisa aconteceu. Depois que se servem de você, largam-na como a uma batata quente. Um cartão, pelo Natal, como agradecimento, não foi tudo que eles lhe mandaram?
Lucy corou àquelas, palavras.
- Tenho uma noção do dever, Frank, retrucou firmemente. Não me interessa aquilo que Richard faz, interessa-me aquilo que devo fazer. Eva está doente. Além disso
ele é meu irmão.
- Dê lembranças! exclamou Frank com rudeza. Preciso de você aqui e você não tem que ir.
Tranquilamente, porém, Lucy pôs de lado sua rudeza e suas objeções; não podia esquecer suas obrigações. Richard, seu irmão, apelara para ela num momento de necessidade.
Apesar de ser manifesta a inconveniência em cumprir esse dever, já se achava resolvida.
- Por um lado é bom que Anna esteja aqui, falou. Ela poderá tomar conta de você.
- Tomar conta de mim! Eu não a quero tomando conta de mim! - Um mundo de revolta vibrava em sua atitude. Mas. como sempre, essa revolta somente fortaleceu a resolução
de Lucy.
O trem das dez é um bom trem! murmurou calma, definitiva, tal como si dissesse: Já decidi, Frank, e, quando eu o faço, você já sabe...
Nada mais foi dito; quando ele, porém, abruptamente se levantou e começou a enfiar o casaco, declarou:
- Você resolve tudo, resolve tudo, e ninguém senão você resolve tudo. Isso vai deixá-la mal qualquer dia.
- Não é que eu queira ir, Frank, explicou ela razoável. E é somente até terça-feira.
Ele a olhou um momento e depois, gradualmente, um. sorriso assomou em sua face mal humorada; sacudiu a cabeça:
- O que vale é que gosto muito de você, - falou-lhe ou nunca a deixaria apertar as rédeas tanto assim!
- Agora sim! disse ela alisando-lhe a gola. Beijando-oafetuosamente deixou-o partir, veio até a janela e contemplou o seu vulto gigantesco pela estrada afora, até
finalmente desaparecer. Então subiu imediatamente ao quarto de Anna, com o rosto subitamente preocupado, enquanto batia à porta e entrava.
- Estou tão contrariada, Anna! exclamou, e meio séria, meio-risonha, sentando-se na borda do leito da outra, explicou-lhe a situação. - É uma atrocidade o que vou
fazer,, porém não sei como evitá-la. Tenho a certeza de que meu irmão precisa de mim.
- Para mim é a mesma coisa, disse Anna quando a ouviu, e pôs-se a entrançar uma frouxa mecha de cabelos que se lhe derramava sobre o penteador amarelo, olhando para
os dedos enquanto o fazia. - Não tem importância.
- Você está aborrecida?
- Por que ? - Anna terminou o entrançado e não- jogou para trás a espessa.e apertada trança; deixou-a como estava, sem coquetismo.
- Está bem, respondeu Lucy corando um pouco à inexpressiva recepção das suas notícias.. Tenho que tomar o trem das dez horas.
- À vontade! disse Anna erguendo tranquilamente os grandes olhos castanhos, que eram profundos ein contraste com a face de suave marfim.
Houve um silêncio entre as duas mulheres: uma, franca,, atenciosa e bem intencionada; a outra, indolente, fleugmática, fechada.
- Você cuidará de Frank! disse Lucy por fim, levantando-se. Não o deixe mergulhar na sua melancolia.
- Tudo irá muito bem, falou Anna descuidosa. Frank me conhece e eu conheço Frank.
Por que - pensava Lucy enquanto descia - Anna não disse espontaneamente: " Sinto muito que você tenha que ir,, mas, com certeza é o seu dever. Sua cunhada está doente.
E eu tomarei conta de tudo muito bem, enquanto você não regressa". Mas não. Anna se fechara e, de algum modo, revelara seu caráter por deixar de lhe dar esta satisfação.
Por um momento Lucy considerou esse difícil caso, um pouco vexada. Gostava tanto de apreender as coisas, de achá-las
palpáveis! Irritava-a ter que deixar um enigma sem solução. "Naturalmente, pensou, Anna ressente da falta da sua hospedeira, apesar de não querer confessá-lo". Aceitou
isso como explicação mas, finalmente, rejeitou tal solução.
Depois, afastando esses pensamentos, encarou a necessidade de anunciar ao filho sua partida.
- Péter! chamou subitamente.
Peter emergiu do quarto, ocupado em concluir sua toilette. Para maior conveniência de sua mãe e também para a sua própria, tomava café, nos dias de semana, depois
que seu pai saía. Lucy olhou para ele com carinho contido.
- Netta vai lhe dar o almoço hoje, disse com tacto. E Anna ficará aqui com você um pouco. Eu... eu vou viajar.
A criança fixou-a levantando uns grandes olhos:
- E para onde vai você, mamãe?
- Vai ser bem divertido, não vai? respondeu ela evasiva, apertando-lhe o laço da gravata; e acrescentou, sugestiva:
- Você promete cuidar bem de Anna?
Peter, visivelmente, considerou a ideia, achando-lhe qualquer coisa de importante, de única: mesmo assim, com um calculado engenho, que Lucy de algum modo já esperava,
disse:
- E si eu fizer isso você dá um... você sabe o que é,
- e soletrou a palavra, - para o meu jarro?
Naturalmente ela o faria; um penny não era nada, e Peter não era um menino para gastá-lo em doces e confeitos baratos e mal feitos. Guardava esses pence com recomendável
prudência, que só poderia ser tranquilizadora para o seu coração materno.
Deu-lhe o penny - realmente, como poderia recusá-lo?
- e um carinhoso e largo abraço. Também Netta recebeu instruções detalhadas.
Finalmente, Lucy partiu.
A manhã estava fria e tinha já uns pequenos arrepios do outono de que ela tanto gostava. Lucy apreciou a caminhada que teve que fazer até a cidade. Ardfillan, de
resto, sempre lhe agradava. As ruas, largas e limpas, construídas com cimento novo, cor de cinza, e plantadas de carvalhos, tinham o ar agradável dos boulevards.
As lojas atraentes alardeavam os títulos de nobreza dos seus donos, nos brazões sobre as portas. Uma cidade agradável, assemelhando-se, pelo seu aspecto, a uma estação
de águas inglesa, puramente residencial, jactando-se - por um esnobismo inteiramente justificável - da sua cultura e seleção, e tolerando apenas sua
meia dúzia de visitantes de verão. Era uma cidade para a qual vinham os nababos do distrito ao se aposentarem, cheios de dinheiro. Havia em torno uma atmosfera de
ordem e bom gosto. "Seletâ", comentara Lucy mentalmente - o que a fizera declarar, no princípio da sua vida de casada:
"Moraremos aqui, Frank. Não será possível residirmos já na melhor parte. Mas fá-lo-emos algum dia".
Certo era que, talvez pela pequena inferioridade de situação da sua casa, ela possuía poucos amigos em Ardfillan. Isso era incompreensível. Em Perth, sua cidade
natal, onde o pai mantivera muito tempo um escritório de nomeada - fora escrevente no Tribunal do Condado, - Lucy tivera uma vida social de destaque. Era conhecida,
aceita em toda parte. Mas desde que casara naquela família irlandesa, tudo se modificara. Lucy reconhecia que aquilo era inevitável; isso, porém, não importava.
Sabia que uma mulher pode elevar um homem ao seu próprio nivel. Ela o provara a si mesma e estava convencida de que algum dia o faria de maneira mais completa. Sentia
que poderia estabilizar a posição da família e tornar o futuro mais brilhante.
Agora, confortavelmente instalada no trem, seus pensamentos recuaram insensivelmente para aqueles anos felizes na cidade. Não se podia negar, - a despeito da atitude
do irmão, que havia previsto calamidades naquele tempo - que havia transformado seu casamento em um sucesso muito apreciável. A família de Frank podia ser um pouco
vulgar, mas Frank não o era. Frank era Frank. E ela nascera para triunfar. O fracasso! Desconhecia essa palavra. Talvez fosse a boa estirpe escocesa de que provinha,
que lhe comunicara o poder de dirigir e resolver; de controlar com tanta felicidade a órbita temperamental do carater do marido. Sabia como fazê-lo. Tomara conta
de Frank e orientara seu destino na direção de um horizonte sadio e determinado. E como isso lhe fora fácil! Fácil, porque o amava. Sim, sem dúvida nenhuma seu amor
por Frank era o motivo que a impelia sempre para a frente. O próprio Frank reconhecia esse fato, como uma leve sátira que o fazia dizer uma frase absurda, incompreensível
e muito dele, que era: "a cenoura na frente do burro". No seu canto do carro Lucy sorriu levemente da pequena e ridícula calúnia. Ele não pensaria assim; era aquele
seu jeito!
Amava-o e ele lhe pertencia inteiramente. Era criação sua, moldado concientemente pelo seu amor, de tal modo que
ela quase tinha por ele o instinto possessivo do artista para com sua obra quando lhe sai pronta das mãos.
Por isso era-lhe grato contemplar sua felicidade e exibila, sem vaidade; sentia-se sempre contente quando confrontava a vida de Richard com a sua própria, achando-se
bem mais feliz do que este. Richard, por seu lado, não era avesso a demonstrar seus próprios triunfos profissionais e familiares. As raras cartas que escrevia eram
cheias de E vá, "sua querida esposa", de Vera e Charles, "seus inteligentes pequenos", que se distinguiam constantemente nas esferas sociais e escolares, e de casos
invariavelmente importantes onde ele contra a opinião geral - triunfava no Tribunal da Polícia.
Lucy achava Richard um pouco convencido, inteiramente obcecado pela mulher. Suas atenções para com ela eram sempre evidentes. Para Lucy, ele usava sempre uma tolerância
muito vizinha da crítica e, com a inevitável superioridade de um irmão mais velho, definira-a como uma idealista. Ela aceitara essa definição como um desafio, e
mantivera esse desafio. Qual o objetivo da vida e onde, na realidade, se acha sua beleza, sinão nessa fórmula de honestidade e virtude, que ela própria, na sua frase
predileta, traduzia com a satisfação de "fazer o que é direito"? A constância do amor, o encanto das crianças e seus risos, a doçura do sacrifício, a respeito a
Deus e a conformação à sua vontade: rejeite alguém isso e estará perdido na confusão e na noite. Ela preferia a luz do sol, que achava quente e confortante.
O trein silvou e Lucy despertou das suas cogitações. Seria possível? Já estava em Ralston! Ergueu-se vivamente e desceu do trem.
Ralston, um subúrbio de Glasgow, habitado pelos mais. afortunados cidadãos, si bem que ela se negasse a reconhecer sua superioridade sobre Ardfillan, era uma agradável
localidade residencial e muito conveniente para Richard em sua profissão. A casa deste, de tijolos vermelhos, cercada de um jardim bem cuidado, com uma pequena mas
ornamental estufa ao lado, indicava prosperidade e definia a boa situação social do proprietário. Como ele próprio, era definidamente estabelecida, definidamente
escocesa. Eva, mantendo sua reputação de chique pensando talvez estimular um instinto já suficientemente desenvolvido em Richard, havia-a, faceiramente apelidado
"Lê Nid". Tocante felicidade!
E ali tudo era de bom gosto. Apesar disso, dessa escrupulosa preocupação, não foi uma criada, porém seu irmão, ele próprio, quem lhe abriu a porta.
Lucy! exclamou de pronto, com uma inusitada cordialidade, na qual se percebia uma entonação de alívio. Ui! Lucy, eu sabia que podia contar com você.
Levou-a imediatamente ao seu escritório e ali, sob as gravuras dos Murray, que pendiam da parede sobre a secretária, olhou-a com um olhar menos severo, menos crítico,
menos superior que de costume.
Era uma figura digna, de cabelos e bigodes ainda brilhantes, os lábios mostrando ainda esse peculiar vermelhovivo que se destaca da pele branca. E tinha uma atitude
o braço esquerdo cruzado nas costas, queixo para a frente,, sobrancelhas cerradas - um pouco altaneira, pronta a encrespar-se, que era típica do seu caráter.
- Foi bondade da sua parte ter vindo, começou ele rapidamente. Fico muito grato por isso. Você pode claramente ver que eu estou contrariado. Nem siquer pude ir ao
escritório. - Fez uma pausa e, preocupado, franzindo o cenho: - Eva... Eva está doente. E a nurse, essa vil e abominável criatura que chegou no sábado, teve ontem
com a cozinheira uma briga de bêbadas. Uma coisa chocante! Minha pobre mulher! Naturalmente expulsei-as ambas. cá estou, com Eva na cama, as crianças entregues a
mim e ninguém mais a não ser uma pequena criada para nos servir, É... é absurdo!
Suas maneiras habituais, precisas, desapaixonadas, judiciosas, com um sabor cáustico de lei, tinham desaparecido, deixando em seu lugar a representação viva e patética
do cidadão ultrajado, do pai ansioso, do esposo devotado.
- Sinto muito, Kichard, disse Lucy, mas que tem Eva? Richard corou profundamente, de um modo varonil, de
cabeça erguida.
- Uma pequena indisposição, balbuciou com um ar de mistério, que revelou imediatamente a íntima delicadeza do incómodo de Eva. Em breve estará bem, e na terça-feira,
felizmente, voltará sua nurse, que a assiste sempre e compreende bem sua constituição. - Olhou suplicante para Lucy.
- Sem dúvida que o ajudarei, declarou esta cordialmente. É para isso que estou aqui.
- Estou confortado, profundamente confortado! - Richard fez uma pausa e depois acrescentou: - E agora vou levá-la para ver Eva, lá em cima .
Enquanto a precedia com pesados passos pelos degraus bem atapetados, Lucy se preparava para o encontro com Eva. A verdade era que nunca se achara à vontade com esta
que,
intimamente, considerava fútil. Eva possuia uma tez pálida, de tessitura excelente, que cercava de extraordinários cuidados ; os cabelos sempre fragrantes de frequentes
shampooings e elegantemente arranjados eram bastante escuros; o nariz fino e aquilino, os olhos cinzentos, e bons dentes que, para seu desespero, eram ligeiramente
serrilhados nas bordas. Afetava elegância, dissimulando a estupidez natural com um descaído das pálpebras. Vestia-se bem e de acordo com a moda; era realmente uma
estudiosa desse mundo elegante ao qual tão ardenteinente aspirava. Ciciava ao falar e gorgeava no riso, afetava o andar e era adorada pelo marido. Tal era a Eva
que Lucy conhecia. Más agora, ai Eva nem ciciava, nem estava afetada. Pálida, de uma interessante palidez, jazia em seus travesseiros, lânguida, com toda a delicada
evidência de ter sofrido pela causa do amor.
- Lucy veio, minha querida, murmurou Bichard com uma voz adequadamente abafada.
Apenas por um bater de cílios, Eva traiu o fato de que ainda trazia vida em si.
- E ela cuidará de você, esses dois dias mais próximos, continuou ele. confortando-a.
Eva abriu languidamente os olhos e voltou-os, largos e ainda cheios de censura, para Richard. Depois suspirou sem dizer palavra, oferecendo molemente a mão a Lucy.
- Você ficará boa depressa, Eva, disse Lucy. Não se aborreça. - Eva sorriu palidamente - e o gentil patético desse sorriso poderia comover o próprio mármore!
- Bem, agora, falou Richard com tacto, enquanto consultava o relógio, talvez possa ir até o escritório. Deixo tudo em suas mãos, Lucy. Eva, a minha pobre Eva. Sei
que você cuidará bem dela. - E voltou-se para partir.
- Beije-me, Richard, ciciou Eva, estendendo os brancos braços em sua direção num súbito assomo de paixão. Beije-me antes de ir.
Lucy afastou-se. Eva, às vezes, a impacientava: em seu íntimo, mantinha uma oculta dúvida sobre a sinceridade da cunhada. Não que Eva apelasse sempre para o patético
e para os travesseiros de rendas. Não! Podia ser vivaz, interessante, chique - palavra muito sua. Tomava admiravelmente conta da casa e alimentava Richard suculenta
e abundantemente. Mas os seus métodos não eram os de Lucy. Para esta, nada desses métodos felinos para conseguir a sujeição de um homem. Nada disso! Lucy atingia
seus objetivos por meios menos complicados, com uma honestidade menos
equívoca de propósitos. Assim, conservou-se alheia ao espetáculo daquelas carícias conjugais. Depois desceu com Richard e levou-o até a porta.
Ficando só, entregou-se sem demora ao trabalho. Encontrou na cozinha Charles e Vera que eram vigiados pela criadinha. Esta desejava ardentemente servir, mas não
tinha experiência alguma.
Charles, um menino de nove anos, já dotado de acentuada taciturnidade, mostrou subitamente um sorriso extremamente simpático; e Vera, que aos cinco anos tinha um
conciente orgulho dos seus cabelos de cor de linho, que lhe desciam pelas costas abaixo, homenageou-a apenas com uma gradual supressão das lágrimas que derramava.
Para Lucy, aquele não foi um dia ameno. A casa estava em grande desordem, a criadinha, a despeito da sua boa vontade, não tinha prática; as crianças, à medida que
se familiarizavam com ela, tornavam-se extremamente incómodas, e Eva era uma enferma difícil. Contudo, Lucy teve a satisfação de ter cumprido seu dever. Não que
se atribuísse por isso as asas de um anjo - si asas batessem naquela casa, estariam presas aos alabastrinos ombros de Eva - porém sabia que com sua obstinação inata
realizara lealmente aquilo que se traçara.
Richard, regressando à tarde, sobraçando embrulhos e com um ar perturbado, encontrou a lareira varrida e toda a casa mergulhada de uma confortante tranquilidade.
Subindo - com uma agilidade notável em um homem tão pausado
- ao quarto de dormir, levava, com algumas flores exóticas, um ramo de lírios, - símbolos de pureza - e um cacho de magníficas uvas pretas, que despertavam o apetite.
Permaneceu devotadamente algum tempo à cabeceira da sua inválida: depois, descendo com mais lentidão, com a testa desenrugada, veiu à sala de refeição e instalou-se
defronte do seu jantar.
- Eva parece contente, exclamou numa voz que se aproximava mais do seu costumeiro tom judicial. E eu, naturalmente, também estou satisfeito.
- Eva se alimentou bem, disse Lucy passando-lhe as costeletas com ervilhas. Comeu um doce que eu fiz e também um frango grelhado, além de diversas batatinhas.
- Ela belisca apenas, observou Richard atacando seu prato. É um verdadeiro pássaro! Espero que você não tenha consentido que as crianças a incomodassem. - - Parou
bruscamente, traindo surpresa: - Essas ervilhas... devo ?dizer que estão muito toleráveis.
Lucy sorriu; tinha resolvido mostrar a Richard aquilo de que era capaz. E, aparentemente, ele achou o resto da refeição também tolerável, porque enquanto acariciava
com o guardanapo os lábios vermelhos e o lustroso bigode, disse:
- Realmente, Lucy, eu lhe estou muito grato. Tudo estava muito apetitoso, quase tão bom como o que Eva costuma fazer!
Lucy nada retrucou, mas pensou que si Eva fazia melhor do que aquilo, Richard era um homem bem nutrido.
- Sabe? continuou ele, fixando-a cota um novo interesse. Si você não estivesse com tanta pressa de partir, essa estada aqui poderia ser muito melhor para você.
A frase fora vaga, mas o sentido não o era. Lucy corou ?bruscamente. Sacrificar Frank pela sua Eva! Francamente!
- Si você é tão feliz quanto eu o sou, compreenderá porque não fico, replicou indignada.
Richard franziu a testa, mas, considerando aquele seu novo estado de espírito, não aceitou o desafio. Em outros tempos, isso teria motivado uma daquelas suas ásperas
discussões. Levantou-se:
- Bem, disse calmo. vou lá em cima fazer um pouco de companhia a Eva. Sei que gosta de ter-me junto de si.
Lucy contemplou-lhe as costas, quando ele se voltou para partir, com um curioso franzir de lábios; depois, rapidamente, começou a tirar a mesa. com uma espécie de
veemência, ajudou a criada a lavar os pratos e foi imediatamente para a cama.
Já deitada, pensou que preferiria muito estar em casa, administrando sua propriedade. E durante os dois dias que se- seguiram, este sentimento intensificou-se. Richard,
bem ?observado, depois do longo intervalo em que o deixara de ver, parecia ter-se tornado ainda mais egoísta e mais obcecado pela mulher do que nunca. Eva melhorava
rapidamente e reassumia seu sorriso afetado e seus ares preciosos. Aproveitava-se largamente das prerrogativas do seu estado para ter caprichos. Caprichos quanto
à dieta, roupas, flores. Apenas a lembrança de que havia recebido hospitalidade em casa de Richard - quando o pai de ambos, ao morrer, havia deixado muito pouco,
- impediu Lucy de lamentar seu impulso de fraterna assistência. Contudo, mesmo naquele tempo, ela havia pago essa hospitalidade com pequenos serviços que prestara.
Seria possível que Richard estivesse apenas se
aproveitando dela como Frank sugerira? A esse pensamento Lucy indignava-se com a vivacidade que lhe era característica.
Além disso, punha-se a imaginar a situação em que estaria sua própria casa. Peter estaria bem? Ter-se-ia Netta lembrado das suas instruções ? Anna! Estaria Anna
sendo bem tratada? E Frank? Sim, sobretudo Frank! Estaria sentindo-se bem? Teria abandonado seu mau humor para se ocupar razoavelmente em entreter sua prima e hóspede!
com um brusco sentimentalismo convenceu-se de que seu lar era, um lugar de doçura. Considerando a tranquilidade com que partira, estranhou a grande impaciência com
que esperava a hora do regresso.
Saudou terça-feira com um suspiro de imenso alívio. Na tarde anterior, chegara uma nova cozinheira que passara por um rigoroso exame, da parte de Richard. E agora,
a nurse.
À tarde, Lucy já pronta para a viagem veio ao quarto de Eva pela última vez. Quantas vezes subira ela aqeules degraus, transportando uma bandeja durante os poucos
dias passados em "Lê Nid"!
- Bem, disse com encantadora modéstia, espero ter sido de alguma utilidade.
Eva sorriu docemente, sentando-se na cama com desenvoltura, mas ainda um pouco frágil - assim o afirmava Richard.
- Beijem a tia Lucy, meus filhos, ciciou, e mandem lembranças a Peter.
Charles e Vera, que se mantinham tesos como para tirar uma fotografia ao lado da cama, adiantaram-se obedientes.
- Você terá notícias nossas pelo Natal, disse Richard significativamente. Regressara cedo do escritório; agora, apertava-lhe calorosamente a mão, num másculo aperto
agradecido e conduzia-a até o portão do jardim.
Em caminho, Lucy vinha remoendo diversas coisas: Richard poderia, ao menos, tê-la acompanhado até a estação. Eva, em suas despedidas, poderia ter mostrado mais gratidão.
À medida, porém, que o trem se afastava de Ralston, seu descontentamento se perdia gradualmente na calorosa expectativa que despertava em seu íntimo.
Utilizando-se inteligentemente do seu bilhete de volta - Richard nem ao menos pensara em reembolsá-la do dinheiro ?da passagem - ela incluiu Glasgow em sua viagem.
A renda de oileys foi finalmente adquirida - Mister Gow em sua grande casa de comércio tinha exatamente o que ela queria - e com
um espírito muito vivo de generosidade reacionária - ao menos, ela provaria que a mesquinhez não era atributo dos Murray - adquiriu um brinquedo para Peter, cigarros
para Frank e, para Anna, um encantador vidrinho de água Flórida. Tomou chá na confeitaria Paltock. Sentada à pequena mesa de mármore, as faces coradas, como ficavam
sempre depois de um gole de chá quente, o lencinho de renda delicadamente estendido no regaço, sentiu-se invadir por uma sensação de plenitude, de intensa felicidade.
Cumprira seu dever, satisfizera seu sentimento de lealdade à família e agora voltava para casa, para Frank. Sabia que era um pouco ridículo que, estando casada há
tantos anos, desejasse tão ardentemente essa reunião com o marido. Ridículo ou não, assim era, porém. Subitamente recordou outro regresso, há dois ou três anos,
quando, voltando de uma estada na praia com Petfr, Frank a esperava, surpreendendo-a com flores colocadas em seu quarto e uma garrafa de ckampagne sobre a mesa.
Champagne! E rosas! Extraordinária, incrível ternura da parte de Frank. Mas ele o fizera, e como o apreciara! com os olhos distraídos e brilhantes reviu-se regressando,
ao cair da noite, pela estrada que escurecia à medida que ela avançava em direção à casa, e relembrou todos os detalhes daquela inesperada acolhida. Fenómeno sem
exemplo! com um sobressalto, levantou-se e pagou a conta; teria que se apressar para apanhar o trem em Charing Cross. Chegou a tempo e instalou-se num canto do carro,
ainda um pouco ofegante.
IV
ENQUANTO o trem que transportava Lucy chegava silvando. através da bruma, com a espantosa velocidade exigida pela época, Anna e Frank se achavam instalados à lareira
da sala de jantar da sua casa. Pouco antes haviam tomado o chá, cujos restos permaneciam sobre a mesa; e agora, cada um deles fixava uns olhos meditativos no coração
das chamas. Parecia ridículo fogo em agosto. Mas nessas latitudes as tardes são frias, os ventos das noites, ásperos, e nada é meteorológicamente impossível. Já
a lâmpada estava acesa, espalhando um brilho amarelo na sala confortável e banhando os rostos das duas pessoas que ali se achavam, conferindo-lhes,  talvez em
virtude da suavidade da luz, uma vaga identidade de feições e expressão.
Eram primos, sem dúvida; a mãe de Frank e o pai de Anna haviam sido irmãos. Isso naturalmente explicava essa vaga semelhança. Mas, no momento, a semelhança era mais
pronunciada, era inerente, racial; a manifestação de uma raça comum de camponeses, sublimados por uma geração de prosperidade. Sob a pele, eram idênticos, não apenas
da mesma família; da mesma espécie, também.
Como permaneciam silenciosos, podia-se perceber, vindo da cozinha, um ruido vago e intermitente de riso agudo, indicativo de que Peter se estava divertindo com Netta,
quando - segundo as leis que governam o universo - devia estar se despindo para ir para a cama. Depois de uma profunda reflexão, Moore disse calmamente, enquanto
balançava a cadeira e exalava uma baforada de fumo:
- Há muito tempo que esse jovem devia estar na cama! Anna ergueu os olhos do fogo e deixou-os cair sobre o
primo com um leve sorriso:
- Deixe-o divertir-se enquanto pode, Frank; é uma coisa que se deve sempre admitir. Além disso, ele tem se portado bem e, para Netta, é bom rir um pouco. É uma esplêndida
criadinha.
- Pelo amor de Deus, murmurou Frank com um olhar para a porta, não a deixe ouvir chamá-la criada. Ela se despediria imediatamente. São muito convencidos, na família.
São respeitáveis também! Ela tem um parente no ministério, assim me disse Lucy.
Houve um curto silêncio; depois, Frank olhou para o templo de mármore negro, fachada imponente onde aparecia o mostrador do relógio, sobre a lareira, e falou, pensativamente:
- Ela chegará dentro em pouco... Lucy, quero dizer!
- Eu sei a quem você se refere, respondeu, continuando a sorrir com seu estranho sorriso. Não é preciso explicar. Você já olhou para o relógio uma meia dúzia de
vezes nestes últimos dez minutos.
Frank baixou a cabeça, esboçando um movimento de desculpa com o que restava- do seu cigarro, o que lhe serviu também para depositar a cinza dentro do fogo.
- Você está laçado, Frank, disse Anna alegremente. Está sim! e não procure negá-lo. É um homem casado e instalado na vida. Essas três noites você esteve aí sentado,
sem nada fazer a não ser cochilar e perguntar a si próprio quando voltará ela!
- Ora essa! balbuciou ele, pouco à vontade.
- Vê-se claramente, continuou Ánna. Acho que é por isso que você mal falou comigo quando eu cheguei - disse com um tom de provocante ironia. Você não queria um mau
traste como Anna Galton em sua casa agradável e limpa.
Aquilo, dito assim, pareceu despertá-lo da sua letargia.
- Deixe disso, Anna! exclamou subitamente, endireitando-se na cadeira. Demo-nos muito bem estes últimos dias, somos bons amigos, você sabe disso.
- Mas é verdade mesmo, não é, Frank? Você não queria que eu viesse.
- Em absoluto, balbuciou ele. Ninguém ficou mais penalizado do que eu, quando você... quando você teve aqueles aborrecimentos.
- Aborrecimentos, ecoou ela, enquanto seus olhos profundos pareciam zombar dele. Isso é muito seu, Frank. Você não enfrenta os fatos. Por que não é categórico e
não diz; "Quando você teve aquela criança"?...
Frank encolheu-se àquela frase pronunciada tão calmamente ao pé da sua lareira. Si bem que não contivesse amargura e tivesse sido formulada com naturalidade, definia
muito cruamente a objeção que ele formulava à vista de Anna: evocava demasiado vivamente aquela tragédia, aquele infortúnio que havia desesperado a família, cinco
anos atrás, em Belfast. O fato ocorrera no tempo da sua estada lá, e ele suspeitava que a descoberta do estado dela tinha- sido o princípio do fim do velho Galton.
Fora uma coisa desagradável para Anna, embaraçada por um filho ilegítimo, abandonada - ele estava certo disso - pelo pai da criança, cujo nome se recusara pertinazmente
a revelar! Assim era Anna. Nunca se podia penetrar completamente seu pensamento. Sob a plácida e agradável superfície havia uma profunda e
turbulenta corrente. Durante esses dias, assim como também nos que passara em Levenford, ele não demorara nela o. pensamento; contudo, apesar de Anna não inspirar
compaixão, Frank sentia para com ela uma vaga e indeterminada simpatia. Ela enfrentara tudo aquilo - com grande indignação do seu pai e pasmo geral - com uma espécie
de impassível mutismo que havia conquistado Uma certa admiração da parte de Frank, mesmo contra a sua vontade. Agora ele a olhava constrangido:
- Seja como for, Anna, observou pausadamente, eu o senti muito. Senti mais ainda quando soube que o garoto
tinha morrido - Deteve-se. - Por que não se casou você logo no princípio, para regularizar as coisas?
- São precisos dois, para isso, disse Anna com franqueza. Além do mais, não creio que me adaptasse aos moldes do sagrado matrimónio. Basta que eu contemple o modo
por que você vive, para saber que gosto de coisas um pouco menos insípidas. Afinal, eu tive os meus bons momentos de vez em quando, nestes últimos anos.
A inconsequência do seu tom não era forçada, sua independência não era afetada, a extraordinária declaração da sua filosofia não era simples atitude. i .
- Sabe, Frank continuou sorrindo suavemente; eu gostaria de sacudi-lo um bocado. Você esteve aqui nesta casa comigo durante três noites e deu-me tanta atenção quanto
daria a um saco de farinha; e olhe que eu sou muito mais interessante do que um prato de mingau. Por que não desperta Você está dormindo, homem! Passa pela vida
sonhando.
Frank olhou-a interrogativamente.
- A casa em que moro não é um sonho ?- disse lentamente. Isso não estava dentro dos seus moldes habituais, mas, de algum modo, ele se sentia impelido a defender-se;
e acrescentou : - E não sonhei a ordem do meu lar, nem o bom emprego que consegui.
- Oh! eu não estou falando de negócios, interrompeu ela; deixemos isso por um pouco. Sempre gostei de você, Frank, e não posso vê-lo mergulhado na rotina; você teve
sempre opinião própria; e naqueles velhos tempos de Levenford, eu creio que tinha alguma intenção para comigo.
- Não, replicou Frank involuntariamente, não creio que tivesse.
- Francamente, disse ela rindo, tenho vontade de baterlhe, Frank. Creio que foi Lucy quem o transformou desse modo. Você lhe pertence demasiadamente. Quando ela
partiu, pediu-me que cuidasse de você como de uma linda peça de porcelana que ela possuisse e não quisesse que roubassem. E eu já o tinha percebido antes, logo que
pisei nesta casa. Isso me irritou um pouco. É isso mesmo, Frank! Um rapaz bonito como você deveria tirar mais proveito da vida. Você ficará velho antes do tempo,
si não abrir os olhos!
Frank fixava o fogo, apático às suas palavras, contemplando sua própria complexidade de carater. Realmente, era um homem exquisito. Sabia mais ou menos o que ela
queria dizer com aquilo de querer despertá-lo. Mas isso não o interessava. Tinha tido seus impulsos no passado, naturalmente

- quem não os tem? - Mas tinham sido transitórios na maior parte, e insatisfatórios em sua realização.
- Eu sou assim! disse afinal, é feitio meu.
- Si você continua, prosseguiu ela com aquele leve ar de sarcasmo, arranje alguns amigos para distraí-lo, compre uma bicicleta para passear, ou ainda, crie um cachorro,
um bom cão de caça, rosnador.
Frank olhou severamente para ela: estaria Anna divertindo-se à sua custa? Mas o rosto dela conservava-se brando, agradável. Abruptamente sacudiu a cabeça e jogou
fora o cigarro.
?- Não é o meu género, Anna. Não gosto de me incomodar.
Novamente ela riu, uma das suas raras gargalhadas, e ele, levantando rapidamente o olhar, correspondeu sorrindo àquele riso.
- Bem! Em vista de você não ir passear de bicicleta, quer fazer o favor de ser gentil para com sua prima enquanto ela está aqui? perguntou Anna. Ou vai me deixar
ficar por aí, aborrecida ? Afinal, até em Levenford, Joe me proporcionou uma boa estada; mesmo gordo como é, conseguiu arranjar-se para isso. Mas você, Frank, entretém
uma senhora sentado numa cadeira e pensando em sua mulher.
Ele corou ligeiramente, como apanhado em falta, um pouco perturbado, como si ainda não tivesse examinado os fatos através desse prisma e, como arrependido, disse:
- Eealmente acho que tenho sido um bocado incivil, esses dias. - Hesitou e acrescentou depois, animado de um influxo reacionário de tardio entusiasmo: - vou ver
si consigo melhorar as coisas para você.
- Agora, sim! declarou Anna, como si tivessem eoncluido algum pacto. Confio nisso.
- Muito bem, assentiu ele; e cruzando as pernas, entrincheirou-se atrás do fumo de um novo cigarro. Passaram-se alguns momentos de silêncio, interrompido apenas
pelo tictac do relógio.
Anna estudava o primo com sua curiosa maneira de observar sem parecer fazê-lo. A luz banhava-lhe os cabelos negros, as faces cheias e os olhos pestanudos, dando-lhe
um estranho ar de mistério. Contudo ela não era misteriosa, apesar de possuir alguma sutileza quando se dirigia a alguém. Seus pensamentos eram pensamentos comuns,
tocados por seu ceticismo e por um espírito naturalmente satírico. Raramente exprimia esses pensamentos. Fechava-se habitualmente
numa espécie de silêncio defensivo, sem malícia, sem tristeza, devido em parte à sua .história. Traída, em um momento de fraqueza, pelo seu amoroso temperamento
de irlandesa, perdera a virgindade certa noite em um campo úmido, quando voltava de uma " Confraternity Dance". Seu amante pareceu achar subitamente a América mais
atraente que suas responsabilidades e deixara-a. Ela não se queixou; guardou silêncio, confessando apenas a si própria o seu sofrimento. Resolvera não deixar de
gozar a vida, no futuro, e enfrentou-a sem complicações de sentimentalismo.
Era, de um certo modo, avançada para a época. Conservava um pouco da sua rudeza de aldeã sob o refinamento exterior, sendo atraente, vigorosa e fortemente dotada
de temperamento.
E agora, sentada defronte de Moore, acariciava a ideia
- não maligna, antes provocadora e satírica - de despertá-lo da sua inércia marital. Sempre gostara de Frank gostava da maioria dos homens - e, de outra parte, era
inevitável que Lucy lhe despertasse antipatia; Lucy, cujo idealismo e sentimento de posse repercutiam tristemente nela. Seria divertido contrariar astutamente aquele
estado de coisas.
De repente, fez um movimento mais vivo que de costume.
- Esplêndido! disse, com leve zombaria. Agora estamos nos divertindo muito!
- Como? indagou Frank surpreendido pela frase e por aquele súbito bom humor.
- Você está se esgotando com isso de me distrair, observou ela: inerece um copo de cerveja por esse esforço. - E, levantando-se, foi em direção ao aparador. - vou
lhe servir um, e creio que tomarei outro, também.
- Não sou muito amigo da cerveja, falou Frank vendo-a tirar uma garrafa do pequeno guarda-louças. Nem costumo beber esta hora. - Isso significava que Lucy não gostava
que o fizesse. Em resposta, Anna olhou-o por cima do ombro, depois, abrindo a garrafa, encheu dois copos e ofereceu-lhe um deles.
- Vamos, Frank! isto lhe fará bem. Beberemos pela nossa maior compreensão.
Meio contrafeito, Frank sorveu apenas um gole e descansou o copo sobre o mármore da lareira. Nesse momento, abriu-se a porta e Peter entrou correndo na sala.
- Ouviu, papai! exclamou ofegante. Estive lutando com Netta e venci. - Na realidade, não vencera; quando culminava a luta, fora enxotado ignominiosamente da cozinha
com a concha da sopa; mas sentia uma necessidade imperiosa de crear em torno de si uma atmosfera de triunfo. Depois, apoiando-se sobre uma única perna, perguntou
com estudada inocência: - E eu posso ficar acordado mais um pouquinho, papai ?
?- Passa já muito das sete, meu pequeno, observou Moore. - Não era forte em severidade paterna. Só em pensar nisso não se sentia bem.
- Eu queria esperar mamãe! implorou Peter. Tenho a certeza que ela vai me trazer alguma coisa. Juro!
- Deixe-o ficar, Frank, disse Anna. Não há mal algum nisso.
- Esplêndido, gritou Peter, que deu o caso como resolvido. E tomando seu Ilans Andersen, jogou-o no tapete, depois instalou-se defronte com um espalhafato que denotava
sua alegria. De fato, andava mais bulhento que de costume e, depois que Lucy partira, seus joelhos e orelhas haviam deixado de ser imaculados.
- Acho que vou ler agora Tinder Box, anunciou E encontrando a página, fincou os cotovelos no chão, apoiou o queixo nas mãos e pôs-se a ler.
Novamente o silêncio caiu sobre a sala; de súbito, porém, foi interrompido por um som ligeiro - um leve e vivo soar de passos no jardim lá fora. A chave girou na
fechadura da porta, o passo foi se tornando mais rápido, quase como numa corrida pelo hall; depois, vivamente, a porta se abriu e Lucy irrompeu na sala.
- Estou de volta, exclamou. Estou de volta, minha gente!
Moore levantou-se precipitadamente.
- Lucy! Ainda bem, disse sem naturalidade. Apesar de ter tido a antecipação do seu regresso, traiu
perante Anna um embaraço característico, enquanto, levantando-se, depôs meio contrafeito o copo que apanhara um momento antes.
Emoldurada na porta, Lucy parou surpreendida, ao que parecia, contemplando a cena, uma tal pintura de felicidade doméstica que por certo deveria encantá-la! Frank
e Anna, ladeando a lareira, cada qual ocupando uma cadeira de balanço, e Peter estendido no tapete entre eles.
Contudo seu sorriso tornou-se indeciso. Por que seria que nenhum deles manifestava alegria à sua chegada? E aquele copo ? Não queria se tornar demasiado severa,
mas... cerveja assim depois do chá! Notou que Anna tinha um
copo igual, convenientemente colocado sobre o mármore, perto dela. Anna tomando cerveja com seu marido! E seu olhar, errando em torno, recolheu num relance uma dúzia
de detalhes que nenhum outro olhar poderia ter percebido; uma flor meio murcha num vaso, uma nódoa na toalha da mesa, os joelhos de Peter, uma mancha de fumo no
seu imaculado abat-jour.
A seu pesar, sentiu sua exaltação abater-se ligeiramente, num vago sentimento de decepção.
- Não me parece que vocês estejam muito satisfeitos, com a minha chegada, observou, mantendo com dificuldade o sorriso. Pensei que vocês iriam à estação me esperar.
- Não me lembrei disso, balbuciou Moore, conciente do próprio constrangimento.
- Que foi que você me trouxe, mamãe? perguntou Peter pulando alegremente. Mostre-me depressa, depressa!
Imóvel, de pé, o olhar já agora demonstrando alguma, contrariedade, Lucy deixou o filho despojá-la dos embrulhos. Seria que ele pensara apenas no proveito material
que ela lhe pudera proporcionar?
- Está muito bem! concordou. Rasgue o papel e desarrume tudo o mais que puder. - Adiantou-se quase que com esforço e começou a tirar o chapéu e as luvas. Não devia
mostrar-se ridícula. Um copo de cerveja à noite, não era nada. E como podia Frank ir abraçá-la, estando Anna ali presente! - De qualquer modo, exclamou com pretensa
amabilidade, estou contente por ver que vocês se tornaram novamente amigos.
- Nós nunca fomos outra coisa, respondeu Anna suavemente e, sem o menor constrangimento, sob o olhar subitamente fixo de Lucy, sorveu um gole do seu copo e cruzou
as pernas diante do fogo luzente.
- Está bem, disse Lucy lentamente. E sem nenhuma razão precisa, todo o bom humor abandonou-a e sentiu que sua chegada estava completamente estragada.
- Estou contente por vê-la novamente em casa, disse Frank constrangido, esfregando o queixo. Sentimos muito a sua ausência.
- É. Vocês parecem estar contentes, respondeu ela com um pequeno sorriso forçado. Vamos, Peter. É mais que hora de você ir para a cama.
Era absurdo! Entretanto, seus olhos se enevoaram subitamente e, ao pensar na antecipação que apaixonadamente
formara da reunião com Frank, uma profunda e pungente angústia nasceu-Lhe no peito.
Voltou-se bruscamente e retirou-se da sala.
No dia seguinte, que era o aprazado para a visita a Edward, Lucy voltara a ser completamente a mesma. Gostava de excursões daquela espécie: não era bem uma visita
necessária, mas uma oportunidade de vestir-se com elegância e uma ocasião de mostrar o garbo, a inteligência e a perfeita educação do filho. Sua natureza sociável
impelia-a também a visitar os parentes do marido apesar da negligência de Frank nessas coisas. Na realidade, Frank desdenhava abertamente o cumprimento desses deveres.
Enquanto vestia em Peter o saiote escocês, recomendava-lhe expressamente que se portasse bem:
- Lembre-se de dizer sempre "faz favor" e "muito obrigado", explicou enquanto apertava firmemente a correia da sua bolsa de couro peludo, o sporran dos Highlanders.
Temo que Anna tenha andado estragando você. E não faça alusões pessoais, ou então ficarei mais do que zangada!
Em uma visita anterior, havia dois anos, Peter a confundira inteiramente, com uma ingénua referência à cor do nariz de Miss O Kegan.
Peter prometeu ser bonzinho e manter uma atitude perfeitamente polida. Excitado pela perspectiva da viagem, pulava de vez em quando, de modo que Lucy teve muita
dificuldade em lhe abotoar a jaqueta verde-escuro, de botões quadrados de metal.
- Será que Eileen ainda tem o gato amarelo? E quem será que nos vai levar? Dave ou Angus? perguntava Peter descansando o corpo, ora num, ora noutro pé. Gostaria
de que o mar estivesse forte, também. Gosto de umas sacudidelas.
- Ah! Gosta, não é ? disse Lucy a quem apenas a vista de um mar agitado já dava náuseas. E você não tem pena da sua pobre mãe? Esteja quieto, menino!
- Leve um limão para chupar, mamãe, sugeriu Peter com fingida inocência.
Ela o olhou de lado, pensando consigo mesma que ele era bem filho do seu pai. Tendo sido persuadida a adotar
aquele preventivo em sua última viagem, tais lhe aviam sido as consequências do remédio, que Frank falara nisso ainda muitas semanas depois.
- Pronto, disse afinal, dando-se por satisfeita, afastando-o um pouco de si, para contemplá-lo. Depois, tendo feito uma iuspeção final nas unhas e orelhas do filho,
foi-se ocupar um pouco da própria toilette.
Seu melhor vestido era o grená, de tecido de lã estampado de branco, um desenho que lembrava flocos de neve. Zibelline era o pomposo nome da fazenda, e o corte realmente
era bonito. A saia caía Lindamente e a jaqueta curta era debruada de veludo cor de vinho. O chapéu, uma pequena toque de chenille, ostentava penas de galo preto
que caíam fartamente de lado. Luvas pretas, de pele de cabrito, pespontadas de branco. A carteira de couro, "a última moda", pendia elegantemente de uma cadeia de
metal.
Para completar tudo, borrifou algumas gotas de água de ?Colónia no lenço. Depois, com um suspiro, deu-se por pronta. Elegante, arranjada e ingenuamente contente,
bateu de leve na porta fronteira à do seu quarto e entrou no quarto de Anna.
- Já está pronta? perguntou.
- Sabe de uma coisa? disse Anna, que estava sentada na borda da cama, não estou com vontade de ir. Não gosto muito de Edward. Ele é um camarada tão complicado! Vão
tu e Petèr. Eu fico para servir o chá a Frank.
O olhar de Lucy perdeu a vivacidade.
- Netta é perfeitamente capaz de servir o chá a Frank, respondeu vagarosamente. Fez uma pausa e continuou: E você teve convite especial.
- Não me incomodo muito com isso, falou novamente Anna.
- Mas por que ? Está um dia tão bonito! insistiu Lucy sem poder compreender tal atitude. Será agradável sair.
- Você gosta de agir como entende, não é verdade, Lucy? disse Anna sorrindo muito agradavelmente.
- Sim, concordou Lucy corando. Claro!
- Está bem! exclamou Anna repentinamente. Irei. Houve um momento de silêncio. Depois Lucy voltou-se
e, saindo do quarto, desceu pensativamente as escadas.
- Que tal estou, Netta? perguntou distraída, girando no meio da cozinha. Havia alguma confiança entre ela e a empregada.
- Está magnífica! exclamou Netta, pondo a mão na cintura e recuando um pouco para apreciá-la.
- Você está linda, mamãe! comentou espontaneamente Peter. E ficaram ali à espera de que Anna descesse.
- Andou tudo bem enquanto estive fora? indagou-Lucy depois de ter consultado seu relógio. Mal sabia o que estava perguntando e fizera-o distraída. Por tê-lo notado,
talvez, é que Netta, criatura de confiança como era, "uma pérola de rapariga", se dignou responder.
- Tudo bem, muito bem.
Nesse momento a porta abriu-se e Anna entrou vagarosamente, sem pedir desculpas pelo atraso. Trazia tão negligentemente seu vestido escuro, que Lucy - que tinha
reações prontas - qualificou imediatamente o seu de flamboyant.
- É uma pena que Frank não esteja aqui, disse Anna; assim iríamos todos juntos.
- Ele está trabalhando, respondeu Lucy um pouco secamente. Você bem o sabe.
Frank enviara a Edward, por intermédio de Lucy, um recado satírico, e esta lhe declarara francamente que não o transmitiria.
Tomaram todos um dos caminhos que iam ter ao embarcadouro do velho Bowie; as duas mulheres caminhando juntas e Peter trotando ao lado de sua mãe, que o segurava
prudentemente pela mão.
- Este caminho é mais curto e mais bonito, disse Lucy com um ar de quem tem as responsabilidades de cicerone, enquanto andavam por cima das agulhas secas dos pinheiros.
Realmente, era muito mais simples para os Moore fazer uso da pequena lancha a vapor dirigida pelos irmãos Bowie do que andar uma milha até o porto para tomar o vapor.
Além disso, os Bowies eram simpáticos; Dave e Angus, os irmãos gémeos que, continuando a profissão do velho pai," construíram suas embarcações, alugavam seus barcos
de remo e dirigiam o Eagle, pequeno transporte para carga e passageiros, tudo com muita afabilidade e desenvoltura.
Tanto Dave como Angus - que eram tão semelhantes que pareciam um único homem - admitiam em seus barcos, em pé de igualdade e sem maiores formalidades, um homem,
um carneiro, ou um saco de batatas.
Tocava a Dave, nesse dia, dirigir o Eagle, que era tripulado por um só homem. Dave era um corpulento rapagão que usava seu casaco de oleado com uma graça descuidada,
Ao ver as pessoas da casa Moore, interrompeu seu eterno sorriso e corou por qualquer razão obscura.
- Como vai passando seu pai, Dave? perguntou alegremente Lucy.
- Bem, obrigado, respondeu o rapaz recomeçando a sorrir. Melhor estaria, diz ele, se ainda possuísse pernas! Assim definia sua debilidade o antigo marinheiro.
- Querem embarcar já? indagou Dave. Galantemente ajudou-as a instalarem-se na popa do Eaglc onde em sua honra havia sido colocada uma longa almofada de pelúcia.
E o Eagle afastou-se do cais deixando um círculo de espuma que se desfez e outros que rolavam em direção à praia, em uma sucessão lenta de pequenas vagas.
O mar estava manso, coberto de uma bruma diáfana, através da qual o sol brilhava difuso. Para Lucy, tranquilizada pela quietude reinante, a partida nessa luz irisada
era lindíssima.
- Que beleza! exclamou, dirigindo um sorriso amigável a Anna. Esta, com as mãos no regaço, o corpo imóvel, o olhar remoto, inclinou a cabeça aquiescendo. Suas palavras,
sem resposta, pareceram néscias a Lucy, que corou como si a camaradagem que oferecera tivesse sido repelida. Franziu as sobrancelhas, pois seus comentários não eram
recebidos assim, habitualmente. Fixou o perfil de Anna, ligeiramente ofendida por aquela súbita apatia. Depois, voltou vivamente a cabeça e pôs-se a falar com Peter.
Quando se aproximaram de Port Doran, o menino repentinamente se levantou e apontou todo excitado:
- Olhem! - gritou, o vapor Rathlin!
- É isso mesmo, Peter, disse Anna inesperadamente. Foi nele que eu vim.
- Anda bastante bem, comentou Peter sorrindo. É uma regular "banheira"!
Juntos, observaram o vapor irlandês sair do porto e enveredar pelo canal, deixando escapar um rolo de fumo escuro. Depois, como o Eagle aportasse, trataram de desembarcar.
Port Doran era uma ruidosa cidade, prosperando pela força e pela doçura - com suas destilarias e refinações de cana de açúcar - e estendendo-se pela colina que subia
gradualmente desde o nível do mar.
Em meio à subida, estava situado o Presbitério de S. José, uma edificação cinzenta ocupando o mesmo plano de terreno .onde se achavam a escola e a igreja, o conjunto
discretamente cercado por uma enorme grade de ferro de desenhos francamente eclesiásticos.
Penetraram os três no recinto, subiram os degraus de pedra da casa e esperaram, depois de Lucy ter tocado a campainha. Após alguma demora, uma criada de grandes
pestanas escuras e sorriso tímido abriu-lhes a porta e precedeu-os em uma sala pequena e despida, tendo por toda mobília uma mesa, duas cadeiras, um retrato do Papa
Leão XIII na parede e um retalho de oleado no meio do soalho.
- Por que não teria Eileen falado comigo? cochichou Peter com os olhos em Anna, que fixava com uma expressão impenetrável a figura entronizada de Leão XIII.
- Psiu! disse Lucy, que se havia sentado muito direita, com um ar de visita de cerimónia. Eileen conhece seu lugar. Depois você a verá.
Nesse momento entrou uma senhora já idosa, que se adiantou para eles. Era Miss O Regan, a governante, criatura alta, magra, pálida, de, cabelos vermelhos, olhos
azues e vivos e peito sumido. Trajava invariavelmente de preto, ocultando sua apagada figura, do queixo para baixo, em vestes que não revelavam nem mesmo os sapatos.
Trazia as mãos cruzadas, tinha a voz velada, e os olhos, ela os levantava apenas para revolvê-los. O1 rosário e um molho de chaves, símbolo de sua piedade e do seu
ofício, pendiam-lhe do cinto. Sua idade estacionara nos quarenta anos, e seu físico estampava constantemente o sofrimento e, quando falava da sua precária saúde,
inferia-se que ela suportava interminavelmente, como um martírio sagrado, os rigores da idade crítica. Não obstante ser coisa sabida que "morria em pé", existia
ainda. Mas apenas para servir a Deus e ao Rev. Edward Moore. Excluída a Divindade, ela poderia ainda viver, mas sem Edward, ah! pereceria inevitavelmente.
- Missis Moore! E Peter também! Como ele está cada vez mais um Moore! disse, com uma voz ainda colorida pela pronúncia de Cork. Tem o mesmo jeito da boca do pai.
Voltou-se para Anna e insensivelmente, ou assim pareceu a Lucy, suas maneiras assumiram um ar de reprovação.
- Ei-la novamente aqui, Miss Anna. Está mais forte! É isso mesmo, está mais forte!
- Não lhe posso dizer o mesmo, respondeu Anna suavemente.
Um estremecimento, que poderia ser de ofensa, derramou-se pelas magras carnes de Miss O Regan. Cerrando os lábios, voltou-se novamente para Lucy.
- O reverendo espera-a. vou levá-la para cima. Seguiram-na -todos através do corredor e pelas escadas,
até uma porta onde ela se deteve, inclinou-se e bateu respeitosamente com as unhas.
- Pode entrar, disse uma voz harmoniosa. Obedientemente Miss O Regan deixou-se penetrar em uma grande sala confortavelmente guarnecida de móveis estofados de pelúcia
vermelha, um agradável aposento banhado de luz por uma ampla janela que proporcionava uma vista majestosa da baía.
Miss O Regan, esboçando um movimento de humildade, ?- um mixto de cumprimento e genuflexão - em direção à figura reclinada na poltrona defronte da janela aberta,
falou cheia de zelo:
- Chegaram as visitas, reverendo.
O padre Moore olhou em torno e ergueu-se imediatamente. Era um homem alto, de ombros redondos, de mais de trinta anos, de cabelos tão negros quanto a sotaina que
vestia, a cabeça oval, o rosto amarelado, o nariz grande e reto, o lábio superior longo e móveu. Tinha olhos azul-claro proeminentes, cujo branco era ligeiramente
veiado de amarelo. Ned Moore, o bisonho rapaz de família modesta, que havia ingressado no seminário de Stairs desajeitado e tímido, figurava agora entre os eclesiásticos
que se tinham aperfeiçoado em Valladolid e visitado Roma. Como recompensa à virtude, a Igreja o havia galardoado com sua presente situação.
- Anna! Como estou contente de vê-la aqui outra vez! Depois de tanto tempo, isso é um agradável encontro. Muitas vezes me lembrei de você e imaginei o que estaria
fazendo!
- É muita bondade sua, disse Anna apertando-lhe a mão.
- Muito sentimos saber da morte do seu pobre pai. Espero que já agora você se tenha refeito dessa aflição. Depois voltou-se: - E Lucy, que boa aparência que tem!
E Peter, está cada vez maior... naturalmente! Deixe-me ver, deixe-me ver. É tem pelo menos mais duas polegadas!
Acariciou gentilmente a cabeça da criança, sorrindo para as primas com uma graça majestosa, enquanto Miss O Regan, no segundo plano, com as mãos seráficamente unidas,
aprovava com o olhar a cerimônia.
Quando os cumprimentos todos foram trocados, o padre Moore voltou-se para a sua governante e, incluindo-a na conversação, perguntou-lhe si estava pronto o almoço.
- Sim, reverendo, acudiu Miss O Regan. Tenho um bom almoço preparado. Há um magnífico linguado, duas aves com cogumelos e uma sobremesa digna do próprio bispo.
O sacerdote escutou-a com atenção, com as pálpebras meio descidas. Depois seus lábios apertaram-se ligeiramente e se separaram com um pequeno estalo de aprovação.
- Ah.! exclamou, si o almoço está pronto, presumo que nós também estamos!
?- Sim, reverendo, articulou Miss O Regan enlevada pelo aforismo. Servirei imediatamente.
com um sorriso submisso, escorregou como uma sombra para fora do aposento.
- Excelente mulher! comentou Bdward, quando ela já havia partido. Uma perfeita santa, nada menos. Mas não é nada forte!
- Realmente parece débil, disse Lucy. É contudo, uma cozinheira maravilhosa.
Ficara um pouco surpreendida com o padrão superlativo do cardápio de Miss O Regan. Depois de uma pausa o padre Moore continuou:
- Tem a espinha fraca. Esteve duas vezes em Lourdes.
- Depois concluiu solenemente: - Mas não houve milagre, apenas uma pequena melhora, creio eu.
- Você devia enviá-la uma terceira vez até lá, observou Anna, olhando para fora através da janela. A terceira vez é que dá sorte.
- Isso não é questão de sorte, explicou Edward; si a cura tivesse lugar, seria miraculosa.
- Era isso que eu queria dizer, concordou Anna com um ar natural.
As sobrancelhas de Edward contraíram-se: naquele momento, porém, soou o gongo, martelado sem dúvida por Eileen, pois foi uma nota sonora acima das débeis forças
de Miss O Regan.
- Bem, disse Edward imediatamente, suprimindo a observação que estivera por fazer, desçamos.
com desenvoltura tomou o braço de Lucy e assim a levou até a sala de jantar, onde a mesa, recoberta de imaculado damasco, estava servida para quatro. Depois de haver
o sacerdote invocado a bênção para os alimentos, sentaram-se e, imediatamente, a refeição foi servida.
- Um pouco de sherry? perguntou Edward desarrolhando a garrafa. Anna avançou negligentemente o copo e esperou que ele o enchesse até à borda.
- Para mim, só metade, Edward, protestou Lucy que, sem saber por que, se sentia sempre tímida perante ele. Além
disso, pensou que talvez Miss O Began não aprovasse qualquer intemperança da sua parte. Edward, porém, serviu-a generosamente.
Lucy notou com satisfação que Peter estava se portando bem. Haviam-lhe dado limonada gasosa e um rígido guardanapo branco lhe fora atado ao pescoço como uma sobrepeliz.
"Realmente", pensou ela, "Edward é a própria bondade".
De fato, era um perfeito anfitrião, amável, esclarecedor, epicurista, movendo levemente as mãos entre os utensílios da mesa, servindo ele próprio, com gestos eclesiásticos,
sorvendo o vinho com a língua, saboreando elegantemente os alimentos, criticando-os brandamente, cortesmente, e usando para esse fim as pesadas pálpebras dos grandes
olhos, com suave e sutil eloquência. E, através disso tudo, Lucy via seu olhar cair de vez em quando sobre Anna e demorar-se com estranha dubiedade.
?- Estou pensando, Anna, disse ele afinal com delicada, porém intencional alusão, naquela sua pequena frase. Espero que não tivesse sido fruto do ceticismo. Sem
dúvida que na mocidade, muitas vezes ficamos ligeiramente desviados; estou certo, contudo, de que não havia irreverência na sua intenção.
Seu ar era correto, benevolente, um pouco travesso todavia.
- Você se refere ao que eu disse a respeito da espinha de Miss O Regan, Edward? perguntou Anna quase ingenuamente.
- Não, Anna. Refiro-me de um modo geral à questão do miraculoso. Sei .muito bem que em nossos dias procura-se explicar o universo em termos de ciência e, assim,
torna-se difícil acreditar nos elementos essenciais da nossa fé. Temos uma prova em Lourdes. Essas sagradas águas (ergueu a mão) são puras e curativas.
- Sei sue Polly lá esteve para seus gases, disse Anna tranquilamente, mas não se restabeleceu. Achou a água terrivelmente fria e suja, o que não admira, com todos
esses estrangeiros que lá mergulham.
- Um milagre, Anna, replicou Edward um pouco secamente, envolve alguma coisa mais do que a simples cura de gases.
- Mas si os gases de Polly tivessem desaparecido, Edward, teria sido um verdadeiro milagre.
Houve uma interrupção oportuna com a entrada das aves, que foram servidas com Pommarã. Anna aceitou-o sem relutância, mas Lucy foi firme: quis apenas meio copo.
sentia pequenas picadas nas faces. Entrementes, Edward abandonara a teologia e explicara a verdadeira arte de servir vinhos.
Lucy escutava com atenção, mas seu espírito estava sempre preocupado com aquela distância nas maneiras para com a prima. Que haveria atrás daquilo? De algum modo
isso lhe estragava o prazer do dia.
Depois da sobremesa, Miss O Regan veio receber o veredicto sobre seus esforços. Como estacionasse na porta com sua habitual humildade, Edward, que se encostara no
espaldar da cadeira, brincando com a haste do seu copo de vinho, e tendo nos lábios um sorriso complacente, exclamou:
- Excelente! Realmente excelente!
Um grato sorriso estampou-se na fisionomia de Mis"
O Regan. "Tudo por Edward" era seu lema. Porque ela o amava. Fisicamente não; seria impossível! mas espiritualmente, era sua amante.
- Não sei si gostaram, disse Edward suavemente, voltando-se para seus hóspedes.
- Como não! acudiu Lucy com calor.
- Delicioso! ecoou Anna gentilmente.
Edward deu graças a Deus pelo magnífico almoço e, depois, subiram todos para o salão para tomar café. Aí estariam confortavelmente e à vontade. Quanto a Peter, saiu
a procura do gato amarelo.
- E Frank, disse Edward, depois que se haviam instalado, como vai passando, o rapaz? Anda cumprindo regularmente seus deveres, agora? ?- Estacou e, fixando com simpatia
o olhar de Luky, prosseguiu: - É onde sua influência se deve fazer sentir, minha filha.
- Frank não é muito... muito devoto - replicou Lucy vagarosamente, fixando os olhos em um fragmento de cinza que caíra em um botão da sotaina de Edward. Consciente
dos próprios defeitos, tinha um apego sentimental à sua religião. Acrescentou: - Contudo sei que Frank tem um coração bem formado.
- Sem dúvida, sem dúvida, assentiu o sacerdote pousando significativamente o olhar em Anna. Ele pode pretender zombar, como outros; porém, tem fé. Um pouco de apatia,
talvez um pouco de indiferença, alguma frieza, mas no íntima crê. E você, Lucy, murmurou juntando as pontas dos dedos brancos e visando delicadamente seu ponto de
vista, você quer muito bem a Frank para deixá-lo descuidar-se.
Ela sorriu à clarividência de Edward. O excelente almoço, o sherry, e o borgonha agradavelmente misturado ao gjierry, permitiam-lhe tornar-se sentimental.
- Frank e eu vamos indo muito bem, afirmou ela com um sorriso hesitante,
- Você é quem manda nele, falou Anna sorrindo. Não há dúvida alguma sobre isso.
- Em minha opinião, disse Edward rapidamente, isso não é nada mau para Frank. - E talvez como sua consciência lhe doesse um pouco, dirigiu a conversa para assuntos
mais gerais. Falaram da questão da educação de Peter. Ele estava crescendo, e Lucy não estava satisfeita com a pequena escola que frequentava. Era evidente, pela
expressão daterminada do seu rosto, que tinha grandes esperanças no filho. Velaria para que Peter se tornasse alguém, um dia. A uma pergunta de Edward, respondeu
que não notava no menino vocação alguma para o sacerdócio e confessou que gostaria de torná-lo médico.
- Também é bom, concordou amavelmente Edward, os médicos curam o corpo, mas nós cuidamos da alma.
Nesse momento, Anna, que há algum tempo não tomava parte na conversa, mexeu-se na cadeira, irrequieta. Mas quando o primo a olhou interrogativamente, sorriu:
?- Não é nada! Estou com sono.
Edward tirou uma última fumaça do cigarro turco que estivera fumando e alvitrou:
- Vamos dar um giro pelo jardim? Isso servirá para sacudi-la.
- Vão vocês dois, disse Anna reclinando-se na poltrona e cerrando os olhos: eu me sinto amodorrada. vou ficar aqui a cochilar um pouco.
- Como queira, respondeu Edward franzindo um pouco a testa. Erguendo-se com um ar majestoso ajudou Lucy a levantar-se, depois tomou o barrete de sobre a lareira
e, de um cabide atrás da porta, um curto casaco de lã fina. Era um velho casaco que trouxera da Espanha e que ele lançou sobre os ombros com um magnífico gesto pontifical:
e nunca paramento algum caiu mais romanticamente em alguém.
Nesse momento, Lucy pôde compreender obscuramente o temor respeitoso de Miss O Regan.
Desceram e saíram pela sala de jantar, pondo-se a passear vagarosamente pelo piso circular do jardim.
Preocupado com seus pensamentos, Edward esteve algum tempo silencioso; de repente, perguntou:
 - Que pensa você dela... de Anna ?
- Não sei bem o que dizer, respondeu Lucy sorrindo. Gosto dela, creio eu, mas é um pouco... misteriosa, não é mesmo ?
- Misteriosa! admirou-se ele. Abriu a boca como para falar; depois, subitamente, fechou-a. Houve um largo silêncio que ela esperava fosse interrompido por alguma
frase dele sobre o assunto, mas essa frase não veio. Só depois de terem passado exatamente vinte vezes por uma estatueta colorida, de braços estendidos, é que Edward
parou e disse:
- É o meu regime. Descrever vinte vezes este círculo desperta-me o fígado. - Sugeriu então mostrar-lhe a igreja, o que sempre fazia.
Sentia-se orgulhoso dessa igreja de Pugin; quando lá entraram, ele, em voz baixa, chamou a atenção de Lucy para as linhas góticas das arcadas, para a construção
dos painéis e para a escultura dos anjos de madeira do púlpito.
Pugin fizera essa igreja antes que Deus criasse Edward; contudo, observando, era impossível não se pensar que fora Edward quem desenhara a igreja, erguera-a com
suas próprias mãos e agora a possuísse com exclusividade.
- É uma obra notável, exclamou finalmente através de uns lábios respeitosamente apreciativos. Depois, olhando o rosto sério de Lucy, pensou que ela era uma boa e
ingénua criatura, não de grande talento, mas honesta, diferente e também bastante elegante. Sabia apreciar uma mulher bem vestida. Ajoelharam-se e cada um fez uma
simples oração. Um pouco perturbada pela presença sacerdotal, Lucy não se exprimiu muito coerentemente, demonstrando apenas em sua devoção para com aquele misterioso
altar, uma inarticulada gratidão pela felicidade que lhe coubera na vida. Ergueram-se ,e deixaram a igreja. Depois, subtraindo Peter de uma estreita comunhão com
Eileen, na-copa, saíram, seguindo o ritual daquelas visitas, em direção à escola! Edward também se orgulhava da sua escola! À medida que atravessava as salas de
aula - em cada classe as crianças se levantavam simultaneamente à entrada e exclamavam com uma bem treinada exatidão eufônica: "Bo-a tar-de, pa-dre Mo-ore" Edward
apresentava o sobrinho.
- Eis aqui o grande homem, dizia, acariciando a jovem cabeça com um orgulho pomposo. O traje escocês de Peter avultava na multidão de aventais rasgados e sapatos
furados. E os vários professores não poupavam elogios ao "sobrinho do reverendo".
Quando deixaram a escola, Lucy ocultava certa satisfação interior sob uma atitude de despreocupação. Para ela, essa sutil marca de distinção feita ao filho era a
mais importante alegria proporcionada por aquela visita. Apesar de tudo, quando deixou Edward e a criança, e foi sozinha, conforme era seu costume, fazer uma visita
à governante em seu quarto, conservava mesclada a toda sua satisfação uma vaga sensação de perplexidade. Alguma coisa que ela desconhecia, mas que esfriava um pouco
seu contentamento. Estava consciente, sim, de que Anna a surpreendia e que a perturbava de um modo até então desconhecido para ela. Estivera todo o dia afastada
dela e do primo! Conservara-se como que sutilmente destoada da harmoniosa concórdia reinante. Anna tinha dinheiro, boa aparência, liberdade; sem dúvida, isso tudo
lhe comunicava aquele ar de afoiteza. Mas devia haver algo fora disso. Por momentos, sua atitude descuidada parecia uma capa sob a qual se ocultavam forças estranhas
e inesperadas. Sobretudo, que explicação teria aquela distância nas maneiras de Edward e aquele estranho brilho nos olhos de Miss O Regan? Quisera interrogar Edward
francamente; ele, porém, demonstrara não querer tocar nesse assunto. Agora, contudo, instalada no pequenino e abafado quarto de Miss O Regan, Lucy lançou um olhar
especulativo sobre a governante.
- Disse-me o reverendo, começou Miss O Regan, que Peter ficará conosco por alguns dias, depois que Anna os deixar.
- É verdade, respondeu Lucy e, depois de uma pausa, ?de súbito, quase involuntariamente: - Miss O Regan! , Quer me dizer uma coisa? Por que é que a senhora não gosta
de Anna?
Houve uma pausa durante a qual Teresa O Regan corou profundamente.
- Eu não desgosto de Anna. Apenas não aprovo o que ela faz.
- Mas por que? insistiu Lucy.
- Mas como? não sabe? Seu marido nada lhe contou? Lucy abanou a cabeça, curiosa e confusa, surpreendida
?com as palavras da outra.
Miss O Regan cobriu os lábios pálidos com as pontas dos dedos, evidentemente hesitante entre o desejo e o medo.
- É melhor que eu nada lhe diga, murmurou em voz trémula.
- Mas... o que ? - Lucy, impaciente, esperava.
- Não sei como lhe explicar, gaguejou Miss O Regan. Depois, bruscamente, prorrompeu em uma torrente de
palavras.
Lucy estremeceu, profundamente transtornada. Apesar do ridículo embaraço de Miss O Regan, nada havia de cómico no fato que ela vinha de lhe revelar. Era de estarrecer!
Anna, mãe de um. filho ilegítimo!
Muito chocada, ainda surpresa, Lucy fixava a outra em silêncio. Era a última coisa que podia esperar. Nada teria perguntado si tivesse siquer suspeitado que teria
essa revelação devastadora.
- Isso aconteceu há cinco anos, explicou Miss O Regan com um movimento de angústia. E a pobre criança morreu depois, quando tinha três anos.
Os olhos de Lucy se enevoaram. Estava numa situação desconcertante, desagradável. Aquilo era perturbante e incrível como um acontecimento novelesco. Assim era, contudo.
Toda a satisfação que lhe dera aquela visita dissipou-se subitamente.
- Mas por que?... perguntou por fim. Quem era o... Miss O Regan embaraçou-se, levantou os olhos, deipois
baixou-os. Sua perturbação agora, como antes, era penosa.
- Não sei, respondeu rapidamente, nem ninguém sabe quem era o pai. Não se conseguiu arrancar-lhe o nome. Anna nunca revelou coisa alguma. O reverendo ficou seriamente
contrariado. É uma criatura esquisita, essa Anna.
- Certamente... insistiu Lucy. Talvez... - Mas suas palavras foram cortadas pela irrupção de Peter, que entrou no quarto seguido por Edward e Anna.
- Vamos chegar atrasados, mamãe, avisou a criança. Você disse a Dave que nos esperasse às quatro horas.
- Sim, concordou ela automaticamente. É verdade.
- Depressa, então! Anna dormindo e você falando, vamos perder a lancha.
Encaminharam-se para o hall.
- Eu iria com vocês, explicou Edward na porta, si não tivesse que pagar uma visita a uma velha amiga. Miss Mac Tara.
- Não vá perdê-la por nossa causa, disse Anna sorrindo. Um nome tão bonito!
O sacerdote fez despedidas muito afetuosas, insistindo novamente para que Peter viesse passar alguns dias em sua companhia no fim das férias. Miss O Regan ofereceu
também uma lânguida e humilde mão. Hileen, comprimindo o nariz do gato amarelo contra a janela da cozinha, proporcionou uma rápida visão que fez Peter rir, enquanto
desciam a estrada.
Mas Luky não tinha vontade de rir. Estava perplexa, cheia de uma espécie de inquietação sem causa, como si as novidades que lhe dera a governante a houvessem magoado.
Nenhum desgosto definido a oprimia, nem lhe viera nenhuma tardia simpatia para com Anna. Era impossível ter-se pena dela. Olhando-a, achou-a aparentemente mergulhada
em seus próprios pensamentos. E novamente cresceu nela uma espécie de irritação, inexplicável, porém real, um vago pressentimento que ela não conseguia definir.
Por que, pensava, perplexa, por que motivo Frank nada lhe dissera sobre Anna? Esse pensamento a incomodava. -Sentiu-se subitamente opressa. Emudeceu. E as palavras
de Miss O Regan voltavam com uma estranha insistência: "Seu marido nada llíe -contou?" Essa pergunta preocupava-lhe o espírito. Por que seria que Frank nunca lhe
falara nisso?
O SÁBADO seguinte era o dia marcado para o pique-nique planejado por Peter antes da chegada de Anna e que ele agora reclamava com o irrequieto entusiasmo da sua
idade. Lucy não desejava muito que aquele pique-nique se realizasse, por um motivo que ela mesma não saberia explicar. Mas Frank acolhera a ideia com inesperado
bom humor, discutindo vários projetos extravagantes, inclusive o aluguel de uma lancha para levá-los pelo braço de mar abaixo, numa expedição até "Winton HiHs. Ela
encurtava razões dizendo que remariam simplesmente em direção dos bosques de Ardmore Point. Era um lugar próximo, alvitrou em poucas palavras, e poder-se-ia ao menos
aproveitar a excursão para colher framboesas para fazer doces.
Ao preparar a comida para o pique-nique, Lucy. na cozinha, de mangas arregaçadas, encontrava-se num curioso estado de espírito. Um estado de espírito absurdo, que
havia dois dias se abatera pesadamente sobre ela.
Não mencionara a Frank sua recente descoberta sobre o que acontecera a Anna; sentia que era ele quem deveria, já de há muito, ter-lhe dito tudo. Por que não o fizera?
Ela
nada ocultava dele. Era inteiramente sua. Tinha o direito de lhe exigir a mesma coisa. Além disso, desde a visita a Port Doran, ela lhe oferecera todas as oportunidades
para que ele reparasse aquela omissão, dando-lhe aqui uma ocasião, ali uma entrada, esperando, freneticamente quase, uma tardia confidência. Mas Frank nada dissera.
Irritava-a essa palpável e deliberada feserva.
Impaciente, levantou a cabeça e viu, através da janela, Anna, Frank e Peter, de rostos inclinados e reunidos em uma íntima inspeção do solo escavado. Ouviu também
o riso agudo e excitado de Peter enquanto cavava fundo para encontrar minhocas para isca. Pôs-se a pensar que se tivesse tido conhecimento daquele episódio do passado,
não teria sido tão pronta em deixar Anna tomando conta da sua casa, de Peter, e - encarou isso com um estremecimento interior
- de Frank! Anna e Frank eram primos, sem dúvida; porém ela o havia deixado num estado de evidente indiferença e, ao regressar, encontrar -os em grande intimidade
a beber cerveja! Incrível, chocante decepção! Devia haver com certeza um elemento de vulgaridade sob a macia e indiferente pele de Anna.
"Preciso - pensou ela enquanto as sobrancelhas se lhe encrespavam - pôr as coisas em seu lugar".
Aquilo que acontecera a Anna era do domínio público. Edward sabia-o, assim também - estava certa - Joe, Polly e mesmo Lennox. Frank devia saber de. tudo. Mormente
porque o ano em que se dera a desgraça de Anna fora o ano de sua visita a Belfast. Ele devia ter percebido a perturbação que aquilo causara e, apesar disso, nada
lhe dissera.
com um gesto nervoso, procurou dominar-se e abaixou abruptamente o olhar. Tinha que acabar de preparar as coisas. Já revolvera demasiado aquele desagradável incidente
do passado. Tomou um enorme pão e cortou-o em grandes fatias que barrou rapidamente de manteiga. Sobre algumas fatias espalhou um pouco de doce de maçã feito em
casa; em outras, geléia de ruibarbo. As fatias que sobraram, usou-as para fazer sanduíches de presunto, deixando algumas sem mostarda, para o tenro paladar de Peter.
Amanteigou também uma pilha de bolos e panquecas que fizera na véspera, cortou em fatias grandes e úmidas um pudim frio, e embrulhou uma grande quantidade de biscoitos
Abernethy que tirara de uma lata sempre cheia deles.
Suas pequenas mãos meio úmidas, que tinham agora uma coloração rósea contrastando com a macia brancura dos braços,
moviam-se cheias de eficiência. Apesar da pressa, não fora omitido nem mesmo o sal para comer com ovos cozidos. Por fim, o cesto ficou cheio, coberto com um alvo
guardanapo. Descendo então as mangas, correu para a porta do jardim, si bem que não houvesse motivo para pressa.
- Pronto! gritou, atraindo os olhares dos três. Peter acenou com uma. exagerada alegria e correu para
ela exibindo-lhe a lata cheia de minhocas, esperando que o elogiasse. Mas foi na direção do marido que ela olhou. Quando este se aproximou, passou-lhe o braço pelos
ombros e declarou novamente:
- Está tudo pronto, Frank.
- Muito bem! disse ele, um pouco surpreendido por aquela súbita demonstração.
Em poucos momentos, reuniram as coisas que iam levar e Lucy novamente fez a Netta a observação de que ela ia ficar como única responsável pela casa, com todo seu
conteúdo.
Peter precedeu-os no caminho para o embarcadouro de Bowie, levando ao ombro o caniço de pesca; Moore, levando o cesto de pique-nique, seguia-o. Luey, que transportava
um pequeno cesto vazio para encher com as framboesas silvestres que colhesse, vinha a alguma distância, atrás, ao lado de Anna.
De repente, na beira da praia, Lucy estacou:
- Olhem Miss Hocking! disse em tom prazenteiro. Uma mulher, acompanhada por um cão, se aproximava.
O cachorro era um gordo fox-terrier, fatigado .pela própria corpulência e com uma longa e rósea língua pendente da boca. A senhora - pois era indubitavelmente uma
senhora
- era uma bela e imponente criatura, elegante apesar de maciça, com os redondos e modelados membros de uma Juno e uma branca face de estátua que se ajustava à sua
idade e à sua forma clássica. A cabeça, pequena, de feições regulares; o nariz, fino e estreito; a testa, serena como uma fita branca; os olhos, de um azul-marinho
profundo, grandes, límpidos, sob as sobrancelhas espessas. Usava uma saia e um casaco de bom corte, de fazenda crespa cor de cinza, que, a despeito da severidade,
se ajustavam voluptuosamente às ricas linhas do seu corpo. Luvas de cabrito cinzento-claras e uma sombrinha de cabo de marfim, eram os acessórios que lhe completavam
a toilette. Era uma personalidade! Uma personalidade ligeiramente excêntrica, Miss Hocking. E agora, ao aproximar-se, sorriu, olhando para Lucy, com
grandes olhos brilhantes, sem enrugar o rosto alegre sob os luminosos cabelos louros.
- Espero que não vá chover, exclamou imediatamente, com um pequeno sorriso. Tinha uma voz cultivada, profunda.
- Seu lindo meninozinho! disse, olhando para Peter que se afastara. Mas onde está a roupa de Higblander? Quando virá me ver novamente? - Suas faces eram habitualmente
uma série de parêntesis, pequenas esquadrias que se ajustavam uma dentro da outra. E no fundo de tudo isso, talvez reinasse um sentido de normalidade.
- O mais cedo possível, respondeu Lucy amavelmente e, voltando-se, fez as apresentações.
- Adoro crianças, disse Miss Hocbing a Anna, sobretudo meninos! - Misteriosamente, quase com coquetismo, ela parecia querer insinuar um interesse especial por crianças
do sexo masculino. Não pelos naturais anelos de uma mulher que vive só, mas por uma emoção a um tempo mais íntima e romântica.
- Vamos fazer um pique-nicme, avisou Lucy meio constrangida. Ela sabia que Miss Hocking" podia ser supremamente razoável quando o queria.
- Os fados estão favoráveis, avisou Miss Hocking, sonhadora. Céu azul, mar azul. Você nunca esteve em Capri. Aquilo lá é lindo. Navega-se sob uma çrruta; são criaturas
tão belas, os conãottieri! - Calou-se, levantou a cabeça e pareceu refletir. - Não devo detê-]os. Vamos! Embarquem! E divirtam-se! Tempo extraordinário para esta
época do ano. Bem! .Devo partir. Há uma coisa que me está preocupando agora. Muito importante!
A lembrança deste importante assunto terminou a entrevista e, como que movida por um súbito impulso, inclinou-se, envolveu Lucy em seu animado sorriso, sem que uma
só ruga lhe sulcasse o simpático rosto; depois, voltando-se, afastou-se graciosamente.
- Deus do céu! exclamou Anna. Quem é essa?
Ao ouvir o tom que a outra imnrimira a essa pergunta, as faces de Lucy coloriram-se vivamente, sobretudo porque ela achava que aquela surpresa era vagamente justificável.
- É uma das minhas amigas, respondeu secamente.
uma grande amiga. E é encantadora.
A palavra soou estranhamente nos seus lábios, apesar de ter sido curiosamente adequada.
- É um pouco exquisita, disse Anna quando se aproximavam do barco que Moore, ajudado por Dave, havia
escolhido e retirado para transportá-los. Não gostei daquela história das crianças masculinas! Ela faria uma parelha com Herodes!
- É esquisitíssima! concordou Frank completando as palavras de Anna, enquanto adaptava os remos nos seus lugares. Creio que meio maluca. E aquele cachorro que ela
possue, "Fairy", parece que ela o enche com uma bomba de ar de bicicleta.
- Ela é um bocado grande, disse Peter metendo-se na conversa, grande como... uma lancha.
Os lábios de Lucy comprimiram-se e .suas sobrancelhas franziram-se. Possuia poucos amigos em Ardfillan, onde o esnobismo era refinadíssimo, e gostava de Miss Hocking,
cujo ?conhecimento havia adquirido sem cerimônias. Haviam-se "ncontrado casualmente e o primeiro sorriso que a outra dirigira a Peter fora respondido por um cumprimento
de Lucy.
Uma palavra, de passagem, uma polida troca de palavras -sobre o tempo, tinham tido como resultado um definido estágio de amizade entre Miss Hocking e ela. Agora
já conheciam alguma coisa uma da outra. Lucy soubera que, vinda de qualquer lugar da Inglaterra, onde ensinara música, Miss Hocking já não lecionava agora, assim
como não voltara à Inglaterra. Radicara-se em Ardfillan, onde vivia só, dedi-cando-se aparentemente ao seu cão, à sua música e à vida elegante de uma mulher de gosto
e independente.
E eis que Frank se enfileirava ao lado de Anna para -criticar sua amizade com essa senhora encantadora, apesar de excêntrica. Isso a isolava e, de golpe, toda, a
irritação anterior lhe voltou exasperada. Estavam agora já todos no "barco e suas sobrancelhas ;encregparam-se ligeiramente ao observar que o marido manejava os
remos com uma inusitada exuberância. Estava querendo mostrar-se a Anna, pensou ela. E havia-se barbeado com insólito cuidado e puísera sua roupa mais nova! "Seria
também por causa de Anna? Além disso, estavam falando novamente os dois, em um tom. que ela detestava. Tendo deixado em paz Miss Hocking, puseram-se a comentar mais
uma vez a visita a Port Doran, troçando de Edward, entre si. Parecia-lhe ver agora mais claramente o carater de Anna. O motejo mantinha-se inquestionavelmente sob
sua calma exterior.
- Não é má de todo a ocupação de Edward, proferiu Anna depois de alguns comentários bastante irreverentes, que partilhara com Frank, sobre as inclinações culinárias
daquele. Tequenos segredos de confessionários. Uma bela penitente ?e... "Quantas vezes, minha filha, Tocê..."

- Doce perfume na escuridão, disse Frank sorrindo.
- O padre Moore pertence ao Jockey Club, continuou Anna mansamente. Homem agradável, gentil, suave e brando. Amigo de Miss- Mac Tara. - E, reclinando cerrou os olhos,
deixou os dedos mergulharem na água, e começou a cantarolar para si mesma: "A harpa que outrora, através das antecâmaras das Tara..."
Apoiando-se nos remos, Frank prorrompeu em um alegre riso que balouçava ritmadamente o barco.
Lucy sentiu as palpitações do coração sufocarem-lhe a garganta. Não é que fosse beata, seu respeito pela religião derivava sobretudo do seu sentimentalismo, mas
isso... tão absolutamente desrespeitoso e perante o menino, ainda por cima! Edward era pomposo, sim, mas não comera Anna do seu pão?
- Parem com isso! exclamou ela severamente. Não o permito. Dig o-o uma vez, por todas.
Vagarosamente Anna abriu os olhos e sorriu:
- É só para nos divertirmos um pouco, disse prazenteira.
- Essa é uma espécie de divertimento que eu não aprecio, replicou Lucy com uma mancha vermelha em cada face.
Houve um silêncio embaraçador. Moore sacudiu os ombros. Depois pôs-se novamente a remar. A expressão da fisionomia de Frank confrangeu Lucy. Compreendeu o quanto
o amava, naquele momento. Sentiu-se contente quando atingiram Point e aliviou-se ao ver desfeita aquela tensão ao aportarem ruidosamente o cascalho. Então, penetrando
nos bosques, seguiram o caminho que levava até Ardmore.
Pararam perto do lago. Peter, de olhos brilhantes, pediu-lhes que não falassem alto para não assustar as trutas. Depois, preparou o caniço, estendeu a linha, fisgou
na ponta do reluzente anzol uma minhoca relutante escolhida no aperto que reinava dentro da lata; feito isso, agachando-se, ficou à espera.
Observando o filho e seu interesse, o humor de Lucy modificou-se; os nervos se lhe relaxaram. Sentiu-se calma, segura, confortável. Toda aquela estúpida e incoerente
reação fora inconsistente; uma tola fantasia! Voltando-se deliberadamente para Anna, sorriu e disse:
- Vai pescar ou quer colher framboesas?
- vou esperar e ver o que é que acontece, respondeu Anna.
- Está bem! falou Frank. Vamos arranjar uma baleia para você ver.
- Fique conosco enquanto eu apanho a primeira truta, mamãe! pediu Peter.
- Acho melhor você me fazer uma surpresa quando eu voltar. Daqui para lá você poderá ter pescado já duas ou três. - Dizendo isso, Lucy apanhou seu cesto e acrescentou:
- vou ver si encontro umas amoras para você.
- Esplêndido, disse Peter, que gostava de amoras. Lucy afastou-se um pouco, voltou-se e agitou o braço,
depois seguiu novamente, internando-se no bosque. Perto de uma pedra chata, achou um taboleiro de framboesas e pôs-se a colhê-las.
O cesto que lhe pendia do braço foi ficando mais pesado. Em torno dela estendia-se o silêncio do bosque. Este silêncio, apenas perturbado pela intercorrência de
pequenos ruidos da floresta - o movimento de uma folha, o estalido de um ramo sob seus pés, o arrulho do pombo selvagem na ramaria alta
- impressionou-a. Compenetrou-se gradualmente da sua solidão: uma grande garra que a oprimia. Lançando pequenas olhadelas para os lados, apressou os movimentos na
colheita. Desejou subitamente voltar à calorosa companhia dos outros e, sorrindo de si mesma e dos seus modos pueris, pôs-se quase a correr na direção em que viera.
Ao se aproximar do lago, moderou os passos e lançou um grito de chamada.
Mas nenhuma resposta lhe chegou. Emergiu dos bosques e viu que apenas Peter ali estava. Parou abruptamente e o sorriso apagou-se-lhe no rosto.
- Onde estão os outros? perguntou com voz áspera, que ocultava súbita inquietação.
Absorvido na pesca, Peter sacudiu a cabeça, sem tirar os olhos de uma pequena mancha castanha que vagueava na zona de sombra mais escura projetada pelo barranco.
- Estão por aí, respondeu vagamente.
Lucy ficou de pé um momento, imóvel; depois, com. um esforço, agitou-se, depositou o cesto no chão. Sua fisionomia perdia completamente a animação à medida que apanhava
alguns gravetos secos, acendia o fogo e punha a chaleira para ferver.
Foi até a borda do lago e, usando a macia areia úmida à guisa de sabão, pôs-se a lavar as mãos na mesma preocupação. Nesse momento ouviu ruido de vozes. Anna e Frank
regressavam, rindo, juntos e tão descuidados como si ignorassem que ela existia. Seu instinto de posse ardeu. Si bem que o não demonstrasse, com a face serena como
a do lago tranquilo, uma violenta exasperação dominou-a. Avassalou-a uma emoção vaga, intangível. Um sentimento que não podia explicar. Nem ciúme, nem suspeita.
Ambos lhe pareciam absurdos. Não tinha suspeita alguma da conquista de Frank
- isso era claramente ridículo - contudo, havia uma forte sugestão de entendimento entre aqueles dois, o que lhe pareceu um ultraje.
E então, pela primeira vez na vida, dissimulou. Levantou-se e, forçando um sorriso, perguntou com fingida tranquilidade :
- Onde é que vocês se tinham metido?
- Pui mostrar a paisagem lá do outro lado a Anna, respondeu Frank ,com. naturalidade.
Ela os fixava. A paisagem... aquilo soava a desculpa tradicional.
- Poderíamos tê-la ido ver todos, depois, disse quase com veemência.
Frank ergueu as sobrancelhas:
- Mas Lucy... - começou.
Ela o interrompeu vibrante, com um brilho intenso nos olhos:
Deixar para mim o serviço de apanhar gravetos e acender o fogo, depois de já ter colhido as framboesas! Não foi muito delicado da sua parte. - Estacou e enguliu
o ressentimento enquanto ele a olhava constrangido. - Enfim, agora tudo está pronto para vocês, concluiu ela obrigando-se uma vez mais a sorrir. Venham.
Instalaram-se. Os sanduiches estavam suculentamente úmidos, o chá quente trazia um gosto saboroso que lhe comunicara a água do arroio. Mas para Lucy aquela comida
não tinha sabor: não estava se divertindo. Durante todo o tempo repetia a si própria que nessa mesma noite teria uma conversa com Frank. Apenas uma palavra tranquilamente
dita.
Entretanto, numa reação ao seu humor precedente, insistia para que ele comesse, ajudando-o na escolha do que havia de melhor.
Frank, depois de algum tempo, tomou o resto do chá e levantou-se. Caminhou para o caniço. Não haviam
apanhado peixe algum. Puxando a linha, examinou a minhoca inanimada e fisgada no anzol.
- Morta e a família não sabe! murmurou mal humorado. Anna, que também se levantara, riu um dos seus raros risos que tinham o dom de ferir os nervos de Lucy.
- Não valeu a pena ter tido tanto trabalho .para encher o cesto, declarou esta aborrecida. Ninguém parece ter vontade de comer o que eu trouxe.
- Você comeu ainda menos! replicou Moore secamente, sem se voltar.
- É isso mesmo, mamãe, disse Peter rindo. Eu comi mais que todos; depois papai, Anna em terceiro lugar, e você por último!
- Sirva-se do lenço, Peter, ordenou Lucy olhando-o com severidade. E tenha modos!
Isso terminou abruptamente a refeição; os pratos, lavados por Lucy na água corrente e enxutos obsequiosamente por Frank, que parecia um pouco arrependido, eram colocados
novamente no cesto.
A tarde estava agora cheia de um morno langor e, enquanto todos se encaminhavam pelos bosques em direção ao mar, entre os zumbidos dos insetos, Lucy sentiu cair
sobre si aquela velha nostalgia, um sentimento penoso, que muitas vezes a invadia, uma ânsia de qualquer coisa que devesse agarrar e conservar com todas as suas
forças.
Quando atravessaram o arroio por cima das pedras chatas, ela se voltou e tomou o braço de Frank. Não lhe importava que Anna reparasse nesta exibição dos seus direitos
conjugais. Assim cruzaram o regato, que se alargava e se estreitava a espaços, cercado da sombra verde e perfumada que se espessava em torno.
Finalmente saíram do bosque, na beira da praia. Lucy aspirou longamente o ar salino e deixou o olhar errar pelo azul profundo da água, sentindo-se mais livre, agora,
apesar de não ter a mente tranquila, trazendo ainda dentro de si, latente, aquela estranha emoção.
Na viagem de regresso, embalada pelo indolente impulso do barco, ela fechou os olhos como si dormisse. Sentia realmente uma fadiga, uma lassidão, resultado de algum
dispêndio inconveniente de força do espírito. Os outros três cantavam em plena comunhão de almas - assim parecia - e, sobre as águas quietas, o som caía suave, mesclado
ao ritmo
xxx
tranquilo dos reinos. Ela, porém, não tinha ânimo de reunir-se-lhes no canto.
"Meu Bonnie navega o oceano,
Meu Bonnie navega o mar,
Meu Bonnie navega o oceano, Retorna meu Bonnie ao meu lar. Retorna... Retorna..."
Cantaram a pedido de Peter essa pequenina e tola barcarola que ela tantas vezes cantarolava para ele; a melodia despertou-lhe uma nostalgia tão pungente que apenas
a firme "pressão das suas pálpebras cerradas pôde impedir as lágrimas de lhe rolarem dos olhos.
Quando aportaram e Dave saiu rápido de sob os telheiros para ajudá-los a desembarcar, ela teve uma sensação de alívio.
- Que belo dia tiveram, não é mesmo? disse Dave sorrindo, enquanto a segurava fortemente pelo braço, ajudando-a a alcançar a terra firme.
- Sim, muito belo, concordou ela com um ligeiro sorriso, em resposta ao de Dave, de quem muito gostava.
Ao entrar em sua casa limpa e fresca, sentiu-se feliz.
Deu banho em Peter e meteu-o na cama. Depois, mudou a roupa e desceu. Ocupada com o seu bordado inglês, procurou manter-se tranquila; contudo, enquanto dava os pontos,
sentia uma impaciência interior de ver Anna retirar-se para seu quarto. Mas, essa noite, Anna demorou mais. Já haviam soado dez horas quando bocejou e voltou os
olhos para o relógio. Afinal, levantou-se e deu boa-noite.
Lucy se viu só com o marido.
Era aquela oportunidade que aguardava, e com um rápido gesto de resolução, abandonou o trabalho, aproximou-se e sentou-se no sofá onde Frank lia o jornal da tarde.
- Frank, disse com voz resoluta, quero lhe falar a respeito de Anna.
- Vá falando, minha querida, murmurou ele sem voltar a cabeça; estou escutando.
Lucy tomou um largo fôlego. Antes de abordar o assunto do passado de Anna, queria fornecer-lhe uma última oportunidade para que ele próprio o fizesse. E disse lentamente
:
- Você conhecia bem Anna antes de nós dois nos encontrarmos, não é mesmo ?
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?- Que pergunta! admirou-se ele. Nós moramos em Levenford, na mesma cidade, durante anos. Brincamos de roda quando éramos pequenos.
- E você teve bastante tempo para estar com ela em Belfast, não é verdade?
- Sim, respondeu ele meio esquivo; creio que sim.
- Então por que foi que você não me contou o que se passara com ela?
Frank não levantou os olhos do jornal, ela porém os viu tornarem-se fixos e imobilizarem-se os dedos com que tamborilava o joelho.
- Que quer você dizer? retorquiu ele, depois de uma perceptível pausa.
- O que estou dizendo!
Lentamente ele ergueu a cabeça e voltou-a para Lucy, que percebendo em seu silêncio uma contemporização ao assunto, exclamou de repente com uma voz que tremia:
- Por que você não me disse que Anna teve uma criança?
A frase soou como uma acusação. Frank deixou cair o queixo numa expressão quase grotesca. Esgazeou os olhos para ela seguramente pelo espaço de meio minuto.
- Hein? gaguejou. Como é que você soube -disso?
- Não foi por você, sem dúvida, retrucou ela nervosamente, dando largas a todas as repressões que a haviam atormentado -nos últimos dias, a toda a sua tensão sentimental
daquela tarde. - Você deveria ter me contado tudo. Seu dever era esse. Deixar-me convidar Anna para aqui, sem me dizer uma palavra, quando sabia de tudo desde o
princípio. E, pior que isso, fazer-me deixá-la tomando conta de minha casa quando fui a Ralston. Não é direito. Não compreendo isso. Em nome do céu, Frank, por que
foi que você não me contou nada?
- Não me lembrei, protestou Frank enrubescendo. Contrariava-o a evidência do conhecimento que Luky
tinha da história de Anna, quanto mais não fosse pelo fato de que desejara relatá-lo ele próprio. Realmente, planejara fazê-lo, porém sua apatia inata interviera
e deixara passar a ocasião. Não era que estivesse movido pelo nobre e bombástico instinto de "ter os lábios selados sobre a vergonha de Anna". Apenas deixara as
ocasiões passarem. Uma ou duas vezes pensara em falar, hesitara e depois abandonara a ideia. E agora, conciente desse fato, corou ainda mais
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profundamente e disse com uma fraca veleidade de luta em defesa própria:
- Não contei pela simples razão de que não era de sua conta. Eis aí por que foi, já que você quer saber. Não se relacionava com você, nem você tem nada que ver com
isso.
- com efeito! exclamou Lucy com a respiração ofegante. Então não me interessa saber a espécie de mulher que entra em minha casa! Porque você .toma o partido de se
fechar em mutismo, porque acha que deve esconder alguma coisa da sua mulher, temos que admitir em nossa casa alguém, cuja reputação, para não dizer pior, é inteiramente
desacreditada!
- Você não deve falar assim, replicou Frank elevando a voz. Anna é minha prima. Nada fez de extraordinário, e você sabe disso.
- Estamos chegando aos fatos, tornou Lucy com veemência incontida, com os olhos brilhantes de raiva. E eis aí uma coisa em que discordamos. vou lhe falar com toda
a franqueza. Não gosto de Anna. Agora que a conheço que soube do seu passado, não posso gostar dela. Você bem, pode compreendê-lo. Hoje, no bote, por exemplo, o
modo" pelo qual se referiu a Edward foi perfeitamente abominável.
É minha hóspede, pode acabar a visita, mas não vou tolerar mais coisa alguma. Nenhum dos seus contrassensos.
- Contrassensos, ecoou ele surpreso, e a cor subiu-lhe às faces. De que diabo está você falando?
O rosto de Lucy também estava afogueado, mas encarando Frank, os lábios resolutos, disse com amarga ironia:
- Como se eu não o tivesse percebido em Ardmoret Vocês foram ver a paisagem! Francamente! a paisagem...
- E teve um pequeno riso.
- Fomos ver a paisagem sim, tornou Frank quase gritando; e nada mais. Que queria você que tivéssemos ido fazer?
- Não grite comigo! disse ela numa voz baixa e vibrante. E não faça com que Anna ouça como você procede para com sua mulher. - Interrompeu-se, trémula, e porque
o amava, procurou uma frase com que o pudesse ferir mais profundamente: - Atrás dela o dia todo, e de noite discutindo comigo desse modo, fazendo uma cena dessas!
Você deveria envergonhar-se disso.
- Já não lhe disse que não estive correndo atrás dela? Que mal pode haver em procurar entreter minha prima? Não prometi que o faria?
; 73
- Eu o conheço, Frank, murmurou ela através dos dentes cerrados - e sei que você não é o tipo dos que entretém. Não pense que isso me ilude nem. por um momento.
Mais do que isso: eu o amo. Estive a seu lado estes nove anos através do bom e do mau. Nunca lhe ocultei coisa alguma. Tudo lhe dei. Tenho sido leal para com você.
E não vou deixá-lo cometer tolices agora. Sendo assim, faça o favor de deixar Anna tomar conta de si própria para o futuro.
- De modo que são essas as ordens que tenho a receber escarneceu ele. Pois deixe-me dizê-lo novamente: Anna não esteve atrás de mim - como você pensa, nem eu estive
atrás de Anna. Você sabe bem que eu não estava ansioso pela sua vinda. Foi você quem a convidou. Sim! você! Quis que ela viesse, e agora que a tem aqui, com toda
a calma, muda de ideia e quer que eu a maltrate. Está doida! E já que chegámos a isso, permita-me que a informe de que não vou me deixar governar por você. Serei
tão delicado para Anna quanto bem entender. E vou sê-lo muito mais, agora que você pensa... - E de golpe, apanhando novamente o jornal, levantou-o como si fora uma
barreira entre eles!
Por um momento, Lucy, as faces pálidas, os olhos ardentes, irritada, magoada, considerou a folha tesa que sabia que ele não poderia estar lendo. Esse era pois o
resultado da conversa que tinha querido ter com Frank. Essa desconfiança, essa desarrazoada resistência a seus conselhos, a suas precauções. Sabia que estava agindo
direito, que sua ação fora justa, e ele havia respondido a isso com uma torrente de queixas, sem dar qualquer explicação sobre sua conduta, nenhum esclarecimento
a respeito de sua reserva. Esse último pensamento golpeou-a como uma lança.
Ergueu-se abruptamente, .postando-se rígida em frente ao marido:
- Aviso-o, Frank, disse com voz firme e controlada, de que você me feriu muito profundamente por ter me ocultado aquilo, seja qual for a razão que você tenha para
isso. Mas gosto demasiadamente de você para deixá-lo ferir-se a si próprio. Lembre-se disso! Pois será a explicação de tudoaquilo que eu fizer.
E de cabeça erguida, como seus olhos subitamente começassem a encher-se de lágrimas, voltou-se e deixou rapidamente a sala.
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- VII -
ESSA noite, Lucy teve um sono perturbado e inquieto - que não a descansou. Despertou, com o espírito ainda enevoado por fantásticos pensamentos que haviam esvoaçado
através da sonolência em que mergulhara, e teve a conciência de sua discussão com Frank. Essa havia terminado, sem dúvida, mas a mágoa persistia: aquela dolorosa
sensação de que havia ainda uma barreira entre eles, que só poderia ser removida por uma apaixonada reconciliação.
Ainda morna do sono, com a camisa de noite desarranjada pelos movimentos inconcientes dos membros, uma trança de cabelos escuros derramando-se-lhe pelo ombro, ela
contemplou disfarçadamente o marido, presa, de súbito, do desejo dessa reconciliação. Deus! como gostava dele! Conciente da sua proximidade, teve ímpetos de lhe
passar o braço em torno do pescoço e dizer-lhe aquilo. Gostava tanto da forma da sua cabeça, da linha reta do seu nariz, aquela marca de refinamento que parecia
distingui-lo do resto do mundo, pensou. Aquele seu jeito descuidado tornava-o único. Era Frank. E lhe pertencia. Agora, como ele se voltasse encarando-a, sorriu
constrangida, desejando intensamente outro sorriso em resposta ao seu.
- Mais uma linda manhã, murmurou numa tentativa.
- Bastante bonita, respondeu Frank.
A fisionomia de Lucy alterou-se, não pelas palavras, mas pelo tom que ele empregara e que indicava, por uma sutil indiferença pelo tempo e por ela própria, que seu
ressentimento persistia. Contudo não demonstrou mágoa por constatá-lo. Deixaria aquela frieza entre eles dissolver-se naturalmente, e isso teria lugar ainda mais
depressa pelo que ela ia fazer nesse dia em seu proveito. com um movimento rápido, jogou as pernas brancas e macias fora da cama. Ele então, secamente, falou:
- Você já vai se levantar? É muito cedo ainda.
- Já é tempo que eu me levante, respondeu ela, também sem cordialidade. Tenho mil coisas a fazer. Lembre-se que Mister Lennox vem aqui esta noite.
Frank bocejou e seguiu melancolicamente com os olhos os movimentos da mulher, dizendo por fim:
- Quando eu for rico, nunca me levantarei antes das dez!
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- Você não está rico ainda, replicou ela voltando-lhe as costas e enrolando vivamente os cabelos. Não apreciava aquela sua inclinação para a indolência.
- Mas vou sê-lo um desses dias, tornou ele sombrio, si você não der cabo de mim antes.
- Não fale assim, Frank! disse Lucy com voz inesperadamente severa. Aqueles seus sarcasmos apertavam-lhe o coração de uma forma estranha, nessa manhã. Ocultou-o
entretanto e continuou com naturalidade - - Espere para ver o que tenho a dizer a Mister Lennox esta noite. Enquanto isso... - O olhar que Lucy lançou ao marido,
significava:
"Levante-se e venha à missa comigo e Peter".
O rosto de Moore tornou-se novamente petulante. Via-se facilmente que não era a convicção religiosa que o levava regularmente à igreja, e sim uma influência que
ele agora novamente reconhecia.
"Será que nunca hei de ter paz?" pensou indolente. E parece que assim era, pois, como se deixasse ficar deitado molemente, refletindo, abriu-se a porta e Peter entrou
no quarto.
Sondando o humor do pai com um olhar esperto, Peter assumiu instantaneamente os privilégios que lhe atribuíam nas manhãs de domingo, jogando-se também sobre o grande
leito.
- Agora vamos brincar, papai, ordenou sem rodeios. ?Quero brincar.
Moore olliou severamente para o filho.
- Quer que lhe conte uma história? perguntou lentamente, por achar este o menos enervante de todos os modos de divertir Peter.
- Não! quero brincar de "Rei do castelo".
Moore gemeu. Gostava do garoto, não havia dúvida. Queria-o muito mesmo. Sim! Acreditava que assim fosse. Mas daí a ser o pai companheiro de jogos! Não era com ele!
Sobretudo naquela manhã, depois de toda aquela história com Lucy à noite passada, aquela cena estúpida sem. nenhum motivo. E que significava aquela vinda de Lennox?
Lucy era uma esplêndida criatura. Ele reconhecia seu valor e amava-a, sem contestação, muito mais que ao filho. Mas, às vezes, tinha um certo jeito! - o beiço preso
entre os pequenos dentes brancos - que o punha fora de si!
Não seria ele quem se chegaria dessa vez. Não! Não o faria! Queria estabelecer de uma vez por todas sua posição de chefe da casa.
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- Vamos, papai, pediu novamente Peter, "O Rei do Castelo"!
- Está certo, está certo disse Moore impaciente. E deu início ao brinquedo histórico. Elevação dos joelhos paternos em ângulo, acompanhada do canto litúrgico e de
súbitas e terríveis derrocadas: guinchar de risos, esvoaçar de uma curta camisa de noite riscada de azul e vermelho, e uma fingida e letárgica punição.
O divertimento que esse antigo jogo proporcionava a Peter convulsionava-o até as lágrimas. Moore, todavia, pareceu, como sempre, não apanhar todo o enlevo do momento.
Fatigou-se rapidamente e usou sua fórmula de "pedir paz".
Entrementes, um rico cheiro de bacon frito invadira a casa, e agora a leve nota do gongo, que anunciava a refeiçãoda manhã, soou vibrada pela mão firme de Netta.
- Fora daqui, rapazinho, disse Moore, e apronte-se imediatamente. Depois, com um bocejo final, ergueu-se, ele próprio, vestiu-se com o seu jeito rápido e, em poucos
momentos, seguia o filho que já descera.
Peter e Lucy já estavam à mesa quando ele lá se instalou. Anna não aparecera. Abusando de suas prerrogativas de hóspede, esperava sua bandeja na cama e ouvia na
rádio, si é que ouvia realmente, a missa.
Assim, os três membros da família tomaram a refeição em conjunto. A agradável e clara luz da manhã jorrava através da janela e caía sobre a face cândida de Lucy,
revelando uma força atrás dos seus olhos, um poder emanado dosmovimentos das suas mãos, poder com que se empenhava - parecia - em manter juntos aqueles três seres
e fechá-los assim em uma quente e mística unidade.
Mais tarde, no caminho da igreja, com Peter caminhando entre os dois, unindo-os pelas suas mãozinhas dadas a cada um, Lucy teve novamente uma grata sensação. Ao
mesmo tempo, um sentimento de defesa, quasi doloroso, apertou-lhe a garganta.
Não é melhor, pensava ela, despertar decentemente, vestir-se decentemente, encaminhar-se decentemente para a igreja como uma família unida, do que permanecer no
desalinho da cama e lançar afrontosos sarcasmos às coisas da religião?
Essa era a inclinação de Anna! A sua, porém, era diferente. E enquanto ela tivesse vida, a de Frank seria como a sua própria.
; Depois da missa, voltou-se para o marido, no momento em que alcançavam a praia, deteve-se e disse: 77
- Você e Peter dêem um passeio antes do almoço. Eu vou ter muito que fazer, preparando tudo para esta noite.
- Não estou com vontade de passear, resmungou Frank; vou para casa com você.
- Não, Frank, insistiu ela, eu quero que vocês dois tomem ar; far-lhes-á bem.
- Vamos, papai, implorou Peter puxando-o violentamente ; vamos apanhar castanhas no bosque de Gilston.
Moore não replicou, e Lucy, endireitando a gravata de Peter, ficou a olhá-los com um leve sorriso, enquanto os dois seguiam juntos pela calçada. Era agora um sorriso
de proprietária, o seu; tinha, porém, esse sorriso, uma espécie de desejo, a certeza do quanto eles representavam na sua vida, aqueles dois, Frank e o filho de Frank.
Voltou-se e lentamente caminhou para casa.
Concentrava já agora o pensamento na preparação do jantar daquela noite. Aquele jantar tinha que ser um sucesso. Ignorando a perturbadora influência de Anna na casa,
havia resolvido dar o passo decisivo que viera amadurecendo em seu espírito. Para esse fim, convidara Mister Lennox e planejara alimentá-lo habilmente. Então, no
momento
preciso, falar-lhe-ia e ele, desprevenido, indulgente, sabidamente ?estimulado, certamente se tornaria maleável. Era uma .esplêndida oportunidade para pedir a Mister
Lennox que aceitasse "Frank como interessado em seus negócios. Em realidade, o capital de que dispunham presentemente era limitado ?ela corava quase pensando na
sua insuficiência - mas o pagamento seria feito a prazo, ou então Richard podia talvez adiantar-lhes o dinheiro; o principal era interessar Lennox no seu projeto
e ela tinha a intuição de que, empregando todo o seu tacto, tudo poderia ser resolvido naquela noite.
Lennox, Galton Moore, ou talvez apenas Lennox Moore. Como soava bem! Richard ficaria estupefacto quando ela lho dissesse! Anna também ficaria surpresa; e Frank ?compreenderia
melhor seu amor, sua lealdade e seu valor.
Sorriu ao seu próprio comentário. E havia .uma intenção naquele sorriso.
Imediatamente seu humor modificou-se; seu espírito elavou-se no rápido galopar dos pensamentos.
Ao almoço ela exibia um estranho e feliz humor; estava um pouco diferente de si própria, entusiasmada, empenhando-se em agradar. Teve pequenas frases inesperadas,
respostas engraçadas. Anna achou-a interessante, talvez um
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pouco exagerada, e os brilhantes olhos de Lucy pareciam dizer, encarando sua hóspede, que ela defrontava na mesa "Veja si você pode ser assim brilhante!" Exercitando
por um momento seu espírito caricaturesco, fez uma curta descrição de Eva, reclinada nos seus travesseiros, que arrancou sorrisos até mesmo de Moore.
- Que foi que fez você ficar assim de repente? perguntou ele com um olhar.
- Espere e verá, respondeu ela do mesmo modo.
- Você pode ser engraçadinha quando quer, mamãe! disse Peter sorrindo.
- Creio que ela herdou dinheiro, observou Anna a Frank; ou talvez alguma coisa importante venha aí.
- Você vai se admirar, disse Lucy em conclusão, quase num desafio.
Depois do almoço, levantou-se e exprimiu a intenção de repousar, uma prática muito fora dos seus hábitos. Mas naquela noite resolvera apresentar-se do melhor modo
possível, e assim recolheu-se ao seu quarto. Da janela, observou o filho que corria em direção ao estaleiro, onde Dave se ocupava com o Eagle. Inconscientemente
sua testa se franziu. A ausência de Peter queria dizer que Frank e Anna estavam a sós lá em baixo. Não fazia mal! Seu espírito excitado, cheio do seu projeto, recusou-se
no momento a abrigar qualquer outra preocupação. Tirou o vestido, estendeu-se na cama e fechou os olhos.
Fatigada pela noite mal dormida, era tarde quando despertou. O sol já descia, mas um olhar ao relógio assegurou-lhe que havia ainda muito tempo. Durante alguns instantes,
deixou-se ficar, passiva, empolgada por um sentimento de irrealidade. Despertar com essa luz, àquela hora, e sozinha! Mas afastou todas essas ideias e ergueu-se.
Vestiu-se cuidadosamente, com lentidão, penteou-se de um modo que a favorecia. Refrescada, forte, pronta a fazer o mais que era possível por Frank, desceu e fez
com Netta uma última inspeção à mesa.
Às seis horas soou a campainha da porta. Lucy estivera esperando, diluindo seu ligeiro nervosismo na meticulosa investigação da perfeição da sua sala de jantar.
Agora, em honra ao seu hóspede, foi em pessoa abrir-lhe a porta.
- Faça o favor de entrar, Mister Lennox. Eu sabia quem estava chegando. Deixe-me ajudá-lo a tirar o sobretudo. Como vai passando?
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A barba de Lennox descerrou-se num sorriso agradável, que exibia uns dentes falsos, de tom amarelado.
- Não vou muito mal, afirmou cautelosamente, significando assim que estava gozando excelente saúde. Creio que estou melhor, agora que a vejo.
Lucy sorriu-lhe. Fora um esplêndido começo.
- Nós estamos sempre bem, o senhor e eu, disse ela com uma discreta intimidade. Primava realmente uma atmosfera de decisiva intimidade no pequenino hall, agora menor
ainda, depois que fora pendurado no cabide o volumoso sobretudo do visitante.
- É verdade! Isso é verdade! afirmou ele esfregando vivamente as mãos. Lennox apreciava Lucy Moore a seu modo. É viçosa como uma margarida, pensava muitas vezes,
e é bastante inteligente. Apertou-lhe o braço enquanto ela o introduziu na sala, onde os outros se achavam reunidos.
- Peter! exclamou ela vivamente ?- levante-se, menino, e dê essa cadeira a Mister Lennox.
- Muito agradecido, mas não gosto de estar assim tão perto do fogo. Esta aqui me servirá muito bem.
Lucy instalou-o confortavelmente, e, depois, conduziu diplomaticamente a conversa sobre negócios em geral, mas não logo para o fim que visava. Não. Sabia como fazê-lo!
Às seis e meia, tudo marchava perfeitamente bem. Peter muito comportado, Frank conversava amavelmente, Anna silenciosa. Levantou-se:
- Agora, disse efusivamente a Lennox, vou dar ordens pára que o café seja segundo suas preferências; sei muito bem como gosta dele.
Passoxi uma última revista na cozinha, de onde voltou com as faces coradas para fazer soar o gongo. Depois deixou-se ficar na sala de jantar, onde esperou amavelmente
a entrada dos convivas.
O jantar - o banquete no qual ela avidamente baseara suas esperanças - começou auspiciosamente, num tom de cordialidade. Estava excelente! Uma língua magnífica,
e um frango recheado cozido e frio. Uma deliciosa salada, uma torta com doce de framboesa - as framboesas de Ardmore
- e queijo, um Dunlop de primeira qualidade.
Àquela agradável perspectiva, os olhos de Lennox enterneceram-se. Chegou-se mais à mesa e enfiou o guardanapo acima do segundo botão do colete.
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- Que banquete! exclamou com um olhar admirativo em direção a Lucy. E não disse mais nada. Era bastante, porém.
- Experimentemos a língua, sugeriu, depois, tomando delicadamente mostarda com a ponta da faca; sirva-se também, Missis Moore.
- Não se incomode, respondeu ela rapidamente; esta noite; seu interesse concentrava-se unicamente no prato dele.
- Preocupe-se unicamente consigo.
- Não é extraordinário que eu goste de vir aqui de tempos em tempos, disse Lennox significativamente, saboreando os bocados com satisfação. Depois, enxugando a barba,
voltou-se amavelmente para o lado de Anna: - Já sabe quando parte?
Anna sorriu. Teria ela aceito aquele desafio sutil que Lucy lhe lançara na hora do almoço? Tendo adivinhado o que se preparava, tencionaria ela, com aquele seu disfarçado
modo irónico, divertir-se um pouco naquela noite ? O fato é que suas maneiras para com Lennox estavam inusitadamente amáveis; seu ar, mais provocante do que de costume.
- Estou gostando muito do passeio, disse erguendo os olhos para ele.
- Não precisa ter pressa, interrompeu Moore. Poderá ficar o tempo que quiser.
Lucy depositou o copo na mesa e olhou-o fixamente:
- Não devemos interferir nos projetos de Anna, Frank. Talvez ela já tenha outros planos.
- Oh! Não tenho plano algum, falou Anna prazenteira; e como baixasse a cabeça, a luz fez brilliar seus cabelos negros tão lustrosos com aquele óleo natural que possuíam.
Além disso, nunca planejo coisa alguma. Faço apenas aquilo que me agrada mais.
- Assim fazem as mulheres de hoje, exclamou Lennox galantemente.
- É um elogio, isso? perguntou ela, provocante.
- Não direi que não, respondeu ele olhando-a de esguelha. Mas é fácil ver-se que tomou o partido de levar uma vida despreocupada.
- É por isso que Anna e eu diferimos, disse Lucy assumindo um modo vivo, um pouco picada por aquela camaradagem entre Lennox e Anna. Tenho sempre algum fim em mente.
Gosto de trabalhar, de progredir. Creio que não me poderia deixar levar pela corrente tão facilmente assim.
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- Contudo é agradável receber as coisas como elas vêm, tornou Anna, com seu vago e fixo sorriso e aquela sua peculiar tranquilidade. Si você abaixar a cabeça e avançar
contra elas, arrisca-se mais cedo ou mais tarde a ir de encontro a uma parede. Não acha, Frank? Acredita que valha a pena lutar pelas coisas? - E olhou para Moore
que conservava os olhos fixos no prato.
- Não, sei bem, respondeu ele, contrafeito. Creio que sou como os outros. Não vejo bem que graça há em trabalhar ou fazer outra coisa qualquer. Trabalha-se porque
é preciso e não porque se goste disso.
Do outro lado da mesa, Lucy retesou-se. Estaria Frank louco, para falar desse modo diante de Lennox? E essa noite, dentre todas as outras!
- Que absurdo, Frank! exclamou ela evidenciando sua contrariedade com um riso sardónico inteiramente fingido; você está sempre interessadíssimo no seu trabalho.
Ninguém sabe disso melhor do que eu. Há poucos dias mesmo, você estava dizendo o quanto gosta dos negócios, e que esplêndida oportunidade eles lhe poderiam oferecer.
- Você deveria meter-se também neles, Lucy, observou Anna sossegadamente, visto que está sempre pensando nisso.
Lennox teve um riso súbito, enquanto afastava para um lado sua chícara vazia.
- Anna tem razão, disse ele a Lucy. Não lhe falta jeito para isso. Realmente! Acredito que tenha mais feitio para o trabalho do que seu marido. - E acrescentou
em tom faceto: - Si algum dia quiser o lugar dele, fale comigo.
Lucy corou violentamente, compreendendo que por qualquer razão criada pela inoportuna frase de Anna, toda a situação estratégica se estava voltando contra si. Nesse
momento em que ela desejava urgentemente convencer Lennox das incontestáveis qualidades do marido, eis que ele se punha a depreciar essas qualidades e começava totalmente
a exaltar as dela. Era intolerável. Subitamente sentiu que a ocasião lhe fugia e quis evitá-lo. Aspirou fortemente, encheu-se de coragem, sem se deixar assustar
pelo brilho sutil de ironia nos olhos observadores de Anna, começou:
- Eu lhe queria falar exatamente sobre isso, Mister Lennox. - Disse rapidamente: - Sobre o trabalho de Frank.
- O trabalho de Frank? ecoou o interpelado, olhando-a de esguelha. E daí?
- Sei que está ampliando seus negócios, falou Lucy; hesitou um pouco e depois continuou resolutamente: - Que
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vai desenvolvê-los. E pensei que provavelmente vai precisar de alguém que o ajude a lidar com o excesso de trabalho que está para vir.
Houve um longo silêncio durante o qual Lucy sentiu que todos olhavam para ela. Anna então interveio com um rápido movimento de mãos:
- Sua chícara está vazia, Mister Lennox, declarou solícita. Deixe-me enchê-la novamente.
- Sim, está bem, respondeu Lennox dubiamente. Muito obrigado.
Lucy tomou a chícara com um ar pausado.
- O sr. já havia pensado nisso, Mister Lennox? persistiu com firmeza. Já considerou o que esse desenvolvimento pode trazer?
- Bem! disse Lennox espetando com precaução uma fatia de presunto. Não estou muito certo de que vá haver trabalho a mais; estou pensando em abandonar um pouco o
comércio irlandês. - Parou, pousou o garfo. - Sabem, não estou mais tão jovem quanto dantes.
Lucy inclinou-se para ele, fixando-o com seu grave olhar de apelo, a respiração acelerada pela ansiedade.
- Foi a razão pela qual pensei que o senhor quisesse sua voz faltou por um momento, mas continuou corajosamente - quisesse dar a Frank uma oportunidade, deixá-lo
ter um pequeno interesse nos negócios.
Estava dito e agora, realmente, ele a fixava com atenção completa e integral.
- Sim senhora! Quando eu dizia! exclamou por fim. Do outro lado da mesa, Moore se mexia inquieto, com o
rosto esfogueado e uma atitude expressiva de sério embaraço.
- Não nos incomodemos com isso agora, disse de repente, e comamos o nosso jantar.
- Quer-nos dar essa oportunidade, Mister Lennox? continuou Lucy inabalável, sentindo subitamente os lábios secos. Sei que nunca se arrependerá. Prometo-lhe isso.
Sim,
eu o prometo!
Lennox desviou a vista sob a força dos olhos dela. Aquele azul era tão profundo, compelia tanto... e seu olhar caiu sobre Anna, que conservava seu curioso sorriso:
- Que me diz disso? indagou, diriprindo-se a ela, meio constrangido. Perguntar uma coisa assim a um homem, ao jantar!
Anna olhou-o com seus grandes olhos. Não parecia interessada, talvez um pouco penalizada pelo seu embaraço presente. 83
- Estou, certa de que o senhor não deseja falar de negócios agora, Mister Lennox, falou gentilmente, na hora do jantar e sobretudo em um domingo.
Lucy sentiu-se presa de um irresistível impulso de raiva; depois, rapidamente, controlou-se. Seu olhar flamejou em direção da outra mulher, mas, procurando dominar-se,
deixou sua frase sem comentário e disse resolutamente a Lennox:
- Seria uma vantagem para o senhor ter um sócio, e estou certa de que meu irmão faria qualquer depósito que fosse necessário,
- Mas, Frank, perguntou Anna alargando os olhos numa surpresa, você o que diz, quero dizer... não acha que não gostaria de...
Moore retraiu-se, constrangido. Qual é o homem que gostaria que a mulher seja quem o guie e lhe melhore a posição ? E logo diante de Anna! Isso o fazia parecer preguiçoso,
inepto. Exatamente naquela manhã tinha resolvido consigo mesmo que estabeleceria sua posição definitiva em casa. Arremessou um olhar ofendido para o lado de Lucy
e gaguejou:
- Essa história toda é nova para mim, e não sou responsável de que tenha vindo à baila.
- Então deixemos isso por enquanto, disse Lennox com um curto riso. É isso mesmo; deixemos isso e talvez voltemos a pensar no caso.
O rosto de Lucy empalideceu e seu peito se encheu de amargura. Sentia instintivamente que Anna lhe fazia oposição e este pensamento impeliu-a para diante.
i- Por que não resolvê-lo agora? insistiu numa voz estrangulada; o fato é que a hora de jantar no domingo não proíbe que se diga "sim" ou "não".
. - Talvez seja por isso que a senhora o pergunta esta noite, replicou Lennox, dardejando-lhe um rápido olhar.
Lucy recuou ante a brutalidade da sua asserção, sabendo que, no fundo, era verdadeira, mas sabendo também que nunca teria sido enunciada sem a interferência de Anna.
Mesmo assim, deixou cair a frase.
- Já de há muito que o senhor nos conhece, Mister Lennox, persistiu, conservando um tom normal e forçando um sorriso, e Frank está com o senhor há dez anos. Certamente
que isso deve. ser considerado. Faça o favor de pensar nisso.
Novamente Lennox depositou o garfo e puxou a barba ondulada visivelmente perturbado.
- Essa é uma questão que dificilmente se poderá resolver com "sim" ou "não", disse constrangido, há muita coisa
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envolvida aí, e eu não sou daqueles que favorecem as mudanças rápidas.
Novamente Anna intervém com sua voz razoável:
- E si o senhor fosse mudar alguma coisa, não seria boa ideia confiar a Frank a agência de Belfast? Ele fez muito quando esteve por lá. E quem está agora não está
fazendo grande coisa.
A cabeça de Lucy teve um rápido recuo. Realmente isso era demasiado! Anna intervindo, desviando o assunto vital em questão, aconselhando Lennox a dar a Frank esse
mesquinho lugar, essa agência apenas levemente superior ao seu presente lugar. Era de enlouquecer!
Novamente lhe veio o impulso que a impelia a alguma frase ultrajosa ou a alguma ação violenta. Que tinha Anna que ver com tudo aquilo? Como ousava, interferir daquele
modo? Não pôde mais se conter. Voltando-se para a outra e fixando-a, exclamou com voz trémula:
- Isso não me parece que possa interessá-la, Anna. Eu não tenho nenhum especial desejo de ir para a Irlanda.
- Não é mau lugar, apesar de tudo, disse Anna amavelmente. Chove um bocado por lá, mas isso conserva as coisas verdes. Palavra de honra! Vocês deviam ver os trevos
brancos, que são o emblema da Irlanda.
- Não nos conviria, tornou Lucy possuida do desejo de retrucar furiosamente; si bem que lhe agrade. Sem dúvida, para você, aquilo é muito divertido. Certamente
você tem suas razões para gostar de lá, não é mesmo?
- Talvez tenha, realmente, falou Anna meditativa.
- Alguma razão particular, parece!
- Quem sabe ? respondeu Anna, sem mexer as pálpebras.
Seguiu-se um desagradável momento, durante o qual Lennox se pôs a olhar para o teto, enquanto Moore fixava sombriamente o fogo. A harmonia que remara naquela noite
parecia ter sido subitamente destruída.
- Sabem? disse por fim Lennox, que já tivera tempo de recuperar sua obstinação, possuo meus métodos próprios de trabalho. Quando se empreende tudo, não se alcança
coisa alguma. Estabelece-se a confusão.
Houve um longo silêncio, durante o qual Lucy contou as dolorosas palpitações do seu coração.
Saber que Lennox estivera na iminência de ceder e que agora, em virtude da intolerável interferência de Anna, se tornara contrário e poderia permanecer contrário,
intolerante, infenso a sugestões durante meses talvez! Era de enfurecer! 85
Seus projetos desfeitos, despedaçados, reduzidos a pó! E por causa de Anna!
- Dê-me um pouco mais de café, disse Moore sombrio, estou seco!
Lucy hesitou; depois, rígida, estendeu a mão para tomar sua chícara; a frieza, o ressentimento latente em suas palavras haviam trespassado o seu coração. Como si
fosse ela quem merecesse reprovação!
Reinou um frio silêncio.
- Dave me levou para passear no Eagle esta tarde, aventurou Peter, que tinha uma vaga ideia da tensão que o cercava. Mas ninguém prestou atenção à sua frase.
- Por que Netta pôs tanto açúcar assim nessa torta? protestou Moore; está envenenada com isso!
- Eu própria fiz a torta, redarguiu Lucy friamente; sua voz, porém, tremia.
- Gosto dela assim, disse Lennox rapidamente, está esplêndida!
Moore sentiu-se incomodado. Não o dissera de propósito. Habitualmente era Netta quem fazia as tortas. Anna calara-se, porém mordeu um biscoito com um ar de quem
estava se divertindo intensamente."
Lennox pigarreou ruidosamente e disse pacificamente estendendo o prato:
- De qualquer forma, quero um pouco mais. A massa está deliciosa.
Teve a sua segunda porção e foi o último a terminar. Seu ar era o de um homem que apreciara a refeição, apesar das circunstâncias, e Lucy, observando-o, conhecendo
sua condescendência para com ela, pensou amargamente no muito que poderia ter feito, si não fosse Anna; e aquele pensamento torturou-a. Seus dedos agitados esmagaram
o bolo que permanecera intacto em seu prato. E ali ficaram todos sentados por um longo tempo. Finalmente, Lennox ergueu-se.
- Muito bem! exclamou, sacudindo as migalhas que lhe haviam ficado no colete. Vim cedo porque sabia que tinha de retirar-me cedo.
Lucy não protestou, apesar de estar certa de que ele estava dando uma desculpa.
- vou acompanhá-lo até sua casa, declarou Moore.
- Creio que vou também tomar um pouco de ar, disse Anna. Está uma linda noite.
Novamente Lucy sentiu o sangue, afluir-lhe às faces, e viu que Lennox a olhava. Uma golfada de intenso ódio
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empolgou-a. Não podia reunir-se a eles. Era a- noite em que Netta estaria de folga. Tinha que meter Peter na cama. Numa névoa rubra de confusão, acompanhou-os até
ao hall.
- Boa noite e muito obrigado, despediu-se Lennox, com seu caloroso aperto de mão habitual.
Lucy deixou-se ficar à porta, com o ar fresco a lhe acariciar o rosto, em fogo, vendo-os afastarem-se pelo caminho. Depois, com um suspiro que lhe partiu involuntariamente
dos lábios e que parecia vir-lhe do peito dilacerado, voltou-se e entrou novamente em casa.
Era pois aquele o clímax da sua realização. Nada! E Frank! Sentia mais amargamente ainda a injustiça da sua atitude.
E Anna! Sempre Anna, aniquilando tudo com aquele seu modo dúbio, detestável... Fatigada, reclinou a testa contra o mármore frio da lareira, na sala vazia, contemplando
com o espírito a figura da outra mulher. Como a detestava! Sua indiferença, suas maneiras, seus olhos enigmáticos procurando atrair Frank. A suavidade da sua voz,
até os seus (gestos, que no, começo lhe tinham parecido naturais, eram-lhe agora odiosos, porque insinceros. Agora, olhar para Anna, até pensar em Anna, causava-lhe
instantaneamente um arrepio de aversão.
Procurando controlar-se, tirou a mesa, levou Peter para cima e voltou para a sala. Sabia que não devia pensar e por isso mesmo pensava. Sua mente excitada refervia
com o fermento da raiva e da suspeita, repisando sempre cruelmente sua humilhação. Porque era, sem dúvida, uma humilhação aquela derrocada do seu brilhante plano,
que lhe despertava um amargo sentimento de destituição, trazendo consigo, com redobrada violência, todos aqueles nebulosos receios primitivos.
Por que ousara Anna interferir daquela insidiosa maneira? Ela não tinha o direito de traçar o futuro de Frank. Certamente havia alguma coisa no fundo disso tudo.
Qualquer coisa que ela devia pesquisar e apreender. Desejou quase poder encontrar alguma solução tangivel para aquela exasperante perplexidade.
E pôs-se a lembrar o passado, procurando juntar o que pudesse constituir provas, uma solução para a atitude de Anna. Aqui um olhar, ali uma palavra, acrescentados
ao total das suas dúvidas, procurando em vão cristalizar a substância dos seus temores. Involuntariamente começou a pensar naquele infortunado episódio, a formular
suas circunstâncias, a visualizar até mesmo a imagem daquela criança de quem
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sabia Anna fora mãe, que não tinha nome e já era morta. Insensivelmente começou a cogitar que o mistério daquele filho oculto estava ligado de algum vago modo àquela
sua perplexidade. Pelo menos, por uma inconciente associação de ideias, ela própria ligou essas coisas em seu espírito. Si ao menos soubesse um pouco mais sobre
aquele episódio da vida de Anna! Isso a levaria a uma pista que lhe revelaria melhor a outra. E, compreendendo-a, entenderia melhor sua atitude para com Frank. Anna
e Frank - os arrazoados de Lucy giravam todos em torno daqueles dois nomes reunidos, que a provocavam pela própria incongruência da sua associação. De repente, estremeceu
ouvindo abrir-se a porta da frente e o som das vozes de ambos no hall. Seu rosto assumiu um ar de determinação; quando Frank entrou na sala, vinha sozinho.
- Sim senhora! foi dizendo imediatamente com voz abafada, você fez de mim um bom idiota esta noite. B" tudo para não chegar a resultado algum!
Os lábios de Lucy comprimiram-se. O fato dele, que juntamente com Anna fora o causador do seu insucesso, estar agora acusando-a de ter falhado, era demasiado absurdo
para permitir-lhe mesmo defender sua ação.
- Você é que foi um idiota, isso sim! replicou. Sei que Lennox lhe teria dado o que eu pedi. Eu o conseguiria. Seu braço teve um gesto desesperado. - E teria sido
tão bom para nós conseguí-lo!
- E como pôde você se arvorar em juiz disso tudo? Não pense que pode dominá-lo assim, e não pense também que me poderá dominar durante toda a vida!
- Isto é injusto, Frank, exclamou ela desesperada, você sabe que eu quero as coisas todas para o seu bem.
?- Para meu bem! escarneceu ele, todo o mundo vê que você me traz acorrentado. Até mesmo Anna.
- Anna! - Lucy proferiu essa palavra com uma indescritível intensidade.
- Sim, Anna. E enquanto estamos nisso, quero lhe pedir que seja um pouquinho mais civil. Você tem sido terrivelmente rude para com ela ultimamente. Lembre-se de
que é minha prima.
- Sua prima! repetiu ela com voz trémula. E é porventura mais importante que sua mulher?
Frank tomou um cigarro e acendeu-o olhando-a o tempo todo: depois, jogando o fósforo apagado dentro do fogo, exclamou bruscamente:
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- Acho que o que lhe disse foi pedir-lhe para ser mais delicada com ela.
iSem dar atenção a essas palavras, nem ao seu tom, Lucy o encarou com olhos ardentes:
- vou lhe fazer uma simples pergunta! Por que se preocupa você tanto com Anna?
Frank teve um movimento belicoso de cabeça:
- Que diabo tem você estes dias? E que direito tem de me interrogar desse modo?
- E por que não posso interrogá-lo? Por que não pode você responder a uma pergunta direta?
- Que vão para o diabo as perguntas diretas, disse Frank enraivecido; guarde-as e não venha me enforcar com elas. Não me sufoque. Você vem fazendo isso há anos.
Já não é bastante?
Os olhos de Lucy mortificaram-se ante o absurdo daquelas palavras. Alguma coisa a espicaçou e obrigou-a a dizer em sua voz abafada:
- Acho que fiz sempre o que devia com você. Frank, e pensei que você se julgasse feliz.
- Está certo, disse ele, sardónico: você é perfeita. Quando você anda, eu ouço o bater das asas.
Lucy não replicou, mas seu rosto se afogueou ainda mais. Fixou-o com um olhar de veemente censura. Por um momento, ainda ficou ali, de pé, depois, abruptamente,
foi para o sofá, onde se deixou cair tomando seu trabalho de agulha para fingir que estava fazendo alguma coisa. Pôs-se a bordar com os dedos trémulos. Ele também
se fechara em um taciturno mutismo. Assim ficaram os dois algum tempo . Afinal Frank ergueu-se. Sem querer ela teve um movimento rápido e seus olhos se enevoaram
de lágrimas:
- Quer alguma coisa? perguntou, invadida pelo desejo de uma reconciliação.
- vou para a cama, respondeu ele arrebatado. Para a cama!
Lucy olhou-o surpreendida.
- Mas Frank, não são ainda nove horas! - Depois estendendo-lhe a mão: - Vamos fazer as pazes, Frank! Afinal de contas nós nos queremos bem.
- Deixe-me, disse ele, você já fez muita coisa por mim esta noite. - E deixou a sala, antes que ela pudesse articular uma palavra.
Lucy deixou-se ficar por um longo tempo escutando os movimentos do marido lá em cima, ouvindo-os cessar, depois,
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quando ele se meteu na cama. Seus olhos permaneciam fixos, transcendendo dos limites do aposento. Seus ressentimentos haviam-se dissipado e pungia-a um estranho
pesar.
Por fim, levantou-se e deu corda ao relógio sobre a lareira. Todos esses deveres, que de direito pertenciam ao dono da casa, repousavam inteiramente sobre ela. Depois
subiu.
Despiu-se no escuro e deitou-se ao lado do marido. Frank não dormia, mas fingia estar adormecido. Sua respiração profunda não a iludiu e ela obteve a certeza da
simulação pela quase imperceptível rigidez do seu corpo que, ao lado, tocava o dela. Desejou que ele lhe falasse, mas sentiu que não o faria. E ela não se arriscaria
a outro fracasso. Também tinha brio. E assim, ficou, sem se mover, fechando os olhos para não ver a luz do luar que invadia pálidamente o quarto, pensando, pensando
com a testa franzida, perseguindo alguma coisa que a intrigava e lhe fugia.-
-" VIII
LUCY resolvera interpelar Anna e, em sua mente, fixara a hora da tarde em que Peter estaria longe, para iniciar seu ataque. Conservar-se-ia calma. Lembrar-se-ia
de que Anna era sua hóspede, si bem que estivesse resolvida a exigir-lhe uma explicação da sua conduta.
Mas na manhã seguinte, inesperadamente, Anna partiu para Glasgow, para fazer compras, embora não tivesse definido exatamente o que ia comprar. Disse apenas, ligeiramente,
depois da refeição da manhã:
- vou renovar um pouco minhas roupas no comércio de Glasgow. - E levantando-se preparara-se sem entusiasmo para apanhar o trem das dez horas.
Não fez nenhum convite a Lucy para que a acompanhasse. Não que Lucy sonhasse em acompanhá-la. Em realidade, a despeito do adiamento do seu propósito, ela encarou
a -partida da outra mulher com um extraordinário alívio. Amanhecera com a cabeça pesada, confusa, com o espírito obscurecido por uma estranha e obcecante dúvida.
Talvez fosse melhor mesmo que Anna se ausentasse. Queria ficar só para pensar, para raciocinar com clareza.
Enquanto andava pela casa, quase automaticamente, preparando as coisas de Peter para sua visita a Port Doran no
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fim da semana, achava-se estranha a tudo aquilo que a cercava. Movia-se sem descanso, procurando definir sua suspeita, conjurar aquele fantasma que agora a perseguia.
Desde o princípio, procurara tornar-se amiga de Anna. Recebera-a bem, fizera todos os esforços para gostar dela. Voltando atrás, porém, ela agora via que desde o
momento em que Joe trouxera Anna para sua casa, tivera consciência de que um sutil antagonismo flutuava entre a outra mulher e ela. A convicção inicial de que gostava
da outra fora uma ilusão, nascida de seu espírito de hospitalidade. Não gostara nunca de Anna, desconfiava dela. Eram diametralmente opostas. E a primeira certeza
que tivera disso, fora no momento em que regressando de Ralston encontrara Anna em tão grande intimidade com Frank. Depois, gradualmente, pedra sobre pedra, elevara-se
aquela incrivel estrutura, massa informe de dúvidas, suspeitas e desconfianças, mas tudo alicerçado no carater de Anna Galton e no procedimento de Frank para com
ela. Era evidente para Lucy que não lhe cabia a culpa desse estado de coisas; como poderia ser assim? Frank era seu marido, vivendo com ela contente e em perfeita
ventura. Chegara Anna e eis que o contentamento se fora. Anna era a responsável por aquilo. Mas como? Mordeu os lábios e, de testa franzida, percorreu novamente
a ténue linha da sua suspeita.
Não teria ela notado alguns subentendidos nas frases de Joe? E não era significativa a conduta de Edward? E aquele penoso embaraço de Miss O Regan teria tido origem
apenas em sua modéstia ultrajada? Depois, a atitude de Anna para com Frank. A própria atitude de Frank, seu obstinado silêncio. Si ele tivesse sido forçado a guardar
esse silêncio, si houvesse alguma coisa a ocultar, então sim, podia-se compreender. Mas não era segredo nada daquilo! E, mesmo assim, ficara calado. Ele que estivera
na Irlanda, naquele mesmo ano, nada dissera sobre o fato. Oh! era torturante aquele pensamento insistente!
Construira um estranho edifício ao qual faltava a pedra angular que completasse a obra. Talvez apenas o. ciúme a movesse e nada daquilo existisse. Mas não! Repudiou
essa hipótese. O ciúme era egoísmo e seu amor não era egoísta. Todos os seus esforços tendiam para o bem de Frank. Ela o conhecia tão bem, compreendia-o tão completamente,
amava-o tanto, que não ousaria intervir na sua felicidade se residisse fora do seu âmbito, nem permitiria que lhe perturbassem a vida. Não era ciúme, era lealdade,
dedicação, a sublimada 91
essência do seu amor. Assim pensava porque sabia que assim era. i
Anna, sem dúvida, era diferente. Não possuia ideais, ambições, objetivos nem códigos. O infeliz episódio da criança era típico da sua atitude na vida. Si fosse de
outro modo, não teria casado com o pai dessa criança e não se teria resolvido a levar uma vida regular? Mas Anna era assim. com certeza havia atravessado aquilo
tudo com uma espécie de despreocupada perversidade para emergir mais indiferente e endurecida ainda, no fim. O homem naturalmente mostrara-se fraco; alguém talvez
instável, leviano, que tivesse querido fugir às suas obrigações. E Anna o deixara escapar. Parecia-lhe estar ouvindo Anna dizer a esse homem, com fria indiferença:
" Vá para o diabo. Não me importa aquilo que você fizer". Sim! assim deveria ter-se passado tudo.
Achava contudo aquilo tão errado, tão contrário à sua habitual e franca linha de conduta! Si ela tivesse adotado esses métodos descuidados com Frank, que também
podia ser instável, leviano, qual seria o fim para o qual teria caminhado? Teria sido um desastre!
Suspirou e com uma pressão no joelho fechou a gaveta onde estivera arranjando as roupas de Peter. Depois, foi até o quarto de Anna para arrumá-lo. Ao abrir a porta
estacou e por alguns segundos esteve examinando o quarto, de sobrancelhas franzidas. Realmente, estava desordenado, em repelente desalinho, pensou ela. A cama desfeita
- por ser uma hóspede, poderia ao menos ter feito a cama! - a mesa de toilette estava juncada de objetos em desordem; - um pé de meia exibia uma sola brilhante para
fora da gaveta; uma camisa jazia abandonada no chão. E" a roupa interior de Anna, de feitio assaz sedutor e de fazenda estranhamente diversa daquela que ela própria
usava, assim exposta, fez nascer em Lucy uma irritação sem causa. Involuntariamente nasceu-lhe um desejo que formulou arrebatadamente no espírito: "Como eu gostaria
que ela se fosse logo!" Certamente agora sua estada não se poderia prolongar muito. E Lucy não teria saudades.
Conservava as sobrancelhas franzidas enquanto arrumava o quarto. Netta estava muito ocupada na cozinha, mas, a despeito de tudo, Lucy sentia uma necessidade singular
de fazer ela própria aquela arrumação. Inconcientemente realizava uma ação simbólica: Anna podia dispersar sua vida em torno de si, ela porém arranjaria a dela e
com toda a decência.
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Restaurou a ordem no quarto, depois, apanhando um broche e um anel com uma opala jogados descuidadosamente
- o resto das jóias, Anna levara-o com ela - resolveu colocá-los num pequeno cofre verde que se achava perto do espelho. Para isso abriu-o. Subitamente sua mão imobilizou-se.
Uma estranha fixidez galvanizou-lhe o olhar, o rosto, todo o corpo. Olhava para alguma coisa dentro do pequeno cofre. Quedou-se imóvel, olhando, olhando, e suas
faces começaram a empalidecer.
Depois, vagarosamente, moveu a mão e tirou alguma coisa que estivera dentro do cofre. Era uma fotografia. Não era um medalhão. Anna não ipoderia possuir nada tão
sentimental assim. Era apenas uma pequena e vincada fotografia que talvez estivesse esquecida há anos dentro daquele cofre por ser julgada insignificante. Era a
imagem apagada de uma criança, ainda bastante nítida para ser vista, e essa vista era estranhamente interessante. Tão interessante que Lucy não podia desviar dela
seu olhar fascinado. Compreendeu imediatamente que era o filho de Anna, aquele filho misterioso, escondido, aquela criança morta há tanto tempo, cuja imagem ela
defrontava tão inesperadamente. E de súbito, da imagem daquela criança, nasceu outra imagem que se lhe sobrepôs. O rosto do seu filho! O rosto de Peter era estranhamente
semelhante àquele. O nariz, a forma dos olhos, a curva dos lábios quase idênticos; os dois rostos dansavam-lhe defronte confundindo-se em um só. E nasceu-lhe uma
suspeita horrível, uma atroz suspeita!
Estaria sonhando?
Seria ela vítima de alguma fantasia desordenada, de algum falso delírio de melodrama, uma coisa inteiramente estranha à sua natureza normal e sadia? Mas não era
fantasia. Essa parecença golpeando tão agudamente seu espírito excitado, não constituiu apenas um choque. Foi-lhe como uma revelação. Si o filho de Anna e o seu
se assemelhassem tanto assim, só uma coisa o poderia explicar. Uma única e terrível solução se apresentava agora, e ela sentiu que era isso que até agora viera temendo.
Oh! Deus! pensou aniquilada, agora compreendo tudo! Estava completo o edifício. Havia cinco anos, Frank estivera durante meses em casa de Anna. Depois o filho dela,
o filho deles, viera! Era verdade, então. Frank era o pai do filho de Anna. Agora ela o sabia.
com um movimento de terrível agitação, atirou a fotografia onde estivera antes, deixou cair a tampa do cofre e 93
atirou-se sobre a borda do leito; aí se deixou ficar, com. os olhos muito abertos, escuros de pavor, petrificada. Sentiu o coração parar, estava confusa, aniquilada.
Até a virtude a abandonara e saíra da sua vida. O eco de mil vozes soava em seus ouvidos, um sussurro abafado de vozes que cochichavam coisas sobre Frank, seu marido,
que ela amava e que lhe fora infiel.
Depois reagiu. Não acreditava. Era impossível. Aquela não podia ser a pedra angular do edifício. Não havia edifício algum. Não havia nada além do seu amor por Frank.
Ela possuia seu amor, sua lealdade. "Estou louca para suspeitar assim de Frank!" Pareceu-lhe subitamente monstruoso que, por causa de uma palavra, de um olhar, de
uma semelhança de fotografia, ela o acusasse de uma ação que destruiria inevitavelmente sua felicidade. Era pura coincidência! Mas que odiosa coincidência! E seria
mera coincidência ? Estremeceu e com um gesto de desânimo deixou cair o braço no travesseiro e sobre ele reclinou a testa ardente.
Sua maior angústia era lembrar-se de que Frank escondera dela alguma coisa. Uma onda de amargas recordações empolgou-a: olhares que imaginava trocados por Frank
e Anna, palavras... teriam eles algum entendimento secreto ?
Ergueu-se subitamente de punhos cerrados, com uma expressão rígida no rosto, o corpo arqueado por uma terrível tensão, toda sua vontade lutando com alguma coisa
invisível. Seu instinto de posse ardia. Frank era seu. Fosse qual fosse o passado, ela não se interessava senão pelo presente e futuro. Deixou o quarto e desceu
as escadas.
Mas não podiai continuar a trabalhar. Foi para a sala, e, uma vez lá, sentou-se no sofá, rígida. Então, gradualmente, as linhas do seu rosto distenderam-se, e os
lábios perderam a dureza, o olhar tornou-se remoto. Seus ombros curvaram-se. Assim se deixou ficar, o íntimo dominado por um conflito de emoções.
Sua figura recortada na clara luz da janela apresentava uma imagem estranhamente juvenil e patética. Envolvia-a um sopro de tragédia.
Aí foi encontrá-la, mais tarde, Netta que veio lhe anunciar que o lanche estava pronto. Dominada pela mesma intensa preocupação, ela se ergueu e veio para a sala
de refeições. Peter já lá estava, instalado à mesa; o guardanapo atado em torno do pescoço. Ao vê-lo, quentes, lágrimas de sentimento vieram-lhe aos olhos. "Ao menos
ele é meu!"
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pensou, "e sê-lo-á sempre". Passou-lhe repentinamente o braço em volta dos frágeis ombros e beijou-o avidamente.
- Onde está Anna, mamãe? perguntou Peter, começando a tomar seu caldo.
- Em Glasgow, falou ela baixo.
- Senti falta de Anna essa manhã, disse ele alegremente. Gosto dela. Ela é engraçada.
Lucy não respondeu coisa alguma. Parecia-lhe incrível que seu filho tivesse tomado amizade a Anna. Achou aquilo uma ideia repulsiva.
- Ela estava falando, outro dia, num yacht, continuou Peter, com velas de verdade, não sabe?
Lucy apertou violentamente os lábios afim de não trair alguma coisa da perturbação que lhe ia no íntimo. Naquele momento de desesperada inquietação, até mesmo a
atitude de Anna para com Peter parecia anti-natural, excessiva, suspeita. Anna era boa para a criança porque era o filho de Frank, porque Peter lhe recordava seu
próprio filho, de quem Frank também fora pai.
Levantou-se abruptamente da mesa, angustiada, comprimindo a face com a mão.
- Mamãe! exclamou Peter, onde é que você vai ?
- Já acabei de comer, respondeu ela com dificuldade, tenho umas costuras para fazer.
E rapidamente deixou a sala.
A tarde foi passando, diluída no pálido sol de outono, marcada pelos vagarosos segundos, evocando tristezas, pungentes recordações de outras tardes quietas e íntimas
quando Frank e ela provavam o amor que os unia.
Não tinha costura alguma. Nada poderia fazer. Tinha que esperar, esperar febrilmente a sua volta. E quando, enfim, chegou a hora do trem de Frank, sua impaciência
febril impeliu-a à ação. Iria ao seu encontro. Levantou-se, pôs um chapéu e um casaco, depois encaminhou-se para a estação. Seguiu a estrada principal, que era o
caminho que ele tomava habitualmente, e ansiosa por se encontrar com o marido, resistiu ao impulso de levar Peter consic-o. Era Frank sozinho que ela agora desejava
encontrar. Oh! como queria estar só com ele, para ir até o amasio daquele terrível caso, para deixar-se convencer, para dizer-lhe que o amava e ter absoluta certeza
de que era correspondida.
Chegando à cidade, seus olhos procuraram inquietos, por entre os transeuntes, o vulto familiar, prontos a
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confirmarem a essa visão. Mas não o encontrava. Seria que ele tomara a outra estrada, quando era essa invariavelmente a que sempre escolhia? Gradualmente seus passos
se fizeram mais lentos. No meio da esplanada parou, indecisa, o rosto pálido, os olhos ansiosos, perplexa.
Subitamente, uma voz ao seu ouvido fê-la estremecer e voltar-se em uma alvoroçada expectativa. Mas seu olhar apagou-se instantaneamente e sentiu o desapontamento
invadi-la; não era Frank que se achava ao seu lado e sim Miss Hocking, trazendo" o cão pela trela e inclinando-se para ela serenamente.
- vou ter o prazer de acompanhá-la, disse ela em tom muito razoável.
Lucy não estava preparada para aquele encontro, era mesmo a coisa que menos desejava. Queria Frank, seu coração anelava unicamente por sua presença.
- vou ao encontro do meu marido, respondeu rigidamente.
- Ao menos permita-me andar ao seu lado, sugeriu a outra com lógica maior do que a mostrada antes.
- Está bem, concordou Lucy desanimada, vamos então voltar.
Puseram-se a caminhar lado a lado.
- Por que não vem tomar chá comigo? alvitrou Miss Hocking tranquilamente. vou ter doces e um bolo de creme para o chá.
Lucy levantou para a outra dois grandes olhos marejados de lágrimas e sorriu, um pobre e fatigado sorriso.
- Hoje não, respondeu lastimosa.
- Depois eu tocarei no meu cello algumas músicas clássicas, talvez, mas nada de fatigante. Coisas brandas e doces.
Lucy sacudiu a cabeça: , - Não posso ir, disse com voz abafada.
- Foi apenas uma sugestão, falou Miss Hocking sem grande sentimento. Não faz mal.
Continuaram a caminhar em silêncio.
- Por acaso, começou Lucy hesitante, teria visto passar Frank, meu marido? Vim ao seu encontro.
Afisionomia de Miss Hocking fachou-se em profunda cogitação, depois respondeu resoluta:
- Não.
E depois de avançarem um pouco mais, tranquilamente Miss Hocking tornou:
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- Você veiu procurá-lo! O que seria razoável é que ele estivesse à sua procura e não o contrário.
Lucy ,corou violentamente. Aquelas palavras ingenuamente amigáveis, não encerrando indireta alguma, foram, porém, feri-la penosamente.
- A mulher, continuou Miss Hocking com uma inesperada e excêntrica filosofia, deve ser perseguida. Eu não costumo perseguir, mas sei, por instinto, quando sou perseguida.
Lucy mordeu os lábios ao ouvir essas fantásticas palavras. Era de tal modo absurdo aquilo! Contudo, através do absurdo, entrevia-se o brilho da verdade. As mãos
contraíram-se-lhe nervosamente e sua voz quase falhou quando respondeu:
- Mas eu me referia ao meu marido. Espero que compreenda !
Nada mais disseram. Separaram-se na encruzilhada, perto do cais, que indicava os dois caminhos diferentes que deveriam tomar. - Miss Hocking recolhendo-se ao seu
apartamento no aristocrático bairro sobre a colina, Lucy continuando pela estrada que conduzia à sua casa.
Sentia-se desamparada, perturbada pela grotesca sugestão de Miss Hocking de que ela estivera perseguindo Frank. Quem teria mais direito do que ela de procurá-lo?
Não exigia que ele a procurasse, que a perseguisse - no dizer de Miss Hocking. Mas seria essa frase tão ridícula assim? Seu espírito trabalhava novamente, enveredando
pelo tortuoso caminho, das suspeitas, e seu corpo, ao sopro gelado do vento outonal, a esta hora crepuscular, estremecia.
Ocorreu-lhe o terrível pensamento, que a traspassou, de que Frank havia um dia perseguido Anna, que a havia amado, que deitara ao seu lado, que a enchera com o seu
filho. Pensou que ele todo, que ela julgara que lhe pertencia unicamente, fora de Anna também. E tudo, tudo acontecera sem ela saber! Sim, era o mesmo horrível pensamento
que voltava para torturá-la.
Depois teve um momento de calmo raciocínio, um raio de luz brilhante através da angustiosa escuridão que reinava em seu espírito. Por que razão Frank e Anna, si
eram amantes - ela agora procurava destruir essa conjectura por que não se tinham casado logo no princípio? A tibieza de Frank, a inadaptabilidade de Anna a uma
vida normal e pacata, nenhum desses fatos explicava de maneira conclusiva a falência desse passo tão natural e indicado. Estacou
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e, por um momento, sentiu-se animada, aliviada, quase feliz. Era um fato que provava que suas suspeitas eram infundadas. Não tinha razão em suas conjecturas.
Então, subitamente, de alguma secreta célula do cérebro, surgiu o argumento que gelou sua felicidade e despedaçou suas novas esperanças. Frank e Anna eram primos,
um parentesco que tornava seu casamento proibido pela igreja. Sua mente atormentada, que se agarrara àquela ténue luz com a avidez com que um náufrago lança mão
de um qualquer apoio, novamente mergulhou no desespero.
Escurecia, e pequenos pontos de luz brilhavam agora ao longo da curva da baía. Estivera ausente mais tempo do que calculara. Frank já deveria ter regressado; mesmo
assim ela não Tez movimento algum para apressar o passo. Era curioso que, sendo tão aberta e franca, tendo um tal orgulho da sua casa, se achasse como que relutante
em entrar nessa mesma casa, que estivesse como que com medo de entrar em seu próprio lar. Agora mesmo, ao portão, hesitava, como si se achasse em segurança envolvida
pela escuridão exterior, como si fosse ela quem abrigasse algum segredo que cumpria esconder.
Depois, novamente lhe veio a exaltação do seu amor. Precisava ver Frank imediatamente. Queria estar a sós com ele, ouvi-lo explicar-se, e tudo estaria bem outra
vez. Não era nenhuma tirana. Escutá-lo-ia e tudo compreenderia. com um movimento quase veemente, torceu a maçaneta da porta e, com os olhos brilhantes, os lábios
resolutos, entrou em casa.
Queria Frank e ali estava ele ocupando sua cadeira, defronte do brilhante fogo aceso na sala e tendo Peter ao lado. Mas do outro lado estava Anna. Empalideceu. Recuou
como golpeada, à vista da outra mulher. Frank e Anna haviam regressado juntos!
Aquela visão foi como óleo lançado no fogo do seu inferno interior; como fel arremessado ao seu já amargurado ciúme, uma súbita confirmação dos seus temores. Toda
a ternura que sentira abandonou-a de chofre; sua face endureceu-se, seus lábios estreitaram-se. Pestanejou ao brilho que a lâmpada espalhava e de novo sentiu-se
como uma estranha apresentando-se inesperadamente em um grupo já completo. Ela, a dona da casa, sentir-se assim! Por um momento ficou ali, de pé, observando; depois,
com uma voz que vibrava aos seus próprios ouvidos exclamou:
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- Então! encontraram-se por acaso, não foi isso ? Peter teve um sorriso alegre:
- Isso mesmo, voltaram para casa no mesmo trem! e num tom em que revelava arrebatamento: - Veja, mamãe, o que Anna me trouxe! - Encantado, exibia um yacht em miniatura,
fino, elegante, com velas brancas, um magnífico e custoso brinquedo.
- É um regalo de embarcação! disse Frank entusiasmado, e deve ter custado a Anna uma fortuna! vou pô-lo a funcionar eu mesmo, no domingo.
Lucy fixava-o.
- Diga alguma coisa, "mamãe, pedia Peter puxando-lhe o vestido, diga que é maravilhoso!
- Todos vocês parecem achá-lo maravilhoso, disse ela com amargura, e na sala aquecida, suas faces pálidas, batidas do vento exterior, encheram-se bruscamente de
sangue.
Houve um silêncio constrangido; depois Anna, que a observava com aquele seu ar peculiar que dava a impressão de sorrir sem estar sorrindo, exclamou:
- Pensamos que você estivesse perdida!
- Não! disse Lucy com fria deliberação, estou tudo, menos perdida!
- Meu barco! falou Peter queixoso, alisando com a mão o brilhante casco. Meu lindo barco. Você podia ao menos ter dito que gostava dele!
- Cale a boca! ordenou Lucy duramente; tenho mais em que pensar do que em seus brinquedos.
Não pudera conter-se. Ela, torturada por aquela angústia, enfrentando a crise da sua vida, ser incomodada por aquela trivialidade: o presente de Anna a seu filho!
O gongo soou anunciando o chá.
- Bem, disse Moore levantando-se, mesmo que não possamos ser agradáveis, precisamos comer.
Enrubescendo ainda mais, Lucy, sem uma palavra, voltou-se e entrou na sala de jantar.
- Onde é que você estava? perguntou Moore quando já estavam sentados à mesa. Estava de bom humor e parecia ansioso por agradar, por aplacá-la. - Você não costuma
sair a essa hora.
- Tenho negócios particulares a tratar - respondeu ela com voz dura. Via-se que ele desejava acalmá-la e desconfiava disso. - Espero que você o compreenda.
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- Naturalmente! exclamou ele conciliador, está muito bem, querida. - Seguiu-se uma pausa cheia de constrangimento, depois da qual Anna falou:
- Foi muito engraçado, Lucy, disse com uma graciosidade insólita, Frank e eu virmos no mesmo trem e não o termos sabido até alcançarmos Ardfillan.
- Sim! replicou Lucy com um rictus no lábio. É quasi incrível isso! - Mesmo assim, o esforço para dar à sua frase aquela inflexão de desdém fê-la sofrer. Sabia,
sem dúvida, que Anna estava procurando enganá-la; de outro lado, como explicar aquela amabilidade tão fora dos seus hábitos? Pobre Lucy! Fosse qual fosse o humor
que Anna apresentasse, sua angústia presente envolvê-la-ia na mesma suspeita.
Aquela refeição lhe foi intolerável. Mal podia engolir. Tinha ímpetos de fugir para longe, um desejo de se afastar do insuportável sofrimento que a queimava interiormente.
Mas não se podia mover. Tinha que permanecer ali, escutar o que diziam, e todo o tempo espiava! Sim, impelida por uma força misteriosa qualquer, observava todo olhar,
toda palavra que passasse entre aqueles dois, que pudesse confirmar aquele temor que a torturava e enfurecia.
Afinal a refeição terminou. Anna foi para a sala, Peter correu pelas escadas acima sobraçando ternamente o menosprezado yacht. Netta tirou a mesa e recolheu-se à
cozinha. Ficaram sós ela e Frank, que aparentemente havia esperado por essa ocasião; porque disse, imediatamente, cheio de solicitude:
- Lucy, há alguma coisa, minha querida? Pensei que você já tivesse esquecido todas aquelas nossas rusgas.
Erguendo-se, ela foi fechar a porta que Netta havia deixado entreaberta, depois sentou-se em frente a ele e encarou-o. Sua ternura, frustrada, abandonara-a. Tomara
uma resolução e, sem hesitar, disse:
- Quero falar-lhe, Frank.
- Muito bem, respondeu ele, com um sorriso plácido, mas não há razão para você manter essa cara fúnebre.
- Deixemos meu aspecto fora da questão, respondeu ela deliberadamente, uma vez que você não o aprova.
- Vejamos! não me leve a mal, apressou-se ele em dizer, estava apenas brincando.
- Não estou disposta a brincar, replicou ela mordente, nunca estive tão séria em toda a minha vida.
- Mas Lucy, quase implorou ele, que tem você realmente ?
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- É uma coisa terrivelmente grave, declarou ela com intensidade, e não havia engano possível dado o tom que empregava. ?- Eu o suspeito de uma coisa. De uma coisa
horrível, mas que não altera o fato. Só há um meio de sairmos disso. Você tem que falar a verdade. Diga-me... e sua voz subitamente alterou-se e tremeu Acusadora
diga-me si você foi amante de Anna!
- Que? arquejou ele.
- E não é só isso, exclamou ela desvairada, diga-me si você é o pai do seu filho.
Ele fixava-a estupefato, enquanto um forte rubor lhe invadia a fronte. Então era aquela a explicação de todas as coisas. Ela tirara aquela horrível conclusão. E
enganara-se : enganara-se redondamente!
- É isso o que você pensa! balbuciou ele por fim. Eis o juízo que você forma de mim!
- Vamos, responda! exclamou ela novamente em voz alta. Você não vê que eu espero?
- Mas Lucy, gaguejou ele embaraçado e esse embaraço emprestava-lhe uma perfeita aparência de culpa. Não seja absurda! Tudo isso é completamente ridículo!
?- Não é tão absurdo assim, irrompeu ela desesperada pela perturbação que o invadira. E eu vejo o efeito que a minha pergunta produz em você.
Frenética, ela perscrutava-lhe o rosto, observando-lhe as alterações, todas as inflexões da voz, e ele subitamente, conciente desse exame, indignou-se:
- Que é que você está olhando? Não gosto disso!
- Então você teme alguma coisa? - O rosto de Lucy estava pálido, sua voz sumida, quando, influenciada pela atitude dele, exclamou amargamente: - A culpa está estampada
em sua fisionomia. Você não me engana, Frank. Eu o conheço. Oh! por que você não age como um homem e não encara honestamente os fatos?
Essas palavras, ela as pronunciava com veemência, repisando-as umas após outras, e sob essa invectiva ele se remexia inquieto, corando mais profundamente, porque
sabia que era fraco e que estava profundamente confirmando suas suspeitas.
- Isso é loucura, gritou afinal, nada tive com toda essa história! nada absolutamente! Você sabe muito bem que é a você que eu amo. Nunca tive coisa alguma com Ánna
em toda a minha vida. Si você não acredita, pergunte a ela.
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- Anna! replicou ferozmente. Você pensa que eu me humilharia perguntando isso a Anna! Eu, sua mulher, rebaixar-me perante ela. E depois, que poderia eu esperar dela?
Nunca a verdade, naturalmente. Não tenho dúvidas de que vocês mantêm algum horrível entendimento, os dois.
- Deus do céu! exclamou Frank exaltando-se contra sua própria inhabilidade para dominar a situação. Que é que você está insinuando? É tudo falso, estou lhe dizendo,
está tudo muitíssimo errado.
- Está errado sim! retrucou ela cheia de ressentimento. E foi você quem pôs as coisas como estão.
?- Então pense o que quiser, gritou ele. Si você quer me atribuir alguma coisa que eu nunca fiz, faça-o e arranje-se.
Encararam-se, ambos presas da maior tensão vital. Depois, de repente, a dureza da fisionomia de Lucy cedeu. Tomada de um impulso incontrolavel de ternura para com
ele, a amargura abandonou-lhe o olhar, que brilhava agora num apelo.
- Você não compreende, Frank, o quanto isso tudo me tortura? Acabemos com isso. Depois começaremos tudo de novo.
Mas já agora ele estava colérico e, com toda a obstinação da tibieza ultrajada, recusava-se a escutar. Em vez disso, levantou-se bruscamente:
- É demais! Não posso admitir tudo isso!
Rapidamente, Lucy se pôs também de pé e tomou-lhe o braço:
- Frank, implorou ela, você sabe o quanto eu o amo. É tempo de que você saiba. Você deve saber que eu faria tudo por você, tudo nesse mundo! Você não poderia ao
menos me dizer que eu o perdoe?
Frank dirigiu-se para a porta sem olhar para ela.
- Para que quero o seu perdão? Guarde-o até que eu precise dele!
- Não vá, Frank, implorou ela desesperadamente, isso vai convencer de que você tem culpa.
Bruscamente ele libertou o braço:
- Pelo amor de Deus, saia de junto de mim! - E retirou-se da sala deixando-a sozinha.
Fôra-se e ela ficara, rígida, os olhos cheios de lágrimas fixos na porta que ele fechara. Negara sua acusação. Sim, naturalmente havia-a negado, mas a maneira por
que o fizera só havia servido para confirmar suas convicções. Si
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ao menos ele tivesse sido honesto! Oh com que alegria o teria perdoado si tivesse confessado tudo! Em vez disso, abandonara a sala. Isso não era de Frank, o homem
que ela, amava. Era uma capa, uma máscara para encobrir o que havia. Ela conhecia sua fraqueza, sua tibieza, seu modo exquisito, e era por isso que gostava de lhe
emprestar sua própria força. Não o amava pelas qualidades que ele pudesse possuir, mas por essa qualquer coisa indefinível que era dele. E amando-o quisera ajudá-lo.
Durante oito anos haviam sido felizes: era impossível que ele não estivesse convencido da dedicação que lhe votara. E agora, eis que se defrontava com aquela incrivel
e assustadora situação. Pelas maneiras de Frank, tornara-se evidente que havia alguma coisa, mesmo, entre Anna e ele.
Estremeceu, com os olhos ainda fitos naquela porta que lhe pareceu subitamente simbólica. Alguma coisa fechada para ela dando acesso a uma região que ela nunca mais
poderia atingir. De repente, da sala para onde ele fora, chegou-lhe o coro de "The Minstrel Boy" batido ao piano, por Anna. Novamente estremeceu. A cabeça lhe doía;
sentiu cair sobre si um terrível desânimo.
Só, naquela sala, o lugar e o momento eram propícios a um amargo desafogo das suas penas. Mas não chorou. Ao seu rosto pequeno e resoluto acudiu uma expressão nova
de determinação. Não fazia mal que sua suspeita tivesse sido confirmada. Amava-o. E salvá-lo-ia das garras de Anna; salvá-lo-ia de si próprio. Sua cólera extinguira-se.
Não faria cena alguma. Observaria, esperaria e estaria pronta a agir quando surgisse a necessidade de ação. Deliberadamente levantou-se e, tranquila, dirigiu-se
para a sala.
IX
A GORA, quando despertava, Lucy sentia uma opressão que - era como um peso que trouxesse ao peito. Só durante segundos, conservava essa brumosa felicidade que dá
o despertar, esse prazer inconciente do novo dia; depois, logo a realidade se lhe apresentava para destruir o brilho da manhã. Era intolerável essa penosa impressão
que lhe extinguia a alegria de viver. com a tristeza no olhar, deixava-se ficar imóvel, fixando a parede. Ali, por feroz- ironia, havia um lindo quadro de que ela
sempre gostara, chamado " 103
Reconciliação". Dois namorados, vestidos romanescamente, achavam-se sobre os degraus de mármore de uma fonte, enlaçados em um casto abraço; no segundo plano, assomava
um lindo galgo e ao fundo, um velho servo, evidentemente escandalizado, trazia vinho sobre uma bandeja. Mas Lucy não via esse quadro. Pensava, com a testa franzida,
e repetia: "Não posso continuar assim. Isso está me matando.
Mas tinha que continuar. Não capitularia. Nem pensar em tal! ao levantar-se, tomou a firme resolução de levar até o fim aquele amargo episódio. Vestiu-se e desceu
para dar ordens para o café de Frank. Porque não cessara suas atenções. Pelo contrário. Eedobrara de cuidados sem mostrar que o fazia, conservando-se friamente à
parte enquanto dava provas do seu valor. Ele nunca fora tão bem servido. Ela aquecia suas roupas com perfeita diligência, punha suas luvas ao fogo antes de entregar-lhas
e vinha mesmo até a porta para ajudá-lo silenciosamente a vestir o sobretudo.
Mas que febril excitação fermentava sob essa aparência calma!
Já era o sábado seguinte e a situação não mudara. Quatro dias haviam passado. Como pudera ela atravessá-los? Si ao menos Frank a tivesse tomado nos braços e com
seriedade houvesse negado novamente o único fato que ela temia, imediatamente sentir-se-ia outra vez calma e feliz. Mas depois daquela cena em que ela o interrogara,
Frank nada mais lhe dissera sobre aquilo. Não se defendera.
Desde então vinha sendo alternadamente irónico, faceto e petulante, saindo deliberadamente do seu feitio habitual, agravando sua ansiedade com uma nova e aberta
atenção para com Anna. Era realmente como si sob os olhos de Lucy, traindo uma similaridade estranha de humor, eles se achassem obrigados a manter uma aliança de
emergência. Infiel uma vez com Anna, por que não infiel outra vez? Ela sofria. Conhecia Frank, e o conhecia bem. Haviam tido seus dissentimentos no passado - -quem
não os tem? - porém ele sempre "se chegara . primeiro. Agora, tardava em fazê-lo. Será que pensava que ela havia aceito aquela situação? Que estava vencida ? Indignava-se
a essa sugestão iníqua.
Ali, no quartinho de Peter, observando-o enquanto ele gravemente acabava de "fazer as malas", uma amarga onda de injustiça envolveu-a. Até naquela contemplação do
seu filho, tinha a impressão de ser prejudicada. Peter ia passar alguns dias em Port Doran, mas, si bem que ela mesma,
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tivesse sugerido aquela visita, não tinha o mínimo desejo de vê-lo partir.
O menino fora seu refúgio durante aqueles últimos dias. Falara muito com ele e ele servira-lhe de muito, tendo sido um manancial de alívio para ela. Tinha mesmo
feito exibição do seu filho e da sua afeição para com ele, perante Anna, com uma espécie de amarga ostentação. Impelida pelo seu orgulho de fazer um ataque direto,
deliberara usar todas as maneiras possíveis para ferir Anna e induzi-la a terminar sua estada ali. com esse propósito firme em vista, dissera na terça-feira, abraçando
estreitamente a criança e dirigindo um olhar direto à outra mulher:
- Você vai para Port Doran sábado, Peter. Tio Edward quer que você vá para lá depois da partida de Anna.
Anna, porém, não parecia ter se apercebido de que ela queria precipitar a situação. Ainda lá estava. E seu filho, encantado com a perspectiva da viagem, preparava-se
para partir. Lucy tinha um sentimento de fracasso, por isso. Era quase como si tivesse sido desfeiteada pelas próprias mãos.
- Acho que está tudo aqui, mamãe, disse Peter com seriedade, levantando a cabeça que estivera inclinada sobre a pequena mala Gladstone aberta sobre o tapete. Olhando
para sua pequena forma ajoelhada com uma espécie de melancólico orgulho, reconhecia que Peter era uma criança extraordinária, propensa à ordem, à limpeza, à nitidez.
Sabia exatamente o que tinha e onde tinha suas coisas. Das roupas, ela naturalmente cuidava, mas do resto dos seus objetos, desde seus brinquedos até suas gravatas,
ele mesmo se ocupava, exibindo um forte instinto de propriedade naturalmente derivado dela, o que era incrível em criatura tão nova.
- Você não está triste por ter que se separar de mim, ineu filho? disse-lhe, procurando um pouco de conforto, com os olhos meio úmidos.
O pequeno fechou a mala e levantou-se num alegre salto.
- vou voltar logo para casa, .mamãe, declarou, cheio de otimismo, - mas tenho pena por causa de Anna; ela pode ter ido embora antes da minha volta. - Depois, seu
rosto voltou a se iluminar: - Mas talvez ela não vá já; nunca se pode saber!
Enquanto Peter falava, bateram fortemente na porta da frente.
- É Dave! gritou ele encantado, começando a descer as escadas. Já é tempo de partir. - Parou de súbito, i 105
mobilizado por uma ideia: - Mas tenho que dizer adeus a Anna.
- Vá, disse Lucy friamente. - E pensou: "Prometo-lhe que não a verá outra vez!"
Peter foi para o quarto de Anna, que nessa hora matinal
- nove horas - ainda não se levantara, e Lucy desceu vagarosamente, entrando na cozinha.
- É um dos Bowie que veiu buscar Peter, disse Netta escovando um sapato. Como fora Angus, e não Dave, quem viera, Netta demonstrava seu desapontamento num furioso
ataque ao couro que lustrava.
- Você tomará conta dele, Angus? disse Lucy dirigindo-se para a porta. Novamente sentia-se apreensiva com a ideia da partida do filho.
- Sim, senhora, respondeu Angus muito sério. Si bem que se parecesse com Dave, não tinha o humor risonho deste. Era mais reservado, calado, seguro de si mesmo. E
ajuntou, repetindo as palavras dela: - Tomarei conta dele para a senhora.
- Muito obrigada, disse Lucy brandamente; e voltou-se, porque Peter surgira trazendo a mala numa das mãos e na outra um shilling novo.
- Eis-me aqui! gritou cheio de entusiasmo, e Anna me deu um shilling inteiro! Não foi ótimo? Vamos, Angus.
- Não vá gastar esse dinheiro em doces mal feitos, avisou Lucy asperamente, sentindo-se preterida porque havia pensado em lhe dar também um shilling para ele guardar
em sua sacola escocesa. Não quero que você estrague o estômago.
- Não, não, mamãe, afirmou Peter imediatamente. Não vou comprar nenhum doce colorido.
Ela olhou para aquele rosto risonho e esperto com uma emoção indescritivel. Essa separação por alguns dias nada era. Era uma banalidade; mesmo assim, vinda enquanto
seu espírito sofria aquela tensão formidável, revestia-se para ela de uma enorme significação. Teve a intuição estranha de alguma coisa inevitável, ocasionada obscuramente
por aquela separação. E teve também um, vago, intangível pressentimento do que seria seu regresso.
- Então, adeus, queridinho, disse estendendo os braços. Não costumava usar essa expressão afetiva, mas o momento fez com que ela a empregasse.
Enquanto Peter seguia pela estrada com Angus, ela o acompanhava com o olhar sentindo ainda, cheia de emoção, a pressão dos mornos labiozinhos sobre os seus. Grandes
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lágrimas lhe assomaram aos olhos. Voltou-se vivamente. Não queria dar espetáculo na presença de Netta.
Foi para a sala e, da janela, .contemplou sombriamente a paisagem ante seus olhos. Sentia-se roubada, conciente também de que a partida do filho deveria servir de
fim para aquela crise. Até aquele momento Peter fora como uma espécie de terreno neutro entre as duas, afastando a possibilidade iminente de um conflito.
E agora perguntava novamente a si própria por que não esclarecer imediatamente a situação pedindo a Anna para deixar sua casa. Não era mais o espírito de hospitalidade
que a retinha, apesar dela julgar que assim era. A razão era mais profunda, mais sutil. Dar essa solução ao caso, seria a tácita aceitação da sua fraqueza, do seu
medo, da sua abdicação. Não era ela e sim Anna quem se devia retirar do campo. Além disso, sua suspeita era como uma ferida que requer o sinapismo da vigilância.
Ela estava certa de que sabia de tudo, mas ao mesmo tempo não o estava. E desejava ardentemente apreender a verdade para então agir uma vez por todas. Anna conhecia
essa verdade. Si ao menos pudesse ler claramente no espírito de Anna!
Como poderia ela dizer de tudo aquilo: Isso aconteceu no passado, num longínquo passado, quando aquela mulher ainda estava em sua casa, comendo, dormindo, vivendo
sob seu teto, defrontando-a com aquele perpétuo e enigmático antagonismo? Era demasiado. Era injusto que isso assim fosse e que ela o suportasse pacientemente. Ela,
cujo amor por Frank era feito de lealdade e ocupava toda a sua vida! O pensamento dos dias felizes da sua vida de casada trouxe-lhe lágrimas aos olhos. Não podia
aceitar aquilo serenamente. Não o toleraria. Já havia durado demais. Agora sentia que não. poderia continuar a esperar e observar.
Ver que tinha mandado seu filho para longe, com um propósito que falhara, doía-lhe agora como uma chicotada. Si Anna fora bastante insensível para não perceber aquela
indireta, então era porque uma medida enérgica se fazia necessária. A necessidade de ação nasceu nela febrilmente. Não era uma capitulação enfrentar Anna agora.
E provaria que não a temia. Aquela não era uma situação vulgar. E sendo assim, seria tratada com métodos invulgares. Seus punhos se fecharam. O som da cantoria de
Netta, elevando-se no momento, ferindo-lhe os ouvidos, serviu para incitá-la a uma determinação ainda mais feroz. Si não fosse
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Anna, ela também se sentiria feliz e estaria cantando enquanto trabalhasse. Pensou consigo: "Não admitirei mais isso! vou subir agora mesmo as escadas".
Impulsiva, lançou-se
Ao hall e começou a subir as escadas.
Na sua agitação, no ar indignado do rosto, estava quase formidável. com um aperto na garganta e palpitações apressadas no coração, entrou no quarto de Anna.
Anna estava deitada na cama com os cabelos espalhados sobre o travesseiro, as marcas do sono ainda em torno dos olhos, a camisa entreaberta, debruada no pescoço
por um babado de rendas, os seios túrgidos, aquele rictus estranho nos lábios, sem demonstrar a menor sombra de surpresa a esta insólita e inesperada entrada.
Silenciosamente, Lucy instalou-se numa cadeira, tão perto dela que podia ver os pontos amarelos que brilhavam nos olhos castanhos da outra. E em silêncio, as duas
se encararam firmemente.
- Ainda não se levantou? disse finalmente Lucy, apelando para todas as suas forças para manter a voz firme e tornar seu tom frio e deliberado.
- Assim parece, respondeu Anna calmamente.
- Você leva a vida muito agradavelmente! - Esta frase veio mais rápida e em voz mais alta do que Lucy desejara.
- Não é esse o melhor meio de passá-la? Lucy molhou os lábios que estavam secos e duros.
- Não consigo compreendê-la, Anna, disse, reprimindo seus sentimentos.
- Compreender o que? respondeu a outra.
- Você não tem ocupação, ideais, religião... nada. Existe apenas para o seu prazer.
- E para que é feita a vida? exclamou Anna displicente. Tira-se dela o que se pode. É um páreo para se conseguir o que se quer, e o diabo que fique com o resto.
- São essas suas crenças, disse Lucy secamente. Isso explica sua atitude.
Como resposta, Anna sorriu. Seria um sorriso, aquela expressão mixta de indiferença, divertimento, desprezo, que lhe emanava inteiramente dos olhos? E àquele olhar
tão exasperante pela sua negligência, Lucy empalideceu.
- Então é isso que você pensa da vida? replicou com voz dura. Você não tem uma única dedicação!
- E você tem alguma?
- Eu tenho meu marido, balbuciou Lucy corando subitamente, e meu filho, e minha religião.
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- O Pai, o Pilho e o Espírito Santo, Amém, disse Anna com uma espécie de pensativo escárneo.
Houve uma pausa, durante a qual Lucy sentiu erguerem-se em si todas as emoções acumuladas em toda a semana passada.
- Isso é horrível! explodiu, simplesmente horrível! Como pode você falar desse modo? É uma blasfémia! Você estraga tudo o que é bom e nobre na vida.
Arrastada pela própria emoção, revelava nas palavras a indignação que a empolgava.
Anna ergueu-se apoiando-se sobre o cotovelo, as maneiras subitamente insolentes, a voz dura:
- Não me aborreça! exclamou com inesperada veemência, com todo esse palavreado sentimental! Você é como as demais: errada na vida. A santidade do casamento! A beleza
da maternidade! Que é tudo isso quando está dito e feito? Vocês se casam por uma coisa que têm medo de obter por outros meios. Depois, por causa dessa coisa têm
um filho, é assim que a vida começa. A voz que soprou no Éden! - Estacou e seu olhar revelou uma zombaria feroz. - Não é engraçado? E quanto ao outro, você pode
se matar cuidando do seu belo filho e no fim ele há de lhe virar a cara. Quanto a essa célebre coisa, a imortalidade da alma! Espere morrer e aí você verá como estava
enganada.
- Como ousa você falar assim? gaguejou Lucy trémula de raiva, como se atreve ? Eu não o permito!
- Não permite! Eis o seu mal. Você não permite coisa nenhuma, e quando as coisas acontecem apesar disso, você se sente infeliz.
- Muita coisa terá que acontecer antes que eu acredite em você, retrucou Lucy numa voz exasperada. Prefiro morrer a formar da vida a ideia que você tem. Essas suas...
suas explicações! - E arrastada pelo impulso, estendeu a mão e abriu o cofrezinho em cima da mesa. - Já que estamos nisso, como você explica isto aqui?
Mas seu dramático gesto ficou sem efeito. O cofre estava vazio. E Anna teve um dos seus raros risos, ásperos e zombeteiros. Toda sua atitude agora era diferente,
sua calma habitual desaparecera, seus olhos estavam acesos, mostrava-se pronta ao ataque e à defesa.
- Isso agora foi divertido! disse ela. Eu joguei a fotografia no fogo naquele mesmo dia em que você veio aqui bisbilhotar.
- E você acha isso divertido? exclamou Lucy horrorizada.
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- E por que não? tornou a outra.
- Realmente você nunca deu muita importância ao filho que teve.
- Fui eu quem o teve. Você não precisa de se incomodar com isso.
Houve uma pausa, durante a qual Lucy, ultrajada, procurando sopitar a indignação, cerrava os punhos e fixava na outra uns olhos cheios de resolução.
- Você vai me dizer, exclamou com voz desesperada, uma coisa que eu preciso saber.
- Sim?
- Sim! Por que foi que você veiu cá?
- Você me convidou, não é mesmo?
- Eu não a conhecia, então.
?- E pensa que me conhece agora? - Estas provocantes palavras ditas com mortal ironia fizeram Lucy curvar-se; novamente aquela suspeita terrível empolgou-a violentamente
e fê-la gritar feroz:
- Que representa Frank para você?
?- Bem. .. sempre gostei de Frank, respondeu Anna com uma voz lenta e escarnecedora. Quando cheguei aqui, havia-o quase esquecido. Mas você. . . como que me fez
novamente lembrar. Si não fosse você, não creio que tivesse reparado nele. Não, francamente, não teria.
?- É meu marido, você compreende? disse Lucy num tom baixo e vibrante.
- Isso quer dizer que você o possue de corpo, alma e divindade, não é mesmo? Você não o deixa "pastar" uma vez ou outra, não?
- Quer dizer que eu o amo. Escarneça quanto quiser, não importa! ?- Uma nota de desconfiança insinuou-se em seu tom. - Não importa o que você pense. Não me envergonho
disso. Mesmo que vocês tenham tido qualquer coisa em comum no passado, não me faz diferença alguma.
- Então por que você se incomoda tanto?
Uma luz perigosa brilhou, nos olhos de Lucy, seus lábios tremiam, parecia querer atirar-se sobre Anna.
- É assim que você paga a hospitalidade que eu lhe ofereci? Você veio aqui mexer com uma coisa passada e esquecida, afastou meu marido de mim, é verdade! Você fez
o nossível para afastar Frank de mim!
Durante um momento, Anna enfrentou calmamente aquele olhar; depois, lentamente sua expressão habitual voltou-lhe à fisionomia.
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- Você está completamente enganada, disse calmamente. Eu nada fiz. Foi você quem fez tudo. - Desviou o olhar que se perdeu lá fora, através da janela. - Não nego
que pretendi sacudir um pouco Frank, de tal modo que ele precisasse disso. Mas nada fiz.
- Não acredito! arquejou Lucy. Você está mentindo. Há alguma coisa entre vocês; pela última vez exijo que você o confesse.
- Que adiantaria isso? redarguiu Anna negligentemente. Você afirma as coisas e não me acreditaria em caso algum.
- Si você não falar, observou Lucy com a voz sufocada, você.., você deixará minha casa hoje mesmo!
- Muito bem! respondeu Anna calmamente, eu sabia que caminhávamos para isso. É fácil de dizê-lo.
Sem palavras, Lucy agora fitava a outra, lutando para controlar aquele súbito impulso de intolerante ressentimento. Havia atingido o auge! Aquela casa não poderia
conter mais aquela mulher e ela. Ergueu-se abruptamente:
- Vá, então, disse com voz abafada e, quanto mais cedo, melhor. Há um trem ao meio-dia.
- Eu não- pretendia ficar aqui mais de uma semana quando vim, falou Anna devagar. Tire daí suas conclusões.
Sem pronunciar mais uma palavra, Lucy rodou sobre os calcanhares e saiu do quarto batendo a porta atrás de si. Seu rosto estava lívido, quando chegou em baixo. Estava
tudo feito. Anna ia partir. Mas era estranho que não tivesse sensação alguma de vitória. Em vez disso tinha um curioso sentimento de aflição.
É desumana! pensava com amargura, completamente desbumana! Acusá-la de ter criado aquela terrível situação, ela que amava Frank, que procurara apenas defender a
integridade da sua casa. Um soluço subiu-lhe à garganta. Teve de parar no hall. uma das mãos comprimindo-lhe o lado antes de entrar na cozinha.
- Netta, disse rapidamente desviando a cabeça, corra imediatamente ao Frew e peça que mandem aqui um carro.
As mãos de Netta moveram-se em busca das fitas do avental.
- Ela vai... vai embora? - E seu tom traía surpresa.
- Vá" e arranje o carro, respondeu Lucy com uma voz estranha e sumida.
Netta partiu, voltou, e logo depois o carro chegou e estacionou significativamente durante muito tempo defronte
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da porta. O cocheiro, na boleia, derrubou o chapéu para a nuca; o cavalo estendia o pescoço para a miragem de um pasto, batendo um casco impaciente no chão.
Afinal, Anna desceu, calma, negligente, indiferentemente adversa, e sorrindo. Seria aquilo um sorriso? aquela enigmática mescla de divertimento e desprezo? Agora,
como no momento em que entrara naquela casa, trazia o mesmo ar de tranquilidade.
- Eis-me aqui, como vê, declarou com indiferença, fazendo o que você quer. Desta vez você obteve tudo a seu modo.
Na meia luz do hall o rosto de Lucy parecia pequeno, branco, com uns imensos olhos escuros, cercados de olheiras. Abalada até o âmago do seu ser por ter agido daquele
modo, sabia contudo que fizera o que devia ter feito.
- Adeus, disse-lhe sentindo as batidas do coração. E estendeu a mão. Anna, porém, não a tomou.
O cocheiro, enfim, ativo, foi buscar a mala, que trouxe nas costas.
- Adeus, então, respondeu Anna parando um momento no degrau do carro; e voltando a cabeça por cima do ombro disse: - Há de lhe parecer estranho, mas não posso deixar
de sentir pena de você. Lembre-se das minhas palavras. Dito isso, fazendo ranger as molas, entrou no carro e partiu.
Lucy fechou a porta com um penoso aperto na garganta. Um perfume sutil lembrava ainda a presença de Anna atacando-lhe as narinas com uma doçura persistente. Errava
sem destino e encontrou-se de repente na sala. Sentia-se invadir por uma espécie de fraqueza, um vago tremor dos membros; aliviada, porém, daquela presença opressiva,
sentiu-se mais calma, com o espírito incomensuravelmente mais leve. com os lábios ainda trémulos, quedou-se apoiada contra a lareira, fixando o fogo. As chamas saltavam
parecendo vivas e ávidas, como que elevando-se para atingir um último desejo. Durante um momento, nascido da sua agitação, aquela antiga e intangível ansiedade avassalou-a,
aquele pressentimento que às vezes a assaltava, surgindo como si fosse de alguma coisa passada há muito, muito tempo. Que desejo era esse? Inclinada para a frente,
com a luz a dansar-lhe dentro dos olhos escuros, presa daquela vaga premonição, ela era uma figura sem idade universal. Que anelo era aquele seu? Era, deveria ser
seu amor por Frank, seu desejo de vê-lo feliz, livre do perigo que o ameaçara.
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 ela o havia libertado. Essa convicção foi-se apoderando dela. Sim! Agira bem. Sabia-o. E através de toda a sua agitação sentiu-se subitamente tranquila.
NESSA tarde, antes que Frank regressasse do trabalho, Lucy esmerou-se no preparo para recebê-lo. Durante o dia, impelida pela necessidade de fazer alguma coisa,
limpara a casa, até vê-la brilhar. O quarto de Anna foi especialmente limpo e arrumado, a roupa de cama nrudada, as janelas abertas de par em par, deixando o ar
puro do mar percorrer todo o quarto, removendo todos os traços daquela odiosa e contaminadora presença.
Havia alguma coisa de simbólico naquele ato: a purificação do templo que era o seu lar. E agora esforçava-se cozinhando o prato favorito de Frank, levava seus chinelos
para aquecê-los defronte do fogo, vestia cuidadosamente seu vestido de noite cor de cinza e penteava-se com especial apuro. Depois de dedicar longo tempo à sua toilette
- coisa insólita em uma criatura que se vestia habitualmente com grande simplicidade - achou-se ainda o pior possível. Dizia a si própria que Frank ia achar-lhe
os lábios pálidos, o rosto abatido, nessa ocasião em que ela mais ardentemente desejava atraílo. Afastando-se do espelho com um pequeno suspiro, Lucy desceu e foi
para a sala, onde se pôs a arranjar nervosamente e sem necessidade alguma a porcelana de Goss no aparador.
Estivera numa situação terrível e dominara-a. Anna partira. E Frank ali estava, pertencia-lhe e estaria pronto a esquecer com ela o passado e a reconquistar sua
felicidade. Pensava em Frank e no fato de que ele e ela estariam juntos, sozinhos em casa, uma coisa tão rara e empolgante que ela se sentiu docemente emocionada.
Agora que os primeiros efeitos da recente partida de Anna haviam passado e que sua tensão nervosa havia cedido, dando lugar àquela quietude, assaltava-lhe uma ávida
ternura, um impulso emocional para o perdão, um desejo imenso de amar e ser amada. Talvez se tivesse mostrado demasiado severa na semana que passara! Um pouco áspera
com Frank e especialmente rude com Anna. Torturada pela suspeita, era muito natural que assim fosse; pela sua ação, conquistara, si não a vitória, pelo menos a salvação
da sua felicidade, da de Frank e do seu lar. Lembrava-se de que ouvira alguma 113
coisa sobre mulheres da história - ou seria lenda? - que, para proteger seus lares, haviam amputado um seio para usar melhor arcos e flechas. Isso fora há muito
tempo, mas Lucy bem o compreendia. Era como essas mulheres. Defendera seu lar e agora vinha a reação inevitável, celebrada pela doce rendição não às circunstâncias,
mas ao seu amor.
Frank estava atrasado e aquela expectativa a enervava, apesar de saber que ele fora enviado por Lennox à alfândega de Leith para ultimar as negociações sobre a importação
da Holanda. Eram cinco horas justas no relógio, para onde ela tão frequentemente olhava, quando seu ouvido atento percebeu o estalido familiar do portão. O rosto
de Lucy corou ligeiramente e empalideceu logo depois. Apesar de não se dirigir ao hall - isso teria sido uma revelação demasiado pronta da alteração das suas disposições
- deixou-se ficar onde estava, de pé, com os olhos brilhantes, os lábios entreabertos, esperando o momento da entrada do marido.
Essa foi como sempre uma entrada simples. De cabeça baixa, ombros caídos, Frank trazia no rosto sua habitual expressão levemente sardónica.
- Está pronto o chá? perguntou esfregando as mãos. Está frio lá fora. E há uma neblina saindo da água que envolve a gente!
- Está frio mesmo, acudiu Lucy rapidamente, cheia de vivacidade, fazendo um grande esforço para controlar o tremor em sua voz, mas eu tenho para você um esplêndido
pastel quente, de carneiro.
Ele a olhou com surprêsa, depois desviando }o olhar avançou para a lareira e começou a aquecer-se sem dizer uma palavra.
- Houve muito trabalho hoje? indagou Lucy com interesse .
- Nem por isso, respondeu Frank, a viagem é que foi um "estirão". Coisas mesmo do L., pedir-me que fizesse isso no sábado, que é quando tenho a tarde para descansar.
Fez uma pausa, reparando subitamente na favorável mudança das maneiras da esposa.
- O garoto partiu bem?
- Sim, disse ela puxando o cordão da campainha, partiu muito bem.
O chá com torradas e o pastel, quentes e .saborosos, foram trazidos por Netta.
Quando esta os deixou, Lucy foi sentar-se à cabeceira da mesa.

- Venha sentar-se, disse a Frank. Este levantou a cabeça rapidamente:
- E Anna, nós não vamos começar sem ela!
- Ela não tomará chá, observou Lucy desviando o olhar.
- A mão que ia apanhar o pegador de açúcar foi tomada de um leve tremor. - Saiu já há algum tempo.
- Saiu?
- Sim. - E com esforço, Lucy recuperou seu ar natural. Revelaria a ação que praticara a seu tempo, nem um segundo antes do que resolvera.
Visivelmente surpreendido, Frank sentou-se, aceitou sua chícara e mexeu-a.
- Houve alguma coisa por aqui? perguntou depois de algum tempo.
Aqueles últimos dias o haviam tornado ainda mais sombriamente desconfiado.
- Nada, absolutamente, Frank, respondeu Lucy corando. Entramos apenas em uma vida nova. Espero que as coisas, agora, endireitem.
Lentamente Frank tomou a faca e o garfo:
- Também o espero, replicou significativamente.
A medida que a refeição avançava, intensificava-se a cor nas faces de Lucy. Servindo-o de pastel uma segunda vez , disse de repente:
- É agradável estarmos sós outra vez, não é verdade e com os olhos pregados no jornal junto ao seu prato,
Frank sacudiu a cabeça como quem mal ouvira sua pergunta.
- É primeira vez depois de muitos dias, continuou ela rapidamente, que fazemos uma refeição a sós. Estamos mais nós mesmos, esta noite.
- Isso quer dizer que você está mais você mesma, observou ele.
Lucy corou, recuando um pouco, olhando para aquela cabeça inclinada com olhos cheios de mágua; mas não replicou.
Ao terminar, Frank, pegando seu jornal, dirigiu-se para o sofá.
- Aonde terá ido Anna? perguntou com os olhos na folha.
Por um momento Lucy nada disse; depois, sentindo que não podia esperar mais, com um movimento rábido, ergueu-se e aproximou-se do sofá ao seu lado. O momento lembrava
aquele em que primeiro o havia enfrentado, impelida pela suspeita. Mas depois disso, o fluxo em sua alma tomara outra direção. Agora, apesar de mais penosamente
agitada, ela não
115
se preparou para ataque algum. Tudo isso acabara. Queria apenas que enterrassem o passado e enfretassem o futuro, juntos, fazendo um esforço para falar naturalmente,
começou:
- Frank, estamos como dantes, com a. casa novamente para nós, lembra-se?
Ele voltou as páginas do jornal:
- Naturalmente que me lembro, disse. Você não pode esperar que eu tenha esquecido.
- Mas Frank, tornou ela nervosa, tomando sua mão e apertando-a entre seus dedos mornos, estive pensando toda a tarde em coisas que significam muito para nós. Naquele
dia em que nós... naquele dia no bosque de Craigmore... parece que ultimamente não temos pensado muito naquilo que se passou lá.
Transportada pelas próprias palavras, de novo aquela nostalgia a empolgou e ela agitou-se, inquieta, como que sentindo novamente o quente sol nas agulhas dos pinheiros,
seu quente perfume, o zumbido dos insetos; em baixo, a baía; e ela exultante, passiva nos braços de Frank e uma palpitação alvoroçada dentro e de encontro ao seu
peito.
- Que tem você? perguntou ele voltando-se vagarosamente para ela; e percebendo a cor da vergonha em suas faces acrescentou: - Que foi que você fez agora ?
Chegando-se ainda mais para ele no sofá, Lucy comprimiu-lhe a mão contra sua face ardente.
- Tudo o que eu sempre fiz foi amá-lo, Frank.
Ele a olhou desconfiado, conciente da estranheza das suas maneiras, apesar de atraído para ela.
- Você tem mostrado isso de um modo muito estranho, nesta última quinzena, disse lentamente.
- Queria que recomeçássemos tudo, murmurou Lucy agitada. Frank, meu querido, vamos esquecer tudo o que aconteceu. Si nos queremos um ao outro, nada mais importa.
- Mas Lucy... começou ele contrafeito, De súbito, porém, assaltado por uma ideia repentina, endireitou-se fixando-a : - Você não... com certeza não... onde foi que
você disse que Anna estava?
Desviando os olhos, ela arrancou nervosamente uma linha do punho da camisa dele, respondendo dolorosamente:
- Você sabe muito bem que eu não queria fazê-lo, Frank, e sabe que não foi uma coisa fácil para mim.
- Em nome de Deus! gritou ele e estacou abruptamente; houve uma pausa terrível. - Você não quer dizer com isso, continuou depois devagar, quase aniquilado, que lhe
pediu que se fosse!
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- E por que não? - A suavidade do seu tom procurava mascarar a perturbação sem fim que lhe ia no íntimo.
- Você fez isso? gaguejou Frank. Expulsou-a daqui.
- Aparentemente não podia crer em tal.
- Sim. - Esta palavra ela pronunciou-a com mais ênfase, a agitação mostrando-se através da máscara.
Frank puxou violentamente a mão que estivera entre as dela:
- Você expulsou-a da minha casa! gritou. É inacreditável! Anna, minha própria prima!
- Estou farta dessa história de prima, articulou Lucy com voz contida. Pedi-lhe que se fosse para o seu bem.
- Para o meu bem! exclamou ele. O modo pelo qual você a tratou nesta última semana foi afrontoso e agora coroa a obra desse modo!
Aos poucos, a cólera apoderava-se de Lucy, brilhando-lhe nos olhos:
- Você que não queria que ela viesse, disse lutando em vão para conservar a calma, por que se contraria quando ela se vai?
- Anna ia partir na próxima semana, replicou Frank, e na exasperação do momento suas palavras elevavam-se como gritos. Mesmo si você não gostava dela, por que não
tolerou a situação por mais alguns dias?
- Porque o amo, Frank. - Este era seu argumento culminante, a explicação da sua conduta, a síntese de tudo.
Encararam-se um momento, horrivelmente tensos. Ela, pálida, os olhos ardentes e enxutos, ofegava, sentindo uma palpitação no lado, cheia de um desejo angustioso
de que ele a tomasse nos braços. Frank mexeu-se inquieto, os cantos da boca amargamente caídos.
- Você acha que eu lhe pertenço, disse sombrio. Pensa que é minha guardiã! Si você amasse Deus Todo Poderoso quereria também atá-lo a uma corrente!
- Frank, gritou ela num angustioso apelo. Você esperava que eu me deixasse cegar, que eu deixasse as coisas andarem à minha revelia?
- À revelia? Que é que estava andando à revelia? Você pensa que sabe de tudo mas não sabe de nada. Que diabo! Anna não significava para mim nada mais que qualquer
outra pessoa. Mesmo assim atirou-a sobre mim desde que ela aqui chegou. Continue assim e você destruirá tudo e se destruirá também.
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Aos lábios de Lucy vieram amargas palavras de protesto: porém as sopitou. Era isso o que ele dizia! Assim era que respondia àquela oferta que ela fizera de si própria;
assim chamava sua honestidade, sua sinceridade, a intensidade do seu amor por ele; e contudo tanta coisa se havia passado entre eles, aquela intimidade que não poderia
ser esquecida nem apagada! Afastou-se abruptamente com o coração ulcerado, humilhado, perturbado e infeliz. Sabia que tinha razão e persistiria em seu intento. Não
ignorava que Frank tinha de ser reconquistado. Era o único meio. Entregue a si próprio, deixar-se-ia arrastar para o desastre. Sua atitude servia apenas para confirmar
a convicção que tinha, de que agira para o bem dele.
- vou deixá-lo agora, finalizou com uma voz que tremia. Sei que você voltará quando tiver refletido.
E, levantando-se, rodou sobre os calcanhares, e retirou-se.
Foi para a sala. onde se -refugiou perto da janela, com os olhos úmidos e a boca amarga, visualizando a hora em que seria justificada. Acudiram-lhe pensamentos estranhos
e infantis, em que se via trabalhando em algum humilde mister, imolando-se por Frank, sacrificando-se por ele, que a havia desprezado, e via-o pedindo-lhe perdão
talvez quando já fosse demasiado tarde.
Por muito tempo deixou-se ficar passivamente, ali ao pé da janela, por onde já não entrava mais luz. Subitamente, suas sombrias cogitações foram cortadas pelo ruido
seco da porta que batia. Ela estremeceu e lançou-se no háll. Frank saíra de casa! O inesperado do fato aniquilou-a como um duro golpe. Ele nunca saía durante a noite,
preferindo sempre deitar-se ficar ao pé da sua lareira; e essa brusca interrupção de um hábito inveterado abalou-a profundamente. com a inquietação no olhar, entrou
na sala de refeições e sentou-se na cadeira que Frank havia abandonado pouco antes.
Agora tinha realmente a certeza de que sua suspeita era justificada. O modo por que ele recebera a notícia da partida de Anna fora o último elo na cadeia de evidências.
Um susniro profundo partiu-lhe do peito despedaçado. Mesmo assim ela se resignaria, porque o amava.
Como fora providencial que tivesse compreendido a situação! Como agira judiciosamente! Pois ela era lá mulher para deixar-se ficar quieta e suportar a recrudescência
daquela antiga e deshonrosa loucura? Não era criatura para esperar, sem reagir, que aquela paixão corresse toda a sua gama para então dizer; "Volte, Frank-! Eu sou
a mesma
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de sempre". Não! Mil vezes não. Casamento não era aquilo. Firmara seus direitos e assim devia ser. Aquilo não era prepotência. Era amor, seu amor, uma benfazeja
ternura para com aquele cuja volta ela agora esperava, esperava...
- XI -
DEPOIS de bater a porta atrás de si, fazendo aquele ruído que fora vibrar tão dolorosamente nos nervos de Lucy, Moore atravessou o jardim e lançou-se sombriamente
pela estrada afora, com as faces ainda rubras de indignação e aquele amargo rictus na boca.
Jogando para trás o chapéu, caminhou para a frente, na estrada deserta àquela hora, e, de mãos nos bolsos e ombros levantados, embrenhou-se pelo nevoeiro. Aonde
ia? Exasperado ao extremo, não o sabia, nem lhe importava saber. Sabia apenas que não desejava achar-se ali, àquela hora da noite, quando podia estar no conforto
do seu lar, ao pé do seu fogo. Fora Lucy quem o afastara com todo o zelo que empregara em retê-lo. O estranho paradoxo irritou-o pela sombria futilidade.
Pensar que ela havia ordenado a Anna que deixasse a sua casa! Era monstruoso. Anna, sua prima, que há cinco anos passara por aquele desgosto e que era justo que
agora vivesse esquecida daquilo tudo. Ele nada soubera daquele fato, como ou quando tinha acontecido, e quem tinha sido o homem. Nem lhe importava saber. Ninguém
tinha nada a ver com aquilo. Nunca detivera seu pensamento em Anna antes, mas agora tinha-lhe uma nascente simpatia, que provinha da ação de Lucy, um sentimento
de compaixão. Não que Anna precisasse da sua compaixão. Era uma estouvada. Sentia a admiração dos homens fracos pela audácia toda especial de Anna. E ela possuia
alguma coisa mais que audácia. Era... sim! ele achava que ela era uma doidivanas, levando a vida como bem entendia e procurando divertir-se onde quer que se encontrasse.
E apesar de ser aquele o motivo das suas objeções à vinda de Anna, era estranho que agora nada achasse que dizer sobre isso.
Mas pensar que Lucy concebera a ridícula ideia de que Anna e ele haviam sido íntimos no passado, que tivesse sido ele o pai do seu garoto! Aquilo seria engraçado
si não fosse tão irritante. file tudo fizera para convencê-la da verdade, sem resultado. Teria sido por culpa sua? Era tão típico da sua ineficiência essa incapacidade
de convencer!
119
Por que não enfrentara a situação com uma fria e poderosa segurança? Devia ter dominado aquela ridícula história, esmagando-a com um firme e absoluto desprezo.
Mas não, ele não era assim; nunca o fora. Não tinha fibra, pensou desanimado. "Instável como a água, não prevalecerás!" Seria isso da Bíblia? Era palavra de Deus
ou teria sido escrito por Shakespeare?
Imediatamente o velho complexo de inferioridade abateu-se sobre ele e uma onda de desprezo por si próprio avassalou-o. Que curioso tipo era! E não podia sair disso.
Qualquer dia desses alguma coisa ruim aconteceria. Era certo!
Sua testa enrugou-se. Nunca se incomodara muito com mulheres, nem mesmo em seus dias de juventude; agora, naturalmente, ainda menos. Talvez alguma fantasia desgarrada
... aquelas fotografias que um freguês lhe mostrara... artísticas, parisienses, coisas de alto bordo; mas sempre havia uma barreira entre ele e a liberdade. Essa
barreira era ele próprio. As companhias alegres e fáceis lhe eram vedadas pelo próprio temperamento, cheio de inibições curiosas. Além disso, ele tinha a sua mulher.
De envolta com sua exasperação veiu-lhe a certeza do seu amor por Lucy. Gostava imenso dela. Mas como ela sabia ser obstinada quando o queria! Tão... -e procurava
a frase - tão cebeçuda naquilo que julgava direito. Não que ela fosse ciumenta na acepção ordinária da palavra; aqueles dias em que o deixara só com Anna, por exemplo...
- aí veiu-lhe uma sensação vaga de ter perdido uma oportunidade - mas é que Lucy parecia querer apropriar-se dele com exclusividade, pertinazmente, como coisa sua.
Contente por ir levando a vida indolente e fácil, até então, nunca se incomodara com essa apropriação; agora, porém, irritava-se com amarga violência, como si, de
repente, houvesse descoberto uma indignidade.
Encontrava-se agora na rua principal da cidade; com um brusco impulso, cruzou-a e meteu o ombro na porta giratória do Shandon Bar.
Aí, tomou uma bebida amarga que combinava com seu humor.
- Traga-me outra dose, miss! - Aborreceu-se com o segundo copo, que, como sempre, nunca é tão bom quanto o primeiro. Não tomaria um terceiro. Não por causa do gosto;
mas nunca seria um beberrão, nunca seria nada!
Enxugando a espuma escura que lhe ficara nos lábios, olhou em torno e depois, instintivamente, consultou o relógio.
120

Já era tempo de voltar para casa. Lucy estaria imaginando onde ele teria ido. Lucy! Era uma boa esposa, de altas e evidentes qualidades. De onde provinha então a
essência do seu descontentamento.
Uma nova onda de indignação apoderou-se dele quando saiu do bar. Por que pensava ele daquele modo? Por que se achava ali, perturbado por aquele fermento em seu espírito?
Esteve um instante parado, indeciso, olhando para um e outro lado da rua, onde as lâmpadas brilhavam com uma luz suave. Como se dirigisse para o lado da sua casa,
uma voz abordou-o com familiaridade:
- Alo, Frank. Como está você?
Moore estacou de chofre e seu rosto se encheu de surpresa :
Anna! Pensei que você estivesse longe!
De pé, em frente a ele, envolta em um casaco de peles, o curioso brilho de sua pele realçado pela luz do lampeão, os lábios úmidos de neblina, os olhos fundos, sem
expressão, era na verdade uma imagem encantadora, vagamente misteriosa, vagamente sedutora.
- Pensei... gaguejou ele, que você nos tivesse deixado.
- Mudei de ideia na estação. Ia partir e depois resolvi não fazê-lo. Estou no Hotel Craig para passar a noite. Amanhã irei a Port Doran apanhar o vapor.
- Eu não quis... gaguejou ele ainda. Não sabia de coisa alguma sobre...
- Deixe disso, Frank, interrompeu ela, estou tão bem no Craig como em qualquer parte, e já é tempo de voltar para casa. O vapor parte para Belfast amanhã de noite.
- Mas, Anna...
- Venha dar um passeio, disse ela, e deixe-se de desculpas.
Frank olhou-a. Pela .primeira vez teve a sensação de um encontro furtivo. Si a tivesse encontrado em uma situação natural, sorriria e agiria com naturalidade; mas
esse encontro, agora tão inesperado, tão contrário aos desejos de Lucy, quase proibido, agitou-o numa curiosa reação. Haviam afastado Anna dele e agora se achava
ela ali, ao seu lado!
Essa reação, porém, foi momentânea, uma sensação passageira de intimidade que aflorou ligeiramente, deixando-o depois contrafeito como antes.
- Quer andar pela cidade ou ao longo da praia? perguntou nervoso.
- A praia é um lugar tão bom quanto outro qualquer, respondeu ela descuidosamente; lá poderemos falar.
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Para lá se dirigiram tomando o passeio deserto. Quando Moore passeava de noite por ali com Lucy, ela costumava escorregar a mão na sua, de um modo especial, "o nosso
modo de andar", como o chamava ela; agora, porém, depois que transpuseram, o cais sombrio, foi ele quem tomou desajeitadamente o braço de Anna. Por que, nem ele
mesmo o sabia. Talvez um vago impulso de afirmação própria.
- O nevoeiro clareou, disse, esforçando-se por parecer natural.
- Para que apelar para o tempo, Frank? respondeu ela alegremente. Você sabe que isso não nos interessa.
Ele não replicou. Pouco depois ela ajuntou em tom apiedado:
- Pobre Frank! Está tendo dissabores por uma coisa que nunca fez.
Surpreso, ele não achou o que dizer, enquanto ela, rindo baixo, continuou:
- É engraçado, Frank. Você teve a fama sem proveito !
- Si você acha isso engraçado... articulou ele perturbado.
- É preciso ter espírito, respondeu ela; si uma coisa não é boa, ao menos podemos rir dela.
Continuaram a andar juntos, cercados de sombra, com o eco dos próprios passos amortecido pelo ar pesado. Que estava ele fazendo ali com Anna àquela hora? Como se
dera aquilo, mesmo?
- Realmente, Frank, disse ela de súbito, com uma voz mais razoável, estou desolada por ter sido motivo de contrariedade para você. Lucy é das melhores criaturas
que há, mas é tão agarrada a você que quase deu comigo no chão. A coisa que eu tinha menos vontade de fazer era aborrecê-lo. Sempre gostei de você demasiado para
lhe fazer uma coisa dessas.
- Você bem sabe que não tive nada com essas coisas, observou Frank sorrindo.
- O fato é, continuou ela num falso tom de lógica, o fato é que você está casado, e naturalmente tem que arcar com isso.
- Deixemos isso, acudiu ele novamente sombrio; não gosto de insistir nesse assunto.
Si tinha suas contrariedades, não queria discuti-las com Anna.
122
- Nunca pude imaginar você como chefe de família, disse ela meditativa. Mas você tanto fez que acabou sendo um deles. Agora, tem que entrar no passo e não sair dele
até o fim. Tem que levar a coleira para toda a vida.
- Afinal de contas a coleira é minha, replicou Moore magoado, sentindo aquele estranho sorriso, no escuro, ao seu lado. Ela realmente estivera sorrindo porque agora
ria abertamente:
- Muito bem, Frank, disse com um modo diferente do seu habitual; fico acreditando em você quando fala desse modo. Pensei que você fosse ficar inconsolável e derramasse
lágrimas. Estava com medo que todo o brio o tivesse abandonado. Foi por isso que eu no princípio quis sacudi-lo um pouco. Mas, ainda bem! Nunca pensei que Lucy fizesse
o que fez. Irritou-me bastante aquilo, por sua causa. Por mim, não me incomodei. Agora que encontrei de novo o antigo homem, só me resta abençoar o Papa pelo que
está para vir.
- Você sabe levar a vida, não há dúvida!
- Afinal de contas, Frank, perguntou ela, voltando à ironia primitiva, será que você nunca se sentiu um pouquinho atraído por mim? Serei eu alguma bruxa feia?
Ele olhou rapidamente em sua direção procurando perscrutar, menos o sentido de suas palavras do que seu invisível rosto. Incerto, intimidado, conciente nesse momento
da pressão do seu flanco no dela, sentiu-se inconfortável na sombra.
- Não, respondeu prudentemente, não posso dizer que o tenha.
Novamente ela riu - seu humor estava insólitamente alegre - e deu um beliscão reprobativo em seu braço.
- Acho que você é feito de serragem! exclamou rindo. Haviam atingido agora o fim da calçada, e, defronte
deles, estendia-se um trecho branco da praia, cercado de uma neblina cinzenta, batido pela maré vasante.
- Ainda é cedo, disse ela olhando-o, mas já é tempo de você voltar.
Moore sabia que era realmente tempo de voltar e, de algum modo, o desejava; contudo, alguma coisa nas maneiras de Anna o provocou.
- Será tempo quando eu assim julgar, afirmou.
- Então vamos andar ao longo da praia, alvitrou Anna. "É agradável, por lá.
- Vamos, então, resmungou Moore.
Sem pronunciar mais palavras, puseram-se a andar, mas não haviam ainda ido muito longe quando ela parou:
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- Essa areia! falou, levantando um dos pés, enquanto se apoiava -contra o ombro dele. Não posso andar nisso. Está entrando nos meus sapatos.
Ele a olhou hesitante, pensando se deveria sugerir que regressassem, mas nesse momento ela dizia:
- Vamos sentar aqui um instante. A areia está morna.
Fume um cigarro e nós nos instalaremos sobre o meu casaco. Desabotoando-o, estendeu uma metade sobre a areia para que ele se sentasse junto a ela.
A areia estava fofa, um corpo morno lhe estava próximo, a noite cheia de sons abafados; reinava uma quietude envolvente. Constrangido, Moore acendeu um cigarro,
porque a
- vizinhança de Anna de algum modo limitava seus movimentos. Por um momento houve silêncio; então, junto ao seu
ouvido, ela disse num murmúrio:
- Deixa-me tirar uma fumaça!
? Moore estremeceu, pelo inesperado da solicitação.
- Você quer mesmo! perguntou, mais para tomar uma
atitude. Para ocupar o lugar sobre o casaco, via-se obrigado
a estar muito perto dela.
- Naturalmente, murmurou ela: gosto de experimentar
tudo.
? Moore hesitou um segundo: depois, voltando-se, pôs o
cigarro na direção de uns lábios vagamente entrevistos no
branco e misterioso oval do rosto dela. Estava desajeitado,
trémulo; e quando ela se inclinou para ele, Moore sentiu a
cálida umidade desses lábios nos seus dedos. Anna tossiu
um pouco quando expeliu a fumaça.
- Não é tão bom quanto parece, comentou, meio sufocada.
A tosse jogava-a contra ele em pequenos arrancos; distraidamente, ele passou-lhe o braço em torno da cintura para
apoiá-la.
? - Já estou melhor, disse ela, ainda meio sufocada; e deixou cair indolentemente a mão sobre o joelho dele.
Um súbito pensamento atravessou a mente de Moore.
Era incrível que ele ali se achasse com Anna, o braço em
torno da sua cintura. Tão incrível que tudo parecia se
passar como num sonho.
? - Quer experimentar outra fumaça? perguntou.
? Anna sacudiu a cabeça; depois apoiou-se ao seu ombro
? - olhando-o com seus grandes e luminosos olhos, como se estivesse à espera de alguma coisa.
? com um movimento involuntário, ele inclinou-se para ela e beijou-a.
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- Você não devia ter feito isso, Frank, murmurou ela logo depois, apertando-lhe ternamente a mão. Moore ainda estava dominado pela mesma sensação de irrealidade.
Seria mesmo ele que se achava ali com Anna, sentindo a morna suavidade dos seus lábios, o calor do seu corpo sob o vestido? Beijou-a novamente e ela correspondeu
a esse beijo: - Sabe, Frank? murmurou sonhadora, não somos realmente responsáveis por isso. Fomos tão censurados que somos arrastados a fazê-lo. Você sabe disso
tão bem quanto eu.
Agitado por um súbito e incontrolável impulso provocado pela suave lógica das suas maneiras, ele a encarou. Era tudo justamente como ela o dizia. Ele nada fizera,
nada absolutamente; e apesar disso, desde o momento em que ela entrara em sua casa haviam sido jogados um contra o outro quase que deliberadamente. E tudo fora por
culpa de Lucy.
- Você não parece... gaguejou ele, achar tudo isso muito extraordinário.
Incoerente, o espírito como que enevoado pelos vapores da noite, Moore mal sabia o que estava dizendo.
- Nunca poderíamos saber, sussurrou voltando-se para ele, quando enfim chegaríamos a isso! - Seus úmidos lábios estavam próximos aos dele e naqueles olhos de pupilas
escuras ele adivinhou uma inquietação estranha.
Não se pode fugir a certas coisas e ele não desejou fugir àquela. Um fluxo ardente eorreu-lhe nas veias. com um movimento repentino, inclinou-se para ela, contra
ela. Imediatamente a cabeça de Anna caiu para trás, seus braços enlaçaram-no e ela se estendeu na areia macia.
- Por que você não pensou nisso antes... murmurou ela num suspiro; e, passiva, cerrou os olhos agora tão próximos aos dele.
A maré vasante descia tranquila, invisível e, nesse momento, inaudível.
Depois, a noite pareceu mais fria, o nevoeiro mais úmido e agreste. Afinal, Anna se desvencilhou silenciosamente do abraço com um pequeno arrepio. Moore também se
endireitou, olhando com melancólico constrangimento em direção do mar. Então, realmente aquilo se dera, apesar de tudo! Ele não sabia bem como, e agora sentia-se
tão perturbado... Durante alguns momentos, nada disseram.
- Bem, começou Anna com naturalidade, é melhor voltarmos, agora. - Apertou o braço dele quando se ergueram e ajuntou: - Você não é de lá todo mau, hein, Frank? 125
Ele não replicou, enquanto, tropeçando pela areia, os dois alcançavam o passeio. Dessa vez foi ela quem lhe tomou o braço:
[ - Não vá se deixar abater por isso, disse no seu tom
"" de simpática ironia. Ninguém há de sabê-lo e eu não sou
do tipo das que se penduram ao pescoço dos homens. vou partir amanhã.
Aquelas palavras deram a Moore uma espécie de gratidão melancólica. Sentiu-se feliz, aliviado por saber que ela partia.
- Quando... como vai você partir? articulou em voz baixa.
- vou tomar o tal Eagle para ir a Port Doran. O : Rathlin parte de lá às quatro horas.
Novamente Moore se sentiu abatido e mortificado, mais : inútil que nunca, desgostoso de si próprio.
- Não me parece justo, gaguejou em tom perturbado;
irei ao seu embarque... si você quiser.
- Está bem, você é muito gentil, Frank, respondeu ela
contente, leve-me até o outro lado. Depois disso, não creio
que você me veja mais.
A meio caminho Anna parou bruscamente:
; - É melhor você não passar daqui - falou (como compreendia exatamente seu humor!) - Mas encontre-me amanhã
no Hotel Craig. - Depois, num gesto rápido, aflorou-lhe com
os lábios a face fria e deixou-o.
Moore ficou imóvel, uma figura estranhamente solitária
;. na cerração. Depois, também ele se afastou. Perguntava-se
novamente com desânimo como aquilo se tinha passado. Não
, o havia premeditado nem desejado. Si Lucy não tivesse
suspeitado dele, não o tivesse tratado como o fizera, não
tivesse ordenado a Anna que se retirasse da sua casa, não
fosse causa de que ele saísse de casa àquela hora, certamente
esse encontro nunca teria tido lugar.
Enquanto avançava, seu espírito se enchia de uma reação cheia de desgosto. Perguntava a si próprio como, regressando àquela hora, enfrentaria sua mulher. Aparentemente,
uma conduta apenas deveria ser a sua: fingir que seu mau
humor persistia, simular uma cólera que ele agora sentia
- muito pouco, e dirigir-se imediatamente para o pequeno
quarto de hóspedes onde algumas vezes dormia. No dia
seguinte levaria Anna até o vapor. Depois, toda aquela história esquecida, começaria uma vida nova. Sim! Era o que
ia fazer. Mas uma expressão de sardónico desânimo veiu-lhe
126
ao rosto enquanto lhe ocorria a recordação de si próprio dizendo aborrecido: "Não quero Anna em minha casa". E agora isso! Era inacreditável como aquilo se tinha
passado. Seus passos soavam abafados na rua deserta. Do nevoeiro cinzento que flutuava sobre a água, veio o som baixo mas penetrante da sereia de um vapor que passava.
- XII
No dia seguinte, Lucy despertou mais tarde que de costume. Mais uma vez dormira mal, rememorando penosamente as circunstâncias do regresso do marido na noite anterior.
Ao chegar, ele se havia dirigido morosamente para o quarto dos hóspedes, sem uma palavra, sem um olhar. Depois ela ouvira a chave girar na fechadura com um sombrio
estalido. Estremeceu ao relembrá-lo. Que ele tivesse regressado assim quando seu coração o esperava, toda sua alma se abria para recebê-lo, isto a ferira como o
golpe mais cruel de todos.
Sua intenção, porém, continuava a mesma. Quantas Tezes tivera que lutar contra esse humor contrário que era natural nele, aquela teimosia que só ela podia combater.
"Pobre Frank", pensou, enquanto uma lágrima lhe enevoava os olhos. "É o maior inimigo de si próprio!" Quantas vezes, no passado, ela tivera de apelar para seu amor,
sua resolução, sua fortaleza, para salvá-lo daquela obstinação que era a um tempo a ruina e o atrativo do seu carater. E nunca ele precisara tanto dela como naquela
última quinzena. com um suspiro involuntário, de novo ela se aplaudiu interiormente pelo critério com que agira naquele impasse. Havia, de uma vez por todas, posto
as coisas em seu lugar. Frank estava contrariado. Como ela conhecia bem aquela proeminência quase petulante do seu lábio, essa facilidade em mostrar ressentimento
em uma natureza que se voltava com a mesma facilidade para a cólera, a credulidade, o ceticismo e a altivez ! Mas ele não permaneceria aborrecido durante muito tempo,
e ela estava pronta - quando ele também o estivesse
- esperando o momento em que Frank novamente se chegasse para ela. Era esse o doce momento que desejava.
Olhou para o relógio sobre a lareira, suspirou novamente, afastou a colcha e ergueu-se. Vestiu-se vagarosamente, com uma lentidão meditativa; depois, saindo do seu
quarto, hesitou um pouco mas, chegando à porta do quarto onde Frank dormira, bateu levemente.
127
- Frank, perguntou com voz suave, você quer sair comigo às dez horas?
Ninguém respondeu.
. Deteve-se por um minuto, escutando ansiosa, certa da sua presença para além daquela porta, mas não repetiu a pergunta. A coisa que menos desejava era levar avante
aquela contenda; estava preparada para tolerar seu mau humor, para deixá-lo ranzinzar até o último limite. Aí, então, teria sua recompensa.
Veio para baixo, onde, com uma exquisita sensação de isolamento, fez servir o café. Frank não a acompanharia essa manhã, era evidente. Deu instruções a Netta para
que lhe preparasse uma bandeja e foi, em pessoa, levá-la para cima, onde a deixou fora da porta. Depois saiu sozinha.
Uma umidade depressiva errava no ar, um sentimento de decadência, de qualquer coisa a findar-se. Por vezes um caprichoso sol aparecia e espalhava uma luz pálida
sobre a água do estuário, de onde surgiam sons de sereias de embarcações invisíveis, avisando-se umas às outras ao se cruzarem dentro do espesso nevoeiro e rumando
para terra orientadas pelo som do sino da Bóia Ardmore, que badalava, badalava, em monótona desolação.
A fria umidade entristeceu-a. com um arrepio apressou o passo em direção à igreja. Aí, como não estava com o espírito preso à devoção, tudo lhe pareceu lento, o
sermão mais longo do que nunca, mais tedioso também. O rosto preocupado, os olhos no livro de orações - A Chave ao Céu continuava a pensar em Frank, desejando ardentemente
voltar para junto dele. Ao terminar a cerimónia, Lucy deixou a igreja, com a consciência de um dever cumprido. Rapidamente, com vivacidade contida, encaminhou-se
para casa.
No hall, depois de tirar o chapéu e a capa, o primeiro impulso que teve, a despeito de sua pretensa serenidade, foi dirigir-se ao quarto de Frank. com um esforço,
porém, dominou esse impulso e. em vez disso, encaminhou-se para a cozinha, onde viu imediatamente a bandeja de Frank. Havia tomado café: uma boa refeição; voltando-se
então para Netta com simulada calma, indagou:
- Mister Moore já desceu?
Sem levantar a cabeça da vasilha onde descascava batatas, Netta renlicou calmamente:
- Ele saiu. Disse qualrmer coisa a respeito de ir ver Mister Lennox.
- Ah! sim, falou Lucy. Lembro-me agora. E compondo a fisionomia repetiu: - Agora é que me lembro!
128
 realidade não se lembrava de coisa nenhuma, mas achava conveniente apoiar a falsa explicação da conduta de Frank. Não acreditava que tivesse ido à casa de Lennox.
Lucy estava certa de que ele tinha ido fazer um daqueles seus solitários passeios que marcavam sempre a culminância do seu mau humor. Seus lábios descaíram ligeiramente.
Estava novamente adiada a reconciliação. Contudo, Frank voltaria desse passeio. E voltaria para ela.
Dirigiu-se para a sala, onde se sentou perto da janela, apanhando um livro. Achou, porém, impossível ler: a cada momento surpreendia-se em curiosa abstração fixando
o caminho através da janela. Houve um momento em que ouviu passos lá fora, e agitada, preparou-se com o coração palpitante para receber Frank. Mas não era ele. E
seu próprio rosto refletido no espelho sobre a lareira fê-la sentir-se, de repente, estranhamente contrafeita. Teria Frank ido mesmo visitar Lennox? Ou estaria perdido
no meio daquele espesso nevoeiro
Soou uma hora e Frank não havia ainda regressado. Agora, Lucy começava a sentir uma inquietação bem definida, entremeada de curioso vexame. Realmente Frank não deveria
agir desse modo. E quando Netta apareceu à uma hora e meia, ansiosa por servir o almoço e partir para a sua folga dos domingos, Lucy, declarou com o mesmo tom de
fingida calma:
- Muito bem. Sirva-me agora. Mister Moore deve ter sido retido por Lennox.
E quem sabe se não o haviam detido mesmo ? Era improvável, mas não era impossível que ele tivesse ido mesmo até a casa de Lennox e que houvessem insistido com ele
afim de procederem a um balanço dominical. Um rápido brilho apareceu em seus olhos tristes, ao considerar a possibilidade de que Frank tivesse ido procurar Lennox
para reabrir ele próprio a questão da sociedade. Esse seria sem dúvida um supremo gesto de reparação! Mas seria isso possível? Seus olhos voltaram a enevoar-se.
Seria concebível? Atormentada por seus pensamentos, almoçou mal, um mero arremedo de refeição para enganar os olhos da criada e dar algum rumo ao estranho desconforto
do seu espírito.
- Deixe qualquer coisa quente dentro da estufa, Netta, no caso em que Mister Moore chegue mais tarde, disse afinal ao se levantar da mesa. Foi a única indicação
que
deu de que acracia neutralidade, que estivera fingindo, poderia ser apenas dissimulação.
Voltou à sala e sentou-se, não perto do fogão, mas junto da janela, esperando. Agora era inútil aquele simulacro de
129
leitura. Estava apenas esperando. E à medida que a espera se prolongava, a inquietação do seu espírito aumentava.
Como voltaria ele ? - Molhado, encharcado pelo chuvisco. Mesmo assim, depois de entrar calmamente, não teria desejo de encontrá-la. Demorar-se-ia no hall pendurando
o chapéu e a capa, mexendo-se de um lado para outro sem motivo aparente. Depois, de repente, entraria na sala, afetando não olhar para ela. Mais contrafeito que
nunca, dirigir-se-ia, desajeitado, em direção ao fogo e mergulharia em sua poltrona. Como Lucy desejava que chegasse esse momento! Mas Frank não voltava.
Duas e meia. Netta saíra e Lucy ficara só em casa. Frank ainda não voltara. Era incrível. A despeito de si própria, não pôde evitar um pequeno arrepio de apreensão.
Teria ele ido mesmo à casa de Mister Lennox? Devia ser essa a explicação da sua ausência. Não poderia estar andando interminavelmente através do nevoeiro. Era impossível.
Ergueu-se abruptamente, os olhos cheios de perturbação, a mão, num curioso gesto característico, comprimindo-lhe a face. Depois, com uma resolução súbita, encheu-se
de força e encaminhou-se repentinamente para a porta. Iria ela própria certificar-se. Era a única coisa a fazer. Talvez pudesse também encontrá-lo no caminho.
Lá fora caía uma chuva miúda, um chovisco impalpável, e a cerração subia da água como uma nuvem elevando-se da superfície de um espelho embaciado. Enquanto subia
a colina em direção à casa de Lennox, tornou a estremecer. Apressava o passo mais e mais, sem mesmo saber porque. Caminhando, esforçava-se para.acalmar seu ridículo
alarme, procurando uma desculpa para aquela extraordinária visita que estava a pique de fazer.
Mas não precisou de encontrar tal desculpa; na parte mais alta da cidade, na esquina da rua Garsden, encontrou Lennox que voltava do seu habitual passeio das tardes
de domingo. Parou imediatamente com um aperto no coração, compreendendo que Frank não se achava lá.
- Muito bem, disse Lennox parando e abrigando-a em seu "oteiante guarda-chuva; acho que está andando muito depressa para um dia de descanso.
- Estou, realmente, gaguejou Lucy desamparada.
- Além disso está tomando um caminho errado para encontrá-los, observou, sorrindo para ela.
Ofegante da subida, seu rosto delicado perto do dele, com o cabelo e as faces escorrendo água, Lucy ecoou rapidamente sem compreender bem:
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- Encontrá-los?
- Passei por eles no cais, disse Lennox indicando a direção com a cabeça: seu marido e Anna. Iam por ali.
Galvanizada por aquelas palavras, Lucy empalideceu e seus olhos se abriram para ele cheios de uma angústia súbita. Foi como se um abismo repentinamente se abrisse
aos seus pés. Quis falar e não pôde.
- Já devem estar em casa, agora, continuou ele sem ver sua aflição. Venha tomar uma chávena de chá antes de voltar.
A língua de Lucy parecia paralisada. Então Anna ainda não partira! Esperara com inconcebível simulação e Frank fora ao seu encontro. E qual, oh, qual seria o remate
daquele encontro ?
Ela esforçava-se para falar.
- Não, gaguejou por fim, eu preciso... preciso voltar.
- Uma chícara de chá vai lhe tirar o nevoeiro da garganta.
- Não, não, disse ela com voz rouca, não posso esperar.
- E antes que pudesse retrucar, Lucy, cega pela emoção, afastara-se dele com passos rápidos e vacilantes.
Lágrimas de raiva e infortúnio corriam-lhe dos olhos e misturavam-se com gotas de chuva em suas faces. Si já o sabia antes, agora sua certeza era absoluta. Frank
e Anna haviam renovado sua primitiva intimidade, alimentando-a a despeito de todos os cuidados. Tudo fizera para impedi-lo, mas por qualquer incrível circunstância
falhara em mantê-los separados. Era angustiante, era de enlouquecer.
Mordeu violentamente os lábios, cerrou os punhos nos bolsos do casaco. Sua figura esbelta seguia rápida ao longo da rua molhada e deserta, e aos poucos ia-se tornando
mais
dinâmica à medida que crescia o seu ressentimento. Depois de ter recuperado a presença de espírito que fora aniquilada pelo choque, o sentimento da sua decepção
enfurecia-a. Não era porque Frank não a amasse. Sabia que a amava e sabia que o amava também. Havia sido impelido a isso contra- a sua vontade. Sua convicção tornou-se
inabalável. Nada acontecera que ela não pudesse reparar. Controlaria a situação
E afastaria completamente a ameaça ao seu lar, devolvendo Frank ao juizo e a si própria. Não era fraca nem idiota. Apesar de ultrajada, seu amor era maior que o
ultrage. Não tinha falsa modéstia; conhecia seu poder sobre Frank e ia usar esse poder. Iria para casa esperar sua volta e salvá-lo-ia de si próprio.
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- . ."
Esforçava-se para diminuir o passo, sentindo através de sua angústia que precisava acalmar-se, que não devia fazer-se notar em plena rua. Aproximava-se agora e viu
Dave Bowie em seu caminho. Compôs firmemente a fisionomia; ao menos não faria exibição do seu sofrimento, não exporia sua humilhação ao olhar do público. Encontraram-se
defronte do portão de sua casa. Lucy inclinou a cabeça e ia entrar quando Dave a interrompeu, prazenteiro, com esta pergunta:
- Não quis ir com eles?
Lucy voltou-se e fixou a face vermelha emoldurada pelo brilhante chapéu de lona que Dave usava quando havia tempes.tade e que agora trazia atado sob o queixo.
- Que quer dizer com isso? indagou com estranha lentidão.
- Senti muito o que se deu. Esse mau tempo atrapalhou tudo, disse Dave desculpando-se, mas eu havia levado o Eagle até Linton depois de meio-dia. Si eu soubesse
que seu marido precisaria dele, teria voltado mais cedo.
Os olhos de Luey permaneceram fixos, ainda surpresos, mas enchendo-se gradualmente de uma estranha ansiedade. Veio-lhe a sensação de que Dave não era real e que
ela estava vivendo um sonho.
- Explique-me o que você está dizendo, Dave, falou com voz baixa e resoluta.
- Como! não sabia tornou ele constrangido. Estou voltando agora neste minuto, e eles não quiseram esperar,- estavam com tanta pressa! Foi meu pai que me disse. Angjis
teve que usar um barco para ir levá-los.
- Para onde? - Seu tom agora era febril, mas seus olhos não deixavam o rosto de Dave.
- Para apanhar o vapor em Port Doran, gaguejou ele; aquela moça que estava em sua casa, e seu marido.
- O vapor! exclamou ela com emoção incontrolável. Transida de um horrível medo sentiu alguma coisa quebrar-se dentro de si como uma corda muito tensa. Frank partira...
com Anna. Era a razão daquilo tudo. Havia-a deixado e voltara para a outra.
Inconciente da presença de Dave, um grito abafado escapou-lhe da garganta, ali, defronte daquele portão, onde tantas vezes o esperava cheia de amor, ao compreender
com brutal violência que Frank se fora. Seu rosto emoldurado pelos cabelos molhados parecia sumido, e o sangue abandonara-lhe completamente os lábios. Por um momento
ficou sem ação, invadida por um insuportável sentimento de desfeita.
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Depois, levou a mão à fronte. Frank estaria louco? com certeza estava doido para ter cometido aquela incrivel e suprema loucura. Deixá-la assim, abandonar o lar
e aliar-se àquela odiosa criatura!
Anna! seus lábios comprimiram-se contra os dentes cerrados. Como podia ele esperar ser feliz com ela! E como que arrastada por uma corrente pôs-se a relembrar Anna,
sua indolência, sua vulgaridade, seu completo despudor.
Não podia deixar Frank fazer tal coisa. Tão fraco, tão facilmente influenciável, tinha sido forçado a tudo aquilo contra a sua vontade. Sim! Arrastado àquela ação,
a despeito dos seus esforços para salvá-lo. Como si fosse repentinamente inspirada pela coragem, seus olhos brilharam, a cor voltou-lhe ao rosto, que corou com a
intensidade dos seus sentimentos.
Vencida! Não estava vencida! Não era mulher para se deixar ficar mergulhada na apatia ou desfazer-se em lágrimas de desespero enquanto aquela criatura fugia com
Frank. Tomou uma resolução vital. Havia de salvá-lo.
Apoderando-se bruscamente do braço de Dave, disse com exaltação:
- Você precisa me levar agora... imediatamente.
- Que é que está havendo? gaguejou ele; não posso compreender.
Lucy não (respondeu"; porém, segurando-o ainda fpelo braço, pôs-se a andar apressadamente, arrastando-o pelo caminho que levava ao pequeno cais.
- Há quanto tempo partiram eles? perguntou com voz dura enquanto caminhavam.
- Não sei, tartamudeou Dave, muito abalado pela estranheza do seu procedimento. Talvez há um quarto de hora, talvez menos. Não esperavam que eu voltasse tão depressa.
Mas... que é que se está passando ?
- Um quarto de hora, repetiu Lucy como si falasse a si própria. Chegaremos a tempo.
Já haviam chegado ao estaleiro e agora avizinhavam-se da estaca de pedra, cuja base desaparecia no nevoeiro branco que subia da água. Então, Dave hesitou e parou.
- Não vou sair no Eagle, exclamou contrafeito. É muito tarde e há um nevoeiro espesso que é perigoso.
Sem parecer ter ouvido, Luey continuou a avançar pelo estreito plano inclinado, apressando o passo sobre as lajes molhadas. E Dave, contra sua vontade, veio finalmente
ter com ela. 133
- Estou dizendo que não podemos embarcar, falou em tom mais alto; o tempo está péssimo. A cerração está espessa. Não se pode ver quase nada.
Parando do lado das cordas que amarravam o Eagle, Lucy voltou-se para ele com os olhos em chama:
- Você vai, Dave! exclamou, numa voz estrangulada; e eu vou com você!
- Não tenho pressão na caldeira, respondeu ele com. firmeza, olhando para a névoa que flutuava; incerta sobre o mar vítreo.
Lucy olhou-o ferozmente:
- Você acaba de chegar, e agora vai partir novamente.
- Não devo fazê-lo, teimou ele desviando ainda os olhos do seu olhar de fogo. Assim ficaram um momento defrontando-se, enquanto a maré vasante marulhava brandamente
aos seus pés. Houve um segundo de indecisão: esse segundo, ?ublimado, reduzido, pareceu decidir o futuro de Frank e o dela.
Depois, Dave curvou a cabeça e aproximou-se da estaca em torno da qual se enrolava a corda. Lucy vencera! Sem uma palavra, ela voltou-se e subiu a bordo do Eagle.
Dominado pela sua vontade, ele desamarrou o barco e subiu, indo postar-se ao seu lado.
- Eu não queria ir! disse ainda, enquanto com uma das mãos engrenava a roda do leme. Lembre-se bem disso!
Ela não replicou. com um som estranhamente abafado, deslizaram do molhe deixando imediatamente a praia e flutuando no mar silencioso e toldado.
Entraram a navegar e rumaram para a frente.
- Depressa, Dave, murmurou Lucy numa voz abafada. O mais depressa que for possível.
Consumida por uma intolerável emoção, conservou-se de pé, olhando para diante com os olhos que eram como feridas na palidez manchada do seu rosto. E si falhasse?
Sabia, porém, que não falharia. Tinha a convicção de que venceria. Frank não poderia ter chegado ainda a Port Doran. A presteza da resolução que tomara seria a salvação
dele. Si ao menos ela pudesse ver, penetrar naquele nevoeiro que lhe caía em torno como uma roupagem de lã! Mas a névoa estava espessa e parecia que sobre aquele
mar sereno se espessava ainda mais. Um vapor amorfo, intangível mas existente, envolvia-a em sua densidade. Chegando a gola do casaco ao pescoço, Lucy inclinava-se
para a frente, sufocada por aquela opressão e pela opressão do seu peito angustiado.
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Súbitamente, a meio caminho, o nevoeiro adensou-se, descendo sobre eles como uma mortalha, apagando em torno todas as coisas a não ser os vultos de ambos. Tornaram-se,
num instante, duas formas isoladas na cerração.
Imediatamente Dave diminuiu a marcha do Eagle.
- Bem o dizia eu! exclamou; temos que voltar, - e sua voz chegava aos ouvidos de Lucy, opaca, distante, como si viesse de muito longe.
Ela não se moveu.
- Continuemos, disse com os olhos fixos em frente.
- Mas podemos bater em qualquer coisa a qualquer instante.
- Para a frente, ordenou ela com sua voz alta. Não podemos voltar agora.
Dave teve um gesto de impotência com o braojo e puxou violentamente a corda da sereia, que desferiu um agudo e penetrante assovio.
- Vigie então para a proa do barco, gritou.
Sem dizer palavra, Lucy avançou para a proa. Ali, dominada por uma feroz impaciência, sem nada sentir da umidade ou do frio, era como uma figura esculpida na proa
da embarcação, o motivo, o próprio impulso do barco. Parecia que unicamente sua vontade o impelia para a frente. Não podia ver nada a não ser aquela impenetrável
brancura que a cegava, sufocava-a, e condensava-se em seus cabelos e corria-lhe pelas faces como lágrimas.
Cercava-a a desolação. Muito longe, chegava o som do sino da Bóia de Árdmore, badalando, badalando monotonamente. Ela estremeceu e cerrou os dentes. Sentiu uma gelada
mão de invisível fantasma apoiar os dedos na sua fronte. Tremendo isolada, nada podia ver. Mas nada importava sinão isto: avançar sempre, para salvar Frank.
- Que é isso? bradou Dave de repente. Está ouvindo o barulho de remos? - E outra vez fez soar violentamente o apito da sereia.
Lucy procurou ouvir mas não o conseguiu. Ouviu apenas o murmúrio da água invisível, o eco da sereia, o fraco badalar da Bóia de Árdmore, no seu dobre monótono e
desolado.
- Ouviu alguma coisa? perguntou Dave novamente. Mas Lucy nada ouvira.
Então, de repente, um grito elevou-se do nevoeiro, vindo da frente, em baixo, e tão próximo que parecia envolvê-los.
- Ahoy! gritou Dave contorcendo-se no leme. Rígida, na proa, ela ouviu esse grito repetir-se mais alto,
mais próximo, com uma ansiedade crescente. Penetrava-a a
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urgência vital daquele chamado. Então, num rápido segundo, sentiu o choque de um abalroamento que lhe produziu um horrível torpor paralisante. Não fora uma colisão
violenta, e sim um choque suave, como si a cerração - ou alguma coisa macia - tivesse amortecido a violência do encontro. Todo o sangue lhe fugiu do coração.
Instantaneamente um gemido elevou-se. Uma confusão de exclamações. Depois novamente tudo voltou ao silêncio. Um desolado silêncio esmagador.
- Deus todo poderoso! gritou Dave tomado de pânico. Batemos em alguma coisa.
Já havia manobrado a máquina que, com um violento esforço, recuou desequilibrada por um impulso duplo, fazendo tremer a quilha do barco. O corpo de Lucy tremeu também,
assaltada por um horrível pensamento. Conservou-se imóvel enquanto Dave manobrava para imobilizai o Eagle. O nevoeiro mais ainda se espessara, escurecido agora pela
noite que se avizinhava.
- Ahoy! responderam vagamente, como um grito perdido em algum vasto deserto.
- Meu Deus! exclamou Dave desesperado. É Angus no barco pequeno.
Trémula, Lucy precipitou-se para o seu lado onde, inclinado na amurada, ele procurava penetrar a obscuridade.
- Frank! gritou ela desesperadamente, Frank!
O nevoeiro era como uma parede contra a qual sua voz se perdia num eco fraco e vão. Depois, de repente, veio um chamado muito próximo.
- Atire uma corda! - Istantaneamente, o cabo que se achava nas mãos de Dave foi jogado na direção do grito abafado, caiu frouxamente e logo depois distendeu-se.
- Apanharam-na, soluçou ela e, esforçando-se, ajudava Dave a recolher a corda.
De dentro da cerração, como por um milagre, apareceu uma encharcada mão que se agarrou à borda do barco, depois veio uma cabeça escura. Era Angus trazendo nos braços
o corpo de Anna.
- Segure-a, disse ele, ainda há outro. Enquanto Dave tomava Anna e depunha-a a bordo, novamente Angus agarrou a corda e desapareceu.
Os dentes de Lucy enterraram-se-lhe nos lábios pela frustração da sua esperança.
- Frank! gritava em desespero, Frank! com as mãos cravadas na amurada, não deu atenção a Anna, que se sentara, muito fraca, apoiando-se na casa das máquinas.
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Os segundos passavam longos como horas. Frenética, numa expectativa angustiada, banhada de um frio suor de agonia, Lucy orava para que o marido se salvasse, com
o coração palpitante como uma chama bruxoleante. Então, subitamente, um grito de alegria inenarrável partiu-lhe dos lábios.
- Por aqui, disse arquejante. E debruçando-se muito sobre a amurada, com toda sua força, puxou a corda, agarrando-se a ela com desesperada energia. Um grito abafado
escapou-lhe dos lábios, enquanto ajudava Angus a subir para bordo e a estender o corpo do seu marido sobre a coberta. Frank, soluçou ela enlaçando-o nos braços,
eu pensei... pensei que você me tivesse deixado.
Frank não respondeu, deixou-se cair fracamente sobre o convés. Depois, seus olhos se abriram e voltaram-se para ela como si a reconhecesse penosa e melancolicamente.
- O barco... falou com dificuldade. Você me ferra aqui... - E vagarosamente, com uma espécie de terror, deixou a mão sobre o peito que parecia esmagado e disforme.
- Frank, gritou ela apavorada caindo de joelhos ao seu lado. Você não tem nada!
- A proa, murmurou Angus, tremendo de frio, enquanto a água escorria das suas roupas encharcadas, a proa feriu-o em pleno peito. - Estremeceu: - Foi um golpe terrível!
- Frank, soluçou Lucy acometida de um novo pavor. Você não está.. não está ferido, meu amor.
- Eu não... não me sinto bem, respondeu-lhe ele em uma lenta, estranha voz, está vindo uma coisa quente à minha boca... disse com mais dificuldade. Ela estremeceu.
Na voz de Frank havia um inarticulado soluço que a terrificou. Atirou-se para ele e nesse momento ele tossiu uma horrível tosse borbulhante. Lucy sentiu sobre o
peito um jorro quente e vivo; nada parecia poder deter o fluxo contínuo de sangue invisível que corria da boca de Frank e deslizava, espesso, entre os seus seios.
O horror paralisara-a. Desesperada, porém, quis se mover para ajudá-lo. Mas Frank, tomado de pânico, agarrou-se a ela sem querer deixá-la.
- Frank, Frank, sussurava ela arrepiada. Deixe-me... deixe-me ajudá-lo. - Estava penetrada de terror, jungida a ele na escuridão, sacudida pelo espasmo que o agitava,
convulsionada pela consumação de algum estertor mortal. Subitamente pensou que ia desmaiar. Nesse momento a rígida intensidade do braço de Frank relaxou-se,
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suas mãos fracas largaram-na, seu corpo exausto caiu novamente sobre a coberta.
Trémula Lucy levantou-lhe a cabeça e deitou-a em seu regaço.
- Meu Deus! gaguejou Angus, tomado de pânico, batendo os dentes. Ele está, mal! -E murmurou pela segunda vez: - Foi a proa que bateu nele, bem em cheio, no peito.
Havia acendido uma lanterna e segurava-a com a mão trémula. A fraca chama amarela emprestava ao rosto pálido de Lucy uma aparência fantasmagórica. A luz banhava
também a forma imóvel e inerte de Frank, cujo rosto lívido parecia vazio de expressão, como si alguma terrível força houvesse sugado a essência vital daquele corpo,
esgotando-lhe a vida.
- Olha para mim, Frank, implorou Lucy, eu te amo!
- E acariciava-o como a uma criança, em seu regaço, enquanto a embarcação deslizava suave sobre a água invisível e ao longe se ouvia o sino badalar incessantemente,
como que dobrando por alguém em agonia.
Ele não se movia. Jazia inerte, o rosto já cavado pela morte. Sua mão apertada na de Lucy estava fria e flexível como se não possuísse substância, e tinha um abandono
que a arrepiava. Por um segundo, o ânimo abandonou-a. Depois, uma desesperada força invadiu-a. Aquilo era impossível. Ela o amava. Estava ali para salvá-lo. Frenética,
olhou para cima e encontrou o olhar de Dave.
Dave havia deixado Anna, que jazia desacordada contra a caixa do motor, e agora, inclinado, com uma horrível inquietação no olhar, exclamou:
- Está mal! Parece que está muito mal!
- Traga água! gritou ela numa voz angustiada, e cerrou tão fortemente a mão que tinha livre, que os nós dos dedos apareceram brancos sob as manchas vermelhas que
os marcavam. Traga água depressa!
Quando veio a água, ela lavou-lhe o rosto, banhando-lhe os lábios e a testa com os dedos trémulos.
Então, de súbito, Frank abriu os olhos, que se encheram de um último clarão de inteligência.
- Lucy, arquejou ele fazendo um débil esforço para agarrar-se a ela. Não me deixes!
- Não, Frank, soluçou ela, eu não te poderia "deixar. Estaremos juntos, sempre!
- Mas porque... articulou ele ainda, e parou. Depois, proferindo as palavras fracamente, murmurou: - Não era
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nada com Anna... eu estava apenas levando Anna... levando até o vapor.
O coração de Lucy parecia que ia parar. A princípio ela não compreendeu, depois, no seu espírito luzifl um relâmpago e alguma coisa a deixou paralisada de horror
como si um raio a tivesse fulminado.
- Estou com sede, sussurrou Frank e, com um espantoso arremedo da sua passada ironia, acrescentou: - mas não posso engolir.
com o peito dilacerado, ela não pôde falar. O universo, com todas as suas constelações, cessara de mover-se. Estava aniquilada, desejava a morte. Deus! que fizera!
- Está tão escuro... arquejou Frank debilmente. É aqui que está escuro, ou... lá?
- Oh! Deus! soluçou ela desesperada, as lágrimas jorrando-lhe dos olhos esgazeados, salvai-o para mim! Frank, meu bem-amado, volta, vofca para mim! Eu... eu te porei
outra vez bom. Eu te amo!
Mas o queixo de Frank descaiu frouxamente. Aquelas pesadas pálpebras caíram cerrando-lhe os olhos tristes. Sua cabeça rolou para trás, os lábios ficaram entreabertos,
deixando um vazio final que parecia zombar dela.
SEGUNDA PARTE
"XEQUE-MATE! exclamou tio Edward, assoando delicadamente o nariz.
Peter enrugou a testa. Conhecia os movimentos de todas as peças: achava um grande prazer em mexer com os cavalos. Contudo, de qualquer maneira, sempre acontecia
aquilo, sem o mínimo aviso prévio.
- Não sei como é isso, disse ele, pensei...
Um sorriso desabrochou no rosto do sacerdote; seus dedos longos e brancos acariciavam o cálice de Porto, que brilhava como um quente rubi ao lado do prato de nozes,
sobre a mesa de mogno polido.
As cortinas de veludo vermelho da sala cerravam-se ao vento úmido que soprava do estuário e à escuridão crescente lá fora, enriquecendo a suave luz do gás que incidia
sobre os dois parceiros. Tio Edward apanhou o cálice de Porto, e saboreava-o, quando uma forte rajada de vento e chuva, açoitando a janela, o fez levantar a cabeça
e dizer complacente:
- Hoje está mais agradável aqui dentro, não acha, meu bom senhor?
Peter recostou-se na cadeira:
- A chuva, muitas vezes, sucede ao nevoeiro, respondeu em tom oracular. Ouvira o velho Bowie dizê-lo e agora repetia essa frase imprimindo-lhe um forte ar de originalidade.
- E que sucede depois que eu lhe tomar a rainha! perguntou astuciosamente tio Edward.
Riram ambos, e enquanto riam, ouviram bater à porta; interrupção inesperada, pois haviam reservado a tarde para aquele jogo de xadrez.
- Entre! disse Edward. E Miss O Regan insinuou-se na sala.
- Reverendíssimo, começou ela hesitante. Faltou-lhe a voz; depois recomeçou: - Reverendíssimo...
Aí, seus pudicos olhos elevaram-se ao céu e rolaram nas órbitas de maneira que o branco lhes ficou exposto numa expressão de resignado temor. Parecia quase aturdida
por
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algum obscuro motivo, o seu rosto voltado para cima assemelhava-se ao da imagem de um santo e mártir que pendia da parede, atrás dela.
- Acaba de chegar... isto - falou com os lábios pálidos; e exibindo um sobrescrito cor de laranja, que ocultava atrás de si, entregou-o com mão trémula.
Edward abriu maquinalmente o telegrama, mas enquanto lia sua pele de marfim tornou-se lívida. Depois um som estranho partiu-lhe da garganta:
- bom Deus! disse com voz assustada e incerta. bom Deus! - Todo o sangue afluiu-lhe novamente ao rosto, fazendo-o parecer mais cheio; levantou-se agitado, espalhando
as cascas de nozes que estavam em seu regaço. - Tenho que ir agora à igreja, continuou sem olhar para Peter, como se se dirigisse à pequena imagem da Virgem perto
da porta. - Sim! tenho que ir à igreja. Preciso ir à igreja.
Tomou o chapéu que esvava sobre a chaminé e encaminhou-se para a porta, seus grandes sapatos de fivela esmagando as cascas espalhadas sobre o tapete. Levando na
mão o telegrama aberto, saiu da sala seguido por Miss O Regan, que tremia como uma sombra agitada. Ao passar pela porta, ela mergulhou os dedos na pequena pia de
água benta e persignou-se.
O rosto de Peter anuviou-se com a brusca revolução que se processara no feliz e quente aposento. Endireitou na cadeira o pequeno corpo que se fizera rígido de apreensão.
As lufadas do vento que se arremessavam contra as janelas, transformaram-se em ondas do mar- que bramiam em torno dele, enquanto atravessava em espírito as nove
milhas de água encapelada que o separavam da sua casa. com a rudimentar intuição da sua idade, teve uma ténue compreensão do que se passara. Vagamente apareceu-lhe
em frente a alta figura do seu pai. Essa imagem se achava ridiculamente envolta em uma branca e longa camisa de noite e era grotesca e perturbadora.
Que aborrecimento ver uma tarde tão agradável interrompida assim, sobretudo quando tio Edward lhe havia prometido uma moeda grande si ele ganhasse o jogo. E exatamente
ali se achava ela - a prometida recompensa - brilhando ao lado do taboleiro de xadrez. Petulantemente Peter apanhou uma noz, ia parti-la e deixou-a cair. Depois
apanhou a moeda. Si não fosse o telegrama, ele teria ganho. Certamente que a ganharia. Sim! Estava certo de que a ganharia; e assim, com um ar abstrato, escorregou
a moeda
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no bolso. Depois, levantou-se rapidamente e começou a recolher as pedras do jogo de xadrez.
Guardou a caixa e o taboleiro na gaveta da secretária, refletiu por algum tempo com a cabeça baixa e, depois, deixou a sala. Procurando uma companhia qualquer, desceu
as escadas e, percorrendo o frio corredor, foi até a cozinha, onde se achavam Miss O Regan e Eileen. Miss O Regan chorava e andava para cima e para baixo rezando
nas contas do longo rosário, enrolado em uma de suas magras mãos. Eileen, de pé, junto ao fogão, observava a governante com olhos curiosos. No momento em que Peter
entrou, Miss O Regan parou no meio de uma Ave-Maria e cochichou:
- Ele de nada sabe, ainda. - E continuou: - Rogai por nós, pecadores, agora e na hora da nossa morte. Amem.
Novas lágrimas começaram a rolar-lhe das pálpebras vermelhas.
Peter sabia que Miss O Regan não estava chorando por causa do que havia no telegrama, e sim porque seu tio estava contrariado. Contudo, para dizer alguma coisa,
perguntou:
- Por que está chorando, Miss o Regan?
- Estou com dor de cabeça, respondeu a governante, interrompendo os soluços e apertando a fronte com as mãos.
Era uma desculpa razoável. As dores de cabeça de Miss o Regan ocorriam com a mesma frequência dos seus êxtases.
A peça parecia inconfortável. O fogo apagara-se. E" a bolha que se formara no dedo de Peter - queimado na véspera enquanto assava castanhas - começou a latejar dolorosamente.
- Meu dedo também está doendo, disse dolentemente, olhando-o com simpatia. Mas, ao que parecia, ninguém lhe queria dar atenção naquela noite.
- Já são quase nove horas, falou Eileen. vou lhe dar um copo de leite e um biscoito. Depois vou levá-lo para a cama.
Enquanto comia, Miss O Regan e Eileen o observavam disfarçadamente e Peter sentia-lhes, através dos olhos, o dedo da calamidade que apontava para ele. Esse dedo,
porém, abaixou. Eileen olhou para a governante como para pedir autorização, perguntando:
- Levo-o agora, ou não?
Miss O Regan aquiesceu com uma vagarosa inclinação de cabeça e Peter sentiu nessa aquiescência a significação insólita daquela noite.
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Na véspera, quando Eileen se oferecera para despi-lo, Miss O Regan acolhera a horrível sugestão com uma indignação que fizera corar a jovem criada.
- Si você não pode ter pudor na casa de um sacerdote, dissera ela, onde, em nome de Deus, Eileen, poderá você arranjá-lo?
Nessa noite, porém, foi diferente. E Eileen, lá em cima, meteu-o na cama, bem agasalhado. Naturalmente, antes, ele teve que olhar para o Farol de Linton, que lançava
seu raio luminoso através do negrume do estuário. Três raios de luz e uma grande pausa; três raios de luz outra vez... Era um belo espetáculo! Depois um murmúrio
rápido de orações: "Glor-pad-filh-espiri-sant-men." Era divertido ver como se pode acabar depressa e dar um pulo para a cama. Eileen sorriu-lhe e aquele dente que
lhe faltava na frente dava-lhe um ar tão picante! Piscou com uma subreptícia solicitude enquanto um dos seus cachos caía num dos olhos de Peter. Depois disso ele
ficou só.
Novamente uma figura grotesca, vestida de branco, flutuou em sua imaginação, que, nas outras noites, povoava, a escuridão de fantasmas, dos quais Peter tinha um
vago medo; mas aquele fantasma não lhe causava nem medo nem pesar. Tinha, além disso, um motivo de conforto que lhe bailava na mente. Entorpecido pelo sono, lembrou-se
de repente. Era a moeda! Sim, era isso. Depois dormiu.
A manhã seguinte começou com um quente sol que banhava as ruas do estuário e um céu azul que prometia um dia magnífico. Apesar disso, reinava em toda a casa aquele
mesmo ambiente estranho da véspera. Peter não viu o tio à hora do almoço; a cabeça de Miss O Regan - que ele sabia ser o barómetro dos seus sentimentos - trazia
ainda uma melancólica inclinação; até mesmo Eileen, que lhe trouxe em silêncio o mingau e o ovo cozido, parecia um ser diferente, e mais complexo, e não aquela suave
e íntima criatura que o havia cingido num caloroso abraço ainda na véspera.
Começou a sentir uma vaga depressão que se instalava nele como uma letargia. Ao terminar a refeição, saiu e, depois de refletir maduramente, comprou alguns confeitos
a uma paroquiana do tio Edward. Ele descobrira ser pessoa em quem se podia confiar, para servir o freguês generosamente, em seu pequeno estabelecimento. Mas isso
não lhe serviu de conforto.
Não prolongou muito o passeio, oue não lhe oferecera interesse algum, e voltou desconsoladamente ao presbitério.
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Encontrou no hall Miss O Regan que o esperava:
- Peter, exclamou logo que ele apareceu na porta; procurei-o por toda parte; onde esteve você, menino?
- Passeando por aí, respondeu ele de má vontade.
- Está bem, mas... - e estacou.
O dever que tinha a cumprir desolava-a e envaidecia-a a um tempo. O reverendo havia-lhe dito naquela manhã:
- É melhor que seja a senhora que o diga ao pequeno, Miss O Regan. Ele o receberá melhor da senhora. - A essas palavras, as pálpebras abaixadas haviam palpitado
com profunda, si bem que humilde, satisfação. Sentiu perfeitamente que essa tarefa era a marca de uma grande estima que a elevava a uma posição confidencial muito
acima da de uma mera governante. Contudo, estremecia à ideia de ter que projetar aquele raio através dos seus pálidos e piedosos lábios.
- Peter, disse por fim; vamos lá para cima. - Tomoulhe a mãozinha quente entre seus finos e frios dedos e, enquanto o conduzia pelas escadas, ele sentia esses dedos
como si fossem as finas patas de uma rã que apanhara no jardim da casa - fria apesar de viva - e que lhe produzira uma sensação de grande desconforto.
Entraram no salão que se achava vazio, sentaram-se no sofá estofado perto da janela. Encararam-se. Por um momento, reinou um silêncio cheio de constrangimento, depois
os lábios dá governante tremeram, seus olhos rolaram duas vezes nas órbitas e, depois, alargaram-se numa espécie de expectativa curiosa.
- Peter, meu filho, murmurou ela, você precisa ser corajoso. - Passou-lhe o braço em torno dos ombros e olhou-o de esguelha. - Sim, precisa ser corajoso como um
homem; tenho notícias tristes para você, Peter.
O menino sentia-se mal sob aquele olhar que o perturbava. Começou a desejar ardentemente que ela dissesse depressa o que tinha a dizer.
- Sabe, Peter, começou ela, seu... seu pai está muito doente... muito doente mesmo.
O desconforto de Peter aumentou. Mesmo assim, viu que Miss O Regan estava fazendo o possível para melhorar as coisas. Acenou .vivamente com a cabeça, aquiescendo,
como si, na verdade, a encorajasse
- Mas Peter, cochichou Miss O Regan por fim, seu pai... seu pai não está doente, na verdade. Ele está no céu com os sagrados anjos... ele morreu, Peter.
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Peter estava preparado e imediatamente prorrompeu em lágrimas. Por algum estranho pressentimento, desde o momento em que ela apareceu com o telegrama, ele o havia
suspeitado. Depois, a despeito de quererem ocultar-lhe tudo, já o sabia. Mas agora, aquele aparato, a expressão do que ele já sabia, em palavras, e sentir que Miss
O Regan esperava alguma demonstração de sua dor, tudo conspirava para fazê-lo chorar. Soluçava alto. Então, ela, atraindo-o a si, misturou suas lágrimas às dele.
Assim abraçados, choraram juntos.
Peter parou de chorar para assoar o nariz e, voltando a cabeça sem mexer o corpo, olhou tristemente para fora, pela janela. Lá em baixo, o movimento das ruas continuava,
os transeuntes mais pareciam formigas que homens. Uma vespa indolente procurava trepar pelo vidro da janela, zumbindo alto, depois caía novamente. Uma barbatana
do espartilho de Miss O Regan espetava-o no flanco, machucando-o.
Por fim, relutante, ela o libertou.
- Quando você voltar para casa com o reverendo, deve dizer a sua mãe que eu cuidei de você, exclamou ela enxugando uma lágrima na ponta do nariz. Uma coisa dessas
orgulharia muito o reverendo.
- Sim, Miss O Regan, prometeu ele de boa vontade. Eu digo.
Mal pôde refletir no que dizia, porque ao pensar em sua mãe, uma alegria imensa se apoderou dele ao saber que ia vê-la novamente.
- Vamos almoçar a bordo, Miss O Regan? perguntou timidamente. Voltar com tio Edward queria dizer que ia ter uma maravilhosa viagem no Lucy Lamond. Escandalizada,
ela o olhou: esteve para falar, quando subitamente a porta se abriu e Edward entrou na sala. Imediatamente ela se pôs de pé, cruzou as mãos no peito e baixou a cabeça.
- Sim, reverendo, murmurou, em resposta a uma pergunta feita em voz abafada. Ele portou-se bem, muito bem, relativamente. Fiz o possível.
Desse modo ela parecia reclamar modestamente um elogio pelo seu caloroso tato feminino.
Voltaram-se ambos e olharam para Peter. Sob esse duplo olhar, ele corou, fixou um olhar em terra, como si estivesse conciente de que não chorara bastante. Depois,
Miss O Regan fez-lhe um aceno e, seguindo-a, ele se retirou da sala.
Nesse dia, Peter ainda não foi para casa. Nem mesmo no outro. Era incrível, ele não podia compreendê-lo, mas o fato é que uma quinzena inteira se passou antes que
se
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levantasse em casa uma grande agitação. Imediatamente percebeu que era esse o dia da sua .partida. Quando Miss O Recran acabou de lhe lavar o rosto e as mãos, e
escovou-lhe os cabelos, ele apressou-se em descer ao jardim para dar um último olhar à rã que vivia na umidade da pequena gruta. Por mais que procurasse por toda
iparte e tornasse mesmo a sujar as mãos, afastando as folhas da hera que recobriam as pedras, não .conseguiu achá-la. Sacudiu levemente seu saiote escocês para que
Miss O Regan não se aborrecesse com ele; depois foi inspecionar suas iniciais que ele próprio havia esculpido o melhor e mais profundamente que pudera no tronco
da limeira ao lado do portão. A vista dessas letras amareladas, a ideia da sua permanência, - um monumento ao seu nome - causaram-lhe uma grata satisfação. Chegou
mesmo a sorrir. Foi com relutância que as deixou para voltar para casa.
Tivera um almoço leve e seguido de uma pesada despedida que o deixou ofegante. Antes de recuperar o fôlego, achou-se a bordo do vapor com o tio.
A travessia passou-se numa curiosa expectativa, cheia de excitação entremeada de medo. Tinha uma estranha pressão no estômago, que aumentava à medida que se aproximavam
de Ardfillan. No princípio, ficara perambulando pelo convés; depressa, porém, bem depressa, voltou para junto do Tio Edward e para o conforto da sua mão. Desembarcaram
em silêncio.
Em caminho, pelo cais, suas pernas enfraqueceram, sentia um bolo na garganta. Logo atingiram o fim da viagem, deixando para trás a fonte, aquela em que ele uma vez
deitara alguns peixinhos; depois, a familiar fachada branca da sua casa apareceu-lhe com incrível realidade.
Enquanto via o tio puxar tranquilamente a campainha, veio-lhe um imenso desejo de correr, correr para qualquer lugar, de modo a poder escapar àquele terror desconhecido.
Nesse momento, abriu-se a porta e ele viu o rosto da sua mãe, um rosto que parecia extraordinariamente pequeno e jovem, de grandes olhos estranhamente brilhantes.
Instantaneamente suas pernas cessaram de querer correr e puseram-se, em vez disso, a tremer. ..O grande bolo desceu ao estômago e depois novamente subiu à garganta,
onde se desfez num soluço. Lágrimas de verdadeira alegria e de verdadeira tristeza corriam-lhe dos olhos. Sem o saber, ergueu os braços e imediatamente a doçura
meio esquecida do beijo da sua mãe derramou-se nele.
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A FINAL, seu filho estava ao seu lado, naquela terrível desolação, apertado contra seu peito. Lucy sentiu que lágrimas de amor e de ternura expulsavam de seus olhos
as lágrimas de dor.
- Não chore, Peter, disse, procurando sorrir-lhe; sinão eu chorarei também.
Mas aquele -sorriso e a estranha negrura do seu vestido lançaram-no em novos soluços, através dos quais gaguejou:
- Não vou chorar mais não, mamãe... não vou chorar mais, agora.
Ela o tomou pela mão e voltou-se para Edward.
- Entre, Edward, convidou em voz baixa; muito obrigada por ter trazido Peter. Joe está aqui, também.
A porta fechou-se sobre eles e, atravessando o Jiall, acharam-se todos na sala.
- Venha vindo, Ned, disse imediatamente Joe, com uma voz triste e sossegada, falando da poltrona em que estava sentado. Eu estava agora mesmo pensando quando seria
que você ia chegar com o pequeno. É tempo de termos uma conversa séria. Sim senhor! Agora você estia um belo e grande rapaz, Peter. Não chore, filho; olhe para essa
corajosa mulherzinha que é a sua mãe e não derrame nem mais uma lágrima.
Obediente, Peter levantou os olhos para sua mãe e falou com voz entrecortada;
- Sim, tio Joe.
Lucy passou o braço pelos ombros da criança e atraiu-a para os seus beijos. A pequena sala parecia pesada, de um apreensivo silêncio. Uma nesga de sol apareceu através
da janela e dardejou na sombria peça como uma lâmpada dourada. Parecia que ninguém sabia o que dizer.
- Bem, começou Joe finalmente. Já o disse antes e forno a dizê-lo. Foi um golpe terrível! suspirou. Mas não há remédio! Foi-se o pobre rapaz e Deus lhe tenha a alma,
murmurou e volveu os olhos para Edward.
Este agitou-se contrafeito. Deveria pronunciar-se uma oração? Para que, si só estava ali a família? Além disso, havia oficiado ele próprio à cerimónia fúnebre.
?- Bem, repetiu Joe, que tem você a dizer?
- Vocês trataram de tudo? perguntou Edward a Lucy. Por exemplo, da conta do enterro?
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Apesar da patente afabilidade de Joe, as maneiras do sacerdote tinham um tom menos grandiloquente na presença do irmão mais velho, mas quando ele proferiu essas
palavras, Joe ergueu imperiosamente uma cabeluda mão.
- Não! exclamou dramático. Não quero que você se ocupe com essas coisas. Isso é comigo, si me faz favor. Encarou-os com uma generosidade agressiva: - Valha-me Deus!
Que é que vocês pensam que eu sou? Já não disse que pagaria pela história toda? Como si eu não pudesse fazer isso pelo meu pobre irmão defunto!
Suas vastas narinas palpitavam, o grande estômago estremecia espasmódicamente, uma lágrima pendurou-se-lhe na pálpebra. Estava sinceramente comovido e continuou,
impressionante :
- Sim! e dei-lhe um funeral que foi uma beleza, não foi? Uma beleza! O mais belo ataúde de alças de prata que o dinheiro pode comprar. Garradas de flores. E tudo
bonito e limpo. E cada uma dessas coisas será paga por mim. Dinheiro, para ruim, não conta. E Frank, morrendenos assim, de repente, como o fez! Deus me perdoe! Si
eu não pudesse sepultar direito meu próprio irmão; que espécie de criatura seria eu?
Passou as costas das mãos pelos olhos e olhou para Lucy em busca de apoio.
Pálida e silenciosa, esgotada pela angústia daquelas duas últimas semanas, ela inclinava a cabeça enquanto os olhos [percorriam o desenho do tapete. Joe não cessaria
nunca de relembrar, daquele modo. efusivo, a cerimónia do funeral? Ele insistira para que Frank fosse levado para o jazigo da família em Levenford - coisa que requeria
uma longa viagem em carruagens - vociferando que pagaria tudo. Prostrada, ela fora impotente para combater aquela vulgar ostentação da sua dor.
Abraçando mais estreitamente o filho, de novo estremeceu à lembrança daquele dia. Fora um dia úmido. A chuva caíra incessantemente, zombando das pompas arranjadas
por Joe, encharcando os carpidores profissionais, lúgubres e tesos no suntuoso carro fúnebre, negro, apesar de rebrilhante de vidros, recoberto de alvas flores,
em toda a exibição e futilidade de um funeral pretensioso. A coisa que Frank menos desejaria, e que ela menos desejava também. Mas Joe estava em seu elemento, a
cartola posta de lado, os polegares às vezes metidos nas cavas do colete, a dor brilhando em seus olhos excitados.
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E chuva... chuva. Chuva.
E a interminável viagem durante a qual ela perdera o senso da realidade das coisas! A própria cerimónia do enterro pareceu incongruente à sua imensa dor. Depois,
uma parada em casa de Joe, ambiente que ela detestava. Todos os amigos de Joe estavam reunidos em uma alegre confraternização. À pafte, numa reserva curiosa, estavam
os outros, os seus amigos, seu irmão Richard, Lennox, que a olhava com um olhar de estranha simpatia. Tudo isso ela vira através do torpor em que a envolvia sua
desdita e do terrível aniquilamento do seu espírito.
Mas, agora, tudo passara! Abruptamente, levantou a cabeça procurando banir da mente aquela lembrança, esforçando-se, por amor a seu filho, a enfrentar o futuro.
; Joe falava ainda:
- Eu lhe digo, declarou com aquele modo íntimo que aumentara ultimamente. vou fazer com que Lucy e o garoto, saiam bem disso tudo. Que seríamos nós se não pudéssemos
ajudar os nossos!
; - Bem, concordou Edward timidamente. Si você assim o quer!
Sabia que o irmão estava bem de fortuna; ele naturalmente, nisso, tinha desvantagem.
- Claro que assim o quero. Para que foi que você pensa que eu abri a boca? tornou Joe abrindo uns olhos agressivos. Você pode tomar minhas palavras como as de um
evangelho.
Houve uma pausa. Depois Edward voltou a falar, já agora irritado por ver a atitude de Joe, que monopolizava aquilo que por dignidade lhe cabia, e disse com um pouco
de altivez;
- Quais são exatamente seus planos, Lucy?
- Sim, secundou Joe avançando a cadeira; que você pensa fazer? Quanto lhe deixou Frank?
Edward indignou-se. Seria que Joe não tinha noção de decência nem do respeito pela precedência do clero, para torcer assim grosseiramente suas perguntas?
Lucy corou penosamente àquelas palavras. Contudo sabia que tinha que enfrentar corajosamente aquela interrogação. Joe não tinha tido a intenção de magoá-la.
- Não sei, disse em voz baixa, há diversas coisas a pagar. (Ela se propusera indenizar os Bowies da perda do pequeno barco). Mas quando tudo estiver saldado, restarão
... restará mais de uma centena de libras.
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A essas palavras a boca de Joe entreabriu-se; depois fez ouvir um longo assovio e recostou-se na cadeira fixando o olhar no teto. Edward também parecia algo estupefato.
- Frank estava começando apenas a juntar: alguma coisa, explicou Lucy naquela sua voz baixa e fatigada. E hesitava olhando de um para outro, com. duas manchas de
sangue ainda sobre as faces pálidas.
- Não tinha feito seguro de vida? indagou Joe.
Ela sacudiu a cabeça. Como si Frank se tivesse lembrado disso!
- É, não é muita coisa, disse Edward vagarosamente, com uma espécie de lógica na voz; realmente, não é muita coisa.
- Qual! exclamou Joe desdenhosamente, brincando com os níqueis que trazia no bolso. Não é nada! Nada absolutamente. É menos que coisa nenhuma. Não sei francamente
em que é que Frank estava pensando, mas é suicídio puro deixar mulher e filho só com cem libras. Eu o teria feito ganhar muito mais, si ele me tivesse consultado.
Mas era dos que nem olham para perto da gente e não pedem um favor nen mesmo ao próprio Papa. - Um súbito pensamento atravessou-lhe a mente: - Esse irmão que você
tem vai ajudá-la.
Os olhos de Lucy tornaram-se sombrios a essas palavras.
- Não pretendo pedir-lhe auxílio, nem a ele, nem a quem quer que seja, respondeu vagarosamente.. Uma visão do olhar frio e ausente de Richard durante o funeral
veio-lhe à memória. Parecia-lhe estar ouvindo suas distintas condolências: "Estou desolado, sabe? desolado com tudo isso. Eva. .. Eva está profundamente sentida!"
Si bem que ele lhe houvesse falado com simpatia, as perguntas que fizera sobre sua situação haviam sido cautelosas. Dera-lhe claramente a entender que cabia à família
de Frank salvaguardar seus interesses no futuro; quanto a ele, expôs-lhe os compromissos que lhe pesavam nos ombros. Não fora surpresa para ela, aquela atitude.
-; "Tenho com que me tornar independente, Richard, replicara ela. Espero conservar isso. Não quero dever nada a ninguém." Ele aprovara com a cabeça aquelas palavras
que eram a manifestação do orgulho dos Murray.
Olhando para Joe, Lucy observou tranquilamente:
- Meu irmão tem sua família e suas responsabilidades, já tem muito em que pensar para que eu ainda o incomode.
Edward mexia-se inquieto. Estivera meditando e agora sentia que era tempo de fazer um pequeno discurso.
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- Certamente haverá um meio qualquer de se arranjar tudo, comentou. Não há razão para desânimes. Deus é muito bom. Alguma coisa boa acontecerá, Lucy.
Sabia que seria muito mau gosto sugerir-lhe que casasse outra vez, mas era essa realmente a ideia que tinha em mente.
- Diga-nos o que é que você pretende fazer, então, disse Joe astutamente, depois de tê-la observado todo o tempo através da mão que levara à testa enquanto ela refletira
e falara.
- Posso trabalhar, naturalmente, disse ela.
- Trabalhar? - O tom de Joe era de incredulidade.
- E por que não perguntou ela, como quem se defende. Não posso ficar sentada, de braços cruzados.
Os dois irmãos se entreolharam com igual assombro. Ainda não havia chegado o tempo em que as mulheres podiam trabalhar livremente pelo mundo, a não ser nas posições
mais subalternas. Além disso, Lucy não tinha habilitações. Quereria ser uma caixeira de loja? Alguma coisa como uma empregada doméstica? Incrível! pensou Edward,
e perguntou-lhe com um ar de dúvida:
- Já tem alguma coisa em vista?
- Tenho, sim, replicou ela esforçando-se para dominar a voz trémula. Dar-me-ão a oportunidade de continuar o trabalho de Frank. Pedi-o a Mister Lennox e ele prometeu-me
o lugar.
Era verdade. Impelida pela necessidade urgente de combater a sua dor, de enfrentar o futuro e educar o filho, interpelada Lennox e este, por fim, consentira em experimentá-la
no trabalho.
- Ele não pode admiti-la, observou Joe incrédulo. Qual o que! Não é possível.
- Mas é admissível, disse Edward esticando o beiço e reunindo as pontas dos dedos. É um trabalho que nada tem de impróprio para uma senhora.
Joe nada respondeu e por algum tempo fez-se silêncio. De repente tornou:
- Mas não é possível! - Por qualquer motivo parecia contrariado com aquele -projeto. Lucy porém não replicou. E novamente reinou silêncio.
- E quanto a Peter? perguntou depois subitamente Edward. Você estará fora de casa o dia inteiro, e em alguns dias, até bem tarde.
A essas palavras, os modos de Joe humanizaram-se.
- É isso! Você precisa pôr o menino no colégio, e eu vou ajudá-la nisso. Vamos mandá-lo para o colégio dos 151
irmãos, em Laughtown. Era onde estava o meu rapaz. Otimo lugar. Há lá espanhóis... e.,, todo o mundo. Dou-me muito com o irmão John Jacob. Um pedaço de homem bomm
futebolista! Naturalmente que eu hei de ajudá-la e a Peter.
Lucy olhou tristemente para Joe; esperava vagamente que ele tomasse algum interesse pelo futuro da criança; não estava satisfeita com a escola que ele frequentava,
mas... iria ela perder seu filho, também?
- .É um bom colégio, assentiu judiciosamente Edward; os irmãos não são realmente da ordem, mas, mesmo assim, o colégio é muito bom.
- É esplêndido! resumiu Joe. Educou meu Barney. E eu pagarei as despesas.
Edward levantou uma sobrancelha, mas não fez comentário. Sentia que se chegara a uma decisão. Detestava complicações que lhe viessem perturbar a paz do espírito.
Olhou com agrado para Lucy, lembrando-se de que dissera com verdade que o Todo-Poderoso indicaria um bom caminho para o seu futuro.
com os braços em torno do filho, falando-lhe através da ternura do seu contacto, Lucy respondeu àquele olhar em silêncio.
?- Bem, disse Joe finalizando, está tudo arranjado. Peter vai para Laughtown e eu pago a história toda. - De novo olhou-o astutamente. - E você vai ver como vai
gostar das viagens! Vai se cansar disso bem cedo. - Consultou o relógio e exclamou: - Tenho que ir andando para não perder o trem. - Levantou-se, tomou a mão de
Lucy nas suas, bateu-lhe efusivamente no ombro. Não falou em voltar, mas suas maneiras indicavam que voltaria; e depois de se despedir afetuosamente, sacudiu a cabeça,
e na ponta dos pés, com visível dor, saiu da casa.
Edward também não permaneceu muito tempo com eles depois da partida do irmão. A conversa havia-o encontrado menos seguro de si mesmo que de costume e deixara-lhe
as maneiras menos naturais como si seu tom, cheio de brandura, ecoasse fracamente depois da pomposidade de Joe. Ao levantar-se, olhou curiosamente para Peter.
-: E Anna, perguntou discretamente, ouviu falar dela ?depois que se foi!
Lucy sacudiu a cabeça, de olhos subitamente baixos:
- Não, respondeu com voz trémula. Não quero mais ouvir falar nela.
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Edward nada respondeu e partiu sem alarde, mas dignamente, prometendo voltar em breve, pelo grande interesse que tinha em saber si estavam bem. A porta fechou-se
gentilmente, suavemente, atrás dele.
Ficaram então sós, Lucy e o filho: havia certo constrangimento entre eles, através do grande amor mútuo e da terrível estranheza da sua situação.
Ela o olhou com ternura. Seu regresso, a vista daquela sua desajeitada timidez antes de entrar, à porta da casa, tinham-lhe vindo como uma consolação quase divina.
A terrível tragédia da morte de Frank havia-a abatido como o súbito arrancamento de um membro. Prostrada, abandonara-se a uma dor intensa que obscurecia sua visão
para tudo o mais que não fosse aquela perda. Tinha contudo alguma coisa com que viver. Tinha seu filho: uma inspiração para uma nova esperança. Seu rostinho era
o rosto daquele que ela via através da bruma do seu desgosto. Lucy voltou-se para ele apaixonadamente. Uma previsão do futuro, do futuro diante dos dois, abateu-se
sobre ela e encheu-a de convicção crescente de que sua vida não findara. Nascera uma nova época, em que se uniria mais estreitamente a Peter.
Tomada de uma repentina fraqueza, perguntava-se a si (própria como poderia separar-se dele, para mandá-lo para o colégio. Queria-o sempre ao seu lado.
Enquanto lhe servia o chá, olhavam-se de vez em quando, através da mesa, quase com timidez. Não falaram muito, apesar dela procurar conversar sobre pequenas coisas
para pô-lo à vontade. Nenhuma referência foi feita ao terrível assunto. Nem uma palavra, nem um olhar entre eles traiu qualquer coisa sobre o triste fato. Contudo,
muitas vezes, como ferido por doloroso golpe, o corpo de Lucy parecia encolher-se, seus olhos brilhantes esgazeavam-se e seu rosto assumia uma estranha espressão
de quem está, à escuta.
Depois do chá, foi sentar-se ao lado de. Peter, que estava estendido no chão, apoiado nos cotovelos, brincando com soldadinhos sobre o tapete, e observou o sorriso
que despontava em seu rostinho sério.
Brincaram juntos e foram para a cama cedo, deitando-se ambos no pequeno leito do quarto de hóspedes, onde conversaram em voz baixa para dizer essas coisas que só
podem ser ditas na escuridão. Sentiam-se subitamente íntimos, camaradas, a respiração de Peter junto ao rosto dela. O futuro abria-se defronte de ambos, através
das fantásticas promessas que ele fazia de comprar-lhe peles e carruagens; das grandes coisas que realizaria por causa dela.
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Por fim a voz de Peter tornou-se hesitante; depois, com o sono, sua respiração ficou mais profunda. Lucy ergueu-se e inclinou-se sobre ele, observando à luz difusa
aquele rosto adormecido. Enquanto o olhava, ouviu o vago som de uma música longínqua.
NA manhã seguinte, Lucy tomou a firme resolução de começar a agir. A despeito da sua pretensa confiança perante Joe e Bdward, o fato é que tivera muita dificuldade
em persuadir Lennox a deixá-la continuar o trabalho do marido.
- Posso dá-lo a título de experiência, dissera este, procurando dissuadi-la. Si não der resultado, não poderemos conservá-la.
Lennox hesitara, incerto como era em suas decisões, mas acabara por se persuadir de que, talvez, a ideia fosse interessante. ;Si bem que tivesse tido uma "certa
consideração por Moore e gostasse de Lucy, simpatia e afeto não influiam muito em suas resoluções. Vira que ela era jovem, e apresentável e, além disso, capaz de
ter acolhimento simpático da parte de seus fregueses, por causa do luto recente. Lennox não se arriscava a coisa alguma. Dar-lhe-ia uma remuneração que seria sobretudo
calculada sobre uma base de comissões. O trabalho, em si, era simples, sendo necessário apenas o conhecimento do preço e da qualidade da mercadoria, coisa que Lucy
podia adquirir facilmente. Era cauteloso. Muito cauteloso. Explicou-lhe que aquilo era uma situação sem precedentes, uma novidade que dificilmente alcançaria sucesso,
mas deu-lhe a entender que, ao menos, ela teria uma oportunidade. Lucy viu claramente que tinha que lutar para vencer, e que, para assegurar esse sucesso, teria
primeiro que providenciar para a instalação de Peter.
Como se iria separar dele? Não sabia! Aparentemente, porém, era uma coisa inevitável. Já resolvera, por uma medida de economia, dispensar Netta; assim, Peter não
teria quem cuidasse dele, nem quem lhe preparasse as refeições. Além disso, não deixava de gostar que ele fosse para um colégio melhor do que aquele em que estivera
até então, que era frequentado principalmente por meninos de classe mais pobre. Nutria grandes ambições para o filho, que, naquela ocasião, contava quase nove anos.
Seria absurdo que ela .
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antepusesse seus próprios sentimentos aos interesses de Peter, recusando a excelente oportunidade que lhe oferecera Joe.
Encarava essa separação com melancolia. Era um sacrifício, um grande sacrifício. Ela o faria, porém. E antes que a resolução enfraquecesse, tomou da pena e rapidamente
escreveu ao irmão Superior, em Laughtown.
A resposta também veiu rápida: uma carta pessoal muito cortês do Superior agradecendo-lhe profusamente a preferência e assinalando-lhe que uma nova inscrição se
abriria dentro de dez dias. Chamava sua atenção para a modicidade dos preços e incluía um prospecto ilustrado verde e dourado, que explicava em termos eloquentes
as excelências do colégio.
Lucy, interessada, leu todo o folheto, que começava assim: " com o escopo de assegurar uma educação sólida e prática aos filhos dos católicos, o colégio é privilegiadamente
situado na salubre cidade de Laughtown, tão justamente acoimada pelo poeta Brow de "Pérola das Regiões do Oriente". Solidamente construído em vasto terreno próprio
e agradavelmente ventilado pelas embalsamadas brisas marinhas..." E terminava: "A alimentação, sobretudo, é saudável, nutritiva e abundante. Meninos delicados e
atrasados são cuidados especialmente. Não há extraordinários. Os Irmãos confraternizam com as crianças e tomam parte em seus esportes e recreações. As matrículas,
em qualquer caso " sem exceção, são pagas adiantadamente".
Era uma publicação elegante e razoável. Lucy ficou bem impressionada. Suspirou e examinou as fotografias: a Banda do Colégio; a Orquestra do Colégio, (quase a mesma
que a anterior); o Coro do Colégio; a Sociedade Dramática do Colégio (a carater, na peça Nero, ou o Escravo Cristão) grupos de várias classes, - cada menino que
pertencia ao colégio estava fotografado no folheto. Lucy olhou para todos eles. Leu as longas listas de prémios que poderiam ser ganhos. Então, deixando cair no
regaço o livrinho, olhou para Peter.
Era estranho, porém ele estava possuído do desejo de deixá-la. Aquele menino tímido, sensitivo, infantil, que soluçara em seus braços havia menos de uma semana,
queria agora tranquilamente abandonar esses braços. Havia lido também a costumeira e fictícia literatura relativa à vida de colégio e via-se afora dirigindo a orquestra,
batendo o grande tambor da banda, impressionando uma vasta assistência pela sua interpretação no Escravo Cristão. Presentemente não almejava outra coisa a não ser
contemplar sua fotografia estampada no livro verde e dourado. Lucy, apesar de
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preferir assim, entristecia-se ao ver seu desprendimento. Queria que ele acedesse em partir, porém que protestasse amorosamente: "Não quero ir. Não posso deixar
você!" Peter, porém, não formulara protesto algum. Em vez disso, rejubilava-se com a ideia. A compra do seu enxoval, que deveria obedecer a uma lista preestabelecida,
foi para ele uma expedição tão alegre quão trágica para Lucy.
Peter estava maravilhado com suas novas e másculas roupas. Ao chegar em casa, experimentou seus pijamas novos ao mesmo tempo que o uniforme e o chapéu, Este lhe
ficara um pouco folsrado e caía-lhe sobre as orelhas, emprestando-lhe um divertido ar levemente semítico. Postou-se defronte do espelho, cheio de satisfação, e vaidosamente
pediu que chamasse Miss Hocking para apreciá-lo. Esta não se fez esperar e, encantada, viu todo o enxoval, elogiando particularmente a cor dos suspensórios novos.
Não fez comentário algum sobre o colégio, porém, gostou imenso daqueles suspensórios! Ria muito ao ver Peter dar pulos de alegria metido num. dos pijamas, que revelava
seu pequeno corpo a cada pulo que dava. E cada salto daqueles fazia-a dar nova gargalhada. Aquele estranho interesse revelava-se-lhe na excitação dos olhos azues.
Lucy respondia-lhe com um pálido sorriso.
Os dias que faltavam para a partida de Peter pareciam "orrer velozes e aquilo lhe causava uma dor inesperada. Assim chegou o inevitável dia.
Partiram os dois para a estação num carro que transportava também a mala nova, com as iniciais de Peter pintadas em branco - um refinamento de modernismo.
Miss Hocking veiu fazer-lhe suas despedidas.
Para Lucy, a ocasião não somente era de tristeza, como de solenidade. E o alto significado da ocasião quase se sobrepôs à sua tristeza. No trem conservava-se silenciosa,
ora olhando a paisagem que se desenrolava, ora volvendo o olhar para o excitado rosto do filho. Sabia que aquele era o primeiro passo para a vida que ia dar aquela
criatura. Sua determinação tornava-se cada vez mais firme. Tinha um orgulho e um amor imenso, que a imneliam a uma resolução. O passado era o passado. Deixaria para
trás a desdita e a ruína. Propusera-se triunfar agora, através de Peter. Juntos, cumpririam seu programa e ela velaria para que esse triunfo fosse completo.
Chegaram a Laughtown quando a tarde já ia avançada. Lucy supunha que alguém os fosse buscar à estação; contudo,
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não pôde discernir na multidão que se comprimia em torno, rosto algum que parecesse achar-se ali na expectativa da chegada de Peter, que se conservava, naturalmente,
ao lado da rebrilhante mala, todo teso, com seu chapéu novo.
Lucy começou a sentir que sua chegada à "Pérola das regiões do Oriente" não correspondia à imagem que ela se havia traçado; a sua testa franziu ligeiramente enquanto,
perplexa, se conservava ali, de pé, segurando a mãozinha de Peter. Finalmente encontraram um carro que os conduziu, num continuo ranger de molas, através das ruas
empedradas da cidade.
Esta pareceu-lhe inerte e com um certo ar bucólico. As lojas se achavam cheias de instrumentos de agricultura, de barris de batatas; na praça do mercado uma multidão
de camponeses movia-se apáticamente, arrastando pesados sapatos, em águas turvas que pareciam correr sem rumo sob os arcos baixos das pontes.
Finalmente, Achegaram ao colégio, e aí, ao menos, não houve desapontamento para Lucy. O edifício branco, de pedra, tinha um ar nítido e compacto, exibindo uma solidez
que imediatamente confortou seu espírito inquieto.
Tocou a campainha e a porta foi aberta por um criado, de avental de baeta verde, que, ao vê-los, abriu num sorriso agradável o rosto moreno e barbeado.
- Quer fazer o favor de entrar, senhora? convidou, e conduziu-os através de um asseado corredor a um pequeno e sossegado -aposento. Lucy e o filho sentaram-se formalizados
na borda de duas cadeiras de espaldar direito e entreolharam-se como si estivessem muito afastados e quase proibidos de falar no aposento.
Dali a pouco, um velho entrou a passos lentos.
- Sou o irmão "William, disse estendendo a mão trémula : e completou com ingénua satisfação: - O Superior do Colégio.
Trazia um pequeno solidéu negro, um hábito lustroso pelo uso, manchado de rapé no peito, uma curta capa negra pendia-lhe dos ombros meio de través. Corcovava e arrastava
os pés quando andava. Seu rosto vermelho era raspado e sulcado de rugas. As faces moles pendiam-lhe sobre o pescoço, também cheio de pregas, como si pertencessem
a um velho lulldog.
Mas para toda aquela evidente senilidade, parecia extraordinariamente esperto; um bom velhinho, agora tornado um
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pouco simples em sua sagacidade, mas que conservava ainda bastante astúcia.
- Sim, sou o Irmão William, repetiu enquanto se sentava, com um sorriso; e quando Lucy viu esse sorriso, esqueceu a idade do Irmão William e viu que gostava dele.
Você não quer um passeiozinho para ver alguns dos outros meninos? perguntou ele a Peter depois de haverem trocado algumas palavras. Bateu a campainha que estava
sobre a mesa e, imediatamente, veio um jovem Irmão, moreno, simpático e todo elegante. - Irmão Aloysius, disse o Superior, leve este rapaz e mostre-lhe o Colégio.
- Depois, dirigindo-se a Peter:
- Não tenha medo, sua mãe não vai deixá-lo já.
Mas Peter não tinha medo. O contentamento transportava-o e ipartiu encantado, trotando alegremente, pela mão do Irmão Aloysius.
- Belo menino, observou o Superior voltando-se vagarosamente para Lucy; um menino extremamente sensitivo.
Essas palavras ele as dizia a cada mãe que vinha trazer seu filho. Para os pais, empregava estas outras: "É um perfeito homenzinho!" bom velho, o Irmão William.
Assim também pensou Lucy, que nada sabia das dez mil entrevistas similares que haviam subido ao céu como outros tantos méritos do Irmão William. Aceitou o cumprimento,
que a fez corar levemente de gratidão.
- Um pedacinho de bolo e um cálice de vinho depois da sua viagem viriam -bem, não é mesmo? murmurou ele. E fazendo com os maxilares um movimento de quem rumina,
foi até um armário onde, ao lado de uma fatia de bolo, encontrava-se uma garrafa de sherry. Trouxe essas coisas para junto de Lucy e sentou-se em frente a ela sem
partilhar da pequena refeição. E continuou suavemente: - Ele se sentirá muito feliz conosco, depois de se ter habituado.
Lucy assentiu com a cabeça e, levantando o véu negro, tirou uma impecável luva de camurça e fingiu mordiscar o bolo que tinha no prato. A iminência da separação
do filho empolgava-a. Tornava-se-lhe cada vez mais difícil falar.
- Peter é muito novo, sabe? disse um pouco engasgada pelo bolo, e sua saúde me preocupa.
- Temos aqui muitos, mais novos que ele, assegurou-lhe o Irmão William, com um ar reflexivo. Sim! E vêm de muito longe; mas chegam-nos e eu cuido deles, eu próprio.
Houve uma curta pausa, depois Lucy prosseguiu timidamente, hesitando nas palavras:
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- Espero que cuide bem dele. É tudo o que me resta neste mundo.
Ele adiantou-se, bateu-lhe paternalmente no braço e murmurou uma afirmativa. Depois, olhando para o vestido negro, disse num tom que a encorajava a confidências:
- seu luto é recente, não é mesmo?
- Sim, respondeu ela.
- Abateu-a muito, sugeriu ele suavemente; é visível. Uma quente lágrima escapou dos olhos de Lucy enquanto
ela sacudia a cabeça.
- Pobre filha, pobre filha! murmurou o Irmão, consolador.
Dava-lhe um estranho e grato prazer ver essa ardente, vívida e jovem criatura dolorida, aberta à sua simpatia. Gostava desse estímulo gentil e algo sensual. Um raro
deleite, em falta do qual, muitas vezes impelia as crianças mais tenras a se lhe confiarem entre lágrimas, daquele modo.
- Foi uma doença longa?
Das pestanas de Lucy uma lágrima redonda caiu dentro do copo de vinho. O quieto e estranho aposento, onde o sol entrava num raio que ia bater sobre os velhos livros
de uma estante, aquele vellhinho Irmão que lhe ofertava sua simpatia benigna e, sobre todas as coisas, a separação do seu filho - tudo isso a comovia subitamente.
Ele apertou o braço de Lucy com a mão veiada e murmurou-lhe suavemente suas condolências. Não estava investido de ordens que lhe abrissem o confessionário mas aquela
impressão sensual, poderosa, apesar de suave, penetrava como o perfume de um velho vinho ou o som de uma velha e romântica melodia.
Quando Lucy já havia recuperado o controle de voz, desprezando-se um pouco por aquele momento de fraqueza, ele lhe falou sobre o Colégio, sobre suas esperanças de
construir uma nova ala, de como havia passado ali quarenta anos. Lucy, atentamente, escutava. Ele não teve a ideia de fazê-la inspecionar os dormitórios como era
de praxe, nem se ofereceu para levá-la até lá. Não veio matrona alguma explicar-lhe sobre a rouparia. O Irmão Adolphns. o enfermeiro, mantinha esse posto. Era ele
quem cosia os botões nas roupas dos meninos, quando eles pediam. Não havia, decididamente, mulher alguma dentro do edifício.
- Eis aquí o pagamento do primeiro trimestre, disse Lucy tirando onze libras da bolsa, que perfaziam exatamente a quantia convencionada. - Joe ainda não a fora procurar
para lhe falar a respeito do seu compromisso de custear a 159
educação de Peter; ela, porém, preferia pagar tudo imediatamente e ser reembolsada mais tarde.
O Irmão William, num gesto, mostrou seu desinteresse pelo assunto e pelo dinheiro; contudo, a desdenhosa mão recebeu os soberanos e, num momento, o recibo encontrou-se
na bolsa de Lttcy que, então, se levantou.
- Agora, o pequeno! exclamou ele e tocou a campainha. Depois voltou-se, cheio de tacto, e foi em direção à janela. Lucy mantinha-se de pé no meio do aposento olhando
para a porta. Esta abriu-se e Peter entrou todo animado pela excitação do momento. Aparentemente encontrara outros meninos que deixara a muito custo e que desejava
rever rapidamente.
Lucy refreou o desejo de abraçá-lo e beijou-o levemente através do véu.
- Você (promete portar-se bem? perguntou rigidamente.
- Prometo sim, mamãe, naturalmente! assegurou-lhe Peter com vivacidade.
Lucy despediu-se do Irmão "William, que, voltando-se no momento oportuno, pôs a mão sobre o ombro de Peter antes que ela desse as costas e saísse do aposento, de
cabeça baixa.
A viagem de volta foi uma sucessão de imagens; o rosto infantil de Peter movendo-se em todas as suas expressões no fundo fugidio da paisagem. A separação, realizada
sem lágrimas amargas nem protestos, fora tão rápida que lhe havia deixado uma impressão de vazio, de um clímax ainda por vir.
Ao entrar em casa, achou-a deserta e fria. Netta já fora tristemente dispensada e partira cheia de pesar, porém sem recriminação alguma. Aceitara o fato como inevitável.
E agora, nem fogo nas lareiras, nem refeição alguma a esperava.
LuCy, porém, não desejava alimentos, nem se sentia com bastante energia para prepará-los. Pez um pouco de chá e tomou-o. Outra vez! pensou desanimada. Estava tomando
chá em excesso nestes últimos dias. Mesmo assim relativo conforto apossou-se dela, depois de tê-lo tomado; e procurando tranquilizar-se com a ideia do bem-estar
de Peter, pôs-se a pensar na importante questão do seu futuro trabalho. Devia começar na manhã de segunda-feira. Por vezes, a ideia de entrar só e inexperiente nesse
mundo de negócios, parecia-lhe incrível. A incongruência do fato apresentava-se como uma coisa ridícula. Nessa noite, porém,
- apesar de se sentir inepta, um enorme desejo de triunfar possuia-a e a impelia a uma determinação firme de vencer.
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Foi para a cama, na casa solitária, cheia de esperanças. Sentia mesmo dentro de si os prelúdios de certa alegria corajosa.
- AGORA, já sabe o que tem a fazer? perguntou Ándrews, olhando-a cheio de desconfiança.
- Perfeitamente, respondeu Lucy, tão confiante quanto lhe foi possível.
Andrews continuou a mirá-la com um ar de dúvida. Era um homem pequenino, de meia idade, com um bigode que lhe caía melancolicamente e um olhar tímido que intensificava
ainda mais seu ar patético.
- Já tem o nome dos fregueses e a lista completa dos preços ?
- Sim, tenho já tudo de cor.
Lucy acenou com a cabeça, procurando se dar coragem com o pensamento de que, si aquela mesquinha criatura podia fazer seu trabalho, certamente ela seria capaz de
fazer o dela. Mas não estava tão certa quanto queria parecer.
Essa era a temida manhã de segunda-feira. Lucy chegara ao escritório vestida com um costume cinzento-escuro. com alguma relutância, havia deixado a cor preta por
achá-la sentimental e imprópria. Estava à espera da chegada de Lennox. Chegara cedo, muito cedo; ele estava -atrasado e, enquanto não vinha, Andrews estivera iniciando-a
nos pontos essenciais das obrigações que teria a cumprir. O interesse que pusera nesses esclarecimentos era puramente egoístico. Não nutria nenhum interesse especial
pelo sucesso de Lucy, porém interessava-se fortemente por si próprio e queria a todo o preço conservar sua atual posição. Por algum tempo, conhecera as vicissitudes
dos viajantes e Lennox agora avisara-o de que, si Lucy falhasse, seria ele quem tomaria as obrigações que haviam pertencido a Moore. Para Andrews, essa perspectiva
era desagradável. Segundo seu modo de dizer, não queria mais saber da estrada. Contudo, nutria fracas esperanças no sucesso de Lucy. Que podia fazer uma mulher fora
da cozinha? E sua opinião era francamente partilhada pelo jovem Prame, o boy do escritório, que, ocupado com a tarefa matinal de arquivar as cartas da véspera, fixava-a
de quando em vez com um olhar quase paternal.
Lucy era uma figura curiosa e inadequada naquele escritório. Havia elegância em seu vestido e um brilho em seus
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cabelos, seu rosto estava calmo, mas essa calma era um pouco forçada e, nos dedos apertados, ela sentia bater o ritmo apressado do pulso. Havia tanta coisa que agora
dependia dela! Porque ninguém mais podia ajudá-la. Longe de desanimá-la, esse pensamento enchia-a de uma estranha força.
- De qualquer maneira, disse Andrews sombriamente, não posso fazer mais.
Lrucy não respondeu e, desviando os olhos da figura que se afastava, deixou o olhar divagar em torno da peça. De algum modo, até aquele escritório a desconcertava.
Sempre imaginara que o lugar em que Frank trabalhava fosse qualquer coisa de elegante, refinado, digno; isso que ela via, porém, parecia-lhe tristemente despido
de distinção. compunha-se de duas peças: o escritório e um gabinete em cuja porta estava escrito "Privativo" mas que se achava sobretudo empilhado de caixas entreabertas,
exibindo o recheio de palha. Ambas as pegas eram velhas e estavam em desordem. Olhou para as janelas fixas, para as paredes sujas, para aquela secretária vazia que
deveria ter pertencido a Frank e na qual, com um estremecimento, ela imaginou sua magra e curvada figura. Dominou-se com esforço, conciente do olhar do "boy. Dougal
Prame - ela sabia-lhe o nome - era um rapazinho mirrado de cerca de quatorze anos, de cabelos e colarinho descuidados, sombriamente desconfiado do seu pescoço, de
orelhas como que superpostas, uma das quais segurava uma caneta e a outra uma ponta de cigarro, de olhos hostis sob a densidade dos grandes óculos de aros de aço.
Pelo menos, ela suspeitava vagamente aquela hostilidade; e com um esforço para dominar seu nervosismo, voltou-se para ele:
- Nunca limpam isso aqui? perguntou gentilmente. Ele fixou-a de mau humor durante muito tempo, respondendo depois:
- De vez em quando, e voltou ao seu trabalho de classificação.
-Você devia fazer um pouco mais de limpeza, insistiu ela; há tanto pó aqui!
- Não me pagam para fazer limpeza, retrucou ele friamente sem a olhar.
Por algum tempo reinou silêncio; depois, nesse silêncio, ouviu-se o som de um passo na escada.
O coração de Lucy deu um salto, e abruptamente voltou-se para a porta, que se abriu dando passagem a Lennox.
U
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O rosto deste trazia já estampada uma insólita severidade. Não era a expressão que levava quando entrava na casa dela. Desenterrando o chapéu da testa, empurrou-o
para trás e exclamou:
- Aqui a temos, pois!
. Essa frase impressionou-a mal. Por que falava assim, quando ficara tudo resolvido e confirmado pelas próprias palavras dele ainda na semana anterior?
Forçou-se contudo a sorrir, um sorriso de mulher demasiado ansiosa por agradar.
- Mister Andrews já me explicou tudo, disse com vivacidade. Estou pronta para começar imediatamente.
- Sou um idiota, replicou Lennox com voz azeda. A senhora nunca fará coisa alguma.
- Não diga isso, Mister Lennox, acudiu ela rápida, ainda com aquele forçado ar de animação.
- Esteja certa de que será despedida dentro de uma semana, si não obtiver resultados.
Que tolo sentimentalão fora ele para admitir ali uma mulher daquelas ou qualquer outra, aliás! Pensar que dantes, por sobre as chícaras de chá que lhe oferecera,
havia dito com aquela incorrigível leviandade: " Si quiser o lugar, fale comigo!" e pensar que agora ela realmente ali estava, em seu escritório, pronta para assumir
o cargo! Na fria luz dessa manhã de segunda-feira ele se perguntava si andara com juizo ao firmar aquele pacto.
- E si perder um só "freguês, não ouse apresentar-se novamente.
- É a última coisa que eu faria, respondeu ela com decisão.
- Vejamos! continuou ele impaciente, e voltando-se para Andrews: Para onde parte ela?
- Para Linton, informou ele, e eu dei-lhe todas as instruções que pude.
Plantando-se defronte da janela, Lennox pôs-se a olhar com sombria abstração para fora. Subitamente voltou-se para Lucy, que o observara com ansiedade:
- E que está fazendo aí de pé? disse com impertinência. Não é para fazer isso que vai ser paga. Agora vá, e mexa-se!
- Eu esperava que o senhor... respondeu ela, contrariadíssima com suas maneiras: Pensei que...
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- Não pense. Aja! - E sorrindo azedamente do seu aforismo, tomou um lápis do bolso do colete e apontou-o para ela como um agressivo canhão.
Lucy olhou-o indignada, porém não disse uma só palavra. Controlando a cólera que a invadia, apanhou seu novo livro e seus papéis de cima da secretária; depois, com
as faces ardentes, saiu lentamente.
Era humilhante ver-se constrangida a submeter-se a uma tal indignidade. Tinha Ímpetos de voltar e de atirar o emprego naqueles dentes que entrevira no odioso sorriso.
Quando se achava em meio da escada, ouviu o som de passos atrás de si; voltando-se recebeu em cheio o choque do corpo de Dougal.
- A senhora esqueceu seu lápis, disse ele desajeitado, recuperando o fôlego. Lucy tomou-o das suas mãos, olhando-o em silêncio, enquanto ele a encarava constrangido.
- Eu fiz-lhe a ponta, continuou corando até as orelhas. Depois, antes que ela pudesse falar, apontou para cima com o polegar e ajuntou: - Não se incomode com Lennox;
está sempre de mau humor nas manhãs de segunda-feira. A senhora vai ver como achará tudo fácil. - Depois, rapidamente, voltou-se e, de três em três, subiu os degraus
que descera.
Lucy ficou imóvel por alguns momentos. Então, seus lábios agitaram-se, sua testa desanuviou-se e quando chegou à rua levava no rosto um leve sorriso.
A manhã estava bela e fresca. A brisa soprando através de Saddleriggs impelia-a suavemente em direção à estação. A brusca mudança do cenário, do mesquinho escritório
para o brilho do dia, comunicou-lhe uma curiosa emoção, um misto de coragem e resolução que a inundou intensamente. Em torno dela, agitava-se o rápido fluxo da cidade,
o impulso incessante das ruas inquietas: uma fila de cavalos atrelados em carroças, os bondes de brilhante colorido, barulhentos, o rodar veloz dos carros de aluguel,
em cada coisa havia uma qualidade vital que ela absorvia inconcientemente. E propagada pelo agitado fluxo, a alta e insistente nota do ruido da cidade - ora o clamor
da sereia de um rebocador, passando no rio, ora o silvo de uma máquina, às vezes o grito de um mascate transportando sua mercadoria - chegava-lhe vividamente através
do ar ressoante.
Lucy atravessou a rua e entrou na rua Young, onde os passeios estavam ainda mais transitados e onde o tráfego ainda era mais intenso. Dirigiu-se à Queen Estation,
atravessando a sombria passagem de luz coada através de tetos
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envidragados, e desceu em meio ao fumo sulfuroso existente sob as gotejantes e abobadadas arcadas da plataforma baixa. Aí, tomou o trem para Ldnton e, durante a
viagem, novamente se sentiu cheia de resolução. Preciso esquecer o passado, pensou, ainda tenho Peter e o futuro".
Chegando ao seu destino, assumiu uma expressão determinada no rosto ao tomar contacto com a cidade. Linton era uma cidade de trabalho. O ar ressoava com o retinir
de milhares de martelos, um infinito ra-ta-ta dos batidos dos cravadores, das bigornas que os ferreiros não cessavam de malhar. Destacavam-se na linha do horizonte
massas de vapores transportando multidões de homens que pareciam formigas; (poderosos guindastes trabalhavam num rangido de grossas correntes. Tudo cru, vibrante
e vivo como a cal viva que os pedreiros remexiam na construção de uma quantidade de casas. Aquilo tudo a empolgou. O malhar do aço sobre o ferro, os apitos dos vapores,
o arrastar de correntes, o raspar das pás - sentia tudo aquilo e todo o poder que encerrava. O ar estava todo saturado de uma alta finalidade, e ela também tinha
uma finalidade na vida - não o mero comércio daquela detestável margarina, alguma coisa para além disso, vital e intensa.
Numa esquina da rua High, Lucy achou-se defronte da primeira casa que deveria visitar, uma panificação, cheia de pequenas prateleiras onde se achavam arruinados
alguns pães e tendo aos lados duas vitrines circulares para doces, uma das quais se achava vazia; a outra continha uma pastelaria meio duvidosa. Por lá, havia uma
taboleta na qual se achava escrito o nome da firma: Danl. Harbottle Sobrinho. Nunca ela esqueceria aquele nome, nem aquele momento. O nome de Harbottle, transcendendo
todos os outros, tornou-se para ela de suprema importância, enquanto através dos vidros ela observava a figura de um homem em pé atrás do balcão. Esse homem se conservava
sobre um único pé, enquanto esfregava uma perna enfarinhada com a botina que calçava o outro. Seus braços nus, caiados de farinha seca, apoiavam-se ao balcão. Apresentava
uma abstração quase de cegonha. Seria o sobrinho ou o próprio Dànl? Não importava. Lucy viu nele sua imediata vítima, e entrou resolutamente no estabelecimento.
- bom dia, Mister Herbottle, exclamou, faço parte da firma Lennox.
Seus modos eram firmes, francos, inflexíveis mesmo. 165
- Tem alguma encomenda para mim hoje? continuou com desembaraço.
Oh! mulher do tímido Andrews! Onde estavam aqueles sábios conselhos para que ela entrasse discretamente no estabelecimento e iniciasse uma conversa insidiosa a respeito
do
tempo!
- Encomenda? repetiu o homem. Estivera soterrado na sua padaria subterrânea desde quatro horas da manhã e agora cochilava no balcão enquanto a filha almoçava lá
em cima: encarou Lucy perplexo, como se duvidasse do testemunho dos seus olhos e ouvidos.
Lucy abriu o livro de notas.
- Serei eu quem o virá procurar para o futuro, declarou com pretensa confiança. Tomei o lugar do meu marido, compreende?
Ele continuava a olhá-la. Por fim, a lua da compreensão pareceu iluminar suas enfarinhadas feições.
- Ah! compreendo, compreendo! exclamou. Ora essa! Então a senhora pegou o emprego dele. Muito bem! Estamos vivendo em estranhos tempos, para se ver uma mulher entrar
no meu estabelecimento e pedir-me encomendas desse modo!
Ela pegou o lápis e olhou-o.
- Estou mesmo precisando de qualquer coisa, disse o homem cautelosamente. Não tenho preconceitos. Posso realmente estar precisando de alguma coisa da casa Lennox.
O lápis de Lucy pousou avidamente sobre a folha.
- É, a senhora pode me mandar um barril da do costume.
Ela escreveu rapidamente. Sabia por intermédio de Andrews qual era a sua "do costume". Houve um silêncio.
- Não quer óleo, também? sugeriu. Podemos cedê-lo para o senhor a quatorze e três.
Era um golpe de mestre, essa cotação, pensou ela mais tarde, e um traço indicativo do seu profundo conhecimento das sutilezas dos negócios.
- Bem, já que falou nisso, aquiesceu ele devagar, pode mandar meio barril da "marca" e tudo.
Os dedos de Luky tremiam ligeiramente, enquanto anotava a última encomenda. Ao terminar, sorriu e agradeceu-lhe com vivacidade.
Enquanto se retirava, ele seguia-a com os olhos, quase envergonhado, murmurando consigo mesmo: "Sim senhor! Nem pensei!"
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Lá fora, Luky parou. Sim. Havia pedido aquela ordem e a obtivera! Seu coração palpitava alvoroçado sob a calma aparente. Era o começo e fora um sucesso.
Sabia agora que era capaz de exercer o emprego. Seu triunfo sobre o pequeno e insignificante padeiro deu-lhe uma nova confiança na vida. Estava transportada de alegria;
procurou, porém, acalmar-se. Deliberadamente, esforçou-se por parecer tranquila, enquanto se encaminhava para a segunda visita. Andou afanosamente por toda a cidade.
Nem sempre encontrou um ouvido receptivo, num estabelecimento vazio, para atender as suas perguntas. Algumas vezes teve de esperar, enquanto mestres padeiros - alguns
impacientes, outros inquisitoriais - emergiam de profundezas subterrâneas. Nas lojas maiores, teve que enfrentar algumas jovens insolentes. Nem sempre os pedidos
foram tão categóricos. Teve suas recusas; mesmo assim, aquele começo fora auspicioso. Quase um presságio. Ganhou confiança e, lentamente, acumulou uma lista de encomendas.
De algum modo, isso teria de acontecer. Ela não era nenhuma tola e a firma de Lennox era boa e tinha grande reputação. Além disso, sua mercadoria, como o dissera
Frank uma vez, vendia-se sozinha.
Ao deixar o seu último freguês, Lucy puxou o relógio do cinto de couro. "Meu Deus! pensou, são três horas". Tão grande fora sua preocupação, que o problema relativamente
sem importância da alimentação havia-lhe escapado inteiramente. Agora, contudo, excitada pela vitória, sentia fome, e fome voraz. Olhando em torno, descobriu uma
pequena casa de pasto, onde entrou. Aí, sentou-se e pediu um sanduíche de presunto e um copo de leite. Como lhe souberam bem! Sorveu com delícia até a última gota
do leite.
Ao regressar a Saddleriggs, sua atitude era diferente: calma, quase fria. Assim subiu as escadas do escritório.
O silêncio se fez à sua entrada, com uma precisão quase espetacular. Não disse uma palavra. Tinha sido humilhada naquela manhã. Agora, cheia de convicção do próprio
valor, exigia uma desculpa.
- Bem, falou Lennox por fim, olhando-a de um modo curioso, que tal o resultado?
Em silêncio ela estendeu o livro, que ele recebeu também em silêncio. Foi um momento dramático, no qual Andrews e Framk se mantiveram como espectadores em suspenso,
enquanto Lennox corria vivamente os olhos sobre a lista de         encomendas. Finalmente depôs o livro sobre a mesa. 167
- Não foi mau, murmurou com voz mudada. Depois esfregou as mãos, cofiou a barba e mostrou os dentes amarelados, num sorriso astuto. - Não foi tão mau assim, para
começar.
Para começar! Realmente! Lucy sabia que se saíra muito bem da empresa e sabia que ele também o sabia. Novamente Lennox pegou no livro:
- É da primeira qualidade que pediram, nos armazéns? perguntou.
- É da primeira qualidade, sim; e por dezoito shillings o barril, respondeu ela com um perfeito ar profissional.
Lennox sorriu outra vez, olhando-a com mais agrado ainda. Não havia dúvida. Ele sempre estivera certo disso. Era uma mulherzinha muito esperta, aquela! E seu julgamento
sempre fora judicioso. Não havia dúvida alguma!
- Sim senhora! Foi-se muito bem! murmurou. E levantando-se, foi para o pequeno gabinete, assoviando suavemente.
Lucy olhou para os outros e Dougal sorriu-lhe fazendo-lhe um gesto convidativo.
- A senhora pode vir fazer suas faturas aqui, disse, indicando sua própria secretária.
Dougal havia-a aceito definitivamente como membro da firma.
- -
LUCY chegou em casa, depois das seis horas, aproximando-se da sua porta com uma incontinente sensação de vitória. Sentia-se de certo modo profundamente animada pelo
sucesso, dando-se subitamente conta das limitações que tinha naquele campo aberto defronte de si, e tomada de medo pelo que aconteceria si não lhe tivesse aparecido
com tanta sorte aquela oportunidade de emprego.
Ao entrar em casa, encontrou no chão do hall uma carta que a esperava. "De Peter", pensou instintivamente. E um sorriso tremeu-lhe nos lábios ao inclinar-se para
apanhá-la.
Era de Peter, mas não era uma carta. Era um simples postal amarfanhado, enrugado, dobrado nos cantos, trazendo todos os sinais de uma escrita apressada e de uma
franquia subrrectícia. Um postal que dizia: "Tire-me daqui imediatamente". Não havia assinatura, apenas um borrão que
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poderia ter sido uma lágrima e aquelas palavras atrozes: "Tire-me daqui imediatamente".
Estupefata ela as repetiu alto e quedou-se ali imóvel, petrificada. Depois, foi para a sala e deixou-se cair numa cadeira. Que quereria isso dizer? Diversas explicações
atravessaram-lhe a mente. com um vago alarme viu o filho em algum horrível e desesperado apuro. Ou estaria apenas sentindo-se infeliz naquele novo cenário? E si
o estivessem maltratando, si os outros o atormentassem, lhe batessem? Aquele postal que segurava na mão caíra sobre ela com a inesperada e devastadora violência
de uma bomba.
E no entanto, aquela tranquilizadora bondade na voz do Irmão William; aqueles olhos escuros e compassivos do Irmão Aloysius; a discreta dignidade do prospecto verde
e dourado... Lucy não podia duvidar, com razão, de tão evidentes sinais de integridade.
Por tudo isso, passou uma noite horrível, irritada pela " própria incerteza dos seus temores. Exasperava-a aquele inesperado acontecimento, na ocasião em que imaginava
que havia arranjado perfeitamente o futuro, inclusive o pagamento daquele primeiro trimestre. Era um assunto que requeria sua atenção. Tinha ímpetos de correr para
Laughtown no dia seguinte; contudo, não podia permitir-se fazê-lo. A impossibilidade de deixar o trabalho no ponto em que estava, e a fraqueza manifesta que esse
passo significaria, eram fatores que a obrigavam a contemporizar. E para ela, contemporizar não era fácil. Mas, apesar de ter sido uma noite péssima, de sono interrompido
e inquieto, levantou-se cedo e escreveu uma carta ao filho, avisando-o de que ia vê-lo no próximo sábado, que era meio feriado. Durante o resto da semana, pretendeu
lutar contra o mal-estar que a invadia, reprimindo firmemente a vontade que tinha de correr até onde estava Peter. Mas no sábado, no momento em. que pôde deixar
o escritório, apressou-se em direção à estação Central e tomou o trem de 1 e 15 para Laughtown.
Durante a viagem, pensava no que diria o irmão William ao vê-la apresentar-se assim, ao cabo de uma semana, e pedir para ver novamente o filho. Mas não encontrou
o irmão William; e nesse fato, talvez, estivesse a maior manifestação de sua prudência. Si bem que lhe abrisse a porta o mesmo criado, o irmão William não lhe apareceu
para recebê-la com aquelas libações hospitaleiras de vinho e bolos. Em vez dele, depois de alguns momentos, veiu Peter que, com um rosto pálido e triste de lua;
doente, prorrompeu em lágrimas ao
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revê-la. As lágrimas eram atrozes e misturavam-se a lamentações nas quais ele implorava que ela o tirasse do colégio. Lucy olhava para o filho com os olhos brilhantes
com uma estranha incredulidade para aquele desgosto.
- Que tem você, Peter? perguntou rapidamente.
- Estou com saudades de casa... estou com saudades de casa... repetia ele.
Tomando-lhe o rosto nas mãos, Lucy fê-lo olhar para ela.
- Todos tratam você bem, aqui? indagou com firmeza.
- Tratam sim, soluçou ele, tratam-me muito bem. São bons, muito bons. O Irmão Aloysius me beija todas as noites, são todos muito bons para mim.
Uma grande luta travou-se dentro de Lucy. Via claramente a futilidade do desgosto de Peter, adivinhava a causa mesquinha que a havia atraído ali. Era muito mal feito,
aquilo, da parte de Peter. Contudo, estava profundamente comovida por aquela dependência que ele estava manifestando.
Teve um desejo quasi invencível de abandonar sua pretensa severidade e beijar muito aquele rostinho molhado de lágrimas, de apertar contra o peito aquele corpinho
sacudido de soluços; não o faria, porém. Em vez disso, dominou-se e ergueu-se. "
- Venha comigo, disse alegremente, estendendo-lhe a mão enluvada.
Ele a tomou imediatamente, porém, si mantinha alguma ilusão de partida imediata, esta foi completamente afastada quando Lucy acrescentou carinhosamente:
- Vamos sair um pouco para dar um passeio.
Peter acompanhou-a molemente pelo corredor, onde, apesar de se ouvir o murmúrio de muitas vozes que emanava de várias classes, não encontravam vivalma. Lucy desejava
perguntar si podia levar o filho a passeio, mas como não aparecesse ninguém, abriu ela própria a porta da frente e saiu para a rua, a passos rápidos. Peter, insensivelmente,
perdia o abatimento à medida que suas pernas trabalhavam.
Lucy queria dar tempo ao seu desgosto para dissipar-se, e quando já haviam tomado uma estrada que deveria conduzir a outro bairro, olhou de soslaio para ele. Sim!
Peter já havia deixado de chorar.
- Um menino grande como você, disse ela por fim, pondo os olhos-no vãmente na estrada. Isso me surpreende muito! - Achava, agora, que era chegado o momento de tratar
do assunto.
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- Eu fiquei triste, mamãe! explicou ele. Comecei a chorar não sei por que e não pude parar. Então os meninos disseram que eu estava com saudades de casa. Você vai
me levar, não vai, mamãe?
Evidentemente, ele não encontrava a menor dificuldade que pudesse impedi-la de tirá-lo do colégio, mergulhando-a novamente no impasse de que haviam saído tão recentemente.
- Você gosta dos outros meninos? perguntou ela abruptamente.
- Gosto. Eles são bons, admitiu Peter. Um deles tem ataques. Cai no chão e espuma. Há os espanhóis que têm um cheiro exquisito, e alguns usam botinas amarelas de
ponta fina. Joga-se handbáll.
- Você também joga?
- Eu não quero jogar, mas o Irmão John Jacob me pediu para jogar também. Gosto mais de brincar de gude.
- O Irmão John Jacob! repetiu ela. Lembrou-se de que era ele o amigo de Joej e ao seu espírito acudiu a frase do folheto: " Os Irmãos confraternizam com as crianças
e tomam parte em seus esportes e recreações". Haviam pois procurado distrair Peter do seu desgosto, com aquele jogo infantil.
?- Mas os outros meninos? insistiu. Você já tem bons amigos entre eles?
- Tenho, respondeu Peter moroso. Há um menino grande chamado Ramford, que é muito bom. Faz pantomimas e tudo o que quer. Pediu-me que fosse seu favorito.
- Favorito? exclamou Lucy; que quer dizer isso?
- Não é nada, explicou ele. É só dizer que se é favorito e pronto. Todos os meninos grandes têm favoritos. É um costume, no colégio; quando se é favorito de um menino,
pode-se ter um pedação de bolo dele para o chá.
- O Irmão William sabe disso?
- Sabe sim. Ele sabe de tudo.
Durante algum tempo Lucy olhou para o filho em silêncio.
- Veja só! protestou Peter continuando, tem-se que ir à igreja todas as manhãs; não é ruim isso ? E as lições que a gente tem de dar ? Ensina-se tanta coisa, aqui!
A testa de Lucy desanuviava-se lentamente. Começava a perceber a estranheza da presente situação do filho.
- Está muito bem! exclamou ela. Vamos ter uma conversa grande sobre isso, agora. 171
- Sim, mamãe, consentiu ele a contra-gosto, mas depois você me leva para casa.
Lucy olhou em torno procurando um lugar onde se pudesse sentar para discutir e esclarecer aquele assunto. À sua esquerda, discerniu a aprazível entrada do pequeno
cemitério da cidade. Entrou com Peter pelo pequeno portão de ferro batido. A incongruência da situação não lhes ocorreu, enquanto ambos, preocupados com seus pensamentos
íntimos, sentavam-se debaixo de um teixo que ensombreava uma gran de pedra tumular.
- Sabe de uma coisa, Peter... começou Lucy.
Era, porém, difícil explicar-lhe tudo. Como poderia ele compreender que com mais uma semana todos os sintomas da sua nostalgia se teriam dissipado? Sim. Era difícil
impor sua vontade e experiência a essa sensitiva e desconfiada criaturinha. Esforçou-se para isso, contudo, e falou-lhe primeiro de um modo persuasivo, depois com
firmeza. As lágrimas de Peter tornaram a correr e seus soluços rasgaram o ar fúnebre do tão adequado cemitério. As campas exalavam uma simpatia melancólica, o teixo
ondulava suavemente, como em aprovação. Os olhos de Lucy estavam úmidos e, apesar disso, um fluxo de impaciência corria em seu íntimo. Era demasiado ridícula aquela
cena que ele fazia, causando uma enorme perturbação sem causa alguma, esquecendo a imensa afeição que ela lhe dedicava... e, além disso, ele perdera o lenço.
- Não adianta chorar, querido, disse ela terminantemente, enquanto lhe estendia seu próprio lenço. Você tem que se habituar com isso.
Peter enxugou os olhos e olhou por longo tempo em frente de si.
- Está bem! si você diz isso, acho que é mesmo assim.
- Esplêndido! exclamou Lucy triunfante. Você é um menino valente!
Peter endireitou-se. Parecia que estava pensando em alguma coisa.
- Alguns meninos têm conservas, vidros de molho e coisas, disse por fim, e eu não tenho.
- Você quer ter isso? perguntou ela rapidamente, agarrando de boa vontade esse novo assunto.
com um beijo ainda um pouco puxado, ele respondeu com a cabeça.
- Então vamos! convidou Lucy alegremente. Vamos para as lojas da cidade.
Peter ergueu-se e saíram ambos do cemitério.
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Lucy contava outra vitória, e tudo isso sem o ter estragado com mimos.
Ao chegarem à cidade, um ténue bom humor começou a difundir-se nele à medida que Lucy lhe comprava um vidro de pickles, outro de molho de tomate - os meninos costumavam
espalhá-lo sobre o pão na hora do chá, informou ele alguns potes de pasta de camarão, uma lata de biscoito, e uma libra de balas de aniz. O bom humor de Peter restabeleceu-se.
Passearam os dois, de mãos dadas, pela margem do rio, e depois tomaram chá numa pequena pastelaria, onde ela o deixou fartar-se de doces. Por vezes, interrompendo
sua gulodice, ele olhava para ela, meio indeciso.
- Veja bem, Peter, avisava-o ela, não vá recomeçar!
Quando novamente o levou até as grades do colégio onde não quis entrar por uma questão de delicadeza, disse-lhe firmemente :
- Você tem que trabalhar muito para vencer. Depois será um homem famoso,, cheio de dinheiro.
Peter assentiu com a cabeça, submisso, e ficou de pé, no portão ?- uma pequena e indescritivelmente patética imagem.
- agitando a mãozinha, quando ela, de longe, se voltava.
JAVIA três meses que Lucy trabalhava e o resultado disso, era uma confortável convicção de se haver estabelecido. Em algumas semanas, para falar com franqueza, sua
comissão era lamentavelmente pequena, porém, em outras, ganhava às vezes três libras. Além disso, com economia e engenho, punha de parte um pouco da soma que a firma
lhe fornecia para despesas. Havia momentos em que um golpe de sorte a fazia julgar extraordinário o seu êxito.
Peter, agora, ia progredindo no colégio, esquecendo completamente aquele abatimento inicial. Suas cartas oficiais, que ela recebia todas as semanas, eram monumentos
de composição, de rebuscado estilo traçado a tinta violeta. Havia-se adiantado na sua classe - isto ela já esperava - e dizia-se que ia ser admitido na banda do
colégio. O coração de Lucy alegrava-se com esses ingénuos boletins.
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Quanto ao físico, Lucy achava-se forte, convencida da sua energia e saúde, que os movimentos vários, que tinha a cunprir durante o dia, intensificavam.
Havia pouco tempo para pensar, mesmo assim, confessava a si própria que a dor de ter perdido o marido abrandava aos poucos. Apesar disso, nesses momentos, empolgava-a
uma saudade súbita da companhia de Frank, No trágico momento da morte do esposo, Lucy pensara que a sua própria vida havia terminado,- e eis que ele já começava
a assumir a condição de uma memória idealizada, seus defeitos esquecidos, suas virtudes ampliadas, e apenas obscuramente percebido naquela espécie de crepúsculo
que agora o envolvia. Resolvera não permitir a si própria mergulhar-se em reflexões a respeito da maneira pela qual morrera Frank. Isso, a princípio, quase a tornara
louca. Agora, porém, Lucy não queria mais pensar nisso. Nem pensaria em Anna. Havia expulsado Anna do seu espírito, de um modo formal, irrevogável.
Às vezes, interiorizava-se e procurava relembrar o rosto de Frank, fechando os olhos e esforçando-se por vê-lo, como si ele estivesse em sua frente, naquele momento.
Via, porém, com melancolia, que isso estava acima das suas forças. Via o rosto de Frank, mas não como um verdadeiro rosto; via-o longínquo, luminoso, intangível.
Apenas um detalhe avultava com vívida intensidade: aquelas mãos rígidas, e cerosas, como haviam sido cruzadas sobre o peito, dentro do esquife. Viu essas mãos muitas
vezes, até que elas se tornaram quase um símbolo da sua memória.
Não era, porém, infeliz, e sua confiança era espantosa.
Miss Hocking ultimamente se tornava cada vez mais cordial para com ela e várias vezes Lucy, para visitá-la, subira a colina até sua casa para passar a tarde em sua
companhia, ouvi-la tocar, e até tocar um pouquinho, ela própria, no sonoro piano alemão, cujo profundo som era tão diferente do som metálico do instrumento que possuía
em casa.
Apenas um pensamento perturbava sua quietude. Joe não lhe fizera ainda aquela prometida visita, e esse fato causava-lhe uma certa inquietação. Chegara-lhe a conta
do funeral, que perfazia a avultada soma de quarenta libras; além disso, recebera a conta da florista, que era muito grande; porém, Joe insistira em pagá-la também.
Por uma questão de ordem - não falando já de honestidade - Lucy pagava sempre imediatamente suas contas, de modo que aquelas dívidas acumuladas a constrangiam. Havia
mais, a pagar, o
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novo trimestre do colégio de Peter, que se aproximava rapidamente. Naturalmente isso nada queria dizer! Si bem que ela achasse Joe pouco apressado, não lhe faltava
confiança nele.
Tivesse ela duvidado dele, a sua confiança se teria restabelecido certamente com a chegada de ,um presente, estranho, talvez, mas nem por isso rico e generoso.
Uma bela tarde, à hora misteriosa do crepúsculo, três grandes caixotes de vários tamanhos chegaram num carro. Imediatamente Lucy disse ao carregador que não seria
para ela aquela encomenda, porém ele lhe respondera que vinha tudo de Levenford e que era enviado por Joe Moore, o Grande Joe Moore da Taverna .Shamarock e do Green
Football Club, conhecido por todo mundo e para quem. ele costumava transportar compras do mercado de Glasgow.
Quando o homem partiu, Lucy olhou com surpresa para os agressivos caixotes que destoavam da ordenada simetria do seu pequeno hall. Usando o atiçador que vergava
aos seus vigorosos mas inábeis golpes, conseguiu afinal abri-los.
Palha e papel espalharam-se sobre o imaculado linóleo e o conteúdo dos caixotes apareceu. O primeiro continha um, presunto de Belfast, enorme e escuro como um quarto
de cavalo; o segundo, uma dúzia de garrafas escuras com o letreiro Boyal Ruby Pot Wine; o terceiro, enfim, regorgitava de bananas. Não apenas uma (penca, mas um
cacho inteiro de bananas das Canárias, amarelas e aromáticas na sua madureza. Que iria ela fazer de tantas bananas? Algumas já começavam a apodrecer nas extremidades.
A visão desse estranho sortimento de comidas e bebidas assarapantou-a. .Depois, a boa intenção e liberalidade que o presente provava, começaram pouco a pouco a calar-lhe
no espírito.
Contudo, as bananas tornaram-se um pesadelo. Lucy enviou a Peter algumas das melhores, porém, à medida que os dias se passavam, seus esforços para lutar contra o
rápido progresso do a podrecimento dos frutos tornavam-se frenéticos. Era como uma desesperada corrida. Por mais bananas que comesse, não conseguia aproveitar todas
as que se tornavam passadas. E quanto mais comia, mais surgiam bananas naquele enorme e inesgotável talo verde. O espírito de economia de Lucy arrepiava-se com tudo
aquilo, mas a luta era inglória e ela chegou a adoecer por comer bananas em. excesso.
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O clímax foi atingido quando Miss Hocking, com brandura, porém com firmeza, recusou a terceira penca dos inesgotáveis frutos.
O presunto, também, tornou-se uma fonte de positiva exasperação. Lucy começou a gastá-lo frequentemente ao almoço, com o chá muitas vezes. Cedo, todavia, a repetição
do prato embotou-lhe o prazer que tinha em comê-lo. Enjoou-a, como ao marinheiro enjoa o porco salgado em viagem. O cheiro do presunto frio não deixava mais a casa:
agarrou-se às cortinas como si fosse mofo. Perseguia-a! Ela era obrigada a se erguer durante a noite para matar a sede que lhe dava aquele constante gosto salgado
em sua boca.
Aquele presunto passou a ser um esqueleto escondido no armário da cozinha.
. Quanto ao vinho do Porto, permanecia intacto, enfileirado em uma prateleira, inútil, hostil, quase sinistro.
Lucy concordou consigo mesma que o presente não fora um extraordinário sucesso. Contudo, não deixava dúvidas sobre a generosidade de Joe. refeição apetitosa.
Por isso, pôs-se a aguardar cheia de esperanças a vinda de Joe para pôr suas finanças em ordem. Lá para o fim de novembro, recebeu um postal que era o habitual meio
de comunicação de Joe, dizendo que iria tomar chá com ela no dia seguinte. Cheia de satisfação, começou a traçar seus planos. Fazia uma ideia justa do apetite do
cunhado e sabia arrumando elegantemente louça e talheres e cozinhando uma o que poderia ser a sua concepção sobre o que costuma chamarse vulgarmente "um chá". Além
disso, Lucy tinha motivos para procurar agradá-lo. Voltou cedo para casa e começou a arranjar tudo, forrando a mesa com a toalha mais engomada,
Quando já estava tudo pronto, atiçou o fogo na lareira da sala e ficou à espera. A luz das chamas iluminava-lhe o rosto. Lá fora escurecia, e um vento frio agitava
as árvores.
De repente, sua reverência foi interrompida por um longo e confiado puxão na campainha. Levantou-se imediatamente, ?atravessou o hall e abriu a porta.
VII - Eis-me aqui. disse Joe entrando, todo envolvido num enorme sobretudo e de chapéu jogado para trás. Toda sua presença respirava afabilidade.
Apertou a mão de Lucy, cujos dedos sumiram na sua pastosa manopla. Depois de alguma luta, libertou-se do
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casaco, pendurou-o no cabide com o chapéu, esfregou as mãos e avançou para a porta da sala.
- Vamos para cá, Lucy, convidou com um modo quase hospitaleiro.
Ela seguiu-o.
- Ah-a! fez Joe imediatamente, ha aqui um cheiro muito bom! e sentou-se defronte da lareira sorrindo para Lucy.
- É o cheiro do que estive cozinhando para você, disse ela sorrindo.
- Não diga! exclamou ele arregalando os olhos e dilatando apreciativamente as narinas; se eu soubesse que tal coisa me esperava, já teria vindo há mais tempo.
Subitamente as rugas alisaram-se-lhe no rosto, que se tornou instantaneamente sério. Sacudiu a cabeça e disse gravemente :
- Não, não, minha querida; eu estava apenas lhe dando o tempo de recuperar a calma e arranjar suas coisas. A verdade é que para mim também foi muito difícil conformar-me
com a morte do meu pobre irmão. - E sorrindo novamente:
- Agora você já se vai consolando, não é, Lucy!
- Creio que sim, respondeu ela séria.
- Esplêndido! Ah! Você pensa que eu não sei como é duro! Então eu não passei pela mesma coisa? Não sei o que é perder o parceiro ? Ai! quando minha Katie foi levada,
eu fiquei em pedaços! Somos humanos, não somos? Você disse que o chá estava pronto, não disse?
- Sim, acudiu ela, e vou dar-lhe a escolha: como não conheço bem seu gosto, preparei presunto com ovos, mas também há, si você preferir, costeletas fritas. Será
o que você quiser; ambos estão prontos na cozinha.
- Presunto com ovos ou costeletas, repetiu ele pensativo, projetando o espesso maxilar e esfregando-o com a palma da mão, o que produzia um som rascante. - Presunto
com ovos ou costeletas? O conjunto soa bem, assim como cheira. - E dando com os lábios um estalo que parecia um estalo de chicote: - Que me diz da bóia toda na mesa
para vermos o que se escolhe, você e eu?
- Muito boa ideia, aprovou ela. No seu desejo de agradá-lo, sentiu-se encantada com a generosidade da escolha e saiu imediatamente para servir a refeição. Quando
voltou, com uma grande bandeja sobre a qual fumegavam as iguarias, disse: - Sente-se imediatamente, para comer enquanto não esfria.
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- Sabe de uma coisa? exclamou Joe, sou um homem simples, estou tão habituado a comer a bóia sem. o paletó que não me sinto bem com ele. Você se incomoda que eu me
ponha à vontade, como faço em minha casa?
- Não, absolutamente! falou ela esforçando-se para apagar a sombra de esitaçãoo que revelara na voz. Não me incomodo. - Porém o insólito pedido sobressaltara-a,
quase.
Joe agradeceu com um gesto e tirou o casaco sentando-se depois em mangas de camisa. Lucy, do outro lado da mesa, olhava-o em silêncio. Era um fantástico espetáculo
para ela, aquele homem enorme, em mangas de camisa, comendo, à sua .mesa, depois de todas aquelas semanas de solidão. Nunca observara em ninguém tanto gosto, tanto
abandono, tão absoluta satisfação em cada bocado.
Ao cabo de longo tempo, finalmente, Joe terminou a refeição. Cruzou cuidadosamente a faca e o garfo sobre o prato, enguliu as últimas gotas da sua quarta chícara
de chá, enxugou o resto do molho, no prato que contivera as costeletas, com um pedaço de pão que empurrou suavemente na boca, e disse beatíficamente:
- Isso é a melhor coisa que se pode ter num mês todo de domingos, Lucy. Você é capaz de cozinhar minha irmã Polly dentro de um chapéu velho e o conjunto ficar gostoso.
Devíamos ter você lá na Taverna.
Seu olhar derretido olhava-a com um brilho convidativo; Lucy, porém, disse com firmeza:
- Você sabe, Joe, que minha vida agora já está resolvida.
- Naturalmente! você faz questão da sua independência, concordou ele amavelmente, mas poderia experimentar.
Seu olhar era o de um homem do mundo, de vistas largas, que nutria, contudo, alguma indulgência por um capricho que, estava certo, passaria.
Para mudar afavelmente de assunto, puxou do bolso o cachimbo e disse:
- Agora umas fumaças e uma gota de "dina mite" por-me-iam direitinho no caminho para Dublin.
A confusão estampou-se no rosto de Lucy. A despeito de ter preparado tudo cuidadosamente, esquecera uma coisa.
- Creio que não tenho nem uma gota de whisky em casa. Mas de repente seu olhar brilhou. - Mas em que é -que estou pensando? Tinha esquecido seu vinho do Porto.
Joe, porém, deteve-lhe o movimento para o armário dizendo:
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- Não! isso não é para mim. Isso é bebida para moças.
- Abanou a cabeça: - Para meu estômago, só mesmo bebidas de verdade.
Lucy, por aquelas palavras, sentiu que sua hospitalidade era deficiente. Finalmente, meio contrafeita, declarou:
- Tenho aqui em casa um pouco de aguardente deitada por... que eu comprei uma vez para Frank: você tomaria, um pouco?
- Tomaria e tomo! afirmou Joe jogando para o ar uma fumaça.
Quando Lucy voltou com a garrafa, ele a tomou de suas mãos.
?- Pobre rapaz! exclamou cheio de compaixão, entãor essa aguardente era dele! É "Três estrelas"! Sim senhor! É a melhor. Bem! Não adianta poupá-la. Frank nunca
mais tomará dela! Tem um copo aí? Pode ser mesmo dos grandes.
Quando se viu munido de um copo de aguardente, indicou-lhe a cadeira ao lado da sua e disse pelo canto da boca não ocupado com o cachimbo:
- Agora, minha querida, diga-me como vai rolando esse mundo para você?
- Bem. Já dei um avanço, respondeu Lucy imediatamente, sentando-se.
- Um avanço, hein? repetiu ele olhando-a jocosamente. E por quanto tempo continuará esse avanço ?
- Tanto quanto eu o queira, espero! Joe pôs-se a rir dando palmadas na perna.
- Você é engraçada, Lucy; a ideia de uma coisinha como você fazer essa espécie de trabalho é suficiente para,, fazer um gato morrer de riso. Lucy, para não mostrar
a indignação que essas palavras lhe haviam despertado e que podia revelar-se no rosto, inclinou-se para o cestinho de trabalhos de vime onde apanhou a manta cinza
que estava tricotando para Peter. Enquanto enrolava nos dedos o fio de lã para começar, disse:
- Para você, isso parece uma brincadeira.
- Você devia era tirar essas ideias de trabalho da cabeça, continuou ele indulgente. Por que não deixa o Grande Joe tomar conta de você?
Enquanto ele falava, passou na mente de Lucy a visão das contas ainda por pagar, que jaziam em seu escaninho da secretária, e pôs-se a desejar ardentemente que suas
pródigas
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expressões de generosidade assumissem uma forma mais concreta.
- Peter vai indo muito bem, aventurou, mudando propositadamente de assunto.
- Muito bem? Bem bom para o rapaz! - E quando ela pensava que ele ia enfim atacar o tópico dos compromissos que assumira, em vez disso Joe encheu novamente o copo,
largou uma olhadela ao trabalho de Lucy e disse maliciosamente: - Você quer me fazer um par disso, qualquer dia ?
Lucy forçou-se a sorrir sobre as agulhas brilhantes.
?- Certamente que farei. Posso lhe fazer meia dúzia, de pares.
Ele mostrou-se encantado:
- Preciso de muitas, mesmo porque suo nos pés e isso as enche de buracos.
Lucy corou vivamente àquela linguagem vulgar. Como eram diferentes os modos de Joe da reserva do seu marido ou da distinção de Edward! Procurou explicar:
- Isto é um cache-col que estou fazendo para Peter.
Ele, porém, não deu importância àquela explicação. A aguardente lhe estava percorrendo agradavelmente a circulação.
- Sabe que às vezes me sinto muito só? exclamou de repente. Sim, muito sói E não me incomodo de lhe dizer que isso é mau para um pedaço de homem como eu.
- Não está achando esta sala demasiado quente? replicou Lucy contrafeita, recuando a cadeira para longe do fogo.
Mas Joe lutava nesse momento com a dificuldade de exprimir seus pensamentos.
- Sei que você é uma encantadora mulherzinha, Lucy, disse ele olhando-a à socapa, meu pobre irmão teve "dedo" ao escolhê-la. Quisera ter tido tanta sorte quanto
ele, porém minha Katie - que Deus tenha - era um feixe de ossos. Agora,. foi-se Frank e minha Katie também se foi; e eis-nos aqui, você e eu, os dois.
Sob seu olhar, Lucy deixou escapar duas malhas e titubeou desajeitada ao apanhá-las.
- Tenho-lhe muita amizade, Lucy, Deus me ajude, mas tenho! Logo simpatizei com você quando a vi.
1- Muito obrigada, tartamudeou Lucy, é muita bondade sua.
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- Ah! temos tempo para isso, exclamou ele categórico, você nunca sente a necessidade de um homem aqui por casa, agora? Poderei vir muitas vezes por aqui para vê-la.
Lucy sentia-se terrivelmente mal sob aqueles olhares que Joe lhe atirava de soslaio; contudo, ainda não apanhara bem sua significação, por achar incrível aquilo
que procuravam insinuar. Conservou-se em rígido silêncio, que ele, no humor em que se achava, tomou como sendo propício. Apesar de estar resolvido a usar de cautela,
Joe encontrava-se agora cheio de carne e álcool e dominado por um desejo bestial. Sentia-a em sua dependência; a vista daquela mimosa figura próxima a ele. iluminada
pelas chamas do fogo e do seu desejo, incitava-o. Lucy estava meio ofegante, um ritmo apressado ondulando-lhe o peito. Joe sentiu a boca seca, enquanto se inclinava
para a frente e punha-lhe a mão sobre o joelho.
- Afinal, somos humanos, não somos, Lucy? disse com voz pastosa. Você e eu podíamos ser bons um para o outro.
O contacto da mão dele, mais ainda que as suas palavras, inspirou-lhe uma súbita repulsa. A pele de Lucy arrepiou-se, enquanto um calafrio lhe perpassava ao longo
da espinha. O trabalho que tinha no regaço rolou para o chão.
- Que pretende você! exclamou ela. - Quis empurrar a mão dele com a sua, mas ele agarrou-a. Libertando o pulso num arranco, ela se ergueu, pálida como uma morta.
- De que é que está fugindo? perguntou ele pondo-se em pé, meio inseguro.
- Não se aproxime! gritou ela, feroz.
- Não fique nervosa! disse ele com a língua espessa, procurando sorrir-lhe de um modo insinuante; porém o sorriso fez-se fixo como uma careta enquanto se aproximava
dela. - Eu tomo conta de você, minha querida.
Lucy recuou até ir de encontro à mesa e sua mão encontrou o copo vazio em que ele bebera. com um ódio frio, ela o agarrou e enfrentou Joe em silêncio.
Ele agora estava muito próximo e ela podia ver as pequenas gotas de suor em sua testa. Sentia fraquejarem-lhe as pernas, sentia-se entretanto doente de raiva e desgosto.
- Que é que você pretende? disse ela novamente, com os dentes cerrados.
- Ah! não seja assim! articulou Joe, sempre gostei de você. Podíamos nos entender muito bem e ninguém precisaria saber...
Aí hesitou:
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Ela lhe deitou um olhar gelado, depois uma raiva terrível dominou-a. com toda a força que tinha, recuou o braço e deu-lhe no rosto com o copo que se despedaçou contra
os dentes de Joe. Sentiu uma alegria feroz ao ouvir o ruido que fez o vidro ao partir-se.
Estupefacto e repentinamente sério, Joe ergueu uma desajeitada mão à boca em sangue. A mão dela também começou a sangrar, apesar de Lucy não sentir a menor dor.
Então, a vida tornou-lhe ao corpo rígido e ela, voltando-se com um movimento vivo, atravessou a sala; num momento atingiu a porta da frente, que abriu de golpe.
Ficou de pé, no limiar do hall iluminado, tremendo ao ar frio, os olhos brilhantes cheios de um fulgor de amargo ódio. Esperou por um momento que lhe pareceu interminável.
Depois ouviu um passo lento no hall, e viu Joe ipôr a capa e o chapéu e sair vagarosamente. Ao passar por ela, olhou-a. O lenço que ele comprimia sobre a boca, ocultava-lhe
quase as feições, porém a mortificação transbordava-lhe dos pequenos olhos.
- Não era preciso você fazer isso, balbuciou através das dobras do lenço. Você podia dizer o que tinha a dizer sem fazer uma coisa destas.
Agora ela sabia que não havia mais motivo para alarme, mas subitamente pôs-se a odiar aquela estúpida e grosseira face.
- É tudo o que tem a dizer? perguntou friamente.
- Eu não queria fazer coisa alguma, gaguejou ele. Lucy fixou-o em silêncio; depois, articulando distintamente cada palavra, falou:
- Porque eu nada mais tenho a lhe dizer.
Joe olhou-a por algum tempo; depois seus olhos se encheram de lágrimas e, sem uma palavra, voltou-se e desceu pesadamente o caminho.
Então, Lucy entrou no hall, bateu com a porta, aferrolhou-a e, por uns momentos, encostou-se nela, tomada de fraqueza. Sentia-se terrivelmente enjoada, fisicamente
enferma. O inesperado, o choque, o ultraje daquela atitude de Joe enchiam-na de asco. Sentia-se incapaz até mesmo de derramar lágrimas.
Entrou na sala cheia de fumo e abriu a janela, deixando o ar da noite entrar às golfadas, banhando sua figura imóvel. Seus grandes olhos escuros fixavam o negrume
da noite. Depois, voltou-se e seus olhos que pareciam mais escuros por haverem absorvido a escuridão exterior, caíram sobre a mesa ainda juncada dos restos daquilo
que ela preparara tão
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cuidadosamente para o cunhado. Essa vista encheu-a de vergonha. Seu lábio encrespou-se de nojo à lembrança do modo pelo qual ele havia comido. O irmão de Frank!
Frank tinha razão nas reservas que lhe fizera!
Subitamente a vida pareceu-lhe vazia de virtude.
Encolheu-se perto do fogo e, por longo tempo, fixou as chamas agonizantes. De repente estremeceu. Fechou a janela, subiu e foi para a cama. Não, todavia, para dormir.
Quando enfim ia conciliar o sono, ergueu-se estremecendo. Lembrava-se repentinamente das consequências quase vitais que adviriam daquele irreparável rompimento com
Joe.
- -"
No dia seguinte Lucy pagou todas as contas que devia, aquelas contas pelas quais Joe se responsabilizara e que de fato havia ampliado com largueza. Moralmente ela
não se julgava responsável por essas contas, senão tê-las-ia pago há muito tempo. Agora, porém, orgulhosamente, com amarga alegria, saldara-as todas.
Em consequência disso viu-se com um capital inferior a quarenta libras. Não estava contudo disposta a demorar o pensamento nesse problema. As sórdidas considerações
sobre o dinheiro não pesavam absolutamente na balança do seu orgulho ultrajado.
De algum modo, o pagamento daquelas contas aliviou-a. Sentia-se desafrontada. Mesmo assim, às vezes interrompia o trabalho, golpeada subitamente pela memória daquela
horrível cena. De noite, frequentemente, revolvia-se no leito, presa de febril indignação. Ao cabo de uma dessas noites tomou uma resolução de informar Edward das
circunstâncias da conduta de Joe. Sentou-se e, com os lábios comprimidos pela cólera, escreveu rapidamente uma carta cheia de amargo ressentimento. Rasgou, porém,
essa carta lentamente e jogou seus fragmentos nas chamas da lareira. Não. Não se amesquinharia. O silêncio era uma arma mais cortante.
Contudo, apesar da sua altivez, havia momentos em que se sentia ferida no coração. Sua vida arrastou-se durante a semana, e ao regressar à casa no sábado seguinte,
sentia-se fatigada e deprimida. Ao desembarcar na plataforma de Ardfillan, encontrou Miss Hocking em pé como uma estátua,
com seu costume cortado por alfaiate, indiferente ao borborinho da estação. A inesperada vista de alguém à sua espera fez o rosto de Lucy alegrar-se e encher-se
de uma súbita animação. com evidente prazer exclamou:
- Será possível que tenha vindo me esperar?
Miss Hocking agitou gravemente a cabeça e, em tom impressionante, disse:
- - Venha! - depois, intensificando seu ar de mistério, acrescentou: - Comigo.
Lucy riu gostosamente. Era a primeira vez que ria depois de muitos dias.
- Trata-se então de um sequestro? perguntou rindo ainda.
- Talvez! respondeu a outra com seriedade. Sabia conservar-se séria no meio da jocosidade. Quanto ao seu riso, costumava chegar inesperadamente e muitas vezes exatamente
quando a situação pedia a maior gravidade.
- Mas o que há? insistiu Lucy alegremente.
Que coisa agradável, pensou, ser assim esperada por essa elegante e cordial criatura!
- Vamos ao Allen, declarou a outra sentenciosamente. O restaurante Allen não era um restaurante ordinário.
Era um lugar em moda famoso mesmo. Muito diferente da modesta casa de chá onde Lucy costumava tomar seu lunch em Ardfillan. O Allen era ornado de palmeiras, forrado
de tapetes, servido por moças, tinha direção distinta e preços altos. A época das orquestras ainda não chegara, sinão o AHen teria, certamente, explorado Mendelssohn
como atração.
Miss Hocking sabia entrar nos estabelecimentos dessa categoria, e Lucy, acompanhando seu majestoso passo, viu-se guiada a uma encantadora mesa com dois lugares,
ao lado da janela e sob a copada fronde de uma palmeira.
Miss Hocking, sentando-se, descalçou as luvas e olhou sobranceiramente em torno. Imediatamente surgiu uma garçonette e ela, sem parecer se aperceber da sua presença,
foi declarando que queriam isso e mais aquilo. Seu indicador, elegantemente curvado, navegava garbosamente através das latitudes francesas do menu. Sim. Era agradável,
pensou outra vez Lucy, ser-se tratada assim! Muito confortador para uma criaturinha que ultimamente vinha sendo tão maltratada pela fatalidade.
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- É muito gentil da sua parte ter-me convidado, disse ela suavemente.
- Um pequeno banquete para ambas, respondeu a outra com gentileza bastante para mostrar sua satisfação. Vez por outra faço isso. Dick toma conta de Fairy e eu saio.
Lucy, partindo o pão, imaginou que Dick devia ser uma. abreviação de Missis Dickens, a governante de Miss Hocking. Fairy com certeza era o gordo fox-terrier. A sopa,
depois de algumas colheres, foi julgada por Lucy verdadeiramente divina. Depois da sopa, vieram aspargos em molho de manteiga que se desfaziam deliciosamente na
boca.
- Essa torrada não está dourada, garçonete! disse de súbito Miss Hocking com enfado.
Lucy estremeceu. Uma gotinha de manteiga rolou-lhe pelo queixo abaixo. Até ali divertira-se extraordinariamente e agora temia que algum desgosto pudesse destruir
a harmonia do momento. Frank discutira, em vida, com garçons em estabelecimentos inferiores àquele. Mas aquela garçonette era. tão obsequiosa!
- Trarei imediatamente outras para madame. - E num momento foram trazidas torradas frescas.
- Deve-se proceder assim de vez em quando, observou Miss Hocking com um pequeno riso, depois que a moça se afastou. Gostarão mais de você si você as maltratar umpouco.
- Eu não ousaria, respondeu Lucy.
Os pratos foram destramente removidos e um maravilhoso merengue - suprema novidade - foi servido.
Lucy gostava de doces, e aquilo excedia todas as expectativas. Edward teria tachado aquele de "delicioso"!
Quando a refeição, afinal, terminou, Miss Hocking olhou para seu belo reloginho:
- Deus do céu! Si não andarmos depressa vai ficar tarde.
- Tarde! ecoou Lucy alargando um pouco os olhos ,e afastando a chícara de café. Sua companheira, porém, estava pagando a conta e deixando generosamente um shilling
de gorgeta.
Na rua, um chuvisco fino começara a cair de um céu encoberto.
- Que pena! lamentou Lucy, poderíamos dar um passeio.
Voltar para casa, parecia triste depois de um tal banquete; porém a sombra de um sorriso perpassou pelas feições; móveis de miss Hocking.
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- Está exatamente um dia ótimo para um concerto, afirmou ela com um ar de quem arranjara aquele tempo e todo o universo; e acontece que há um recital no Victoria
Hall. - Essa última palavra foi proferida em voz vibrante.
Lucy nada disse. Havia esgotado os superlativos. Sabia que se ia realizar esse concerto, um recital de Lehmann em vespejfal. Havia lido os cartazes e sentira um
vivo desejo de ouví-lo; apenas sua situação e o luto recente haviam-lhe varrido da mente esse desejo. E eis que Miss Hocking tudo arranjara e sancionara levando-a
assim! Por virtude dos dois bilhetes amarelos na enluvada mão de Miss Hocking, foram ambas escoltadas até às melhores cadeiras da primeira fila do salão. Em torno
elevava-se o murmúrio abafado da culta e seleta plateia, murmúrio esse que soava gratamente aos ouvidos de uma mulher que fizera uma refeição no Allen e que tinha
uma inclinação natural para a sociedade refinada.
- É sua última audição, ouvi dizer! comentou Miss Hocking alto para Lucy, como para aumentar o interesse. Lehmann, já nessa época, havia inaugurado aqueles seus
recitais de despedida que deveriam continuar dramaticamente durante trinta anos mais.
- A última! murmurou Lucy fundamente impressionada. E associou-se aos aplausos que se fizeram ouvir no momento em que o pianista adiantou-se até a plataforma inclinando-se
rigidamente, com uma curta mão branca na altura dos últimos botões do longo casaco. Era um homem alto e forte, com um rosto chato e pálido, em torno do qual algumas
mechas de um cabelo frouxo formavam um halo. Seus gestos eram abruptos, quase staccato. Afastando as abas do casaco sentou-se em frente ao piano com uma precisão
militar. Depois, enquanto ecoavam ainda as palmas mais prolongadas, olhou vagarosamente em torno. Subitamente deitou a cabeça para trás e, como que invocando a inspiração
do lustre suspenso no teto, começou a tocar.
Era Chopin; seus possantes dedos agitaram-se com incrível suavidade através da Polonaise em lá menor, enquanto Lucy paralisava a respiração. Conservou-se suspensa
durante toda a primeira parte do programa.
- Um verdadeiro tour de force, disse calmamente Miss Hocking no intervalo, pondo-se de pé e olhando em torno de si.
Lucy suspirou- voltando à realidade, os olhos ainda cheios de ardor:
- Foi maravilhoso! exclamou. Não. entendo tanto quanto você, mas... foi empolgante!
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- Muita técnica, murmurou a outra, observando através do binóculo o artista, que nesse momento se inclinava para agradecer os reiterados aplausos. - Dizem que ele
estuda durante seis horas todos os dias. Muita técnica. - E batendo com os dedos de uma das mãos na outra, evidenciou sua aprovação, unindo-se à assistência que,
despertando da
carrancuda atitude em que se conservara, removia os olhos das divagações pelo infinito, levantava a cabeça mergulhada nas mãos em abismal contemplação e aplaudia
resolutamente...
-, Bravo! Bravíssimo! gritavam alguns admiradores mais entusiastas. Lemann se havia mostrado à plateia que, agora, exibia seu gosto, sua intelectualidade, sua compreensão
do génio. Ardfillan era uma cidade culta. Quase cosmopolita em sua afeição pelas artes.
A sensação de Lucy, porém, era instintiva, legítima e sincera. Quando começou a segunda parte do programa, fechou os olhos abstraindo-se de tudo que não fossem as
agitadas ondas sonoras que agora a rodeavam. Era como si estivesse isolada, fora do mundo.
Quando abriu os olhos, num sobressalto, quase alarmada, o recital terminara.
- Pensei que estivesse dormindo, observou Miss Hocking com um risinho. Creio que a ouvi ressonar.
- Oh! não! protestou Lucy, estava encantada, realmente encantada. Era como... si eu desejasse atingir uma coisa sem poder conseguí-lo.
Em caminho mantiveram-se silenciosas. Já não chovia. Algumas estrelas marcavam o céu de pontinhos de luz.
- Não sei como lhe agradeça, disse Lucy por fim meio contrafeita. Essa tarde significou tanta coisa para mim!
- Não há nada que agradecer, respondeu Miss Hocking, tomando o braço de Lucy, e espero que nos vejamos mais vezes, agora. Além disso... - fez uma dramática pausa,
- fui buscá-la hoje especialmente para lhe falar.
- Sobre que?
- Sabe? tornou Miss Hocking, nós somos como duas nozes vivendo em cascas diferentes.
Lucy sorriu e comentou :
- Estou procurando perceber o que quer dizer com isso.
- Quero dizer isto, minha querida: nós ambas somos sós; eu a aprecio muito: por que não vem você para cá, partilhar comigo do meu apartamento?
Houve uma pausa, depois da qual Lucy falou:
- Não! Não sei! Custar-me-ia deixar minha casa.
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- Mas, minha querida, tornou Miss Hocking, ela lhe é inútil. Você passa o dia inteiro fora; seu pequeno escocês está no colégio, durante as férias ficará conosco
e nós procuraremos distraí-lo. Além disso, desculpe-me, porém acho que... - e ajuntou com grande tacto - talvez menos despesas pudessem...
- É, muita, muita bondade sua fazer-me essa oferta, mas eu não creio que a possa aceitar.
- Que tolice! Gostaria tanto de tê-la em casa. - Quando um desejo despertava em Miss Hocking, ela o perseguia alegremente com a impetuosa vivacidade com que uma
criança caça uma borboleta. - Ah! Prometa-me que vem. Diga que virá! Sim! diga por favor que aceita.
- Bem! Eu.. . eu vou pensar nisso, disse Lucy evasivamente.
Não era do seu feitio ser evasiva, porém gostava de Miss Hocking, e agora, sobretudo, nem podia pensar em feri-la com uma recusa formal.
- Além disso, Fairy também quer você lá. - Miss Hocking avançou isso como um argumento sério. ?- Só gosta de pessoas realmente distintas, o querido anjo!
Novamente Lucy sorriu do entusiasmo da outra. O fato era que muitas vezes estivera cogitando a respeito de sua solidão, principalmente naqueles momentos da noite
em que a casa parecia insuportavelmente vazia e quando suas responsabilidades lhe pareciam como um fardo muito pesado para os seus frágeis ombros. A questão económica
era também importante. Gostava de Miss Hbcking e sabia que era uma verdadeira dama, já tendo apreciado, além disso, manifestações da sua extrema bondade. Sabia que
era um pouco excêntrica, sonhadora, efusiva, cheia de um coquetismo romântico, um misto de dignidade e jovialidade, com maneiras francas e impenetráveis, que pareciam
a um tempo oferecer e ocultar. Lucy admitia que ela fosse excêntrica, mas não desgostava dela.
- Tivemos uma tarde muito agradável, disse Miss Hocking ao chegarem ao ponto onde se deviam separar. Lembre-se do que lhe propus.
- Sim, prometo pensar nisso, respondeu Lucy sorrindo, e mais uma vez obrigada por sua gentileza. ?
Separaram-se afetuosamente e puseram-se a caminho das suas respectivas cascas de noz.
Realmente Lucy pensou naquela proposta, apesar de não decidir coisa alguma; dez dias, porém, depois de ter sido
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inicialmente feita - e havia sido repetida com frequência, desde então - ocorreu um incidente que a influenciou fortemente a tomar uma decisão.
Foi uma visita de Polly. Esta chegou uma bela tarde, transpirando, um pouco ofegante por causa dos degraus, toda metida em boas roupas: o casaco de peles, o chapéu
de plumas, o pesado colar de azeviche; apesar disso tudo, entretanto, estava desalinhada como uma peixeira e bastante nervosa sob a sua afabilidade.
Lucy recebeu-a friamente. Polly nada fizera. Ela não era Joe. Pertencia, contudo, ao campo inimigo e achava-se ali tão claramente a pedido do irmão para ver "como
iam as coisas", que seus esforços para ser sutil ficavam-lhe tão cómicos quanto seus atavios.
- O "patrão" estava preocupado com sua saúde, disse ela depois de uma conversa preliminar. Nos momentos de maior finura, chamava Joe "o patrão".
- Ah! fez Lucy sem se comprometer.
- Tem visto Ned, ultimamente! - Ned era como ela chamava o reverendo Edward Moore.
- Não, replicou Lucy friamente.
Polly pareceu aliviada a estas palavras. Lucy não podia aquilatar si ela sabia de tudo. Via, porém, que sabia de alguma coisa, e era indubitavelmente uma emissária
que vinha negociar a reconciliação e restaurar a reputação abalada de Joe. Só ele mesmo teria essa ideia de enviar Polly como mensageira da paz. Como si Lucy pudesse
tolerar sua presença depois do que acontecera!
- Por que você não deixa o "patrão" se ocupar um pouco de você? continuou Polly. É uma excelente criatura. Veja o que fez por mim! - E arrepiou suas plumas, alisou
as peles, sugestivamente. - Ouça, tenho um convite para você vir à Taverna. Um convite especial de Joe; e si você não se julgar muito alta e poderosa deve aceitá-lo.
Aqui para nós, minha opinião é que ele pretende meter a mão no bolso para você. De modo que você será uma idiota si não vier.
O lábio de Lucy encrespou-se:
- Prefiro ser uma idiota. Polly fixou-a.
- Realmente você é uma idiota, disse ela, erguendo-se e apanhando o casaco de peles que lhe escorregara pelas adiposidades. Pensa que é tão perfeita que não pode
vir misturar-se conosco. , 189
- Sinto muito, falou Lucy impensadamente, para dar uma desculpa; tenho outros planos. Uma senhora muito distinta me pediu que fosse morar com ela.
- Uma senhora? perguntou Polly, com maligna surpresa.
- Sim. De modo que você pode dizer ao seu irmão que não preciso do seu generoso apoio. - E Lucy teve um curto e desdenhoso riso. - Não, não creio que precise de
incomodá-los na Taverna.
A ironia não podia ser alcançada por Polly, mas àquele riso seu rosto se tornou ainda mais rubro do que o era naturalmente.
. - É extraordinário que você tivesse casado com alguém da nossa família, que você considera apenas poeira em baixo dos seus pés!
- Casei com Frank Moore, replicou Lucy ríspida, e ele era um cavalheiro.
- Oh! Não era assim tão diferente de Joe! atirou-lhe a outra maliciosamente. Gostava bastante das raparigas quando era mais novo. Posso lhe contar uma ou duas coisas,
si você quiser ouvi-las.
As narinas de Lucy dilataram-se e um brilho estranho fuzilou-lhe no olhar:
- Saia da minha casa! disse tomada de uma raiva fria. Sua atitude era um pouco teatral, inconcientemente, porém. Queria que aquela desprezível mulher, de linguagem
tão vulgar, deixasse sua casa; e apontava-lhe a porta. Polly, realmente, partiu resmungando, forçada pelo duro olhar de Lucy.
Parecia, portanto, que a fatalidade havia determinado que ela aceitasse a oferta de Miss Hocking, mas esse desígnio não fora da fatalidade, nem mesmo esta havia
feito pender a balança nesse sentido: fora a própria Lucy quem orientara assim o curso do seu destino. Havia dito a Polly -que o faria. Fá-lo-ia, pois. No dia seguinte
ao da visita da cunhada, disse a Miss Hocking que resolvera aceitar sua sugestão e Miss Hocking ficou encantada. Falou entusiasticamente da felicidade que adviria
para ambas em virtude daquele arranjo, pediu a Lucy que manifestasse sua opinião sobre conforto e sobre assuntos de cozinha, e fez Fairy sentar-se sobre as patas
traseiras para demonstrar sua alegria. Tudo muito interessante e divertido!
A princípio Lucy teve a ideia de conservar sua casa, alugando-a mobiliada. Seria uma fonte adicional de renda para ela; no entanto, o agente que controlava os negócios
da vila
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foi categórico. Nunca se vira tal coisa nem se veria nunca em uma localidade tão seleta como Arcunore. Disse-lhe, contudo, que seria simples desfazer-se dos seus
móveis e encontrar um locatário para a casa vazia.
Lucy teve pois que enfrentar a dificuldade de vender seus móveis. Já pensara em guardar os móveis, por causa do preço do aluguel e o apartamento de solteiro de Miss
hocking não podia conter dois armários.. Lucy hesitou. Era uma medida drástica vendê-los e sabia que seria uma coisa irrevogável.
Entretanto, as necessidades do futuro imediato eram maisprementes que as do passado, e Peter teria que ficar no colégio por cinco anos mais. Além disso, já pesara
tudo aquilo de antemão e estava decidida a não voltar atrás.
Seus móveis foram transportados para uma agência de vendas e, sem ir a leilão, foram vendidos por intermédio de um agente. Custou imenso a Lucy separar-se daqueles
objetos familiares que o tempo e o uso haviam, tornado tão completamente seus. Quando os comprara tão alegremente com Frank, como haviam discutido sobre as vantagens
do carvalho ou do mogno. E quando os espanava, com um caloroso orgulho em possuí-los, nunca pensara que algum dia tivesse que dispor deles daquele modo! E tudo isso
para, no fim, receber a miserável soma de trinta libras!
Algumas coisas ela conservou. Seu guarda-roupa, um quadro que pertencera a sua mãe, a cadeira de balanço do quarto de dormir, em cujo :braço, ainda ligeiramente
marcado, Peter, embaraçando-se em seu vestido, quebrara os dentes quando pequeno.
E então, uma noite, no princípio do mês de fevereiro, Lucy, regressando do trabalho veio pela última vez até sua casa. Não havia necessidade dessa jornada, pois
a casa fora esvaziada completamente, mas o sentimento que às vezes a possuía impeliu-a a essa peregrinação.
Abriu a porta do pequeno kall desguarnecido. A casa, despojada de qualquer guarnição, tinha um aspecto estranho e parecia-lhe povoada de imagens que evocavam o passado,
coisas da sua vida íntima, que lhe parecia truncada e ao mesmo tempo cheia de dignidade. As lágrimas vieram-lhe aos olhos. Aqui, Frank amara-a, nascera Peter. Dali,
violentamente, desvairada, ela partira, mergulhando no nevoeiro, para a própria desdita, para destruir o seu amor... e Frank,
E de súbito pôs-se a soluçar incontidamente. Como chegara a acontecer tudo aquilo? Arrancou-se àquela
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contemplação e saiu para o jardim. O solo, crestado pelo inverno, tinha apenas alguns galhos secos, hastes despidas de seiva, e a macieira estendia, como braços,
os troncos despojados de folhas. Os seixos da estrada, lavados pelas chuvas, polidos pelas geadas, brilhavam de tão brancos, aqueles mesmos seixos que lvrank e ela
apanhavam para pavimentar o pequeno atalho..
interditou a porta com a chave e veio caminhando tristemente por esse atalho, com os -olhos vermelhos de choro.
.Deixou a chave no escritório do agente e, tomada de uma estranha lassidão, subiu a colina e os degraus para o apartamento de Miss Hocking, em Victoria Crescent.
Defronte da porta, estacou. Depois, vagarosamente, abriu-a e entrou.
VIII
O APARTAMENTO de Miss Hocking era artisticamente arranjado. Não havia ramos de rosas nem miosótis com laços de fitas decorando as paredes, que eram, em vez disso,
forradas de papel verde-resedá, admiravelmente adequado a realçar as meias-tintas de Burne Jones e as mulheres de Hosetti que, com suas altivas cabeças e seus lábios
de curvas sensuais, olhavam suavemente das sólidas molduras de carvalho. Os móveis eram de boa qualidade, móveis antigos na família, sem. dúvida, trazendo o cunho
de genuina antiguidade, A cama de Miss Hocking era um enorme leito de colunas que sustinham o dossel com dignidade histórica. Havia, porém, móveis mais modernos:
uma estante, uma papeleira, algumas pequenas peças que traíam gosto para a arte decorativa moderna.
Na sala de visitas, o piano estava coberto por um chale de cetim franjado e não havia fotografia alguma em cima: o violoncelo encostado à estante, como um roué a
um louffet, justificava aquele luxuoso chale pelo seu ar de romântica negligência. Contudo, não havia coisa alguma de mau gosto, nada que cheirasse a boémia. O retrato
de Holman Hunt também ornava as paredes, imprimindo a tudo certo ar de austeridade.
E havia uma quantidade de livros, alguns ainda por abrir, jazendo sobre a mesa e denotando um penchant pelo diletantismo do dia. A cor mais em voga era o tom predominante;
havia verde quase em toda parte, até nos
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quebra-luzes, e a própria Miss Hocking, quando se separava dos seus costumes de corte masculino, dava preferência a essa cor para seus longos penteadores de largas
mangas, feitos de uma seda que pesava com sedutora majestade
Realmente, a casa era arranjada com muito gosto, um gosto que combinava com o da sua dona, que Lucy achava elegante, porém que de algum modo lhe escapava. Gostava
da casa e gostava da sua nova companheira - era impossível ser de outro modo - mas, mesmo assim, sentia-se incapaz de compreender Miss Hocking que, dizendo-se uma
criatura errante, - pária era a palavra que ela empregava rindo - permanecia em Ardíillan por alguma inexplicável razão. Tinha poucos amigos e nenhum parente a não
ser um irmão que raramente mencionava e que vivia ainda em sua cidade natal, no sul da Inglaterra. Sim, havia alguma coisa na vida de Miss Hocking que Lucy não podia
entender bem.
Era nisso que ela pensava, por uma bela manhã de domingo, sentada à janela da sala de visitas, algumas semanas depois da sua instalação ali. Achava-se bem onde estava
e seu espírito divagava enquanto os olhos seguiam a ondulação da folhagem, que ora ocultava, ora revelava a discreta vista dos jardins das casas particulares que
havia defronte. O sol banhava-a projetando sua sombra no meio da sala. Sentia vagamente o encanto daquela hora, a paz ordeira dos arredores e tudo aquilo lançava-a
num estado de alma em que se mesclavam felicidade e saudade. Subitamente Miss Hocking entrou na sala.
- Estamos na hora do nosso passeio . exclamou positiva. Caminhe e o mundo caminhará com você. Pare e verse-á sozinha!
Lucy, que estivera havia pouco na igreja e que resolvera descansar por algum tempo, ergueu a cabeça e respondeu:
- Preferiria repousar agora: você bem sabe que eu caminho durante a semana inteira.
- Chegou a hora do passeio, insistiu a outra com seu habitual bom humor. Está um dia lindo! O tempo que Walt Whitman prefere. Fairy está louco para sair e não deve
ser privado de exercício. Você também não.
Fairy, mergulhado no torpor da digestão, procurava ocultar-se debaixo do sofá exibindo um olhar de protesto.
- Bem, disse Lucy, mas não creio que esteja disposta a andar, hoje.
- Não me diga que está cansada de viver, tornou Miss Hocking irónica, você não calcula o quanto está bonita, hoje!
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Não queira morrer antes de usar até o fim esse vestido novo. Fica-lhe admiravelmente. Lucy sorriu:
- Está bem Si você insiste tanto para que eu vá...
- e ergueu-se para apanhar o chapéu e as luvas.
- Esplêndido! exclamou Miss Hocking. Vamos, Fairy, Fairjd Você não pode ser indolente!
Ein caminho, Miss Hocking falava sempre; Fairy arrastava-se desanimado, preso à corrente; e Lucy, que desejaria que o passeio fosse curto, viu-o prolongar-se para
além do itinerário dos habituais passeantes do domingo. A medida que andava, ia sentindo que seus novos sapatos começavam a apertar-lhe o calcanhar.
- Vamos até Ehu, disse Miss Hocking alegremente. Lá você descansará. - E continuava a conversar por cima do ombro, discorrendo sobre o tempo, as flores, as árvores.
Declamou poesias, assoviou em resposta ao canto dos pássaros, incitou desesperadamente Fairy a caçar coelhos invisíveis, exibindo uma intensa alegria de viver.
De repente, a meio caminho através do bosque, exclamou :
- É aqui o lugar! Aqui faremos uma pequena sesta. Deite-se! Deite-se e ponha-se à vontade.
Estirou-se triunfalmente sobre a relva, estendendo voluptuosamente os membros.
Lucy sentou-se ao seu lado, tirou o chapéu, e encostou-se no tronco de uma árvore, deixando as palmas das mãos repousarem na fescura das flores caídas que juncavam
o chão.
- Estou com calor, disse queixosa. Você anda em passo militar! - Algumas pétalas brancas desprenderam-se dos ramos, em cima, e vieram cair-lhe nos cabelos. Semiçerrando
os olhos, Lucy acrescentou: - Estou com sono.
- Durma, então, sugeriu a outra. Ocupava-se em tecer uma coleira de margaridas para Fairy. - Gostaria que você dormisse. Si tivesse aqui meu violoncelo, tocaria
para fazê-la adormecer e você dormiria ao meu lado.
Lucy, porém, não dormiu; em vez disso fixou curiosamente o olhar na outra por baixo das pálpebras meio descidas. Estranhou repentinamente aquela intimidade em que
se achava, no coração do bosque, com aquela extraordinária e bela mulher, que ela conhecia tão pouco e que jazia agora abandonada sobre a relva:
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- Está admirando minhas pernas? perguntou subitamente Miss Hocking. Você devia me ver despida ou em roupa de ginástica. Não sou nada má.
Lucy desviou o olhar, corando, e desceu a barra do vestido até os tornozelos. Detestava aquela espécie de conversa. Seu recato era tão excessivo quanto o seu orgulho.
Não era dessas mulheres que estudam detidamente suas formas, quanto mais as formas das outras, no ato de despirem-se. Miss Hocking, todavia, mostrava uma grande
pertinácia, quase um ávido prazer em discutir esse tópico.
- Temos um dever para com o corpo; o de torná-lo belo. Não nos devemos envergonhar dele. Não acha que deve ser assim? A nudez da mulher é obra de Deus. Diga-me,
indagou inesperadamente, você foi feliz enquanto esteve casada?
- Sim, disse Lucy lacônicamente. Não aprovava aquela conversa e não sabia onde iria dar.
- Teve grandes prazeres? insistiu Miss Hocking. Não quer me dizer? - Aquele assunto, ou aquela situação, parecia despertar nela uma estranha excitação.
Lucy, porém, fechara-se em frio silêncio.
- Tenho uma razão para querer saber, continuou a outra, com uns grandes olhos cheios de ingenuidade. Gostaria muito si você o dissesse.
- Prefiro não fazê-lo, replicou Lucy em tom decisivo, subitamente gélido.
- Casamento... doce abandono! rapsodiou Miss Hoeking, pendurando a coleira de margaridas já terminada no pletórico pescoço de Fairy. Sem dúvida, nem todos podem...
bem, eu... - Miss Hocking parou de falar e riu com forçada leviandade, o que irritou um pouco Lucy. Nunca vira a outra tão ridícula quanto nesse momento, ,Parecia-lhe
exquisita aquela insistência em torno da questão do sexo. De repente, relembrou aquela ocasião em que Miss Hocking tanto se encantara com a vista de Peter dansando
semi-nú em seu pijama. Sim. Era aquela mesma excitada curiosidade, que transparecia agora naqueles olhos sonhadores.
- Vamos embora, disse Lucy inquieta. E pôs-se abruptamente de pé.
Miss Hocking, reclinada com as mãos cruzadas atrás da cabeça, olhou-a langorosamente.
- Uma conversa tão boa, essa que estávamos tendo! Gostaria de continuar com ela e que ela fosse interminável como o regato de Tennyson!
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Em resposta, Lucy pôs-se a descer a vereda. Uma vaga compreensão, uma nebulosa e desagradável intuição começava a perturbá-la.
Em poucos momentos, Miss Hocking alcançou-a. Estava outra vez alegre e novamente conversadeira. Lucy, porém, não estava contente. Conservava-se pensativa e silenciosa
enquanto emergiam dos bosques e tomavam o caminho que leva a Ardfillan.
Aí voltou a falar meio zangada:
- Eu disse que não queria fazer um passeio comprido. Andamos léguas!
Eealmente, a estrada parecia interminável. Pairy, com a grinalda enviezada no pescoço, ofegava caminhando ao lado de ambas. A própria Miss Hocking começou a apresentar
sinais de desalinho, causados pelo vento e o sol; isso, porém, não a perturbava. Tirou do bolso um bolo de chocolate e oferecendo-o a Lucy - que não aceitou - pôs-se
a roê-lo muito satisfeita.
Ao atingir Ardfillan, Lucy estava fatigada, tinha fome e os pés lhe doíam. Eram seis horas e os sinos puseram-se a repicar. Começaram a subir a rua Garsden e aí
Lucy fez um esforço para dominar o seu mau humor; voltando-se para a companheira disse:
- Temos que tomar um banho ao chegar. E estou morrendo por uma chícara de chá.
Eram suas primeiras palavras depois de muito tempo. Mas o rosto suado de Miss Hocking abriu-se num sorriso lento e sonhador.
- Vá na frente, tome seu banho e seu chá, respondeu amavelmente.
- Como, exclamou Lucy surpreendida, você não vem comigo?!
- Não, minha querida. - Toda aquela desenvoltura no falar cedera lugar ao constrangimento e à timidez. - vou ali
- e apontou a Igreja Episcopal, que tinha as portas abertas e onde já começavam, a entrar os fiéis para o serviço da noite.
Lucy olhou admiradíssima para a outra, para a lama que trazia nos sapatos, a inclinação do chapéu, para os cabelos empastados nas faces e sobretudo para a expressão
que tinha agora no rosto.
- Mas você não está arranjada para entrar na igreja!
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- Tenho que ir, murmurou Miss Hocking. Ele vai pregar esta noite; si eu não estiver em minha cadeira ele sentirá minha falta.
- Ele! ecoou Lucy. Você não quer dizer...
- Sim. É o reverendo Adam... Malcolm é como o chamo. - E corou cheia de coquetismo. - Acho que ficaria de coração partido si eu não estivesse lá.
- Mas por que? perguntou Lucy estupefata. Não o conhecia, porém ouvira falar no Reverendo Malcolm Adam, que tinha grande reputação de homem calmo, metódico, homem
de hábitos taciturnos. Olhou para Miss Hocking. Estava certa de que ela estava romanceando. - Você não está falando sério, pois não?
- Nunca disse nada mais sério, replicou Miss Hocking com uma afetação grotesca. Você deve sabê-lo. Há um entendimento entre mim e Malcolm. Um perfeito entendimento.
Casaremos qualquer dia desses.
O queixo de Lucy caiu. Não podia crer no que ouvia. Estava abaladíssima por aquela participação.
?- Então ele já lhe propôs casamento? perguntou.
Miss Hocking parou. Estavam agora exatamente em frente à igreja, e disse com um sorriso contrafeito:
- Oh! não! Não disse ainda uma só palavra. É muito acanhado para falar. Vejo-o pelo modo por que me olha. Apenas por aquele olhar. - Suspirou. - Eis aí como sei.
Adora-me! Eu sei. E reservo-me para ele. - Dizendo isto, transpôs os degraus e enfiou-se na igreja.
Lucy ficou imóvel enquanto o grande e majestoso vulto desaparecia sob o portal gótico. Depois voltou-se e seguiu para casa.
Era grande, então, o segredo daquela alegria de adolescente atrás das maneiras majestosas de grande senhora. A excentricidade de Miss Hocking estava pois explicada!
Lucy sentia-se tomada de confusos pensamentos. Não havia dúvida, porém. Tudo se fazia claro. Havia-se juntado com uma mulher afetada por uma grotesca e incrível
obsessão. Era inacreditável! Si lhe contassem aquela obscura mas violenta paixão por um sacerdote, nutrida secretamente, à maneira tradicional, ela o tomaria como
um romance.
Entrou em casa com o rosto preocupado. Preparou imediatamente seu banho e despindo suas roupas empoeiradas, mergulhou no tépido conforto da água quente. Deitada
na banheira, com o rosto avermelhado pelo vapor, a testa ainda
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franzida, pôs-se à revolver na mente as cenas no bosque, as defronte à igreja. À força de pensar naquilo, foi-se sentindo menos perturbada. Ao sair do banho, preparou-se
para algum acontecimento dramático, que viria precipitar a situação; e esperou calmamente pela volta da sua companheira.
No entanto, nada de dramático ocorreu. Miss Hocking regressou tranquilamente, talvez um pouco sonhadora, mas novamente alegre. Pôs-se logo a fazer uma salada para
Lucy. Uma salada realmente deliciosa, fresca, preparada à francesa. Tinha um extraordinário gosto pelos pratos finos e discutia-lhes a receita com amável entusiasmo.
- IX -"
LUCY preparara-se para um súbito rompimento, porém nenhuma solução de continuidade houve em sua camaradagem com Miss Hocking. Continuou a morar com ela e a trabalhar.
À medida que o tempo passava - e como passava rápido! dias fazendo-se meses, meses transformando-se em anos - Lucy mais se dava conta da extensão da ideia fixa da
amiga. O Reverendo Adam nada sabia daquela secreta e lânguida afeição que inspirara. Contudo, Miss Hocking inferia dessa própria ignorância mil sinais sutis de secreta
compreensão. Um olhar desgarrado do sacerdote caindo sobre ela, na igreja; um acidental virar de cabeça quando passava pela sua janela, uma inflexão qualquer de
voz ao dirigir-se-lhe fazendo um simples comentário sobre o tempo, tudo isso a enchia de excitação e aumentava-lhe a ilusão. Miss Hocking enviava-lhe anonimamente
toda espécie de presentes: luvas, gravatas, mantas, mesmo jogos de roupa interior da mais fina lã. Havia manhãs em que se levantava cedo e ficava pacientemente à
janela pelo simples prazer de vê-lo quando passava.
Sob todos os outros pontos de vista, era perfeitamente normal. Um pouco frívola, talvez, um pouco afetada, mas tão normal que até mesmo conseguia, em algumas ocasiões,
ocultar sua própria obsessão.
E agora, Lucy aceitava calmamente esse estado de coisas, como circunstância inevitável. Quando, em conversa, mencionava esse tópico, desencorajava a outra por um
silêncio rígido.
Vinha-lhe, por vezes, esse pensamento: "Por que estou eu morando aqui? Será pelo que tiro dessa mulher!"
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Repudiava, entretanto, a ideia. Não era por isso. Muitas vezes até, antepunha-se a Miss Hocking, que não tinha noção do que se pode fazer com dinheiro, sendo extremamente
pródiga, i Sabia que não era uma parasita. Pagava sua parte nas despesas do apartamento. Sem dúvida que, para ela, aquilo era uma sorte extraordinária, viver no
meio do luxo, pagando tão pouco. Vivia economicamente, rodeada de coisas de perfeito gosto. E assim era capaz de educar seu filho. Esse argumento pesava muito na
sua balança. A cada dúvida que lhe surgia, ela respondia que o fazia pelo filho.
Mesmo assim havia momentos em que Lucy se resolvia a deixar definitivamente a casa , para se instalar sozinha em uma residência mais despretensiosa. Quando, porém,
se resolvia a dar esse passo, algum favor que devia a Miss Hocking agia no último momento como elemento dissuasivo. A amiga era sempre muito boa para Peter, o que
para Lucy era agora um argumento final e universal. Lembrava-se, por exemplo, daquelas férias em Fort Williàm, um alegre interlúdio para todos os três, sugerido
e quase todo financiado por Miss Hocking, pois a contribuição de Lucy fora muito modesta. Recordava sempre o pequeno trem rodando sobre a estreita linha, que parecia
um brinquedo, através das montanhas azues e cor de ppúrpura, de Western Highlands; a súbita visão, que se lhe deparou, de um lago franjado de pinheiros selvagens,
plácido em sua remota antiguidade, a charneca estendendo-se a perder de vista. Um veado assustou-se e correu, fugindo da pequena composição, com os grandes chifres
erguidos. As pequenas estações de tetos agudos, por causa das .tempestades de neve. E, aqui e ali, campos de nastúrcios e orgulhosos brotos de fucsia. Uma onda de
nostalgia abatia-se sobre Lucy quando pensava em tudo isso. Era sua terra e ela a amava. Na verdade, Miss Hocking excedera-se em sua exuberância, exibindo uma saia
escocesa, um chalé trançado nos ombros, um chapéu com uma pluma, e tomava atitudes pitorescas, de mãos na cintura, imitando Flora Macdonald, com quem decididamente
se parecia - dizia ela. Contudo, fora boa para Peter. Havia desencantado, de dentro de um velho armário, um aparelho de pesca que pertencera ao seu pai, com o qual
Peter, pálido de emoção, conseguiu pescar uma autêntica truta do mar que pesava pelo menos um quilo. A lembrança daquela expressão de triunfo e êxtase no rosto do
filho mais de uma vez impedira Lucy de deixar o apartamento e abandonar Miss Hocking à sua solidão.
Peter era realmente a pedra angular da sua vida.
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Durante todo esse período, as distribuições de prémios do colégio proporcionaram-lhe as maiores felicidades e era incrível como se sucediam rapidamente essas ocasiões.
Incríveis também eram as mudanças que se operavam em seu filho. Parecia-lhe ontem aquela primeira cerimónia, tão vívida era a lembrança que guardava do orgulho que
experimentara no momento em que o viu adiantar-se com uma atitude modesta, porém cheia de distinção, para receber das mãos do Lord Arcebispo de Nofar o relógio e
corrente de prata pelo seu trabalho sobre Doutrina Cristã, e a pilha de livros - prémios de geografia, ortografia e cálculo aritmético.
- É um menino de sorte! ouvira ela dizer a uma obesa senhora, mãe de um aluno menos aquinhoado, no momento em que Peter abria caminho, por entre um labirinto de
pernas estendidas, para voltar ao seu lugar junto dela.
Sorte! é o cúmulo! pensara Lucy indignada, passando a mão pelo braço do filho e apertando-o carinhosamente. E olhou aborrecida em direção ao vasto chapéu de plumas
de sob o qual emanara aquele comentário. Não era sorte. Era verdade que cada menino do colégio recebia um prémio dizia-se que o irmão William tinha um contrato com
um livreiro de Londres. Também era verdade que todos tinham seus retratos no elegante prospecto verde e dourado, quando mais não fosse, como: " Quarto pianista da
orquestra" ou "Quinto em boa conduta", o que fazia Ramford dizer que "Bill não nasceu ontem" Fosse qual fosse a maliciosa intenção de Ramford ao dizê-lo, certamente
não era a isso que Peter devia as primícias que colhia na árvore do saber. Não fora por sorte que fora escolhido para recitar "O funeral de Sir John Moore", o que
fizera com gestos apropriados. Uma semana depois, O Correio de LaugMown estampava a notícia de que "o galante raminho evidenciou um iniludível talento teatral e,
ao inclinar-se, foi saudado pelos mais calorosos aplausos". Lucy. trouxera o amarelecido recorte dessa notícia perto do coração, durante muito tempo.
Peter havia também tomado parte em concertos da banda do colégio. Lucy ouvira uma Ouverture de Weber, na qual, si ele não tivesse visto satisfeita sua ambição de
ser o tambor - que era tocado por um gordo espanhol de óculos - executava com mais propriedade o piccolo. Os encantados olhos de Lucy haviam admirado a destreza
dos dedos do filho e, para ela, toda a harmonia da música parecia emanar daquele pequeno instrumento.
Mais tarde, o irmão "William havia colocado benevolamente a mão sobre a cabeça de Peter e dissera de passagem.,, para ir atender ao pai de um outro aluno:
- Orgulhamo-nos do seu filho.
O Irmão Aloysius também fixava-a com seus amendoados olhos escuros e murmurara:
- É um prazer ensinar a seu filho, Missis Moore.
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                                              CONTINUA
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Lucy dormira pouco naquela noite, num quarto do pequeno hotel que os irmãos lhe haviam recomendado por pertencer a uma estimável viúva que tinha quatro filhos como alunos externos do colégio.. Na manhã seguinte, levando Peter para casa, afim de passar as férias, olhava-o cheia de orgulho e deixava o espírito divagar pelos seus futuros triunfos, que lhe pertenceriam também.
Notou com prazer que Peter estava se desenvolvendo em estatura e força. Iam-se processando nele mudanças que o transformavam de ingénua criança em um forte rapaz.
Lucy acompanhava com desconfiança o engrossar da sua voz e teve que concordar, como coisa inevitável, com suas primeiras calças compridas.
Sabia que aquilo tinha que acontecer e, como tudo se processava gradualmente em boa direção, não se deixava perturbar.
Peter se fazia alto, de maneiras reservadas, cuidadoso com suas roupas e com uma tendência especial a estudar-se detidamente ao espelho. Sua mãe começou a perceber nele, além da sua distinção e simpatia, uma coisa indefinível que o assinalava como seu filho entre milhões de outros rapazes: uma crescente semelhança com o pai.
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O modelado dos lábios, o sorriso, os fortes e brancos dentes, brilhantes e perfeitos. Descobria nele pequenas coisas, que a faziam estremecer, tocando-lhe as cordas da memória. Achava-o um belo rapaz e vivia com ele no pensamento, tirando imensa satisfação dos seus entusiasmos e sucessos.
Acreditava que certas mudanças também deviam estar-se processando nela própria, mas nunca detinha nisso o pensamento. Seu corpo se tornara um corpo mais sólido, a cintura menos flexível, o sorriso ensombrado por uma reserva maior. Nunca havia contemplado as possibilidades de uma aventura romântica. Joe havia-lhe dado, nesse terreno, um rude choque. A paixão de Miss Hocking também a desgostara disso. Acima de tudo, tinha o filho; assim, apesar de não o saber, as circunstâncias da sua vida haviam-na induzido a uma curiosa repressão, que desviara todo o seu amor para Peter. Seus clientes, fosse qual fosse a atitude que tomassem, eram para ela meras faces enfarinhadas, emergindo e desaparecendo com igual precipitação, sem nada significar em sua vida. Lennox gostava dela. Sabia-o. Tinha, porém, seus negócios, que para ele eram uma verdadeira obsessão. Contudo, uma vez. no escritório, ele se havia atrevido timidamente a passar-lhe um braço em torno da cintura. Muito calma, ela ordenara-lhe que o retirasse. E ele obedecera imediatamente, confuso, pedindo desculpas e infinitamente mais perturbado do que ela. Sufocara em si toda e qualquer tendência a sonhos introspectivos que a, inclinassem à tristeza e que a induzissem a uma piedade mórbida de si própria. E poucas vezes ela tinha...

  

                                                                  

 

 

                                                   

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