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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


TRIPULAÇÃO DE ESQUELETOS / Stephen King
TRIPULAÇÃO DE ESQUELETOS / Stephen King

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

O churrasco havia terminado. Tinha sido excelente; bebidas, a carne mal-passada, tostada na brasa, uma salada de verduras e o molho especial de Meg. Começara às cinco da tarde. Agora eram oito e meia, já quase crepúsculo — a hora em que reuniões movimentadas começam a gerar desordem. Contudo, ali não havia uma reunião movimentada. Os reunidos eram apenas cinco: o agente e sua esposa, o prestigiado jovem escritor e sua esposa, e o editor da revista, de sessenta e poucos anos, porém parecendo ser mais idoso. O editor dedicara-se a beber Fresca. Antes que ele chegasse, o agente havia contado ao jovem escritor que, uma vez, ali houvera um problema de bebida. O problema desaparecera, bem como a esposa do editor... motivo pelo qual eles eram cinco, em vez de seis.

Ao invés de surgir qualquer desordem, caiu sobre eles um ânimo introspectivo, quando começou a escurecer no pátio dos fundos do jovem escritor, dando para o lago. O primeiro livro do jovem escritor tinha recebido uma crítica excelente e vendera uma boa quantidade de exemplares. Ele era um rapaz de sorte e, para seu crédito, estava a par disso.

Com divertida morbidez, a conversa passara do precoce sucesso do jovem escritor para outros escritores também prematuramente bem sucedidos e que, então, se haviam suicidado. Falou-se em Ross Lockridge, depois em Tom Hagen. A esposa do agente mencionou Sylvia Plath e Anne Sexton. O jovem escritor disse que não achava Sylvia Plath qualificada como escritora vitoriosa. Ela não se suicidara por causa do sucesso, disse ele; ela obtivera sucesso por ter-se suicidado. O agente sorriu.

 

 

 

 

— Por favor, não podíamos falar de outras coisas? — perguntou a esposa do jovem escritor, um pouco nervosamente.

Ignorando-a, o agente disse:

— Também há a loucura. Houve os que enlouqueceram devido ao sucesso.

O agente falava nos tons brandos, mas gorgeados, de um ator nos bastidores. A esposa do escritor ia protestar novamente — ela sabia que o marido, além de gostar de falar sobre o assunto, também pilheriava a respeito, porque pensava demais naquilo quando o editor da revista começou a falar. E ele disse algo tão estranho, que ela esqueceu o protesto.

— A loucura é um projétil flexível.

A esposa do agente olhou para ele, intrigada. O jovem escritor inclinou-se para diante, com ar inquisitivo.

— Isso me soa familiar... — disse ele.

— Sem dúvida — replicou o editor. — Esse termo, a imagem, "projétil flexível", é de Marianne Moore. Ela a usou para descrever um ou outro tipo de carro.

Eu sempre pensei que descrevia perfeitamente a condição da loucura. A loucura é uma espécie de suicídio mental. Hoje em dia, os médicos não afirmam que a única maneira de realmente medir-se a morte é através da morte da mente? Pois a loucura é uma espécie de projétil flexível para o cérebro.

A esposa do jovem escritor procurou mudar de assunto.

— Alguém quer outra bebida?

Ninguém se manifestou.

— Pois eu quero, já que iremos falar dessas coisas — disse ela, e saiu para preparar seu drinque.

— Apresentaram-me uma história certa vez, quando eu trabalhava em sua seleção, em Logan's. Naturalmente, já encerrou suas atividades, da mesma forma que Collier's e agora The Saturday Evening Post, porém sobrevivemos a ambos. — Ele declarou isto com um toque de orgulho na voz. — Publicávamos trinta e seis contos por ano, talvez mais, e a cada ano, quatro ou cinco deles figuravam na coleção de alguém como melhores do ano. E as pessoas os liam. De qualquer modo, o nome desta história a que me referi era "A Balada do Projétil Flexível", tendo sido escrita por um homem chamado Reg Thorpe. Um rapaz da idade deste jovem aqui e também um sucesso.

— Não foi ele que escreveu Underworld Figures? — perguntou a esposa do agente.

— Sim, foi ele. Uma ficha espantosa para uma primeira novela... Críticas espetaculares, vendas formidáveis em brochura e encadernação, Associação Literária, tudo. Inclusive o filme foi bom, embora não tanto como o livro. Nem lhe chegou aos pés.

— Eu adorei aquele livro — disse a esposa do autor, novamente atraída à conversa, embora a contragosto. Tinha a surpresa e agradável expressão de quem acaba de recordar algo esquecido por muito tempo. — Ele escreveu mais alguma coisa em seguida? Li Underworld Figures quando freqüentava a faculdade, e isso foi... bem, há muito tempo, para lembrar agora.

— Você não envelheceu um dia desde então — disse a esposa do agente, em tom simpático, embora achando que a esposa do jovem escritor usava um corpete pequeno demais e shorts muito apertados.

— Não, ele não tornou a escrever — disse o editor. — Exceto por esta única história de que falei. Ele se matou. Ficou louco e matou-se.

— Oh! — exclamou desoladamente a esposa do escritor. Eles voltavam ao tema

— E o conto foi publicado? — perguntou o jovem escritor.

— Não, mas não porque o autor enlouquecesse e se matasse. Ela jamais foi impressa, porque o editor ficou louco e quase se matou.

O agente levantou-se de súbito para renovar seu drinque, que dificilmente precisava ser renovado. Ele sabia que o editor tivera um colapso nervoso no verão de 1969, não muito antes de Logan's ter afundado em um mar de tinta vermelha.

— Eu era o editor — informou o editor aos restantes. — Em certo sentido, ficamos loucos juntos, Reg Thorpe e eu, embora eu estivesse em Nova York, ele em Omaha e nem mesmo nos conhecêssemos. Seu livro havia sido publicado seis meses antes, e ele se mudara para lá, a fim de "ordenar as idéias", como se dizia então. Só sei este lado da história, porque vejo ocasionalmente a esposa dele, quando ela vem a Nova York. É pintora e bastante boa nisso. Aliás, é uma moça de sorte. Ele quase a levou consigo.

O agente voltou e sentou-se.

— Começo a me lembrar de algo disso agora — falou. — E não foi apenas a esposa, certo? Ele baleou duas outras pessoas, uma delas uma criança.

— Exatamente — confirmou o editor. — E foi a criança que finalmente lhe desencadeou a loucura.

— A criança o levou à loucura? — perguntou a esposa do agente. — O que quer dizer com isso?

O rosto do editor, no entanto, dizia que não ia ser forçado; falaria, mas sem que o questionassem.

— Conheço o meu lado da história, porque o vivi — disse o editor da revista. — Também sou um sujeito de sorte. Tive uma maldita sorte. É uma coisa interessante, sobre aqueles que tentam matar-se apontando uma arma para a cabeça e puxando o gatilho. Qualquer um pensaria que é um método certeiro, melhor do que pílulas ou cortar os pulsos, mas não é. Quando uma pessoa dá um tiro na cabeça, não pode dizer o que vai acontecer. O balaço pode ricochetear no crânio e matar alguém mais. Pode seguir a curvatura craniana inteiramente e sair do outro lado. Pode alojar-se no cérebro e cegar a pessoa, sem matá-la. Um homem pode meter na testa uma bala de um 38 e acordar no hospital.

Outro pode meter na testa uma bala de um 22 e acordar no inferno... se é que existe tal lugar. Sou propenso a crer que está aqui mesmo, na terra, possivelmente em Nova Jersey.

A mulher do escritor riu um tanto agudamente.

— O único método infalível de suicídio é atirar-se de um prédio bem alto, mas esta é uma saída tomada apenas pelos extraordinariamente dedicados. Causa tanta confusão, não é mesmo?

"Meu ponto, contudo, é simplesmente este: quando a pessoa atira em si mesma com um projétil flexível, em realidade ignora qual será o desfecho. No meu caso, saltei de uma ponte e acordei em um aterro entulhado de lixo, com um motorista de caminhão espancando-me as costas e bombeando meus braços, para cima e para baixo, como se tivesse apenas vinte e quatro horas para ficar em forma e me tomasse por algum aparelho para exercitar-se em remadas. Para Reg, o projétil foi letal. Ele... Bem, lá estou eu contando uma história e nem sei se querem ouvi-la.

Ele olhou inquisitivamente em torno, à penumbra cada vez maior. O agente e sua esposa entreolharam-se, duvidosos. A esposa do escritor ia falar que já haviam tido uma dose suficiente de assuntos lúgubres, quando seu marido disse:

— Eu gostaria de ouvi-la. Caso não se importe de contá-la, por motivos pessoais, quero dizer.

— Nunca a contei — disse o editor — porém não por motivos pessoais. Talvez nunca tenha encontrado os ouvintes certos.

— Pois então, conte! — convidou o escritor.

— Paul... — Sua esposa lhe pôs a mão no ombro. — Não acha que...

— Agora, não, Meg.

O editor disse:

— A história chegou de bandeja, uma vez que nessa época, a Logan's há muito deixara de ler textos não solicitados. Quando eles chegavam, uma moça se limitava a enfiá-los em envelopes de devolução, anexando uma nota: "Devido à crescente despesa e à crescente impossibilidade do pessoal editorial em dar conta do número crescente de textos recebidos, Logan's deixou de ler manuscritos não solicitados. Desejamos-lhe sorte e que coloque sua obra em outra editora". Não é um formidável punhado de conversa fiada?

Não é fácil usar a palavra "crescente" três vezes em uma só frase, mas eles conseguiram.

— E se não houvesse selos para a devolução, a história ia para a cesta de papéis — disse o escritor. — Não é?

— Oh, inapelavelmente! Não há piedade na cidade nua.

Uma estranha expressão de desconcerto pairou no rosto do escritor. Era a expressão do homem que está em uma cova de tigres, onde dúzias de homens melhores já foram rasgados em pedaços. Até então, este homem não viu tigre algum. Contudo, ele pressente que os tigres estão lá e que suas garras continuam afiadas.

— De qualquer modo — disse o editor, pegando sua cigarreira — esta história chegou e a moça da sala de correspondência a pegou, grampeou a fórmula de rejeição à primeira página e já ia enfiá-la no envelope de devolução, quando viu o nome do autor. Bem, ela tinha lido Undenworld Figures. Todos a tinham lido naquele outono ou estavam lendo, quando não se encontravam na lista de espera da livraria ou vistoriando as prateleiras dos drugstores pela edição em brochura.

A esposa do escritor, que percebera a momentânea inquietude no rosto do marido, tomou-lhe a mão. Ele sorriu para ela. O editor acendeu o cigarro com um isqueiro Ronson de ouro e, à crescente escuridão, todos puderam ver quão desfigurado estava seu rosto — as bolsas frouxas abaixo dos olhos, com uma pele semelhante à dos crocodilos, as faces marcadas por sulcos, a ponta do queixo do velho emergindo daquele rosto de avançada meia-idade, como a proa de um navio. Um navio, pensou o escritor, que se chama velhice. Ninguém deseja um cruzeiro nele, porém os camarotes estão cheios. Por falar nisso, também os porões.

O isqueiro apagou-se e o editor, sugou pensativamente o cigarro.

— A moça da sala de correspondência que leu aquela história e a passou adiante, em vez de devolvê-la ao autor, é hoje editora-chefe na G. P. Putnam's Sons. Seu nome não vem ao caso; importa é que, no grande gráfico da vida, o vetor dessa jovem se cruzou com o de Reg Thorpe, na sala de correspondência da revista Logan's. Seu vetor subia, o dele descia. Ela entregou a história a seu chefe e esse chefe a passou para mim. Eu a li e adorei. Em realidade, era um pouco longa, mas pude ver onde ele cortaria quinhentas palavras, sem deturpar o sentido.

Então, ficaria ótima.

— Qual era o tema? — perguntou o escritor.

— Você nem devia perguntar — replicou o editor. — Ele se ajusta maravilhosamente ao contexto total.

— É sobre enlouquecer?

— Sim, de fato. Qual é a primeira coisa que lhe ensinam, em seu primeiro curso universitário de escrita criativa? Escreve sobre o que você sabe. Reg Thorpe sabia sobre ficar louco, porque estava envolvido nisso. A história provavelmente me tenha seduzido, porque eu também me achava no mesmo caminho. Agora você diria — se fosse editor — que a única coisa que não precisa ser impingida ao público leitor americano, é outra história a respeito de Enlouquecer Elegantemente na América, tema secundário, Não Existe mais Dialogo. Um tema popular, na literatura do século XX. Todos os grandes escreveram a respeito e todos os escribas parecem obcecados por isso. Contudo, aquela história era engraçada. Quero dizer, era de fato hilariante.

"Eu não havia lido nada igual antes e não li até hoje. O mais aproximado seriam alguns dos contos de F. Scott Fitzgerald... e Gatsby. O personagem na história de Thorpe estava enlouquecendo, mas enlouquecia de maneira muito divertida. A gente ri o tempo todo e havia duas passagens — aquela em que o herói despeja a gelatina de limão na cabeça da moça gorda é a melhor — em que se dava gargalhadas. Só que são gargalhadas nervosas, compreendam. Rimos e depois queremos olhar por cima do ombro, para saber o que ouvimos. As linhas opostas de tensão nessa história são realmente extraordinárias.

Quanto mais se ri, mais nervoso se fica. E quanto mais nervoso, mais se ri... até o ponto em que o herói sai da festa dada em sua homenagem e volta para casa, onde mata a esposa e a filhinha.

— Qual é a trama? — perguntou o agente.

— Ora, isso não vem ao caso — replicou o editor. — Tratava-se apenas de uma história sobre um rapaz que, aos poucos, ia perdendo o controle para enfrentar o sucesso. É melhor que tudo fique vago. Uma sinopse detalhada da trama seria apenas tediosa.

Sempre é assim.

"De qualquer modo, escrevi-lhe uma carta. Dizia o seguinte:

"Caro Reg Thorpe, Acabei de ler "A Balada do Projétil Flexível" e achei excelente. Gostaria de publicá-la em Logan's, no início do próximo ano, se lhe convier. Acha que 800 dólares soam bem?

Pagamento contra aceitação. Mais ou menos". Ponto parágrafo.

O editor pontilhou o ar noturno com seu cigarro.

"A histeria está um pouco longa e gostaria que você a encurtasse em cerca de quinhentas palavras, se for possível. Eu estabeleceria um corte mínimo de duzentas palavras. Podemos fazer uma ilustração". Ponto parágrafo. "Telefone, se interessar."

Minha assinatura. E lá se foi a carta para Omaha.

— E ainda se lembra dela, palavra por palavra, como disse? — perguntou a esposa do escritor.

— Mantenho toda a correspondência em um arquivo especial — disse o editor. — As cartas dele, as cópias das minhas. No fim, havia uma boa pilha, incluindo-se três ou quatro cartas de Jane Thorpe, sua esposa. De vez em quando leio tudo aquilo. Não é muito bom, claro. Querer tentar compreender o projétil flexível, é tentar compreender como uma fita de Môbius só pode ter uma superfície. É assim que são as coisas, neste melhor-de-todos-os-possíveis mundos. Sim, sei a carta palavra por palavra ou quase isso. Algumas pessoas sabem a Declaração da Independência de cor.

— Aposto como ele telefonou no dia seguinte — disse o agente, sorrindo. — A cobrar.

— Não, ele não telefonou. Logo depois de Underworld Figures, Thorpe deixou completamente de usar o telefone. Foi sua esposa que me contou. Quando se mudaram de Nova York para Omaha, eles nem mesmo mandaram instalar um aparelho na casa nova. Compreendam, ele havia decidido que o sistema telefônico não funcionava realmente à base de eletricidade, mas do radium. Thorpe achava que este era um dos dois ou três mais bem guardados segredos do mundo. Afirmou para sua esposa que era o radium o único responsável pela porcentagem crescente de câncer, não os cigarros, emissões de automóveis ou a poluição industrial. Cada telefone tinha um pequeno cristal de radium no fone, de modo que, em todas as vezes quando era usado, a pessoa injetava radiação na cabeça.

— Nossa, o cara era mesmo louco — disse o escritor, e todos eles riram.

— Ele escreveu, em vez de telefonar — disse o editor, com um piparote atirando seu cigarro na direção do lago. — Sua carta dizia o seguinte: "Caro Henry Wilson (ou apenas Henry, se possível), Sua carta foi não apenas excitante, mas também gratificante. Minha esposa ficou ainda mais satisfeita do que eu. O dinheiro está ótimo... embora eu deva dizer, com toda sinceridade, que a idéia de ver o conto publicado em Logan's me pareceu uma compensação mais do que adequada (contudo, eu o aceito, vou aceitá-lo). Estive examinando os cortes que indicou e parecem oportunos. Acredito que melhorarão a história, além de deixarem espaço para aquelas ilustrações. Atenciosamente, Reg Thorpe."

— Sob sua assinatura havia um pequeno e curioso desenho... mais como um rabisco. Um olho em uma pirâmide, como aquele no verso da nota de um dólar. Contudo, em vez de Novus Ordo Secloruin, na faixa abaixo, havia estas palavras: Fornit Some Fornus.

— Deve ser latim ou Groucho Marx — disse a esposa do agente.

— Era apenas parte da crescente excentricidade de Reg Thorpe — respondeu o editor. — Sua esposa me disse que ele começara a acreditar nas "pessoas miúdas", algo assim como elfos e fadas. Os Fornits. Eram os elfos da sorte e Reg achava que um deles morava em sua máquina de escrever.

— Oh, meu Deus! — exclamou a esposa do escritor.

— Segundo Thorpe, cada Fornit possuía um pequeno dispositivo, como um pulverizador, cheio de... pó-da-sorte, creio que poderia dizer-se assim. E o pó-da-sorte...

— ... tinha o nome de fornus — completou o escritor, sorrindo amplamente.

— Exato. A esposa dele achava isso muito divertido. A princípio. De fato, no início — Thorpe havia concebido os Fornits dois anos antes, enquanto rascunhava Undenworld Figures — ela pensava apenas que Reg estivesse lhe fazendo uma brincadeira. Talvez, no começo ele estivesse mesmo. A coisa parece ter progredido de fantasia a superstição e de superstição a crença absoluta. Era uma... uma fantasia flexível. Só que rija no fim.

Muito rija.

Todos ficaram calados. Os sorrisos morreram.

— Os Fomits tinham seu lado engraçado — disse o editor. — A máquina de escrever de Thorpe começou a ir regularmente para o conserto, no final da permanência do casal em Nova York, idas que se tornaram ainda mais freqüentes quando se mudaram para Omaha. Thorpe escrevia em uma máquina emprestada, quando a sua foi consertada a primeira vez, já em Omaha. O gerente da firma ligou dias depois de Reg receber sua máquina de volta, para comunicar que lhe mandaria uma conta, pela limpeza não só da máquina de empréstimo, como da que pertencia a ele.

— Qual era o problema? — quis saber a esposa do agente.

— Acho que sei — disse a esposa do escritor.

— Ela estava cheia de comida — disse o editor. — Pedacinhos diminutos de bolo e biscoitos.

Havia também manteiga de amendoim na peça em que são fixados os tipos da máquina.

Reg estava alimentando o Fornit que vivia em sua máquina de escrever. Também colocara comida na máquina de empréstimo, na hipótese de que o Fomit se tivesse mudado para ela.

— Caramba! — exclamou o escritor.

— Eu não sabia de nada disso então, compreendam. Por essa vez, escrevi em resposta, dizendo-lhe o quanto estava satisfeito. Minha secretária datilografou a carta e a trouxe para que eu a assinasse, mas então precisou sair para fazer qualquer coisa. Assinei, e ela ainda não tinha voltado. Foi quando — sem a menor razão para tanto — fiz o mesmo desenho garatujado abaixo de meu nome. Pirâmide. Olho. E "Fornit Some Fornus".

Loucura. A secretária viu aquilo e perguntou se eu ia mandar a carta assim mesmo. Dei de ombros, disse-lhe que a enviasse.

— Dois dias mais tarde, Jane Thorpe me telefonou. Disse que minha carta deixara Reg muitíssimo excitado. Ele pensava que achara uma alma gêmea... outra pessoa que também sabia sobre os Fornits. Vêem a que situação louca estava chegando a situação?

Que me conste, àquela altura um Fornit poderia ser qualquer coisa, desde chave-inglesa para canhotos a faca de carne polaca. Idem para fornus. Expliquei a Jane que me limitara a copiar o desenho de Reg. Ela quis saber por quê. Esquivei-me à pergunta, embora a resposta pudesse ser que eu estava muito bêbado, quando assinei a carta.

Ele fez uma pausa, e um silêncio incômodo caiu sobre o pátio dos fundos. As pessoas olharam para o céu, para o lago, as árvores, embora não estivessem mais interessantes agora, do que tinham estado um ou dois minutos antes.

— Eu tinha estado bebendo durante toda a minha vida adulta, sendo-me impossível dizer quando a situação me escapou ao controle. No sentido profissional, eu ia do topo da garrafa até quase o próprio final. Começava a beber no almoço e voltava tocado para o escritório. Contudo, funcionava perfeitamente bem. Era a bebida depois do trabalho — primeiro no trem e depois em casa — que me levava para além do ponto funcional.

"Eu e minha esposa vínhamos tendo problemas não relacionados à bebida, mas o fato de beber piorava ainda mais aqueles problemas. Ela viera se preparando para ir embora havia muito tempo. Uma semana antes da história de Reg Thorpe chegar, ela se foi.

"Eu tentava manejar a situação, quando deparei com a história dele. Agora bebia pesadamente. E, para cúmulo, estava tendo — bem, acho que agora é moda dar a isso o nome de crise da meia-idade. Na época, sabia apenas que estava deprimido por causa de minha vida profissional e também da vida pessoal. Procurava lutar contra — ou tentava — uma crescente sensação de que editar histórias em massa para o mercado, histórias que terminariam sendo lidas por pacientes nervosos no dentista, donas de casa na hora do almoço e um ocasional universitário entediado, não era propriamente uma atividade nobre. Procurava também lutar contra a idéia — novamente, tentava, aliás, era o que todos fazíamos na Logan's, nessa época — de que em mais seis meses, dez ou quatorze, talvez não houvesse mais nenhuma Logan's.

"Então, nessa monótona paisagem outonal da meia-idade angustiada, surge uma boa história, de autoria de um bom escritor — uma energética e divertida espiada à mecânica do enlouquecer. Foi como um raio brilhante de sol. Sei que parece estranho dizer isso sobre uma história que termina com o personagem matando a esposa e a filha pequenina, porém perguntem a qualquer editor o que ele considera uma real alegria, e ele lhes dirá que é a grande novela ou história inesperadas, caindo em sua mesa de trabalho como um grande presente de Natal. Bem, vocês todos conhecem aquela história de Shirley Jackson, "A Loteria". Ela termina da maneira mais deprimente que se possa imaginar. Quero dizer, uma bela dama é apedrejada até morrer. Seu filho e sua filha participam de seu assassinato, pelo amor de Deus! Contudo, foi uma história e tanto... e aposto como o editor da New York que primeiro leu a história, naquela noite voltou assobiando para casa.

"O que estou tentando dizer é que a história de Thorpe foi a melhor coisa em minha vida, naquele momento. A única coisa boa. E, segundo o que a esposa dele me disse ao telefone, nesse dia, minha aceitação da história foi a única coisa boa que tinha acontecido a Thorpe ultimamente. O relacionamento escritor-editor é sempre de mútuo parasitismo, porém no meu caso e de Reg, esse parasitismo foi elevado a um grau incomum.

— Voltemos a Jane Thorpe — pediu a esposa do escritor.

— Certo. Penso que a deixei em um desvio, não? Ela ficou zangada no tocante aos Fornits. A princípio. Contei-lhe que apenas garatujara aquele símbolo olho-e-pirâmide, sem saber ao certo seu significado, e me desculpei pelo que quer que houvesse feito.

"Ela dominou sua raiva e soltou tudo para mim. Estivera ficando cada vez mais ansiosa, sem ter com quem desabafar. Seus pais estavam mortos e todos os seus amigos viviam em Nova York. Reg não permitia a presença de ninguém em casa, além deles dois, alegando que os outros eram gente do Imposto de Renda, do FBI ou da CIA.

Não muito depois de se mudarem para Omaha, uma garotinha chegou à porta, vendendo biscoitos para as escoteiras. Reg gritou com ela, disse-lhe que fosse vender aquilo no inferno, que sabia perfeitamente por que estava ali, e por aí adiante. Jane tentou argumentar com ele. Disse que a menina só tinha dez anos. Reg respondeu que a gente dos impostos não tinha almas nem consciências. Além do mais, disse ele, a menininha podia ser algum andróide. Andróides não estariam sujeitos às leis trabalhistas para crianças. Talvez o pessoal dos impostos houvesse mandado uma escoteira andróide, cheia de cristais de radium, para descobrir se ele estava guardando segredos... e, nesse meio tempo, para impregna-lo com raios cancerosos.

— Santo Deus! — exclamou a esposa do agente.

— Ela havia esperado uma voz amistosa e a minha foi a primeira. Fiquei sabendo a história da menina escoteira, sobre a preocupação de Reg com os Fornits e sua alimentação, sobre fornus e sobre como ele se recusara a ter um telefone em casa ou a usar um. Ela falava comigo de um telefone pago, em uma cabine de drugstore, cinco quarteirões além de sua casa. Disse recear que Reg não estivesse realmente preocupado com a gente dos impostos, homens do FBI ou da CIA. Em sua opinião, o que seu marido realmente temia era que Eles — algum maciço e anônimo grupo que o odiava, que o invejava, que não se deteria diante de nada para apanha-lo — houvessem tomado conhecimento de seu Fornit e quisessem matar a criatura. Se o Fornit morresse, não haveria mais novelas, mais contos, nada. Compreendem? A essência da insanidade. Eles estavam decididos a liquida-lo. Resumindo, nem mesmo o Imposto de Renda, que o fizera passar momentos infernais, no relacionado à renda gerada por Underworld Figures, serviria como pretexto. No fim, eram apenas Eles. A perfeita fantasia paranóica. Eles queriam matar o seu Fornit.

— Céus, e o que você disse a ela? — perguntou o agente.

— Procurei tranqüiliza-la — disse o editor. — Lá estava eu, tendo retornado pouco antes de um almoço regado a cinco martinis, falando com aquela mulher aterrorizada que me ligava de uma cabine telefônica em um drugstore de Omaha, procurando convencê-la de que tudo estava bem, de que não devia preocupar-se com o marido que acreditava estarem os telefones repletos de cristais de radium, imaginando que um bando de pessoas anônimas enviava escoteiras andróides para liquida-lo. Disse-lhe para não inquietar-se, se seu marido havia desligado seu próprio talento de sua mentalidade, a tal ponto, que acreditava haver um elfo morando em sua máquina de escrever.

"Não acho que tenha sido muito convincente". Ela me pediu — não, suplicou — para trabalhar com Reg em sua história, para providenciar sua publicação. Aquela mulher fez tudo, exceto dizer que "O Projétil Flexível" era o último contato do marido com o que, humoristicamente, chamamos de realidade.

"Perguntei-lhe como agir, caso Reg tornasse a mencionar os Fornits. "Seja indulgente com ele", disse ela. Foram suas exatas palavras — seja indulgente com ele. E então, desligou.

"No dia seguinte, havia uma carta de Reg na correspondência — cinco páginas, datilografadas, espaço um. O primeiro parágrafo era sobre a história. Ele dizia que o segundo rascunho estava indo bem. Achava-se capaz de cortar setecentas palavras das originais dez mil e quinhentas, reduzindo o conto definitivo a nove mil e oitocentas palavras.

"O restante da carta era sobre Fornits e fornus. Suas próprias observações e perguntas... dúzias de perguntas.

— Observações? — o escritor inclinou-se para diante. — Quer dizer que ele os via realmente?

— Não — disse o editor. — Reg não os via, em um sentido real, porém, de outra maneira... suponho que sim. Sabem como é: os astrônomos supunham — sabiam — que Plutão estava lá, muito antes de contarem com um telescópio potente o bastante para vê-lo. Sabiam tudo sobre ele, estudando a órbita do planeta Netuno. Era dessa maneira que Reg observava os Fornits. Eles gostavam de comer à noite, segundo escreveu. Será que eu já percebera isso? Ele os alimentava durante todas as horas do dia, porém havia notado que a maioria da comida desaparecia após as oito da noite.

— Alucinação? — perguntou o escritor.

— Não — respondeu o editor. — Sua esposa, simplesmente, limpava o máximo daquela comida na máquina de escrever, quando Reg saia para sua caminhada noturna. E ele saía todas as noites, às nove horas.

— Eu diria que ela teve coragem, ligando para você — grunhiu o agente, remanejando o corpo volumoso na cadeira de jardim. — Ela própria alimentava a fantasia do homem.

— Acho que não entendeu por que ela me telefonou e por que estava tão perturbada. replicou quietamente o editor. Olhou para a esposa do escritor. — Pois aposto que você entendeu, Meg.

— Talvez — disse Meg, e dirigiu ao marido um desconfortável olhar de esguelha. — Ela não se irritou por você incentivar a fantasia do marido. Apenas, tinha medo que você a transtornasse.

— Muito bem! — exclamou o editor, acendendo outro cigarro. — E ela removia o alimento pelo mesmo motivo. Se a comida continuasse a acumular-se na máquina de escrever, Reg faria a dedução lógica, partindo diretamente de sua própria e decididamente ilógica premissa. Ou seja, que seu Fornit morrera ou tinha ido embora. Portanto, não haveria mais fornus. Em resultado, não haveria mais escritos. Daí...

O editor deixou a palavra em suspenso na fumaça do cigarro, depois prosseguiu:

— Reg imaginou que os Fornits deviam ser criaturas notívagas. Elas detestavam barulho — ele já percebera que não conseguia escrever pela manhã, após reuniões ruidosas — odiavam a televisão, a eletricidade livre e o radium. Reg vendera sua TV para a Goodwill por vinte dólares, segundo afirmava, e há muito se fora o seu relógio de pulso com mostrador de radium. Depois, as perguntas. Como eu ficara sabendo sobre os Fornits? Seria possível que tivesse um morando comigo? Em caso afirmativo, o que eu pensava disto, disto ou daquilo? Acho que não preciso ser mais específico. Se vocês já possuíram um cão de determinada raça e podem recordar as perguntas feitas sobre cuidados com ele e alimentação, percebem a maioria das perguntas que Reg me fez. Um pequeno rabisco abaixo de minha assinatura, foi tudo quanto se precisou, para que se abrisse a caixa de Pandora.

— O que escreveu em resposta? — perguntou o agente.

— Foi aí que realmente começou o problema — respondeu lentamente o editor. — Para nós dois. Jane havia dito "Seja indulgente com ele" e foi o que fiz. Infelizmente, acho que exagerei. Quando respondi à carta, estava em casa e muito bêbado. O apartamento me parecia demasiado vazio. Tinha um cheiro rançoso de excesso de cigarros fumados e pouca aeração. As coisas tinham piorado muito, sem Sandra por ali. As cobertas em cima do sofá estavam amarfanhadas. Havia pratos sujos na pia, esse tipo de situação. Eu era um homem de meia-idade, despreparado para a domesticidade.

"Enfiei uma folha de papel de minha correspondência pessoal na máquina de escrever, e pensei: Preciso de um Fornit. De fato, eu precisava de uma dúzia deles, para que tirassem o pó desta maldita casa solitária com fornus, de ponta a ponta. Naquele instante, de fato eu estava bêbado o bastante para invejar a fantasia de Reg Thorpe.

"Naturalmente, escrevi para ele que tinha um Fornit. Disse-lhe que o meu tinha incríveis características similares ao dele. Era notívago. Odiava barulho, mas parecia apreciar Bach e Brahms... Falei que era comum executar meu melhor trabalho após uma noite ouvindo-os. Descobrira que meu Fornit mostrava uma decidida predileção por salsichão Kirschner's... — Reg já fizera essa experiência? Eu simplesmente deixava pequenas migalhas perto do Scrillto que sempre carregava — meu lápis azul editorial, caso não saibam — e, pela manhã, estava quase tudo consumido. A menos que, como dizia Reg, tivesse havido barulho na noite anterior. Falei-lhe que ficara satisfeito em saber do detalhe sobre o radium, embora não possuísse um relógio de pulso com mostrador fosforescente. Acrescentei que meu Fornit estava comigo desde a universidade. Fiquei tão entusiasmado com minha invenção, que escrevi quase seis páginas. No final, acrescentei um parágrafo sobre a história, algo bastante superficial, e assinei.

— E abaixo de sua assinatura...? — perguntou a esposa do agente.

— Claro. Fornit Some Fornus. — O editor fez uma pausa. — Não podem enxergar no escuro, mas fiquei vermelho. Eu estava tão infernalmente bêbado, tão infernalmente tocado... É possível que mudasse de idéia à fria luz do dia, mas então já era muito tarde.

— Colocou a carta no correio à noite? — murmurou o escritor.

— Exatamente. E então, por uma semana e meia, contive o fôlego, enquanto esperava. Certo dia, chegou o manuscrito, endereçado a mim, sem nenhuma carta. Os cortes estavam como havíamos discutido e pensei que a história houvesse ficado perfeita, mas o manuscrito estava... bem, eu o coloquei em minha pasta, levei-o para casa e o redatilografei pessoalmente. Estava coberto de manchas amarelas e estranhas. Imaginei...

— Urina? — perguntou a esposa do agente.

— Sim, foi o que imaginei. Contudo, não era. Quando cheguei em casa, havia uma carta de Reg em minha caixa de correspondência. Agora, dez páginas. Naturalmente, ali vinha a explicação para as manchas amarelas. Ele não conseguira encontrar o salsichão Kirschner's, de maneira que tentara o Jordan's.

"Acrescentou que eles o tinham adorado. Em especial com mostarda.

"Naquele dia, eu estava absolutamente sóbrio. Contudo, sua carta, acrescida daquelas lamentáveis manchas de mostarda através das páginas de seu manuscrito, fez com que eu caminhasse diretamente para o armário de bebidas. Não apenas passei ao lado do armário, não me multei. Fui embriagar-me.

— O que mais dizia a carta? — quis saber a esposa do agente.

Ela se mostrara cada vez mais fascinada pelo relato e agora, inclinada sobre ventre algo avolumado, exibia uma postura que fazia a esposa do escritor recordar Snoopy, no teto de sua casa de cachorro, fingindo ser um abutre.

— Desta vez, continha apenas duas linhas sobre a história. Todo o crédito era atribuído ao Fornit... e a mim. O salsichão tinha sido, de fato, uma idéia fantástica. Rackne o adorara e, em decorrência...

— Rackne? — perguntou o escritor.

— Era o nome do Fornit — disse o editor. — Rackne. Então, em decorrência do salsichão, Rackne é que, em realidade, estava por trás do texto reescrito. O restante da carta era um canto paranóico. Nunca vi nada semelhante na vida.

— Reg e Rackne... um casamento traçado no céu — disse a esposa do escritor, com uma risadinha nervosa.

— Oh, de maneira alguma — replicou o editor. — O relacionamento deles era puramente de trabalho. Afinal, Rackne era macho.

— Bem, fale-nos sobre a carta.

— Essa é uma que não sei de cor. Tanto melhor para vocês. Mesmo anormalidades, após algum tempo tornam-se tediosas. O carteiro era da CIA. O entregador de jornais era do FBI; Reg tinha visto um revólver provido de silenciador, no saco de jornais que o menino carregava. Os vizinhos eram espiões de alguma espécie; possuíam um equipamento de vigilância em seu furgão. Ele não ousava mais ir à mercearia da esquina para comprar mantimentos, porque o proprietário era um andróide. Disse que já desconfiava disso antes, porém que agora tinha certeza. Ele vira os fios que se entrecruzavam sob o couro cabeludo do homem, nas partes que começavam a ficar calvas. Além do mais, estava alta a contagem do radium em sua casa; à noite, podia ver uma mortiça claridade esverdeada nos aposentos.

"A carta terminava assim: "Espero que responda a esta e me ponha ao corrente de sua situação (e do seu Fornit), com referência a inimigos, Henry. Acredito que este nosso relacionamento tenha sido uma ocorrência que transcende à coincidência. Poderíamos dar a ele o nome de alerta-vital (de Deus? Da Providência? Do Destino? Inclua o termo que desejar) no último instante possível.

"Não é crível que um homem fique sozinho por tanto tempo, contra mil inimigos. E quando, afinal, descobrir que não se encontra só... seria exagero dizer que a comunalidade de nossa experiência se levanta entre a minha pessoa e a destruição total?

Talvez não. Eu preciso saber: os inimigos estão atrás de seu Fornit, como estão de Rackne? Em caso afirmativo, como você maneja a situação? Em caso negativo, tem alguma idéia de por que não estão? Repito, eu preciso saber."

"A carta continha o desenho do Fornit Some Fornus abaixo da assinatura e, em seguida, vinha um P.S., constando de apenas uma frase. Contudo, uma frase letal. O P.S. dizia: "Às vezes, desconfio de minha esposa."

"Li a carta do começo ao fim três vezes. No processo, dei cabo de uma garrafa inteira de Black Velvet. Comecei a considerar opções sobre como responder àquela carta. Era um grito de socorro de um homem afogando-se, sem qualquer dúvida. A história o mantivera lúcido por algum tempo, mas agora ela ficara pronta. E agora ele dependia de mim para continuar lúcido. Era algo perfeitamente racional, desde que eu acarretara tudo aquilo.

"Andei de um lado para outro dentro de casa, por todos os aposentos vazios. Então, comecei a desligar coisas. Estava muito bêbado, lembrem-se, e uma forte bebedeira abre vias inesperadas de sugestibilidade. Daí o motivo de editores e advogados optarem por três drinques, antes de falarem sobre contratos, à hora do almoço.

O agente deu uma risada ruidosa, mas os ânimos permaneceram rígidos, tensos e incômodos.

— Por favor, tenham em mente que Reg Thorpe era um senhor escritor. Estava absolutamente convicto do que dizia. FBI. CIA. IR. Eles. Os inimigos. Certos escritores possuem o dom muito raro de refrigerar sua prosa, quanto mais apaixonadamente sentem o seu tema. Steinbeck fazia isso e também Hemingway. Reg Thorpe tinha o mesmo talento. Quando alguém penetrava em seu mundo, tudo começava a parecer muito lógico. Achava-se muito provável, uma vez aceita a premissa básica do Fornit, que o menino entregador de jornais tivesse um 38 com silenciador em sua saca de jornais. Que os universitários da casa ao lado, donos do furgão, poderiam realmente ser agentes da KGB, com cápsulas mortíferas em molares de cera, empenhados em uma missão faça-ou-morra, para matar ou capturar Rackne.

"Naturalmente, não aceitei a premissa básica. Contudo, eu sentia grande dificuldade em raciocinar. E desligava coisas. Primeiro foi a televisão colorida, por que todos sabem que realmente emitem grande radiação. Na Logan's, publicamos certa vez um artigo da autoria de um cientista de reputação inatacável, sugerindo que a radiação emitida pela TV em cores doméstica estava interrompendo as ondas cerebrais humanas o suficiente para alterá-las, minuciosa, mas permanentemente. Esse cientista sugeria que talvez fosse este o motivo do declínio das notas em geral dos estudantes, dos testes literários e do desenvolvimento de especialização matemática na escola primária. Afinal, quem fica mais sentado diante de um aparelho de TV do que uma criança?

"Assim, desliguei a televisão, e isso pareceu realmente arejar meus pensamentos. De fato, senti-me tão melhor, que desliguei o rádio, a tostadeira, a máquina de lavar e a secadora de roupas. Lembrei-me então do forno de microondas e o desliguei da parede.

"Senti um verdadeiro alívio, quando os dentes da maldita coisa foram arrancados. Era um dos primeiros modelos no mercado, mais ou menos do tamanho de uma casa e, sem dúvida, realmente perigoso. Hoje em dia, consegue-se fazê-los mais protegidos.

"Ocorreu-me quantas coisas possuímos em uma residência comum da classe média, ligadas à parede. Veio-me uma imagem sobre esses sérios octópodes elétricos, seus tentáculos consistindo de fios elétricos, todos serpenteando pelas paredes, todos ligados a cabos externos, e todos os cabos seguindo para estações de energia elétrica, dirigidas pelo governo.

"Quando fiz aquelas coisas, havia uma curiosa duplicidade em minha mente — prosseguiu o editor, após uma pausa para um gole de Fresca. — Essencialmente, eu reagia a impulsos supersticiosos. Há muitas pessoas que não passam debaixo de escadas ou abrem um guarda-chuva dentro de casa. Há jogadores de basquete que se benzem antes de uma jogada decisiva e jogadores de beisebol que trocam as meias quando estão inferiorizados. Creio que seja a mente racional tocando um acompanhamento em mau estéreo com o subconsciente irracional. Eu diria que se trata de um pequeno aposento acolchoado, dentro de todos nós, onde o único mobiliário é uma pequena mesa dobrável de jogo, sendo a única coisa sobre a mesa um revólver carregado com projéteis flexíveis.

"Quando trocamos de calçada para fugir à escada ou saímos do apartamento para a chuva com um guarda-chuva fechado, parte de nosso eu integral se despe e penetra naquele aposento, onde pega a arma em cima da mesa. Talvez estejamos cônscios de dois pensamentos conflitantes: passar debaixo da escada é inofensivo e não passar debaixo de uma escada também é inofensivo. Contudo, assim que a escada está atrás de nós — ou assim que o guarda-chuva é aberto — voltamos ao ponto de partida.

— Isso é muito interessante — disse o escritor. — Avance um pouco mais para mim, caso não se importe. Quando é que a parte irracional pára realmente de brincar com a arma e a aponta para a têmpora?

O editor respondeu:

— Quando a pessoa em questão começa a escrever para a seção de leitores dos jornais, exigindo que todas as escadas sejam retiradas, porque passar debaixo delas é perigoso.

Houve risos.

— Já que fomos tão longe, creio que devemos terminar. O eu irracional disparou realmente o projétil flexível no cérebro, quando a pessoa começa a mover-se violentamente pela cidade, derrubando escadas e talvez machucando os que nelas trabalham. Dar a volta em torno de escadas ou passar debaixo delas não é, certamente, um comportamento interditável. Tampouco é comportamento interditável alguém escrever cartas ao jornal, dizendo que a Cidade de Nova York entrou em colapso, porque todos passam atrevidamente debaixo das escadas usadas por operários. Contudo, é interditável começar a derrubar escadas.

— Porque é premeditado — murmurou o escritor.

O agente disse:

— Você acertou o alvo aí, Henry. Pessoalmente, sou contra acender três cigarros com um só fósforo. Não sei como adquiri a mania, mas é assim que ajo. Aliás, li em algum lugar, que isso começou nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial. Parece que os atiradores alemães esperavam que os Tommies começassem a acender os cigarros uns dos outros.

No primeiro clarão, consegue-se o alcance de tiro. No segundo, avalia-se o desvio da bala. E, no terceiro, estoura-se a cabeça do sujeito. Contudo, mesmo saber disso não fez qualquer diferença. Ainda continuo sem acender três cigarros com um fósforo. Uma parte de mim diz que pouco importa se acendo uma dúzia de cigarros com um fósforo. A outra, no entanto — esta, uma voz lúgubre e soturna, como um Boris Karloff interior — diz, Ohhhh, se você fizer isso..."

— Entretanto, nem toda a loucura é supersticiosa, certo? — perguntou timidamente a esposa do escritor.

— Será? — replicou o editor. — Joana d'Arc ouvia vozes do céu. Algumas pessoas julgam-se possuídas por demônios. Outras vêem gremlins... ou diabos... ou Fornits. Os termos que usamos para a loucura, sugerem superstição, em uma ou outra forma. Mania... anormalidade... irracionalidade... demência... insanidade... Para a pessoa louca, a realidade entortou-se. Como um todo, a criatura começa a reintegrar-se naquele quartinho onde está a pistola.

"Contudo, a minha parte racional ainda estava bem presente. Ensangüentada, esfolada, indignada e talvez amedrontada, mas ainda funcionando. Dizendo: "Oh, está tudo bem. Amanhã, quando você ficar sóbrio, poderá ligar tudo outra vez, graças a Deus. Faça as brincadeirinhas que quiser, mas não passe daí. Não vá além disso."

"Aquela voz racional tinha o direito de estar amedrontada. Em nós, existe algo que é muito atraído para a loucura. Todos que olham pela borda de um edifício alto, já sentiram pelo menos uma fraca, mórbida vontade de saltar. E quem quer que já tenha encostado uma arma carregada à cabeça...

— Ai, pare! — disse a esposa do escritor. — Por favor!

— Está bem — respondeu o editor. — Meu ponto é apenas este: mesmo a pessoa mais bem ajustada, tem sua lucidez pendendo de uma corda ensebada. Acredito realmente nisso. Os circuitos da racionalidade são fracamente construídos dentro do animal humano.

"Com as tomadas desligadas, fui para meu estúdio, escrever uma carta para Reg Thorpe.

Depois a coloquei em um envelope, selei-a, saí e a postei. Aliás, não me recordo de ter feito nada disso. Estava bêbado demais para lembrar. No entanto, deduzi que fiz, porque quando me levantei, na manhã seguinte, o carbono ainda estava sobre minha máquina de escrever, juntamente com os selos e a caixa de envelopes. A carta dizia o que se pode esperar de um bêbado. Seu conteúdo explicava mais ou menos isto: os inimigos eram atraídos pela eletricidade, assim como os próprios Fornits. Livre-se da eletricidade e estará livre dos inimigos. No fim, eu tinha escrito: "A eletricidade está transtornando suas idéias sobre estas coisas, Reg. Interferência com ondas cerebrais. Sua esposa tem um liquidificador?"

— Com efeito, você começava a escrever cartas para o jornal — comentou o escritor.

— Sem dúvida. Escrevi aquela carta em uma noite de sexta-feira. Na manhã de sábado, levantei por volta das onze horas, com ressaca e apenas vagamente cônscio da traquinada cometida na véspera. Senti ondas de vergonha, quando comecei a religar os aparelhos elétricos. A vergonha maior — e medo — foi quando vi o que tinha escrito a Reg. Revisei toda a casa em busca do original daquela carta, rezando para não a ter enviado. Contudo, ela já estava a caminho de Omaha. E só consegui passar aquele dia, tomando a decisão de carregar minha cruz como homem e seguir em frente. Foi o que fiz.

"Na quarta-feira seguinte, recebi carta de Reg. Uma página, manuscrita. Toda desenhada com Fornit Some Fornus. No meio, apenas isto: "Você tinha razão. Obrigado, obrigado, obrigado. Reg. Você tinha razão. Tudo está ótimo agora. Reg. Muitíssimo obrigado. Reg. O Fornit está ótimo. Reg. Obrigado. Reg."

— Oh, meu Deus! — exclamou a esposa do escritor.

— Aposto como a mulher dele ficou louca — disse a esposa do agente.

— Nada disso. Porque a coisa funcionou.

— Funcionou? — perguntou o agente.

— Ele recebeu minha carta na correspondência da manhã de segunda-feira. Na tarde desse dia, Reg foi ao escritório local da companhia de eletricidade e disse a eles que cortassem a energia de sua casa. Jane Thorpe, naturalmente, ficou histérica. Seu fogão era elétrico e, de fato, ela possuía um liquidificador, máquina de costura, uma combinação de lavadora-secadora de roupas... bem, vocês entendem. Na noite de segunda-feira, tenho certeza de que ela estava pronta para ter minha cabeça em uma bandeja.

"Contudo, foi o comportamento de Reg que a levou a considerar-me um fazedor de milagres, em vez de lunático. Ele a fez sentar-se na sala de estar e conversou com ela, demonstrando a maior racionalidade. Disse saber que estivera agindo de maneira muito singular. Sabia-a preocupada com isso. Disse-lhe que se sentia bastante melhor com a eletricidade cortada e que ficaria satisfeito em ajudá-la, ante qualquer inconveniência produzida por aquele corte de energia. Depois sugeriu que fossem até a casa vizinha, dizer olá.

— Não era a residência dos agentes da KGB, com radium em seu furgão? perguntou o escritor.

— Exatamente. Jane não teve saída. Concordou em ir lá com ele, segundo me disse, mas já preparada para uma cena desagradável. Acusações, ameaças, histeria. Começara a pensar em abandonar Reg, se ele não acedesse em obter ajuda para seu problema.

Contou-me que, naquela manhã de quarta-feira ao telefone, fizera a si mesma uma promessa: a questão da eletricidade era a gota que fazia o copo transbordar. Ele que aprontasse mais uma, e ela partiria para Nova York. Estava ficando amedrontada, entendam. A situação havia piorado aos poucos, em graus quase imperceptíveis, e ela o amava, mas já fora tão longe até onde podia ir. Decidira que, se Reg dissesse uma só palavra estranha aos estudantes vizinhos, sairia de casa. Muito mais tarde, fiquei sabendo que ela já tomara algumas discretas informações sobre o procedimento em Nebraska para internação involuntária de um doente mental.

— Pobre mulher! — murmurou a esposa do escritor.

— A noite, contudo, foi um estrondoso sucesso — disse o editor. — Reg não podia estar mais fascinante... e, segundo Jane, ele foi extraordinariamente fascinante. Nunca o vira assim, nos últimos três anos. A casmurrice, o retraimento, tudo desaparecera. Os tiques nervosos. O salto involuntário e o olhar por sobre o ombro, sempre que uma porta era aberta. Ele tomou uma cerveja e discorreu sobre todos os sombrios tópicos da atualidade naquela época: a guerra, as possibilidades de um exército de voluntários, as desordens nas cidades, as leis decadentes.

"O fato dele haver escrito Underworld Figures veio à tona, e eles ficaram... "impressionados pelo escritor", foi como disse Jane. Três deles já o tinham lido, mas é fora de dúvida que o outro não perderia muito tempo, antes de correr para a biblioteca.

O escritor riu e assentiu. Já passara por isso também.

— Assim — prosseguiu o editor — deixaremos Reg Thorpe e sua esposa apenas por um momento, sem energia elétrica, porém mais felizes do que nunca...

— Ainda bem que ele não possuía uma máquina de escrever IBM — disse o agente — e voltaremos ao Senhor Editor. Duas semanas passaram. O verão chegava ao fim. O Senhor Editor tinha, é claro, recaído na bebedeira várias vezes, mas em geral conseguia permanecer bastante respeitável. Os dias sucederam-se. Em Cabo Kennedy, estavam prontos para colocar um homem na Lua. O novo exemplar de Logan's, com John Lindsay na capa, já estava à venda. mas vendendo miseravelmente, como de costume.

Eu havia apresentado um pedido para compra de um conto chamado "A Balada do Projétil Flexível", da autoria de Reg Thorpe, direitos para a primeira série, publicação proposta para janeiro de 1970 e preço proposto de compra 800 dólares, que era o padrão, para uma história principal na Logan's.

"Recebi uma chamada de meu superior, Jim Dohegan. Eu poderia subir para falar com ele? Trotei até seu gabinete às dez da manhã, com minha melhor aparência e sentido-me ótimo. Só mais tarde, ocorreu-me que Janey Morrison, secretária dele, parecia com cara de velório.

"Sentei-me e perguntei a Jim o que podia fazer por ele ou vice-versa. Evidentemente, estava com o nome de Reg Thorpe na cabeça; ter sua história era um tremendo sucesso para Logan's e desconfiei que havia algumas felicitações a caminho. Assim, podem imaginar qual o meu aturdimento, quando ele empurrou duas ordens de compra sobre a mesa, em minha direção. A história de Thorpe e uma novela de John Updike, que havíamos programado como a ficção principal para fevereiro. A palavra DEVOLUÇÃO tinha sido carimbada em ambas.

"Olhei para as ordens de compra revogadas. Olhei para Jimmy. Não conseguia entender nada. De fato, não conseguia pôr meu cérebro em funcionamento para desvendar aquilo.

Havia um bloqueio interno. Olhei em torno e vi sua placa elétrica. Janey a levava todas as manhãs, quando vinha trabalhar, e então ligava a placa, a fim de que Jimmy tivesse café fresco, sempre que quisesse. Aquele tinha sido um rigoroso costume na Logan's, durante três anos ou mais. E, naquela manhã, eu só conseguia pensar era, se aquela coisa estivesse desligada, eu poderia raciocinar. Sei que, se aquela coisa estivesse desligada, eu compreenderia esta questão.

"Perguntei, "O que significa isto, Jim?"

"Lamento como o diabo ter que dizer-lhe isto, Henry", respondeu ele, "mas Logan's não estará mais publicando trabalhos de ficção em janeiro de 1970."

O editor fez uma pausa para acender um cigarro, mas seu maço estava vazio.

— Alguém tem um cigarro? — perguntou.

A esposa do escritor passou-lhe um maço de Salem.

— Obrigado, Meg.

Ele acendeu o cigarro, jogou fora o fósforo e aspirou profundamente. A brasa brilhou maciamente no escuro.

— Bem — disse ele — Jim deve ter pensado que eu estava doido. Perguntei a ele, "Você se importa?" e então, inclinando-me, puxei fora a tomada de aquecimento de sua placa elétrica.

"Ele ficou boquiaberto. "Diabo, o que há, Henry?" perguntou.

"Sinto dificuldades em pensar com uma coisa dessas ligada", respondi. "Dá interferência". E parecia ser isso mesmo, porque sem a tomada na parede, eu conseguia encarar a situação com muito maior clareza. "Quer dizer que me mandam embora?" perguntei a ele.

"Não sei", respondeu ele. "Isso é com San e a diretoria. Sinceramente, não sei de nada, Henry".

"Havia muitas coisas que eu podia ter dito. Acho que Jimmy esperava uma súplica ardente por meu emprego. Sabem aquele dito, "Ele estava no mato sem cachorro"?... Pois eu digo que só compreenderão o sentido desta frase, quando forem chefes de um departamento subitamente não-existente.

"Contudo, não supliquei por minha causa ou pela causa da ficção na Logan's. Minha súplica foi pela história de Reg Thorpe. Primeiro, falei que poderíamos dar-lhe outra programação — colocá-la no número de dezembro.

"Ora, vamos, Henry", disse Jimmy. "O número de dezembro já está fechado e você sabe. Além do mais, aqui estamos lidando com dez mil palavras!"

"Nove mil e oitocentas", falei.

"Mais uma página inteira com ilustração", disse ele. "Esqueça".

"Bem, tiramos a ilustração", argumentei. "Ouça, Jimmy, esta é uma grande história, talvez a melhor ficção que já tivemos, nos últimos cinco anos".

"Eu a li, Henry", disse Jimmy. "Sei que é uma grande história. Contudo, não podemos publicá-la. Não em dezembro. É o mês do Natal, pelo amor de Deus! Você quer inserir uma história sobre um sujeito que mata a esposa e a filha, debaixo das árvores de Natal da América? Ora, você deve estar..." Ele se interrompeu, mas vi o olhar que lançou para sua placa elétrica. Era o mesmo que ter dito em voz alta, entendem?

O escritor assentiu lentamente, seus olhos nunca se afastando da sombra escura que era o rosto do editor.

"Comecei a ficar com dor de cabeça. Primeiro, apenas uma dorzinha. Foi ficando mais difícil concentrar as idéias. Recordei que Janey Morrison tinha um apontador elétrico para lápis em sua mesa. Havia todas aquelas lâmpadas fluorescentes no gabinete de Jim... Os aquecedores... As máquinas de venda automáticas na concessão, no final do corredor... Se parasse para pensar nisso, concluiria que todo o maldito edifício funcionava à base de eletricidade; era um milagre que alguém conseguisse fazer qualquer coisa. Foi quando a idéia começou a imiscuir-se, imagino. A idéia de que a Logan's ia quebrar, porque ninguém podia pensar direito. E o motivo de não se poder pensar direito, era porque estávamos todos trabalhando juntos naquele arranha-céu funcionando eletricamente. Nossas ondas cerebrais estavam em total confusão..

Lembro-me de haver pensado que se um médico aparecesse lá com um desses aparelhos EEG, obteria alguns gráficos incrivelmente estranhos. Repletos daquelas enormes e agudas ondas alfa, que caracterizam tumores malignos no cérebro anterior.

"Só pensar nessas coisas, aumentava minha dor de cabeça. Contudo, fiz mais uma tentativa. Perguntei-lhe se, pelo menos, falaria com Sam Vadar, o editor-chefe, para deixar a história sair no número de janeiro. Como a ficção de encerramento na revista, se preciso fosse. O último conto a ser publicado na Logan's.

"Jimmy brincava com um lápis e assentiu. Disse, "Tratarei do assunto, mas nada posso garantir. Temos a história de um novelista de um só livro e a história de John Updike, também muito boa... talvez até melhor... e..."

"A história de Updike não é melhor!" — exclamei.

"Ora, Henry, por favor, não precisa gritar..."

"Eu não estou gritando!" — gritei.

"Ele ficou um tempão olhando para mim. Minha dor de cabeça estava lancinante, àquele momento. Eu podia ouvir o zumbido das lâmpadas fluorescentes. Eram como um punhado de moscas, capturadas em uma garrafa. Um som francamente odioso. Pensei então que podia ouvir Janey usando seu apontador elétrico. Estão, jazendo isso de propósito, imaginei. Querem confundir-me. Sabem que não posso concatenar as idéias e falar com clareza, enquanto essas coisas estiverem funcionando, e assim... e assim...

"Jim falava algo sobre levar o assunto à próxima reunião editorial, sugerindo que, em vez de uma data arbitrária para a exclusão de ficção na revista, eles poderiam publicar todas as histórias com que eu já me comprometera verbalmente... embora...

"Levantei-me, cruzei a sala e apaguei as luzes

"Por que fez isso?" perguntou Jimmy.

"Você sabe porquê" respondi. "Devia sair daqui, Jimmy, antes que nada mais reste de você!"

"Ele se levantou e caminhou para mim. "Acho que devia tirar uma folga pelo resto do dia, Henry", disse. "Vá para casa. Descanse. Sei que tem vivido sob tensão ultimamente. Fique sabendo que farei o melhor ao meu alcance quanto a este assunto. Lamento tanto quanto você... bem, quase tanto quanto você. Contudo, devia ir para casa, pôr os pés para o alto e ver um pouco de televisão."

"Televisão!" repeti, e dei uma risada. Era a coisa mais engraçada que já ouvira. "Ouça Jimmy, quero que diga algo mais a Sam Vadar em meu nome."

"O que é, Henry?"

"Diga a ele que está precisando de um Fornit. Ele e toda a equipe. Um Fornit? Não. Uma dúzia deles."

"Um Fornit", assentiu Jimmy" Está bem, Henry. Fique certo de que direi isso a ele".

"Minha dor de cabeça era terrível. Eu mal conseguia enxergar. Em alguma parte, no fundo de minha mente, eu já me perguntava como dar a notícia a Reg e gostaria de saber como ele aceitaria isso.

"Eu mesmo providenciarei o pedido de compra, se descobrir a quem enviá-lo", falei. "Reg talvez tenha algumas idéias. Uma dúzia de Fornits. Seriam postos limpando este lugar, com fornus, de ponta a ponta. A maldita energia elétrica seria desligada, toda ela".

Eu caminhava pelo gabinete de Jimmy e ele olhava para mim, boquiaberto. "Devem cortar toda a energia elétrica, Jimmy, diga a eles que façam isso. Diga isso a Sam. Ninguém consegue pensar direito, com toda essa interferência elétrica, estou certo?"

"Você está certo, Henry, cem por cento certo. Agora, vá para casa e descanse um pouco, está bem? Tire uma soneca ou coisa assim."

"Ah, os Fornits, sabe? Eles não gostam de toda essa interferência. Radium, eletricidade, é tudo a mesma coisa. Alimente-os com salsichão. Bolo. Manteiga de amendoim. Podemos conseguir requisições para essa compra?"

Minha dor de cabeça era como uma bola negra de dor, por trás dos olhos. Eu via dois Jimmy, tudo em duplicata. Então, de repente, senti necessidade de um drinque. Se não havia fornus e se o lado racional de minha mente afirmava que não havia, então um drinque era a única coisa no mundo que me deixaria bem.

"Claro, podemos conseguir as requisições", disse ele.

"Não acredita em nada disto, não é, Jimmy?" perguntei.

"É claro que acredito. Está tudo bem. Agora,. vá para casa e procure descansar um pouco."

"Você não está acreditando", insisti, "mas talvez passe a acreditar, quando este circo for à falência. Como, em nome de Deus, julga que está tomando decisões racionais, se fica sentado a menos de quinze metros de um punhado de máquinas de Coca, máquinas de doces e máquinas de sanduíches" Foi quando tive um pensamento realmente terrível. "E um forno de microondas!" gritei para ele. "Elas tem um, forno de microondas embutido, para esquentar os sanduíches!"

Ele começou a dizer qualquer coisa, mas não lhe prestei muita atenção. Corri para fora.

A idéia daquele forno de microondas explicava tudo. Eu tinha que ir embora dali. Era isso que tornava a minha dor de cabeça tão terrível. Recordo que vi Janey e Kate Younger, do departamento de anúncios, bem como Mert Strong, da publicidade, no gabinete externo, todas me fitando de olhos esbugalhados. Deviam ter-me ouvido gritar.

Meu gabinete ficava logo no andar de baixo. Fui pela escada. Entrei em minha sala, apaguei todas as luzes e peguei minha pasta. Fui de elevador até o saguão do prédio, coloquei a pasta entre meus pés e enfiei os dedos nos ouvidos. Também recordo que as outras três ou quatro pessoas que estavam no elevador, olhavam para mim com estranheza. — O editor deu uma risadinha seca. Estavam com medo. Por assim dizer.

Se estivessem confinados em uma pequena caixa móvel, em companhia de um louco óbvio, vocês também teriam medo.

— Oh, sem dúvida! Esta foi um pouco forte — comentou a esposa do agente.

— Nem tanto. A loucura tem que começar em algum lugar. Se esta é uma história sobre qualquer coisa — se os eventos na vida de uma pessoa podem ser considerados como sendo sobre qualquer coisa — então esta é uma história sobre a gênese da insanidade. A loucura tem que começar em algum lugar e também tem que ir para algum lugar. Como uma estrada. Ou um projétil, do cano de uma arma. Eu ainda estava quilômetros atrás de Reg Thorpe, mas me encontrava a caminho. Podem apostar.

"Eu tinha que ir para algum lugar, portanto, dirigi-me ao Four Fathers, um bar na Rua 49. Recordo ter escolhido especificamente esse bar, porque lá não havia vitrola automática, televisão a cores ou luzes em demasia. Lembro-me de ter pedido o primeiro drinque. Depois disso, não consigo recordar mais nada, até acordar no dia seguinte, em casa, na minha cama. Havia vômito no chão e uma enorme queimadura de cigarro no lençol que me cobria. Em meu estupor, aparentemente eu escapara da morte por dois meios extremamente desagradáveis — asfixiado ou queimado. Aliás, acho que não chegaria a sentir nenhum dos dois.

— Céus! — exclamou o agente, quase com respeito.

— Foi um blackout — disse o editor. — O primeiro real e legítimo blackout de minha vida — mas eles são sempre um sinal do fim e a gente nunca passa por muitos. De um modo ou de outro, nunca há muitos. Contudo, um alcoólatra lhes dirá que um blackout não é o mesmo que ficar inconsciente. Se fosse, muitos problemas seriam evitados. Quando um alcoólatra entra em blackout, ele continua fazendo coisas. Um alcoólatra em blackout é um demoninho em atividade. Uma espécie de Fornit maligno. Ele liga para a ex-esposa e diz-lhe horrores ao telefone, quando não dirige seu carro pelo lado errado no pedágio, acabando por arrasar outro carro, lotado de garotada. Ele abandona o emprego, rouba um supermercado, desfaz-se da aliança de casamento. São demoninhos ativos.

"Aparentemente, o que eu fiz, foi ir para casa e escrever uma carta. Só que não era dirigida a Reg. Era para mim mesmo. E eu não a escrevi — pelo menos, segundo a carta, não fui eu".

— Quem a escreveu? — perguntou a esposa do escritor.

— Bellis.

— E quem é Bellis?

— O Fornit dele — respondeu o escritor, quase alheadamente, com olhar sombrio e distante.

— Exato — disse o editor.

Não parecia nem um pouco surpreso. A seguir, repetiu a carta para seus ouvintes, novamente ao doce ar da noite, acentuando com o dedo os pontos adequados.

— Olá, da parte de Bellis. Sinto muito por seus problemas, meu amigo, porém gostaria de indicar, desde o princípio, que você não é o único a tê-los. Esta não é uma tarefa fácil para mim. Posso limpar sua máquina com fornus, de agora até a eternidade, porém supõe-se que movimentar as TECLAS seja responsabilidade sua. PARA isso é que Deus fez as pessoas em tamanho grande. Assim, solidarizo-me com você, mas é tudo que posso fazer.

"Compreendo sua preocupação com respeito a Reg Thorpe. Eu não me preocuparia com ele, mas com Rackne, meu irmão. Thorpe fica preocupado com o que lhe acontecerá, se Rackne for embora, mas somente por ser egoísta. A maldição de servir-se a escritores, é serem todos eles egoístas. Ele não se preocupa com o que acontecerá a Rackne, se THORPE for embora. Ou se for el bonzo seco. Parece que tais coisas jamais cruzaram sua mente, oh, tão sensível. Contudo, felizmente para nós, todos os nossos infortunados problemas têm a mesma solução a curto prazo, de modo que estendo meus braços e meu diminuto corpo para dá-los a você, meu embriagado amigo. VOCÊ pode querer saber sobre soluções a longo prazo; eu lhe garanto que não existem. Todos os ferimentos são mortais. Aceite o que lhe é dado. Por vezes, você fica um pouco bambo na corda, porém ela sempre tem um fim. Abençoe a corda bamba e não desperdice respiração, xingando a queda. Um coração agradecido sabe que, no fim, todos balançamos.

"Você deve pagar-lhe a história, de seu bolso, mas não com um cheque pessoal."

Os problemas mentais de Thorpe são sérios, talvez perigosos, porém isto, de maneira alguma, indica burrice.

Neste ponto, o editor soletrou a palavra: b-u-r-r-i-c-e. Então, prosseguiu:

— Se você enviar-lhe um cheque personalizado, a loucura dele explodirá, em uns nove segundos.

"Saque oitocentos e poucos dólares de sua conta bancária e faça seu banco abrir uma nova conta para você, em nome de Arvin Publishing, Inc. Faça-os compreender que precisa de cheques com aparência comercial — nada de cães de luxo ou vistas de canyons neles. Encontre um amigo, alguém de sua confiança, e o coloque como co-sacador.

Assim que estiver de posse do talonário, preencha um cheque com oitocentos dólares e peça a essa outra pessoa que o assine. Então, envie o cheque a Reg Thorpe. Isso deixará você a coberto, futuramente.

"Encerro e desligo." Estava assinado "Bellis". Não em holograma. Datilografado.

— Minha nossa! — exclamou o escritor.

— Quando levantei, a primeira coisa que notei foi a máquina de escrever. Parecia que alguém a caracterizara, como máquina de escrever-fantasma, em algum filme barato. Na véspera, ela havia sido uma Underwood negro-escritório. Ao levantar-me — com uma cabeça que parecia do tamanho de Dakota do Norte ela estava de um tom acinzentado.

As últimas frases da carta estavam atropeladas e desbotadas. Dei uma espiada e imaginei que minha fiel e antiga Underwood chegara ao fim da linha, com toda a certeza. Provei algo na boca e fui até a cozinha. Havia um saco de açúcar de confeiteiro aberto, em cima do balcão, com uma concha em seu interior. Também havia açúcar de confeiteiro espalhado por todo canto, entre a cozinha e o pequeno aposento onde eu trabalhava, naquela época.

— Você alimentava seu Fornit — disse o escritor. — Bellis gostava de coisas doces. Pelo menos, você assim pensou.

— Sem dúvida. No entanto, embora indisposto e de ressaca como me encontrava, eu sabia perfeitamente quem era o Fornit.

O editor enumerou nos dedos.

— Primeiro, Bellis era o sobrenome de solteira de minha mãe.

"Segundo, aquela frase, el bonzo seco. Era uma frase particular que eu e meu irmão costumávamos usar, com o significado de loucura. Quando éramos crianças.

"Terceiro, e mais execrável, foi a escrita da palavra "burrice". Trata-se de uma palavra que geralmente escrevo errada. Certa vez, tive um escritor gritantemente letrado, que costumava escrever "refridgerador", com um d — em vez de "refrigerador" — pouco importando quantas vezes os revisores o corrigissem. Esse mesmo sujeito, diplomado em Princeton, sempre escrevia "sombrancelha", em vez de "sobrancelha".

A esposa do escritor deu uma risada súbita — tanto embaraçada, como alegre.

— Eu faço isso — disse ela.

— Tudo quanto quero dizer é que os erros ortográficos de um homem — ou de uma mulher — são suas impressões digitais literárias. Perguntem a qualquer copydesk que tenha revisado algumas vezes trabalhos do mesmo escritor.

"Não, Bellis era eu e eu era Bellis. No entanto, seu conselho era infernalmente bom. De fato, achei-o um grande conselho. Contudo, aqui vai algo mais, o subconsciente deixa suas impressões digitais, mas lá embaixo também existe um ser estranho. Um diabo de sujeito esquisito, que entende um diabo de coisas. Eu jamais vira aquele termo "co-sacador", apesar de todo o meu conhecimento... mas lá estava ele, era muito bom e, tempos depois, fiquei sabendo que realmente os bancos o usam.

"Peguei o fone, a fim de ligar para um amigo, e então senti aquela pontada de dor — incrível! — varando-me a cabeça. Pensei em Red Thorpe, em seu radium e tornei a colocar precipitadamente o fone no gancho. Procurei esse amigo pessoalmente, após tomar uma ducha, fazer a barba e examinar-me umas nove vezes ao espelho, para ter certeza de que minha aparência correspondia aproximadamente à de um ser humano racional, como se presume que seja. Ainda assim, fiz-me um monte de perguntas e vigiei-me intimamente. Creio serem bem poucos os indícios que uma ducha, barba feita e uma boa dose de Listerine não consigam esconder. Esse amigo não era do meu ramo, o que já significava algo. As notícias costumam voar, como sabem. Nos negócios. Por assim dizer. Aliás, se ele fosse do ramo, saberia que Arvin Publishing, Inc., era responsável pela Logan's e gostaria de saber que tipo de tramóia eu estava querendo armar. Como era alheio à atividade, nada perguntou e pude falar-lhe de um empreendimento de auto-editoração em que estava interessado, uma vez que, aparentemente, a Logan's decidira eliminar o departamento de ficção.

— Ele perguntou por que lhe dava o nome de Arvin Publishing? — quis saber o escritor.

— Perguntou.

— E o que você respondeu?

— Respondi — disse o editor, com um sorriso frio — que Arvin era o sobrenome de solteira de minha mãe.

Houve uma breve pausa e depois o editor recomeçou a falar. Então, falou até o fim, quase sem ser interrompido.

— Assim, comecei a esperar pelos cheques impressos, dos quais desejava exatamente um.

Para passar o tempo, eu me exercitava. Sabem como é — levantar o copo, flexionar o cotovelo, esvaziar o copo, flexionar o cotovelo novamente. Até que, por fim, o exercício nos cansa e acabamos caindo para diante, com a cabeça em cima da mesa. Aconteceram outras coisas, mas estas eram as únicas que realmente me ocupavam a mente — a espera e o flexionamento. Que me recorde, aliás. Devo acentuar isto, porque eu estava bêbado a maior parte do tempo e então, para cada coisa que recorde, devem existir talvez cinqüenta ou sessenta que nem me passam pela cabeça.

"Deixei o emprego — o que provocou um suspiro de alívio geral, disto estou certo. Um suspiro deles, porque não precisaram executar a tarefa existencial de me demitirem por loucura, de um departamento não mais em existência; um suspiro meu, porque eu achava que não conseguiria enfrentar novamente aquele edifício — o elevador, as lâmpadas fluorescentes, os telefones, a idéia de tudo quanto recebia eletricidade.

"Escrevi a Reg Thorpe e sua esposa duas cartas, uma a cada um, durante aquele período de três semanas. Lembro-me de ter escrito a dela, mas não a dele — como aconteceu com a carta de Bellis, escrevi aquelas em momentos de blackocct. Contudo, eu revertia a meus velhos hábitos de trabalho quando estava alto, assim como persistia em minha velha ortografia errada. Nunca deixava de usar um carbono... e quando chegava a manhã seguinte, as cópias a carbono estavam por ali. Era como ler cartas de um estranho.

"Não que as cartas fossem loucas. De maneira alguma. Aquela que terminei com o P.S. sobre o liquidificador, foi muito pior. Aquelas cartas pareciam... quase racionais.

Ele parou e meneou a cabeça, lenta e cansadamente.

— Pobre Jane Thorpe! Não que as coisas parecessem tão ruins no final. Ela deve ter achado que o editor de seu marido estava fazendo um altamente especializado — e humano — trabalho, ao ser indulgente com ele, arrancando-o de uma depressão cada vez mais funda. Provavelmente já tivesse ocorrido a ela a questão de ser ou não uma boa idéia alguém mostrar-se indulgente com uma pessoa que está acalentando todo o tipo de fantasias paranóicas — fantasias que, em um caso, quase levaram ao real assalto contra uma menininha. Se ocorreu, então ela preferiu ignorar os aspectos negativos, uma vez que também estava sendo indulgente com o marido. Jamais a censurei por isso — Thorpe não era apenas um ticket para refeição, alguma mula velha que precisava ser trabalhada e paparicada, trabalhada e paparicada, até estar pronta para o matadouro; acontece que ela amava o cara. À sua maneira, Jane Thorpe era uma grande dama. Assim, após ter vivido com Reg desde os Primeiros Tempos aos Altos Tempos e finalmente aos Loucos Tempos, creio que ela concordaria com Bellis, ao abençoar a corda bamba, sem desperdiçar a respiração xingando a queda. Naturalmente, quanto mais bambos nos sentimos, mais difícil se torna equilibrar-nos, quando afinal chega o fim... mas mesmo aquele rápido equilíbrio pode ser uma bênção, admito — pois quem prefere cair?

"Naquele curto período, recebi respostas de ambos — cartas extraordinariamente otimistas... embora houvesse uma qualidade estranha e quase final naquele otimismo.

Era como se... bem, esqueçamos a filosofia barata. Se eu conseguir atinar com o significado, falarei. Deixemos isso por ora.

"Reg passou a jogar cartas com os rapazes vizinhos, todas as noites. Quando as folhas começaram a cair, eles achavam que Reg Thorpe era o próprio Deus, baixado à terra. Se não jogavam cartas ou disputavam uma partida de Frisbee, discutiam literatura, com Reg animando-os delicadamente em seus passos futuros. Ele arranjara um cachorrinho no abrigo de animais local e passeava com ele, de manhã e à noite, enquanto isso conhecendo outros moradores do quarteirão, como acontece conosco, se levamos nosso cão a passeio. Quem decidira que os Thorpe eram pessoas peculiares, agora começava a pensar diferente. Quando Jane sugeriu que, sem aparelhagem elétrica ela poderia usar os serviços de uma faxineira, Reg concordou imediatamente. Ela ficou pasma ante o jovial assentimento dele. Não se tratava de uma questão de dinheiro — após Undenworld Figures, eles nadavam no ouro — tratava-se deles, deduziu Jane. Eles estavam em toda parte, tal era o decreto de Reg, e que melhor agente para eles do que uma faxineira, que andava por todos os cantos da casa, espiava debaixo das camas e armários, talvez até dentro das gavetas também, caso elas não estivessem trancadas e depois fixadas com pregos, por medida de segurança?

"Contudo, ele lhe disse que contratasse a mulher, acrescentou que se sentia um sujeito insensível, por não haver pensado nisso mais cedo, mesmo embora ela insistiu em contar-me o detalhe — Reg estivesse fazendo a maioria dos serviços pesados, como a lavagem de roupa, por exemplo. Reg só impunha uma pequena condição: que a faxineira não tivesse permissão de entrar em seu estúdio.

"O melhor de tudo, o mais encorajador, na opinião de Jane, era o fato de que seu marido voltara a trabalhar, agora em um novo romance. Ela lera os três primeiros capítulos e os considerara maravilhosos. Tudo isto, segundo me escreveu, começara quando eu havia aceito "A Balada do Projétil Flexível" para a Logan's — o período anterior, que havia sido de maré muito baixa. E ela me abençoava por isso.

"Estou certo de que o agradecimento de Jane era sincero, embora sua gratidão não parecesse conter muito calor e o otimismo de sua carta se mostrasse algo turvo — pronto, voltamos novamente a isso. Naquela carta, seu otimismo assemelhava-se a um dia ensolarado, mas com aquelas nuvens de bordas carregadas, prenunciando um temporal para breve.

"Todas essas boas notícias — jogos de cartas, o cachorro e a faxineira, além do novo romance — e, no entanto, ela era inteligente demais para acreditar que o marido estivesse ficando bom novamente... ou assim acreditei, apesar de em meu próprio fog, Reg viera exibindo sintomas de psicose. A psicose é como câncer pulmonar, em um sentido — nenhum dos dois se cura espontaneamente, embora tanto os pacientes de câncer como os lunáticos possam ter seus bons dias.

"Pode me dar outro cigarro, querida?

A esposa do escritor deu-lhe o cigarro.

— Afinal de contas — prosseguiu o editor, puxando seu isqueiro Ronson, os sinais da idéia fixa do marido estavam por toda parte, em volta dela. Nada de telefone; nada de eletricidade. Ele afixara plástico de embalar em todas as placas de interruptores.

Continuava colocando comida na máquina de escrever, tão regularmente, como a punha no prato de seu novo cãozinho. Os universitários que moravam ao lado o julgavam um grande sujeito, mas não o viam calçar luvas de borracha para recolher o jornal no alpendre pela manhã, devido a seus temores sobre a radiação. Eles não o ouviam gemer enquanto dormia e nem tinham que consolá-lo, quando ele acordava gritando, com terríveis pesadelos que não conseguia recordar.

"Você, minha querida — disse ele, virando-se para a esposa do escritor —, deve estar-se perguntando por que Jane continuou em companhia do marido. Embora não tenha dito em palavras, a idéias está em sua mente, não?

Ela assentiu.

— Exato. E não pretendo oferecer uma longa tese motivacional — a coisa conveniente sobre histórias reais, é que só precisamos dizer — foi assim que aconteceu, deixando que os outros se preocupem sobre o motivo. Em geral, ninguém jamais sabe por que coisas acontecem... em particular as pessoas que dizem saber.

"Em termos de Jane Thorpe, no entanto, relativamente à sua percepção seletiva, tinham acontecido coisas que eram um bocado boas. Contratou uma mulher negra de meia-idade para fazer a faxina e se dispôs a explicar-lhe francamente as idiosincrasias do marido. A mulher, de nome Gertrude Rulin, riu e disse que estava acostumada a pessoas de hábitos bastante estranhos: Jane passou a primeira semana do serviço de Gertrude mais ou menos como se sentiu durante aquela primeira visita aos vizinhos jovens do lado — esperando alguma explosão de loucura. Contudo, Reg encantou a faxineira tão completamente como encantara os rapazes, conversando sobre o trabalho dela na igreja, seu marido e o filho caçula, Jimmy que, segundo Gertrude, fazia Dennis o Terrível, parecer o próprio tédio no primeiro grau escolar. Gertrude tinha onze filhos ao todo, mas havia um espaço de nove anos entre Jimmy e o anterior. Esse filho temporão lhe tornava a vida dura.

"Reg parecia estar indo bem... pelo menos, olhando-se as coisas de uma certa forma.

Contudo, estava tão louco como sempre, é claro, o que também acontecia comigo. A loucura bem pode ser uma espécie de projétil flexível, mas qualquer perito em balística que entenda do ofício, dirá que duas balas jamais são iguais. A carta de Reg para mim falava ligeiramente sobre seu novo romance, para então passar de imediato para os Fornits. Os Fornits em geral, Rackne em particular. Ele especulava sobre se eles realmente queriam matar Fornits ou — achava mais provável — capturá-los vivos e estudá-los.

Fechava a carta, dizendo, "Tanto meu apetite como minha visão de vida melhoraram imensuravelmente depois que começamos nossa correspondência, Henry. Fico-lhe muito grato. Afetuosamente, Reg" Um P.S. mais abaixo, perguntava casualmente se fora designado algum ilustrador para sua história. Aquilo me provocou uma ou duas pontadas de culpa, bem como uma rápida viagem ao armário de bebidas.

"Reg envolvia-se com os Fornits; eu com o álcool.

"Minha carta de resposta mencionava os Fornits apenas de passagem — a esta altura, eu estava realmente paparicando o homem, pelo menos nessa questão; um elfo com o sobrenome de solteira de minha mãe e meus hábitos pessoais de errar na ortografia estavam pouco me importando.

"O que passara a interessar-me, cada vez mais e mais, era o tema da eletricidade, microondas, ondas radiofônicas e interferência do rádio irradiando-se de pequenos aparelhos eletrodomésticos, bem como um baixo nível de radiação e só

Deus sabe o que mais. Fui à biblioteca e apanhei livros sobre o assunto; comprei livros que falavam nisso também. Neles, havia muita coisa assustadora... e naturalmente, bem aquilo que eu procurava.

Tomei providências para que meu telefone fosse desligado e a eletricidade cortada. Isso ajudou durante algum tempo, mas certa noite, quando eu cambaleava na porta, bêbado, com uma garrafa de Black Velvet em uma das mãos, a outra mão enfiada no bolso do sobretudo, vi aquele olhinho vermelho no teto, espiando para mim. Céus, por um minuto, pensei que ia ter um ataque cardíaco. A princípio, ele parecia um besouro... um grande besouro escuro, com um olho cintilante.

"Eu tinha uma lanterna Coleman, a gás, e a acendi. Imediatamente vi o que era. Só que, em vez de ficar aliviado, aquilo me deixou pior. Assim que dei uma boa espiada na coisa, tive a impressão de que podia sentir vastos e nítidos acessos de dor varando-me a cabeça — como ondas de rádio. Por um momento, foi como se meus olhos houvessem girado nas órbitas, de maneira a permitirem que eu olhasse meu próprio cérebro e, lá dentro, visse células soltando fumaça, ficando negras, morrendo. Era um detector de fumaça — um dispositivo ainda mais recente do que os fornos de microondas, em 1969.

"Saí precipitadamente do apartamento e fui até o térreo — eu morava no quinto andar, mas então estava sempre usando as escadas — e martelei a porta do zelador. Disse-lhe que queria aquela coisa fora de minha casa, queria-a fora de lá em seguida, queria-a fora de lá ainda aquela noite, queria-a fora de lá dentro de uma hora. Ele me fitou como se me julgasse absolutamente pirado — perdoem-me a expressão — bonzo seco, e hoje posso compreender aquilo. Aquele detector de fumaça deveria fazer com que me sentisse bem, presumia-se que me daria segurança. Hoje, é claro, eles são previstos em lei, mas então constituíam um Grande Avanço, pago pela associação de moradores do prédio.

"O zelador o removeu — não demorou muito — mas não me perdia de vista e, em certa forma limitada, eu podia entender o que sentia. Eu precisava barbear-me, fedia a uísque, tinha os cabelos grudados à cabeça e meu sobretudo estava sujo. Ele certamente sabia que eu não estava mais trabalhando; que minha televisão fora levada embora; que meu telefone e a energia elétrica haviam sido voluntariamente cortados. O zelador me considerava louco.

"Posso ter estado louco mas — como Reg — não era burro. Apelei para o charme. Editores precisam ter uma certa dose de charme, compreendam. Então, azeitei a situação que parecia lamentável, com uma nota de dez dólares. Por fim, fui capaz de ajeitar as coisas, mas da maneira como todos olhavam para mim, nas duas semanas seguintes — minhas duas últimas semanas no prédio — a história sem dúvida viajou. O fato de nenhum membro da associação dos moradores procurar-me, desgostoso com minha atitude ingrata, era particularmente revelador. Talvez pensassem que eu poderia atacá-los com uma faca de carne.

"De qualquer modo, naquela noite tudo isso era de menos em meus pensamentos.

Sentei-me à luz da lanterna Coleman, a única luz nos três aposentos, excetuando-se toda a eletricidade que, em Manhattan, passava pelas janelas. Eu tinha uma garrafa na mão e um cigarro na outra. Fiquei olhando para a chapa no teto, onde estivera o detector de fumaça com seu único olho vermelho — um olho tão imperceptível à luz do dia, que eu nem o notara. Considerei o fato inegável de que, embora estivesse com toda a energia elétrica desligada em meu apartamento, existira aquele ítem isolado e vivo... e onde havia um, poderia haver outros.

"Mesmo não havendo, todo o edifício pululava de fios — tinha tantos fios, como as células malignas e os órgãos deteriorados enchendo o organismo de um moribundo de câncer. Fechando os olhos, eu podia ver todos eles na escuridão de seus condutos, cintilando com uma espécie de luz verde inferior. E, mais além, a cidade inteira. Um fio, quase inofensivo em si, ligado a um interruptor... o fio além do interruptor, um pouco mais grosso, levando ao porão, através de um conduto, onde se unia a outro fio ainda mais grosso... este internando-se debaixo da rua, até um volumoso punhado de fios, estes últimos tão grossos, que em realidade eram cabos.

"Quando recebi a carta de Jane Thope, falando no plástico de embalar, parte de minha mente reconhecia que ela encarava isso como um sinal da loucura de Reg — e essa parte sabia que eu teria de reagir como se toda a minha mente a julgasse com razão. A outra parte de minha mente — de longe agora a preponderante — pensou: "Que idéia maravilhosa!" e então cobri todas as chapas de interruptores do apartamento da mesma forma que Reg havia feito, já no dia seguinte. Lembre-se, eu era o homem que, supostamente; estava ajudando Reg Thorpe. De um modo um tanto desesperador, chega a ser muito engraçado.

"Naquela noite, decidi ir embora de Manhattan. Havia uma velha casa da família, nas Adirondacks, para onde eu poderia ir. A idéia pareceu excelente. A única coisa que me mantinha na cidade, era a história de Reg Thorpe. Se "A Balada do Projétil Flexível" era o salva-vidas de Reg em um mar de loucura, também era o meu — eu queria inserir aquela história em uma boa revista. Feito isto, que tudo se danasse.

"Foi onde parou a não-tão-famosa correspondência Wilson-Thorpe, pouco antes de tudo ir por água abaixo. Éramos como dois agonizantes viciados em drogas, comparando os méritos relativos da heroína e das anfetaminas. Reg tinha Fornits em sua máquina de escrever. Eu tinha Fornits nas paredes e ambos tínhamos Fornits em nossas cabeças.

"Ainda havia eles. Não esqueçam: eles. Não fazia muito tempo que eu andava oferecendo a história, quando decidi que eles incluíam todos os editores de ficção das revistas em Nova York — embora não existissem muitos, no outono de 1969. Se fossem todos reunidos, poderiam ser mortos com um só cartucho de espingarda, algo que, não demorou muito, comecei a achar uma idéia infernalmente boa.

"Foram precisos cinco anos, antes que eu pudesse ver a situação pela perspectiva deles.

Eu me indispusera com o zelador, um sujeito que só me via quando o calor era infernal e quando era época de sua gratificação natalina. Quanto aos outros sujeitos... bem, ironicamente, muitos deles eram realmente meus amigos. Na época, Jared Baker era o editor-assistente de ficção na Esquire e ambos havíamos estado na mesma companhia de fuzileiros, na Segunda Guerra Mundial, por exemplo. Tais sujeitos não ficavam apenas inquietos, após verem o novo e melhorado Henry Wilson. Ficavam abismados. Se eu apenas enviasse a história aos possíveis interessados, com uma carta agradável de apresentação, explicando a situação de qualquer modo, a versão que eu tinha dela — eu talvez houvesse vendido a história de Thorpe quase em seguida. Contudo, oh, de maneira alguma, isso não era o suficiente.

Não para aquela história. Eu precisava cuidar para que ela recebesse o tratamento pessoal. Assim, andei de porta em porta com ela, um fedorento e grisalho ex-editor, de mãos trêmulas, olhos vermelhos e uma grande equimose na face esquerda, produto de um choque contra a porta do banheiro, quando ele se encaminhara para o vaso, no escuro, duas noites antes. Eu bem podia estar usando um letreiro com a inscrição FUGITIVO DO HOSPÍCIO.

"Eu tampouco queria falar com eles em seus escritórios. De fato, era-me impossível. Há muito se fora o tempo em que podia entrar em um elevador e subir quarenta andares.

Assim, eu os encontrava como os traficantes encontram os viciados — em parques, escadas ou, no caso de Jared Baker, em uma casa de hamburgers, na Rua 49. Jared, pelo menos, ficaria satisfeito em pagar-me uma refeição decente, mas já se fora o tempo, vocês compreendem, em que qualquer maitre cioso do nome permitiria minha entrada em um restaurante freqüentado por pessoas do mundo dos negócios.

O agente pestanejou.

— Recebi promessas negligentes de que a história seria lida, depois perguntas sobre como eu estava, quanto andava bebendo. Recordo — vagamente — haver tentado dizer a uns dois deles que vazamentos de eletricidade e radiação estavam deteriorando o pensamento de todo mundo. Lembro-me também de que quando Andy Rivers, que editava ficção para American Crossings, aconselhou-me a procurar ajuda profissional para meu estado, respondi que era ele quem precisava dessa ajuda.

— Vê aquelas pessoas na rua? — perguntei-lhe. Estávamos no Parque Washington Square. Metade delas, talvez até mesmo três quartos delas, têm tumores cerebrais. Eu não lhe venderia a história de Thorpe por nada, Andy. Diabo, você não a entenderia, nesta cidade. Seu cérebro está na cadeira elétrica e você nem sabe disso.

"Eu tinha uma cópia da história em minha mão, enrolada com um jornal. Sacudi-a diante do nariz dele, da maneira como se faz com um cão, para que fique ereto em um canto. Depois fui embora. Lembro-me dele gritando para que eu voltasse, qualquer coisa sobre uma xícara de café e conversarmos mais um pouco, mas então passei por uma loja vendendo discos com desconto, seus alto-falantes estrondeando heavy metal para a calçada, e filas de luzes fluorescentes, frias como gelo, brilhando no interior.

Perdi a voz dele, em uma espécie de profundo zumbido dentro de minha cabeça.

Recordo haver pensado duas coisas — eu precisava sair logo da cidade, o mais depressa possível, ou estaria acalentando meu próprio tumor cerebral — e era imperioso tomar um drinque, imediatamente.

"Naquela noite, voltando ao meu apartamento, encontrei uma nota debaixo da porta.

Dizia "Queremos você fora daqui, seu biruta." Joguei-a fora, sem lhe dar a menor importância. Nós, veteranos em birutice, temos coisas mais importantes a preocupar-nos, do que notas anônimas de inquilinos vizinhos.

"Eu refletia no que havia dito a Andy Rivers sobre a história de Reg. Quanto mais pensava nisso — e mais drinques tomava — mais sentido fazia. O "Projétil Flexível" era curioso e, superficialmente, fácil de ser seguido... mas abaixo da superfície era surpreendentemente completo. Estaria eu imaginando que outro editor na cidade conseguiria apreender a história em todos os seus níveis? Talvez outrora, mas eu ainda acharia isso, agora que meus olhos se tinham aberto? Teria eu realmente pensado que havia espaço para apreciação e compreensão, em um local entupido de fios como uma bomba de terrorista? Céus, havia voltagem vazando por todos os lados!

"Li o jornal, enquanto ainda havia luz do dia suficiente para isto, procurando esquecer todo o maldito negócio por um momento e, ali, na página um do Times, havia um artigo sobre como o material radiativo de usinas de força nuclear permanece desaparecendo — o artigo prosseguia, teorizando que se houvesse nas mãos certas uma quantidade suficiente desse material, ele podia ser facilmente usado para uma arma nuclear muito suja.

"Permaneci sentado à mesa da cozinha enquanto o sol se punha e, em minha mente, podia vê-los batendo pó de plutônio, como os mineiros de 1849 batiam ouro. Apenas, eles não queriam explodir a cidade com aquilo, oh, não! Eles o queriam apenas para salpicá-lo por aí e liquidar a mente de todos. Eles eram os maus Fornits, e toda aquela poeira radioativa era fornus de má-sorte. Os piores fornus de má-sorte de todos os tempos.

"Decidi que, afinal de contas, não queria vender a história de Reg — pelo menos, não em Nova York. Saí da cidade, assim que chegaram os cheques que eu pedira. Quando estivesse no interior do estado, poderia começar a enviá-la para as revistas literárias de fora da cidade. Sehanee Review seria um bom lugar para começar, admiti, ou talvez Iowa Review. Eu poderia explicar a Reg mais tarde. Ele compreenderia. Aquilo parecia resolver todo o problema, de modo que tomei um drinque. E o drinque tomou o homem.

Por assim dizer. Entrei em blackout. Conforme resultou, só me restava mais um blackout.

"No dia seguinte, chegaram os talões de cheques de minha Companhia Arvin. Preenchi um deles a máquina e fui ver meu amigo, o "co-sacador". Houve outro daqueles aborrecidos interrogatórios, mas desta vez, mantive a calma. Eu queria aquela assinatura. Conseguia-a, finalmente. Fui a um estabelecimento que fornecia material impresso e providenciei para que me fizessem papel de correspondência com o timbre da Companhia Arvin, comigo esperando. Carimbei um endereço de retorno em um envelope comercial, datilografei o endereço de Reg (o açúcar de confeiteiro já fora removido de minha máquina de escrever, porém as teclas ainda tinham uma tendência a colar-se umas nas outras) e acrescentei uma breve nota pessoal, dizendo que nenhum cheque a um escritor já me dera mais prazer pessoal... e estava sendo sincero. Isso ainda é verdade. Passou-se quase uma hora, antes que eu me decidisse a pô-lo no correio — simplesmente, não conseguia saber até que ponto ele parecia oficial. Era muito difícil, para um fedorento bêbado, que em cerca de dez dias não trocara a roupa de baixo, chegar a essa vital conclusão.

O editor fez uma pausa, esmagou o cigarro no cinzeiro e olhou para seu relógio. Então, curiosamente, como o chefe do trem anunciando que a composição chegou a alguma cidade importante, falou:

— Chegamos ao inexplicável.

"Este é o ponto de minha história que mais tem interessado aos dois psiquiatras e vários analisadores mentais com quem estive associado nos meus trinta meses de vida seguintes. Foi a única parte que me forçavam a desdizer, como sinal de que eu estava ficando bem. Segundo um deles declarou, "Esta é a única parte de sua história que não pode ser explicada como indução censurável... uma vez, isto é, seu sentido de lógica tenha sido recuperado". Finalmente, eu a desmenti, porque tinha certeza — mesmo eles não tendo — de que estava ficando bem e sentia uma maldita vontade de sair do sanatório.

Pensei que se não desse o fora de lá em pouco tempo, acabaria maluco novamente.

Assim, voltei atrás — Galileu também fez isso, quando mantiveram seus pés no fogo — mas nunca desmenti nada para mim mesmo. Não afirmo que tenha realmente acontecido o que vou dizer; apenas digo ser a minha crença de que aconteceu. Trata-se de uma pequena qualificação, mas crucial para mim.

"Portanto, meus amigos, vamos ao inexplicável:

"Levei os dois dias seguintes preparando-me para uma mudança da cidade. Por falar nisso, a idéia de dirigir o carro não me perturbava em absoluto. Quando eu era criança, havia lido que o interior de um carro é um dos lugares mais seguros para ficar-se durante uma tempestade elétrica, já que os pneus de borracha funcionam como isoladores quase perfeitos. Realmente, eu ansiava por entrar em meu velho Chevrolet, levantar os vidros de todas as janelas e rodar para fora daquela cidade, que já começara a considerar um poço de raios. Não obstante, em meus preparativos incluía-se a remoção da lâmpada do teto, cuja tomada seria vedada com plástico de embalagem, além de girar o botão da luz inteiramente para a esquerda, a fim de eliminar a iluminação do painel.

"Quando entrei em meu apartamento, pretendendo passar nele a última noite, o lugar estava vazio, exceto pela mesa da cozinha, a cama e minha máquina de escrever no estúdio. Aliás, a máquina estava no chão. Não era minha intenção levá-la comigo — havia demasiadas más associações ligadas a ela e, por outro lado, as teclas iam ficar grudadas para sempre. Que o próximo inquilino fique com ela, pensei — ele e também Bellis.

"Era apenas o pôr-do-sol e o lugar tinha uma coloração esquisita. Eu estava totalmente bêbado e tinha outra garrafa no bolso do sobretudo, contra as vigílias noturnas. Passei pelo estúdio, acho que querendo ir até o quarto. Lá eu me sentaria na cama, pensaria sobre fios, eletricidade, radiação livre e beberia, até ficar embriagado o suficiente para dormir.

"O que eu chamava de estúdio era, em realidade, a sala de estar. Eu a tornara meu local de trabalho, porque tinha a melhor iluminação de todo o apartamento uma grande janela dando para oeste, parecendo chegar até o horizonte. Era algo próximo do Milagre dos Pães e dos Peixes, em um apartamento de quinto andar em Manhattan, mas a linha de visão lá estava. Eu não a questionava, apreciava-a, apenas. Aquele aposento era cheio de uma límpida, adorável claridade, mesmo nos dias chuvosos.

"A qualidade da luz noturna, contudo, era espectral. O sol poente inundara a sala com um clarão avermelhado. Claridade de fornalha. Vazio, o aposento parecia grande demais. Meus calcanhares faziam ecos uniformes, no assoalho de madeira.

"A máquina de escrever estava no meio do piso e eu ia apenas passar por ela, quando vi que havia um pedaço rasgado de papel, enfiado debaixo do rolo — o que me sobressaltou, pois sabia que não havia papel algum na máquina, quando saíra da última vez para comprar uma nova garrafa.

"Olhei em torno, procurando se havia alguém — algum intruso — ali dentro comigo.

Contudo, não era bem em intrusos, assaltantes ou pivetes que eu pensava, mas em... fantasmas.

"Notei um espaço rasgado no papel da parede, à esquerda da porta do quarto.

Compreendi, então, de onde proviera o papel na máquina de escrever. Alguém havia, simplesmente, arrancado um pedaço do papel de parede.

"Eu ainda olhava para aquilo, quando ouvi um único, mas distinto ruído claque! — embora quase imperceptível, atrás de mim. Dei um salto e girei, com o coração em disparada na garganta. Estava aterrorizado, mas sabia perfeitamente que som era aquele — quanto a isso, não havia dúvida nenhuma. A gente trabalha com palavras a vida inteira e conhece bem o som de uma tecla da máquina de escrever batendo contra o papel, mesmo em um quarto vazio ao crepúsculo, onde não há ninguém batendo a tecla.

Todos olharam para ele no escuro, as faces como borrados círculos brancos. Ninguém disse nada, mas uns se aproximaram mais dos outros. A esposa do escritor segurava firmemente uma das mãos do marido.

— Eu me senti... fora de mim. Irreal. Talvez seja sempre assim que nos sentimos, ao atingirmos o ponto do inexplicável. Caminhei lentamente até a máquina de escrever.

Meu coração batia como louco em minha garganta, mas mentalmente eu estava calmo... inclusive, gelado.

"Claque! Outra tecla saltou. Desta vez, eu a vi — a tecla ficava na terceira fileira, a partir do topo, do lado esquerdo.

"Agachei-me lentamente sobre os joelhos. Então, todos os músculos em minhas pernas ficaram bambos de repente e quase encolhi pelo resto do movimento, até cair sentado diante da máquina de escrever, com meu sujo sobretudo London Fog espalhado à minha volta, como a saia de uma jovem, ao fazer sua mais reverente e profunda mesura. A máquina de escrever emitiu aquele ruído mais duas vezes, rapidamente, pausou, tornou a emiti-lo. Cada claque produzia a mesma espécie de eco surdo que meus pés haviam feito no assoalho.

"O papel de parede havia sido colocado no rolo da máquina, de maneira a que a parte com a cola seca ficasse para fora. As letras estavam onduladas e empastadas, mas pude lê-las: rackn, diziam. Depois, houve mais um claque! e a palavra era rackne.

"Então... — ele pigarreou e sorriu de leve. — Mesmo após tantos anos, é difícil dizer isto... apenas falar o que houve. Tudo bem. O simples fato, sem qualquer enfeite, é o seguinte: eu vi uma mão saindo da máquina de escrever. Uma mão incrivelmente pequenina. Saiu de entre as teclas B e N, na última fileira, enrolada em si como um punho, para movimentar a barra do espaçamento. A máquina saltou um espaço — muito depressa, como um soluço — e a mão recuou para onde viera.

A esposa do agente riu com estridência.

— Ria com vontade, Marsha — disse suavemente o agente, e ela riu.

As batidas de teclas começaram a soar um pouco mais rápido — prosseguiu o editor — e, após algum tempo, pude ouvir ofegar a criatura que movia as teclas, da maneira como alguém ofega, ao trabalhar duro, chegando mais e mais perto de seu limite físico. Após algum tempo, a máquina mal imprimia alguma coisa. A maioria das teclas se enchera com aquela velha matéria gomosa, mas eu podia ler as letras. Estava escrito Rackne está morr, e então a tecla do e ficou presa à cola. Olhei para aquilo por um momento e então, estirando um dedo, libertei-a. Não sei se a criatura — Bellis — conseguiria libertá-la sozinha. Acho que não. Contudo, eu não queria ver... vê-la... tentar. Apenas a visão daquele pulso já era suficiente para deixar-me à beira do desequilíbrio. Se visse o elfo inteiro, por assim dizer, creio que ficaria realmente louco. E não havia a questão de fugir dali, porque toda a força das pernas me abandonara.

"Claque-claque-claque, aqueles diminutos grunhidos e soluços de esforço e, após cada palavra, aquele punho pálido, sujo e oleoso de graxa, saindo entre o B e o N para martelar a barra do espaço. Não sei ao certo quanto isso durou. Sete minutos, talvez.

Talvez dez. Ou talvez para sempre.

"Por fim, os claques pararam e percebi que não o ouvia mais respirar. Talvez o entezinho houvesse perdido os sentidos... talvez apenas tivesse desistido e ido embora... ou talvez houvesse morrido. Podia ter tido um ataque de coração ou coisa assim. Minha única certeza é de que a mensagem não havia sido completada. Ao todo, ela dizia, em caixa baixa: rackne está morrendo é o garotinho jimmy thorpe que não sabe diga a thorpe que rackne está morrendo garotinho jimmy está matando rackne e... isso era tudo.

"Encontrei forças para me firmar nos pés e então saí dali. Caminhei em largas passadas na ponta dos pés, como se a criatura tivesse ido dormir e, se eu tornasse a produzir aqueles ecos surdos no assoalho, ela talvez acordasse, para começar novamente a datilografar... Acho que se isso acontecesse, o primeiro claque me poria gritando. E continuaria gritando, até que meu coração ou a cabeça explodissem.

"Meu Chevrolet estava no pátio do estacionamento, no fim da rua, cheio de gasolina, já carregado e pronto para a partida. Coloquei-me atrás do volante, e então recordei a garrafa no bolso do sobretudo. Minhas mãos tremiam tanto, que eu a deixei cair, mas ela aterrou em cima do banco e não se quebrou.

"Lembrei-me dos blackouts e, meus amigos, naquele momento exato um blackout era exatamente do que eu precisava — e foi exatamente o que aconteceu. Recordo haver tomado o primeiro e segundo goles do gargalo da garrafa. Recordo ter ligado a chave do carro e depois de ouvir Sinatra no rádio, cantando "That Old Black Magic", o que parecia bem ajustado à situação. Em vista das circunstâncias. Por assim dizer. Lembro-me de ter acompanhado a canção e de beber mais alguns goles. Eu estava na última fila do estacionamento e podia ver a luz do tráfego na esquina, mudando segundo a passagem do tempo. Fiquei pensando naqueles estalidos de teclas na sala vazia e no clarão avermelhado que ia fanando em meu estúdio. Pensei naqueles sons arquejantes, como se algum elfo ginasta houvesse pendurado pesos de linha de pesca nas extremidades da tecla O e fizesse exercícios de levantamento, dentro da minha velha máquina de escrever. Pensei também na superfície áspera do avesso daquele retalho de papel de parede. Minha mente insistiu em querer examinar o que poderia ter acontecido, antes que eu chegasse ao apartamento... insistia em ver a coisa — ele — Bellis — saltando, agarrando o pedaço frouxo do papel de parede junto à porta do quarto, por ser o único ainda existente no local com qualquer semelhança de papel — pendurando-se nele — e finalmente o rasgando, carregando-o em sua cabeça para a máquina de escrever, como a uma folha de palmeira nipa. Fiquei procurando imaginar como é que ele — a criatura — conseguira colocar o pedaço de papel em torno do rolo da máquina. Como nada disso tinha aparência de blackout, então fiquei bebendo. Frank Sinatra parou de cantar, houve uma publicidade para o Crazy Eddie's e depois Sarah Vaughan passou a cantar "I'm Gonna Sit Right Down and Write Myself a Letter" (Vou-me sentar bem aqui e escrever uma carta para mim mesmo) e isso era algo mais que podia relacionar à situação. Afinal, eu havia escrito para mim recentemente ou, pelo menos, pensava que tinha escrito, até essa noite, quando acontecia algo, dando-me motivo para considerar minha postura naquela questão, por assim dizer. Cantei juntamente com a boa e velha Sarah Soul, e foi quando devo ter adquirido velocidade de escape pois, em meio ao segundo estribilho, sem a menor pausa em absoluto, eu estava botando as tripas para fora, enquanto alguém primeiro me dava tapas nas costas, em seguida erguia-me os cotovelos, atrás de mim, depois os baixando e tornando a dar-me palmadas. Era o motorista de caminhão. A cada palmada sua, eu sentia um enorme jato de líquido subir em minha garganta e quase voltar novamente para dentro do corpo, exceto que o homem me erguia os cotovelos e, quando fazia isso, eu tornava a vomitar. A maioria de meu vômito não se compunha de Black Velvet, mas de água do rio. Quando finalmente tive forças para erguer a cabeça o suficiente e espiar em torno, eram seis horas da tarde e três dias depois; eu jazia na rampa do Rio Jackson, na Pensilvânia oeste, cerca de cento e cinqüenta quilômetros ao norte de Pittsburgh. Meu Chevrolet caíra no rio e sua traseira era visível, apontando para o alto. Eu ainda conseguia ler o adesivo de McCarthy, colado no pára-choque.

"Arranja-me outra Fresca, meu bem? Tenho a garganta seca como o inferno.

A esposa do escritor foi buscar-lhe a soda, silenciosamente. Quando a entregou a ele, abaixou-se impulsivamente e beijou sua face enrugada, como couro de crocodilo. Ele sorriu, e seus olhos cintilaram à claridade mortiça. Uma bondosa e delicada mulher, não obstante, ela não se deixou enganar, em absoluto, por aquele cintilar. Jamais era a alegria que punha olhos brilhantes daquela maneira.

— Obrigado. Meg.

Ele bebeu profundamente, tossiu, rejeitou com um aceno a oferta de um cigarro.

— Já fumei os suficientes por hoje. Vou parar de fumar inteiramente. Em minha próxima encarnação. Por assim dizer.

"Nem preciso contar o resto de minha história. Ela teria contra si o único pecado de que qualquer história pode ser realmente culpada — é previsível. Eles pescaram cerca de quarenta garrafas de Black Velvet de meu carro, muitas delas vazias. Eu balbuciava sobre elfos e eletricidade, sobre Fornit, mineradores de plutônio e fornus. Decidiram que eu estava totalmente louco e, claro, era exatamente o que acontecia comigo.

"Agora, temos aqui o que aconteceu em Omaha, enquanto eu dirigia por lá segundo os talões de crédito para gasolina, encontrados no porta-luvas do Chevrolet. Enquanto eu dirigia por cinco estados do norte. Tudo isto, compreendam, foi informação que obtive de Jane Thorpe, durante um longo e penoso período de correspondência, que culminou com um encontro a dois em New Haven, onde ela hoje reside, pouco depois que recebi alta do sanatório — uma recompensa por, finalmente, voltar atrás em minha história.

Findo aquele encontro, choramos nos braços um do outro, e foi quando acreditei ser possível haver ainda uma vida real para mim, talvez mesmo a felicidade.

"Naquele dia, por volta de três da tarde, bateram à porta da residência dos Thorpe. Era um garoto mensageiro do telégrafo. O telegrama tinha sido enviado por mim, última peça de nossa infortunada correspondência. Dizia o seguinte:

REG TENHO INFORMAÇÃO CONFIANÇA DE QUE RACKNE ESTÁ MORRENDO É O GAROTINHO SEGUNDO BELLIS BELLIS DIZ NOME DELE É JIMMY FORNIT SOME FORNUS HENRY.

"Caso tenha passado por suas mentes aquela maravilhosa pergunta de Howard Baker O que ele sabia e quando ele soube? direi isto: eu sabia que Jane contratara uma faxineira; e não sabia — exceto através de Bellis — que essa faxineira tinha por filho um garotinho endiabrado chamado Jimmy. Terão de aceitar minha palavra por isso, embora eu deva acrescentar, com toda sinceridade, que os psiquiatras ocupados com meu caso nos dois anos e meio seguintes não me deram o menor crédito.

"Jane estava na mercearia, quando o telegrama chegou. Ela o encontrou, após a morte de Reg, em um de seus bolsos traseiros da calça. A hora da transmissão e da entrega estava anotada nele, juntamente com a linha informando Sem telefone. Entrega pessoal.

Jane disse que, embora o telegrama tivesse apenas um dia, havia sido tão manuseado que dava a impressão de haver sido recebido um mês antes.

"De certa maneira, esse telegrama, aquelas vinte e quatro palavras foram o verdadeiro projétil flexível, e eu o disparei bem no cérebro de Reg Thorpe, por toda a distância a partir de Paterson, Nova Jersey. Eu estava tão infernalmente bêbado, que nem mesmo me lembrava de tê-lo feito.

"Durante suas duas últimas semanas de vida, Reg se ajustara a um padrão que parecia a própria normalidade. Levantava-se às seis, preparava o desjejum para si mesmo e a esposa, depois escrevia por uma hora. Por volta das oito, trancava seu estúdio e levava o cão para um longo e despreocupado passeio na vizinhança. Mostrava-se sempre acessível em tais passeios, parando para conversar com quem quisesse palestrar com ele, amarrando o cachorro fora de um café próximo e tomando uma xícara de café pelo meio da manhã. Depois, recomeçava a caminhada. Raramente voltava para casa antes do meio-dia. Em muitos dias, chegava ao meio-dia e meia ou uma da tarde. Parte disto era um esforço para escapar à gárrula Gertrude Rulin, segundo acreditava Jane, porque o padrão de seu marido só começara a solidificar-se, uns dois dias depois da faxineira começar a trabalhar para eles.

"Reg fazia um almoço leve, deitava-se por cerca de uma hora, depois se levantava e escrevia por duas ou três horas. Ao anoitecer, às vezes visitava os rapazes vizinhos, com Jane ou sozinho; em outras ocasiões; ele e Jane iam ao cinema ou apenas ficavam lendo na sala de estar. Deitavam-se cedo, Reg geralmente um pouco antes de Jane. Ela escreveu que havia muito pouco sexo entre eles e que, quando havia, era sem êxito para ambos. "Contudo, o sexo não é importante para a maioria das mulheres", disse ela, "e Reg vinha trabalhando bem novamente, o que constituía um substituto razoável para ele. Eu diria que, naquelas circunstâncias, essas duas últimas semanas foram as mais felizes nos últimos cinco anos. "Eu quase chorei ao ler isto.

"Eu ignorava tudo sobre Jimmy, mas não era esse o caso de Reg. Ele estava a par de tudo, exceto do fato mais importante — que Jimmy passara a ir com sua mãe para o trabalho.

"Como deve ter ficado furioso ao receber meu telegrama e perceber o que sucedia! Ali estavam eles, afinal. E, aparentemente, sua própria esposa era um deles, porque ela estava na casa, quando Gertrude e Jimmy lá se encontravam. E ela nunca lhe dissera uma só palavra sobre Jimmy. O que me tinha ele escrito, em uma carta anterior? Às vezes, desconfio de minha esposa."

"Quando ela voltou para casa, no dia em que o telegrama chegou, descobriu que Reg se ausentara. Havia uma nota, em cima da mesa da cozinha, dizendo, "Meu bem — fui à livraria. Volto à hora do jantar". A nota pareceu a Jane perfeitamente normal... mas se ela soubesse de meu telegrama, a própria normalidade daquelas palavras a teria deixado terrivelmente amedrontada, creio eu. Jane compreenderia que Reg a imaginava como tendo mudado de lado.

"Reg nem chegou perto de uma livraria. Foi ao Empório de Armas Little John's, no centro da cidade. Comprou uma automática 45 e dois mil cartuchos de munição. Teria comprado uma AK-70, se Little John's possuísse permissão para vendê-las. Reg queria proteger seu Fornit, compreendam. De Jimmy, de Gertrude, de Jane. Deles.

"Na manhã seguinte, tudo transcorreu dentro da rotina estabelecida. Jane recorda ter pensado que seu marido usava uma suéter muito grossa para um dia de outono tão quente, mas isso foi tudo. A suéter, naturalmente, era por causa da arma. Ele saiu para passear com o cão, levando a 45 enfiada no cinto.

"Reg seguiu diretamente para o restaurante onde costumava tomar seu café matinal, sem paradas ou conversas durante o trajeto. Levou o cãozinho até a área de descarga de mercadorias, amarrou sua correia a um trilho e voltou para casa, por ruas traseiras.

"Estava a par da programação dos rapazes vizinhos, sabia que eles não se encontrariam em casa. Sabia também onde eles guardavam uma duplicata da chave. Entrou na casa, foi para o andar de cima e ficou vigiando sua própria residência.

"Às oito e quarenta, viu Gertrude Rulin chegar. Ela não estava sozinha. Em sua companhia, havia realmente um menino pequeno. O comportamento turbulento de Jimmy Rulin, na classe do primeiro grau, convenceu a professora e o conselheiro-chefe, quase imediatamente, de que todos (exceto talvez a mãe de Jimmy, que descansaria com a ausência do filho) passariam melhor, caso o menino esperasse mais um ano, antes de freqüentar a escola. Jimmy estava farto de repetir o jardim-da-infância e, durante a primeira metade do ano, ia para a escola no período da tarde. As duas creches existentes na zona de Gertrude encontravam-se lotadas, e ela não podia trabalhar à tarde para os Thorpe, porque já tinha outro compromisso como faxineira, de quatorze às dezesseis horas, no lado oposto da cidade.

"O desfecho de tudo, foi o consentimento relutante de Jane, quanto a Gertrude poder levar Jimmy consigo, até que conseguisse providenciar um outro arranjo. Ou até Reg descobrir, como estava prestes a ocorrer.

"Jane achava que talvez o marido não se incomodasse, já que, ultimamente, vinha sendo muito cordato sobre tudo. Por outro lado, ele poderia ter um ataque de nervos. Se tal acontecesse, teriam que ser feitos outros arranjos. Gertrude disse que compreendia. E, acima de tudo, estipulou Jane, o garoto não devia tocar em qualquer coisa pertencente a Reg. Gertrude garantiu que assim seria; a porta do dono da casa estava trancada, e trancada ficaria.

"Thorpe deve ter cruzado os dois pátios como um atirador de tocaia, cruzando a terra-de-ninguém. Ainda não vira o menino. Moveu-se ao longo da lateral da casa. Ninguém na sala de refeições. Ninguém no quarto. E então, no estúdio — onde Reg morbidamente esperara vê-lo — lá se encontrava ele. O rosto do garoto parecia afogueado de excitamento e, sem dúvida. Reg deve ter acreditado que, finalmente, ali estava um legítimo agente deles.

"O garoto empunhava uma espécie de máquina do raio-da-morte e a apontava para a mesa de trabalho... enquanto Reg podia ouvir Rackne gritando, do interior de sua máquina de escrever.

"Talvez julguem que eu esteja atribuindo dados subjetivos a um homem que agora se encontra morto. Ou, em palavras mais rudes, inventando coisas. Pois não estou. Na cozinha, tanto Jane como Gertrude ouviam o nítido som trinado da pistola espacial de plástico que Jimmy empunhava. Ele a estivera usando pela casa inteira, desde que começara a vir com a mãe e, a cada dia, Jane tinha esperanças de que as pilhas do brinquedo se extinguissem. Não havia engano quanto ao som. Tampouco havia engano sobre o lugar de onde ele vinha — o estúdio de Reg.

"Compreendam, o garoto era realmente do material de Dennis o Terrível, se havia um lugar na casa onde ele não deveria ir, era justamente esse o lugar onde tinha de ir, para não morrer de curiosidade. Ele não demorou muito a descobrir que Jane tinha uma chave do estúdio de Reg sobre a platibanda da lareira na sala de refeições. Jimmy já teria entrado antes no estúdio? Creio que sim. Jane disse recordar haver dado uma laranja a ele, três ou quatro dias antes; mais tarde, quando limpava a casa, encontrou cascas da laranja debaixo do pequeno sofá do estúdio. Reg não gostava de laranjas — dizia-se alérgico a elas.

"Jane deixou cair na pia o lençol que lavava e correu para o quarto de dormir. Ouvia o ruidoso ríá-icá-iiá da pistola espacial e também ouvia Jimmy gritando: "Eu vou te pegar! Você não pode fugir! Posso ver você pelo VIDRO!" E... ela disse... disse ter ouvido algo gritando. Um som agudo e desesperado, segundo afirmou, tão cheio de dor, que era quase insuportável.

"Quando ouvi aquilo", disse ela, "compreendi que teria de abandonar Reg, pouco importando o que acontecesse, porque os contos da carochinha eram verdadeiros... a loucura era contagiosa. Sim, pois quem eu ouvia era Rackne; de algum modo, aquele garotinho levado estava matando Rackne, matando-o com os disparos de uma arma espacial, comprada por dois dólares na casa Kresge's.

"A porta do estúdio estava escancarada, com a chave na fechadura. Mais tarde, nesse mesmo dia, vi uma das cadeiras da sala de refeições encostada junto à lareira, com o assento todo marcado pelos tênis de Jimmy. O menino estava inclinado para a mesa da máquina de escrever de Reg. Ele — Reg — possuía um antigo modelo de máquina de escrever, do tipo para escritório, com partes de vidro nas laterais. Jimmy tinha o cano de sua pistola espacial encostado a uma daquelas partes de vidro e disparava para o interior da máquina de escrever. Uá-uá-uá, e impulsos púrpuras de luz eram disparados contra a máquina de escrever. De repente, pude compreender tudo quanto Reg já dissera sobre eletricidade, porque embora aquele brinquedo fosse apenas movido por pilhas elétricas inofensivas, realmente dava a impressão de expelir ondas venenosas, que me varavam a cabeça e carbonizavam meu cérebro.

"Eu vi você aí!" gritava Jimmy, e seu rosto estava tomado pela alegria infantil — era algo belo e terrível ao mesmo tempo. "Você não vai poder fugir, Capitão Futuro! Você está morto, alienígena!" E aqueles gritos... ficando mais fracos... menos intensos...

"Pare com isso, Jimmy!" gritei.

"Ele saltou. Eu o assustara. Virou-se... olhou para mim... estirou-me a língua... e tornou a encostar o cano da pistola no painel de vidro, recomeçando a atirar — uã-uã-uã — e expelindo aquela nojenta luz purpúrea.

"Gertrude vinha chegando pelo corredor, gritava que ele parasse, que saísse dali, que ia levar a maior surra de sua vida... quando então a porta da frente escancarou-se com ímpeto e Reg surgiu no corredor, berrando. Bastou-me um olhar para ele e compreendi que estava insano. A arma encontrava-se em sua mão.

"Não mate o meu filhinho!" gritou Gertrude quando o viu, avançando para contê-lo.

Reg simplesmente a empurrou para um lado.

"Jimmy nem parecia perceber o que acontecia — apenas continuou disparando sua pistola espacial para dentro da máquina de escrever. Eu podia ver aquela luz purpúrea pulsando na escuridão entre as teclas, uma luz semelhante à produzida por aqueles arcos elétricos, a mesma sobre a qual dizem que não podemos olhar sem óculos protetores especiais, porque ela poderia cozinhar as retinas, cegando-nos.

"Reg entrou, roçou violentamente em mim, derrubando-me.

"RACKNE!" gritou ele. "VOCÊ ESTÁ MATANDO RACKNE!"

"E, mesmo enquanto Reg cruzava o estúdio às carreiras, aparentemente pretendendo matar aquela criança", disse-me Jane, "tive tempo de pensar nas muitas vezes em que Jimmy estivera ali, disparando sua arma contra a máquina de escrever, enquanto eu e sua mãe estávamos no andar de cima, trocando a roupa de cama, ou no pátio dos fundos, pendurando a roupa lavada, sem ouvirmos o uá-uáuá... sem ouvirmos aquela coisa... o Fornit... lá dentro, gritando.

"Jimmy não parou, nem mesmo quando Reg irrompeu no estúdio — apenas ficou disparando contra a máquina de escrever, como se soubesse que aquela era sua última chance. Desde então, tenho-me perguntado se Reg não estaria certo também sobre eles.

Talvez eles apenas flutuem por aí, de vez em quando penetrando na cabeça de uma pessoa, como alguém mergulhando em uma piscina. Em seguida, eles fazem esse alguém executar o trabalho sujo, insistindo em serem atendidos. Depois, o sujeito em que eles estiveram, pergunta, "Como? Eu? Fiz o quê?"

"Um segundo antes de Reg chegar lá, o grito no interior da máquina de escrever tornou-se um breve guincho esganiçado — e vi sangue espalhar-se por todo o interior daquela placa de vidro, como se o que quer que existisse lá, finalmente acabasse de explodir, como dizem que um animal vivo explodirá, se colocado em um forno de microondas. Sei que isto pode parecer loucura, mas eu vi aquele sangue — ele bateu no vidro em um jato, antes de começar a escorrer.

"Peguei ele! exclamou Jimmy, altamente satisfeito. "Peguei..."

"Então, Reg o jogou através do estúdio, em toda a distância. Jimmy se chocou contra a parede. A pistola foi arrancada de sua mão, bateu no chão e se quebrou. Nada mais era além de plástico e pilhas Eveready, naturalmente.

"Reg espiou dentro da máquina de escrever e deu um grito. Não foi um grito de dor ou de fúria, embora nele houvesse fúria — era, principalmente, um grito de pesar. Virou-se então para o menino. Jimmy tinha escorregado para o chão e o que quer que houvesse sido — se é que fora algo mais do que apenas um garotinho travesso — agora era apenas uma criança aterrorizada de seis anos. Reg apontou a arma para ele e isso é tudo de que me lembro.

O editor terminou sua soda e colocou a lata a um lado, cuidadosamente.

— Gertrude e Jimmy Rulin recordam o suficiente para preencher a lacuna — disse ele. — Jane gritou, "Reg, NÃO!— Quando Reg se virou para fitá-la, ela conseguiu levantar-se e atracou-se com o marido. Ele a baleou, estilhaçando-lhe o cotovelo esquerdo, mas Jane não o soltou. Enquanto continuava atracada a ele, Gertrude chamou o filho e Jimmy correu para ela.

"Reg empurrou Jane e tornou a baleá-la. Agora, a bala passou raspando pelo lado esquerdo de seu crânio. Menos de meio centímetro para a direita, e o projétil a teria matado. Há pouca dúvida quanto a isso e nenhuma quanto à certeza de que Reg mataria Jimmy Rulin e talvez também sua mãe, se não fosse a intervenção de Jane Thorpe.

"Ele baleou o garoto — quando Jimmy correu para os braços da mãe, logo depois da porta do estúdio. A bala penetrou na nádega esquerda do garoto, em um trajeto para baixo.

Saiu pela parte superior da coxa esquerda, sem ofender o osso, passando através da pele de Gertrude Rulin. Houve muito sangue, porém nenhum dano importante a qualquer dos dois.

"Gertrude bateu a porta do estúdio e carregou seu filho que chorava e sangrava, corredor abaixo, até deixar a casa pela porta da frente.

O editor tornou a fazer uma pausa, pensativo.

— Jane estaria sem sentidos, na ocasião, ou deliberadamente preferiu esquecer o que aconteceu em seguida. Reg sentou-se em sua poltrona de escritório e encostou o cano da 45 contra o meio da testa. Apertou o gatilho. O projétil não lhe varou o cérebro e o transformou em um vegetal vivo, nem viajou em semicírculo pelo crânio, saindo inofensivamente no ponto mais distante. A fantasia era flexível, mas o projétil final foi o mais rijo possível. Reg caiu para diante, em cima da máquina de escrever, morto.

"Quando a polícia irrompeu, encontraram-no desse jeito. Jane estava sentada em um canto afastado, semi-inconsciente.

"A máquina de escrever estava coberta de sangue e, presumivelmente, também cheia dele; ferimentos na cabeça são muito, muitíssimo hemorrágicos.

"Todo o sangue era Tipo O.

"O tipo do sangue de Reg Thorpe.

"E esta, senhoras e senhores, é a minha história. Não, posso dizer mais nada.

De fato, a voz do editor se fora reduzindo, até não passar de um fosco sussurro.

Não houve a costumeira tagarelice pós-reunião, nem mesmo a desajeitadamente brilhante conversa que as pessoas às vezes usam para cobrir a indiscreção momentânea em algum coquetel ou, pelo menos, para disfarçar o fato de que a situação, em algum ponto, ficou muito mais séria do que em geral acontece, quando por ocasião de um jantar.

Não obstante, quando o escritor viu o editor encaminhar-se para seu carro, foi incapaz de conter uma pergunta final.

— A história — disse ele. — O que aconteceu à história?

— Está se referindo à...

— À "Balada do Projétil Flexível", exatamente. À história de Reg Thorpe, que provocou tudo isso. Aquele foi o real projétil flexível — para você, se não para ele. Que diabo aconteceu a uma história que era tão infernalmente espetacular?

O editor abriu a porta de seu carro; era um pequeno Chevette azul, tendo no para-choque traseiro um adesivo que dizia AMIGOS NÃO DEIXAM QUE AMIGOS DIRIJAM EMBRIAGADOS.

— Bem, ela jamais foi publicada. Se Reg possuía uma cópia a carbono, deve tê-la destruído após estar de posse do meu recibo e aceitação da história — considerando-se seus sentimentos paranóicos sobre eles, o que seria bem condizente com a situação.

"Eu tinha comigo seu original mais três fotocópias, quando mergulhei no Rio Jackson.

Os quatro estavam em uma pasta de papelão. Se houvesse colocado essa pasta no porta mala, hoje ainda teria a história, uma vez que a traseira de meu carro não chegou a mergulhar — e, mesmo que mergulhasse, as laudas se teriam secado. Contudo, eu a queria perto de mim, de modo que coloquei a pasta no banco dianteiro, ao lado do motorista. As janelas estavam arriadas, quando bati na água. As laudas... presumo que apenas tenham sido levadas boiando pela correnteza, chegando até o mar. Antes quero acreditar nisso, do que em irem apodrecendo com o resto do lixo no fundo daquele rio, inclusive comidas pelos peixes locais ou algo ainda menos agradável esteticamente.

Acreditar que foram levadas para o mar é mais romântico e ligeiramente mais improvável, porém quando se trata daquilo em que prefiro crer, acho que ainda posso ser flexível.

"Por assim dizer.

O editor entrou em seu pequeno carro e afastou-se. O escritor ficou parado, espiando até as luzes traseiras piscarem e desaparecerem. Então se virou. Meg estava ali, parada à cabeceira da alameda, no escuro, sorrindo um pouco incertamente para ele. Tinha os braços apertadamente cruzados sobre o busto, embora a noite fosse cálida.

— Somos os últimos dois — disse ela. — Quer entrar?

— Naturalmente.

A meio caminho, na alameda, ela parou e perguntou:

— Não há Fornits em sua máquina de escrever, há, Paul?

E o escritor que, por vezes — com freqüência — perguntava-se de onde, exatamente, vinham as palavras, respondeu, em tom corajoso:

— É claro que não. Em absoluto! Os dois entraram em casa, de braços dados, e fecharam a porta contra a noite.

 

São uns sessenta e cinco quilômetros, da Universidade Horlicks, em Pittsburgh, até o Lago Cascade, e embora em outubro escureça cedo nessa parte do mundo, e apesar deles só partirem às seis horas, ainda havia uma ligeira claridade no céu quando chegaram lá. Tinham ido no Camaro de Deke. Deke não perdia tempo, se estava sóbrio.

Após duas cervejas, fazia o Camaro caminhar e falar.

Ele mal havia parado o carro junto à cerca de estacas, entre o pátio de estacionamento e a praia, quando saltou para o chão e tirou a camisa. Seus olhos esquadrinhavam a água, à procura da balsa. Randy saiu do banco ao lado do motorista, algo relutante. A idéia tinha sido sua, claro, porém nunca esperara que Deke a levasse a sério. As garotas se remexiam no banco traseiro, preparando-se para descer.

Os olhos de Deke perscrutaram as águas incessantemente, de um lado para outro (olhos de atirador de tocaia, pensou Randy, desconfortavelmente), e então se fixaram em um ponto.

— Está lá! — gritou, dando um tapa no capô do Camaro. — Bem como você disse, Randy! Que barato! O último a chegar é um ovo podre!

— Deke... — começou Randy.

Recolocava os óculos no nariz, mas isso foi tudo com que preocupar-se, porque Deke já pulava a cerca e descia correndo para a praia, sem se virar para trás, sem olhar para Randy, para Rachel ou LaVerne, concentrado apenas na balsa, ancorada no lago, a uns cinqüenta metros da margem.

Randy se virou, como se desculpando com as garotas por envolvê-las naquilo, mas elas olhavam para Deke — que Rachel olhasse para ele, tudo bem, porque era a namorada de Deke, mas LaVerne também o olhava, de modo que Randy sentiu uma quente e momentânea fagulha de ciúme, que o obrigou a movimentar-se. Despojou-se de sua camisa de malha para atletismo, deixou-a cair ao lado da de Deke e saltou a cerca.

— Randy! — chamou LaVerne.

Ele apenas estirou o braço naquele cinzento ar de crepúsculo de outubro, em um gesto de "vamos", odiando-se um pouco por agir assim — ela agora estava insegura, talvez pronta para desistir. A idéia de uma sessão de natação em outubro, no lago deserto, não havia sido apenas parte de uma bem iluminada reunião para conversa fiada no apartamento que ele e Deke não partilhavam mais. Randy gostava dela, porém Deke era mais forte. E uma ova, se LaVerne não estava caída por Deke, uma droga, aquilo ser irritante.

Deke abriu o cinto do jeans, ainda correndo, deixando as calças descerem pelas coxas esguias. Conseguiu livrar-se delas no trajeto, sem parar para isso, uma façanha que Randy não conseguiria imitar em mil anos. Deke continuou correndo, agora apenas de sunga, os músculos das costas e nádegas funcionando harmoniosamente.

Randy ficou mais do que consciente de suas canelas finas, quando arriou sua Levi's e desajeitadamente a sacudiu dos pés. Com Deke, parecia balé, com ele, era burlesco.

Deke chegou à água e deu um berro.

— Está gelada! Deus do céu!

Randy hesitou, mas apenas em pensamento, onde as coisas demoravam mais — aquela água deve estar a nove graus, dez no máximo, disse sua mente. Seu coração poderia parar. Ele cursava o pré-médico, sabia que isso era verdade... mas, no mundo físico, não vacilou, em absoluto. Saltou para a água e, por um momento, seu coração parou ou assim pareceu; a respiração congelou-se na garganta e ele precisou forçar a entrada de ar nos pulmões, enquanto sua pele submersa ficava entorpecida. Isto é loucura, pensou, e depois: Bem, a idéia foi sua, Pancho. Começou a nadar na esteira de Deke.

As duas garotas entreolharam-se por um momento. LaVerne deu de ombros e sorriu.

— Se eles podem, nós também podemos! — exclamou, tirando sua blusa Lacoste e revelando um sutiã quase transparente. — Não dizem que as mulheres têm uma camada extra de gordura?

Em seguida, ela pulava a cerca e corria para a água, desabotoando as calças de brim.

Rachel a seguiu um momento depois, mais ou menos como Randy havia seguido Deke.

As garotas tinham chegado ao apartamento pelo meio da tarde. Às terças-feiras, a aula de uma da tarde era a última que todos eles tinham. Chegara a mesada de Deke — um dos ex-alunos, maníaco por futebol (os jogadores os chamavam de "anjos") providenciava para que ele recebesse duzentos dólares mensais em dinheiro — havia uma embalagem de cerveja na geladeira e um álbum novo — Night Ranger — no surrado estéreo de Randy. Os quatro ficaram batendo papo e bebendo alegremente. Após algum tempo, a conversa girou para o final do prolongado veranico que estavam desfrutando. O rádio previa rajadas de vento para a quarta-feira. LaVerne opinou que meteorologistas prevendo rajadas geladas em outubro deviam ser liquidados a tiros, e ninguém discordou.

Segundo Rachel, os verões pareciam durar para sempre quando ela era criança, mas agora que se tornara adulta ("uma tremelicante senil de dezenove anos", brincou Deke, e ela lhe chutou o tornozelo), eles ficavam cada vez mais curtos, de ano para ano.

— Era como se eu tivesse passado a vida inteira no Lago Cascade — falou, cruzando o gasto linóleo da cozinha, até a geladeira. Vistoriou o interior, encontrou uma lata de cerveja escondida atrás de uma pilha de caixas azuis de plástico para guardar alimentos (a do meio continha um chili quase pré-histórico, agora espessamente orlado de mofo — Randy era um bom aluno e Deke um bom jogador de futebol, mas nenhum dos dois valia nada, em se tratando de serviços domésticos) e apoderou-se dela. — Ainda me lembro da primeira vez em que consegui nadar toda a distância até a balsa. Fiquei lá quase duas horas, apavorada, com medo de nadar para a margem.

Sentou-se junto a Deke, que passou um braço em torno dela. Rachel sorriu, recordando.

De repente, Randy achou-a parecida com alguém famoso ou quase famoso. Não conseguia encaixar a semelhança. Lembrar-se-ia mais tarde, em circunstâncias menos agradáveis.

— Por fim, meu irmão teve que me rebocar com uma bóia. Puxa, ele ficou louco da vida! E eu tive uma queimadura de sol, que ninguém acreditaria...

— A balsa continua lá — falou Randy, mais para dizer alguma coisa.

Percebia que LaVerne estava olhando outra vez para Deke; aliás, ultimamente ela vinha olhando bastante para ele. Agora, no entanto, era para Randy que olhava.

— Já é quase o Dia das Bruxas, Randy. A praia do Cascade esteve fechada desde o Dia do Trabalho.

— Ainda assim, provavelmente a balsa continua lá — disse Randy. — Faz umas três semanas, estivemos na outra margem do lago, em uma excursão geológica de campanha, e eu a vi. Era como... — Ele deu de ombros. — Como algo no verão, que alguém esqueceu de limpar e guardar no armário, até o ano seguinte.

Randy pensou que achariam engraçado o que dissera, mas ninguém riu — nem mesmo Deke.

— Só porque a balsa estava lá o ano passado, não significa que ainda esteja — disse LaVerne.

— Falei nisso a um cara — disse Randy, terminando sua cerveja. — Billy DeLois, lembra-se dele, Deke?

Deke assentiu.

— Jogava como segundo reserva, até machucar-se.

— Certo, acho que sim. De qualquer modo, ele era de lá e contou que os caras donos da praia só a tiravam de lá quando o lago estava quase congelado. Pura preguiça — pelo menos, foi o que ele disse. Contou que certo ano esperaram tanto, que a balsa ficou bloqueada pelo gelo.

Randy se calou, recordando a aparência da balsa, ancorada no lago — um quadrado brilhante de madeira branca, em toda aquela brilhante água azul do outono. Evocou o som das barricas sob ela — aquele som flutuante de clonk-clonk — que havia chegado até eles. Era um som suave, mas os sons viajam bem no ar imóvel em torno do lago.

Houvera esse som e o de corvos grasnando sobre os remanescentes da colheita na horta de algum fazendeiro.

— Vai nevar amanhã — disse Rachel, levantando-se, quando a mão de Deke deslizou, quase alheada, para a curvatura superior de seu busto. Foi até a janela e espiou para fora. — Que droga!

— Pois eu sugiro uma coisa — disse Randy. — Vamos até o Lago Cascade. Nadamos até a balsa, dizemos adeus ao verão e depois nadamos de volta.

Se não estivesse meio alto, jamais teria feito a sugestão e, certamente, não esperava que ninguém o levasse a sério. Deke, no entanto, exultou ao ouvi-lo.

— Boa pedida! Chocante, Pancho! Pra lá de chocante! — explodiu ele. LaVerne levantou-se subitamente, derramando sua cerveja. Contudo, ela sorriu — o sorriso que deixava Randy um pouco preocupado. — Iremos até lá!

— Você é louco, Deke — disse Rachel, também sorrindo, mas o riso era algo forçado e inquieto.

— Nada disso, nós vamos lá! — exclamou Deke.

Excitado, mas temeroso ao mesmo tempo, Randy reparou no sorriso de Deke — inquieto e um pouco louco. Já fazia três anos que eles dividiam o mesmo quarto — o Atleta e o Cérebro, Cisco e Pancho, Batman e Robin — e Randy identificava aquele sorriso. Deke não estava brincando; resolvera mesmo ir ao lago. Em sua cabeça, já estava quase lá.

Esquece isso, Cisco — comigo, não. As palavras lhe chegaram aos lábios, mas antes de pronunciá-las, LaVerne já se tinha levantado, com a mesma expressão prazeirosa e amalucada nos olhos (ou talvez fosse cerveja em excesso).

— Pois eu topo! — exclamou ela.

— Então, a caminho! — Deke olhou para Randy — O que acha, Pancho?

Randy se virou para Rachel por um momento e viu qualquer coisa de quase frenético em seu olhar — no que lhe dizia respeito, Deke e LaVerne poderiam ir para o Lago Cascade e lá ficarem transando a noite inteira; não se alegraria sabendo que os dois estariam trepando como loucos, mas tampouco se surpreenderia. Contudo, aquela expressão no olhar de Rachel, aquele ar obcecado...

— Ohhh, Ciisco! — exclamou.

— Ohhh, Pancho! — gritou Deke, delicado

Um bateu na palma do outro.

Randy estava a meio caminho para a balsa, quando avistou a mancha negra na água.

Ficava além da balsa, mais para a esquerda, na direção do meio do lago. Cinco minutos mais tarde, a claridade do entardecer não lhe teria deixado perceber se ali havia algo mais que uma sombra... se chegasse a vê-la, afinal. Mancha de óleo? pensou, ainda avançando com dificuldade na água, vagamente cônscio das garotas dando braçadas mais atrás. De qualquer modo, o que estaria fazendo uma mancha de óleo em um lago, naquele outubro deserto? Aliás, ela era estranhamente circular, pequena, não tendo mais de metro e meio de diâmetro...

— Uaaaan! — tornou a gritar Deke, e Randy olhou em sua direção. Ele subia a escada na lateral da balsa, sacudindo a água como um cão. — Como está se saindo, Pancho?

— Tudo bem! — gritou Randy, nadando com mais vigor.

Em verdade, a coisa não estava tão ruim como imaginara, pelo menos, depois de entrar na água e começar a mover-se. Seu corpo formigava de calor e agora seu motor estava em alta velocidade. Podia sentir o coração batendo com força, aquecendo-o de dentro para fora. Seus pais tinham uma casa em Cape Cod e, lá, a água era mais fria do que aquela, em meados de julho.

— Se acha que agora está ruim, Pancho, espere só até sair! — gritou Deke alegremente.

Estava dando pulos, fazendo a balsa balançar-se, enquanto friccionava o corpo. Randy esqueceu a mancha de óleo, até suas mãos tocarem a áspera madeira pintada de branco da escada virada para a praia. Então, tornou a vê-la. Estava um pouco mais perto. Uma mancha redonda e escura na água, como uma enorme verruga, subindo e descendo com as ondas mansas. Quando a vira pela primeira vez, a mancha estaria a uns quarenta metros da balsa. Agora, estava a metade dessa distância.

Como é possível? Como...

Então, saiu da água e o ar frio mordiscou-lhe a pele, mordiscou-o ainda com mais vigor do que a água, quando nela mergulhara.

— Ohhhhhh, merda! — gritou, rindo e tiritando em sua sunga.

— Pancho, tu és um moleirão! — exclamou Deke, satisfeito. Ajudou-o a subir para a balsa. — Está frio demais pra você? Tudo bem?

— Tudo bem comigo! Tudo bem comigo!

Randy começou a pular como Deke havia feito, cruzando os braços sobre o peito e estômago, em um X. Os dois se viraram para as garotas. Rachel ultrapassara LaVerne, esta exibindo um estilo cachorrinho, executado por um cão de maus instintos.

— As senhoritas estão bem? — gritou Deke.

— Vá para o inferno, Senhor Machão! — gritou LaVerne.

Deke não a importunou mais. Randy olhou para o lado e viu que a curiosa mancha escura e circular estava agora mais próxima — agora a dez metros e ainda aproximando-se.

Flutuava na água, redonda e circular, como o topo de um grande latão de aço, porém a maneira frouxa como se movia deixava perceber que não era a superfície de um objeto sólido. O medo, errante, mas poderoso, tomou conta dele.

— Nadem! — gritou para as garotas.

Abaixou-se para agarrar a mão de Rachel, assim que ela chegasse. Ajudou-a a subir. Ela bateu um joelho na madeira, com força — ele ouviu o baque distintamente.

— Ai! Puxa, o que...

LaVerne ainda estava a uns três metros de distância. Randy tornou a olhar para o lado e viu a coisa redonda colidir com o outro lado da balsa. Era escura como petróleo, mas Randy tinha certeza de que não se tratava de petróleo — parecia escura demais, espessa demais, regular demais.

— Randy, isso doeu! O que está fazendo, querendo divertir-se...

— LaVerne! Nade! — gritou ele.

Agora não era apenas medo; era terror. LaVerne ergueu os olhos, talvez não captando o horror, mas ouvindo a pressa. Pareceu confusa, mas intensificou seu estilo cachorrinho, encurtando a distância para a escada.

— O que há com você, Randy? — perguntou Deke.

Randy olhou novamente para o lado e viu a coisa dobrar-se em torno do canto quadrado da balsa. Por um momento, ela pareceu a imagem de um troglodita, de boca aberta para comer biscoitos eletrônicos. Depois deslizou em volta de todo o canto e começou a escorregar ao longo da balsa, com uma de suas bordas agora reta.

— Ajude-me a içá-la! — grunhiu Randy para Deke, estendendo o braço para LaVerne. — Depressa!

Deke deu de ombros despreocupadamente e pegou a outra mão da garota. Os dois a puxaram para cima, colocando-a na superfície de tábuas da balsa, apenas segundos antes da coisa negra deslizar junto à escada, os lados encovando-se, como se deslizasse por sobre os degraus.

— Você ficou louco, Randy? — perguntou LaVerne.

Estava sem fôlego, um pouco amedrontada. Seus bicos dos seios eram claramente visíveis através do sutiã, espetando o tecido em pontas duras e frias.

— Aquela coisa — disse Randy, apontando. — O que será, Deke?

Deke localizou-a. Tinha chegado ao canto esquerdo da balsa, de onde escorregara um pouco para um lado, reassumindo o formato redondo. Parecia apenas flutuar ali. Os quatro olharam para a mancha.

— Acho que é uma mancha de óleo — disse Deke.

— Você realmente machucou meu joelho — queixou-se Rachel, olhando a coisa escura sobre a água e depois se virando para Randy. — Você...

— Não é uma mancha de óleo — disse Randy. — Já viu uma mancha de óleo redonda? Isso é qualquer outra coisa.

— Nunca vi uma mancha de óleo em minha vida — replicou Deke. Falava com Randy, mas olhava para LaVerne. As calcinhas dela eram quase tão transparentes como o sutiã, o delta de seu sexo claramente esculpido em seda, cada nádega um teso crescente. — Aliás, nem mesmo acredito nelas. Eu sou do Missouri.

— Vou ficar esfolada — disse Rachel.

A raiva, contudo, desaparecera de sua voz. Tinha visto Deke olhando para LaVerne.

— Puxa, estou com frio — disse LaVerne, toda arrepiada.

— Essa coisa estava atrás das garotas — disse Randy.

— Ora, vamos, Pancho! Não disse que estava tudo bem com você?

— Ela queria as garotas — repetiu ele, teimosamente, e pensou: Ninguém sabe que estamos aqui. Absolutamente ninguém.

— Já viu uma mancha de óleo, Pancho? — perguntou Deke.

Passara o braço pelos ombros nus de LaVerne, quase da mesma forma alheada com que tocara o seio de Rachel, horas antes. Não tocava o seio de LaVerne — de qualquer modo, ainda não — porém sua mão estava próxima. Randy decidiu que pouco lhe importava, de um jeito ou de outro. Aquela mancha negra e circular na água. Aquilo, sim, o deixava preocupado.

— Vi uma no Cape, faz quatro anos — respondeu. — Todos nós retiramos aves das ondas e tentamos limpá-las...

— Ecológico, Pancho — disse Deke, aprovadoramente. — Muito ecológico, yo creo.

— Era uma coisa enorme, um negócio pegajoso, estendendo-se por cima de toda a água. Em tiras e pequenos salpicos. Nada tinha de parecido com isso aí. Entenda, não era compacta.

Tinha um formato acidental, ele queria dizer. Esta coisa aqui nada tem de acidental; parece algo com objetivos definidos.

— Quero voltar agora — disse Rachel.

Ainda olhava para Deke e LaVerne. Randy leu a mágoa em seu rosto. Tinha certeza de que Rachel não percebia a transparência de sua expressão.

— Pois então, vá — disse LaVerne.

Havia um ar em seu rosto — a clareza do triunfo absoluto, pensou Randy e, se tal idéia parecia pretensiosa, também parecia exatamente correta. A expressão não era dirigida expressamente a Rachel... mas tampouco LaVerne procurava escondê-la de outra garota.

Ela se moveu um passo para Deke; um passo, era tudo que havia. Agora, os quadris de ambos se tocaram ligeiramente. Por um rápido momento, a atenção de Randy desviou-se da coisa flutuante na água e concentrou-se em LaVerne, com um ódio quase curioso.

Embora nunca houvesse agredido uma garota, naquele momento a esbofetearia com real prazer. Não porque a amasse (ficara um pouco caído por ela, sem dúvida, também mais do que um pouco sequioso dela, sem dúvida, e bastante enciumado quando a vira começando a ir com Deke para o apartamento. Claro que ficara, mas em primeiro lugar, nunca levaria uma garota a quem realmente amasse, a menos de vinte e cinco quilômetros de distância de Deke), mas por conhecer aquela expressão no rosto de Rachel — qual a sensação daquilo por dentro.

— Estou com medo — disse Rachel.

— Medo de uma mancha de óleo? — perguntou LaVerne, incrédula.

Depois ela riu. A vontade de esbofeteá-la tornou a crescer dentro de Randy, apenas girar a palma aberta no ar e atingi-la, acabar com aquela expressão de nojenta grandiosidade em seu rosto e deixar-lhe na bochecha uma marca que teria o formato de uma mão.

— Pois eu gostaria de vê-la nadar até a margem — disse Randy.

LaVerne sorriu indulgentemente para ele.

— Ainda não estou com vontade — respondeu, como se falasse a uma criança. Olhou para o céu, depois para Deke. — Quero ver as estrelas saírem.

Rachel era uma jovem baixinha e bonita mas, para uma garota, tinha um jeito ligeiramente inseguro, que fazia Randy pensar nas de Nova York — a gente as vê apressando-se para o trabalho pela manhã, usando suas elegantes saias com fendas na frente ou bem altas em um lado, com a mesma expressão graciosa. Os olhos de Rachel estavam sempre brilhantes, mas seria difícil definir se era a animação que lhes emprestava aquela vivacidade ou apenas uma ansiedade flutuando livremente.

Em geral, as preferências de Deke eram para garotas altas, de cabelos escuros e olhos tendendo para negros. Randy percebeu que agora nada existia entre Deke e Rachel — o que quer que tivesse havido, algo simples e talvez um pouco entediado por parte dele, era profundo, complicado e possivelmente doloroso para ela. Terminara, tão nítida e subitamente, que Randy quase ouviu o estalo: um som como um graveto seco, sendo quebrado com o joelho.

Ele era um rapaz tímido, mas decidiu aproximar-se de Rachel e passou um braço em torno dela. Ela o fitou brevemente, o ar infeliz, mas grato por seu gesto. Randy ficou satisfeito, por haver melhorado um pouco a situação dela. A similaridade flutuou de novo em sua mente. Algo no rosto de Rachel, em sua expressão...

Associou-o o primeiro a espetáculos de jogo na TV, depois a comerciais para biscoitos, bolos, qualquer droga de coisa assim. Então lhe ocorreu — ela parecia Sandy Duncan, a atriz que atuara na reapresentação de Peter Pan, na Broadway.

— O que é aquela coisa? — perguntou ela. — O que é, Randy?

— Não sei.

Randy se virou para Deke e o viu fitando-o com aquele sorriso familiar, no qual havia mais companheirismo do que raiva... mas havia raiva nele, também havia. Talvez Deke nem mesmo se desse conta disso, mas havia. A expressão dizia Lá está o velho Randy, sempre preocupado com ninharias e estragando tudo outra vez. Presumivelmente, isso faria Randy murmurar um acréscimo — Vai ver, não é nada. Não se preocupe com isso. A coisa acabará indo embora daqui. Qualquer coisa assim. Ele não a acrescentou. Que Deke sorrisse. A mancha negra na água o assustava. Essa era a verdade.

Rachel afastou-se de Randy e ajoelhou-se recatadamente na quina da balsa mais próxima da coisa e, por um momento, ela provocou uma associação de lembranças ainda mais clara: a garota nos rótulos de White Rock. Sandy Duncan nos rótulos de White Rock, corrigiu sua mente. Seus cabelos, cortados curtos e de uma tonalidade ligeiramente alourada, jaziam assentados e molhados contra o crânio belamente conformado. Podia ver as covinhas arrepiadas em suas omoplatas, acima da faixa branca do sutiã.

— Não vá cair, Rache — disse LaVerne, com visível malícia.

— Pare com isso, LaVerne — disse Deke, ainda sorrindo.

Randy desviou os olhos dos dois, em pé no meio da balsa, um com o braço frouxamente em torno da cintura do outro, os quadris se tocando de leve. Tornou a fitar Rachel. O alarme desceu velozmente por sua espinha e através de seus nervos como fogo. A mancha negra diminuíra em metade a distância entre ela e a quina da balsa onde Rachel, de joelhos, a observava. Antes, eram dois, dois metros e meio. Agora, a distância era de um metro ou menos. Randy captou a expressão estranha nos olhos da garota, uma total opacidade circular, singularmente semelhante a total opacidade circular daquela coisa na água.

Agora é Sandv Duncan sentada em um rótulo de White Rock, fingindo-se hipnotizada pelo suculento, delicioso sabor dos Biscoitos de Mel Nabisco, pensou ele, idiotamente. Seu coração aumentou as batidas, como acontecera antes na água, e então gritou:

— Saia daí, Rachel!

Depois, tudo aconteceu muito depressa — as coisas aconteceram com a rapidez de fogos de artifícios explodindo. No entanto, ele viu e ouviu cada coisa, com perfeita e infernal clareza. Cada coisa parecia presa em sua própria e diminuta cápsula.

LaVerne riu. No pátio, em uma hora luminosa da tarde, soaria como o riso de qualquer garota universitária, mas ali, na crescente escuridão, mais parecia o árido cacarejo de uma feiticeira, remexendo poções no caldeirão.

— Rachel, talvez seja melhor você... — começou Deke.

Ela o interrompeu então, quase segura de si pela primeira vez na vida e, indubitavelmente, pela última.

— Isso tem cores! — exclamou ela, em um tom de absoluta admiração. Seus olhos fixavam-se na mancha negra em cima da água, com opaca euforia, e por um instante apenas, Randy julgou ter visto o que ela apontava — cores, isso mesmo, cores girando em vivas espirais que se contorciam para o centro. Desapareceram em seguida, restando apenas aquele negrume fosco e sem brilho. — Que parece cores mais lindas!

— Rachel!

Ela estendeu o braço para a coisa — espichando-o e abaixando-o — seu braço alvo e marmorizado pelos arrepios. Esticou-o, querendo tocar, e Randy notou que Rachel roera as unhas até o sabugo.

— Ra...!

Sentiu a balsa oscilar na água, quando Deke se moveu em direção a eles. Randy inclinou-se para Rachel ao mesmo tempo, querendo puxá-la e vagamente cônscio de não desejar que Deke fizesse isso.

A mão de Rachel já tocava a água — seu indicador apenas, formando delicados círculos concêntricos na superfície — e a mancha negra avançou para aquele ponto. Randy ouviu Rachel ofegar e, de repente, a opacidade lhe abandonou os olhos, substituída por agonia.

A substância negra e viscosa subiu pelo braço dela como lodo... e, por baixo, Randy viu a pele de Rachel dissolver-se. Ela abriu a boca e gritou. Ao mesmo tempo, inclinou-se para diante. Agitou cegamente a outra mão para Randy, e ele tentou segurá-la. Os dedos de ambos de roçaram. Os olhos dela encontraram os dele, e Rachel ainda mostrava uma infernal semelhança com Sandy Duncan. Depois ela caiu para diante, estatelando-se na água.

A coisa negra fluiu para o ponto em que ela caíra.

— O que aconteceu? — gritava LaVerne, atrás deles. — O que aconteceu? Ela caiu? O que houve com ela?

Randy fez menção de mergulhar atrás dela, mas Deke o puxou para trás, quase sem esforço.

— Não! — exclamou ele, em uma voz amedrontada, como jamais acontecera.

Os três a viram emergir. Seus braços levantaram-se, agitando-se — não, não eram braços.

Um braço. O outro estava coberto por uma membrana negra, que pendia em fiapos e dobras de algo vermelho e entretecido com tendões, algo que parecia um pedaço redondo de rosbife.

— Socorro! — gritou Rachel.

Seus olhos arregalados fixaram-se neles, desviaram-se, fixaram-se novamente, tornaram a desviar-se... eram como lanternas agitadas desordenadamente no escuro. Ela bateu na água, formando espuma.

— Socorro! Como dói! Por, favor, socorro! COMO DÓI, COMO DOOÓI...

Randy teria caído, quando Deke o puxou. Levantando-se das tábuas da balsa, caiu para diante outra vez, incapaz de ignorar aquela voz. Tentou saltar, e Deke o agarrou, passando seus braços musculosos pelo tórax magro do outro.

— Não, ela está morta — sussurou rispidamente. — Céus, será que não vê isso? Ela está morta, Pancho!

Uma espessa cor negra espraiou-se subitamente pelo rosto de Rachel, como um lençol, primeiro sufocando seus gritos, depois cortando-os inteiramente. Agora, a coisa negra começou a enrolá-la em cordas entrecruzadas. Randy pôde vê-las, afundando na pele de Rachel como ácido. Quando sua jugular se rompeu, esguichando um jato escuro, ele viu a coisa enviar um pseudópodo em direção ao sangue que escapava. Não podia acreditar no que via, não podia entender... mas era a pura realidade, não uma sensação de estar perdendo o juízo, nenhuma impressão de que estivesse sonhando ou fosse vítima de uma alucinação.

LaVerne gritava. Randy se virou, em tempo de vê-la tapar os olhos melodramaticamente com uma das mãos, parecendo uma heroína de filme mudo. Pensou que ia rir e dizer-lhe o que imaginara, mas constatou que não conseguia emitir nenhum som.

Tornou a olhar para Rachel. Praticamente, ela não estava mais lá.

Suas contorções haviam diminuído, a ponto de não passarem de espasmos. O negrume espojou-se sobre ela — agora maior, pensou Randy, está maior, não há a menor dúvida — com silenciosa e muscular força. Viu a mão de Rachel agitar-se contra aquilo; viu a mão começar a ficar presa, como que aderida a melaço ou papel pega-moscas; viu-a desaparecer. Agora, havia apenas um senso das formas dela, não na água, mas na coisa preta, não se virando, mas sendo virada, a forma se tornando menos e menos identificável, um lampejo branco — ossos, pensou nauseado, e virou o rosto, vomitando inapelavelmente por sobre uma borda da balsa.

LaVerne ainda gritava. Houve então um pláft! surdo, e ela parou de gritar, começando a acalmar-se.

Ele a esbofeteou, pensou Randy. Eu queria fazer isso, lembra-se?

Recuou, limpando a boca, sentindo-se fraco e nauseado. E com medo. Tão apavorado, que só conseguia pensar com uma diminuta porção da mente. Em breve, começaria também a gritar. Deke precisaria esbofeteá-lo, Deke não entraria em pânico, oh, não, Deke era mesmo um herói, sem dúvida. Você precisa ser um herói do futebol... para arranjar garotas bonitas, cantarolava sua mente, com alegria.

Então, ouviu Deke falando com ele e ergueu o rosto para o céu, tentando clarear a cabeça, tentando desesperadamente afastar a visão da forma de Rachel, tornando-se disforme e inumana enquanto a coisa negra a devorava, não querendo que Deke o esbofeteasse como esbofeteara LaVerne.

Olhou para o céu e viu que brilhavam no alto as primeiras estrelas, o formato da Ursa Maior já claro, enquanto a última luminosidade do dia desbotava no oeste. Eram quase dezenove e trinta.

— Oh, Cisco — balbuciou. — Acho que estamos com um grande problema desta vez...

— O que é aquilo? — Sentiu a mão de Deke em seu ombro, apertando, crispando dolorosamente. — Aquela coisa a comeu, você viu? A coisa a comeu, a maldita coisa a comeu toda! O que é aquilo?

— Não sei — disse Randy. — Não lhe falei antes?

— Pois devia saber! Você é um maldito inteligente, segue todos os malditos cursos de ciências!

Agora, era o próprio Deke que quase gritava, permitindo que Randy recuperasse um pouco mais de controle.

— Não existe nada como aquilo em todos os livros científicos que já li — explicou.

— A última vez que vi algo semelhante, foi no Show de Horrores do Dia de Bruxas, no Rialto, quando tinha doze anos.

A coisa agora recuperara seu formato redondo. Flutuava sobre a água, a três metros da balsa.

— Está maior — gemeu LaVerne.

Quando Randy a vira pela primeira vez, avaliara seu diâmetro em cerca de metro e meio. Agora, tinha pelo menos dois e meio.

— Está maior, porque comeu Rachel! — soluçou LaVerne, começando a gritar novamente.

— Para com isso ou eu lhe quebro o queixo — ameaçou Deke.

Ela parou — não imediatamente, mas pouco a pouco, como um disco, quando alguém desliga o aparelho, sem levantar o braço da agulha. Os olhos de LaVerne estavam esbugalhados.

Deke se virou para Randy.

— Tudo bem com você, Pancho?

— Não sei. Acho que sim.

— Rapaz... — Deke tentou sorrir e, com certo alarme, Randy viu que ele conseguia — alguma parte de Deke estaria achando aquilo divertido? — Você não tem nenhuma idéia do que tudo isso possa ser?

Randy meneou a cabeça. Talvez, afinal fosse mesmo uma mancha de óleo... ou havia sido, até ter-lhe acontecido alguma coisa. Poderia haver sido atingida por raios cósmicos, de algum modo. Ou, talvez, Arthur Godfrey urinara poeira atômica sobre aquilo, quem sabe? Quem poderia saber?

— Será que podemos nadar contornando a coisa? — insistiu Deke, sacudindo o ombro de Randy.

— Não! — gritou LaVerne, em voz estridente.

— Pare com isso ou acabo com você, LaVerne — disse Deke, erguendo novamente a voz. — Não estou brincando!

— Você viu com que rapidez aquilo pegou Rachel — disse Randy.

— Talvez estivesse com fome — respondeu Deke. — É possível que agora tenha perdido o apetite.

Randy pensou em Rachel, de joelhos na quina da balsa, tão quieta e bonita em seu sutiã e calcinhas. Seu pomo de Adão tornou a subir.

— Você procurou isso — falou para Deke. Deke sorriu sem vontade.

— Oh, Pancho!

— Oh, Ciiisco!

— Quero ir para casa — disse LaVerne, em um sussurro furtivo. — Está bem?

Nenhum deles respondeu.

— Acho melhor esperarmos que a coisa se vá — disse Deke. — Assim como veio, irá embora.

— Talvez — disse Randy.

Deke olhou para ele, o rosto tomado por forçada concentração, na penumbra ambiente.

— Talvez? O que é essa merda de talvez?

— Nós chegamos, a coisa chegou. Eu a vi chegar — como se nos farejasse. Se está saciada, como falou, irá embora. Acho. Se ainda quiser comer...

Randy deu de ombros. Deke ficou parado e pensativo, de cabeça agachada. Seus cabelos curtos ainda pingavam um pouco.

— Vamos esperar — decidiu. — Que essa coisa coma peixe!

Passaram-se quinze minutos. Eles não falaram. A temperatura esfriava. Estaria pelos dez graus e os três encontravam-se apenas com roupas de baixo. Após os primeiros dez minutos, Randy pôde ouvir o vivo, intermitente chocalar de seus dentes. LaVerne tentara encostar-se a Deke, mas ele a recusara — com delicadeza, mas firmemente.

— Deixe-me sozinho agora — disse ele.

Ela ficou sentada, os braços cruzados sobre os seios, as mãos segurando os cotovelos, tiritando. Olhava para Randy, seus olhos dizendo que ele poderia voltar, passar os braços em torno dela, que tudo estava bem agora.

Ele desviou os olhos, preferindo concentrar-se no círculo escuro sobre a água. A coisa apenas flutuava ali, não se aproximando e tampouco afastando-se. Olhou para a margem e lá estava a praia, um crescente branco e fantasmagórico, que parecia flutuar. As árvores mais atrás formavam uma volumosa e escura linha do horizonte. Randy pensou que conseguia ver o Camaro de Deke, mas não tinha certeza.

— Nós apenas decidimos e viemos — falou Deke.

— Exato — disse Randy.

— Não contamos a ninguém.

— Não.

— Portanto, ninguém sabe que estamos aqui.

— Ninguém.

— Parem com isso! — gritou LaVerne. — Parem, estão me amedrontando!

— Feche essa matraca — disse Deke, com o pensamento em outra coisa, e Randy riu, a despeito de si mesmo — pouco importava quantas vezes Deke dissesse aquilo, ele sempre achava engraçado. — Se tivermos que passar a noite aqui, passaremos. Alguém ouvirá nossos gritos amanhã. Afinal, não estamos no meio do deserto australiano, não é mesmo, Randy?

Randy não respondeu.

— Estamos?

— Você sabe onde estamos — replicou Randy. — Sabe tão bem quanto eu. Saímos da Estrada 41 e percorremos treze quilômetros em uma estrada secundária...

— Com chalés a cada quinze metros...

— Chalés de verão. Estamos em outubro. Os chalés estão vazios, a maldita maioria deles. Chegamos aqui e você tinha que contornar o maldito portão, indicadores de PROIBIDA A ENTRADA a cada quinze metros...

— E daí? Algum zelador...

Deke parecia um pouco sem jeito agora, algo desconfortável. Com um certo medo, talvez? Pela primeira vez naquela noite, a primeira vez nesse mês, nesse ano, talvez a primeira vez em toda a sua vida? Ocorreu uma idéia cretina — Deke perde a virgindade de seu medo. Randy não tinha certeza de ser isso que acontecia, mas achou que talvez fosse... e sentiu um perverso prazer nisso.

— Nada para roubar, nada para vandalizar — falou. — Se houver zeladores, talvez só apareçam por aqui duas vezes ao mês.

— Caçadores...

— No mês que vem, não duvido — disse Randy e se calou de repente, porque também estava ficando com medo.

— Talvez essa coisa nos deixe em paz — disse LaVerne. Seus lábios esboçaram um leve e patético sorriso. — Talvez ela apenas... sabem como é... nos deixe em paz.

— Os tiras... — recordou Deke.

— Está se movendo — disse Randy.

LaVerne ficou em pé bruscamente. Deke aproximou-se de Randy e, por um momento, a balsa inclinou-se. O coração de Randy galopou no peito, apavorado, enquanto LaVerne tornava a gritar. Deke recuou um pouco e a balsa estabilizou-se, com a quina frontal esquerda (ao ficarem de frente para a praia) ligeiramente mais mergulhada na água do que as restantes.

A coisa aproximou-se com ginosa e aterradora rapidez. Enquanto se movia, Randy observou as cores que Rachel vira — fantásticos vermelhos, amarelos e azuis, espiralando sobre uma superfície de ébano semelhante a plástico frouxo ou escura, como couro. Subia e descia com as ondas, o que modificava as cores, fazia com que se fundissem girando. Randy percebeu que ia cair pela borda, diretamente sobre a coisa, podia sentir que se inclinava...

Com a última força que lhe restava, levou o punho direito ao nariz — o gesto de um homem amortecendo a tosse, só que um pouco mais alto e com muito mais força. Seu nariz explodiu em dor, ele sentiu o sangue quente escorrendo pelo rosto. Então, conseguiu recuar, gritando:

— Não olhem para aquilo! Deke! Não o encare diretamente, as cores o deixam zonzo!

— Está querendo passar para baixo da balsa — disse Deke, com ar sombrio. — Que merda é essa, Pancho?

Randy espiou — espiou com o máximo cuidado. Viu a coisa focinhando a lateral da balsa, achatando-se no formato de meia pizza. Por um momento, pareceu empilhar-se ali, espessando-se, e ele teve uma alarmante visão daquilo ganhando consistência bastante para subir à superfície da balsa.

Então, a coisa negra espremeu-se sob ela. Randy julgou ouvir um ruído por um momento — um ruído áspero, como uma cortina de lona, das de enrolar, sendo puxada através de uma janela estreita — mas aquilo poderia ter sido produto apenas de seus nervos.

— Ela entrou debaixo da balsa? — perguntou LaVerne, e havia algo curiosamente despreocupado em seu tom, como se fizesse o máximo esforço para conversar, mas também estava gritando. — Está debaixo da balsa? Está debaixo de nós?

— Está — respondeu Deke. Olhou para Randy. — Vou nadar até a praia, imediatamente. Se essa coisa está aqui embaixo, acho que tenho uma boa chance.

— Não! — gritou LaVerne. — Não, não nos deixe aqui, não...

— Eu sou rápido — disse Deke, olhando para Randy e ignorando LaVerne inteiramente. — Só que, preciso ir enquanto ela estiver aqui embaixo.

Randy teve a sensação de que sua mente disparava em Mach dois — de uma forma ensebada e nauseante aquilo era estimulante, como os derradeiros segundos antes de sermos lançados na vertigem do passeio em um divertimento de parque de diversões barato. Havia tempo para ouvir as barricas se entrechocando ocamente debaixo da balsa, tempo para ouvir as folhas das árvores roçando secamente a uma pequena brisa, além da praia, tempo para perguntar-se por que a coisa tinha ido para baixo da balsa.

— Está bem — disse a Deke, — mas não creio que você consiga.

— Conseguirei — respondeu Deke, encaminhando-se para a beira da balsa.

Deu dois passos, e então parou.

Sua respiração ganhara rapidez, o cérebro deixava o coração e os pulmões prontos para nadar os mais rápidos cinqüenta metros de sua vida, e agora sua respiração havia parado, como todo ele, simplesmente cortada no meio de uma inalação. Virou a cabeça, e Randy viu salientarem-se os tendões em seu pescoço.

Panch... — disse ele, em voz perplexa e sufocada, para então começar a gritar.

Deke gritou com espantosa força, vigorosos gritos de barítono, que foram descendo a fantásticos níveis de soprano. Eram altos o bastante para ecoarem na praia, voltando em espectrais tons de mínimas. A princípio, Randy julgou que ele apenas gritava, mas depois percebeu que era uma palavra, duas palavras, as mesmas duas palavras, repetidas sem cessar:

— Meu pé! Meu pé! Meu pé! Meu pé!

Randy olhou para baixo. O pé de Deke apresentava uma estranha aparência rebaixada.

O motivo era óbvio, porém a mente de Randy se recusava a aceitá-lo de início — era impossível demais, insanamente grotesco demais. Enquanto olhava, o pé de Deke foi sendo puxado para baixo, por entre duas das tábuas que compunham a superfície da balsa.

Então, viu o brilho escuro da coisa negra, além do calcanhar e dedos do pé, um vivo brilho escuro, com malignas cores giratórias.

A coisa agarrara o pé dele. (Meu pé! gritava Deke, como que confirmando tal elementar dedução. Meu pé, oh, meu pé, meu PÉÉÉÉÉÉ!) Ele havia pisado em uma das fendas entre as tábuas (pise em uma fenda e sua mãe ofenda, tagarelou a mente de Randy) e a coisa o prendera ali. A coisa tinha...

— Puxe! — gritou Randy, subitamente. — Puxe, Deke, que merda, PUXE!

— O que está acontecendo? — bradou LaVerne.

Vagamente, Randy percebeu que ela não lhe sacudia os ombros apenas afundara nele as unhas compridas como garras. LaVerne não seria de nenhuma ajuda, em absoluto. Deu-lhe uma cotovelada no estômago, ela emitiu um som semelhante a um latido, como que tossindo, e caiu sentada sobre o traseiro. Randy saltou para Deke e agarrou um de seus braços.

Era duro como mármore de Carrara, cada músculo projetando-se como a costela no esqueleto de um dinossauro esculpido. Puxar Deke era como tentar arrancar uma árvore enorme do chão, pelas raízes. Os olhos de Deke se erguiam para o púrpura-real do céu pós-crepúsculo, arregalados e incrédulos, sem que ele parasse de gritar, gritar e gritar.

Randy olhou para baixo e viu que agora o pé de Deke desaparecera na fenda entre as tábuas, até o tornozelo. Aquela fenda não teria mais do que um centímetro de largura, certamente não mais que meio centímetro, mas o pé penetrara por ela. O sangue escorria para as tábuas brancas, em espessos regatos escuros. A coisa negra, como plástico aquecido, pulsava para cima e para baixo na fenda, para cima e para baixo, como um coração.

Preciso arrancá-lo. Preciso arrancá-lo depressa ou nunca chegaremos a arrancá-lo...

Controle-se, Cisco, por favor, controle-se...

LaVerne levantou-se e recuou para longe da árvore — Deke, que se contorcia e gritava no meio da balsa, uma balsa que flutuava ancorada, sob as estrelas de outubro, no Lago Cascade. Ela sacudia a cabeça aturdida, os braços cruzados sobre o estômago, onde levara a cotovelada de Randy.

Deke inclinou-se pesadamente contra ele, os braços tateando às cegas. Tornando a olhar para baixo, Randy viu o sangue jorrando da canela de Deke, que agora se afinava, como se afina a ponta de um lápis — só que a ponta do lápis aqui era branca, não preta, a ponta era um osso, que quase não se divisava.

A coisa negra impeliu-se para cima de novo, sugando, comendo.

Deke uivou de dor.

Nunca mais jogará futebol com esse pé, QUE pé? Ha-ha, e ele puxou Deke com todas as forças, mas ainda era como tentar arrancar uma árvore, com raízes e tudo.

Deke pendeu novamente e agora proferiu um longo, estridente uivo, que fez Randy recuar, guinchando também, cobrindo os ouvidos. O sangue esguichava dos poros da perna de Deke; sua rótula tinha uma aparência purpúrea e intumescida, como se tentasse absorver a tremenda pressão colocada sobre ela, enquanto a coisa negra puxava a perna de Deke para baixo, através da estreita fenda, centímetro a centímetro.

Não posso ajudá-lo. Teria que ser muito forte! Não posso ajudá-lo agora, Deke, sinto muito, Deke, sinto tanto...

— Abrace-me, Randy! — gritou LaVerne, agarrando-se a ele por todo o corpo, enterrando o rosto em seu peito. O rosto dela estava tão quente, que parecia chiar. — Abrace-me, por favor, por que não me abraça...?

Desta vez, ele a abraçou.

Só mais tarde, Randy fez a terrível constatação: eles dois, com quase certeza, teriam nadado até a margem, enquanto a coisa negra se ocupava com Deke — e se LaVerne não quisesse, ele o faria sozinho. As chaves do Camaro estavam no jeans de Deke, caído na praia. Teria conseguido... mas essa certeza só lhe chegou quando era demasiado tarde.

Deke morreu, assim que sua coxa começou a desaparecer na estreita fenda entre as tábuas. Parara de gritar agudamente minutos antes disso. Desde então, emitira apenas grunhidos roucos. Então, isso parou também. Quando ele desmaiou, caído para diante, Randy ouviu o que quer que restava do fêmur em sua perna direita, estilhaçar-se como um graveto sendo partido.

Um momento depois, Deke ergueu a cabeça, olhou em torno atordoadamente e abriu a boca. Randy pensou que ele fosse gritar novamente. Só que, em vez disso, ele lançou um grande jato de sangue, tão espesso, que era quase sólido. Randy e LaVerne foram salpicados com o calor do sangue e ela começou a gritar de novo, agora roucamente.

— Utntnq! — gritou ela, o rosto contorcido em quase enlouquecida repugnância. — Unnng! Sangue! Urnnacy, sangue! Sangue!

Ela se esfregou, procurando limpar-se, mas só conseguiu espalhar mais o sangue que recebera.

O sangue fluía dos olhos de Deke, esguichando com tal força, que eles se esbugalhavam quase comicamente, pela potência da hemorragia. Randy pensou: Meu Deus! Meu Deus! Meu Deus!

O sangue jorrou dos ouvidos de Deke. Seu rosto era um hediondo nabo purpúreo, inchado e deformado pela pressão hidrostática de alguma inacreditável inversão; era o rosto de um homem apertado pelas garras de um urso, dotado de monstruosa e desconhecida força.

E então, misericordiosamente, aquilo terminou.

Deke tornou a descambar para diante, os cabelos pendendo acima das tábuas ensanguentadas da balsa. Com nauseado espanto, Randy viu que até mesmo o couro cabeludo dele sangrava.

Sons por baixo da balsa. Sons de coisa sugando.

Foi quando ocorreu à sua aturdida mente, seu cérebro sobrecarregado, que poderia ter escapado a nado, com boa chance de ter êxito. Contudo, LaVerne pesava demais em seus braços, pesava como chumbo. Olhou para o rosto descomposto, ergueu-lhe uma pálpebra e viu apenas o branco de olho. Compreendeu então que ela não desmaiara apenas, mas caíra inconsciente, em estado de choque.

Randy olhou para a superfície da balsa. Podia deitá-la, naturalmente, mas as tábuas só tinham uns trinta centímetros de largura. Havia uma plataforma para mergulho que era adaptada à balsa durante o verão, mas pelo menos isso fora desmontado e guardado em algum lugar. Nada mais restava senão o próprio piso da balsa, quatorze tábuas, cada uma com trinta centímetros de largura e seis metros de comprimento. Não era possível deitá-la, deixar seu corpo sem sentidos sobre qualquer daquelas fendas.

Pise em uma fenda, e sua mãe ofenda.

Cale-se.

E então, tenebrosamente, sua mente sussurrou: Vá, mesmo assim. Deite-a aí e nade para a salvação!

Contudo, ele não fez isso, não podia. Um terrível sentimento de culpa cresceu nele, a essa idéia. Abraçou-a, sentindo o peso macio e firme em seus braços e costas. Ela era uma grande garota.

Deke tombou de todo.

Randy segurava LaVerne nos braços doloridos e viu aquilo acontecer. Não queria olhar e, por longos segundos que lhe pareceram minutos, virou o rosto inteiramente. No entanto, seus olhos sempre vagavam para lá.

Com Deke morto, tudo pareceu mais rápido.

O restante de sua perna direita desapareceu. A perna esquerda estirou-se, mais e mais, até ele assemelhar-se a um dançarino de balé, com apenas uma perna à vista, fazendo uma pirueta impossível. Houve o estalar da fúrcula em sua pélvis e então, quando o estômago de Deke começou a inchar ominosamente sob nova pressão, Randy desviou os olhos por muito tempo, procurando não ouvir os sons líquidos, tentando concentrar-se na dor em seus próprios braços. Pensou que talvez poderia fazer LaVerne voltar a si, mas por enquanto era melhor sentir a dor latejante nos braços e ombros. Aquilo lhe dava algo em que pensar.

Às suas costas houve um som como o provocado por enormes dentes mastigando um punhado de balas quebra-queixo. Quando olhou, as costelas de Deke penetravam pela fenda. Os braços dele estavam erguidos e distendidos. Ele parecia uma obscena paródia de Richard Nixon fazendo o V da vitória, o sinal que enlouquecera o público, nos anos sessenta e setenta.

Ele tinha os olhos abertos. A língua estirava-se para Randy.

Randy se virou de novo, ficou olhando através do lago. Procure luzes, disse a si mesmo.

Sabia que por lá não haveria luzes, mas quis convencer-se disso. Procure por luzes Pelas margens, alguém deve estar passando a semana em seu chalé, apreciando a folhagem do outono, não iria perder o espetáculo, viria com sua Nikon, o pessoal em casa adoraria as fotos.

Quando tornou a olhar para trás, os braços de Deke estavam erguidos em linha reta. Não era mais Nixon; agora parecia um juiz de futebol, indicando que o ponto extra fora válido.

A cabeça de Deke dava a impressão de pousada nas tábuas.

Os olhos continuavam abertos.

A língua continuava espichada para fora.

— Oh, Ciisco — murmurou Randy, tornando a olhar para outro lado.

Seus braços e ombros agora gritavam, mas permaneceu segurando LaVerne nos braços.

Olhou para a margem mais distante do lago. Estava totalmente escura. Estrelas salpicavam o céu negro, desenrolavam-se através dele, uma fita de leite frio, de algum modo suspensa bem alto no ar.

Os minutos passaram. Ele deve ter ido agora. Você já pode olhar. Está bem, está bem, eu sei. Só que não vou olhar. Apenas por segurança, eu não vou olhar. Certo? Certo. Em definitivo. Assim dizemos todos e assim todos nós dizemos.

Ele terminou olhando mesmo, apenas em tempo de ver os dedos de Deke serem puxados para baixo. Eles se moviam — provavelmente o movimento da água sob a balsa era transmitido à coisa desconhecida que agarrara Deke e esse mesmo movimento se transmitia aos seus dedos. Provavelmente, provavelmente. Contudo, a Randy parecia que Deke lhe acenava. O Cisco Kid acenando adeus. Pela primeira vez, sentiu sua mente sofrer um doentio repelão — ela pareceu inclinar-se, da maneira como a balsa se inclinara, quando eles quatro haviam ficado em pé sobre o mesmo lado. Percebeu-a endireitar — sem mais, de repente, compreendeu que a loucura — a verdadeira demência — talvez não estivesse muito distante.

O anel de futebol de Deke — Assembléia Geral, 1981 — escorregou lentamente do terceiro dedo de sua mão direita. A claridade das estrelas refletiu-se no ouro e brincou nos minúsculos sulcos entre os números gravados — 19, em um lado da pedra avermelhada, 81, no outro lado. O anel caiu-lhe do dedo. Era um pouco grande demais para encaixar-se na fenda e, naturalmente, não se comprimiria.

Ficou caído ali. Era tudo que restava de Deke, agora. Deke se fora. Nada mais de garotas de cabelos e olhos escuros, nada mais de bater no traseiro nu de Randy com uma toalha molhada, quando Randy saía do chuveiro, nada mais de corridas antes do jogo pelo meio do campo, com fãs levantando-se na ponta dos pés nas arquibancadas e as chefes de torcida executando cabriolas histéricas nas linhas laterais.

Nada mais de escapadas após o escurecer, no Camaro, com Thin Lizzy clamando "Os rapazes voltaram à cidade", no gravador do carro. Nada mais de Cisco Kid.

Houve aquele vago ruído arranhando novamente — uma lona enrolada, sendo lentamente puxada pela fenda de uma janela.

Randy estava em pé e descalço sobre as tábuas. Olhou para baixo e viu as fendas a cada lado dos dois pés subitamente cheias de pegajosa escuridão. Seus olhos esbugalharam-se.

Pensou na maneira como o sangue jorrara da boca de Deke, quase semelhante a uma corda sólida, na maneira como os olhos dele haviam saltado, parecendo providos de molas, enquanto a hemorragia, provocada pela pressão hidrostática, esmagava-lhe o cérebro.

A coisa me fareja. Sabe que estou aqui. Conseguirá subir? Conseguirá subir pelas fendas? Conseguirá? Conseguirá?

Olhou para baixo, inconsciente do peso flácido de LaVerne, fascinado pela enormidade da questão, perguntando-se o que sentiria a coisa ao fluir sobre seus pés, quando se ancorasse neles.

O cintilar negro subiu quase até a borda das fendas (Randy ficou na ponta dos pés, sem mesmo perceber o que fazia) e depois desceu. Recomeçou o ruído de lona deslizando.

De repente, Randy tornou a ver a coisa sobre a água, uma grande verruga escura, agora talvez a uns cinco metros de distância. Ela subia e descia com as pequeninas ondulações da superfície, subia e descia, subia e descia... e quando Randy começou a ver as cores pulsando uniformemente sobre ela, desviou os olhos para outro lado.

Colocou LaVerne sobre o piso, e tão logo ficou livre do peso, seus braços começaram a tremer loucamente. Deixou que tremessem. Ajoelhou-se ao lado dela, cujos cabelos espalhavam-se sobre as tábuas brancas, em um irregular leque escuro. De joelhos, ele ficou espiando aquela verruga escura na água, pronto para levantar LaVerne novamente, se percebesse sinais de movimento na coisa.

Começou a bater-lhe nas faces de leve, primeiro em uma, depois na outra, repetindo a dose, como um segundo tentando animar um boxeador. LaVerne não queria voltar a si.

Ela não queria atender ao indicador Siga e ganhar duzentos dólares ou dar uma volta no Trem-fantasma. LaVerne já vira o suficiente. Contudo, Randy não podia segurá-la a noite inteira, levantando-a como a um saco de lona, sempre que a coisa se movesse (e tampouco se podia ficar olhando demais para a coisa; aí estava outro detalhe). Ele aprendera um truque, no entanto. Não o aprendera na universidade, mas com um amigo de seu irmão mais velho. Esse amigo fora médico paraquedista em Nam e conhecia todos os tipos de truques — como catar piolhos em um couro cabeludo humano e fazê-lo apostar corrida em uma caixa de fósforos, como diluir cocaína em laxativo infantil, como costurar cortes fundos com agulha e linha comuns. Certo dia, quando conversavam sobre maneiras de despertar-se bêbados profundamente embriagados, para que esses bêbados profundamente embriagados não vomitassem nas próprias gargantas e morressem, como Bon Scott, o cantor do AC/DC havia feito.

— Quer fazer alguém voltar a si rapidamente? — perguntara o amigo com o repertório de truques interessantes. — Experimente isto.

Então, ele lhe ensinou o truque que Randy ia usar agora.

Inclinando-se para LaVerne, ele lhe mordeu o lóbulo da orelha, o mais forte que pôde.

Sangue quente e acre espirrou em sua boca. As pálpebras de LaVerne se ergueram como persianas. Ela gritou, em uma voz rouca e rabujenta, depois o esmurrou com raiva.

Randy olhou para cima e viu apenas a parte mais distante da coisa; o restante já estava debaixo da balsa. Ela se movera com uma fantástica, terrível e silenciosa velocidade.

Randy tornou a içar LaVerne, seus músculos gritando em protesto tentando enovelar-se em cãibras. Ela lhe batia no rosto. Uma de suas mãos atingiu-lhe o nariz sensível e ele viu estrelas vermelhas.

— Pare com isso! — gritou, deslizando os pés para as tábuas. — Pare com isso sua cretina, a coisa está debaixo de nós novamente! Pare ou eu a deixo cair, juro por Deus como deixo!

Os braços dela pararam imediatamente de agitar-se e se enrolaram quietamente em torno do pescoço de Randy, como em um abraço de afogado. Os olhos de LaVerne pareciam brancos, à claridade das estrelas.

— Pare com isso! — Ela não parou. — Pare, LaVerne, está me sufocando!

Ela apertou com mais força. O pânico aflorou à mente de Randy. O entrechocar cavo das barricas assumira uma nova característica, mais seca, mais abafada. Era a coisa lá embaixo, pensou ele.

— Não posso respirar!

A pressão afrouxou um pouco.

— Agora, escute. Vou pôr você no chão. Tudo vai ficar bem, se você...

Ela, no entanto, ouvira apenas pôr você no chão. Seus braços enrolaram-se naquele aperto mortal novamente. Randy tinha a mão direita nas costas dela. Engalfinhou os dedos e arranhou-a. LaVerne agitou as pernas, ganindo roucamente e, por um momento, ele quase perdeu o equilíbrio. Ela o percebeu. O medo, maior que a dor, fez com que parasse de lutar.

— Fique em pé nas tábuas.

— Não!

A negativa saiu em um jato no rosto dele, quente como um vento do deserto.

— A coisa não poderá pegá-la, se ficar em pé nas tábuas.

— Não, não me ponha no chão! Ela vai me pegar, sei que vai, sei que vai...

Ele tornou a arranhar-lhe as costas. LaVerne gritou de raiva, de dor e medo.

— Fique em pé ou a deixo cair, LaVerne.

Ele abaixou, lenta e cuidadosamente, ambos respirando em haustos curtos, chiantes — flauta e oboé. Os pés dela tocaram as tábuas. LaVerne encolheu as pernas para cima, como se as tábuas estivessem em brasa.

— Ponha os pés no chão! — sibilou Randy. — Eu não sou Deke, não agüento segurá-la a noite inteira!

— Deke...

— Está morto.

Os pés dela pousaram nas tábuas. Pouco a pouco, ele a foi largando. Ficaram à frente um do outro, como dançarinos. Randy podia vê-lo esperando o primeiro toque da coisa.

A boca de LaVerne ofegou, como a de um peixe dourado.

— Randy — sussurrou ela. — Onde está a coisa?

— Embaixo. Olhe para baixo.

Ela olhou. Ele olhou também. Viram a escuridão que recheava as fendas, preenchendo-as agora por quase toda a extensão da balsa. Randy sentiu a ansiedade da coisa e pensou que LaVerne também a sentira.

— Randy, por favor...

— Pssst!

Os dois ficaram quietos.

Randy esquecera de tirar o relógio ao entrar na água e agora ele marcava quinze minutos. Às vinte e um quarto, a coisa negra tornou a deslizar para fora da balsa.

Afastou-se até uns quatro, cinco metros e então parou, como fizera antes.

— Vou me sentar — disse Randy.

— Não!

— Estou cansado. Vou me sentar e você ficará vigiando. Lembre-se apenas de ficar olhando para longe. Depois eu me levanto e você fica sentada. Faremos assim. Tome — e ele lhe entregou o relógio. — Turnos de quinze minutos.

— Aquilo comeu Deke — sussurrou ela.

— Eu sei.

— O que é?

— Não sei.

— Estou com frio.

— Eu também.

— Então, me abrace.

— Já fiz isso o suficiente.

Ela pareceu conformar-se.

Sentar-se era o paraíso; não ter que vigiar a coisa era beatífico. Em vez disso, ele vigiou LaVerne, certificando-se de que ela continuava desviando os olhos da coisa sobre a água.

— O que vamos fazer, Randy?

Ele refletiu.

— Esperar — disse.

Ao final de quinze minutos, Randy levantou-se e deixou que ela primeiro ficasse sentada e depois deitada, por meia hora. A seguir, fez com que LaVerne se levantasse novamente e ela permaneceu em pé por quinze minutos. Continuaram assim. Faltando quinze minutos para vinte e duas horas, uma fria côdea de lua subiu no céu e lançou uma trilha luminosa sobre a água. Às vinte e duas e trinta, ouviram um grito agudo e solitário ecoando através do lago. LaVerne soltou um grito estridente.

— Cale a boca — disse ele. — Foi apenas um mergulhão-do-norte.

— Estou gelando, Randy... Estou toda dormente.

— Nada posso fazer quanto a isso.

— Abraça-me — pediu ela. — Você tem que me abraçar. Ficaremos abraçados, esquentando-nos. Podemos nos sentar, os dois, vigiar a coisa juntos.

Ele resistiu à idéia, mas o frio penetrava em sua carne, agora atingia os ossos.

— Está bem — disse.

Sentaram-se juntos, os braços passados um em torno do outro, e algo aconteceu — natural ou perverso, mas aconteceu. Randy sentiu-se enrijecer. Uma de suas mãos encontrou o seio de LaVerne, comprimiu-se sobre o náilon úmido e apertou. Ela emitiu o ruído de um suspiro e sua mão caminhou para a virilha da sunga.

Randy deslizou a outra mão para baixo e encontrou um lugar onde existia algum calor.

Empurrou-a de leve, fez com que ela se deitasse.

— Não — disse LaVerne, mas a mão nas virilhas dele começou a mover-se mais depressa.

— Posso ver a coisa — disse Randy. As batidas de seu coração aumentavam de velocidade novamente, impedindo o sangue com mais rapidez para a superfície de sua pele nua e friorenta. — Posso vigiá-la.

LaVerne murmurou alguma coisa e ele sentiu o elástico descendo em seus quadris, até o alto das coxas. Vigiou a coisa. Randy deslizou para cima, depois para a frente.

Penetrou-a. Calor. Ceús, LaVerne era quente ali, pelo menos. Ela deixou escapar um ruído gutural e seus dedos aferraram as nádegas frias e comprimidas do companheiro.

Randy continuou vigiando. A coisa não se movia. Vigiou-a. Vigiou-a atentamente. As sensações táteis eram incríveis, fantásticas. Sua experiência não era grande, mas tampouco permanecera virgem. Havia feito amor com três garotas, mas nunca havia sido assim. Ela gemeu e começou a erguer os quadris. A balsa balançava docemente, como o mais duro colchão d'água do mundo. Por baixo dela, as barricas murmuravam ocamente.

Randy vigiava a coisa. As cores começaram a girar — lentamente agora, sensualmente, não ameaçadoras; ele ficou espiando e viu as cores. Tinha os olhos arregalados. As cores estavam em suas pupilas. Não sentia mais frio agora; sentia calor, o calor que sentimos no primeiro dia de volta à praia, em princípios de junho, quando o sol nos espeta a pele branquicenta do inverno, avermelhando-a, dando-lhe alguma (cores) cor, alguma tonalidade. O primeiro dia na praia, primeiro dia de verão, sugerindo antigas canções dos Beach Boys, sugerindo os Ramones. Os Ramones lhe diziam que Sheena é uma roqueira punk, os Ramones lhe diziam que você pode pegar carona até a praia Rockaway, para a areia, a praia, as cores (movendo-se, a coisa começa a mover-se) e a sensação do verão, sua contextura; Gary U.S. Bonds, o período letivo encerrou-se e eu posso torcer pelos Yankees das arquibancadas, garotas de biquíni na praia, a praia, a praia, oh, a gente ama, a gente ama (ama) a praia, a gente ama (amo, eu amo seios firmes e fragrantes de óleo Coppertone, e se o fundilho do biquíni fosse diminuto o bastante, era possível ver-se alguns (cabelos, seus cabelos, SEUS CABELOS ESTÃO NA OH, CÉUS, NA ÁGUA, SEUS CABELOS)

Ele recuou subitamente, tentando levantá-la, mas a coisa se movera com oleosa velocidade, enredando-se nos cabelos de LaVerne como uma espessa teia de cola negra.

Quando Randy a ergueu, ela já estava gritando e estava pesada com a coisa; a coisa que saiu da água, em uma membrana contorcida e horripilante, que se enrolava em vívidas cores nucleares — escarlate, vermelhão, esmeralda cintilante, ocre opaco.

A membrana fluiu para o rosto de LaVerne, cobrindo-o como uma maré, obliterando-o.

Ela sacudia os pés, tamborilando a madeira do piso. A coisa se torcia e movia onde estivera o rosto de LaVerne. O sangue lhe escorreu pelo pescoço em borbotões, gritando, sem se ouvir gritar, Randy correu para ela, firmou o pé em sua anca e empurrou. Ela saiu rolando e caiu pela borda da balsa, as pernas como alabastro ao luar.

Por alguns momentos intermináveis, a água agitou-se e bateu contra a lateral da balsa, como se alguém houvesse fisgado ali um peixe gigantesco, que se debatia como o diabo.

Randy gritou. Continuou gritando. E então, para variar, gritou ainda mais.

Uma meia hora mais tarde, muito depois de terminada a frenética agitação na água, os mergulhões-do-norte gritaram em resposta.

Aquela noite foi eterna.

O céu começou a clarear no leste, quando faltava um quarto para as cinco. Randy sentiu-se um pouco mais animado. Foi uma animação momentânea apenas; era tão falsa como o amanhecer. Ficou em pé sobre as tábuas, de olhos semicerrados, o queixo fincado no peito. Estivera sentado nas tábuas até uma hora atrás, tendo despertado subitamente — até então sem mesmo saber que adormecera, a esta era a parte aterradora — por causa daquele indivisível som sibilante de lona. Saltou em pé, apenas segundos antes de aquele negrume começar a sugar com ânsia por ele, nas fendas entre as tábuas.

Sua respiração sibilava, entrando e saindo; ele mordeu o lábio, fazendo-o sangrar.

Dormindo, você esteve dormindo, seu imbecil!

A coisa tornara a deslizar debaixo da balsa meia hora mais tarde, porém ele não tornou a sentar-se. Receava sentar-se, temia dormir novamente e sabia que, desta vez, sua mente não o faria acordar em tempo.

Seus pés continuavam firmemente plantados nas tábuas, quando uma claridade mais forte, o verdadeiro amanhecer, encheu o leste, e os primeiros pássaros matinais começaram a cantar. O sol nasceu e, por volta de seis horas, o dia estava claro o suficiente para permitir-lhe ver a praia. O Camaro de Deke, amarelo-vivo, estava bem lá onde seu dono o estacionara, encostado à estaca de cerca. Uma vívida fileira de camisas e suéteres, além de quatro jeans, se torcia em pequenas formas, até a praia. Aquela visão o encheu de renovado horror, quando pensava que sua capacidade para o horror já se exaurira. Podia avistar o seu jeans, uma perna virada pelo avesso, o forro do bolso aparecendo. Seu jeans parecia a salvo, tão a salvo, jazendo lá na areia; apenas esperando que ele chegasse e virasse a perna da calça pelo direito, agarrando o bolso enquanto fazia isso, para que as moedas não caíssem. Quase podia ouvi-las sussurando contra sua perna, enquanto vestia as calças, podia sentir-se abotoando o botão de latão acima da braguilha... (você amou, sim, ele amou)

Olhou para a esquerda e lá estava ela, negra, redonda como uma ficha de jogo, flutuando levemente. As cores começaram a girar através de sua superfície e ele virou rapidamente o rosto.

— Vá embora — grasnou. — Vá embora ou vá para a Califórnia e faça um teste para um filme de Roger Corman!

Um avião roncou em algum lugar distante e ele mergulhou em sonolenta fantasia: Fomos dados como desaparecidos, nos quatro. A busca se espalha, a partir de Horlicks.

Um fazendeiro se lembra de ter visto passar um Camaro amarelo. "como um morcego, fugido do inferno". A busca centraliza-se na área do Lago Cascade. Pilotos particulares preparam-se para uma rápida checagem aérea, e um sujeito, — dirigindo acima do lago seu Tirin Bonanza, avista um rapazola na balsa, tem um rapaz, olá, um sobrevivente, um...

Randy surpreendeu-se junto à borda novamente, quase caindo, e tornou a esmurrar o nariz, gritando com a dor.

A coisa negra partiu como flecha para a balsa, imediatamente, apertando-se debaixo dela — talvez pudesse ouvir, sentir... ou qualquer coisa.

Randy esperou.

Desta vez, passaram-se quarenta e cinco minutos, antes da coisa surgir à vista.

A mente de Randy orbitava lentamente à claridade que ia aumentando. (você ama) sim, eu adoro torcer pelos Yankees e pelos Catfìsh, (você gosta dos Catfìsh), sim, eu gosto de... Rota 66, lembra-se do Corvette de George Maharis, Marfim Milner no Corvette, (você gosta de Corvette), sim, eu gosto do Corvette, (ele ama, você ama), o sol está tão quente, é como um vidro queimando, estava nos cabelos dela, é a luz que mais recordo, a luz do verão, luz (a luz do verão, ao entardecer).

Randy estava chorando.

Ele chorava, porque agora havia sido acrescentado algo novo... A cada vez que tentava sentar-se, a coisa deslizava para baixo da balsa. Portanto, ela não era totalmente estúpida; pressentia ou imaginava que podia agarrá-lo, enquanto estava sentado.

— Vá embora! — soluçou ele, dirigindo-se à grande verruga negra que flutuava na água. A cinqüenta metros de distância, zombeteiramente próximo, um esquilo saltitava de um lado para outro, no capô do Camaro de Deke. — Vá embora, por favor, vá para qualquer lugar, mas me deixe em paz! Não gosto de você! Não a amo!

A coisa não se movia. As cores começaram a girar através de sua superfície visível. (você me ama, você me ama)

Randy desviou os olhos e contemplou a praia, procurou socorro, mas lá não havia ninguém, absolutamente ninguém. Seu jeans continuava lá, uma perna virada pelo aveso, o forro branco do bolso aparecendo. Suas calças não davam mais a impressão de que seriam recolhidas por alguém. Pareciam relíquias.

Ele pensou: Se eu tivesse uma arma, agora poderia matar-me.

Ficou em pé na balsa.

O sol escondeu-se.

Horas mais tarde, a lua apareceu.

Não muito depois disso, os mergulhões-do-norte começaram a gritar.

Não muito depois disso, Randy se virou e olhou para a coisa negra na água. Não podia matar-se, mas talvez a coisa desse um jeito, sem que houvesse dor alguma; talvez fosse para isso que havia as cores. (você me ama você me ama você me ama)

Olhou para ela, e lá estava, flutuando, ao sabor das ondas.

— Cante comigo — grasnou Randy. — Posso torcer pelos Yankees das arquibancadas... Não tenho de me preocupar com professores... Estou tão alegre porque as aulas terminaram... Eu vou... cantar e gritar.

As cores começaram a formar-se e contorcer-se. Desta vez, Randy não desviou os olhos.

— Você ama? — sussurou ele.

Em algum ponto bem distante, através do lago vazio, um mergulhão-do-norte piou.

 

"Esta é a última chamada para a Excursão 701" — a agradável voz feminina ecoou através do Blue Concourse no Departamento Terminal Portuário de Nova York. O DTP não mudara muito nos últimos mais ou menos trezentos anos — continuava maltratado e um tanto amedrontador. A voz feminina automatizada talvez fosse o detalhe mais agradável no local. — "Todos os passageiros munidos de passagem deverão estar agora no salão-dormitório do Blue Concourse. Verifique se seus papéis de confirmação estão em ordem. Obrigada."

O salão-dormitório no andar de cima nada tinha de maltratado. Era atapetado de parede a parede em cinza-ostra. As paredes exibiam uma tonalidade branco casca-de-ovo e dela pendiam agradáveis quadros abstratos. Uma permanente calmante progressão de cores se encontrava e revoluteava no teto. Havia cem divãs no grande recinto, ordenadamente espaçados em fileiras de dez. Cinco atendentes da Excursão circulavam por ali, falando em voz baixa e animada, enquanto ofereciam copos de leite. A entrada ficava a um lado da sala, flanqueada por guardas armados e outro atendente da Excursão, que no momento checava os papéis de confirmação de um passageiro retardatário, um homem de negócios com expressão apoquentada e o World Times de Nova York dobrado debaixo de um braço. Na direção exatamente oposta, o piso descia em uma espécie de calha, com cerca de metro e meio de largura e talvez uns três de comprimento; essa passagem insinuava-se através de uma abertura sem portas, tendo uma vaga semelhança com um escorrega para crianças.

A família Oates jazia lado a lado em quatro divãs-Excursão, perto do final da sala. Mark Oates e Marilys, sua esposa, flanqueavam os dois filhos.

— Papai, vai me falar sobre a Excursão agora? — perguntou Ricky. — Você prometeu.

— Isso mesmo, pai, você prometeu — acrescentou Patrícia, com um agudo risinho sufocado, sem motivo algum.

Um homem de negócios com a corpulência de um touro olhou para eles e depois voltou a concentrar-se na pasta de papéis que examinava, enquanto jazia deitado de costas, os sapatos reluzentes ordenadamente juntos. De algum lugar, chegou o murmúrio surdo de conversas e o rumor de passageiros ajeitando-se nos divãs-Excursão.

Mark olhou para Marilys Oates e piscou. Ela piscou de volta, mas estava quase tão nervosa quanto Patty parecia. Por que não? pensou Mark. Era a Primeira Excursão para os três. Ele e Marilys haviam discutido as vantagens e inconveniências de uma mudança da família inteira por seis meses — desde que ele fora notificado pela Texaco Water de que seria transferido para a Cidade de Whitehead. Finalmente, decidiram que iriam todos e permaneceriam em Marte durante os dois anos em que Mark ficaria lá. Agora, observando a palidez de Marilys, ele se perguntou se ela lamentava a decisão.

Olhou para o relógio e viu que ainda faltava meia hora para a partida da Excursão.

Havia tempo suficiente para contar a história... e imaginou que isso deixaria as crianças menos nervosas. Quem sabe, talvez até acalmasse Marilys um pouco.

— Muito bem — decidiu-se.

Ricky e Pat o encaravam com seriedade. Ricky tinha doze anos e Pat nove. Disse novamente para si mesmo, que Ricky estaria atolado no pântano da puberdade e sua filha provavelmente teria seios em desenvolvimento, quando retornassem à terra. E de novo, achou difícil de acreditar. As crianças freqüentariam a pequena Escola Mista de Whitehead, juntamente com os cento e poucos filhos de engenheiros e pessoal da companhia de petróleo que lá estavam; seu filho bem poderia engajar-se em uma viagem de campanha geológica a Fobos, não muitos meses distante. Era difícil de acreditar... mas verdadeiro.

Querem saber? pensou torcidamente. Talvez isso também me traga certas vantagens.

— Até onde sabemos — começou ele — a Excursão foi inventada há cerca de trezentos e vinte anos atrás, por volta de 1987, por um indivíduo chamado Victor Carune. Ele fez isso como parte de um projeto privado de pesquisa, financiado por algum dinheiro do governo... e, eventualmente, o governo tomou as rédeas, claro está. Por fim, a coisa foi passada para o governo e também para as companhias de petróleo. O motivo de ignorarmos a data exata, é porque Carme era um tanto excêntrico...

— Está querendo dizer que ele era maluco, papai? — perguntou Ricky.

— Excêntrico significa só um pouquinho maluco, meu bem — disse Marilys, enquanto sorria para Mark, por cima das crianças.

Ele pensou que sua esposa agora parecia algo menos nervosa.

— Oh!

— De qualquer modo, ele fez experiências com o processo por bastante tempo, antes de informar ao governo o que descobrira — prosseguiu Mark — mas só deu a informação, porque estava ficando sem dinheiro e eles não pretendiam continuar a financiá-lo.

— Seu dinheiro prontamente devolvido — disse Pat, tornando a dar aquela risadinha aguda.

— Exato, querida — disse Mark e desarrumou-lhe o cabelo delicadamente.

No extremo oposto do recinto, ele viu uma porta deslizar silenciosamente dando passagem a mais dois atendentes, trajando os vivos macacões do Serviço Excursão e empurrando uma mesa rolante. Sobre ela, havia um bocal de aço inoxidável preso a uma mangueira de borracha; debaixo da mesa, esteticamente escondidas, Mark sabia que havia duas garrafas de gás; na sacola de malhas presa ao lado, estavam cem máscaras descartáveis. Mark continuou falando, não querendo que os seus vissem os representantes do Letes antes do momento oportuno.

E, se conseguisse tempo para relatar toda a história. eles acolheriam de braços abertos os aplicadores do gás.

A alternativa também devia ser considerada.

— Naturalmente, vocês sabem que a Excursão é teletransporte, nem mais e nem menos — disse ele. — Por vezes, na Química e Física das universidades, dão-lhe o nome de Processo Carune, mas em realidade é teletransporte, tendo sido o próprio Carune a acreditar-se no que dizem — que o denominou "a Excursão". Ele apreciava a Ficção científica e há uma história, escrita por um homem chamado Alfred Bester e intitulada As estrelas são o nosso destino, na qual o autor emprega a palavra "excursão" como teletransporte. Só que, no livro, pode-se fazer a Excursão apenas pensando nela, o que evidentemente não podemos.

Os atendentes agora fixavam a máscara ao bocal de aço e a estendiam a uma mulher idosa, no extremo oposto do recinto. Ela a tomou, inalou uma vez e caiu em seu divã, imóvel e flácida. Sua saia subiu um pouco, revelando uma coxa bamba, semelhante a um mapa rodoviário de veias varicosas. Um atendente gentilmente ajeitou a saia para ela, enquanto o outro se desfazia da máscara usada e afixava uma nova. Era um processo que fazia Mark pensar nos copos plásticos dos quartos de motel. Desejava ardentemente que Pat se acalmasse um pouquinho: vira crianças que precisavam ser subjugadas em seus divãs e que, por vezes, gritavam enquanto a máscara de borracha lhes cobria o rosto. Não era uma reação anormal em uma criança, pensou ele, porém era uma visão desagradável e não queria que acontecesse a Patty. No tocante a Ricky, sentia-se mais confiante.

— Creio que se poderia dizer que a Excursão surgiu no exatíssimo momento — recomeçou. Falava para Ricky, mas estendeu o braço e segurou a mão da filha. Os dedos de Pat se fecharam sobre os dele, com imediata e amedrontada pressão. A palma dela estava fria, suando ligeiramente. — O mundo vinha ficando sem petróleo e a maioria do que sobrara pertencia aos povos dos desertos do Oriente Médio, que o usavam como arma política. Eles tinham formado um cartel petrolífero a que denominaram OPEP...

— O que é um cartel, papai? — perguntou Patty.

— Bem, é um monopólio — respondeu Mark.

— Como um clube, meu bem — disse Marilys. — E a pessoa só podia entrar nesse clube se tivesse quantidades de petróleo.

— Oh!

— Não tenho tempo para explicar toda a confusão — disse Mark. — Vocês vão estudar alguma coisa disso na escola, mas foi uma confusão — e deixemos como está. Se você tinha um carro, só podia dirigi-lo dois dias por semana, além do que, a gasolina custava quinze pratas antigas o galão...

— Puxa! — exclamou Ricky. — Ela hoje só custa quatro centavos o galão, não é, pai?

Mark sorriu.

— Aí está o motivo de estarmos indo para onde vamos. Ricky. Em Marte há petróleo bastante para durar quase oito mil anos, enquanto que em Vênus há para outros vinte mil... Enfim, o petróleo não é mais tão importante. Agora, aquilo de que mais precisamos é...

— Água! — gritou Patty.

O homem de negócios ergueu os olhos de sua papelada e sorriu para ela por um instante.

— Exato — disse Mark. — Porque nos anos entre 1960 e 2030, envenenamos a maioria da água que possuíamos. A primeira extração de água das calotas de gelo marcianas foi chamada...

— Operação Canudinho — disse Ricky.

— Certo. Em 2045, mais ou menos. Contudo, muito antes disso, a Excursão estava sendo usada para encontrar fontes de água potável aqui na terra. Agora, a água é nossa principal exportação marciana... ficando o petróleo estritamente em posição secundária. Contudo, era importante naquela época.

As crianças assentiram.

— A questão é que essas coisas sempre estiveram lá, mas só conseguíamos obtê-las por causa da Excursão. Quando Carune inventou este processo, o mundo descambava para uma nova idade média. No inverno anterior, mais de dez mil pessoas morreram congeladas nos Estados Unidos apenas, já que não havia energia suficiente para aquecê-las.

— Oh, puxa! — exclamou Patty, em tom prosaico.

Mark olhou para a direita e viu os atendentes falando com um homem de ar tímido, tentando convencê-lo. Por fim, ele aceitou a máscara e pareceu cair morto em seu divã, segundos mais tarde. Marinheiro de primeira viagem, pensou Mart. A gente percebe logo.

— Para Carune, a coisa começou com um lápis... algumas chaves... um relógio de pulso... e então, alguns ratinhos. Os ratinhos lhe mostraram que havia um problema...

Victor Carune voltou a seu laboratório em uma vertiginosa febre de excitamento.

Pensou que agora sabia como Morse, Alexander Graham Bell e Edison se haviam sentido... só que isto era maior do que todos eles e, por duas vezes, quase acabou com a caminhonete, ao retornar da loja de animais de estimação em New Paltz, onde gastara seus últimos vinte dólares na compra de nove ratinhos brancos. O que lhe restava no mundo eram os noventa e três centavos no bolso direito do paletó e os dezoito dólares em sua conta de poupança... mas isto não lhe ocorreu. E, se ocorresse, certamente não o preocuparia.

O laboratório ficava em um celeiro restaurado, no final de uma estrada de terra batida com um quilômetro de comprimento, partindo da Rota 26. Foi ao manobrar para a estradinha, que quase espatifou sua caminhonete Brat pela segunda vez. O tanque de gasolina estava quase vazio e não haveria mais combustível para dez dias e duas semanas, porém isto tampouco o preocupava. Sua mente estava em delicioso torvelinho.

O que acontecera não era totalmente inesperado. Não. Um dos motivos que levaria o governo a ajudá-lo com a mísera subvenção de vinte mil dólares anuais, era porque a possibilidade irrealizada sempre estivera presente no campo de transmissão de partículas.

No entanto, ter de acontecer assim... de repente... sem nenhum aviso... e movido, por menos eletricidade do que a necessária ao funcionamento de uma TV colorida... Deus! Cristo!

O Brat estacou com uma guinchada de freios à entrada de terra nos fundos do celeiro, Carune agarrou a caixa sobre o assento sujo ao seu lado, aferrando-a pelas alças (na caixa havia cães, gatos, hamsters e peixinhos dourados, mais a inscrição EU VIM DA CASA DE ANIMAIS DE ESTIMAÇÃO STACKPOLE'S) e correu para as grandes portas duplas. Do interior da caixa brotavam rumores das corridinhas e movimentos de suas cobaias.

Ele tentou empurrar uma das enormes portas em seus trilhos corrediços, mas quando ela não se moveu, recordou que a trancara. "Merda!" exclamou Carune em voz alta, enquanto procurava as chaves no bolso. O governo exigira que o laboratório ficasse sempre trancado — era uma das condições sob as quais soltava seu dinheiro — mas Carune vivia esquecendo.

Encontrou as chaves e, por um momento, ficou apenas olhando para elas, hipnotizado, passando a polpa do polegar sobre as chanfraduras na chave de ignição da Brat. Tornou a pensar: Deus! Cristo! Depois, seus dedos percorreram as chaves no molho, até encontrarem a Yale que abria a porta do celeiro.

Assim como o primeiro telefone havia sido usado inadvertidamente — Bell gritando nele, "Watson, venha cá!" ao derramar algum ácido em seus papéis e em si mesmo — também o primeiro ato de teletransporte ocorrera por acidente. Victor Carune teletransportara os dois primeiros dedos de sua mão esquerda através dos cinqüenta metros de largura do celeiro.

Carune havia instalado dois portais nos lados opostos do celeiro. Em seu final, havia uma arma elementar de íons, do tipo encontrado em qualquer loja de artigos eletrônicos, por menos de quinhentos dólares. Na outra extremidade, bem após o portal mais distante — ambos retangulares e do tamanho de um livro de bolso — havia uma câmara fosca. Entre os dois portais ficava o que parecia uma cortina de chuveiro opaca, exceto que cortinas de chuveiro não são feitas de chumbo. A idéia era disparar os íons através do Portal Um, contorná-lo e vê-los passando através da câmara fosca logo após o Portal Dois, com a cortina blindada entre os dois, para provar que os íons tinham sido realmente transmitidos. Só que, nos dois últimos anos, o processo funcionara apenas duas vezes — e Carune não tinha a menor idéia de por que isso ocorrera.

Enquanto ajustava a pistola de íons, seus dedos haviam deslizado através do portal — em geral não havia qualquer problema, mas nessa manhã, seu quadril também roçara na cavilha interruptora, sobre o painel de controle à esquerda do portal. Carune não percebeu o que tinha acontecido — o mecanismo deixou escapar apenas o menos audível zumbido — até ele sentir um formigamento nos dedos.

"Não foi como um choque elétrico", escreveu em seu primeiro e último artigo a respeito, antes que o governo lhe fechasse a boca. O artigo foi publicado em Mecânica Popular, entre várias outras publicações. Carune o vendeu por setecentos e cinqüenta dólares, em um desesperado esforço para manter a Excursão um assunto de empreendimento privado. "Não aconteceu aquele desagradável formigamento de quando pegamos em um fio elétrico desencapado, por exemplo. Foi mais como a sensação de colocar-se a mão no corpo de uma pequena máquina que funcionasse a todo vapor. A vibração é tão rápida e leve que, literalmente, dá essa sensação de formigamento.

"Olhei então para o portal, e vi que meu indicador sumira, cortado diagonalmente através da falange média. O segundo dedo desapareceu pouco acima disso. Em adição, a parte em que fica a unha do terceiro dedo havia sumido."

Carune puxara a mão instintivamente, gritando. Escreveu mais tarde, ser tamanha a sua certeza de que o sangue jorraria, que chegou a vê-lo, em alucinação. Por um ou dois momentos. Seu cotovelo bateu na pistola de íons e a derrubou da mesa.

Ficou parado com os dedos na boca, verificando que continuavam ali, e inteiros. O pensamento de que andara trabalhando demais lhe passou pela cabeça. Pensou também outra coisa: o último conjunto de alterações podia ter... podia ter provocado algo.

Não recolocou os dedos de volta. Aliás, em toda a sua vida. Carune só Excurcionou uma vez mais.

A princípio, ele nada fez. Deu uma longa e errante caminhada em volta do celeiro, passando as mãos pelos cabelos e perguntando-se se deveria ligar para Carson, em Nova Jersey, ou talvez para Buffington, em Charlotte. Carson não aceitaria um interurbano a cobrar, aquele sovina nojento, mas Buffington provavelmente aceitaria. Então, teve uma idéia súbita e correu até o Portal Dois, pensando que, se seus dedos realmente haviam cruzado o celeiro, poderia haver algum sinal disso.

Não havia sinal algum, claro. O Portal Dois ficava no alto de três caixotes de laranjas Pomona empilhados, assemelhando-se a um daqueles brinquedos de guilhotina, sem a lâmina. Em um lado de sua moldura de aço inoxidável ficava uma tomada, com um cordel que ia até o terminal de transmissão, este pouco mais do que um transformador de partículas, ligado a uma linha de alimentação de computador.

Isto lhe recordava...

Carune olhou para seu relógio e viu que passavam quinze minutos das onze. Seu envolvimento com o governo consistia de dinheiro curto, mais tempo de computador, o qual era infinitamente valioso. Sua ligação com o computador durava até três horas daquela tarde e depois seria adeus, até a segunda-feira. Precisava mover-se, tinha que fazer alguma coisa...

"Tornei a olhar para a pilha de caixotes", escreveu ele, em seu artigo para Mecânica Popular, "e então olhei para as polpas de meus dedos. Claro, a prova estava ali.

Contudo, pensei então, aquilo não convenceria ninguém, além de mim mesmo. No começo, entretanto, é apenas a nós próprios que temos de convencer.

— Qual era o problema. Pai? — perguntou Ricky.

— Sim, papai, qual era? — acrescentou Patty.

Mark sorriu de leve. Estavam todos atentos agora, inclusive Marilys. Quase haviam esquecido onde estavam. Pelo canto do olho, ele podia ver os atendentes da Excursão empurrando silenciosa e lentamente seu carrinho por entre os Excursionistas, colocando-os para dormir. O processo nunca era tão rápido no setor civil como era no militar, ele havia descoberto: os civis ficavam nervosos e queriam discutir o assunto. O bocal e a máscara de borracha recordavam demais as salas de cirurgia dos hospitais, onde o cirurgião, com suas facas, espreitava de algum ponto atrás da anestesista, esta com sua seleção de gases em recipientes de aço inoxidável. Por vezes havia pânico, histeria, sempre existindo alguns que simplesmente tinham acessos de nervos. Mark observou dois destes, enquanto falava com os filhos: dois homens se haviam limitado a abandonar seus divãs, caminharam até a entrada, sem o menor alvoroço, soltaram os papéis de confirmação espetados em suas lapelas. devolveram-nos e saíram, sem olhar para trás. Os atendentes da Excursão recebiam instruções estritas para evitar discussões com aqueles que iam embora. Sempre havia gente na fila de espera, às vezes quarenta ou cinqüenta pessoas, esperando contra a esperança. Quando iam embora aqueles que não podiam suportar a situação, permitia-se que entrassem as pessoas da fila, com suas próprias confirmações espetadas nas camisas.

— Carune encontrou duas lascas em seu dedo indicador — disse ele aos filhos. — Tirou-as e as deixou de lado. Uma se perdeu. mas a outra pode ainda ser vista no Anexo Smithsoniano, em Washington. Foi colocada em uma caixa de vidro hermeticamente lacrada, perto das rochas lunares que os primeiros viajantes espaciais trouxeram da lua...

— A nossa lua ou uma de Marte, papai? — perguntou Ricky.

— A nossa — respondeu Mark, sorrindo de leve. — Foi lançado a Marte apenas um foguete tripulado por homens, Ricky. Tratava-se de uma expedição francesa, por volta de 2030.

De qualquer modo, eis por que um mero e velho pedacinho de madeira, vindo de um caixote de laranjas, está no Instituto Smithsoniano. Foi o primeiro objeto em nosso poder que realmente atravessou o processo do teletransporte — Excursionou — através do espaço.

— O que aconteceu depois? — perguntou Patty.

— Bem, segundo a história, Carune correu...

Carune correu para o Portal Um e ficou lá um instante, o coração em disparada, sem fôlego. Preciso ficar calmo, disse para si mesmo. Tenho que refletir no que houve. Se ficar nervoso, não posso ampliar meu tempo.

Ignorando deliberadamente a premência de seu cérebro, que lhe gritava para apressar-se e fazer alguma coisa, ele pegou o cortador de unhas no bolso e usou a ponta da lixa para arrancar a lasca do dedo indicador. Deixou-o cair no papel branco da embalagem interna de uma barra de chocolate que havia comido, enquanto lidava com o transformador e tentava aumentar sua capacidade aferente (aparentemente, teve êxito nisso, além de seus sonhos mais impetuosos). Uma lasca rolou do papel e ficou perdida, mas a outra terminou no Instituto Smithsoniano, trancada em uma caixa de vidro, distanciada do público por uma barreira de grossas cordas de veludo e observada, vigilante e eternamente, por uma câmara de TV em circuito fechado, monitorizada por computador.

Terminada a extração da lasca, ele ficou um pouco mais calmo. Um lápis. Era tão bom quanto qualquer outra coisa. Pegou um, ao lado do quadro de avisos sobre a prateleira acima dele e o passou delicadamente pelo Portal Um. O lápis desapareceu limpamente, centímetro por centímetro, como algo em uma ilusão de óptica ou em um truque de excelente mágico. Havia a inscrição EBERHARD FABER N.° 2 em um de seus lados, letras negras estampadas em madeira pintada de amarelo. Quando empurrou o lápis até tudo — exceto EBERH — haver desaparecido, ele deu a volta para o outro lado do Portal Um. Espiou.

Viu o lápis como que amputado, como se perfeitamente cortado por uma faca. Tateou o lugar onde deveria estar o resto do lápis e, naturalmente, nada havia. Correu através do celeiro até o Portal Dois, e lá estava a parte que faltava, jazendo sobre o caixote superior. Com o coração batendo tão forte que parecia sacudir todo o seu peito, Carune agarrou o lápis pelo lado da ponta afiada e o puxou pelo restante da travessia.

Ergueu-o no ar, olhou para ele. De repente, apanhou-o e escreveu FUNCIONA! em um pedaço de tábua do celeiro. Escreveu com tanta força, que a ponta do lápis se quebrou na última letra. Carune começou a rir estridentemente no celeiro vazio; ria tão alto, que espantou as andorinhas adormecidas e elas começaram a voar por entre os altos caibros do teto.

— Funciona! — bradou, e correu de volta ao Portal Um. Agitava os braços, com o lápis quebrado preso no punho fechado. — Funciona! Funciona! Está me ouvindo, Carson, seu filho da puta? Funciona E EU CONSEGUI!

— Cuidado com o que diz às crianças, Mark — censurou Marilys.

Mark deu de ombros.

— Supõe-se que foi o que ele disse.

— Bem, não poderia ser mais seletivo ao repetir?

— Um urso faz cocô na floresta? — disse Mark, logo em seguida tapando a boca com a mão.

As duas crianças riram freneticamente e Mark ficou satisfeito ao notar que aquele tom agudo desaparecera da voz de Patty. Após um momento tentando ficar séria, Marilys começou a rir também.

Em seguida, foram as chaves; Carune simplesmente as jogou através do portal. Estava começando a pensar com coerência de novo e pareceu-lhe que a primeira coisa a descobrir, seria se o processo produzia coisas na outra extremidade, exatamente como haviam sido antes ou se, de algum modo, elas sofriam alterações na viagem.

Viu as chaves irem e desaparecerem; exatamente no mesmo instante, ouviu-as tilintando no caixote do outro lado do celeiro. Correu até lá — agora, em realidade ia trotando — e, de passagem, fez uma pausa para jogar a cortina de chumbo de volta a seus trilhos.

Agora não precisava dela nem da pistola de íons. Dava no mesmo, porque a pistola de íons ficara irremediavelmente destroçada.

Apanhou as chaves, foi à fechadura que o governo o forçara a colocar na porta e experimentou a chave Yale. Funcionou perfeitamente. Experimentou a chave da casa.

Também funcionou. O mesmo aconteceu com as chaves de seu fichário e a que dava partida à caminhonete Brat.

Carune botou as chaves no bolso e tirou seu relógio. Era um Seiko LC de quartzo, com uma calculadora embutida abaixo do mostrador digital — vinte e quatro diminutos botões que lhe permitiam tudo, de adição a subtração, passando pela raiz quadrada. Uma delicada peça de mecanismo — e, com a mesma importância, também um cronômetro.

Carune colocou o relógio diante do Portal Um e o empurrou com um lápis.

Correu através do celeiro e o apanhou. Antes de empurrar o relógio pela passagem, ele marcava 11:31:07. Agora, marcava 11:31:49. Muito bom. Direto ao dinheiro, mas ele devia ter ali um assistente para confiar o fato de que não houvera nenhum tempo ganho, em absoluto. Bem, não importava. Logo o governo o cercaria de assistentes.

Experimentou a calculadora. Dois e dois continuavam sendo quatro, oito dividido por quatro ainda dava dois, a raiz quadrada de onze, como sempre, resultava ser 3,3166247... e por aí adiante.

Foi quando ele decidiu que chegara a vez dos ratinhos.

— O que aconteceu com os ratinhos, papai? — perguntou Ricky.

Mark vacilou ligeiramente. Aqui, precisaria tomar certa cautela, se não quisesse amendrontar seus filhos (para não falar na esposa) tornando-os histéricos, minutos antes de sua primeira Excursão. A questão principal era deixá-los com a certeza de que tudo agora estava bem, que o problema havia sido resolvido.

— Como falei, houve um pequeno problema...

Sim. Horror, loucura e morte. Que tal isso como pequeno problema garotos?

Carune tirou da prateleira a caixa com a inscrição EU VIM DA CASA DE ANIMAIS DE ESTIMAÇÃO STACKPOLE'S e olhou para seu relógio. Droga, havia colocado o mostrador ao contrário. Virou-o para a posição correta e viu que passavam quinze minutos das duas. Dispunha ainda de uma hora e quinze minutos para o computador.

Como o tempo vôa quando a gente se diverte, pensou, e riu desatinadamente.

Abriu a caixa, esticou o braço e pegou um chiante ratinho branco pela cauda. Colocou-o diante do Pontal Um e disse, "Vá, ratinho." O ratinho correu prontamente para um lado do caixote de laranjas sobre o qual se situava o portal e disparou em desabalada corrida pelo chão.

Praguejando, Carune o caçou e chegou realmente a pegá-lo, antes que ele se espremesse por uma fenda entre duas tábuas e desaparecesse.

— MERDA! — gritou, tornando a correr para a caixa dos ratos.

Chegou em tempo de jogar para dentro dela dois fugitivos em potencial. Pegou um segundo rato, agora segurando-o pelo corpo (era um físico de profissão, ignorando as maneiras de lidar com ratos) e bateu a tampa da caixa, trancando-a.

Com este, Carune não facilitou. O rato agarrou-se à sua palma, de pouco adiantando; terminou caminhando com suas próprias patinhas e atravessou o Portal Um. Carune o ouviu aterrar imediatamente sobre os caixotes no lado oposto do celeiro.

Desta vez ele correu velozmente, recordando com que facilidade o primeiro rato lhe fugira. Não precisava ter-se preocupado. O rato branco apenas se agachava no caixote, os olhos opacos, os lados do corpo aspirando fracamente. Carune diminuiu a corrida, aproximando-se com cautela. Não era um homem acostumado a manipular ratos, porém não precisa ser um veterano de quarenta e um anos, para ver que ali havia algo terrivelmente errado.

("O rato não se sentia muito bem após a travessia, disse Mark Dates aos filhos, com um amplo sorriso, que somente sua esposa percebeu ser falso.)

Carune tocou o rato. Era como tocar algo inerte — talvez um molho de palha ou serragem ensacada — exceto pelas laterais — aspirando. O rato não olhou para ele; seus olhos estavam fixos diretamente à frente. Carune empurrara um animalzinho vivo, esperto e guinchante pelo Portal Um; ali havia o que parecia um simulacro de rato.

Então, estalou os dedos diante dos pequenos olhos rosados do rato. Ele piscou... e caiu morto, deitado de banda.

— Então, Carune decidiu experimentar com outro rato — disse Mark.

— O que aconteceu ao primeiro? — perguntou Ricky.

Mark exibiu novamente aquele vasto sorriso.

— Foi aposentado com todas as honras — respondeu.

Carune encontrou um saco de papel e dentro dele colocou o rato. Pretendia levá-lo para Mosconi, o veterinário, ainda aquela noite. Mosconi o dissecaria e lhe diria se os órgãos do bichinho tinham ficado avariados. O governo desaprovaria a intromissão de um cidadão privado em um projeto que seria classificado como tríplice altamente secreto, assim que eles fossem informados do sucedido. Tetas robustas, presumia-se que a gata dissera aos gatinhos que se queixavam da quentura do leite. Carune decidira que o Grande Pai Branco em Washington só seria informado da brincadeira o mais tarde possível. Eles bem podiam esperar, por conta da insignificante ajuda que o Grande Pai Branco lhe dera. Tetas robustas.

Então, recordou que Mosconi morava onde o diabo perdeu as botas, do outro lado de New Paltz. Não havia gasolina suficiente no Brat para cruzar metade da cidade... quanto mais para a volta.

Contudo, já eram 2:03 — sobrava-lhe menos de uma hora para o computador. Decidiu preocupar-se mais tarde com a maldita dissecação.

Carune construiu uma rampa improvisada, levando à entrada do Portal Um (em realidade, o primeiro Escorrega-Excursão, disse Mark as crianças, e Patty achou deliciosamente divertida a idéia de um Escorrega-Excursão para ratos) e deixou cair nele um novo rato branco. Bloqueou a extremidade final com um livro grande e, após alguns momentos de farejar e sondar sem destino, o rato cruzou o portal e desapareceu.

Carune correu para o outro lado do celeiro.

O rato estava morto.

Não havia sangramento, nenhuma inchação no corpo indicando que uma mudança radical de pressão promovera a ruptura de algo interno. Carune supôs que a carência de oxigênio poderia...

Meneou a cabe, impaciente. O rato branco levara apenas escassos segundos na travessia; seu próprio relógio informara que o tempo permanecia uma constante no processo ou quase isso.

O segundo rato branco se juntou ao primeiro, no saco de papel. Carune apanhou um terceiro (um quarto, se contarmos o felizardo que escapara pela fenda entre as tábuas), perguntando-se pela primeira vez o que acabaria antes — seu tempo de computador ou seu suprimento de ratos.

Este, ele segurou firmemente em torno do corpo, forçando suas ancas através do portal.

No outro lado do celeiro, viu as ancas reaparecerem... apenas as ancas. As patinhas desincorporadas arranhavam freneticamente a madeira rústica do caixote.

Carune puxou o rato de volta. Nada de catatonia agora; o rato mordeu a pele de ligação entre seu polegar e o indicador, com força bastante para tirar sangue. Rápido, deixou o rato na caixa EU VIM DA CASA DE ANIMAIS DE ESTIMAÇAO STACKPOLE'S e usou o vidrinho de água oxigenada em seu estojo de pronto-socorro do laboratório, a fim de desinfetar a mordida.

Colocou um Band-Aid sobre ela, depois vasculhou o local até encontrar um par de grossas luvas de trabalho. Podia sentir o tempo esgotar-se, esgotar-se, esgotar-se. Agora eram 2:11 da tarde.

Pegou outro rato e o empurrou de costas pela passagem — todo ele. Correu para o Portal Dois. Este rato viveu por quase dois minutos, chegando mesmo a caminhar um pouco.

Depois cambaleou sobre o caixote de laranjas Pomona, caiu de banda, esforçou-se fracamente para ficar sobre os pés e terminou caindo agachado. Carune estalou os dedos perto da cabeça do animalzinho e ele conseguiu dar uns quatro passos, antes de tornar a cair de banda. A aspiração nos lados do corpo diminuiu... diminuiu... e parou. Ele estava morto.

Carune sentiu um calafrio.

Voltou, pegou outro rato e o empurrou pela metade no portal, a cabeça primeiro. Viu-o reaparecer no outro lado, apenas a cabeça... depois o pescoço e o peito. Cautelosamente, afrouxou a pressão no corpo do rato, pronto a agarrá-lo, se ficasse arisco. Não ficou.

Apenas permaneceu ali, metade em um lado do celeiro, metade no outro.

Carune correu para o Portal Dois.

O rato estava vivo, porém seus olhos rosados haviam ficado vidrados e apáticos. Os bigodes não se moviam. Dando volta ao portal, Carune teve uma visão espantosa; como vira o lápis cortado ao meio, assim via o rato. Via as vértebras de sua pequenina espinha terminarem abruptamente em redondos círculos brancos; viu seu sangue se movendo nos vasos; viu o tecido se movendo suavemente com a maré da vida, em torno de seu minúsculo esôfago. Se aquilo não servisse para nada mais, pensou (e escreveu mais tarde, em seu artigo para Mecânica Popular), pelo menos seria uma formidável ferramenta para diagnósticos.

Então, percebeu que o movimento de maré nos tecidos havia cessado. O rato tinha morrido.

Carune empurrou o rato pelo focinho, não gostando da sensação daquilo, e o deixou cair no saco de papel, com os companheiros. Chega de ratos brancos, decidiu. Os ratos morrem. Morrem quando fazem a travessia de corpo inteiro, e morrem quando só fazem metade da travessia, com a cabeça primeiro. Fazendo metade da travessia, com as ancas primeiro, eles permanecem espertos.

Diabo, o que há aqui?

Imput sensorial, pensou, quase ao acaso. Quando atravessam, eles vêem alguma coisa... ouvem alguma coisa... tocam alguma coisa... Céus, talvez até cheirem alguma coisa... que literalmente os mata. O que será?

Ele não fazia a menor idéia — mas pretendia descobrir.

Ainda dispunha de quarenta minutos, antes que COMLINK lhe fechasse a fonte de dados básicos. Desatarrachou o termômetro da parede ao lado da porta de sua cozinha, trotou de volta ao celeiro com ele e o colocou através dos portais. O termômetro marcava 83.° F; chegou do outro lado marcando os mesmos 83° F. Carune vasculhou o aposento sobressalente, onde guardava alguns brinquedos para distrair os netos. Entre eles, encontrou um pacote de bolas de gás. Soprou uma, amarrou-a e a passou pelo portal. Ela chegou inteira e perfeita — um começo na resposta à sua pergunta sobre uma mudança súbita de pressão, de algum modo causada pelo que já pensava como o processo Excursional.

Faltando cinco minutos para a hora fatal, ele correu até sua casa e apanhou o aquário com seus peixes dourados (no interior, Percy e Patrick agitavam as caudas e nadavam inquietos). Correu de volta ao celeiro, e lá passou o aquário através do Portal Um.

Correu até o Portal Dois, onde seu aquário estava sobre o caixote. Patrick flutuava de ventre para cima; Percy nadava indolente, perto do fundo do aquário, como que estonteado. Um momento depois, também boiava de barriga para cima. Carune estendia o braço para apanhar o aquário, quando Percy teve um leve movimento de cauda e reiniciou seu lânguido nadar. Lentamente, pareceu eliminar qualquer efeito havido e, quando Carune retornou da Clínica Veterinária de Mosconi, às nove daquela noite, Percy parecia tão animado como sempre.

Patrick estava morto.

Carune deu a Percy uma ração dupla de alimento para peixes e a Patrick um sepultamento de herói, no jardim.

Depois que o computador ficou fechado para ele por aquele dia, Carune decidiu ir de carona ao encontro de Mosconi. Assim, às quatro e quinze daquela tarde, estava parado no acostamento da Estrada 26, de calças jeans e um paletó esporte simples, com o polegar à mostra e um saco de papel na outra mão.

Por fim, um rapazola dirigindo um Chevette não muito maior do que uma lata de sardinhas, parou junto dele e Carune entrou.

— O que tem nesse saco, amigo?

— Um punhado de ratos mortos — respondeu Carune.

Eventualmente, outro carro parou. Quando o fazendeiro atrás do volante o interrogou sobre o saco, ele lhe disse que levava dois sanduíches.

Mosconi dissecou um dos ratos imediatamente e concordou em dissecar os outros mais tarde, depois dizendo os resultados por telefone. A conclusão inicial não foi muito encorajadora; até onde o veterinário podia dizer, o rato que abrira estava perfeitamente saudável, excetuando-se o fato de encontrar-se morto.

Deprimente.

— Victor Carune era excêntrico, mas não um tolo — disse Mark. Os atendentes da Excursão agora estavam bem perto e ele supôs que precisaria apressar-se... ou terminaria sua história na Sala do Despertar, na Cidade Whitehead. — Tomando carona ao voltar para casa aquela noite — e ele teve que fazer a pé a maioria do trajeto, segundo diz a história — percebeu que talvez houvesse resolvido um terço da crise de energia, em uma só penada. Todas as mercadorias que tinham sido transportadas por trem, caminhão, barco e avião até aquele dia, podiam ser Excursionadas. Escrevia-se uma carta para um amigo em Londres, Roma ou Senegal, e ele a receberia logo no dia seguinte — sem que se precisasse queimar dez gramas de petróleo. Nós aceitamos isso como coisa certa, porém era uma grande coisa para Carune, acreditem. E para qualquer pessoa também.

— Sim, mas o que aconteceu aos ratos, papai? — perguntou Ricky.

— Foi a pergunta que Carune se fez muitas vezes — disse Mark — porque também percebeu que, se pessoas pudessem usar a Excursão, isso resolveria quase toda a crise de energia.

Além disso, teríamos capacidade de conquistar o espaço. Em seu artigo na Mecânica Popular, ele declarou que até mesmo as estrelas finalmente poderiam ser nossas. E a metáfora que Carune usou, foi de cruzar-se um riacho raso sem molhar-se os sapatos.

Apanha-se uma pedra grande, que é atirada ao riacho, depois outra pedra, atirada à frente da primeira, também dentro do riacho. Uma terceira pedra é atirada à frente da segunda, no riacho, até conseguir-se uma trilha de pedras por todo o trajeto, através do riacho... ou, neste caso, através do sistema solar, talvez mesmo da galáxia.

— Não estou entendendo bem — disse Patty.

— É porque você tem miolos de galinha — disse Ricky, debochado.

— Não tenho! Papai, Ricky disse...

— Crianças, parem com isso — disse Marilys, com delicadeza.

— Carune previu com acerto o que tem acontecido — disse Mark. — Naves foguete de controle remoto, programadas para pousar, primeiro na lua, depois em Marte, a seguir em Vênus e nas luas exteriores de Júpiter... em realidade, programadas apenas para efetuarem uma coisa, após o pouso...

— Instalar uma estação-Excursão para astronautas — disse Ricky.

Mark assentiu.

— E, atualmente, há postos científicos avançados por todo o sistema solar. Um dia, muito depois de havermos morrido, é possível, inclusive, que haja outro planeta para nós.

Temos naves-Excursão a caminho de quatro diferentes sistemas estelares, com seus próprios sistemas solares... porém ainda vão demorar muito, muitíssimo tempo a chegar lá.

— Quero saber o que aconteceu aos ratinhos — disse Patty, impaciente.

— Bem, eventualmente, o governo interveio na questão — continuou Mark. — Carune reteve as informações o mais que pôde, mas finalmente eles farejaram o ocorrido e aterraram em cima dele, com os dois pés. Carune passou a chefe nominal do projeto Excursão, até falecer dez anos mais tarde, porém a verdade é que nunca mais ficou encarregado do mesmo.

— Puxa! — exclamou Ricky. — Coitado dele!

— Pois virou um herói — disse Patrícia. — Está em todos os livros de História, como o Presidente Lincoln e o Presidente Hart.

Tenho certeza de que isso é um grande consolo para ele... onde quer que esteja, pensou Mark, e então prosseguiu, omitindo cuidadosamente as partes mais cruas.

Tendo sido encostado à parede pela crise energética em espiral ascendente, o governo entrou realmente com os dois pés na questão. Eles queriam a Excursão funcionando em base rentável o mais breve possível, isto é, ontem. Enfrentando o caos econômico e um provável, crescente quadro de anarquia e fome maciça na década de 90, somente um desesperado patrocínio de causa fez com que protelassem a proclamação da Excursão, antes que fosse concluída uma exaustiva análise espectográfica dos artigos que haviam Excursionado. Encerradas as análises que não revelaram modificações na estrutura dos artefatos Excursionados — foi anunciada a existência da Excursão, com aplausos internacionais. Por uma vez demonstrando inteligência (afinal de contas, a necessidade é mãe da invenção), o governo dos E.U.A. colocou Young e Rubicam incumbidos das relações públicas.

Foi aí que começou o mito fabricado em torno de Victor Carune, um homem idoso e um tanto peculiar, que tomava banho talvez duas vezes na semana e só trocava de roupas quando se lembrava disso. Young e Rubicam, juntamente com as agências que os seguiam, transformaram Carune em uma mescla de Thomas Edison, Eli Whitney, Pecos Bill e Flash Gordon. O humor negro em tudo isto (e Mark Oates não transmitiu esta parte à família), era que Victor Carune podia, inclusive, estar morto ou insano; dizem que a arte imita a vida, e Carune estaria familiarizado com a novela de Robert Heinlein, sobre os sósias de personalidades, aparecendo aos olhos do público.

Victor Carune era um problema; um importuno problema que não cessava. Ele era um tagarela andarilho, um remanescente dos Ecológicos Anos Sessenta uma época em que ainda havia suficiente energia flutuando no ambiente, permitindo o luxo de caminhadas.

Por outro lado, aqueles eram os Irritantes Anos Oitenta, com nuvens de carvão tisnando o céu e uma longa faixa do litoral californiano destinada a ficar desabitada por talvez sessenta anos, devido a um "desvio" nuclear.

Victor Carune permaneceu um problema até cerca de 1991 — e então se tornou uma pessoa não questionante, sorridente, tranqüila, avoenga; uma figura que os filmes dos noticiários mostravam acenando dos pódios. Em 1993, três anos antes de falecer oficialmente, ele desfilou no carro da paz, na Parada do Torneio de Rosas.

Intrigante. E um tanto sinistro.

Os resultados da proclamação da Excursão — do funcionamento do teletransporte — a 19 de outubro de 1988, foi um golpe de excitamento mundial e revolução econômica. Nos mercados financeiros mundiais, o surrado e velho dólar americano disparou repentinamente através do teto. Pessoas que haviam comprado ouro a oitocentos e seis dólares uma onça, viram subitamente que uma libra de ouro (mais ou menos meio quilo) lhes daria algo menos de mil e duzentos dólares. No ano entre a proclamação da Excursão e as primeiras Estações-Excursão em funcionamento, em Nova York e Los Angeles, o mercado de ações subiu pouco mais de mil pontos. O preço do petróleo caiu somente setenta centavos por barril, mas por volta de 1994, com Estações-Excursão entrecruzando os E.U.A. nos pontos de pressão em setenta cidades importantes, a OPEP cessara de existir e o preço do petróleo começou a cair. Em 1998, com Estações na maioria das cidades do mundo livre e com mercadorias Excursionadas rotineiramente entre Tóquio e Paris, Paris e Londres, Londres e Nova York, Nova York e Berlim, o petróleo caíra para quatorze dólares o barril. Em 2006, quando as pessoas finalmente começaram a usar a Excursão em uma base regular, o mercado de ações se fixara a cinco mil pontos acima de seus níveis de 1987, o petróleo era vendido a seis dólares o barril e as companhias petrolíferas tinham começado a mudar de nome. A Texaco se tornou Texaco Petróleo/Água, enquanto a Mobil passou a ser Mobil Hidro-2-Ox.

Em 2045, a prospecção de água se tornou o grande jogo, ao passo que o petróleo recuara para o que havia sido em 1906: um brinquedo.

— E quanto aos ratinhos, papai? — perguntou Patty, impacientemente. — O que aconteceu com os ratinhos?

Mark decidiu que agora talvez fosse viável e chamou a atenção de seus filhos para os atendentes da Excursão, que aplicavam o gás a apenas três corredores deles. Ricky apenas assentiu, mas Patty pareceu perturbada, quando uma senhora de cabeça raspada e pintada, como ditava a moda, tomou uma tragada da máscara de borracha e caiu inconsciente.

— Não podemos Excursionar quando acordados, não é, papai? — perguntou Ricky.

Mark assentiu e sorriu tranqüilizadoramente para Patricia.

— Carune percebeu isso, antes mesmo que o governo assumisse a situação — disse ele.

— E como foi que o governo assumiu a situação, Mark? — perguntou Marilys.

Mark sorriu.

— Graças ao tempo do computador — disse. — Os dados básicos. Aquilo era a única coisa que Carune não podia pedir, tomar emprestado ou roubar. O computador manejava a real transmissão de partículas — bilhões de peças de informação. Ainda é o computador, você sabe, que garante a integridade física da pessoa, isto é, que ela não ficará com a cabeça em algum ponto no meio do estômago.

Marilys estremeceu.

— Não tenho receio — disse ele. — Nunca houve uma situação semelhante, Mare. Nunca.

— Sempre há uma primeira vez — murmurou ela.

Mark olhou para Ricky.

— Como é que ele soube? — perguntou ao filho. — Como é que Carune descobriu que as pessoas tinham que estar adormecidas, Ricky?

— Quando colocou os ratos de costas — disse Ricky lentamente — eles ficaram bem. Pelo menos, enquanto não os atravessou de todo. Eles ficaram apenas — bem, confusos — quando Carune os colocou com a cabeça em primeiro lugar. Certo?

— Certo — respondeu Mark. Os atendentes da Excursão se moviam agora, empurrando sua silenciosa mesinha rolante do esquecimento. Não haveria tempo dele contar tudo; talvez até fosse melhor assim. — Naturalmente, não foram necessárias muitas experiências para esclarecer-se o que acontecia. A Excursão liquidou toda a atividade dos caminhões de carga, crianças, mas pelo menos afastou a pressão de cima dos pesquisadores...

Sim. Caminhar se tornara um luxo novamente e os testes haviam prosseguido por mais de vinte anos, embora as primeiras experiências de Carune com ratos drogados o tivessem convencido de que animais inconscientes não estavam sujeitos ao que, depois disso, ficou conhecido para sempre como Efeito Orgânico ou, mais simplesmente, Efeito Excursão.

Ele e Mosconi tinham drogado vários ratos, que foram passados pelo Portal Um e recuperados no outro lado. Ansiosos, esperaram que suas cobaias acordassem de novo... ou morressem. Elas haviam acordado e, após um breve período de recuperação, retomaram suas vidas de camundongos — comendo, copulando, brincando e defecando — sem quaisquer efeitos prejudiciais. Aqueles ratos foram os primeiros, em várias gerações, estudados com grande interesse. Não apresentaram nenhum efeito pernicioso a longo prazo. Tampouco morreram mais cedo, seus filhotes não nasceram com duas cabeças ou pelagem verde, estes também não apresentando nenhum efeito negativo a longo termo.

— Quando foi que eles começaram com pessoas, papai? — perguntou Ricky, embora certamente já houvesse aprendido isso na escola. — Conte esta parte!

— Eu quero saber o que aconteceu aos ratinhos! — insistiu Patty.

Embora os atendentes da Excursão agora houvessem atingido o início de seu corredor (eles se achavam quase no foral), Mark Oates fez uma pausa momentânea para refletir.

Sua filha, menos informada, assim mesmo ouvira com atenção e tinha feito a pergunta certa. Portanto, ele preferiu responder à pergunta do filho.

Os primeiros Excursionistas humanos não haviam sido astronautas nem pilotos de provas, mas prisioneiros voluntários, nem ao menos selecionados com qualquer interesse particular em sua estabilidade psicológica. De fato, foi opinião dos cientistas, então encarregados (Carune não estava entre eles; transformara-se no que é comumente chamado um chefe titular), que quanto mais instáveis eles fossem, tanto melhor; se um espástico mental suportava a travessia e a encerrava perfeito — ou, pelo menos, não pior do que era antes — então o processo provavelmente era seguro para executivos, políticos e modelos de moda do mundo.

Meia dúzia desses voluntários foi levada a Province, em Vermont (um lugar que, desde então, ficou tão famoso quanto havia sido Kitty Hawk, na Carolina do Norte), onde eles receberam a aplicação do gás e foram passados através dos portais, colocados exatamente a três quilômetros de distância entre si, um por um.

Mark contou isto aos filhos porque, naturalmente, todos os seis voluntários terminaram a prova sentindo-se bem, em excelente estado, obrigado. Ele não lhes falou no implicado sétimo voluntário. Esta figura, que poderia ter sido real, um mito ou (mais provavelmente) uma combinação dos dois, inclusive tinha nome: Rudy Foggia.

Supunha-se que Foggia era um assassino confesso, condenado à morte no estado da Flórida, por haver assassinado quatro pessoas idosas, em um jogo de bridge em Sarasota. De acordo com relatos apócrifos, as forças combinadas da Central Intelligence Agency (CIA) e do Effa Bee Eye (FBI) fizeram a Foggia numa oferta única, pegar-ou-largar, em-absoluto-não-repetida. Fazer a Excursão plenamente desperto. Se você sair dela em perfeitas condições, receberá o seu perdão, assinado pelo Governador Thurgood. Deixará a prisão, livre para seguir a única e Verdadeira Cruz ou liquidar mais alguns velhos jogando bridge, em suas calças amarelas e sapatos brancos. Faça a travessia, saia dela morto ou doido, tetas vigorosas. Como se presume que a gata falou.

O que responde?

Sabendo que a Flórida era um estado que levava a sério a pena de morte e, tendo sabido por seu advogado, que com toda probabilidade ele seria o próximo a sentar-se na Velha Cadeira, Foggia disse, tudo bem.

No Grande Dia, no verão de 2007, cientistas suficientes para lotar uma banca de jurados (com mais cinco ou seis sobressalentes) achavam-se presentes para testemunhar o que ocorreria, mas se a história de Foggia era real — e Mark Oates acreditava que provavelmente fosse — ele duvidava que a notícia transpirara de qualquer dos cientistas.

O mais crível é que se ficara sabendo do sucedido por algum dos guardas que tinham voado com Foggia de Raiford a Montpelier e depois o escoltado de Montpelier a Province, em um veículo blindado.

— Se eu sair disto vivo — diz-se que Foggia falou — quero jantar um frango, antes de acabar com esta espelunca.

Ele então cruzou o Portal Um, reaparecendo imediatamente no Portal Dois.

Surgiu vivo, mas Rudy Foggia não estava em condições de jantar seu frango. No espaço de tempo em que fez a Excursão através dos três quilômetros (indicado como 0,000000000067 de segundo, por computador), o cabelo de Foggia ficou branco como neve. Seu rosto não mudara, em qualquer sentido físico — não mostrava rugas, papada e nem estava debilitado — mas dava a impressão de uma grande, quase incrível idade.

Foggia saiu pelo portal arrastando os pés, os olhos arregalados e opacos, a boca torcendo-se, as mãos estendidas à sua frente. Dentro em pouco, ele começou a babar. Os cientistas que se tinham reunido em torno dele, recuaram e, não, Mark duvidava que algum deles houvesse comentado o fato. Eles sabiam sobre os ratos, afinal de contas, sabiam sobre as cobaias e os hamsters; de fato, sobre qualquer animal com cérebro maior do que a minhoca mediana. Deviam ter-se sentido algo semelhantes àqueles cientistas alemães, que tentaram impregnar mulheres judias com o esperma de pastores alemães.

— O que aconteceu? — bradou um dos cientistas (diz-se que ele bradou).

Foi a única pergunta a que Foggia teve chance de responder.

— Lá é a eternidade — disse ele, e caiu morto, vitimado pelo que foi diagnosticado como um ataque cardíaco maciço.

Os cientistas lá reunidos ficaram com seu cadáver (o qual foi caprichosamente cuidado pela CIA e pelo Effa Bee Eye) e aquela estranha, terrível declaração agonizante: Lá é a eternidade.

Papai, eu quero saber o que aconteceu com os ratos — repetiu Patty.

O único motivo que lhe permitira fazer novamente a pergunta era porque o homem do terno caro e os sapatos de brilho-eterno parecia haver-se transformado em um problema para os atendentes da Excursão. Em realidade, ele não queria tomar o gás e procurava disfarçar a recusa com uma conversa incessante, as fanfarronices de um garoto metido a valente. Os atendentes cumpriam sua missão o melhor que podiam — sorrindo, adulando, persuadindo — mas aquilo os retardava.

Mark suspirou. Ele iniciara o assunto — apenas como uma forma de distrair os filhos daquelas festividades pré-Excursão, sem dúvida, mas o iniciara. Agora, era de supor que deveria encerrá-lo o mais verdadeiramente possível, sem alarmá-los ou perturbá-los.

Não lhes mencionaria, por exemplo, o livro de C. K. Summers, A política da Excursão, que continha uma seção intitulada "A Excursão confidencialmente", um compêndio dos mais críveis rumores sobre a Excursão. Estava lá a história de Rudy Foggia, aquele dos assassinatos no clube de bridge e do frango não comido ao jantar. Também havia o histórico dos casos de uns trinta (ou mais... ou menos... ou quem sabe) voluntários, bodes expiatórios ou loucos, que haviam Excursionado inteiramente despertos, no correr dos últimos trezentos anos. Em sua maioria, chegaram mortos ao outro lado. Os restantes tinham ficado irremediavelmente loucos. Em certos casos, o ato de reemergirem realmente os deixara em um estado de choque que levara à morte.

Aquela seção do livro de Summer, relatando rumores e histórias apócrifas sobre a Excursão, continha também outros perturbadores informes: aparentemente, a Excursão havia sido várias vezes usada como meio para o assassinato. No caso mais famoso (e único documentado), que ocorrera apenas trinta anos antes, um pesquisador da Excursão, chamado Lester Michaelson havia amarrado a esposa com os Cordões-sonho de plexiplast da filha de ambos, e a empurrara, com ela gritando, pelo portal da Excursão em Silver City, Nevada. Contudo, antes de fazer isso, Michaelson apertara o botão Nada, no painel de seu aparelho, apagando cada e todas as centenas de milhares de portais possíveis, através dos quais a Sra. Michaelson poderia ter emergido — qualquer lugar, desde a vizinha cidade de Reno à Estação-Excursão experimental em To, uma das luas jupiterianas. Assim, a Sra. Michaelson permaneceria eternamente Excursionando em algum ponto além, lá fora, no ozônio. O advogado de Michaelson, depois que ele foi declarado sadio e capaz de enfrentar um julgamento pelo que havia feito (dentro dos estreitos limites da lei, talvez ele fosse são de espírito, mas em qualquer sentido prático, Lester Michaelson era tão louco como um chapeleiro), apresentou uma nova modalidade de defesa: seu cliente não podia ser julgado por assassinato, porque ninguém podia provar, conclusivamente, que a Sra. Michaelson estava morta.

Isto havia evocado o terrível espectro da mulher, desincorporada, mas de certo modo ainda consciente, gritando no limbo..: para sempre. Michaelson foi condenado e executado.

Em adição, sugeria Summers, a Excursão tinha sido usada por vários ditadores baratos que queriam livrar-se de dissidentes e adversários políticos; certas pessoas acreditavam que a Máfia possuía suas próprias Estações-Excursão ilegais, ligadas ao computador central de Excursão, através de suas conexões com a CIA. Summers dava a entender que a Máfia usara a capacidade-Nada da Excursão, a fim de livrar-se de corpos que já estavam mortos, ao contrário do da Sra. Michaelson. Vista sob este ponto de vista, a Excursão se tornara a máquina definitiva de Jimmy Hoffa, muito melhor do que a cascalheira ou pedreira locais.

Tudo isto levara às conclusões e teorias de Summers sobre a Excursão e, naturalmente, também à persistente pergunta de Patty sobre os camundongos.

— Bem — disse Mark lentamente, enquanto a esposa lhe fazia sinais com os olhos para que fosse cuidadoso — até hoje ninguém sabe ao certo, Patty. Contudo, todas as experiências com animais — incluindo-se os ratinhos — pareciam levar à conclusão de que, embora a Excursão seja quase instantânea fisicamente, demora um longo, longo tempo mentalmente.

— Eu não entendo isso — replicou Patty, taciturnamente. — Sabia que não ia entender.

Ricky, no entanto, olhava pensativo para o pai.

— Eles continuaram pensando — disse ele. — Os animais usados como cobaias. E nós também pensaremos, se não ficarmos inconscientes.

— Certo — respondeu Mark. — É o que agora acreditamos.

Havia algo surgindo nos olhos de Ricky. Medo? Excitamento?

— Não é apenas um teletransporte, certo, papai? Deve ser alguma espécie de distorção do tempo.

Lá é a eternidade, pensou Mark.

— De certa forma — respondeu ele. — Contudo, essa é uma expressão de histórias em quadrinhos — parece correta mas, em realidade, nada significa, Ricky. Parece revolver-se em torno da idéia de consciência e do fato de que a consciência não se divide em partículas — ela permanece inteira e constante. Também encerra algum peculiar senso de tempo. Entretanto, ignoramos como a consciência pura mediria o tempo ou mesmo se tal conceito tem algum sentido para a mente pura. Aliás, nem mesmo podemos conceber o que seria mente pura.

Mark se calou, perturbado pelos olhos do filho, de repente tão aguçados e curiosos. Ele entende, mas não compreende, pensou. A mente pode ser nosso melhor amigo; ela nos mantém satisfeitos, mesmo nada havendo para ler, nada a fazer. Entretanto, também pode voltar-se contra nós, se mantida sem imput por tempo demasiado. Pode voltar-se contra nós, isto querendo dizer que se volta contra si mesma, barbariza-se, talvez se consuma a si própria, em um ato inconcebível de autocanibalismo. Quanto tempo ficaria lá, em termos de anos? 0,000000000067 de segundo para o corpo Excursionar, mas quanto tempo para a consciência não dividida em partículas? Cem anos? Mil? Um milhão? Um bilhão? Quanto tempo a sós com seus pensamentos, em um interminável campo branco? E então, passado um bilhão de eternidades, o abrupto retorno à luz, à forma e ao corpo. Quem não enlouqueceria?

— Ricky... — começou ele, mas os atendentes da Excursão chegaram com sua mesinha rolante.

— Estão prontos? — perguntou um deles.

Mark assentiu.

— Estou com medo, papai — disse Patty, em um fio de voz. — Vai doer?

— Não, meu bem, é claro que não dói. — falou Mark, em voz calma o suficiente, embora o coração batesse um pouco mais rápido — era sempre assim, mesmo sendo aquela mais ou menos sua vigésima-quinta Excursão. — Serei o primeiro e assim você verá como é fácil.

O atendente da Excursão olhou inquisitivamente para ele. Mark assentiu e esboçou um sorriso. A máscara desceu. Mark a tomou nas próprias mãos e respirou fundo no escuro.

 

A primeira coisa de que teve consciência foi do negríssimo céu marciano, como visto através do topo da abóbada que circundava a Cidade Whitehead. Era noite ali e as estrelas esparramavam-se com um uivo fulgor, desconhecido na terra.

A segunda coisa que percebeu foi uma espécie de rebuliço na sala de recuperação — murmúrios, depois gritos, então um uivo agudo. Oh, meu Deus, foi Marilys! pensou, enquanto saltava estonteado de seu divã, lutando com as ondas da vertigem.

Houve outro grito, e viu atendentes da Excursão correndo para os divãs que eles ocupavam, seus vivos macacões vermelhos esvoaçando em torno dos joelhos. Marilys deu alguns passos cambaleantes em direção a ele, apontando. Depois tornou a gritar e caiu ao chão. O divã da Excursão desocupado ao seu lado, rolou lentamente corredor abaixo, quando ela tentou agarrar-se a ele com mão trêmula.

Mark, no entanto, já vira o que ela apontava. O que havia observado antes nos olhos de Ricky não tinha sido medo, mas excitamento. Devia ter sabido, porque conhecia bem o filho — Ricky, que caíra do galho mais alto da árvore em seu quintal de Schenectady, quando contava apenas sete anos, tendo quebrado o braço (e tivera sorte, pois fora apenas o braço que quebrara); Ricky, que ousava ir mais depressa e mais longe em seu skate do que qualquer outro garoto da vizinhança; Ricky, que era sempre o primeiro a enfrentar qualquer desafio. Ricky e medo não se davam bem.

Até agora.

Ao lado de Ricky, sua irmã ainda dormia misericordiosamente. A coisa que havia sido seu filho saltou e contorceu-se no divã-Excursão, um garoto de doze anos de idade, de cabelos brancos como a neve e olhos que eram incrivelmente velhos, as córneas apresentando um amarelado doentio. Ali estava uma criatura mais velha do que o tempo, mascarada como menino; no entanto, ela quicava e se torcia com horrendo, obsceno regozijo. Sua garrulice chocante e lunática fizera com que os atendentes da Excursão recuassem, tomados de horror. Alguns deles fugiram dali, embora houvessem sido justamente treinados para lidar com tal inconcebível eventualidade.

As pernas jovens-velhas estremeceram e contorceram-se. Mãos em garras batiam, torciam e dançavam no ar; depois desceram repentinamente e a coisa que havia sido seu filho começou a dilacerar o próprio rosto.

— É mais longa do que se pensa, papai! — cacarejou a criatura. — Mais longa do que se pensa! Eu prendi a respiração, quando eles me aplicaram o gás! Eu queria ver! Eu vi! Eu vi! É mais longa do que se pensa!

Cacarejando e guinchando, a coisa sobre o divã-Excursão subitamente arrancou os olhos com as garras. O sangue jorrou. A sala de recuperação era agora um aviário de vozes gritando agudamente.

— Mais longa do que se pensa, papai! Eu vi! Eu vi! Longa Excursão! Mais longa do que se pensa...

A criatura ainda disse outras coisas, antes que os atendentes da Excursão finalmente conseguissem levá-la dali, rodando seu divã a toda rapidez, enquanto ela gritava e fincava os dedos engalfinhados nas órbitas dos olhos que tinham visto o para sempre e eterno oculto. Ela disse outras coisas e então começou a gritar, mas Mark Oates não ouviu, porque a essa altura também estava gritando.

 

Era o ano de 1997 e nós estávamos tocando jazz em um boteco ao sul de Morgan, Illinois, uma cidadezinha a uns cem quilômetros de Chicago. Era uma zona absolutamente matuta, sem nenhuma cidade maior à distância de trinta quilômetros, em qualquer direção. Contudo, havia por lá um bocado de rapazes trabalhando nas fazendas, que ansiavam por algo mais forte do que audácia, depois de um dia calorento no campo, além de um bocado de supostas garotas amantes de jazz, saindo com seus namorados faroleiros. Havia também alguns homens casados (a gente sempre os identifica, como se eles usassem algum indicador do estado civil) andando bem longe das trilhas costumeiras, onde ninguém os conhecia, enquanto esfregavam coxas, nas danças com suas nada legítimas metades.

Isso era quando jazz era jazz, em vez de barulho. Tínhamos um conjunto de cinco homens — bateria, cornetim, trombone, piano, trompete — e éramos danados de bons. Foi três anos antes de gravarmos nosso primeiro disco e quatro antes do cinema falado.

Estávamos tocando "Bamboo Bay", quando entrou aquele sujeito grandalhão, usando terno branco e fumando um cachimbo mais enrolado do que uma trompa. A turma inteira estava um pouco alta nesse momento, mas todos ali dentro estavam absolutamente cegos e, de fato, sacudindo o ambiente. Não obstante, havia calma no boteco; não tinha havido uma só briga, a noite inteira. Todos nós, os músicos, deitávamos rios de suor, e Tommy Englander, o sujeito que dirigia o lugar, não parava de enviar-nos uísque de centeio, tão suave como uma tábua envernizada. Englander era um bom sujeito com quem se trabalhar e gostava do nosso som. Naturalmente, isso lhe dava um bocado de pontos em meu cadernininho.

O cara de terno branco sentou-se no bar e eu o esqueci. Encerramos aquela parte com "Blues da Tia Hagar", uma música que, lá no meio do mato, então passava por estimulante. Recebemos uma trovoada de aplausos. Manny tinha um enorme sorriso no rosto, quando afastou o trompete na boca, e eu lhe bati nas costas, ao descermos do palco. Havia uma garota que parecia solitária, com um vestido de noite verde, que ficara de olho em mim a noite toda. Era ruiva e sempre tive uma queda por ruivas. Seus olhos e a cabeça ligeiramente de banda enviaram-me um sinal, de maneira que comecei a abrir caminho por entre o povaréu, a fim de saber se ela queria um drinque.

Estava na metade do trajeto para a ruiva, quando o homem de terno branco se postou na minha frente. Visto de perto, parecia um cara bastante durão. Seu cabelo espetava em pontas atrás da cabeça, embora cheirasse como um vidro inteiro de óleo Cremoso Wildroot. Além disso, tinha os olhos parados e estranhamente brilhantes de alguns peixes de alto mar.

— Quero falar com você lá fora — disse.

A ruiva desviou os olhos, fazendo beicinho.

— Isso pode esperar — respondi. — Deixe-me passar.

— Meu nome é Scollay. Mike Scollay.

Eu conhecia o nome. Mike Scollay era um contrabandista de segunda em Shytown, que pagava sua cerveja e suas farrinhas contrabandeando bebida do Canadá. Aquele ofício de alta-voltagem havia começado onde os homens usam saias e tocam gaitas de foles.

Quando não estão enchendo as barricas, quero dizer. Seu retrato aparecera algumas vezes nos jornais. A última, tinha sido quando um outro candidato à cela da morte tentou furá-lo a balaços.

— Está muito longe de Chicago, meu amigo — falei.

— Trouxe alguns companheiros — disse ele. — Não se preocupe. Estão lá fora.

A ruiva deu outra espiada. Apontei para Scollay e dei de ombros. Ela fungou e me virou as costas.

— Viu? — falei. — Você me estragou a jogada.

— Garotas iguais a essa são como um níquel em um balde cheio, lá em Chi — respondeu ele.

— Eu não quero um balde cheio.

— Lá fora.

Fui com ele para fora. O ar caiu fresco em minha pele, depois da atmosfera enfumaçada do boteco-clube, adocicado com o cheiro da alfafa recém-cortada. As estrelas se exibiam, suaves e piscando. Os capangas também se exibiam, mas não pareciam suaves e as únicas coisas piscando eram seus cigarros.

— Tenho um trabalho para você — disse Scollay.

— Oh, então é isso...

— Pago dois grandes. Pode dividi-los com a banda ou ficar com cem para você.

— De que se trata?

— De um arrasta, o que mais poderia ser? Minha irmã está se amarrando. Quero que você toque para a recepção. Ela gosta de jazz. Dois de meus rapazes disseram que vocês tocam um bom jazz.

Já falei que Englader é um bom sujeito com quem se trabalhar. Ele vinha nos pagando oitenta pratas por semana. O cara do terno branco oferecia mais de duas vezes aquilo, por uma única sessão.

— Será de cinco às oito da noite, na próxima sexta-feira — disse Scollay. No Salão Filhos de Erin, na Rua Grover.

— É um bocado de grana — falei. — Por quê?

— Há dois motivos — disse Scollay.

Ele sugou seu cachimbo. Aquele artigo parecia deslocado, no meio daquela cara de vigarista. Ele devia ter um Lucky Strike Green pendurado na boca ou talvez um Caporal Doce. O Cigarro dos Vagabundos. Com o cachimbo, ele não parecia um vagabundo. O cachimbo o fazia parecer triste e esquisito.

— Dois motivos — repetiu ele. — Talvez tenha ouvido que o Grego quis acabar comigo.

— Vi seu retrato no jornal — falei para a calçada.

— Muito espertinho — rosnou ele, mas sem periculosidade. — Estou crescendo demais para o Grego. Ele está ficando velho. Não tem visão das coisas. Devia voltar para a velha pátria, ficar bebendo óleo de oliva e olhando para o Pacífico.

— Penso que é o Egeu — falei.

— Pouco estou me lixando se for o Lago Huron — replicou ele. — A questão é que o Grego não quer envelhecer. E ainda quer acertar as contas comigo. Ele não distingue nada, mesmo que esteja à sua frente.

— Está se referindo a você, não?

— Você merece nota A.

— Em outras palavras, você me paga dois grandes, porque nosso último número poderia ter o acompanhamento de rifles Enfield.

A raiva estampou-se em seu rosto, porém também havia algo mais. No momento, eu não sabia o que fosse, mas creio que agora sei. Pareceu-me tristeza.

— Meu chapa, eu tenho a melhor proteção que o dinheiro pode comprar. Se algum engraçadinho meter o nariz, não terá oportunidade de fungar duas vezes.

— Qual é o outro motivo?

A voz dele saiu maciamente.

— Minha irmã vai casar com um italiano.

— Um bom católico, como você — rosnei suavemente.

A raiva estampou-se outra vez, como ferro em brasa e, por um minuto, achei que fora longe demais.

— Um bom católico-romano! Um bom e comum irlandês católico-romano, filho, e é melhor que não esqueça! — A isto, ele acrescentou, quase em voz inaudível: — Mesmo que tenha perdido a maior parte de meu cabelo, fique sabendo que era ruivo!

Comecei a dizer alguma coisa, mas ele não me deu chance. Girou-me e baixou o rosto, até nossos narizes quase se tocarem. Eu nunca tinha visto tanta raiva, humilhação, fúria e determinação no rosto de um homem. Hoje em dia nunca se vê essa expressão em um rosto branco, tão dolorida e dando idéia de insignificância. Todo aquele amor e ódio.

Contudo, eu a vi em seu rosto aquela noite e compreendi que, se bancasse o engraçadinho algumas vezes mais, ficaria sem os fundilhos.

— Ela é gorda — ele quase sussurrou e pude sentir o cheiro de pastilhas de galtéria em seu hálito. — Muita gente andou rindo de mim pelas costas. Eles não riem quando posso vê-los, fique sabendo disto, Sr. Tocador de Cornetim. Afinal, esse carcamano talvez tenha sido tudo que ela pôde conseguir. Só que você não vai rir de mim, dela ou do carcamano. E mais ninguém rirá, eu lhe garanto. Porque vocês vão tocar bem alto. Ninguém vai rir da minha mana.

— Nós nunca rimos quando estamos tocando. É difícil fazer as duas coisas.

Aquilo aliviou a tensão. Ele riu — um riso curto, latido.

— Vocês estarão lá, às cinco horas, prontos para tocar. Os Filhos de Erin, na Rua Grover. Também pagarei as despesas de ida e volta.

Ele não estava perguntando. Eu ainda estava indeciso, mas o homem não me dava tempo para discutir o assunto. Já se afastava em largas passadas e um de seus capangas mantinha aberta a porta traseira de um cupê Packard.

O carro afastou-se. Fiquei lá fora mais algum tempo e fumei um cigarro. A noite era bela e agradável, Scollay parecia cada vez mais, algo que eu sonhara. Começava a desejar que pudéssemos trazer o palco da banda para o pátio de estacionamento e tocar, quando Biff me deu um tapinha no ombro.

— Está na hora — avisou.

— Certo.

Entramos. A ruiva tinha escolhido um marinheiro veterano que parecia ter o dobro de sua idade. Não sei o que um membro da Marinha dos EUA fazia no Illinois, mas no que me dizia respeito, que a ruiva ficasse com ele, já que tinha tão mau gosto. Eu não me sentia muito bem. O uísque barato me subira à cabeça e Scollay parecia muito mais real ali dentro, onde os vapores do que ele e sua gente vendiam eram fortes o bastante para flutuar no ar.

— Tivemos um pedido para "Campton Races" — disse Charlie.

— Esqueça — respondi, lacônico. Não tocamos essas coisas de negros depois da meia-noite.

Pude ver Billy-Boy retesar-se enquanto se sentava ao piano, mas depois seu rosto ficou normal outra vez. Eu devia dar-me pontapés rodando o quarteirão mas, droga, um homem não pode amordaçar a boca da noite para o dia, em um ano ou talvez em dez. E, naquela época, negro era uma palavra que eu odiava e estava sempre dizendo. Fui até ele.

— Desculpe, Bill... Não sei o que há comigo esta noite.

— Tudo bem — respondeu ele.

Contudo, ele me fitou sobre meu ombro e percebi que não aceitara minhas desculpas.

Aquilo era ruim, mas eu digo o que era ainda pior — saber que ele se decepcionara comigo.

Em nosso próximo intervalo, falei a eles sobre a sessão de jazz, não mentindo quanto ao dinheiro e explicando que Scollay era um gangster (embora não lhes falasse sobre o outro que pretendia liquidá-lo). Também disse que a irmã de Scollay era gorda e que isso o tornava muito suscetível. Quem quer que soltasse alguma piadinha sobre baleias, poderia terminar com um terceiro buraco para respirar, em algum ponto acima dos outros dois.

Fiquei olhando para Billy-Boy Williams enquanto falava, mas era impossível ler alguma coisa naquela sua cara de gato andarilho. Seria mais fácil imaginar o que pensava uma noz, lendo as fissuras na casca. Billy-Boy era o melhor pianista que jamais tivéramos e todos lamentávamos os pequenos tropeços que ele provocara para nós, quando viajávamos de um lugar para outro. No sul era pior, naturalmente — relegado aos últimos bancos em conduções públicas, às galerias superiores nos cinemas, coisas assim — mas o tratamento não era tão ruim no norte. De qualquer modo, o que eu poderia fazer? Hem? Quem souber, que me diga. Naqueles tempos, a gente convivia com essas diferenças.

Às quatro horas da tarde de sexta-feira, uma hora antes do combinado, chegamos ao Salão Os Filhos de Erin. Costumávamos usar um caminhão Ford muito especial, que eu, Biff e Manny havíamos reformado. A parte traseira era toda fechada com lona e havia duas camas, também de lona, pregadas ao piso. Tínhamos até um fogareiro elétrico que podia ser ligado à bateria e havíamos pintado o nome da banda no lado de fora.

O dia estava na medida certa — um presunto-e-ovos, se você já viu algum, com pequenas nuvens brancas de verão lançando sombras nos campos. Contudo, mal chegamos à cidade, ela estava quente e fuliginosa, com a barulheira e movimentação a que a gente se desacostuma, em um lugar como Morgan. Quando chegamos ao salão, minhas roupas se colavam ao corpo e precisei ir ao banheiro público. Também poderia ter usado uma dose do uísque de Tommy Englander.

Os Filhos de Erin era um grande edifício de madeira, anexo à igreja onde estava sendo casada a irmã de Scollay. Imagino que vocês conheçam lugares como esses, se forem adeptos da lástia — reuniões da Juventude Católica às terças-feiras, bingo às quartas e uma festinha para a moçada nas noites de sábado.

Trotamos pela alameda, cada um de nós carregando seu instrumento em uma das mãos e parte da bateria de Biff na outra. Uma senhora magra, sem busto digno de menção, dirigia o trânsito no interior. Dois homens suados penduravam guirlandas de papel crepom. Havia um tablado para a banda na frente do salão, tendo sobre ela um estandarte e dois enormes sinos matrimoniais em papel cor-de-rosa. A inscrição em ouropel no estandarte, dizia FELICIDADES PARA MAUREEN E RICO.

Maureen e Rico. Macacos me mordessem, porque eu não via o motivo de Scollay ficar tão deprimido. Maureen e Rico. Francamente!

A dama magricela avançou para nós. Parecia ter muito a dizer, de modo que falei primeiro.

— Somos a banda — anunciei.

— A banda? — Ela pestanejou, olhando desconfiadamente para nossos instrumentos. — Oh! Eu pensava que fossem os fornecedores.

Eu sorri, como se fornecedores estivessem sempre carregando tambores de parada e caixas de trombone.

— Vocês podem... — começou ela.

Foi interrompida pela chegada de um janota magricela com uns dezenove anos. Um cigarro lhe pendia do canto da boca, mas que eu percebesse, aquilo nada acrescentava à sua imagem, exceto um olho esquerdo lacrimejando.

— Abram essa joça — disse ele.

Charlie e Biff olharam para mim. Dei de ombros. Abrimos as nossas caixas e ele viu os instrumentos. Nada encontrando que parecesse algo capaz de ser carregado e disparado, o cara voltou para seu canto e sentou-se em uma cadeira dobrável.

— Podem levar suas coisas para lá — prosseguiu a dama de poucas carnes, como se nunca a tivessem interrompido. — Há um piano na outra sala. Mandarei meus homens rodarem o piano para o palco, depois que acabarem de pendurar nossas decorações.

Bill já levava parte de seus tambores para o pequeno palco.

— Pensei que vocês fossem os fornecedores — repetiu ela, com ar confuso. O Sr. Scollay encomendou um bolo de casamento e ainda estão para chegar também os hors d'oeinres, os rosbifes e...

— Tudo chegará em tempo, madame — falei. — Eles recebem seu pagamento contra entrega.

— ...dois porcos assados, além de um peru. O Sr. Scollay ficará simplesmente furioso se...

— Ela viu um de seus homens parando para acender um cigarro, bem abaixo de uma guirlanda de crepon suspensa mais acima, e gritou, em voz estridente: — HENRY!

O homem deu um salto, como se o tivessem baleado. Eu fugi para o tablado da orquestra.

Estávamos todos prontos, faltando quinze minutos para as cinco da tarde. Charlie, o trombonista, tocava seu instrumento em surdina, enquanto Biff exercitava os pulsos. Os fornecedores tinham chegado às 16:20, e a Srta. Gibson (era o nome da dama magrela; ela possuía um bem sucedido negócio no ramo) quase se jogou sobre eles.

Tinham sido montadas quatro compridas mesas, cobertas de toalhas brancas, onde quatro mulheres de cor, de touca e avental, colocavam os lugares. O bolo fora conduzido em mesinha de rodas para o meio da sala, a fim de que todos pudessem vê-lo e ficar boquiabertos. Tinha seis camadas de altura, com a noiva e o noivo em miniatura postados no alto.

Caminhei para o exterior, a fim de tirar uma fumaça, e estava a meio caminho, quando os ouvi chegando — tocando buzinas, fazendo uma barulheira infernal. Fiquei onde estava, até ver o carro principal, dobrando a esquina do quarteirão abaixo da igreja.

Então, terminei meu cigarro e voltei para dentro.

— Eles já estão vindo — anunciei à Srta. Gibson.

Ela ficou pálida e, realmente, balançou sobre os calcanhares. Ali estava uma dama que devia ter enveredado por uma profissão diferente — decoração de interiores, talvez, ou bibliotecária científica.

— O suco de tomates! — gritou ela. — Tragam o suco de tomates!

Voltei para o tablado da banda e ficamos a postos. Já havíamos tocado em festas semelhantes — que banda não tocou? — e, quando as portas se abriram, iniciamos uma versão em ragtime da "Marcha Nupcial", em arranjo de minha autoria. Se alguém pensar que aquilo soava como uma espécie de coquetel de limonada, sou forçado a concordar. Contudo, na maioria das recepções em que a tocamos, todo mundo adorou, e ali não foi diferente. O pessoal batia palmas, gritava e assobiava, depois começaram a conversar fiado, uns com os outros. No entanto, a julgar pela maneira como alguns marcavam o compasso com os pés, enquanto conversavam, posso dizer que estavam bem sintonizados em nossa música. Continuamos tocando — eu achava que ia ser uma festa e tanto. Sei de tudo quanto se diz sobre irlandeses e a maioria é verdade, mas, droga! eles sabem divertir-se, quando decididos a isso.

De qualquer modo, devo admitir que quase estraguei todo o número, quando entraram o noivo e a enrubescida noiva. Trajando um paletó informal e calças listradas, Scollay atirou-me um olhar duro e, podem crer, eu o recebi em cheio. Consegui fazer uma cara de jogador de pôquer e o resto de meus companheiros seguiu a dica — sem que ninguém errasse uma nota. Sorte nossa. Os convidados do casamento, parecendo todos serem os cupinchas de Scollay e suas damas, já estavam de sobreaviso. Tinham de estar, se houvessem ido à igreja. Contudo, poder-se-ia dizer que só ouvi fracos murmúrios.

Vocês devem ter ouvido falar em Jack Sprat e sua esposa. Bem, esta era cem vezes pior.

A irmã de Scollay tinha os cabelos ruivos que ele estava perdendo, compridos e anelados. Entretanto; não possuíam aquela tonalidade castanho-avermelhado que talvez imaginem. Não. A cor destes cabelos era vermelho Condado de Cork — vivo como uma cenoura e enrolado como molas de colchão. Sua compleição natural era de um branco leite coalhado, porém as sardas eram demasiadas, para dizer-se com segurança. E Scollay havia dito que era gorda? Irmão, era o mesmo de quando se diz que compramos algumas coisinhas no Macy's. Ela era um dinossauro humano — cento e setenta e cinco quilos, no mínimo. Tudo tinha ido para o busto, traseiro e coxas, como geralmente acontece com moças gordas, tornando grotesco e algo amedrontador, o que deveria ser sexy. Algumas moças gordas têm rostos pateticamente bonitos, mas a mana de Scollay, nem isso tinha. Seus olhos eram demasiado juntos, a boca era grande demais e, para cúmulo, ainda tinha orelhas de abano. Sem falar nas sardas. Se fosse magra, ela ainda seria feia o bastante para parar um relógio — bem, uma vitrine inteira deles.

Tais detalhes, apenas, não fariam ninguém rir, a menos que a pessoa fosse uma débil mental ou somente venenosa. O hilariante era quando se acrescentava o noivo ao quadro — Rico — e então a gente tinha vontade de rir até chorar. Ele poderia usar cartola, e ainda continuaria na metade da sombra dela. Devia pesar uns quarenta e cinco quilos, por aí, e estava molhado de suor. Fino como um trilho, tinha uma tonalidade de pele oliva escuro.

Quando sorriu nervosamente, seus dentes pareciam as estacas pontiagudas de uma cerca, nos arredores de uma favela.

Nós continuamos tocando.

— Aos noivos! — gritou Scollay — Que Deus lhes dê toda felicidade do mundo! E se Deus não der, proclamou seu trovejante semblante, vocês, os presentes aqui, é melhor que dêem — pelo menos hoje.

Todos gritaram sua aprovação e aplaudiram. Terminamos nosso número com um floreio e isso provocou novos aplausos. Maureen, a irmã de Scollay, sorriu. Céus, como sua boca era grande! Rico sorriu tolamente.

Por alguns momentos, todos vagaram de lá para cá, comendo queijo, salgadinhos e bebendo scotch contrabandeado de Scollay. Eu próprio acabei com três doses entre os números, e aquela bebida era de deixar o uísque de centeio de Tommy Englander apagado.

Scollay começou a parecer mais feliz — um pouco, afinal.

Chegou até o tablado onde tocávamos e disse:

— Vocês tocam muito bem, caras.

Vindo de um amante da música como ele, admito que era um cumprimento e tanto.

Pouco antes de todos se sentarem para a refeição, Maureen é que se levantou. De perto era ainda mais feia, e seu vestido branco (ali havia suficiente cetim branco, enrolado em torno da criatura, capaz de cobrir três camas) não ajudava nem um pouco. Ela perguntou se podíamos tocar "Rosas da Picardia" como Red Nichols and His Five Pennies porque, segundo disse, era sua canção favorita. Embora gorda e feia, ela nada tinha de esnobe ou presunçosa — ao contrário de alguns dos convidados insignificantes que apareciam para fazer seus pedidos de músicas. Tocamos, mas não muito bem. Ainda assim, ela nos deu um sorriso doce, que quase a tornava bonita, tendo aplaudido quando encerramos.

Às 18:15 eles se acomodaram para comer e os empregados contratados da Srta. Gibson mandaram comida nos convidados. O pessoal avançou como um bando de animais, o que não constituía muita surpresa, entornando aquela bebida de alta-voltagem o tempo todo. Eu não podia deixar de espiar a maneira como Maureen comia. Tentei desviar os olhos, mas eles continuavam voltando atrás, como que para certificar-se de que viam realmente o que pensaram estar vendo. Os comensais restantes empanturravam-se, mas ela fazia com que parecessem velhas damas em um salão de chá. Não tinha mais tempo para sorrisos doces, nem para ouvir "Rosas da Picardia"; podia-se colocar diante dela um cartaz anunciando MULHER TRABALHANDO. Aquela dama dispensava garfo e faca; precisava de uma pá e de uma correia deslizante. Era triste observá-la. E Rico (só se conseguia enxergar seu queixo, acima da mesa em que se sentava a noiva, além de dois olhos castanhos, tímidos como os de uma corça) atendia-a o tempo todo, nunca alterando aquele tolo sorriso.

Tivemos um intervalo de vinte minutos, enquanto transcorria a cerimônia de cortar o bolo. A Srta. Gibson alimentou-nos na cozinha. O forno ligado deixava o recinto quente como uma estufa e nenhum de nós sentia muita fome. A festança começara com indícios de tudo correto, mas agora eu a sentia errada. Podia lê-lo no rosto de meus companheiros músicos... e, quanto a isso, também no da Srta. Gibson.

Quando retornamos ao palco da banda, a bebedeira andava solta. Indivíduos de ar durão, cambaleavam por ali com sorrisos idiotas acima de suas canecas ou permaneciam parados nos cantos, discutindo programas de corridas de cavalos. Alguns casais queriam charleston, de maneira que tocamos "Blues da Tia Hagar" (os imbecis adoraram) e "Vou dançar charleston em Charleston", bem como outros números parecidos. Coisas para quem aprecia jazz. As garotas rebolavam-se no salão ao som da música, exibindo as meias enroladas e sacudindo os dedos junto ao rosto, enquanto gritavam vu-du-di oh-du, uma frase que até hoje me dá vontade de vomitar o jantar. Lá fora estava ficando escuro. As telas haviam caído de algumas janelas, permitindo que entrassem mariposas e enxameassem em nuvens, ao redor dos lustres. E, como diz a canção, a banda continuava tocando. Os noivos andavam por ali — nenhum deles parecendo interessado em ir embora cedo — quase completamente negligenciados. O próprio Scollay parecia tê-los esquecido. Aliás, ele estava em total carraspana.

Eram quase 20:00, quando o sujeitinho esgueirou-se para o interior. Localizei-o imediatamente, porque estava sóbrio e parecia assustado; assustado como um gato míope, em terreno exclusivo para cães. Ele caminhou até Scollay, que conversava com uma garota de ar vivido bem junto do tablado da banda, e lhe bateu de leve no ombro.

Scollay deu meia volta e ouvi cada palavra que os dois trocaram. Acreditem, eu gostaria de não ter ouvido.

— Diabo, quem é você? — perguntou Scollay rudemente.

— Meu nome é Demetrius — disse o sujeito. — Demetrius Katzenos. Vim a mando do Grego.

O movimento no chão estacou subitamente. Botões de paletós foram abertos e mãos desapareceram de vista debaixo de lapelas. Vi que Manny ficara nervoso. Raios, eu tampouco me sentia calmo. No entanto, nós continuamos tocando.

— Está bem — disse Scollay em voz quieta, quase reflexivamente.

O sujeito explodiu:

— Eu não queria vir, Sr. Scollay! O Grego está com minha esposa. Disse que a mataria, se eu não lhe desse seu recado.

— Que recado? — rosnou Scollay.

Sua fronte voltara a ficar anuviada.

— Ele disse... — O sujeitinho fez uma pausa, com expressão agoniada. Sua garganta funcionou como se as palavras fossem coisas físicas, ali apertadas, sufocando-o. — Ele mandou dizer que sua irmã é uma porca obesa. Ele mandou dizer... mandou dizer... — Seus olhos reviraram-se descontroladamente, ante a expressão imóvel de Scollay. Olhou de esguelha para Maureen. Ela dava a impressão de ter sido esbofeteada. — Ele mandou dizer que ela pegou uma comichão. Que quando uma mulher sente comichão nas costas, compra um coçador de costas. Que quando ela sente comichão nas partes, então compra um homem.

Maureen soltou um grito estrangulado e correu dali, chorando. O piso balançava com sua corrida. Rico disparou atrás dela, com ar perplexo e torcendo as mãos.

Scollay havia ficado tão vermelho, que suas bochechas estavam realmente purpúreas.

Eu quase esperava — talvez praticamente esperava — que seus miolos espirrassem pelos ouvidos. Vi aquele mesmo ar de louca agonia que vira na penumbra, fora da casa de Englander. Talvez ele fosse apenas um gangster barato, mas tive pena.

Vocês também teriam.

Quando falou, sua voz era muito calma — quase branda.

— Ainda há mais?

O pequeno grego acovardou-se. Sua voz estava trêmula de angústia.

— Por favor, não me mate, Sr. Scollay! Minha esposa... o Grego a tem em seu poder! Eu não quero dizer estas coisas! Ele está com minha esposa, minha mulher...

— Não farei nada contra você — disse Scollay, ainda mais calmo. — Apenas, diga-me o resto.

— Ele mandou dizer que a cidade inteira está rindo do senhor.

Nós havíamos parado de tocar e houve um silêncio mortal por um segundo. Então, Scollay voltou os olhos para o teto. Suas mãos tremiam e ele as crispou diante de si.

Tinha os punhos tão apertados, que pude perceber os músculos sobressaindo debaixo de sua camisa.

— ESTÁ BEM! — gritou: ESTÁ BEM!

Caminhou apressadamente para a porta. Dois homens seus tentaram detê-lo, dizer-lhe que era suicídio, que o Grego não queria outra coisa, mas Scollay estava como que enlouquecido. Derrubou-os e correu para a negra noite de verão.

No silêncio que se seguiu, tudo quanto pude ouvir foi a torturada respiração do mensageiro e, em algum ponto ao fundo, o soluçar baixinho da noiva.

Nesse momento, o rapazola que nos detivera ao chegarmos, proferiu uma praga e correu para a porta. Foi o único.

Antes que pudéssemos chegar abaixo do enorme trevo de papel, o emblema nacional da Irlanda, pendurado no saguão, pneus de automóveis chiaram no pavimento e motores roncaram — um monte de motores. Aquilo soava como o Memorial Day*, no pátio de tijolos lá fora.

 

*(EUA) dia em memória dos soldados mortos na guerra. (N. da T.)

 

— Oh, meu Deus do céu! — gritou o rapazola, da soleira. — É uma maldita caravana! Abaixe-se, chefe! Abaixe-se! Abaixe-se...

A noite explodiu em pipocar de armas. Lá fora foi como a Primeira Guerra Mundial, por um minuto, talvez dois. As balas zuniam pela porta aberta do saguão e um dos globos de luz oscilando no alto terminou explodindo. No exterior, a noite brilhava com fogos de artifícios dos Winchester. A seguir, os carros partiram em disparada. Uma das garotas sacudia estilhaços de vidro dos cabelos cacheados.

Agora que o perigo terminara, os capangas restantes correram para fora. A porta para a cozinha escancarou-se e Maureen reapareceu. Tudo nela tremelicava. Seu rosto estava mais redondo do que nunca. Rico surgiu em sua esteira, como um atônito valete. Os dois desapareceram pela porta.

A Srta. Gibson apareceu no saguão vazio, de olhos arregalados e chocada. O homenzinho que começara toda a confusão com seu telegrama cantado, àquela altura já se evaporara.

— Foi um tiroteio — murmurou a Srta. Gibson. — O que aconteceu?

— Acho que o Grego acabou de esfriar o pagador — disse Biff.

Ela olhou para mim, sem entender, mas antes que eu pudesse traduzir, Billy Boy falou, em sua voz macia e polida:

— Ele está querendo dizer que o Sr. Scollay acabou de ser liquidado, dona.

A Srta. Gibson se virou para ele, os olhos ficando mais e mais arregalados, e então desmaiou. Tive a impressão de que também eu acabaria desmaiando.

Foi quando, do exterior, chegou até nós o grito mais angustiado que já ouvi, em toda a minha vida. Era como um miado histérico, sustentando-se indefinidamente em prolongada nota. Não se precisava chegar à porta e espiar, para saber quem dilacerava o coração lá na rua, carpindo o irmão morto, inclusive enquanto os tiras e novidadeiros dos jornais estavam a caminho.

— Vamos cair fora — murmurei. — Depressinha!

Quando ficamos com tudo embalado, já haviam passado cinco minutos. Alguns dos capangas tornaram a entrar, mas estavam demasiado bêbados e assustados para se meterem conosco.

Saímos pelos fundos, cada um de nós carregando parte da bateria de Biff. Devíamos ter sido uma parada e tanto, subindo a rua, para que ninguém nos visse. Eu ia à frente, com o estojo de meu cornetim debaixo do braço e um címbalo em cada mão. Os rapazes esperaram na esquina do fim do quarteirão, enquanto fui buscar nosso caminhão. Os tiras ainda não haviam chegado. A obesa garota continuava agachada junto ao corpo do irmão, no meio da rua, uivando como uma banshee *, enquanto o minúsculo noivo corria à sua volta, como uma lua orbitando um enorme planeta.

 

*(Irlanda e Escócia) espírito feminino do folclore gaélico que, com seus lamentos, anuncia morte iminente na família. (N. da T.)

 

Rodei até a esquina e os rapazes atiraram tudo na traseira do caminhão, de qualquer jeito. Depois, afastamo-nos dali a toda velocidade. Fizemos uma média de sessenta quilômetros horários por todo o trajeto até Morgan, por estradas secundárias ou não. Os capangas de Scollay não devem ter-se preocupado em apontar-nos aos tiras ou os tiras não nos deram importância, porque não soubemos deles.

Aliás, também não recebemos as duzentas pratas.

Ela chegou ao Tommy Englander's uns dez dias mais tarde, uma gorda jovem irlandesa em vestido negro de luto. O preto não lhe assentava melhor do que o cetim branco.

Englander devia saber quem ela era (sua foto saíra nos jornais de Chicago, junto à de Scollay), porque a levou pessoalmente até uma mesa e forçou ao silêncio dois bêbados do bar, que haviam estado debochando dela.

Senti muita pena dela, como às vezes sentia pena de Billy-Boy. É duro ser marginalizado. Não se precisa ser um marginalizado para saber, embora eu concorde quanto à gente não saber exatamente como é. E ela havia sido muita simpática, nas poucas palavras trocadas comigo.

Chegado o intervalo, fui até sua mesa.

— Sinto muito por seu irmão — falei, meio sem jeito. — Sei que ele realmente a apreciava muito e...

— Foi como se eu mesma apertasse aqueles gatilhos — respondeu ela. Olhava para as mãos e então percebi que eram o seu melhor traço, pequenas e graciosas. — Tudo que aquele homenzinho disse era verdade.

— Oh, não diga isso — repliquei, procurando consolá-la.

O que mais poderia dizer? Eu lamentava ter-me aproximado, ela falava de maneira tão estranha... Era como se estivesse absolutamente só e alucinada.

— De qualquer modo, não me divorciarei dele — prosseguiu Maureen. — Antes disso eu me mataria e minha alma penaria no inferno.

— Não fale assim — disse-lhe.

— Nunca teve vontade de matar-se? — perguntou ela, fitando-me apaixonadamente. — Nunca sentiu esse impulso, quando as pessoas o usam e depois se divertem à sua custa? Ou isso jamais lhe aconteceu? Talvez negue, mas me desculpe se não acredito. Sabe o que se sente, quando comemos sem parar, odiando-nos por isso, para então comermos mais? Sabe como é matar o próprio irmão, pelo fato de ser gorda?

As pessoas se viravam para olhar-nos e os bêbados recomeçavam as risadinhas.

— Sinto muito — sussurrou ela.

Quis dizer-lhe que também sentia. Quis dizer-lhe... oh, qualquer coisa, admito, qualquer coisa que a fizesse sentir-se melhor. Gritar, para atingir-lhe o âmago, debaixo de toda aquela gordura. Entretanto, não conseguia alinhavar uma só frase.

— Preciso ir agora — consegui dizer. — Temos que tocar mais um período.

— Oh, claro — respondeu ela, suavemente. — Claro que deve ir... ou eles começarão a rir de você. Aliás, o motivo de minha vinda aqui... Quer tocar "Rosas da Picardia"? Achei que tocaram muito bem, na recepção. Pode fazer isso?

— Naturalmente — respondi. — Será um prazer.

Tocamos. Contudo, ela foi embora na metade do número e, como canções do gênero são melosas demais para um lugar como o Englader's, nós a interrompemos e passamos para uma versão ragtime de "The Varsity Drag". Esta sempre é do agrado geral. Bebi muito aquele resto da noite e, pela hora de fechar, já esquecera tudo sobre Maureen. Bem, quase tudo.

Ao sair para a noite, ocorreu-me a idéia. O que eu devia ter dito a ela. A vida continua — era o que devia ter-lhe dito. É o que dizemos a uma pessoa, quando lhe morre um ente querido. Enfim, pensando bem, fiquei satisfeito por não haver dito. Porque, talvez, era isso que ela temia ouvir.

Sem dúvida, todos sabem sobre Maureen Romano e seu marido Rico, que sobreviveu a ela como hóspede dos contribuintes, na Penitenciária Estadual do Illinois. Todos sabem como ela assumiu a medíocre organização de Scollay e transformou em um império durante a Proibição, isto é, a lei seca, rivalizando com o de Capone. Como ela eliminou dois outros líderes de quadrilha do North Side, abocanhando suas operações. Como ela teve o Grego trazido à sua presença e supostamente o matou, enfiando um pedaço de corda de piano por seu olho esquerdo até o cérebro, com ele ajoelhado à sua frente, babando, choramingando e suplicando misericórdia. Rico, o perplexo valete, se tornou seu braço direito, sendo responsável pessoal por uns doze sucessos como gangster.

Da Costa Oeste, onde estávamos gravando alguns discos bem sucedidos, segui as façanhas de Maureen. Estávamos sem Billy-Boy. Ele formara uma banda própria, não muito tempo depois de deixarmos o Englander's, um conjunto só de negros, que tocava Dixieland e ragtime. Eles se deram muito bem no sul e fiquei satisfeito com isso.

Mereciam o sucesso. Para nós também foi boa a separação, porque muitos lugares não nos aceitavam, tendo um negro no grupo.

Afinal, era de Maureen que eu falava. Ela forneceu grandes noticiários aos jornais, não apenas por ser uma espécie de Ma Barker com cérebro, embora isso fizesse parte do quadro. Ela era terrivelmente grande e terrivelmente feia, mas os americanos de costa a costa dedicavam-lhe uma estranha espécie de afeição. Quando Maureen morreu, de ataque cardíaco em 1933, alguns jornais disseram que pesava duzentos e cinqüenta quilos. Contudo, eu duvido. Ninguém pesa tanto, não é mesmo?

De qualquer modo, seu funeral ganhou as primeiras páginas. Era mais do que se poderia dizer sobre o irmão dela, que nunca passou da quarta página, em toda a sua mísera carreira. Foram necessários dez carregadores para o transporte do caixão. Havia uma enorme foto deles, salientando-se em um tablóide. Aliás, uma foto horrível de ver. O ataúde era do tamanho de uma geladeira de carne nos açougues — o que, de certo modo, não deixava mesmo de ser.

Rico não teve inteligência suficiente para continuar liderando sozinho a situação e acabou acusado e condenado por assalto com tentativa de morte, logo no ano seguinte.

Jamais consegui tira-la da lembrança, como nunca esqueci a maneira agoniante e humilde de Scollay naquela primeira noite, quando foi me falar sobre ela. Contudo, olhando para trás, não a lamento demais. Pessoas gordas sempre podem parar de comer.

Sujeitos como Billy-Boy Williams, podem apenas parar de respirar. Até hoje não sei como poderia ajudar a qualquer dos dois, mas de vez em quando me sinto algo mal, quanto a isso. Talvez seja porque fiquei muito mais velho e já não durma tão bem como quando era novo. Só pode ser por isso, concordam? Concordam?

 

Nós o transportamos o ano passado, foi uma operação e tanto — disse o Sr. Carlin, enquanto subiam a escada. A remoção teve que ser manual, claro. Não havia outro jeito.

Fizemos um seguro contra acidentes, no Lloyd's, antes mesmo de tirá-lo de sua vitrine, na sala de visitas. Era a única firma que o seguraria pela soma que tínhamos em mente.

Spangler nada disse. O homem era um tolo. Johnson Spangler aprendera, havia muito e muito tempo, que a única maneira de lidar com um tolo é ignorá-lo.

— Foi segurado por um quarto de milhão de dólares — prosseguiu o Sr. Carlin, quando chegaram ao patamar do segundo andar. Sua boca contorceu-se em uma linha meio amarga e meio humorística. — Aliás, o prêmio nos custou um bom dinheiro...

Era um homem de baixa estatura, não inteiramente gordo, com óculos sem aros e uma calva amorenada, que brilhava como uma bola de vôlei envernizada. Uma armadura, guardando as sombras de mogno do corredor do segundo andar, fitou-os impassivelmente.

Era um longo corredor, e Spangler examinou as paredes e quadros com frio olho clínico.

Samuel Claggert comprara em vastas quantidades porém não soubera comprar. Como tantos outros imperadores autodidatas da indústria de fins dos anos 80, no século passado, ele fora pouco mais do que um vasculhador de casas de penhores, mascarando-se em roupagens de colecionador, um connoisseur de monstruosidades em telas, de coleções vulgares de poesia ou novelas em luxuosas encadernações de couro, bem como de atrozes peças esculpidas, por ele consideradas como Arte.

Naquelas paredes estavam pendurados — engrinaldados, seria o termo correto — imitações de tapetes marroquinos, inúmeras (e sem dúvida anônimas) madonas segurando inúmeros bebês com halos, enquanto inúmeros anjos pairavam em todos os pontos do fundo, grotescos candelabros em arabescos e um lustre monstruoso, obscenamente enfeitado e encimado por uma ninfeta sorrindo despudoradamente.

Sem dúvida, o velho pirata conseguira alguns artigos interessantes; a lei de proporcionalidade assim o exigia. E, se o Museu Particular Memorial Samuel Claggert (Visitas com Guia, por Hora — Entrada: 1 dólar para Adultos, 50 centavos para Crianças — repugnante) se constituía de lixo gritante em 98 por cento, sempre havia aqueles outros dois por cento, coisas como o longo rifle Coombs acima do fogão, na cozinha, a estranha e pequena câmera obscura na sala e, naturalmente, o...

— O espelho Delver foi removido do andar de baixo após um... um acidente algo infeliz — disse bruscamente o Sr. Carlin, aparentemente motivado pelo fantasmagórico e penetrante retrato de ninguém em particular, na base do segundo lance de escadas. — Houve outros — declarações rudes, comentários maldosos — porém desta vez, foi realmente uma tentativa de destruir o espelho. A mulher, uma Srta. Sandra Bates, chegou com uma pedra no bolso. Por sorte, sua pontaria era ruim e ela só rachou um canto da vitrine. O espelho ficou intato. Essa Srta. Bates tinha um irmão...

— Não é preciso oferecer-me a visita de um dólar — disse Spangler em voz calma. — Estou a par da história do espelho Delver.

— Fascinante, não é mesmo? — Carlin atirou-lhe um olhar curioso enviezado. — Houve aquela duquesa inglesa em 1709... e o mercador de tapetes da Pensilvânia, em 1746... para não mencionarmos...

— Estou a par da história — repetiu Spangler, na mesma voz tranqüila. — O que me interessa é o acabamento artesanal. Além disso, claro, existe a questão da autenticidade...

— Autenticidade? — O Sr. Carlin deu uma risadinha sufocada, um som seco, como o de ossos espreguiçando-se em um armário debaixo da escada. — Ele foi examinado por peritos, Sr. Spangler.

— O Stradivarius Lemlier também.

— É verdade — disse o Sr. Carlin, com um suspiro — mas nunca nenhum Stradivarius possuiu o... o efeito perturbador do espelho Delver.

— Sim, nunca — disse Spangler, em sua voz suavemente contida. Agora percebia que era impossível calar Carlin; o velho possuía uma mente perfeitamente sintonizada com a idade. — Nunca.

Subiram o terceiro e quarto lance em silêncio. À medida que se aproximavam do teto da desconexa edificação, ficava opressivamente quente nas escuras galerias superiores.

Com o calor, chegava um insinuante odor que Spangler conhecia bem, pois passara toda a sua vida adulta trabalhando nele — o cheiro de mostras mortas há muito nos cantos penumbrosos, de decomposição úmida e rastejantes parasitas de madeira por trás do estuque. O cheiro da idade. Era um cheiro comum apenas aos museus e mausoléus. Ele imaginava que o mesmo cheiro podia provir da sepultura de uma jovem virginal, falecida quarenta anos antes.

Ali em cima, as relíquias eram empilhadas a torto e a direito, na profusão de uma verdadeira loja de quinquilharias; o Sr. Carlin conduziu Spangler através de um labirinto de esculturas, telas com molduras estilhaçadas, pomposas gaiolas de pássaros dourado-prateadas, o esqueleto desmembrado de uma antiga bicicleta tandem. Levou-o até a parede mais afastada, onde uma escada de mão fora colocada abaixo de um alçapão no forro. Um cadeado enferrujado pendia do alçapão.

Mais para a esquerda, um Adônis de imitação os fitava impiedosamente com opacos olhos sem pupilas. Um braço estava estirado e, do pulso, pendia um cartão amarelo, com os dizeres: ENTRADA ABSOLUTAMENTE PROIBIDA.

O Sr. Carlin, tirou um molho de chaves do bolso do casaco, selecionou uma das chaves e subiu na escada. Parou no terceiro degrau, a calva brilhando fracamente nas sombras.

— Não gosto desse espelho — comentou. — Aliás, jamais gostei dele. Não gosto de espiar nele. Tenho medo de, um dia, olhar e ver... o que o resto deles viu.

— Eles nada viram além de si mesmos — disse Spangler.

O Sr. Carlin começou a falar, parou, balançou a cabeça e remexeu acima dele, dobrando o pescoço para encaixar direito a chave na fechadura.

— Devia ser trocada — murmurou. — Ele está... droga!

A fechadura saltou de repente e o cadeado se soltou. O Sr. Carlin tentou apanhá-lo no ar e quase caiu da escada. Spangler agarrou o cadeado, antes que batesse no chão, depois ergueu os olhos para o homem. O Sr. Carlin agarrava-se tremulamente ao alto da escada, o rosto branco, brilhando na penumbra.

— Isso o deixa nervoso, não é? — perguntou Spangler, em um tom ligeiramente inquisitivo.

O Sr. Carlin não respondeu. Parecia paralisado.

— Desça — disse Spangler. — Por favor. Antes que caia.

Carlin desceu lentamente, agarrando-se a cada degrau, como um homem engatinhando acima de um abismo sem fundo. Quando seus pés tocaram o chão, começou a gaguejar, dando a impressão de que o piso era percorrido por alguma corrente e que esta o ligara, como uma lâmpada elétrica.

— Um quarto de milhão — dizia ele. — Um quarto de milhão de dólares como seguro, para trazer aquela... coisa lá de baixo até aqui! Essa maldita coisa! Tiveram que montar uma forma especial e içá-la com guincho até o espigão do depósito, lá em cima. E eu esperava — quase rezava — para que os dedos de alguém ficassem escorregadios... que a corda não agüentasse... que a coisa despencasse e se estilhaçasse em mil pedaços...

— Fatos — disse Spangler. — O que interessa são fatos, Carlin. Nada de novelas em brochuras baratas, de histórias baratas de tablóides ou de filmes de terror igualmente baratos. Fatos. Número um: John Delver foi um artesão inglês, de descendência normanda, fabricante de espelhos no que chamamos de período elizabetano da história da Inglaterra. Viveu e morreu obscuramente. Sem pentáculos riscados no chão, para a criada apagar, sem documentos cheirando a enxofre, com uma mancha de sangue na linha pontilhada. Número dois: Seus espelhos se tornaram peças de colecionadores, devido principalmente ao seu fino acabamento artesanal e ao fato de que uma forma de cristal fosse usada com um leve efeito ampliador e distorcido para o olho de quem a segurasse — uma marca registrada bem distintiva. Número três: que saibamos, restam apenas cinco Delver — dois deles na América. Inestimáveis, no tocante a preço. Número quatro: Este Delver e um outro que foi destruído na Blitz de Londres, adquiriram uma reputação algo espúria, devido principalmente à falsidade, exagero e coincidência...

— Fato número cinco — disse o Sr. Carlin — você é um arrogante bastardo, não?

Spangler fitou o Adônis cego, com leve irritação.

— Eu fui o guia no tour do qual fazia parte o irmão de Sandra Bates, quando ele viu seu precioso espelho Delver, Spangler. O rapazinho teria uns dezesseis anos, estava com um grupo de ginásio. Eu ia relatar a história do espelho e acabara de chegar à parte que você apreciaria — enaltecendo seu acabamento perfeito, a perfeição do espelho em si — quando o rapaz levantou a mão. "O que significa aquele borrão preto no canto superior esquerdo?" perguntou ele. "Parece que houve uma falha".

— Um amigo seu perguntou o que ele queria dizer. O rapaz Bates começou a dizer, depois se calou. Olhou para o espelho com profunda atenção, chegando bem junto da corda de veludo vermelho, em torno da vitrine que guardava o espelho então olhou para trás, como se o que houvesse visto fosse o reflexo de alguém, de alguém vestido de preto — de pé ao seu ombro. "Parecia um homem — disse ele, — mas não pude ver seu rosto. Agora, desapareceu". E isso foi tudo.

— Continue — disse Spangler. — Está ardendo de vontade de me dizer que era a Morte. O Segador — creio que esta é a explicação comum, não? A de que ocasionais pessoas escolhidas vêem a imagem do Segador no espelho? Ora, esqueça, homem! O National Enquirer adoraria isso! Fale-me sobre as horríveis conseqüências e desafie-me a explicá-las. Ele foi atropelado por um carro, mais tarde? Atirou-se de uma janela? O que foi?

O Sr. Carlin deu uma risadinha incrédula.

— Penso que devia saber melhor, Spangler. Não me disse duas vezes que está... hum... a par da história do espelho Delver? Não houve conseqüências horríveis. Nunca tem havido. Dai por que o espelho Delver não aparece nos suplementos dominicais, como o diamante Koh-i-noor ou a maldição da tumba do Rei Tutankamon. Ele é mundano, comparado ao resto. Acha que sou um tolo, não?

— Exatamente — respondeu Spangler. — Podemos subir agora?

— Claro — disse o Sr. Carlin, ardoroso.

Subiu a escada e empurrou o alçapão. Houve um ruído "clique-claque", quando ele foi puxado para as sombras por um contrapeso. O Sr. Carlin desapareceu na penumbra.

Spangler o seguiu. O Adônis cego olhava cegamente para eles.

O aposento do espigão era explosivamente quente, iluminado apenas por uma janela de muitos ângulos, coberta de teias de aranha, que filtrava a claridade crua do exterior, transformando-a em suja luminosidade leitosa. O espelho estava inclinado em uma esquina, de frente para a luz, captando a maioria da claridade e refletindo-a em uma faixa perolada, na parede oposta. Havia sido seguramente ajustado em uma moldura de madeira. O Sr. Carlin não olhava para ele. Deliberadamente, evitava fitá-lo.

— Nem ao menos o protegeu com um pano velho! — exclamou Spangler visivelmente irritado pela primeira vez.

— Eu penso nele como um olho — disse o Sr. Carlin. Sua voz continuava seca, absolutamente vazia. — Se for deixado aberto, sempre aberto, talvez acabe ficando cego.

Spangler não lhe deu atenção. Tirou o casaco, dobrou cuidadosamente os botões para dentro e, com infinita delicadeza, limpou a poeira da superfície convexa do espelho.

Depois recuou e olhou para ele.

Era legítimo. De fato, não havia dúvidas quanto a isso, nunca houvera. Tratava-se de um perfeito exemplo do particular gênio de Delver. O recinto amontoado de quinquilharias atrás dele, seu próprio reflexo, a imagem meio virada de Carlin — tudo surgia claro, nítido, quase tridimensional. O ligeiro efeito amplificador do espelho dava a tudo uma qualidade levemente encurvada, que acrescentava uma distorção quase quadridimencional. Ele era...

Seu fio de pensamentos interrompeu-se e ele sentiu outra onda de raiva.

— Carlin!

Carlin nada disse.

— Carlin, seu maldito tolo, pensei ouvi-lo dizer que a moça não danificara o espelho!

Nenhuma resposta.

Spangler dirigiu-lhe um olhar gélido, através do espelho.

— Há um pedaço de fita isolante no canto superior esquerdo. Ela o rachou? Pelo amor de Deus, homem, diga alguma coisa!

— Você está vendo o Segador — disse Carlin. Sua voz era inexpressiva e sem paixão. — Não há nenhuma fita isolante no espelho. Passe a mão sobre o lugar... oh, Deus!

Spangler enrolou cuidadosamente a parte superior da manga do casaco em torno da mão, esticou o braço e fez uma leve pressão contra o espelho.

— Está vendo? Não há nada de sobrenatural. Desapareceu. Minha mão cobriu o que havia.

— Cobriu? Pode sentir a fita? Por que não a arranca?

Spangler afastou a mão cautelosamente e olhou para o espelho. Tudo nele parecia um pouco mais distorcido; os estranhos ângulos do aposento davam a impressão de bocejar loucamente, como se prestes a deslizarem para o âmago de alguma eternidade invisível.

Não havia nenhuma mancha escura no espelho. Estava imaculado. Spangler percebeu um medo súbido e doentio crescer dentro de si e desprezou-se por senti-lo.

— Parecia ele, não? — perguntou o Sr. Carlin. Seu rosto estava muito pálido e ele olhava diretamente para o chão. Um músculo saltou espasmodicamente em seu pescoço. — Confesse, Spangler. Não parecia uma figura encapuzada, em pé às suas costas?

— Parecia uma fita isolante, tapando uma pequena rachadura — respondeu Spangler, em voz firme. — Nada mais, nada menos...

— O rapaz Bates era muito robusto — disse Carlin rapidamente. Suas palavras pareciam cair na atmosfera quente e imóvel, como pedras atiradas em água escura. — Como um jogador de futebol. Usava um blusão com iniciais e calças verde-escuras. Estávamos a meio caminho para a exposição no andar de cima, quando...

— Este calor me faz mal — disse Spangler, em voz pouco firme.

Havia apanhado um lenço e enxugava o pescoço. Seus olhos perscrutaram a superfície convexa do espelho, em leves e abruptos movimentos.

— Quando ele disse que queria um gole d'água... um gole d'água, pelo amor de Deus! — Carlin se virou e olhou desvairadamente para Spangler. — Como eu podia saber? Como eu podia saber?

— Há algum lavatório por aqui? Acho que vou...

— O blusão dele... apenas tive um vislumbre de seu blusão, quando ele desceu a escada... e então...

— ... vomitar!

Carlin abanou a cabeça, como se quisesse areja-la, e tornou a fitar o chão.

— Claro. Terceira porta à sua esquerda, no segundo andar, tomando a direção da escada. — Ergueu os olhos, suplicante. — Como eu podia saber?

Spangler, no entanto, já começava a descer a escada. Ela balançou sob seu peso e, por um momento, Carlin pensou — esperou — que ele fosse cair. Não caiu. Pela abertura quadrada no piso, Carlin o viu descer, tapando levemente a boca com uma das mãos.

— Spangler...?

Ele já se fora.

Carlin ouviu as pisadas dissolvendo-se em ecos, depois cessando. Quando deixou de ouvi-las, estremeceu violentamente. Tentou mover os pés para o alçapão, mas estavam gelados. Apenas aquele último e apressado vislumbre do blusão do rapaz... Céus!...

Era como se enormes mãos invisíveis lhe puxassem a cabeça, forçando-a a erguer-se.

Não querendo espiar, assim mesmo Carlin olhou para as bruxuleantes profundezas do espelho Delver.

Nada havia lá.

O aposento se refletia fielmente para ele, seus confins empoeirados transformados em difuso infinito. Ocorreu-lhe um trecho quase esquecido de um poema de Tennyson, e ele o recitou, em um murmúrio:

"As sombras deixam-me algo indisposta, disse a Senhora de Shallott..."

E, ainda assim, ele não conseguia desviar os olhos, imobilizado pela quieta atmosfera.

Perto de um canto do espelho, uma cabeça de búfalo roída de traças, espiava-o com chatos olhos obsidianos.

O rapaz quisera água e o bebedouro ficava no saguão do primeiro andar. Ele havia descido a escada e...

E nunca mais voltara.

Nunca mais!

Como a duquesa, que fizera uma pausa após arrumar-se para uma soirée diante do espelho e voltara ao quarto de vestir para apanhar suas pérolas. Como o mercador de tapetes, que saíra para um passeio de carruagem e deixara para trás apenas uma carruagem vazia e dois cavalos mudos.

E o espelho Delver estivera em Nova York de 1897 a 1920, estivera lá, quando o Juiz Crater...

Carlin olhava fixamente, como que hipnotizado, para as rasas profundezas do espelho.

Mais abaixo, o Adônis cego continuava vigilante.

Ele esperou por Spangler, da mesma forma como a família Bates devia ter esperado pelo filho, como o marido da duquesa devia ter esperado que sua esposa voltasse do quarto de vestir. Ficou olhando para o espelho e esperou.

E esperou.

E esperou.

 

Charles precisava desesperadamente ir ao banheiro.

Não adiantava continuar a enganar-se, achando que poderia esperar até a hora do recreio.

Sua bexiga gritava para ele, e a Srta. Bird o surpreendeu contorcendo-se.

Havia três professoras do terceiro grau, na Escola Primária da Rua Acorri. A Srta. Kinney era jovem, loura e cheia de vitalidade, com um namorado que a vinha buscar depois das aulas, em um Camaro azul. A Sra. Trask tinha as formas de uma almofada mourisca, penteava o cabelo em tranças e ria estentoreamente. E havia a Srta. Bird.

Charles sabia que terminaria liquidando a Srta. Bird. Ele sabia disso. Era inevitável.

Porque, obviamente, a Srta. Bird queria destruí-lo. Ela não permitia que crianças fossem ao porão. O porão, dizia a Srta. Bird, era onde ficavam as caldeiras, de modo que damas bem comportadas e cavalheiros nunca desciam lá, porque porões eram desagradáveis, velhas coisas fuliginosas. Mocinhas e cavalheiros não vão ao porão, havia dito ela. Eles vão ao banheiro.

Charles contorceu-se novamente. A Srta. Bird o fitou de banda.

— Charles — disse ela claramente, ainda apontando seu ponteiro para a Bolívia, — você precisa ir ao banheiro?

Cathy Scott, no assento à frente dele, deu uma risadinha sufocada, cobrindo a boca prudentemente.

Kenny Griffen riu à socapa e chutou Charles por baixo da carteira.

Charles ficou vermelho-vivo.

— Responda, Charles — disse animadamente a Srta. Bird. — Você precisa... (urinar, ela dirá urinar, como sempre faz)

— Sim, Srta. Bird.

— Sim, o quê?

— Eu tenho que ir ao po — ao banheiro.

A Srta. Bird sorriu.

— Muito bem, Charles. Pode ir ao banheiro e urinar. É o que precisa fazer lá? Urinar?

Charles baixou a cabeça, condenado.

— Muito bem, Charles. Pode ir. E, da próxima vez, por favor, não fique esperando que eu lhe pergunte.

As risadinhas sufocadas encheram a sala. A Srta. Bird bateu no quadro com seu ponteiro.

Charles arrastou-se pelo corredor entre as carteiras, na direção da porta, sentindo trinta pares de olhos pousados em suas costas. E cada um daqueles colegas, incluindo-se Cathy Scott, sabia que ele ia ao banheiro para urinar. A porta ficava a uma distância de, pelo menos, um campo de futebol. A Srta. Bird não continuou a aula, ficando calada até ele abrir a porta, passar para o corredor abençoadamente vazio e fechar a porta suavemente.

Ele caminhou em direção ao banheiro dos meninos, (porão porão porão SE EU QUISER) arrastando os dedos ao longo dos frios ladrilhos da parede, deixando que escalassem o quadro de avisos, com os avisos pregados a percevejos e escorregassem levemente através da (QUEBRE O VIDRO EM CASO DE EMERGÊNCIA) caixa vermelha de alarme contra incêndios.

A Srta. Bird gostava daquilo. Ela gostava de deixá-lo com o rosto vermelho. Em frente de Cathy Scott — que nunca precisava ir ao porão, isso era justo? — e de todos os outros.

Filha da P-U-T-A, pensou ele. Soletrou a palavra, porque no ano anterior decidira que Deus não a consideraria um pecado, se fosse soletrada.

Entrou no banheiro dos meninos.

Estava muito frio lá dentro, com um cheiro fraco, mas não desagradável, de água sanitária pairando acremente no ar. Agora, pelo meio da manhã, o banheiro estava limpo e solitário, tranqüilo e muitíssimo agradável, nada parecido com o cubículo enfumaçado e fedorento do Cinema Star, no centro da cidade.

O banheiro (porão!) era construído em forma de L, ficando a haste mais curta com uma fileira de pequenos espelhos quadrados e pias de porcelana branca, além de um toalheiro com toalhas de papel (NIBROC), e a haste mais comprida com dois mictórios e três cubículos com vaso sanitário.

Charles dobrou a esquina, após olhar soturnamente para seu rosto fino e algo pálido, em um dos espelhos.

O tigre estava deitado na extremidade mais distante, logo abaixo da janela branco-pedregosa.

Era um tigre grande, com persianas fulvas e tiras escuras cruzando seu pêlo.

Ele ergueu os olhos alertamente para Charles, apertando as pupilas esverdeadas. Uma espécie de ronronar sedoso escapou-lhe da boca. Músculos lisos flexionaram-se e o tigre se pôs sobre as patas. Sua cauda agitou-se, fazendo pequenos sons de batidas contra o lado de porcelana do último mictório.

O tigre parecia absolutamente faminto e muito perigoso.

Charles correu, percorrendo de volta o caminho já feito. A porta parece levar uma eternidade para resfolegar pneumaticamente atrás dele, mas quando se fechou, Charles considerou-se a salvo. Aquela porta apenas oscilava, e ele não se lembrava de já ter lido ou ouvido dizer que tigres são inteligentes o bastante para abrir portas.

Passou o dorso da mão sobre o nariz. Seu coração batia tão forte, que era capaz de ouvi-lo. Ainda precisava ir ao porão, mais do que nunca.

Contorceu-se, pestanejou e apertou uma das mãos contra a barriga. Realmente, tinha que ir ao porão. Se, pelo menos, tivesse certeza de que não viria ninguém, usaria o das meninas. Ficava bem do outro lado do corredor. Charles olhou para lá ansiosamente, sabendo que nunca teria coragem, nem em um milhão de anos. E se Cathy Scott aparecesse? Ou — tremendo horror! — se a Srta. Bird aparecesse?

Talvez ele houvesse imaginado o tigre.

Abriu a porta, uma fresta suficiente para um olho, e espiou.

O tigre espiava de volta, junto ao ângulo do L, seu olho era de um verde cintilante.

Charles fantasiou que podia distinguir um pequenino salpico azul naquele brilho profundo, como se o olho do tigre tivesse comido o seu próprio. Como se...

Uma mão deslizou em volta de seu pescoço.

Charles soltou um grito contido, enquanto sentia o coração e o estômago amontoarem-se em sua garganta. Por um terrível momento, pensou que ia urinar-se.

Era Kenny Griffen, sorrindo complacentemente.

— A Srta. Bird me mandou atrás de você, porque saiu da aula há seis anos. Você está encrencado.

— Eu sei, mas não posso ir ao porão — disse Charles, ainda nervoso pelo susto que Kenny lhe dera.

— Está com prisão-de-ventre! — cantarolou Kenny alegremente. — Espere só até eu contar a Cathy!

— Não tem nada que contar a ela! — exclamou Charles prontamente. Além disso, não estou com prisão-de-ventre. Há um tigre lá dentro.

— E o que ele está fazendo? — perguntou Kenny. — Mijando?

— Não sei — respondeu Charles, virando o rosto para a parede. — Eu só queria que ele fosse embora — acrescentou, começando a chorar.

— Ei! — disse Kenny, perplexo e um pouco amedrontado. — Ei!

— E se eu tiver que ir? E se não houver outro jeito? A Srta. Bird irá dizer que...

— Ora, vamos! — disse Kenny, agarrando seu braço com uma das mãos e empurrando-o pela porta aberta com a outra. — Você está inventando.

Já estavam dentro do banheiro, antes que Charles, aterrorizado, pudesse libertar-se e encolher-se contra a porta.

— Um tigre — disse Kenny, enojado. — Rapaz, a Srta. Bird matará você!

— Ele está no outro lado.

Kenny começou a caminhar ao longo da fila de pias.

— Pss-pss-pss? Psss?

— Não faça isso! — sibilou Charles.

Kanny desapareceu atrás da quina da parede.

— Pss-pss? Pss-pss? Pss...

Charles disparou pela porta novamente e apertou-se contra a parede, esperando, as mãos cobrindo a boca e os olhos fortemente apertados, esperando, esperando o grito.

Não houve grito nenhum.

Ele não fazia idéia de quanto tempo permaneceu ali, hirto, a bexiga explodindo. Olhou para a porta do porão dos meninos. Ela nada lhe disse. Era apenas uma porta.

Não iria.

Não poderia ir.

Contudo, finalmente entrou.

As pias e espelhos continuavam em ordem e o fraco cheiro de água sanitária não se modificara. No entanto, parecia haver um cheiro sob aquele. Um cheiro vago e desagradável, como o de cobre recém-cortado.

Com sofrida (mas silenciosa) apreensão, ele chegou até a quina do L e espiou.

O tigre estava estirado no chão, lambendo as enormes patas com uma comprida língua rosada. Olhou para Charles sem curiosidade. Em uma de suas presas, havia um pedaço rasgado de camisa.

A necessidade de Charles, no entanto, agora se tornava agônica e ele não podia esperar mais. Tinha que se aliviar. Na ponta dos pés, voltou até a pia de porcelana branca mais próxima da porta.

A Srta. Bird irrompeu no banheiro, justamente quando ele puxava o zíper das calças.

— Ora, mas você, seu garotinho sujo, seu porco! — disse ela, quase ponderadamente.

Charles mantinha um olho vigilante na esquina.

— Sinto muito, Srta. Bird... o tigre... eu vou limpar a pia... vou passar sabão... juro que vou...

— Onde está Kenneth? — perguntou calmamente a Srta. Bird.

— Não sei.

De fato, ele não sabia.

— Ele está aí dentro?

— Não! — gritou Charles.

A Srta. Bird começou a caminhar para o ponto em que o banheiro fazia quina.

— Venha cá, Kenneth! Imediatamente!

— Srta. Bird...

A Srta. Bird, entretanto, já dobrara a quina. Ela quisera surpreender. Charles pensou que a Srta. Bird estava prestes a descobrir o que realmente significava surpreender.

Tornou a cruzar a porta. Bebeu água no bebedouro. Olhou para a bandeira americana pendendo à entrada do ginásio. Olhou para o quadro de avisos. A Coruja Sábia dizia FIQUE ATENTO, NÃO POLUA. O Policial Amigo dizia NUNCA ACEITE CARONA DE ESTRANHOS. Charles leu tudo duas vezes.

Depois voltou para a sala de aula, seguiu por sua fila de carteiras até onde ficava a sua, sempre com os olhos baixos, deslizou para o banco. Faltavam quinze para as onze.

Apanhou Estradas para toda parte e começou a ler sobre Bill no Rodeio.

 

Garrish saiu do brilhante sol de maio para a frieza dos dormitórios. Seus olhos demoraram um instante a adaptar-se, de modo que a voz de Harry "Castor" foi, a princípio, apenas incorpórea, vinda das sombras.

— Uma droga, hem? — perguntou "Castor". — Não foi mesmo uma bruta droga?

— Foi — respondeu Garrish. — Um bocado difícil.

Agora, seus olhos pousavam em "Castor". Ele esfregava a mão nas espinhas da testa e havia suor sob seus olhos. Usava sandálias e uma camiseta 69, tendo à frente um botão dizendo que Howdy Doody era um pervertido. Seus enormes dentes protuberantes cintilavam na penumbra.

— Eu ia me mandar em janeiro — disse "Castor". — Fiquei repetindo para mim, caia fora enquanto é tempo. Então, encerrou-se o período para as comunicações de saída, e seria eu ir em frente ou não completar o termo. Acho que levei pau, Curt. Palavra.

A inspetora estava parada na esquina, ao lado das caixas de correspondência. Era uma mulher extremamente alta, mostrando uma vaga semelhança com Rodolfo Valentino.

Com uma das mãos, tentava endireitar uma alça por baixo da cava suada do vestido, enquanto com a outra pregava a percevejos uma lista com o nome dos que deixavam o dormitório.

— Um bocado difícil — repetiu Garrish.

— Tentei colar alguma coisa de você, mas não tive coragem, palavra. Aquela cara tem olhos de águia! Acha que conseguiu seu A?

— Acho que talvez seja reprovado — respondeu Garrish.

— Acha que vai levar pau? Você acha que...

— Vou tomar uma ducha, certo?

— Sim, certo, Curt. Certo. Esta foi sua última prova?

— Foi — respondeu Garrish. — Esta foi minha última prova.

Garrish cruzou o saguão, atravessou as portas e começou a subir. O poço da escada cheirava como um suporte atlético. Os mesmos velhos degraus. Seu quarto ficava no quinto andar.

Quinn e aquele outro idiota do terceiro, o que tinha pernas cabeludas, cruzaram com ele, atirando uma bola de softball de um lado para outro. Um sujeitinho de óculos de aro e um cavanhaque que se esforçava valentemente para aparecer, passou a seu lado entre o quarto e o quinto, apertando um livro de cálculo contra o peito, como uma Bíblia, os lábios se movendo em um rosário de logarítmos. Seus olhos eram vazios como quadros negros.

Garrish parou e o seguiu com o olhar, perguntando-se se ele não estaria melhor morto, mas o sujeitinho era agora apenas uma sombra vacilante que se esfumava contra a parede. Ela oscilou uma vez mais e desapareceu. Garrish subiu para o quinto e desceu o corredor até seu quarto. "Chiqueiro" havia partido dois dias antes. Quatro provas finais em três dias, um esforço dos diabos, e me dê o meu boné... "Chiqueiro" sabia como fazer as coisas. Deixara para trás apenas os posters de suas pin-ups, duas meias desparelhadas, sujas e fedorentas, e uma paródia em cerâmica do Pensador de Rodin, encarapitada em um vaso sanitário.

Garrish enfiou sua chave na fechadura e a girou.

— Curt! Hei, Curt!

Rollins, o conselheiro daquele pavimento, que tinha enviado Jimmy Brody para visitar o Deão dos Homens, por infração alcoólica, vinha descendo o corredor e acenava para ele. Era alto, corpulento, de cabelos em corte rente, simétrico. Parecia envernizado.

— Você já encerrou? — perguntou Rollins.

— Hã-hã.

— Não esqueça de varrer o chão e preencher o relatório de danos, certo?

— Hã-hã.

— Enfiei um relatório de danos debaixo de sua porta na quinta-feira, certo?

— Hã-hã.

— Se eu não estiver em meu quarto, basta enfiar o relatório de danos e a chave por baixo da porta.

— Certo.

Rollins estendeu a mão e apertou a dele, sacundindo-a duas vezes, rápido, pump-piemp.

A palma de Rollins era seca, de pele granulosa. Apertar a mão dele era como apertar um punhado de sal.

— Desejo-lhe um bom verão, cara.

— Obrigado.

— Não se esforce além da conta.

— Certo.

— Use, mas não abuse.

— Vou usar e não abusar.

Rollins pareceu momentaneamente intrigado, depois riu.

— Muito bem, cuide-se, rapaz.

Bateu no ombro de Garrish e continuou a descer o corredor, parando uma vez para dizer a Ron Frane que abaixasse o volume do estéreo. Garrish podia ver Rollins jazendo morto em uma sarjeta, com larvas nos olhos. Rollins não se importaria e tampouco as larvas. A gente come o mundo ou o mundo nos come e tudo acaba bem, de um jeito ou de outro.

Garrish ficou parado e pensativo, olhando até Rollins desaparecer de vista. Só então entrou em seu quarto.

Sem a ciclônica bagunça de "Chiqueiro", o aposento parecia nu e estéril. A montanha desordenada, crescida e dispersa que havia sido a cama de "Chiqueiro", desaparecera por completo, restando apenas o colchão desnudo — embora ligeiramente manchado de esperma. Duas capas duplas de Playboy olharam do alto para ele, exibindo congelados convites bidimensionais.

Houvera pouca mudança na metade do quarto que pertencia a Garrish, que sempre estivera arrumada como um quartel. Deixando-se cair uma moeda sobre a esticada coberta de sua cama, ela certamente ricochetearia. Tamanha arrumação dera nos nervos de "Porcalhão". Ele fazia especialização em Inglês e tinha tendência para belas frases.

Chamava Garrish de dono-de-pombal. A única coisa na parede, acima da cama de Garrish, era uma grande ampliação fotográfica de Humphrey Bogart, que adquirira na livraria da universidade. Bogie empunhava uma pistola automática em cada mão e usava elásticos nas mangas da camisa. "Chiqueiro" dizia que pistolas e braçadeiras eram símbolos de impotência. Garrish duvidava muito que Bogie tivesse sido impotente, mesmo nunca tendo lido nada sobre ele.

Chegou à porta do armário embutido, destrancou-a e tirou o enorme Magnum 325 com coronha de nogueira, que seu pai, um ministro metodista, lhe comprara pelo Natal. O visor telescópico havia sido comprado no último março, pelo próprio Garrish.

Supunha-se proibida a presença de armas nos quartos, inclusive de rifles de caça, porém não havia sido difícil. Ele o apanhara no depósito de armas da universidade, apresentando uma papeleta forjada de retirada. Colocara-o em seu estojo de couro à prova d'água e o deixara no bosque atrás do campo de futebol. Esta madrugada, por volta de três horas, deixara o dormitório e tinha ido apanhá-lo, trazendo-o de volta através dos corredores adormecidos.

Garrish sentou-se na cama, com o rifle cruzado sobre os joelhos, e chorou um pouquinho. O Pensador olhava para ele, sentado em seu vaso sanitário. Garrish largou a arma em cima da cama, cruzou o quarto e, com um tapa, jogou-o fora da mesa de "Porcalhão". O Pensador de cerâmica caiu ao chão, onde se estilhaçou. Houve uma batida à porta.

Garrish escondeu o rifle debaixo da cama.

— Entre!

Era Bailey, em roupas de baixo. Havia um rolo de fios do tecido, no botão sobre o estômago. Não existia futuro para Bailey. Ele se casaria com uma garota imbecil e os dois teriam filhos imbecis. Mais tarde, Bailey morreria de câncer ou talvez de insuficiência renal.

— Como foi em sua final de Química, Curt?

— Tudo bem.

— Queria saber se podia emprestar-me suas anotações. Tenho Química amanhã.

— Eu as queimei com meu lixo, esta manhã.

— Oh! Meu Deus! "Porcalhão" fez isso? — e ele apontou para os remanescentes do Pensador.

— Acho que fez.

— Por que tinha de fazer isso, se ia embora? Eu gostava daquela coisa. Ia comprá-la dele.

Bailey tinha feições miúdas e aguçadas, como as de um rato. Sua roupa de baixo era surrada, com fundilhos empapuçados. Garrish podia ver exatamente como ele pareceria, morrendo de enfizema ou coisa assim, em uma tenda de oxigênio. Como ficaria amarelo. Eu poderia ajudá-lo pensou.

— Acha que ele se importaria, se eu ficasse com as pin-ups?

— Acho que não.

— Ótimo. — Bailey cruzou o quarto, os pés nus pisando cautelosamente nos cacos de cerâmica, e tirou os percevejos que prendiam os posters das coelhinhas. — Essa foto de Bogart também é um barato. Sem maminhas, mas, puxa! Entende? — Bailey olhou de esguelha para Garrish, querendo ver se ele sorriria. Como não houvesse nenhum sorriso, acrescentou: — Estará pretendendo desfazer-se dele?

— Não. Apenas me preparava para uma ducha.

— Tudo bem. Se não tornar a vê-lo, tenha um bom verão, Curt.

— Obrigado.

Bailey caminhou até a porta, com os fundilhos bamboleando-se. Ali, parou e se virou.

— Outros quatro pontos este semestre, Curt?

— No mínimo.

— Boa pedida! Até o ano que vem!

Saiu e fechou a porta. Garrish sentou-se na cama por um momento, depois apanhou o rifle, desmontou-o e limpou-o. Levou a boca da arma até o olho e espiou para o pequeno círculo de luz na extremidade oposta. O cano estava limpo. Tornou a montar a arma.

Na terceira gaveta de sua secretária havia três pesadas caixas de munição Winchester.

Colocou-as sobre o peitoril. Passou a chave na porta do quarto e retornou à janela.

Ergueu as persianas.

A aléia principal da universidade estava clara e verdejante, pontilhada de estudantes indo e vindo. Quinn e seu amigo idiota estavam entretidos com mais um grupo, jogando bola. Corriam de um lado para outro, como formigas aleijadas escapando de um buraco desmantelado.

— Quero dizer-lhe uma coisa — falou Garrish para Bogie. — Deus ficou danado da vida com Caim, porque Caim o julgava um vegetariano. O irmão dele sabia mais. Deus fez o mundo à Sua imagem e, se a gente não devora o mundo, ele nos devora. Foi então que Caim perguntou ao irmão, "Por que não me contou?" E o irmão respondeu, "Por que você não ouviu?" E Caim disse, "Certo, estou ouvindo agora". Então, ele dá cabo do irmão e diz, "Ei, Deus! Você quer carne? Aqui a tem! Prefere assada. em bifes, Abelburger ou como?" E Deus lhe disse que comesse suas sandálias. E então... o que você acha?

Não houve resposta de Bogie.

Garrish ergueu a janela e descansou os cotovelos no peitoril, sem deixar que o cano da 353 se projetasse para fora, à luz do sol. Olhou pelo visor.

Centrou-o no dormitório feminino Carlton Memorial, no outro lado da aléia principal. O Carlton era mais popularmente conhecido como os canis. Colocou os fios cruzados sobre uma grande caminhonete Ford. Uma aluna loura, em jeans e camisa azul, conversava com a mãe, enquanto o pai, de rosto corado e calvo, enchia a traseira da caminhonete com malas.

Alguém bateu à porta.

Garrish esperou.

A batida repetiu-se.

— Curt? Eu lhe darei meia prata pelo poster de Bogart!

Bailey.

Garrish nada disse. A garota e sua mãe riam de alguma coisa, ignorando que havia micróbios em seus intestinos, alimentando-se, dividindo-se, multiplicando-se. O pai da garota se juntou a elas e ficaram reunidos ao sol, um retrato de família no retículo de fios cruzados.

— Que se danem todos! — exclamou Bailey.

Seus pés se moveram corredor abaixo.

Garrish apertou o gatilho.

O rifle escoiceou seu ombro com força, o bom e acolchoado coice de quando se tem a arma apoiada exatamente no lugar certo. A cabeça loura da garota sorridente espatifou-se.

Sua mãe continuou rindo por um momento, depois levou a mão à boca. Gritou por entre os dedos. Garrish atirou neles. Mão e cabeça desapareceram, em borrifos vermelhos. O homem que estivera colocando as malas no carro, interrompeu-se e correu.

Garrish o seguiu com a arma e baleou-o nas costas. O homem levantou a cabeça, ficando fora do visor por um instante. Quinn segurava a bola de soft e olhava para os miolos da garota loura, salpicados sobre o indicador PROIBIDO ESTACIONAR, atrás de seu corpo caído. Quinn não se moveu. Por toda a aléia principal, as pessoas ficaram imóveis, como crianças brincando de estátuas.

Alguém esmurrou a porta, depois sacudiu a maçaneta. Bailey novamente.

— Curt? Você está bem, Curt? Acho que alguém está...

— Boa bebida, boa carne, bom Deus, vamos comer! exclamou Garrish, e atirou em Quinn.

Quinn saltou, ao invés de encolher-se, de modo que o tiro se perdeu. Ele agora corria.

Sem problema. O segundo tiro o pegou no pescoço, fazendo-o voar por talvez uns seis metros.

— Curt Garrish está se matando! — gritava Bailey. — Rollins! Rollins! Venha depressa!

Suas pisadas distanciaram-se, corredor abaixo.

Agora, eles começavam a correr. Garrish podia ouvir a gritaria geral. Podia ouvir o distante som tap-tap de seus sapatos nas calçadas.

Ergueu os olhos para Bogie. Bogie empunhava suas duas armas e, do alto, olhou para ele. Garrish contemplou os restos estilhaçados do Pensador de "Porcalhão" e perguntou-se o que ele estaria fazendo naquele momento, se dormia, via televisão ou devorava alguma lauta e espetacular refeição. Coma o mundo, "Porcalhão", pensou Garrish. Engula o perfeito otário.

— Garrish! — agora era Rollins que esmurrava a porta. — Abra, Garrish!

— Está trancada a chave! — ofegou Bailey. — Ele parecia esquisito, ele se matou, eu sei!

Garrish empurrou novamente a boca da arma para fora da janela. Um rapaz de camisa xadrez, agachado atrás de um arbusto, perscrutava as janelas do dormitório, com desesperada intensidade. Garrish percebeu que ele queria correr, mas estava com as pernas endurecidas.

— Vamos correr, bom Deus — murmurou Garrish, e começou a puxar o gatilho de novo.

 

O alvorecer espraiou-se lentamente pela Rua Culver.

Para os que estavam acordados dentro de casa, a noite continuava negra, porém o alvorecer estivera realmente espreitando por já quase meia hora. No grande bordo da esquina de Culver com Avenida Balfour, um esquilo vermelho pestanejou e voltou seu olhar sonolento para as casas adormecidas. Na metade do quarteirão, uma andorinha enfiou-se no pequeno chafariz para pássaros na residência dos Mackenzie e salpicou gotas peroladas sobre si mesma. Uma formiga caminhava a esmo pela sarjeta e se deparou com um diminuto fragmento de chocolate, aderido ao rejeitado papel que envolvera a barra inteira.

A brisa noturna, que rogaçara folhas e enfunara cortinas, agora se aquietara. O bordo da esquina deu um último e farfalhante estremecimento, antes de ficar quieto, aguardando a abertura plena que se seguiria a este tranqüilo prólogo.

Uma débil faixa de claridade tingiu o céu a leste. O obscuro curiango entrou de folga e os chapins fizeram uma tentativa para encarar a vida, ainda vacilantes, como que temerosos de acolher o dia por si mesmos.

O esquilo desapareceu em um beiçudo buraco na forquilha do bordo.

A andorinha agitou as asas na borda do chafariz e fez uma pausa.

A formiga também fez uma pausa diante de seu tesouro, como um bibliófilo ruminando sobre uma edição de formato in-fólio.

A Rua Culver tremeu silenciosamente na borda do planeta que o sol iluminava — aquela régua móvel a que os astrônomos denominam círculo de iluminação.

Um som ganhou intensidade quietamente dentro do silêncio, intumescendo com reservas até parecer que sempre estivera ali, oculto sob os ruídos maiores da noite que findava. Ele aumentou, ganhou clareza e transformou-se no decorosamente abafado som de um furgão leiteiro.

O veículo dobrou da Balfour para a Culver. Era um belo furgão bege, com inscrições vermelhas nas laterais. O esquilo assomou como uma língua à boca de seu buraco beiçudo, observou o furgão e depois espiou para um provável pedacinho de forragem para seu ninho. Apressou-se em descer pelo tronco da árvore, de cabeça para baixo. A andorinha voou. A formiga apossou-se do chocolate que suas forças permitiam e encaminhou-se para seu montículo.

Os chapins começaram a trinar mais alto.

No outro quarteirão, um cão latiu.

Nas laterais do furgão de entrega do leite, a inscrição dizia: LATICÍNIOS CRAMER'S.

Havia a figura de uma garrafa de leite e, mais abaixo, o seguinte: NOSSA ESPECIALIDADE — ENTREGAS DE MANHÃ!

O leiteiro usava um uniforme cinza-azulado e um chapéu de bico. Havia um nome escrito sobre o bolso, em fio dourado: SPIKE. Ele assobiava, acima do confortável sacolejo de garrafas no gelo, às suas costas.

O leiteiro parou o furgão junto ao meio-fio, diante da casa dos Mackenzie, pegou o engradado com leite, no piso ao seu lado, depois o colocou na calçada. Parou um instante para cheirar o ar, fresco, novo e infinitamente misterioso. Em seguida, em largas passadas, cruzou a calçada até a porta.

Um pequeno quadrado de papel branco estava preso à caixa de correspondência, por um ímã em forma de tomate. Spike leu o que estava escrito ali, bem de perto e lentamente, como alguém leria uma mensagem encontrada em uma velha garrafa, incrustada de sal.

 

1 lt. leite

1 creme econ

1 suco laranja

Obrigada

Nella M.

 

Spike, o leiteiro, olhou pensativamente para seu engradado, colocou-o no chão e tirou dele o leite e o creme. Tornou a examinar o papel, ergueu o ímã-tomate para certificar-se de que não perdera um ponto, vírgula ou traço que modificariam o estado de coisas, assentiu, recolocou o ímã, recolheu seu engradado e voltou ao furgão.

A parte traseira do furgão de leite era úmida, escura e fria. Havia um cheiro mofado de umidade em seu ar, misturando-se desconfortavelmente ao dos laticínios. O suco de laranja estava por trás da insuportável dulcamara. Spike tirou uma caixa de papelão do gelo, tornou a assentir e retornou à calçada. Deixou a caixa de suco ao lado do leite e do creme. Depois voltou a seu furgão.

Não muito longe dali, soou o apito das cinco horas na lavanderia industrial, onde trabalhava Rocky, o velho amigo de Spike. Ele pensou em Rocky, iniciando seu trabalho por entre nuvens de vapor, em meio a um calor sufocante, e sorriu. Talvez procurasse Rocky mais tarde. Talvez essa mesma noite... depois de feitas as entregas.

Spike deu partida ao motor e seguiu em frente. Um pequeno rádio transistorizado com uma correia em imitação de couro, pendia de um gancho de açougue, manchado de sangue, que se encurvava do teto da boléia. Ele o ligou e uma música sossegada funcionava como contraponto de seu motor, enquanto rodava para a casa dos McCarthy.

A nota da Sra. McCarthy estava no lugar costumeiro, a fenda do depósito de cartas. Era concisa e direta:

Chocolate

Spike pegou sua caneta, garatujou Entrega Feita através do papel e o empurrou de volta pela fenda. Depois voltou ao furgão. O leite chocolatado ficava estocado em dois esfriadores, bem no fundo, sendo alcançado pelas portas traseiras, porque era um produto de grande saída em junho. O leiteiro olhou para os esfriadores, depois estendeu o braço sobre eles e apanhou uma das caixas vazias de papelão para o leite chocolatado, que ficavam no canto oposto. Naturalmente, a caixa era marrom, e uma alegre criança cabriolava acima da matéria impressa, informando ao consumidor que aquele era um PRODUTO DOS LATICÍNIOS CRAMER'S INTEGRAL E DELICIOSO PODE SER TOMADO QUENTE OU GELADO AS CRIANÇAS O ADORAM!

Spike colocou a caixa vazia de papelão sobre um engradado de leite. Em seguida, limpou os fragmentos de gelo até poder ver o pote de maionese. Apanhou-o e espiou em seu interior. A tarântula se moveu, mas entorpecidamente. O frio a dopara. Spike desenroscou a tampa do pote e o virou sobre a caixa aberta de papelão. A tarântula fez um débil esforço para engatinhar de volta, subindo pelo deslizante lado de vidro do pote, mas não foi bem sucedida. Caiu dentro da caixa de papelão vazia do leite chocolatado, com um gordo plop. O leiteiro tornou a fechar a caixa cuidadosamente, colocou-a em seu suporte e subiu apressado a calçada dos McCarthy. Aranhas eram suas prediletas, o máximo, em sua opinião. Para Spike, o dia em que pudesse entregar uma cobra, seria um dia feliz.

Enquanto subia a Culver lentamente, continuava a sinfonia do alvorecer. A faixa perolada do leste foi substituída por um crescente clarão rosado, a princípio muito pouco discernível, depois abrilhantando-se rapidamente para um escarlate que, quase em seguida, começou a desbotar-se para o azul do verão. Os primeiros raios de sol, belos como um desenho infantil em um livro de exercícios da escola dominical, agora aguardavam nos bastidores.

Na casa dos Webber, Spike deixou uma garrafa de creme comum, repleta de gelatina ácida. Na dos Jenner, deixou cinco litros de leite. Ali havia meninos crescendo. Ele nunca os vira, porém havia uma casa-de-árvore nos fundos e, por vezes, bicicletas e bastões de jogar bola esquecidos no pátio fronteiro. Na dos Collins, dois litros de leite e uma embalagem de papelão com iogurte. Na da Srta. Ordway, uma caixa de papelão com eggnog, que fora batizada com beladona.

Uma porta bateu no fim do quarteirão. O Sr. Webber, que fazia o trajeto inteiro até a cidade, abriu a porta cinza-azulada de sua garagem e entrou, balançando sua pasta. O leiteiro esperou que soasse o zumbido do pequeno Saab, dando partida ao motor, e sorriu ao ouvi-lo. A variedade é o tempero da vida, gostava de dizer a mãe de Spike — que Deus dê descanso à sua alma! — porém nós somos irlandeses, e os irlandeses preferem comer suas batatas da maneira mais simples. Seja moderado em todos os sentidos, Spike, e você será feliz. Isto era absolutamente verdadeiro, conforme ele próprio descobrira, enquanto descia a estrada da vila rodando em seu asseado furgão leiteiro bege.

Agora, faltavam apenas três casas.

Nados Kincaid, ele encontrou uma nota dizendo "Nada hoje, obrigado", mas deixou uma garrafa de leite tampada, que parecia vazia, mas continha um mortítero gás de cianureto. Na casa dos Walker, deixou dois litros de leite e meio litro de creme batido.

Quando chegou à casa dos Merton, no fim do quarteirão, os raios de sol brilhavam por entre as árvores e mosqueavam a desbotada grade da amarelinha, na calçada que passava à frente do prédio.

Spike abaixou-se e apanhou o que parecia uma excelente pedra para jogar amarelinha — chata de um lado — e atirou-a. A pedra caiu sobre uma linha. Ele meneou a cabeça, sorriu e subiu a calçada, assobiando.

A leve brisa lhe trouxe o cheiro de sabão da lavanderia industrial, fazendo-o pensar novamente em Rocky. A cada momento, crescia sua certeza de que veria Rocky. Aquela noite.

Havia uma nota espetada no suporte de jornais dos Merton: Cancelado

Spike abriu a porta e entrou.

A casa estava gelada como uma cripta e sem qualquer mobiliário. Não podia ficar mais árida, com as paredes nuas. O próprio fogão da cozinha fora retirado; havia um quadrado brilhante no chão, mostrando onde estivera o linóleo.

Na sala de estar, o menor fragmento de papel fora removido das paredes. Não havia lustre, na lâmpada pendurada por um fio. Uma lâmpada agora queimada. Uma grande mancha de sangue seco cobria parte de uma parede. Assemelhava-se à mancha de tinta de um psiquiatra. No centro dela, uma cratera aprofundava-se no reboco. Havia um punhado de cabelos emaranhados na cratera, além de algumas lascas de ossos.

O leiteiro assentiu, saiu e ficou parado na entrada por um instante. Aquele ia ser um lindo dia. O céu já estava mais azul do que um olho de bebê, salpicado de ingênuas nuvenzinhas precursoras do bom tempo... aquelas a que os jogadores de beisebol chamam de "anjos".

Retirando a nota do suporte de jornais, ele a amassou em uma bola. Depois a enfiou no bolso esquerdo frontal, em sua calça branca de leiteiro.

Voltou ao furgão, chutando a pedra da amarelinha para a sarjeta. O furgão de entrega de leite chocalhou ao dobrar a esquina e sumiu de vista.

O dia ficou ainda mais radioso.

Um menino irrompeu de uma casa, sorriu para o céu e tornou a entrar, levando o leite.

 

Ouvi sua voz dizendo isto — algumas vezes ainda a ouço. Em meus sonhos.

— Você ama?

— Sim — respondo. — Sim — e o verdadeiro amor jamais morrerá.

Então, acordo gritando.

Mesmo agora, eu não sei como explicar. Não posso contar por que fiz aquelas coisas.

Tampouco poderia fazê-lo no julgamento. E aqui há um bando de gente que me interrogará a respeito. Há um psiquiatra que me faz perguntas, mas fico calado. Meus lábios estão selados. Exceto aqui, em minha cela. Aqui não fico calado. Acordo gritando.

No sonho, eu a vejo caminhando para mim. Está usando um vestido branco, quase transparente, com uma expressão mesclada de desejo e triunfo. Ela caminha para mim através de um aposento escuro, com piso de pedra, e sinto cheiro de rosas secas de outubro. Seus braços estão abertos e aproximo-me com os meus também abertos, a fim de abraçá-la.

Sinto medo, respulsa, uma ânsia indizível. Medo e repulsa, porque sei que lugar é aquele, ânsia, porque a amo. Sempre a amarei. Houve vezes em que desejei que ainda houvesse pena de morte neste estado. Uma curta caminhada por um corredor sombrio, uma cadeira de espaldar reto, dotada de um chapéu metálico, correias... depois um rápido sacolejo, e eu estaria com ela.

A medida que nos aproximamos, no sonho, meu medo aumenta, mas é impossível afastar-me dela. Minhas mãos se pressionam sobre a lisura plana de suas costas, sua pele logo abaixo da seda. Ela sorri, com aqueles olhos negros e profundos. Sua cabeça se ergue para a minha, os lábios se entreabrem, prontos para serem beijados.

É então que ela se modifica, se encolhe. Os cabelos ficam ásperos e embolados, dissolvendo-se do negro para um horroroso castanho, que cai sobre a brancura cremosa de suas faces. Os olhos se apertam e ficam vidrados como contas. As escleróticas desaparecem e ela me fita com olhinhos semelhantes a duas bolas de azeviche polido. A boca se torna um papo, através do qual salientam-se tortos dentes amarelos.

Eu tento gritar. Tento acordar.

Não posso. Sinto-me preso novamente. Sempre ficarei preso.

Estou preso em um enorme, fétido cemitério de ratos. Luzes oscilam diante de meus olhos. Rosas de outubro. Em algum lugar, um sino bimbalha surdamente.

— Você ama? — a coisa sussura. — Você ama?

O cheiro das rosas é sua respiração, quando ela se precipita para mim, dores mortas em uma capela mortuária.

— Sim — respondo à coisa-rato. — Sim — e o verdadeiro amor jamais morre —

Então, começo a gritar e acordo.

Eles pensam que o que fizemos me deixou louco. Não obstante, minha mente continua funcionando, de um jeito ou de outro, e nunca parei de buscar as respostas. Ainda quero saber o que foi e como foi.

Eles me deram papel e uma caneta de pontas de feltro. Vou registrar tudo. Talvez responda a algumas de suas perguntas e, ao mesmo tempo, enquanto escrevo talvez possa responder a algumas das minhas. E quando terminar, há algo mais. Algo que eles ignoram em meu poder. Algo que eu tenho. Está aqui, debaixo do meu colchão. Uma faca, do refeitório da prisão.

Devo começar falando a vocês sobre Augusta.

É noite enquanto escrevo isto, uma bela noite de agosto, pontilhada de estrelas cintilantes. Posso vê-las através das grades de minha janela, que dá para o pátio de exercícios e também para uma fatia de céu, que posso bloquear com dois dedos. Faz muito calor e estou apenas de sunga. Posso ouvir os suaves rumores estivais de sapos e grilos. No entanto, consigo trazer o inverno de volta, apenas fechando os olhos. O frio amargo daquela noite, as desoladas, duras e inamistosas luzes de uma cidade que não era a minha. Era quatorze de fevereiro.

Como vêem, lembro-me de tudo.

E olhem para meus braços — cobertos de suor, ficaram arrepiados.

Augusta...

Quando cheguei a Augusta, estava mais morto do que vivo, por causa do frio. Escolhera um belo dia para despedir-me do cenário da universidade e viajei de carona para o oeste; antes de sair do estado, parecia que poderia morrer congelado.

Um tira me chutara na divisa interestadual, ameaçando prender-me se tornasse a me pegar por ali, pedindo carona. Quase fiquei tentado a desacatá-lo e deixar que me levasse. A lisa fita de auto-estrada com quatro faixas parecia a pista de pouso de um aeroporto, com o vento ululando e empurrando membranas de neve pulverizada, em turbilhões ao longo do concreto. E, para os anônimos Eles, por trás de seus garantidos pára-brisas, qualquer um em pé no acostamento, em uma noite escura, só pode ser um estuprador ou assassino. Se o sujeito tem cabelos compridos, ainda é encarado como molestador de criança e homossexual.

Durante algum tempo, fiquei tentando na estrada de acesso, mas não adiantou. Faltando quinze minutos para as oito da noite, percebi que se não chegasse logo a algum lugar aquecido, acabaria desmaiando.

Caminhei dois quilômetros, antes de encontrar uma combinação de restaurante e posto para diesel, na estrada 202, já dentro dos limites da cidade. A BOA COMIDA DO JOE, dizia o anúncio em neon. Havia três enormes ônibus estacionados no pátio de pedrinhas soltas e um sedã novo. Uma coroa de Natal, já surrada, estava pendurada à porta, sem que ninguém se preocupasse em retirá-la. Perto dela, um termômetro mostrava exatamente cinco graus de mercúrio acima do grande zero. Eu nada tinha para cobrir os ouvidos além dos cabelos e minhas luvas de couro cru já se desintegravam. As pontas de meus dedos pareciam pedaços de móveis.

Abri a porta e entrei.

O calor foi a primeira coisa que me recebeu, quente e gostoso. Em seguida, foi uma canção montanhesa na vitrola automática, na voz indiscutível de Merle Haggard: "Não deixamos nossos cabelos compridos e desgrenhados, como fazem os hippies em San Francisco."

A terceira coisa foi O Olho. A gente passa a conhecer O Olho, assim que deixa os cabelos crecerem abaixo dos lóbulos das orelhas. No mesmo instante, os outros sabem que não fazemos parte dos Lions, Elks ou VFW — os Veteranos de Guerras no Estrangeiro. Identificamos O Olho, porém nunca nos acostumamos a ele.

Naquele exato momento, as pessoas que me dirigiam O Olho eram quatro motoristas de caminhão em uma cabine, dois mais ao balcão, duas velhotas com casacos de pele baratos e cabelos rinsados de azul, o cozinheiro de refeições rápidas e um rapazola babaca, com espuma de sabão nas mãos. Havia uma garota sentada no extremo mais distante do balcão, porém ela se limitava a contemplar o fundo de sua xícara de café.

Foi ela a quarta coisa que me tocou.

Já tenho idade suficiente para saber que não existe isso de amor à primeira vista. Trata-se apenas de algo que Rodgers e Hammerstein idealizaram um dia, para rimar com lua e junho. Esse negócio é para jovens de mãos dadas nos bailes escolares, certo?

Contudo, olhar para ela faz-me sentir algo. Podem rir, mas aposto como não ririam, se a tivessem visto. Ela era quase inacreditavelmente linda. Sem a menor sombra de dúvida, compreendi que todo mundo ali dentro, sabia o mesmo que eu. Como se eu soubesse que ela era alvo de O Olho, antes de minha chegada. Tinha cabelos cor de carvão, tão negros, que pareciam quase azulados sob as luzes fluorescentes. Caíam livremente por seus ombros, cobertos por um casaco surrado, castanho-amarelo. Tinha a pele branco cremosa, com apenas um ligeiríssimo toque rosado abaixo da superfície — o frio que havia trazido consigo. Cílios negros e compridos. Olhos solenes, um pouquinho amendoados nos cantos. Uma boca cheia e móvel, abaixo de um nariz patrício. Eu não poderia dizer como era seu corpo. Não fazia diferença. Vocês não se importariam também. Ela precisava apenas daquele rosto, daqueles cabelos, daquele ar. Era refinada.

Não conheço outra palavra que se ajuste melhor.

Nona.

Sentei duas banquetas distante dela e o cozinheiro de refeições rápidas aproximou-se, olhando para mim.

— O que vai querer?

— Café puro, por favor.

Ele foi buscá-lo. Atrás de mim, alguém disse:

— Bem, acho que Cristo voltou, justamente como mamãe sempre disse que Ele voltaria.

O lavador de pratos babaca riu, emitindo um rápido som como iec-iec. Os motoristas do balcão riram também.

O cozinheiro trouxe meu café, soltou-o em cima do balcão e derramou um pouco sobre a carne constelada de minha mão. Puxei-a bruscamente.

— Desculpe — disse ele, indiferente.

— Ele mesmo se curar — disse um dos motoristas da cabine.

As gêmeas de cabelos rinsados pagaram suas contas e apressaram-se em dar o fora. Um dos cavaleiros da estrada investiu para a vitrola automática e enfiou nela outra moeda.

Johnny Cash começou a cantar "Um rapaz chamado Sue", Soprei meu café.

Alguém puxou minha manga. Virei a cabeça e lá estava ela — tinha vindo para a banqueta vazia. Olhar de perto para aquele rosto era quase ofuscante. Entornei um pouco mais de meu café.

— Sinto muito — disse ela, em voz baixa, quase átona.

— A culpa foi minha. Ainda não tenho muito tato no que faço.

— Eu...

Ela parou, como que constrangida. De repente, percebi que estava amedrontada. Senti novamente minha primeira reação por ela — a de protegê-la, cuidar dela, não deixá-la ter medo.

— Preciso de uma carona — terminou, apressadamente. — Não tive coragem de pedir a nenhum deles — acrescentou, fazendo um gesto quase imperceptível para os motoristas de caminhão na cabine.

Não sei como fazê-los compreender que daria qualquer coisa — tudo — para ser capaz de dizer-lhe, Claro, termine seu café, lenho o carro lá fora. Parece loucura dizer que me sentia assim, após ouvir uma meia dúzia de palavras de sua boca e o mesmo número da minha, porém aconteceu. Olhar para ela era como ver a Mona Lisa ou a Vênus de Milo adquirirem vida. Havia ainda outra sensação. Era como se uma súbita e potente luz se houvesse subitamente acendido na confusa escuridão de minha mente. Tudo ficaria mais fácil, se eu pudesse dizer que ela era uma garota fácil e eu um homem rápido em conquistar mulheres, ágil em piadinhas e um bom papo, mas ela não era desse tipo e nem eu tampouco. Naquele momento, eu sabia apenas que não podia proporcionar o que ela queria e isso me dilacerava.

— Estou viajando de carona — falei. — Um tira me expulsou para fora da interestadual e só vim até aqui para fugir do frio. Sinto muito.

— Você é da universidade?

— Fui. Saí antes que me mandassem embora.

— Está voltando para casa?

— Não tenho casa para onde ir. Fui tutelado do estado. Estava na universidade com uma bolsa-de-estudos. Caí fora. Agora, não sei para onde ir.

Era a história de minha vida, em cinco frases. Acho que isso me deixou deprimido. Ela riu — o som de seu riso me esquentou. depois esfriou.

— Acho que somos gatos do mesmo saco — disse.

Pensei que ela dizia gatos. Pensei, no momento. Naquele instante. Contudo, aqui tive tempo para refletir e cada vez tenho mais impressão de que ela teria dito ratos. Ratos do mesmo saco. Isso mesmo. E eles não têm significado igual, têm?

Eu ia iniciar minha melhor linha de conversa — algo inteligente como "É mesmo?" — quando uma mão caiu em meu ombro.

Virei-me. Era um dos motoristas da cabine. Uma barba loura começava a despontar em seu queixo e havia um fósforo pendurado em sua boca. Ele cheirava a óleo de motor e parecia algo saído de um desenho de Steve Ditko.

— Acho que você já acabou esse café — disse ele.

Seus lábios dividiram-se em torno do fósforo, exibindo um sorriso. O homem tinha um bocado de dentes muito alvos.

— Como?

— Você está deixando o lugar fedorento, cara. Você é um cara, não? Fica um tanto difícil adivinhar.

— Você também não é nenhuma rosa — repliquei. — Qual a sua loção de barba, simpático? Eau de óleo-de-cárter?

Ele me deu um tapa brutal em um lado do rosto, com a mão aberta. Vi pontinhos pretos.

— Nada de brigas aqui dentro-disse o cozinheiro de refeições rápidas. — Se está querendo amarrotá-lo, vá lá para fora.

— Vamos, seu comunista maldito — disse o motorista.

É a esta altura que uma garota costuma dizer alguma coisa, como "Tire as mãos de cima dele" ou "Seu bruto". Ela não disse nada. Olhava para nós dois com febril intensidade.

Chegava a ser assustador. Creio ser aquela a primeira vez em que percebi como seus olhos eram enormes.

— Vou precisar esmurrá-lo outra vez?

— Não. Vamos, saco de bosta!

Não sei como aquilo saltou de mim. Não gosto de brigar. Não sou um bom lutador. Sou ainda pior para xingamentos. Contudo, estava zangado. No mesmo instante, senti vontade de matá-lo.

Talvez ele houvesse captado meu desejo. Por um segundo apenas, uma sombra de incerteza passou por seu rosto, a inconsciente dúvida de se não teria escolhido o hippie errado. Então, desapareceu. Não, ele não ia recuar, diante de um efeminado esnobe e elitista, de cabelos compridos, que usava a bandeira para limpar o traseiro — pelo menos, não em frente de seus companheiros. Não um motorista de caminhão, forte e machão como ele.

A raiva me tomou novamente. Bicha? Bicha? Perdi o controle e foi bom sentir-me assim. A língua estava espessa em minha boca. Meu estômago parecia um pedaço de pedra.

Cruzamos a porta e os chapas do meu chapa quase quebraram as costas, querendo apreciar a diversão.

Nona? Pensei nela, mas apenas de maneira vaga, distante. Sabia que ela estaria lá. Nona cuidaria de mim. Sabia disso, tão bem como sabia que lá fora estava frio. Era estranho saber isso de uma garota conhecida apenas cinco minutos antes. É curioso, mas só mais tarde pensei nisso. Minha mente estava tomada — não, quase sobrecarregada — pela pesada nuvem de fúria. Eu me sentia homicida.

O frio estava tão cortante e sólido, que dava a impressão de cortar nossos corpos como faca. O cascalho gelado do pátio de estacionamento rangeu cruamente sob as pesadas botas do motorista e os meus sapatos. A lua, cheia e intumescida, espiava para nós com um olho insosso. Estava rodeada de anéis desbotados, sugerindo mau tempo a caminho.

O céu era negro como uma noite no inferno. Deixávamos pequenas sombras miniaturizadas atrás de nossos pés, ao brilho monocrômico de uma única lâmpada de sódio, no alto de um poste, além dos veículos estacionados. Nossa respiração pairava no ar como pluma, em alentos curtos. O motorista se virou para mim, comprimindo os punhos enluvados.

— Muito bem, seu filho da puta — disse ele.

Eu pareci inchar — todo o meu corpo parecia inchar. De algum modo, entorpecidamente, eu soube que meu intelecto ia ser eclipsado por algo invisível, que jamais suspeitara existir em mim. Era aterrorizante, porém ao mesmo tempo eu agradeci, desejei-o, ansiei por aquilo. Naquele último instante de pensamento coerente, parecia que meu corpo se tornara uma pirâmide de pedra ou um ciclone capaz de destruir tudo que tivesse pela frente, reduzindo a gravetos. O motorista parecia pequenino, reles, insignificante. Ri dele. Ri, e o som era tão negro e lúgubre como aquele céu manchado pela lua, acima de nós.

Ele investiu gingando os punhos, ainda rindo como um cão de fazendeiro latindo para a lua. Atingi-o três vezes, antes mesmo dele poder fazer um quarto de volta — no pescoço, no ombro, em uma orelha vermelha.

Ele emitiu um grito uivado e uma de suas mãos em movimento me roçou o nariz. A fúria que me tomara avolumou-se e tornei a chutá-lo, erguendo o pé alto e com força, como uma ponteira. Ele gritou dentro da noite e ouvi uma costela estalar. O homem se dobrou e saltei sobre ele.

No julgamento, um dos outros motoristas de caminhão testemunhou que eu parecia um animal selvagem. E era mesmo. Não posso recordar bem como foi, porém posso recordar que grunhia e rosnava para ele como um cão danado.

Montei nele, agarrei punhados duplos de seus cabelos gordurosos e comecei a esfregar-lhe o rosto no cascalho. À claridade monótona da luz de sódio, seu sangue parecia negro, como sangue de besouro.

— Jesus, pare com isso! — alguém gritou.

Mãos agarraram meus ombros e me puxaram. Vi rostos rodopiando e avancei para eles.

O motorista tentava fugir dali. Seu rosto era uma horrenda máscara de sangue, de onde seus olhos alucinados espiavam. Comecei a chutá-lo, afastando-me dos demais, rosnando de satisfação a cada vez que o atingia.

Ele não tinha mais condições de luta. Tudo quanto queria era ir embora. A cada vez que eu o chutava, seus olhos se espremiam, semicerrando-se, como os de uma tartaruga, e então ele parava. Depois, recomeçava a engatinhar. Parecia idiotizado. Decidi que ia matá-lo. Ia chutá-lo até tirar-lhe a vida. Depois mataria os outros — todos, exceto Nona.

Voltei a chutá-lo e ele rolou de costas, fitando-me com olhos esgazeados.

— Meu tio — grasnou. — Vou chamar meu tio. Por favor, por favor!

Ajoelhei-me ao seu lado, sentindo o cascalho morder-me os joelhos, através do tecido fino de meu jeans.

— Aqui está, simpático — cochichei. — Aqui está seu tio!

Engalfinhei as duas mãos em seu pescoço.

Três deles saltaram em cima de mim imediatamente e arrancaram-me daquela posição.

Levantei-me, ainda sorrindo, comecei a caminhar para eles. Os três recuaram, três homens grandalhões, todos verdes de medo.

Então, a coisa desligou.

Exatamente assim. Desligou e voltei a ser eu mesmo, parado no pátio de estacionamento do "A Boa Comida do Joe", respirando com dificuldade, sentindo-me nauseado e aterrorizado.

Virei-me e olhei para o bar. A garota estava lá; suas belas feições pareciam iluminadas pelo triunfo. Ela ergueu um punho fechado à altura do ombro, em saudação, como fez um daqueles caras negros nas Olimpíadas nessa época.

Virei-me agora para o homem no chão. Ele ainda tentava engatinhar para longe e, ao aproximar-me, seus olhos giraram temerosamente.

— Não toque nele! — gritou um de seus amigos.

Olhei para eles, confuso.

— Eu... sinto muito... não queria... machucá-lo tanto. Deixem-me ajudá-lo...

— O que você vai fazer é dar o fora daqui — disse o cozinheiro. Estava parado à frente de Nona, ao pé dos degraus, aferrando uma espátula gordurosa. — Vou chamar os tiras.

— Ei, cara, foi ele que começou. Ele...

— Não me venha com sua conversa fiada, seu bicha piolhento — disse ele, recuando até o alto dos degraus. — Só sei que você quase matou aquele sujeito. Vou chamar os tiras!

O cozinheiro precipitou-se para o interior.

— Tudo bem — falei, para ninguém em particular. — Tudo bem, tudo bem...

Havia deixado minhas luvas de couro cru lá dentro, mas não me pareceu uma boa idéia tornar a entrar para pegá-las. Enfiei as, mãos nos bolsos e comecei a caminhar de volta à estrada interestadual de acesso. Imaginei minhas chances de pegar uma carona, antes que os tiras me apanhassem. Uma em dez. Minhas orelhas congelavam e meu estômago doía. Que noite miserável!

— Espere! Ei, espere!

Virei-me. Era ela, correndo para alcançar-me, os cabelos voando às suas costas.

— Você foi maravilhoso! — exclamou. — Formidável.

— Eu o machuquei muito — falei, taciturnamente. — Nunca fiz nada assim antes.

— Pois eu gostaria que o tivesse matado!

Pestanejei para ela, à luminosidade gélida.

— Devia ter ouvido as coisas que diziam a meu respeito, antes de você chegar. Riam, daquela maneira aberta, debochada e suja — "Ha, ha, ha, vejam só a garotinha, fora de casa tanto tempo, já noite fechada. Para onde vai, meu bem? Quer uma carona? Eu lhe darei uma carona, se você me der outra. Porra!"

Ela olhou para trás sobre o ombro, como se pudesse liquidá-los com um súbito raio de seus olhos escuros. Depois me fitou e, novamente, era como uma lanterna, virada sobre minha mente.

— Meu nome é Nona. Vou com você.

— Para onde? Para a cadeia? — Passei as duas mãos nos cabelos. — Desta maneira, o primeiro sujeito que nos der uma carona bem pode ser um tira estadual. Aquele cozinheiro falava sério, quando avisou que ia chamar a polícia.

— Eu peço a carona. Você ficará atrás de mim. Quando me virem, eles vão parar. Sempre param para uma garota, se for bonita.

Não quis discutir com ela a respeito e nem podia. Amor à primeira vista? Talvez não.

Enfim, era alguma coisa. Dá para entender?

— Tome — disse ela. — você esqueceu lá dentro.

Eram as minhas luvas. Ela não tornara a entrar, de maneira que devia ter estado com as luvas o tempo todo. Sabia que viria comigo. Aquilo me deu uma sensação fantástica.

Calcei as luvas e caminhamos para a estrada de acesso, na rampa de pedágio.

Ela estava certa sobre a carona. Tomamos o primeiro carro que apareceu na rampa.

Não falamos mais nada enquanto esperávamos, porém foi como se falássemos. Não vou enchê-los com uma longa arenga sobre PES e coisas assim, porque devem saber do que estou falando. Qualquer um sentiria o mesmo, ao lado de alguém realmente íntimo ou tomando uma daquelas drogas que têm iniciais como nome. Não se precisa falar. A comunicação parece irradiar-se por alguma faixa emocional de alta freqüência. Um gesto de mão faz tudo. Éramos estranhos. Eu só a conhecia pelo primeiro nome, e agora que penso nisto, não creio que lhe tenha dito o meu. Contudo, estávamos sintonizados.

Não era amor. Odeio ficar repetindo isso, mas sinto que é preciso. Eu não macularia essa palavra com o que quer que havia entre nós — não depois do que fizemos, não depois de Castle Rock, não depois dos sonhos.

Um uivo agudo, ululante, encheu o frio silêncio da noite, subindo e descendo.

— Parece uma ambulância — falei.

— É, parece.

Silêncio novamente. O luar se dissolvia por trás de uma espessa membrana de nuvem.

Refleti que os anéis em torno da lua não haviam mentido; teríamos neve, antes que a noite terminasse.

Luzes surgiram acima da colina.

Fiquei atrás dela, sem que me fosse mandado. Ela jogou os cabelos para trás e ergueu aquele rosto maravilhoso. Enquanto espiava o carro sinalizar para a rampa de entrada, fui tomado por um senso de irrealidade — era irreal que essa linda jovem houvesse preferido vir comigo, era irreal que eu tivesse espancado um homem, a ponto de chamarem uma ambulância para ele, era irreal pensar que eu poderia estar na cadeia pela manhã. Irreal. Senti-me apanhado em uma teia de aranha. quem seria a aranha?

Nona espichou o polegar. O carro, um sedã Chevrolet, passou por nós e pensei que fosse seguir em frente. Então, faroletes traseiros piscaram e Nona me agarrou a mão.

— Vamos, conseguimos uma carona!

Ela sorriu para mim, com satisfação infantil, e eu lhe sorri de volta. O sujeito inclinava-se entusiasticamente sobre o assento para abrir-lhe a porta. Quando a luz se acendeu, pude vê-lo — um homem razoavelmente corpulento, vestindo um caro sobretudo de pêlo de camelo, os cabelos embranquecendo em torno das abas do chapéu, fisionomia próspera, amolecida por anos de boa comida. Um homem de negócios ou vendedor.

Sozinho. Quando me viu, esboçou uma reação de surpresa, porém tardia em um ou dos segundos, para que pudesse engrenar o carro e ir embora. Aliás, assim foi mais fácil para ele. Mais tarde, poderia vangloriar-se, acreditando que vira nós dois e que realmente era uma boa alma, dando uma carona a um casal.

— Noite fria — disse, quando Nona deslizou ao seu lado e eu me,sentei junto dela.

— Sem dúvida — disse ela, docemente. — Muito obrigada!

— Sim — falei. — Obrigado.

— Não foi nada.

Partimos, afastando-nos de sirenes, deixando para"trás motoristas logrados e A Boa Comida do Joe.

Eu tinha sido chutado para fora da interestadual às sete e meia. Então, eram apenas oito e meia. É espantoso o quanto se pode fazerem um breve período ou quanto podem fazer conosco.

Estávamos nos aproximando das pestanejantes luzes amarelas indicando o posto de pedágio de Augusta.

— Até onde vão? — perguntou o motorista.

Era uma pergunta difícil. Eu esperava chegar até Kittery e encontrar um conhecido, dono de uma escola local. Parecia uma resposta tão boa quanto qualquer outra e já abria minha boca para falar, quando Nona disse:

— Estamos indo para Castle Rock. É uma cidadezinha logo ao sul e a oeste de Lewinston-Auburn.

Castle Rock. Senti-me estranho ao ouvir o nome. Certa vez, tivera excelentes relações com Castle Rock, mas isso fora antes de Ace Merrill se meter comigo.

O sujeito parou o carro, pegou um ticket de pedágio e seguimos viagem novamente.

— Quando a mim, só vou até Gardiner — disse ele, recostando-se confortavelmente no assento. — Terei que tomar a saída número um. De qualquer modo, já é um começo para vocês.

— Claro — disse Nona, em voz tão doce quando antes. — Foi muita gentileza sua parar para nós em uma noite tão fria.

Enquanto ela falava, eu podia captar sua raiva, naquele comprimento de onda altamente emocional, uma raiva crua, cheia de veneno. Aquilo assustou-me, da maneira como me assustaria o tiquetaquear de um pacote embrulhado.

— Meu nome é Blanchette — disse ele. — Norman Blanchette.

Estendeu a mão para nós, cumprimentando.

— Cheryl Craig — disse Nona, apertando-lhe a mão delicadamente.

Aceitei sua deixa e forneci a ele um nome falso.

— Muito prazer — murmurei.

A mão dele era lisa e frouxa. Como um saco de água quente, no formato de mão. O pensamento nauseou-me. Repugnava-me saber que havíamos sido forçados a uma carona com aquele sujeito benevolente, que imaginava ter tido a chance de dar carona a uma moça sozinha, uma moça que podia ou não concordar em uma hora passada em algum quarto de motel, em troca de dinheiro suficiente para comprar uma passagem de ônibus. Repugnava-me saber que, se eu estivesse sozinho, o homem que acabara de oferecer-me sua mão frouxa e quente, seguiria em frente sem mim e sem vacilar.

Repugnava-me saber que ele nos desembarcaria na saída para Gardiner, faria o retorno e depois arremeteria novamente pela interestadual, passando por nós pela rampa que levava, ao sul, sem um olhar, congratulando-se pela facilidade com que resolvera uma situação incômoda. Tudo a respeito dele me repugnava. As dobras porcinas de sua papada, as ondas de cabelo alisadas para trás, o cheiro de sua colônia.

E que direito tinha ele? Que direito?

A repugnância azedou e as flores de raiva começaram a florescer novamente. Os faróis de seu potente sedã Impala varavam a noite com tranqüila facilidade, enquanto minha fúria queria estirar-se e estrangular tudo que dizia respeito a ele — o tipo de música que certamente ouvia, recostado em sua poltrona predileta, com o jornal da noite em suas mãos de bolsa de água quente, a rinsagem que sua mulher devia usar nos cabelos, a roupa de baixo que ela usava, os filhos sempre enviados aos cinemas, à escola ou acampamentos — enquanto o casal se ausentava em algum lugar — os amigos esnobes daquele sujeito e as reuniões de bebedeiras a que compareceria com eles.

Sua colônia, no entanto, era pior. Enchia o carro com o cheiro adocicado e nauseante.

Cheirava como o desinfetante perfumado que usam em um abatedouro, ao fim de cada turno.

O carro disparou através da noite, com Norman Blanchette segurando o volante em suas mãos intumescidas. As unhas manicuradas brilhavam suavemente às luzes do painel de instrumentos. Eu queria quebrar o vidro de uma janela e fugir daquele cheiro enjoativo.

Não, mais: eu queria arriar todo o vidro da janela, espichar a cabeça para o ar frio, espojar-me na frescura gelada — mas estava congelado, congelado nas mudas entranhas de meu ódio, silencioso e inexpressado.

Foi quando Nona colocou a lima de unhas em minha mão.

Aos três anos de idade, tive um caso de gripe e precisei ficar no hospital. Enquanto permaneci lá, meu pai adormeceu fumando na cama e a casa incendiou-se matando meus velhos e Drake, meu irmão mais velho. Tenho fotos deles. Parecem atores de um antigo filme de horror da American International, em 1958 rostos que vocês não conhecem como sendo os de grandes astros, mais como Elisha Cook, Jr. e Mara Corday, bem como de um ator infantil que não devem recordar bem — Brandon de Wilde, talvez.

Não tenho parentes que ficassem comigo, fui enviado para um orfanato em Porfand, onde fiquei cinco anos. Depois, tornei-me tutelado do estado. Isto significa que uma família toma conta da gente e o estado lhe paga trinta dólares mensais pela guarda. Não creio que haja algum tutelado do estado que tenha adquirido predileção por lagosta. Em geral, um casal aceita dois ou três tutelados — não porque o leite da bondade humana flui em suas veias, mas por ser isto um investimento comercial. Eles nos alimentam. Pegam os trinta pagos pelo estado e nos alimentam. Se uma criança é alimentada, pode pagar pela guarda fazendo tarefas variadas em casa. Isso transforma os trinta em quarenta, cinqüenta, talvez sessenta e cinco pratas. É o capitalismo, aplicado aos sem-lar. No maior país do mundo, certo?

Meus "velhos" chamavam-se Hollis e moravam em Harlow, do outro lado do rio de Castle Rock. A casa de fazenda em que viviam era de três andares e quatorze cômodos.

Havia uma lareira de carvão na cozinha, e o calor subia para os andares de cima da maneira como podia. Em janeiro, a gente ia para a cama com três edredons, mas ainda assim, sem certeza de que teria os pés no lugar, quando acordasse na manhã seguinte.

Era preciso colocá-los no chão, onde se podia olhar para eles e certificar-se. A Sra. Hollis era gorda. O Sr. Hollis era sovina e raramente falava. A casa era uma total confusão de mobiliário elefante branco, objetos comprados em liquidações, colchões mofados, cachorros, gatos e peças automotivas, encomendadas através dos jornais. Eu tinha três "irmãos", todos eles tutelados. Havia entre nós uma aceitação tácita, éramos como pessoas companheiras de uma viagem de ônibus durante três dias.

Eu tinha boas notas na escola e fui escalado para o beisebol de primavera, no segundo ano do ginásio. Hollis insistia comigo para largar aquilo, mas eu teimei, até acontecer a coisa com Ace Marrili. Então, desisti de continuar, não quis mais, não com o rosto todo inchado e cortado, não com as histórias que Betsy Malenfant andava espalhando.

Assim, saí do time e Hollis conseguiu-me um emprego para servir sodas na drugstore local.

Em fevereiro, no último ano letivo, enfrentei a Junta Examinadora, pagando com as doze pratas que tinha enfiado em meu colchão. Fui aceito na universidade, através de uma pequena bolsa-de-estudos e com um bom trabalho na biblioteca, para pagar os estudos.

A expressão no rosto dos Hollis, quando lhes mostrei os documentos de auxilio financeiro, é a melhor recordação de minha vida.

Curt, um de meus "irmãos", acabou fugindo. Eu não faria algo semelhante. Era passivo demais para tal passo. Estaria de volta depois de duas horas na estrada. A escola era o único meio para mim, de maneira que fui em frente.

A última coisa que a Sra. Hollis disse quando parti, foi, "Quando puder, mande-nos alguma coisa". Nunca mais tornei a vê-los. Tive boas notas em meu primeiro ano e, naquele verão, consegui um emprego de tempo integral na biblioteca. Enviei para eles um cartão de Natal naquele primeiro ano, porém foi o único.

No primeiro semestre de meu segundo ano, fiquei apaixonado. Era a coisa mais importante que já me acontecera. Bonita? Ela faria vocês recuarem dois passos. Até hoje, não imagino o que teria visto em mim. Aliás, nem sei bem se me amava ou não.

Creio que amou, a princípio. Depois disso, tornei-me apenas um hábito difícil de romper, como fumar ou dirigir com o cotovelo apoiado na janela do carro. Ela me prendeu por algum tempo, talvez não querendo quebrar o hábito. Possivelmente continuasse comigo por milagre ou então apenas por vaidade. Bom menino, role, sente-se, pegue o jornal. Tome um beijo de boa noite. Não importa. Porque foi amor durante algum tempo, depois foi com amor, então terminou.

Dormi com ela duas vezes, em ambas após outras coisas serem tomadas como amor.

Aquilo alimentou o hábito por um período. Então, ao voltar do feriado do Dia de Graças, ela anunciou estar apaixonada por um sujeito Delta Tau Delta, de sua cidade natal. Tentei reconquista-la e quase consegui, mas agora ela possuía algo que não tivera antes — perspectiva.

O que quer que eu estivera construindo por todos aqueles anos, desde que o incêndio aniquilara os atores de filme de segunda que haviam constituído minha família, esse episódio conseguiu derrubar. Isso e o alfinete do tal sujeito, pregado na blusa dela.

Em seguida, andei saindo com três ou quatro garotas que queriam dormir comigo. Eu podia responsabilizar minha infância, quero dizer, pelo fato de nunca haver tido bons modelos sexuais, porém não era esse o caso. Jamais tive problemas com uma garota. Só depois que elas me deixavam.

Comecei a sentir certo receio delas. Acontecia sempre, quer eu fosse ou não importante com elas. Acontece que garotas me deixavam inquieto. Ficava me perguntando onde elas teriam escondido os machados que gostavam de esgrimir e quando iriam usa-los contra mim. Não que eu seja peculiar nesse ponto. Mostrem-me um homem casado ou um homem com uma mulher fixa, e eu lhes mostrarei alguém que pergunta a si mesmo (talvez somente nas primeiras horas da madrugada ou na tarde de sexta-feira, quando ela sai para o supermercado), O que ela andará fazendo em minha ausência? 0 que ela pensa realmente de mim? E, talvez, acima de tudo, Quanto de mim ela capturou? Quanto restou? Quando eu começava a pensar estas coisas, ficava pensando nelas o tempo todo.

Comecei a beber e minhas notas mergulharam de cabeça. Durante a folga do semestre, recebi uma carta dizendo que, se as notas não melhorassem dentro de seis semanas, seria retido o meu cheque para a bolsa-de-estudos do segundo semestre. Eu e alguns sujeitos com quem andava, ficamos bêbados e assim permanecemos por todo o período daquelas férias. No último dia, fomos a um bordel e tive um desempenho excelente.

Estava escuro demais para distinguir rostos.

Minhas notas continuaram baixas. Telefonei para a garota mais uma vez e chorei ao telefone. Ela chorou também e, de certo modo, creio que isso a envaideceu. Eu não a odiava então e não a odeio agora. Contudo, ela me assustava. Assustava-me muito.

A 9 de fevereiro, recebi uma carta do deão de Artes e Ciências comunicando que eu ficara reprovado em duas ou três matérias de minha especialização. A 13 de fevereiro, recebi uma carta algo vacilante da garota. Ela queria que tudo estivesse certo entre nós.

Estava planejando casar com o sujeito da Delta Tau Delta em julho ou agosto e eu estava convidado, se quisesse. Chegava a ser divertido. O que dar a ela como presente de casamento? Meu coração, amarrado em uma fita vermelha? Minha cabeça? Meu pau?

No dia 14, Dia dos Namorados, decidi que era tempo para uma mudança de cenário.

Nona surgiu em seguida, mas isso vocês já sabem.

Precisam entender o que ela significava para mim, caso isso adiante alguma coisa. Ela era mais bonita do que a tal garota, porém não se tratava disso. Em um país rico, boa aparência é o que não falta. Era o seu interior. Ela era sexy, porém a sexualidade que emanava dela era como algo fixo — um sexo cego, uma espécie de sexo aderente, para não ser negado e não tão importante, já que se tratava de algo tão instintivo como a fotossíntese. Não um sexo animal, mas um sexo de planta. Dá para entender? Eu sabia que faríamos amor, que o faríamos como homens e mulheres o fazem, mas que nossa união seria tão vaga, tão remota e sem significado, como a hera abrindo seu caminho para o alto, em uma treliça, ao solde agosto.

O sexo só era importante, porque não era importante.

Eu creio — não, tenho certeza — de que a violência era a real força motriz. A violência era real, não apenas um sonho. Tão grande, tão rápida e dura, como o Ford 52 de Ace Merrill. A violência de A Boa Comida do Joe, a violência de Norman Blanchette.

Inclusive, havia algo de cego e vegetativo nisso. Talvez ela fosse apenas uma gavinha adesiva, afinal de contas, porque a Vênus papa-moscas é uma espécie de vinha, com a diferença de ser carnívora e de fazer movimentos animais, quando uma mosca ou um pedaço de carne crua é colocado em sua goela. E isto era absolutamente real. A vinha esporulada pode apenas sonhar que fornica, mas tenho certeza de que a Vênus papa-moscas saboreia aquela mosca, sente prazer na diminuição de esforços do inseto, quando suas presas se fecham em torno dele.

A última parte era minha passividade. Eu não conseguia tapar o buraco em minha vida. Não o deixado pela garota ao dizer adeus — não quero atribuir-lhe isto — mas aquele que sempre esteve lá, o escuro e confuso torvelinho que nunca cessava dentro de mim. Nona preencheu esse buraco. Fez com que me movesse e agisse.

Fez-me nobre.

Agora, vocês compreendem um pouquinho da situação. Por que eu sonho com ela. Por que permanece o fascínio, a despeito do remorso e da repulsa. Por que a odeio. Por que a temo. E por que, mesmo agora, eu ainda a amo.

Eram doze quilômetros, da rampa de Augusta até Gardiner, e nós os cobrimos em escassos minutos. Agarrei firmemente a lima de unhas a um lado do corpo e vi o sinal verde, iluminado por refletores — PARA A SAÍDA 14, MANTENHA A SUA DIREITA — piscando na noite. A lua se fora e a neve começara a cair.

— Eu gostaria de poder levá-los mais longe — disse Blanchette.

— Está tudo bem — respondeu Nona calorosamente, mas pude sentir sua fúria zumbindo e penetrando na carne sob meu crânio, como uma ferroada seca. Basta deixar-nos no alto da rampa.

Ele iniciou a subida, observando a velocidade de trinta milhas horárias, indicada para a rampa. Eu sabia o que ia fazer. Sentia as pernas transformadas em chumbo quente.

O alto da rampa era iluminado por uma luz no alto. À esquerda, eu podia divisar as luzes de Gardiner contra o céu de nuvens espessas. À direita, nada além do negrume.

Não havia trânsito algum, vindo de qualquer lado, ao longo da estrada de acesso.

Desci do carro. Nona deslizou pelo assento, oferecendo a Norman Blanchette um sorriso final. Eu não estava preocupado. Ela dirigia a peça.

Blanchette ofereceu um ofensivo sorriso porcino, aliviado por ficar livre de nós.

— Bem, boa noi...

— Oh, minha bolsa! Não vá embora com minha bolsa!

— Eu apanho — falei para ela.

Inclinei-me para o banco traseiro. Blanchette viu o que eu tinha na mão e o sorriso porcino de seu rosto congelou-se.

Agora, surgiram luzes na colina, porém era demasiado tarde para parar. Nada me interromperia mais. Peguei a bolsa de Nona com a mão esquerda. Com a direita, mergulhei a lima de aço para unhas na garganta de Blanchette. Ele baliu uma vez.

Saí do carro. Nona acenava para o veículo que se aproximava. Eu não conseguia ver o que estava no escuro e na neve; via apenas os dois círculos brilhantes de seus faróis.

Agachei-me atrás do carro de Blanchette, espiando pelos vidros traseiro

As vozes quase se perdiam, na garganta cheia do vento. Problema, dona? pai... vento... teve um ataque do coração. Poderiam...

Deslizei ao longo do porta-mala do Impala de Norman Blanchette, agachado. Podia vê-los agora. A silhueta esguia de Nona e uma forma mais alta. Pareciam parados ao lado de uma pickup. Virando-se, aproximaram-se da janela do motorista do Chevrolet. onde Norman Blanchette escorregara para cima do volante, com a lima de Nona em sua garganta. O motorista da pickup era um rapaz, vestindo o que parecia um blusão da Força Aérea. Inclinou-se para o interior. Eu apareci atrás dele.

— Céus, dona! — exclamou ele. — Há sangue neste sujeito! O que...

Enganchei meu cotovelo direito à volta de seu pescoço e agarrei o punho direito com a mão esquerda. Apertei com força. A cabeça do rapaz bateu no topo da porta e houve um roc! surdo. Ele caiu flácido em meus braços.

Eu ainda podia ter parado. Ele não vira Nona direito e nem chegara a dar por mim. Eu podia ter parado ali. Contudo, ele era um intrometido, alguém em nosso caminho, tentando prejudicar-nos. Eu estava cansado de ser prejudicado. Estrangulei-o.

Ao terminar, ergui os olhos e vi Nona focalizada pelas luzes conflitantes do sedã e da pickup, seu rosto um ricto grotesco de ódio, amor, triunfo e alegria. Ela estendeu os braços e fui para eles. Beijamo-nos. Sua boca era fria, mas a língua tinha calor.

Mergulhei as duas mãos nos vãos secretos de seus cabelos, enquanto o vento uivava à nossa volta.

— Agora, termine — disse ela. — Antes que apareça mais alguém.

Eu terminei. Era uma tarefa desleixada, mas eu sabia tudo quanto era preciso para nós.

Um pouco mais de tempo. Depois disso, não importava. Estaríamos salvos.

O corpo do rapaz era leve. Ergui-o nos braços, carreguei-o através da estrada e o atirei na ladeira. Seu corpo ricocheteou frouxamente por todo o trajeto até o fundo, rolando, cabeça acima dos calcanhares, como um boneco de trapos, o espantalho que o Sr. Hollis me fazia colocar na plantação de trigo, todos os julhos.

Voltei para apanhar o Sr. Blanchette.

Ele era mais pesado e sangrava como um porco ferido. Tentei coloca-lo ereto, cambaleei três passos para trás e ele escorregou de meus braços, caindo na estrada.

Virei-o para cima. A neve recente aderira ao seu rosto, transformando-o em uma máscara de esquiador.

Abaixei-me, agarrei-o por baixo dos braços e o arrastei para a sarjeta. Seus pés desenhavam sulcos atrás dele. Joguei-o pela borda da estrada e o vi deslizar pela rampa, de costas, os braços acima da cabeça. Os olhos estavam arregalados, fitando como que fascinados os flocos de neve que caíam neles. Se a neve continuasse caindo, ambos seriam apenas vagos monturos, na ocasião em que chegassem os limpa-neves.

Cruzei a estrada de volta. Nona já se acomodara na pickup, sem que ninguém precisasse dizer-lhe que veículo usaríamos. Pude ver a mancha pálida de seu rosto, os furos escuros dos olhos, mas foi tudo. Entrei no carro de Blanchette, sentei-me sobre os regatos de sangue que se tinham empoçado sobre o assento acolchoado de vinil, e o dirigi para o acostamento. Apaguei os faróis, liguei os quatro pisca-alertas e saí. Para quem passasse perto, pareceria que o motorista tivera problemas com o motor e então caminhara até a cidade, em busca de uma garagem. Fiquei muito satisfeito com minha improvisação. Era como se tivesse assassinado pessoas a vida inteira. Trotei de volta à pickup, que permanecia com o motor ligado, sentei-me ao volante e manobrei para a rampa de entrada do pedágio.

Ela se sentou ao meu lado, sem me tocar, mas bem perto. Quando se movia, às vezes eu sentia uma mecha de seus cabelos em meu pescoço. Era como ser tocado por um diminuto eletrodo. Em certo momento, tive que esticar a mão e pousá-la em sua perna, para certificar-me de que ela era real. Nona riu quietamente. Era tudo bem real. O vento ululava em torno das janelas, atirando neve em grandes e ríspidas rajadas.

Rodamos para o sul.

Logo depois da ponte de Harlow, quando se entra na 126 para Castle Heights, chega-se a uma enorme e renovada fazenda, que tem o hilariante nome de Liga dos Jovens de Castle Rock. Eles possuem doze pistas para boliche, com desengonçados levantadores automáticos de pinos, que em geral se limitam a funcionar nos três últimos dias da semana, algumas antigas máquinas de fliperama, uma vitrola automática com os maiores sucessos de 1957, três mesas Brunswick de bilhar e um balcão para a venda de Coca-e-batatas-fritas, onde também se alugavam sapatos para boliche, que pareciam recém-saídos dos pés de coveiros mortos. O nome do lugar é hilariante, porque a maioria dos jovens de Castle Rock preferia o cinema drive-in de Jay Hill à noite ou as corridas de carros envenenados em Oxford Plains. Os que apareciam por ali eram, em sua maior parte, os desordeiros de Gretna, Harlow e da própria Rock. A média era de uma briga por noite, no pátio de estacionamento.

Comecei a pintar por lá, quando entrei para o ginásio. Um de meus conhecidos, Bill Kennedy, tinha um emprego na Liga dos Jovens três noites por semana e, não havendo ninguém à espera de mesa para o bilhar, ele me deixava jogar de graça por algum tempo. Não era grande coisa, porém ficava melhor do que voltar à casa dos Hollis.

Foi onde conheci Ace Merril. Ninguém tinha dúvidas, quanto a ele ser o maior valentão de três cidades. Dirigia um Ford conversível S2, envenenado. Corria o boato de que, quando preciso, chegava aos 210 quilômetros. Merrill entrava lá como um rei, os cabelos reluzindo de brilhantina, repuxados para trás, com um perfeito topete no alto da testa, disputava alguns jogos em donble-hank, por um dime a bola (Era bom nisso? Nem duvidem), comprava uma Coca para Betsey quando ela chegava, e então iam embora.

Quase se podia ouvir um relutante suspiro de alívio dos presentes, assim que a castigada porta da frente se fechava asmaticamente. Ninguém jamais fora ao pátio de estacionamento com Ace Merrill.

Ninguém, isto é, exceto eu.

Betsey Malenfant era namorada dele, a garota mais bonita de Castle Rock, creio eu. Não acho que fosse das mais inteligentes, porém isso não importava, quando se olhava para ela. Tinha a pele mais imaculada que já vi e não era resultado de frascos de cosméticos. Os cabelos eram negros como carvão, os olhos escuros, a boca generosa, um corpo de dar água na boca — e ela não se importava de exibi-lo. Quem iria pensar em assediá-la ou tentar dirigir sua locomotiva, com Ace por perto? Ninguém em seu juízo perfeito, eis a verdade.

Gamei por ela. Não da maneira como aconteceu com a outra garota, não da maneira como aconteceu com Nona, embora Betsey parecesse uma versão mais nova dela, porém com o mesmo desespero, a mesma seriedade. Se vocês já sofreram o pior caso de amor juvenil, sabem como me sentia. Ela estava com dezessete anos, dois a mais do que eu.

Comecei a aparecer por lá cada vez com mais freqüência, inclusive nas noites em que Billy não trabalhava, apenas para vê-la de relance. Eu me sentia como um observador de pássaros, exceto que aquele era um tipo de tarefa alucinada para mim. Voltava para casa, mentia aos Hollis sobre aonde andara e subia para meu quarto. Escrevia longas e apaixonadas cartas para ela, contando-lhe tudo que gostaria de fazer com ela, depois as rasgava. Nas salas de estudo do colégio, sonhava em pedi-ia para casar comigo, de modo que depois fugiríamos juntos para o México.

Betsy devia ter percebido o que acontecia e isso certamente a lisonjeou um pouco, porque era gentil comigo, quando Ace não andava por perto. Aproximava-se e conversava, deixava que eu lhe comprasse uma Coca, sentava-se em uma banqueta e, disfarçadamente, esfregava a perna na minha. Aquilo me enlouquecia.

Certa noite, em começos de novembro, eu perambulava por lá, jogando um pouco de bilhar com Bill, enquanto esperava a chegada de Betsey. O lugar estava deserto, pois não eram nem oito da noite ainda. Um vento solitário gemia lá fora, ameaçando o inverno.

— É melhor você cair fora — disse Billy, atirando a nove direta na caçapa.

— Cair fora, como?

— Você sabe.

— Não, eu não sei.

Errei uma tacada e Billy acrescentou uma bola à mesa. Acertou a seis e, enquanto jogava, fui colocar uma moeda na vitrola automática.

— Betsy Malefant. — Ele alinhou a bola cuidadosamente e a enviou contra a borda. — Charlie Hogan andou contando a Ace a maneira como você fica peruando a garota.

Charlie achou muito engraçado, isso dela ser mais velha e tudo, porém Ace não achou graça nenhuma.

— Ela não significa nada para mim — falei, num fio de voz.

— É bom que não signifique mesmo.

Mal ele terminou de falar, chegaram dois sujeitos e então ele foi até o balcão, entregar-lhes um taco de bilhar.

Ace apareceu por volta das nove e estava sozinho. Nunca me dera a mínima antes e eu até já esquecera o comentário de Billy. Quando somos invisíveis, achamos que somos também invulneráveis. Eu jogava fliperama e estava absolutamente concentrado naquilo. Nem mesmo percebi que o lugar ficava silencioso, enquanto todos paravam de jogar boliche ou bilhar. A coisa seguinte que soube, foi que alguém me jogara em cima do fliperama. Aterrei no chão, amontoado. Levantei-me. amedrontado e nauseado. Ele tinha inclinado a máquina, apagando meus três replays. Estava lá em pé, olhando para mim. e não havia um fio de cabelo fora do lugar, com o zíper puxado a meio em seu blusão militar.

— Senão parar de se meter a besta — disse maciamente — vou modificar sua cara.

Ele foi embora. Todos olhavam para mim e eu queria afundar bem ali, no chão à minha frente, até ver que havia uma espécie de relutante admiração na maioria dos rostos.

Então, sacudi a roupa com ar despreocupado e enfiei outra moeda no fliperama. A luz INCLINADO apagou-se. Dois sujeitos aproximaram-se e bateram em minhas costas antes de irem embora, sem dizerem nada.

Às onze, quando o lugar fechou, Billy ofereceu-me uma carona até em casa.

— Se não tomar cuidado, você vai acabar mal.

— Não se preocupe comigo — respondi.

Ele nada disse.

Duas ou três noites mais tarde, Betsey apareceu, por volta das sete da noite. Havia outro cara lá, um sujeitinho esquisito de óculos, chamado Vern Tessio, que largara a escola uns dois anos antes. Mal o percebi. Ele era ainda mais invisível do que eu.

Ela foi diretamente para onde eu jogava, chegou tão perto, que pude sentir o cheiro limpo de sabonete em sua pele. Aquilo me tonteou.

— Ouvi sobre o que Ace fez com você — disse ela. — Sei que não devo falar mais com você e não falarei, mas tenho algo que melhorará a situação.

Ela me beijou. Depois afastou-se, antes mesmo que eu pudesse baixar a língua do céu da boca. Voltei ao meu jogo, ainda atordoado. Nem mesmo via quando Tessio saiu, para espalhar a novidade. Aliás, eu não via mais nada, além dos olhos escuros, muito escuros de Betsey.

Assim, mais tarde nessa noite, terminei no pátio de estacionamento com Ace Merrill.

Ele me surrou com vontade. Era uma noite fria, terrivelmente fria, e por fim comecei a soluçar, pouco ligando para quem estivesse vendo ou ouvindo isto é, todos. A única lâmpada de sódio jogava impiedosamente sua claridade para baixo. Nem mesmo consegui acertar um soco nele.

— Muito bem — disse ele, agachando-se perto de mim. O ritmo de sua respiração nem se alterara. Tirou um canivete de molas do bolso e apertou o botão cromado. Dezoito centímetros de reluzente lâmina prateada saltaram para o mundo. — É isto o que vai ganhar da próxima vez. Vou esculpir meu nome no seu saco.

Ele se levantou, deu-me um último pontapé e foi embora. Fiquei no mesmo lugar por uns dez minutos, tremendo sobre a terra batida do piso. Ninguém veio ajudar-me ou bater-me nas costas, nem mesmo Billy. Betsy não apareceu, para melhorar a situação.

Finalmente, encontrei forças para levantar-me e fui de carona até em casa. Contei à Sra. Hollis que pegara carona com um bêbado e ele jogara o carro fora da estrada. Nunca mais voltei ao boliche.

Fiquei sabendo que Ace rompera com Betsy, não muito depois disso. A partir de então, ela foi descendo a colina, em rapidez cada vez mais acentuada — como um caminhão de carga sem freios. Durante o trajeto, ela acabou tendo um caso de doença venérea. Billy me contou que a vira certa noite no Manoir, em Lewinston, assediando sujeitos para lhe pagarem uma bebida. Havia perdido a maioria dos dentes e tivera o nariz quebrado em algum ponto ao longo da caminhada, segundo ele. Acrescentou que eu nem a reconheceria. Aquela altura, no entanto, aquilo pouco me importava.

A pickup não tinha pneus para neve, de modo que antes de chegarmos à saída para Lewinston, eu começara a dançar sobre a recente camada de neve pulverizada. Levamos mais de quarenta e cinco minutos para cobrir os trinta e cinco quilômetros.

O homem na saída de Lewinston ficou com meu cartão de pedágio e meus sessenta centavos.

— Viagem escorregadia?

Nenhum de nós respondeu. Estávamos agora chegando perto de nosso destino. Se eu não houvesse sentido aquela curiosa espécie de contato sem palavras com ela, seria capaz de dizê-lo, apenas pela forma como Nona se sentava no banco empoeirado da pickup, as mãos apertadamente dobradas em cima da bolsa, os olhos fixos diretamente na estrada, com feroz intensidade. Um estremecimento sacudiu meu corpo.

Tomamos a estrada 136. Não havia muitos carros à vista. O vento era refrescante e a neve estava ficando mais dura do que nunca. No outro lado de Harlow Village, passamos por um enorme Buick "Riviera", que havia patinado na neve e trepado na calçada. Seus pisca-alerta estavam ligados e tive uma fantasmagórica e dupla imagem do Impala de Norman Blanchette. Agora devia estar coberto de neve, nada mais que um monte espectral na escuridão.

O motorista do Buick tentou fazer-me parar, mas passei por ele sem diminuir a velocidade, atirando-lhe neve pulverizada. Meus limpadores de pára-brisa estavam emperrados pela neve e, espichando o braço, consegui libertar o do meu lado. Parte da neve se soltou e pude enxergar um pouco melhor.

Harlow era uma cidade fantasma, com tudo escuro e fechado. Assinalei minha direita. a fim de entrar na ponte para Castle Rock. As rodas traseiras queriam ir para outro lado, porém consegui firmar a direção. À frente e do outro lado do rio, era possível divisar a sombra escura, formada pelo prédio da Liga dos Jovens de Castle Rock. Estava fechado e solitário. Senti uma pena súbita, pena por ter havido tanta dor. E morte. Foi quando Nona falou pela primeira vez, desde a saída de Gardiner.

— Há um policial atrás de você.

— Ele está...?

— Não. O pisca-pisca está desligado.

Contudo, aquilo me deixou nervoso e o que aconteceu talvez tenha sido por isso. A Estrada 136 faz uma curva de noventa graus no lado do rio que dá para Harlow e depois segue reta até a ponte para Castle Rock. Fiz a primeira curva, porém havia gelo no lado de Rock.

— Merda... !

A traseira da pickup dançou e, antes que eu pudesse controlar a direção, ela já batera em um dos maciços pilares de aço da ponte. Continuamos deslizando em ziguezague e a coisa seguinte que vi foram os brilhantes faróis do carro policial atrás de nós. Ele freou — pude ver os reflexos vermelhos na neve que caía — mas o gelo o apanhou também. Veio direto sobre nós. Houve uma batida metálica e violenta, quando tornamos a colidir com os pilares de suporte. Fui atirado ao colo de Nona e, mesmo naquela rápida fração de segundo, houve tempo para sentir a uniforme firmeza de sua coxa. Então, tudo cessou.

Agora, o tira havia ligado o pisca-pisca. Ele enviava giratórias sombras azuis, que passavam sobre o capô da pickup e iluminavam as vigas cruzadas de aço da ponte Harlow-Castle Rock, cobertas de neve. Quando o tira saiu do carro, a luz do teto acendeu-se.

Se ele não estivesse atrás de nós, nada teria acontecido. Esse pensamento vai e vem em minha mente, como a agulha de um disco, presa em um sulco defeituoso. Eu exibia um sorriso tenso e gélido no escuro, quando apalpei o piso da boléia da pickup, em busca de algo com que atingi-lo.

Havia uma caixa de ferramentas aberta. Peguei uma chave de soquete e a deixei no banco, entre Nona e eu. O tira inclinou-se na janela, seu rosto modificando-se como o de um demônio, à luz de seu pisca-pisca.

— Não acha que está viajando um pouco depressa para as condições do tempo?

— E você não estava me seguindo perto demais, para as condições do tempo?

Ele devia ter enrubescido. Era difícil saber, àquela luz tremulante.

— Está me desacatando, filho?

— Estou, se você pretende responsabilizar-me pelo amassado em seu carro.

— Mostre-me sua licença de motorista e seu registro.

Peguei minha carteira e entreguei-lhe minha licença.

— O registro?

— O carro é de meu irmão. O registro está em sua carteira.

— É mesmo? — Ele me fitou duramente, tentando fazer-me baixar os olhos. Quando viu que isso demoraria um pouco, fixou-se em Nona. Eu podia ter-lhe arrancado os olhos, pelo que vi neles. — Como se chama?

— Cheryl Craig, senhor.

— O que está fazendo, viajando na pickup do irmão dele, em meio a uma tempestade de neve, Cheryl?

— Estamos indo visitar meu tio.

— Em Rock?

— Exatamente.

— Não conheço nenhum Craig em Castle Rock.

— Seu sobrenome é Emonds. Em Bowen Hill.

— É mesmo? — O tira caminhou até a traseira da pickup, a fim de verificar a chapa de matrícula. Abri a porta e inclinei-me para fora. Ele anotava o número. Voltou enquanto eu ainda me inclinava, focalizado ao clarão de seus faróis, da cintura para cima. — Eu vou... O que houve com você, rapaz?

Não precisei olhar para baixo, a fim de saber o que houvera comigo. Eu costumava pensar que inclinar-me para fora daquele jeito era apenas alheamento, mas ao registrar tudo isto, mudei de idéia. Não creio que fosse nenhum alheamento. Eu queria que ele visse o meu estado. Firmei os dedos em torno da chave de soquete.

— O que quer dizer?

Ele aproximou-se dois passos.

— Você está ferido — parece que se cortou. É melhor...

Saltei para ele. Seu chapéu havia caído com o choque do carro e o tira estava de cabeça descoberta. Atingi-o para matar, logo acima da testa. Nunca esquecerei aquele som, como o de meio quilo de manteiga, caindo em um chão duro.

— Depressa — disse Nona.

Pousou uma mão tranqüila em meu pescoço. Estava muito frio, como o ar em um porão subterrâneo. Minha mãe adotiva tinha um porão subterrâneo.

É curioso que me lembre disso. Ela me mandava ir lá embaixo, apanhar verduras no inverno. Ela mesma as enlatava. Não em latas de verdade, claro, mas em grossos potes Mason, com aqueles vedadores de borracha sob a tampa.

Desci lá um dia, para pegar um pote de feijão-manteiga que ela serviria no jantar. As conservas estavam todas em caixas, claramente marcadas pela mão da Sra. Hollis.

Recordo que ela sempre escrevia framboesa errado, algo que me enchia de secreta superioridade.

Naquele dia, passei pelas caixas marcadas "frambeza" e cheguei ao canto onde ela guardava os feijões. Estava frio e escuro. As paredes eram de terra, lisa e escura. No tempo das chuvas, segregavam umidade, em regatos gotejantes e tortuosos. O cheiro era um secreto e obscuro eflúvio, composto de coisas vivas, terra e vegetais estocados, um cheiro extraordinariamente semelhante ao das partes privadas de uma mulher. Em um canto havia uma velha impressora quebrada, que eu sempre vira ali, desde a minha chegada. Às vezes, eu costumava brincar com ela, fingir que poderia pô-la funcionando novamente. Eu adorava aquele porão subterrâneo. Naquela época — eu teria nove ou dez anos — o porão era meu local favorito. A Sra. Hollis recusava-se a pôr os pés lá embaixo, e era contra a dignidade de seu marido descer para apanhar verduras. Assim, quem ia era eu, e cheirava aquele peculiar odor secreto de terra, apreciava a privacidade de seu confinamento uterino. 0 porão tinha a claridade de uma lâmpada coberta de teias de aranha, posta lá pelo Sr. Hollis, provavelmente antes da Guerra dos Boers. Às vezes, movimentando as mãos, eu fazia enormes coelhos alongados na parede.

Apanhei o pote de feijão e já ia voltar, quando ouvi um movimento rogaçante debaixo de uma das caixas velhas. Fui até ela e a levantei.

Havia uma rata castanha debaixo dela, deitada de lado. Ela girou a cabeça para cima e me olhou. Seu lados estavam violentamente inchados e ela me arreganhou os dentes.

Era a maior ratazana que eu já vira e inclinei-me um pouco mais para ela. Estava no ato de parir. Dois filhotes, pelados e cegos, já mamavam em seu ventre. Outro estava a meio caminho para o mundo.

A mãe me fitou, impotente, mas pronta para morder. Eu queria matá-la, matar todos eles, esmagá-los, mas não pude. Era a coisa mais horrível que já vira. Enquanto espiava, uma pequena aranha marrom — acho que uma perna-longa — rastejou rapidamente pelo chão. A ratazana agarrou-a e a comeu.

Fugi dali correndo. Em meio da escada, caí e quebrei o pote de feijão. A Sra. Hollis me bateu por isso e nunca mais voltei ao porão, a menos que houvesse absoluta necessidade.

Eu olhava para o tira caído, enquanto recordava.

— Depressa — repetiu Nona.

Ele era muito mais leve do que Norman Blanchette ou, talvez, a minha adrenalina é que fluía mais livremente. Levantei-o nos braços e fui com ele até a borda da ponte. Mal percebia as cascatas, corrente abaixo, e corrente acima, o viaduto de ferrovia GS & WM era apenas uma sombra curiosa, como um cadafalso. O vento da noite fustigava e gemia, a neve me batia no rosto. Por um momento, mantive o tira contra meu tórax, como um recém-nascido adormecido, depois recordei quem realmente ele era e o joguei por sobre a borda, para a escuridão mais abaixo.

Voltamos à pickup e entramos, mas o motor não pegava. Insisti, até sentir o cheiro adocidado da gasolina, vindo do carburador inundado. Então, parei.

— Vamos — falei.

Fomos para o carro-patrulha. O banco dianteiro estava entulhado de etiquetas de violação, formulários, duas pranchetas. O rádio de ondas-curtas, abaixo do painel, estalava e crepitava.

— Unidade Quatro, responda. Quatro, está ouvindo?

Estirei o braço e o desliguei, batendo em algo com os nós dos dedos, enquanto procurava ó botão certo. Era uma espingarda de caça, pump action. Provavelmente, uma arma de uso particular do tira. Tirei-a dali e a passei para Nona. Ela colocou a espingarda no colo. Fiz o carro-patrulha dar marcha à ré. Estava amassado, mas sem estragos maiores. Dispunha de pneus para neve, que mordiam o solo maravilhosamente, tão logo começamos a rodar sobre o gelo que causara o estrago.

Logo depois estávamos em Castle Rock. As casas tinham desaparecido, exceto por um ocasional e castigado trailer, recuado da estrada. Esta ainda não fora limpa, não havendo outras marcas no solo além das que deixávamos para trás. Pinheiros monolíticos, pesados de neve, alteavam-se à nossa volta, fazendo com que me sentisse pequeno e insignificante, apenas mais um diminuto bocado que a garganta daquela noite tragava. Agora já passava das dez horas.

Não tive grande participação na vida social estudantil durante meu primeiro ano de universidade. Estudei com afinco e trabalhei na biblioteca, pondo livros nas prateleiras, reparando encadernações e aprendendo a cataloga-los. Na primavera houve o beisebol dos calouros.

Quando o ano acadêmico estava para terminar, logo antes das finais, houve um baile no ginásio. Eu estava sem compromissos, estudei para as duas provas iniciais e desci.

Tinha o dinheiro da entrada, por isso, entrei.

O ambiente estava escuro, apinhado, suado e frenético como só pode estar uma atividade social universitária, antes das provas finais. Havia sexo no ar. Não se precisava cheira-lo; quase se podia apanha-lo nas mãos, como uma peça grossa de roupa molhada. Sabia-se que havia amor a ser feito mais tarde — ou o que passa por amor. As pessoas iriam fazê-lo sob as arquibancadas, nas instalações de maquinaria para vapor do pátio de estacionamento, nos apartamentos e quartos dos dormitórios. Ia ser feito por rapazes/homens desesperados, com o recrutamento militar em seus calcanhares e por lindas estudantes que encerrariam os estudos aquele ano, iriam para casa e iniciariam uma família. Seria feito com lágrimas e risos, bebedeira e lucidez, formalmente e sem inibição alguma. Contudo, a maioria ia ser feita rapidamente.

Havia alguns rapazes desacompanhados, mas não muitos. Aquela era uma noite em que não se precisaria ir a qualquer lugar desacompanhado. Vagueei até o tablado do conjunto musical. Quando cheguei mais perto do som, o ritmo, a música, tornaram-se uma coisa palpável. O conjunto tinha às costas um grupo de amplificadores de metro e meio, em forma de semicírculo, de maneira que se podia sentir os tímpanos indo e vindo, no compasso do contrabaixo.

Recostei-me a uma parede e observei. Os dançarinos movimentavam-se em padrões prescritos (como se fossem trios, em vez de casais, com a terceira pessoa invisível entre eles, empurrada pela frente e por trás), os pés se movendo sobre o pó de serra que fora espalhado sobre o piso encerado. Não vi nenhum conhecido e comecei a sentir-se solitário, mas sem que isso me entristecesse. Encontrava-me naquela fase da noite quando fantasiamos que todos olham para nós pelo canto dos olhos, apreciando o romântico estranho.

Meia hora mais tarde, saí e fui beber uma Coca no saguão. Quando voltei, alguém iniciara uma dança em círculo e me puxaram para lá, meus braços nos ombros de duas garotas que nunca vira antes. Giramos e giramos. Havia talvez umas duzentas pessoas no círculo, o qual cobria metade do piso do ginásio. Então, parte dele se rompeu e vinte ou trinta pessoas formaram outro círculo dentro do primeiro, mas girando em sentido contrário. Aquilo me tonteou. Vi uma moça parecida com Betsy Malenfant, mas sabia que era fantasia minha. Quando tornei a procura-la, não a vi mais, nem ninguém que se parecesse com ela.

Finalmente interromperam os círculos, mas eu me sentia fraco e nada bem.

Caminhei até as arquibancadas e sentei-me. A música era muito alta, o ar demasiado oleoso. Minha mente ficava arfando e bocejando. Eu podia ouvir o coração bater em minha cabeça da maneira que sentimos depois da maior carraspana de nossa vida.

Eu costumava pensar que o ocorrido em seguida, aconteceu por eu estar cansado e algo nauseado de tanto girar e girar mas, como disse antes, ao escrever tudo isto, as coisas entraram em um foco mais nítido. Não acredito mais naquilo.

Tornei a olhar para eles, para todas aquelas pessoas, belas e apressadas, na semiescuridão.

Tive a impressão de que todos os homens pareciam aterrorizados, com os rostos alongados para grotescas máscaras em câmara lenta. Era compreensível. As mulheres — estudantes de escola mista, em suas suéteres, saias curtas, calças boca-de-sino — estavam transformando-se em ratos. A princípio, isso não me amedrontou. Até dei risadinhas. Sabia que estava vendo alguma espécie de alucinação e, por alguns momentos, pude apreciar o quadro de maneira quase clínica.

Então, uma garota ficou na ponta dos pés para beijar o parceiro e isso foi demais. Rosto peludo e contorcido, com olhos que eram bolas negras erguendo-se para o alto, boca revelando dentes...

Fui embora dali.

Fiquei um momento no saguão, um tanto vacilante. Havia um baile no fim do corredor, mas segui por ele e subi a escada.

O vestiário ficava no terceiro andar e precisei subir correndo o último lance de escadas.

Empurrei a porta e corri para uma das cabines de banho. Vomitei entre o cheiro mesclado de linimento, uniformes suados, couro engraxado. A música lá de baixo chegava distante, o silêncio aliem cima era virginal. Senti-me confortado.

Tivemos que pararem um sinal da Curva Sudoeste. A recordação do baile me deixara excitado, por algum motivo que não entendia. Comecei a tremer.

Ela olha, para mim, sorrindo com as pupilas escuras.

— Vamos?

Não pude responder-lhe. Estava tremendo demais para falar. Ela assentiu lentamente, em meu lugar.

Manobrei para um ramal da Estrada 7, que devia ter sido uma estrada de troncos, na época do verão. Não fui muito depressa, receando ficar atolado. Desliguei os faróis, e flocos de neve começaram a amontoar-se silenciosamente no pára-brisa.

— Você ama? — perguntou ela, quase gentilmente.

Certos sons continuavam escapando de mim, eram-me extraídos. Penso que seriam uma íntima contra parte oral dos pensamentos de um coelho, apanhado em uma armadilha.

— Aqui — disse ela. — Bem aqui.

Foi o êxtase.

Quase não conseguimos retornar à estrada principal. O limpa-neves havia passado, luzes alaranjadas piscando e cintilando na noite, atirando uma enorme muralha de neve em nosso caminho.

Havia uma pá no porta-mala do carro-patrulha. Precisei de meia hora para abrir passagem e, a essa altura, era quase meia-noite.

Ela ligou o rádio da polícia enquanto eu me atirava à tarefa de limpar a neve, e ele nos contou o que precisávamos saber. Os corpos de Blanchette e do rapaz da pickup tinham sido encontrados. Eles suspeitavam de que nos tínhamos apossado do carro-patrulha. O nome do tira tinha sido Essegian, um nome que achei engraçado. Houve um jogador de primeira divisão chamado Essegian — creio que ele jogava para os Dodgers. Talvez eu tivesse matado um parente seu. Não me incomodei em saber o nome do tira. Ele estivera nos perseguindo perto demais, havia cruzado o nosso caminho.

Dirigimos de volta à estrada principal.

Eu podia sentir o excitamento de Nona, vivo, quente, ardendo. Parei o tempo suficiente para limpar o pára-brisa com o braço e recomeçamos a rodar.

Seguimos pelo lado oeste de Castle Rock e, sem precisar que me dissessem, eu sabia onde virar. Um indicador incrustado de neve dizia que era a Estrada Stackpole.

O limpa-neves não estivera ali, mas um veículo passara antes de nós. Os sulcos de seus pneus ainda estavam recentes, no chão atapetado pela neve que caía.

Um quilômetro e meio, depois menos do que isso. A viva ansiedade de Nona, sua necessidade, acabaram contagiando-me e comecei a ficar novamente apreensivo.

Dobramos uma curva e lá estava o caminhão de força elétrica, com sua carroceria laranja-vivo e pisca-alertas de aviso, pulsando na cor do sangue. Estava bloqueando a estrada.

Não podem imaginar a raiva dela-em realidade, a nossa raiva-porque agora, depois de tudo quanto ocorrera, nós dois éramos um. Não podem avaliar a devastadora sensação de intensa paranóia, a convicção de que todas as mãos agora se voltavam contra nós.

Eram dois homens. Um era uma sombra encurvada na escuridão à frente. O outro segurava uma lanterna. Caminhou para nós, sua luz bamboleando como um olho sinistro. E havia mais do que raiva. Havia medo — medo de que tudo desse errado para nós, no último momento.

O homem gritava, e então baixei o vidro de minha janela.

— Não pode passar por aqui! Dê a volta pela Estrada Bower! Houve uma queda de fio de alta tensão aqui! Não pode...

Saí do carro, ergui a espingarda e enviei-lhe dois balaços. Ele foi atirado contra o caminhão alaranjado e eu cambaleei para trás, contra o carro-patrulha. O homem escorregou, poucos centímetros de cada vez, os olhos fixos em mim incredulamente, depois caiu sobre a neve.

— Há mais cartuchos? — perguntei a Nona.

— Há.

Ela me deu os cartuchos. Dobrei a espingarda, ejetei os cartuchos gastos e coloquei novos.

O companheiro do sujeito se levantara e estava olhando o ocorrido, sem acreditar no que via. Gritou para mim algo que se perdeu no vento. Parecia uma pergunta, mas não fazia diferença. Eu ia matá-lo. Caminhei para ele e o homem apenas ficou lá parado, olhando para mim. Não se moveu, nem quando ergui a espingarda. Acho que não imaginava o que ia acontecer. Talvez julgasse tudo aquilo um sonho.

Enviei um balaço, mas baixo demais. Um grande jato de neve explodiu para o alto, cobrindo-o. Então, ele deu um berro aterrorizado e correu, dando um salto gigantesco sobre o cabo de força caído na estrada. Atirei novamente e tornei a perder o tiro. A seguir, o homem desapareceu na escuridão e agora eu podia esquecê-lo. Não estava mais em nosso caminho. Retornei ao carro-patrulha.

— Vamos ter que caminhar — falei.

Passamos ao lado do corpo caído, saltamos sobre o crepitante cabo elétrico e seguimos pela estrada, acompanhando as passadas largamente espaçadas do homem que fugira.

Alguns montes de neve quase chegavam aos joelhos de Nona, porém ela permanecia sempre um pouco à minha frente. Ambos estávamos ofegando.

Subimos uma colina e descemos para um estreito buraco. De um lado, havia um inclinado galpão abandonado, com janelas sem vidraças. Ela parou e agarrou meu braço.

— Lá — disse, apontando para o lado oposto. Sua pressão era forte e doía, mesmo através de meu casaco. Havia um ricto de intensa vitória em seu rosto. Lá! Lá!

Era um cemitério.

Escorregamos e tropeçamos na subida da barragem, depois escalamos dificilmente um muro de pedra coberto de neve. Eu também já estivera ali, claro. Minha mãe verdadeira era de Castle Rock e, embora ela e meu pai nunca tivessem morado lá, aqui estava o seu pedaço de chão. Havia sido um presente para minha mãe, dado por seus pais, que tinham vivido e morrido em Castle Rock. Durante minha paixonite por Betsy, eu tinha vindo ali freqüentemente para ler os poemas de John Keats e Percy Shelley.

Talvez vocês achem que era uma coisa idiota a fazer, algo próprio de um calouro universitário, mas eu penso o contrário. Ainda agora, penso assim. Eu me sentia perto deles, consolado. Depois que Ace Merrill me surrou, nunca mais voltei ao cemitério.

Até Nona me levar lá.

Escorreguei e caí na neve solta e pulverizada, torcendo o tornozelo. Levantei-me e continuei caminhando, agora usando a espingarda como muleta. O silêncio era infinito, inacreditável. A neve caía em linhas retas e macias, amontoando-se sobre as lousas eretas e as cruzes, sepultando tudo, exceto as pontas dos corroídos mastros de bandeira, que só sustinham bandeiras no Dia de Finados e Dia dos Veteranos. O silêncio era sacrílego em sua imensidão e, pela primeira vez, senti terror.

Ela me guiou para uma construção de pedra, assentada na subida da colina, aos fundos do cemitério. Um mausoléu. Um sepulcro embranquecido pela neve. Nona tinha uma chave. Eu sabia que ela teria uma chave — e tinha mesmo.

Ela soprou a neve do rebordo da porta e encontrou a fechadura. O som de gonzos girando parecia arranhar, através da escuridão. Ela empurrou a porta, que se abriu para o interior.

O odor que escapou até nós era tão frio como o outono, tão frio como o ar no porão subterrâneo dos Hollis. Só consegui vislumbrar um pequeno trecho. Havia folhas mortas no chão de pedra. Ela entrou, parou e olhou para mim por sobre o ombro.

— Não — falei.

— Você ama? — ela perguntou e riu de mim.

Fiquei parado na escuridão, sentindo que tudo começava a caminhar junto, passado, presente, futuro. Eu queria correr dali, correr gritando, correr depressa o bastante, para desfazer tudo o que havia feito.

Nona ficou lá, olhando para mim, a mais linda garota do mundo, a única coisa que já havia sido minha. Fez um gesto com as mãos sobre o corpo. Não lhes direi como era.

Vocês saberiam, se também o vissem.

Entrei. Ela fechou a porta.

Estava escuro, mas eu podia ver perfeitamente. O lugar era iluminado por um fogo verde, que corria lentamente. Ele percorria as paredes e serpenteava em línguas, através do chão forrado de folhas. Havia um esquife no centro do mausoléu, porém estava vazio. Pétalas murchas de rosas espalhavam-se sobre ele, como uma antiga oferenda nupcial. Nona acenou para mim, depois apontou a pequena porta nos fundos. Uma portinhola sem marcas. Tive medo dela. Penso que, então, já sabia. Ela me usara e rira de mim. Agora, ia destruir-me.

Ainda assim, não pude parar. Fui até aquela porta, porque tinha de ir. O telégrafo mental ainda funcionava em júbilo — um terrível e insano júbilo — e triunfo. Minha mão tremeu, quando a estendi para a porta. Ela estava coberta de fogo verde.

Abri a porta e vi o que estava lá.

Era a garota, a minha garota. Morta. Seus olhos espiavam vazios, dentro daquele mausoléu de outubro, fitavam os meus. Ela cheirava a beijos roubados. Estava nua e tinha sido estripada da garganta às virilhas, seu corpo inteiro transformado em um útero.

E havia algo vivendo nele. Os ratos. Eu não podia vê-los, mas era possível ouvi-los, correndo dentro dela. Tinha certeza de que, a qualquer momento, sua boca seca se abriria e ela me perguntaria se eu amava. Recuei, sentindo todo o corpo entorpecido, o cérebro flutuando em uma nuvem escura.

Virei-me para Nona. Ela ria, estendendo os braços para mim. Então, num súbito relance de compreensão, eu soube, soube, soube. A última prova. A prova final. Eu passara por ela e estava livre!

Voltei para a porta de entrada e, naturalmente, tudo aquilo não passava de um closet vazio de pedra, com folhas mortas no piso.

Fui para Nona. Fui para minha vida.

Seus braços enrolaram-se em meu pescoço e eu a puxei para mim. Foi quando ela começou a transformar-se, a encolher e amoldar-se como cera. Os enormes olhos escuros ficaram pequeninos, eram como contas negras. Os cabelos tornaram-se ásperos e marrons. O nariz encurtou, as narinas dilataram-se. Seu corpo ficou informe, encurvado contra mim.

Eu estava sendo abraçado por um rato.

— Você ama? — guinchou ele. — Você ama, você ama?

Sua boca sem lábios estirou-se para cima, buscando a minha.

Não gritei. Não me sobravam mais gritos. Duvido que ainda torne a gritar um dia.

Está muito quente aqui.

O calor não me incomoda, de modo algum. Gosto de suar, quando posso tomar uma ducha. Sempre pensei no suor como uma coisa boa, uma coisa masculina, mas acontece que às vezes, quando faz calor, há insetos que picam — aranhas, por exemplo. Sabiam que as aranhas fêmeas ferroam e comem seus parceiros, pois é o que fazem, logo após a cópula.

Além disso, ouvi passinhos, apressados nas paredes. Não gosto disso.

Fiquei com cãibras de escritor, a ponta de feltro da caneta agora amoleceu e desfiou.

Ainda assim, terminei. E as coisas parecem diferentes. Não parecem mais as mesmas, em absoluto.

Sabem que, por um momento, eles quase me fizeram acreditar que eu havia feito todas aquelas coisas horríveis sozinho? Os homens na parada para caminhões, o sujeito do caminhão da força elétrica, que conseguiu fugir. Eles disseram que eu estava sozinho.

Eu estava sozinho quando me encontraram, quase congelado para morrer, naquele cemitério, ao lado das lousas que marcam as sepulturas de meu pai, minha mãe e meu irmão Drake. Isto, contudo, significa apenas que ela foi embora, e vocês bem podem compreender a situação. Qualquer tolo compreenderia. No entanto, fico satisfeito por ela ter ido embora. Fico, sinceramente. Não obstante, vocês precisam entender que ela esteve comigo o tempo todo, passo a passo, no decorrer do trajeto.

Vou matar-me agora. Será muito melhor. Estou cansado de todo esse sentimento de culpa, da angústia e dos pesadelos. Além do mais, não suporto os ruídos nas paredes.

Qualquer um poderia estar lá. Ou qualquer coisa.

Não estou louco. Tenho certeza disto e espero que vocês também tenham. Se dizem que não estão loucos, presume-se que o estejam, porém me encontro acima de todos esses joguinhos. Ela estava comigo, era real. Eu a amo. O verdadeiro amor jamais morrerá.

Foi como assinei todas as minhas cartas para Betsy, aquelas que rasguei depois de escritas.

Nona, entretanto, foi a única a quem amei realmente.

Faz muito calor aqui. E não gosto dos ruídos nas paredes.

Você ama?

Sim, eu amo.

E o verdadeiro amor jamais morrerá.

 

Aí vem aquela Sra. Todd — falei. Homer Buckland ficou olhando o pequeno Jaguar aproximar-se e assentiu. A mulher ergueu a mão para ele. Homer moveu a cabeça grande e desgrenhada em um cumprimento, mas não acenou em resposta. A família Todd possuía uma grande casa de verão no Lago Castelo e Homer fora seu caseiro desde que se podia lembrar. Eu tinha a impressão de que ele não gostava da segunda esposa de Worth Todd, na mesma medida em que gostara de 'Phelia Todd, a primeira.

Isto foi há apenas dois anos e estávamos sentados em um banco, à frente do Mercado de Bell, eu com uma soda laranjada, Homer com um copo de água mineral. Era outubro, uma época de tranqüilidade em Castle Rock. Muitas casas do lago continuavam sendo usadas nos fins de semana, porém o agressivo, eufórico verão socializante já terminou e ainda não chegaram à cidade os caçadores com seus enormes rifles e caras licenças de não-residentes, presas em seus bonés alaranjados. A esta altura, já terminaram quase todas as colheitas. As noites são frescas, boas para dormir, e juntas velhas como as minhas ainda não começaram a queixar-se. Em outubro, o céu acima do lago está límpido, com aquelas enormes nuvens que se movem tão devagar; gosto de ver como parecem tão achatadas no fundo, como ali ficam um pouco acinzentadas, como com uma sombra pressagiando o sol poente, e posso contemplar o sol cintilando na água, sem me aborrecer pelo espaço de alguns minutos. É em outubro, sentado no banco diante do Bell's e contemplando o lago à distância, que desejaria ser ainda um fumante.

— Ela não dirige tão depressa como 'Pheila — disse Homer. — Juro que costumava pensar como uma mulher de nome tão antiquado era capaz de dirigir um carro naquela velocidade.

Os veranistas como os Todd não são, nem de longe, tão interessantes como os residentes fixos em cidadezinhas do Maine, da maneira como acreditam. O ano inteiro, o pessoal prefere suas próprias histórias de amor e odeia histórias de escândalos ou rumores de escândalos. Quando aquele sujeito têxtil de Amesbury se matou com uma bala, Estonia Corbridge descobriu que, após cerca de uma semana, nem mesmo era convidada para almoçar, por causa de sua história sobre como o encontrara, com a arma ainda em uma mão endurecida. E o pessoal ainda não comenta a respeito de Joe Camber, que foi morto pelo próprio cão.

Bem, isso não vem ao caso. Apenas corremos em pistas de corridas diferentes. Os veranistas trotam; nós, os outros, que não pomos gravata para cumprir nossa semana de trabalho, apenas caminhamos. Mesmo assim, houve bastante interesse local quando Ophelia Todd desapareceu, em 1973. Ophelia era realmente uma mulher encantadora e tinha feito muitas coisas na cidade. Trabalhou levantando fundos para a Biblioteca Sloan, ajudou na reforma do memorial de guerra e esse tipo de coisa. Entretanto, todos os veranistas gostam da idéia de levantar fundos.

Fala-se em levantar fundos e os olhos deles se acendem, começam a brilhar. Fala-se em levantar fundos e eles logo formam um comitê, indicando uma secretária e mantendo uma agenda. Eles gostam disso. No entanto, fala-se em tempo (além de uma longa, gigantesca combinação de coquetel e reunião do comitê) e não dá certo. Tempo parece ser o que a maioria dos veranistas prefere reservar. Eles o guardam e, se pudessem, colocariam o tempo em potes como os de conserva, claro que colocariam. 'Phelia Todd, no entanto, parecia querer gastar o tempo — não só ajudava na biblioteca, como também levantava fundos para ela. Chegada a hora do memorial de guerra ser esfregado, do pessoal sujar as mãos para limpá-lo, 'Phelia estava lá, com mulheres da cidade que haviam perdido os filhos em três guerras diferentes, usando um macacão e com os cabelos presos debaixo de um lenço. E quando as crianças precisavam de transporte para um programa de natação no verão, era certo vê-la como qualquer um, descendo a Estrada Landing com a carroceria da grande e lustrosa picape de Worth Todd entulhada de crianças. Uma boa mulher. Não uma mulher da cidade, mas uma boa mulher. E quando ela desapareceu. houve preocupação. Não que fosse exatamente lamentada, porque um desaparecimento não é bem uma morte. Não é como decepar-se algo, com um cutelo de açougueiro; é mais semelhante a qualquer coisa escorrendo pelo ralo da pia, tão lentamente, que só percebemos seu desaparecimento muito tempo depois.

— Era uma Mercedes que ela dirigia — disse Homer, respondendo à pergunta que eu não tinha feito. — Um carro esporte de dois lugares. Todd o comprou para ela, em sessenta e quatro ou sessenta e cinco, acho. Lembra-se dela, levando as crianças para o lago, todos aqueles anos em que havia concursos de Rãs e Girinos?

— Hum-hum.

— Com as crianças, ela não dirigia a mais de sessenta, sabendo que elas estavam ali atrás.

Só que isso a impacientava. Aquela mulher tinha chumbo no pé e um mancal de esferas bem atrás do tornozelo.

Acontece que Homer nunca falava sobre os veranistas de que era caseiro. Então, sua esposa morreu. Há cinco anos, foi isso. Ela estava arando uma rampa, quando o trator tombou em cima dela, e Homer sentiu demais o que aconteceu. Lamentou a esposa por uns dois anos e então pareceu sentir-se melhor. Só que não era mais o mesmo. Parecia esperar algo que ia acontecer, esperando a coisa seguinte. A gente às vezes passava por sua ordenada casinha ao crepúsculo e ele estava no alpendre, fumando um cachimbo, com um copo de água mineral na balaustrada. A claridade do sol poente lhe batia em cheio nos olhos, a fumaça do cachimbo lhe contornava a cabeça e a gente pensava — eu, pelo menos, pensei Homer está esperando a coisa seguinte. Isto me deixava com a cabeça mais preocupada do que eu gostaria de admitir e, por fim, decidi que, se fosse eu, não estaria esperando a coisa seguinte, como um noivo que veste o paletó de manhã e finalmente acerta o nó da gravata, mas tem que ficar sentado em uma cama, no andar de cima da casa, olhando-se primeiro ao espelho, depois consultando o relógio sobre a lareira, esperando que ele dê onze horas, que é quando se casará. Se fosse eu, não ficaria esperando a coisa seguinte; esperaria a coisa derradeira.

Contudo, nesse período de espera — que terminou quando Homer foi a Vermont, um ano mais tarde — ele às vezes falava sobre aquela gente. Comigo e mais alguns poucos.

— Que eu saiba, ela nunca dirigiu depressa quando estava com o marido. No entanto, se eu a acompanhava, ela fazia aquele Mercedes disparar.

Um sujeito parou na bomba de gasolina e começou a encher o carro. Um carro com chapa de Massachusetts.

— Não era um desses carros esporte modernos que correm com gasolina envenenada e saltam para diante, quando se aperta o acelerador; era um dos antigos, com o velocímetro todo calibrado, até duzentos e sessenta. Tinha uma cor marrom esquisita.

Uma vez perguntei que cor era aquela e ela respondeu que era Champanha. Isso não é direito, falei, e ela quase morreu de rir. Gosto de uma mulher que sabe rir sem a gente apontar onde está a graça da piada, se é que me entende.

O homem da bomba terminara de colocar a gasolina.

— Tarde, senhores — disse ele, quando subiu os degraus.

— Um bom dia para o senhor — respondi, quando ele entrou.

— 'Phelia estava sempre procurando um atalho — prosseguiu Homer, como se não houvesse sido interrompido. — Aquela mulher era louca por um atalho. Nunca vi que diferença fazia. Ela dizia que quando poupamos distância suficiente, também poupamos tempo. Seu pai tinha jurado isso sobre as Escrituras. Era vendedor, estava sempre viajando, ela o acompanhava quando podia e ele sempre procurava o trajeto mais curto.

Assim, ela ficou com o mesmo hábito.

"Certa vez, perguntei a ela se não achava um bocado curioso — isso de, por um lado, gastar seu tempo esfregando aquela velha estátua da Praça e levando as crianças às aulas de natação, em vez de jogar tênis, nadar e ficar de pileque, como qualquer veranista e, por outro lado, ficar tão empenhada em poupar quinze minutos entre aqui e Fryeburg, que isso talvez a fizesse perder o sono de noite. Parecia-me que as duas coisas se contradiziam, uma anulava a outra, está me entendendo? Ela apenas olhou para mim e disse, "Eu gosto de ser útil, Homer. Também gosto de dirigir — pelo menos em certas ocasiões, quando se trata de um desafio — mas não gosto do tempo que isso demora. É como remendar roupas — às vezes se tem que franzir, em outras o pano não chega.

Percebe o que quero dizer?

— Acho que percebo, sim, senhora — respondi, ainda duvidoso.

— Se estar atrás do volante de um carro fosse minha idéia de uma diversão realmente boa o tempo todo, eu procuraria atalhos longos — disse ela, ,e achei tão engraçado, que acabei rindo.— O sujeito de Massachusetts saiu do mercado com um engradado de seis latas de cerveja em uma das mãos e alguns bilhetes de loteria na outra.

— Tenha um bom fim de semana — disse Homer.

— Eu sempre tenho — respondeu o cara de Massachusetts. — Só gostaria de ter dinheiro bastante para morar aqui o ano inteiro.

— Bem, manteremos tudo em boa ordem, para quando o senhor puder vir disse Homer, e o sujeito riu.

Nós o vimos rodar com seu carro para algum lugar, exibindo aquela chapa de Massachusetts. Era uma verde. A minha Marcy explicou que essas são dadas pelo Cartório de Registros Motorizados de Massachusetts aos motoristas que, durante dois anos, ainda não tiveram nenhum acidente naquele estranho, irritado e enfurecido estado.

Se o motorista tem um acidente, me disse ela, recebe uma chapa vermelha, para os outros tomarem cuidado com ele, se o virem rodando.

— Eles eram gente do estado, compreenda, eles dois — disse Homer, como se o sujeito de Massachusetts o fizesse recordar o fato.

— Eu não sabia — falei.

— Os Todd devem ser as únicas aves que temos, voando para o norte durante o inverno. Quanto a essa dona nova, não acredito que goste muito de voar para o norte.

Homer bebericou sua água mineral e ficou um momento calado e pensativo.

— Ela, no entanto, não se importava — disse ele. — Pelo menos, acho que não se importava, embora costumasse se queixar algumas vezes, um tanto aborrecida. A queixa era apenas uma forma de explicar por que estava sempre procurando um atalho.

— Quer dizer que o marido pouco ligava por ela viver flanando em cada estrada de floresta, entre aqui e Bangor, apenas para verificar se aquela era nove décimos de quilômetros mais curta?

— Ele não ligava nem um pouco — disse Homer, lacônico.

Levantando-se, ele entrou no mercado. Escute aqui, Owens, falei para mim mesmo, sabe que não é seguro fazer perguntas quando ele está recordando. No entanto, teimou e fez a última, podendo ter estragado uma história que começava a ganhar forma.

Continuei ali sentado, levantei o rosto para o sol e, após uns dez minutos, ele apareceu trazendo um ovo cozido. Tornou a sentar-se. Comeu o ovo e tomei cuidado para ficar calado. As águas do Lago Castelo cintilavam, tão azuis como se poderia descrever, em uma história sobre tesouros. Quando Homer terminou seu ovo e tomou um gole de água mineral, continuou falando. Fiquei surpreso, mas nada disse. Era o mais conveniente.

— Eles tinham dois ou três rodantes, bons e diferentes — falou. — Havia o Cadillac, a caminhonete dele e o "trenó" dela, o pequeno Mercedes. Em uns dois verões, ele deixou a caminhonete, para o caso de quererem vir para esquiar um pouco. Em geral, terminado o verão, ele voltava com o Caddy e ela se ia em seu "trenó".

Assenti, mas continuei calado. Em verdade, temia arriscar outro comentário. Mais tarde, pensei que seriam precisos muitos comentários para Homer Buckland calar a boca, naquele dia. Há muito ele aguardava uma oportunidade para contar a história do atalho da Sra. Todd.

— O carrinho dela tinha um odômetro especial, que poderia dizer quantos quilômetros havia em um trajeto. Sempre que ela partia de Lago Castelo para Bangor, assentava-o em 000-ponto-0 e deixava o mecanismo funcionar à vontade. Achava aquilo um jogo e costumava irritar-me com isso.

Homer fez uma pausa, meditando no assunto.

— Não, não era bem assim.

Fez nova pausa e algumas linhas ligeiras surgiram em sua testa, como degraus em uma escada de biblioteca.

— Era como se achasse aquilo um jogo, mas em sua mente, era coisa séria. Tão séria como qualquer outra coisa. — Homer fez um gesto com a mão e pensei que se referia ao marido. — O porta-luvas do carrinho era recheado de mapas, havendo mais alguns na traseira, onde ficaria o banco de trás, em um carro comum. Alguns eram mapas depostos de gasolina e outros eram páginas que ela arrancara do Atlas de Estradas Rand-McNally; tinha alguns mapas de guias da Trilha Apalachiana, além de uma boa quantidade de outros com medições topográficas. Não foi o fato dela ter tantos mapas que me fez pensar não ser aquilo um jogo ou brincadeira; era a maneira como ela riscava linhas em todos eles, mostrando rotas que havia tomado ou, pelo menos, tentara tomar.

— Houve vezes em que ficou atolada, precisando ser tirada do atoleiro com um trator e correntes de algum fazendeiro.

— Um dia, eu assentava ladrilhos no banheiro, estava lá com argamassa fluida, tapando qualquer maldita brecha que se visse — não sonhei com mais nada, além de quadrados e rachaduras que sangravam argamassa, aquela noite quando ela surgiu à porta e ficou falando sobre aquilo algum tempo. Eu costumava irritá-la a respeito disso, mas também fiquei um tanto interessado, não apenas porque meu irmão Franklin vivia lá em Bangor e eu já percorrera todas aquelas estradas. Só fiquei interessado, porque um homem como eu sempre se interessa em saber qual o trajeto mais curto, mesmo que nem sempre queira segui-lo. Você também é assim?

— Hum-hum — falei.

Havia algo de poderoso em saber-se o caminho mais curto, ainda que se tome o mais comprido, se sabemos que a sogra nos está visitando. Em geral, chegar depressa é para os pássaros, embora ninguém com uma licença de motorista de Massachusetts pareça saber disso. No entanto, saber como chegar lá rapidamente ou menos saber como chegar lá, de modo ignorado pela pessoa sentada ao nosso lado... Bem, isso encerra poder.

— Ora, ela colecionava aquelas estradas, como um escoteiro faz com seus nós — disse Homer, exibindo seu largo e ensolarado sorriso. — Falou, "espere um minuto, espere um minuto", como uma garotinha, e então a ouvi através da parede, remexendo em sua secretária. Voltou logo depois, com uma caderneta de anotações parecendo muito antiga. A capa estava toda amarfanhada, sabe como é, e algumas páginas se tinham soltado daquelas espirais na lombada.

— A maneira de chegar-se a Worth — disse ela — , é como faz a maioria das pessoas: seguindo pela Estrada 97 até Mechanic Falls, depois pela Estrada 11 até Lewiston e em seguida pela Interestadual para Bangor. Isto soma 261.70 quilômetros.

— Desse jeito, a senhora não vai poupar tempo nenhum, madame — falei, — se for através de Lewiston e Augusta. Contudo, admito que dirigir pela Velha Estrada Derry até Bangor é muito bonito.

— Poupa quilômetros suficientes e, portanto, você economizará tempo disse ela. — E não contei qual o meu trajeto, embora o tenha feito muitas vezes. Vou apenas seguir as estradas usadas pela maioria. Quer que eu continue?

— Não é preciso — respondi. — Basta que me deixe neste maldito banheiro, sozinho, olhando para todas estas malditas rachaduras, até que eu fique furioso.

— Existem quatro estradas principais ao todo — disse ela. — O trajeto pela Estrada 2 é de 262,91 quilômetros. Já o fiz uma vez. Demasiado longo.

— É o que eu faria, se minha esposa telefonasse, dizendo que havia sobras para o jantar — respondi, em voz um tanto baixa.

— Como assim? — perguntou ela.

— Nada. — falei. — Foi um comentário comigo mesmo.

— Oh, está bem. Quanto à quarta — não há muita gente que saiba sobre ela, embora todas sejam boas estradas — pavimentadas, afinal — cruza a Montanha Speckled Bird, pela 219 até a 202, além de Lewiston. Então, tomando-se a Estrada 19, chega-se perto de Augusta. Depois, segue-se pela Velha Estrada Derry. Assim, cobre-se apenas 207,90 quilômetros.

"Fiquei calado por um instante. Talvez ela achasse que eu duvidava do que me dizia, porque falou, um tanto sem jeito, "Sei que é difícil de acreditar, mas digo a verdade".

"Respondi que a achava com razão quanto a isso e pensei — agora que me lembro — que provavelmente assim fosse. Sim, porque é como geralmente fazia, quando ia a Bangor ver Franklin, querendo saber se ele continuava vivo. Contudo, há anos não fazia esse trajeto. Acha que um homem pode simplesmente bem — esquecer uma estrada, Dave?

Achei que podia. É fácil pensar-se na auto-estrada com cobrança de pedágio. Após algum tempo, ela quase enche a mente de um homem e não pensamos em como se iria daqui até lá, mas como se iria daqui até a rampa da estrada de pedágio mais próxima de lá. Isso me fez pensar que talvez haja montes de estradas por todo canto, apenas vivendo de esmolas; estradas ladeadas por muralhas rochosas, verdadeiras estradas com matagais de amoras-pretas crescendo em suas margens, mas sem ninguém para comer as amoras, além dos pássaros, com cascalheiras tendo velhas correntes enferrujadas, pendendo em curvas baixas, diante de suas vias de acesso, as cascalheiras, em si, tão esquecidas como velhos brinquedos de crianças, com capinzais emaranhados crescendo em suas margens desertas e não lembradas. Estradas que apenas ficaram esquecidas, exceto por aqueles que vivem em seus arredores e pensam na maneira mais rápida de afastar-se delas, de chegar ao pedágio, onde a gente pode passar sobre uma montanha, não se queixando pela subida.

No Maine, gostamos de brincar dizendo que não se pode chegar lá indo daqui, mas talvez a piada seja contra nós. De fato, há bem umas mil maneiras de fazer-se isso e ninguém se preocupa.

Homer continuou:

— Trabalhei nos ladrilhos a tarde inteira, naquele pequeno banheiro sufocante, com ela parada à porta o tempo todo, um pé cruzado por trás do outro, de pernas nuas, usando sapatos de lona, uma saia cáqui e uma suéter pouco mais escura. Os cabelos estavam puxados para trás, em um rabo-de-cavalo. Ela devia ter trinta e quatro ou trinta e cinco anos, mas seu rosto se iluminava com o que me dizia e juro que parecia uma universitária, vindo passar as férias em casa.

"Após algum tempo, deve ter percebido quanto tempo ficara ali, cortando o ar em volta da boca, porque disse, "Devo estar aborrecendo você terrivelmente, Homer".

— Sim, madame — respondi. — Está mesmo. Gostaria que fosse embora e me deixasse falando com estas malditas rachaduras.

— Não banque o espertinho, Homer — disse ela.

— Está bem, madame. Não está me aborrecendo — respondi.

"Ela sorriu e voltou ao assunto, folheando sua caderneta, como um vendedor conferindo seus pedidos. Ela contava com aquelas quatro vias principais — bem, de fato eram três, porque desistiu da Estrada 2 em seguida-mas devia ter outras quarenta vias diferentes, em compensação. Havia estradas com números estaduais, estradas sem eles, estradas com nomes, estradas sem nomes. Minha cabeça borbulhava delas. Finalmente, ela me perguntou, "Está pronto para quem ganhou a fita azul, Homer?"

— Acho que sim — respondi.

— Pelo menos, quem ficará coma fita azul até agora — disse ela. — Sabe de uma coisa, Homer? Em 1923, um homem escreveu um artigo em Science Today, provando que nenhum homem poderia correr uma milha em menos de quatro minutos. Ele provou o que afirmava, com todos os tipos de cálculos, baseando-se no comprimento máximo dos músculos da coxa de um indivíduo, no comprimento máximo da passada, na capacidade máxima dos pulmões, no máximo em pulsações cardíacas e muita coisa mais. Fiquei fascinada por aquele artigo! A tal ponto, que o dei a Worth, pedindo que o entregasse ao Professor Murray, no departamento de matemática da Universidade do Maine. Queria àqueles números checados, certa de que haviam sido baseados nos postulados errôneos ou algo assim, Worth provavelmente me achou idiota — "Ophelia está com macaquinhos no sótão" foi o que disse — mas levou o artigo. Pois bem, o Professor Murray checou minuciosamente os números daquele homem... e sabe de uma coisa, Homer?

— O que, madame?

— Aqueles números estavam certos. Os critérios do homem eram sólidos. Ainda em 1923, ele provou que um homem não podia correr uma milha em menos de quatro minutos. Ele provou isso. No entanto, é o que as pessoas fazem o tempo todo — e sabe o que isso significa?

— Não, madame — falei, embora tivesse uma idéia.

— Significa que nenhuma fita azul é eterna — disse ela. — Algum dia-se o mundo não explodir nesse meio tempo — alguém correrá uma milha em dois minutos, nas Olimpíadas. Pode levar cem ou mil anos, mas vai acontecer. Porque não existe fita azul definitiva. Há o zero, como há a eternidade e a mortalidade, mas não há definitivo.

"E lá estava ela, com o rosto lavado, limpo e reluzente, aqueles cabelos escuros puxados para trás da cabeça, como se dissesse, Vá em frente e discorde, se puder. "Só que eu não podia. Porque acredito em coisas assim. Bem parecidas com o que o ministro quer dizer, imagino, quando está falando sobre a graça.

— Você está pronto para a — por enquanto — ganhadora da fita azul? perguntou ela.

— Hum-hum — respondi, chegando a suspender um pouco o conserto das rachaduras.

"De qualquer modo, já chegara até onde ficava a banheira e pouco me restava fazer, além de endireitar suas pequenas quinas rachadas. Ela respirou fundo e então soltou a ladainha, tão depressa, como aquele leiloeiro lá de Gates Falls, quando serve uísque para si mesmo. Não me lembro de tudo, porém foi mais ou menos assim...

Homer Buckland fechou os olhos por um momento, as manoplas jazendo perfeitamente imóveis sobre as coxas compridas, o rosto erguido para o sol. Depois tornou a abrir os olhos e, por um segundo, juro que se parecia com ela, sim, parecia mesmo — um velho de setenta anos parecendo-se com uma mulher de trinta e quatro que, naquele momento de sua vida, tinha a aparência de uma universitária de vinte. Não me recordo exatamente do que ele disse, como tampouco ele recordava exatamente o que ela dissera. Não que a coisa seja complicada, mas apenas por eu estar tão espantado com a aparência dele, enquanto dizia algo semelhante a isto:

— Partindo da Estrada 97, você sobe a Rua Denton até a Velha Estrada Townhouse, e assim chega perto do centro de Castle Rock, mas voltando à 97. Quinze quilômetros adiante, alcança uma antiga estrada de serraria, pela qual segue quilômetro e meio até a Estrada número 6, para a cidade. Esta o leva à Estrada Big Anderson, perto de Side's Cider Mill. Há um atalho que os antigos chamam de Estrada do Urso, que o leva à 219.

Uma vez no lado mais distante da Montanha Speckled Bird, você pega a Estrada Stanhouse, dobra à esquerda para a Estrada Buli Pine — há um trecho lamacento por aí, mas pode-se cruzá-lo sem problemas, ao ganhar-se velocidade suficiente sobre o cascalho — e então sai na Estrada 106. A 106 corta Alton's Plantation até a Velha Estrada Derry — e aí existem duas ou três estradas cortando bosques, que serão seguidas até sair na Estrada 3, pouco além do Hospital de Derry. De lá, são apenas seis quilômetros e meio para a Estrada 2, em Etna, chegando-se a Bangor.

"Ela fez uma pausa para recuperar o fôlego, depois olhou em minha direção. "Sabe quanto dá isso, tudo somado?"

"— Não, madame — falei, mas pensando que seriam praticamente uns trezentos quilômetros.

— 187,30 quilômetros — disse ela.

Eu ri. Ri, sem pensar que com isso talvez estragasse minha oportunidade de ouvir aquela história até o fim. Contudo, Homer também sorriu e assentiu.

— Entendo. E você sabe que não gosto de discutir com ninguém, Dave. Contudo, há uma diferença entre lhe darem uma rasteira ou o fazerem sacudir-se como uma maldita macieira.

Ela então me disse:

— Você não acredita em mim.

— Bem, é difícil acreditar, madame — respondi.

— Deixe essas rachaduras secando e eu lhe mostrarei — convidou ela. Pode terminar amanhã o conserto atrás da banheira. Vamos, Homer. Deixarei uma nota para Worth — afinal, talvez ele nem volte esta noite — e você pode ligar para sua esposa! Estaremos jantando no Pilot's Grille dentro de — e ela consultou seu relógio — duas horas e quarenta e cinco minutos, a partir de agora. E se demorar um minuto mais, eu lhe compro uma garrafa de Mist Irlandês, que levará para casa. Como vê, meu pai tinha razão. Poupe os quilômetros suficientes e economizará tempo, mesmo que precise cruzar cada maldito pântano e fossa no Condado de Kennebec para consegui-lo. E agora, o que me diz?

"Ela me fitava com seus olhos castanhos que pareciam duas lâmpadas. Havia neles uma expressão diabólica, dizendo, pegue o seu boné e vamos em frente, Homer; monte este cavalo, eu na frente, você atrás, e que o diabo siga na garupa. O sorriso em seu rosto dizia a mesma coisa e eu lhe confesso, Dave, senti vontade de ir. Nem mesmo quis tampar aquela maldita lata de argamassa. E, tenho absoluta certeza, não queria dirigir aquele carrinho dela. Bastava-me sentar no banco do passageiro e vê-la entrar, ver sua saia subir um pouquinho, vê-la puxá-la sobre os joelhos ou não, espiar seus cabelos brilhando.

A voz dele extinguiu-se e, de repente, Homer deu uma risada sarcástica, abafada. Uma risada que soava como uma espingarda carregada com sal-gema.

"— Apenas ligue para Megan e diga, Sabe a 'Phelia Todd, aquela mulher de quem começa a sentir tantos ciúmes, que nem consegue enxergar direito e nem encontra uma palavra boa para dizer sobre ela? Pois bem, nós dois vamos fazer uma viagem a jato até Bangor, naquele carrinho Mercedes dela, o cor de champanha, portanto, não me espere para jantar."

— Apenas ligar para ela e dizer aquilo. Oh, claro. Oh, hum-hum.

Ele tornou a rir, com as mãos pousadas sobre as pernas, da maneira tão natural de sempre. Então, vi em seu rosto algo que era quase odioso e, após um minuto, ele pegou seu copo de água mineral, em cima da balaustrada, derramando um pouco da água.

— Você não foi — falei.

— Não dessa vez.

Ele riu, um riso agora mais suave.

— Ela devia ter visto algo em meu rosto, porque foi como se caísse em si novamente.

Não ficou mais parecendo uma mocinha de universidade, voltou a ser como 'Phelia Todd. Olhou para a caderneta de anotações, como se não soubesse por que a segurava, depois a escondeu a um lado do corpo, quase atrás da saia.

"Eu disse — "Gostaria de fazer isso, madame, mas tenho que terminar aqui. Além do mais, minha esposa fez um assado para o jantar."

"Ela respondeu —, "Eu compreendo, Homer. Apenas exagerei em meu entusiasmo. Como sempre. Worth diz que sou assim o tempo todo."Depois ela empertigou o corpo e disse — "De qualquer modo, o convite está de pé, para quando você quiser ir. Poderá até ajudar a empurrar o carro, se ficarmos atolados em algum lugar, o que me pouparia cinco dólares" — E ela riu.

— Eu lhe cobrarei o convite, madame — respondi, e ela percebeu que eu falava sério, não estava apenas querendo ser polido.

— E antes de você acreditar que cento e oitenta e sete quilômetros até Bangor estão fora de questão, pegue seu mapa e veja quantos quilômetros seriam, em linha reta.

"Eu terminei com os ladrilhos, fui para casa e jantei sobras do almoço — não havia assado nenhum — mas creio que 'Phelia Todd sabia disso. Depois que Megan foi para a cama, peguei minha régua, uma caneta e meu mapa Mobil do estado. Fiz o que ela me dissera... porque suas palavras me tinham impressionado um pouco, entenda. Risquei uma linha reta e fiz os cálculos, segundo a escala de quilômetros. Fiquei algo surpreso.

Porque a gente indo de Castle Rock até Bangor, como um daqueles Piper Cubs, voando em um dia claro — se a gente não tiver que se preocupar com lagos ou terrenos de companhias madeireiras, de passagem proibida, com pântanos ou rios para cruzar onde não houver pontes, seriam apenas cento e vinte e sete quilômetros e pouco.

Sobressaltei-me ligeiramente.

— Meça você mesmo, se não acredita em mim — disse Homer. — Só depois de verificar aquilo, percebi como o Maine é pequeno.

Ele bebeu um gole, depois se virou e olhou para mim.

— Na primavera seguinte, houve uma ocasião em que Megan foi até New Hampshire, visitar o irmão. Precisei ir até a casa dos Todd, retirar as portas contra tempestade e colocar as teladas. O carrinho Mercedes dela estava lá. Ela viera sozinha.

"Chegou até a porta e disse, "Homer! Veio colocar as portas de tela?"

"E eu respondi prontamente, Não, madame, vim saber se quer me levar até Bangor, pelo caminho mais curto."

"Bem, ela olhou para mim sem a menor expressão no rosto e cheguei a pensar que tinha esquecido tudo a respeito. Percebi que começava a ficar vermelho, da maneira que acontece se damos um fora. Então, quando já ia desculpar-me, o rosto dela se abriu em um sorriso outra vez, e ela disse, "Espere aqui um instante, enquanto apanho minhas chaves. E não vá mudar de idéia, Homer!"

"Voltou logo depois, trazendo as chaves. "Se ficarmos atolados, você verá mosquitos do tamanho de libélulas!"

— Em Rangely, já os vi do tamanho de pardais, madame — falei — mas acho que ambos somos pesados demais para que eles nos carreguem."

"Ela riu. "Está bem. De qualquer modo, eu avisei. Vamos, Homer."

— E se nós não chegarmos lá em duas horas e quarenta e cinco minutos — lembrei, um tanto acanhado — a senhora me comprará uma garrafa de Mist Irlandês.

"Ela me fitou com certa surpresa, já tendo a porta do carrinho aberto e um pé no interior. "Que diabo, Homer", disse, "falei a você que era a Fita Azul por enquanto.

Descobri uma forma de chegar lá que é mais curta. Chegaremos em duas horas e meia. Entre, Homer. Vamos disparar!"

Ele tornou a fazer uma pausa, as mãos tranqüilamente pousadas sobre as coxas, os olhos opacos, talvez vendo o dois-assentos cor de champanha rodando para a íngreme entrada de carros dos Todd.

— Ela parou o carro no fim da alameda e perguntou, "Está bem certo de que quer ir?"

— Pode disparar — respondi. O mancal de esferas em seu tornozelo girou e aquele pé pesado afundou. Não lhe posso dizer muito sobre o que aconteceu depois disso, exceto que, após um momento, mal conseguia afastar os olhos dela. Havia algo selvagem transbordando em seu rosto, Dave — algo selvagem e também livre, que apavorou meu coração. 'Phelia era linda e eu caí de amor por ela, qualquer um cairia, qualquer homem, afinal, — e talvez qualquer mulher também, mas o caso é que, ao mesmo tempo, eu a temia, porque se ela tirasse os olhos da estrada e resolvesse amar em troca, acabaria matando a gente. Ela usava blue jeans e uma velha camisa branca, com as mangas enroladas — imaginei que talvez estivesse pensando em pintar alguma coisa no pátio dos fundos quando cheguei mas depois de estarmos rodando por algum tempo, dava a impressão de estar vestida apenas com aquelas roupagens embabadadas e frouxas, daqueles velhos livros de deuses e deusas.

Ele ficou pensativo, espiando através do lago, com o rosto muito sério.

— Como a caçadora que se supunha dirigir a lua pelo céu.

— Diana?

— Hã-hã. A lua era o seu carrinho. 'Phelia parecia assim a meus olhos e lhe digo francamente que estava doido de amor por ela e nunca faria um movimento, mesmo que fosse, então, mais novo do que sou agora. Não tomaria nenhuma iniciativa, mesmo que tivesse vinte anos, embora suponha que a tomasse com dezesseis anos, até me mataria por isso — claro, se ela olhasse para mim do jeito como eu desejaria.

"Ela era como aquela mulher dirigindo a lua através do céu, com metade do corpo acima do pára-lama, suas estolas transparentes voando mais atrás em teias de aranha prateadas e seus cabelos agitando-se fora da nuca, para mostrar as escuras covinhas de suas têmporas, vergastando aqueles cavalos e me dizendo para seguir mais depressa, jamais se importando com o quanto eles resfolegassem, apenas mais depressa, mais depressa, mais depressa.

"Rodamos por um bocado de estradas entre florestas — eu conhecia as primeiras duas ou três, mas depois disso, todas me eram desconhecidas. Devíamos ser uma visão incrível para aquelas árvores que nunca tinham visto nada com motor antes, exceto grandes e velhos caminhões carregando polpa de madeira e veículos especiais para rodar na neve.

E aquele carrinho, que provavelmente se sentiria mais à vontade no Sunset Boulevard do que disparando através daquelas florestas, seguia impetuosamente, abrindo caminho para subir uma colina e descendo a próxima sem cederem sua voracidade, por entre aquelas poeirentas lâminas formadas pelo sol da tarde — estava com a capota arriada e podia-se sentir todos os cheiros naquelas matas, e você sabe o quanto são deliciosos esses cheiros, como algo que ficou intocado por muito tempo e que não é visitado com freqüência. Atravessamos estradas com leito em toras de madeira, estendidas nas partes mais pantanosas, a lama negra espirrando entre alguns daqueles troncos cortados, enquanto ela ria como criança. Alguns troncos estavam velhos e apodrecidos, porque em cinco ou dez anos, digamos, ninguém passara por aquelas estradas exceto ela, claro está. Estávamos sozinhos, exceto pelos pássaros e quaisquer animais que nos vissem. O som do motor do carrinho, primeiro zumbindo, depois ganhando altura e potência, quando ela embreava e fazia a mudança... era o único som de motor que eu podia ouvir.

E, embora sabendo que estaríamos perto de algum lugar o tempo todo — quero dizer, nestes dias, a gente sempre está — comecei a sentir-me como se houvesse recuado no tempo e não houvesse nada. Isto é, se parássemos e eu subisse em uma árvore alta, não enxergaria nada em qualquer direção, além de matas cerradas, floresta e mais floresta.

E, o tempo todo, ela apenas persistindo naquilo, os cabelos esvoaçando às suas costas, sorridente, os olhos cintilando. Então, deixamos para trás a Estrada da Montanha Speckled Bird e, por um certo tempo, identifiquei onde nos encontrávamos novamente.

Depois, quando abandonamos essa estrada, apenas por um momento pensei que identificava, mas então decidi não me preocupar mais com isso. Atalhamos por outra estrada no meio do mato e fomos sair — juro — em uma bela via pavimentada, com um indicador que dizia MOTORWAY B. Já ouviu falar de alguma estrada no estado do Maine chamada MOTORWAY B?

— Não — respondi. — O nome é inglês, não?

— Hum-hum. Parecia inglês. Havia árvores pendendo sobre a estrada, como salgueiros.

"Tome cuidado agora, Homer," — disse ela, — "quase fui apanhada por uma delas há um mês atrás e fiquei com a pele esfolada."

Sem entender de que ela falava, abri a boca para dizer-lhe isso, mas então vi que, mesmo não havendo vento, os galhos daquelas árvores estendiam-se para baixo — pingavam e agitavam-se. Pareciam negros e molhados dentro de sua confusa verdura. Eu mal acreditava no que via. Quando um deles arrancou o meu boné, percebi que eu não sonhava. "Ei!" — gritei — "Devolva-me isso!"

— Tarde demais, Homer — disse ela, rindo. — Logo à frente teremos luz do dia... estamos indo bem.

"Então, outro daqueles galhos desceu, agora do lado dela, avançando em sua direção — juro que foi assim. 'Phelia abaixou a cabeça, ele agarrou seus cabelos e arrancou um punhado de fios anelados. "Droga, mas isso dói!" — gritou ela, mas continuava rindo. A velocidade do carro diminuiu ligeiramente quando ela se agachou e pude ver o interior da floresta de relance. Por Deus, Dave! Tudo ali dentro se movia! Havia ervas oscilando e plantas tão enoveladas juntas, que era como se fizessem caretas. Vi algo acocorado em cima de um tronco e parecia um sapo-de-árvore, só que era do tamanho de um gato adulto.

"Então, saímos da penumbra para o topo de uma colina. Ela disse, "Pronto! Foi excitante, não foi?"como se estivesse comentando nada mais que um passeio pela Casa Assombrada, na Feira de Fryeburg.

"Cinco minutos depois, deslizamos para outra de suas estradas entre bosques. Àquela altura, eu não queria mais saber de florestas — posso lhe dizer com segurança — mas aquelas eram apenas florestas comuns. Meia hora mais tarde, estávamos chegando ao pátio de estacionamento do Pilot's Grille, em Bangor. Ela apontou para aquele pequeno odômetro que marcava os trajetos, dizendo, "Dê uma espiada, Homer". Eu dei, e ele marcava 179,56 quilômetros. "O que me diz agora? Acredita em meu atalho?"

"A expressão bravia que mostrava antes já quase desparecera de todo e ela voltara a ser 'Phelia Todd outra vez. A outra expressão, no entanto, ainda persistia. Como se fossem duas mulheres, 'Phelia e Diana — e sua parte Diana, a que assumira o comando quando ela rodara por aquelas estradas secundárias, não deixara que sua parte 'Phelia percebesse como o atalho a levava por lugares... lugares que não existiam em nenhum mapa do Maine, nem mesmo naqueles topográficos.

"Ela repetiu, "O que diz de meu atalho, Homer?

"Finalmente respondi a primeira coisa que me veio à cabeça, algo que não se costuma dizer a uma dama como 'Phelia Todd.

"De fato, madame, é um filho da mãe de atalho," — respondi.

Ela riu, muito feliz da vida, e então pude ver, claro como se fosse vidro: ela não se lembrava de nenhuma daquelas coisas esquisitas. Não se lembrava dos galhos dos salgueiros — que salgueiros nada tinham, absolutamente, nem de qualquer outra coisa — que me tinham arrancado o boné, daquele indicador MOTORWA Y B ou daquela horrível coisa-sapo. Ela não se lembrava de nenhuma daquelas coisas esquisitas! Eu devia ter sonhado que aquilo estava lá ou então ela sonhara que não estava. Só posso afirmar com certeza, Dave, é que rodamos apenas cento e setenta e nove quilômetros até Bangor, e isso não era nenhuma fantasia, porque estava bem ali, marcado no pequeno odômetro do carrinho, em preto e branco.

— Bem, é isso mesmo — disse ela. — É um filho da mãe de atalho. Eu só queria que Worth o percorresse alguma vez... mas ele nunca larga seu carro, a menos que alguém o jogue para fora com uma explosão e precisaria ser um míssil Titan 11 para isso, porque acho que ele construiu um abrigo anti-atômico no fundo daquele veículo. Muito bem, Homer, vamos providenciar o seu jantar.

"E ela me pagou um baita jantar, Dave, mas não consegui comer muito. Fiquei pensando em como seria a viagem de volta, agora que começava a escurecer. Então, mais ou menos pelo meio do jantar, ela pediu desculpa e foi dar um telefonema. Quando voltou, perguntou se eu não me incomodaria de dirigir o carrinho até Castle Rock para ela. Disse ter telefonado para uma mulher do mesmo comitê escolar que o seu e ficara sabendo que estavam com algum tipo de problema sobre qualquer coisa. Falou que alugaria um carro para voltar, caso Worth não pudesse levá-la. "Você não se importa de dirigir no escuro?" — perguntou.

"Olhava para mim, com uma espécie de sorriso. Percebi que ela recordava alguma coisa do que acontecera — só Deus sabe quanto, mas recordava o suficiente para saber que eu não tentaria seu atalho depois do escurecer, se é que o tentaria dia claro... embora o brilho em seus olhos indicasse que isso não a incomodaria nem um pouco.

"Respondi que levaria o carro de volta e terminei minha refeição melhor do que começara. Já estava bem escuro ao terminarmos e fomos no carro até a casa da mulher para quem ela telefonara. Ao descer, 'Phelia olhou para mim com aquele mesmo brilho no olhar, e disse. "Tem mesmo certeza de que não quer esperar, Homer? Ainda hoje reparei em umas duas estradas secundárias e, embora não as encontre em meus mapas, acho que elas nos encurtam alguns quilômetros".

"Eu falei, — "Bem, madame, eu esperaria, mas na minha idade, a melhor cama para dormir, já descobri que é a minha. Levarei o seu carro de volta, mas sem repetir o trajeto... embora provavelmente chegue com alguns quilômetros a mais do que a senhora."

"Ela riu, foi um riso suave, e me deu um beijo. Foi o melhor beijo que já tive, em toda a minha vida, Dave. Bem no rosto, era o beijo casto de uma mulher casada, mas maduro como um pêssego ou como aquelas flores que desabrocham no escuro. Quando seus lábios me tocaram a pele, senti algo... não sei bem o que senti, porque um homem não se apega facilmente àquelas coisas que lhe acontecem com uma moça que estava madura quando o mundo era jovem ou à impressão deixada por essas coisas — estou falando sem dizer ao certo o que senti, mas acho que você compreende. São coisas que ficam impressas em brasa na lembrança e nada conseguimos ver através delas.

— Você é um homem adorável, Homer, e eu o aprecio por me ouvir, por ter vindo no carro comigo — disse ela. — Dirija com cuidado.

"Depois ela entrou na casa da tal mulher. Eu voltei para casa".

— Por onde voltou? — perguntei.

Homer riu baixinho.

— Pela estrada de pedágio, seu maldito tolo! — exclamou, e nunca vi tantas rugas em seu rosto como nesse momento.

Ele ficou quieto, olhando para o céu.

"Chegado o verão, ela desapareceu. Eu não a tinha visto com freqüência... foi o verão em que tivemos o incêndio, você se lembra, e depois aquela horrível tempestade que derrubou todas as árvores. Foi um período muito agitado para caseiros. Oh, eu pensava nela de quando em quando, pensava naquele dia, naquele beijo, e tudo começou a parecer como um sonho para mim. Como certa época, quando eu tinha uns dezesseis anos e não pensava em mais nada além de garotas. Estava arando o campo oeste de George Bascomb, o que dá para o lago, nas montanhas, sonhando o que rapazes adolescentes costumam sonhar. Então, bati em uma rocha com as lâminas do arado, ela se partiu e sangrou. Pelo menos, a mim pareceu que sangrava. Um negócio vermelho escorreu da fenda na rocha e encharcou o chão. Nunca contei para ninguém, a não ser minha mãe, e nunca disse a ela o que aquilo significava para mim ou o que acontecera comigo, embora ela lavasse minhas roupas debaixo e talvez soubesse. De qualquer modo, ela sugeriu que eu devia rezar por causa daquilo. Eu rezei, mas não tive qualquer revelação e, após algum tempo, sei lá o que começou a sugerir à minha mente que tudo fora um sonho. Algumas vezes funciona assim. Há buracos no meio, Dave. Você sabia?

— Sei — respondi.

Fiquei pensando em uma noite, quando vira algo. Era o ano de 59, fora um ano ruim para nós, mas meus filhos ignoravam isso; sabiam apenas que queriam comer, como sempre comiam. Eu tinha visto um bando de coelhos rabo-branco no campo traseiro de Henry Brugger, e fui até lá, em um escurecer de agosto, levando um candeio. Pode-se matar dois, quando eles estão com a gordura de verão; o segundo volta para farejar o primeiro, como se perguntasse, Ora, que diabo, já é outono?, e então a gente o derruba. como se fosse um pino de boliche. Eles dão carne bastante para alimentar crianças durante seis semanas e enterra-se o que sobra. Aqueles dois eram rabos-brancos que não levam tiros dos caçadores chegados em novembro, mas crianças precisam comer. Como disse o homem de Massachusetts, ele gostaria de poder viver aqui o ano inteiro, mas eu digo é que, às vezes, temos que pagar pelo privilégio, depois que escurece. Pois então, lá estava eu, quando vi aquela imensa luz alaranjada no céu; ela veio descendo, descendo, enquanto eu ficava parado e espiando, de boca caída no peito. Quando a luz bateu no lago, todo ele ficou aceso por um minuto, com uma claridade púrpura alaranjada, que parecia subirem raios, direta ao céu. Ninguém nunca me disse nada sobre aquela luz e eu também nunca disse nada a ninguém, em parte, porque tinha medo que rissem de mim, mas também porque, antes de mais nada iam querer saber que diabo eu fazia naquele lugar, depois do escurecer. Depois de certo tempo, foi bem como Homer tinha dito — tudo parecia um sonho, mas sem qualquer significado para mim, porque não me daria proveito algum. Eu não podia usa-lo. Era como um raio de lua.

Não tinha punhos e nem lâminas. Já que eu não podia fazê-lo trabalhar, deixei-o para lá, como faz um homem, sabendo que o dia tem de nascer, apesar de tudo.

— Há buracos no meio de coisas — disse Homer, sentando-se empertigado, como se estivesse biruta. — Bem no maldito meio das coisas, não à direita ou esquerda, onde fica a visão periférica e se pode dizer, "Bem, mas que diabo..." Eles estão lá e a gente os rodeia, como rodeia um buraco na estrada, capaz de quebrar-nos um eixo do carro. Sabia disso? No entanto, a gente esquece. É como a gente estar arando e arar um buraco. Só que, se houver alguma fenda na terra, onde vemos escuridão, como se fosse uma caverna, dizemos, "Dê a volta, cavalo velho. Deixe isso sossegado! Tenho um bom palpite de que deve ir pela esquerda!" Porque não era uma caverna que a gente queria, nem nenhum excitamento de colégio, mas arar bem a terra.

"Buracos no meio das coisas".

Ele ficou calado por muito tempo e deixei que se calasse. Não tinha pressa em atiçá-lo.

Por fim, Homer disse:

— Ela desapareceu em agosto. Eu a tinha visto pela primeira vez em começos de julho, e ela parecia... — Homer se virou para mim e pronunciou cada palavra com cuidadosa, espaçada ênfase. — Dave Owens, ela parecia deslumbrante! Deslumbrante, bravia e quase selvagem. As ruginhas que eu vinha percebendo em volta de seus olhos haviam desaparecido por completo. Worth Todd estava em alguma conferência ou coisa assim, em Boston. E lá estava ela, na borda do ancoradouro — eu estava no meio, sem a camisa — e então me disse, "Homer, você não vai acreditar!"

— Não, madame, mas tentarei — respondi.

— Encontrei duas estradas novas — disse ela, — e desta última vez fiz apenas cento e oito quilômetros até Bangor.

"Recordei o que ela havia dito antes e falei, "Não é possível, madame. Peço que me desculpe, mas somei a quilometragem no mapa, eu mesmo, e cento e vinte e sete é o mínimo... em linha reta.

"Ela riu, e parecia mais bonita do que nunca. Como uma deusa ao sol, em cima de uma daquelas montanhas, em uma história onde só existem relvados verdes e fontes, sem espinhos que arranhem os braços de um homem. "Está bem," disse ela, "e ninguém pode correr um quilômetro em menos de quatro minutos. Foi matematicamente provado."

— Não é a mesma coisa — respondi

— É a mesma coisa — disse ela. — Dobre o mapa e veja quantos quilômetros são, Homer. Se dobrá-lo pouco, podem ser menos do que uma linha reta, mas se dobrá-lo muito, serão muitos menos.

"Recordei então aquele nosso passeio, da maneira como se recorda um sonho. Falei, "Madame, a senhora pode dobrar um mapa no papel, mas não pode dobrar terra. Ou, pelo menos, não deveria tentar. Deve esquecer isso."

— Não, senhor — respondeu ela. — Esta é a única coisa, bem agora em minha vida, que não vou esquecer, porque está lá e é minha.

"Três semanas mais tarde — mais ou menos umas duas antes dela desaparecer — ligou para mim de Bangor. Disse, "Worth foi a Nova York e eu estou descendo para aí. Não sei onde deixei minha maldita chave, Homer. Gostaria que você abrisse a casa, para que eu possa entrar."

"Bem, esse telefonema foi às oito da noite, justo quando começava a escurecer. Comi um sanduíche e tomei uma cerveja antes de sair — cerca de vinte minutos. Depois fui até lá. Eu diria que, tudo somado, foram uns quarenta e cinco minutos. Quando cheguei à casa dos Todd, ainda descendo a entrada para carros, vi que havia luz acesa na despensa, embora a tivesse deixado apagada. Estava olhando para aquilo, quando quase colidi com seu carrinho. Estava parado meio de banda, da maneira como um bêbado o estacionaria, emplastado de lama até as janelas e, na lama ao longo da carroceria, havia coisas presas, coisas parecendo algas... e quando os faróis de meu carro bateram nelas, pareciam mover-se. Estacionei logo atrás e saí. Aquelas coisas não eram algas, mas eram ervas e estavam se movendo... de um jeito lerdo e apático, como que agonizando.

Toquei em um pedaço de erva e ela quis enrolar-se em volta de minha mão. Foi uma sensação repugnante e asquerosa. Puxei a mão e a enxuguei nas calças. Dei a volta pela frente do carro. Era como se ele houvesse percorrido uns cento e cinqüenta quilômetros de terrenos baixos e lamacentos. Tinha uma aparência de cansaço, se tinha! Havia insetos esmagados por todo o pára-brisa — só que não pareciam nenhum que eu já estivesse visto antes. Vi uma mariposa que tinha mais ou menos o tamanho de um pardal, as asas ainda batendo um pouco, fracas e morrendo. Vi coisas como mosquitos, mas eles tinham olhos verdadeiros que se podia ver — e pareciam olhar para mim. Pude ouvir aquelas ervas arranhando a carroceria do carrinho, morrendo, procurando agarrar-se em alguma coisa. E tudo quanto eu podia pensar, era Diabo, por onde andara ela? E como conseguiu chegar aqui em apenas três quartos de hora? Foi então que vi algo mais. Havia uma espécie de animal, meio amassado na grade do radiador, bem abaixo de onde fica aquele enfeite da Mercedes — aquele que parece uma estrela, fechada dentro de um círculo. Ora, a maioria dos animais de pequeno porte que se mata na estrada fica presa debaixo do carro, porque eles se agacham ao serem atingidos, esperando que o carro passe acima deles e os deixe com o couro ainda-preso à carne. Bem, de vez em quando, um deles salta, não para longe, mas diretamente contra o maldito carro, como se quisesse tirar uma boa dentada de seja qual for aquele tipo de inseto gigantesco que quer matá-lo — eu sei que isso acontece. Pois aquela coisa havia feito isso. E parecia decidido o bastante para atacar um tanque Sherman. Dava a impressão de ser um cruzamento entre uma marmota e uma doninha, mas havia aqueles outros detalhes em seu corpo, que eu nem mesmo queria espiar. Machucava os olhos, Dave; pior ainda, aquilo machucava a mente. O pêlo do bicho estava misturado com sangue e havia garras brotando das solas de suas patas, como as de um gato, só que mais compridas. Ele tinha enormes olhos amarelados, mas estavam vidrados. Quando era criança tive uma bola de gude porcelanizada, parecida com aqueles olhos. E os dentes! Dentes compridos e finos como agulhas, mais parecendo agulhas de costurar, projetando-se de sua boca. Alguns deles se tinham fincado na grade de aço do radiador. Por isso é que continuava ali, ainda pendurado; ele tinha o corpo suspenso pelos próprios dentes. Olhando para ele, soube que continham um bocado de veneno, como uma cascavel. O bicho saltara para o carrinho ao ver que ia ser atropelado, queria matá-lo com uma dentada. E eu é que não tentaria arrancá-lo dali, porque tinha cortes nas mãos — cortes de feno — e pensei logo que cairia morto, duro como uma pedra, se algum daquele veneno vazasse para os cortes.

"Fui até o lado do motorista e abri a porta. A luz interna acendeu-se, e olhei para aquele odômetro especial que ela regulava para as viagens... o qual, pude ver, marcava 50,84.

"Fiquei olhando para ele por instante, e então caminhei até a portados fundos. Ela havia forçado a tela e quebrado o vidro perto da fechadura, para poder enfiar a mão e abrir.

Havia uma nota dizendo: "Prezado Homer — cheguei aqui um pouco mais cedo do que pensava. Encontrei um atalho que é uma maravilha! Como você ainda não tinha vindo, entrei como um assaltante. Worth chega depois de amanhã. Será que pode consertar a porta de tela e substituir o vidro quebrado até lá? Espero que sim. Essas coisas sempre o aborrecem. Se eu não sair para dizer olá, é porque estou dormindo. A viagem foi muito cansativa, mas cheguei aqui num relance! Ophelia".

"Cansativa! Dei outra espiada naquela coisa-bicho pendurada na grade do radiador de seu carro, enquanto pensava, Sim, senhor, deve mesmo ter sido cansativa. Por Deus como foi.

Homer fez outra pausa e estalou um inquieto nó do dedo.

"Só tornei a vê-la mais uma vez. Foi cerca de uma semana depois. Worth estava lá, mas nadava no lago, de um lado para outro, indo e vindo, como se estivesse serrando madeira ou assinando papéis. Era mais como se assinasse papéis, acho.

— Madame — falei — não é da minha conta, mas acho que devia parar com isso. Naquela noite em que voltou e quebrou o vidro da porta para entrar, vi uma coisa pendurada na frente de seu carro e...

— Oh, a marmota? Eu dei um fim nela — respondeu 'Phelia.

— Céus! Espero que tenha tomado cuidado!

— Usei as luvas de jardinagem de Worth — disse ela. — Não foi nada de extraordinário, Homer, apenas uma marmota que saltou contra o carro, com certa dose de veneno.

— Mas, madame — falei — onde há marmotas, há ursos. E, se em seu atalho as marmotas são como aquele bicho, o que lhe acontecerá, se surgir urso?

"Phelia olhou para mim e vi nela aquela outra mulher — aquela mulher Diana. Ela disse, "Se as coisas são diferentes ao longo dessas estradas, Homer, talvez eu também seja diferente. Veja isto."

"Ela havia prendido os cabelos dobrados atrás da cabeça, parecendo uma espécie de borboleta, atravessados por um grampo. Soltou-os. Eram os cabelos que fariam um homem perguntar-se como seriam, quando espalhados sobre um travesseiro.

Ela disse, "Estavam ficando grisalhos, Homer. Consegue ver algum fio grisalho?" E ela os espalhou com os dedos, para que o sol brilhasse neles.

— Não, madame. Não vejo nenhum — respondi.

"Ela me fitou, seus olhos eram brilho puro. Então disse, "Sua esposa é uma boa mulher, Homer Buckland, mas tem me visto no mercado e no correio e trocamos uma ou duas palavras. Eu a vi olhando para meu cabelo, com uma certa satisfação que só as mulheres conhecem. Eu sei o que ela diz, o que conta às amigas... que Ophelia Todd começou a pintar o cabelo. Pois não é verdade. Mais de uma vez, perdi o rumo, quando procurava um atalho... perdi o rumo... e perdi os cabelos grisalhos". Ela riu, não como uma universitária, mas como uma garota de ginásio. Admirei-a e ansiei por sua beleza, mas nesse momento, vi também aquela outra beleza em seu rosto... e tornei a sentir medo. Medo por ela — e medo dela.

— Madame — falei — a senhora se arisca a perder mais do que alguns fios de cabelos brancos.

— Não — disse ela. — Eu lhe digo que, lá, sou diferente... Lá, sou eu mesma, inteiramente. Quando sigo por aquela estrada em meu carrinho, deixo de ser Ophelia Todd, a esposa de Worth Todd, que nunca conseguiu levar uma gravidez a termo ou aquela mulher que tentou escrever poesia e fracassou, a mulher que fica tomando notas em reuniões de comitês, ou qualquer outra coisa, qualquer outra pessoa. Quando estou naquela estrada, estou dentro de mim mesma e me sinto como...

— Diana — falei.

"Ela me olhou, parecendo divertida e surpresa, depois riu. "Oh, como alguma deusa, imagino", disse ela, "Ela serviria mais, porque sou uma pessoa da noite adoro ficar acordada até terminar de ler um livro ou até que a televisão encerre sua programação com o Hino Nacional, e porque sou muito pálida, como a lua... Worth está sempre dizendo que preciso de um tônico, de exames de sangue ou qualquer coisa parecida. Contudo, no fundo o que toda mulher quer ser é uma espécie de deusa, creio... Os homens recolhem um eco arruinado dessa idéia e tentam colocá-las em pedestais (uma mulher, cuja urina lhe corre pela perna abaixo, se não se agachar! É engraçado, quando se pára e pensa nisso) — mas o que um homem sente, não é o que uma mulher quer. Uma mulher deseja estar à vontade, eis tudo. Ficar em pé, se quiser, ou caminhar...

"Os olhos dela se voltaram para o carrinho na entrada de carros, e se apertaram. Então, ela sorriu.

"Ou dirigir, Homer. Um homem não vê isso. Ele acha que uma deusa quer refestelar-se em uma encosta qualquer no sopé do Olimpo e comer frutas, mas nisso não há deus e nem deusa. Tudo o que uma mulher quer é o que um homem quer — uma mulher quer dirigir".

— Tudo que lhe digo, madame, é que tome cuidado por onde dirigir — falei.

"Ela riu e me deu um beijo rápido, no meio da testa. Depois disse, "Tomarei cuidado, Homer", mas isso nada significava, dizendo à esposa ou namorada que tomará cuidado, quando ele sabe que não tomará... não poderá fazer isso.

"Voltei ao meu caminhão e acenei para ela uma vez. Foi uma semana mais tarde que Worth deu parte de seu desaparecimento. Dela e daquele seu carrinho. Todd esperou sete anos para que a esposa fosse declarada legalmente morta, depois esperou mais outro por medida de prudência — concedo isso àquele otário e então casou com a segunda Madame Todd, essa que acabou de passar. E não espero que você acredite em uma vírgula de toda esta lorota.

No céu, uma daquelas enormes nuvens de fundo achatado se moveu o suficiente para revelar o fantasma da lua — meio cheia e pálida como leite. Alguma coisa em meu coração saltou àquela visão, um tanto amedrontada e um tanto enamorada.

— Pois eu acredito — falei. — Em cada apavorante palavra dela, em cada vírgula. E mesmo que não seja verdade, Homer, deveria ser.

Ele me apertou em volta do pescoço com o braço, pois é tudo que os homens podem fazer, já que o mundo só permite que beijem mulheres, depois riu e ficou em pé.

— Mesmo que não devesse ser, ela é — falou. Tirou o relógio do bolso da calça e o consultou. — Tenho que descer a estrada e checar a casa dos Scott. Quer vir comigo?

— Acho que vou ficar aqui sentado mais um pouco — falei, pensando.

Ele desceu os degraus, depois se virou e olhou para mim, com um meio sorriso.

— Acho que 'Phelia tinha razão — disse. — Ela era diferente, naquelas estradas que descobria... não havia coisa alguma que ousasse tocá-la. Você ou eu seríamos tocados, talvez, mas não ela. E acredito que esteja jovem.

Dito isto, ele subiu em seu caminhão, e partiu para checar a casa dos Scott.

Isso foi há dois anos atrás e, desde então, Homer foi para Vermont, como acho que lhe contei. Certa noite, ele veio me ver. Tinha os cabelos penteados, fizera a barba e espalhava um cheiro bom de loção. Seu rosto era límpido, os olhos estavam vivazes.

Naquela noite, ele parecia ter sessenta anos, em vez de setenta. Fiquei satisfeito por ele, invejei-o e também o odiei um pouco. A artrite tem muito de um velho pescador e, naquela noite, parecia que a artrite não tinha nenhum anzol fincado nas mãos de Homer, como fincara nas minhas.

— Estou indo — disse ele.

— Hum-hum?

— Hum-hum.

— Tudo bem. Providenciou para que lhe enviem sua correspondência?

— Não quero que me enviem nada — respondeu ele. — Minhas contas estão pagas. Não deixo nada para trás.

— Bem, dê-me seu endereço. Eu lhe escreverei uma linha de vez enquanto, cavalo velho.

Eu já podia sentir a solidão me cobrindo como uma capa... e ao olhar para ele, sabia que as coisas não eram bem como pareciam.

— Ainda não tenho nenhum — respondeu ele.

— Está bem — falei. — É para Vermont que você vai, Homer?

— Hum... — disse ele. — Será, para quem quiser saber.

Quase me calei, mas acabei fazendo a pergunta:

— Como ela se parece agora, Homer?

— Como Diana — respondeu. — Só que é mais meiga.

— Eu o invejo, Homer — falei, e era verdade.

Fiquei parado à porta. Era crepúsculo, naquela parte intensa do verão em que os campos se enchem de perfume e da erva Renda da Rainha Anne. Uma lua cheia traçava um risco prateado através do lago. Ele cruzou meu alpendre e desceu os degraus. Havia um carro parado no mal definido acostamento da estrada, o motor roncando indolentemente, mas com toda potência, da maneira como fazem os veículos antigos que ainda correm com o conjunto de cavidades cilíndricas em linha reta, e os malditos torpedos. Agora que penso nisso, aquele carro parecia um torpedo. Estava um tanto castigado, mas como se pudesse atingir o máximo sem grande esforço. Homer parou ao pé de minha escada e ergueu algo — era sua lata de gasolina, a grande, com capacidade para dez galões. Seguiu por minha aléia até o lado do carro em que fica o passageiro. Ela se inclinou e abriu a porta. A luz interna acendeu-se e, por um breve relance eu a vi, os longos cabelos ruivos em torno do rosto, a testa brilhando como uma lâmpada. Brilhando como a lira. Ele entrou e ela deu partida. Fiquei em meu alpendre e espiei as luzes traseiras de seu carrinho, piscando vermelho no escuro... ficando cada vez menores e menores. Eram como brasas, depois pareceram pirilampos e sumiram.

Vermont, é o que digo ao pessoal da cidade, e todos acreditam, porque fica tão longe como a maioria consegue ver, dentro de suas cabeças. Às vezes, eu mesmo quase acredito nisso, principalmente quando estou cansado, esfalfado. Contudo, em outras penso neles — fiz isso todo este outubro, me parece, porque é principalmente em outubro que os homens pensam em lugares distantes e nas estradas que podem leva-los a tais lugares. Fico sentado no banco em frente do Mercado de Bell e penso em Homer Buckland, na bela jovem que se inclinou para abrir-lhe a porta, quando ele desceu aquela aléia levando na mão direita a lata vermelha cheia de gasolina — ela parecia uma mocinha com não mais de dezesseis anos, uma estudante com sua permissão de saída, e sua beleza era espetacular. Contudo, não creio mais que sua beleza mate o homem para quem ela se voltar; por um momento,.seus olhos pousaram em mim e eu não morri, embora parte de mim tenha morrido a seus pés.

O Olimpo deve ser uma maravilha para os olhos e o coração, existindo aqueles que anseiam por ele, assim como os que encontram um caminho nítido para atingi-lo, talvez.

No entanto, conheço Castle Rock como a palma da mão e jamais deixaria este lugar, por atalho algum onde existam estradas; em outubro, o céu acima do lago não é uma maravilha, mas eu o acho extraordinariamente belo, com aquelas enormes nuvens brancas que se movem tão devagar; sento-me aqui no banco, penso em 'Phelia Todd e Homer Buckland, mas sem necessariamente querer estar onde eles se acham... porém ainda gostaria de ser um fumante.

 

Sinto um alívio enorme escrevendo isto. Não tenho dormido bem, desde que encontrei meu tio Otto morto, e houve ocasiões em que cheguei a perguntar-me se não ficara louco — ou se ficaria. De certo modo, tudo seria mais misericordioso se eu não estivesse com o objeto real aqui em meu estúdio, onde posso olhar para ele, pegá-lo e avaliar seu peso, se me der vontade. Contudo, não quero fazer isso; não quero tocar essa coisa. Só que, às vezes, eu quero.

Se não a houvesse trazido da casinha de um só cômodo de meu tio, quando fugi de lá, começaria a convencer-me de que tudo não passara de alucinação — uma ilusão de um cérebro sobrecarregado de trabalho e excessivamente estimulado. Contudo, ela está aqui. Tem peso. Pode ser apanhada na mão.

Tudo aconteceu mesmo, compreendam.

A maioria dos que lerem este registro não acreditará, a menos que algo semelhante tenha acontecido a essas pessoas. Descobri que a questão da crença alheia e o meu alívio é algo mutuamente exclusivo, de maneira que ficarei satisfeito em contar a história, mesmo assim. Acreditem no que quiserem acreditar.

Qualquer história de horror deve ter uma origem ou um segredo. A minha tem as duas coisas. Deixem-me começar pela origem — contando como é que meu tio Otto, que era rico pelos padrões do Condado de Castle, passou seus últimos vinte anos de vida em uma casa de um só cômodo, sem água encanada, junto a uma estrada secundária, em uma cidadezinha.

Otto nasceu em 1905, sendo o mais velho das cinco crianças Schenck. Meu pai, nascido em 1920, era o mais novo. Eu fui o filho caçula de meu pai e nasci em 1955, de maneira que o tio Otto sempre me pareceu muito velho.

À semelhança de muitos alemães industriais, meus avós vieram para a América com algum dinheiro. Meu avô instalou-se em Derry, por causa da indústria madeireira, um ramo sobre o qual ele entendia um pouco. Conseguiu ter êxito e seus filhos nasceram em situação confortável.

Meu avô morreu em 1925. Tio Otto, então com vinte anos, foi o único filho a herdar tudo. Mudou-se para Castle Rock e começou a especular na atividade imobiliária. Nos cinco anos seguintes conseguiu juntar um bom dinheiro, lidando com madeiras e terras. Comprou uma grande casa em Castle Hill, tinha criados e desfrutou de sua condição como um rapaz relativamente simpático (digo "relativamente", porque ele usava óculos) e excelente partido para as jovens casadouras. Ninguém o achava esquisito. Isso aconteceu mais tarde.

Ele foi atingido pelo estouro de 29 — não tanto como alguns, mas foi atingido. Permaneceu em sua grande casa de Castle Hill até 1933 e então a vendeu, porque uma grande área madeireira estava à venda por preço ínfimo e ele queria adquiri-la desesperadamente. A área de terra pertencia à Companhia de Papéis Nova Inglaterra.

A Papéis Nova Inglaterra existe até hoje e qualquer um pode adquirir suas ações, desde que o deseje. Em 1933, no entanto, a firma oferecia enormes porções de terra a preços de liquidação, em um último e denotado esforço para manter-se em funcionamento.

Quanta terra havia na área com que meu tio sonhava? A fabulosa escritura original foi extraviada e os relatos diferem... mas em todos eles, eram mais de quatro mil acres. A maioria situava-se em Castle Rock, porém espalhava-se até Waterford e Harlow também. Quando a notícia correu, a Papéis Nova Inglaterra pedia cerca de dois dólares e cinqüenta por acre... se o comprador adquirisse toda a área.

O preço total chegava a dez mil dólares. Tio Otto não dispunha de toda a quantia, de maneira que arranjou um sócio — um ianque chamado George McCutcheon. Se residirem na Nova Inglaterra, vocês certamente conhecerão os nomes Schenk e McCutcheon. A firma foi comprada há bastante tempo, mas ainda existem lojas de ferragens Schenk e McCutcheon em quarenta cidades da Nova Inglaterra, bem como serrarias Schenk e McCutcheon de Central Falls a Derry.

McCutcheon era um sujeito grandalhão, de povoada barba negra. Como meu tio Otto, também usava óculos. E, também como o tio Otto, herdara uma soma em dinheiro. Devia ser uma boa quantia, porque ele e tio Otto conseguiram comprar a tal área juntos, sem maiores problemas. Ambos possuíam natureza de piratas e deram-se muito bem nos negócios. A sociedade durou vinte e dois anos — de fato, até o ano de meu nascimento — e prosperidade era tudo o que eles conheciam.

A história começa com a compra daqueles quatro mil acres, que os dois passaram a explorar no caminhão de McCutcheon, cruzando as estradas entre as florestas e as trilhas dos madeireiros, rodando laboriosamente em primeira quase todo o tempo, sacolejando em vias acidentadas e atolando em lamaçais. Eles se revezavam ao volante, eram dois jovens que se tinham tornado barões da terra na Nova Inglaterra, quando das escuras profundezas da grande Depressão.

Ignoro onde McCutcheon conseguiu aquele caminhão. Tratava-se de um Cresswell, se é que isso importa — uma marca que há muito deixou de existir. Tinha uma boléia enorme, pintada de vermelho-vivo, largos estribos e motor-de-arranque elétrico, mas se este falhasse, apelava-se para a manícula — embora ela pudesse girar fortemente para trás e quebrar o ombro de quem a manejasse, se o indivíduo não tomasse cuidado. A carroceria media seis metros de comprimento, com as laterais fechadas, porém do que mais me lembro naquele caminhão, era de sua parte dianteira. Como a boléia era pintada em vermelho-sangue. Para alcançar-se o motor, era preciso que se levantasse dois painéis de aço, um a cada lado dele. O radiador chegava à altura do tórax de um homem. Era uma coisa feia, mostruosa.

O caminhão de McCutcheon se quebrava e era consertado, tornava a quebrar-se e era novamente consertado. Quando finalmente entregou os pontos, foi de maneira espetacular. Mais ou menos como a sege de um só cavalo, no poema de Holmes.

McCutcheon e tio Otto subiam a estrada Black Henry, certo dia de 1953 e, segundo admitiu meu tio, ambos estavam "bêbados de cair". Tio Otto engatou uma primeira, a fim de subir a colina Trinity. Tudo bem mas, embriagado como estava, ele nem pensou em mudar a marcha, quando iniciou a descida no outro lado. O velho e cansado motor do Cresswell ficou superaquecido. Nem tio Otto ou McCutcheon viram o ponteiro aproximar-se da marcação vermelha com a letra H, no lado direito do mostrador. No final da descida da colina, houve uma explosão que estourou os lados dobráveis do compartimento do motor, como duas asas vermelhas de dragão. A tampa do radiador disparou para o céu de verão. O vapor esguichou em linha reta para o alto, como o gêiser Old Faithful. O óleo espirrou, enchendo o pára-brisa. Tio Otto pisou no pedal do freio, mas no último ano o Cresswell pegara o mau hábito de vazar óleo do freio, de maneira que o pedal foi até o fundo. Não podendo enxergar para onde dirigia, tio Otto saltou da estrada, caindo primeiro em uma vala, depois saindo dela. Se o Cresswell houvesse afogado, tudo ainda terminaria bem, mas o motor continuou trabalhando. Primeiro explodiu um pistão e em seguida mais dois, como fogos de artifícios no Quatro de Julho. Um deles, segundo tio Otto, veio diretamente contra sua porta, que ficara escancarada. O buraco era tão grande, que dava para passar um punho por ele. Finalmente, viram-se todos repousando em um campo repleto das virgas-áureas de agosto. Dali, eles poderiam ter uma bela visão das White Mountains, se o pára-brisa não estivesse coberto de óleo Diamond Gem.

Aquele foi o último rodeio para o Cresswell de McCutcheon; ele nunca mais se moveu daquele campo. Não que houvesse qualquer irritação do dono da terra, pois ela pertencia aos dois sócios, é claro. Consideravelmente lúcidos pela experiência, tio Otto e McChutcheon foram examinar o estrago. Nenhum deles era mecânico, mas nem precisariam ser, para constatar que o ferimento era mortal. Tio Otto ficou constrangido — pelo menos, foi o que contou a meu pai — e ofereceu-se para pagar o caminhão. George McCutcheon respondeu que não fosse tolo. Aliás, MeCutcheon havia ficado em uma espécie de êxtase. Após dar uma olhada ao campo e ver o panorama das montanhas, decidiu que aquele era o lugar onde construiria sua casa de aposentado. Confessou isso a tio Otto, nos tons geralmente reservados para conversações religiosas. Retornaram à estrada e conseguiram carona para Castle Rock no caminhão da Padaria Cushman, que ia passando por ali. McCutcheon contou a meu pai que ali trabalhara a mão de Deus, ele estivera justamente procurando o lugar ideal, quando o lugar estava bem ali, o tempo todo, naquele campo pelo qual passavam três e quatro vezes por semana, sem nunca lhe deitarem os olhos. E a mão de Deus ignorava que ele morreria naquele campo dois anos mais tarde, esmagado pela parte dianteira de seu próprio caminhão — o caminhão que se tornou propriedade de tio Otto, quando seu sócio morreu.

McCutcheon providenciou para que Billy Dodd levasse seu carro-socorro até o Cresswell e o girasse, de modo a deixá-lo com a frente para a estrada. Disse que assim poderia olhar para ele, sempre que passasse por ali. Depois, quando Dodd voltasse a guinchar o caminhão e o rebocasse dali para sempre, naquele lugar é que os operários de construção lhe cavariam uma adega. McCutcheon tinha um toque de sentimentalismo, porém não era homem de permitir que os sentimentos o impedissem de ganhar um dólar. Quando um madeireiro chamado Baker apareceu lá um ano mais tarde, oferecendo-se para comprar as rodas do CresswelI, com pneus e tudo, porque eram do tamanho exato para seu veículo, MCCutcheon aceitou seus vinte dólares em um piscar de olhos. E, lembrem-se, nessa época, ele já era um homem que valia um milhão de dólares. McCutcheon também disse a Baker que calçasse o caminhão, de maneira a mantê-lo em posição elevada. Alegou que não queria passar por ali e vê-lo no campo, quase coberto pelo feno, capim rabo-de-galo e virga-áurea, como se fosse uma carcaça. Baker fez como ele queria. Um ano mais tarde, o Cresswell rolou para fora de seus blocos de sustentação e esmagou McCutcheon, matando-o. Os antigos contavam a história com alívio, mas sempre a encerravam dizendo esperarem que o velho George McCutcheon tivesse aproveitado os vinte dólares conseguidos por aquelas rodas.

Fui criado em Castle Rock. Quando nasci, meu pai já tinha quase dez anos de trabalho para Schenck e McCutcheon, de modo que o caminhão de propriedade do tio Otto, juntamente com tudo o mais que McCutcheon possuía, se tornou um marco em minha vida. Minha mãe costumava fazer compras na casa Warren's, em Bridgton, sendo a estrada Black Henry a única via de acesso até lá. Assim, sempre que passávamos pela estrada, lá estava o caminhão, pousado naquele campo, tendo as White Mountains como fundo. Não se encontrava mais elevado sobre os blocos — tio Otto dizia que um acidente já bastava - mas só a idéia do que ocorrera, era suficiente para provocar arrepios em um garoto de calças curtas.

O Crosswell estava lá no verão; no outono, com os carvalhos e olmos brilhando como tochas, em três bordas do campo; no inverno, às vezes atolado em montes de neve, até e sobre seus faróis semelhantes a olhos de besouro, como um mastodonte a debater-se em branca areia movediça; e na primavera, quando o campo era um lodaçal da lama de março, fazendo a gente perguntar-se como é que o caminhão não afundava na terra. Se não fosse pelo espinhaço subterrâneo de boa rocha do Maine, era bem possível que não acontecesse outra coisa. Através das estações e dos anos, ele estava lá.

Certa vez, até mesmo estive nele. Meu pai estacionou à beira da estrada, no dia em que estávamos a caminho da Feira de Fryeburg, tomou-me pela mão e me levou ao campo.

Acho que foi em 1960 ou 61. Aquele caminhão me amedrontava. Eu ouvira a história de como saltara dos blocos e esmagara o sócio de meu tio.

Ouvira tais relatos na barbearia, quieto como um ratinho, sentado atrás da revista Life que não podia ler, enquanto os homens falavam sobre como McCutcheon havia sido esmagado e como esperavam que o velho George tivesse aproveitado bem os vinte dólares pagos por aquelas rodas. Um deles — talvez fosse Billy Dodd, pai do louco Frank — dizia que McCutcheon ficara parecendo "uma abóbora sobre a qual passara um trator". Isso atormentou meus pensamentos durantes meses... mas meu pai, naturalmente, não sabia de nada.

Ele apenas achou que eu gostaria de sentar-me na boléia daquele velho caminhão; vira a maneira como eu espiava para a carcaça, a cada vez que passávamos ali, e imagino que tomou meu medo por admiração.

Lembro-me das virgas-áureas, com seu amarelo-vivo apagado pela friagem de outubro. Recordo o gosto tristonho do ar, um pouco amargo, um pouco pungente, assim como a aparência prateada da relva morta. Também recordo o uissst-uissst de nossas passadas. Contudo, o que mais recordo é do caminhão avolumando-se, ficando cada vez maior — o rosnado dentado de seu radiador, o vermelho sangrento de sua pintura, a aparência turva de seu pára-brisa. Lembro-me de que o medo me invadiu em uma onda mais fria e cinzenta do que o gosto do ar, quando meu pai me ergueu pelas axilas e colocou-me dentro da boléia, dizendo, " Dirija-o até Portland, Quantin... dirija-o!" Lembro-me do ar passando em meu rosto, enquanto eu subia mais e mais, depois de seu gosto limpo sendo substituído pelos cheiros de antigo óleo Diamond Gem, de couro rachado, de excrementos de ratos e... juro... de sangue. Lembro-me de que tentei não chorar, enquanto meu pai ficava sorrindo para mim, certo de que me proporcionava um prazer e tanto, um grande excitamento (e proporcionava mesmo, mas não da forma como ele imaginava). Naquele momento, tive absoluta certeza de que ele iria embora ou, pelo menos, viraria as costas, e o caminhão me comeria — comeria vivo. E o que depois cuspisse, estaria mastigado, esmigalhado e... como que explodido. Como uma abóbora, amassada por um trator.

Comecei a chorar, e meu pai, que era o melhor dos homens, tirou-me da boléia, consolou-me e me levou de volta ao carro.

Ele me levou sentado em seus ombros. Olhei para o caminhão que ia recuando, parado lá no campo, com seu enorme radiador assomando, o escuro buraco redondo onde se presumia fora aplicado o guincho do carro-socorro, parecendo uma órbita horrendamente deslocada. Eu quis dizer a ele que sentira cheiro de sangue, por isso havia chorado. Só que não sabia como dizer-lhe. Acho que, de qualquer modo, ele não teria acreditado.

Como um menino de cinco anos, que ainda acreditava em Papai Noel, na Fada do Dente e no bicho-papão, eu também acreditava que vinham do caminhão aquelas sensações de coisas ruins e amedrontadoras, quando meu pai me colocara naquela boléia. Levei vinte e dois anos para decidir que não havia sido o Cresswell que assassinara George McCutcheon; meu tio Otto é que fizera isso.

O Cresswell era um marco em minha vida, mas também na dos moradores de toda a redondeza. Quando se explicava a alguém como ir de Bridgton a Castle Rock, dizia-se que ele saberia estar na direção correta, se visse um enorme e velho caminhão vermelho à esquerda da estrada, em um campo de feno, mais ou menos cinco quilômetros após ter deixado a estrada 11. Era comum vermos turistas estacionados na curva de terra macia (às vezes, ficavam atolados lá, o que sempre valia boas risadas), tirando fotos das White Mountains, com o caminhão do tio Otto em primeiro plano, para a devida perspectiva - por muito tempo meu pai chamou o Cresswell de "Memorial Trinity Hill do Caminhão para Turistas", mas acabou parando. A esta altura, a obsessão de tio Otto pelo caminhão já ficara forte demais para ser divertida.

Já falei demais sobre as origens. Agora, vamos ao segredo.

O fato de que ele matou McCutcheon, é um a coisa da qual estou absolutamente convencido. "Amassado como uma abóbora", dizem os entendidos da barbearia. Um deles acrescentou:

— Aposto como ele estava agachado à frente daquele caminhão, rezando, como aqueles árabes sebosos rezam para Alá. Não poso imaginá-lo de outro jeito. Estavam giras, compreendam, todos os dois. Basta ver a maneira como Otto Schenk terminou, se não acreditam em mim. Bem no outro lado da estrada, naquela casinha que ele pensava que a cidade ia aproveitar como escola — e tão biruta como um rato numa casa de doidos.

Isto era colhido com assentimentos e olhares entendidos, porque então, eles pensavam que o tio Otto era esquisito — oh, claro! — porém entre os sabichões da barbearia não havia um só que considerasse aquela imagem — McChutcheon ajoelhado em frente do caminhão "como aqueles árabes sebosos rezando para Alá" — não apenas excêntrica, mas também suspeita.

Em cidades pequenas, os boatos sempre fervem; pessoas são condenadas como ladras, adúlteras, caçadoras ou pescadoras furtivas e trapaceiras, à mais leve evidência e às piores deduções. Creio que, muitas vezes, o falatório se origina acima de tudo do tédio. Em minha opinião, o que impede que isso seja realmente cruel — que é como a maioria dos romancistas pintou as cidadezinhas, de Nathaniel Hawthome e Grace Metalious — é o fato de serem curiosamente ingênuos (em sua maior parte) os boatos transmitidos pelas linhas telefônicas partilhadas, na mercearia ou barbearia. É como se tais pessoas, esperando a maldade e a futilidade, passam a inventá-las quando elas não existem. Contudo, o mal consciente e real pode estar além de sua concepção, mesmo quando flutua bem diante de seus olhos, como um tapete mágico de um daqueles contos de fadas dos árabes sebosos.

Como sei que foi ele? perguntam vocês. Só porque estava em companhia de McCutcheon naquele dia? Não. É por causa do caminhão. Do Cresswell. Quando a obsessão começou a dominar tio Otto, ele foi morar naquela casinhola, bem no outro lado da estrada... embora nos últimos anos de sua vida tivesse um medo mortal de que o caminhão fosse até lá.

Penso que tio Otto atraiu McCutcheon ao campo onde estava o caminhão, elevado em cima de blocos, com a desculpa de ouvi-lo falar sobre os planos para sua casa. MeCutcheon estava sempre disposto a falar na tal casa e em seu próximo afastamento dos negócios. Os sócios tinham recebido uma boa oferta, de uma companhia muito maior — não mencionarei seu nome, mas se o fizesse, todos saberiam qual é — e McCutcheon queria aceitá-la. Tio Otto era contrário à idéia. Houvera um quieto desentendimento desenvolvendo-se entre os dois, por causa daquela oferta, desde a primavera. Acho que esse desentendimento foi o motivo pelo qual tio Otto resolveu livrar-se do sócio.

Creio que meu tio podia haver-se preparado para o momento, fazendo duas coisas: primeira, minando os blocos que sustinham o caminhão, e segunda, deixando algo no chão, talvez um pouco enterrado nele, mas diretamente em frente do caminhão, onde McCutcheon pudesse vê-lo.

O que colocaria lá? Não sei. Algo brilhante. Um diamante? Nada mais que um pedaço de vidro quebrado? Não vem ao caso. O objeto reflete o sol e brilha. Talvez McCutcheon o veja. Se não o vir, fiquem certos de que tio Otto lhe mostrará. O que é aquilo? pergunta ele, apontando. Não sei, responde McCutcheon, apressando-se a verificar bem de perto.

McCutcheon fica de joelhos em frente do Cr esswell, exatamente como um daqueles árabes sebosos rezando para Alá, tentando arrancar o objeto do chão, enquanto meu tio dá a volta casualmente, até atrás do caminhão. Um bom empurrão, e lá se vai ele abaixo, esmagando McCutcheon no ato. Amassando-o como uma abóbora.

Desconfio que nele devia haver muito de pirata, para morrer facilmente. Em minha imaginação, eu o vejo preso debaixo do focinho inclinado do caminhão, o sangue escorrendo de seu nariz, sua boca e seus ouvidos, o rosto branco como papel, os olhos escuros, suplicando a ajuda de meu tio, pedindo-lhe que consiga um socorro rápido. Suplicando... depois implorando... e finalmente xingando meu tio, ameaçando matá-lo, acabar com ele... e meu tio parado, espiando, com as mãos nos bolsos, até tudo terminar.

Não se passou muito tempo depois da morte de McCutcheon, para que meu tio começasse a fazer coisas que, a princípio, eram descritas pelos sabichões da barbearia como estranhas... depois como esquisitas... e por fim, como "infernalmente singulares". As coisas que finalmente o levaram à condenação, no curioso palavreado da barbearia, sendo julgado "tão biruta como um rato em uma casa de doidos", chegaram na plenitude do tempo — mas na mente de todos parecia haver pouca dúvida de que suas peculiaridades começaram mais ou menos na época em que George McCutcheon morreu.

Em 1965, tio Otto fez construir uma casinha junto à estrada, no lado fronteiro ao caminhão. Houve muito falatório sobre o que Otto Schenck pretendia fazer na estrada Black Henry, junto à colina Trinity. A surpresa foi total, quando tio Otto chegou ao acabamento da pequena construção, fazendo Chuckie Barger pintá-la com uma brilhante mão de tinta vermelha, e então anunciou que era um presente à cidade — uma nova e bela escola, segundo disse, pedindo apenas que lhe dessem o nome de seu falecido sócio.

Os membros do conselho municipal de Castle Rock ficaram estupefatos. Como todo mundo nos arredores. Em Rock, a maioria freqüentara aquelas escolas de um só aposento (ou achava que tinha freqüentado, o que vem a dar quase no mesmo). Contudo, em 1965, todas as escolas de apenas uma sala haviam sido abolidas em Castle Rock. A última, a Castle Ridge School, fora fechada um ano antes. Hoje é uma casa de pizzas, a Steve's Pizzaville, ao lado da estrada 117. No momento, a cidade contava com uma escola primária, erigida em vidro e cimento no lado mais distante da área comunitária, bem como um moderno e excelente ginásio na Rua Carbine. Em decorrência de sua excêntrica oferta, tio Otto conseguira preencher, em uma só penada, todos os quesitos que iam de "estranho" a "infernalmente singular".

Os conselheiros municipais enviaram-lhe uma carta (nenhum deles parecendo com muita coragem de procurá-lo pessoalmente) agradecendo a gentileza e esperando que ele se lembrasse da cidade no futuro, mas declinando da escolinha, sob a alegação de que todas as necessidades educacionais das crianças da cidade já haviam sido providenciadas. Tio Otto ficou danado da vida. Lembrar-se da cidade no futuro? esbravejou para meu pai. Claro que se lembraria, mas não da maneira como eles queriam. Ele não havia nascido ontem. Sabia perfeitamente como eram os homens, a humanidade. E se queriam disputar com ele um concurso de mijo à distância, afirmou, iam ver que podia mijar como uma doninha-fedorenta que tivesse acabado de embocar um barrilete de cerveja.

— E agora? — perguntou-lhe meu pai.

Estavam sentados à mesa da cozinha, em nossa casa. Minha mãe fora costurar, no andar de cima. Ela dizia que não gostava do tio Otto. Dizia que ele cheirava como um homem que só tomasse banho uma vez por mês, precisando ou não — "e logo ele, um homem rico", sempre acrescentava, com uma fungadela. Acho que o cheiro dele realmente a irritava, mas também acho que minha mãe o temia. Por volta de 1965, tio Otto começara a parecer singularmente peculiar, também agindo da mesma forma. Andava vestido com calças verdes de operário, seguras por suspensórios, uma camisa de baixo térmica e enormes sapatos amarelos de trabalho. Seus olhos haviam começado a girar em direções estranhas, enquanto ele falava.

— Hum?

— O que vai fazer com a casa agora?

— Vou morar na filha da mãe — bufou tio Otto, e foi o que fez.

Não há muito a acrescentar à história de seus últimos anos. Ele sofria daquela triste espécie de loucura que costumamos ver relatada nos tablóides de jornais baratos. Milionário Morre de Subnutrição em Casa de Cômodos. Registros Bancários Revelam, a Mendiga era Rica. Magnata Banqueiro Morre Esquecido e Abandonado.

Ele se mudou para a casinha vermelha — em anos posteriores, sua pintura desbotou para um rosado fosco — logo na semana seguinte. Nada que meu pai dissesse conseguiu dissuadi-lo. Um ano mais tarde, ele vendeu o negócio que, segundo creio, procurara conservar através do assassinato. Suas excentricidades multiplicaram-se, mas o senso de negócios não o abandonou e ele conseguiu um vistoso lucro — em realidade, espantoso seria uma palavra mais adequada.

Assim, lá estava meu tio Otto, valendo talvez uns sete milhões de dólares, morando naquela casinha junto à estrada Black Henry. Sua moradia na cidade foi abandonada e trancada. Então, ele progredira de "infernalmente peculiar" para "biruta como um rato doido". A progressão seguinte é expressa em termos mais crus, menos coloridos, porém mais ominosos: "talvez perigoso". Tais palavras são, freqüentemente, seguidas pela convicção.

À sua maneira, tio Otto se tornou uma peculiaridade bem semelhante ao caminhão no outro fado da estrada, embora eu duvide que algum turista se interessasse em tirar o seu retrato. Ele deixou a barba crescer, uma barba que se revelou mais amarelada do que branca, como que infectada pela nicotina de seus cigarros. Também engordou muito. Sua papada pendia em dobras de carne, marcadas pela sujeira. Os moradores do lugar costumavam vê-lo parado à soleira de sua singular casinhola, apenas parado e imóvel, espiando a estrada e além dela.

Espiando o caminhão — o seu caminhão.

Quando tio Otto parou de ir à cidade, meu pai procurou certificar-se de que ele não morreria de fome. Levava-lhe mantimentos todas as semanas, pagando-os de seu próprio bolso, porque tio Otto nunca lhe devolvia o dinheiro — nunca pensava nisso, creio eu. Papai faleceu dois anos antes do tio Otto, cuja fortuna terminou indo para o Departamento Florestal da Universidade do Maine. Soube que eles ficaram encantados. Considerando-se a quantia, devem ter ficado mesmo.

Em 1972, depois que consegui minha licença de motorista, eu costumava levar-lhe os mantimentos semanais. A princípio, ele me encarava com franca suspeita, mas após um certo tempo, começou a descongelar. Foi três anos mais tarde, em 1975, que me contou, pela primeira vez, que o caminhão rastejava para a casa.

Na época, eu cursava a Universidade do Maine mas, sendo verão, estava em casa e retomei o velho hábito de levar-lhe os mantimentos semanais. Tio Otto ficava sentado à sua mesa, fumando, vendo-me separar os alimentos enlatados e me ouvindo tagarelar. Achei que ele poderia ter esquecido quem eu era. Ele às vezes esquecia... ou fingia esquecer. Em certa ocasião, deixou-me com o sangue gelado nas veias quando, da janela, perguntou "É você, George?" ao ver-me subir até a casa.

Naquele particular dia de julho, em 1975, tio Otto interrompeu uma tagarelice trivial minha para perguntar, rude e subitamente:

— O que acha daquele caminhão lá fora, Quentin?

Sua aspereza arrancou-me uma resposta sincera:

— Quando tinha cinco anos, molhei as calças na boléia dele. Penso que tornaria a molhá-las, se voltasse lá agora.

Tio Otto riu, alto e demoradamente. Olhei para ele, surpreso, já que não me lembrava de tê-lo ouvido rir antes. Sua risada terminou em prolongado acesso de tosse, deixando-o com as bochechas vivamente coradas. Então, virou-se para mim, com olhos cintilantes.

— Está ficando mais próximo, Quent — disse,

— O que, tio Otto? — perguntei.

Pensei que, mais uma vez, ele saltava enigmaticamente de um assunto para outro — talvez quisesse dizer que o Natal estava mais próximo, talvez o Milênio ou a volta de Cristo Rei.

— Aquela peste de caminhão — disse ele, fitando-me de modo enviezado e confidencial, que não gostei muito. — Fica mais próximo a cada ano.

— É mesmo? — perguntei cautelosamente, pensando que ali havia uma nova e bastante desagradável idéia.

Olhei para fora e vi o Cresswell no outro la do da estrada, cercado de feno por todos os lados, com as White Mountains ao fundo... e por um alucinado minuto, ele realmente pareceu mais próximo. Depois, quando pisquei, a ilusão se desfez. O caminhão continuava onde sempre estivera, claro está.

— Oh, sim — disse tio Otto. — Fica um pouco mais próximo a cada ano que passa.

— Ora, talvez esteja precisando de óculos, tio Otto. Eu não vejo diferença alguma.

— Claro que não vê! — bufou ele. — Também não vê o ponteiro das horas se movendo em seu relógio de pulso, certo? Aquela peste de coisa se move devagar demais para que se veja... a menos que seja vigiada o tempo todo. Como vigio esse caminhão.

Ele piscou para mim e eu estremeci.

— Por que ele se moveria? — perguntei.

— Ele quer a mim, eis o motivo — respondeu tio Otto. — Não pensa em outra coisa, o tempo todo. Um dia, vai irromper aqui dentro, e então será o fim. Ele acabará comigo, como fez com Mac, e será o fim.

Aquilo me deixou bastante assustado. Acho que seu tom perfeitamente lúcido é que mais me impressinou. E a maneira como os jovens costumam reagir ao medo, é bancando os espertos ou ficando petulantes.

— Se isso o preocupa, devia mudar-se para sua casa na cidade, tio Otto — falei.

Quem me ouvisse falando com tal despreocupação, jamais saberia que eu tinha as costas inteiramente arrepiadas. Tio Otto olhou para mim... e depois para o caminhão, no outro lado da estrada.

— Não posso, Quentin — disse ele. — Às vezes, um homem tem que ficar em um lugar, esperando o que virá.

— E o que é que virá, tio Otto? — perguntei, embora imaginando que ele se referisse ao caminhão.

— O destino — disse ele.

Tio Otto tornou a piscar... mas parecia amedrontado.

Meu pai caiu de cama em 1979, com a doença renal que parecia estar melhorando, apenas poucos dias antes de finalmente matá-lo. No outono daquele ano, em várias visitas ao hospital, eu e meu pai conversamos sobre tio Otto. Meu pai tinha algumas suspeitas sobre o que podia ter de fato acontecido em 1955 — suspeitas leves, que se tornaram o fundamento para outras mais sérias. Meu pai não imaginava o quanto a obsessão de tio Otto com o caminhão se tornara grave ou profunda. Eu, no entanto, percebia. Ele ficava quase o dia inteiro parado à porta de sua casa, espiando o caminhão. Espiando, como um homem observando o relógio de pulso, para ver o ponteiro das horas mover-se.

Por volta de 1981, tio Otto perdera o pouco que lhe restava de lucidez. Um homem mais pobre já teria sido internado anos antes, porém milhões no banco podem perdoar bastante loucura em uma cidadezinha — em especial se há pessoas suficientes pensando que no testamento do sujeito louco pode existir algum legado para a municipalidade. Ainda assim, em 1981 já havia gente começando a falar seriamente na internação de tio Otto, para o próprio bem dele. Aquela frase "talvez perigoso", manifesta e implacável, começara a suplantar "biruta como um rato doido". Ele agora passara a sair de casa e urinar à beirada estrada, em vez de sair pelos fundos e ir até a floresta, onde ficava sua privada. Por vezes, enquanto se aliviava, sacudia o punho fechado para o Cresswell e várias pessoas, passando de carro, pensavam que tio Otto sacudia o punho para elas.

Uma coisa era o caminhão com as cênicas White Mountains ao fundo; outra totalmente diversa era o tio Otto urinando à beira da estrada, com os suspensórios pendurados à altura dos joelhos. Aquilo não era atração turística.

Por essa época, eu usava com mais freqüência um terno completo, do que as blue jeans que me tinham acompanhado durante a faculdade, quando levava para meu tio seus mantimentos semanais — mas continuava a levar seus alimentos. Também procurei convencê-lo de que precisava parar de fazer suas necessidades à beira da estrada, pelo menos durante o verão, quando podia ser visto por gente do Michigan, Missouri ou Flórida, que acontecesse passar por ali.

Minhas palavras foram em vão. Ele não se dava ao luxo de preocupar-se com insignificâncias, quando tinha o caminhão para incomodá-lo. Aquela obsessão com o Creeswell se tornara mania. Ele agora clamava que o caminhão passara para o seu lado da estrada — para ser mais exato, que estava bem no seu quintal.

— Acordei esta noite, lá para as três horas, e aí estava ele, bem junto da janela, Quentin — queixou-se tio Otto. — Eu o vi, com o luar brilhando no pára-brisa, a menos de dois metros de onde eu estava deitado, e meu coração quase parou. Ele quase parou, Quentin.

Levei-o ao lado de fora e apontei para o Cresswell, que continuava onde sempre estivera, do outro lado da estrada, no campo onde McCutcheon planejara construir sua casa. Não adiantou.

— Isso é o que você vê, rapaz — disse ele, com infinita raiva na voz, um cigarro tremendo em uma das mãos, os olhos girando nas órbitas. — É só o que você vê!

— Tio Otto — falei, tentando ser espirituoso — a gente vê aquilo que é persuadido a ver.

Foi como se ele não me tivesse ouvido.

— O maldito quase me pegou — sussurrou.

Senti um arrepio. Ele não parecia louco. Infeliz, sim, e aterrorizado, sem dúvida... mas não louco. Por um momento, recordei meu pai, levantando-me no ar e colocando-me na boléia daquele caminhão. Recordei o cheiro de óleo, de couro... e de sangue.

— Ele quase me pegou — repetiu tio Otto.

E, três semanas mais tarde, assim foi.

Eu é que o encontrei. Era noite de quarta-feira, e saí com duas sacolas de mantimentos no banco traseiro do carro, como fazia quase sempre nas noites de quarta-feira. Estava quente, o ambiente era pesado. De vez em quando, um trovão rugia à distância. Lembro- me de que estava nervoso, enquanto subia a estrada Black Henry em meu Pontiac. Era como se estivesse certo de que algo ia acontecer, embora procurasse convencer-me de que tudo era apenas produto da baixa pressão barométrica.

Dobrei a última curva e, no momento em que a casinha de meu tio surgiu à vista, tive a mais estranha alucinação — por um instante, pensei que o maldito caminhão estava realmente à sua porta, grande e volumoso, com sua pintura vermelha e os lados apodrecidos da carroceria. Pensei em frear , mas antes que meu pé baixasse o pedal, pisquei e a ilusão se desfez. No entanto, eu sabia que tio Otto estava morto. Sem fanfarras e holofotes; era apenas o mero conhecimento, da mesma forma como conhecemos a disposição dos móveis, em um aposento familiar.

Parei apressadamente à sua porta e saí do carro, começando a caminhar para a casa sem me preocupar em levar os mantimentos.

A porta estava aberta — ele nunca a trancava. Perguntei-lhe o motivo disso certa vez e, pacientemente, da maneira como se explicaria algo manifestamente óbvio a um simplório, ele me disse que trancar a porta não manteria o Cresswell do lado de fora.

Ele estava deitado na cama, que ficava à esquerda do único aposento — a área da cozinha ocupando a direita. Jazia lá, com suas calças verdes e a camisa de baixo térmica, os olhos abertos e vidrados. Acredito que teria morrido menos de duas horas antes. Não havia moscas e nem cheiro algum, embora aquele houvesse sido um dia brutalmente quente.

— Tio Otto? — chamei quietamente, sem esperar resposta.

Ninguém vai para a cama e fica lá deitado, de olhos abertos e vidrados daquele jeito. Se senti alguma coisa, foi alívio. Tudo terminara.

— Tio Otto? — repeti, aproximando-me. — Tio...

Interrompi-me, ao notar pela primeira vez como a parte inferior de seu rosto parecia estranhamente deslocada — como se estivesse inchada e torcida. Pela primeira vez, notei que suas pupilas não apenas olhavam, mas estavam realmente espiando com fìxidez, em suas órbitas. Só que não se dirigiam para a porta ou para o teto. Estavam torcidas, em direção à pequena janela acima da cama.

Acordei esta noite, lá para as três horas, e aí estava ele, bem junto da janela, Quentin. Ele quase me pegou.

Amassou-o como uma abóbora, ouvi um dos boateiros da barbearia dizendo, enquanto eu estava sentado lá, fingindo ler uma revista Life e aspirando os aromas de Vitalis e óleo Cremoso Wildroot.

Quase me pegou, Quentin.

Aqui havia um cheiro — não de barbearia e não apenas o fedor de um velho sujo.

Era um cheiro oleoso, como de uma garagem.

— Tio Otto? — sussurrei.

Caminhei para a cama onde ele jazia e tive a sensação de encolher, não apenas em tamanho, mas em anos... voltando aos vinte novamente, quinze, dez, oito, seis anos... e por fim, cinco. Vi minha mão estender-se para sua face inchada. Quando minha mão o tocou, abarcando-lhe a face, ergui os olhos e a janela estava tomada pelo brilhante pára brisa do Cresswell — e embora fosse apenas por um momento, poderia jurar sobre a Bíblia como não foi alucinação. O Cresswell estava ali, na janela, a menos de dois metros de mim.

Eu havia pousado os dedos em uma das bochechas de tio Otto, meu polegar sobre a outra, querendo investigar aquela curiosa inchação, imagino. Quando vi o caminhão na janela, minha mão tentou crispar-se em um punho fechado, esquecendo que a tinha ajustada frouxamente em torno da parte inferior do rosto do cadáver.

Naquele instante, o caminhão desapareceu da janela como fumaça ou como o fantasma que imagino que fosse. Simultaneamente, ouvi um ruído de algo esguichando. Minha mão se encheu de líquido quente. Olhei para ela, percebendo que não segurava apenas carne e umidade, mas também alguma coisa dura e angulosa. Olhei para baixo e vi. Foi então que comecei a gritar. Havia óleo escorrendo da boca e do nariz de tio Otto. Óleo, fluindo dos cantos de seus olhos como lágrimas. Óleo Diamond Gem — do tipo reciclado que se compra em um recipiente plástico de cinco galões, do mesmo tipo que McCutcheon sempre usara no Cresswell.

Contudo, não havia apenas óleo; vi algo mais, assomando da boca de tio Otto.

Parei de gritar por um momento e fui incapaz de mover-me, incapaz de afastar de seu rosto minha mão suja de óleo, incapaz de afastar os olhos daquela enorme coisa oleosa que apontava em sua boca — a coisa que deixara tão distorcido o formato de sua face.

Por fim, minha paralisia cessou e saí correndo da casa, ainda aos gritos. Cruzei a porta até meu Pontiac, enfiei-me no carro e gritei de lá. Os mantimentos que trouxera para tio Otto escorregaram do banco traseiro para o chão, os ovos se quebraram.

Foi por milagre que não me matei nos primeiros três quilômetro — olhei para o velocímetro e vi que estava a mais de cento e dez. Parei na beira da estrada, fiz algumas respirações profundas e consegui recuperar parte do meu controle. Comecei então a perceber que, simplesmente, não podia deixar o tio Otto como o encontrara; aquilo levantaria muitas perguntas. Eu tinha que voltar lá.

Além disso, devo admitir que fora tomado por uma certa curiosidade infernal. Hoje, desejaria não havê-la sentido ou ignorá-la; de fato, se acontecesse agora, eu deixaria tudo correr por si mesmo, que eles fizessem suas perguntas. Não obstante, eu voltei lá. Fiquei alguns minutos parado diante da porta de tio Otto — mais ou menos no mesmo lugar e idêntica posição de quando meu tio permanecia ali, tão demorada e freqüentemente, olhando para aquele caminhão. Fiquei ali e cheguei a esta conclusão: o caminhão através de estrada mudara de lugar, embora ligeiramente.

Entrei na casinha.

As primeiras moscas estavam circulando e zumbindo em torno do rosto dele. Eu podia ver marcas oleosas de dedos em suas faces: o polegar na esquerda, três dedos na direita. Olhei nervosamente para a janela a onde vira o Cresswell assomando... e então aproximei-me da cama. Peguei meu lenço e limpei aquelas marcas de dedos. Então, inclinando-me, abri a boca do tio Otto.

O que caiu de sua boca era uma vela de ignição Champion — uma do antigo tipo Maxi Duty, quase tão grande como o punho de um homem-forte de circo.

Levei-a comigo. Hoje, desejaria não ter feito isso mas, naturalmente, naquele momento eu estava em choque. Tudo teria sido muito mais misericordioso, se eu não estivesse com o objeto real aqui em meu estúdio, onde posso olhar para ele, pegá-lo e avaliar seu peso, se me der vontade — a vela de ignição fabricada na década de 20, que caiu da boca do tio Otto.

Se a vela não estivesse lá, eu não a teria trazido da casinha de um só cômodo de meu tio, quando fugi de lá às pressas, pela segunda vez. Então, talvez eu começasse a convencer-me de que tudo aquilo — não apenas dobrar a curva e ver o Cresswell encostado ao lado da casinha, como um enorme sabujo vermelho, mas tudo o que aconteceu — foi apenas uma alucinação. Contudo, a vela está aqui; ela capta a luz. É real. Tem peso. O caminhão está mais próximo a cada ano, disse ele, e agora me parece que tinha razão... mas o próprio tio Otto jamais imaginaria o quão próximo aquele Cresswell podia chegar.

O veredito da cidade foi de que meu tio se matara engolindo óleo e isto gerou nove dias de espanto em Castle Rock. Carl Durkin, coveiro local e não o mais boca-fechada dos homens, contou que quando os médicos o abriram para a autópsia, encontraram mais de três litros de óleo nele... e não apenas em seu estômago. Havia óleo em todo o seu organismo. O que todos na cidade indagavam era: o que tinha ele feito com o recipiente plástico? Porque jamais foi encontrado qualquer recipiente.

Como falei, a maioria dos que lerem estas linhas não acreditará em nada... em absoluto, a menos que algo semelhante lhe tenha acontecido. O caminhão, entretanto, continua lá, em seu campo... e, sejam quais forem os seus méritos, tudo isto aconteceu.

 

Rocky e Leo, ambos embriagados como os últimos senhores da criação, rodaram lentamente pela Rua Culver e depois ao longo da Avenida Balfour, em direção à Crescent. Estavam repimpados no Chrysler 1957 de Rocky. Entre os dois, equilibrada com bêbado cuidado sobre a monstruosa protuberância do eixo motor do Chrysler, repousava uma caixa de cerveja Iron City. Aquela era a segunda caixa deles na noite — uma noite que realmente começara às quatro da tarde, hora de encerramento do expediente na lavanderia.

— Raios me partam! — exclamou Rocky, parando na pestanejante luz vermelha do cruzamento da Avenida Balfour e a Higway 99.

Não viu movimento de carros em nenhuma das duas direções, mas atirou um tímido olhar para trás. Entre suas pernas, descansava uma lata de I. C., pela metade. Ele tomou um gole e depois virou para a esquerda, entrando na 99. A junta universal emitiu um sonoro grunhido, quando a descarga começou a pipocar em segunda. O Chrysler havia perdido sua primeira marcha, uns dois meses antes.

— Dê-me um raio, que eu o parto — disse Leo, amavelmente.

— Que horas são?

Leo ergueu o pulso com relógio até bem perto da ponta do cigarro e então sugou furiosamente, até conseguir ver as horas.

— Quase oito — disse.

— Raios me partam!

Haviam passado por um sinal dizendo PITTSBURGH 44.

— Ninguém irá vistoriar esta gracinha de Detroit — disse Leo. — Pelo menos, ninguém em seu juízo perfeito.

Rocky passou para terceira. A junta universal resmungou para si mesma e o Chrysler começou a ter o equivalente automotriz de um ataque epiléptico, petit mal. O espasmo cessou eventualmente e o velocímetro subiu aos poucos para sessenta e cinco, onde pendeu precariamente.

Quando alcançaram o cruzamento da Highway 99 com a Devon Stream Road (Devon Stream formava a fronteira entre as jurisdições de Crescent e Devon, durante uns treze quilômetros), Rocky dobrou para a última, quase por impulso. Era possível que, naquilo que funcionava como seu subconsciente, muito lá no fundo, houvesse sido despertada alguma lembrança do velho Meia Suja.

Ele e Leo haviam estado dirigindo mais ou menos ao acaso, desde a saída do trabalho.

Era o último dia de junho, e o cartão de inspeção do Chrysler de Rocky perderia a validade exatamente às 12:01 do dia seguinte. Quatro horas, a partir de agora. Menos de quatro horas, a partir daquele exato momento. Rocky achava esta eventualidade quase demasiado dolorosa para ser contemplada e, quanto a Leo, não fazia diferença. O carro não lhe pertencia. Além do mais, bebera suficiente cerveja Iron City para alcançar um estado de profunda paralisia cerebral.

Devon Road serpenteava pela única área fortemente arborizada de Crescent. Nos dois lados da estrada amontoavam-se grandes maciços de olmos e carvalhos, exuberantes, vivos e repletos de sombras móveis, à medida que a noite se fechava no sudoeste da Pensilvânia. De fato, a área era conhecida como Os Bosques Devon. Conseguira uma situação com letras maiúsculas, após a tortura-assassinato de uma jovem e seu namorado, em 1968. O casal estivera estacionado ali, sendo encontrado no Mercury 1959 do namorado. O carro tinha assentos de couro legítimo e um grande enfeite cromado no capô. Os ocupantes estavam no assento traseiro. E também no dianteiro, no porta-mala e porta-luvas. O assassino jamais fora encontrado.

— É melhor que o motor desta lata velha não afogue aqui — disse Rocky. Estamos a cento e cinqüenta quilômetros de lugar nenhum.

— Cascata. — Esta interessante palavra, ultimamente ocupava o primeiro lugar entre as quarenta que compunham o vocabulário de Leo. — Lá está uma cidade, bem à frente.

Rocky suspirou e tomou outro gole de sua lata de cerveja. O clarão à vista não era realmente de uma cidade, porém o rapaz estava perto o suficiente para tornar inútil qualquer discussão. Era o novo centro comercial. Aquelas lâmpadas de sódio de alta luminosidade realmente emitiam claridade. Enquanto olhava naquela direção, Rocky dirigiu o carro para o lado esquerdo, gingou de volta, quase foi para o acostamento da direita, mas finalmente tornou a enfileirar-se em sua faixa.

— Caramba — disse ele.

Leo arrotou e gorgolejou.

Eles haviam estado trabalhando juntos na Lavanderia New Adams desde setembro, quando Leo tinha sido contratado como ajudante de Rocky. Leo era um rapaz de vinte e dois anos, com feições de roedor e parecendo ter em seu futuro um bocado de passagens pela cadeia. Ele alegava estar economizando vinte dólares semanais de seu pagamento, a fim de comprar uma motocicleta Kawasaki usada. Dizia que viajaria na moto para o oeste, assim que chegasse o tempo frio. Leo já passara por uns doze tipos de empregos, desde que se despedira do mundo estudantil, à idade mínima de dezesseis anos. Estava gostando bastante de trabalhar na lavanderia. Rocky lhe ensinava os vários ciclos da lavagem de roupa, fazendo-o acreditar firmemente que aprendia uma Especialização, algo muito conveniente, quando de sua chegada a Flagstaff.

Empregado mais antigo, Rocky já tinha quatorze anos na New Adams. Prova disso eram suas mãos, espectrais e manchadas ao volante. Ele já pegara quatro meses em 1970, por porte oculto de arma. Sua esposa, então obesamente grávida com o terceiro filho do casal, havia anunciado

1) que a criança não era dele, mas do leiteiro; e

2) que queria o divórcio, sob a alegação de crueldade mental.

Dois fatos a respeito dessa situação induziram Rock a andar com aquela arma:

  1. l) fora corneado;

2) fora corneado pelo imbecil do leiteiro, um infeliz com olhos de peixe morto e cabelos compridos, chamado Spike Milligan. Spike dirigia o furgão leiteiro da Laticínios Cramer's.

Logo o leiteiro, pelo amor de Deus! O leiteiro não faltava mais nada! Não era para um homem atirar-se à sarjeta e morrer? Mesmo para Rocky, que nunca fora muito além da leitura dos Fleer's Funnies, as histórias em quadrinhos enroladas em torno da goma de mascar que ele mascava infatigavelmente no trabalho, a situação continha sonoras e clássicas implicações.

Em vista disso, comunicara à esposa, sombriamente, dois fatos:

1) nada de divórcio; e

2) ia ver a cor de um bocado de miolos de Spike Milligan.

Havia comprado uma pistola calibre 32 uns dez anos antes, que usava ocasionalmente para atirar em garrafas, latas vazias e cães de pequeno porte. Naquela manhã, saíra de sua casa na Rua Oak e rumara para a lavanderia, esperando pegar Spike, quando ele terminasse as entregas matinais.

Rocky fizera alto na Taverna Quatro Esquinas, a fim de tomar algumas cervejas — seis, oito, talvez vinte. Era difícil lembrar. E, enquanto bebia, sua mulher chamou os tiras.

Eles estavam à sua espera, na esquina de Oak com Balfour. Rocky havia sido revistado e um dos tiras encontrou o 32, em seu cinto.

— Acho que vai ausentar-se por algum tempo, meu amigo — disse o tira que encontrou sua arma.

Foi exatamente o que Rocky fez. Passou os quatro meses seguintes lavando lençóis e fronhas para a Estadual da Pensilvânia. Durante esse período, sua esposa conseguira um divórcio em Nevada, de maneira que quando Rocky saiu de trás das grades, ela vivia com Spike Milligan na Rua Dakin, em um prédio de apartamentos com um flamingo cor-de-rosa no gramado fronteiro. Juntamente com os dois filhos mais velhos (Rocky ainda mais ou menos presumia que fossem seus), o casal agora possuía um bebê, absolutamente tão olhos de peixe morto como seu pai. Também contava com uma pensão alimentícia semanal de quinze dólares.

— Andar tanto de carro está me dando náuseas, Rocky — disse Leo. Não podíamos parar um pouco e beber?

— Tenho que dar um jeito em minhas rodas — disse Rocky. — Um homem não é nada, sem suas rodas.

— Ninguém em seu juízo perfeito vai vistoriar isto — já lhe disse. Seu carro não tem sinalização para dobrar.

— As luzes piscam a cada vez que piso no freio, e quem não pisa no freio quando faz uma curva, está querendo capotar.

— O vidro da janela deste lado está rachado.

— Ele pode ser descido.

— E se quem for vistoriar pedir que você o levante, para que possa checá-lo?

— Bem, se chegar a este ponto, eu estou roubado — disse Rocky friamente.

Jogou fora a lata de cerveja e pegou uma nova. Esta tinha a figura de Franco Harris estampada. Pelo visto, a Iron City estava endeusando os Maiores Sucessos dos Steeler, naquele verão. Rocky abriu o topo da lata. A cerveja esguichou para fora.

— Eu gostaria de ter uma mulher — disse Leo, olhando para o escuro e sorrindo estranhamente.

— Se tivesse uma, você nunca iria para o oeste. É isso que uma mulher faz, impedir que um homem vá para mais oeste. É assim que elas operam. É a sua missão. Não me disse que queria ir para o oeste?

— Disse, e vou.

— Você nunca irá — replicou Rocky. — Dentro em breve terá uma mulher. Logo depois estará ferrado. Pensão alimentar. Entende? As mulheres estão sempre querendo a pensão alimentar. Os carros são melhores. Fique firme neles.

— É um bocado difícil transar com um carro.

— Você ficaria surpreso — disse Rocky e deu uma risadinha.

O bosque começava a rarear, substituído por novas moradias. Luzes piscaram à esquerda e Rocky pisou subitamente no freio. As luzes de frear e de sinalização ligaram-se imediatamente; um macete de fabricação caseira, por meio de fios. Leo foi atirado para diante, salpicando cerveja no assento.

— O que foi? O que foi? — perguntou.

— Veja — disse Rocky. — Acho que conheço aquele cara.

No lado esquerdo da estrada havia uma garagem arruinada e um posto de gasolina Citgo. Na fachada, um letreiro dizia:

GASOLINA E SERVIÇO BOB'S BOB DRISCOLL, PROP. ALINHAMENTO DIANTEIRO — NOSSA ESPECIALIDADE DEFENDA SEU LEGÍTIMO DIREITO DE USAR ARMAS!

E, bem no final:

POSTO ESTADUAL DE INSPEÇÃO 72

— Ninguém em seu juízo perfeito... — recomeçou Leo.

— É Bob Driscoll! — exclamou Rocky. — Eu e Bobby fomos colegas de escola! Fizemos misérias por lá, pode apostar!

Manobrou desajeitadamente, os faróis iluminando a porta aberta da garagem. Depois, pisando na embreagem, investiu para lá. Um homem de ombros encurvados, vestindo macacão verde, correu para fora, gesticulando freneticamente para que ele parasse.

— Esse é Bob! — gritou Rocky, exultante. — Olááá, Meia Dura!

Rasparam o lado da garagem. O Chrysler teve outro acesso epiléptico, grand mal desta vez. Uma pequena.chama amarelada surgiu no final do tubo de aspiração da bomba, seguida por um jato de fumaça azul. O carro afogou agradecidamente.

Leo foi atirado para diante, salpicando mais cerveja. Rocky girou a chave do motor e deu ré, para nova tentativa.

Bob Driscoll correu para eles, os palavrões jorrando de sua boca em coloridas torrentes.

Agitava os braços.

— ... que merda pensa que está fazendo, seu filho da...

— Bobby! — berrou Rocky, em euforia quase orgásmica. — Ei, Meia Suja! O que há, meu chapa?

Bob perscrutou através da janela de Rocky. Tinha um rosto contorcido e cansado, em sua maioria oculto pela sombra da pala do boné.

— Quem foi que me chamou de Meia Suja?

— Erra — Rocky quase trovejou. — Fui eu, seu velho punheteiro! O seu chapa dos velhos tempos!

— Quem, diabo...

— Johnny Rockwell! Ficou cego, além de imbecil?

A pergunta cautelosa:

— Rocky?

— Eu mesmo, seu filho da mãe!

— Deus do céu! — Uma alegria lenta, indesejada, espalhou-se pelo rosto de Bob. — Não vejo você desde... bem.. acho que desde aquele jogo dos Catamounts...

— Shoosh! Foi um tempo quente, hem?

Rocky bateu com força na coxa, enviando um esguicho de Iron City. Leo arrotou.

— Se foi! A única vez que ganhamos um torneio. Mesmo então, parecia que íamos perder... Ei, cara, você quase me acaba com o lado da garagem! Você...

— Sim, o mesmo e velho Meia Suja! O mesmo cara! Você não mudou nem um fio de cabelo! — Algo surpreso, Rocky espiou o mais que pôde abaixo da pala do boné de beisebol, esperando que fosse verdade. No entanto, parecia que o velho Meia Suja ficara parcial ou totalmente calvo. — Céus! Não é incrível vir dar com você por aqui? Casou finalmente com Marcy Drew?

— Raios, casei. Lá por 70. Por onde você andou?

— Na cadeia, o mais provavelmente. Ei, chapa, dá pra vistoriar o bebê aqui?

De novo, a pergunta cautelosa:

— Está falando de seu carro?

Rocky deu uma risada estridente.

— Não-do meu pau-de-fogo! Claro que é do meu carro! E então, dá pra ver?

Bob abriu a boca para dizer não.

— Este aqui é um velho amigo meu. Leo Edwards. Leo, quero que conheça o único jogador de basquete do Ginásio Crescent, que não mudou as meias suadas em quatro anos.

— Prazer conhecer — disse Leo, fazendo a sua obrigação, como a mãe lhe ensinara, certa vez em que a dama estava sóbria.

Rocky riu esganiçadamente.

— Uma cerveja, Suja?

Bob abriu a boca para dizer não.

— Tome, a pequenina levanta-defunto! — exclamou Rocky.

Arrancou a abertura do topo. Sacudida pela colisão com o lado da garagem, a cerveja espumou acima da tampa e escorreu pelo pulso de Rocky. Ele enfiou a lata na mão de Bob. Bob bebeu rapidamente, para evitar que sua própria mão ficasse alagada.

— Escute, Rocky, nós fechamos às...

— Só um segundo, um segundinho, me deixe explicar. Tenho alguma coisa desarranjada aqui.

Rocky puxou a alavanca de mudança ao inverso, pisou o pedal da embreagem rapidamente, tirou um fino em uma bomba de gasolina e então dirigiu o Chrysler para o interior, aos sacolejos. Saiu em um minuto, para sacudir a mão livre de Bob como um político. Bob parecia aturdido. Sentado no carro. Leo abriu outra cerveja. Também estava peidando. Muita cerveja sempre o deixava assim.

— Ei! — esclamou Rocky, cambaleando em torno de uma pilha de calotas enferrujadas. — Lembra-se de Diana Rucklehouse?

— Claro — disse Bob. Um sorriso forçado veio à sua boca. — Era aquela com os... — Ele colocou as mãos em concha, diante do peito.

Rocky uivou.

— Isso mesmo! Você morou, cara! Ela continua na cidade?

— Acho que se mudou para...

— Dá pra entender — disse Rocky. — Os que não ficam, sempre se mudam. Pode dar um visto nesta banheira, não pode?

— Bem, minha mulher disse que ia esperar para o jantar e nós fechamos às...

— Poxa, ia ser uma ajuda e tanto se me fizesse a vistoria. Eu apreciaria muito. Posso retribuir com uma lavagem de roupa pessoal para sua esposa. É o que faço. Lavar roupa. Na New Adams.

— E eu estou aprendendo — disse Leo, e tornou a peidar.

— Lavar as roupas de baixo, o que você quiser. E então, Bobby?

— Bem... acho que posso dar uma espiada.

— Boa! — exclamou Rocky, batendo nas costas de Bob e piscando para Leo. — O mesmo e velho Meia Suja. Grande sujeito!

— Hum-hum — disse Bob, com um suspiro. Sorveu um gole de cerveja, seus dedos sujos de óleo quase tapando o rosto do Grande Joe Green. — Você andou batendo um bocado com este pára-choque, Rocky.

— Dá uma certa classe. O maldito carro precisa de um pouco de classe. Mesmo assim, é um carraço e tanto, entende o que quero dizer?

— Sim, acho que...

— Ei ! Quero que conheça o sujeito com quem trabalho! Leo, este é o único jogador de basquete do...

— Você já nos apresentou — disse Bob, com um sorriso frouxo e desesperado

— Tudokay? — disse Leo.

Pegou outra lata de Iron City. Linhas prateadas, como trilhos de ferrovia vistos ao meio-dia, em um dia quente e límpido, começavam a surgir diante de seu campo visual.

— ... Ginásio Crescem, que não trocou suas...

— Quer me mostrar os faróis, Rocky? — pediu Bob.

— Claro. Grandes faróis! De halogênio, nitrogênio ou qualquer fodido gênio. Eles têm classe. Ponha os olhos do bichão em funcionamento, Leo.

Leo ligou os limpadores de pára-brisa.

— Então bons — disse Bob, pacientemente. Sorveu um bom gole de cerveja. — E agora, que tal os faróis?

Leo acendeu os faróis.

— Farol alto?

Com o pé esquerdo, Leo tateou em busca do dimmer. Tinha absoluta certeza de que o interruptor estava em algum lugar lá embaixo, até finalmente encontrá-lo. Os faróis altos deixaram Rocky e Bob em nítido relevo, como suspeitos em uma fila de reconhecimento da polícia.

— Fodidos faróis de nitrogênio, não lhe disse? — exclamou Rocky, depois deu uma risadinha casquinada. — Poxa, Bobby! Estou vendo você melhor do que um cheque pelo correio!

— E agora, que tal a sinalização para dobrar uma curva? — pediu Bob.

Leo sorriu vagamente para ele e não fez nada.

— É melhor eu ver isso — falou Rocky. Arranjou um bom galo na cabeça, quando se colocou atrás do volante. — Acho que o rapaz não se sente muito bem...

Apertou o freio, ao mesmo tempo em que bateu de leve no indicador de curva.

— Correto — disse Bob, — mas isso funciona sem o freio?

— O manual de inspeção de veículos a motor diz, em algum lugar, que tem de funcionar? — perguntou Rocky espertamente.

Bob suspirou. Sua esposa o esperava para jantar. Sua esposa tinha seios grandes e pendurados, cabelos louros que eram negros nas raízes. Sua esposa era adepta de biscoitos em quilos, vendidos na loja local Giant Eagle. Quando ela ia à garagem nas noites de quinta-feira, pegar seu dinheiro para o bingo, em geral tinha os cabelos presos em grandes rolinhos verdes, sob um lenço verde de chifon. Isto fazia com que sua cabeça parecesse um rádio AM/FM futurista. Certa ocasião, por volta de três da madrugada, ele acordara e tinha olhado para seu rosto bambo, cor de papel, à impiedosa claridade de cemitério da luz no poste da rua, entrando pela janela do quarto de casal.

Ele havia pensado em como seria fácil — apenas montar em cima dela, apenas fincar um joelho em seu estômago, para que ela ficasse sem ar e incapaz de gritar, apenas engalfinhar as duas mãos em torno de seu pescoço... Depois, apenas colocá-la na banheira e esquartejá-la, cortá-la em pequenos pedaços e enviá-la a qualquer lugar por via postal para Robert Driscoll, a/c da Posta Restante. Qualquer velho lugar, Lima, Indiana, Pólo Note, New Hampshire, Intercourse, Pensilvânia, Kunkle, Iowa. Qualquer velho lugar. Podia ser feito. Deus sabia que já fora feito antes.

— Não — respondeu ele a Rocky — Creio que em nenhum lugar do manual diz que eles têm que funcionar sozinhos. Exatamente. Em tantas palavras.

Erguendo a lata, ele deixou que o resto da cerveja gorgolejasse por sua garganta abaixo.

Estava quente na garagem e ainda não jantara. Podia sentir a cerveja subir-lhe prontamente para a cabeça.

— Ei, Meia Suja acabou de esvaziar a lata! — disse Rocky. — Mande mais uma, Leo!

— Não, Rocky, sinceramente...

Não enxergando muito bem, Leo finalmente conseguiu encontrar outra lata.

— Quer que mande tudo? — perguntou, e passou uma lata a Rocky.

Rocky a entregou a Bob, cujas negativas foram anuladas ao segurar a fria realidade da lata em sua mão. Esta exibia a face sorridente de Lynn Swann. Ele a abriu. Leo peidou comportadamente, fechando a transação.

Durante um momento, todos beberam de latas com jogadores de futebol.

— A buzina funciona? — perguntou Bob finalmente, quebrando o silêncio como que em uma desculpa.

— Claro. — Rocky bateu no círculo com seu cotovelo. Ele emitiu um débil grasnido. — Acho que a bateria está um pouco baixa.

Os três beberam em silêncio.

— Aquele maldito rato era tão grande como um cocker spaniel! — exclamou Leo.

— O garoto está um bocado alto — explicou Rocky.

Bob meditou a respeito.

— Hum-hum — disse.

Isso pareceu despertar a hilaridade de Rocky, porque ele gargalhou com a boca cheia de cerveja. Um pouco do líquido escorreu de seu nariz, o que fez Bob rir. Rocky gostou de ouvi-lo, porque o antigo colega lhe parecera um cara tristonho, quando tinham entrado ali.

Beberam em silêncio por mais algum tempo.

— Diana Rucklehouse — disse Bob, meditativamente.

Rocky deu uma risadinha abafada.

Bob o imitou e levou as mãos à frente do peito.

Rocky riu, agora também levando as mãos à frente do peito e aumentando a distância ainda mais, para dar a idéia de um busto generoso.

Bob gargalhou.

— Lembra-se daquela foto de Ursula Andress, que Tinker Johnson pregou no quadro de avisos da velha Freemantle?

Rocky emitiu um uivo.

— E ele desenhou aquelas maminhas enormes...

— ... e ela quase teve um ataque cardíaco...

— Vocês dois sabem rir — disse Leo, morosamente, e peidou.

Bob pestanejou, olhando para ele.

— Como?

— Rir — disse Leo. — Falei que vocês dois sabem rir. E podem. Nenhum tem um buraco nas costas.

— Não lhe dê ouvidos — disse Rocky, algo inquieto. — O garoto está num tremendo pileque.

— Você tem um buraco nas costas? — perguntou Bob a Leo.

— A lavanderia — disse Leo, sorrindo. — Temos aquelas enormes máquinas de lavar, entende? Só que as chamamos de rodas. São as rodas da lavanderia. Por isso é que as chamamos de rodas. Eu as carrego, eu as esvazio, depois torno a carregá-las. A droga da roupa está suja, quando sai de lá vem limpa. É isso que faço, e faço com categoria. — Olhou para Bob, com insana confiança. — No entanto, fazendo isso é que fiquei com um buraco nas costas.

— É mesmo?

Bob olhava fascinado para Leo. Rocky remexeu-se nervosamente.

— Há um buraco no teto — disse Leo. — Bem acima da terceira roda. Elas são redondas, compreenda, por isso as chamamos de rodas. Quando chove, a água cai por ali. Goteja, goteja, goteja. Cada pingo de chuva cai em cima de mim — plaft! — bem nas costas. Agora, estou com um buraco nas costas. Deste tamanho — Leo fez uma curva rasa com uma das mãos. — Quer ver?

— Ele não quer ver nenhuma deformidade como essa! — gritou Rocky. — Estamos relembrando os velhos tempos e, por outro lado, você não tem nenhuma merda de buraco nas costas!

— Eu quero ver o buraco — disse Bob.

— Elas são redondas, por isso damos o nome de lavanderia — disse Leo.

Rocky sorriu e bateu no ombro dele.

— Pare com essa conversa fiada ou irá andando para casa, amiguinho. E agora, se ainda sobrou alguma, quer me dar uma com o meu xará?

Leo espiou no engradado de cerveja, e, após um momento, entregou uma lata com Rocky Blier impresso.

— Vamos em frente! — esclamou Rocky, de novo alegre.

Uma hora mais tarde, a cerveja havia acabado e Rocky enviou Leo cambaleando estrada acima até o Pauline's Superette, para comprar mais. Os olhos do rapaz estavam injetados de sangue a esta altura e sua camisa saía para fora das calças. Com uma concentração de míope, ele tentava tirar seu maço de Camels das dobras enroladas da manga da camisa.

Bob estava no banheiro, urinando e entoando uma canção escolar.

— Não quero ir andando até lá — murmurou Leo.

— Claro, mas está bêbado demais para dirigir!

Leo caminhou em vacilante semicírculo, ainda tentando extrair os cigarros da manga da camisa.

— Tá escuro. E frio.

— Quer que este carro ganhe um certificado de vistoria ou não? — sibilou Rocky para ele.

Agora, começara a ver coisas estranhas nas bordas de seu campo visual. A mais persistente era um enorme besouro, envolto em teias de aranha, no canto mais distante.

Leo o fitou com olhos escarlates.

— O carro não é meu — replicou, com falsa sagacidade.

— E você nunca mais andará nele, se não for buscar essa cerveja — ameaçou Rocky.

Olhou temerosamente para o besouro morto no canto. — Provoque-me e verá se estou brincando!

— Está bem — gemeu Leo. — Não precisa se irritar por causa disso.

Caminhou duas vezes para fora da via, em seu trajeto até a esquina, uma vez, quando voltava. Ao finalmente retornar para o calor e claridade da garagem, encontrou os dois homens entoando a canção escolar. De um jeito ou de outro, Bob conseguira erguer o Chrysler no elevador. Agora, examinava a parte do chassis, observando o enferrujado sistema de exaustão.

— Seu cano de descarga tem alguns buracos — disse ele.

— Não há nenhuma privada aí embaixo — respondeu Rocky.

Os dois acharam aquilo muito engraçado.

— Chegou a cerveja! — anunciou Leo.

Colocou o engradado no chão, sentou-se em um aro de roda e caiu imediatamente em meia sonolência. Ele próprio havia esvaziado três latas no trajeto de volta, a fim de aliviar a carga.

Rocky estendeu uma cerveja para Bob e pegou uma para si.

— Disputa? Como nos velhos tempos?

— Certo — disse Bob.

Sorriu com os lábios comprimidos. Mentalmente, via-se na cabine de um carro de corridas de Fórmula Um, daquelas aerodinâmicas, rentes ao solo, uma das mãos pousando de banda no volante, enquanto esperava que baixassem a bandeira, a outra tocando seu amuleto de sorte — o enfeite do capô de um Mercury 59. Esquecera o cano de descarga de Rocky e sua desgrenhada esposa, com rolinhos transistorizados para os cabelos.

Os dois abriram suas cervejas e despejaram o conteúdo na boca, sorvendo-o ansiosamente; era uma disputa surda. Ambos deixaram as latas caírem no concreto rachado e ergueram o dedo médio ao mesmo tempo. Seus arrotos ecoaram nas paredes, como tiros de rifle.

— Bem como nos velhos tempos — disse Bob, parecendo melancólico. Nada é como nos velhos tempos, Rocky.

— Eu sei — assentiu Rocky. Lutou por um perfeito e luminoso pensamento, até encontrá-lo.

— Estamos envelhecendo a cada dia, Suja.

Bob suspirou e tornou a arrotar. Leo peidou no canto e começou a cantarolar "Get Off My Cloud".

— Mais uma vez? — perguntou Rocky, passando outra cerveja para Bob.

— Também acho — disse Bob, em resposta ao pensamento de Rocky. — Eu também acho, Rocky, meu chapa.

Por volta de meia-noite, o engradado que Leo trouxera estava vazio e um certificado de inspeção fora afixado no lado esquerdo do pára-brisa de Rocky, em um ângulo torto. O próprio Rocky havia anotado as informações pertinentes, antes de colar o certificado, copiando laboriosa e cuidadosamente os números do esfarrapado e ensebado registro que por fim encontrara no porta-luvas. Era preciso copiar com cuidado, porque estava vendo tudo em triplicata. Sentado de pernas cruzadas no chão, como um mestre ioga, Bob tinha uma lata de cerveja esvaziada pelo meio, pousada à sua frente. Seus olhos contemplavam o nada fixamente.

— Fique certo, você salvou minha vida, Bob — disse Rocky.

Chutou as costelas de Leo para acordá-lo. Leo grunhiu e bufou. Suas pálpebras tremularam brevemente, ainda fechadas, depois se abriram inteiramente, quando Rocky tornou a chutá-lo.

— Já chegamos em casa, Rocky? Nós...

— Você deu a este carro uma oportunidade e tanto, Bobby! — exclamou Rocky alegremente. Enfiou os dedos debaixo dos braços de Leo e puxou. Leo ficou em pé, gritando. Rocky quase o carregou até o Chrysler e depois o jogou no assento do passageiro. — Ainda voltaremos aqui qualquer dia, para você dar uma geral nele.

— Que tempos eram aqueles! — suspirou Bob. Estava com os olhos úmidos. De lá para cá, tudo ficou cada vez pior, sabia?

— É verdade — disse Rocky. — Tudo tem sido readaptado e abestalhado. Só que a gente apenas aponta os erros e não faz nada de nada...

— Minha esposa não quer saber de mim há ano e meio — disse Bob, mas as palavras foram sufocadas pelos estouros do motor do Chrysler.

Bob levantou-se e ficou espiando o carro sair em ré da garagem, arrancando uma lasca de madeira do lado esquerdo da porta. Leo pendurou-se à janela, sorrindo como um debilóide.

— Apareça na lavanderia, caminhoneiro. Eu lhe mostrarei o buraco em minhas costas. Eu lhe mostrarei minhas rodas! Eu lhe mostr...

O braço de Rocky disparou subitamente, como uma prostituta de vaudeville, e o reduziu ao silêncio.

— Adeus, chapa! — gritou.

O Chrysler executou um slalom embriagado em torno das três ilhotas das bombas de gasolina e disparou para dentro da noite. Bob o espiou até as luzes traseiras ficarem apenas como vagalumes e então caminhou cautelosamente para dentro da garagem. Em sua apinhada bancada de trabalho, havia um enfeite cromado de algum carro antigo.

Bob começou a brincar com ele e, em breve, estava chorando lágrimas de crocodilo pelos velhos tempos. Mais tarde, em algum momento depois das três da madrugada, ele estrangulou a esposa e incendiou a casa, para dar a tudo uma aparência de acidente.

— Santo Deus! — disse Rocky para Leo, quando a garagem de Bob encolheu-se para um ponto de luz branca atrás deles. — Quem diria, hem? O velho Meia Suja!

Rocky atingira aquele estado de embriaguez em que cada parte de si mesmo parecia ter-se evaporado, apagando-se à exceção de uma pequenina e cintilante brasa de sobriedade, em algum ponto bem enterrado no meio de sua mente.

Leo não respondeu. À pálida claridade esverdeada do painel de instrumentos, ele parecia o rato-do-campo no chá de Alice.

— Ele estava mesmo bombardeado — prosseguiu Rocky. Dirigiu pelo lado esquerdo da estrada por algum tempo e depois o Chrysler vagueou de volta. Aliás, foi até bom para você — o mais provável é que ele não se lembre do que você lhe disse. De outra vez, poderia ser diferente. Já lhe disse, não sei quantas vezes, para ficar calado sobre essa idéia de que tem um maldito buraco em suas costas.

— Você sabe que tenho um buraco nas costas.

— Bem, e daí?

— E daí, que o buraco é meu. E vou falar sobre o meu buraco sempre que qui... — Leo interrompeu-se e olhou repentinamente em torno. — Tem um furgão atrás da gente. Acabou de sair daquela estrada lateral. Faróis apagados.

Rocky ergueu os olhos para o retrovisor. Era um furgão leiteiro. Não precisava ler LATICÍNIOS CRAMER'S na lateral, para saber qual era.

— Spike — disse Rocky, temerosamente. — É Spike Milligan! — Céus, pensei que ele só fizesse entregas matinais!

— Quem?

Rocky não respondeu. Um tenso sorriso bêbado espalhou-se na parte inferior de seu rosto. Não chegou a tocar-lhe os olhos, que agora estavam esbugalhados e vermelhos, como espiriteiras.

De repente, pisou fundo no acelerador do Chrysler, que expeliu uma fumaceira azul de óleo queimado e, relutantemente, entre rangidos, aumentou a velocidade para noventa.

— Ei! Você está bêbado demais para ir tão depressa! Você está...

Leo parou de falar, com expressão vaga, como se houvesse perdido o fio do pensamento. As árvores e casas passavam em disparada por eles, apenas borrões difusos, na escuridão da meia-noite e quinze. Avançaram sobre um sinal de parada e o derrubaram, em resultado voando acima de um enorme buraco na pista. Depois disso, saíram da estrada por um momento. Quando voltaram a ela, o silencioso pendendo baixo arrancou uma faísca no asfalto. Na traseira do carro, latas entrechocaram-se e chocalharam. Os rostos de jogadores do Steeler de Pittsburg rolaram de um lado para outro, às vezes à luz, em outras à sombra.

— Eu estava brincando! — disse Leo, apavorado. — Não há nenhum furgão!

— É ele — e ele mata gente! — gritou Rocky. — Vi seu besouro, lá na garagem! Porra!

Subiram rugindo a Southern Hill, pelo lado errado da estrada. Uma caminhonete que vinha em direção contrária, derrapou loucamente na curva de cascalhos e foi parar no acostamento, saindo da frente deles. Leo olhou para trás. A estrada estava vazia.

— Rocky...

— Venha me pegar, Spike! — berrou Rocky. — Venha e me pegue!

O Chrysler tinha chegado a quase cento e trinta, uma velocidade que, em condições mais sóbrias, Rocky não acreditaria possível. Fizeram a curva que leva à estrada

Johnson Flat, com a fumaça sendo expelida dos pneus carecas do carro. O Chrysler uivou na noite com um fantasma, os faróis vasculhando a estrada vazia à frente.

De repente, um Mercury 1959 rugiu para eles, saindo do escuro e rodando pela linha central. Rocky gritou e ergueu as mãos, colocando-as à frente do rosto. Leo apenas teve tempo para ver que faltava o enfeite no capô do Mercury, antes que houvesse a colisão.

Meio quilômetro atrás, faróis brilham em uma estrada lateral, e um furgão leiteiro, com as palavras LATICÍNIOS CRAMER'S inscritas na lateral, entrou em movimento e começou a rodar para a coluna de chamas e retorcidas massas que enegreciam no meio da estrada. Movia-se em moderada velocidade. O rádio transistor, pendurado pela correia no gancho de carne, tocava ritmos e blues.

— Muito bem — disse Spike. — Agora, vamos à casa de Bob Driscoll. Ele pensa que levou gasolina de sua garagem, mas não estou bem certo disso. Este foi . um dia bastante longo, não acha?

No entanto, quando ele se virou, a traseira do furgão estava vazia. Até o besouro se fora.

 

Stevens serviu drinques e, pouco depois das oito daquela frígida noite de inverno, quase todos o acompanhamos à biblioteca. Por algum tempo, ninguém disse nada; os únicos sons eram os do crepitar do fogo na lareira, o clique amortecido das bolas de bilhar, vindo do exterior, e os uivos do vento. Contudo, estava aquecido o suficiente ali dentro, no 2498 da Rua 35 Leste.

Recordo que David Adley estava à minha direita aquela noite e Emlyn McCarron, que certa vez já nos contara uma história aterrorizante sobre uma mulher que dera à luz em circunstâncias inteiramente incomuns, estava à minha esquerda. Além dele encontrava-se Johanssen, com seu Wall Street Journal dobrado no colo.

Stevens aproximou-se com um pequeno embrulho branco e o estendeu a George Gregson, sem qualquer vacilação. Stevens é o mordomo perfeito, apesar de seu leve sotaque de Brooklyn (ou, talvez, por causa dele), porém seu maior atributo, ao que me conste, é sempre saber para onde deve ir o embrulho, se ninguém perguntar por ele.

George o tomou sem nenhum protesto e ficou imóvel por um instante em sua poltrona bergère, olhando para o fogo na lareira, esta grande o bastante para assar um boi de bom tamanho. Vi seus olhos adejarem momentaneamente pela inscrição entalhada na base: É A HISTÓRIA, NÃO QUEM A CONTA.

Ele abriu o embrulho com seus dedos velhos e trêmulos, atirando o conteúdo ao fogo.

Por um instante, as chamas transformaram-se em um arco-íris e houve um murmúrio de risos. Virando-me, vi que Stevens estava em pé bem atrás, junto às sombras ao lado da porta para o saguão. Ele tinha as mãos cruzadas atrás das costas. Seu rosto permanecia cautelosamente fosco.

Suponho que todos nos sobressaltamos um pouco, quando sua voz áspera, quase rabugenta, rompeu o silêncio; sei que eu me assustei.

— Certa vez, vi um homem ser assassinado bem nesta sala — disse George Gregson — embora nenhum jurado condenasse o matador. Contudo, no fim ele próprio condenou-se — e foi seu próprio executor!

Houve uma pausa, enquanto ele acendia o cachimbo. A fumaça vagou à volta de seu rosto enrugado em grande quantidade azulada, e ele sacudiu o fósforo de madeira com os gestos lentos e declamatórios do homem cujas articulações lhe doem terrivelmente.

Jogou-o dentro da lareira, onde ele aterrou sobre os remanescentes em cinza do embrulho. George Gregson espiou as chamas carbonizarem a madeira. Seus agudos olhos azuis ficaram pensativos, abaixo das espessas sobrancelhas grisalhas. Seu nariz era comprido e adunco, os lábios finos e firmes, os ombros encovados, quase até a parte traseira do crânio.

— Não nos deixe em suspenso, George! — grunhiu Peter Andrews. — Conte de uma vez!

— Eu contarei. Tenha calma.

Restou-nos apenas esperar, até que ele houvesse fumado seu cachimbo com plena satisfação. Quando o grande fornilho de urze apresentou um belo leito de brasas, George dobrou sobre um joelho as grandes mãos ligeiramente paralisadas, e disse:

— Pois muito bem. Estou com oitenta e cinco anos e o que ocorreu aconteceu quando eu tinha vinte e poucos. De qualquer modo, foi em 1919 e acabara de voltar da Grande Guerra. Minha noiva havia morrido cinco meses antes, de influenza. Tinha apenas dezenove anos, e receio ter bebido e jogado cartas mais do que deveria. Ela ficara esperando dois anos, compreendam, e durante esse período, recebi fielmente uma carta a cada semana. Talvez possam entender por que sucumbi a tal ponto. Eu não tinha crenças religiosas, achava os dogmas e teorias gerais do cristianismo algo cômicos, quando nas trincheiras, e não possuía uma família que me apoiasse. Assim, posso afirmar, com segurança, que os bons amigos que me acompanharam durante esse período de provação raramente me deixaram. Eram cinqüenta e três amigos (mais do que possui a maioria das pessoas!): cinqüenta e duas cartas de baralho e uma garrafa de uísque Cutty Sark. Eu passara a morar nos mesmos aposentos em que hoje resido, na Rua Brennan. Contudo, então eram muito mais baratos e havia um número consideravelmente menor de vidros de remédios, pílulas e panacéias enchendo as prateleiras. A maior parte de meu tempo, no entanto, era passada aqui, no 249B, porque sempre podia encontrar um jogo de pôquer.

David Adley o interrompeu e, embora sorrisse, não creio que estivesse brincando, em absoluto.

— E Stevens já estava presente, George?

George se virou para o mordomo.

— Seria você ou seu pai, Stevens?

Stevens permitiu-se a ligeira sombra de um sorriso.

— Como 1919 foi há mais de sessenta e cinco anos atrás, acredito que fosse meu avô, senhor.

— Devemos então admitir que esse posto está no sangue — disse Adley.

— É como diz, senhor — replicou Stevens, delicadamente.

— Agora que penso nisso — falou George — é notável a semelhança entre você e seu... seu avô, não, Stevens?

— É o que me dizem, senhor.

— Se os dois fossem colocados lado a lado, eu teria dificuldades em afirmar quem era quem... porém isso é irrelevante, não?

— Perfeitamente, senhor.

— Eu me encontrava na sala de jogos — bem depois daquela mesma portinha acolá — jogando paciência, da primeira e única vez que vi Henry Brower. Éramos quatro, já dispostos a jogar pôquer; esperávamos apenas um quinto jogador para completar a mesa. Quando Jason Davidson me disse que George Oxley, nosso usual quinto companheiro, havia quebrado a perna e estava de cama, com ela engessada e pendurada em uma engenhoca de polias, pareceu que não teríamos qualquer jogo aquela noite. Eu contemplava a perspectiva de encerrá-la sem mais nada para desviar meus pensamentos da mente, além da paciência e de uma quantidade de uísque que me embotasse o cérebro, quando o sujeito no outro lado da sala disse, em voz clara e agradável:

— Se os cavalheiros falavam de pôquer, eu apreciaria muito tomar parte, caso não façam objeção.

"Ele estivera enterrado atrás de um exemplar do World de Nova York até então, de modo que quando ergui os olhos, foi a primeira vez que o vi. Era um rapaz de rosto velho, se entendem o que digo. Algumas das marcas que vi naquele rosto, começava a ver também no meu, desde a morte de Rosalie. Algumas — não todas elas. Embora o indivíduo não devesse ter mais do que vinte e oito anos, a julgar pelos cabelos, mãos e maneira de caminhar, seu rosto parecia marcado pela experiência, e os olhos, que eram muito escuros, mostravam mais do que tristeza; eram como que obcecados. Ele tinha uma excelente aparência, com um pequeno bigode em ponta e cabelos louros dando para escuro. Usava um terno marrom de bom corte e afrouxara o botão do colarinho alto.

— Meu nome é Henry Brower — apresentou-se ele.

"Davidson cruzou a sala imediatamente, a fim de apertar-lhe a mão. De fato, dava a impressão de que ia tomar a mão que Brower descansava no colo. Então, aconteceu algo estranho: Brower largou o jornal e ergueu as duas mãos, mantendo-as fora de alcance. A expressão em seu rosto era de puro horror.

"Davidson estacou, bastante confuso, mais perplexo do que zangado. Tinha apenas vinte e dois anos — Céus, como éramos jovens naquele tempo! — e era um tanto mimado.

"— Perdoem-me — disse Brower, com absoluta seriedade — mas nunca aperto mãos!" — Davidson pestanejou.

— Nunca? — exclamou. — Oh, mas que singular! E por que não?

"Bem, eu já lhes disse que ele era algo mimado.

Brower recebeu a pergunta da melhor maneira possível, com um sorriso aberto, embora um tanto perturbado.

— Acabo de voltar de Bombaim — explicou. — É uma cidade com excesso de população, suja, cheia de doenças e pestilência. As aves de rapina se pavoneiam e passeiam pelas próprias muralhas da cidade aos milhares. Estive lá durante dois anos, em uma missão comercial, e pareço ter tomado horror ao nosso costume ocidental de apertar mãos. Sei que sou tolo e descortês, mas não consigo dominar-me. Portanto, se tiver a bondade de perdoar-me e não guardar rancor...

— Somente com uma condição — disse Davidson, sorrindo.

— Qual seria?

— A de que viesse para a mesa e bebesse uma dose do uísque de George, enquanto vou convocar Baker, French e Jack Wilden.

"Brower sorriu para ele, assentiu e deixou o jornal de lado. Davidson fez um gesto impetuoso, unindo o polegar e o indicador em círculo, e saiu para ir buscar os outros. Eu e Brower caminhavamos para a mesa forrada de feltro verde e, quando lhe ofereci um drinque, ele declinou com um agradecimento, pedindo sua própria garrafa. Desconfiei que aquilo tivesse algo a ver com sua estranha mania, mas nada disse. Conheci homens, cujo pavor a micróbios e doenças foram muito além disso... como muitos de vocês.

Houve assentimentos de concordância.

— É bom estar aqui — disse-me Brower, com ar pensativo. — Tenho sentido falta de companhia, desde que voltei de meu posto. Não é bom para um homem ficar sozinho, compreenda. Acredito que, mesmo para o indivíduo mais auto-suficiente, ficar isolado dos semelhantes deve ser a pior forma de tortura!

"Ele disse isso com uma ênfase toda peculiar e eu assenti, porque já experimentara essa solidão nas trincheiras, geralmente à noite. Tornava então a experimentá-la, ainda mais aguda, após saber da morte de Rosalie. Vi-me simpatizando com ele, a despeito de sua auto proclamada excentricidade.

— Bombaim deve ser um lugar fascinante — falei.

— Fascinante... e terrível! Lá existem coisas com que nem sonha a nossa filosofia. A reação deles aos veículos motorizados chega a ser engraçada: as crianças fogem quando eles se aproximam, para depois os seguirem durante quarteirões. Acham o avião aterrorizante e incompreensível. Naturalmente que nós, os americanos, encaramos tais engenhos com absoluta equanimidade — até mesmo complacência! — mas afirmo que minha reação foi a mesma que a deles, quando pela primeira vez observei um mendigo de esquina engolir todo um pacote de agulhas de aço, para em seguida puxá-las, de uma em uma, pelas feridas abertas na ponta de seus dedos. Isso, no entanto, é algo que os nativos daquela parte do mundo aceitam com toda naturalidade.

— Talvez — acrescentou ele, com ar sombrio — as duas culturas nunca pretendessem fundir-se, mas manter para si mesmas suas separadas maravilhas. Para um americano, como eu ou o senhor, engolir um pacote de agulhas resultaria em morte lenta e terrível. No entanto, em relação a um automóvel...

"Brower deixou a frase em suspenso, enquanto uma expressão triste e soturna lhe vinha ao rosto. Eu me dispunha a falar, quando Stevens, o avô, apareceu com a garrafa de uísque para meu companheiro e, logo atrás dele, chegavam Davidson e os outros.

Davidson prefaciou as apresentações, dizendo:

— Já falei a eles sobre sua pequena mania, Henry, de modo que não há o que temer. Este é Darrel Baker, o barbudo de ar terrível é Andrew French e, por último, embora não menos importante, Jack Wilden. George Gregson você já conhece.

"Brower sorriu e assentiu para todos eles, em vez de lhes apertar as mãos. Foram trazidos três baralhos novos e fichas de pôquer, o dinheiro foi trocado por fichas, e o jogo começou.

"Jogamos por umas seis horas e ganhei cerca de duzentos dólares. Darrel Baker, que não jogava muito bem, perdeu cerca de oitocentos (e não que sentisse o prejuízo; seu pai era dono de três das maiores fábricas de sapatos na Nova Inglaterra), e os demais dividiram equitativamente comigo as perdas de Baker. Davidson ganhara uns dólares a mais e Brower uns a menos, mas para Brower aquilo foi uma façanha, já que suas cartas haviam sido excepcionalmente ruins, na maior parte da noite. Ele era destro, tanto na maneira tradicional de pedir cinco cartas, como na variedade mais recente do jogo, em que todas as cartas, exceto a primeira, são dadas a descoberto. Cheguei a pensar que, por várias vezes, Brower ganhara dinheiro por meio de astutos blefes, que eu próprio hesitaria em tentar.

"Houve uma coisa que percebi: embora bebesse muito — quando French se preparou para dar a última rodada, ele já esvaziara quase uma garrafa inteira de uísque — sua fala não se alterava em absoluto, seu jogo nunca vacilou e persistiu a sua curiosa fixação sobre o toque de mãos. Quando ganhava um bolo de apostas, ele jamais o tocava, caso alguém tivesse marcações ou troco, inclusive se "ficara limpo" e ainda com fichas para contribuir. Certa vez, quando Davidson colocou o copo perto do cotovelo dele, Brower recuou abruptamente, quase derrubando a própria bebida. Baker pareceu surpreso, mas Davidson deixou aquilo passar, sem fazer comentários.

"Momentos antes, Jack Wilden havia dito que horas mais tarde, naquela manhã, teria de ir até Albany, de maneira que só ficaria por mais uma rodada. Então, chegou a vez de French cartear e ele pagou para ver, com sete cartas.

"Posso recordar aquela mão final tão claramente como meu próprio nome, embora precise concentrar-me para dizer o que almocei ontem ou quem me acompanhou na refeição. Suponho que sejam os mistérios da idade, mas acho que se qualquer um de vocês estivesse lá, também recordaria como eu.

"Eu estava com duas cartas de copas viradas e uma a descoberto. Não poso falar sobre Wilden ou French, mas o jovem Davidson tinha o ás de copas e Brower o dez de espadas. Davidson apostou dois dólares — cinco era o nosso limite — e as cartas rodaram novamente. Pedi copas para firmar uma quadra. Brower ficou com um valete de espadas, para combinar com o seu dez. Davidson estava com um terno, que não pareceu melhorar sua mão, mas ainda assim, apostou três dólares.

— É a última rodada! — exclamou alegremente. — Sejam generosos, rapazes! Há uma dama que gostaria de sair da cidade comigo, amanhã à noite!

"Acho que eu não acreditaria em um adivinho, se ele me dissesse com que freqüência este comentário me perseguiria, nos momentos mais peculiares, até a data de hoje.

"French distribuiu nossa terceira rodada de cartas descobertas. Meu flush não me ajudou em absoluto, mas Baker, que era o grande perdedor, conseguiu casar alguma coisa — reis, suponho. Brower conseguira um duque de ouros, mas isso não pareceu adiantar muito. Baker apostou o limite em seu par, e Davidson prontamente o superou em cinco. Todos continuaram no jogo, sendo distribuída nossa última carta descoberta. Fiquei com o rei de copas, para completar meu fush, Baker recebeu uma terceira que combinou com seu par e a Davidson coube um segundo às, com o que seus olhos cintilaram. Brower conseguiu uma dama de paus e, juro para vocês, não entendi por que continuou jogando, pois suas cartas pareciam tão ruins, como as obtidas naquela noite.

"As apostas começaram a ficar um pouco mais firmes. Baker apostou cinco, Davidson colocou mais cinco, Brower aceitou o desafio.

— Não creio que meu jogo seja suficientemente bom — disse Jack Wilden e desistiu.

"Eu aceitei os dez e apostei outros cinco. Baker fez o mesmo.

"Bem, não vou cansá-los com uma descrição ponto por ponto. Direi apenas que havia um limite de três apostas por homem. Eu, Baker e Davidson, cada um por sua vez, aceitamos cada aposta e a elevamos em cinco dólares, a cada três vezes. Brower apenas aceitava cada aposta e a elevava, tomando a cautela de esperar até que todas as mãos estivessem desembaraçadas das apostas, antes de arriscar seu dinheiro. E ali havia um bocado de dinheiro — pouco mais de duzentos dólares — quando French distribuiu nossa última carta coberta.

"Houve uma pausa enquanto todos checávamos, embora de pouco valesse para mim; estava com minha mão e, pelo que podia ver na mesa, era boa. Baker apostou cinco, Davidson aumentou e esperamos para ver o que Brower faria. O rosto dele estava ligeiramente corado pelo álcool. Já tirara a gravata e desabotoara um segundo botão da camisa, mas parecia absolutamente calmo.

— Aceito... e aposto cinco — disse ele.

"Pestanejei um pouco, pois tinha certeza de que ele ia desistir. No entanto, as cartas em minha mão me diziam que eu devia jogar para ganhar, de maneira que apostei cinco.

Jogávamos sem qualquer limite para o número de apostas que um jogador podia fazer sobre a última carta, de maneira que o bolo cresceu maravilhosamente. Fui o primeiro a parar, satisfeito em apenas pagar para ver, em vista da flush hand que tinha, cada vez mais e mais seguro da mão que os outros possuiriam. Baker foi o seguinte a parar, pestanejando desconfiadamente, enquanto seus olhos iam do par de ases de Davidson para o mistificador refugo em poder de Brower. Baker não era o melhor jogador do mundo, porém bom o suficiente para farejar algo no vento.

"Entre ambos, Davidson e Brower apostaram pelo menos mais dez vezes, talvez até mais ainda. Eu e Baker fomos envolvidos, não querendo abandonar nossos grandes investimentos. Nós quatro havíamos ficado sem fichas, de maneira que agora, sobre elas, assentavam-se notas esverdeadas.

— Bem, — disse Davidson, em seguida à última aposta de Brower. — Acho que pago para ver. Se esteve blefando, Henry, saiu-se muito bem. De qualquer modo, você está por baixo e Jack tem uma longa viagem pela frente amanhã.

"Com isto, ele colocou uma nota de cinco dólares sobre a pilha.

— Estou pagando para ver — disse ele.

"Não sei quanto aos outros, mas eu senti um nítido alívio, que pouco tinha a ver com a grande soma de dinheiro que já arriscara. O jogo estava se tornando implacável e, embora eu e Baker pudéssemos suportar um prejuízo, se fosse o caso, Jason Davidson não podia. No momento, ele estava em dificuldades, vivendo dos rendimentos de ações — não uma grande quantidade — que uma tia lhe legara. E Brower — até onde suportaria o prejuízo? Lembrem-se, senhores, de que a esta altura, havia mais de mil dólares sobre a mesa.

George fez uma pausa. Seu cachimbo se apagara.

— E então, o que aconteceu? — perguntou Adley, inclinando-se para diante. — Não nos torture, George! Estamos todos sentados na borda das cadeiras. Derrube-nos delas ou ponha-nos sentados decentemente!

— Tenham paciência — disse George, imperturbável.

Apanhou outro fósforo, riscou-o na sola do sapato e sugou seu cachimbo. Esperamos ansiosamente, em silêncio. Lá fora, o vento guinchava e fustigava os beirais. Quando o cachimbo acendeu-se e tudo pareceu em ordem, George prosseguiu:

— Como sabem, segundo as regras do pôquer, o homem que paga para ver, deve ser o primeiro a mostrar suas cartas. Contudo, Baker estava ansioso para encerrar a tensão; virou uma de suas três cartas, com o que formou um four de reis.

— Não dá para mim — falei. — Um flush.

— Acabei com você — disse Davidson para Baker, enquanto mostrava duas de suas cartas viradas. Dois ases, formando um four. — Muitíssimo bem jogado...

"Davidson estendeu a mão para recolher a dinheirama da mesa.

— Um momento! — exclamou Brower.

"Ele não estendeu o braço para tocar a mão de Davidson, como a maioria teria feito, porém sua voz foi o bastante. Davidson fez uma pausa para olhar e sua boca caiu — realmente caiu aberta, como se todos os músculos houvessem virado água. Brower havia virado todas as três cartas que tinha cobertas, revelando um straight flush, do oito à dama.

— Creio que isto derruba seus ases, não? — perguntou polidamente.

"Davidson ficou vermelho, depois pálido.

— Derruba — disse lentamente, como se descobrisse o fato pela primeira vez. — Sim, tem razão.

"Eu daria tudo para saber qual a motivação de Davidson para o que houve em seguida.

Ele estava a par da extrema aversão de Brower em ser tocado, o homem já dera isso a entender e cem maneiras diferentes aquela noite. Talvez apenas Davidson houvesse esquecido, em seu desejo de mostrar a Brower (e a todos nós) que podia suportar a perda e mesmo aceitar aquela grande reversão com esportividade. Já disse que ele tinha algo de criança mimada, de modo que tal gesto poderia fazer parte de seu caráter.

Enfim, era como um inofensivo cãozinho. Só que, cãezinhos também agridem quando provocados. Não são matadores — um filhote não saltará para a garganta do adversário, mas muita gente já levou pontos nos dedos, por irritar um cãozinho além das medidas, com um chinelo ou um osso de borracha. Da maneira como me lembro de Davidson, isto também devia ser parte de seu caráter.

"Eu daria, não sei como dizer, daria qualquer coisa para saber... mas acho que o único importante são os resultados.

"Quando Davidson afastou as mãos do bolo de apostas, Brower estendeu as suas para apanha-lo. Nesse instante, o rosto de Davidson iluminou-se com uma espécie de rude simpatia e, pegando a mão de Brower em cima da mesa, sacudiu-a firmemente.

— Brilhante jogada, Henry, foi simplesmente brilhante. Acredito que nunca já tinha...

"Brower o interrompeu com um grito agudo, um grito feminino, que soou aterrador em meio ao silêncio da sala de jogos, enquanto puxava rapidamente a mão. Fichas e dinheiro cascatearam por todos os lados, quando a mesa oscilou e quase emborcou.

"Ficamos todos imobilizados ante a súbita reviravolta dos fatos, incapazes de qualquer gesto. Brower afastou-se da mesa, cambaleando, com a mão estirada à sua frente, parecendo uma versão masculina de Lady Macbeth. Estava pálido como um cadáver, e o espantoso terror em seu rosto está além de meu poder de descrição. Senti um sacolejo de pavor me tomar por inteiro, algo como jamais sentira antes, nem mesmo ao me entregarem o telegrama com a notícia da morte de Rosalie.

"Então, ele começou a gemer. Era um som oco, terrível, enigmático. Recordo que pensei, Ora, o homem está totalmente louco; depois ele disse a coisa mais estranha: "O interruptor... Deixei o interruptor do carro ligado... Oh, Deus, sinto tanto!" A seguir, Brower quase voou pelos degraus da escada que leva ao saguão principal.

"Fui o primeiro a refazer-me. Saltei de minha cadeira e corri atrás dele, deixando Baker, Wilden e Davidson sentados em torno da grande quantia de dinheiro que Brower havia ganho. Eles pareciam estátuas incas entalhadas, guardando um tesouro tribal.

"A porta da fachada ainda oscilava de um lado para outro. Quando disparei para a rua, vi Brower em seguida, parado à beira da calçada e olhando inutilmente por um táxi. Ao ver-me, ele se encolheu tão miseravelmente, que não pude deixar de sentir pena, mesclado de espanto.

— Ei! — chamei. — Espere! Lamento o que Davidson fez e posso garantir que não foi proposital. Enfim, se você quer ir embora por causa daquilo, tem todo o direito, mas deixou muito dinheiro para trás e deve leva-lo.

— Eu nunca devia ter vindo — resmungou ele. — Contudo, estava tão desesperado, tão necessitado de companhia humana que... que...

"Sem refletir, estirei a mão para toca-lo — o gesto mais elementar de um ser humano para outro que esteja angustiado — mas Brower recuou, exclamando:

— Não me toque! Um não é o bastante? Oh, Deus, porque eu simplesmente não morro?

"De repente, seus olhos se iluminaram como que febricitantes, ao avistar um vira-lata esquelético, de pelo coçado e ralo, que procurava alcançar a calçada do outro lado da rua deserta, àquela hora da madrugada. A língua do animal pendia para fora da boca e ele caminhava apoiando-se cautelosamente em apenas três pernas. Imagino que estivesse em busca de latas de lixo onde alimentar-se.

— Aquele lá podia ser eu — disse Brower pensativamente, como se para si mesmo. — Rejeitado por todos, forçado a seguir sozinho e aventurar-se apenas quando qualquer outra criatura viva está em segurança, atrás de portas trancadas. Cão pária!

— Ora, vamos — falei, algo consternado, porque suas palavras tinham um toque de melodramático. — Você certamente sofreu algum choque e, sem dúvida, aconteceu algo que deixou seus nervos em mau estado, mas quando estive na Guerra, vi mil coisas que...

— Não acredita em mim, não é mesmo? — exclamou ele. — Pensa que estou tomado por algum tipo de histeria, não é?

— Escute, amigo, realmente não sei por que está tomado, mas sei que se continuarmos aqui fora, neste ar úmido da noite, ambos pegaremos uma gripe. Enfim, se não se importa em voltar para dentro comigo — pelo menos até o saguão, se quiser — eu pedirei a Stevens para...

"Os olhos dele estavam alucinados o bastante para que eu ficasse francamente inquieto.

Naquelas pupilas não restara qualquer sombra de lucidez e ele me fez recordar os psicóticos com fadiga de combate, que vira serem removidos da linha de frente em carroças: invólucros de homens, com terríveis olhos apáticos, parecendo vigias para o inferno, murmurando e tremendo.

— Gostaria de ver como um proscrito reage a outro? — perguntou ele, como se não tivesse ouvido uma palavra do que eu dissera. — Pois dê uma espiado e veja o que aprendi em portos de escala estrangeiros!

De repente, ele levantou a voz e chamou, imperiosamente:

— Cão!

"O cão ergueu a cabeça, olhou para ele desconfiado, os olhos girando (um cintilou com furiosa selvageria; o outro estava coberto por uma catarata), e subitamente mudou de direção e se aproximou coxeando, relutante, enquanto cruzava a rua ao encontro de Brower.

"Ele não queria vir, isso era bastante óbvio. Ganiu, rosnou e enfiou entre as pernas a corda ensebada que era sua cauda. Entretanto, acabou vindo. Foi direto aos pés de Brower e então se deitou sobre o ventre, ganindo, encolhendo-se e tremendo. Seus lados emaciados afundavam e expandiam-se como um fole e seu olho sadio girava horrivelmente na órbita.

"Brower deu uma hedionda e desesperada gargalhada, que ainda ouço em meus sonhos, e agachou-se junto ao cão.

— Está vendo? — disse. — Ele me conhece como um de sua espécie... e sabe o que lhe trago!

"Brower estendeu a mão para o animal, que deixou escapar um lúgubre e rosnado uivo, depois mostrando os dentes.

— Não! — exclamei prontamente. — Ele vai mordê-lo!

"Brower não ligou. À claridade do poste de luz, seu rosto estava lívido, medonho, os olhos eram como buracos negros, carbonizados.

— Tolice — respondeu. — Tolice. Só quero apertar mãos com ele... como fez seu amigo comigo!

"De repente, ele ergueu a pata do cão e a apertou. O animal emitiu um horrível ruído uivante, porém não fez qualquer gesto para mordê-lo.

"Brower levantou-se abruptamente. Seus olhos pareciam ter clareado de algum modo e, a não ser pela excessiva palidez, poderia ter sido novamente o homem que, da maneira mais cortês possível, oferecera-se para participar de nosso jogo, nas primeiras horas da noite.

— Vou embora agora — disse, em voz quieta. — Por favor, desculpe-me com seus amigos, diga a eles que sinto muito ter agido como um tolo. Talvez tenha oportunidade para... redimir-se, em outra ocasião.

— Nós é que lhe devemos uma desculpa — falei. — E esqueceu o dinheiro? Passa de mil dólares.

— Oh, sim! O dinheiro! — exclamou ele, enquanto a boca se curvava no sorriso mais amargo que já testemunhei.

— Não precisa vir até o saguão — falei. — Se prometer ficar esperando aqui, eu lhe trarei o dinheiro. Fará isso?

— Claro — respondeu ele. — Esperarei, se é o seu desejo. — Ele fitou pensativamente o cão que gania aos seus pés. — Talvez ele queira ir comigo e ter uma refeição decente, por uma vez em sua vida miserável...

"Brower tornou a exibir aquele sorriso amargo. Afastei-me antes que ele mudasse de idéia e fui ao andar de baixo. Alguém, talvez Jack Wilden, que sempre fora uma pessoa metódica, trocara todas as fichas por notas e empilhara o dinheiro cuidadosamente, no centro do pano verde. Nenhum deles falou, quando apanhei o dinheiro. Baker e Jack Wilden fumavam em silêncio; Jason Davidson estava cabisbaixo, fitando os pés. Seu rosto era um quadro de desgosto e vergonha. Toquei-lhe o ombro ao voltar para a escada e ele me olhou com gratidão.

"Quando voltei à rua, encontrei-a absolutamente deserta. Brower já se fora. Fiquei lá, com um punhado de notas esverdeadas em cada mão, olhando inutilmente para os dois extremos da rua, mas nada se moveu. Chamei uma vez, para o caso dele estar parado nas sombras, perto dali, mas não houve resposta. Então, olhei casualmente para baixo. O vira-lata continuava ali, mas seus dias de vistoriar latas de lixo haviam terminado.

Estava morto. Pulgas e carrapatos abandonavam seu corpo, em colunas que marchavam.

Recuei, repugnado, mas também cheio de um estranho, fantástico terror. Tive o pressentimento de que Henry Brower ainda não saíra de minha vida, e assim foi, embora nunca mais voltasse a vê-lo.

O fogo na lareira havia morrido para pequenas e frágeis chamas, enquanto o frio começava a esgueirar-se das sombras, porém ninguém se moveu nem falou, até George tornar a acender seu cachimbo. Ele suspirou, cruzou as pernas de novo, fazendo as velhas juntas estalarem, e recomeçou a falar.

— Nem preciso dizer que os outros participantes do jogo foram unânimes quanto a devermos encontrar Brower e entregar-lhe o dinheiro. Penso que alguns talvez nos julgassem insanos por agirmos assim, mas aquela era uma época de mais honorabilidade. Davidson estava muito abatido, quando foi embora; tentei chamá-lo a um lado e oferecer-lhe algumas palavras de consolo, mas ele apenas abanou a cabeça e saiu, arrastando os pés. Deixei que se fosse. As coisas lhe pareceriam diferentes, após uma noite de sono, e iríamos procurar Brower, juntos. Wilden precisava sair da cidade e Baker tinha que fazer algumas "excursões sociais". Pensei que seria uma boa forma de Davidson recuperar parte do amor próprio.

"Entretanto, ao voltar ao seu apartamento, na manhã seguinte, ele ainda não se levantara. Eu poderia tê-lo acordado, mas Davidson era um homem jovem e resolvi deixá-lo passar a manhã dormindo, enquanto eu descobria alguns fatos elementares.

"Vim aqui, antes de mais nada, e conversei com Stevens...

George se virou para Stevens e ergueu uma sobrancelha.

— Com meu avó, senhor — disse Stevens.

— Obrigado.

— Não tem de que, senhor.

— Conversei com o avô de Stevens. Falei com ele no lugar exato em que Stevens se encontra agora, para ser verdadeiro. Ele disse que Raymond Greer, um sujeito a quem eu conhecia de vista, havia falado sobre Brower. Greer fazia parte da comissão mercantil da cidade e fui imediatamente a seu escritório, no Edifício Flatiron. Encontrei-o lá e ele veio falar comigo em seguida.

Quando lhe contei o sucedido na noite anterior, seu rosto se encheu de uma mescla de piedade, tristeza e medo.

— O pobre e velho Henry! — exclamou. — Eu sabia que isso acabaria acontecendo, porém nunca pensei que fosse tão depressa.

— De que está falando? — perguntei.

— De seu colapso — disse Greer. — Tudo começou a partir daquele ano passado em Bombaim e suponho que ninguém jamais saberá de toda a história, além do próprio Henry. De qualquer modo, eu lhe contarei o que puder.

"A história que Greer desenrolou para mim aquele dia, em seu escritório, só aumentou minha simpatia e compreensão. Tudo indicava que, infelizmente, Henry Brower se vira envolvido em verdadeira tragédia. E, como em todas as clássicas tragédias do palco, ela nasceu de um descuido fatal — no caso de Brower, do esquecimento.

"Como membro do grupo de comissão mercantil em Bombaim, ele desfrutava do uso de um automóvel, uma real raridade no lugar. Greer comentou que Brower sentia um prazer quase infantil em dirigi-lo através das ruas estreitas e becos da cidade, assustando galinhas em enormes bandos cacarejantes e fazendo com que homens e mulheres caíssem de joelhos, apelando para seus deuses pagãos. Ele rodava com aquele carro por todo canto, atraindo grande atenção e compactas multidões de crianças maltrapilhas, que o seguiam mas sempre recuavam timidamente ao lhes ser oferecida uma carona naquela máquina maravilhosa, o que ele constantemente fazia. O automóvel era um Ford Modelo-A, com carroceria de caminhão, um dos primeiros veículos a dar partida ao motor, não somente através de uma manivela, porém ao toque de um botão. Peço-lhes que se lembrem disto.

"Certo dia, Brower partiu com seu carro para um lugar muito afastado da cidade, um dos altos poobatrs locais, esperando conseguir possíveis consignações de corda de juta.

Atraiu a atenção costumeira, quando a máquina Tórd trovejava e espoucava através das ruas, soando como uma barragem de artilharia em movimento — e, naturalmente, as crianças o seguiram.

"Brower jantaria com o fabricante de juta, uma ocasião de grande cerimônia e formalidade. Mal haviam chegado ao segundo prato, sentados em um terraço ao ar livre, acima da rua movimentada, quando o familiar tiroteio, o rugido tossido do automóvel soou abaixo deles, acompanhados por gritos e guinchos estridentes.

"Um dos garotos mais audaciosos — filho de um obscuro homem santo tinha-se esgueirado para o interior do carro, convencido de que fosse qual fosse o dragão escondido debaixo do capô de ferro, não despertaria sem o homem branco sentado atrás do volante. E Brower, preocupado com as próximas negociações, deixara o interruptor ligado e a faísca retardada.

"Pode-se imaginar o garoto ganhando audácia ante os olhos dos companheiros, enquanto tocava o espelho, segurava o volante e emitia o ruído do motor em movimento. A cada vez que ele zombava do dragão debaixo do capô, deve ter aumentado o temor respeitoso no rosto dos outros.

"Seu pé deve ter pisado no pedal da embreagem, talvez em busca de apoio, quando ele apertou o botão de partida. O motor estava quente, deve ter dado sinal de vida prontamente. Em seu extremo terror, o menino talvez reagisse afastando imediatamente o pé da embreagem, pronto para pular do automóvel. Se o carro fosse mais velho ou estivesse em piores condições, o motor teria morrido. Contudo, Brower cuidava dele escrupulosamente. de maneira que o carro saltou para diante, em uma série de arremetidas e ruidosos sacolejos. Brower mal chegou em tempo de ver isto, ao correr para fora da casa do fabricante de juta.

"O engano fatal do menino poderia ter resultado em pouco mais do que um acidente.

Talvez, em sua movimentação para sair, um cotovelo tenha esbarrado acidentalmente no acelerador de mão. Ou talvez ele o houvesse puxado, com a apavorada esperança de ser assim que o homem branco asfixiava o dragão, pondo-o para dormir. Seja como for... aconteceu. O carro ganhou uma velocidade suicida e arremeteu pela rua congestionada e cheia de gente, saltando sobre trouxas e fardos, esmagando as gaiolas de vime do mascate de animais, estraçalhando uma carroça de flores até deixá-la em pedaços. O automóvel rugiu ladeira abaixo, em direção à esquina da rua, saltou para cima da calçada, chocou-se contra um muro de pedras e explodiu em uma bola de fogo.

George fez o cachimbo deslizar de um lado da boca para o outro.

— Foi tudo quanto Greer me contou, porque Brower nada mais lhe havia dito que fizesse sentido. O restante foi uma espécie de confusa arenga sobre a loucura de suas culturas tão díspares, que jamais se mesclavam. Evidentemente, o pai do menino morto enfrentou Brower, antes que este fosse chamado de volta, e atirou nele uma galinha estrangulada. Houve uma praga...

"Neste ponto, Greer sorriu para mim. Seu sorriso dizia que ambos éramos homens do mundo. Acendendo um cigarro, ele comentou:

— Sempre há uma praga, quando acontece uma coisa deste tipo. Os pagãos miseráveis precisam manter as aparências a todo custo. Trata-se do seu ganha pão.

— Qual foi a praga? — perguntei.

— Pensei que adivinharia — disse Greer. — O wallait disse a ele que, quando um homem faz feitiçaria contra uma criança, deveria tornar-se um pária, um proscrito. Então, afirmou a Brower que qualquer coisa tocada por ele com as mãos, morreria. Para sempre e eternamente, amém — finalizou Greer, com uma risadinha abafada.

— Bower acreditou nisso?

"Greer achava que sim.

— Lembre-se de que ele havia sofrido um choque terrível. E agora, pelo que consta, sua obsessão aumentou, em vez de acabar.

— Poderia dar-me seu endreço?

"Greer verificou em seus arquivos e finalmente o encontrou.

— Não garanto que o encontre aí — disse. — As pessoas sentem uma relutância natural em empregá-lo e, que eu saiba, ele não anda muito bem de dinheiro.

"Senti uma onda de culpa ao ouvir isto, porém nada falei. Greer parecia um pouco bombástico e presunçoso para meu gosto, não merecendo a menor informação que eu tivesse sobre Henry Brower. Entretanto, ao levantar-me, algo me impeliu a dizer:

— Vi Brower apertar as patas de um vira-lata esta noite. Quinze minutos depois, o cão estava morto.

— É mesmo? Que interessante!

"Ele ergueu as sobrancelhas, como se o comentário nada tivesse a ver com o que havíamos discutido. Eu me dispus a sair e ia apertar a mão de Greer, quando a secretária abriu a porta de seu gabinete.

— Perdão, mas o senhor é o Sr. Gregson?

"Respondi que era.

— Um homem chamado Baker acabou de telefonar. Pediu-lhe que vá ao número vinte e três da Rua 19, imediatamente.

"Aquilo me deixou assustado, porque já estivera nesse endereço uma vez nesse dia — era onde morava Jason Davidson. Quando deixei o gabinete de Greer, ele acabava de retornar a seu cachimbo e ao The Wall Street Journal. Nunca mais tornei a vê-lo e isso não significou qualquer perda para mim. Naquele momento, eu me sentia tomado por um medo muito específico — do tipo que jamais se cristaliza inteiramente em um medo real, com um objeto fixo, porque é demasiado terrível, inacreditável demais, para ser levado em consideração.

Aqui, eu lhe interrompi a narrativa. — Pelo amor de Deus, George! Não vai nos dizer que ele estava morto?

— Foi exatamente o que aconteceu — replicou George. — Cheguei quase na mesma hora em que a perícia policial. Sua morte foi registrada como uma trombose coronária. Faltavam dezesseis dias para ele completar vinte e três anos.

"Nos dias que se seguiram, tentei convencer-me de que tudo havia sido uma perversa coincidência, que seria melhor esquecer. Não pude dormir bem, inclusive com a ajuda de meu bom amigo "Sr. Cutty Sark". Dizia a mim mesmo que a coisa a fazer seria dividir o bolo de apostas da noite anterior entre nós três e esquecermos que Henry Brower um dia cruzara nossas vidas. Contudo, era impossível.

Assim, preferi encher um cheque com aquela soma e fui ao endereço fornecido por Greer, que ficava no Harlem.

"Ele não morava mais lá. Seu novo endereço era no East Side, em um bairro ligeiramente pior, embora de respeitáveis prédios com fachada em arenito pardo.

Brower deixara aqueles alojamentos um mês antes do jogo de pôquer e agora vivia no East Village, uma área de edifícios arruinados.

"O zelador do prédio, um homem esquelético com um enorme mastim negro rosnando em seus joelhos, informou que Brower se mudara a três de abril — um dia após o nosso jogo. Solicitei seu novo endereço. Ele jogou a cabeça para trás e emitiu um ruído chiado que, aparentemente, funcionava como gargalhada.

— O único endereço que eles dão quando saem daqui, é o inferno, chefe. Enfim, algumas vezes fazem uma parada no Bowery, a caminho de lá.

"Naquela época, o Bowery era o que, hoje, só acreditam ser os que moram fora da cidade; moradia dos sem-lar, a última parada para os homens sem rosto que só se preocupam com outra garrafa de vinho barato ou outra pitada do pó branco que prova longos sonhos. Fui lá. Naqueles dias, havia dúzias de casas de cômodos, algumas missões benevolentes que aceitavam bêbados para pernoite e centenas de becos onde um homem poderia esconder um velho colchão, pululando de piolhos. Vi punhados de homens, todos eles pouco mais do que meros envoltórios, decorados pela bebida e pelas drogas. Nomes não eram conhecidos nem usados. Quando um homem afunda ao nível de um porão derradeiro, com o fígado apodrecido pelo álcool de madeira, o nariz uma ferida aberta e purulenta pelo cheirar constante de cocaína e potassa, os dedos ulcerados pelo frio, dentes apodrecidos até se tornarem tocos enegrecidos — um homem não precisa mais de nome. Contudo, descrevi Henry Brower a todos os homens que vi, sem obter resposta.

Balconistas de bar abanavam a cabeça e davam de ombros. Os outros apenas olhavam para o chão e continuavam andando.

"Não o encontrei naquele dia, no seguinte, nem no outro. Duas semanas passaram e então falei a um homem que me informou sobre um indivíduo semelhante haver estado nos Quartos Devarney's, três noites antes.

"Fui até lá; ficava apenas a dois quarteirões da área que eu estava cobrindo. O homem na portaria era um ancião enrugado, com uma calva soltando peles, olhos purulentos e brilhantes. Os quartos para alugar eram anunciados na vidraça suja pelas moscas em uma janela dando para a rua, a um dime por noite. Repeti-lhe minha descrição de Brower, com o velho assentindo o tempo todo. Quando terminei, ele disse:

— Eu o conheço, meu jovem. Conheço-o bem. Contudo, não consigo recordar bem... Minha memória fica bem mais lúcida quando vejo um dólar.

"Dei-lhe um dólar, que ele fez desaparecer rapidamente, apesar de sua artrite.

— Ele esteve aqui, meu jovem, mas já se foi.

— Sabe para onde?

— Não me lembro bem — disse o velho — mas creio que minha cabeça ficaria melhor, se eu visse um dólar.

"Dei-lhe uma segunda nota, que desapareceu tão prontamente como a primeira. A esta altura, algo pareceu ocorrer-lhe como sendo francamente engraçado, de maneira que uma tosse rangente e tubercular lhe saiu do peito.

— Já teve sua diversão — falei — e foi muito bem paga. Agora, quero que me diga: sabe onde este homem se encontra?

"O velho tornou a rir deliciadamente.

— Sim, a vala dos indigentes é sua nova residência; seu contrato de aluguel tem duração da eternidade e o Diabo é seu companheiro de quarto. Como pode gostar desses tipos, meu jovem? Ele deve ter morrido a qualquer hora da manhã de ontem, porque quando o encontrei, ao meio-dia, ainda estava morno e tinha cores. Sentado empertigado junto à janela, era bem como estava. Fui até lá, para cobrar seu dime por mais uma noite ou mostrar-lhe a porta da rua. Quando acaba, a cidade é que lhe mostrou sete palmos de terra.

"Isto provocou-lhe outro acesso desagradável de alegria senil.

— Havia alguma coisa fora do comum? — indaguei, sem ousar refletir bem na importância da pergunta. — Algo anormal?

— Acho que me lembro de qualquer coisa assim... Vejamos...

"Dei-lhe mais um dólar para avisar sua memória, mas desta vez o dinheiro não causou hilaridade, embora sumindo à mesma velocidade anterior.

— Sim, passou-se algo muito estranho — afirmou o velho. — Já tenho chamado os tiras vezes suficientes para saber disso. Sagrado Coração de Jesus, como precisei chamá-los!

Já encontrei esses sujeitos pendurados da bandeira da porta, encontrei-os mortos na cama, encontrei-os do lado de fora, na escada de incêndio, em janeiro, com uma garrafa entre os joelhos congelados e tão azuis como o Atlântico. Cheguei a encontrar um que se afogara na pia, embora tenha sido há uns trinta anos. Só que este de agora — sentado empertigado, com seu terno marrom, parecendo um endinheirado da cidade, os cabelos bem penteados... Bem, ele segurava o pulso direito com a mão esquerda, segurava sim. Já vi de todas as espécies, porém ele foi o único que vi se cumprimentando, apertando a própria mão.

"Saí dali e caminhei todo o trajeto até as docas, enquanto as últimas palavras do velho pareciam girar e girar em meu cérebro, como um disco, engasgado em um único sulco.

Ele foi o único que vi apertando a própria mão.

"Andei até o final de um dos embarcadouros, lá onde a água cinzenta e terrosa lambe os pilares incrustados. Então, piquei aquele cheque em mil pedacinhos, que atirei à água.

George Gregson remexeu-se na cadeira e pigarreou. O fogo se extinguira, restando apenas brasas relutantes, enquanto o frio se esgueirava para o interior da deserta sala de jogos. As mesas e cadeiras pareciam espectrais e irreais, como móveis vislumbrados em um sonho, onde passado e presente se fundiam. As chamas destacaram as letras entalhadas na platibanda da lareira, com fosca luminosidade alaranjada: É A HISTÓRIA, NÃO QUEM A CONTA.

— Eu só o vira uma vez, mas foi o suficiente, porque nunca mais o esqueci. Contudo, serviu para que encerrasse meu próprio período de carpir, pois qualquer homem que pode caminhar entre seus semelhantes, não se encontra inteiramente só.

"Se trouxer meu casaco, Stevens, acho que vou caminhando até em casa — há muito passou da minha hora de ir para a cama.

Quando Stevens lhe trouxe o casaco, George sorriu e apontou para a pequena verruga, logo abaixo do canto esquerdo da boca do mordomo.

— Francamente, a semelhança é mesmo notável — seu avô tinha uma verruga nesse exato lugar.

Stevens sorriu e nada disse. George saiu. Nós, os restantes, fomos saindo logo depois dele.

 

 

                                                                          CONTINUA

 

 

Quando Hal Shelburn o viu, no instante em que seu filho Dennis o tirou de uma caixa de papelão que contivera ração para cães Ralston-Purina e havia sido empurrada para o canto mais distante, debaixo do beiral do sótão, ficou tomado por tal sensação de horror e medo que, por um momento, julgou-se prestes a gritar. Colocou um punho sobre a boca, como para reter o grito... e então apenas tossiu sobre o punho. Terry e Dennis nada haviam percebido, mas Petey olhou em torno, momentaneamente curioso.

— Que barato! — exclamou Dennis, em tom respeitoso.

O próprio Hal raramente agora recebia o mesmo tom da parte do filho. Dennis já estava com doze anos.

— O que é isso? — perguntou Petey. Olhou novamente para o pai, antes de voltar os olhos para a coisa que o irmão mais velho havia descoberto. — O que é isso, papai?

— É um macaco, miolo-mole — disse Dennis. — Será que nunca viu um macaco antes?

 

 

 

 

— Não chame seu irmão de miolo-mole — disse Terry automaticamente, começando a examinar uma caixa cheia de cortinas. As cortinas estavam escorregadias de bolor, e ela as largou bruscamente. — Irrk!

— Posso ficar com ele, papai? — perguntou Petey.

Petey tinha nove anos.

— Ei, de que está falando? — exclamou Dennis. — Eu o achei!

— Meninos, por favor — disse Terry. — Estou ficando com dor de cabeça!

Hal parecia não ouvi-los. O macaco cintilou para ele, das mãos de seu filho mais velho, exibindo-lhe o velho e familiar sorriso. O mesmo sorriso que assombrara seus pesadelos em criança, assombrando-os a tal ponto, que tivera de...

Lá fora, levantou-se uma fria rajada de vento e, por um instante, lábios sem carne alguma sopraram uma prolongada nota, através da velha e enferrujada calha externa.

Petey chegou mais para perto do pai, os olhos movendo-se inquietamente pelo rústico teto do sótão, através do qual salientavam-se cabeças de pregos.

— O que foi isso, papai? — perguntou, quando o assobio morreu para um zumbido gutural.

— Apenas o vento — respondeu Hal, ainda olhando para o macaco. Seus címbalos, crescentes de latão, em vez de círculos completos, à luminosidade mortiça da única lâmpada nua, permaneciam imóveis, talvez a trinta centímetros de distância, e ele acrescentou, automaticamente: — O vento pode assobiar, mas não consegue cantar.

Percebeu então que repetia uma frase do Tio Will e sentiu-se arrepiar. A nota repetiu-se, o vento procedendo do Lago Cristal, em prolongada e...

 

 

                                                                  Stephen King

 

 

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