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Irã, fevereiro de 1979. Um momento crítico na história do país, o período magnetizante dos vinte e quatro tumultuados dias que se seguiram à partida do xá Reza Pahlevi. A luta de vida ou morte entre facções rivais para assumir o controle do país numa guerra civil em que poucos sabem quem está de que lado... ou por quanto tempo. O que se conhece é o ódio fanático, unânime, pelos estrangeiros — principalmente americanos e ingleses.
Para uma companhia de helicópteros britânica, secretamente controlada pela Casa Nobre de Hong Kong, a questão básica é por quanto tempo seus pilotos — americanos, canadenses, ingleses, franceses, alemães, finlandeses — poderão operar em suas bases espalhadas pelo país. A guerra chega cada vez mais perto deles, mesmo nas áreas mais remotas, isolando-os e a suas mulheres, colocando em risco não apenas o seu equipamento, mas também as suas vidas.
Para os proprietários da companhia, abandonar o Irã significa ao mesmo tempo a ruína financeira e a derrota na luta pelo poder da própria Casa Nobre. Mas o turbilhão em que todos se vêem envolvidos é forte e perigoso — e os força a sair, ao mesmo tempo em que impede sua fuga.
Esta aventura se passa no Irã revolucionário, entre 9 de fevereiro e 4 de março de 1979, muito antes do início da crise dos reféns. Tentei torná-la o mais real possível — mas trata-se de ficção, com personagens imaginários e muitos lugares imaginários. Nenhuma referência a pessoas ou a companhias que fizeram ou que fazem parte do período é intencional. Evidentemente, as sombras dos gigantescos adversários — Sua Alteza Imperial, o xá Muhammad Pahlavi (e seu pai Reza Xá) e o imã Khomeini — que se projetam sobre os meus personagens imaginários, são parte vital desta história, embora os próprios líderes não estejam retratados. Tentei apresentar um retrato preciso, porém ficcional, daquele período, dos diferentes tipos de pessoas que o atravessaram, das diferentes opiniões existentes e que teriam sido expressas, mas nada aqui foi mencionado com intenção desrespeitosa.
Esta é uma história das coisas, não como realmente aconteceram, mas como imaginei que se passaram naqueles 24 dias...
NAS MONTANHAS ZAGROS: PÔR-DO-SOL. O sol agora tocava o horizonte e o homem extenuado refreou seu cavalo, contente por ter chegado a hora das orações.
Hussein Kowissi era um iraniano forte de 34 anos, pele clara e olhos e barba muito escuros. Sobre o ombro, trazia um rifle de combate soviético AK47. Ele estava agasalhado contra o frio e usava um turbante branco e roupas escuras, sujas da viagem. Por cima delas, uma grossa jaqueta de pêlo de carneiro, dos nômades kash'kai, e botas muito usadas. Como suas orelhas estavam protegidas, ele não escutou o ruído distante de um helicóptero que se aproximava. Atrás dele, cansado, seu camelo de carga deu um puxão na corda, impaciente por comida e descanso. Distraidamente, praguejou contra ele enquanto desmontava.
O ar era rarefeito naquela altura, quase 2.500 metros, e frio, muito frio, com uma neve espessa no chão que o vento transformava em montículos, tornando o caminho escorregadio e traiçoeiro. Abaixo, a trilha pouco conhecida enroscava-se em direção a vales distantes, até Isfahan, onde ele estivera. À sua frente, o caminho subia em curvas perigosas, através dos penhascos, até outros vales, em direção ao golfo Pérsico e à cidade de Kowiss onde ele nascera, onde vivia agora e de onde tirara o seu nome ao se tornar um mulá.
Ele não se importava nem com o perigo nem com o frio. O perigo parecia-lhe tão puro quanto o ar.
É quase como se eu fosse outra vez um nômade, pensou, com meu avô conduzindo-nos como nos velhos tempos quando todas as nossas tribos kash'kai podiam vagar da pastagem de inverno para a pastagem de verão, um cavalo e uma pistola para cada homem e rebanhos de sobra, nossos rebanhos de cabras e ovelhas e uma multidão de camelos, nossas mulheres sem véu, nossas tribos vivendo livres como, por dezenas de séculos, nossos antepassados haviam feito, sem estarem sujeitos a mais nada além da Vontade de Deus. Os velhos tempos que terminaram há menos de sessenta anos, disse a si mesmo, com o ódio subindo por Reza Khan, o soldado arrivista que usurpou o trono com a ajuda dos desprezíveis ingleses, que se proclamou Reza Xá, o primeiro dos xás Pahlavi, e depois, com o apoio do seu regimento cossaco, nos sujeitou e tentou esmagar-nos.
Por obra de Deus, no devido tempo, Reza Xá foi humilhado e exilado por seus traiçoeiros senhores ingleses e morreu esquecido; por obra de Deus, Muhammad Xá foi obrigado a fugir poucos dias atrás; por obra de Deus, Khomeini voltou para conduzir a Sua revolução; pela Vontade de Deus, amanhã ou depois eu serei martirizado. É desejo de Deus que nós sejamos varridos pela sua tempestade e que agora haja um ajuste de contas final com todos os lacaios do xá e com todos os estrangeiros.
O helicóptero agora estava mais perto, mas ele ainda não o escutava, o assobio do vento ajudando a abafar o ruído. Foi com satisfação que apanhou seu tapete de orar e o estendeu na neve, com as costas doendo dos vergões causados pelo chicote, depois apanhou um punhado de neve. Ritualmente, lavou as mãos e o rosto, preparando-se para a quarta oração do dia, depois virou de frente para sudoeste, na direção da Cidade Sagrada de Meca, que ficava a 1.600 quilômetros de distância na Arábia Saudita, e voltou seu pensamento para Deus.
— Allah-u Akbar, Allah-u Akbar. La illah illa Allah..
Enquanto repetia o Shahada, ele se prostrou, deixando-se envolver pelas palavras em árabe: Deus é Grande, Deus é Grande. Dou meu testemunho de que não há nenhum outro Deus além de Deus e de que Maomé é o Seu Profeta. Deus é Grande, Deus é Grande. Dou meu testemunho de que não há nenhum outro Deus além de Deus e de que Maomé é o Seu Profeta..
O vento ficou mais forte e mais frio. Então, através dos seus protetores de orelha, ele captou o ruído do motor. O ruído foi ficando cada vez mais forte, penetrou em sua cabeça, acabou com sua paz e arruinou sua concentração. Abriu os olhos, com raiva. O helicóptero estava apenas uns cinqüenta metros acima do chão, vindo diretamente em sua direção.
A princípio, achou que poderia ser uma aeronave do Exército e temeu que o estivessem procurando. Aí, reconheceu as cores britânicas, vermelho, branco e azul, e as marcas familiares do nítido S-G em volta do leão vermelho da Escócia na fuselagem — a mesma companhia de helicópteros que operava na base aérea de Kowiss e por todo o Irã — então o medo o abandonou, mas não a raiva. Ele o observou, odiando o que representava. Seu curso passava quase exatamente acima dele, mas não oferecia perigo — duvidava que aqueles lá em cima fossem notá-lo, ali ao abrigo de um arbusto — mas mesmo assim se ressentiu, com todo o seu ser, da intrusão na sua paz e do transtorno de suas preces. E à medida que crescia o barulho ensurdecedor, sua raiva aumentava.
— La illah illa Allah...
Ele tentou retomar as orações mas, nesse momento, o movimento das hélices atirou neve em seu rosto. Atrás dele, o cavalo relinchou e saltou tomado de súbito pânico, escorregando e deslizando por estar com as patas travadas. Puxado bruscamente pelo cabresto, o camelo de carga, também em pânico, levantou-se cambaleando, berrando, e saiu tropeçando de um lado para o outro, apoiado em três patas, sacudindo a carga e enrolando-se nas cordas.
Sua raiva explodiu.
— Infiel! — Gritou para o helicóptero que agora estava quase sobre a borda da montanha, ficou em pé de um salto e agarrou a arma, soltou a trava de segurança e deu uma rajada, depois corrigiu e esvaziou o pente.
— Satã! — Berrou no súbito silêncio.
Quando as primeiras balas atingiram o aparelho, o jovem piloto, Scot Gavallan, ficou por um momento paralisado, olhando estupefato para os buracos na capota de plástico à sua frente.
— Jesus Cristo... — gaguejou, nunca tendo sido alvejado antes, mas suas palavras foram abafadas pelo homem que estava ao lado dele no assento da frente, cujas reações foram precisas e instantâneas:
— Suba! — A ordem retumbou no seu fone de ouvido. — Suba! — Tom Lochart tornou a gritar no seu microfone. Então, como não tinha os seus próprios comandos, alcançou os comandos que estavam à esquerda do piloto e empurrou a alavanca para baixo, cortando abruptamente a energia e a sustentação. O helicóptero começou a balançar, perdendo altura. Nesse momento, a segunda rajada atingiu-os. Houve um ruído sinistro acima e atrás, em algum outro lugar uma bala fez o metal gemer, os motores tossiram e o helicóptero despencou lá de cima.
Era um Jet Ranger 206, com piloto e quatro passageiros, um na frente, três atrás, e estava lotado. Há uma hora, Scot havia rotineiramente apanhado os outros, de volta de uma licença de um mês, no aeroporto de Shiraz, cerca de oitenta quilômetros a sudeste, mas agora a rotina se transformara em pesadelo e a montanha avançava rapidamente em direção a eles quando, já quase em cima do cume, a rocha afastou-se milagrosamente, fazendo uma inclinação, e o helicóptero mergulhou numa depressão, dando-lhe um segundo de trégua para recuperar um pouco a estabilidade e o controle.
— Cuidado, pelo amor de Deus! — disse Lochart.
Scot tinha visto o perigo, mas não tão depressa. De um golpe, forçou o helicóptero a uma guinada assustadora, contornando a saliência. A parte esquerda do trem de pouso arrastou-se nas rochas, gemendo em protesto, e mais uma vez eles mergulharam, passando a poucos metros da superfície irregular de rochas e árvores, que se inclinaram e tornaram a se erguer.
— Baixo e rápido — disse Lochart. — Por ali, Scot! Não, por ali, por aquele lado, descendo naquela garganta.. Você foi atingido?
— Não, não. Acho que não. E você?
— Não, você está indo bem agora, entre na garganta, vamos, depressa! Scot Gavallan obedeceu, fazendo uma curva inclinada, muito baixo e muito depressa, mas sua mente ainda não estava inteiramente normal. Ainda havia um gosto de bile em sua boca e seu coração batia disparado. Por trás da divisória, ele podia ouvir os gritos e as imprecações dos outros, lá atrás, acima do barulho dos motores, mas não podia se arriscar a olhar para trás e perguntou ansiosamente pelo intercomunicador:
— Tem alguém ferido lá, Tom?
— Não pense neles, concentre-se. Cuidado com o cume, eu trato deles! — disse Tom Lochart, olhando para todos os lados. Ele tinha 42 anos, era canadense, ex-piloto da RAF, ex-mercenário, e agora piloto-chefe da sua base, Zagros Três. — Cuidado com o cume e prepare-se para se desviar outra vez. Fique perto do chão e mantenha-o baixo. Cuidado!
O cume estava ligeiramente acima deles e aproximou-se depressa demais. Gavallan viu os dentes das rochas diretamente no seu caminho. Só teve tempo de dar uma guinada para desviar-se quando uma rajada violenta de vento empurrou-o, perigosamente, para perto do lado escarpado da garganta. Corrigiu o rumo; ouviu as obscenidades no seu fone de ouvido e recuperou o controle. Então, na sua frente, viu as árvores, as rochas e o final abrupto da garganta, e percebeu que estavam perdidos.
De repente, tudo pareceu andar mais devagar.
— Jesus Cris...
— Com força para a esquerda... cuidado com a rocha!
Scot sentiu as mãos e os pés obedecendo e viu o helicóptero dar uma pirueta e passar a poucos centímetros das rochas, bater nas árvores, cavalgar sobre elas e escapar para o espaço aberto.
— Pouse ali, o mais depressa que puder.
Ele olhou boquiaberto para Lochart, com as entranhas ainda se revolvendo.
— O quê?
— Claro. É melhor dar uma olhada. Checar o helicóptero — disse Lochart apressadamente, odiando não ter os controles. — Ouvi alguma coisa partir-se.
— Eu também, mas e o trem de pouso, ele pode ter sido arrancado?
— Apenas mantenha-o suspenso. Vou sair e checar. Se o trem de pouso estiver direito, ponha-o no chão para que eu possa fazer uma inspeção rápida. É mais seguro fazer isto; só Deus sabe se as balas cortaram um conduto de óleo ou danificaram um cabo.
Lochart viu Scot tirar os olhos da clareira para dar uma olhada nos passageiros.
— Para o inferno com eles, pelo amor de Deus. Eu cuido deles — disse rispidamente. — Você se concentre na aterrissagem.
Viu o rapaz enrubescer mas obedecer, e então, tentando conter uma súbita náusea, Lochart virou-se esperando ver sangue e vísceras espalhados por todo o lado e alguém gritando — gritos abafados pelos motores — sabendo que não havia nada que pudesse fazer até que alcançassem um abrigo e aterrissassem, a primeira obrigação era sempre aterrissar em segurança.
Para seu imenso alívio, os três homens que estavam no assento traseiro — dois mecânicos e um piloto — não pareciam estar feridos, embora estivessem todos curvados nos assentos, e Jordon, o mecânico que estava bem atrás de Scot, estivesse lívido, segurando a cabeça com as mãos. Lochart tornou a virar para a frente.
Estavam voando a uns 15 metros de altura agora, numa boa rota e se aproximando depressa. Na clareira, a superfície era nua, branca e lisa sem nenhum tufo de grama aparente, e com altos montes de neve dos lados. Aparentemente uma boa escolha. Havia espaço bastante para manobrar e pousar. Mas como avaliar a profundidade da neve e o nível da terra que estava oculta por baixo? Lochart sabia o que faria se tivesse os controles. Mas não tinha, não era o comandante, embora fosse mais graduado.
— Eles estão bem, lá atrás, Scot.
— Graças a Deus — disse Scot Gavallan. — Você está pronto para sair?
— O que você está achando do terreno?
Scot percebeu o aviso na voz de Lochart; interrompendo instantaneamente o pouso, aumentou a potência e se manteve no ar. Cristo, pensou, quase em pânico pela própria estupidez, se Tom não tivesse me alertado eu teria pousado e só Deus sabe qual a profundidade da neve ou o que está por baixo! Ergueu-se a trinta metros e observou a encosta da montanha.
— Obrigado, Tom. Que tal ali?
A outra clareira era menor, ficava a poucas centenas de metros, do outro lado do vale, mais para baixo, com boas possibilidades de fuga para o caso de precisarem, e era protegida do vento. O chão estava quase sem neve, era acidentado mas servia.
— Também me parece melhor. — Lochart tirou um dos fones e olhou para trás. — Ei, Jean-Luc — gritou por cima do barulho dos motores —, você está bem?
— Estou, ouvi alguma coisa se partir.
— Nós também. Jordon, você está bem?
— É claro que estou muito bem, pelo amor de Deus — respondeu Jordon azedo. Era um australiano magro e rijo e estava balançando a cabeça como um cachorro. — Só bati com a minha maldita cabeça, né? Malditas balas! Pensei que Scot tinha dito que as coisas estavam melhorando com o maldito xá longe e com o maldito Khomeini de volta. Melhores? Agora estão atirando em nós! Eles nunca fizeram isto antes. Que diabo está acontecendo?
— Como é que eu vou saber? Provavelmente apenas um maníaco atirador. Fique firme, vou dar uma olhada rápida. Se o trem de pouso estiver direito, vamos pousar e você e Rod podem fazer uma inspeção.
— Como está a maldita pressão do óleo? — gritou Jordon.
— No verde. — Lochart voltou à posição, automaticamente verificando os mostradores, a clareira, o céu, à esquerda, à direita, acima e abaixo. Eles estavam descendo muito bem, faltando mais sessenta metros. Através do fone, ouviu Gavallan cantarolando baixinho.
— Você se saiu muito bem, Scot.
— Bem, uma ova — disse o rapaz, tentando parecer casual. — Eu ia me espatifar. Fiquei completamente paralisado quando as balas nos atingiram, e se não tivesse sido por você, eu teria me arrebentado.
— A culpa foi quase toda minha. Eu empurrei a alavanca de comando sem avisar. Peço desculpas por isto, mas tinha que tirar o helicóptero depressa daquela maldita linha de fogo. Aprendi isso na Malásia. — Lochart passara um ano lá com as Forças Britânicas, na guerra contra os rebeldes comunistas. — Não havia tempo para avisar. Pouse o mais depressa que puder. — Ele observou, com aprovação, Gavallan fazer o helicóptero flutuar, examinando o terreno cuidadosamente.
— Você viu quem atirou em nós, Tom?
— Não, mas eu não estava procurando inimigos. Onde vai pousar?
— Ali, bem longe daquela árvore caída. Está bom?
— Parece-me ótimo. O mais rápido que puder. Segure-o a mais ou menos meio metro de altura.
A sustentação foi perfeita. Poucos centímetros acima do solo firme como as rochas que estavam por baixo, embora o vento estivesse forte. Lochart abriu a porta. O frio repentino gelou-o. Fechando sua jaqueta acolchoada, esgueirou-se cuidadosamente para fora, mantendo a cabeça bem abaixada por causa das pás giratórias.
A parte da frente dos esquis estava arranhada, bastante amassada e um pouco torta, mas os rebites que o prendiam ao trem de pouso estavam firmes. Rapidamente, checou o outro lado, tornou a checar o esqui avariado, depois levantou os polegares. Gavallan desacelerou um pouquinho e pousou, macio como uma pluma.
Na mesma hora, os três homens que estavam atrás pularam para fora. Jean-Luc Sessonne, o piloto francês, saiu da frente para deixar os dois mecânicos iniciarem sua inspeção, um a bombordo, o outro a estibordo, indo do nariz até a cauda. O vento dos rotores tentava arrancar-lhe as roupas, fustigando-os. Lochart estava debaixo do helicóptero procurando algum vazamento de óleo ou gasolina, mas não achou nenhum, então levantou-se e seguiu Rodrigues. O homem era americano e muito bom — era seu mecânico e, já há um ano, vinha trabalhando no 212 que Lochart geralmente pilotava. Rodrigues abriu um painel de inspeção e examinou o interior, seu cabelo salpicado de branco e as roupas repuxadas pela corrente de ar.
Os padrões de segurança da S-G eram os mais altos de todos os operadores de helicópteros iranianos, de forma que o emaranhado de cabos, tubos e condutos de combustível estava limpo, em ordem e em excelentes condições. Mas, de repente, Rodrigues apontou. Havia uma marca profunda no cárter onde uma bala ricocheteara. Cuidadosamente, seguiram o rastro da bala. Mais uma vez ele apontou para o emaranhado, desta vez com uma lanterna. Um dos condutos de óleo estava rachado. Quando tirou a mão, ela estava suja de óleo.
— Merda! — disse.
— Desligamos os motores, Rod? — gritou Lochart.
— Não, que diabo, pode haver mais desses maníacos atiradores por aí, e este não é um lugar para se passar a noite. — Rodrigues apanhou um pedaço de estopa e uma chave inglesa. — Você checa a popa, Tom.
Lochart deixou-o trabalhando, deu uma olhada em volta, inquieto, procurando um possível abrigo para o caso de terem que passar a noite ali. Do outro lado da clareira, Jean-Luc urinava despreocupadamente, encostado numa árvore caída, com um cigarro na boca.
— Não vá apanhar uma frieira, Jean-Luc! — gritou, e viu-o acenar complacentemente com o jato de urina.
— Ei, Tom.
Era Jordon chamando. Imediatamente ele se abaixou e entrou sob a cauda do helicóptero para se juntar ao mecânico. Seu coração deu um salto. Jordon também abrira um painel de inspeção. Havia dois buracos de bala na fuselagem, logo acima dos tanques. Jesus, mais um segundo e os tanques teriam explodido, pensou. Se eu não tivesse empurrado a alavanca de comando, teríamos ido pelos ares. Completamente. Se não fosse por isso estaríamos despedaçados na encosta da montanha. E a troco de quê?
Jordon cutucou-o e tornou a apontar, seguindo o caminho das balas. Havia uma outra marca na coluna do rotor.
— Como aquele maldito demônio errou as malditas pás da hélice é que eu não sei — gritou, com o gorro de lã vermelha que sempre usava puxado sobre as orelhas.
— Não tinha chegado a nossa hora.
— O quê?
— Nada. Encontrou mais alguma coisa?
— Ainda não. Você está bem, Tom?
— Claro.
Houve um estrondo repentino e todos se viraram assustados, mas era apenas um enorme galho de árvore, cheio de neve, caindo no chão.
— Espéce de con! — disse Jean-Luc e olhou para o céu, bem consciente de que estava escurecendo, depois deu de ombros, acendeu outro cigarro e saiu andando, batendo os pés para espantar o frio.
Jordon não encontrou mais nada de errado do lado dele. Os minutos iam passando. Rodrigues ainda estava resmungando e praguejando, com um dos braços enfiado, desajeitadamente, nas entranhas do aparelho. Atrás dele, os outros estavam agrupados, olhando, bem longe dos rotores. Era barulhento e desconfortável, a luz ainda era boa, mas não por muito tempo. Ainda teriam que viajar trinta quilômetros e não havia nenhum sistema de orientação naquelas montanhas além do pequeno radiofarol que tinham na base e que às vezes funcionava, às vezes não.
— Depressa, pelo amor de Deus — alguém resmungou. Claro, pensou Lochart, escondendo a inquietação.
Em Shiraz, a tripulação de dois mecânicos e dois pilotos que eles estavam substituindo despedira-se apressadamente e correra para o 125 da companhia — um avião a jato de dois motores e oito lugares, usado para transporte ou para algum carregamento especial — o mesmo jato que os trouxera do Aeroporto Internacional de Dubai, através do golfo, depois de um mês de licença; Lochart e Jordon na Inglaterra, Jean-Luc na França e Rodrigues numa caçada no Quênia.
— Por que a maldita pressa? — perguntara Lochart quando o pequeno jato fechou as portas e começou a taxiar.
— O aeroporto só está operando parcialmente, todo mundo ainda está em greve, mas nada para se preocupar — dissera Scot. — Eles têm de levantar vôo antes que aquele cretino intrometido da torre, que pensa que é uma dádiva de Deus para o controle de tráfego aéreo iraniano, cancele a licença deles.
É melhor darmos o fora também, antes que ele comece a nos encher. Ponha suas coisas a bordo.
— E a alfândega?
— Eles ainda estão em greve, cara. Eles e todo mundo — os bancos ainda estão fechados. Não faz mal, vai tudo voltar ao normal numa semana.
— Merde — exclamou Jean-Luc. — Os jornais franceses dizem que o Irã é une catastrophe com Khomeini e seus mulás de um lado, as Forças Armadas prontas para darem um golpe a qualquer momento, os comunistas enrolando todo mundo, o governo de Bakhtiar impotente e a guerra civil inevitável.
— O que é que eles sabem na França, cara? — dissera Scot, despreocupadamente, enquanto carregavam a bagagem.
— Os franceses sabem, mon vieux. Todos os jornais dizem que Khomeini nunca cooperará com Bakhtiar porque ele foi indicado pelo xá e qualquer pessoa ligada ao xá está acabada. Acabada. Aquele velho comedor de fogo já disse cinqüenta vezes que não vai trabalhar com ninguém indicado pelo xá.
— Eu vi Andy há três dias em Aberdeen, Jean-Luc, e ele teimava em dizer que o Irã vai voltar ao normal logo, agora que Khomeini está de volta e o xá foi embora.
— Está vendo? — exultou Scot. — Se alguém pode saber, este alguém é o Velho. Como vai ele, Tom?
— Em grande forma, a mesma bola de fogo — respondeu sorrindo Lochart. — Andy era Andrew Gavallan, pai de Scot, presidente e diretor executivo da S-G. — Andy disse que Bakhtiar tem o Exército, a Marinha e a Aeronáutica, a polícia e a Savak, então Khomeini tem que fazer algum tipo de acordo. É isso ou a guerra civil.
— Jesus — disse Rodrigues —, que diabo estamos fazendo aqui?
— É o dinheiro.
— Bullmerde!
Todos tinham rido — Jean-Luc era sempre pessimista.
— E que importância tem isso, Jean-Luc? — perguntou Scot. — Nunca ninguém nos incomodou aqui, não é? Apesar desses problemas todos, nunca ninguém nos incomodou realmente. Todos os nossos contratos são com a IranOil, o que quer dizer com o governo: Bakhtiar, Khomeini ou general Qualquer Coisa. Não importa quem esteja no poder, eles precisam voltar à normalidade logo. Qualquer governo vai precisar desesperadamente dos petrodólares, então eles vão precisar de helicópteros, vão precisar de nós. Pelo amor de Deus, eles não são idiotas!
— Não, mas Khomeini é um fanático e não liga para mais nada a não ser o Islã, e petróleo não é Islã.
— E o que me dizem da Arábia Saudita? Dos Emirados, da OPEP, pelo amor de Deus? Eles são islâmicos e sabem o preço de um barril. Para o diabo com isso; ouçam! — Scot anunciou: — A Guerney Aviation abandonou as montanhas Zagros e está reduzindo a zero todas as suas operações no Irã. A zero!
Isso prendeu a atenção de todos eles. A Guerney Aviation era uma enorme companhia americana de helicópteros e a maior rival deles. Com a Guerney de fora, o trabalho iria dobrar, e todo o pessoal da S-G no Irã recebia gratificações que dependiam dos lucros iranianos.
— Tem certeza, Scot?
— É claro, Tom. Eles tiveram uma briga terrível com a IranOil por causa disso. O resultado foi que a IranOil disse: "Se vocês querem sair, saiam, mas todos os helicópteros estão a nosso serviço, então eles ficam — e todas as peças sobressalentes!" Então Guerney disse a eles para darem o fora, fechou a base de Gash, encostou todos os helicópteros e foi embora.
— Não acredito nisso — disse Jean-Luc. — Guerney deve ter uns cinqüenta helicópteros sob contrato; nem mesmo eles podem suportar uma perda dessas.
— Mesmo assim, nós já tivemos três missões na semana passada que eram todas exclusivas da Guerney.
— Por que a Guerney se retirou, Scot? — disse Jean-Luc, interrompendo as manifestações de alegria.
— O nosso Destemido Líder em Teerã acha que eles não podem ou não querem agüentar a pressão. Vamos encarar os fatos, a maior parte do veneno de Khomeini é dirigida contra os americanos e as companhias americanas. McIver acha que eles estão reduzindo suas perdas, e isto é ótimo para nós.
— Minha nossa, se não podem levar seus aviões e peças sobressalentes, eles estão em apuros.
— Não nos interessa pensar no motivo, cara, só nos interessa ir lá e voar. Se a gente agüentar firme, vamos pegar todos os contratos deles e mais do que dobrar o nosso pagamento só este ano.
— Tu en parles mon cul, ma tête est malade!
Todos tinham rido. Até Jordon sabia o que aquilo queria dizer: fale com meu eu, minha cabeça está doente.
— Não há por que se preocupar, cara — disse Scot.
Confiantemente, Lochart balançou a cabeça em silêncio, o frio da montanha ainda não o estava afetando. Andy e Scot têm razão, tudo vai se normalizar logo, tem que se normalizar, pensou. Os jornais da Inglaterra também estavam confiantes de que a situação iraniana breve se normalizaria. Desde que os soviéticos não tomassem nenhuma iniciativa publicamente. E eles tinham sido avisados. Era para americanos e soviéticos ficarem de fora, de modo que os iranianos, desta vez, pudessem resolver os seus problemas a seu próprio modo. É claro que quem quer que esteja no poder vai necessitar urgentemente de estabilidade, e de recursos — e isso significa petróleo. É. Vai dar tudo certo. Ela acredita nisso e se ela acreditava que tudo seria maravilhoso quando o xá fosse derrubado e Khomeini voltasse, por que eu não acreditaria?
Ah, Xarazade, como senti saudades suas.
Tinha sido impossível telefonar para ela da Inglaterra. Os telefones no Irã nunca foram muito bons, devido à sobrecarga das linhas causada pela industrialização acelerada. Mas nos últimos oito meses, desde que os problemas começaram, as greves quase constantes nas telecomunicações tornaram as comunicações internas e externas cada vez piores, e agora elas eram praticamente inexistentes. Quando Lochart estava no quartel-general em Aberdeen, para o seu exame bianual de saúde, tinha conseguido enviar-lhe um telex depois de passar oito horas tentando. Ele o enviara aos cuidados de Duncan McIver, em Teerã, onde ela estava agora. Não se pode dizer muito num telex, exceto vejo você em breve, sinto a sua falta, amor.
Não falta muito agora, meu amor, e...
— Tom?
— Oh, olá Jean-Luc. O que é?
— Vai começar a nevar logo.
— E.
Jean-Luc tinha um rosto fino, com um grande nariz gaulês e olhos castanhos, magro como todos os pilotos que se submetiam a sérios exames médicos a cada seis meses, onde não se aceitava nenhuma desculpa para excesso de peso.
— Quem atirou em nós, Tom?
— Não vi ninguém. Você viu? — disse Lochart, dando de ombros.
— Não. Espero que tenha sido só um maluco. — Os olhos de Jean-Luc sondaram-no. — Por um momento pensei que estivesse de volta a Argel, estas montanhas não são assim tão diferentes, de volta à Força Aérea, lutando contra os fellagha e a FLN, que Deus os amaldiçoe eternamente. — Ele apagou o cigarro com o calcanhar. — Estive numa guerra civil e detestei. Pelo menos eu tinha bombas e armas. Não quero ser um civil apanhado em outra sem nada para me valer a não ser a velocidade com que eu possa correr.
— Foi apenas um louco solitário.
— Acho que vamos ter que lidar com uma porção de malucos, Tom. Desde que deixei a França que estou com um mau pressentimento. E piorou depois desta volta. Nós estivemos na guerra, você e eu, mas a maioria dos outros não esteve. Nós temos um bom faro, você e eu, e vamos ter sérios problemas pela frente.
— Não, você está apenas cansado.
— Isto é verdade. Andy foi realmente teimoso?
— Muito. Mandou lembranças e disse para não desanimarmos. Jean-Luc riu e abafou um bocejo.
— Minha nossa, estou faminto. O que Scot planejou para nos receber?
— Mandou colocar um cartaz de boas-vindas no hangar.
— Para o jantar, mon vieux, jantar.
— Scot disse que ele e alguns nativos andaram caçando, de modo que ele tem uma perna de veado e algumas lebres preparadas para você saborear, e o churrasco estará pronto.
Os olhos de Jean-Luc se iluminaram.
— Ótimo. Ouça, eu trouxe queijo Brie, um quilo de alho, presunto defumado, anchovas, cebolas, e também um quilo de macarrão, latas de purê de tomate, e minha mulher me deu uma nova receita de amatriciana do Gianni de St. Jean que é simplesmente inacreditável. E vinho.
Lochart ficou com água na boca. O hobby de Jean-Luc era cozinhar e, quando ele queria, ficava inspirado.
— Trouxe latas de tudo o que pude imaginar de Fortnums e um pouco de uísque. Ei, senti saudades da sua comida. — E da sua companhia também, pensou. Quando eles se encontraram em Dubai, tinham-se cumprimentado e ele perguntara: — Como foi de licença?
— Estive na França — Jean-Luc respondera com um ar superior. Lochart o invejara pela simplicidade. A Inglaterra não tinha sido boa, o clima, a comida, a licença, as crianças, ela, o Natal — por mais que ele se esforçasse. Não importa, estou de volta e logo estarei em Teerã.
— Você vai cozinhar esta noite, Jean-Luc?
— É claro. Como posso viver sem uma comida decente?
— Como todo mundo. — Lochart riu.
Eles observaram Rodrigues que ainda estava trabalhando. O ruído dos rotores perturbava-os. Lochart levantou os polegares para Scot, que esperava pacientemente na cabine. Scot devolveu o sinal e apontou para o céu. Lochart balançou a cabeça, concordando, depois deu de ombros e voltou a prestar atenção em Rodrigues, sabendo que não havia nada que pudesse fazer para ajudar, a não ser esperar estoicamente.
— Quando você vai para Teerã? — perguntou Jean-Luc.
— No domingo, se não nevar. — E o coração de Lochart bateu mais depressa. — Tenho um relatório para McIver e correspondência para eles lá. Vou tomar um 206; vou levar o dia inteiro amanhã para checar tudo. Scot disse que temos que nos preparar para operar com força total.
— Nasiri disse força total? — Jean-Luc encarou-o.
— Disse.
Nasiri era o intermediário iraniano e gerente da base, um funcionário da IranOil, o monopólio governamental que possuía todo o petróleo que existia debaixo e acima do solo e que encaminhava e autorizava todos os vôos deles. A S-G trabalhava sob contrato para essa companhia, supervisionando, fornecendo pessoal, suprimentos e equipamento para as plataformas de petróleo que estavam espalhadas por toda a extensão da montanha, e lidando com os inevitáveis acidentes e emergências.
— Duvido que a gente vá voar muito na semana que vem, por causa do tempo, mas eu devo poder sair no 206 — completou Jean-Luc.
— E você vai precisar de um guia. Eu vou também.
— Não há condição, meu chapa. Você é o segundo em comando e está de serviço nas próximas duas semanas — disse Lochart sorrindo.
— Mas não vão precisar de mim. Por três dias, hein? Olhe para o céu, Tom. Preciso ver se está tudo bem no nosso apartamento. — Em épocas normais, Teerã servia de base para os pilotos que tinham família e que voavam duas semanas sim, uma semana não. Muitos pilotos optaram por voar durante dois meses e passar um mês em casa, principalmente os ingleses. — É muito importante que eu vá a Teerã.
— Posso checar o seu apartamento se você quiser, e se você prometer cozinhar três noites por semana, posso conseguir-lhe uns dois dias de folga quando voltar. Você acabou de ter um mês de licença.
— Ah, mas isso foi em casa. Agora preciso pensar em mon amie. É claro que ela está desconsolada sem mim em Teerã, ela já está sozinha há um mês.
— Jean-Luc estava observando Rodrigues. Então, tornou a olhar para o céu.
— Nós só podemos esperar mais dez minutos, Tom, depois vamos ter que preparar um acampamento enquanto ainda está claro.
— Eu sei.
— Mas voltando a coisas mais importantes, Tom...
— Não.
— Minha nossa, seja francês e não anglo-saxão. Um mês inteiro, pense nos sentimentos dela.
Rodrigues ajustou o painel no lugar e limpou as mãos.
— Vamos dar o fora daqui — gritou, subindo a bordo. Os outros o seguiram rapidamente. Ele ainda estava ajustando o cinto de segurança, com as costas, a cabeça e o pescoço doendo, quando eles levantaram vôo e partiram em direção à base, sobrevoando a cadeia de montanhas. Então viu Jordon olhando para ele. — O que há com você, cara?
— Como foi que você consertou aquele maldito cano, cara? Ele estava todo furado.
— Goma.
— O quê?
— Goma de mascar, é claro. Funcionou no maldito Vietnã, então deve funcionar aqui também. Talvez. Porque era só um maldito pedacinho mas era o que eu tinha, então é melhor começar a rezar. Será que você pode parar de praguejar, pelo amor de Deus?
Pousaram sãos e salvos na base quando a neve estava começando a cair. O pessoal de terra tinha acendido as luzes de pouso, só por precaução.
A base consistia em quatro barracas, uma cozinha, um hangar para o 212 — um transporte para quatorze passageiros ou helicóptero de carga — e dois 206 e campos de pouso. Depósitos para perfuradoras de petróleo sobressalentes, sacos de cimento, bombas, geradores, todo tipo de equipamento de apoio para as plataformas, além dos tubos de perfuração. Ficava num pequeno platô a 2.500 metros, um lugar arborizado e muito pitoresco, numa depressão cercada por picos cheios de neve, que alcançavam mais de quatro mil metros. A um quilômetro de distância ficava a cidade de Yazdek. Seus habitantes pertenciam a uma tribo secundária dos nômades kash'kai que se tinham estabelecido ali há um século, no entroncamento de duas rotas de caravanas de pouca importância que cruzavam o Irã por três, talvez quatro mil anos.
A S-G já tinha uma base ali há sete anos, sob contrato com a IranOil, inicialmente para supervisionar um oleoduto e fazer mapas topográficos da região, depois para ajudar a construir e explorar as plataformas dos ricos campos de petróleo da região. Era um lugar solitário, selvagem e lindo, com boas condições de vôo e horário folgado — o regulamento iraniano só permitia vôos durante o dia. Os verões eram maravilhosos. Durante a maior parte do inverno eles ficavam ilhados por causa da neve. Perto havia lagos cristalinos com boa pesca, e nas florestas a caça era abundante. Suas relações com os habitantes de Yazdek eram excelentes. Além do correio, eles estavam em geral, bem abastecidos e não precisavam de nada. E, o que era importante para todos, estavam bem longe do quartel-general em Teerã, sem contato por rádio a maior parte do tempo, e entregues, felizmente, aos seus próprios recursos.
Assim que os rotores pararam e o helicóptero foi desligado, Rodrigues e Jordon tornaram a abrir o painel. Ficaram estupefatos: o chão do compartimento estava coberto de óleo. Além do óleo, um cheiro forte de gasolina. Tremendo, Rodrigues começou a procurar e depois apontou com a lanterna. Numa das juntas, na extremidade de um tanque de gasolina, havia uma pequena rachadura que eles não poderiam ter detectado na encosta da montanha. Um fio de combustível saía e se misturava com o óleo que estava no chão.
— Jesus, cara! Olha, isto é uma maldita bomba-relógio — exclamou assustado. Atrás dele, Jordon quase desmaiou. — Uma centelha e... cara, me arranja uma mangueira pelo amor de Deus. Vou encher ele de água antes que a gente vá pelos ares...
— Eu vou buscar — disse Scot, depois acrescentou, nauseado — Bem, eu acho que uma das nossas vidas já se foi. Só faltam oito.
— Você deve ter nascido empelicado, capitão — disse Rodrigues, sentindo-se muito mal. — É, você deve ter nascido empelicado. Este bebê... — Parou, de repente, escutando.
E todo mundo em volta fez o mesmo: Lochart e Jean-Luc, perto da barraca principal com Nasiri, a meia dúzia de iranianos que compunham o pessoal de terra, cozinheiros e operários. Tudo estava muito silencioso. Depois, tornaram a ouvir uma rajada de metralhadora vinda do lado da cidade.
— Maldição! — resmungou Rodrigues. — Que diabo viemos fazer de novo neste buraco nojento?
ABERDEEN, ESCÓCIA — HELIPORTO McCLOUD: 17:15H. O grande helicóptero desceu ao entardecer, com as pás girando, e pousou ao lado do Rolls que estava estacionado perto de uma das pistas molhadas de chuva — o heliporto fervilhava, outros helicópteros chegavam ou saíam com montadores de poços, pessoal e suprimentos, todos os aviões e hangares ostentando orgulhosamente o símbolo da S-G. A porta da cabine se abriu e dois homens vestidos com macacões de vôo e coletes salva-vidas desceram os degraus hidráulicos, curvando-se contra o vento e a chuva. Antes que chegassem ao carro, o motorista uniformizado já abrira a porta para eles.
— Um passeio esplêndido, não foi? — disse alegremente Andrew Gavallan, um homem alto, forte e muito conservado para os seus 64 anos. Despiu com facilidade seu colete salva-vidas, sacudiu a chuva do colarinho e entrou ao lado do outro homem. — Ele é maravilhoso, corresponde a tudo o que os fabricantes anunciaram. Já lhe disse que somos os primeiros estranhos a testá-lo?
— Primeiros ou últimos, para mim não faz a menor diferença. Eu o achei terrivelmente instável e barulhento — disse irritado Linbar Struan, tentando livrar-se do seu colete. Ele tinha cinqüenta anos, cabelos ruivos e olhos azuis, e era o chefe da Struan's, o vasto conglomerado com base em Hong Kong, apelidado de Casa Nobre, que controlava secretamente a S-G Helicópteros. — Eu ainda acho que o investimento por aeronave é alto demais. Demais.
— O X63 é um ótimo investimento em termos econômicos; vai ser perfeito para o mar do Norte, o Irã, ou qualquer lugar em que tenhamos cargas pesadas, especialmente o Irã — disse Gavallan com paciência, sem querer que seu ódio por Linbar estragasse o que fora um teste de vôo perfeito. — Eu encomendei seis.
— Não aprovei a compra ainda! — Linbar exclamou com raiva.
— Sua aprovação não é necessária — disse Gavallan e seus olhos castanhos se tornaram duros. — Eu sou membro do escritório central da Struan's; você e o seu escritório central aprovaram a compra no ano passado, dependendo de um teste de vôo, se eu a aconselhasse...
— Você ainda não a aconselhou!
— Estou aconselhando agora, então não há mais o que discutir! — Gavallan sorriu docemente e se recostou no assento. — Você receberá os contratos dentro de três semanas, na reunião da diretoria.
— Isto nunca vai ter fim, não é, Andrew, você e sua maldita ambição?
— Eu não represento nenhuma ameaça para você, Linbar, vamos...
— Concordo! — Zangado, Linbar apanhou o interfone para falar com o motorista do outro lado da divisória de vidro à prova de som. — John, deixe o sr. Gavallan no escritório e depois vá para o castelo Avisyard. — Imediatamente, o carro partiu em direção ao bloco de escritórios de três andares que ficava do outro lado de um grupo de hangares.
— Como vai Avisyard? — perguntou Gavallan pouco à vontade.
— Melhor do que no seu tempo. Sinto muito que você e Maureen não tenham sido convidados para o Natal, talvez no próximo ano. — Linbar franziu os lábios. — É, Avisyard está muito melhor. — Ele olhou pela janela e fez um sinal com o polegar na direção do gigantesco helicóptero. — E é melhor que você não falhe com aquilo. Ou com qualquer outra coisa.
As feições de Gavallan retesaram-se; a zombaria a respeito de sua mulher tinha penetrado a sua guarda.
— Por falar em fracassos, o que você me diz dos seus investimentos desastrosos na América do Sul, da sua estúpida briga com a Navegação toda a respeito da sua frota de petroleiros, o que você me diz de perder o contrato do túnel de Hong Kong para a Par-Con Toda, o que você me diz de ter traído os seus velhos amigos em Hong Kong com as suas manipulações das ações...
— Traição uma ova! Velhos amigos uma ova! Todos eles são maiores de idade e o que eles fizeram por nós recentemente? O pessoal de Shangai é considerado mais esperto do que nós — os cantonenses, o pessoal do continente, todos eles, você disse isso um milhão de vezes! Não é culpa minha que haja uma crise de petróleo, ou que o mundo esteja em apuros, ou que o Irã esteja falido ou que os árabes nos estejam crucificando junto com os japoneses, os coreanos e o pessoal de Formosa! — Linbar ficou sufocado de ódio. — Você esquece que estamos num mundo diferente, agora. Hong Kong é diferente, o mundo é diferente! Eu sou tai-pan da Struan's, estou encarregado de olhar pela Casa Nobre, e todo tai-pan tem tido reveses, mesmo o seu maldito Deus sir Ian Dunross, e ele ainda vai ter mais, com suas fantasias de jazidas de petróleo na China. Tod...
— Ian está certo a res...
— Até Hag Struan sofreu reveses, até mesmo o nosso maldito fundador, o grande Dirk em pessoa, que ele também apodreça no inferno! Não é culpa minha que o mundo esteja de pernas para o ar. Você acha que pode fazer melhor? — gritou Linbar.
— Vinte vezes melhor! — berrou Gavallan, de volta.
— Eu despediria você se pudesse, mas não posso! — Agora Linbar estava tremendo de raiva. — Já estou farto de você e da sua deslealdade, seu canalha velho. Você se casou dentro da família, você não faz parte dela, e se existe um Deus no céu você há de se destruir! Eu sou tai-pan e você, por Deus, nunca será!
Gavallan bateu na divisória de vidro e o carro parou subitamente. Ele abriu a porta e saiu.
— Dew neh loh moh, Linbar! — disse entre dentes e saiu andando na chuva.
O ódio deles datava do final dos anos cinqüenta e começo dos sessenta, quando Gavallan estava trabalhando em Hong Kong para a Struan's, antes de vir para cá cumprindo ordens secretas do então tai-pan, Ian Dunross, irmão da falecida esposa de Gavallan, Kathy. Linbar lhe tinha um ciúme mortal porque ele fora o homem de confiança de Dunross e, principalmente, porque Gavallan era sempre apontando como o provável sucessor do tai-pan, enquanto Linbar parecia não ter nenhuma chance de sê-lo.
Pela antiga lei da companhia Struan's o tai-pan tinha poder executivo total e indiscutível, e o direito inviolável de escolher o momento de se aposentar e indicar o seu sucessor — que tinha de ser um membro do escritório central e portanto, de alguma forma, da família — mas uma vez que a decisão fosse tomada, deveria abrir mão de qualquer poder. Ian Dunross governara sabiamente por dez anos e escolhera um primo, David MacStruan, para sucedê-lo. Há quatro anos, em pleno vigor, David MacStruan — um alpinista entusiasta — morrera num acidente no Himalaia. Pouco antes de morrer e na frente de duas testemunhas, surpreendentemente, escolhera Linbar para sucedê-lo. Sua morte foi investigada por autoridades policiais britânicas e nepalesas. As suas cordas e o seu equipamento de alpinismo tinham sido mexidos.
As investigações terminaram com o veredicto de 'acidente'. O lado da montanha que ele estava escalando era afastado, a queda foi súbita, ninguém sabia exatamente o que acontecera, nem alpinistas nem guias, as condições eram apenas razoáveis e, sim, o sahib estava bem de saúde e era um homem experiente, nunca se arriscaria tolamente.
Mas, sahib, as nossas montanhas nas Terras Altas são diferentes das outras montanhas. As nossas montanhas têm alma e ficam zangadas de vez em quando, sahib, e quem pode prever o que um espírito fará? — Nenhum dedo foi apontado para nenhum homem, a corda e o equipamento 'poderiam' não ter sido mexidos, apenas mal conservados. Carma.
Salvo os guias nepaleses, todos os doze alpinistas do grupo eram homens de Hong Kong, sócios e amigos, britânicos, chineses, um americano e dois japoneses, Hiro Toda, o chefe das Indústrias de Navegação Toda — um amigo de longa data de David MacStruan — e um de seus sócios, Nobunaga Mori. Linbar não estava entre eles.
Correndo grave risco, dois homens e um guia desceram pela fenda e alcançaram David MacStruan antes que ele morresse, Paul Choy, um diretor da Struan's imensamente rico, e Mori. Ambos testemunharam que, pouco antes de morrer, David MacStruan indicara formalmente Linbar como seu sucessor. Pouco depois de o abalado grupo ter voltado para Hong Kong, a secretária executiva de MacStruan, ao examinar seus papéis, encontrou uma página escrita à máquina e assinada por ele, datada de poucos meses antes e testemunhada por Paul Choy, que confirmava tudo.
Gavallan lembrava-se de como ficara chocado, todos eles ficaram — Claudia Chen, que tinha sido secretária executiva do tai-pan por gerações, prima da sua própria secretária executiva, Liz Chen, mais do que todos.
— Não parece coisa do tai-pan, Master Andrew — ela dissera a ele, uma senhora idosa mas ainda um bocado esperta. — O tai-pan nunca teria deixado um papel importante como este aqui, ele o teria colocado no cofre da Casa Grande junto com... com todos os outros documentos particulares.
Mas David MacStruan não fizera isso. E a ordem dada ao morrer e o papel que a confirmava tornaram tudo legal e agora Linbar era tai-pan da Casa Nobre e este foi o ponto final, mas dew neh loh moh para Linbar mesmo assim, sua horrível mulher, sua diabólica amante chinesa e seus amigos corruptos. Eu apostaria minha vida que se David não foi assassinado ele foi manipulado de algum modo. Mas por que Paul Choy mentiria, ou Mori, por que, eles não tinham nada a ganhar com isto...
Uma súbita pancada de chuva atingiu-o e ele ficou momentaneamente ofegante, despertando do seu devaneio. Seu coração ainda estava acelerado e ele se amaldiçoou por ter perdido a calma e deixado Linbar dizer o que não deveria ter sido dito.
— Você é um maldito idiota, poderia tê-lo refreado como sempre, você tem que trabalhar com ele e sua corja durante anos, você também teve culpa! — disse em voz alta, depois resmungou — O canalha não deveria ter sido sarcástico a respeito de Maureen... — Eles estavam casados há três anos e tinham uma filha de dois. A sua primeira mulher, Kathy, tinha morrido há nove anos de esclerose múltipla.
Pobre Kathy, pensou com tristeza, que azar você teve.
Gavallan apertou os olhos para enxergar através da chuva e viu o Rolls sair pelo portão do heliporto e desaparecer. É uma pena esta questão de Avisyard. Eu adoro aquele lugar, pensou, lembrando-se de todos os bons e maus momentos que tinha passado lá com Kathy e seus dois filhos, Scot e Melinda. O Castelo Avisyard era a propriedade ancestral de Dirk Struan, que ele deixara para os tai-pans que o sucedessem, enquanto exercessem o poder. Era um lugar acidentado e lindo, mais de mil hectares em Ayrshire. Uma pena que nós nunca iremos lá, Maureen, eu e a pequena Electra, pelo menos enquanto Linbar for tai-pan. É uma pena, mas assim é a vida.
— Bem, o desgraçado não pode durar para sempre — disse para o vento e se sentiu melhor por tê-lo dito em voz alta. Depois caminhou em direção ao edifício e foi para o seu escritório.
— Oi, Liz — disse. Liz Chen era uma bonita mulher eurasiana, na casa dos cinqüenta, que viera com ele de Hong Kong em 1963 e conhecia todos os segredos da Gavallan Holdings — da sua atividade de cobertura S-G, e da Struan's. — O que há de novo?
— Na certa você teve uma briga com o tai-pan. — Ela ofereceu-lhe uma xícara de chá, com sua voz melodiosa.
— Droga, é verdade. Como soube? — Quando ela apenas riu, ele riu junto com ela. — Ele que vá para o inferno. Você já conseguiu falar com Mac? — Mac era Duncan McIver, chefe das operações da S-G no Irã e seu amigo mais antigo
— Temos um garoto ligando para lá da manhã até a noite, mas os circuitos no Irã ainda estão ocupados. O telex também não está respondendo. Duncan deve estar tão ansioso quanto você para se comunicar. — Ela apanhou o casaco dele e pendurou-o no cabide do seu escritório. — Sua mulher ligou, ela ia apanhar Electra na creche e queria saber se você jantaria em casa. Eu disse a ela que achava que sim, mas talvez chegasse tarde, você tem um encontro com a ExTex dentro de meia hora.
— É. — Gavallan sentou-se atrás da sua escrivaninha e certificou-se de que a pasta estava preparada. — Verifique se o telex para Mac já está funcionando, sim, Liz?
Ela começou imediatamente a discar. O escritório dele era grande e organizado, dando para o campo de aviação. Na escrivaninha arrumada havia alguns porta-retratos com fotografias da família, Kathy com Melinda e Scot, quando estes eram pequenos, o grande castelo de Avisyard por trás deles, e outra de Maureen carregando o bebê. Rostos bonitos, rostos sorridentes. Apenas um quadro a óleo na parede, de Aristotle Quance, representando um corpulento mandarim chinês, um presente de Ian Dunross para celebrar seu primeiro pouso bem-sucedido numa plataforma no mar do Norte e o começo de uma era.
— Andy — dissera Dunross, começando aquilo tudo. — Quero que você pegue Kathy e as crianças, saia de Hong Kong e volte para a Escócia. Quero que você finja que pediu demissão da Struan's; é claro que você vai continuar a ser um membro do escritório central, mas isto será segredo por enquanto. Quero que você vá para Aberdeen e compre, em sigilo, a melhor propriedade, atracadouros, áreas fabris, um pequeno campo de aviação, heliportos em potencial. Aberdeen ainda é um lugar atrasado, de modo que você pode comprar o melhor por um preço barato. E uma operação secreta, apenas entre nós dois. Há alguns dias eu conheci um sujeito estranho, um sismólogo chamado Kirk, que me convenceu de que o mar do Norte fica sobre um enorme lençol de petróleo. Quero que a Casa Nobre esteja pronta para abastecer as plataformas quando elas forem instaladas.
— Meu Deus, como poderemos fazer isto? O mar do Norte? Mesmo que haja petróleo lá, o que parece impossível, aquele mar é o pior do mundo durante a maior parte do ano. Não seria possível, não durante o ano todo, e, de qualquer modo, o custo seria proibitivo! Como faríamos isso?
— Este é o seu problema, rapaz.
Gavallan lembrou-se da gargalhada e da enorme confiança e, como sempre, sentiu-se reconfortado. Então ele tinha deixado Hong Kong, Kathy encantada em partir, e tinha feito tudo o que lhe fora ordenado.
Logo em seguida, como por milagre, o petróleo do mar do Norte começou a jorrar e as maiores companhias americanas — encabeçadas pela ExTex, o imenso conglomerado de petróleo do Texas, e a BP, British Petroleum — entraram com enormes investimentos. Ele estava numa posição magnífica para tirar vantagem do novo Eldorado e foi o primeiro a perceber que a única maneira eficiente de prestar serviços ao grande achado, naquelas águas violentas, era por helicóptero; foi o primeiro — com o apoio e o poder de Dunross — a levantar os pesados investimentos necessários para o arrendamento e compra dos helicópteros, o primeiro a levar os fabricantes de helicópteros a construir aparelhos de tamanho, segurança, instrumentação e padrões de desempenho nunca antes sonhados, e o primeiro a provar que era possível voar nesses mares terríveis com qualquer tipo de tempo. Duncan McIver fizera isto para ele, voar e desenvolver as técnicas necessárias que eram, até então, inteiramente desconhecidas.
O mar do Norte tinha levado ao Golfo, Irã, Malásia, Nigéria, Uruguai, África do Sul — Irã, a jóia da sua coroa, com seu imenso potencial, altamente lucrativo, com as melhores ligações com o centro do poder, a corte, que seus sócios iranianos haviam-lhe assegurado que seriam igualmente proveitosas, mesmo depois da deposição do xá.
— Andy — o general Javadah, seu sócio mais importante, servindo em Londres, dissera-lhe ontem — não há com que se preocupar. Um dos nossos sócios é parente de Bakhtiar e, por via das dúvidas, nós temos o mais alto nível de contatos com o círculo mais íntimo de Khomeini. Evidentemente, a nova era será mais cara do que a anterior...
Gavallan sorriu. Não faz mal a despesa extra, nem o fato de que a cada ano os sócios se tornem um pouco mais gananciosos, ainda há mais do que o bastante para que o Irã continue sendo a nossa nau capitânia, desde que ele volte rapidamente ao normal. O jogo de Ian deu um lucro mil vezes maior à Casa Nobre, pena que ele tenha se retirado naquele momento, mas ele já tinha carregado a Struan's por dez anos. Isto já seria o bastante para qualquer homem, até para mim. Linbar está certo quando diz que eu quero aquele lugar. Se eu não conseguir, por Deus, Scot conseguirá. Enquanto isso, para a frente e para cima, os X63 vão nos levar muito acima da Imperial e da Guerney e vão nos tornar uma das maiores companhias de helicóptero do mundo.
— Dentro de uns dois anos, Liz, nós seremos os maiores — disse com inteira confiança. — O X63 é o máximo. Mac vai ficar louco quando eu contar a ele.
— Sim — ela concordou e desligou o telefone. — Sinto muito, Andy, os circuitos ainda estão ocupados. Eles vão nos avisar assim que desocuparem. Você contou ao tai-pan o resto das novidades?
— Não era exatamente o momento ideal, mas não tem importância. — Eles riram juntos. — Vou reservar isto para a reunião da diretoria.
Um velho relógio de navio começou a tocar as seis horas. Gavallan esticou o braço e ligou o rádio que estava sobre o arquivo, atrás dele. Som do Big Ben batendo as horas...
TEERÃ — APARTAMENTO DE McIVER: O som da última badalada desaparecendo, recepção deficiente, cheia de estática. "Aqui fala a BBC World Service, são 17:00 horas, hora de Greenwich..." Cinco horas da tarde no horário de Londres, oito e meia da noite no Irã.
Os dois homens conferiram automaticamente seus relógios. A mulher apenas tomou um gole do martíni com vodca. Os três estavam reunidos em torno do grande rádio de ondas curtas, o sinal de transmissão era fraco e havia muita superposição de ondas. Fora do apartamento, a noite estava escura. Ouviam-se algumas explosões ao longe. Eles não deram nenhuma importância. Ela tornou a beber esperando. Dentro do apartamento estava frio, o aquecimento central fora cortado várias semanas antes. A única fonte de calor que eles tinham agora era um pequeno aquecedor elétrico que, assim como as lâmpadas fracas, estava reduzido à metade da capacidade.
"...às 19:30 horas, hora de Greenwich, haverá uma reportagem especial sobre o Irã, do nosso próprio correspondente..."
— Ótimo — ela murmurou, e todos concordaram. Ela tinha 51 anos, era jovem para a idade, atraente, loura de olhos azuis, elegante, e usava óculos de aros escuros. Genevere McIver, simplesmente Genny.
"...mas primeiro um resumo das notícias internacionais: na Grã-Bretanha, dezenove mil trabalhadores tornaram a entrar em greve na fábrica de Birmingham da British Leyland, a maior fábrica de automóveis do país, por um aumento de salário: intermediários do sindicato representando os trabalhadores do serviço público conseguiram um acordo para um aumento de salário de 16%, embora o governo trabalhista do primeiro-ministro Callaghan queira manter 8,8%. A rainha Elizabeth viajará para o Kuwait na segunda-feira, iniciando uma visita de três semanas aos países do golfo Pérsico; em Washington, o pres..."
A transmissão sumiu completamente. O homem mais alto praguejou.
— Seja paciente, Charlie — ela disse carinhosamente — vai voltar.
— Sim, Genny, você tem razão — Charlie Pettikin respondeu. Outra rajada de metralhadora à distância.
— Um tanto arriscado mandar a rainha para o Kuwait agora, não é? — disse Genny. O Kuwait era um território governado por xeques, extremamente rico em petróleo, que ficava do outro lado do golfo, fazendo fronteira com a Arábia Saudita e o Iraque. — É bem estúpido numa época destas, não é?
— Extremamente estúpido. O maldito governo está com a cabeça lá em Aberdeen — disse Duncan McIver, seu marido.
— Isto é um bocado longe, Duncan — disse rindo.
— Não é longe o bastante para mim, Gen! — McIver era um homem corpulento de 58 anos, com a estrutura de um lutador de boxe, e cabelos grisalhos. — Callaghan é um maldito aproveitador e... — Parou, ouvindo o barulho de um veículo pesado passando lá embaixo na rua. O apartamento era no último andar, o quinto, de um moderno edifício residencial nos subúrbios ao norte de Teerã. Outro veículo passou.
— Parecem mais tanques — disse ela.
— São tanques, Genny. — corrigiu Charlie Pettikin. Ele tinha 56 anos, ex-membro da RAF, natural da África do Sul, com cabelos escuros, entremeados de branco, piloto-sênior, Irã, e chefe do exército iraniano da S-G e do programa de treinamento de helicópteros da Força Aérea.
— Talvez a gente vá passar outro mau pedaço — disse ela.
Há semanas que todos os dias tinham sido maus. Primeiro foi a lei marcial em setembro, quando as reuniões públicas foram proibidas e o toque de recolher de nove da noite às cinco da manhã, imposto pelo xá, só tinha servido para exaltar ainda mais o ânimo do povo. Especialmente na capital, Teerã, no porto petrolífero de Abadan e nas cidades religiosas de Qom e Meshed. Tinha havido muitas mortes. Então a violência aumentava, com o xá vacilando, depois cancelando abruptamente a lei marcial nos últimos dias de dezembro e apontando Bakhtiar, um moderado, como primeiro-ministro, fazendo concessões e depois, inacreditavelmente, no dia 16 de janeiro, partindo do Irã para umas 'férias'. Em seguida, Bakhtiar formando o seu governo e Khomeini — ainda no exílio na França — renegando-o e a qualquer um que o apoiasse. Os tumultos crescendo, as mortes aumentando. Bakhtiar tentando negociar com Khomeini, que se recusou a vê-lo ou a falar com ele, o povo impaciente, o exército impaciente, depois fechando-se todos os aeroportos para Khomeini, depois abrindo-os para ele. E afinal, também inacreditavelmente, há oito dias, em 1º de fevereiro, a volta de Khomeini.
Desde então, os dias têm sido muito ruins, pensou ela.
Naquela madrugada, ela, seu marido e Pettikin estiveram no aeroporto internacional de Teerã. Era uma quinta-feira, muito fria mas revigorante, com retalhos de neve aqui e ali e um vento suave. Ao norte, as montanhas Elburz estavam com os picos cobertos de neve, o sol nascente ensangüentando a neve. Os três tinham ficado ao lado do 212 que estava no pátio de manobras do aeroporto, bem longe da pista em frente ao terminal. Outro 212 estava do outro lado do campo de aviação, também pronto para levantar vôo — ambos por ordem dos partidários de Khomeini.
Este lado do terminal estava deserto, exceto por uns vinte nervosos funcionários do aeroporto, a maioria carregando metralhadoras portáteis, esperando perto de um grande Mercedes preto e de um carro com rádio que estava ligado com a torre. Estava calmo ali — em violento contraste com o interior do terminal e com o lado de fora da cerca que circundava o aeroporto. Dentro do prédio do terminal havia um comitê de recepção de cerca de mil convidados especiais: políticos, aiatolás, mulás pessoal de imprensa, e centenas de policiais uniformizados e guardas islâmicos com braçadeiras verdes — apelidados de Faixas Verdes — o exército particular ilegal e revolucionário dos mulás. Todas as outras pessoas tinham sido mantidas fora do aeroporto, todas as estradas de acesso bloqueadas, guardadas e barricadas. Mas do outro lado dessas barricadas havia dezenas de milhares de pessoas ansiosas, de todas as idades. A maioria das mulheres usava o chador, uma túnica longa como uma mortalha, que as cobria dos pés à cabeça. Além dessas pessoas, ao longo do caminho de 16 quilômetros até o cemitério de Behesht-Zahra onde o aiatolá faria seu primeiro discurso, havia cinco mil policiais armados e, em volta deles, espremidos em balcões, janelas, muros e ruas, havia o maior ajuntamento de pessoas que o Irã já tinha visto, um mar de gente — a maior parte da população de Teerã. Quase cinco milhões de pessoas viviam dentro e nos arredores da cidade. Todos ansiosos, todos nervosos, todos com medo de que pudesse haver um atraso de última hora ou que talvez o aeroporto estivesse fechado mais uma vez para ele ou que talvez a força aérea o derrubasse — com ou sem ordens.
O primeiro-ministro Shahpur Bakhtiar, seu gabinete e os generais de todas as forças armadas não estavam no aeroporto. Por opção. Nem estava lá nenhum dos seus oficiais e soldados. Aqueles homens esperavam nos seus quartéis, campos de aviação ou navios — todos igualmente ansiosos e impacientes para agir.
— Eu gostaria que você tivesse ficado em casa, Gen — dissera McIver inquieto.
— Eu gostaria que nós todos tivéssemos ficado em casa — disse Pettikin, também pouco à vontade.
Um semana antes, McIver fora abordado por um dos partidários de Khomeini para fornecer um helicóptero que levasse Khomeini do aeroporto para Behesht-Zahra.
— Sinto muito, mas não é possível. Eu não tenho autorização para fazer isso — dissera, estupefato. Em uma hora, o homem estava de volta com os Faixas Verdes, o escritório de McIver e os outros escritórios ficaram cheios deles, jovens, duros, com rostos ferozes, dois portando rifles automáticos soviéticos AK47, um com um US Ml6.
— Como eu tinha dito, o senhor vai fornecer o helicóptero — ordenou o homem com arrogância. — Para o caso de se tornar muito difícil controlar a multidão. É claro que Teerã inteira estará lá para dar as boas-vindas ao aiatolá, que a Bênção de Deus esteja com ele.
— Por mais que eu quisesse fazer isto, não poderia — McIver respondera com cautela, tentando ganhar tempo.
Ele estava numa posição insustentável. Khomeini obtivera permissão para voltar, mas isso era tudo; se o governo de Bakhtiar soubesse que a S-G estava fornecendo um helicóptero ao seu arquiinimigo para que ele pudesse fazer uma entrada triunfal na capital, eles ficariam, realmente, muito irritados. E mesmo que o governo concordasse, se alguma coisa saísse errada, se o aiatolá fosse ferido, a S-G levaria a culpa e as suas vidas não valeriam um tostão.
— Todas as nossas aeronaves estão sob contrato, e eu não tenho a autoridade necessária pa...
— Eu lhe dou a autoridade necessária em nome do aiatolá — disse o homem zangado, erguendo a voz. — O aiatolá é a única autoridade no Irã.
— Então deveria ser fácil para o senhor conseguir um helicóptero do Exército ou da Força Aérea iraniana para...
— Cale-se! O senhor teve a honra de ser solicitado. O senhor fará o que for mandado. Em nome de Alá, o komiteh decidiu que o senhor vai fornecer um 212 com os seus melhores pilotos para levar o aiatolá para onde nós dissermos, quando nós dissermos, como nós dissermos.
Esta era a primeira vez que McIver se confrontava com um dos komitehs — pequenos grupos de jovens fundamentalistas — que tinham surgido, aparentemente por milagre, assim que o xá saíra do Irã, em todas as cidades, vilas e aldeias para tomar o poder, atacando postos policiais, conduzindo as multidões nas ruas, assumindo o controle onde quer que conseguissem. Na maioria das vezes, eles eram liderados por um mulá. Mas nem sempre. Nos campos de petróleo de Abadan dizia-se que os komitehs eram compostos por fedayins de esquerda — literalmente 'aqueles que estão prontos a se sacrificar'.
— O senhor vai obedecer! — O homem sacudiu o revólver na cara dele.
— Eu me sinto, sem dúvida, honrado pela sua confiança — McIver dissera, os homens cercando-o, o cheiro forte de suor e roupas sujas em volta dele.
— Vou pedir permissão ao governo...
— O governo de Bakhtiar é ilegal e não é aceito pelo povo — berrara o homem. Imediatamente, os outros começaram também a berrar e a situação ficou feia. Um dos homens empunhou o seu rifle automático.
— Ou o senhor concorda ou o komiteh tomará outras medidas. McIver passou um telex para Andrew Gavallan, em Aberdeen, que concordou imediatamente, com a condição de que os sócios iranianos da S-G também concordassem. Os sócios não puderam ser encontrados. Em desespero, McIver contatou a embaixada britânica para se aconselhar:
— Bem, meu velho, certamente você pode perguntar ao governo, formal ou informalmente, mas nunca conseguirá uma resposta. Nós nem mesmo temos certeza se eles vão realmente permitir que Khomeini desembarque, ou se a Força Aérea não vai se encarregar do assunto. Afinal, o maldito sujeito é um completo revolucionário que está abertamente incitando a uma revolta contra o governo legal, que é reconhecido por todo mundo — o governo de Sua Majestade inclusive. De qualquer jeito, se você for tolo o bastante para perguntar, o governo vai certamente se lembrar de que você os colocou numa situação delicada e você vai se danar de qualquer maneira.
No fim, McIver conseguiu um acordo aceitável com o komiteh.
— Afinal de contas — ele havia salientado com enorme alívio — pareceria muito estranho que uma aeronave britânica levasse o seu reverenciado líder para a cidade. Sem dúvida, seria melhor se fosse um avião da Força Aérea iraniana, pilotado por um iraniano. Vou ter um dos nossos preparados, dois, aliás, para o caso de algum acidente. Com nossos melhores pilotos. É só nos chamar pelo rádio, peça uma emergência e nós responderemos imediatamente...
E agora ele estava ali, esperando, rezando para que não houvesse nenhuma emergência para ele responder.
O jumbo 747 da Air France surgiu de dentro da névoa cor-de-rosa. Durante vinte minutos ele circulou, esperando permissão para pousar.
McIver estava ouvindo a torre pelo rádio do 212.
— Ainda há algum problema em relação à segurança — disse aos outros dois. — Esperem um minuto... ele teve permissão!
— Lá vamos nós — murmurou Pettikin.
Eles observaram o avião se aproximar. O 747 era de um branco brilhante, com as cores francesas se destacando. Ele foi-se avizinhando da terra numa aproximação perfeita; então, no último momento, o piloto aumentou ao máximo a potência, interrompendo o pouso.
— Que diabo ele está tentando fazer? — disse Genny, o coração em disparada.
— O piloto está dizendo que quis dar primeiro uma olhada — McIver explicou a ela. — Acho que eu também faria o mesmo, só para me certificar. — Ele olhou para Pettikin, que atenderia a qualquer chamado de emergência do komiteh. — Peço a Deus que a Força Aérea não cometa nenhuma loucura.
— Olhe — disse Genny.
O jato se aproximou e tocou o solo, com os pneus largando fumaça, seus enormes motores rugindo ao serem invertidos para freá-lo. Imediatamente, uma Mercedes correu para interceptá-lo, e à medida que a notícia se espalhava entre aqueles que estavam no terminal, depois para as barricadas, depois para as ruas, as multidões foram ficando loucas de alegria. A ladainha começou: "Allah-u Akbar... Agha uhmad" Deus é grande... O Mestre voltou...
Pareceu levar uma eternidade até a escada chegar, as portas se abrirem e o velho de barba, com o rosto severo, de turbante preto descer os degraus, ajudado por uma das comissárias francesas. Caminhou no meio da guarda de honra formada às pressas por alguns mulás e pela tripulação da Air France iraniana e foi cercado por seus principais assistentes e pelos nervosos funcionários, e rapidamente enfiado num carro que se dirigiu para o terminal. Lá ele foi saudado pelo tumulto enquanto os convidados enlouquecidos, gritando e dando vivas, lutavam uns com os outros para chegar perto dele, tocá-lo, e jornalistas do mundo inteiro também se atropelavam pela melhor posição com sua barreira de máquinas fotográficas e câmeras de TV — todo mundo gritando, os Faixas Verdes e a polícia tentando evitar que ele fosse esmagado. Genny pode vê-lo apenas por um momento, uma estátua no meio do tumulto, depois ele foi engolido.
Genny tomou um gole do martíni, recordando, com os olhos fixos no rádio, tentando obrigar a transmissão a continuar, para apagar a lembrança daquele dia e do discurso de Khomeini no cemitério Behesht-Zahra, escolhido porque muitos dos que foram massacrados na Sexta-Feira Sangrenta — mártires ele os chamava — estavam enterrados lá.
Para apagar as imagens de TV que todos eles tinham visto mais tarde, imagens do mar de corpos enlouquecidos cercando o desfile de automóveis que se arrastava — qualquer idéia de segurança abandonada — dezenas de milhares de homens, mulheres e jovens gritando, lutando, empurrando para chegar mais perto dele, escalando o caminhão Chevrolet onde ele estava, tentando alcançá-lo, tocá-lo, o aiatolá sentado no banco da frente aparentando serenidade, ocasionalmente levantando as mãos para a multidão. Pessoas trepadas no capô e no teto, chorando e gritando, chamando por ele, lutando para impedir os outros de subir — impossível para o motorista enxergar, o motorista de vez em quando freando para as pessoas caírem, outras vezes simplesmente acelerando às cegas. Para apagar a lembrança de um jovem de terno marrom que tinha subido no capô mas que não conseguira se segurar direito e que rolara devagar para debaixo das rodas.
Dúzias como o jovem. Finalmente, os Faixas Verdes conseguiram cercar o caminhão e chamaram o helicóptero, e ela lembrou a maneira negligente com que o helicóptero se arremessou no meio da multidão que se dispersou para escapar das pás, corpos por toda a parte, feridos por toda a parte, depois o aiatolá caminhando no meio do seu bando de Guardas Islâmicos e sendo ajudado a entrar no helicóptero, com o rosto duro, impassível, depois o helicóptero levantando vôo sob os gritos intermináveis de "Allah-uuuuu Akbar... Agha uhmad..."
— Preciso de outro drinque — disse ela e se levantou para disfarçar um arrepio. — Posso preparar um para você, Duncan?
— Obrigado, Gen.
Caminhou em direção à cozinha para apanhar gelo.
— Charlie?
— Agora não, Genny, depois eu pego.
Ela parou quando a transmissão voltou com força: "...A China anuncia que houve sérios incidentes de fronteira com o Vietnã e denuncia esses ataques como mais uma prova da hegemonia soviética; na Fran..." — Mais uma vez o sinal desapareceu, deixando apenas estática.
Passado um momento, Pettikin disse:
— Tomei um drinque no clube quando estava vindo para cá. Há um boato entre os jornalistas de que Bakhtiar está preparando uma declaração. Outro boato é de que está havendo luta em Meshed depois que um grupo de arruaceiros enforcou o chefe de polícia e meia dúzia dos seus homens.
— Terrível — disse ela, voltando da cozinha. — Quem está controlando estas turbas, Charlie, realmente controlando-as? São os comunistas?
Pettikin deu de ombros.
— Ninguém parece saber com certeza, mas o partido comunista Tudeh tem que estar incitando-as, proscrito ou não. E todos os esquerdistas, particularmente os mujhadin-al-khalq, que acreditavam numa espécie de casamento entre as religiões islâmicas e Marx, apoiados pelos soviéticos. O xá, os Estados Unidos e a maioria dos governos ocidentais sabem que são eles, fortemente apoiados pelos soviéticos ao norte da fronteira, com o que, é claro, toda a imprensa iraniana concorda. E também os nossos sócios iranianos, embora eles estejam mortos de medo, sem saber para onde se virar, tentando apoiar ao mesmo tempo o xá e Khomeini. Peço a Deus que tudo se acalme. O Irã é um lugar maravilhoso e eu não tenho planos de me retirar.
— E a imprensa?
— A imprensa estrangeira está confusa. Alguns americanos concordam inteiramente com o xá na acusação contra os comunistas. Outros dizem que o problema é apenas Khomeini, puramente religioso, provocado por ele e pelos mulás. Há os que põem a culpa nos fedayins de esquerda ou na resistência fundamentalista organizada pela Irmandade Muçulmana. Houve até um cara, acho que francês, que declarou que Yasser Arafat e a FLP são... — Ele parou. O rádio voltou a falar por um segundo e depois a estática continuou. — Devem ser manchas solares.
— Suficientes para fazer uma pessoa querer cuspir sangue — disse McIver. Como Pettikin, ele era um ex-combatente da RAF. Tinha sido o primeiro piloto a entrar para a S-G, e agora, como diretor das operações no Irã, também era diretor executivo da CHI — Companhia de Helicópteros do Irã — o empreendimento conjunto, com participação obrigatória e em partes iguais dos iranianos, para a qual a S-G arrendava os seus helicópteros, a companhia que conseguia os seus contratos, fazia os acordos, tomava conta do dinheiro — sem a qual não haveria operações no Irã. Inclinou-se para a frente para sintonizar melhor e depois mudou de idéia.
— A transmissão vai voltar, Duncan — disse Genny, confiante. — Concordo que Callaghan é um canalha.
Ele sorriu para ela. Estavam casados há trinta anos.
— Você não é nada má, Gen. Nada má, mesmo.
— Por causa disto você pode tomar mais um uísque.
— Obrigado, mas desta vez misture um pouco d'água...
— "Porta-vozes do Ministério da Energia dizem que o novo aumento de 14% da OPEP custará aos Estados Unidos 51 bilhões de dólares para importação de petróleo no próximo ano. Também em Washington, o presidente Carter anunciou que em função do agravamento da situação no Irã um grupo de porta-aviões foi enviado das Fili..." A voz do locutor foi abafada por uma outra estação, depois ambas saíram do ar.
Eles esperaram em silêncio, muito tensos. Os dois homens se entreolharam tentando esconder o choque. Genny foi apanhar a garrafa de uísque que estava no aparador. Também no aparador, ocupando quase todo o espaço, estava o rádio HF, que era o meio de comunicação de McIver com todas as suas bases de helicópteros espalhadas pelo Irã — quando as condições o permitiam. O apartamento era amplo e confortável, com três quartos e duas salas. Nos últimos meses, desde a lei marcial e a subseqüente escalada de violência nas ruas, Pettikin viera morar com eles — ele estava solteiro agora, divorciara-se há um ano e esta combinação agradava a todos.
Um vento ligeiro sacudia as vidraças. Genny olhou para fora. Havia algumas luzes amortecidas nas casas em frente, nenhuma luz na rua. Os telhados baixos da enorme cidade alongavam-se ao infinito. Havia neve sobre eles e sobre o chão. A maior parte dos cinco ou seis milhões de habitantes vivia na miséria. Mas esta área, ao norte de Teerã, a melhor área, onde morava a maioria dos estrangeiros e os iranianos ricos, era bem policiada. Será errado morar na melhor área se você tem meios para isso? Genny se perguntou. Este mundo é um lugar muito estranho, seja de que modo você o encare.
Ela preparou um drinque fraco, com bastante soda, e trouxe-o de volta.
— Vai haver uma guerra civil. Não há condições de continuarmos aqui.
— Nós estaremos seguros, o general Carter não vai deixar... — De repente as luzes se apagaram e o aquecedor elétrico parou de funcionar.
— Droga — disse Genny. — Graças a Deus temos o aquecedor a gás.
— Talvez a falta de energia não dure muito. — McIver ajudou-a a acender as velas que já estavam preparadas. Ele olhou para a porta de entrada, ao lado da qual havia uma lata com vinte litros de gasolina, o combustível de emergência deles. Detestava a idéia de guardar gasolina no apartamento, todos eles detestavam, principalmente quando tinham que usar velas quase todas as noites. Mas já há semanas que se levava de cinco a 24 horas numa fila nos postos de gasolina e mesmo assim o empregado iraniano era capaz de deixar de atendê-lo porque você era estrangeiro. Várias vezes o tanque do carro deles fora esvaziado, as trancas não eram obstáculos. Eles tinham mais sorte do que a maioria porque podiam recorrer aos suprimentos do campo de aviação, mas para uma pessoa comum, especialmente um estrangeiro, as filas tornavam a vida insuportável. A gasolina no câmbio negro chegava a custar 160 riais o litro, dois dólares o litro, quando se conseguia comprá-la.
— Cuidado com as nossas reservas — disse rindo McIver.
— Mac, você podia pôr uma vela sobre elas, só pelos velhos tempos — disse Pettikin.
— Não o provoque, Charlie! O que você estava dizendo a respeito de Carter?
— O problema é que se Carter entrar em pânico e enviar mesmo algumas tropas — ou aviões — para apoiar um golpe militar, vai ser uma catástrofe. Todo mundo vai berrar como um gato escaldado, os soviéticos mais do que todos, eles vão ser obrigados a reagir e o Irã vai ser o estopim da Terceira Guerra Mundial
McIver disse:
— Nós já estamos na Terceira Guerra Mundial, Charlie, desde 1945... Uma explosão de estática interrompeu-o, depois o locutor voltou a falar.
"...ação ilegal do serviço secreto: o chefe do Estado-Maior das Forças Armadas do Kuwait anuncia que seu país recebeu carregamentos de armas da União Soviética.. "
— Cristo — murmuraram os dois homens.
"...Em Beirute, Yasser Arafat, o líder da OLP, declarou que sua organização vai continuar a apoiar ativamente a revolução do aiatolá Khomeini; numa reunião de imprensa em Washington, o presidente Carter reiterou o apoio dos Estados Unidos ao governo de Bakhtiar e ao 'processo constitucional'; e finalmente, do próprio Irã, o aiatolá Khomeini ameaçou prender o primeiro-ministro Bakhtiar caso ele não renuncie; conclamou o povo a 'destruir a terrível monarquia e seu governo ilegal', e o exército a 'revoltar-se contra os seus oficiais dominados pelos estrangeiros e fugir dos quartéis com suas armas'. Por toda a Grã-Bretanha, nevadas excepcionalmente fortes, ventanias e enchentes abalaram a maior parte do país, fechando o aeroporto de Heathrow, obrigando todas as aeronaves a permanecerem em terra. E assim terminamos o resumo das notícias. O próximo noticiário completo será às 18:00 horas. Você está ouvindo o noticiário internacional da BBC. E agora uma reportagem do nosso correspondente internacional agrícola, 'Aves e Porcos'. Começamos..."
McIver esticou o braço e desligou o rádio.
— Maldição, o mundo está desmoronando e a BBC vem falar em porcos.
— O que você faria sem a BBC, a televisão e as loterias de futebol? Ventanias e enchentes. — Genny pegou o telefone para ver se dava sorte. Estava mudo como sempre. — Espero que as crianças estejam bem. — Eles tinham um filho e uma filha, Hamish e Sarah, ambos já casados e cada um com um filho. — A pequena Karen se resfria tão facilmente! E Sarah! Mesmo com 23 anos ainda precisa que a gente lembre a ela para se vestir direito! Será que ela nunca vai crescer?
— É uma droga não poder telefonar quando se tem vontade — disse Pettikin.
— É. Bem, está na hora de comer. O mercado estava quase vazio hoje, já pelo terceiro dia consecutivo. Então, era escolher entre carneiro velho assado com arroz, outra vez, ou um especial. Escolhi o especial e usei as duas últimas latas. Temos torta de carne, couve-flor gratinada, bolo de frutas e uma entrada surpresa. — Apanhou uma vela e foi para a cozinha, fechando a porta.
— Por que será que sempre temos couve-flor gratinada? — McIver ficou olhando a luz da vela tremulando na porta da cozinha. — Detesto esse maldito prato! Já disse isso a ela umas cinqüenta vezes... — A noite lá fora, de repente, chamou sua atenção. Foi até a janela. A cidade estava sem luz por causa do corte de energia. Mas em direção ao sudeste, um clarão vermelho iluminava o céu. — Jaleh outra vez — disse simplesmente.
No dia 8 de setembro, há cinco meses, dezenas de milhares de pessoas tomaram as ruas de Teerã para protestar contra a lei marcial imposta pelo xá. Houve muita destruição, principalmente em Jaleh, um subúrbio pobre, densamente povoado, onde acenderam fogueiras e armaram barricadas com pneus em chamas. Quando as forças de segurança chegaram, a multidão enraivecida, que gritava "Morte ao xá", recusou-se a se dispersar. A luta foi violenta. Gás lacrimogêneo não funcionou. Mas as armas funcionaram. As estimativas de mortes variaram das 97 oficiais a 250, segundo algumas testemunhas, até duas ou três mil, segundo grupos militantes de oposição.
No confronto que se seguiu a esta "Sexta-Feira Sangrenta", um grande número de políticos de oposição, dissidentes e adversários foram presos — mais tarde, o governo admitiu que foram 1.106 — inclusive dois aiatolás, o que inflamou ainda mais as multidões.
McIver sentiu muita tristeza ao olhar o clarão. Se não fosse pelos aiatolás, pensou, especialmente Khomeini, nada disso teria acontecido.
Anos atrás, quando McIver veio ao Irã pela primeira vez, ele perguntara a um amigo na embaixada britânica o que queria dizer aiatolá.
— É uma palavra árabe, ayat'Allah, e quer dizer 'reflexo de Deus'.
— Ele é um padre?
— De jeito nenhum, não há padres no Islã, que é o nome da religião deles — esta é outra palavra árabe que significa 'submissão', submissão à Vontade de Deus.
— O quê?
— Bem — dissera seu amigo, com uma gargalhada, — vou explicar, mas você tem que ter um pouco de paciência. Em primeiro lugar, os iranianos não são árabes, mas arianos, e a grande maioria é de muçulmanos xiitas, uma seita fluida com tendências ao misticismo. Já os árabes são, em geral, muçulmanos ortodoxos, e estes constituem a maioria dos bilhões de muçulmanos do mundo. Estas seitas são um pouco como os nossos protestantes e católicos, e vêm se digladiando com a mesma fúria. Mas todos partilham da mesma fé: que há um único Deus, Alá, palavra que em árabe significa Deus; que Maomé, um homem de Meca que viveu de 570 até 632 foi o Seu profeta, e que as palavras do Corão, proclamadas por Maomé e registradas por outros depois da sua morte, vieram diretamente de Deus e contêm todos os preceitos pelos quais deve viver o indivíduo ou a sociedade.
— Todos? Isto não é possível.
— Para os muçulmanos é, Mac, hoje, amanhã, para sempre. Mas 'aiatolá' é um título próprio dos xiitas e dado por consenso e aclamação popular pela congregação de uma mesquita, outra palavra árabe que significa 'lugar de encontro', que é só o que ela é, um lugar de encontro, de forma alguma uma igreja, a um mulá que exiba aquelas características mais procuradas e admiradas entre os xiitas: piedade, pobreza, conhecimento, mas só dos Livros Sagrados, o Corão e o Suna, e liderança, com muita ênfase na liderança. No islamismo não há nenhuma separação entre religião e política, não pode haver nenhuma, e os mulás xiitas do Irã, desde o começo, têm sido guardiães fanáticos do Corão e do Suna, líderes fanáticos e, quando necessário, líderes revolucionários.
— Se um aiatolá ou um mulá não é um padre, o que ele é?
— Mulá significa 'líder', aquele que conduz as preces numa mesquita. Qualquer um pode ser um mulá desde que seja homem e muçulmano. Qualquer um. Não há clero no islamismo, não há ninguém entre você e Deus, esta é uma de suas belezas, mas não para os xiitas. Os xiitas acreditam que, depois do Profeta, a terra deveria ser governada por um líder carismático, semidivino, infalível, o imã, agindo como um intermediário entre o humano e o divino, e foi daí que veio a grande divisão entre ortodoxos e xiitas, e suas guerras foram tão sangrentas quanto a dos Cem Anos. Enquanto os ortodoxos acreditam em consenso, os xiitas aceitariam a autoridade do imã, caso ele existisse.
— Então quem escolhe o homem que vai ser imã?
— Este é que é o problema. Quando Maomé morreu, aliás ele nunca declarou ser nada mais do que um simples mortal, embora o último dos profetas, não deixou nem filhos homens nem um sucessor de sua escolha, um califa. Os xiitas acharam que a liderança deveria permanecer com a família do Profeta e o califa só poderia ser Ali, seu primo e genro, casado com Fátima, sua filha favorita. Mas os sunitas ortodoxos, seguindo um costume tribal que se usa até hoje, acreditavam que o líder só poderia ser escolhido por consenso. Eles provaram ser mais fortes, e os três primeiros califas foram eleitos pelo voto; dois foram assassinados por outros sunitas, até que finalmente, para os xiitas, Ali tornou-se califa e, como eles ardorosamente acreditam, o primeiro imã.
— Eles o consideravam semidivino?
— Guiado por Deus, Mac. Ali durou cinco anos, depois foi assassinado. Os xiitas dizem que foi martirizado. Seu filho mais velho tornou-se imã, depois foi derrubado por um usurpador sunita. Seu segundo filho, o venerado Hussein, de 25 anos, levantou um exército contra o usurpador, mas foi trucidado, martirizado com todo o seu povo, inclusive os dois filhos mais jovens de seu irmão, o seu próprio filho de cinco anos, e um bebê de colo. Isto aconteceu no décimo dia do mês de muharram, no ano 650 da nossa era e 61 na deles, e eles ainda celebram o martírio de Hussein como o seu dia mais sagrado.
— É neste dia que eles fazem procissões e se chicoteiam, enfiam-se pregos e se flagelam?
— É, uma coisa louca do nosso ponto de vista. O Reza Xá tornou este costume ilegal, mas a religião dos xiitas é uma coisa apaixonada, que precisa de expressões externas de penitência e luto. O martírio está profundamente enraizado nos xiitas, e é venerado no Irã. Assim como a revolta contra os usurpadores.
— Então a guerra está declarada, os fiéis contra o xá?
— Oh, sim. Com fanatismo, de ambos os lados. Para os xiitas, o mulá é o único meio de interpretação, o que, portanto, lhe dá enorme poder. Ele é intérprete, legislador, juiz e líder. E os maiores mulás são os aiatolás.
E Khomeini é o Grande aiatolá, pensava McIver, olhando fixamente para a noite sangrenta que cobria Jaleh. Ele é o maior, e queira ou não, toda matança, todo derramamento de sangue, todo sofrimento e loucura têm que ser atribuídos a ele, sejam ou não justificados.
— Mac!
— Oh, desculpe Charlie — Mac despertou do devaneio. — Eu estava a quilômetros de distância. O quê? Olhou para a porta da cozinha. Ainda estava fechada.
— Você não acha que deveria tirar Genny do Irã? — perguntou Pettikin, em voz baixa. — As coisas estão ficando realmente muito feias.
— Ela não sai de jeito nenhum. Já mandei cinqüenta vezes, já pedi cinqüenta vezes, mas ela é teimosa como uma mula, como a sua Claire — respondeu McIver, também em voz baixa. — Ela apenas sorri e diz: "Quando você for, eu vou." — Ele terminou o uísque, olhou para a porta, e preparou outro apressadamente. Mais forte. — Charlie, fale com ela. Ela vai ouvi...
— Vai o quê!
— Você tem razão. Malditas mulheres. Maldita teimosia. Elas são todas iguais. — Eles riram.
— Como vai Xarazade? — perguntou Pettikin, depois de um intervalo.
McIver refletiu um momento.
— Tom Lochart é um homem de sorte.
— Por que ela não foi para a Inglaterra com ele, quando ele foi de licença, e não ficou lá até o Irã se acalmar?
— Não havia motivo nenhum para que ela fosse — não tem família nem amigos lá. Ela queria que Tom fosse ver os filhos, passar o Natal, você sabe. Disse que achava que iria atrapalhar se fosse com ele. Deirdre Lochart ainda está furiosa com o divórcio e, de qualquer modo, a família de Xarazade está aqui; você sabe como são fortes os laços de família no Irã. Ela não irá enquanto Tom não for, e mesmo então não garanto. E quanto a Tom, se tentasse mandá-lo de volta, acho que pediria demissão. Ele vai ficar aqui para sempre. Como você. — E sorriu. — Por que você fica?
— Foi o melhor posto que já tive, quando tudo estava normal. Posso voar o quanto quiser, esquiar no inverno, velejar no verão... Mas vamos encarar os fatos, Mac, Claire sempre detestou isto aqui. Durante anos ela passou mais tempo na Inglaterra do que aqui, para poder ficar perto de Jason e de Beatrice, da sua própria família e do nosso neto. Pelo menos nossa separação foi amigável. Pilotos de helicóptero não deveriam casar-se, são obrigados a viajar demais. Eu nasci expatriado, e é assim que vou morrer. Não quero voltar a Cape Town, mal conheço aquele lugar, e não suporto aqueles malditos invernos ingleses. — Tomou um gole de cerveja, na penumbra, e disse com decisão: — Insha'Allah. — Nas mãos de Deus. A idéia o agradou.
Inesperadamente, o telefone tocou, dando-lhes um susto. Há meses o sistema telefônico estava péssimo — nas últimas semanas era totalmente inviável, as linhas permanentemente cruzadas, ligações erradas, o sinal às vezes funcionando por um dia ou por uma hora e depois tornando a ficar mudo.
— Aposto cinco libras que é um cobrador — disse, Pettikin, sorrindo para Genny, que saiu da cozinha, também espantada com a campainha.
— Impossível, Charlie! — Os bancos estavam em greve há dois meses, em resposta ao apelo de Khomeini por uma greve geral, de modo que ninguém, pessoas, companhias, nem mesmo o governo, conseguira retirar dinheiro e a maioria dos iranianos usava dinheiro e não cheque.
McIver levantou o fone sem saber o que esperar. Ou quem.
— Alô.
— Meu Deus, esta maldita coisa está funcionando — disse a voz. — Duncan, você pode-me ouvir?
— Posso, posso sim. Quem é?
— Talbot. George Talbot da embaixada britânica. Sinto muito, meu velho, mas a merda está atingindo o ventilador. Khomeini nomeou Mehdi Bazargan primeiro-ministro e pediu a renúncia de Bakhtiar. Quase um milhão de pessoas estão nas ruas de Teerã neste momento, procurando barulho. Acabamos de saber que está havendo uma revolta de aviadores em Doshan Tappeh, e Bakhtiar disse que se eles não se entregarem vai chamar os Imortais. Os Imortais eram unidades de assalto da fanática Guarda Imperial pró-xá. O governo de Sua Majestade, bem como os Estados Unidos, o Canadá e outros estão aconselhando todos os seus cidadãos que não forem imprescindíveis aqui a deixarem o país imediatamente.
McIver tentou manter-se calmo e disse aos outros:
— É Talbot, da embaixada.
— ...Ontem, um americano da ExTex Oil e um funcionário iraniano foram emboscados e mortos por 'atiradores não identificados', a sudoeste, perto de Ahwaz — o coração de McIver deu um salto — ...vocês ainda estão operando lá, não estão?
— Perto de lá, em Bandar Delam, na costa. — disse McIver, sem alterar a voz.
— Quantos cidadãos britânicos você tem aqui, sem contar os dependentes?
McIver pensou por um momento.
— Quarenta e cinco, do nosso contingente atual de sessenta e sete: são vinte e seis pilotos, trinta e seis mecânicos e engenheiros, cinco administradores, o que é essencial para nós.
— Quem são os outros?
— Quatro americanos, três alemães, dois franceses, e um finlandês, todos pilotos. Dois mecânicos americanos. Mas trataremos todos como britânicos, se for necessário.
— Dependentes?
— Quatro, só mulheres, nenhuma criança. Retiramos os outros há três semanas. Genny ainda está aqui, uma americana em Kowiss e duas iranianas.
— É melhor você mandar as esposas iranianas para suas embaixadas amanhã, com as certidões de casamento. Elas estão em Teerã?
— Uma está, a outra está em Tabriz.
— É melhor você lhes conseguir novos passaportes, o mais depressa possível.
Pelas leis iranianas, todos os cidadãos iranianos que regressavam ao país tinham que entregar os passaportes ao Serviço de Imigração, onde eram guardados até que quisessem tornar a sair. Para sair, era necessário se apresentar pessoalmente à repartição pública adequada e obter um visto de saída para o qual era preciso uma carteira de identidade em dia, uma razão satisfatória para querer ir para o estrangeiro, e caso fossem de avião, uma passagem paga para um determinado vôo. Podia-se levar dias ou semanas para conseguir este visto de saída. Em épocas normais.
— Graças a Deus não temos este problema — disse McIver.
— Podemos agradecer a Deus por sermos britânicos — prosseguiu Talbot. — Felizmente, nós não temos nenhuma rixa com o aiatolá, com Bakhtiar ou com os generais. Ainda assim, todos os estrangeiros vão ter que enfrentar um bocado de problemas, por isto nós o aconselhamos formalmente a evacuar todos os dependentes, o mais depressa possível, e cortar o resto do pessoal ao que for estritamente necessário, por enquanto. O aeroporto vai se transformar numa bagunça, de amanhã em diante. Estimamos que ainda haja cinco mil estrangeiros, na maioria americanos, mas pedimos a cooperação da British Airways no sentido de aumentar o número de vôos para nós e nossos compatriotas. O problema é que todos os controladores civis de tráfego aéreo ainda estão em greve. Bakhtiar mandou que os controladores militares assumissem e eles são ainda mais meticulosos, se isto é possível. Temos certeza de que vai ser um novo êxodo.
— Oh, Deus!
Há poucas semanas, depois de meses de ameaças cada vez maiores contra os estrangeiros — principalmente contra os americanos, por causa dos constantes ataques de Khomeini ao materialismo americano como sendo o Grande Satã — uma multidão violenta saiu às ruas na cidade industrial de Isfahan, com seu enorme complexo siderúrgico, sua refinaria petroquímica, suas fábricas de material bélico e de helicópteros, e onde uma grande parte dos cinqüenta e poucos mil americanos trabalhavam e viviam com suas famílias. A multidão pôs fogo em bancos — o Corão proibia emprestar dinheiro por lucro — em lojas de bebidas — o Corão proibia tomar bebidas alcoólicas — e em dois cinemas — lugares de 'pornografia e de propaganda ocidental', sempre alvos preferidos dos fundamentalistas — depois atacaram instalações fabris, atiraram coquetéis Molotov no QG de quatro andares da Grumman Aircraft, queimando-o completamente. Isto precipitou o 'exôdo'.
Milhares de pessoas foram para o aeroporto de Teerã, na maioria dependentes, lotando-o, enquanto os passageiros à espera de lugar brigavam pelos poucos lugares restantes, transformando o aeroporto e seus saguões numa área devastada, com homens, mulheres e crianças acampados lá, com medo de perder seus lugares, sem espaço para ficar em pé, esperando pacientemente, dormindo, empurrando, exigindo, gemendo, gritando ou apenas esperando estoicamente. Nenhum planejamento, nenhuma prioridade, cada avião excedendo vinte vezes sua capacidade, nenhuma passagem fornecida por computador, tudo escrito lentamente, à mão, por uns poucos funcionários mal-humorados — a maioria dos quais era abertamente hostil e não falava inglês. Rapidamente, o aeroporto se tornou perigoso e a atmosfera pesada.
Em desespero, algumas companhias fretaram seus próprios aviões para remover seu pessoal. A Força Aérea dos Estados Unidos veio retirar os dependentes dos militares, enquanto todas as embaixadas tentavam diminuir as proporções da evacuação, não querendo embaraçar ainda mais o xá, seu aliado há vinte anos. Aumentando o caos, havia milhares de iranianos, todos tentando fugir enquanto havia tempo. Os inescrupulosos e os ricos furavam as filas. Muito funcionário ficou rico, depois mais ganancioso, e depois mais rico. Aí os controladores de vôo entraram em greve, fechando completamente o aeroporto.
Durante dois dias, nenhum avião subiu ou desceu. As multidões ou se retiraram ou ficaram. Depois, alguns controladores voltaram a trabalhar e começou tudo de novo. Boatos de novos vôos. Correrias para o aeroporto, com as crianças e a bagagem acumulada de anos, ou sem bagagem, para um lugar garantido que nunca existiu, outra vez de volta a Teerã, quinhentas pessoas na sua frente, na fila de táxi, a maioria dos táxis em greve — finalmente de volta ao hotel, seu quarto de hotel já cedido a outro, todos os bancos fechados, e nenhum dinheiro para molhar as mãos sempre estendidas.
Por fim, a maioria dos estrangeiros que queria partir, partiu. Aqueles que ficaram para tocar os negócios, para manter os campos de petróleo abastecidos, os aviões voando, as usinas nucleares sendo construídas, as fábricas de produtos químicos funcionando, os petroleiros se movendo — e para proteger seus gigantescos investimentos — ficaram de crista baixa, especialmente os americanos. Khomeini dissera: "Se o estrangeiro quiser partir, que parta; o materialismo americano é que é o Grande Satã"
McIver apertou o fone de encontro ao ouvido, quando o volume diminuiu um pouco, com medo que a ligação fosse cortada.
— Sim, George, o que você estava dizendo?
— Eu só estava dizendo, Duncan, que nós temos certeza de que no fim tudo vai se ajeitar. Não há nenhuma indicação de que a coisa vá fugir completamente ao controle. Uma fonte não-oficial diz que já há um acordo em vista para que o xá renuncie em favor de seu filho Reza, o acordo que o governo de SM defende. A transição para um governo constitucional pode ser um pouco tumultuada, mas nada para se preocupar. Desculpe, mas tenho que desligar. Avise-me do que decidir.
O telefone ficou mudo.
McIver praguejou, bateu no gancho em vão, e contou a Genny e a Charlie o que Talbot dissera. Genny sorriu docemente.
— Não olhe para mim, a resposta é não. Eu con...
— Mas, Gen, Tal.
— Eu concordo que as outras devam ir, mas esta aqui vai ficar. A comida está quase pronta. — Voltou para a cozinha e fechou a porta, cortando maiores discussões.
— Bem, ela vai de qualquer maneira — disse McIver.
— Aposto um ano de salário como ela não vai, a não ser que você vá. Por que você não vai, pelo amor de Deus? Eu posso tomar conta de tudo.
— Não, obrigado. — E McIver sorriu na penumbra. — Na verdade é como estar de volta à guerra, não é? De volta ao maldito blecaute. Nada com que se preocupar, exceto se acostumar com a situação, tomar conta das tropas e obedecer ordens. — McIver franziu a testa. — Talbot estava certo a respeito de uma coisa: temos uma sorte danada em sermos britânicos. É duro para os ianques. Não é justo.
— É, mas você protegeu os nossos o melhor que pôde.
— Espero que sim. — Quando o xá partiu e a violência aumentou em toda a parte, McIver emitira identificações britânicas para todos os americanos.
— Eles estarão seguros a não ser que os Faixas Verdes, a polícia ou a Savak comparem as identificações com os vistos deles.
Pelas leis iranianas, todos os estrangeiros tinham que ter um visto atualizado, que era cancelado para poderem sair do país, um cartão de identificação atualizado declarando a que companhia estavam filiados — e todos os pilotos tinham que tirar uma licença anual para pilotar no Irã. Como mais uma medida de segurança, McIver mandara fazer identificações da companhia, assinadas pelo chefe dos seus sócios iranianos em Teerã, general Valik. Até agora não houvera nenhum problema. Para os americanos, McIver dissera:
— É melhor vocês terem isto para mostrar, caso seja necessário — e dera ordem a todo o pessoal para andar com fotografias tanto de Khomeini quanto do xá. — Tenham cuidado em mostrar a fotografia certa caso sejam parados!
Pettikin estava tentando chamar Bandar Delam no HF sem sucesso.
— Vamos tentar mais tarde — disse McIver. — Todas as bases estarão na escuta às oito e meia, isto vai nos dar tempo de decidir o que fazer. Cristo, vai ser um bocado difícil. O que acha? Status quo, exceto para os dependentes?
Muito preocupado, Pettikin levantou-se e apanhou uma vela para olhar o mapa de operações, pregado na parede, que mostrava a situação de suas bases, tripulação, pessoal de terra e aeronaves. As bases estavam espalhadas por todo o Irã, desde bases de treinamento da Força Aérea e do Exército, em Teerã e Isfahan, até bases de apoio a plataformas de petróleo, em grandes altitudes, em Zagros; uma operação de corte e transporte de madeira no nordeste, em Tabriz; uma equipe de prospecção de urânio perto da fronteira do Afeganistão; desde a supervisão de um oleoduto no mar Cáspio até quatro campos de petróleo no Golfo e arredores, e por último, a sudeste, mais um campo em Lengeh, no estreito de Ormuz. No momento, estavam em operação os campos de Lengeh, Kowiss, Bandar Delam, Zagros e Tabriz.
— Nós temos quinze 212, incluindo dois que estão na revisão das duas mil horas de vôo, sete 206, e três Alouettes, todos devendo estar em atividade no momento...
— E todos presos a contratos legais, dos quais nenhum foi rescindido, mas também não foi pago — disse McIver, impaciente. — Não há nenhuma maneira de manter todos na base de Kowiss e, legalmente, não podemos remover nenhum sem a aprovação do contratante, ou dos nossos queridos sócios, a não ser que declaremos motivo de força maior.
— Ainda não há nenhum. Tem que ser status quo, pelo tempo que for possível. — Talbot parecia confiante. — Status quo.
— Gostaria que fosse status quo, Charlie. Meu Deus, nesta mesma época, no ano passado, tínhamos quase quarenta 212 trabalhando, além de todo o resto. — McIver serviu-se de mais um uísque.
— É melhor você ir devagar — disse Pettikin, em voz baixa. — Genny vai ficar uma fera. Você sabe que sua pressão está alta e que você não deve beber.
— É terapêutico, pelo amor de Deus. — Uma vela chegou ao fim e se apagou. McIver levantou-se, acendeu outra e voltou a olhar para o mapa. — Acho melhor trazer de volta Azadeh e o Finlandês Voador. 0 212 dele está com 1.500 horas, portanto poderia ser poupado por uns dois dias. — Tratava-se do Capitão Erikki Yokkonen e da sua esposa iraniana, Azadeh, e sua base era perto de Tabriz, na província oriental de Azerbeijão, que ficava bem a noroeste, perto da fronteira soviética. — Por que não tomar um 206 e ir apanhá-los? Isto lhes pouparia uma viagem horrível de carro, de 550 quilômetros, e nós temos mesmo que levar algumas peças sobressalentes para lá.
— Obrigado, eu bem que gostaria de dar uma saída — disse Pettikin sorrindo. — Vou preparar um plano de vôo pelo HF esta noite, partir de madrugada, reabastecer em Bandar-e Pahlavi, e comprar um pouco de caviar para nós.
— Sonhador. Mas Gen gostaria. Você sabe o que eu acho dessa droga. — McIver afastou-se do mapa. — Estamos muito expostos, Charlie, caso as coisas fiquem pretas.
— Só se for o destino.
McIver concordou com a cabeça. Distraidamente, seus olhos pousaram no telefone. Levantou o fone. Agora estava dando sinal. Nervosamente, começou a discar: 00, internacional; 44, Grã-Bretanha; 224, Aberdeen, na Escócia; 765-8080. Esperou um bom tempo, então seu rosto se iluminou.
— Cristo, consegui.
— S-G Helicópteros, espere na linha, por favor — falou a telefonista, antes que ele pudesse dizer quem era
Esperou, fumegando.
— S-G Heli...
— Aqui é McIver, de Teerã, ligue-me com o Velho, por favor.
— Ele está falando no telefone, sr. McIver. — A garota fungou. — Vou ligar com a secretária dele.
— Alô, Mac! — disse Liz Chen, quase imediatamente. — Espere um segundo, vou passar para ele. Você está bem? Estamos tentando falar com você há dias; espere um momento.
— Está bem, Liz.
Um momento depois Gavallan dizia alegremente:
— Mac? Cristo, como conseguiu ligar? É maravilhoso falar com você. Estou com um rapaz tentando permanentemente ligar para você, para o seu escritório, seu apartamento, dez horas por dia. Como vai Genny? Como conseguiu ligar?
— Pura sorte, Andy. Estou em casa. É melhor eu falar depressa antes que cortem a ligação.
McIver contou-lhe a maior parte do que Talbot dissera. Tinha que ser discreto porque havia boatos de que a Savak, a polícia secreta iraniana, estava censurando os telefones, especialmente de estrangeiros. Era norma da companhia nos últimos dois anos presumir que alguém estivesse escutando — Savak, CIA, Ml5, KGB, qualquer um.
Houve um instante de silêncio.
— Primeiro, obedeça à embaixada e retire todos os dependentes imediatamente. Entre em contato com a embaixada da Finlândia para providenciar o passaporte de Azadeh. Diga a Tom Lochart para apressar o de Xarazade. Eu o fiz pedir um há duas semanas, por via das dúvidas. Ele, hum, ele está levando correspondência para você, aliás.
O coração de McIver disparou.
— Ótimo, ele estará aqui amanhã.
— Vou ligar para a British Airways e ver se consigo que eles reservem lugares. Como garantia, vou mandar o 125 da companhia. Ele parte para Teerã amanhã. Se você tiver qualquer problema com a British Airways, mande todos os dependentes e pessoal de reserva por ele amanhã. Teerã ainda está aberto, não está?
— Hoje estava — McIver disse, cuidadosamente. Ouviu Gavallan dizer, também com cuidado:
— As autoridades, graças a Deus, têm tudo sob controle.
— Mac, o que você recomenda com relação às nossas operações no Irã? McIver respirou fundo.
— Status quo.
— Ótimo. Aqui tudo indica, mesmo nos níveis mais altos, que tudo deverá voltar ao normal logo. Temos muitas frentes no Irã. E muito futuro. Ouça, Mac, aquele boato a respeito da Guerney estava correto.
McIver animou-se perceptivelmente.
— Você tem certeza?
— Tenho. Há poucos minutos recebi um telex da IranOil confirmando que cegaremos todos os contratos da Guerney em Kharg, Kowiss, Zagros e Lengeh para começar. Aparentemente, a ordem de apertar veio de cima, e tive que fazer uma generosa contribuição de pishkesh para a caixinha dos nossos sócios. Um pishkesh era um antigo costume iraniano, um presente oferecido antecipadamente por um favor a ser concedido. Era também um antigo costume que qualquer funcionário ficasse, legitimamente, com o pishkesh dado a ele no decorrer do seu trabalho. Senão, como poderia viver?
— Mas não se importe com isso, vamos quadruplicar nossos lucros no Irã, rapaz.
— Ótimo, Andy.
— E não é tudo: Mac, acabei de encomendar vinte 212 e hoje confirmei a encomenda de seis X63. Ele é o máximo!
— Cristo, Andy, é fantástico, mas você não está exagerando um pouco?
— O Irã pode estar, hum, atravessando dificuldades temporárias, mas o resto do mundo está desesperado por fontes alternativas de petróleo. Os ianques estão numa sinuca, rapaz. — A voz acelerou o ritmo. — Acabei de firmar outro enorme acordo com a ExTex para novos contratos na Nigéria, na Arábia Saudita e em Bornéus, outro com a All-Gulf Oil nos Emirados. No mar do Norte somos apenas nós, Guerney e a Imperial Helicopters. — A Imperial Helicopters era uma subsidiária da Imperial Air, a segunda linha aérea semi-estatal além da British Airways. — É imprescindível que você mantenha tudo firme no Irã; nossos contratos, aeronaves e peças sobressalentes fazem parte da nossa garantia na compra das novas aeronaves. Pelo amor de Deus, mantenha nossos queridos sócios na linha. Como vão os anjinhos?
— Como sempre.
Gavallan sabia que isso significava corruptos como sempre.
— Acabei de ter uma reunião com o general Javadah em Londres. — Javadah deixara o Irã, com toda a família, há um ano, pouco antes dos problemas se tornarem evidentes. Nos últimos três meses, dois dos seus outros sócios iranianos estavam em Londres com as famílias 'por razões médicas' e outros quatro na América, também com as famílias. Três continuavam em Teerã. — Ele é estúpido, embora caro.
McIver interrompeu-o para falar de problemas mais importantes.
— Andy, preciso de dinheiro, em espécie.
— Está no correio.
McIver ouviu a gargalhada franca e se sentiu mais animado.
— Vá tomar no cú, Chinês! — disse. — Chinês era o apelido que ele dera a Gavallan que, antes de ir para Aberdeen, passara parte da sua vida como negociante na China, primeiro em Xangai e depois com a Struan's em Hong Kong, onde eles se conheceram. Naquela época, McIver tinha um pequeno serviço de helicópteros na colônia. — Pelo amor de Deus, estamos atrasados no pagamento do pessoal de terra, temos todas as despesas dos pilotos, quase tudo tem que ser comprado no... — Parou em tempo. Caso alguém estivesse escutando. Ele ia dizer câmbio negro. — Os malditos bancos ainda estão fechados e o pouco dinheiro que tenho é para heung yau. — Usou a expressão cantonesa que significa literalmente 'banha cheirosa', dinheiro usado para suborno.
— Javadah prometeu que o general Valik, em Teerã, vai lhe dar meio milhão de riais amanhã. Vou mandar um telex confirmando.
— Mas isto não chega nem a seis mil dólares e temos contas a pagar que somam vinte vezes isto.
— Sei disso, rapaz, mas ele diz que tanto Bakhtiar quanto o aiatolá querem os bancos abertos, logo eles abrirão na semana que vem. Assim que estiverem abertos, ele jura que a CHI pagará tudo o que nos deve.
— Enquanto isto, ele já liberou o estoque A? — Era um código que McIver e Gavallan usavam para fundos mantidos fora do Irã pela CHI, aproximadamente seis milhões de dólares. A CHI estava devendo quase quatro milhões à S-G.
— Não. Ele alega que tem que ter a aprovação formal dos sócios. O impasse continua.
Graças a Deus, pensou McIver. Eram necessárias três assinaturas para esta conta, duas dos sócios e uma da S-G, assim nenhum dos lados podia tocar neste fundo sem o outro.
— Isso é muito arriscado, Andy. Com a compra das novas aeronaves, mais o pagamento pelo uso do nosso equipamento aqui, você está à beira do abismo, não está?
— A gente vive sempre à beira do abismo, Mac. Mas o futuro é cor-de-rosa.
Sim, pensou McIver, para o negócio de helicópteros. Mas e aqui no Irã? No ano anterior, os sócios obrigaram Gavallan a transferir a propriedade de todos os helicópteros e equipamentos da S-G no Irã para a CHI Gavallan concordara, com a condição de que pudesse comprar tudo de volta no momento que quisesse, sem obstáculos da parte deles, e desde que mantivessem em dia o pagamento pelo arrendamento dos equipamentos e saldassem todas as dívidas. Com o início da crise e o fechamento dos bancos, a CHI atrasou, e Gavallan estava fazendo os pagamentos de todos os helicópteros no Irã com fundos da S-G em Aberdeen — os sócios argumentavam não terem culpa dos bancos estarem fechados, e Javadah e Valik prometiam pagar tudo, assim que as coisas se normalizassem. "Não se esqueça, Andrew" diziam "conseguimos para vocês os melhores contratos; e fomos nós que os conseguimos, nós; sem nós a S-G não pode operar no Irã. Assim que as coisas voltarem ao normal..."
— Os nossos contratos iranianos ainda são muito lucrativos. — Gavallan estava dizendo. — Não podemos acusar nossos sócios quanto a isso, e com os contratos da Guerney, ficaremos como porcos na lama!
Sim, pensou McIver, embora estejam nos espremendo mais a cada ano, de modo que nossa parte vai ficando cada vez menor e a deles cada vez maior.
— ...Eles têm penetração no país, sempre tiveram, e juram por tudo o que é mais sagrado que tudo vai se ajeitar. Eles precisam de helicópteros para prestar assistência aos seus campos de petróleo. Todo mundo aqui diz que tudo isso vai passar. O ministro, o embaixador deles, o nosso. Por que eu não acreditaria? O xá fez o possível para modernizar o país, a renda da população aumentou, o analfabetismo caiu. Os lucros com o petróleo são enormes, e vão subir mais ainda assim que esta confusão terminar, segundo o ministro. O mesmo dizem meus contatos em Washington, até o velho Willie da ExTex, e pelo amor de Deus, ele deve saber mais do que qualquer pessoa. A aposta é de cinqüenta para um que as coisas estarão normais dentro de seis meses, o xá vai abdicar em favor do seu filho Reza que estabelecerá uma monarquia constitucional Enquanto isso, acho que nós dev..
A ligação foi cortada. McIver bateu no gancho ansiosamente. Quando a linha voltou, dava apenas sinal de ocupado. Com raiva, bateu com o telefone. De repente, a luz voltou.
— Droga — disse Genny — a luz da vela é muito mais bonita. Pettikin sorriu e apagou as luzes. A sala ficou mais agradável, mais aconchegante; a prataria brilhava na mesa que ela tinha posto mais cedo.
— Você tem razão, Genny, mais uma vez.
— Obrigada, Charlie. Vou lhe dar uma porção extra. O jantar está quase pronto. Duncan, pode tomar mais um uísque, não tão forte quanto o que você tomou escondido, e não banque o inocente, mas depois de falar com o nosso Líder Destemido, até eu preciso de um estímulo extra. Durante o jantar você me conta o que ele disse. — Ela os deixou a sós.
McIver relatou a Pettikin a maior parte do que Gavallan dissera — Pettikin não era diretor nem da S-G nem da CHI, então, por força do ofício, McIver tinha que decidir sozinho a respeito de muita coisa. Pensativo, caminhou até a janela, contente de ter falado com seu velho amigo. Faz muitos anos, pensou, quatorze.
No verão de 1965, quando a colônia estava envolvida pela revolução, com os Guardas Vermelhos de Mao Tsé-tung agitando toda a China Continental, dilacerando a terra natal e começando a se espalhar para as ruas de Hong Kong e Kowloon, chegara a carta de Gavallan. Naquela época, o negócio de helicópteros de McIver estava à beira da falência, ele estava atrasado no pagamento do aluguel do seu pequeno helicóptero, a Genny tentava agüentar com dois filhos adolescentes num apartamento mínimo e barulhento em Kowloon, onde os tumultos eram mais violentos.
— Pelo amor de Deus, Gen, dê uma olhada nisto! — A carta dizia: "Caro sr. McIver, talvez o senhor se lembre de que nos encontramos uma ou duas vezes nas corridas quando eu estava trabalhando na Struan's há alguns anos. Nós dois ganhamos uma bolada num cavalo chamado Chinês. O tai-pan, Ian Dunross, sugeriu que eu lhe escrevesse, já que tenho necessidade imediata de sua experiência, sei que o senhor lhe ensinou a pilotar helicópteros, e ele o elogiou muito. O petróleo do mar do Norte é um fait accompli. Eu defendo a teoria de que a única maneira de abastecer as plataformas, em quaisquer condições de tempo, é através de helicópteros. No momento, isto ainda não é possível; acho que o senhor chamaria isso de Regras de Vôo por Instrumentos, RVI. Nós poderíamos torná-lo possível. Eu tenho as condições de tempo, o senhor tem a habilidade. Mil libras por mês, um contrato de três anos para provar a possibilidade ou a impossibilidade desta idéia, uma gratificação dependendo do sucesso, transporte para o senhor e sua família aqui para Aberdeen, e uma caixa de uísque Loch Vay no Natal. Por favor, telefone o mais depressa possível..."
Sem dizer uma palavra, Genny devolvera-lhe a carta e fizera menção de sair da sala, sob o barulho constante da cidade grande — tráfego, buzinas, vendedores de rua, navios, aviões a jato, e a estridente música chinesa entravam pela janela que batia com o vento.
— Onde diabos você vai?
— Vou fazer as malas. — Então ela riu, correu para ele e o abraçou. — É um presente do céu, Duncan, depressa, ligue para ele, ligue para ele agora...
— Mas Aberdeen? RVI em quaisquer condições de tempo? Meu Deus, Gen, isto nunca foi feito antes. Não existe instrumentação para isso, eu não sei se será poss...
— Para você é, rapaz. É claro. Agora, onde terão se metido Hamish e Sarah?
— Hoje é sábado, eles foram ao cinema e...
Um tijolo quebrou uma das janelas e o tumulto recomeçou. O apartamento deles era no segundo andar e dava para uma rua estreita de Mong Kok, uma área altamente populosa de Kowloon. McIver pôs Genny num lugar seguro e olhou cautelosamente pela janela. Lá em baixo, na rua, de cinco a dez mil chineses, todos gritando Mao, Mao, Kwai Loh! Kwai Loh — demônio estrangeiro, demônio estrangeiro — seu grito de guerra habitual, avançavam em direção ao posto policial, a uns cem metros de distância, onde um pequeno destacamento de policiais chineses uniformizados e três oficiais britânicos esperavam, silenciosamente, atrás de uma barricada.
— Meu Deus, Gen, eles estão armados! — exclamou McIver. Geralmente a polícia usava apenas cassetetes. Na véspera, o cônsul da Suíça e a mulher morreram queimados ali perto, quando um grupo virou o carro deles e tocou fogo. À noite, o governador avisara pelo rádio e pela televisão que ordenara à polícia tomar todas as medidas necessárias para acabar com qualquer tumulto.
— Abaixe-se, Gen, saia da frente...
Suas palavras foram abafadas pelos alto-falantes da polícia, com o superintendente ordenando aos revoltosos, em cantonês e inglês, que se dispersassem. A multidão não deu nenhuma atenção e atacou a barricada. Mais uma vez a ordem de parar foi desobedecida. Então o tiroteio começou. Os que estavam na frente entraram em pânico, sendo pisoteados pelos que tentavam fugir. Em pouco tempo a rua estava limpa, exceto por cerca de uns 12 corpos caídos no chão. Aconteceu o mesmo na ilha de Hong Kong. No dia seguinte, toda a colônia estava mais uma vez em paz; não houve mais nenhum distúrbio sério, só alguns poucos guardas vermelhos durões tentando inflamar a multidão, e que foram rapidamente deportados.
Em uma semana McIver vendeu sua parte no negócio de helicópteros, voou para Aberdeen na frente de Genny, e mergulhou em seu novo emprego com prazer. Ela levou um mês para empacotar tudo, resolver o problema do apartamento e vender o que não precisariam mais. Quando chegou, ele já tinha encontrado o apartamento ideal, perto do heliporto de McCloud, que ela imediatamente recusou:
— Pelo amor de Deus, Duncan, fica a milhões de quilômetros da escola mais próxima. Um apartamento em Aberdeen? Agora que você está tão rico quanto Dunross, rapaz, nós vamos alugar uma casa....
Ele sorriu para si mesmo, lembrando-se daqueles velhos tempos. Genny adorando estar de volta à Escócia — ela jamais gostara de Hong Kong, com a vida difícil que levavam lá, com pouco dinheiro e as crianças para cuidar — ele adorando seu trabalho, Gavallan era um homem maravilhoso para quem e com quem se trabalhar, mas odiando o mar do Norte, o frio, a umidade e as dores que o ar carregado de sal trazia. Mas os cinco anos e pouco que passaram lá valeram a pena, renovando e aumentando seus velhos contatos no ainda pequeno mundo dos helicópteros — formado, em grande parte, por antigos pilotos da RAF, da RCAF, da RAAF, da USAF e por todos os serviços aliados — para o dia em que se expandisse. Sempre uma generosa gratificação de Natal, cuidadosamente poupada para a aposentadoria, e sempre aquela caixa de Loch Vay: "Andy, foi isso o que realmente me fez aceitar!" Gavallan sempre como o grande incentivador, vivendo de acordo com o lema que trouxera para a companhia — Seja Ousado. Hoje, Gavallan era conhecido no leste da Escócia como 'o Senhor' de Aberdeen a Inverness e até Dundee, no sul, com tentáculos que alcançavam Londres, Nova York, Houston — onde quer que houvesse a força do petróleo. Sim, o velho chinês é poderoso e também pode enrolar você e a maioria dos homens em volta do seu dedinho, pensou McIver, sem rancor. Olhe como você veio parar aqui...
— Escute, Mac — dissera Andrew Gavallan um dia, no final dos anos sessenta —, acabei de conhecer um importante general do Estado-Maior iraniano numa caçada. General Beni-Hassan. Grande atirador, pegou vinte peças para as minhas quinze! Durante o fim de semana, gastei muito tempo com ele e consegui vender-lhe a idéia de helicópteros de apoio para a infantaria e o regimento de tanques, junto com um programa completo de treinamento para o Exército e a Aeronáutica, além de helicópteros para o negócio de petróleo deles. Rapaz, estamos com mais cartaz que Flynn.
— Mas não estamos equipados para fazer nem a metade disso.
— Beni-Hassan é um cara fantástico, e o xá é realmente um monarca progressista, com grandes planos de modernização. Você sabe alguma coisa sobre o Irã?
Não, Chinês — dissera McIver, desconfiado, reconhecendo aquela exuberância repentina. — Por quê?
— Tenho uma reserva para você para Bahrein, na sexta-feira, para você e Genny... espere um pouco, Mac! O que você sabe sobre a Sheik Aviation?
— Genny está feliz em Aberdeen, não quer se mudar, as crianças estão terminando a escola, acabamos de pagar a entrada da casa, não vamos nos mudar, e Genny vai matá-lo.
— É claro — disse Gavallan distraidamente. — Sheik Aviation?
— É uma companhia de helicópteros pequena, mas boa, que opera no Golfo. Eles têm três 206 e alguns aviões de abastecimento sediados em Bahrein. Têm boa reputação e fazem um bocado de trabalho para a Aranco, a ExTex, e acho que para a IranOil. O dono e diretor é Jock Forsyth, ex-paraquedista e piloto, que organizou a companhia nos anos cinqüenta com um velho amigo meu, Scrag Scragger, um austríaco. Scrag é o verdadeiro dono, um ex-RAAF, condecorado com diversas medalhas, e agora um fanático por helicópteros. Primeiro eles estiveram sediados em Cingapura, onde conheci Scrag. Nós, ahn, nós tomamos uma bebedeira e não me lembro quem começou, mas os outros disseram que foi empate. Depois eles se mudaram para o Golfo, com um ex-executivo da ExTex que tinha um grande contrato para lançá-los lá. Por quê?
— Acabei de comprá-los. Você assume como diretor executivo, na segunda-feira. Scragger e todos os pilotos e funcionários da companhia podem ficar ou não, como você sugerir, mas acho que vamos precisar do conhecimento deles. Ache-os todos bons rapazes. Forsyth está contente em se aposentar e ir para Devon. É curioso, Scragger não disse que conhecia você, mas realmente eu só passei alguns minutos com ele e tratei de tudo com Forsyth. De agora em diante, nós somos S-G Helicópteros Ltda. Na próxima sexta-feira quero que você vá para Teerã. Escute, pelo amor de Deus. Para montar um quartel-general lá. Marquei um encontro com Beni-Hassan para você conhecê-lo e assinar os papéis para o contrato com a Força Aérea. Ele disse que teria prazer em apresentá-lo às pessoas certas, em toda parte. Ah, sim, você terá dez por cento de todos os lucros, dez por cento do estoque da nova subsidiária iraniana, será diretor executivo do Irã, o que inclui, por enquanto, o resto do Golfo. É claro que McIver tinha ido. Ele nunca pôde resistir a Andrew Gavallan, e tinha apreciado cada momento; mas nunca descobriu como Gavallan convencera Genny. Quando chegou em casa naquela noite, ela já tinha preparado seu uísque com soda e sorria docemente.
— Alô querido, você teve um dia agradável?
— Tive, o que é que há? — perguntou desconfiado.
— O que há é você. Andy me disse que há uma oportunidade maravilhosa para nós num lugar chamado Teerã, que fica em algum lugar chamado Pérsia.
— Irã. Costumava chama-se Pérsia, Gen, mas o nome agora é Irã. Eu, ahn...
— Que excitante! Quando partiremos?
— Ahn, bem, Gen, eu achei que podíamos conversar sobre isso, e se você quiser eu posso dar um jeito de passar dois meses lá e um mês aqui...
— E o que você está planejando fazer nas noites e nos domingos dos dois meses lá?
— Eu, ahn, bem, vou trabalhar pra burro e...
— Sheik Aviation? Você e o velho Scragger, a leste de Suez, bebendo e farreando?
— Quem? Eu? O que é isso, vamos ter tanto o que fazer que...
— Não, rapaz. Hum! Dois meses lá e um aqui? Só se for sobre o cadáver de Andy. Ou vai a família toda ou não vai ninguém! — E numa voz doce: — Você não concorda, coração?
— Olhe aqui, Gen...
Em um mês eles estavam, mais uma vez, começando de novo, mas fora excitante, a época mais divertida da vida deles, conhecendo todo tipo de pessoas interessantes, rindo com Scrag e com os outros, encontrando pessoas como Charlie e Lochart, Jean-Luc e Erikki, tornando a companhia mais eficiente, com as operações de vôo mais seguras no Irã e no Golfo, moldando-a do jeito que ele queria. O seu bebê. Só seu.
A Sheik Aviation foi a primeira de muitas aquisições e fusões feitas por Gavallan.
— Onde você consegue todo esse dinheiro, Andy? — tinha perguntado uma vez.
— Nos bancos, é claro. Nós somos um bom investimento e escoceses, além disso.
Foi só muito mais tarde, e por acaso, que ele descobriu que o S da S-G Helicopters era de Struan's, que era também a fonte secreta de todo financiamento e informações, e que a S-G era uma subsidiária deles.
Como descobriu, Mac? — perguntara Gavallan, rispidamente.
— Um velho amigo de Sydney, ex-combatente da RAF, que está metido em mineração, me escreveu dizendo que tinha ouvido Linbar se gabando a respeito da S-G, dizendo que ela fazia parte da Casa Nobre. Eu não sabia, mas parece que Linbar está dirigindo a Struan's na Austrália.
— Está tentando. Mac, cá entre nós, Ian queria que o envolvimento da Struan's fosse mantido em segredo. David também quer, portanto eu gostaria que você não falasse a ninguém sobre isso — dissera Gavallan, em voz baixa. David era David MacStruan, o novo tai-pan.
— É claro, não vou dizer nem mesmo a Genny. Mas isso explica um bocado de coisas, e eu me sinto muito bem em saber que a Casa Nobre está por trás de nós. Muitas vezes eu me perguntei por que você havia saído.
Gavallan sorrira, sem responder
— Liz sabe a respeito da Struan's, evidentemente, o escritório central também sabe, e é só.
McIver nunca dissera a ninguém. A S-G prosperara e crescera junto com o negócio de petróleo. Seus lucros também cresceram. E também o valor de suas ações no mercado iraniano. Quando se aposentasse dentro de seis ou sete anos, estaria muito bem financeiramente.
— Não está na hora de largar? — Todo ano Genny perguntava. — Já temos dinheiro mais do que suficiente, Duncan,
— Não é pelo dinheiro — respondia sempre..
McIver olhava o clarão vermelho a sudeste, sobre Jaleh, que agora estava mais forte e mais espalhado. Sua mente estava confusa. Jaleh vai fazer isso se espalhar por toda Teerã, pensou.
Bebeu um gole do uísque. Não tenho necessidade de ficar ainda mais nervoso, pensou, sentindo o peso de tudo aquilo sobre os ombros. O que será que o Chinês ia dizer quando cortaram a ligação? Ele vai dar um jeito de fazer chegar aos meus ouvidos, se for realmente importante — ele nunca falhou até hoje. Que coisa terrível o que aconteceu com Stanson. É o terceiro civil a ser assassinado por 'atiradores desconhecidos', nos últimos meses — dois da ExTex e um da Guerney, e todos americanos. Eu me pergunto quando vão começar a atirar em nós — os iranianos odeiam os ingleses tanto quanto odeiam os ianques. Como vou conseguir mais dinheiro? Não podemos operar com meio milhão de riais por semana. Vou ter que contar com nossos sócios, mas eles são fingidos como o diabo e peritos em defender seus próprios interesses.
Tomou o último gole do uísque. Sem os sócios estamos bloqueados, mesmo depois de todos esses anos — são eles que sabem com quem falar, a quem subornar, com quanto dinheiro ou que porcentagem, quem adular, a quem recompensar. Eles são os porta-vozes, são eles que têm os contatos. Mesmo assim, o Chinês estava certo: seja quem for o vencedor, Khomeini, Bakhtiar, ou os generais, eles precisam dos helicópteros..
Na cozinha, Genny estava quase chorando. A lata secreta de haggis, que escondera com tanto cuidado por quase um ano e que acabara de abrir, estava estragada. E Duncan gosta tanto disso. Como é que ele podia gostar disso, uma mistura de coração, fígado e pulmão de carneiro, mais trigo, cebola, sebo, temperos e molho, tudo enfiado num saco, feito com o estômago do pobre carneiro, e depois fervido por várias horas.
— Ugh! Dane-se tudo!
Ela fizera o jovem Scot Gavallan trazer a lata em segredo, na sua rápida licença, para esta ocasião especial.
Hoje era aniversário de casamento deles e esta seria a sua surpresa para Duncan. Que droga!
Não é culpa de Scot que a maldita lata tenha estragado, pensou, infeliz. Mesmo assim, merda, merda, merda! Planejei este maldito jantar durante meses e agora ele está arruinado. Primeiro o maldito açougueiro me deixa na mão, mesmo eu tendo pago em dobro e adiantado, maldito seja o seu "Insha'Allah" e depois, porque os bancos estão fechados, não tive dinheiro para subornar o rival dele para me vender uma perna fresca de carneiro e não uma carne de carneiro velho, depois a mercearia decide entrar em greve, depois...
A janela da pequena cozinha estava meio aberta e ela ouviu outra rajada de metralhadora. Mais perto desta vez. Em seguida, trazido pelo vento, veio o som distante e rouco da multidão: "Allahhh-u Akbarrr... Allahhh-u Ak-barrr..." repetido sem cessar. Estremeceu, achando-o estranhamente ameaçador. Antes dos problemas começarem, ela achava tranqüilizante o chamado dos muezins para as orações, cinco vezes por dia, do alto dos minaretes. Mas não agora, não vindo da garganta da multidão.
Agora odeio este lugar, pensou. Odeio as armas e odeio as ameaças. Havia outra, na caixa do correio, a segunda — como a primeira, mal datilografada e copiada no papel mais ordinário: "Em 1º de dezembro, nós demos um mês para você e sua família deixarem o país. Vocês ainda estão aqui. Vocês agora são nossos inimigos e vamos lutar contra vocês até o fim." Não havia nenhuma assinatura. Quase todo estrangeiro no Irã havia recebido uma mensagem dessas.
Odeio as armas, odeio o frio, a falta de aquecimento e de luz, odeio os seus banheiros infectos e o fato deles se agacharem como animais, odeio toda a estúpida violência e a destruição de algo que era realmente muito bonito. Odeio ficar em filas. Danem-se todas as filas! Dane-se o patife que estragou a lata de haggis, dane-se esta cozinha infecta e esta torta de carne em conserva! Não consigo entender como os homens podem gostar disso! Ridículo! Carne em conserva misturada com batatas cozidas, um pouco de cebola, manteiga e leite se você tiver, migalhas de pão por cima, e deixar no forno até corar. Ugh! E quanto à couve-flor, o cheiro dela cozinhando me dá vontade de vomitar, mas eu li que é bom para diverticulite e qualquer um pode ver que Duncan não está tão bem quanto deveria. Ele é um tolo em pensar que pode me enganar. Será que ele enganou Charlie? Duvido. Quanto a Claire, que idiota ela foi em deixar um homem tão bom! Imagino se Charlie algum dia descobriu o caso que ela teve com aquele piloto da Guerney. Acho que não há mal nenhum, desde que você não seja apanhada — é difícil ficar tanto tempo sozinha — e se é isso que você quer. Mas estou contente deles terem se separado como amigos, embora ache que ela era uma cadela egoísta.
Ela se viu no espelho. Automaticamente, arrumou o cabelo e olhou para o seu reflexo. Para onde foi minha juventude? Não sei, mas foi-se. Pelo menos a minha, a de Duncan não, ele ainda é jovem, jovem para a idade — se ao menos ele se cuidasse. Maldito Gavallan! Não, Andy é legal. Fico contente que ele tenha se casado com uma moça tão simpática. Maureen vai mantê-lo na linha, a pequena Electra também. Tivera tanto medo que ele se casasse com aquela secretária chinesa. Ugh! Andy é legal, e o Irã também era. Era. Agora está na hora de partir e aproveitar nosso dinheiro. Sem dúvida. Mas como?
Riu alto. Acho que tanto faz.
Cuidadosamente, abriu o forno, piscou por causa do calor e do cheiro e tornou a fechá-lo. Não suporto torta de carne, disse a si mesma com irritação.
O jantar estava muito bom, a torta de carne dourada em cima, exatamente como eles gostavam.
— Quer abrir o vinho, Duncan? É persa, sinto muito, mas é a última garrafa. — Normalmente, eles mantinham um bom estoque de vinhos persas e franceses, mas as multidões haviam destruído e queimado todas as lojas de bebidas de Teerã, incentivadas pelos mulás, seguindo o fundamentalismo estrito de Khomeini. Beber qualquer tipo de bebida alcoólica era proibido pelo Corão. — O homem no bazar me disse que, oficialmente, não há nenhuma bebida para vender e que agora, mesmo nos hotéis ocidentais, é proibido vender bebidas.
— Isto não vai durar, as pessoas não vão aturar isso, nem o fundamentalismo, por muito tempo — disse Pettikin. — Não é possível, não na Pérsia. Historicamente, os xás foram sempre tolerantes, e por que não? Por quase três mil anos a Pérsia foi famosa pela beleza de suas mulheres, veja Azadeh e Xarazade, e pelos seus vinhedos e vinhos. O Rubãiyãt de Ornar Khayyãm não é um hino às mulheres, ao vinho e à canção? Pérsia eterna, eu diria.
— Pérsia soa tão melhor que Irã, Charlie, tão mais exótico, como costumava ser quando viemos para cá, tão mais agradável — disse Genny. Por um momento foi distraída por mais tiros, depois continuou, falando para disfarçar o nervosismo. — Xarazade me disse que o povo sempre chamou o país de Irã, ou Ayran. Parece que Pérsia era como os antigos gregos o chamavam, Alexandre, o Grande e os outros. A maioria dos persas ficou feliz quando o Reza Xá decretou que a Pérsia, daí em diante, seria Irã. Obrigada, Duncan — aceitou o copo de vinho, admirando sua cor, e sorriu para ele.
— Está tudo uma delícia, Gen — disse ele, e abraçou-a de leve.
O vinho fora saboreado. E a torta também. Mas eles não estavam alegres. Havia muito o que pensar. Mais tanques estavam se movimentando. Mais tiros. O clarão vermelho, sobre Jaleh, se espalhando. A ladainha das multidões ao longe. Então, no meio da sobremesa — bolo de frutas, outra das preferidas de McIver — um dos pilotos, Nogger Lane, chegou cambaleando, com as roupas rasgadas, o rosto muito machucado, amparando uma moça. Era alta e tinha cabelos e olhos escuros, estava descomposta e em estado de choque, balbuciando pateticamente em italiano, uma das mangas do casaco quase arrancada, com as roupas, o rosto, as mãos e os cabelos imundos, como se tivesse caído no esgoto.
— Fomos apanhados entre... entre a polícia e um maldito grupo de manifestantes — ele disse depressa, incoerentemente. — Algum desgraçado tirou a gasolina do meu tanque, então... mas os manifestantes, havia milhares deles, Mac. A rua parecia calma mas, de repente, todo mundo começou a correr e eles... os manifestantes, eles saíram de uma rua lateral e muitos tinham armas... Era aquela maldita ladainha sem parar, Allah-u Akbar, Allah-u Akbar, que fazia meu sangue gelar... Eu nunca... depois pedras, bombas, gás lacrimogêneo, tudo... aí a polícia e as tropas chegaram. E tanques, eu vi três, e pensei que os filhos da mãe iam se dispersar. Aí alguém começou a atirar do meio da multidão, e então havia armas por toda parte e... e corpos espalhados pela rua toda. Corremos para nos salvar e aí um grupo daqueles filhos da mãe nos viu e começou a berrar "demônio americano" e partiram atrás de nós e nos encurralaram num beco. Tentei dizer a eles que era inglês e que Paula era italiana, e não... mas eles estavam me cercando e... e se não fosse por um mulá um filho da mãe grande com uma barba preta e um turbante preto, esse... esse canalha mandou-os parar e Cristo, eles nos deixaram ir. Ele nos xingou e nos disse para dar o fora...
Nogger aceitou o uísque e o tomou de um só gole, tentando recuperar o fôlego, com as mãos e os joelhos tremendo incontrolavelmente, sem que se desse conta. MacIver, Genny e Pettikin escutavam estarrecidos. A garota soluçava baixinho.
— Nunca em minha vida tinha passado por um pesadelo igual, Charlie — prosseguiu, abalado. — Os soldados eram todos tão jovens quanto os manifestantes e pareciam mortos de medo, difícil de suportar, uma noite atrás da outra, a multidão gritando e jogando pedras... Um coquetel Molotov bateu no rosto de um soldado e ele começou a pegar fogo, gritando no meio das chamas sem... e então aqueles filhos da mãe nos encurralaram e começaram a agarrar Paula, tentando violentá-la, apalpando-a, rasgando suas roupas. Fiquei meio louco e agarrei um dos desgraçados e acertei-lhe um soco na cara. Sei que o machuquei porque o nariz dele saiu do lugar e se não fosse aquele mulá...
— Vá com calma, rapaz — disse Pettikin, preocupado, mas o rapaz não prestou nenhuma atenção e continuou a falar.
— ...Se não fosse aquele mulá, que me puxou, eu teria continuado a bater até arrebentar o desgraçado; eu queria arrancar os olhos dele, Cristo, eu tentei, eu sei que tentei... Cristo, eu nunca matei nada com minhas mãos, nem nunca tive vontade, até esta noite, mas hoje tive vontade e teria matado... — As mãos dele estavam tremendo quando ele afastou o cabelo dos olhos, sua voz estava mais alta e mais tensa. — Aqueles filhos da mãe, eles não tinham o direito de tocar em nós, mas eles estavam agarrando Paula e...e... — As lágrimas começaram a rolar, sua boca se mexeu mas não saiu nenhum som, havia uma gota de espuma no canto dos seus lábios — e... e... matar... eu queria matarrrr...
Subitamente, Pettikin se inclinou e deu um tapa na cara do rapaz, jogando-o em cima do sofá. Os outros quase desmaiaram de susto. Lane ficou momentaneamente apatetado, depois pulou para se atirar em cima do seu agressor.
— Pare, Nogger! — urrou Pettikin.
A ordem fez com que o jovem se imobilizasse. Ele encarou estupidamente o outro, com os punhos fechados.
— O que há com você, você quase quebrou meu queixo — disse furioso, mas as lágrimas tinham parado e seus olhos estavam claros de novo.
— Desculpe, rapaz, mas você estava ficando histérico, já vi isto aconte...
— Uma ova que eu estava — disse Lane, ameaçadoramente, recuperando a razão; mas levou bastante tempo até que conseguissem explicar e acalmar a ele e a moça. O nome dela era Paula Giancani, uma moça alta, aeromoça da Alitalia.
— Paula, querida, é melhor você passar a noite aqui — disse Genny. — Já passou da hora de recolher. Você compreende?
— Sim, compreendo. Sim, eu falo inglês, eu...
— Venha comigo, vou lhe emprestar algumas coisas. Nogger, você pode ficar com o sofá.
Mais tarde, Genny e MacIver ainda estavam acordados, cansados mas sem sono, ouvindo tiros em algum lugar no meio da noite, cantoria em algum lugar no meio da noite.
— Quer um pouco de chá, Duncan?
— Boa idéia. — Ele se levantou junto com ela. — Oh, maldição, eu me esqueci. — Foi até a escrivaninha e encontrou a caixinha, mal embrulhada. — Parabéns. Não é muita coisa, só uma pulseira que consegui no bazar.
— Oh, obrigada, Duncan. — Enquanto desembrulhava o presente, contou-lhe sobre a lata de haggis.
— Que patife! Não ligue. No ano que vem vamos comê-lo na Escócia. A pulseira era de ametistas brutas, engastadas em prata.
— Oh, é tão bonita, exatamente o que eu queria. Obrigada, querido.
— Você também, Gen. — Ele a abraçou e beijou, distraidamente. Ela não se incomodou com o beijo. A maioria dos beijos, atualmente, os dela também, eram apenas afetuosos, como fazer festa num cachorro de estimação.
— O que o preocupa, querido?
— Nada.
Ela o conhecia muito bem.
— O que é que eu ainda não sei?
— As coisas estão ficando cada vez mais pretas. A cada hora que passa. Quando você estava fora da sala com Paula, Nogger contou-nos que eles estavam vindo do aeroporto. O vôo da Alitalia em que ela estava — fora fretado pelo governo italiano para evacuar seu pessoal e estava preso em terra há dois dias — tinha conseguido permissão para partir ao meio-dia, então ele tinha ido levá-la. Evidentemente, a partida atrasou várias vezes, como sempre, mas, pouco antes do anoitecer o vôo tornou a ser cancelado, todo o aeroporto foi fechado, e todo mundo recebeu ordem para sair. Os funcionários iranianos simplesmente desapareceram. Então, de repente, um grupo de revolucionários armado até os dentes começou a se espalhar por todo o aeroporto. A maioria usava braçadeiras verdes, mas alguns tinham a sigla OILP escrita nas braçadeiras, Gen, as primeiras que Nogger via. "Organização Iraniana para a Libertação da Palestina."
— Oh, meu Deus — disse ela —, então é verdade que a OLP está ajudando Khomeini?
— É, e se eles estão ajudando, as coisas são diferentes, a guerra civil começou e nós estamos bem no meio dela.
EM TABRIZ UM: 23:05H. Erikki Yokkonen estava nu, deitado na sauna que construíra com as próprias mãos, à temperatura de 42 graus, com o suor escorrendo pelo corpo. Sua mulher, Azadeh, estava perto dele, também embalada pelo calor. A noite fora ótima, com montes de comida e duas garrafas de melhor vodca russa, que ele comprara no mercado negro, em Tabriz, e que dividira com seus dois mecânicos ingleses e o administrador da base, Ali Dayati.
— Agora vamos fazer uma sauna — dissera, pouco antes da meia-noite. Mas eles recusaram, como sempre, mal tendo forças suficientes para se arrastarem para suas próprias cabanas. — Vamos, Azadeh!
— Esta noite não, por favor, Erikki — suplicara, mas ele apenas rira e a levantara com seus grandes braços, envolvendo-a com o casaco de peles e carregando-a através da porta da frente da cabana deles, atravessando os pinheiros cobertos de neve, sob um frio congelante. Ela era fácil de carregar, e ele entrou na pequena construção que ficava encostada nos fundos da cabana e, depois de tirar a roupa, na sauna propriamente dita. E agora estavam deitados lá, Erikki à vontade, Azadeh, mesmo depois de um ano de casamento, ainda não inteiramente habituada ao ritual de todas as noites.
Virou de lado e olhou-a. Estava deitada numa toalha grossa, no banco em frente. Tinha os olhos fechados, e ele viu seu seio subindo e descendo e toda a sua beleza — cabelos negros, feições finas e marcadas, um belo corpo e uma pele acetinada — e, como sempre, foi tomado pelo encantamento que ela lhe causava, tão pequena perto dele.
Deuses dos meus ancestrais, obrigado por me darem esta mulher, pensou. Por um instante, não pôde se lembrar em que língua estava pensando. Ele era poliglota, falava finlandês, sueco, russo e inglês. E que importância tem isso? Disse a si mesmo, voltando a sentir o calor, deixando sua mente vagar com o vapor que subia das pedras que arrumara com tanto cuidado. Causava-lhe grande satisfação o fato dele mesmo ter construído a sauna — como um homem devia fazer — rachando as toras de madeira como seus antepassados haviam feito durante séculos.
Foi a primeira coisa que fez quando o enviaram para cá, há quatro anos — escolher e derrubar as árvores. Os outros tinham pensado que era maluco. Ele meneara os ombros, com bom humor.
— Sem uma sauna a vida não é nada. Primeiro você constrói a sauna, depois a casa; sem a sauna uma casa não é uma casa; vocês, ingleses, não sabem de nada, pelo menos a respeito da vida. — Ele se sentira tentado a contar-lhes que nascera em uma sauna, como muitos finlandeses. E por que não?, como isso era, na verdade, profundamente sensato, o lugar mais quente da casa, o mais limpo, o mais tranqüilo, o mais reverenciado. Não contara nunca a eles, só a Azadeh. Ela compreendera. Ah, sim, pensou, bastante satisfeito, ela compreende tudo.
Lá fora, a floresta estava silenciosa, o céu noturno sem nuvens e com estrelas muito brilhantes, a neve abafando qualquer som.
A um quilômetro passava a única estrada que, serpenteando pelas montanhas em direção a nordeste, ia até Tabriz, a 15 quilômetros de lá, e depois continuava para o norte, até a fronteira soviética, alguns quilômetros adiante. Para sudeste, também pelas montanhas, atingia Teerã, a 240 quilômetros de distância.
A base, Tabriz Um, abrigava dois pilotos — o outro estava de licença na Inglaterra — e dois mecânicos ingleses, os demais eram iranianos: dois cozinheiros, oito operários diurnos, o operador de rádio, e o administrador. Sobre a colina, ficava a cidade de Abu Mard e, no vale embaixo, a fábrica de polpa de madeira para a fabricação de papel, que pertencia ao monopólio florestal, Madeira Iraniana, a quem serviam por contrato. O 212 levava madeireiros e equipamentos para a floresta, ajudava a construir acampamentos e a projetar as poucas estradas que podiam ser construídas, depois prestava serviço aos acampamentos, transportando as equipes substitutas e os equipamentos e retirando os feridos. Para a maioria dos acampamentos do interior, o 212 era a única ligação com o mundo exterior, e os pilotos eram venerados. Erikki amava aquela vida e aquela terra, tão parecida com a Finlândia que ele, às vezes, imaginava estar novamente em casa.
A sauna tornou tudo perfeito. A pequena construção de dois cômodos, nos fundos da cabana, ficava fora da vista das outras cabanas, e fora construída com líquen entre as toras, para um melhor isolamento, com o fogo que aquecia as pedras bem arejado. Algumas das pedras, a camada de cima, ele trouxera da Finlândia. Seu avô retirara-as do fundo de um lago, de onde vêm as pedras das melhores saunas, e dera-as a ele na última licença que passou em casa, há 18 meses.
— Leve-as, meu filho, e com elas, certamente, irá um bom tonto finlandês, o duendezinho marrom que é o espírito da sauna, embora eu não saiba por que você quer se casar com uma estrangeira e não com uma pessoa de sua própria raça.
— Quando o senhor a vir, vovô, também vai adorá-la. Ela tem olhos azuis-esverdeados, cabelos muito escuros e...
— Se ela lhe der muitos filhos, bem, vamos ver. Realmente, há muito tempo que você já deveria estar casado, um homem bonito como você; mas uma estrangeira? Você disse que ela é professora?
— Ela faz parte do Corpo de Ensino do Irã, são jovens, voluntários a serviço do Estado, que vão para as aldeias e ensinam os aldeões e as crianças a ler e escrever, mas principalmente as crianças. O xá e a imperatriz criaram esta organização há alguns anos; e Azadeh entrou quando tinha 21 anos. Ela vem de Tabriz, onde eu trabalho, ensina na nossa cidadezinha, numa escola provisória e eu a conheci há sete meses e três dias. Tinha 24 anos na época...
Erikki exultou ao lembrar-se da primeira vez em que a vira, toda arrumadinha no seu uniforme, com os cabelos soltos, sentada numa clareira na floresta, cercada de crianças; depois, do sorriso que ela lhe deu, e ele viu nos olhos dela, a admiração, pelo seu tamanho e soube imediatamente que esta era a mulher que ele esperara encontrar a vida inteira. Tinha 36 anos naquela ocasião. Ah, pensou, observando-a preguiçosamente, mais uma vez abençoando o tonto que o guiara para aquela parte da floresta. Só mais três meses e, então, dois meses inteiros de licença. Vai ser bom poder mostrar-lhe Suomi — Finlândia.
— Está na hora, Azadeh, querida — disse.
— Não, Erikki, ainda não, ainda não — respondeu semi-adormecida, tonta pelo calor mas não pelo álcool, pois não bebia. — Por favor, Erikki, ainda n...
— Excesso de calor não lhe faz bem — disse com firmeza. Sempre falavam inglês um com o outro, embora ela também falasse russo fluentemente — sua mãe era meio georgiana, oriunda de uma região de fronteira em que era útil e aconselhável ser bilíngüe. Ela também falava turco, a língua mais usada nesta parte do Irã, o Azerbeijão e, é claro, farsi. Salvo umas poucas palavras, ele não falava nem turco nem farsi. Ele se ergueu e enxugou o suor, em paz com o mundo, depois inclinou-se e beijou-a. Ela retribuiu o beijo e tremeu quando as mãos dele a buscaram, e também as dela o buscaram.
— Você é um homem mau, Erikki — disse, e depois espreguiçou-se gloriosamente.
— Pronta?
— Sim.
Abraçou-o quando ele a ergueu nos braços com facilidade. Saíram da sauna para o vestiário, depois abriram a porta e se viram no ar gelado. Azadeh perdeu o fôlego quando o frio a atingiu e se agarrou a Erikki, enquanto ele apanhava um pouco de neve e esfregava-lhe o corpo com ela, fazendo sua carne formigar e queimar, de uma forma que não era desagradável. Em segundos, estava afogueada por dentro e por fora. Tinha levado um inverno inteiro para se acostumar com o banho de neve depois do calor. Agora, sem ele, a sauna ficava incompleta. Rapidamente, fez o mesmo com ele, depois correu com vivacidade, de volta para o calor, deixando-o a rolar e se esfregar na neve por alguns instantes. Ele não notou o grupo de homens e o mulá em pé, no meio deles, que observavam, espantados, sobre a elevação, meio escondidos entre as árvores ao lado do caminho, a uns cinqüenta metros de distância. Quando ia fechar a porta, Erikki os viu. Sentiu-se tomado de cólera e bateu a porta.
— Tem uns aldeões lá fora. Deviam estar nos vigiando. Todo mundo sabe que este lugar fica fora dos limites!
Azadeh também ficou furiosa e eles se vestiram apressadamente. Ele enfiou as botas de pele e calças e suéter grossos, agarrou o enorme machado e saiu. Os homens ainda estavam lá e Erikki ameaçou-os com um rugido, levantando o machado. Espalharam-se quando Erikki se lançou sobre eles, aí um dos homens ergueu a metralhadora e deu uma rajada para o ar que ecoou pela encosta da montanha. Erikki estacou, esquecendo a raiva. Nunca fora ameaçado antes com armas, nem nunca tivera uma apontada para o seu estômago.
— Largue o machado — disse o homem, num inglês vacilante — ou mato você.
Erikki hesitou. Neste momento, Azadeh colocou-se entre eles, derrubou a arma e começou a gritar em turco:
— Como ousam vir até aqui? Como ousam usar armas? O que vocês são, bandidos? Esta terra é nossa. Saiam da nossa terra ou vou mandá-los para a cadeia! — Ela colocara seu pesado casaco de peles sobre o vestido, mas estava tremendo de raiva.
— Esta é a terra do Povo — disse o mulá sombriamente, mantendo-se fora de alcance. — Cubra a cabeça, mulher, cubra...
— Quem é você, mulá? Você não é da minha aldeia! Quem é você?
— Eu sou Mahmud, mulá da mesquita de Hajsta, em Tabriz. Não sou um dos seus lacaios. — Respondeu com raiva; e pulou para o lado quando Erikki investiu contra ele. O homem da metralhadora estava desequilibrado, mas um outro homem, a certa distância, apontou o rifle:
— Por Deus e pelo Profeta, detenha o porco estrangeiro ou eu mando vocês dois para o inferno que vocês merecem!
— Erikki, espere! Deixe estes cães comigo! — gritou Azadeh em inglês, depois berrou para eles: — O que vocês querem aqui? Esta terra é nossa, é a terra do meu pai, Abdullah Khan, khan dos Gorgons, parente dos Qajars que vêm governando aqui há séculos. — Seus olhos já se haviam habituado à escuridão e ela examinou-os. Eram dez, todos jovens, todos armados, todos desconhecidos, menos um, o kalandar, o chefe, da aldeia.
— Kalandar, como você ousa vir aqui?
— Sinto muito, Alteza — disse ele, desculpando-se — mas o mulá disse que eu tinha que trazê-lo aqui por esta trilha e não pela estrada principal e então...
— O que você quer, parasita? — disse, virando-se para o mulá.
— Respeite-me, mulher — respondeu o mulá, ainda mais furioso. — Logo nós estaremos mandando. O Corão tem leis contra a nudez e a vida pecaminosa: pedras e chicote.
— O Corão tem leis contra invasão e bandidos e ameaças a gente pacífica, e rebelião contra os chefes e senhores. Eu não sou um dos seus analfabetos assustados! Eu sei o que vocês são e o que sempre foram: os parasitas das aldeias e do povo. O que quer você?
O pessoal da base estava chegando, com lanternas. Na frente vinham os dois mecânicos, de olhos arregalados, Dibble e Arberry, com Ali Dayati cuidadosamente atrás. Todos estavam tontos de sono, apressadamente vestidos e ansiosos.
— O que está acontecendo? — perguntou Dayati, com seus óculos grossos no nariz, olhando para eles. Sua família vinha sendo protegida e vinha servindo ao khan Gorgon há anos.
— Estes cães — Azadeh começou furiosa — surgem no meio da noi...
— Cuidado com o que diz, mulher — interrompeu zangado, o mulá, depois virou-se para Dayati. — Quem é você?
Quando Dayati viu que o homem era um mulá, seus modos mudaram e ele se tornou imediatamente subserviente.
— Eu... eu sou o administrador da Madeira Iraniana, Excelência. Qual é o problema, por favor, o que posso fazer pelo senhor?
— O helicóptero. Ao amanhecer eu o quero para voar sobre os acampamentos.
— Sinto muito, Excelência, o motor está desmontado para uma revisão. É norma dos estrangeiros uma re...
Azadeh interrompeu furiosa.
— Mulá, com que direito você ousa vir aqui no meio da noite para...
— O imã Khomeini enviou ord...
— Imã? — Repetiu chocada. — Com que direito você chama o aiatolá Khomeini de imã?
— Ele é imã. Ele enviou ordens para...
— Onde é que está escrito no Corão ou no Sharia que um aiatolá pode declarar-se imã, pode dar ordens a um dos fiéis? Onde está escri...
— Você não é xiita? — O mulá perguntou, furioso, consciente de que seus companheiros estavam ouvindo em silêncio.
— Sim, sou xiita, mas não sou uma analfabeta ignorante, mulá! — O jeito com que ela disse esta palavra foi como um xingamento. — Responda!
— Por favor, Alteza — disse Dayati, implorando. — Por favor, deixe isso comigo, por favor, eu imploro.
Mas ela começou a gritar e o mulá respondeu, e os outros se meteram, com o ambiente tornando-se muito pesado, até que Erikki ergueu o machado e deu um urro de ódio, furioso porque não conseguia entender o que estava sendo dito. Houve um súbito silêncio e depois outro homem apontou uma pistola automática.
— O que é que este filho da mãe quer, Azadeh? — perguntou Erikki. Ela lhe disse.
— Dayati, diga-lhe que ele não pode usar o meu 212 e para dar o fora da nossa terra agora mesmo ou vou chamar a polícia.
— Por favor, capitão, deixe-me lidar com isso, capitão — disse Dayati, suando de ansiedade, antes que Azadeh pudesse interromper. — Por favor, Alteza, vá embora agora. — Depois voltou-se para os dois mecânicos. — Está tudo bem, vocês podem voltar para a cama. Eu vou tratar disso.
Foi então que Erikki notou que Azadeh ainda estava descalça. Ele a ergueu nos braços.
— Dayati, você diga a esse matyeryebyets e a todos eles que se tornarem a voltar aqui no meio da noite eu lhes quebro os pescoços. E se ele ou qualquer pessoa tocar num fio de cabelo da minha mulher vou me arrastando até o inferno atrás dele, se for preciso. — E se retirou, enorme na sua fúria, seguido pelos dois mecânicos.
Uma voz, em russo, o fez parar.
— Capitão Yokkonen, talvez eu pudesse falar com o senhor um momento?
Erikki olhou para trás. Azadeh, ainda no seu colo, estava tensa. O homem estava no fundo do grupo, difícil de ver, aparentemente não muito diferente dos outros, usando um casaco de capuz sem nada de especial.
— Sim — Erikki respondeu-lhe em russo —, mas não traga uma arma para a minha casa, nem uma faca. — E saiu andando com altivez.
O mulá aproximou-se de Dayati com um olhar de fera.
— O que foi que aquele demônio estrangeiro disse, hein?
— Ele foi rude, todos os estrangeiros são rudes, Sua Alt... a mulher também foi rude.
O mulá cuspiu na neve.
— O profeta estabeleceu leis e castigos para tal conduta, o Povo possui leis contra a riqueza hereditária e o roubo de terras, a terra pertence ao Povo. Dentro de pouco tempo, leis e castigos corretos vão governar a todos nós, finalmente, e o Irã terá paz. — Ele se voltou para os outros. — Nua na neve! Exibindo-se em público contra todas as leis do recato. Rameira! Os Gorgons não passam de lacaios do xá traidor e do seu cão, Bakhtiar. — Seus olhos voltaram a encarar Dayati. — Que mentiras você estava contando sobre o helicóptero?
Tentando ocultar o medo, Dayati disse, imediatamente, que a revisão das 1.500 horas de vôo fazia parte dos regulamentos estrangeiros que foram impostos a ele e às aeronaves e ratificados pelo xá e pelo governo.
— Governo ilegal — interrompeu o mulá.
— É claro, é claro, ilegal — concordou Dayati, de imediato, conduziu os nervosamente ao hangar e acendeu as luzes. A base tinha o seu próprio sistema gerador e era auto-suficiente. Os motores do 212 estavam desmontados, peça por peça, e arrumados em fila. — Isso não tem nada a ver comigo, Excelência, os estrangeiros fazem o que querem. — E depois acrescentou, rapidamente: E embora nós todos saibamos que a Madeira Iraniana pertence ao povo, o xá ficou com todo o dinheiro. Eu não tenho nenhuma autoridade sobre eles, os demônios estrangeiros e seus regulamentos. Não há nada que eu possa fazer.
— Quando ele vai poder voar? — O homem que falava russo perguntou num turco perfeito.
— Os mecânicos prometeram que em dois dias — respondeu Dayati e rezou em silêncio, muito amedrontado, embora tentasse não demonstrá-lo. Estava claro para ele agora que esses homens eram mujhadins de esquerda, partidários da teoria defendida pelos soviéticos de que o islã e Marx eram compatíveis. — Está nas mãos de Deus. Dois dias; os mecânicos estrangeiros estão esperando por algumas peças sobressalentes que estão atrasadas.
— Que peças são essas?
Nervosamente, ele lhe disse. Eram algumas partes de menor importância e uma lâmina do rotor da cauda.
— Quantas horas rodou a lâmina do rotor?
Dayati checou no diário de bordo, com as mãos tremendo.
— Mil e setenta e três.
— Deus está do nosso lado — disse o homem e depois virou-se para o mulá: — Poderemos usar a velha com segurança por mais umas cinqüenta horas, pelo menos.
— Mas a vida da lâmina... o prazo de validade está vencido — disse Dayati, sem pensar. — O piloto se recusará a voar porque os regulamentos aéreos exi...
— Regulamentos de Satã.
— É verdade — o que falava russo interrompeu —, alguns deles. Mas as leis de segurança são importantes para o Povo, e até muito importantes. Deus estabeleceu no Corão regras para os camelos e os cavalos e ensinou como cuidar deles, e essas regras podem ser aplicadas aos aviões que também são uma dádiva de Deus e também nos transportam para fazer o trabalho de Deus. Portanto, devemos segui-las corretamente. Você não concorda, Mahmud?
— É claro — disse o mulá com impaciência e seus olhos pousaram em Dayati que começou a tremer. — Voltarei dentro de dois dias, ao nascer do sol. Providencie para que o helicóptero esteja montado e que o piloto esteja pronto para fazer o trabalho de Deus para o Povo. Eu vou visitar cada um dos acampamentos das montanhas. Há outras mulheres aqui?
— Só... só duas esposas de operários e... minha esposa.
— Elas usam o chador e o véu?
— É claro — Dayati mentiu imediatamente. Usar o véu era contra a lei do Irã. O Reza Xá tinha proibido o véu em 1936, tinha tornado optativo o uso do chador e o xá Muhammad tinha dado ainda mais liberdade à mulher em 1964.
— Ótimo. Lembre a elas que Deus e o Povo estão vigiando, mesmo nos desprezíveis domínios dos estrangeiros. — Mahmud virou as costas e saiu pisando duro, e os outros o acompanharam.
Quando ficou sozinho, Dayati enxugou a testa, agradecendo por ser um dos fiéis e porque, agora, sua mulher ia usar o chador, ia ser obediente e agir como sua mãe tinha agido, com recato, e não usar jeans como Sua Alteza. Do que é que o mulá a chamara? Que Deus o proteja, se o Abdullah Khan ficar sabendo disso... muito embora, é claro, o mulá tenha razão, e evidentemente Khomeini tenha razão, que Deus o proteja.
NA CABANA DE ERIKKI: 23:23H. Os dois homens se sentaram à mesa, um em frente ao outro, na sala principal da cabana. Quando o homem bateu na porta, Erikki dissera a Azadeh para ir para o quarto, mas deixara a porta de dentro aberta para que ela pudesse ouvir. Ele lhe dera o rifle que usava para caçar.
— Use-o sem medo. Se ele entrar no quarto, é porque eu já estou morto. dissera, com sua faca pukoh enfiada no cinto, no meio das costas.
A pukoh era uma faca de cabo comprido e era a arma de todos os finlandeses. Era considerado de mau agouro — e perigoso — um homem não carrega-la. Na Finlândia era contra a lei andar com ela em público — isto poderia ser tomado como um desafio. Mas todo mundo carregava uma, principalmente nas montanhas. A de Erikki Yokkonen fazia justiça ao seu tamanho.
— Então, capitão, peço desculpas pela invasão. — O homem tinha cabelos escuros, um pouco menos de um metro e oitenta, cerca de trinta anos, o rosto curtido pelo tempo, os olhos escuros e eslavos. Havia sangue mongol nas suas veias.
— Meu nome é Fedor Rakoczy.
— Rakoczy foi um revolucionário húngaro — disse Erikki, secamente — e pelo seu sotaque você é da Geórgia. Rakoczy não era georgiano. Qual é o seu nome verdadeiro... e o seu posto na KGB?
— É verdade que meu sotaque é da Geórgia — riu o homem — e que eu sou russo da Geórgia, de Tbilisi. Meu avô veio da Hungria mas não tinha nenhum parentesco com o revolucionário que outrora tornou-se príncipe da Transilvânia. E nem era muçulmano como meu pai e eu. Então, está vendo, nós dois sabemos um pouco de história, com a graça de Deus — disse amavelmente. — Sou engenheiro do gasoduto russo-iraniano, perto da fronteira, em Astara, no Cáspio, e pró-Irã, pró-Khomeini, que ele seja abençoado, antixá e antiamericano.
Estava contente por ter sido informado a respeito de Erikki Yokkonen. Parte da sua história de cobertura era verdadeira. Ele vinha realmente da Geórgia, de Tbilisi, mas não era muçulmano, nem seu nome verdadeiro era Rakoczy. Seu nome verdadeiro era Igor Mzytryk e era capitão da KGB, um especialista servindo na 116ª Divisão Aerotransportada, sediada na fronteira, ao norte de Tabriz, um dentre as centenas de agentes camuflados que tinham sido infiltrados há meses, ao norte do Irã, e que agora operavam quase livremente. Tinha 34 anos, era oficial de carreira da KGB como seu pai, e estava no Azerbeijão há seis meses. Seu inglês era bom, falava fluentemente o turco e o farsi, e embora não soubesse pilotar, conhecia muito a respeito dos helicópteros de apoio da sua divisão, com motores a pistão, pertencentes ao Exército Soviético.
— Quanto a minha situação — acrescentou com sua voz mais gentil — é a de amigo. Nós, russos, somos bons amigos dos finlandeses, não somos?
— Sim, sim, isto é verdade. Os russos são, mas não os membros do partido. A Santa Rússia foi amiga no passado, sim, quando éramos um grande ducado da Rússia. A Rússia Soviética foi amistosa depois de 1917 quando nos tornamos independentes. A Rússia Soviética é amiga agora. Sim, agora. Mas não em 1939. Não na Guerra do Inverno. Não, não naquela época.
— Nem vocês em 1941 — disse Rakoczy, asperamente. — Em 1941 vocês foram para a guerra contra nós com os nojentos nazistas; vocês se aliaram a eles contra nós.
— É verdade, mas só para recuperar a nossa terra, a nossa Carélia, nossa província que vocês tinham nos roubado. Nós não marchamos para Leningrado como poderíamos ter feito. — Erikki podia sentir a faca no meio das costas e estava muito contente por isso. — Você está armado?
— Não. Você disse para não vir armado. A minha arma está do lado de fora da porta. Não tenho uma faca pukoh nem tenho necessidades de uma. Por Alá, sou um amigo.
— Ótimo. Um homem precisa de amigos.
Erikki observou o homem, odiando o que ele representava: a Rússia Soviética que, sem ser provocada, invadira a Finlândia em 1939, assim que Stalin assinara o pacto germano-soviético de não-agressão. O pequeno exército da Finlândia lutara sozinho. Durante cem dias eles tinham resistido às hordas soviéticas, na Guerra do Inverno, e depois tinham sido derrotados. O pai de Erikki fora morto defendendo a Carélia, a província que ficava ao sul e a leste, onde, por séculos, os Yokkonens viveram. Imediatamente, a Rússia Soviética anexara a província. Imediatamente, todos os finlandeses se retiraram. Todos eles. Nenhum teria permanecido sob a bandeira soviética, e a terra se tornou deserta de finlandeses. Erikki tinha apenas dez meses de idade nessa época e, no êxodo, milhares de pessoas morreram. Sua mãe morrera. Foi o pior inverno de que se tinha lembrança.
E em 1945, pensou Erikki, contendo o ódio, em 1945, a América e a Inglaterra nos traíram e deram as nossas terras para o agressor. Mas nós não esquecemos. Nem os estonianos, letões, lituanos, alemães orientais, tchecos, húngaros, búlgaros, eslavos, romenos — a lista é interminável. Chegará o dia do ajuste de contas com os soviéticos, oh, sim, este dia chegará — principalmente para os russos, que sofrem o seu jugo mais do que ninguém.
— Para um georgiano, você sabe um bocado sobre a Finlândia — disse calmamente.
— A Finlândia é importante para a Rússia. A détente entre nós funciona, é segura, e mostra ao mundo que a propaganda imperialista americana anti-soviética é um mito.
Erikki sorriu.
— Isto não é hora para política, hein? É tarde. O que quer de mim?
— Amizade.
— Ah, isto é fácil de pedir, mas como você deve saber, difícil de conseguir quando se trata de um finlandês. — Erikki esticou-se e apanhou uma garrafa de vodca quase vazia e dois copos, em cima do aparador. — Você é xiita?
— Sim, mas não muito bom, que Deus me perdoe. Eu às vezes bebo vodca, se é por isso que você está perguntando.
Erikki encheu dois copos.
— Saúde. — Eles beberam. — Agora, por favor, vá direto ao assunto.
— Dentro em breve, Bakhtiar e seus lacaios americanos serão expulsos do Irã. Dentro em breve, o Azerbeijão estará em convulsão, mas você não tem nada a temer. Você é benquisto aqui, bem como sua mulher e a família dela, e nós gostaríamos da sua... da sua cooperação para pacificar estas montanhas.
— Sou apenas um piloto de helicóptero, trabalhando para uma companhia britânica, contratada pela Madeira Iraniana, e sou apolítico. Nós, finlandeses, somos apolíticos, você não se lembra?
Nós somos amigos, sim. Nossos interesses pela paz mundial são os mesmos.
Erikki deu um soco na mesa com o seu punho enorme, fazendo o russo recuar com aquela súbita manifestação de violência que fez a garrafa rolar e cair no chão.
— Já lhe pedi educadamente, por duas vezes, para ir direto ao assunto — disse na mesma voz calma —, agora você tem dez segundos.
— Muito bem — disse o homem entre dentes. — Precisamos dos seus serviços para transportar turmas para os acampamentos nos próximos dias. Nós..
— Que turmas?
— Os mulás de Tabriz e seus seguidores. Nós preci..
— Eu recebo ordens da companhia, não de mulás ou revolucionários ou homens que chegam trazendo armas no meio da noite. Você compreende?
— E melhor o senhor nos compreender, capitão Yokkonen. E os Gorgons também. Todos eles — disse Rakoczy, incisivamente, e Erikki sentiu o sangue subir. — A Madeira Iraniana já entrou em greve e está do nosso lado. Eles lhe darão as ordens necessárias.
— Ótimo. Neste caso, vou esperar e ver que ordens são essas. — Erikki levantou-se em toda a sua altura. — Boa noite.
O russo também se levantou e encarou-o, zangado.
— O senhor e sua mulher são inteligentes demais para não entender que sem os americanos e a sua maldita CIA, Bakhtiar está perdido. Aquele louco filho da mãe do Carter enviou navios e helicópteros para a Turquia... uma esquadra de guerra americana para o Golfo, uma força-tarefa com carregamento nuclear, porta-aviões de apoio com fuzileiros e aeronaves com armas nucleares... uma esquadra de guerra.
— Não acredito nisso!
— Pois pode acreditar. Por Deus, é claro que eles estão tentando iniciar uma guerra com manobras de guerra, pois é claro que vamos ter que reagir, nós temos que responder a manobras da guerra, pois é claro que eles vão usar o Irã contra nós. É tudo uma loucura... nós não queremos uma guerra nuclear..
— Rakoczy falava com toda sinceridade, dizendo mais do que devia. Há poucas horas, seu superior o avisara pelo rádio, em código, que todas as forças soviéticas na fronteira estavam em Alerta Amarelo, a um passo do Vermelho, por causa da aproximação da frota de porta-aviões, todos os mísseis nucleares também estavam em alerta. E pior ainda, eles foram informados de grandes movimentos de tropas chinesas ao longo dos oito mil quilômetros de fronteira com a China. — Aquele filho da puta do Carter com seu Pacto de Amizade com a China vai mandar todos nós para o inferno, se tiver uma chance.
— Se tiver que ser, será — disse Erikki.
— Insha'Allah, sim, mas por que correr como um cão dos americanos ou dos seus nojentos aliados britânicos? O Povo vai vencer, nós vamos vencer. Ajude-nos e não se arrependerá, capitão. Nós só precisamos da sua habilidade por alguns di...
Parou de súbito. Alguém se aproximava correndo. Instantaneamente, a faca de Erikki estava em sua mão e ele se moveu com a velocidade de um gato, colocando-se entre a porta de entrada e a porta do quarto no momento em que a porta foi violentamente aberta
— Savak! — Gritou um homem que eles mal puderam ver e que depois tornou a sair correndo.
Rakoczy deu um pulo em direção à porta e agarrou sua metralhadora.
— Nós precisamos da sua ajuda, capitão. Não se esqueça! — E desapareceu na escuridão.
Azadeh veio até a sala. Com a arma pronta e o rosto pálido.
— O que foi aquilo a respeito de uma frota de porta-aviões? Não entendi. Erikki contou-lhe. Seu choque foi evidente.
— Isto significa guerra, Erikki.
— Sim, se acontecer. — Vestiu o casaco. — Fique aqui.
Fechou a porta atrás dele. Agora, podia ver luzes de carros se aproximando depressa pela estrada de terra que ligava a base à estrada Tabriz—Teerã. Quando seus olhos se adaptaram à escuridão, pôde distinguir dois carros e um caminhão do Exército. Em poucos instantes, o primeiro veículo parou e policiais e soldados se espalharam pela escuridão. O oficial encarregado cumprimentou-o.
— Ah, capitão Yokkonen, boa noite. Soubemos que estiveram aqui alguns revolucionários, ou comunistas do Tudeh, e que houve tiros, disse num inglês perfeito. — Sua Alteza está bem? Não há nenhum problema?
— Não, agora não, obrigado, coronel Mazardi. — Erikki o conhecia muito bem. O homem era primo de Azadeh e chefe de polícia nesta área de Tabriz. Mas Savak? Isto já é outra coisa, pensou inquieto. Se ele for, muito bem, mas eu não quero saber. — Entre.
Azadeh ficou contente em ver o primo, agradeceu por ele ter vindo e contaram-lhe o que ocorrera.
— O russo disse que o nome dele era Rakoczy, Fedor Rakoczy? — perguntou.
— Sim, mas era, evidentemente, uma mentira. — disse Erikki. — Ele deve ser da KGB.
— E ele não disse por que queriam visitar os acampamentos?
— Não.
O coronel refletiu por um momento, depois suspirou.
— Então o mulá Mahmud queria voar, hein? É burrice um homem que se diz de Deus querer voar. Muito perigoso esse sacrilégio, principalmente se ele for um marxista-islâmico! Voando em helicópteros, a pessoa pode facilmente cair, é o que dizem. Talvez a gente deva fazer a vontade dele. — Ele era alto e muito bem-apessoado, tinha cerca de quarenta anos e seu uniforme era impecável. — Não se preocupem. Esses agitadores estarão logo de volta aos seus pardieiros. Logo Bakhtiar vai nos dar ordens para conter esses cães. E esse agitador, Khomeini... nós devíamos sumir com esse traidor bem depressa. Os franceses deveriam ter dado sumiço nele, assim que chegou. Aquele tolos fracos. Estúpidos! Mas eles sempre foram fracos, intrometidos e contra nós. Os franceses sempre tiveram inveja do Irã. — Levantou-se. — Avisem-me quando seu aparelho estiver em condições de voar. De qualquer maneira, voltaremos dentro de dois dias, pouco antes do amanhecer. Vamos torcer para que o mulá e seus amigos, especialmente o russo, voltem.
Quando ele os deixou, Erikki colocou a chaleira no fogo para fazer café. Pensativo, disse:
— Azadeh, prepare uma sacola de viagem.
— O quê? — perguntou espantada.
— Vamos pegar o carro e viajar para Teerã. Partimos em poucos minutos.
— Não há necessidade de partir, Erikki.
— Se o helicóptero estivesse em condições, nós o usaríamos, mas não está.
— Não há com que se preocupar, meu querido. Os russos sempre cobiçaram o Azerbeijão, e sempre cobiçarão, czaristas, soviéticos, não faz nenhuma diferença. Eles sempre desejaram o Irã e nós sempre os mantivemos fora daqui e sempre o faremos. Não há necessidade de se preocupar por causa de alguns fanáticos e de um único russo, Erikki.
— Eu estou preocupado é com os fuzileiros americanos na Turquia, com a força-tarefa americana, e com o motivo pelo qual a KGB acha que "você e sua esposa são inteligentes demais", por que aquele cara estava tão nervoso, por que sabem tanto sobre mim e sobre você e por que 'precisam' dos meus serviços. Vá arrumar a mala, querida, enquanto ainda há tempo.
SÁBADO, 10 de fevereiro
NA BASE AÉREA DE KOWISS: 3:32H. Conduzida pelo mulá Hussein Kowissi, a multidão gritava, forçando o portão principal, trancado e iluminado por holofotes, e a cerca de arame farpado que circundava a enorme base, na noite escura, muito fria, com neve por toda parte. Havia três ou quatro mil pessoas, a maioria jovens, alguns armados, algumas moças vestindo o chador, bem na frente, acrescentando seus gritos ao tumulto: "Deus é grande... Deus é grande..."
Do lado de dentro do portão, de frente para a multidão, pelotões de soldados nervosos estavam espalhados, montando guarda, com os rifles preparados. Havia outros pelotões de reserva, e todos os oficiais estavam armados de revólveres. Dois tanques centuriões, prontos para batalha, aguardavam no centro da pista, com os motores ligados e perto deles estavam o Comandante e um grupo de oficiais. Atrás, caminhões cheios de soldados, com os faróis apontados para o portão e a cerca — vinte ou trinta soldados para cada caminhão. Atrás dos caminhões ficavam os hangares, os edifícios da base, as barracas e um grande número de funcionários, grupos formados pelo pessoal da manutenção, todos ansiosos, vestidos apressadamente, pois a multidão chegara há menos de meia hora, querendo tomar posse da base em nome do aiatolá Khomeini.
Mais uma vez a voz do comandante se fez ouvir pelos alto-falantes.
— Vocês devem dispersar-se imediatamente! — Sua voz era áspera e ameaçadora, mas a ladainha da multidão a abafava: "Allah-u Akbarrr..."
A noite estava nublada, ocultando até mesmo o sopé das montanhas Zagros, atrás da base, com os picos cobertos de neve. A base era o principal QG da S-G ao sul do Irã bem como a sede de dois esquadrões de F4 da Força Aérea Iraniana e, desde a decretação da lei marcial, de um destacamento de centuriões e soldados. Do lado de fora da cerca, a leste, a gigantesca refinaria de petróleo se espalhava por um raio de centenas de hectares, com as altas torres soltando fumaça, muitas lançando jatos de fogo para dentro da noite, à medida que o excesso de gás era queimado. Embora a refinaria estivesse em greve e fechada, algumas partes estavam iluminadas por holofotes: uma equipe reduzida de europeus e iranianos recebera permissão do komiteh de greve para tentar manter em segurança a refinaria, seus oleodutos e tanques de armazenamento.
— Deus é grande... — Hussein tornou a gritar.
Imediatamente a multidão recomeçou a gritaria e a gritaria subiu à cabeça e ao coração dos soldados. Um dos que estavam na fileira da frente era Ali Bewedan, um recruta como os outros, jovem como os outros, há pouco tempo um aldeão como os outros e como os que estavam do lado de fora da cerca. Sim, pensou, com a cabeça doendo e o coração disparado, estou do lado de Deus e pronto para ser sacrificado pela Fé e pelo Profeta, cujo Nome seja louvado! Oh, Deus, permita que eu seja um mártir e vá direto para o Paraíso conforme está prometido aos fiéis. Deixe-me derramar o meu sangue pelo Islã e por Khomeini, mas não protegendo os malditos servos do xá!
As palavras de Khomeini soavam sem parar em seus ouvidos, palavras que ele ouviu no cassete que o mulá tocara na mesquita há dois dias: "... Soldados: juntem-se a seus irmãos e irmãs para fazer o trabalho de Deus, fujam de suas barracas com suas armas, desobedeçam às ordens ilegais dos generais, derrubem o governo ilegal! Façam o trabalho de Deus, Deus é Grande..."
Seu coração voltou ao normal quando tornou a ouvir a voz, a voz forte, bem camponesa do líder dos líderes, que tornava tudo claro. "Deus é grande, Deus é grande..."
O jovem soldado não percebeu que gritava junto com a multidão, os olhos fixos no mulá que estava do outro lado do portão, do lado de Deus, lá fora, batendo no portão, conduzindo os que ele sabia serem seus irmãos e irmãs, tentando arrombá-lo. Seus irmãos soldados que estavam próximos ficaram ainda mais inquietos e nervosos, e o olharam, sem dizer nada, com a cantoria subindo também para suas cabeças e seus corações. Muitos dos que estavam no interior da cerca gostariam de abrir o portão. A maioria teria feito isso se não fosse pelos oficiais e sargentos e pelos castigos inevitáveis, até mesmo a morte, que eles sabiam ser a recompensa para o motim.
— Do lado de Deus, lá fora...
O cérebro do jovem pareceu explodir com estas palavras e não ouviu o sargento gritando com ele, nem o viu, vendo apenas o portão que estava fechado para os fiéis. Largou o rifle e correu para o portão, que estava a uns cinqüenta metros. Por um momento, fez-se um enorme silêncio, todos os olhos de dentro e de fora pousados nele, petrificados.
O comandante, coronel Muhammad Peshadi, estava em pé perto do tanque de comando, um homem ágil de cabelos grisalhos, com um uniforme impecável. Viu o jovem gritando "Allahhhh-u Akkbarrrr...", a única voz que se ouvia naquele momento.
Quando o rapaz estava a uns cinco metros da cerca, o coronel fez um sinal ao sargento a seu lado.
— Mate-o — disse em voz baixa.
Nos ouvidos do sargento ressoava o grito de guerra do rapaz, que agora tentava arrancar as traves do portão. Com um único movimento, arrancou o rifle do soldado mais próximo, destravou-o, apoiou-se momentaneamente no tanque, mirou a cabeça do rapaz e puxou o gatilho. Viu o rosto do rapaz explodir, salpicando os que estavam do outro lado do portão. Então o corpo tombou e ficou obscenamente pendurado no arame farpado.
Por um instante, fez-se um silêncio ainda maior. Depois, sincronizada-mente, sob o comando de Hussein, a multidão avançou, urrando, como um único ser insensato e inconsciente. Aqueles que estavam na frente puxaram violentamente os arames, sem se importarem com as farpas que lhes rasgavam as mãos. Incentivados pelos que estavam atrás, começaram a subir nos arames farpados.
Uma submetralhadora começou a atirar no meio deles. Neste momento, o coronel fez um sinal para o oficial no tanque.
Imediatamente, uma língua de fogo soltou-se do cano do canhão de cem milímetros que apontava para cima da multidão e despejou uma carga de festim, mas o susto da explosão fez com que os atacantes saíssem correndo do portão, em pânico, meia dúzia de soldados também deixaram seus rifles caírem, de susto, alguns fugiram, e muitos dos espectadores desarmados se espalharam apavorados. O segundo tanque atirou, com o cano apontado para mais perto do chão, e a língua de fogo mais baixa.
A multidão se dispersou. Homens e mulheres fugiram do portão e da cerca, tropeçando uns nos outros na sua pressa. Mais uma vez o tanque principal atirou, e mais uma língua de fogo e uma explosão ensurdecedora, e a multidão redobrando seus esforços para fugir. Só o mulá Hussein ficou no portão. Ele oscilou como um bêbado, momentaneamente cego e surdo, depois suas mãos agarraram os pilares do portão e ele se pendurou lá. No mesmo instante, instintivamente, muitos correram para ajudá-lo, soldados, sargentos e um oficial.
— Fiquem onde estão! — urrou o coronel Peshadi, depois apanhou o microfone e colocou-o no máximo de potência. Sua voz explodiu na noite. — Todos os soldados fiquem onde estão! Mantenham as travas de segurança! MANTENHAM AS TRAVAS DE SEGURANÇA! Todos os oficiais e sargentos encarreguem-se dos seus homens! Sargento, venha comigo!
Ainda em choque, o sargento marchou ao lado do seu comandante que se dirigiu ao portão. Espalhados em frente ao portão havia umas trinta ou quarenta pessoas que tinham sido pisoteadas. A massa de manifestantes parara a uns cem metros de distância e começava a se reorganizar. Alguns dos mais entusiasmados iniciaram uma investida. A tensão aumentou.
— PAREM! TODOS FIQUEM ONDE ESTÃO!
Desta vez o comandante foi obedecido. Imediatamente. Ele sentia o suor escorrendo pelas costas, o coração disparado no peito. Lançou um breve olhar ao corpo preso no arame farpado, contente por ele — o rapaz não tinha sido sacrificado com o Nome de Deus nos lábios e, portanto, não estava já no Paraíso? —, e depois falou asperamente pelo alto-falante.
— Vocês três... sim, vocês três, ajudem o mulá. AGORA! — Na mesma hora, os homens que ele havia apontado do lado de fora da cerca correram para cumprir a ordem. Ele fez um sinal zangado com o polegar para alguns soldados. — Vocês! Abram o portão! Vocês, levem embora o corpo!
Mais uma vez foi imediatamente obedecido. Atrás dele, alguns grupos começaram a se movimentar, e ele urrou.
— Eu disse FIQUEM ONDE ESTÃO! O PRÓXIMO QUE SE MOVER SEM MINHA ORDEM SERÁ UM HOMEM MORTO! — Todo mundo ficou paralisado. Todo mundo.
Peshadi esperou um momento, quase que desafiando alguém a se mover. Ninguém o fez. Então, tornou a olhar para Hussein, a quem conhecia bem.
— Mulá — disse Peshadi, em voz baixa —, você está bem? — Estava em pé ao lado dele agora. O portão aberto. A poucos metros de distância os três aldeões esperavam, petrificados.
Hussein sentia uma dor monstruosa na cabeça e seus ouvidos também doíam terrivelmente. Mas podia ouvir e ver, e embora suas mãos estivessem ensangüentadas do arame farpado, sabia que não estava ferido e que ainda não era o mártir que tanto desejava ser.
— Eu exijo — disse fracamente. — Eu exijo esta... esta base em nome de Khomeini.
— Você virá ao meu escritório imediatamente — interrompeu-o o coronel, com a voz e o rosto severos. — E vocês três também, como testemunhas. Vamos conversar, mulá. Eu vou ouvir e você vai ouvir. — Tornou a ligar o alto-falante e explicou o que ia acontecer, com a voz ainda mais grave, as palavras ecoando, penetrando na noite. — Ele e eu vamos conversar. Vamos conversar pacificamente e depois o mulá vai voltar para a mesquita e todos vocês retornarão às suas casas para rezar. O portão permanecerá aberto. O portão será guardado pelos meus soldados e pelos meus tanques, e por Deus e pelo Profeta cujo Nome seja louvado, se qualquer um de vocês transpuser o portão ou pular a cerca sem ser convidado, será morto por meus soldados. Se invadirem minha base, levarei meus tanques até suas aldeias e queimarei as aldeias e vocês junto com elas! Longa vida para o xá! — Deu meia-volta e se afastou, e o mulá e os três assustados aldeões seguiram-no vagarosamente. Ninguém mais se mexeu.
Na varanda do refeitório dos oficiais, o capitão Conroe Starke, líder do contingente da S-G, suspirou.
— Meu bom Deus — resmungou cheio de admiração, para ninguém em especial —, que cojones!
5:21H. Starke estava na janela do refeitório dos oficiais, observando o edifício do QG de Peshadi do outro lado da rua. O mulá ainda não saíra. O salão do refeitório estava muito frio. Freddy Ayre encolheu-se mais na poltrona, protegendo-se com sua jaqueta de vôo, e olhou para o texano alto que se balançava suavemente nos calcanhares.
— O que você acha? — perguntou cansado, abafando um bocejo.
— Acho que vai amanhecer daqui a uma hora mais ou menos, companheiro — respondeu Starke, distraidamente. Ele também usava uma jaqueta de vôo e botas de voar quentes. Os dois pilotos estavam numa janela que ficava no canto da sala do segundo andar, de onde se via quase toda a base. Espalhados pela sala, uns doze oficiais iranianos dos mais graduados, que também tinham recebido ordens para ficar a postos. A maioria dormia nas poltronas, enrolados em jaquetas de vôo ou casacões do exército — a base inteira estava com o aquecimento desligado há semanas, para economizar combustível. Alguns ordenanças cansados, também vestidos com casacões, limpavam os últimos vestígios da reunião que a multidão interrompera.
— Estou me sentido exausto, e você?
— Ainda não, mas por que será que sempre estou de serviço nos dias santos e nos feriados, Freddy?
— Isto é um privilégio do Líder Destemido, meu chapa — disse Ayre. Ele era o segundo em comando do contingente da S-G, antigo membro da RAF, um homem bem-apessoado de 28 anos, de grandes olhos azuis e sotaque de Oxford. — Dá bom exemplo para as tropas.
Starke olhou na direção do portão principal, que estava aberto. Nenhuma mudança: continuava bem guardado. Do lado de fora, uns quinhentos aldeões ainda esperavam, bem juntos uns dos outros para se aquecerem. Ele tornou a fixar a atenção no prédio do QG Também lá não houvera nenhuma mudança. No segundo andar, onde Peshadi tinha seus escritórios, as luzes estavam acesas.
— Daria um mês de salário para estar kibitzing por lá, Freddy.
— O quê? O que quer dizer isto?
— Para estar ouvindo a conversa entre Peshadi e o mulá.
— Ah! — Ayre olhou na direção dos escritórios. — Sabe, pensei que estivesse tudo acabado quando aqueles miseráveis começaram a subir pela cerca. Maldição! Estava pronto para sair correndo, girar a manivela da Velha Nellie e dizer adeus para Kublai Khan e suas hordas mongóis! — E deu uma risadinha quando imaginou a si mesmo correndo para o seu 212. — Evidentemente — acrescentou —, eu teria esperado por você, Duke. — Usou o apelido que costumavam usar para Starke, que era texano como John Wayne, tinha o mesmo tipo físico de John Wayne e era tão bonito quanto ele.
— Obrigado, meu chapa — Starke respondeu rindo. — Pensando bem, se eles tivessem conseguido invadir a base, eu teria corrido na sua frente.
Seus olhos azuis apertaram-se quando riu, respondendo com um ligeiro sotaque. Depois tornou a se virar para a janela, disfarçando a preocupação. Era a terceira vez que a base enfrentava uma multidão enfurecida, sempre conduzida pelo mulá e sempre mais séria do que a anterior. E agora, a primeira morte não acidental. E depois? Aquela morte levaria a outra e mais outra. Se não fosse pelo coronel Peshadi, alguém mais teria se precipitado para o portão e teria sido morto e agora haveria corpos por toda parte. Oh, Peshadi vencera... desta vez. Mas breve ele não vai mais conseguir, a não ser que dobre o mulá. E para dobrar Hussein terá que matá-lo. Não adianta prendê-lo, a multidão vai fazer um escarcéu, e se o matar, vão fazer um escarcéu, e se o exilar, vão fazer um escarcéu, ele está num impasse. O que eu faria?
Não sei.
Deu uma olhada pela sala. Os oficiais iranianos não pareciam preocupados. Conhecia a maioria de vista, nenhum intimamente. Embora a S-G dividisse a base com eles desde que fora construída, há uns oito anos, eles tinham pouco contato com o pessoal do Exército e da Força Aérea. Desde que Starke assumira como piloto-chefe, há um ano, tentara aumentar os contatos da S-G com o resto da base, mas sem sucesso. Os iranianos preferiam a companhia deles mesmos.
Está certo, pensou. É o país deles. Mas eles o estão arrasando e nós estamos no meio, e agora Manuela está aqui. Tinha ficado radiante em ver sua mulher quando ela chegou de helicóptero, há cinco dias — MacIver não deixara que ela se arriscasse nas estradas — embora um pouco zangado por ela ter conseguido permissão para embarcar num vôo extraordinário da British Airways que regressava imediatamente a Teerã.
— Que diabo, Manuela, você está correndo perigo aqui!
— Não mais do que em Teerã, Conroe querido. Insha'Allah — respondera com um sorriso radiante.
— Mas como foi que conseguiu convencer Mac a deixá-la vir para cá?
— Eu apenas sorri para ele, querido, e prometi voltar para a Inglaterra no primeiro vôo disponível. Enquanto isso, querido, vamos para cama.
Ele sorriu para si mesmo e deixou sua mente divagar. Era seu terceiro período de dois anos no Irã e seu 11º ano com a S-G. Onze bons anos, pensou. Primeiro Aberdeen e o mar do Norte, depois Irã, Dubai e Al Shargaz do outro lado do golfo, depois o Irã de novo, onde planejara ficar. Os melhores anos foram aqui, pensou. Mas agora não são mais. O Irã mudou, a partir de 1973, quando o xá quadruplicou o preço do petróleo — de uma libra para quatro ou por aí. Para o Irã, foi como antes de Cristo e depois de Cristo. Antes, eles eram simpáticos e atenciosos, bons para se conviver e trabalhar. Depois? Cada vez mais arrogantes, mais e mais vaidosos pelas constantes afirmações do xá a respeito da "superioridade natural dos iranianos", referindo-se aos seus três mil anos de civilização e de como, dentro de vinte anos, o Irã seria um líder mundial por direito divino — seria a quinta potência industrial da terra, o único guardião dos entroncamentos entre o Leste e o Oeste, com o melhor exército, a melhor marinha, a melhor força aérea, com mais tanques, helicópteros, geladeiras, fábricas, telefones, estradas, escolas, bancos, negócios, do que qualquer outra nação aqui no centro do mundo. E baseando-se em tudo isso, com o resto do mundo a ouvi-lo atentamente, o Irã, sob sua liderança, seria o verdadeiro árbitro entre o Leste e o Oeste, e a verdadeira fonte de toda a sabedoria — a sua sabedoria.
Starke suspirou. Tinha compreendido essa mensagem, muito claramente, com o decorrer dos anos, mas abençoava Manuela por ter concordado em mergulharem no modo de vida iraniano, aprendendo farsi, indo a toda parte e vendo tudo — paisagens, gostos e cheiros, aprendendo a respeito de tapetes persas e caviar, vinhos e lendas e fazendo amigos — e não vivendo a sua vida do lado de fora, como muitos dos pilotos e engenheiros estrangeiros que preferiram deixar as famílias em casa, trabalhar dois meses e tirar um de licença, e que ficavam sentados em suas bases nos dias de folga, economizando dinheiro e esperando pelo período de licença que passariam no lar — onde quer que fosse esse lar.
— O nosso lar é aqui, de agora em diante. É onde vamos ficar, eu e as crianças — ela declarara, soerguendo a cabeça do jeito que ele tanto admirava, com o negrume dos seus cabelos e a paixão de sua herança espanhola.
— Que crianças? Nós não temos nenhum filho e nem podemos tê-los ainda, com o que eu ganho.
Starke sorriu. Isso tinha sido logo depois que eles se casaram, há dez anos. Ele voltara ao Texas para se casar assim que seu emprego na S-G ficou mais firme. Agora tinham três filhos, dois meninos e uma menina, e podia apenas sustentá-los. Agora? Agora, o que iria acontecer? Meu emprego aqui está ameaçado, a maioria dos nossos amigos iranianos foi embora, as lojas, que antes estavam cheias, agora estão vazias — e há medo onde só houvera alegria.
O maldito Khomeini e esses malditos mulás, pensou. Ele realmente destruiu um ótimo modo de vida e um grande lugar. Gostaria que Manuela pegasse os garotos e fosse para Londres e de lá para Lubbock, até que o Irã se estabilizasse. Lubbock ficava no Texas onde seu pai ainda dirigia o rancho da família. Três mil hectares, alguns bois, alguns cavalos, alguma plantação, o bastante para a família viver confortavelmente. Gostaria que ela já estivesse lá, mas não haveria nenhuma correspondência por muitas semanas e os telefones com certeza não estariam funcionando. Maldito Khomeini, assustando-a com seus discursos — imagino o que ele dirá para Deus e Deus para ele quando se encontrarem, como fatalmente acontecerá.
Espreguiçou-se e tornou a sentar na poltrona. Viu Ayre observando-o, com os olhos injetados.
— Você tomou mesmo um porre.
— Era meu dia de folga, meus dois dias, aliás, e eu não tinha previsto essa agitação. Na verdade, estava com intenção de beber para esquecer, sinto falta da minha cara-metade, que Deus a abençoe, e, de qualquer forma, o Hogmanay é importante para nós, escoceses e...
— Hogmanay foi na véspera do Ano-Novo e hoje é dia 10 de fevereiro e você é tão escocês quanto eu.
— Duke, você precisa aprender que os Ayres são um clã muito antigo e eu sei até tocar gaita de fole, meu chapa. — Ayre bocejou longamente. — Cristo, estou cansado. — Ele se enterrou mais na cadeira, tentando arranjar uma posição mais confortável, depois olhou pela janela. No mesmo instante seu cansaço desapareceu. Um oficial iraniano saía apressadamente do QGE atravessava a rua em direção a eles. Era o major Changiz, o ajudante-de-ordens do comandante.
Quando entrou, seu rosto estava tenso.
— Todos os oficiais devem apresentar-se ao comandante às sete horas — disse em farsi. — Todos os oficiais. Haverá uma parada com todo o pessoal do Exército e da Força Aérea às oito horas, na praça. Qualquer um que faltar, qualquer um — acrescentou sombriamente — exceto por razões de saúde aprovadas por mim, com antecedência, pode esperar uma punição severa e imediata. — Seus olhos percorreram a sala até encontrarem Starke. — Siga-me, por favor, capitão.
O coração de Starke quase parou.
— Por que major? — perguntou em farsi.
— O comandante quer vê-lo.
— Para quê?
O major deu de ombros e saiu. Starke disse para Ayre em voz baixa:
— É melhor alertar os nossos rapazes. E Manuela também. Entendeu?
— Entendi. — E depois resmungou — Cristo.
Enquanto atravessava a rua e subia as escadas, Starke podia sentir todos os olhos fixos nele como se fossem um peso. Graças a Deus eu sou um civil e trabalho para uma companhia britânica e não estou mais no Exército dos Estados Unidos. Exército nunca mais, pensou com ardor.
— Maldição — murmurou, recordando-se do ano miserável passado no Vietnã, logo no início, quando não havia forças americanas no Vietnã, 'só alguns conselheiros'. Uma ova! E o filho da puta daquele imbecil, capitão Ritman, que ordenou que todos os helicópteros da base, uma base que ficava no meio da selva, a milhões de quilômetros de qualquer lugar, pelo amor de Deus, fossem pintados com as cores da bandeira americana: "E isso mesmo, porra, todos pintados. Deixem os veados saberem quem somos nós e eles vão arrastar seus traseiros de volta até a maldita Rússia." — Os vietcongues podiam-nos ver chegando a cinqüenta quilômetros de distância e foi um verdadeiro inferno. Perdemos três Hueys com toda a tripulação antes que o filho da puta fosse mandado para Saigon, promovido e elogiado. Não é de espantar que tenhamos perdido a maldita guerra.
Ele entrou no prédio e subiu as escadas, passou pelos três aldeões petrificados que tinham sido expulsos para a ante-sala, e entrou no covil do comandante.
— Bom dia, coronel — disse cautelosamente, em inglês.
— Bom dia, capitão Starke. — Peshadi começou a falar em farsi — Eu gostaria que conhecesse o mulá Hussein Kowissi.
— Que a paz o acompanhe — disse Starke em farsi, bem consciente dos respingos do sangue do rapaz que fora morto, que ainda manchavam o turbante branco e a vestimenta vermelha do homem.
— Que a paz o acompanhe.
Starke estendeu a mão para cumprimentá-lo, como era o hábito correto. Bem a tempo, notou as marcas de sangue coagulado nas palmas das mãos do homem, causadas pelo arame farpado, e apertou-lhe a mão apenas de leve. Mesmo assim, viu o mulá fazer uma careta de dor.
— Desculpe — disse em inglês.
O mulá apenas o encarou e Starke sentiu toda a força do ódio daquele homem.
— O senhor mandou-me chamar, coronel?
— Sim. Sente-se, por favor. — Peshadi indicou-lhe a cadeira vazia em frente à escrivaninha. O escritório era espartano, e meticulosamente arrumado. Uma fotografia do xá e de Farah, sua esposa, em trajes de gala, era a única decoração da parede. O mulá sentara-se de costas para o retrato. Starke ocupou a cadeira em frente aos dois homens.
Peshadi acendeu outro cigarro e viu o olhar desaprovador de Hussein fixar-se no cigarro e depois cair em cheio em seu rosto. Ele o encarou de volta. Fumar era proibido pelo Corão — de acordo com algumas interpretações. Tinham discutido esta questão por mais de uma hora. Depois o coronel dissera de forma conclusiva:
— Fumar ainda não está proibido no Irã. Sou um soldado. Jurei obedecer ordens. Eu...
— Mesmo uma ordem ile...
— Repito: as ordens de Sua Majestade Imperial, o xainxá Muhammad Pahlavi ou do seu representante, o primeiro-ministro Bakhtiar, ainda são legais, de acordo com a lei do Irã. O Irã ainda não é um estado islâmico. Ainda não. Quando o for, eu obedecerei às ordens de quem quer que esteja governando o estado islâmico.
— O senhor obedecerá ao aiatolá Khomeini?
— Se o aiatolá Khomeini vier a ser o nosso governante legal, é claro que sim. — O coronel balançara a cabeça Simpaticamente, mas estava pensando: antes desse dia chegar haverá muito derramamento de sangue. — E a mim, se eu for escolhido líder deste possível estado islâmico, o senhor obedecerá a mim?
Hussein não sorrira.
— O líder do estado islâmico será o imã, o Turbilhão de Deus, e depois dele virá um outro aiatolá, e depois mais outro.
E agora aquele olhar de pedra, inflexível, ainda estava fixado nele, e Peshadi teve vontade de esmagar o mulá no chão e pegar seus tanques e esmagar todo mundo que se recusasse a obedecer às ordens do xainxá, seu governante indicado por Deus. Sim, pensou, o nosso dirigente mandado por Deus que, como seu pai, enfrentou vocês, mulás, e sua sede de poder, que reprimiu seu dogmatismo arcaico e tirou o Irã do obscurantismo, dando-lhe a grandeza que era sua por direito; que, sozinho, coagiu a OPEP a enfrentar o enorme poder das companhias de petróleo estrangeiras, que expulsou a Rússia do Azerbeijão depois da Segunda Guerra Mundial e a mantém acuada, lambendo-lhe as mãos como um cachorrinho.
Por Deus e pelo Profeta, disse a si mesmo, furioso, devolvendo o olhar de Hussein, não consigo entender por que esses mulás fodidos não reconhecem a verdade a respeito daquele velho senil do Khomeini, que grita mentiras do seu leito de morte, por que eles não percebem que os soviéticos o estão patrocinando, alimentando, protegendo, para levá-los a incitar os camponeses a arrasar o Irã e torná-lo um protetorado soviético!
Precisamos apenas de uma única ordem: Esmaguem a rebelião imediatamente!
Com uma ordem dessas, por Deus, em três dias eu tornaria toda a região em torno de Kowiss tranqüila, pacífica e próspera, com os mulás de volta às mesquitas, onde é o lugar deles e os fiéis rezando cinco vezes por dia — em um mês as Forças Armadas fariam o Irã voltar a ser o que era há um ano e resolveriam o problema de Khomeini para sempre. Poucos minutos depois dessa ordem eu o prenderia, rasparia publicamente metade da sua barba, tiraria toda a sua roupa e o faria desfilar pelas ruas numa carroça de estrume. Deixaria o povo ver o que ele realmente é: um velho abatido e cansado. Basta torná-lo um perdedor e todo mundo vai virar a cara para ele. Surgiriam, então, acusadores entre os aiatolás que adoram a vida, o amor, o poder, a terra e o falatório, surgiriam acusadores entre os mulás e os bazaaris e entre o povo e, juntos, eles o liquidariam.
É tão simples lidar com Khomeini ou com qualquer mulá — por Deus, se me tivessem ordenado, eu o teria arrastado da França há meses atrás. Deu uma tragada no cigarro e manteve cuidadosamente seus pensamentos fora do rosto e dos olhos.
— Bem, mulá, o capitão Starke está aqui. — Depois acrescentou, como se não fosse uma coisa importante. — Pode falar com ele em farsi ou em inglês, como quiser. Ele fala farsi como você fala inglês. Fluentemente.
O mulá virou-se para Starke.
— Então — disse em inglês com sotaque americano — você é da CIA.
— Não — respondeu Starke, colocando-se instantaneamente em guarda.
— Você estudou nos Estados Unidos?
— Estudei lá, sim — respondeu Hussein. E então, por causa da dor e do cansaço, perdeu a calma. Passou a falar em farsi e sua voz tornou-se mais dura.
— Por que você aprenderia farsi a não ser para nos espionar para a CIA, ou para as suas companhias de petróleo, hein?
— Para o meu próprio interesse, só isto — respondeu Starke educadamente em farsi, demonstrando um bom conhecimento e uma boa pronúncia da língua. — Eu sou um visitante no seu país, fui convidado pelo seu governo para trabalhar para ele em sociedade com iranianos. É de bom-tom que visitantes estejam a par dos tabus e dos costumes dos seus anfitriões, que aprendam sua língua, especialmente quando gostam do país e esperam continuar nele por muitos anos. — Sua voz tornou-se mais tensa. — E as companhias não são minhas.
— Elas são americanas. Você é americano. A CIA é americana. Todos os nossos problemas vêm da América. A cobiça do xá é americana. Todos os nossos problemas vêm da América. Há anos o Irã vem sendo espezinhado pelos americanos.
— Uma ova! — disse Starke em inglês, agora também zangado, sabendo que o único meio de lidar com um valentão era sair brigando. Na mesma hora. Viu o homem enrubescer e enfrentou-lhe o olhar, deixando pesar o silêncio. Os segundos passavam. Seu olhar sustentou o do mulá. Mas não conseguiu dominá-lo. Nervoso, mas tentando aparentar calma, olhou para Peshadi que esperava e observava, fumando em silêncio. — O que significa tudo isso, coronel?
— O mulá requisitou um dos seus helicópteros para visitar as instalações de petróleo nesta aérea. Como você sabe, nós não planejamos suas rotas nem participamos de suas operações. Você deve providenciar um de seus melhores pilotos para esta missão. Hoje, ao meio-dia.
— Por que não usar um dos seus aviões? Talvez eu pudesse fornecer um navega...
— Não. Um dos seus helicópteros, com seu pessoal. Ao meio-dia. Starke voltou-se para o mulá.
— Sinto muito, mas só recebo ordens da IranOil, através do administrador da nossa base e do responsável pela área, Esvandiary. Temos um contrato e eles são exclu...
— Os helicópteros que vocês usam são iranianos — o mulá interrompeu asperamente, tomado mais uma vez pela dor e pela exaustão, desejando que terminassem. — Você vai providenciar um, conforme foi requisitado.
— Eles têm registro iraniano, mas pertencem à S-G Helicópteros Ltda. de Aberdeen.
— Registro iraniano, no céu iraniano, cheios de gasolina iraniana, com autorização dos iranianos, prestando serviços a poços iranianos que extraem petróleo iraniano, pelo amor de Deus. Eles são iranianos! — A boca fina de Hussein se contorceu. — Esvandiary dará a ordem necessária ao meio-dia. Quanto tempo levaremos para visitar todos os campos?
Depois de uma pausa, Starke respondeu:
— Talvez seis horas, tempo de vôo. Quanto tempo vocês pretendem passar em cada parada?
O mulá apenas o encarou.
— Depois disso, quero seguir o oleoduto até Abadan e aterrissar onde eu escolher.
Starke arregalou os olhos. Olhou para o coronel mas viu que o homem ainda estava observando atentamente as espirais de fumaça do seu cigarro.
— Isto é mais difícil, mulá. Nós precisaríamos de permissão. O radar não está funcionando, a maior parte do espaço aéreo é controlada pela divisão de tráfego aéreo de Kish e esta, ahn, é controlada pela Força Aérea.
— Você terá todas as permissões necessárias — disse Hussein de forma conclusiva e olhou inflexivelmente para Peshadi. — Em nome de Deus, voltarei ao meio-dia; se vocês tentarem me impedir, o tiroteio vai recomeçar.
Starke sentia o coração disparado; o mulá e Peshadi também sentiam o mesmo. Só o mulá estava satisfeito — ele não tinha com que se preocupar, estava nas Mãos de Deus, fazendo o trabalho de Deus, obedecendo ordens: "Pressionem o inimigo de todos os modos. Sejam como a água descendo pela colina em direção a uma represa. Pressionem a represa do usurpador, o xá, dos seus lacaios e das Forças Armadas. Nós teremos que derrotá-los com coragem e sangue. Pressionem-nos de todas as maneiras, vocês estão fazendo o trabalho de Deus..."
O vento fez a janela bater e, involuntariamente, eles olharam para ela e para a noite lá fora. A noite ainda estava escura, as estrelas brilhantes, mas a leste percebia-se o brilho do amanhecer, com o sol surgindo no horizonte.
— Voltarei ao meio-dia, coronel Peshadi, sozinho ou com uma multidão. Você escolhe — disse Hussein, em voz baixa, e Starke sentiu a ameaça, ou promessa, com todo o seu ser. — Mas agora, agora é hora de rezar. — Ele se esforçou para ficar em pé, com as mãos ainda queimando de dor, com as costas, a cabeça e os ouvidos doendo ainda barbaramente. — Por um instante, sentiu que ia desmaiar, mas lutou contra a tonteira e a dor e se retirou.
— Faça o que ele pede — disse Peshadi, levantando-se. Por favor — acrescentou com uma grande concessão. — É uma trégua temporária e um compromisso temporário... até recebermos ordens definitivas do governo legal de Sua Majestade Imperial, e então terminaremos com toda essa idiotice. — Tremendo, acendeu um cigarro com o toco do anterior. — Você não vai ter nenhum problema. Ele vai providenciar as licenças necessárias, será um vôo de rotina. É claro que você tem de concordar porque é evidente que não posso permitir que um dos meus aviões preste serviços a um mulá, especialmente a Hussein, que é conhecido por sua incitação à revolta! É claro que não! Foi uma saída brilhante da minha parte e você não vai estragá-la. — Apagou o cigarro, raivosamente, no cinzeiro cheio, o ar carregado de nicotina, e quase gritou: — Você escutou o que ele disse. Ao meio-dia! Sozinho ou com uma multidão. Você quer mais derramamento de sangue, hein?
— É claro que não.
— Ótimo. Então faça o que estou mandando! — explodiu Peshadi. Com ar carrancudo, Starke foi até a janela. O mulá tinha voltado para seu lugar perto do portão, levantado os braços e, como todo muezim em todos os minaretes em todas as madrugadas do islã, chamava os fiéis para a primeira oração do dia, em árabe:
— Venham orar, venham progredir, orar é melhor do que dormir. Não há nenhum outro Deus além de Deus...
E enquanto Starke observava, Peshadi devotadamente tomou seu lugar na frente de todos os homens da base, de todos os postos que, obedientemente, e com evidente satisfação, tinham saído de suas barracas, os soldados colocando seus rifles no chão, os aldeões do outro lado da cerca com devoção igual. Então, sob o comando do mulá, todos se viraram em direção a Meca e começaram os gestos obrigatórios, as prostrações e a ladainha Shahada: "Dou meu testemunho de que não há nenhum outro Deus além de Deus e de que Maomé é o profeta de Deus..."
Quando a oração terminou, fez-se um grande silêncio. Todo mundo esperava. Então o mulá disse bem alto:
— Deus, o Corão e Khomeini. — Depois saiu pelo portão em direção a Kowiss. Obedientemente, os aldeões o seguiram.
Starke estremeceu sem querer. Esse mulá está tão cheio de ódio que sai pelos seus poros. E tanto ódio assim vai acabar mandando alguma coisa ou alguém para o inferno. Se o levar no helicóptero, talvez ele fique ainda pior. Se indicar alguém ou pedir um voluntário será covardia, porque a responsabilidade é minha.
— Tenho que levá-lo — murmurou. — Tenho.
FORA DE LENGEH: 6:42H. O 212, com dois pilotos e 13 passageiros — a lotação completa — fazia um vôo de rotina, em direção ao estreito de Ormuz, depois de ter saído da base da S-G em Lengeh, e sobrevoava as plácidas águas do golfo em direção ao campo de petróleo de Siri, explorado pelos franceses. O sol acabara de surgir no horizonte, prometendo mais um dia claro e sem nuvens, embora a névoa, comum sobre o golfo, baixasse a visibilidade para uns poucos quilômetros.
— Helicóptero EP-HST, aqui é o controle de radar de Kish, vire para 260 graus.
Obedientemente, ele entrou na sua nova rota.
— Duzentos e sessenta em trezentos — respondeu a voz de Ed Vossi.
— Mantenha-se em trezentos. Notifique quando estiver sobre Siri. Ao contrário da maior parte do Irã, o radar aqui era bom, com estações na ilha Kish e na ilha Lavan, controladas por excelentes operadores da Força Aérea Iraniana, treinados nos Estados Unidos — os dois lados do golfo eram igualmente estratégicos e igualmente bem servidos.
— HST — Ed Vossi era americano, antigo membro da Força Aérea dos Estados Unidos, tinha 32 anos e o físico de um zagueiro de futebol americano.
— O radar está nervoso hoje, hem Scrag? — disse para o outro piloto.
— Tem razão. Devem ser as pilhas.
Na frente deles, agora, estava a pequena ilha de Siri. Era árida, despovoada e escondida, com uma pequena pista de terra, umas poucas barracas para o pessoal do petróleo, e um grupo de enormes tanques de armazenamento alimentados por oleodutos colocados no fundo do mar e ligados aos poços que ficavam a oeste, no golfo. A ilha distava uns cem quilômetros da costa iraniana, dentro da fronteira internacional que dividia o estreito de Ormuz e separava as águas iranianas das águas de Omã e dos Emirados Árabes Unidos.
Quando estava bem em cima dos tanques de petróleo, o helicóptero inclinou-se suavemente, dirigindo-se para oeste, pois sua primeira parada seria a alguns quilômetros, no poço de petróleo chamado Siri Três. No momento, o campo tinha seis poços em funcionamento, todos operados pelo consórcio francês semi-estatal, EPF, que instalara o campo para a IranOil em troca de futuros carregamentos de petróleo.
— Controle de radar de Kish, HST sobre Siri a trezentos metros — disse Ed Vossi no transmissor.
— Roger HST. Mantenha-se em trezentos — a resposta veio imediatamente. — Comunique-se antes de iniciar a descida. Na sua frente há trafego de subida às dez horas.
— Estamos vendo. — Os dois pilotos observaram o vôo de quatro caças a jato ganhando altitude, passando por eles e indo para a boca do estreito.
— Eles estão com pressa — disse o homem mais velho e se mexeu no assento.
— Se estão. Olhe! Jesus, são F15 da Força Aérea dos Estados Unidos!
— Vossi estava estarrecido. — Merda, não sabia que havia algum nesta região. Já tinha visto algum antes, Scrag?
— Não, cara — disse Scrag Scragger, igualmente preocupado, ajustando ligeiramente o volume do seu fone. Aos 63 anos, ele era o piloto mais velho da S-G, o piloto mais graduado em Lengeh, um homenzinho mirrado, muito magro, muito resistente, com cabelos grisalhos e olhos fundos, azuis-claros, de australiano, que pareciam estar sempre examinando o horizonte. Seu sotaque era interessante. — Gostaria de saber que diabo está acontecendo. O radar está tão agitado quanto um peru na roda e este é o terceiro vôo que vemos desde que decolamos, embora seja o primeiro ianque.
— Tem que ser uma força-tarefa, Scrag. Ou talvez os caças de escolta que os Estados Unidos enviaram para a Arábia Saudita junto com os AWAC.
Scragger ocupava o assento da esquerda, atuando como comandante de treinamento. Normalmente, o 212 voava com um único piloto, no banco da direita, mas Scragger mandara adaptar este avião para treinamento com dois controles.
— Bem — disse, dando uma risada —, contanto que não encontremos nenhum MIG, está tudo bem.
— Os vermelhos não vão mandar equipamentos para cá, por mais que desejem o estreito. — Vossi parecia muito confiante. Tinha pouco mais de metade da idade de Scragger e duas vezes o seu tamanho. — Não farão isso enquanto dissermos a eles que é melhor que não o façam, e tivermos aviões e forças-tarefas e o poder de usá-los. — Espiou por entre a névoa. — Ei, Scrag, olhe aquilo lá.
O enorme superpetroleiro estava pesadamente carregado, mergulhado na água, navegando com dificuldade na direção de Ormuz.
— Aposto que está levando quinhentas mil toneladas ou mais.
Eles o observaram por alguns instantes. Sessenta por cento do petróleo do mundo livre era escoado por este caminho raso e estreito entre o Irã e Omã, com aproximadamente 25 quilômetros de canal navegável. Vinte milhões de barris por dias. Todo dia.
— Você acha que algum dia construirão um petroleiro de um milhão de toneladas, Scrag?
— É claro. É claro que construirão, se quiserem, Ed. — O navio passou por baixo deles. — Está com a bandeira da Libéria — disse Scragger, distraidamente.
— Você tem olhos de águia.
— É a minha vida regrada, meu chapa.
Scragger deu uma olhada pela cabine. Todos os passageiros estavam em seus lugares, presos com cintos de segurança, vestindo jaquetas salva-vidas Mae West, conforme o regulamento, com protetores de orelha, lendo ou olhando pela janela. Tudo normal, pensou. Sim, e os instrumentos estão normais, os sons normais, eu estou normal e Ed também. Então por que estou inquieto?, perguntou a si mesmo, virando-se para trás mais uma vez.
Por causa da força-tarefa, por causa do radar de Kish, por causa dos passageiros, porque é seu aniversário, e principalmente porque você está voando e o único meio de se manter vivo voando é permanecer inquieto. Amém. E riu alto.
— Qual é a graça, Scrag?
— E você. Então você pensa que é um piloto, certo?
— É claro, Scrag. — Disse Vossi, cautelosamente.
— Está bem. Já localizou Siri Três?
Vossi sorriu e apontou para a plataforma distante que mal se conseguia ver no meio da névoa, um pouco a leste do grupo de tanques.
— Então feche os olhos — ordenou Scragger, com um sorriso satisfeito.
— Vamos, Scrag, é claro que isto é um vôo de controle, mas e...
— Eu peguei os controles — disse Scragger alegre. Na mesma hora, Vossi largou os controles. — Agora feche os olhos porque você está em treinamento.
Confiantemente, o rapaz tornou a olhar para a plataforma, ajustou seu fone de ouvido, tirou os óculos escuros e obedeceu.
Scragger entregou a Vossi o par de óculos especiais que tinha mandado fazer.
— Tome, ponha estes óculos e só abra os olhos quando eu mandar. Fique preparado para assumir o controle.
Vossi pôs os óculos e, suavemente, ainda com os olhos fechados, estendeu as mãos e os pés, mal tocando os controles, como sabia que Scragger gostava.
— OK. Pronto, Scrag. — Pode assumir.
Imediatamente Vossi assumiu o controle, com firmeza e suavidade, e ficou satisfeito com a perícia com que a troca fora feita, o helicóptero se mantendo reto e nivelado. Agora, voava guiado apenas pelo ouvido, tentando antecipar a menor variação no barulho do motor — diminuição ou alimento — que pudesse indicar se estava subindo ou descendo. Houve uma pequena mudança. Corrigiu direitinho, sentindo, quase antes que ocorresse, que o grau de inclinação aumentava, logo os motores estavam ganhando velocidade e portanto o helicóptero estava mergulhando. Fez a correção necessária e tornou a nivelá-lo.
— Boa, cara — disse Scragger, aprovadoramente. — Agora abra os olhos.
Vossi tinha esperado óculos comuns de treinamento que excluíam a visibilidade exterior mas permitiam ver os instrumentos. Mas encontrou-se numa escuridão total. Entrando em pânico, sua concentração desapareceu e com ela a coordenação. Por um segundo, ficou inteiramente desorientado, o estômago embrulhado, imaginando que o aparelho fosse ficar desgovernado. Mas não ficou. Os controles permaneceram firmes nas mãos de Scragger.
— Jesusss — exclamou Vossi, sem fôlego, lutando contra o enjôo, levantando as mãos automaticamente para arrancar os óculos.
— Não tire os óculos! Ed, isto é uma emergência, você é o piloto, o único piloto a bordo e está em dificuldades... você não consegue enxergar. O que vai fazer? Pegue os controles! Vamos! Emergência!
Havia bile na boca de Vossi e ele cuspiu, com as mãos e os pés tremendo. Pegou os controles, corrigiu demais e quase gritou de medo quando deram uma guinada, pois estava esperando que Scragger ainda estivesse controlando-os. Mas não estava. Novamente Vossi corrigiu demais, totalmente desorientado. Desta vez Scragger corrigiu o erro.
— Acalme-se, Ed — ordenou. — Escute o maldito motor! Mantenha as mãos e os pés sincronizados. — Depois, com mais gentileza: — Firme agora, está indo bem, fique firme. Você vomita depois. Você está numa emergência, tem que pousar o aparelho, e há treze passageiros aos seus cuidados. Estou aqui a seu lado mas não sou um piloto. Agora, o que vai fazer?
As mãos e os pés de Vossi estavam novamente sincronizados e ele prestava atenção ao barulho do motor.
— Eu não posso ver, mas você pode?
— Claro.
— Então você pode me orientar!
— Claro! — A voz de Scragger ficou mais urgente. — É lógico que você precisa fazer as perguntas certas. Controle de Kish, HST saindo de trezentos em direção a Siri Três.
— Roger, HST.
— De agora em diante, meu nome é Bart — disse Scragger com uma voz diferente. — Sou um operário de um dos poços. Não entendo nada de vôo, mas posso ler um mostrador, se você me disser onde olhar.
Alegremente, Vossi entrou na brincadeira e fez as perguntas certas, com 'Burt' forçando-o a ir até os limites do seu conhecimento de controle de vôo, dos painéis, de onde estavam os mostradores, obrigando-os a só perguntar aquilo que um amador pudesse entender e responder. De vez em quando, se as perguntas não eram suficientemente precisas, Burt ficava histérico e dizia: Jesus, não consigo encontrar o mostrador, qual é o mostrador, pelo amor de Deus, são todos iguais! Explique de novo, mais devagar, oh, Deus, vamos todos morrer...
Para Vossi, só havia escuridão. O tempo não passava, não havia nem mostradores nem ponteiros que o tranqüilizassem, nada a não ser a voz que o forçava até o limite de sua resistência.
A 15 metros da chegada, com Burt avisando que estavam para pousar, Vossi sentiu-se nauseado, apavorado pela escuridão, sabendo que a pequena pista de pouso estava vindo ao seu encontro. Ainda dá tempo de interromper o pouso, de acelerar e me mandar daqui, mas quanto tempo?
— Agora você está a três metros de altura e a dez metros de distância, como queria.
Imediatamente, Vossi fez o helicóptero flutuar, coberto de suor.
— Perfeito, bem em cima do alvo, como queria.
A escuridão nunca fora tão intensa. Nem o seu medo. Vossi murmurou uma prece. Suavemente, foi diminuindo a potência. Pareceu levar uma vida inteira, e então os esquis tocaram o solo e eles estavam no chão. Por um momento, não acreditou. Seu alívio foi tão intenso que quase chorou de alegria. Depois, de muito longe, ouviu a voz de Scragger e sentiu-o tomar os controles.
— Deixe comigo, cara! Foi uma beleza, Ed. Nota dez. Pode deixar comigo, agora.
Ed Vossi tirou os óculos. Estava ensopado, com o rosto lívido, e escorregou no assento, mal enxergando o que se passava na plataforma diante dele, a pesada rede de corda esticada sobre o campo de pouso que mal tinha trinta metros de diâmetro. Jesus, estou no chão, estamos no chão, em segurança.
Scragger tinha posto o motor em ponto morto; não havia necessidade de desligar já que era uma parada curta. Ele cantarolava 'Waltzing Matilda', o que só fazia quando muito satisfeito. O rapaz saiu-se muito bem, pensou, mas quanto tempo ele vai levar para se recuperar? É sempre bom saber, e ficar alerta — quando se voa com alguém.
Ele se virou e fez um sinal com o polegar para cima para o homem que estava sentando no assento da frente, um dos engenheiros franceses que tinham vindo verificar o equipamento elétrico recentemente instalado neste poço. Os outros passageiros esperavam com paciência. Quatro eram japoneses, convidados dos funcionários e engenheiros franceses da EPF. Scragger tinha ficado inquieto por levar japoneses — trazia-lhe lembranças dos seus dias de guerra, recordações das perdas australianas no Pacífico e dos milhares que morreram nos campos de concentração japoneses e na ferrovia de Burma. Verdadeiros assassinatos, disse a si mesmo sombriamente, depois desviou a atenção para o desembarque.
O engenheiro abrira a porta e agora ajudava os trabalhadores iranianos a retirar a carga. Estava quente e úmido, e enervante, o ar tresandava a fumaça de petróleo. A cabine, como sempre, escaldante, com muita umidade, mas Scragger sentia-se bem. Os motores roncavam normalmente. Ele olhou para Vossi, ainda recostado no assento, com as mãos atrás da cabeça, tentando recuperar-se.
Ele é um bom rapaz, pensou Scragger, em seguida a voz que dominava a cabine atrás dele atraiu-lhe a atenção. Era George de Plessey, chefe dos funcionários franceses e gerente da EPF. Estava sentado no braço de um dos assentos, fazendo mais um dos seus intermináveis discursos, desta vez para os japoneses. Melhor do que eu, pensou Scragger, achando graça. Conhecia Plessey há três anos e gostava dele — por causa da comida francesa que fornecia e pela qualidade do seu bridge, do que ambos gostavam, mas não por sua conversa. Esse pessoal do petróleo é todo igual, só sabem falar de petróleo, e só querem falar disso, e para eles o resto da humanidade só está na terra para consumi-lo, pagar o diabo por ele até a morte — e até os crematórios são quase todos alimentados a óleo. Maldição! O petróleo subiu para US$14,80 o barril, há dois anos custava US$4,80 e alguns anos antes, US$1,80. Malditos saltea-dores, todos eles, a OPEP, as Sete Irmãs, e até o petróleo do mar do Norte.
— Todos estes poços são sustentados por pilares colocados no fundo do mar — dizia de Plessey — todos foram construídos e são operados por franceses...
Usava uma roupa cáqui e tinha cabelos louros e ralos e o rosto queimado de sol. Os outros franceses estavam conversando e discutindo. Isso é tudo o que eles sabem fazer, pensou Scragger, além de comer, beber e dar em cima de tudo quanto é mulher. Como aquele chato do Jean-Luc, o conquistador-mor de todos. Pelo menos, eles são todos diferentes — não como aqueles outros chatos. Os japoneses eram todos baixos, flexíveis e bem-arrumados, todos se vestiam do mesmo jeito: camisa branca de manga curta, gravata escura, calca escura e sapato escuro, os mesmos relógios digitais, óculos escuros; a única diferença estava nas idades. Como as sardinhas de uma lata, pensou Scragger.
— ...A água aqui, como em todo o golfo, é muito rasa, Monsieur Kasigi — dizia de Plessey. — Aqui só chega a trinta metros, e é fácil achar petróleo a cerca de trezentos metros. Temos seis poços nesta parte do campo que chamamos de Siri Três, estão todos em funcionamento, são ligados por oleodutos aos nossos tanques de estocagem na ilha Siri. A capacidade dos tanques é de três milhões de barris e todos os tanques estão cheios.
— E o cais de Siri, Monsieur de Plessey? — Kasigi, o grisalho porta-voz dos japoneses, perguntou, num inglês claro e cuidadoso. — Não consegui vê-lo quando sobrevoamos a ilha.
— Estamos carregando em alto-mar no momento. Planejamos construir um embarcadouro no próximo ano. Enquanto isso, não será problema carregar seus petroleiros, Monsieur Kasigi. Garantimos um serviço rápido, um carregamento rápido. Afinal de contas, somos franceses. Amanhã o senhor verá. O seu Rikomaru se atrasou?
— Não. Estará aqui ao meio-dia. Qual a capacidade deste campo?
— Ilimitada — disse o francês, rindo. — No momento, só estamos retirando 75 mil barris por dia, mas, bon Dieu, no fundo do mar há um lago de petróleo.
— Capitão Excelência! — Na janela ao lado de Scragger apareceu o rosto sorridente do jovem Abdullah Turik, da equipe de bombeiros. — Eu bem, muito bem, o senhor?
— Muito bem, rapaz. E como estão as coisas?
— Estou feliz em vê-lo, capitão Excelência.
Há cerca de um ano, a base de Scragger, em Lengeh, fora alertada de que havia uma emergência neste poço. No meio de uma noite horrível o administrador iraniano comunicara que o bombeiro talvez estivesse com apendicite aguda e perguntava se eles podiam chegar lá o mais rápido possível, assim que amanhecesse — porque os vôos noturnos eram proibidos no Irã, exceto para emergências. Scragger estava de serviço e partira imediatamente — fazia parte da política da companhia ir imediatamente, mesmo com condições precárias de vôo, isto fazia parte do seu serviço especial. Ele tinha apanhado o rapaz, levara-o para o Hospital Naval Iraniano, em Bandar Abbas, e convencera o hospital a aceitá-lo. Se não fosse por isso, o rapaz teria morrido.
Desde então, o rapaz estava sempre ali para cumprimentá-lo, e uma vez por mês, havia sempre uma perna de carneiro na base, por mais que Scragger tentasse impedi-lo por causa da despesa. Uma vez, ele visitou a aldeia, no interior de Lengeh, onde o rapaz nascera. Era como as outras: sem instalações sanitárias, sem eletricidade, sem água, chão de terra, paredes de barro. O Irã era muito primitivo fora das cidades, mas, mesmo assim, ainda melhor do que o interior na maioria dos Estados do golfo. A família de Abdullah era como todas as outras, nem melhor nem pior. Muitos filhos, nuvens de moscas, algumas cabras e galinhas, uns poucos hectares de terra, mas breve, dissera o pai dele, breve vamos ter a nossa própria escola, piloto Excelência, e nosso próprio fornecimento de água e, um dia, eletricidade e, sim, é verdade, estamos muito melhor trabalhando no nosso petróleo que os estrangeiros extraem... graças a Deus por Ele nos ter dado o petróleo. Graças a Deus por ter permitido que meu filho Abdullah vivesse, foi a Vontade de Deus que persuadiu Vossa Excelência a ter tanto trabalho. Deus seja louvado!
— Como vão as coisas, Abdullah? — repetiu Scragger, apreciando o rapaz, que era moderno, diferente do pai.
— Bem. — Abdullah chegou mais perto, colocando o rosto quase do lado de dentro da cabine. — Capitão, disse hesitante, já não sorrindo mais, com a voz tão baixa que Scragger teve de se inclinar para a frente para ouvir. — Vai haver muita confusão, logo... Comunistas de Tudeh, mujhadins, talvez fedayins. Armas e explosivos, talvez um navio em Siri. Perigo. Por favor, não diga quem avisou, sim? — Depois tornou a colocar o sorriso no rosto e falou em voz alta: — Feliz aterrissagem, e torne a voltar logo, aga. — Acenou uma vez e, escondendo o nervosismo, foi se juntar aos outros.
— Claro, claro, Abdullah. — murmurou Scragger. Havia um certo número de iranianos observando, mas isso era comum. Os pilotos eram apreciados por serem o único elo de ligação em uma emergência. Viu o chefe de pouso dar o sinal com os polegares. Automaticamente, virou-se e checou se tudo estava trancado e se todos estavam de volta a seus lugares.
— Posso pilotar, Ed?
— Claro, Scrag.
A trezentos metros de altura, Scrag nivelou o aparelho, rumando para Siri Um, onde os outros passageiros deveriam desembarcar. Estava muito perturbado. Atirem pedras nos corvos, pensou. Uma bomba poderia fazer Siri Um explodir dentro do golfo. Era a primeira vez que havia qualquer rumor de problemas. O campo de Siri nunca fora afetado por nenhuma das greves que tinham fechado todos os outros campos, principalmente, conforme acreditavam os estrangeiros, porque a França dera asilo a Khomeini.
Sabotagem? O japonês não disse que amanhã chegaria um petroleiro? Sim, disse. O que fazer? Nada, no momento, apenas deixar Abdullah de lado por algum tempo — agora não é hora, não quando se está pilotando.
Olhou para Vossi. Ed saiu-se bem, muito bem, melhor do que... melhor do que quem? Sua mente percorreu todos os pilotos que treinara nesses anos. Centenas. Voava desde os 15 anos; em 1933, na Real Força Aérea Australiana, com 17 anos, Spitfires em 1939, como tenente da Aeronáutica, depois, em 1945, nos helicópteros e, em 1949, Coréia, saindo depois de vinte anos de serviço, ainda como tenente, ainda brigão, e com apenas 37 anos. Ele riu. Na Força Aérea estava sempre sendo repreendido.
— Pelo amor de Deus, Scragger, porque logo com o vice-almirante? Desta vez você se excedeu...
— Mas Wingco, foi o inglês quem começou, o filho da mãe disse que todos nós, australianos, éramos ladrões, tínhamos marcas de correntes em volta dos pulsos, e descendíamos de condenados!
— Ele disse? Esses malditos ingleses são todos iguais, Scrag, embora ele provavelmente tenha razão no seu caso, já que sua família sempre esteve na Austrália, mas mesmo assim você vai perder outra vez a promoção e se não se comportar vou impedir você de voar para sempre.
Mas nunca o fizeram. Como poderiam? Várias condecorações, 16 mortes, e três vezes mais missões, alegremente aceitas, do que qualquer outro em toda a RAAF. E ainda estava voando, que era tudo o que ele queria no mundo, ainda estava tentando ser o melhor e o mais prudente, e ainda querendo sair de uma situação de perigo com todos os passageiros a salvo. Se você pilota helicópteros, não pode ter falhas técnicas, pensou, sabendo que tivera sempre muita sorte. Não como alguns, tão bons pilotos quanto ele, que tinham dado azar. Você tem de ter sorte para ser um bom piloto.
Tornou a olhar para Vossi, contente de que não houvesse uma guerra, que era o maior campo de provas para um piloto. Não gostaria de perder o jovem Ed, ele é um dos melhores da S-G. Agora, qual foi o melhor dentre os que voaram com você? Charlie Pettikin, é claro, mas esse tinha mesmo de ser, fora piloto de táxi aéreo e passara por muitos apertos. Tom Lochart a mesma coisa. O sujo do Duncan McIver ainda é o melhor de todos, mesmo estando no chão, ele que vá para o inferno com o seu maldito exame médico trimestral — mas eu seria tão duro e tão cuidadoso com ele, se eu é que estivesse no chão e ele estivesse voando por aí aos 63 anos como se fosse um filhote de passarinho. Coitado.
Scragger deu de ombros. Se o DAC adotar os novos regulamentos a respeito de idade e aposentadoria obrigatória, estou frito. No dia em que não puder mais voar, vou para o céu, não há nenhuma dúvida quanto a isso.
Ainda faltava bastante para chegar a Siri Um. Pousava lá três vezes por semana, há mais de um ano. Mesmo assim, programava cada descida como se fosse a primeira vez. A segurança não é um acaso, precisa ser planejada, pensou.
— Hoje faremos um pouso bem suave em...
— Scrag.
— Sim, meu filho?
— Você me deu um susto dos diabos.
— Você deu um susto dos diabos em si mesmo, esta é a lição número um — disse rindo. — O que mais você aprendeu?
— Acho que aprendi como é fácil entrar em pânico, como você se sente solitário, impotente, e aprendi a abençoar os meus olhos. — Vossi disse quase gritando: — Acho que aprendi o quanto sou mortal, porra. Cristo, Scrag, eu fiquei com medo... me cagando de medo.
— Quando isso aconteceu comigo eu sujei as calças.
— Hein?
— Eu estava voando perto do Kuwait, num 47G2, nos velhos tempos, na década de sessenta. — O 47G2 era um Bell pequeno, de três lugares, com motor a explosão e a forma de uma bolha, que agora é usado pela polícia e para controle do tráfego. — O helicóptero fora alugado por um médico e por um engenheiro da ExTex. Eles queriam ir a um oásis, depois de Wafrah, onde tinham uma emergência. Um pobre infeliz enfiara a perna numa perfuratriz. Bem, estávamos voando sem as portas, como é comum no verão, fazia uns quarenta graus, um tempo seco e desagradável tanto para homens quanto para helicópteros, como só o deserto tem, pior do que o nosso deserto lá na Austrália, muito pior, mas eles nos prometeram pagamento em dobro e uma gratificação extra, então o meu velho camarada, Forsyth, me apresentou como voluntário. Não era um dia muito ruim em se tratando de desertos, Ed, embora os ventos fossem quentes e traiçoeiros, você sabe, o normal: súbitas ventanias que levantavam nuvens de areia, formando perigosos redemoinhos. Eu estava a uns cem metros, descendo, quando fomos atingidos pela nuvem de areia — uma areia tão fina que você mal pode vê-la. Só Deus sabe como foi que ela entrou nos meus óculos de vôo, mas num instante nós estávamos bem e no outro tossíamos e cuspíamos e meus olhos estavam tão cheios de areia que eu fiquei mais cego que um velho pirata da perna de pau.
— Você está brincando!
— Não, é verdade. Juro por Deus! Não conseguia ver nada, não podia abrir os olhos, e era o único piloto, com dois passageiros a bordo.
— Jesus, Scrag, os dois olhos?
— Os dois olhos, e nós ficamos balançando entre o céu e o inferno até que consegui nivelar um pouco o avião e acalmar o coração. O médico não conseguia tirar a areia, e toda a vez que ele tentava ou que eu tentava, nós quase virávamos de barriga para cima... você sabe como o G2 é sensível. Eles estavam tão em pânico quanto eu e isso não ajudava nem um pouco. Foi quando compreendi que a única chance que nós tínhamos era pousar daquele jeito, cego. Você disse que quase se cagou de medo, bem, quando encostei o helicóptero no chão, eu estava todo cagado.
— Jesus, Scrag, você conseguiu mesmo pousar? Como hoje, mas de verdade, com os dois olhos cheios de areia? De verdade?
— Fiz eles me ajudarem a descer, como fiz com você hoje. Pelo menos o médico me ajudou, o outro infeliz tinha desmaiado. — Os olhos de Scragger não tinham se afastado nem por um instante do círculo de pouso. — Como está lhe parecendo?
— Sem grandes dificuldades. — Siri Um estava bem à frente, com a plataforma flutuando no meio da água. Podiam ver o chefe de pouso ladeado por sua equipe de bombeiros obrigatória. A biruta estava cheia pela metade e firme.
Normalmente, Scragger se comunicaria com o radar e começaria a descida gradualmente. Ao invés disso, ele disse:
— Vamos permanecer no alto, hoje, cara, vamos nos aproximar pelo alto e depois deixá-lo cair direto.
— Por que, Scrag?
— Para variar.
Vossi franziu a testa mas não disse nada. Tornou a verificar os mostra-dores para ver se estava tudo em ordem. Estava tudo bem. Exceto uma ligeira estranheza no velho.
Quando estavam em posição lá no alto, sobre a plataforma, Scragger ligou o transmissor:
— Radar de Kish, HST, saindo de trezentos metros em direção a Siri Um.
— OK, HST. Avise quando estiver pronto para iniciar.
— HST.
Na plataforma, estavam preparados para uma aproximação em ângulo inclinado, usada normalmente quando o local de pouso era cercado por edifícios altos, árvores ou mastros. Scragger diminuiu a potência na medida exata. O helicóptero começou a descer suavemente, perfeitamente controlado. Trezentos, 250, 200, 150, 100... Os dois sentiram a vibração nos controles ao mesmo tempo.
— Jesus — murmurou Vossi, mas Scragger já tinha virado o nariz do aparelho para baixo e empurrado a alavanca de controle. Imediatamente, o aparelho começou a descer muito depressa. Sessenta metros, 50, 40, com as vibrações aumentando. Os olhos de Vossi pulavam de um mostrador para o outro, para o círculo de pouso, e outra vez para os mostradores. Ficou rígido no assento, a mente gritando: A cauda do rotor pifou ou a caixa de engrenagens da cauda...
A plataforma de pouso se aproximava rapidamente, a equipe de terra espalhando-se em pânico, os passageiros segurando-se assustados com a descida vertiginosa, Vossi agarrado ao assento para não perder o equilíbrio. Agora, o painel inteiro vibrava e o ruído do motor estava diferente. A qualquer segundo esperava que perdessem completamente a cauda do rotor e aí estariam perdidos. O altímetro marcou 60 metros... 15... 10... 5, e Vossi estendeu as mãos para agarrar os controles e iniciar o balão, mas Scragger se antecipou a ele por uma fração de segundos, deu força total do motor e fez um balão perfeito. Por um instante, o aparelho pareceu ficar pousado, imóvel, no ar, a um metro de altura, com os motores guinchando, depois tocou no chão com força, mas não com muita força, perto da borda do círculo, deslizou para a frente e parou a dois metros do centro.
— Foda — resmungou Scragger.
— Jesus, Scrag — Vossi quase não conseguia falar. — Foi perfeito.
— Oh, não, não foi não. Errei por dois metros. — Com algum esforço, Scragger largou os controles. — Desligue o motor, Ed, o mais depressa que puder! — Abriu a porta e desceu depressa, com o vento das pás chicoteando-o, foi até a porta da cabine e abriu-a. — Fiquem onde estão por um instante — gritou sobre o barulho do motor, aliviado em ver que todos estavam com cintos de segurança e que ninguém se machucara. Obedientemente, eles ficaram onde estavam, dois deles com o rosto cinzento. Os quatro japoneses olharam impassíveis para ele. Gente de sangue-frio, pensou.
— Mon Dieu — gritou George de Plessey. — O que foi que aconteceu?
— Não sei, acho que é a cauda do rotor... assim que o rotor parar nós..
— Que diabo você pretende, Vossi! — Era Ghafari, o administrador iraniano, que tinha enfiado a cara na janela do piloto, tensa de raiva. — Como ousou fazer um exercício de pouso aqui neste poço? Vou denunciá-lo por voar perigosamente!
— Era eu que estava pilotando e não o capitão Vossi! — Disse Scragger e, de repente, o enorme alívio por ter descido em segurança, misturado com o ódio que sentia por aquele homem fez seu temperamento explodir. — Suma-se Ghafari, suma-se ou acabo com você de uma vez por todas! — Levantou os punhos, pronto para brigar. — DESAPAREÇA!
Os outros olhavam, estarrecidos. Vossi pálido. Ghafari, mais alto e mais pesado que Scragger, hesitou e depois sacudiu o punho na cara de Scragger, xingando-o em farsi, em seguida gritou em inglês, querendo provocá-lo:
— Porco estrangeiro! Como você ousa me xingar, me ameaçar? Vou fazer com que você seja proibido de pilotar por vôo perigoso e seja expulso do Irã. Vocês, seus cães, pensam que são os donos do nosso céu...
Scragger deu um pulo para a frente, mas Vossi colocou-se rápido entre eles e bloqueou o golpe com seu peito largo.
— Você não está sabendo de nada, cara. Ei, sinto muito, Scrag, mas precisamos dar uma olhada na cauda do rotor, Scrag, Scrag, meu velho, a cauda do rotor!
Scrag levou alguns segundos para se acalmar. Seu coração estava disparado e ele viu todo mundo olhando para ele. Com um grande esforço, conseguiu controlar a raiva.
— Você... você tem razão, Ed. — Depois virou-se para Ghafari. — Nós tivemos uma... uma emergência. — Ghafari começou a zombar e a raiva de Scragger tornou a subir, mas desta vez ele a controlou.
Eles foram para a popa. Muitos operários do poço, europeus e iranianos, se comprimiam em volta deles. A cauda do rotor parou. Faltava quase um metro em uma das lâminas, numa falha irregular. Quando Vossi experimentou o suporte principal viu que ele estava completamente solto — a tremenda torção causada pelo desequilíbrio das lâminas o destroçara. Atrás dele, um dos passageiros andou até a beirada da plataforma e vomitou violentamente.
— Jesus — murmurou Vossi — poderia parti-lo com um dedo. Ghafari rompeu o silêncio com seus protestos.
— Um caso claro de manutenção malfeita, pondo em perigo as vi...
— Cale a boca, Ghafari — falou de Plessey, zangado. — Merde, estamos todos vivos e devemos nossas vidas ao capitão Scragger. Ninguém poderia prever uma coisa dessas, os padrões da S-G são os mais altos do Irã.
— Isto será comunicado, sr. de Plessey e...
— Por favor, faça isto, e lembre-se de que eu recomendarei o capitão por sua perícia. — De Plessey estava imponente na sua raiva. Ele detestava Ghafari, considerava-o um criador de casos, abertamente pró-Khomeini numa hora, incitando os trabalhadores a fazerem greve, desde que não houvesse nenhuma polícia ou força militar pró-xá nas vizinhanças, e em seguida servilmente pró-xá, punindo os operários pela menor infração. Porco estrangeiro, hein? — Lembre-se também de que este é um consórcio franco-iraniano e a França, como posso dizer, a França não foi hostil ao Irã na sua hora de necessidade.
— Então o senhor deveria insistir para que Siri fosse atendido apenas por franceses e não por velhos! Vou comunicar este incidente imediatamente. — Ghafari retirou-se.
Antes que Scragger pudesse dizer ou fazer alguma coisa, de Plessey pôs as mãos nos ombros dele e beijou-o em ambas as faces, além de apertar-lhe a mão com o mesmo calor.
— Obrigado, mon cher ami! — Houve aplausos calorosos dos franceses que davam parabéns uns aos outros e rodeavam Scragger, abraçando-o respeitosamente. Depois Kasigi deu um passo à frente.
— Domo — disse com formalidade, e para maior embaraço de Scragger, os quatro japoneses curvaram-se diante dele ao mesmo tempo, sob mais aplausos dos franceses e muitos tapas nas costas.
— Obrigado, capitão — Kasigi repetiu, ainda formal. — Sim, nós entendemos e agradecemos. — Aí sorriu e ofereceu-lhe seu cartão com as duas mãos e mais uma curvatura. — Yoshi Kasigi, Indústrias Toda de Navegação. Obrigado.
— Não foi assim tão difícil, sr., ahn, sr. Kasigee — disse Scragger, tentando vencer o embaraço, já tendo dominado a raiva, recuperando o controle, embora prometesse a si mesmo que um dia desses pegaria Ghafari sozinho. — Nós temos, ahn, nós temos equipamento próprio para flutuar, tínhamos muito espaço e poderíamos ter descido na água. É o nosso trabalho. O nosso trabalho é colocar o aparelho no chão em segurança. O Ed... — Sorriu cordialmente para Vossi, sabendo que ao se meter no meio, o rapaz o salvara de um adversário que ele não poderia vencer. — O capitão Vossi teria feito a mesma coisa. Facilmente. Não foi das piores... eu só quis poupá-los de se molharem, embora a água esteja quente e boa, mas nunca se sabe, pode haver tubarões...
A tensão se quebrou e todos riram, embora um tanto nervosamente, pois a maior parte do golfo e das desembocaduras dos rios que o alimentavam estava infestada por tubarões. As águas mornas e a abundância de restos de comida e esgoto não tratado que os povos do golfo despejavam nele, há milênios, encorajavam os peixes de todas as espécies. Especialmente tubarões. E como todos os restos de comida e dejetos humanos das plataformas eram atirados nas águas, os tubarões costumavam ficar por perto.
— O senhor já viu algum bem grande, capitão?
— Sem dúvida. Um tubarão-martelo que se escondia ao largo da ilha Kharg. Fiquei sediado lá por dois anos e costumava vê-lo uma ou duas vezes a cada dois ou três meses. Devia ter uns oito, talvez dez metros. Já vi muitas arraias gigantescas, mas esse foi o único tubarão realmente grande.
— Merde a todos os tubarões — disse de Plessey estremecendo. — Quase fui apanhado uma vez em Siri e estava, como é que vocês dizem mesmo, ah, sim, estava molhando os pés no rasinho, mas o tubarão veio para o raso atrás de mim e veio tão depressa que encalhou. Tinha uns três metros de comprimento. Demos seis tiros nele, mas o bicho ainda saltou e tentou nos pegar e levou horas para morrer e mesmo depois que morreu nenhum de nós queria chegar perto dele. Tubarões! — Tornou a olhar para a lâmina partida. — Fico satisfeito por estar na plataforma.
Todos concordaram. Os franceses começaram e conversar, gesticulando, dois foram descarregar umas cestas e um outro foi ajudar o homem que ainda estava vomitando. Riggers foi dar uma volta. Os japoneses esperavam e observavam.
— Só para dar sorte, hein, Scrag? — disse Vossi, tocando supersticiosamente na lâmina.
— Por que não? Para sorte sua e dos passageiros, foi um bom pouso.
— O que foi que causou o defeito? — perguntou de Plessey.
— Não sei, cara — respondeu Scragger. — Havia um bando de pequenos pássaros marinhos em Siri Três, andorinhas-do-mar, eu acho. Um deles pode ter entrado no rotor e causado um ponto de tensão. Não senti nada, mas não daria mesmo para sentir. Sei que o rotor estava perfeito esta manhã porque nós o checamos como fazemos rotineiramente. — E deu de ombros. — Ato de Deus.
— Oui. Espèce de con! Não gosto de estar assim tão perto de um ato de Deus. — Franziu a testa ao olhar para a plataforma de decolagem. — Um 206 ou um Alouette poderia pousar aqui para nos apanhar?
— Vamos mandar buscar um outro 212 e estacionar o nosso pássaro daquele lado. — Scragger apontou para a parte de dentro da plataforma de decolagem, perto da pilha alta que o guindaste ia formando. — Temos rodas no nosso compartimento de bagagem, de modo que não será nenhum esforço nem vai significar nenhum atraso para vocês.
— Ótimo. Então vamos deixar as providências com você. Os outros venham comigo — disse de Plessey, com ar de importância. — Acho que precisamos de um pouco de café e de um copo de Chablis gelado.
— Pensei que todos os poços estivessem sujeitos à lei seca — disse Kasigi.
De Plessey levantou as sobrancelhas.
— E estão, monsieur. É claro. Os iranianos e os não franceses. É claro. Mas os nossos poços são franceses e estão sujeitos ao Código Napoleão. — E acrescentou grandiosamente: — Devemos celebrar a nossa chegada em segurança, e hoje vocês são convidados da Belle France, então podemos ser civilizados e quebrar o regulamento. Para que servem os regulamentos a não ser para serem quebrados? É claro. Vamos logo, depois iniciaremos a visita e ouviremos as explicações.
Todos o seguiram, exceto Kasigi.
— E o senhor, capitão? — perguntou. — O que é que o senhor vai fazer?
— Vamos esperar. O helicóptero trará peças sobressalentes e mecânicos — disse Scragger, pouco à vontade, não gostando de estar tão perto de um japonês, incapaz de apagar a lembrança de tantos amigos mortos na guerra, tão jovens, com ele ainda vivo, além da pergunta constante, incômoda, por que eles e não eu? — Vamos esperar até que seja consertado, depois iremos para casa. Por quê?
— E quando será isto?
— Antes do pôr-do-sol. Por quê?
— Com a sua permissão, gostaria de regressar com o senhor. — E Kasigi tornou a olhar para a lâmina.
— Isto... isto depende do capitão Vossi. Oficialmente, ele é o comandante desta aeronave. — Kasigi voltou sua atenção para Vossi. O jovem piloto conhecia a antipatia de Scragger pelos japoneses, mas não podia entendê-la. Pouco antes de levantarem vôo, ele dissera: "Que diabo, Scrag, a Segunda Guerra Mundial foi há um milhão de anos. O Japão é nosso aliado agora, o único aliado importante que temos na Ásia." Mas Scragger respondera: "Deixe isto para lá, Ed." E Ed deixara.
— Era melhor, era melhor o senhor voltar com os outros, sr. Kasigi, é impossível dizer quanto tempo vamos demorar.
— Helicópteros me põem nervoso. Prefiro voar com vocês, se não se importarem. — Kasigi tornou a olhar para Scragger, olhos duros no rosto marcado. — Foi uma situação difícil. O senhor quase não teve tempo, no entanto o senhor virou a menos de cem metros e fez um pouso perfeito, bem na mosca. Foi incrível. Incrível. Uma coisa eu não entendo: por que o senhor estava tão alto na hora da descida? — Percebeu o olhar que Vossi lançou a Scragger. Ah, pensou, você também está se perguntando isso. — Não há nenhum motivo num dia como este, há?
— O senhor pilota helicópteros? — E Scragger encarou-o, ainda mais nervoso.
— Não, mas já voei neles o suficiente para saber quando há complicações. O meu negócio são os petroleiros e, portanto, os campos de petróleo, aqui no Golfo, no Iraque, na Líbia, no Alasca, em toda parte, e até mesmo na Austrália. — Kasigi deixou que o ódio passasse por ele. Estava acostumado com isso. Sabia o motivo, pois agora fazia muitos negócios na Austrália, muitos mesmo. Uma parte do ódio era merecida. Uma parte. Não importa, os australianos vão mudar, vão ter que mudar. Afinal de contas, nós controlamos uma parte considerável de suas matérias-primas e logo controlaremos muito mais. É curioso que consigamos fazer economicamente com tanta facilidade o que não conseguimos fazer militarmente. — Por favor, por que o senhor escolheu uma aproximação pelo alto hoje? Numa aproximação normal, estaríamos agora no fundo do mar. Por quê?
Scragger deu de ombros, querendo terminar a conversa.
— Chefe — perguntou Vossi —, por quê?
— Sorte.
— Se o senhor me permite — Kasigi deu um meio-sorriso —, eu gostaria de voar de volta com o senhor. Uma vida por uma vida, capitão. Por favor, guarde meu cartão. Talvez um dia eu possa prestar-lhe algum serviço. — Inclinou-se respeitosamente e se afastou.
11:56H. — Explosivos em Siri, Scrag? — de Plessey estava chocado.
— Pode haver — respondeu Scragger, também em voz baixa. Estavam na extremidade da plataforma, bem longe de todo mundo, e ele acabara de contar a de Plessey o que Abdullah lhe sussurrara.
O segundo 212 já estava lá há algum tempo, esperando as ordens de Plessey para levar seu grupo até Siri, onde almoçariam. Os mecânicos tinham retirado a maior parte da cauda do 212 de Scragger e concluíram o conserto, com Vossi observando atentamente. O novo rotor e a caixa de engrenagens já estavam no lugar.
— Explosivos podem ser colocados em qualquer lugar, em qualquer lugar.
— Disse de Plessey, com desânimo. — Até uma quantidade pequena de explosivos bastaria para arruinar todo o nosso sistema de bombeamento. Madonna, seria um plano perfeito para diminuir ainda mais as chances de Bakhtiar, ou de Khomeini, de fazer a situação voltar ao normal.
— Sim. Mas tenha cuidado ao usar esta informação e, pelo amor de Deus, guarde-a só para você.
— É claro. Este homem estava em Siri Três?
— Em Lengeh.
— Hein? Então por que não me disse isso de manhã?
— Não houve tempo. — Scragger olhou em volta, para ter certeza de que não havia ninguém por perto. — Tenha cuidado, faça o que fizer. Esses fanáticos não dão um vintém por nada nem por ninguém e se eles acharem que vazou alguma informação, que alguém deu com a língua nos dentes, haverá cadáveres flutuando daqui até Ormuz.
— Concordo. — De Plessey estava muito preocupado. — Você contou a mais alguém?
— Não, companheiro.
— Mon Dieu, o que fazer? A segurança é... como é possível ter segurança no Irã? Gostando ou não estamos em poder deles. — E acrescentou: — Mais uma vez, obrigado. Tenho que confessar que estava esperando que houvesse sabotagem em Kharg e em Abadan, interessa aos esquerdistas criar ainda mais confusão, mas nunca pensei que viessem para cá.
Pensativamente, debruçou-se na grade e olhou o mar que batia nas pilastras da plataforma. Os tubarões estavam circulando e se alimentando. Agora temos terroristas a nos ameaçar. Os tanques e as bombas de Siri são um bom alvo para sabotagem. E se causarem algum dano a Siri, perderemos anos de planejamento, anos de petróleo de que a França necessita desesperadamente. Petróleo que talvez tenhamos de comprar dos ingleses fedorentos e dos seus campos fedorentos do mar do Norte — como ousam ter tanta sorte com seus 1,3 milhões de barris por dia, e que continuam aumentando?
Por que não existe petróleo nas nossas costas ou na Córsega? Os malditos ingleses com sua hipócrita filosofia de vida! De Gaule estava certo em mantê-los fora da Europa, e agora que nós — porque temos bom coração — os aceitamos, mesmo sabendo que são uns filhos da mãe mentirosos, eles não querem partilhar sua sorte conosco, seus sócios. Só fingem estar junto conosco no MCE, mas sempre foram contra nós e sempre vão ser. O Grande Charles tinha razão sobre eles, mas estava inteiramente enganado a respeito da Argélia. Se nós ainda tivéssemos a Argélia, seu solo e portanto seu petróleo, estaríamos ricos, satisfeitos, com a Inglaterra e a Alemanha e todo o resto lambendo os nossos pés
E agora, o que fazer?
Ir para Siri e almoçar. Depois do almoço você vai raciocinar melhor Graças a Deus ainda conseguimos arranjar mantimentos em Dubai, Sharjah e Al Shargaz que continuam sensatos e civilizados: Brie, Camembert, Boursin, alho e manteiga frescos, vindos diariamente da França, e vinho de verdade sem o qual era melhor estar morto. Bem, quase, acrescentou cautelosamente e viu Scragger olhando para ele Sim, mon brave? Estou perguntando o que você vai fazer?
— Ordenar um exercício de segurança — respondeu majestosamente. — Tinha me esquecido da cláusula 56/976 do nosso contrato franco-iraniano que diz que a cada seis meses, por um período de alguns dias, a segurança deve ser checada contra todos os tipos de intrusos para.... para a glória da França e, ahn, do Irã! — Os belos olhos de de Plessey se iluminaram com a beleza do seu discurso. — Sim, é claro que meus subordinados se esqueceram de me lembrar, mas agora vamos nos dedicar aos exercícios com um perfeito entusiasmo francês. Em toda parte, em Siri, nas plataformas, em terra, até em Lengeh! Les crétins! Como ousam pensar que podem sabotar o trabalho de anos? — Olhou em volta. Ainda não havia ninguém por perto. O resto do grupo reunia-se agora perto do segundo 212. — Terei de contar a Kasigi por causa do seu petroleiro — disse em voz baixa. — O alvo poderia ser esse.
— Pode confiar nele? Quer dizer, para fazer tudo em segredo.
— Sim. Somos obrigados, mon ami. Temos que avisá-lo, sim, temos que fazer isso. — De Plessey sentiu o estômago roncando. Meu Deus, pensou, muito perturbado, espero que seja apenas fome e que eu não esteja para ter um ataque de fígado, embora isso não me espantasse, depois de tudo o que aconteceu hoje. Primeiro quase tivemos um acidente, depois nosso piloto mais importante quase briga com aquele barril de merda do Ghafari, e agora a revolução pode chegar até nós. — Kasigi perguntou se podia voltar com vocês. Quando estarão prontos?
— Antes do entardecer, mas ele não precisa esperar por nós, pode voltar com você.
— Entendo por que você não gosta de japoneses. Eu ainda não consigo suportar os alemães. Mas precisamos ser práticos. Ele é um bom freguês e já que pediu, gostaria que você, você, ahn, pedisse a Vossi para levá-lo, mon cher ami. Sim, agora somos amigos íntimos, você salvou nossas vidas, e partilhamos de um Ato de Deus! E ele é um dos nossos melhores fregueses — acrescentou com firmeza. — Muito bem. Obrigado, mon ami. Vou deixá-lo em Siri. Quando estiverem prontos, podem apanhá-lo lá. Conte-lhe o que acabou de me contar. Excelente, então está resolvido, e fique certo de que vou recomendá-lo às autoridades e ao próprio senhor Gavallan. — Tornou a sorrir. — Estou indo, até amanhã.
Scragger observou-o afastar-se. Praguejou silenciosamente. De Plessey era o chefão, logo não havia nada que pudesse fazer e naquela tarde, a caminho de Siri, sentou-se atrás na cabine, suando e detestando estar ali.
— Jesus, Scrag, — dissera Vossi, estarrecido, quando ele lhe comunicou que viajaria atrás. — Passageiro? Você está bem? Tem certeza de...
— Eu só quero ver como é — Scragger respondera, irritado. — Ponha seu rabo no assento do comandante, apanhe aquele chato em Siri e pouse o aparelho como uma pluma em Lengeh ou isto estará no seu maldito relatório.
Kasigi estava esperando na pista. Não havia nenhuma sombra e ele se sentia encalorado, suado e empoeirado. As dunas estendiam-se em direção aos oleodutos e ao complexo de tanques, todos marrons de poeira. Scragger observou os demônios da poeira, pequenos redemoinhos, dançando no solo, e agradeceu às estrelas por poder voar e não ter que trabalhar num lugar daqueles. Sim, os helicópteros são barulhentos e estão sempre vibrando e se desgarrando, pensou, mas sinto falta das alturas, de voar sozinho nos céus, mergulhando, virando de cabeça para baixo e caindo como uma águia para tornar a subir — mas voar é voar e continuo detestando ficar sentado nesta maldita cabine. Pelo amor de Deus, aqui ainda é pior do que em um avião de carreira! Detestava voar sem os controles e nunca se sentia seguro e seu desconforto aumentou quando fez sinal a Kasigi para sentar-se a seu lado e bateu a porta do aparelho. Os dois mecânicos cochilavam nos bancos em frente, os macacões brancos manchados de suor. Kasigi ajustou o colete salva-vidas e apertou o cinto de segurança.
Uma vez lá em cima, Scragger inclinou-se para ele.
— Não há outra maneira de contar-lhe a não ser bem depressa, então lá vai: pode haver um ataque terrorista a Siri, a uma das plataformas, talvez até ao seu navio. De Plessey pediu-me para avisá-lo.
O ar saiu sibilando da boca de Kasigi.
— Quando? — perguntou, por cima do terrível barulho da cabine.
— Não sei. Nem de Plessey. Mas é mais do que possível.
— Como? Como vão sabotar-nos?
— Não faço idéia. Com armas ou explosivos, talvez com uma bomba-relógio, então é melhor aumentar o esquema de segurança.
— Já é o melhor possível — respondeu Kasigi, imediatamente, e então viu o lampejo de raiva nos olhos de Scragger. Por um segundo não conseguiu imaginar a razão, depois lembrou-se do que acabara de dizer. — Ah, sinto muito, capitão. Não quis parecer orgulhoso. É que mantemos padrões muito altos, e nesta águas meus navios estão... — Quase dissera 'em pé de guerra', mas parou a tempo, contendo a irritação por causa da sensibilidade do outro. — Nestas águas, todo mundo é mais do que cuidadoso. Por favor, desculpe-me.
— De Plessey queria que o senhor soubesse. E também que conservasse a boca fec... que mantivesse segredo, para não irritar nenhum iraniano.
— Compreendo. A informação está bem guardada. Mais uma vez obrigado. — Kasigi viu Scragger balançar ligeiramente a cabeça e depois acomodar-se no assento.
Também teve vontade de balançar a cabeça e dar tudo por encerrado, mas como o australiano salvara a vida dos seus companheiros bem como a sua própria, permitindo, portanto, que pudessem continuar servindo à companhia e ao seu líder, Hiro Toda, achou que era seu dever tentar cicatrizar as feridas.
— Capitão — disse o mais baixo que pôde devido ao barulho dos jatos —, compreendo por que nós, japoneses, somos odiados pelos australianos e peço desculpas por todos os Changis, todas as estradas de Burma, e todas as atrocidades. Só posso lhe dizer a verdade: esses fatos são ensinados em nossas escolas e não foram esquecidos. É motivo de vergonha nacional que tenham acontecido.
É verdade, pensou, zangado. Cometer aquelas atrocidades foi estúpido, mesmo que aqueles idiotas não entendessem que estavam cometendo atrocidades — afinal de contas, na maioria dos casos, o inimigo era covarde, renderam-se covardemente aos milhares, perdendo, portanto, o direito de serem tratados como seres humanos de acordo com o nosso Bushido, o nosso código, que determina que render-se é a maior desonra que pode haver para um soldado. Uns poucos erros cometidos por alguns sádicos, por alguns guardas das prisões camponeses e ignorantes — geralmente coreanos comedores de alho — e todos os japoneses tiveram que sofrer as conseqüências para sempre. É uma vergonha para o Japão. E a pior das vergonhas é que nosso líder supremo na guerra faltou ao seu dever e forçou nosso imperador à vergonha de ser obrigado a terminar a guerra.
— Por favor, aceite as minhas desculpas em nome de todos nós. — Scragger olhou-o. Depois de uma pausa disse simplesmente:
— Desculpe, mas não posso. Em primeiro lugar, meu antigo sócio, Forsyth, foi o primeiro homem a entrar em Changi; ele nunca se recuperou do que viu; em segundo lugar, muitos dos meus conterrâneos, não apenas prisioneiros de guerra, foram atingidos. Muitos mesmo. Não posso esquecer. E mais do que isso, não quero esquecer. Não quero, porque se o fizesse esta seria nossa última traição para com eles. Nós os traímos, a todos, na paz... que paz? Nós os traímos, é o que eu acho. Sinto muito, mas é isso.
— Eu compreendo. Mesmo assim podemos fazer as pazes, você e eu. Não?
— Talvez. Talvez com o tempo.
Ah, tempo, pensou Kasigi, confuso. Hoje estive mais uma vez à beira da morte. Quanto tempo nós teremos, você e eu? O tempo não é uma ilusão e toda a vida apenas uma ilusão dentro de ilusões? E a morte? O poema de morte do seu reverenciado ancestral samurai resumia-a perfeitamente: O que são as nuvens, / Senão uma desculpa para o céu? / O que é a vida, / Senão uma fuga da morte?
O ancestral era Yabu Kasigi, daimio de Izu e Baka e partidário de Yoshi Toronaga, o primeiro e o maior dos xoguns Toronaga, que governaram hereditariamente o Japão de 1603 até 1871, quando o imperador Meiji finalmente eliminou o xogunato e declarou ilegal a classe dos samurais. Mas Yabu Kasigi não era lembrado pela lealdade a seu senhor feudal nem pela coragem em batalha — como o era seu famoso sobrinho Omi Kasigi, que lutou por Toronaga na grande batalha de Sekigahara, teve a mão arrancada mas ainda assim comandou o ataque que derrotou o inimigo.
Oh, não, Yabu traiu Toronaga, ou tentou traí-lo, e então recebeu dele a ordem de cometer sepuku — a morte ritual por desventramento. Yabu era reverenciado pela caligrafia do seu poema de morte e pela coragem com que cometeu sepuku. Naquele dia, ajoelhando-se diante dos samurais reunidos, dispensou desdenhosamente o samurai que ficaria em pé atrás dele, com uma longa espada, para terminar mais depressa sua agonia cortando-lhe a cabeça, poupando-o, assim, da vergonha de gritar. Ele apanhou a faca curta e enfiou-a até o cabo no estômago, então, lentamente, fez os quatro cortes, a mais difícil forma de sepuku — para o lado e para baixo, novamente para o lado e para cima — depois arrancou suas próprias entranhas para finalmente morrer, sem ter dado um único grito.
Kasigi estremeceu só de pensar em ter que fazer o mesmo, sabendo que não teria coragem. A guerra moderna não era nada em comparação com aquela época em que se podia receber ordem para morrer assim, por um capricho do seu senhor...
Percebeu que Scragger o observava.
— Também estive na guerra — disse involuntariamente. — Voei em Zeros na China, Malásia e Indonésia. E na Nova Guiné. A coragem na guerra é diferente da... da coragem quando se está sozinho... quer dizer, não em guerra, não é?
— Não compreendo.
Há anos que não recordava a guerra, pensou Kasigi, com uma súbita onda de medo envolvendo-o, lembrando-se do terror constante de morrer ou de ficar aleijado, um terror que o consumira — como hoje, quando teve certeza que todos iam morrer e ele e seus companheiros ficaram paralisados de medo. Sim, e fizemos hoje o que fizemos, durante todos aqueles anos de guerra: lembramos do legado da Terra dos Deuses, engolimos nosso terror como nos ensinaram desde a infância, simulamos calma e equilíbrio para não nos envergonharmos diante dos outros, cumprimos nosso dever para com o imperador enfrentando o inimigo o melhor que pudemos e então, quando ele disse que nos rendêssemos, rendemo-nos, dando graças ao imperador, por maior que fosse a vergonha.
Uns poucos acharam a vergonha insuportável e se mataram da forma antiga, com honra. Será que perdi a honra porque não o fiz? Nunca. Obedeci ao imperador que nos ordenou suportar o insuportável, depois entrei para a firma do meu primo, como me ordenaram, e o tenho servido lealmente para maior glória do Japão. Das ruínas de Yokohama, ajudei a reconstruir as Indústrias Toda de Navegação e a transformá-la em uma das maiores empresas do Japão, construindo enormes navios, inventando os superpetroleiros, maiores a cada ano — e lançando, em breve, o primeiro petroleiro de um milhão de toneladas. Agora nossos navios estão em toda parte, trazendo matéria-prima para o Japão e levando para o exterior produtos manufaturados. Nós, japoneses, somos merecidamente o assombro do mundo. Mas somos vulneráveis — temos que ter petróleo, ou estaremos arruinados.
Por uma das janelas, notou um petroleiro subindo o golfo, outro indo em direção a Ormuz. A ponte continua, pensou. Pelo menos um petroleiro a cada 150 quilômetros daqui até o Japão, ininterruptamente, para alimentar nossas fábricas, sem as quais morreremos de fome. Toda a OPEP sabe disso, eles estão trapaceando e se divertem com isto. Como hoje. Hoje, precisei de toda a minha força de vontade para aparentar calma ao lidar com aquele... aquele francês odioso, fedendo a alho e àquela porcaria fedorenta e nojenta chamada Brie, exigindo descaradamente mais US$ 2,80 acima dos já escandalosos US$ 14,80 e eu, de uma antiga linhagem de samurais, tendo que pechinchar com ele como um chinês de Hong Kong.
— Mas, monsieur de Plessey, o senhor certamente vê que a este preço, mais o frete e...
— Sinto muito, monsieur, mas tenho minhas instruções. Conforme o combinado, os três milhões de barris de petróleo de Siri estão sendo oferecidos primeiro ao senhor. A ExTex quer uma quota, assim como quatro outras grandes companhias. Se o senhor deseja mudar de idéia...
— Não, mas o contrato especifica "ao preço atual da OPEP" e nós...
— Sim, mas o senhor certamente sabe que todos os fornecedores da OPEP estão cobrando um ágio. Não se esqueça que os sauditas planejam diminuir a produção este mês, que na semana passada todos os grandes produtores ordenaram novos cortes por force majeure, que a Líbia também está reduzindo sua produção. A BP aumentou os cortes para 45%...
Kasigi teve vontade de gritar de raiva ao lembrar que quando finalmente concordara, desde que pudesse ter os três milhões de barris, todos pelo mesmo preço, o francês sorrira, docemente, e dissera: "Certamente, desde que o senhor carregue tudo em sete dias". O que ambos sabiam ser impossível. E sabiam também que, naquele momento, uma delegação da Romênia estava no Kuwait em busca de três milhões de toneladas de petróleo, imaginem, só três milhões de barris, para compensar o corte dos seus próprios suprimentos iranianos que chegavam através dos oleodutos iraniano-soviéticos. E que havia outros compradores, dezenas, esperando para se apoderar de sua opção de Siri e de todas as suas outras opções — de petróleo, gás natural, nafta e outros petroquímicos.
— Muito bem, US$ 17,60, o barril — dissera Kasigi, amável. Mas por dentro jurando ir à forra de algum modo.
— Para este petroleiro, monsieur.
— É claro, para este petroleiro — disse, ainda mais amavelmente.
E agora este piloto australiano vem me dizer que mesmo este petroleiro pode correr perigo. Este velho estranho, velho demais para estar pilotando e no entanto tão hábil, tão sabido, tão aberto, e tão idiota — idiota em ser tão aberto, pois assim você se coloca nas mãos dos outros, pensou Kasigi, voltando a encarar Scragger.
— O senhor disse que talvez, com o tempo, pudéssemos fazer as pazes. Nós dois não teríamos mais nenhum tempo hoje, se não fosse por sua habilidade, e sorte, embora nós chamemos isto de carma. Na realidade, não sei quanto tempo nos resta. Talvez amanhã meu navio seja destruído. Eu estarei a bordo. — Deu de ombros. — Carma. Mas sejamos amigos, o senhor e eu. Não acho que estejamos traindo nossos companheiros de guerra, os seus e os meus. — E estendeu a mão. — Por favor.
Scragger olhou a mão estendida. Kasigi forçou-se a esperar. Então Scragger cedeu, balançou a cabeça e apertou a mão com firmeza.
— Está bem, cara, vamos tentar.
Nesse momento, viu Vossi virar-se e fazer-lhe um sinal. Imediatamente Scragger foi para a cabine do piloto.
— Sim, Ed?
Há uma emergência, Ed, de Siri Três. Um dos operários caiu no mar... Foram imediatamente. O corpo estava flutuando perto das pilastras da plataforma. Eles o içaram para bordo. Os tubarões já tinham comido os membros inferiores e um dos braços estava faltando. A cabeça e o rosto estavam muito machucados e curiosamente desfigurados. Era Abdullah Turik.
PERTO DE BANDAR DELAM: 16:52H. As sombras estavam maiores. Ao longo da estrada a terra estava ressecada, e depois das encostas rochosas elevavam-se as montanhas com os picos cobertos de neve — a vertente setentrional dos Zagros. Deste lado, perto dos pântanos e riachos que iam dar no porto, a poucos quilômetros dali, localizava-se um dos numerosos oleodutos que entrecruzavam toda a região. O oleoduto era de aço, com meio metro de diâmetro e se apoiava em um cavalete de concreto que penetrava numa galeria sob a estrada prosseguindo, depois, pelo subsolo. A menos de dois quilômetros, a leste, havia uma aldeia — escondida, empoeirada, cor de terra, com casas feitas de barro — e vindo dessa direção, um pequeno carro. Era velho e amassado e andava devagar, mas o motor trabalhava bem, bem demais para o estado da carroceria.
Dentro do carro havia quatro iranianos. Eram jovens, não usavam barba e estavam mais bem vestidos do que o normal, embora todos estivessem manchados de suor e demonstrassem extremo nervosismo. Perto da galeria, o carro parou. Um rapaz de óculos saltou do banco dianteiro e fingiu que urinava na beira da estrada, com os olhos observando tudo em volta.
— Está tudo certo — disse.
Imediatamente, os dois rapazes de trás saltaram, carregando uma mala grossa e pesada, e se enfiaram na galeria. O rapaz de óculos abotoou-se e depois, casualmente, foi até a mala do carro e abriu-a. Embaixo de um pedaço de lona rasgada viu o nariz arrebitado da metralhadora de fabricação tcheca. Ficou um pouco mais calmo.
O motorista desceu e urinou abundantemente dentro da vala.
— Estava com vontade, mas não consegui, Mashoud — disse o rapaz de óculos, invejando-o. Enxugou o suor do rosto e ajeitou os óculos.
— Nunca consigo urinar antes de uma prova — disse Mashoud e riu. — Deus permita que a universidade logo torne a abrir.
— Deus! Deus é o ópio das massas — atalhou o rapaz de óculos, com desprezo, desviando em seguida sua atenção para a estrada.
Ainda estava deserta, tanto quanto podiam ver, nas duas direções. Para o sul, a poucas milhas dali, o sol brilhava nas águas do Golfo. Acendeu um cigarro. Seus dedos tremiam. O tempo passava muito devagar. Ouviam-se as moscas voando, o que fazia o silêncio parecer ainda maior. Percebeu, então, uma nuvem de poeira na estrada, do outro lado da aldeia.
— Olhem!
Juntos, tentaram enxergar ao longe.
— São caminhões de carga ou do Exército? — perguntou Mashoud, ansiosamente, e correu para a galeria gritando: — Depressa, vocês dois. Vem vindo alguma coisa!
— Está bem — respondeu uma voz lá de dentro.
— Estamos quase acabando — disse outra voz.
Os dois rapazes na galeria estavam com a mala aberta, e colocavam os sacos achatados de explosivo, a esmo, ao longo do oleoduto. Este era coberto por uma camada de lona e piche como proteção contra a erosão.
— Dê-me o detonador e o rastilho, Ali — disse o mais velho, com voz rouca. Estavam ambos imundos, agora, com a poeira grudada no suor.
— Tome — Ali entregou-lhe as coisas cuidadosamente, com a camisa grudada no corpo.
— Tem certeza que sabe o que fazer, Bijan?
— Estudamos aquele panfleto durante horas. Não treinamos fazer isto de olhos fechados? — Bijan deu um sorriso forçado. — Somos iguais a Robert Jordan em Por quem os sinos dobram. Iguaizinhos a ele.
— Espero que os sinos não estejam dobrando por nós — retrucou o outro, estremecendo.
— Mesmo que estejam, que importa? O partido vai conquistar o poder e as massas serão vitoriosas.
Os dedos inexperientes de Bijan prenderam desajeitadamente o detonador de nitroglicerina, altamente volátil, num dos explosivos, ligando uma das pontas do rastilho ao detonador, e empilhou o resto dos sacos em cima para prendê-lo no lugar.
Mashoud tornou a chamar, com uma voz ainda mais urgente:
— Depressa, são... achamos que são caminhões do Exército cheios de soldados!
Por um instante, os dois rapazes ficaram paralisados, depois desenrolaram o rastilho, tropeçando um no outro, no seu nervosismo. Sem que notassem, a ponta do rastilho que estava presa ao detonador soltou-se. Esticaram o fio de três metros de comprimento no chão, acenderam a ponta e saíram correndo. Bijan deu uma olhada para checar tudo, viu que uma das pontas queimava bem e ficou horrorizado quando percebeu que a outra ponta estava solta. Voltou correndo, prendeu-a, tremendo, no detonador, e escorregou, atirando o detonador contra a parede de concreto.
A nitroglicerina explodiu e fez o saco de explosivos ao lado ir pelos ares, este fez explodir o próximo, e assim por diante até que todos explodiram e fizeram Bijan em pedaços junto com dez metros do oleoduto, arrancando o teto da galeria, virando o carro, matando dois dos rapazes e arrancando uma perna do quarto.
Começou a jorrar petróleo do oleoduto. Centenas de barris por minuto. O petróleo deveria ter incendiado, mas isso não aconteceu — os explosivos tinham sido mal colocados — e quando os dois caminhões do Exército pararam cautelosamente a centenas de metros de distância, o vazamento de óleo já alcançara o riacho. Os óleos mais leves, gasosos, voláteis, flutuaram na superfície, e o óleo crú, mais pesado, começou a se infiltrar nas margens, encharcando o solo, tornando toda a região altamente perigosa.
Nos dois caminhões havia uns vinte Faixas Verdes de Khomeini, a maioria de barba, os outros com o rosto sem barbear, todos usando suas faixas características nos braços — camponeses, alguns operários de campos de petróleo, um líder treinado pela OLP, um mulá — todos armados, todos com marcas de batalha, alguns feridos, e um capitão da polícia uniformizado, amarrado e amordaçado no chão, ainda vivo. Tinham acabado de atacar um posto policial ao norte e agora rumavam para Bandar Delam para continuar a guerra. Sua missão era ajudar a tomar o aeroporto civil que ficava a alguns quilômetros para o sul.
Liderados pelo mulá, foram até a beirada da galeria arrebentada. Por um instante, ficaram observando o vazamento, então um gemido atraiu-lhes a atenção. Empunharam os revólveres e caminharam cautelosamente até o carro virado. O rapaz sem a perna estava preso até a cintura debaixo dele, morrendo. Moscas voavam, pousavam e tornavam a voar, havia sangue e vísceras por toda parte.
— Quem é você? — perguntou o mulá, sacudindo-o rudemente. — Por que fizeram isso?
O rapaz abriu os olhos. Sem os óculos, tudo ficava embaçado. Às cegas, tentou encontrá-los. O medo da morte se apoderou dele. Tentou recitar o Shahada, mas só o que saiu foi um grunido de terror. O sangue inundou-lhe a garganta, sufocando-o.
— Seja como Deus quiser — disse o mulá, virando as costas. Viu os óculos quebrados no chão e apanhou-os. Uma das lentes estava partida, a outra perdera-se.
— Por que fariam isso? — perguntou um dos Faixas Verdes. — Ainda não temos ordens de sabotar os oleodutos.
— Devem ser comunistas, ou abutres marxistas-islâmicos. — O mulá jogou os óculos fora. Seu rosto estava machucado, a túnica comprida rasgada em alguns lugares e estava faminto. — Parecem estudantes. Que Deus mate todos os Seus inimigos assim tão depressa.
— Ei, olhem isto — exclamou um outro. Estava revistando o carro e encontrara três metralhadoras e algumas granadas. — Todas de fabricação tcheca. Só os esquerdistas andam tão bem armados assim. Estes cães são mesmo inimigos.
— Deus seja louvado. Ótimo. As armas nos serão úteis. Podemos contornar a galeria com o caminhão?
— Oh, sim, facilmente, graças a Deus — disse o motorista, um homem barbado e corpulento. Era operário de um dos campos de petróleo e entendia de oleodutos. — É melhor comunicarmos esta sabotagem — acrescentou, nervoso. — Toda esta área pode explodir. Poderia telefonar para a estação de bombeamento, se houver algum telefone funcionando; ou mandar um recado; eles podem cortar o fluxo. É melhor andarmos depressa. Toda esta área está correndo perigo e o vazamento vai poluir tudo, rio abaixo.
— Isto está nas mãos de Deus. — O mulá ficou olhando o óleo se espalhar. — Não é correto desperdiçar a riqueza que Deus nos concedeu. Bom, você pode tentar telefonar do aeroporto. — O rapaz deu outro grito sufocado de socorro. Eles o deixaram ali para morrer.
AEROPORTO DE BANDAR DELAM: 17:30H. O aeroporto civil estava desguarnecido, abandonado e não funcionava, exceto pelo contingente da S-G que chegara ali há poucas semanas, vindo da ilha Kharg. O aeroporto tinha duas pistas curtas, uma torre pequena, alguns hangares, um prédio de escritórios com dois andares, algumas barracas, e agora uns poucos trailers modernos — de propriedade da S-G — para servir temporariamente de abrigo e QG. Era igual a dúzias de outros aeroportos civis que o xá construíra para as linhas de fornecimento que serviam a todo o Irã: "Vamos ter aeroportos e serviços modernos." Decretara e assim foi feito. Mas desde que começaram os problemas, há seis meses, todas as linhas internas tinham entrado em greve, em todo o Irã os aviões pararam de voar e os aeroportos fecharam. As tripulações e as equipes de terra desapareceram. A maioria dos aviões foram deixados ao ar livre, sem manutenção nem cuidado. Dos três jatos estacionados no pátio, dois estavam com os pneus furados e o outro tinha a janela da cabine quebrada. Todos tiveram os tanques esvaziados por saqueadores. Todos estavam imundos, quase abandonados. E tristes.
Fazendo um enorme contraste com eles, enfileiravam-se meticulosamente os cinco cintilantes helicópteros da S-G, três 212 e dois 206, lavados diariamente e revisados no final do dia. O sol agora estava baixo, projetando sombras alongadas.
O capitão Rudiger Lutz, o piloto-chefe, foi até o último helicóptero e inspecionou-o com o mesmo cuidado com que inspecionara os outros.
— Muito bem — disse finalmente. — Podem guardá-los.
Ficou observando enquanto os mecânicos e sua equipe de terra iraniana levavam as aeronaves de volta para os hangares que também estavam impecáveis. Sabia que muitos membros da equipe riam dele pelas costas, por causa de sua meticulosidade, mas isso não tinha importância — contanto que obedecessem. Este é o nosso problema mais difícil, pensou. Como fazê-los obedecer, como agir numa situação de guerra quando não somos governados por leis militares e somos não-combatentes no meio de uma situação de guerra, quer Duncan McIver admita ou não.
Esta manhã, Duke Starke, em Kowiss, retransmitira em HF a mensagem tensa de McIver, de Teerã, a respeito dos rumores de ataque ao aeroporto de Teerã e da revolta em uma de suas bases aéreas — por causa da distância e das montanhas, Bandar Delam não podia falar diretamente com Teerã nem com as outras bases, só com Kowiss. Preocupado, Rudi reunira toda a sua equipe de estrangeiros, quatro pilotos e sete mecânicos — sete ingleses, dois americanos, um alemão e um francês — em um lugar onde ninguém pudesse ouvi-los e relatara-lhes a mensagem.
— Não foi tanto o que Duke disse, mas a forma como disse: me chamou o tempo todo de Rudiger, quando sempre me chama de Rudi. Ele me pareceu nervoso.
— Não é próprio de Duke Starke ficar nervoso, a não ser que as coisas estejam pretas. — Jon Tyrer, o americano que era o segundo em comando depois de Rudi, comentara apreensivamente. — Você acha que ele está em apuros? Acha que a gente deve ir dar uma olhada em Kowiss?
— Talvez. Mas vamos esperar até eu falar com ele esta noite.
— Acho que é melhor nos prepararmos para escapulir no meio da noite, Rudi — dissera o mecânico Fowler Jones com decisão. — Sim. Se o velho Duke está nervoso... é melhor estarmos preparados para dar o fora.
— Você está louco, Fowler. Nunca tivemos problemas — retrucara Tyrer.
— Toda esta região está mais ou menos tranqüila, as tropas e a polícia são disciplinadas e estão sob controle. Merda, temos cinco bases da Força Aérea numa área de 15 quilômetros e são todas de elite e pró-xá. É provável que breve haja um golpe legalista.
— Você alguma vez já esteve no meio de um golpe, pelo amor de Deus? Atiram desesperadamente uns nos outros e eu sou um civil!
— OK, digamos que as coisas fiquem pretas, o que sugere? Discutiram todas as possibilidades. Por terra, mar e ar. A fronteira do Iraque ficava a apenas 150 quilômetros de distância — e pelo golfo era fácil alcançar o Kuwait.
— Seremos informados com antecedência — Rudi estava confiante. — McIver saberá caso haja um golpe.
— Ouça, meu chapa — dissera Fowler, mais azedo do que de costume.
— Eu conheço as companhias: são iguais aos malditos generais! Se as coisas ficarem realmente difíceis, vamos ter que nos virar sozinhos, portanto é melhor ter um plano. Não vou levar um tiro na cabeça pelo xá, por Khomeini, nem pelo Senhor-Deus Gavallan. Eu digo que a gente deve dar o fora!
— Que diabo, Fowler — exclamara um dos pilotos ingleses —, você está sugerindo que a gente seqüestre um dos nossos próprios aviões? Nós nunca mais poderíamos voar.
— Talvez isto seja melhor do que os portões da eternidade.
— Poderíamos ser abatidos, pelo amor de Deus. Nunca conseguíamos. Você sabe que os nossos vôos são monitorizados, como o radar é sensível por aqui. Aqui as coisas são muito mais controladas do que em Lengeh! Não podemos nem sair do chão sem pedir permissão para ligar os motores...
No fim, Rudi pedira-lhes sugestões para o caso de haver necessidade de uma evacuação repentina, por terra, ar ou mar e os deixara discutindo.
O dia inteiro tinha se preocupado com o que fazer, com o que haveria de errado em Kowiss e em Teerã. Como piloto-chefe sentia-se responsável por sua equipe — além dos doze iranianos e de Jahan, seu operador de rádio, que não recebiam há seis semanas — e por todos os helicópteros e peças. Tivemos muita sorte em sair de Kharg com tanta facilidade, pensou, com um aperto no estômago. A retirada de todos os aviões fora fácil, todas as peças importantes e alguns dos seus transportes foram trazidos em quatro dias sem que isso interferisse com sua pesada carga de contratos de vôo e emergências.
Sair de Kharg fora fácil porque todo mundo quisera ir. O mais depressa possível. Mesmo antes dos tumultos, Kharg era uma base impopular, sem nada para fazer exceto trabalhar e esperar pelas licenças em Teerã ou em casa. Quando os tumultos começaram, todo mundo viu logo que Kharg era um alvo vital para os revolucionários. Tinha havido muitos tumultos e até alguns tiros. Apareciam cada vez mais braçadeiras da OILP entre os revoltosos e o comandante da ilha ameaçara atirar em todos os aldeões se os tumultos não cessassem. Desde a partida deles há poucas semanas, a ilha estava quieta, assustadoramente quieta.
E essa retirada não foi uma emergência de fato, lembrou a si mesmo. Como agir em uma? Na semana passada voara até Kowiss para apanhar umas peças e perguntara a Starke como ele planejava agir em Kowiss se houvesse realmente problemas.
— Do mesmo jeito que você, Rudi. Você procuraria agir de acordo com as regras da companhia, que não se aplicariam a esta situação — disse o texano alto. — Temos algumas coisas a nosso favor: quase todos os nossos rapazes são ex-combatentes de alguma guerra, portanto há uma espécie de hierarquia de comando, mas, que inferno, pode-se planejar à vontade e mesmo assim não se consegue dormir de noite porque quando as coisas ficarem pretas vai acontecer o que sempre acontece: alguns rapazes vão desmoronar, outros não, e nunca se pode saber com antecedência quem vai fazer o quê, ou até como você mesmo vai reagir.
Rudi nunca estivera em uma guerra, embora seu serviço militar no Exército alemão, nos anos cinqüenta, tivesse sido nas fronteiras da Alemanha Oriental, e na Alemanha Ocidental sempre se está consciente do Muro, da Cortina, e de todos os seus irmãos e irmãs que estão do outro lado — e das legiões soviéticas e satélites que esperam, taciturnos, com suas dezenas de milhares de tanques e mísseis, a poucos metros de distância. E sempre se está consciente dos alemães fanáticos de ambos os lados da fronteira que veneram seu messias chamado Lenin e dos milhares de espiões roendo nossas entranhas.
Triste.
Quantos da minha cidade?
Nascera em uma cidadezinha perto de Plauen, próxima à fronteira da Tchecoslováquia, que agora pertencia à Alemanha Oriental. Em 1945 ele tinha 12 anos, seu irmão 16 e já estava no Exército. Os anos de guerra não foram maus para ele, sua irmã mais moça e sua mãe. No campo, havia bastante o que comer. Mas em 1945 eles tinham fugido diante das hordas soviéticas, que passavam carregando tudo que podiam, para se juntarem ao enorme contingente de alemães que migravam para oeste: dois milhões da Prússia, mais dois do norte, quatro do centro, mais dois do sul — junto com outros milhões de tchecos, poloneses, húngaros, romenos, austríacos, búlgaros, que vinham da Europa inteira — todos famintos, petrificados, lutando para se manterem vivos.
Ah, manter-se vivo, pensou.
Durante a viagem, com frio, cansado e abatido, ele se lembrava de ter ido com a mãe a um depósito de lixo, em algum lugar perto de Nuremberg, o campo devastado pela guerra e as cidades destruídas, a mãe tentando freneticamente conseguir uma chaleira — a deles fora roubada durante a noite — impossível comprar-se uma, mesmo se tivessem o dinheiro. "Temos que ter uma chaleira para ferver água ou morreremos, vamos apanhar tifo ou desinteria como os outros — não podemos viver sem água fervida", gritara sua mãe. Então ele a acompanhara em lágrimas, convencido que era uma perda de tempo, mas tinham encontrado uma. Estava velha e amassada, com o bico torto e a alça solta, mas tinha uma tampa e não vazava. Hoje a chaleira estava limpa e brilhante e ocupava um lugar de honra na prateleira da cozinha da sua fazenda perto de Freiberg, na Floresta Negra, onde moravam sua mulher, seus filhos e sua mãe. E uma vez por ano, na véspera do Ano-Novo, a mãe fazia chá com água fervida naquela chaleira. E quando ele estava lá, os dois sorriam juntos, ele e ela. "Se você tiver bastante fé, meu filho, e tentar, você pode encontrar a sua chaleira. Nunca se esqueça, foi você que a encontrou, não eu."
De súbito, ouviram-se gritos de alerta. Deu meia-volta e viu três caminhões do Exército irromperem pelo portão, um em direção à torre e dois em direção aos hangares. Os caminhões pararam e revolucionários Faixas Verdes se espalharam pela base, dois homens investindo contra ele, com as armas apontadas, gritando em farsi, que ele não entendia, enquanto os outros cercavam seus homens no hangar. Paralisado, levantou as mãos, com o coração batendo do susto. Dois Faixas Verdes, barbados e suando de medo e excitação, empurraram os canos dos revólveres na cara dele e Rudi recuou.
— Não estou armado — disse, sem ar. — O que vocês querem? Hein? Nenhum dos homens respondeu, apenas continuaram a ameaçá-lo. Por trás deles, podia ver o resto da equipe sendo retirada dos trailers e barracas e reunida no pátio. Outros agressores entravam e saíam dos helicópteros, revistando-os, revirando o equipamento; um dos homens começou a tirar os salva-vidas que estavam arrumados nos bolsos dos assentos. Sua raiva sobrepujou o medo.
— Ei, Sie verrückte Dummkópfe — gritou. — Lass'n Sie meine verrückten Flugzeuge allein! — Antes que se desse conta do que estava fazendo, tinha empurrado os revólveres e corria em direção a eles. Por um instante, pareceu que os dois iranianos iam atirar, mas apenas correram atrás dele, alcançaram-no e o agarraram. Um deles levantou o rifle pelo cano para lhe arrebentar a cara.
— Parem!
Os homens se imobilizaram.
O homem que gritou esta ordem em inglês aparentava trinta anos, era robusto, usava roupas grossas com uma faixa verde, tinha barba curta e espetada, cabelos escuros ondulados e olhos escuros.
— Quem é o responsável aqui?
— Sou eu! — Rudi livrou-se de seus agressores. — O que estão fazendo aqui? O que querem?
— Estamos ocupando este aeroporto em nome do Islã e da revolução. — O sotaque do homem era inglês. — Quantas tropas há aqui, pessoal de vôo?
— Nenhuma. Não há nenhuma tropa, não há equipe de torre, não há mais ninguém além de nós. — Disse Rudi, tentando recuperar o fôlego.
— Nenhuma tropa? — A voz do homem era perigosa.
— Não, nenhuma. Temos tido patrulhas aqui, desde que chegamos há poucas semanas, elas vêm de vez em quando. Mas nenhuma está estacionada aqui. E não temos nenhum avião militar. — Rudi apontou para o hangar. — Diga àqueles... àqueles homens para terem cuidado com meus aparelhos, muitas vidas dependem deles, tanto nossas quanto de iranianos.
O homem se virou e viu o que estava acontecendo. Gritou outra ordem, praguejando contra eles. Os homens responderam despreocupadamente, depois saíram, deixando o caos por onde tinham passado.
— Por favor, desculpe-os — disse o homem. — Meu nome é Zataki. Sou o chefe do komiteh de Abadan. Com a ajuda de Deus, agora comandamos Bandar Delam.
O estômago de Rudi queimava. Os estrangeiros e a equipe iraniana formavam um grupo imóvel ao lado do prédio baixo de escritórios, cercados por armas.
— Trabalhamos para uma companhia ingle...
— Sim, estamos informados a respeito da S-G Helicópteros. — Zataki virou-se e gritou novas ordens. Relutantes, alguns de seus homens foram para o portão e começaram a se colocar em posições defensivas. Ele tornou a olhar para Rudi. — Seu nome?
— Capitão Lutz.
— O senhor não tem nada a temer, capitão Lutz, nem o senhor nem seus homens. Vocês têm armas aqui?
— Não, exceto pistolas de sinalização, munição própria de aviões. Para sinalizar, sinalizar em caso de perigo.
— Vá buscá-las. — Zataki virou-se e foi para perto do grupo da S-G e ficou lá, examinando os rostos. Rudi percebeu o medo dos seus iranianos, cozinheiros, equipe de terra, montadores, Jahan, e Yemeni, o gerente da IranOil.
— São todos meus empregados — disse, tentando parecer seguro. — Todos empregados da S-G.
Zataki olhou para ele, depois chegou bem perto, e Rudi teve que se controlar para não recuar de novo.
— O senhor sabe o que significa mujhadin-al-khalq? Fedayim? Tudeh? — perguntou suavemente. Era mais forte que Rudi e tinha uma arma na mão.
— Sim.
— Ótimo. — Depois de uma pausa, Zataki voltou a olhar para os iranianos. Um a um. O silêncio tornou-se mais pesado. De repente, apontou para um dos homens, um montador. O homem hesitou, e então começou a correr como um louco, gritando em farsi. Eles o agarraram facilmente e o puseram sem sentidos.
— O komiteh vai julgá-lo e sentenciá-lo, em nome de Deus. — Zataki olhou para Rudi. — Capitão — disse com os lábios contraídos —, eu lhe pedi para apanhar as pistolas.
— Elas estão no cofre, e bem seguras — respondeu Rudi, com igual dureza, não se sentindo nada corajoso por dentro. — O senhor poderá tê-las quando quiser. Elas só são colocadas num avião durante uma missão. Eu... eu quero que soltem aquele homem!
Sem nenhum aviso, Zataki virou a metralhadora para bater com a coronha na cabeça de Rudi, mas Rudi segurou-a com uma das mãos, desviando-a e arrancou-a das mãos do homem, com um reflexo perfeito, e antes que a arma caísse no chão, sua outra mão, aberta, já estava na garganta desprotegida de Zataki. Mas ele interrompeu o golpe mortal, mal tocando a pele do homem. Depois, deu um passo para trás, acuado. Todas as armas apontavam para ele.
O silêncio continuou. Seus homens olhavam, estarrecidos. Zataki o encarou com ódio. As sombras estavam mais alongadas, e uma brisa suave brincava com o catavento, fazendo-o estalar de leve.
— Apanhe a arma!
No silêncio pesado, Rudi percebeu a ameaça e a promessa e soube que sua vida, a de todos eles, estava em jogo.
— Fowler, faça isto! — ordenou e rezou para que tivesse escolhido certo. Relutante, Fowler adiantou-se.
— Sim senhor, imediatamente! — Pareceu levar um tempo enorme para ele cobrir os vinte metros, mas ninguém o interrompeu e um dos guardas saiu do seu caminho. Apanhou a arma e automaticamente colocou a trava de segurança no lugar, devolvendo-a com cuidado a Zataki, primeiro a coronha. — Não entortou, e..., e está como nova, filho.
O líder apanhou a arma, tornando a destravá-la, todo mundo ouviu o barulho como se fosse um trovão.
— Você conhece armas?
— Sim... oh, sim. Nós... todos os mecânicos... nós todos tivemos que fazer um curso na RAF... Royal Air Force — disse Fowler, conservando os olhos fixos nos do homem e pensou: Que diabo eu estou fazendo aqui, enfrentando este filho da mãe fedorento? — Podemos debandar? Somos civis, filho, somos não-combatentes, neutros.
— Volte para lá. — E Zataki apontou para a fila. Depois virou-se para Rudi. — Onde foi que o senhor aprendeu karatê?
— No Exército — no Exército alemão.
— Ah, alemão. O senhor é alemão? Os alemães têm sido bons para o Irã. Ao contrário dos ingleses e americanos. Quem são os seus pilotos, seus nomes e nacionalidades?
Rudi hesitou, depois apontou.
— Capitão Dubois, francês, capitão Tyrer, idem, e Forsyth, inglês.
— Nenhum americano?
Rudi sentiu um vazio no estômago. Jon Tyrer era americano e tinha carteira de identidade falsa. Nesse momento ouviu o barulho de um helicóptero se aproximando, reconheceu o ruído de um 206, e automaticamente olhou para o céu, junto com os outros. Então um dos Faixas Verdes soltou uma exclamação e apontou, enquanto os outros corriam para suas posições defensivas, todo mundo se espalhando, exceto os estrangeiros. Eles tinham reconhecido o avião.
— Todos para o hangar — ordenou Zataki. O helicóptero aproximou-se do aeroporto a uma altura de trezentos metros e começou a voar em círculos. — É um dos seus?
— Sim. Mas não desta base. — Rudi apertou os olhos ao olhar para o sol. Seu coração acelerou quando leu o prefixo. — É o EP-HXT de Kowiss, da nossa base em Kowiss.
— O que ele quer?
— Obviamente aterrissar.
— Descubra quem está a bordo. E não tente nenhum truque. Juntos, foram até o UHF no escritório.
— HXT, está ouvindo?
— HXT, alto e claro. Aqui é o capitão Starke, de Kowiss. Capitão Lutz?
— Sim, aqui é o capitão Lutz, capitão Starke — respondeu, reconhecendo pelo tom formal que deveria haver pessoas estranhas a bordo, da mesma forma que Starke saberia que havia algo de errado lá.
— Solicito permissão para pousar. Estou com pouco combustível e preciso reabastecer. Já obtive permissão do radar de Abadan.
— Pergunte quem está no avião. — Ordenou Zataki.
— Quem está a bordo? Houve uma pausa.
— Quatro passageiros. Qual é o problema?
Rudi esperou. Zataki não sabia o que fazer. Qualquer uma das bases militares poderia estar na escuta.
— Deixe-o pousar... perto do hangar.
— Permissão para pousar, HXT. Desça perto do hangar, a leste.
— HXT.
Zataki inclinou-se e desligou o aparelho.
— Daqui para a frente o rádio só será usado com minha autorização.
— Há relatórios de rotina a serem feitos para o radar de Abadan e de Kharg. Meu operador de rádio está conosco há...
O sangue subiu ao rosto de Zataki e ele gritou:
— Até ordens em contrário seu rádio só será usado quando um de nós estiver ouvindo. Nenhum avião levantará vôo nem pousará aqui sem permissão. O senhor é o responsável. — Então a raiva evaporou-se tão depressa quanto viera. Levantou a arma. Ainda estava destravada. — Se o senhor tivesse dado o golpe teria quebrado meu pescoço, minha garganta, e eu teria morrido. Não é verdade?
— Sim. — Respondeu Rudi, depois de um intervalo.
— Por que o senhor parou?
— Eu... eu nunca matei ninguém e não gostaria de começar.
— Eu já matei muitos, fazendo o trabalho de Deus. Muitos, graças a Deus. Muitos. E ainda vou matar muitos inimigos do Islã, com a ajuda de Deus. — Zataki travou a arma. — Foi pela vontade de Deus que o golpe foi interrompido, nada mais. Não posso lhe entregar aquele homem. Ele é iraniano, isto é o Irã, ele é um inimigo do Irã e do Islã.
Ficaram observando do hangar enquanto o 206 descia. Havia quatro passageiros a bordo, todos civis, todos armados de submetralhadoras. No assento da frente estava um mulá e Zataki ficou um pouco menos tenso, mas não menos enraivecido. Assim que o helicóptero pousou, seus revolucionários saíram dos esconderijos com as armas apontadas e o cercaram.
O mulá Hussein saltou. Seu rosto endureceu ao ver a hostilidade de Zataki.
— Que a paz esteja com você. Sou Hussein Kowissi, do komiteh de Kowiss.
— Seja bem-vindo à minha área, em nome de Deus, mulá — disse Zataki, com o rosto ainda mais fechado. — Sou o coronel Zataki do komiteh de Abadan. Nós governamos esta área e não aprovo homens que se colocam entre nós e Deus.
— Ortodoxos e xiitas são irmãos, Islã é Islã — respondeu Hussein. — Agradecemos aos nossos irmãos ortodoxos dos campos de petróleo de Abadan pelo seu apoio. Vamos conversar, nossa revolução islâmica ainda não foi vencida.
Tenso, Zataki concordou e chamou seus homens, depois fez sinal ao mulá para segui-lo para que pudessem conversar sem serem ouvidos. Imediatamente, Rudi correu para baixo dos rotores.
— Que diabo está acontecendo, Rudi? — perguntou Starke da cabine, com os ombros doendo, terminando as manobras de aterrissagem. E Rudi lhe contou.
— E com você?
Rapidamente, Starke relatou o que acontecera durante a noite e no escritório do coronel Peshadi.
— O mulá e esses assassinos voltaram ao meio-dia e quase tiveram um ataque quando me recusei a trazer homens armados. Cara, pensei que fosse morrer, mas não ia carregar homens armados, isso nos tornaria cúmplices da revolução, e a revolução ainda não está nada firme. Vimos centenas de tropas e barricadas quando estávamos vindo. — Seus olhos percorreram a base e os grupos de Faixas Verdes espalhados. O resto da equipe ainda estava de pé perto das barracas, sob guarda, o montador ainda sem sentidos. — Filhos da mãe! — Saiu do helicóptero e se esticou por causa da dor nas costas, sentindo-se melhor. — No fim, chegamos a um acordo. Eles ficaram com as armas mas eu guardei a munição no compartimento de bagagem. — Parou. O mulá alto, Hussein, aproximava-se deles, e as lâminas do aparelho, agora, giravam lentamente.
— A chave do compartimento de bagagem, por favor, capitão — ordenou Hussein.
— Não há tempo de voltar para Kowiss nem para chegar a Abadan — disse Starke ao entregar as chaves.
— O senhor não sabe voar à noite?
— Sei, mas é contra os seus regulamentos. O senhor tinha um fone, viu como é o radar aqui. Antes que a gente esteja no alto teremos aviões e helicópteros militares zumbindo como marimbondos atrás de nós. Vou reabastecer e passaremos a noite aqui... pelo menos eu. O senhor pode conseguir uma carona dos seus cupinchas aqui se quiser ir à cidade.
— O seu tempo é muito curto, americano — disse o mulá em farsi, enrubescendo de raiva. — O seu e o de todos esses parasitas imperialistas.
— Se for a vontade de Deus, mulá, se for a vontade de Deus. Estarei pronto para partir depois da primeira prece. Então eu partirei, com ou sem você.
— O senhor vai me levar para Abadan e esperar e depois vai voltar para Kowiss quando eu quiser e como o coronel Peshadi ordenou.
— Se você estiver pronto para partir depois da primeira prece! — respondeu em inglês. — E Peshadi não ordenou nada. Não estou sob as ordens dele, nem suas. A IranOil me pediu para levá-lo neste vôo. Vou ter que reabastecer no caminho de volta.
— Muito bem, partiremos ao amanhecer — concordou Hussein, irritado.
— Quanto a reabastecer... — Pensou por um momento. — Faremos isso em Kharg.
Tanto Starke quanto Rudi ficaram estarrecidos.
— Como vamos ter licença para descer em Kharg? Kharg é leal, ahn, ainda está sob controle da Força Aérea. Vocês levariam um tiro na cabeça.
— Vocês esperam aqui até o komiteh decidir. Daqui a uma hora eu quero falar com Kowiss no HF. — E Hussein virou as costas e saiu.
— Estes filhos da mãe estão muito bem organizados, Rudi — disse Starke baixinho. — Estamos numa encrenca dos diabos.
— É melhor nos organizarmos, nos prepararmos para dar o fora daqui.
— Sugeriu Rudi, sentindo as pernas fracas.
— Faremos isso depois de comer. Você está bem?
— Pensei que estivesse morto. Eles vão matar a todos nós, Duke
— Não penso assim. Por algum motivo, somos importantes para eles. Eles precisam de nós, é por isso que Hussein recua e o seu Zataki também. Podem endurecer conosco para nos manter na linha, mas acho que pelo menos por enquanto somos importantes por algum motivo. — Mais uma vez Starke tentou aliviar o cansaço das costas e dos ombros. — Bem que eu gostaria de uma das saunas de Erikki. — Ambos olharam para um grupo de Faixas Verdes que atirava para o ar. — Filhos da puta malucos. Pelo que pude ouvir, esta operação faz parte de um levante geral contra as Forças Armadas... armas contra armas. Como está a recepção do seu rádio? BBC ou Voz da América?
— De mal a pior e cheia de interferência, de dia ou de noite. É claro que a Rádio Livre do Irã está alta e clara, como sempre. — Era a estação soviética estabelecida logo além da fronteira, em Baku, no mar Cáspio. — E, como sempre, a Rádio Moscou soa como se estivesse no seu quintal.
PERTO DE TABRIZ: 18:05H. Nas montanhas cobertas de neve, bem ao norte, perto da fronteira soviética, o 206 de Pettikin aproximava-se rápido, subindo o desfiladeiro, quase tocando as árvores ao longo da estrada.
— Tabriz Um, HFC de Teerã. Está me ouvindo? — tornou a chamar. Nenhuma resposta ainda. Escurecia, o sol da tarde oculto por uma espessa camada de nuvens a poucas centenas de metros sobre ele, cinzenta e pesada de neve. Tentou novamente chamar a base, já muito cansado, com o rosto bastante machucado e ainda doendo da surra que levara. As luvas e a pele esfola-da das mãos tornavam difícil apertar o botão do transmissor.
— Tabriz Um. HFC de Teerã. Está me ouvindo?
Mais uma vez não houve resposta, mas não se preocupou. A comunicação era sempre ruim nas montanhas, ele não estava sendo esperado, e não havia nenhuma razão para Erikki Yokkonen ou o administrador da base terem providenciado uma escuta para o rádio. À medida que a estrada subia, a camada de nuvens ficava mais baixa, mas viu, satisfeito, que o cume à sua frente estava ainda claro, e que depois a estrada começava a descer e meio quilômetro adiante ficava a base.
Esta manhã, levara muito mais tempo do que esperava para ir até a pequena base aérea militar em Galeg Morghi, não muito distante do aeroporto internacional de Teerã, e embora tivesse deixado o apartamento antes do amanhecer, só chegou lá depois que o sol já brilhava alto no céu poluído, cheio de fumaça. Fora obrigado a se desviar muitas vezes. Havia ainda muita luta nas ruas e muitas estradas estavam bloqueadas — algumas intencionalmente, com barricadas, mas a maioria por causa dos destroços queimados de carros e ônibus. Muitos corpos estavam espalhados nas calçadas cobertas de neve e na beira das estradas, havia muitos feridos e, por duas vezes, policiais zangados o fizeram voltar. Mas insistiu e tomou um caminho ainda mais tortuoso. Quando chegou, para surpresa sua, o portão de sua seção da base, onde funcionava uma escola de treinamento, estava aberto e desguarnecido. Normalmente, haveria sentinelas da Força Aérea lá. Entrou e estacionou o carro no hangar da S-G, mas não encontrou ninguém de serviço, nem da equipe de mecânicos nem do pessoal de terra.
O dia estava muito frio e ele se embrulhara em trajes de vôo de inverno. A neve cobria o campo e grande parte da pista. Enquanto esperava, checou o 206 que ia pilotar. Estava tudo bem. As peças que Tabriz precisava, rotor de cauda e duas bombas hidráulicas, estavam no compartimento de bagagem. Os tanques estavam cheios, o que lhe dava uma autonomia de vôo de duas e meia a três horas — de trezentos a quatrocentos quilômetros, dependendo do vento, da altitude e da potência. Teria que reabastecer a aeronave no meio do caminho. Seu plano de vôo previa que fizesse isso em Bandar-e Pahlavi, um porto no mar Cáspio. Sem esforço, empurrou o avião para a pista. Então tudo virou um inferno e ele se viu no centro de uma batalha.
Caminhões cheios de soldados entraram pelo portão e atravessaram o campo, sendo recebidos por uma saraivada de balas vindas da parte principal da base, onde estavam os hangares, as barracas e os prédios da administração. Outros caminhões aproximaram-se pela estrada que circundava o campo, atirando o tempo todo, depois um tanque blindado Bren juntou-se aos outros, com suas metralhadoras cuspindo fogo. Apavorado, Pettikin reconheceu as braçadeiras e os capacetes dos Imortais. A persegui-los, vinham ônibus blindados cheios de policiais paramilitares e outros homens que se espalharam pelo seu lado da base, protegendo-a. Antes que soubesse o que estava acontecendo, quatro deles o agarraram e o arrastaram para um dos ônibus, gritando com ele em farsi.
Pelo amor de Deus, eu não falo farsi — gritou, tentando soltar-se.
Então um deles deu-lhe um soco no estômago e ele recuou, libertando-se e socou a cara do seu atacante. Imediatamente, outro homem puxou uma pistola e atirou. A bala entrou pela gola do seu casaco e ricocheteou violentamente no ônibus, lançando faíscas de pólvora queimada. Ficou paralisado. Alguém deu-lhe um murro na boca e os outros começaram a dar-lhe socos e pontapés Neste momento, aproximou-se um oficial de polícia.
— Americano? Você é americano? perguntou zangado, num inglês muito ruim.
— Eu sou inglês — gaguejou Pettikin,com a boca cheia de sangue, tentando livrar-se dos homens que o mantinham preso contra o capô do ônibus Eu trabalho na S-G Helicópteros e este é.
— Americano! Sabotador! — O homem enfiou o revólver na cara de Pettikin e ele viu os dedos do homem se retesarem no gatilho. — Nós, Savak, sabemos que vocês americanos são a causa de todos os nossos problemas!
Então, através da névoa do seu terror, ouviu uma voz gritar em farsi e sentiu afrouxarem-se as mãos de ferro que o prendiam. Sem acreditar, viu o jovem capitão paraquedista britânico, vestindo uma roupa de camuflagem e uma boina vermelha e dois soldados pequenos, fortemente armados, com feições orientais, granadas nos cintos e mochilas nas costas, em pé na frente deles. Despreocupadamente, o capitão atirava uma granada para cima e para baixo como se fosse uma laranja, com o pino de segurança no lugar. Tinha um revólver e uma faca de uma forma estranha na cintura. Repentinamente, parou e apontou para Pettikin e depois para o 206, gritou com o policial em farsi, fez um gesto imperioso com a mão e cumprimentou Pettikin.
— Pelo amor de Deus, faça uma cara importante, capitão Pettikin — disse rapidamente, com um agradável sotaque escocês, depois arrancou a mão do policial do ombro de Pettikin.
Um dos policias começou a erguer a arma, mas parou quando o capitão tirou o pino da granada, apertando com força a alavanca. Ao mesmo tempo, seus homens empunharam os rifles automáticos, segurando-os com displicência, mas prontos para atirar, O mais velho sorriu, afrouxando a faca da bainha.
— Seu helicóptero está pronto para partir?
— Sim... sim, está — balbuciou Pettikin.
— Ligue o motor depressa. Deixe as portas abertas e quando estiver pronto para partir faça-me um sinal e nós pulamos para dentro. Prepare-se para voar baixo e rápido. Vá! Tenzing, vá com ele. — O oficial fez um sinal com o polegar para o helicóptero que estava a uns cinqüenta metros de distância e virou-se, voltando a falar em farsi, xingando os iranianos, mandando que fossem para o outro lado onde a batalha diminuíra um pouco. O soldado chamado de Tenzing acompanhou Pettikin, que ainda estava tonto.
— Por favor, depressa, sahib — disse Tenzing e se encostou numa das portas, com a arma pronta. Pettikin não precisava de incentivo.
Mais carros blindados passaram mas não prestaram atenção neles, nem outros grupos de policiais e militares que tentavam desesperadamente defender a base contra a multidão que se aproximava. Atrás deles, o policial discutia furiosamente com o paraquedista, enquanto os outros olhavam, nervosos, por sobre os ombros na direção de onde vinha o rumor de "Allah-uuuu Akbarrr!" Misturado às vozes, ouviram-se mais tiros e algumas explosões. Duzentos metros adiante, na estrada que contornava a cerca, a vanguarda da multidão pôs fogo num carro estacionado que explodiu.
Os motores a jato do helicóptero ganharam vida e o som enraiveceu o policial, mas uma falange de civis, armados, entrou atirando pelo portão do lado oposto. Alguém gritou: "Mujhadin!" Imediatamente, todos naquele lado da base se agruparam para interceptá-los e começaram a atirar. Aproveitando esta distração, o capitão e o outro soldado correram para o helicóptero e pularam para dentro, Pettikin deu força total e voou a poucos metros da grama, inclinou o helicóptero para evitar um caminhão em chamas e depois subiu, sacolejando. O capitão cambaleou, quase deixou cair a granada, sem conseguir recolocar o pino por causa da manobra violenta de Pettikin. Estava no assento da frente e se agarrou com força, manteve a porta aberta, atirou cuidadosamente a granada para fora e observou-a cair.
— Ótimo — disse, ao vê-la explodir sem causar danos. Fechou a porta e colocou o cinto de segurança, verificou se os dois soldados estavam bem e ergueu os polegares para Pettikin.
Pettikin mal notou. Uma vez fora de Teerã, pousou o helicóptero numa clareira bem afastada de qualquer estrada ou aldeia, e verificou se havia algum buraco de bala. Quando viu que não havia nada, respirou aliviado.
— Cristo, não sei como agradecer, capitão — e estendendo a mão, com a cabeça doendo. — A princípio pensei que você fosse uma miragem, capitão...?
— Ross. Estes são o sargento Tenzing e o cabo Gueng.
Pettikin cumprimentou-os e agradeceu aos dois. Eram homens pequenos, alegres, mas duros e ágeis. Tenzing, o mais velho, devia ter uns cinqüenta anos.
— Vocês foram mandados pelos deuses, todos vocês.
— Não sabia como escapar daquela — sorriu Ross, os dentes muito brancos no rosto queimado. — Não teria sido muito bom atirar na polícia, em ninguém, aliás — nem mesmo na Savak.
— Concordo. — Pettikin nunca vira olhos tão azuis assim e calculou que ele devia ter quase trinta anos. — Que diabo estava acontecendo lá?
— Alguns recrutas na Força Aérea amotinaram-se e alguns oficiais e legalistas tentavam acabar com aquilo. Ouvimos dizer que partidários de Khomeini e esquerdistas estavam vindo ajudar os amotinados.
— Que confusão! Não sei como lhe agradecer. Como sabe o meu nome?
— Nós, ahn, soubemos do seu plano de vôo para Tabriz via Bandar-e Pahlavi e queríamos pegar uma carona. Mas nos atrasamos muito e pensamos que você já tinha partido — tivemos que dar voltas e mais voltas para chegar. Mas aqui estamos nós.
— Graças a Deus. Vocês são gurkhas?
— Só, ahn, uma unidade avulsa, por assim dizer.
Pettikin balançou a cabeça Pensativamente. Tinha notado que nenhum deles usava emblemas ou insígnias nos ombros — exceto pelas estrelas de capitão de Ross e por suas boinas vermelhas.
— E como é que uma 'unidade avulsa' é informada de planos de vôo?
— De fato não sei — disse Ross, distraidamente. — Apenas obedeço ordens. — Deu uma olhada em volta. O local era plano, desguarnecido e pedregoso, muito frio, com o solo coberto de neve. — Você não acha que devemos seguir? Estamos um pouco expostos aqui.
— O que está acontecendo em Tabriz? — perguntou Pettikin voltando para a cabine.
— Na verdade, gostaríamos de ficar deste lado de Bandar-e Pahlavi, se não se importa.
— É claro. — Pettikin tinha começado, automaticamente, as manobras de decolagem. — O que está havendo lá?
— Digamos que temos de falar com um homem sobre um cachorro.
— Há um monte de cachorros em toda parte! Nosso destino é Bandar-e Pahlavi, e vou parar de fazer perguntas. — Riu Pettikin, começando a gostar dele.
— Sinto muito, mas você sabe como é. Também agradeceria se você esquecesse meu nome e o fato de termos estado a bordo.
— E se me perguntarem... as autoridades? Nossa partida foi um tanto pública.
— Não disse meu nome; apenas obriguei-o — Ross sorriu — com terríveis ameaças!
— Está bem. Mas não vou esquecer seu nome.
Pettikin pousou a poucos quilômetros do porto de Bandar-e Pahlavi. Ross mostrara o local do pouso num mapa que levava. Era uma praia cheia de dunas, distante de qualquer aldeia, com as águas azuis do Cáspio bem mansas. O mar estava pontilhado de barcos de pesca e grandes tufos de nuvens flutuavam no céu ensolarado. Aqui o clima era tropical, o ar úmido estava coalhado de insetos, e não havia sinal de neve, embora as montanhas Elburz, atrás de Teerã, estivessem quase encobertas. Era altamente irregular aterrissar sem permissão, mas por duas vezes Pettikin chamara o aeroporto de Bandar-e Pahlavi, onde deveria reabastecer, e não recebera resposta, então achou que estaria seguro — podia alegar uma emergência.
— Boa sorte, e mais uma vez obrigado — e cumprimentou um por um.
— Se algum dia precisarem de alguma coisa, qualquer coisa, é só pedir. — Eles saltaram rapidamente, puseram as sacolas nos ombros e caminharam em direção às dunas. Foi a última imagem que teve deles.
— Tabriz Um, está me ouvindo?
Voava em círculos, apreensivamente, a duzentos metros, conforme mandava o regulamento, depois baixou um pouco. Nenhum sinal de vida — nenhuma luz acesa. Estranhamente inquieto, pousou perto do hangar. Lá ele esperou, pronto para uma partida imediata, sem saber o que esperar — as notícias de recrutas amotinados em Teerã, especialmente da elite da Força Aérea, perturbaram-no muito. Mas ninguém se aproximou. Nada aconteceu. Relutante, travou os comandos com muito cuidado e saiu, deixando os motores ligados. Era muito perigoso e contra o regulamento — porque se as travas se soltassem, o helicóptero poderia começar a girar e descontrolar-se.
Mas não quero ser apanhado desprevenido, pensou. Tornou a verificar as travas e dirigiu-se, rapidamente, através da neve para o escritório. Estava vazio, os hangares vazios exceto pelo 212 desmontado, os trailers também vazios, não havia sinal de ninguém — nem de luta. Um pouco mais tranqüilo, atravessou o acampamento o mais depressa que pôde. Sobre a mesa da cabana de Erikki Yokkonen havia uma garrafa vazia de vodca. Na geladeira havia outra cheia — teria apreciado muitíssimo um drinque, mas pilotar e beber eram coisas que não se misturavam. Havia também água engarrafada, um pouco de pão iraniano e presunto. Pettikin bebeu a água, satisfeito. Só vou comer depois de ter examinado tudo, pensou.
No quarto, a cama estava feita, mas viu sapatos espalhados. Gradualmente, seus olhos encontraram mais sinais de uma partida apressada. Os outros trailers mostravam os mesmos sinais. Não havia qualquer transporte na base e o Range Rover vermelho de Erikki também sumira. Estava claro que a base fora abandonada às pressas. Mas por quê?
Seus olhos examinaram o céu. O vento tinha aumentado e ele o ouviu assoviar através da floresta coberta de neve, acima do barulho dos motores. Sentiu o frio penetrar através da jaqueta, das calças grossas e por entre as botas. Seu corpo pedia um chuveiro quente — melhor ainda, uma das saunas de Erikki — além de comida, cama, uma bebida quente e oito horas de sono. O vento ainda não é problema, pensou, mas tenho no máximo mais uma hora de claridade para reabastecer e voltar pelo desfiladeiro em direção à planície. Ou passo a noite aqui?
Pettikin não era um homem do campo, nem da montanha. Conhecia o deserto, a selva, a estepe e a zona árida da Arábia Saudita. As grandes extensões planas nunca o perturbaram. Mas o frio sim. E a neve. Primeiro reabastecer, pensou.
Mas não havia combustível no depósito. Nenhum. Viu vários tambores de cem litros, mas estavam todos vazios. Não tem importância, disse a si mesmo, controlando o pânico. Tenho o suficiente nos meus tanques para os oitenta quilômetros de volta a Bandar-e Pahlavi. Poderia prosseguir até o aeroporto de Tabriz ou tentar arranjar algum combustível no depósito da ExTex em Ardabil, mas fica perto demais da fronteira soviética.
Mais uma vez examinou o céu. Maldição! Posso ficar aqui ou em algum lugar no meio do caminho. O que escolher?
Aqui. É mais seguro.
Desligou os motores e guardou o 206 no hangar, trancando a porta. O silêncio era ensurdecedor. Hesitou, depois saiu, fechando a porta do hangar atrás dele. Seus pés enterravam-se na neve e o vento o empurrava à medida que se dirigia ao trailer de Erikki. No meio do caminho parou, com o estômago torcendo-se. Sentiu que alguém o observava. Olhou em volta, os olhos e os ouvidos examinando a floresta e a base. O catavento dançava com os redemoinhos que agitavam o topo das árvores, fazendo-as estalar, uivando pela floresta, e de repente lembrou-se de Tom Lochart sentado junto a uma fogueira nas montanhas Zagros, em uma de suas viagens para esquiar, contando a lenda canadense do Wendigo, o demônio mau da floresta, nascido nos vendavais, que espreita no cimo das árvores, uivando, esperando para apanhá-lo desprevenido, e então mergulha em cima de você e você fica aterrorizado, começa a correr mas não consegue escapar nunca, e você sente seu hálito gelado no pescoço e corre cada vez mais, com passadas cada vez maiores até que seus pés se tornam tocos ensangüentados e o Wendigo o carrega para o alto das árvores e você morre.
Estremeceu, odiando estar sozinho ali. Curioso, nunca pensei nisso antes mas também quase nunca estou sozinho. Tem sempre alguém por perto, um mecânico, um piloto, um amigo, Genny, Mac ou Claire, como nos velhos tempos.
Ainda examinava atentamente a floresta. Em algum lugar, ao longe, cachorros começaram a latir. A sensação de que havia alguém ali ainda era muito forte. Com algum esforço, ignorou a apreensão, voltou até onde estava o helicóptero e encontrou a pistola de sinalização. Carregou a enorme pistola de nariz arrebitado bem à vista ao voltar para a cabana de Erikki e se sentiu melhor por tê-la. E se sentiu melhor ainda depois que trancou a porta e fechou as cortinas.
TEERÃ: 19:05H. McIver caminhava pela arborizada avenida residencial, agora deserta, sentindo-se cansado e com fome. As luzes das ruas estavam apagadas e ele foi andando cuidadosamente na penumbra, com a neve amontoada contra os muros das belas casas, dos dois lados da avenida. Ouvia o som de tiros à distância e, trazido pelo vento, o rumor de "Allahhh-u Akbarrr". Virou a esquina e quase tropeçou no tanque centurião estacionado em cima da calçada. Uma lanterna o cegou momentaneamente. Alguns soldados apareceram.
— Quem é você, aga? — perguntou um jovem oficial, em bom inglês. — O que está fazendo aqui?
— Sou o capitão... sou o capitão McIver, Duncan... Duncan McIver. Estou voltando do escritório para casa, e... e meu apartamento fica do outro lado do parque, depois da próxima esquina.
— Sua identidade, por favor.
Desajeitadamente, McIver pôs a mão no bolso interno do paletó. Sentiu os dois retratos que estavam ao lado do cartão de identidade, um do xá e outro de Khomeini, mas com todos os boatos do dia acerca de motins, não conseguiu decidir qual seria o certo, então não mostrou nenhum dos dois. O oficial examinou a identidade à luz da lanterna. Agora que os olhos de McIver se haviam habituado com a escuridão, notou o cansaço do homem, a barba por fazer e o uniforme amassado. Outros soldados observavam silenciosamente. Nenhum deles estava fumando, o que McIver achou estranho. O tanque se erguia sobre eles, malévolo, como se estivesse esperando para atacar.
— Obrigado. — O oficial entregou-lhe o cartão já bem gasto. Ouviram-se mais tiros, desta vez mais perto. Os soldados esperaram, espreitando a escuridão. — E melhor não ficar do lado de fora durante a noite, aga. Boa noite.
— Sim, obrigado. Boa noite. — Agradecido, McIver se afastou, imaginando se seriam legalistas ou revoltosos. — Cristo, se algumas unidades se amotinarem e outras não vai haver o diabo. Outra esquina, a rua e o parque também escuros e vazios, quando, há pouco tempo, havia sempre movimento e as luzes brilhavam, as janelas iluminadas e os empregados, as pessoas e as crianças todos alegres e rindo, correndo de um lado para o outro. É disso que eu mais sinto falta, pensou. Da alegria. Fico imaginando se algum dia esses tempos voltarão.
Seu dia fora frustrante, sem telefones, o contato por rádio com Kowiss ruim, e ele não conseguira se comunicar com nenhuma das outras bases. Novamente ninguém da sua equipe do escritório tinha chegado, o que o irritara ainda mais. Tentara passar um telex para Gavallan, mas não conseguira.
— Amanhã será melhor — disse, depois apressou o passo, sentindo-se mal com o vazio das ruas.
O prédio de apartamentos em que moravam tinha cinco andares e eles ocupavam um na cobertura. As escadas estavam mal iluminadas, com a eletricidade funcionando com metade da capacidade outra vez, o elevador parado há meses. Subiu as escadas cansado, com a fraca iluminação tornando a subida ainda mais tristonha. Mas dentro do apartamento as velas já estavam acesas e seu ânimo melhorou.
— Oi, Genny! — exclamou, trancou a porta e pendurou seu velho casacão inglês. — É hora do uísque!
— Duncan! Estou na sala de jantar, venha até aqui um minuto
Foi andando pelo corredor, parou na porta e ficou sem fala. A mesa estava coberta por uma dúzia de iguarias iranianas e travessas de frutas, com velas por toda parte. Genny sorriu para ele. E Xarazade também. Não é possível! E Xarazade, isto é obra sua? Que bom ver você e o que...
— Oh, é bom ver você também, Mac, você está cada dia mais moço, aliás, vocês dois. Peço desculpa por me intrometer — disse Xarazade, rapidamente, numa voz alegre e excitada — mas me lembrei que ontem foi o aniversário de casamento de vocês porque é cinco dias antes do meu aniversário, e sei que vocês gostam de horisht de carneiro e de polo e de outras coisas, então trouxemos tudo isso, Hassan, Dewa e eu, e velas também. — Ela não tinha nem um metro e meio, era o tipo de beleza persa que Ornar Khayyãm imortalizara. Ela se levantou. — Agora que você está de volta, já vou.
— Mas espere um momento, por que não fica e janta conosco e...
— Oh, mas não posso, por mais que quisesse, papai está dando uma festa esta noite e tenho que comparecer. Isto é só uma pequena lembrança. Deixarei Hassan aqui para servir e lavar a louça e espero que vocês se divirtam bastante. Hassan! Dewa! — chamou, depois abraçou Genny e McIver e correu para a porta onde seus dois empregados esperavam. Um deles segurava seu casaco de peles. Ela o vestiu, depois embrulhou-se na mortalha escura do chador, jogou outro beijo para Genny e saiu com o outro empregado. Hassan, um homem alto de trinta anos, vestindo uma túnica branca e calças escuras e exibindo um largo sorriso, tornou a fechar a porta.
— Posso servir o jantar, madame? — perguntou a Genny, em farsi.
— Sim, por favor, dentro de dez minutos — respondeu alegremente. — Mas primeiro o patrão vai tomar um uísque. — Imediatamente, Hassan foi até o aparador, serviu o drinque e trouxe a água, inclinou-se e os deixou.
— Por Deus, Gen, parecem os velhos tempos — disse McIver, com um sorriso.
— É. Nem parece que foi só há poucos meses.
Até pouco tempo eles tinham tido um casal de empregados maravilhoso, a mulher uma cozinheira exemplar, tanto para comida européia quanto iraniana, que compensava a preguiça do marido, a quem McIver apelidara de Ali Babá. Os dois desapareceram de repente, como quase todos os empregados de estrangeiros. Sem explicação e sem aviso.
— Fico imaginando se estarão bem, Duncan.
— Devem estar. Ali Babá era um espertalhão e deve ter economizado o bastante para mantê-los por muitos meses. Paula já foi?
— Não, ela vai tornar a passar a noite aqui. Nogger não. Foram jantar com uns colegas dela da Alitalia. — E arqueou as sobrancelhas. — O nosso Nogger acha que ela já está em condições de tomar uns tragos, mas eu espero que não. Gosto de Paula. — Podiam ouvir Hassan na cozinha. — Este é o som mais doce do mundo.
McIver sorriu para ela e ergueu o copo.
— Um brinde a Xarazade e ao fato de não termos que lavar a louça.
— Esta é a melhor parte — suspirou Genny. — Uma moça tão gentil, tão prestativa. Tom tem muita sorte. Xarazade disse que ele deve chegar amanhã.
— Espero que sim, ele está trazendo correspondência para nós. Você conseguiu falar com Andy?
— Não, não. Ainda não. — McIver decidiu não mencionar o tanque. — Você acha que poderia pedir Hassan ou um dos seus outros empregados emprestado uns dois dias na semana? Isso a ajudaria bastante.
— Não poderia fazer isso, você sabe como é.
— Acho que tem razão, é um problema.
No momento era quase impossível os estrangeiros conseguirem criados, não importa quanto estivessem dispostos a pagar. Até poucos meses conseguia-se sem dificuldade empregados cuidadosos e eficientes e com a ajuda deles e algumas palavras em farsi, era fácil administrar a casa e fazer compras.
— Essa era uma das melhores coisas do Irã — ela disse. — Faz tanta diferença; tira toda a alegria de se viver num país tão diferente.
— Você ainda o considera assim tão estranho, depois de tanto tempo?
— Mais do que nunca. Toda a delicadeza, a educação, dos poucos iranianos que conhecemos, sempre senti que eram superficiais, que seus sentimentos verdadeiros são os que estão sendo demonstrados agora. Não me refiro a todo mundo, evidentemente, os nossos amigos não: Annoush, por exemplo, é uma das pessoas melhores, mais gentis do mundo. — Annoush era a esposa do general Valik, o mais importante dos sócios iranianos. — A maioria das mulheres sentia isto, Duncan — acrescentou, pensativa —, talvez por isso é que os estrangeiros estavam sempre juntos, todos aqueles grupos de tênis, grupos de esqui, saídas de barco, fins-de-semana no mar Cáspio, e empregados para carregar as cestas de piquenique e lavar a louça. Acho que tínhamos uma boa vida, mas isso terminou.
— Vai voltar... confio em Deus que sim, tanto por nós quanto por eles. Quando voltava para casa, percebi, de repente, o que mais me faz falta. A alegria. Ninguém parece rir mais. Quero dizer, nas ruas, nem as crianças — McIver tomava seu uísque bem fraco.
— Sim, também sinto muita falta da alegria. Também sinto falta do xá. Uma pena que ele tivesse que partir. Tudo estava em ordem, pelo menos para nós, até pouco tempo. Pobre homem, que tratamento horrível estamos dando a ele agora, a ele e à sua linda esposa, depois de toda a amizade que ele nos demonstrou. Eu me sinto envergonhada... ele procurou fazer o melhor por seu povo.
— Infelizmente, Genny, para a maioria parece que não foi o bastante.
— Eu sei. É triste. A vida é muito triste, às vezes. Bem, não adianta lamentar o que já aconteceu. Você está com fome?
— Se estou?
As velas tornaram a sala de jantar mais quente e aconchegante e afastaram a tristeza do apartamento. As cortinas estavam cerradas para a noite. Rapidamente, Hassan trouxe as tigelas quentes de horisht — o que, literalmente, significa sopa, mas na verdade é um ensopado de carneiro ou galinha com legumes, passas e temperos de todos os tipos — e polo, o delicioso arroz iraniano que é escaldado e depois assado num prato untado com manteiga até que fique com uma crosta firme e dourada, um dos pratos favoritos dos dois.
— Deus abençoe Xarazade, ela é um bálsamo para os olhos.
— É verdade, e Paula também — respondeu Genny sorrindo.
— Você também não é má, Gen.
— Deixe disso, mas como prêmio você vai poder tomar um drinque antes de dormir. Como diria Jean-Luc, bon appétit! — Eles comeram com apetite, a comida estava deliciosa, fazendo-os recordarem as refeições feitas nas casas dos amigos.
— Gen, encontrei o jovem Christian Tollonen na hora do almoço, você se lembra dele, aquele amigo de Erikki da embaixada da Finlândia? Ele me disse que o passaporte de Azadeh estava pronto. Isso é bom, mas o que me fez estremecer foi o que ele disse de passagem: que oito em dez dos seus amigos e conhecidos iranianos já não estão mais no Irã e que se este êxodo continuasse, logo logo só restariam os mulás e seus seguidores. Então comecei a fazer as contas e cheguei ao mesmo resultado, com relação aos que diríamos pertencer às classes média e alta.
— Não os culpo por partirem. Eu faria o mesmo. — Depois acrescentou involuntariamente: — Não acho que Xarazade faça isso.
McIver percebeu algum subentendido e analisou-a.
— Hum?
Genny brincou com um pedacinho de crosta dourada e mudou de idéia a respeito de não contar-lhe nada.
— Pelo amor de Deus, não diga nada a Tom, senão ele tem um ataque, e eu não sei até que ponto é verdade e até que ponto isso não passa de fantasia de uma jovem idealista, mas ela me cochichou alegremente que tinha passado a maior parte do dia em Doshan Tappeh onde, segundo ela, houve uma verdadeira insurreição, com armas, granadas, todos...
— Cristo!
— ...lutando ao lado do que ela chama "nossos gloriosos combatentes da liberdade" que são recrutas da Força Aérea e alguns oficiais amotinados, Faixas Verdes apoiados por milhares de civis, lutando contra a polícia, as tropas legalistas e os Imortais...
NO AEROPORTO DE BANDAR DELAM: 19:50H. Com o pôr-do-sol, mais revolucionários armados tinham chegado e agora havia guardas em todos os hangares e vias de acesso ao aeroporto. Rudi Lutz fora informado por Zataki que nenhum funcionário da S-G podia sair do aeroporto sem permissão, que deveriam continuar a trabalhar normalmente e que um ou mais dos seus homens acompanharia todos os vôos.
— Não vai acontecer nada desde que vocês obedeçam às ordens — dissera Zataki. — É uma situação temporária durante a transição do governo ilegal do xá para o novo governo do povo. — Mas seu nervosismo e o de toda a sua ralé mal disciplinada desmentiam sua confiança.
Starke ouvira o que eles andavam cochichando e disse a Rudi que esperavam a qualquer momento a chegada de tropas leais ao xá e o início do contra-ataque. Mas quando ele, Rudi, e o outro piloto americano, Jon Tyrer, conseguiram chegar até o rádio do trailer de Rudi, o noticiário já estava no fim. O pouco que ouviram foi muito ruim.
"...e os governos da Arábia Saudita, do Kuwait e o Iraque temem que a crise política no Irã desestabilize todo o golfo Pérsico; informou-se também que o sultão de Omã teria afirmado que o problema é maior do que uma simples influência perniciosa, é outra cobertura conveniente para a Rússia Soviética usar sua série de estados dependentes para criar, nada mais nada menos, do que um império colonial no golfo com o objetivo final de se apoderar do estreito de Ormuz... "
"No Irã, informa-se que houve luta intensa, durante a noite, entre os amotinados, cadetes da Força Aérea, pró-Khomeini, da base aérea de Doshan Tappeh, em Teerã — apoiados por milhares de civis armados — contra a polícia, as tropas legalistas e algumas unidades dos Imortais, a Guarda Imperial de elite do xá. Mais tarde, juntaram-se aos revoltosos mais de cinco mil esquerdistas do grupo marxista Saihkal, alguns dos quais invadiram o arsenal da base e levaram suas armas... "
— Jesus! — exclamou Starke.
"... Enquanto isso, o aiatolá Khomeini pediu, mais uma vez, a renúncia de todo o governo e fez um apelo ao povo para que apóie sua escolha do primeiro-ministro, Mehdi Bazargan, exortando o Exército, a Marinha e a Aeronáutica a apoiá-lo. O primeiro-ministro Bakhtiar desmentiu os boatos de um golpe militar iminente, mas confirmou uma grande concentração de tropas soviéticas na fronteira... "
"O ouro atingiu o preço recorde de US$ 254 a onça e o dólar teve uma queda acentuada em relação às outras moedas. Aqui terminam as notícias de Londres. "
Rudi desligou o rádio. Eles estavam na sala do trailer. Em um dos armários, havia um HF de reserva que, como o rádio, ele mesmo fizera. Sobre o aparador, havia um telefone ligado com o sistema da base. O telefone não estava funcionando.
— Se Khomeini vencer em Doshan Tappeh, as Forças Armadas terão que escolher — disse Starke, com segurança. — Golpe, guerra civil ou ceder.
— Eles não vão ceder, seria suicídio, por que fariam isso? — disse Tyrer. Ele era um americano desconjuntado de Nova Jersey. — E não se esqueça da elite da Força Aérea, os que nós conhecemos, pelo amor de Deus. Os amotinados não passam de uma cambada de nativos imbecis, descontentes. O problema mesmo é a adesão dos marxistas, cinco mil! Jesus! Se eles estiverem em ação agora, armados! Nós somos doidos de estarmos aqui numa hora destas, hein?
— Só que nós estamos aqui por opção; a companhia diz que ninguém vai perder o cargo se quiser sair. Temos isso por escrito. Você quer dar o fora? — perguntou Starke.
— Não, não, ainda não. — Respondeu Tyrer, irritado. — Mas o que vamos fazer?
— Em primeiro lugar, fique longe de Zataki — disse Rudi. Aquele filho da mãe é psicótico.
— É claro — disse Tyrer — mas temos que ter um plano.
Bateram com força na porta e a abriram. Era Muhammad Yemeni, o gerente da IranOil — um homem bem-apessoado, barbeado, de uns quarenta anos, que estava com eles há um ano. Dois guardas o acompanhavam.
Aga Kyabi está no HF. Quer falar com você imediatamente — disse com uma arrogância inesperada. Kyabi era o gerente geral da IranOil naquela região e o funcionário mais importante no sul do Irã.
Imediatamente, Rudi ligou o HF para falar com o QG de Kyabi, próximo a Ahwaz, ao norte de Bandar Delam. Para seu espanto, o aparelho não funcionou. Mexeu no interruptor algumas vezes, depois Yemeni disse, com um sorriso de deboche:
— O coronel Zataki ordenou que cortassem a corrente e desligassem o aparelho. Você usará o aparelho do escritório. Imediatamente.
Nenhum deles gostou do seu tom de voz.
— Estarei lá em um minuto — disse Rudi.
Yemeni fechou a cara e ordenou para os guardas, em farsi:
— Façam este cão estrangeiro andar depressa!
— Esta tenda é do nosso chefe — respondeu Starke, imediatamente, em farsi. — Existem leis muito especiais, no Sagrado Corão, sobre a defesa do chefe da tribo, na sua tenda, contra homens armados. — Os dois guardas pararam, atônitos. Yemeni olhou boquiaberto para Starke, jamais tendo imaginado que ele falava farsi, depois deu um passo para trás quando Starke se levantou em toda a sua altura e continuou: — O Profeta, cujo Nome seja louvado, estabeleceu regras de cortesia entre amigos, e também entre inimigos, e disse também que os cães são vermes. Nós somos Povos do Livro e não vermes.
Yemeni enrubesceu, deu meia-volta e saiu. Starke enxugou nas calças o suor das mãos.
— Rudi, vamos ver o que Kyabi quer.
Seguiram Yemeni pelo asfalto, acompanhados dos guardas. A noite estava clara e o ar pareceu agradável a Starke, depois do abafamento do pequeno escritório.
— O que foi que houve? — perguntou Rudi.
Starke explicou, com o pensamento longe, desejando estar de volta a Kowiss. Tinha odiado deixar Manuela, mas achou que ela estaria mais segura lá do que em Teerã.
— Querida — dissera, pouco antes de partir — vou tirar você daqui o mais depressa que puder.
— Eu estou segura aqui, querido, tão segura quanto no Texas. Tenho muito tempo, as crianças estão a salvo em Lubbock, só saí da Inglaterra depois que soube que eles estavam em casa. Você sabe que vovô Starke não vai deixar que lhes aconteça nada de mal.
— Claro. Os garotos vão ficar muito bem, mas quero você fora do Irã o mais depressa possível.
Starke voltou a ouvir Rudi perguntar
— Quem são os Povos do Livro?
— Cristãos e judeus — respondeu, imaginando como poderia chegar com o 125 a Kowiss. — Maomé considerava a nossa Bíblia e a Torah como Livros Sagrados também, muita coisa que está neles também está no Corão. Muitos estudiosos, nossos estudiosos, acham que ele simplesmente os copiou, embora a tradição muçulmana diga que Maomé não sabia ler nem escrever. Ele recitou o Corão, inteirinho, pode imaginar isso? — disse, demonstrando admiração por esse feito. — Outros o escreveram, anos depois de sua morte. Em árabe é extraordinariamente belo, sua poesia, é o que dizem.
Na frente deles estava o trailer que servia de escritório, com guardas fumando do lado de fora, e Starke sentiu-se bem por ter lidado satisfatoriamente com Yemeni, e também com o mulá Hussein — quinze aterrissagens, perfeitas, aguardando nas plataformas enquanto o mulá fazia preleções aos trabalhadores a favor de Khomeini, sem que aparecesse um soldado, um policial ou a Savak, sempre, esperando que aparecessem a qualquer momento ou na próxima parada. Yemeni é titica de galinha comparado com Hussein, pensou.
Zataki e os dois mulás esperavam no escritório. Jahan, o operador de rádio, estava no HF. Zataki sentara-se na mesa de Rudi. O escritório sempre fora muito arrumado. Agora estava uma bagunça, com os arquivos abertos e papéis espalhados por toda parte, xícaras sujas, tocos de cigarro nas xícaras e pelo chão, comida em cima da mesa — arroz e carne de carneiro. E o ar fedia a fumaça de cigarro.
— Mein Gott! — disse Rudi, enraivecido. — Isto está um verrückte chiqueiro e...
— CALE A BOCA! — Explodiu Zataki. — Isto é uma situação de guerra, temos que revistar tudo. — Depois acrescentou, com mais calma: — Você... você pode mandar um dos seus homens arrumar tudo. Você não vai contar a Kyabi sobre nós. Vai agir normalmente e seguir minhas instruções, vai ficar olhando para mim. Está entendendo, capitão?
Rudi balançou a cabeça, com a cara fechada. Zataki fez um sinal ao operador de rádio, que disse ao microfone:
— Kyabi, Excelência, o capitão Lutz está aqui. Rudi pegou o microfone.
— Sim, patrão? — disse, chamando-o pelo apelido que lhe tinham dado. Tanto ele quanto Starke conheciam Yusuf Kyabi há vários anos. Kyabi fora treinado na Texas A&M e depois pela ExTex, antes de assumir o setor sul, e as relações entre eles eram muito boas.
— Boa noite, Rudi — disse a voz, em inglês com sotaque americano. — Estamos com um vazamento em um dos nossos oleodutos em algum lugar ao norte daí. É um vazamento grande, acabou de ser detectado pelas nossas estações de bombeamento. Deus sabe quantos barris já foram bombeados ou quanto ainda resta no oleoduto. Não estou solicitando uma emergência, mas quero um helicóptero ao amanhecer para encontrar o vazamento. Você pode vir me apanhar cedo?
Zataki fez sinal que sim, então Rudi respondeu:
— OK, patrão. Estaremos aí o mais cedo possível. Você quer um 206 ou um 212?
— Um 206, seremos eu e meu engenheiro-chefe. Venha você mesmo, sim? Pode ser sabotagem... pode ser um vazamento. Tiveram algum problema em Bandar Delam?
Rudi e Starke estavam bem conscientes das armas na sala.
— Não, não mais do que o normal. Vejo você amanhã. — Disse Rudi, querendo interrompê-lo, porque Kyabi era geralmente muito franco a respeito dos revolucionários. Ele não aprovava nem a revolução nem o fanatismo de Khomeini, e detestava interferência no seu complexo petrolífero.
— Espere um momento, Rudi. Ouvimos dizer que ocorreram mais distúrbios em Abadan, e ouvimos tiroteio em Ahwaz. Você sabia que um americano do ramo do petróleo e um dos nossos sofreram uma emboscada e foram mortos perto de Ahwaz, ontem?
— Sim, Tommy Stanson. Terrível.
— Se é. Que Deus amaldiçoe todos os assassinos! Tudeh, mujhadin, fedayim ou seja lá quem for.
— Sinto muito, patrão, mas preciso desligar. Vejo você amanhã.
— Está bem, conversamos amanhã. Insha'Allah, Rudi. Insha'Allah! A transmissão foi cortada. Rudi deu um suspiro de alívio. Não achou que
Kyabi tivesse dito alguma coisa que pudesse prejudicá-lo. A não ser que aqueles homens fossem secretamente do Tudeh — ou de algum dos outros grupos extremistas — e não partidários de Khomeini como afirmavam. "Todos os nossos grupos extremistas usam mulás como disfarce, ou tentam usá-los. " Kyabi tinha dito a ele. "Infelizmente, a maioria dos mulás são camponeses empobrecidos, ignorantes, uma presa fácil para revoltosos bem treinados. Que Deus amaldiçoe Khomeini... "
Rudi sentiu o suor escorrer pelas costas.
— Um dos meus homens irá com você, e desta vez você não vai tirar o pente de balas dele — disse Zataki.
O queixo de Rudi se projetou e a tensão na sala cresceu.
— Eu não vou voar com homens armados. É contra as regras da companhia, as regras da aviação, e principalmente contra as ordens do DAC iraniano. Se desobedecermos às regras do DAC, nossas licenças serão cassadas — disse, com ódio deles.
— Talvez eu mate um dos seus homens se você não obedecer. — Furiosamente, Zataki deu um tapa numa xícara que estava em cima da mesa e ela rolou pela sala.
Starke avançou, igualmente furioso. Zataki apontou o revólver para ele.
— Os seguidores do aiatolá Khomeini são assassinos? É esta a lei do Islã? Por um instante, Starke pensou que Zataki fosse puxar o gatilho, então o mulá Hussein levantou-se.
— Eu irei no avião. — Depois virou-se para Rudi: — Você jura que não vai tentar nos enganar e que vai voltar sem truques?
— Sim — disse Rudi, depois de uma pausa, com a voz tremendo.
— Você é cristão?
— Sim.
— Jure por Deus que não vai nos enganar.
— Está bem. Eu juro por Deus que não vou enganá-los — concordou Rudi, depois de nova pausa.
— Como pode confiar nele? — perguntou Zataki.
— Eu não confio — disse, com simplicidade, Hussein. — Mas se ele enganar a Deus, Deus o castigará. E a seus companheiros. Se nós não voltarmos ou se ele criar problemas... — E deu de ombros.
ABERDEEN — MANSÃO DE GAVALLAN: 19: 23H. Todos estavam na sala de televisão, assistindo, num telão, a um replay da partida de rugby daquele dia entre a Escócia e a França — Gavallan, sua mulher Maureen, John
Hogg, que geralmente pilotava o jato 125 da companhia, e alguns outros pilotos. O escore era 17 a 11 a favor da França, já quase no fim do segundo tempo. Todos os homens gemeram quando um escocês perdeu a bola, um francês recuperou-a e avançou quase quarenta metros.
— Aposto dez libras que a Escócia ainda vai ganhar! — disse Gavallan.
— Aceito a aposta — respondeu sua mulher e riu com a cara que ele fez. Ela era alta e ruiva e usava roupas de um verde elegante que combinavam com os seus olhos. — Afinal de contas, eu sou meio francesa.
— Um quarto — sua avó era da Normandia — quelle horreur, e ela... — O barulho da torcida interrompeu sua brincadeira quando o atacante escocês arrancou a bola do meio do bolo, atirou-a para um lateral que a atirou para um outro que se livrou da confusão, derrubou dois adversários e se lançou para a linha de gol 45 metros à frente, ziguezagueando, mudando brilhantemente de direção para depois tornar a avançar, tropeçando mas conseguindo se equilibrar, depois se lançando numa última corrida gloriosa e mergulhando sobre a linha, sendo imediatamente afogado por corpos e aplausos ensurdecedores. Conseguiu! 17 a 15 agora. Um chute a gol bem-sucedido empataria o jogo. — Pra frente Escócia...
A porta se abriu e um empregado ficou ali parado. Simultaneamente, Gavallan levantou, observou apreensivo o chute que foi certeiro e respirou aliviado.
— O dobro ou nada, Maureen? — perguntou por cima do pandemônio, sorrindo para ela enquanto saía apressado.
— Aceito!
Ela já está vinte libras mais pobre, pensou, muito satisfeito consigo mesmo, atravessando o corredor da enorme casa velha e ampla, bem mobiliada com muito couro, bons quadros e belas antigüidades, muitas delas da Ásia, e foi para o escritório que ficava em frente. Lá dentro, seu motorista — que era também guarda-costas e homem de confiança — que tentava ligar para McIver em Teerã há três horas e controlar as ligações de fora, estendeu-lhe um dos fones.
— Sinto muito interromper, senhor, o...
— Conseguiu ligar para ele, Williams? Que bom. O placar está 17 a 17.
— Não, senhor, sinto muito, as linhas ainda estão ocupadas; mas achei que esta chamada era importante: Sir Ian Dunross.
A decepção de Gavallan desapareceu. Ele pegou o fone, Williams saiu e fechou a porta.
— Ian, que ótimo falar com você; é uma surpresa agradável.
— Olá, Andy, pode falar mais alto? Estou ligando de Shangai.
— Pensei que você estivesse no Japão; posso ouvi-lo muito bem. Como vão as coisas?
— Ótimas. Melhor do que eu esperava. Ouça, preciso falar depressa, é que ouvi um boato, dois, na verdade. O primeiro é que o tai-pan precisa fazer algum bom negócio para tirar a ele mesmo e à Struan's do buraco este ano. E quanto ao Irã?
— Todo mundo acha que as coisas vão esfriar, Ian. Mac tem tudo sob controle, na medida do possível; prometeram-nos todos os contratos da Guerney, de modo que acho que vamos aumentar, talvez dobrar nossos lucros, desde que não haja nenhum Ato de Deus.
— Talvez haja.
Toda a alegria de Gavallan desapareceu. Mais de uma vez seu velho amigo tinha-lhe dado algum aviso ou informação que mais tarde mostrava-se espantosamente correta — ele nunca soube onde Dunross obtinha suas informações, ou com quem, mas ele raramente se enganava.
— Outra coisa, acabei de saber que houve ordens secretas, de alto nível, talvez até nível de gabinete, para uma mudança financeira e administrativa na Imperial Air. Isso poderá afetá-lo?
Gavallan hesitou. A Imperial Air era a proprietária da Imperial Helicopters, sua maior competidora no mar do Norte.
— Não sei, Ian. Na minha opinião, eles esbanjam o dinheiro dos contribuintes; eles precisam mesmo de uma reorganização. Nós ganhamos deles em todas as áreas que posso imaginar, segurança, salários, equipamentos... por falar nisso, eu encomendei seis X63.
— O tai-pan sabe disso?
— Ficou puto quando soube. — Gavallan ouviu a gargalhada, e por um instante se viu de volta a Hong Kong dos velhos tempos, quando Dunross era tai-pan e a vida era dura mas profundamente excitante, quando Kathy era Kathy e não estava doente. Droga, pensou, e tornou a se concentrar. — Qualquer coisa que diga respeito à Imperial é importante; vou checar imediatamente. As outras novidades daqui são muito boas; novos contratos com a ExTex. Eu ia anunciar isso na próxima reunião de diretoria. A Struan's não está em perigo, está?
— A Casa Nobre está sempre em perigo, cara! — disse, dando outra gargalhada. — Só queria avisar. Tenho que desligar. Mande um beijo para Maureen.
— E mande um para Penélope também. Quando é que eu vejo você?
— Logo. Ligo quando puder; dê lembranças minhas ao Mac quando o encontrar. Até logo.
Imerso em pensamentos, Gavallan sentou-se na beirada da bela escrivaninha. Seu amigo sempre dizia 'logo' e isto podia significar um mês ou um ano, até dois. Já faz mais de dois anos que não o vejo, pensou. É uma pena que ele não seja mais tai-pan — uma pena ele ter-se aposentado, mas todos nós temos que sair para outra de vez em quando. "Para mim chega, Andy", dissera Dunross, "a Struan's está em excelente forma, os anos setenta prometem ser uma época fantástica para se expandir e... bem, agora não há mais nenhuma excitação. " Isto foi em 1970, logo depois que seu maior e mais odiado rival, Quillan Gornt, tai-pan da Rothwell-Gornt, afogou-se num acidente de barco perto de Sha Tin, nos Novos Territórios de Hong Kong.
Imperial Air? Gavallan deu uma olhada no relógio, estendeu a mão para o telefone, mas parou ao ouvir uma batida discreta na porta. Maureen entrou e sorriu alegre vendo que ele não estava no telefone.
— Ganhei. Foi 21 a 17. Está ocupado?
— Não, entre querida.
— Não posso, tenho que ver se o jantar está pronto. Dentro de dez minutos? Pode me pagar agora, se quiser.
— Depois do jantar! Você é um estouro, sra. Gavallan — disse rindo, e abraçou-a.
— Ótimo. Não se esqueça. — Sentia-se bem nos braços dele. — Tudo certo com Mac?
— Era o Ian. Ligou só para dizer alô. De Shangai.
— Ele também é um homem incrível. Quando vamos vê-lo?
— Logo.
Novamente ela riu junto com ele, os olhos brilhantes e a pele macia. Tinham se encontrado pela primeira vez há sete anos, no Castelo Avisyard, onde o então tai-pan, David MacStruan, dava uma festa de Ano-Novo. Ela tinha 28 anos, estava recém divorciada e não tinha filhos. Seu sorriso fizera-o esquecer as tristezas e Scot sussurrara: "Papai, se você não a arrastar para o altar é porque está maluco. " Sua filha Melissa dissera o mesmo. E assim, há três anos, eles se casaram, e desde então todos os dias tinham sido felizes.
— Dez minutos, Andy? Tem certeza?
— Sim, só tenho que dar um telefonema. — Gavallan viu-a franzir a testa e acrescentou rapidamente: — Prometo. Só um e depois Williams fica atendendo o telefone.
Ela lhe deu um beijo rápido e saiu. Gavallan discou.
— Boa noite, Sir Percy pode atender? Aqui é Andrew Gavallan. — Sir Percy Smedley-Taylor, diretor da Struan's Holdings, era membro do Parlamento e estava cotado para ministro da Defesa se os conservadores vencessem as próximas eleições.
— Alô, Andy, que bom você ter ligado. Se é a respeito da caçada do próximo sábado, pode contar comigo. Desculpe não ter respondido antes, mas as coisas têm sido bastante agitadas com este pseudo governo fazendo o país andar para trás, e os malditos sindicatos também; se ao menos eles se dessem conta disso.
— Concordo plenamente. Estou atrapalhando você?
— Não, você me pegou em casa por pouco; estou indo para o Parlamento para outra votação noturna. Entre outras coisas, os imbecis querem nos ver fora da OTAN. Como foi o teste com o X63?
— Maravilhoso! Melhor do que eles diziam. É o melhor do mundo!
— Gostaria muito de experimentá-lo, se você puder conseguir isto. O que posso fazer por você?
— Ouvi um boato de que está havendo uma reorganização secreta na alta cúpula da Imperial Air. Você ouviu alguma coisa?
— Meu Deus, Andy, seus contatos são muito bons. Eu só ouvi este boato hoje à tarde, cochichado em segredo por uma fonte fidedigna da oposição. Muito estranho! Na hora, não dei muita importância. O que será que eles estão tramando? Você tem algo de concreto para comprovar?
— Não. Só o boato.
— Vou verificar. Será... Será que os cafajestes estão se preparando para nacionalizar oficialmente a Imperial, junto com a Imp Helicopters, você e todo o mar do Norte?
— Meu Deus — a preocupação de Gavallan aumentou. Esta idéia não lhe ocorrera. — Eles podem fazer isso se quiserem?
— Sim, facilmente.
DOMINGO 11 de fevereiro
FORA DE BANDAR DELAM: 6: 55H. Amanhecera há pouco. Rudi tinha pousado longe da galeria e agora todos quatro estavam em pé na borda. A temperatura estava agradável e até o momento não houvera qualquer problema. Ainda vazava petróleo do oleoduto, mas sem pressão.
— É só o que ainda ficou no cano — disse Kyabi. — Deve parar dentro de uma hora. — Ele era um homem de feições marcadas, com cerca de cinqüenta anos, bem barbeado, de óculos, e usava uma roupa cáqui e um chapéu duro. Olhou em volta, zangado. A terra estava ensopada de petróleo e os gases eram quase insuportáveis. — Esta área toda é letal. — Foi andando na frente até o carro virado. Havia três corpos no meio dos destroços e já estavam começando a cheirar mal.
— Amadores? — perguntou Rudi, espantando as moscas. — Explodiu antes da hora?
Kyabi não respondeu. Entrou na galeria. Era difícil respirar mas ele examinou cuidadosamente a área, depois voltou para a estrada.
— Eu diria que você está certo, Rudi. — Olhou para Hussein com a cara fechada. — Foi gente sua?
— O imã não deu ordens para sabotar oleodutos. Isto é obra dos inimigos do Islã — respondeu o mulá, tirando os olhos do carro.
— Há muitos inimigos do Islã que afirmam serem seguidores do Profeta, que se apropriaram de suas palavras e as deturparam — disse Kyabi com amargura —, traindo a ele e ao Islã.
— Eu concordo, e Deus vai descobri-los e castigá-los. — Os olhos escuros de Hussein estavam igualmente severos. — O que o senhor pode fazer a respeito do vazamento?
Tinham levado duas horas para encontrar o vazamento. Voaram em círculos a poucas centenas de metros de altura, estarrecidos com a extensão do vazamento, que inundara o riacho e suas margens e, levado pela corrente, já atingira alguns quilômetros rio abaixo. Uma espuma grossa e negra cobria a superfície, de uma margem a outra. Até agora apenas uma aldeia fora afetada. Alguns quilômetros para o sul havia muitas outras aldeias. O rio fornecia água para beber, para lavar, e era o esgoto deles.
— Queime tudo, o mais depressa possível. — Kyabi olhou para o engenheiro. — Sim?
— Sim, sim, é claro. Mas e a aldeia, Excelência? — O engenheiro era um iraniano nervoso, de meia-idade, que observava, pouco à vontade, o mulá.
— Evacue a aldeia. Diga aos aldeões para saírem até tudo estar seguro.
— E se a aldeia pegar fogo? — perguntou Rudi.
— Se pegar, pegou. É a Vontade de Deus.
— Sim — disse Hussein. — Como vão fazer para queimar?
— Um fósforo seria o suficiente. É claro que você queimaria junto. — Kyabi pensou por um momento. — Rudi, você está com sua pistola de sinalização a bordo?
— Sim. — Rudi insistira em levar a pistola, dizendo que era equipamento essencial em caso de emergência. Todos os pilotos o apoiaram embora soubessem que não era essencial. — E com quatro foguetes de sinalização. Você...
Todos olharam para o céu ao ouvir o barulho de jatos se aproximando. Dois caças, voando baixo e muito depressa, passaram por cima deles em direção ao golfo. Rudi calculou que eles estavam indo diretamente para Kharg. Eram caças de combate e ele vira os mísseis que carregavam. Será que os mísseis são para a ilha Kharg? perguntou a si mesmo, sentindo a garganta apertada. Será que a revolução já chegou até lá? Ou é apenas um vôo de rotina?
— O que você acha, Rudi? Kharg? — perguntou Kyabi.
— Kharg fica naquela direção, patrão — disse Rudi, não querendo comprometer-se. — Se for, deve ser um vôo de rotina. Tínhamos uma dúzia de decolagens e aterrissagens por dia, quando estávamos lá. Você quer usar a pistola para atear fogo?
Kyabi mal o escutou. Suas roupas estavam manchadas de suor, as botas pretas de óleo. Estava pensando no motim da Força Aérea, em Doshan Tappeh. Se aqueles dois pilotos também são revoltosos e atacam Kharg e sabotam nossas instalações lá, pensou, quase sufocado de raiva e frustração, o Irã vai retroceder uns vinte anos.
Quando Rudi viera apanhá-lo cedinho, naquele dia, Kyabi ficara atônito ao ver o mulá e exigira uma explicação. Quando o mulá respondeu, cheio de ódio, que Kyabi deveria fechar todas as instalações e se declarar a favor de Khomeini imediatamente, quase ficou sem fala.
— Mas isso é a revolução. Isso significa a guerra civil!
— É a Vontade de Deus — dissera Hussein. — Você é iraniano, e não um lacaio estrangeiro. O imã ordenou que enfrentássemos as Forças Armadas e os vencêssemos. Com a ajuda de Deus, seremos a primeira república islâmica verdadeira na Terra, desde os dias do Profeta, que a Bênção de Deus esteja com ele.
Kyabi tinha tido vontade de dizer o que já dissera muitas vezes em particular:
— É um sonho de louco, e o seu Khomeini é um velho mau e senil, levado por uma vingança pessoal contra os Pahlavis Reza Xá, cuja polícia ele acredita que tenha assassinado seu pai, e o Muhammad Xá, cuja Savak ele acredita que tenha assassinado seu filho no Iraque há alguns anos; ele não passa de um fanático medíocre que quer nos fazer voltar, a nós, o povo, e principalmente as mulheres, para a Idade Média.
Mas hoje não dissera nada disso para o mulá. Em vez disso, voltou sua atenção para o problema da aldeia.
— Se a aldeia pegar fogo, eles podem reconstruí-la facilmente. Seus pertences é que são importantes. — E disfarçou o ódio.
— Pode ajudar, se quiser, Excelência. Eu apreciaria sua ajuda. Pode falar com eles.
Os aldeões se recusaram a partir. Pela terceira vez, Kyabi explicou que o fogo era o único meio de salvar a água deles e de salvar as outras aldeias. Então Hussein lhes falou, mas eles ainda se recusavam a partir. Nessa altura, já estava na hora da oração do meio-dia e o mulá conduziu as preces e mais uma vez lhes disse para saírem das margens do rio. Os mais velhos consultaram uns aos outros e disseram:
— É a Vontade de Deus. Nós não vamos partir.
— É a Vontade de Deus — Hussein concordou. E virou as costas e foi andando na frente até o helicóptero.
Novamente eles pousaram perto da galeria. Agora saía apenas um filete de óleo do cano.
— Rudi — disse Kyabi —, ande na direção do vento, o mais longe que puder, e atire um foguete de sinalização dentro da galeria. Depois atire outro no meio da corrente. Pode fazer isso?
— Posso tentar. Nunca atirei com uma pistola de sinalização antes.
Rudi andou em direção ao deserto. Os outros voltaram para o helicóptero que ele tinha estacionado a uma distância segura. Quando estava em posição, colocou o enorme cartucho dentro da pistola, mirou e puxou o gatilho. A pistola deu um coice maior do que esperava. O jato de fogo descreveu um arco baixo, ricocheteou ao cair antes do tempo, depois tornou a saltar e caiu dentro da galeria. Por um momento, nada aconteceu, depois a terra explodiu e o fogo se espalhou para o alto e para os lados, transformando o carro virado numa pira funerária. A onda de choque superaquecida o envolveu e depois se expandiu. Uma fumaça preta subiu em direção ao céu. O fogo começou a se espalhar, correndo em direção ao riacho.
O segundo jato vermelho fez um arco bem alto e depois caiu no rio. O rio pegou fogo. Eles souberam disto mais pelo som do que pela visão, mas quando tornaram a decolar, costeando o rio na direção do vento, viram o fogo se espalhando rapidamente correnteza abaixo. Vastas nuvens de fumaça negra marcavam seu caminho. Perto da aldeia voaram em círculo. Homens, mulheres e crianças fugiam com o que podiam carregar. Enquanto olhavam, a aldeia foi destruída.
Os quatro homens voaram de volta para casa.
Para Kyabi, o lar era o QG da IranOil, nas redondezas de Ahwaz, um conjunto harmonioso de edifícios de concreto branco, com gramados bem irrigados e um heliporto cercado por um muro alto.
— Obrigado, Rudi — disse, com o coração pesado. Em volta do helicóptero formara-se um anel de homens armados que tinham vindo correndo assim que pousaram, gritando e apontando as armas. Atrás de Kyabi, o mulá brincava com seu terço de orações.
Kyabi soltou o cinto de segurança. É a Vontade de Deus, pensou. Fiz o que pude, rezei corretamente e sei que não há nenhum outro deus além de Deus e que Maomé é o seu Profeta. Quando eu morrer, morrerei amaldiçoando os inimigos de Deus, principalmente Khomeini, falso Profeta, assassino, e todos os que o seguem.
Ele se virou. Seu engenheiro estava com a cara cinzenta e rígido no assento ao lado de Hussein.
— Mulá, eu o recomendo à vingança de Deus. — Kyabi saltou.
Eles atiraram em Kyabi e arrastaram o engenheiro. Depois, como o mulá tivesse pedido, permitiram que o helicóptero partisse.
NA BASE AÉREA DE KOWISS: 17:09H. Manuela caminhava depressa pelas instalações da S-G em direção ao prédio de escritórios de um andar que parecia agradável ao sol da tarde, com a torre de rádio projetando-se como um segundo andar. Usava um macacão de vôo com o emblema da S-G nas costas e seu cabelo castanho-avermelhado estava enfiado num boné largo e pontudo, mas o andar denunciava-lhe a feminilidade.
No escritório havia três homens da equipe iraniana. Educadamente, eles se levantaram e sorriram, observando-a com seus olhos cobertos por cílios espessos.
— Boa tarde, Excelência Pavoud — disse em farsi, com um sorriso. — O capitão Ayre queria ver-me?
— Sim, madame senhora. Sua Excelência está na torre — respondeu o chefe dos funcionários. — Posso ter a honra de conduzi-la? — Ela recusou e agradeceu, e quando ela já tinha atravessado o corredor e estava subindo a escada em espiral, Pavoud disse insolentemente. — É escandaloso o modo como ela se exibe para nós. Ela faz isso só para nos provocar
— Pior do que uma prostituta do bairro velho, Excelência — disse um outro, igualmente aborrecido. — Por Deus, de todos os infiéis, os americanos são os piores e suas mulheres são piores ainda. E esta então, esta está pedindo, está implorando confusão...
— Ela está pedindo um bom cacete iraniano — disse um homenzinho, se coçando.
— Ela deveria usar um chador, cobrir-se e caminhar com discrição — disse Pavoud. — Nós somos todos homens aqui. Nós todos já geramos filhos. Será que ela acha que somos eunucos?
— Ela deveria ser açoitada por nos provocar.
— Com a ajuda de Deus, ela o será em breve — publicamente. Todo mundo será submetido às leis islâmicas, e aos castigos. — E Pavoud apertou de leve o nariz.
— Dizem que as mulheres americanas não têm pentelhos.
— É que elas raspam as partes.
— Com ou sem pentelhos, Excelência chefe, eu gostaria de meter nela até ela gemer, de alegria, disse o homenzinho, e eles riram juntos.
— Aquele imbecil do marido dela se diverte toda noite, desde que ela chegou. — Os olhos do chefe brilharam. — Eu os ouvi gemendo de noite. — Acendeu um cigarro no toco do anterior, depois se levantou e olhou pela janela. Usava óculos e ficou observando o céu até ver um helicóptero ao longe fazer a curva para descer. Morte a todos os estrangeiros, pensou, depois acrescentou do fundo do coração: E morte a Khomeini e todos os seus parasitas! Longa vida para o Tudeh e para a revolução das massas!
A torre era pequena, com janelas de vidro de todos os lados, e muito bem equipada. Esta fora sua base permanente por muitos anos, então a S-G tivera tempo para equipá-la com modernos equipamentos de segurança e recursos para pouso em qualquer tipo de tempo. Freddy Ayre, piloto chefe na ausência de Starke, esperava por Manuela.
— HXB está se preparando para descer — disse quando ela chegou. — Ele.
— Oh, que ótimo — ela interrompeu alegre.
Tinham tentado entrar em contato com Starke o dia inteiro, sem sucesso:
— Não se preocupe — dissera-lhe Ayre —, o HF deles muitas vezes sai do ar, assim como o nosso. — Desde a noite anterior, logo depois de escurecer, a única notícia fora a breve comunicação de Starke de que passaria a noite em Bandar Delam e que entraria em contato com eles hoje.
— Sinto muito, Manuela, mas Duke não está a bordo. Marc Dubois está pilotando.
— Houve um acidente? — exclamou, seu mundo desmoronando. — Ele está ferido?
— Oh, não. Nada disso. Quando Marc se comunicou conosco há poucos minutos, disse que Duke tinha ficado em Bandar Delam e que ele tinha recebido ordem de conduzir o mulá e seu grupo na viagem de volta.
— Foi só isto? Você tem certeza?
— Sim. Olhe — disse Ayre, apontando para fora —, lá está ele.
O 206 se aproximava vindo da direção do sol. Atrás dele, as montanhas
Zagros se erguiam majestosas. Embaixo, estavam as chaminés da enorme refinaria, com suas línguas de fogo queimando sem parar. Pousou exatamente no centro da plataforma de aterrissagem Um.
— HXB desligando os motores — disse Marc Dubois no rádio.
— Roger, HXB — respondeu o operador de serviço na torre, Massil Tugul, um velho funcionário palestino. Ele mudou a freqüência para a da base. — Base, não temos mais nenhum pássaro no sistema agora. Confirmo que HVU e HCF voltarão antes do pôr-do-sol.
— OK, S-G. — Houve um momento de silêncio, depois, no canal principal da base, eles ouviram uma voz entrar falando em farsi, transmitindo do 206. A voz falou durante meio minuto e depois parou.
— Insha'Allah! — Resmungou Massil.
— Quem foi que falou? — Perguntou Ayre.
— O mulá Hussein, aga.
— Que diabo ele disse? — perguntou-lhe Ayre, esquecendo que Manuela sabia falar em farsi.
Massil hesitou. Manuela respondeu por ele, com o rosto pálido.
— O mulá disse: "Em Nome de Deus e em Nome do Turbilhão de Deus, ataquem!" Repetiu isso sem parar, sem pa...
Do outro lado do campo ouviu-se o som abafado de tiros. Imediatamente, Ayre pegou o microfone:
— Marc, à la tour, vite, immédiatement! — Ordenou, com um sotaque excelente, depois examinou a base, a um quilômetro de distância. Havia homens correndo para fora de suas barracas. Alguns carregavam armas. Vários caíram quando foram atacados. Ayre abriu uma das janelas para ouvir melhor. Gritos longínquos de 'Allah-u Akbar' se misturavam com as explosões dos rifles automáticos.
— O que é aquilo? Perto do portão, do portão principal? — perguntou Manuela, com Massil em pé ao lado dela, igualmente chocado e nem um pouco assustado.
Ayre apanhou o binóculo e focalizou-o.
— Meu Deus, há soldados atirando para a base e... e caminhões invadindo o portão... uma meia dúzia... Faixas Verdes, mulás e soldados estão saltando dos caminhões.
Pelo canal da base veio uma voz excitada, gritando em farsi, que foi cortada abruptamente. Mais uma vez Manuela traduziu: "Em Nome de Deus, matem todos os oficiais que se oponham ao imã Khomeini e tomem a base. É a revolução!"
Lá em baixo, eles viram o mulá Hussein e dois Faixas Verdes descerem do 206, com as armas na mão. O mulá fez sinal para Dubois sair da cabine, mas o piloto sacudiu a cabeça e apontou para as hélices girando e continuou com as manobras de aterrissagem. Hussein hesitou.
O trabalho cessara em todas as instalações da S-G. As pessoas debruçavam-se nas janelas ou tinham saído para a pista e estavam lá, em pequenos grupos silenciosos, olhando para o outro lado do campo. O barulho do tiroteio aumentou. Perto dali, o jipe e o caminhão de combustível que iam atender ao 206 frearam bruscamente assim que o tiroteio começou. Hussein tinha feito sinal para o jipe, deixando um homem para tomar conta do helicóptero. O motorista o viu aproximando-se, pulou fora e saiu correndo. O mulá praguejou e, junto com um dos Faixas Verdes, sentou-se ao volante, ligou o motor e partiu em direção às barracas.
Dubois subiu os degraus, de três em três. Ele tinha 36 anos, era alto e magro, com cabelos pretos e um sorriso maroto. Estendeu a mão e cumprimentou Ayre.
— Madonna, que dia, Freddy!... Manuela! — Beijou-a afetuosamente nas duas faces. — O Duke está bem, chérie. Apenas teve uma discussão com o mulá que disse que não voaria mais com ele. Bandar Delam não... — E parou, consciente da presença de Massil, desconfiando dele. — Preciso de um drinque. Vamos até a cantina, hein?
Eles não foram para a cantina. Marc levou-os até a pista, procurando um abrigo no prédio de onde pudessem observar em segurança e sem serem ouvidos.
— Não há nenhuma maneira de saber de que lado Massil está, nem a maioria dos nossos funcionários, se é que eles próprios sabem, os infelizes.
Do outro lado do campo houve uma explosão. O fogo subiu de um dos galpões e uma onda de fumaça se espalhou no ar.
— Mon Dieu, foi o depósito de combustível?
— Não, foi perto. — Ayre estava muito inquieto. Uma outra explosão chamou-lhe a atenção; depois, misturada com o tiroteio esporádico, ouviu-se a detonação de um tanque.
O jipe com o mulá desaparecera atrás das barracas, os caminhões do Exército tinham estacionado ao acaso; os soldados e os Faixas Verdes desapareceram nos hangares e barracas. Havia alguns corpos no chão. Os soldados dos tanques, que guardavam o prédio de escritórios do comandante Peshadi, estavam agachados perto da porta, com as armas prontas. Outros esperavam nas janelas do segundo andar. Um dos homens que estava lá deu uma rajada de metralhadora quando meia dúzia de soldados e aviadores lançaram-se ao ataque. Mais uma rajada e todos estavam mortos, morrendo ou gravemente feridos. Um dos feridos começou a se arrastar para um lugar seguro. Os guardas deixaram-no arrastar-se até quase conseguir um abrigo. Depois o crivaram de balas.
Manuela gemeu e eles a levaram mais para o interior do prédio.
— Estou bem — disse ela. — Marc, quando é que Duke vai voltar?
— Rudi ou Duke vão ligar hoje à noite ou amanhã, com certeza. Pas de problème. O Grande Duke está bem. Mon Dieu, preciso de um drinque.
Aguardaram um momento, com o tiroteio diminuindo.
— Vamos — disse Ayre —, estaremos mais seguros nos bangalôs.
Correram até um dos bonitos bangalôs cercados por muros brancos e jardins bem tratados. Não havia acomodações para casados em Kowiss. Geralmente os bangalôs de dois quartos eram habitados por dois pilotos. Manuela foi preparar os drinques.
— Agora, o que aconteceu realmente? — Perguntou Ayre, baixinho. Rapidamente, o francês contou-lhe a respeito do ataque, de Zataki e da bravura de Rudi.
— Aquele velho Kraut merece realmente uma medalha — disse com admiração. — Mas ouça, na noite passada os revolucionários mataram um dos nossos operários. Eles o julgaram e mataram em quatro minutos, acusando-o de ser um fedayim. Esta manhã, outros filhos da mãe mataram Kyabi.
— Mas por quê? — Perguntou Ayre, estarrecido.
Dubois contou sobre a sabotagem do oleoduto, e acrescentou:
— Quando Rudi e o mulá voltaram, Zataki nos reuniu e disse que era verdade que Kyabi fora morto por ser "partidário do xá, partidário dos demônios americanos e ingleses que tinham espoliado o Irã durante anos e que, portanto, era um inimigo de Deus".
— Pobre patrão. Cristo, eu gostava um bocado dele, era um bom sujeito.
— Sim. E abertamente anti-Khomeini, e agora esses filhos da mãe têm armas, nunca vi tantas armas, e são todos stupides, malucos. — Dubois retesou-se. — O velho Duke começou a berrar com todos eles em farsi; ele já tinha tido um confronto com Zataki e com o mulá na noite passada. Não sabemos o que ele disse, mas as coisas ficaram feias, os filhos da mãe caíram em cima dele, começaram a chutá-lo e a gritar com ele. É claro que todos nós entramos na briga, então ouvimos o barulho de um tiro e ficamos paralisados. Eles também, porque foi Rudi que atirou. Ele tinha conseguido tirar a arma de um deles e deu outro tiro para o ar. E gritou: "Deixem-no em paz ou matarei todos vocês!" E manteve a arma apontada para Zataki e para o grupo que estava perto de Duke. Eles o deixaram em paz. Depois de praguejar contra eles, Rudi fez um acordo; ma foi, quel homme: eles nos deixariam em paz e nós deixaríamos que fizessem a revolução deles, eu traria o mulá para cá, Duke ficaria, e Rudi conservava a arma. Ele fez o mulá e Zataki jurarem por Alá que não quebrariam o acordo, mas eu ainda não acredito neles. Merde, todos eles são merde, mon ami. Mas Rudi, Rudi foi fantástico. Ele devia ser francês. Tentei me comunicar com eles o dia inteiro, mas não tive resposta...
Do outro lado do campo, um tanque centurião chegou, atirando, de uma das ruas que ficavam no fim do conjunto de barracas, fez uma curva e entrou na rua principal, que ficava em frente ao QG da base e da cantina dos oficiais. Ele parou lá, com os motores roncando, gordo, atarracado e mortal. O longo canhão fez a volta, procurando um alvo. Então, subitamente, as engrenagens giraram, o tanque rodou no seu eixo e atirou. A bala destruiu o segundo andar, onde o coronel Peshadi tinha seu escritório. Os soldados que defendiam o prédio ficaram abalados com essa traição inesperada. O tanque abriu fogo novamente. Enormes pedaços de reboco se soltaram e metade do telhado desabou. O prédio começou a pegar fogo.
Nesse momento, do térreo e de parte do segundo andar, uma saraivada de balas foi disparada contra o tanque. Imediatamente, dois legalistas saíram correndo pela porta principal, com granadas na mão, atiraram-nas pela abertura do tanque e correram para se abrigar. Os dois homens se curvaram sob uma rajada de balas que veio do outro lado da rua, mas houve uma terrível explosão dentro do tanque que começou a lançar fogo e fumaça. A tampa de metal se abriu e um homem em chamas tentou saltar fora. Seu corpo quase foi arrancado do tanque pela rajada de balas que partiam do edifício semidestruído. O vento que soprava daquele lado da base trazia o cheiro de pólvora, fogo e carne queimada.
A batalha continuou por mais de uma hora, depois terminou. O sol poente dava à cena uma coloração sangrenta e, por toda a base, havia mortos e moribundos, mas a insurreição falhara porque não tinham matado o coronel Peshadi nem seus oficiais mais graduados no primeiro ataque de surpresa, porque o número de soldados e aviadores que aderiram não fora suficiente — e só um dos tanques os apoiou.
Peshadi estivera no tanque principal e, com ele, defendeu a torre e todo o sistema de comunicações. Tinha reunido as forças leais e comandara o impiedoso ataque que expulsou os revolucionários dos hangares e das barracas. E assim que a maioria cautelosa, que esperava para ver que lado venceria, assim que esses aviadores e soldados perceberam que a revolta estava perdida, não hesitaram mais. Imediata e zelosamente, declararam sua lealdade histórica e eterna a Peshadi e ao xá, apanharam as armas que estavam pelo chão e, com o mesmo zelo, em Nome de Deus, começaram a atirar no 'inimigo'. Mas pouco atiravam para matar e embora Peshadi soubesse disso, deixou aberto um caminho para a fuga e permitiu que alguns revoltosos escapassem. Sua única ordem secreta para os homens em que mais confiava foi: "Matem o mulá Hussein"
Mas, de algum modo, Hussein escapou.
— Aqui fala o coronel Peshadi — ouviu-se na freqüência principal da base e em todos os alto-falantes. — Graças a Deus o inimigo está morto, morrendo ou capturado. Agradeço a todas as tropas leais. Todos os oficiais e soldados recolherão nossos gloriosos mortos, que morreram fazendo o trabalho de Deus, e informarão quantos foram, bem como o número de inimigos mortos. Médicos e atendentes! Cuidem igualmente de todos os feridos. Deus é grande... Deus é grande! Já está quase na hora da oração da noite. Esta noite sou eu o mulá e vou conduzi-la. Todos estarão presentes para dar graças a Deus.
No bangalô de Starke, Ayre, Manuela e Dubois ouviram pelo intercomunicador da base. Ela terminou de traduzir o discurso de Peshadi, feito em farsi. Agora só havia estática. A fumaça cobria a base e o ar estava pesado por causa do cheiro. Os dois homens tomavam vodca e suco de laranja em lata, ela bebia água mineral. Um aquecedor portátil, de gás butano, aquecia agradavelmente o aposento.
— É curioso — disse ela, Pensativamente, forçando-se a não pensar em toda aquela matança, nem em Starke lá em Bandar Delam. — É curioso que Peshadi não tenha terminado com as palavras "Longa vida para o xá" Esta vitória não é dele? Ele deve estar apavorado.
— Eu também estaria — disse Ayre. — Ele vai.. —Todos deram um pulo quando o intercomunicador da base tocou. Ayre levantou-se.
— Alô?
— Aqui é o major Changiz. Ah, capitão Ayre, eles foram para o seu lado da base? O que houve com vocês?
— Nada. Nenhum revoltoso veio para cá.
— Louvado seja Deus. Estávamos todos preocupados com sua segurança. Tem certeza de que não há ninguém morto ou ferido?
— Ninguém — que eu saiba.
— Graças a Deus. Nós temos uma porção. Felizmente não sobrou nenhum inimigo ferido.
— Nenhum?
— Nenhum. O senhor não se importará que eu lhe peça para não mencionar este incidente pelo rádio para ninguém... para ninguém, capitão. Segurança máxima. O senhor compreende?
— Alto e claro, major.
— Ótimo. Por favor, fique na escuta, na freqüência da nossa base. Por segurança, vamos controlar a sua. Por favor, durante esta emergência, não use seu rádio HF sem nos consultar. — Ayre sentiu o sangue ferver mas não disse nada. — Por favor, fiquem na escuta para ouvir as instruções que o coronel Peshadi dará às oito horas, e agora mande Esvandiary e todos os seus fiéis para as orações da noite, imediatamente.
— Certamente, mas o 'Pé-quente'... Esvandiary está de licença por uma semana. — Esvandiary era o gerente da IranOil.
— Muito bem. Mande os demais a cargo de Pavoud.
— Agora mesmo. — O telefone ficou mudo. Ayre retransmitiu o que fora dito e depois foi dar as ordens.
Na torre, Massil estava muito inquieto.
— Mas, capitão, Excelência, estou de serviço até o pôr-do-sol. Ainda temos dois 212 para chegar e...
— Ele disse todos os fiéis. Imediatamente. Seus papéis estão em ordem, você está no Irã há anos. Ele sabe que você está aqui, então é melhor você ir, a não ser que tenha algo a temer.
— Não, não, nada.
— Não se preocupe, Massil — disse Ayre, vendo o suor na testa do homem. — Eu vou esperar os rapazes. Não se preocupe. E vou ficar aqui até você voltar. Não vai levar muito tempo.
Ayre orientou o pouso dos dois 212, esperando com uma impaciência cada vez maior, já que Massil deveria ter voltado há muito tempo. Para passar o tempo, tinha tentado trabalhar um pouco, mas desistiu, com as idéias em tumulto. O único pensamento que o animou foi que sua mulher e seu filho estavam a salvo na Inglaterra — apesar do tempo horrível que fazia lá, das tempestades, nevascas, chuvas, frio, greves, e do governo.
O HF voltou a falar, pouco depois de escurecer.
— Alô, Kowiss, aqui é McIver de Teerã...
TEERÃ — NO ESCRITÓRIO DA S-G: 18:50H. Alô, Kowiss, aqui é McIver, de Teerã, está me ouvindo?
— Teerã, aqui é Kowiss, aguarde Um — expressão que queria dizer 'por favor, espere um momento'.
— Está bem, Freddy — disse McIver e colocou o HF de volta na mesa. Ele e Tom Lochart, que chegara de Zagros naquela tarde, estavam no escritório, no último andar do edifício que funcionava como QG da S-G desde que ela iniciara suas operações no Irã, há quase dez anos. O edifício tinha cinco andares e um telhado achatado, onde Genny fizera um agradável jardim com cadeiras, mesas e uma churrasqueira. O general Beni-Hassan, amigo de Andrew Gavallan, recomendara muito aquele edifício:
— Nada menos que o melhor para a companhia de Andy Gavallan. Aqui há espaço para meia dúzia de escritórios, o preço é razoável, você tem lugar no telhado para seu próprio gerador e sua antena de rádio, fica próximo da avenida principal que vai para o aeroporto, há comércio por perto, e aqui está a pièce de resistence! — Orgulhosamente, o general mostrara a McIver o toalete. Era comum e não muito limpo.
— O que há de tão especial nele? — Perguntara McIver, intrigado.
— É o único que existe no edifício, os outros são do tipo de se agachar, apenas um buraco no chão em cima do esgoto, e se você não estiver acostumado a se agachar, é uma operação complicada. Na verdade, é uma chateação, especialmente para as senhoras, algumas já caíram dentro do buraco, com penosas conseqüências — disse o general, jovialmente. Ele era um homem bem-apessoado, muito forte, em boa forma física.
— Os banheiros são todos assim, aqui no Irã?
— Até nas melhores casas, em toda parte, menos nos hotéis modernos. Quando se pensa sobre isso, Mac, este tipo de banheiro é mais higiênico, nada toca em nada. E tem, também, isto aqui. — O general apontara para um pequeno esguichador ligado à torneira da pia. — Nós usamos água para nos limpar, usamos sempre a mão esquerda, que é a mão para a merda, a direita é para comer, é por isso que você nunca oferece nada com a mão esquerda. É considerado extrema falta de educação, Mac. Nunca coma ou beba com a mão esquerda no mundo islâmico, e não se esqueça de que a maioria dos toaletes e banheiros não possuem esguichos, e você tem que usar a água de um balde, se houver um. Como eu disse, é uma operação complicada, mas é uma maneira de viver. Diga-se de passagem, não há pessoas canhotas no Islã. — E deu uma nova risada bem-humorada. — A maioria dos muçulmanos não consegue evacuar confortavelmente a menos que se agache... são os músculos... então muitos se agacham nos assentos ocidentais quando vão evacuar. Estranho, não é? mas também, fora da maioria das cidades e mesmo nelas, na maior parte da Ásia, no Oriente Médio, na China, na Índia, na África, na América do Sul, não há nem água corrente... — E McIver relembrava essa conversa que tivera com o general, quando a voz de Lochart trouxe-o de volta ao presente.
— Um centavo pelos seus pensamentos, Mac. — Disse Lochart. O canadense alto sentava-se em frente a ele, ambos em velhas poltronas. A luz elétrica e o aquecimento estavam ligados com potência máxima, fornecida por seu próprio gerador.
— Estava pensando nos banheiros de se agachar. Detesto esses banheiros e a maldita água. Não consigo me acostumar com eles — resmungou McIver.
— Agora eles não me incomodam mais, eu nem noto. Temos esse tipo de banheiro em nosso apartamento. Xarazade disse que, se eu quisesse, mandaria construir um toalete ocidental como presente de casamento, mas eu falei que podia me arranjar com aquele mesmo. — Lochart sorriu cinicamente. — Agora não me incomoda mais, mas, meu Deus, isso foi uma das coisas que fez Deirdre se mandar.
— Acontece o mesmo com todas as esposas. Este é o maior problema para todas elas, para Genny também. Não é culpa minha que a maioria das pessoas faça isto desse jeito. Graças a Deus, temos uma privada de verdade no apartamento. Senão Genny se amotinaria. — McIver mexeu no botão do volume do aparelho. — Vamos, Freddy — murmurou.
Havia muitos mapas nas paredes, nenhum quadro, embora se percebesse a marca empoeirada de um quadro que fora retirado recentemente — a obrigatória fotografia do xá. Lá fora, o céu noturno estava iluminado pelas fogueiras que salpicavam o horizonte da cidade escurecida, não havia nenhuma outra luz a não ser aquela. Tiros, de rifles e metralhadoras, misturados com o som constante da cidade — as multidões rugindo "Allahhh-u Akbarrr... " Ouviu-se então no alto-falante:
— Aqui é Kowiss. Capitão Ayre falando. Estou ouvindo alto e claro, capitão McIver.
Os dois homens ficaram perplexos e Lochart se ergueu na cadeira.
— Há algo errado, Mac, ele não pode falar abertamente... alguém está escutando.
— É você mesmo que está operando o rádio, Freddy? — disse de propósito para ter certeza de que não havia nenhum erro —, está fazendo hora-extra?
— Apenas aconteceu de estar aqui, capitão McIver.
— Está tudo cinco por cinco? — o que significava sinal de rádio com força máxima, ou na gíria dos pilotos, 'está tudo bem?'
Depois de uma pausa proposital, que os fez perceber que não, veio a resposta:
— Sim, capitão McIver.
— Ótimo, capitão Ayre. — Disse McIver, para lhe dar a entender que tinha compreendido. — Ponha o capitão Starke na linha, sim?
— Sinto muito, capitão, mas não é possível. O capitão Starke ainda está em Bandar Delam.
— O que ele está fazendo lá? — Perguntou McIver rispidamente.
— O capitão Lutz ordenou que ele ficasse e mandou que o capitão Dubois completasse a viagem VIP solicitada pela IranOil, e aprovada pelo senhor.
Starke conseguira se comunicar com Teerã antes de partir, para explicar a McIver o problema do mulá Hussein. McIver aprovara a viagem, desde que o coronel Peshadi concordasse, e disse a Starke que o mantivesse informado.
— O 125 é esperado em Kowiss amanhã, capitão McIver?
— É possível — respondeu McIver —, mas nunca se sabe. — Fora programado que o 125 estivesse em Teerã no dia anterior, mas por causa da insurreição no aeroporto, todo o tráfego tinha sido cancelado até o dia seguinte, segunda-feira. — Estamos tentando conseguir licença para um vôo direto até Kowiss. Não é muito provável, porque o controle do tráfego aéreo militar está... está desguarnecido. O aeroporto de Teerã está, ahn, congestionado, e não podemos retirar nenhum dos nossos familiares. Diga a Manuela para estar preparada para o caso de conseguirmos uma desistência. — McIver fez uma careta, tentando decidir o quanto poderia dizer através do rádio, então viu Lochart fazendo um sinal para ele.
— Deixe-me falar, Mac. Freddy sabe falar francês — disse Lochart, baixinho.
McIver animou-se e passou-lhe o microfone, aliviado.
— Écoute, Freddy. — Lochart começou a falar em francês canadense que ele sabia que até Ayre, cujo francês era excelente, tinha dificuldade em compreender. — Os marxistas ainda estão controlando o aeroporto internacional, ajudados pelos revoltosos de Khomeini, supostamente com o apoio da OLP, e ainda controlam a torre. O boato hoje é que vai haver um golpe, que o primeiro-ministro está de acordo, que as tropas estão finalmente se deslocando por toda Teerã, com ordens de terminar com os tumultos e atirar para matar. Qual o problema aí? Você está bem?
— Sim, nada de grave — eles o ouviram responder num francês de sarjeta e cheio de subentendidos. — Eu tenho ordens de não dizer nada, mas não há realmente muito problema aqui, acredite, mas eles estão ouvindo. Em 'Fedorenta' — o apelido que eles davam a Bandar Delam, onde o ar fedia constantemente a gasolina — houve muitos problemas e o patrão foi mandado para o céu antes da sua hora ter chegado...
— Kyabi foi morto — murmurou Lochart, com os olhos arregalados.
— ... mas o velho Rudi manteve tudo sob controle e Duke está bem. É melhor interrompermos aqui, meu velho. Eles estão escutando.
— Compreendo. Fique firme e informe aos outros, se puder; diga também que estamos bem — acrescentou em inglês, sem nenhum intervalo — e repito que estaremos mandando dinheiro para o seu pessoal amanhã.
— Falando sério, meu chapa? — Perguntou Ayre, animando-se.
— Falando sério — riu Lochart, involuntariamente. — Mantenha um operador de rádio de plantão que nós tornaremos a chamar. Aqui está o capitão McIver de novo. Insha'Allah! E devolveu o microfone.
— Capitão, teve notícias de Lengeh, ontem ou hoje?
— Não, nós tentamos nos comunicar com eles mas não obtivemos resposta. Talvez sejam as manchas solares. Vou tentar de novo agora.
— Obrigado. Mande lembranças minhas ao capitão Scragger e lembre a ele o seu exame médico, na próxima semana. — McIver sorriu e depois acrescentou: — Certifique-se de que o capitão Starke se comunique comigo assim que voltar. — Desligou. Lochart contou-lhe o que Ayre dissera. Ele serviu-se de outro uísque.
— E quanto a mim, pelo amor de Deus? — Disse McIver, irritado.
— Mas, Mac, você sa...
— Não comece. Prepare um fraquinho. — Enquanto Lochart servia o drinque, McIver levantou-se, foi até a janela e olhou para fora, sem ver nada.
— Pobre Kyabi. Era um homem bom, dos melhores, bom para o Irã e justo conosco. Por que eles o teriam assassinado? Loucos! Rudi 'dando ordens' a Duke e 'dando ordens' a Marc... que diabo significa isso?
— Apenas que houve problemas mas Rudi controlou a situação. Freddy teria me contado se Rudi não o tivesse feito. Ele é muito esperto, o seu francês é bom e ele teria dado um jeito. Teve bastante tempo, mesmo com eles escutando, quem quer que sejam 'eles' — disse Lochart. — Talvez tenha sido como em Zagros.
Em Zagros, os aldeões de Yazdek chegaram de madrugada, um dia depois de Lochart ter voltado da licença. O mulá da aldeia recebera ordens de Khomeini para iniciar a revolta contra 'o governo ilegal do xá' e para assumir o controle da região. O mulá nascera na aldeia e conhecia os caminhos da montanha que ficavam bloqueados pela neve durante o inverno e pelos quais, durante o ano, só se tinha acesso com muita dificuldade. Além disso, o chefe de polícia, contra o qual teria que liderar a revolta, era seu sobrinho, e Nasiri, o gerente da base, outro dos seus alvos, era casado com a filha de uma irmã de sua mulher, que vivia agora em Shiraz. E mais importante, eles todos eram galezans, uma tribo secundária de nômades kash'kais que se estabelecera há séculos ao longo daquelas pequenas estradas e o chefe de polícia, cujo nome era Nitchak Khan, era também seu kalandar, seu chefe tribal eleito.
Então, corretamente, ele consultara Nitchak Khan e este concordara que deveria haver uma revolta contra seu inimigo hereditário, o xá Pahlavi e que, para comemorar a revolução, quem quisesse poderia descarregar suas armas em direção às estrelas e, ao amanhecer, ele lideraria a tomada do aeroporto estrangeiro.
Tinham chegado de madrugada. Armados. Todos os homens da aldeia Nitchak Khan não estava usando seu uniforme de policial, e sim uma roupa tribal. Ele era muito mais baixo do que Lochart, um homem atarracado, forte, com mãos de ferro e pernas de aço, um cinto de balas passado pelo peito e um rifle nas mãos. Conforme fora previamente arranjado — a pedido do Khan
— Lochart, acompanhado por Jean-Luc Sessonne, encontrou-os em frente às duas colunas de pedra apressadamente feitas e que simbolizavam o portão da base. Lochart cumprimentou-os e concordou que Nitchak Khan tivesse jurisdição sobre a base e as duas colunas de pedra foram formalmente derrubadas. Houve aplausos de ambos os lados e muitas armas foram disparadas para o ar. Depois, Nitchak Khan ofereceu um buquê de flores a Jean-Luc Sessonne como representante da França, agradecendo-lhe, em nome de todos os galezans-kash'kais, por abrigar e apoiar Khomeini, que os livrara do seu inimigo, o xá Pahlavi. "Que Deus seja louvado, pois aquele que ousou se auto-intitular Grande Rei dos Reis, que ousou cometer o sacrilégio de tentar associar sua linhagem aos reis Ciro e Dario, o Grande, homens orgulhosos e de coragem, a Luz dos Arianos, aquele lacaio dos demônios estrangeiros — fugiu, como uma amante pintada, para seu paxá iraquiano."
Houve, então, belos discursos de ambos os lados, a festa começou e Nitchak Khan, com o mulá ao lado, pedira a Tom Lochart, chefe tribal dos estrangeiros em Zagros Três, para continuar como antes sob o novo regime Lochart concordara gravemente.
— Esperemos que Rudi e seus rapazes tenham tido a mesma sorte que você teve em Zagros, Tom. — McIver tornou a virar-se para a janela, sabendo que não havia nada que ele pudesse fazer para ajudá-los. — As coisas estão ficando cada vez piores — murmurou. O assassinato de Kyabi foi terrível, e foi um mau sinal para nós, pensou. Como vou tirar Genny de Teerã, e onde estará Charlie?
Não tinham tido notícias de Pettikin desde que ele partira, na manhã do dia anterior, para Tabriz. Tinham recebido informações trancadas do seu pessoal de terra, em Galeg Morghi — de que Pettikin fora raptado e forçado a partir 'com três pessoas desconhecidas', que 'três pilotos da Força Aérea iraniana tinham seqüestrado o 206 e voado em direção à fronteira', ou que 'os três passageiros eram oficiais de alta patente fugindo do país'. Por que três passageiros em todas as histórias? McIver perguntava a si mesmo. Ele sabia que Pettikin devia ter chegado a salvo no aeroporto porque seu carro ainda estava lá, embora o tanque estivesse vazio, o rádio arrancado, e o carro depredado. Bandar-e Pahlavi, onde deveria ter reabastecido o helicóptero, não respondia
— Tabriz quase nunca era alcançada. Praguejou baixinho. Fora um mau dia para McIver.
O dia todo, credores irritados estiveram lá a aborrecê-lo, os telefones não funcionavam, o telex ficou congestionado e levou horas para ficar livre, e seu encontro do meio-dia com o general Valik que, segundo Gavallan, prometera lhes fornecer dinheiro semanalmente, tinha sido um desastre.
— Assim que os bancos abrirem, pagaremos o que estamos devendo.
— Pelo amor de Deus, você vem dizendo isso há semanas — retrucou McIver, friamente. — Eu preciso do dinheiro agora.
— Nós todos precisamos — tinha respondido o general, tremendo de raiva, mas muito consciente dos empregados iranianos na sala ao lado que, sem dúvida, estavam escutando. — Há uma guerra civil em curso e eu não posso abrir os bancos. Você vai ter que esperar. — Valik era um homem rechonchudo, careca, com a pele morena, um ex-general do Exército, que usava roupas e relógios caros. Ele abaixou ainda mais a voz. — Se não fosse pelos estúpidos americanos que traíram o xá e o convenceram a refrear nossas gloriosas Forças Armadas, não estaríamos nesta confusão.
— Eu sou inglês, como você sabe muito bem, e foram vocês mesmos que causaram esta confusão.
— Inglês, americano, qual é a diferença? A culpa é toda de vocês. Vocês traíram o xá e o Irã e agora vão pagar por isso.
— Com o quê? — perguntou McIver, azedamente. — Todo o nosso dinheiro está com vocês.
— Se não fosse por nós, seus sócios iranianos, eu principalmente, vocês não teriam nenhum dinheiro. Andy não está reclamando. Eu recebi um telex do meu querido colega, general Javadah, dizendo que Andy ia assinar os novos contratos que eram da Guerney esta semana.
— Andy disse que recebeu um telex seu confirmando a promessa que tinha feito a ele de nos fornecer dinheiro toda semana.
— Eu prometi que tentaria. — O general fez um esforço para controlar a raiva, pois precisava da cooperação de McIver. Enxugou a testa e abriu a pasta. Estava cheia de notas grandes de riais, mas ele manteve a tampa levantada para que McIver não pudesse ver o que havia dentro, depois tirou um pequeno maço de notas, tornando a fechar a pasta. Bem devagar, contou quinhentos mil riais — cerca de seis mil dólares. — Aqui está — disse com um grande floreio, colocando as notas em cima da mesa e o resto de volta na pasta. — Na semana que vem, eu ou um dos meus colegas traremos mais. Um recibo, por favor.
— Obrigado. — McIver assinou o recibo. — Quando podemos es...
— Na semana que vem. Se os bancos abrirem, poderemos acertar tudo. Sempre mantivemos nossa palavra. Sempre. Não conseguimos os contratos da Guerney? — Valik inclinou-se para a frente e abaixou ainda mais a voz. — Eu preciso de um vôo especial. Amanhã, quero um 212 para partir na parte da manhã.
— Para ir aonde?
— Tenho que inspecionar algumas instalações em Abadan — disse Valik, e McIver notou o suor.
— E como vou conseguir as licenças necessárias, general? Com todo o espaço aéreo controlado pelos militares e...
— Não se preocupe com licenças, eu só...
— Se não tivermos um plano de vôo aprovado pelos militares, será um vôo ilegal
— Você pode dizer que pediu licença e que ela foi dada verbalmente. Qual é o problema?
— Em primeiro lugar, é contra a lei do Irã, general, a sua lei, em segundo lugar, mesmo com uma licença concedida verbalmente e com a aeronave fora do espaço aéreo de Teerã, ainda é preciso fornecer o número de registro ao controle militar de tráfego aéreo mais próximo... todos os planos de vôo são registrados no QG da sua Força Aérea e eles são ainda mais severos com relação a helicópteros do que os civis. E se não tiver um número, o controlador vai mandá-lo descer na base militar mais próxima e se apresentar à torre. E quando pousar, eles vão recebê-lo muito enfurecidos, e com razão, o aparelho será apreendido e passageiros e tripulação serão mandados para a cadeia.
— Então encontre um jeito. É um vôo muito importante. Os, ahn, os contratos da Guerney dependem disso. Tenha o 212 pronto às nove horas, digamos, em Galeg Morghi.
— Por que lá? Por que não no aeroporto internacional?
— É mais conveniente... e mais tranqüilo, neste momento.
McIver franziu a testa. Valik tinha autoridade para solicitar e autorizar um vôo como esse.
— Muito bem, vou tentar. — Puxou o bloco de formulários de planos de vôo, notou que a última cópia referia-se ao vôo de Pettikin para Tabriz e mais uma vez sua ansiedade cresceu... onde ele se teria metido? Sob 'passageiros' ele escreveu general Valik, presidente da CHI e entregou-lhe o formulário. — Por favor assine no lugar do responsável.
Valik empurrou o formulário de volta, imperiosamente.
— Não há necessidade do meu nome ser colocado aí... ponha apenas quatro passageiros: minha mulher e meus dois filhos estarão comigo, e alguma bagagem. Vamos ficar em Abadan uma semana, depois voltaremos. Apenas faça com que o 212 esteja preparado às nove horas em Galeg Morghi.
— Sinto muito, general, os nomes têm que constar do formulário, senão a Força Aérea nem aceita o plano de vôo. Todos os passageiros têm que ser identificados. Vou pedir uma licença, mas não tenho muita esperança de conseguir. — McIver começou a escrever os outros nomes.
— Não, pare! Não há necessidade de fornecer os nossos nomes. Diga apenas que a viagem é para mandar algumas peças para Abadan. Sem dúvida você precisa enviar algumas peças para lá. — Ele estava coberto de suor.
— Está bem, mas primeiro faça o favor de assinar a autorização, com o nome de todos os passageiros e o seu destino.
— Consiga isso sem me envolver. Imediatamente! — E o rosto do general ficou vermelho.
— Não posso. — McIver também estava ficando impaciente. — Eu repito, os militares vão querer saber todos os 'quem' e os 'onde'. Eles estão grudando mais do que papel de pegar mosca. Vamos ter ainda mais interrogatórios para responder do que normalmente, porque há semanas não temos nenhum tráfego para aquele lado. Teerã não é como o sul, onde voamos o dia inteiro.
— Este será um vôo especial, para levar peças de reposição. Simples.
— Não é nada simples. Os guardas, em Galeg Morghi, não o deixariam embarcar sem papéis, e nem a torre. Eles o veriam subindo a bordo, pelo amor de Deus. — McIver encarou-o, exasperado. — Por que não arranja a licença o senhor mesmo, general? O senhor tem os melhores conhecimentos no Irã. O senhor mesmo deixou isso muito claro. Para o senhor seria fácil.
— Estes aparelhos são todos nossos. Nós somos os donos deles!
— Sim, é verdade — disse McIver, com a mesma impaciência. — Quando vocês tiverem pago por eles. Vocês nos devem quase quatro milhões de dólares de atrasados. Se o senhor quer ir para Abadan, isso é problema seu, mas se eles o apanharem fazendo isso num helicóptero da S-G, com papéis falsos que eu preciso assinar, o senhor vai parar na cadeia, junto com a sua família, comigo e com o piloto, e eles vão apreender os nossos aparelhos e nos proibirão de voar para sempre. — Só em pensar na cadeia ele se sentiu mal. Se um décimo das histórias que contavam sobre a Savak e as cadeias iranianas fosse verdade, elas eram um lugar muito indesejável.
Valik controlou a raiva. Sentou-se e deu um sorriso forçado.
— Não há necessidade de discutirmos, Mac, nós já passamos por muita coisa juntos. Eu, eu vou recompensá-lo por isso, hein? Tanto você quanto o piloto. — E abriu a pasta. — Hein? Doze milhões de riais... para dividir entre os dois.
McIver olhou perplexo para o dinheiro. Doze milhões eram cerca de 150 mil dólares — mais de 100 mil libras esterlinas. Tonto, ele sacudiu a cabeça.
— Está bem — disse Valik, imediatamente. — Doze milhões para cada um, mais as despesas. Metade agora e metade quando estivermos a salvo no aeroporto do Kuwait, hein?
McIver estava em estado de choque, não só por causa do dinheiro, mas porque Valik dissera abertamente 'Kuwait', o que McIver suspeitava mas não queria acreditar. Era uma mudança de 180 graus em relação a tudo o que Valik vinha dizendo há meses: há meses que ele contava vantagem a respeito do xá vencer a oposição e Khomeini. E mesmo depois da inacreditável partida do xá e da espantosa volta de Khomeini a Teerã — meu Deus, isso tinha acontecido apenas há dez dias? — Valik dissera uma dúzia de vezes que não havia nada com que se preocupar, porque Bakhtiar e os generais das forças imperiais tinham o domínio completo do poder e nunca permitiriam que "esta revolução de Khomeini, e secretamente dos comunistas, fosse bem-sucedida". Nem os Estados Unidos permitiriam isso. Nunca. No devido momento, as Forças Armadas tomariam o poder e assumiriam o governo. Ainda na véspera Valik repetira Confiantemente tudo isso e dissera que tinha sido informado que, a qualquer momento, o Exército interviria e que o fato dos Imortais terem dominado o motim da Força Aérea em Doshan Tappeh era o primeiro sinal disso.
McIver desviou o olhar do dinheiro e olhou dentro dos olhos do homem que estava sentado à sua frente.
— O que é que você sabe que nós não sabemos?
— Sobre o que você está falando? — Valik começou a gritar. — Eu não sei de...
— Alguma coisa aconteceu. O que foi?
— Tenho que dar o fora, com a minha família — disse Valik, à beira do desespero. — Os boatos são terríveis: golpe ou guerra civil, e com ou sem Khomeini nós estamos marcados. Você compreende? É a minha família, Mac. Eu tenho que sair, até que as coisas se acalmem. Doze milhões para cada um, hein?
— Que boatos?
— Boatos! — Valik quase cuspiu nele. — Consiga a licença de qualquer maneira. Eu pago adiantado.
— Não vou fazer isso, não importa a quantia que você ofereça. Tem que ser tudo direito.
— Seu imbecil hipócrita! Direito? Como é que você vem operando no Irã durante todos esses anos? Pishkesh! Quanto você mesmo já não pagou por baixo da mesa, ou para os funcionários da alfândega? Pishkesh! Como é que você pensa que nós conseguimos os contratos, hein? Os contratos da Guerney? Pishkesh! Pondo dinheiro nas mãos certas. Será que você é tão imbecil que ainda não conhece o jeito iraniano?
— Eu conheço o pishkesh, não sou imbecil, e sei que o Irã tem o seu jeito de fazer as coisas. Oh, sim, o Irã tem o seu jeito de fazer as coisas. A resposta é não.
— Então o sangue da minha mulher e dos meus filhos sujará as suas mãos, não as minhas.
— Do que é que você está falando9
— Você tem medo da verdade?
McIver olhou-o espantado. A mulher e os dois filhos de Valik eram os preferidos dele e de Genny.
— O que o faz ter tanta certeza?
— Eu... eu tenho um primo na polícia. Ele viu... uma lista secreta da Savak. Eu devo ser preso depois de amanhã junto com muitas outras pessoas importantes para... para acalmar a oposição. E a minha família. E você sabe como eles tratam... como podem tratar mulheres e crianças na frente do... — Valik não pôde continuar.
As defesas de McIver caíram por terra. Todos eles já tinham ouvido as terríveis histórias que contavam a respeito de mulheres e filhos sendo torturados na frente de homens presos, para forçá-los a fazer alguma coisa, ou apenas por maldade.
— Está bem — concordou, sentindo-se derrotado, sabendo que fora apanhado numa armadilha. — Vou tentar, mas não espere conseguir uma licença, e não deveria ir para o sul, para Abadan. Sua melhor chance seria a Turquia. Talvez pudéssemos levá-lo de helicóptero até Tabriz, então você poderia comprar sua passagem pela fronteira, de caminhão. Deve ter amigos lá. E você não pode escapar através de Galeg Morghi. Não há nenhum jeito de você se esgueirar para bordo com Annoush e as crianças, nem mesmo de entrar naquele campo militar, sem ser detido. Você... você teria que ser apanhado fora de Teerã. Em algum lugar longe das estradas e fora da vista do radar.
— Está bem, mas tem que ser Abadan.
— Por quê? Você está reduzindo suas chances à metade.
— Tem que ser. Minha família... meu pai e minha mãe foram para lá por terra. É claro que você tem razão a respeito de Galeg Morghi. Nós poderíamos ser apanhados fora de Teerã e... — Valik pensou por um momento, depois continuou rapidamente: —...na junção do oleoduto sul e do rio Zehsan... é longe da estrada e é seguro. Estaremos lá de manhã, às onze horas. Deus o recompensará, Mac. Se... se você pedir uma licença para transportar peças, eu... eu darei um jeito para que seja concedida. Por favor, eu imploro.
— Mas, e quanto ao reabastecimento? Quando pousarmos para reabastecer, um dos funcionários certamente vai encontrá-los e vocês serão presos em segundos.
— Solicite reabastecimento na base aérea de Isfahan. Eu... eu posso dar um jeito em Isfahan. — Valik enxugou o suor do rosto.
— E se alguma coisa sair errada?
— Insha'Allah! Você vai pedir autorização para transportar peças, não pode haver nenhum nome na licença ou eu estarei morto ou algo pior, bem como Annoush, Jalal e Setarem. Por favor.
McIver sabia que era loucura.
— Eu vou pedir a licença: peças, e apenas para Bandar Delam. Por volta da meia-noite devo saber se a licença foi concedida. Vou mandar alguém ficar esperando para trazê-la ao meu apartamento. Os telefones não estão funcionando, você terá que ir até lá para confirmar. Isto me dará tempo para pensar e decidir sim ou não.
— Mas..
— Meia-noite.
Sim, está bem. Eu estarei lá. — E quanto aos outros sócios?
— Eles... eles não sabem de nada. Emir Paknouri ou um dos outros vai me representar.
— E sobre as quantias semanais?
— Eles providenciarão. — Mais uma vez Valik enxugou a testa. — Que Deus o abençoe. — Vestiu o sobretudo e dirigiu-se para a porta. A pasta ficou sobre a mesa.
— Leve isto com você.
— Ah, você quer que eu pague no Kuwait? Ou na Suíça? Em que moeda?
— Perguntou Valik, voltando-se.
— Não há nenhum pagamento. Você pode autorizar um vôo. Talvez possamos levá-lo até Bandar Delam... depois você estará por sua conta.
— Mas... mas mesmo assim, você precisará de dinheiro para pagar o piloto, ou qualquer outra despesa. — E Valik olhou para ele sem acreditar.
— Não, mas você pode me adiantar cinco milhões de riais do dinheiro que a sociedade nos deve e de que estamos precisando desesperadamente. — McIver rabiscou um recibo e entregou a ele. — Se você não estiver aqui, o Emir ou os outros podem não ser tão generosos.
— Os bancos vão reabrir na próxima semana, temos certeza disso. Oh, sim, temos certeza.
— Bem, vamos esperar que sim e que possamos receber o que nos devem.
— Viu a expressão de Valik, viu-o contar o dinheiro, sabendo que ele o achava louco por não ter aceito o seu pishkesh, sabendo também que, inevitavelmente, Valik tentaria subornar o piloto, quem quer que fosse ele, para levá-los até seu destino se o helicóptero conseguisse sair do espaço aéreo de Teerã, e isso seria um desastre.
E agora, no seu escritório, olhando para a noite com o olhar vazio, sem ouvir o ruído do tiroteio nem ver os clarões ocasionais que iluminavam a cidade escura, ele pensou, meu Deus, Savak? Tenho que tentar ajudá-lo. Aquelas pobres crianças e aquela pobre mulher Tenho que tentar! E quando Valik oferecer suborno ao piloto, mesmo que eu tenha avisado ao piloto quanto a isso, será que ele vai resistir? Se Valik ofereceu 12 milhões agora, em Abadan vai oferecer o dobro. Este dinheiro seria útil para Tom, para Nogger Lane, para mim, para qualquer um. Só por uma curta viagem através do golfo — curta mas sem volta. Onde será que Valik conseguiu todo aquele dinheiro? É claro que de um banco.
Durante semanas tinha havido rumores de que por uma determinada quantia certas pessoas bem relacionadas podiam retirar dinheiro de Teerã, embora os bancos estivessem — oficialmente — fechados. E que por uma quantia ainda maior o dinheiro era transferido para uma conta numerada na Suíça, e que agora os bancos suíços estavam gemendo sob o peso do dinheiro que estava sendo retirado do país. Bilhões. Uns poucos milhões colocados nas mãos certas e qualquer coisa era possível. Não é isso o que acontece em toda a Ásia? Seja honesto, por que só na Ásia? Isso não acontece no mundo inteiro?
— Tom — disse cansado — tente o controle militar de tráfego aéreo e veja se deram licença para o 212, sim? — Tom Lochart pensava que era apenas uma entrega de rotina. McIver só tinha dito a ele que estivera com Valik naquele dia e que o general lhe dera algum dinheiro, nada mais. Ainda precisava decidir que piloto mandaria, desejando poder ir ele mesmo para não pôr em risco a vida de ninguém. Malditos exames médicos! Malditas regras!
Lochart foi até o HF. Naquele momento houve uma confusão na outra sala e a porta se abriu. Dela surgiu um rapaz com um rifle automático no ombro e uma faixa verde no braço. Havia mais uma meia dúzia de jovens com ele. Os funcionários iranianos esperavam, paralisados. O rapaz olhou para McIver e Lochart e depois consultou uma lista.
— Salaam, Aga. Capitão McIver? — perguntou a Lochart, com um inglês hesitante e carregado de sotaque.
— Salaam, Aga. Não, o capitão McIver sou eu — respondeu inquieto, e o primeiro pensamento que lhe veio à cabeça foi: Será que eles fazem parte do mesmo grupo que assassinou o pobre Kyabi? O seu segundo pensamento foi, Genny devia ter partido com os outros, eu devia ter insistido, o seu terceiro pensamento foi sobre os rolos de notas que estavam na sua pasta no chão, ao lado do porta-chapéus.
— Ah, bom — disse o rapaz, educadamente. Havia círculos negros em volta dos seus olhos, seu rosto era forte, e embora McIver achasse que ele teria no máximo 25 anos, parecia mais velho. — Perigo aqui. Para vocês aqui. Agora. Por favor saiam. Nós somos o komiteh deste quarteirão. Vocês devem sair, por favor. Agora.
— Está bem. Com certeza, ahn, obrigado.
Já por duas vezes McIver achara prudente evacuar os escritórios por causa dos tumultos nas ruas, embora, espantosamente, considerando seu grande número, as multidões tivessem sido muito disciplinadas e os estragos causados a propriedades ou os atos contra os europeus fossem mínimos — exceto quanto aos carros estacionados nas ruas. Era a primeira vez que alguém ia até lá para avisá-lo pessoalmente. Obedientemente, McIver e Lochart vestiram os sobretudos, McIver fechou a pasta e, junto com os outros, começou a se retirar. Ele apagou as luzes.
— Por que luz aqui e em nenhum outro lugar? — Perguntou o líder.
— Nós temos o nosso próprio gerador. No telhado.
O rapaz deu um sorriso estranho, mostrando uns dentes muito brancos.
— Estrangeiros têm gerador e calor. Iranianos não. McIver ia responder mas pensou melhor e não disse nada.
— Vocês receberam mensagens? Mensagens sobre ir embora? Mensagem hoje?
— Sim — disse McIver. Uma no escritório, uma no apartamento, que Genny tinha encontrado na caixa de correspondência. Elas diziam apenas: "No dia 1º de dezembro vocês foram avisados para partir. Por que ainda estão aqui, a não ser como inimigos? Resta-lhes pouco tempo." E estava assinado: "Os universitários partidários de uma república islâmica no Irã."
— Vocês, ahn, vocês são representantes da universidade?
— Nós somos do seu komiteh. Favor sair agora. Inimigos melhor não voltarem nunca. Não?
McIver e Lochat saíram. Os revolucionários os seguiram pelas escadas. Os elevadores já não funcionavam há semanas.
A rua ainda estava livre, sem multidões, sem fogueiras, e todo o tiroteio acontecia longe dali.
— Não voltar. Três dias.
— Isto não é possível — retrucou McIver. — Eu tenho muitos...
— Perigo. — Os rapazes esperavam, observando-os silenciosamente. Nem todos estavam armados com armas de fogo. Dois deles tinham pedaços de pau. Dois estavam de mãos dadas. — Não voltem. Muito ruim. Três dias diz o komiteh. Entenderam?
— Sim, mas um de nós tem que reabastecer o gerador ou o telex vai parar e então ficaremos sem comunicação e...
— Telex não importante. Não voltem. Três dias. — Pacientemente, o rapaz fez sinal para eles saírem. — Perigo aqui. Não esqueçam por favor. Boa noite.
McIver e Lochart entraram nos carros que estavam trancados na garagem do prédio, muito conscientes dos olhares invejosos. McIver guiava seu Rover Coupe 65 de quatro lugares, que ele chamava de Lulu e mantinha em excelentes condições. Lochart tinha pedido emprestado o carro de Scot Gavallan, um velho Citroen amassado que era mantido assim de propósito, embora o motor estivesse ótimo, os freios perfeitos e que, se fosse preciso, podia ser muito veloz. Eles foram embora, e depois da segunda esquina pararam lado a lado.
— Aqueles chatos estavam falando sério — disse McIver, zangado. — Três dias? Não posso passar três dias fora do escritório.
— Sim, e agora? — Lochart deu uma olhada pelo espelho retrovisor. Os rapazes estavam agrupados na esquina, observando-os. — É melhor sairmos daqui. Encontro você no seu apartamento — disse depressa.
— Sim, mas de manhã, Tom, não há nada que possamos fazer agora.
— Mas eu ia voltar para Zagros; devia ter partido hoje.
— Eu sei. Fique aqui amanhã. Deixe para ir no outro dia. Nogger pode fazer o vôo, se a licença sair, o que eu duvido. Venha lá pelas dez.
McIver viu os rapazes começarem a andar na direção deles.
— Por volta das dez, Tom — disse apressadamente, passou a mudança e se afastou praguejando.
Os rapazes os viram afastar-se e seu líder, Ibrahim, ficou contente, pois não queria se defrontar com estrangeiros, nem matá-los — nem levá-los a julgamento. Só gente da Savak. E policiais culpados. E os inimigos do Irã, dentro do Irã, que queriam trazer o xá de volta. E todos os traidores totalitários marxistas que se opunham à democracia e à liberdade de fé e à liberdade de educação e à universidade.
— Oh, como eu gostaria de um carro daqueles — disse um deles, doente de inveja. — Era 68, não era, Ibrahim?
— Sessenta e cinco — respondeu Ibrahim. — Um dia você vai ter um, Ali, e gasolina para pôr nele. Um dia você vai ser o poeta e escritor mais famoso do Irã.
— É revoltante aquele estrangeiro exibir tanta riqueza quando há tanta pobreza no Irã — disse um outro.
— Logo todos terão partido. Para sempre.
— Você acha que aqueles dois voltarão amanhã, Ibrahim?
— Espero que não — disse, com uma risada cansada — se eles voltarem eu não sei o que faremos. Acho que os assustamos bastante. Mesmo assim, devíamos visitar este quarteirão pelo menos duas vezes por dia.
O jovem que carregava um pedaço de pau pôs o braço, afetuosamente, em volta do seu ombro.
— Estou contente que tenhamos votado em você para nosso líder. Foi uma escolha perfeita.
Todos concordaram. Ibrahim Kyabi ficou muito orgulhoso, e orgulhoso, também, de fazer parte da revolução que iria terminar com todos os problemas do Irã. E orgulhoso também do seu pai, que era um engenheiro do petróleo e um importante funcionário da IranOil, que vinha trabalhando pacientemente, ao longo dos anos, pela democracia no Irã, opondo-se ao xá, e que agora, certamente, seria uma voz poderosa no novo e glorioso Irã.
— Vamos embora, amigos — disse satisfeito. — Temos muitos prédios mais para investigar.
NA ILHA SIRI: 19:42H. A pouco mais de mil quilômetros a sudoeste de Teerã, o carregamento do petroleiro japonês de cinqüenta mil toneladas, o Rikomaru, estava quase completo. A lua iluminava o golfo, a noite estava fresca, com muitas estrelas no céu e Scragger concordara em se encontrar com de Plessey e ir a bordo para jantar com Yoshi Kasigi. Agora os três estavam na ponte com o capitão, o tombadilho todo iluminado por holofotes, observando os marujos japoneses e o engenheiro-chefe perto do enorme tubo de sucção ligado ao sistema de válvulas da barcaça de carregamento de petróleo que flutuava ao lado do navio, também iluminada por holofotes.
Estavam a cerca de duzentos metros da ilha Siri, o petroleiro ancorado firmemente, com suas duas correntes de proa presas em bóias à frente e duas âncoras lançadas na popa. O petróleo era bombeado dos reservatórios, que ficavam em terra, através de um duto que vinha pelo fundo do mar até a barcaça, e daí para o navio, através do seu próprio sistema de comunicação com os tanques do navio. Carregar e descarregar eram operações perigosas porque gases voláteis, altamente explosivos, se formavam nos tanques acima do óleo bruto — tanques vazios eram ainda mais perigosos até serem lavados. Nos petroleiros mais modernos, para aumentar a segurança, nitrogênio — um gás inerte — era bombeado no espaço vazio dos tanques, para ser expelido aos poucos. O Rikomaru não possuía este equipamento.
Ouviram o engenheiro-chefe gritar para os homens que estavam na barcaça: "Fechem a válvula", depois virar-se para a ponte e levantar os polegares para o capitão, que viu o sinal, e disse para Kasigi, em japonês:
— Temos permissão para partir, assim que pudermos? — O capitão era um homem magro, de cara esticada, vestido com uma camisa branca e bermudas, meias brancas e sapatos, dragonas e um boné de estilo naval.
— Sim, capitão Moriyama. Quanto tempo vai levar?
— Duas horas, no máximo, para fazer a limpeza e recolher as amarras. — Isto significava enviar o bote para soltar as correntes de proa que estavam presas às bóias, depois tornar a prendê-las nas âncoras do navio.
— Ótimo. — Voltando-se para de Plessey e Scragger, Kasigi disse em inglês: — Estamos com o carregamento completo e prontos para partir. Daqui a umas duas horas estaremos a caminho.
— Excelente — respondeu de Plessey, igualmente aliviado. — Agora podemos relaxar.
A operação correra muito bem. A segurança fora reforçada em toda a ilha e no navio. Tudo que podia ser verificado o foi. Só três iranianos, que eram imprescindíveis, puderam entrar no navio. Todos foram revistados e estavam sendo cuidadosamente vigiados por um tripulante japonês. Não tinha havido qualquer sinal da presença de inimigos entre os iranianos que estavam em terra. Todos os lugares que pudessem esconder explosivos ou armas foram revistados.
— Talvez aquele pobre rapaz de Siri Um tenha se enganado, Scragger, mon ami.
— Talvez — respondeu Scragger. — Mesmo assim, cara, eu acho que o jovem Abdullah Turik foi assassinado. Ninguém fica com o rosto e o olho mutilados daquela maneira por cair de uma plataforma num mar calmo. Pobre infeliz.
— Mas os tubarões, capitão Scragger — disse Kasigi, igualmente inquieto —, os tubarões poderiam ter causado aqueles ferimentos.
— Sim, poderiam. Mas aposto a minha vida que foi por causa da dica que ele me deu.
— Espero que você esteja enganado.
— Aposto que nunca vamos saber a verdade — disse Scragger, tristemente. — Quai foi a palavra que o senhor usou, sr. Kasigi? Carma. O carma daquele pobre infeliz foi curto e não muito doce.
Os outros concordaram. Em silêncio, observaram o navio sendo separado do duto que o ligava à barcaça.
Para ver melhor, Scragger foi para o lado da ponte. Sob a luz dos holofotes, os trabalhadores estavam desatarraxando, com dificuldade, o cano de trinta centímetros do sistema de válvulas da barcaça. Seis homens estavam lá. Dois japoneses, três iranianos, e um engenheiro francês.
Na frente deles estendia-se o tombadilho, no meio do qual estava o seu 206. Ele tinha pousado lá por sugestão de de Plessey e com a permissão de Kasigi.
— Beaut — dissera Scragger ao francês —, eu o levo de volta a Siri, ou Lengeh, como você quiser.
— Yoshi Kasigi sugeriu que passássemos a noite aqui, Scrag, e voltássemos de manhã. Será uma novidade para você. Podemos partir de madrugada e voltar a Lengeh. Venha para bordo. Eu teria muito prazer.
Então ele pousara no petroleiro ao pôr-do-sol, sem saber bem por que aceitara o convite, mas ele tinha feito um pacto com Kasigi e achou que devia honrá-lo. Além disso, sentia-se responsável pelo jovem Abdullah Turik. A visão do corpo do rapaz o abalara muito e o fizera desejar permanecer em Siri até o petroleiro partir. Então ele fora e tentara ser um bom hóspede, concordando em parte com de Plessey que, afinal de contas, a morte do rapaz talvez tivesse sido apenas uma coincidência e que suas precauções de segurança evitariam qualquer tentativa de sabotagem.
Desde que o carregamento começara, no dia anterior, todos tinham estado tensos. Esta noite mais ainda. As notícias da BBC foram novamente muito ruins, com informações de grandes batalhas em Teerã, Meshed e Qom. Além disso, havia o relatório de McIver que Ayre transmitira cuidadosamente de Kowiss, em francês — notícias da invasão do aeroporto internacional de Teerã, do possível golpe e de Kyabi. O assassinato de Kyabi também abalara de Plessey. E tudo isso, associado à boataria entre os iranianos, tornara a noite sombria. Rumores de uma iminente intervenção militar dos Estados Unidos, de uma iminente intervenção da União Soviética, de tentativas de assassinato contra Khomeini, contra Bazargan, o primeiro-ministro escolhido por ele, contra Bakhtiar, o primeiro-ministro legal, contra o embaixador dos Estados Unidos, rumores de que o golpe de estado militar ocorreria naquela noite, em Teerã, de que Khomeini já estava preso, de que todas as Forças Armadas já tinham capitulado e Khomeini já era, de fato, governante do Irã e que o general Nassiri, chefe da Savak, fora capturado, julgado e morto.
— Os boatos não podem ser todos verdadeiros — dissera-lhes Kasigi. — Não há nada que possamos fazer a não ser esperar.
Ble fora um bom anfitrião. Toda a comida era japonesa. Até a cerveja. Scragger tentara disfarçar seu desagrado pelo liors oeuvre de sushi, mas gostou muito da galinha frita com molho agridoce, do arroz, dos camarões fritos e dos legumes na manteiga.
— Mais uma cerveja, capitão Scragger? — oferecera Kasigi.
— Não, obrigado. Eu só me permito uma, embora reconheça que é muito boa. Talvez não tão boa quanto a Foster's, mas quase.
— O senhor não sabe o cumprimento que recebeu, sr. Kasigi. Para um australiano, dizer que uma cerveja é quase tão boa quanto a Foster's é um elogio e tanto — disse de Plessey sorrindo.
— Oh, sim, eu sei, sr. de Plessey. Quando estou na Austrália eu prefiro a Foster's.
— O senhor passa muito tempo lá? — perguntara Scragger.
— Oh, sim. A Austrália é uma das maiores fornecedoras de matéria-prima para o Japão. Minha companhia tem enormes cargueiros para transportar carvão, minério de ferro, trigo, arroz e soja — dissera Kasigi. — Nós importamos quantidades enormes do seu arroz, embora grande parte se destine à fabricação da nossa bebida nacional, o saque. O senhor já experimentou o saque, capitão?
— Sim, uma vez. Mas é uma bebida forte... não gosto muito de saque.
— Eu concordo — disse de Plessey, e acrescentou, em seguida —, exceto no inverno, como chocolate quente. O senhor falava sobre a Austrália?
— Eu gosto muito do país. Meu filho mais velho está na Universidade de Sydney, e nós o visitamos de vez em quando. É uma terra maravilhosa — tão grande, tão rica, tão vazia.
Sim, pensava Scragger, com severidade. Você quer dizer tão vazia e esperando para ser invadida pelas suas milhões de formigas operárias? Graças a Deus, estamos a milhares de quilômetros de distância e os Estados Unidos nunca permitirão que nos controlem.
— Bolas! — dissera-lhe McIver uma vez, durante uma discussão amistosa, quando ele, McIver e Pettikin estavam passando uma semana de licença em Cingapura, há dois anos. — Se em algum momento do futuro o Japão escolhesse a hora certa, digamos quando os Estados Unidos estivessem às voltas com a Rússia, os Estados Unidos não poderiam fazer nada para ajudar a Austrália. Acho que eles fariam um acordo e...
— Dirty Duncan perdeu o juízo, Charlie — dissera Scragger.
— Tem razão — concordara Pettikin. — Ele só está implicando com você, Scrag.
— Oh, não, não estou. O seu verdadeiro protetor é a China. Aconteça o que acontecer, a China estará sempre lá. E só a China sempre terá condições de deter o Japão, caso este fique suficientemente poderoso para se expandir para o sul. Meu Deus, a Austrália é o grande prêmio do Pacífico, a arca do tesouro do Pacífico, mas nenhum dos caras lá se preocupam em planejar para o futuro ou em usar essa vantagem. Tudo o que vocês querem são três dias de folga por semana, com mais salário por menos trabalho, escola gratuita, serviço médico gratuito, previdência gratuita, e que outros idiotas cuidem da defesa. Vocês são piores do que a pobre e velha Inglaterra que não tem nada! O verdadeiro pro...
— Vocês têm o petróleo do mar do Norte. E se isso não é uma sorte dos diabos eu...
— O problema mesmo é que vocês, imbecis, não sabem distinguir entre o seu cú e um buraco na parede.
— Sente-se Scrag! — dissera Pettikin, ameaçadoramente. — Você concordou em não brigar. Tente acertar Mac quando não estiver bêbado, se não vai acabar na sarjeta. Ele pode ter pressão alta, mas ainda é faixa-preta.
— Eu acertar Dirty Duncan? Você deve estar brincando, cara. Eu não bato em velhos...
Scragger sorriu consigo mesmo, relembrando a bebedeira que tomaram para se despedir das bebedeiras. Cingapura é um bom lugar, pensou, depois tornou a prestar atenção no navio, sentindo-se melhor, bem-alimentado e muito satisfeito do navio já estar carregado.
A noite foi ótima. Bem acima dele, viu as luzes de navegação de um avião que ia em direção a oeste e ficou imaginando para onde ele iria, qual seria a linha aérea e quantos passageiros estariam a bordo. Sua visão noturna era excelente e podia ver que, agora, os homens na barcaça tinham quase acabado de desatarraxar o cano. Quando este fosse içado para bordo, o petroleiro poderia partir. De madrugada, o Rikomaru estaria no estreito de Ormuz e ele decolaria e voaria para casa em Lengeh com de Plessey.
De repente, seus olhos alerta viram alguns homens se afastarem correndo do ponto de junção do duto, meio iluminado pelos holofotes, que ficava bem no início da praia. Sua atenção se concentrou neles.
Houve uma pequena explosão e, em seguida, um clarão de fogo quando o óleo incendiou. Todos a bordo observavam perplexos. As chamas começaram a se espalhar, e eles ouviram gritos — em farsi e em francês — vindos de terra. Homens corriam, saindo das barracas e da área dos reservatórios. De repente, o ruído feio de uma metralhadora disparada na escuridão. Pelo sistema de alto-falantes do navio, ouviu-se a voz do capitão falando em japonês:
— Posição de combate!
Imediatamente, os homens na barcaça redobraram seus esforços, apavorados que o fogo pudesse espalhar-se pelo cano até a barcaça e esta explodisse. Assim que o bocal se soltou da válvula, os iranianos pularam para o barco e fugiram, tendo terminado seu trabalho. O engenheiro francês e um marujo japonês correram pela prancha enquanto o guincho do navio começava a arrastar o cano para bordo.
Sob o tombadilho, a tripulação correra para colocar-se em posição de defesa, alguns na casa de máquinas, alguns na ponte, outros nos passadiços principais. Por um momento, os três iranianos que controlavam o fluxo de combustível do navio foram deixados sozinhos. Eles correram para o tombadilho.
Um deles, Said, fingiu que tropeçava e caía perto da entrada do tanque principal. Quando teve certeza de que não estava sendo observado, abriu rapidamente as calças e pegou a pequena bomba de explosivo plástico que passara despercebida quando o revistaram ao subir a bordo. Tinha prendido a bomba na parte interior da coxa, bem em cima, entre as pernas. Rapidamente, ativou o detonador químico que explodiria em uma hora, prendeu a bomba atrás da válvula principal e correu para o passadiço. Quando chegou no tombadilho, ficou perplexo ao ver que os homens que estavam na barcaça não tinham esperado por ele e que o barco já estava quase na praia. Os outros dois iranianos discutiam excitadamente, também enfurecidos por terem sido deixados a bordo. Nenhum deles pertencia à sua organização de esquerda.
Na praia, o óleo derramado estava incendiando, mas o bombeamento fora interrompido e o vazamento isolado. Três homens tinham-se queimado muito, um francês e dois iranianos. O carro de bombeiro despejava água salgada nas chamas, retirando-a do golfo. Não havia vento e a fumaça negra tornava ainda mais difícil o combate ao fogo.
— Despejem um pouco de espuma — gritou Legrande, o administrador francês. Quase louco de ódio, ele tentou conseguir um pouco de ordem, mas todo mundo corria de um lado para o outro sob os holofotes, sem saber o que fazer. — Jacques, junte todo mundo e vamos contar o pessoal. O mais depressa que puder. — Contaram ao todo sete franceses e trinta iranianos na ilha. A equipe de segurança, formada por três homens, saiu correndo no meio da escuridão, sem armas a não ser bastões malfeitos, sem saber qual a próxima sabotagem nem de onde viria.
— M'sieur — acenava o médico iraniano para Legrande. Legrande caminhou em direção à praia, para o sistema de canos e válvulas que ligavam os tanques à barcaça. O médico ajoelhava-se ao lado de dois dos feridos que estavam deitados num pedaço de lona, inconscientes e em choque. Um deles tivera o cabelo inteiramente queimado, bem como a maior parte do rosto, o outro foi atingido por um jato de óleo, na explosão inicial, que incendiara instantaneamente suas roupas, causando-lhe queimaduras de primeiro grau por quase todo o corpo.
— Madonna — murmurou Legrande e fez o sinal-da-cruz, ao ver a pele toda queimada, mal reconhecendo seu capataz iraniano.
Um dos engenheiros franceses estava sentado, dobrado em dois, gemendo baixinho, com os braços e as mãos queimados. Entremeava sua agonia a uma torrente constante de palavrões.
— Vou levá-lo para o hospital o mais depressa que puder, Paul.
— Encontre esses filhos da puta e queime-os — rosnou o engenheiro e depois tornou a se concentrar no seu sofrimento.
— Claro — disse Legrande, sentindo-se impotente, e falou para o médico
— Faça o que puder, vou solicitar uma emergência. — Correu para a sala de rádio que ficava em uma das barracas, com os olhos se ajustando à escuridão. Então notou dois homens do outro lado da pista, subindo pela trilha de uma pequena elevação. Do outro lado da elevação, havia uma enseada com um cais, usado para velejar e nadar. Aposto que os filhos da puta têm um barco lá, pensou na mesma hora. Então, transtornado de raiva, gritou na direção deles:
— Filhos da puuuuta!
Quando houve a primeira explosão, de Plessey tinha corrido para o rádio, localizado na ponte, através do qual o navio se comunicava com a praia.
— Vocês já acharam essa metralhadora? — perguntou ao subgerente da base, em francês. Ao lado dele, Scragger, Kasigi e o capitão estavam igualmente tensos. As luzes da ponte estavam fracas. Lá fora, a lua brilhava alta.
— Não, m'sieur. Depois da primeira rajada, os atacantes desapareceram.
— Quai foi o dano causado ao sistema de bombeamento?
— Não sei. Estou esperando por um... ah, um momento, m'sieur Legrande está aqui. — Depois de um momento ouviu-se de novo em francês:
— Aqui é Legrande. Três queimados, dois iranianos em estado grave, o outro é Paul Beaulieu, mãos e braços. Peçam uma emergência imediatamente. Vi dois homens se dirigindo para a enseada, provavelmente os sabotadores, e eles devem ter um barco lá. Estou reunindo todo mundo para ver quem está faltando.
— Sim, imediatamente. E os danos?
— Não são muito graves. Com sorte, consertaremos tudo em uma semana; com certeza estará tudo consertado para a chegada do próximo petroleiro.
— Irei para terra assim que puder. Espere um momento! — De Plessey olhou para os outros e contou-lhes o que Legrande dissera. Scragger disse imediatamente:
— Eu me encarregarei da emergência, não é preciso solicitá-la.
— Tragam os feridos para o navio; nós temos uma sala de cirurgia e um médico. Ele é muito experiente, especialmente com queimaduras — disse Kasigi.
— Ótimo! — Scragger saiu correndo.
— Nós vamos lidar com a emergência aqui. Ponham os homens em maças.
O capitão Scragger vai trazê-los para bordo imediatamente. Há um médico aqui — disse de Plessey, ao microfone.
Um jovem oficial japonês entrou e falou rapidamente com o capitão, que sacudiu a cabeça, respondeu sumariamente e depois explicou em inglês a de Plessey:
— Os três iranianos que foram deixados a bordo, quando os outros que estavam na barcaça fugiram, querem ser levados para terra imediatamente. Eu disse que eles podiam esperar. — Então chamou a sala de máquinas, preparando-se para avançar.
Kasigi olhava para a ilha. E para os tanques. Preciso daquele óleo, pensou, e preciso que a ilha fique a salvo. Mas ela não está a salvo e nada do que eu possa fazer vai mantê-la a salvo.
— Vou até a praia — disse de Plessey e saiu. Scragger já estava no 206, tirando as portas de trás.
— O que está fazendo, Scrag? — perguntou de Plessey.
— Posso colocar a maca no assento de trás e prendê-la bem. É mais rápido do que montar um guincho para carregar as maças.
— Vou com você.
— Pule para dentro!
Uma algazarra chamou a atenção deles. Eram os três iranianos que tinham vindo correndo e gesticulavam com veemência. Estava claro que queriam ir para terra no helicóptero.
— Vamos levá-los, Scrag?
Scragger já estava sentado no lugar do piloto, com os dedos apertando os botões.
— Não, você tem uma emergência, eles não. Entre, meu velho. — Apontou para o assento da direita e depois fez sinal para os iranianos se afastarem. — Nah, ajaleh daram. Não, estou com pressa — disse, usando uma das poucas expressões em farsi que conhecia. Dois deles recuaram obedientemente. O terceiro, Said, escorregou para o assento traseiro e começou a amarrar o cinto. Scragger sacudiu a cabeça, fazendo sinal para ele descer. O homem não deu atenção, falou rapidamente, forçou um sorriso e apontou para a praia.
Impacientemente, Scragger fez sinal para ele sair, com um dos dedos apertando o botão para ligar o motor. Este pegou instantaneamente. Mais uma vez o homem se recusou a sair e, zangado, apontou para a praia, com a voz abafada pelo barulho do motor. Por um momento, Scragger pensou, sim, por que não? Então notou o suor pingando do rosto do homem, seu macacão ensopado de suor, e como que farejou-lhe o medo.
— Fora! — disse, estudando-o cuidadosamente.
Said não lhe deu atenção. Acima deles, as hélices giravam devagar, ganhando velocidade.
— Deixe-o ficar — gritou de Plessey. — É melhor irmos depressa. Repentinamente, Scragger desligou o motor e com uma força enorme para um homem tão pequeno, soltou o cinto de Said e jogou o homem no tombadilho, meio desmaiado, antes que alguém soubesse o que estava acontecendo. Pôs as mãos em torno da boca e gritou para a ponte:
— Ei, aí em cima! Kasigi! Este cara está ansioso demais para cair fora.
Ele não estava lá em baixo? — Sem esperar pela resposta, tornou a pular para a cabine e ligou o motor.
— O que foi que você viu naquele homem? — perguntou-lhe de Plessey. Scragger deu de ombros. Antes mesmo dos motores terem alcançando força total, os marinheiros já tinham agarrado o homem e mais os outros dois e os levaram para a ponte.
O 206 foi como uma flecha até a praia. Os dois feridos já estavam em maças. Rapidamente, uma das maças foi amarrada no lugar do banco de trás. Scragger ajudou o francês ferido, que estava com as mãos e os braços enfaixados, a se sentar no banco da frente, ao lado dele, e tentando não sentir o mau cheiro, levantou vôo e retornou, pousando como uma pluma. Os enfermeiros e o médico esperavam com plasma e morfina já preparados.
Em segundos, Scragger tornou a ir até a praia. Em mais alguns segundos a outra maca estava no lugar e ele já estava de volta, pousando suavemente. Mais uma vez o médico esperava, com a agulha preparada, e mais uma vez ele se abaixou e correu em direção à maca, sob as hélices que giravam. Desta vez, porém, ele não usou a agulha.
— Sinto muito — disse num inglês hesitante. — Este homem está morto. — Depois, mantendo a cabeça abaixada, ele se dirigiu rapidamente ao seu consultório. Os enfermeiros retiraram o corpo.
Depois que Scragger já tinha parado e estava com tudo desligado e seguro, ele foi até a amurada do navio e vomitou violentamente. Desde que tinha visto, ouvido e cheirado um piloto num bimotor em chamas, há muitos e muitos anos, era um pesadelo para ele pensar que poderia se ver na mesma situação. Nunca fora capaz de suportar o cheiro de queimado de carne e de cabelo humanos.
Depois de algum tempo, enxugou a boca, respirando ar puro, e abençoou a sua sorte. Tinha sido derrubado três vezes, duas delas pegando fogo, mas sempre conseguira escapar são e salvo. Várias vezes tinha sido obrigado a fazer uma cambalhota com o helicóptero para salvar-se e aos passageiros, por duas vezes na selva e sobre as árvores, uma vez com um motor pegando fogo. Mas o meu nome não estava na lista, pensou — pelo menos dessas vezes. Ouviu passos se aproximando. Virou-se e viu Kasigi que atravessava o tombadilho com uma garrafa de cerveja Kirin gelada em cada mão.
— Perdoe-me por favor, mas aqui está — disse Kasigi, gravemente, oferecendo a cerveja. — Queimaduras me causam a mesma coisa. Eu também passei mal. Eu... eu fui até a sala de operações para ver como os feridos estavam e... passei muito mal.
Scragger bebeu agradecido. O líquido gelado, com sabor de lúpulo, com bolhas que faziam cócegas enquanto ele bebia, reanimou-o.
— Jesus Cristo, como isso estava bom. Obrigado, cara. — E tendo dito isso uma vez foi fácil dizer de novo. — Obrigado, cara. — Kasigi ouviu aquilo duas vezes e considerou uma grande vitória. Os dois olharam para o marinheiro que se aproximava rapidamente deles com uma mensagem na mão. Entregou-a a Kasigi, que foi para perto da luz mais próxima, pôs os óculos e leu. Scragger viu-o ofegar e ficar cada vez mais pálido.
— Más notícias?
— Não... só... só problemas — disse Kasigi, hesitante.
— Há alguma coisa que eu possa fazer?
Kasigi não respondeu. Scragger esperou. Podia ver o turbilhão nos olhos do homem embora não no seu rosto, e tinha certeza que Kasigi estava tentando decidir se contava ou não a ele. Então Kasigi disse:
— Acho que não. É... É a respeito do nosso pólo petroquímico em Bandar Delam.
— O que o Japão está construindo? — Como todo mundo no golfo, Scragger sabia a respeito do fabuloso empreendimento de três e meio bilhões de dólares que, quando estivesse pronto, seria o maior complexo petroquímico da Ásia Menor e do Oriente Médio, tendo como setor principal uma fábrica de trezentas mil toneladas de etileno. Vinha sendo construído desde 1971 e estava quase pronto. — É uma fábrica e tanto.
— Sim, mas está sendo construída pela indústria privada japonesa, não pelo governo japonês — disse Kasigi. — A fábrica Irã-Toda está sendo financiada pela iniciativa privada.
— Ah — disse Scragger, entendendo onde ele queria chegar. — Navegação Toda, lrã-Toda? Vocês são uma mesma companhia?
— Sim, mas nós somos apenas uma parte do grupo japonês que forneceu dinheiro e assistência técnica para o xá... para o Irã. — Kasigi corrigiu-se. Que todos os deuses, grandes e pequenos, amaldiçoem esta terra, e todos os que vivem nela, amaldiçoem o xá por criar toda essa crise do petróleo, amaldiçoem a OPEP, amaldiçoem todos os fanáticos e mentirosos que vivem aqui. Olhou para a mensagem outra vez e ficou satisfeito em ver que sua mão não estava mais tremendo. O comunicado, escrito no código particular usado pelo seu presidente, Hiro Toda, dizia:
"URGENTE. Devido à intransigência contínua e absoluta do Irã, ordenei, finalmente, que interrompessem por completo a obra em Bandar Delam. O custo atual ultrapassa 550 milhões de dólares e chegaria, provavelmente, a um bilhão, antes que pudéssemos iniciar a produção. Atualmente, estamos pagando juros de 495 mil dólares por dia. Devido à infame pressão secreta exercida pela 'Espada Partida', o nosso Plano de Contingência 4 foi rejeitado. Vá, com urgência, para Bandar Delam e apresente-me um relatório pessoal. O engenheiro-chefe, diretor Watanabe, o aguarda. Por favor acuse recebimento."
E impossível chegar lá, pensou Kasigi, desanimado. E se o Plano 4 foi rejeitado, estamos arruinados.
O Plano de Contingência 4 recomendava que Hiro Toda tentasse conseguir com o governo japonês empréstimos a juros baixos para cobrir os déficits e, ao mesmo tempo, discretamente, que o primeiro-ministro declarasse o complexo da Irã-Toda em Bandar Delam um 'Projeto Nacional'. 'Projeto Nacional' significava que o governo reconhecia a natureza vital do empreendimento e o patrocinaria até o final. 'Espada Partida' era a expressão que usavam para designar o inimigo pessoal e maior rival de Toda, Hideyoshi Ishida, que liderava o poderosíssimo grupo de companhias conhecidas sob o nome geral de Mitsuwari.
Que todos os deuses amaldiçoem aquele verme ciumento e mentiroso do Ishida, pensava Kasigi, quando disse:
— A minha companhia é apenas uma das muitas do grupo.
— Eu sobrevoei a sua fábrica uma vez — disse Scragger —, indo da nossa base para Abadan. Estava transportando um 212. Você está tendo problemas
— Temporários... — Kasigi parou e olhou para ele. As partes de um plano se encaixaram em sua cabeça. — Alguns problemas temporários... importantes, mas temporários. Como você sabe, temos tido muitos problemas desde o início, e nenhum deles por culpa nossa. Primeiro foi fevereiro de 1971, quando 23 produtores de petróleo assinaram o acordo de preços da OPEP, formaram o seu cartel e dobraram o preço para US$2,16... depois a Guerra do Yom Kippur em 1973, quando a OPEP cortou o fornecimento dos Estados Unidos e elevou o preço para US$5,12. Depois a catástrofe de 1974, quando a OPEP reiniciou o fornecimento mas tornou a dobrar os preços, para US$10,95 e iniciou uma recessão mundial. Por que os Estados Unidos permitiram que a OPEP destruísse a economia mundial, quando só eles tinham o poder de esmagá-los, é uma coisa que nunca saberemos. Baka! E agora nós somos um joguete para a OPEP, o nosso maior fornecedor, o Irã, está vivendo uma revolução, o petróleo está custando quase vinte dólares o barril e nós temos que pagar, não há outro jeito. — Fechou o punho para dar um soco na amurada, depois abriu a mão, aborrecido com sua falta de controle. — Quanto à Irã-Toda — disse, esforçando-se para aparentar calma —, como todo mundo, nós achamos os iranianos muito... muito difíceis de lidar nestes últimos anos. — Apontou para a mensagem. — O meu presidente me ordenou que fosse para Bandar Delam.
— Isso vai ser arriscado e difícil — disse Scragger, depois de um assovio.
— Sim.
— É importante?
— Sim. Sim, é. — Kasigi deixou que isso ficasse pairando no ar, certo de que Scragger sugeriria a solução. Na praia, a área em torno do sistema de válvulas sabotado, encharcada de óleo, ainda queimava. No momento, o carro de bombeiro espalhava espuma. Podiam ver de Plessey ali perto, conversando com Legrande.
— Ouça, meu velho — disse Scragger —, você é um cliente importante de de Plessey, não é? Ele poderia lhe arranjar um vôo. Nós temos um 206 de reserva. Se ele concordasse... todos os nossos aparelhos foram contratados pela IranOil, o que significa por de Plessey, talvez conseguíssemos permissão do controle de tráfego aéreo para levá-lo pela costa; ou se você conseguisse permissão da Imigração em Lengeh, talvez pudéssemos levá-lo através do golfo para Dubai ou Al Shargaz. De lá, talvez você consiga um vôo para Abadan ou Bandar Delam. De qualquer maneira, meu chapa, de Plessey pode conseguir a etapa inicial.
— Você acha que ele o faria?
— Por que não? Você é importante para ele.
Kasigi estava pensando. É claro que somos muito importantes para ele e ele sabe disso. Mas eu nunca vou esquecer aquele ágio de dois dólares por barril.
— Desculpe, o que foi que você disse?
— Eu disse, o que fez vocês iniciarem o projeto, afinal de contas? É bem longe de casa e tinha que trazer muitos problemas. O que fez vocês começarem?
— Um sonho. — Kasigi gostaria de ter acendido um cigarro, mas só era permitido fumar em algumas áreas à prova de incêndio. — Há onze anos, em 1968, um homem chamado Banjiro Kayama, um engenheiro que trabalhava na minha companhia e era parente do nosso presidente, Hiro Toda, estava passando de carro pelos campos de petróleo em volta de Abadan. Era sua primeira visita ao Irã e em toda parte que ele foi, viu jatos de gás natural queimando. De repente, ele teve uma idéia: por que não podemos transformar todo este gás desperdiçado em petroquímicos? Nós temos a tecnologia e a experiência e somos do tipo que planeja a longo prazo. A habilidade e o dinheiro japoneses aliados às matérias-primas iranianas que eram, então, totalmente desperdiçadas! Uma idéia brilhante, rara e pioneira! O planejamento inicial levou três anos, o tempo estritamente necessário, embora rivais ciumentos dissessem que andamos depressa demais, ao mesmo tempo que tentavam roubar nossas idéias e envenenar outras pessoas contra nós. Mas o plano Toda foi para a frente e os três e meio bilhões de dólares foram levantados. Evidentemente, nós somos só uma parte do grupo Gyokotomo-Mitsuwari-Toda, mas os navios Toda transportarão a parte que cabe ao Japão dos produtos que nossas indústrias necessitam desesperadamente. — Se conseguirmos terminar as instalações, pensou desanimado.
— E agora o sonho virou um pesadelo? — perguntou Scragger. — Eu não ouvi... não se disse que o projeto estava sem dinheiro?
— Os inimigos espalham todo tipo de rumores. — Sob o ronco constante dos geradores do navio, seus ouvidos escutaram o início de um grito que ele já estava esperando, surpreso de que tivesse demorado tanto para ouvi-lo. — Quando de Plessey voltar para o navio, você me ajudará?
— Com prazer. Ele é o homem que... — Scragger parou. Mais uma vez o grito. — As queimaduras são terrivelmente dolorosas.
Kasigi balançou a cabeça.
Um novo jato de fogo atraiu a atenção deles para a praia. Observaram os homens que estavam lá. Agora o fogo estava quase sob controle. Outro grito. Kasigi procurou não prestar atenção, com a cabeça em Bandar Delam e na resposta que tinha que mandar para Hiro Toda. Se alguém pode resolver este problema, esse alguém é Hiro Toda. Ele tem que resolver. Se não o fizer, estou arruinado, o fracasso dele é também o meu.
— Kasigi-san! — Era o capitão chamando da ponte.
— Hai!
Scragger escutou a torrente de japonês que vinha do capitão, e o som do japonês não era agradável aos seus ouvidos.
— Domo — Kasigi respondeu, parecendo estarrecido; depois falou com urgência para Scragger, esquecendo tudo o mais — Vamos! — E foi correndo na frente em direção ao passadiço. — O iraniano, você se lembra, o que você expulsou do helicóptero? Ele é um Sabotador e colocou uma bomba lá embaixo.
Scragger seguiu Kasigi através da escotilha, desceu os degraus do passadiço de dois em dois, correu pelo corredor, desceu de um convés para outro e então se lembrou dos gritos. Bem que eu achei que eles vinham da ponte e não lá de baixo!, disse a si mesmo. O que será que fizeram com ele?
Chegaram onde estava o capitão e o engenheiro-chefe. Dois marinheiros furiosos vinham arrastando o aterrorizado Said. Lágrimas corriam pelo seu rosto e ele balbuciava incoerentemente, com uma das mãos segurando as calças. Parou, tremendo e gemendo, e apontou para a válvula. O capitão ficou de cócoras. Com muito cuidado, colocou a mão atrás da enorme válvula. Então levantou-se. O explosivo plástico estava na mão dele. O mecanismo de tempo era químico, um frasco enterrado no explosivo e preso firmemente por uma fita adesiva.
— Desligue-o — disse zangado em farsi e estendeu-o para o homem que recuou, gaguejando e gritando.
— Não se pode desligá-lo. Já está atrasado para explodir... não compreende!
— Ele diz que está atrasado! — Traduziu o capitão, paralisado. Antes que pudesse se mexer, um dos marinheiros tirou o explosivo de suas mãos e arrastando Said com ele, empurrando-o para a frente, correu para o passadiço. Não havia vigias nesse convés mas havia no outro. A vigia mais próxima ficava em um canto do corredor, presa por dois pesados parafusos de borboleta. Ele quase atirou Said sobre ela, gritando que a abrisse. Com a mão livre, começou a desatarraxar um lado. A borboleta caiu, depois a de Said. O marinheiro abriu a vigia. Neste instante, a bomba explodiu e arrancou suas mãos, a maior parte do seu rosto e despedaçou a cabeça de Said, espalhando sangue por toda parte.
Os outros, que estavam subindo, quase foram lançados de volta ao passadiço com a explosão. Kasigi aproximou-se e ajoelhou ao lado dos corpos. Sacudiu a cabeça como se estivesse entorpecido.
— Carma — murmurou o capitão, quebrando o silêncio.
EM TEERÃ: 20:33H. Depois de deixar McIver perto do seu escritório, Tom Lochart fora para casa — alguns desvios, alguns policiais zangados, mas nada de muito inconveniente. Morava em um belo apartamento de cobertura num edifício moderno de seis andares, na melhor área residencial da cidade — um presente de casamento do sogro. Xarazade esperava por ele, e se pendurou no seu pescoço, beijando-o apaixonadamente. Pediu que ele sentasse em frente ao fogo, tirou-lhe os sapatos, correu para apanhar um pouco de vinho, que estava exatamente na temperatura que ele gostava, trouxe-lhe uns aperitivos dizendo que o jantar logo estaria pronto, correu para a cozinha e na sua voz suave e cantada, apressou a empregada e o cozinheiro dizendo que o senhor estava em casa e com fome, depois voltou e se sentou aos pés dele — no chão coberto de tapetes luxuosos — com os braços em volta dos joelhos, adorando-o.
— Estou tão feliz em vê-lo, Tommy, senti tanto a sua falta — seu inglês era adorável. — Oh, eu me diverti muito ontem e hoje.
Ela usava calças persas de seda leve e uma blusa comprida e folgada e, para ele, era absolutamente maravilhosa. E desejável. Dentro de poucos dias ela faria 23 anos. Ele tinha 42. Estavam casados há quase um ano e ele ficara enfeitiçado desde o primeiro momento em que a viu.
Isso aconteceu há pouco mais de três anos, num jantar em Teerã dado pelo general Valik. Era início de setembro, exatamente o final das férias de verão na Inglaterra, e Deirdre, a mulher de Tom, estava na Inglaterra com a filha deles, passando as férias, e justamente naquela manhã ele tinha recebido outra carta irritada dela, insistindo que ele escrevesse a Gavallan para solicitar uma transferência imediata: "Eu odeio o Irã, não quero mais viver aí. A Inglaterra é tudo o que quero, tudo o que Mônica quer. Por que você não pensa em nós, para variar, ao invés de pensar nos seus malditos aviões e na sua maldita companhia? Toda a minha família está aqui, todos os meus amigos estão aqui, e todos os amigos de Mônica estão aqui. Já estou farta de morar no estrangeiro e quero ter minha própria casa, perto de Londres, com um jardim, ou até mesmo na cidade — há várias pechinchas em Putney e Clapham Common. Estou farta de estrangeiros e postos no estrangeiro, e não agüento mais a comida iraniana, a sujeira, o calor, o frio, essa língua horrorosa, esses banheiros horrorosos, ter que me agachar como um animal, e os hábitos horríveis, os modos — tudo. Está na hora de resolvermos nossa situação, enquanto ainda sou jovem..."
— Excelência?
O garçom empertigado e sorridente apresentou-lhe uma bandeja de drinques, na maioria bebidas não-alcoólicas. Muitos muçulmanos da classe média e alta bebiam na intimidade de suas casas, poucos em público — havia todo tipo de vinhos e bebidas alcoólicas à venda em Teerã, e também nos bares de todos os hotéis modernos. Não havia nenhum tipo de restrição quanto a estrangeiros beberem em público ou em particular, ao contrário da Arábia Saudita — e alguns dos Emirados — onde qualquer pessoa que fosse apanhada bebendo, qualquer uma, estava sujeita ao castigo do açoite, determinado no Corão
— Mamoonan, obrigado — disse educadamente e aceitou um cálice do vinho branco persa que fora aperfeiçoado por quase três milênios, mal notando o garçom ou os outros convidados, incapaz de se livrar da depressão e irritado por ter concordado em ir à festa substituindo McIver, que fora chamado ao QG, em Al Shargaz, do outro lado do golfo.
— Mas, Tom, você sabe falar farsi — dissera McIver, distraidamente; e alguém tem que ir. Sim, pensou, mas Mac bem que podia ter pedido a Charlie Pettikin.
Já eram quase nove horas, o jantar ainda não fora servido, ele estava em pé, perto de uma das portas que davam para os jardins, olhando para fora, para os candelabros e para os gramados, onde tinham estendido belíssimos tapetes em que alguns convidados sentavam-se ou reclinavam-se, enquanto outros estavam em pé, em grupos, sob as árvores ou perto do pequeno lago. A noite era suave e estrelada, a casa rica e espaçosa — no bairro de Shemiran, ao pé das montanhas Elburz — e a festa lhe parecia igual a quase todas as outras, onde, como ele sabia falar farsi, era sempre bem-vindo. Todos os iranianos estavam muito bem vestidos, havia muita alegria e muitas jóias, comida em abundância nas mesas, tanto européia quanto iraniana, quente e fria, conversava-se sobre a última peça de Londres ou Nova York ou "Você vai esquiar em St. Moritz ou vai passar o verão em Cannes", sobre o preço do petróleo e os mexericos da corte e "Sua Majestade Imperial isso ou Sua Majestade Imperial aquilo", tudo pontilhado pela gentileza, elogios e cumprimentos extravagantes que eram tão necessários na sociedade iraniana — mantendo uma aparência calma, educada e gentil que raramente era penetrada por um estranho, muito menos por um estrangeiro.
Nessa época, ele estava trabalhando em Galeg Morghi, um aeroporto militar em Teerã, treinando pilotos da Força Aérea iraniana. Dentro de dez dias deveria partir para seu novo posto em Zagros, sabendo muito bem que esse novo esquema, de duas semanas em Zagros e uma semana em Teerã, enfureceria ainda mais sua mulher. Naquela manhã, num acesso de raiva, ele respondera à carta dela, enviando-a por entrega especial: "Se você quer ficar na Inglaterra, fique, mas pare de encher e pare de atacar o que não conhece. Compre a sua casa suburbana onde bem quiser — mas eu JAMAIS viverei lá. Jamais. Tenho um bom emprego, sou bem pago e gosto dele. Nós poderíamos ter uma vida boa se você abrisse os olhos. Você sabia que eu era um piloto quando nos casamos, sabia que esta era a vida que eu tinha escolhido, sabia que eu não iria morar na Inglaterra, sabia que é só isto o que sei fazer, de modo que não posso mudar agora. Pare de encher. Se você quer uma mudança, que seja... "
Para o inferno com tudo isso. Eu já estou cheio. Cristo, ela diz que odeia o Irã e tudo o que diz respeito ao Irã, mas não sabe nada a respeito do Irã, nunca saiu de Teerã, não quer sair, nem prova a comida e só visita umas poucas esposas inglesas — sempre as mesmas, uma minoria vulgar e intolerante, limitada, igualmente chateada e chata, com suas intermináveis partidas de bridge, seus intermináveis chás e seus "Mas querida, como você pode tolerar algo que não seja da Fortnums ou da Mark e Sparks?" — que adoram um convite para ir à embaixada britânica jantar mais um gorduroso rosbife com pudim de Yorkshire ou tomar chá com sanduíches de pepino e bolo, todas elas convencidas de que tudo que é inglês é o melhor do mundo, principalmente a cozinha britânica: cenouras cozidas, couve-flor cozida, batatas cozidas, repolho cozido, rosbife malpassado ou carneiro cozido demais como o ápice da perfeição...
— Oh, pobre Excelência, o senhor não parece nada feliz — ela tinha dito baixinho.
Tom olhara para ela e seu mundo se transformara.
— O que houve? — ela perguntou, com uma pequena ruga de preocupação no rosto oval.
— Desculpe — respondeu, por um instante sentindo-se desorientado, o coração disparando e com um aperto na garganta que nunca sentira antes. — Pensei que você fosse uma aparição, algo saído das Mil e uma noites, uma... — interrompeu-se, sentindo-se um tolo. — Sinto muito, estava a milhões de quilômetros daqui. Meu nome é Lochart, Tom Lochart.
— Eu sei — ela disse rindo. Tinha olhos castanhos luminosos. Seus lábios pareciam ter brilho, os dentes eram muito brancos, o cabelo escuro, comprido e ondulado e sua pele era da cor da terra iraniana, cor de oliva. Estava usando seda branca e um pouco de perfume e mal chegava à altura dos ombros dele. — O senhor é o terrível capitão que dá uma bronca no meu pobre primo Karim, pelo menos três vezes por dia.
— O quê? — Lochart estava achando difícil se concentrar. — Quem?
— Lá. — Ela apontou para o outro lado da sala. O jovem estava usando roupas civis e sorria para eles, e Lochart não o reconhecera como um dos seus alunos. Muito bonito, com cabelos escuros e encaracolados, olhos escuros e bem proporcionado. — O meu primo predileto, capitão Karim Peshadi, da Força Aérea Imperial iraniana. — Ela tornou a olhar para Lochart, com seus longos cílios negros. E novamente ele sentiu o coração disparar.
Controle-se, pelo amor de Deus! Que diabo está havendo com você?
— Eu, ahn, eu procuro não brigar com eles a não ser, ahn, a não ser que mereçam... é só para salvar a vida deles. — E tentava se lembrar da folha de serviços do capitão Peshadi, mas não conseguiu e, em desespero, passou a falar em farsi. — Mas, Alteza, se me der a estrema honra, se tiver a gentileza de conversar comigo e me conceder a honra de dizer o seu nome, eu prometo que... — Tentou encontrar a palavra certa, não conseguiu e substituiu. serei eterna-mente seu escravo, e é claro que farei com que Sua Excelência, o seu primo, passe com a nota máxima, na frente de todos os outros!
— Oh, Excelência — respondeu em farsi, batendo palmas, encantada. — Sua Excelência o meu primo não me disse que falava nossa língua! Oh, como as palavras ficam bonitas quando o senhor as pronuncia...
Quase fora de si, Lochart escutou os cumprimentos extravagantes que eram normais em farsi e ouviu-se respondendo da mesma forma — abençoando Scragger, que lhe dissera, há muitos anos atrás quando ele tinha entrado para a Sheila Aviation, depois de ter saído da RAF em 1965. “Se você quiser voar conosco, cara, é melhor aprender farsi porque eu não vou aprender!” — Pela primeira vez percebeu como o farsi era uma língua perfeita para falar de amor, para fazer insinuações.
— Meu nome é Xarazade Paknouri, Excelência.
— Então Sua Alteza saiu das Mil e uma Noites, afinal.
— Ah, mas não posso lhe contar nenhuma história, nem que jure que vai cortar minha cabeça! — E acrescentou em inglês, dando uma risada. — Eu era a ultima da minha classe em histórias.
— Impossível! — Contestou imediatamente.
— O senhor é sempre tão galante, capitão Lochart? — Os olhos dela o provocavam.
— Só com a mulher mais linda que eu já vi. — E ele se percebeu respondendo em farsi.
O rosto dela ficou vermelho. baixou os olhos e ele pensou, apavorado, que tinha estragado tudo, mas quando ela tornou a olhar para ele, seus olhos sorriam.
— Obrigada. O senhor tornou feliz uma velha senhora casada...
O copo lhe caiu das mãos e ele praguejou e apanhou-o, desculpando-se, mas ninguém notara, exceto ela.
— Você é casada? — deixou escapar, mas é claro que ela devia ser casada e, de qualquer modo, ele era casado e tinha uma filha de oito anos e não tinha direito algum de ficar aborrecido. Pelo amor de Deus, você está agindo como um lunático. Você enlouqueceu.
Então seus olhos e ouvidos entraram em foco.
— O quê? O que foi que disse?
— Oh, eu disse que fui casada... bem, ainda sou, por mais três semanas e dois dias, e que meu nome de casada é Paknouri. Meu nome de família é Bakravan... — Fez parar um garçom, apanhou um copo de vinho e deu a ele. Mais uma vez a ruga de preocupação — Tem certeza de que está bem, capitão?
— Oh, sim, oh, sim — respondeu rapidamente. — O que era mesmo que estava dizendo? Paknouri?
— Sim. Sua Alteza, emir Paknouri, era tão velho, tinha cinqüenta anos, era amigo do meu pai, e papai e mamãe acharam que seria bom para mim casar com ele e ele concordou, embora eu seja muito magra e não gorda e atraente, por mais que eu coma. É a Vontade de Deus. — Ela deu de ombros e sorriu e o mundo pareceu ficar mais brilhante. — Evidentemente eu concordei, mas com a condição que se não gostasse de estar casada depois de dois anos, nosso casamento terminaria. Então, no dia do meu 17º aniversário, nós nos casamos e eu não gostei logo de saída, e chorei e chorei e então, como não havia filhos depois de dois anos, nem depois do ano extra com que eu concordei, o meu marido, meu senhor, concordou gentilmente em se divorciar de mim e agora ele, graças a Deus, pode tornar a se casar e eu estou livre, mas infelizmente velha e...
— Você não é velha. Você é tão jovem..
— Oh, sim, velha!
Seus olhos estavam dançando e ela fingia estar triste, mas ele percebeu que ela não estava e se viu conversando com ela, rindo com ela, depois fazendo sinal ao seu primo para se juntar a eles, temendo que o primo fosse o homem da escolha dela, conversando com eles, aprendendo que seu pai era um importante bazaari, que sua família era grande, cosmopolita e bem relacionada, que a mãe era doente, que tinha irmãs e irmãos e que estudara na Suíça, mas só por meio ano, porque sentia muita saudade do Irã e da família. Depois jantou com eles, mostrando-se alegre e animado, mesmo com o general Valik, e foi a noite mais divertida que ele já tinha passado.
Ao deixar a festa, naquela noite, não foi para casa; tomou a estrada de Darband, subindo as montanhas, onde havia inúmeros cafés em belos jardins nas margens do rio, com mesas e cadeiras e divas suntuosamente estofados, onde se podia descansar, comer ou dormir, alguns deles projetados por sobre o rio, de modo que a água batia embaixo. E ficou deitado lá, olhando as estrelas, sabendo que estava diferente, sabendo que enlouquecera mas que seria capaz de vencer qualquer obstáculo, enfrentar qualquer provação, para se casar com ela.
E conseguira — embora o caminho tivesse sido duro e, muitas vezes, tivesse gritado de desespero.
— Em que está pensando, Tommy? — perguntou ela, sentando-se a seus pés, no lindo tapete que fora presente de casamento do general Valik.
— Em você — respondeu, adorando-a, sentindo as preocupações desaparecerem diante de sua ternura. A sala estava quente, como todo o enorme apartamento, e suavemente iluminada, com as cortinas fechadas e muitas almofadas espalhadas em volta, o fogo crepitando alegremente. — Mas a verdade é que eu penso em você o tempo todo.
— Isso é maravilhoso — disse, batendo palmas.
— Não vou mais para Zagros amanhã, só depois de amanhã.
— Oh, isto é ainda mais maravilhoso! — Abraçou os joelhos de Tom e encostou a cabeça neles. — Maravilhoso!
— Você disse que teve um dia interessante? — perguntou Tom, acariciando-lhe os cabelos.
— Sim, ontem e hoje. Fui até a sua embaixada e apanhei o passaporte, exatamente como você mandou..
— Ótimo. Agora você é canadense.
— Não, meu amor, iraniana... você é canadense. Ouça, a melhor parte é que fui a Doshan Tappeh — disse com orgulho.
— Cristo — exclamou sem querer, pois ela não gostava que blasfemasse. — Desculpe, mas isso... isso foi loucura, está havendo combate lá, você é louca em se arriscar dessa maneira.
— Oh, eu não estive no meio do combate — retrucou alegremente, e se levantou e saiu depressa, dizendo: — Vou lhe mostrar. — Num instante estava de volta. Tinha vestido um chador cinzento que a cobria dos pés à cabeça, além da maior parte do rosto, e ele detestou aquilo. — Ah, senhor — disse em farsi, fazendo uma pirueta na frente dele. — Não precisa se preocupar comigo. Deus me protege, e também o Profeta, cujo Nome seja louvado. — Parou, ao ver sua expressão. — O que foi? — perguntou em inglês.
— Eu... eu nunca a tinha visto de chador. É... não combina com você.
— Oh, eu sei que é feio e eu nunca o usaria em casa, mas na rua me sinto melhor usando, Tommy. Todos aqueles olhares horríveis dos homens. É tempo de todas nós voltarmos a usá-lo, bem como o véu.
— E todos os direitos que vocês conquistaram, direito de votar, de tirar o véu, de ir onde quiser, de se casar com quem quiser, de não serem mais as escravas que costumavam ser? Se vocês concordarem com o chador, vão perder todo o resto. — Ele estava chocado.
— Talvez sim, talvez não, Tommy.
Estava satisfeita de que estivessem falando em inglês para que ela pudesse discutir um pouco, o que seria inimaginável se se tratasse de um marido iraniano. E estava muito feliz por ter escolhido se casar com este homem que, inacreditavelmente, permitia que tivesse suas próprias opiniões, e o que era ainda mais espantoso, permitia que as expressasse livremente. O vinho da liberdade sobe facilmente à cabeça, pensou, é muito perigoso, muito difícil para uma mulher bebê-lo — como o néctar do jardim do paraíso.
— Quando o Reza Xá tirou o véu dos nossos rostos — disse —, ele também deveria ter tirado a obsessão da mente dos homens. Você não vai ao mercado, Tommy, nem dirige um carro, não como uma mulher. Não faz idéia do que seja. Os homens nas ruas, no bazar, no banco, em toda parte. São todos iguais. Pode-se ver os mesmos pensamentos, a mesma obsessão, em todos eles. Pensamentos a meu respeito que só você devia ter. — Tirou o chador, arrumou-o sobre uma cadeira, e tornou a sentar-se a seus pés. — De hoje em diante, eu o usarei na rua, como minha mãe e a mãe dela o fizeram antes de mim, não por causa de Khomeini, que Deus o proteja, mas por sua causa, meu amado esposo.
Beijou-o de leve e sentou-se nos joelhos dele e Tom percebeu que estava decidido. A não ser que ele ordenasse o contrário. Mas aí haveria problemas em casa, pois era realmente um direito dela decidir sobre isso. Ela era iraniana, seu lar era iraniano, e seria sempre no Irã — isso fazia parte do seu acordo com o pai dela — então o problema seria iraniano e a solução iraniana: dias e dias de longos suspiros e olhares suplicantes, algumas lágrimas, pequenos favores abjetos, de escrava, soluços discretos à noite, nunca uma palavra ou um olhar de raiva para perturbar a paz de um marido, um pai ou um irmão. Lochart às vezes a achava difícil de entender.
Faça como quiser, mas nada de Doshan Tappeh — disse, acariciando-lhe os cabelos. Estes eram finos e sedosos e brilhavam como só na juventude O que houve lá?
— Oh, foi tão excitante. — E seu rosto iluminou-se. — Os Imortais, mesmo eles, a tropa de elite do xá, não conseguiram expulsar os fiéis. Houve tiros por toda parte. Eu estava em segurança, minha irmã Laleh estava comigo, além do meu primo Ali e da esposa dele. O primo Karim também estava lá. Ele se declarou a favor do Islã e da revolução, bem como vários outros oficiais, e ele nos disse onde e como encontrá-lo. Havia umas duzentas mulheres, todas de chador, e nós não paramos de entoar 'Deus é grande, Deus é grande', então alguns soldados se passaram para o nosso lado. Imortais! — Seus olhos se arregalaram. — Imagine, até os Imortais estão começando a enxergar a verdade!
Lochart ficou horrorizado com o risco que ela correra, indo até lá sem pedir ou contar a ele, mesmo estando acompanhada. Até então, a revolução e Khomeini pareciam não afetá-la, exceto no início, quando os problemas realmente começaram e ela ficara aterrorizada com a segurança do pai e dos parentes que eram comerciantes e banqueiros importantes, e bem conhecidos por suas ligações com a corte. Felizmente seu pai sossegara todas as preocupações deles ao cochichar para Lochart que seus irmãos e ele estavam secretamente apoiando Khomeini e a revolta contra o xá e que já vinham fazendo isso há anos. Mas agora, pensou, agora, se os Imortais estão cedendo e jovens oficiais de alto escalão como Karim estão apoiando abertamente a revolta, o derramamento de sangue será incontrolável.
— Quantos se passaram para o outro lado? — perguntou, tentando decidir o que fazer.
— Só três se juntaram a nós, mas Karim disse que isso é um bom começo e que qualquer dia Bakhtiar e os seus canalhas vão fugir como o xá.
— Ouça, Xarazade, o governo britânico e o canadense ordenaram hoje que todos os dependentes saíssem do Irã por algum tempo. Mac está mandando todo mundo para Al Shargaz até que as coisas esfriem um pouco.
— É sensato, sim, muito sensato.
— Amanhã vai chegar o 125. Vai levar Genny, Manuela, você e Azadeh amanhã, então arrume a...
— Oh, eu não vou partir, meu querido, não há necessidade. E por que Azadeh vai embora? Não há nenhum perigo para nós, papai certamente saberia se houvesse perigo. Você não precisa se preocupar... — Ela viu que o copo de vinho dele estava quase vazio, então levantou-se rapidamente, tornou a enchê-lo e voltou. — Eu estou perfeitamente segura.
— Mas acho que você estaria mais segura fora do Irã, por algum tempo.
— É maravilhoso você se preocupar comigo, meu querido, mas não há nenhum motivo para que eu vá, vou perguntar a papai amanhã, ou você pode... — Uma pequena acha de lenha caiu da lareira. Ele começou a se levantar mas ela já estava lá. — Deixe que eu vejo isso. Descanse, meu querido, você deve estar cansado. Talvez amanhã você tenha tempo para ir comigo ver papai. — Rapidamente, ajeitou o fogo. Seu chador estava numa cadeira próxima. Ela viu o olhar de Tom. A sombra de um sorriso passou por seus lábios.
— O que foi?
Em resposta, ela simplesmente sorriu de novo, apanhou o chador e atravessou a sala correndo com vivacidade em direção à cozinha.
Inquieto, Lochart ficou olhando o fogo, tentando pôr em ordem seus argumentos, sem querer impor-lhe nada. Mas eu o farei, se for obrigado. Meu Deus, tantos problemas. Charlie desaparecido, Kowiss numa confusão, Kyabi assassinado, e Xarazade no meio de um conflito! Ela é louca! Que absurdo se arriscar dessa maneira! Se eu a perdesse, morreria. Meu Deus, seja quem for, esteja onde estiver, proteja-a...
A sala era grande. No extremo oposto ficava a mesa e doze cadeiras. Geralmente usavam a sala à maneira iraniana, sentados no chão, com uma toalha aberta para os pratos, encostados em almofadas. Raramente usavam sapatos e nunca saltos que pudessem estragar os grossos tapetes. Havia cinco quartos, três banheiros, duas salas de estar — uma usada por eles, ou quando tinham companhia, a outra, muito menor, no outro extremo do apartamento, era, segundo o costume, para ela ficar quando ele tivesse que discutir negócios ou quando ela recebesse a visita da irmã, das amigas ou de outros parentes, para que pudessem conversar sem perturbá-lo. Em volta de Xarazade havia sempre movimento, a família estava sempre por perto, crianças, babás — exceto depois do pôr-do-sol, embora com freqüência parentes ou amigos se hospedassem lá.
Ele nunca se importou, pois eles eram uma família alegre e unida. Também fazia parte do acordo com o pai dela que ele aprenderia pacientemente os costumes do Irã, viveria pacientemente, segundo os costumes do Irã, por três anos e um dia. Então poderia escolher morar fora do Irã com Xarazade, por algum tempo, se precisasse.
— Porque então — seu pai, Jared Bakravan, dissera gentilmente —, com a ajuda do Verdadeiro Deus e do Profeta de Deus, que suas palavras possam viver para sempre, então você já terá sabedoria suficiente para fazer a escolha correta, pois com certeza vocês já terão filhos e filhas, porque apesar da minha filha ser magra, divorciada e ainda não ter filhos, não acho que ela seja estéril.
— Mas ela ainda é tão jovem. Podemos achar que ainda é muito cedo para ter filhos.
— Nunca é cedo demais — dissera Bakravan com severidade. — Os Livros Sagrados são muito claros. Uma mulher precisa de filhos. Um lar precisa de crianças. Sem filhos, uma mulher segue caminhos fúteis. Este é o maior problema da minha amada Xarazade, nenhum filho. Alguns hábitos modernos eu aprovo. Outros não.
— Mas se nós concordarmos, ela e eu, que é muito cedo...
— Esta decisão não cabe a ela! — Jared Bakravan tinha ficado chocado. Ele era baixo e rechonchudo com cabelos brancos, barba e olhos severos. — Seria monstruoso, um insulto, até mesmo discutir isso com ela. Você tem que pensar como um iraniano ou este casamento não vai durar. Nem mesmo começar. Nunca. Ah, então você não deseja filhos?
— Oh, não, é claro que eu quero filhos, mas tal..
— Ótimo, então fica combinado assim.
— Então pode ficar combinado assim: por três anos e um dia eu posso resolver se é muito cedo?
— É uma idéia idiota. Se você não quer fi..
— Oh, mas é claro que quero, Excelência.
— Só um ano e um dia — concordara, afinal, o velho, com relutância —, mas só se você jurar pelo único Deus que você quer mesmo filhos, que esse espantoso pedido é completamente temporário. Sua cabeça está mesmo cheia de bobagens, meu filho. Com a ajuda de Deus, essas bobagens vão desaparecer como a neve na areia do deserto. É claro que uma mulher precisa de filhos...
Distraidamente, Lochart sorriu para si mesmo. Aquele velho fantástico seria capaz de barganhar com Deus no jardim do paraíso. E por que não? Aquele não era o passatempo nacional dos iranianos? Mas o que vou dizer a ele daqui a alguns dias? O ano e um dia já estão quase no fim. Será que quero suportar o peso de filhos? Não, ainda não. Mas Xarazade quer. Oh, ela concordou com minha decisão, e nunca falou sobre isso, mas não creio que ela jamais tenha estado de acordo.
Podia ouvir o som abafado da voz dela e da empregada na cozinha e pensou que a calma que ela lhe dera fora sempre maravilhosa — um enorme contraste com o galo de briga que era sua outra mulher. As almofadas estavam muito confortáveis e ele observava o fogo. Ouviam-se alguns tiros na noite lá fora, mas isso já era tão comum que mal notavam.
Tenho que tirá-la de Teerã, pensou. Talvez ela esteja mais segura aqui do que em qualquer outro lugar, mas não se continuar se metendo nos conflitos. Doshan Tappeh! Ela é louca, mas todos estão loucos nesse momento. Gostaria muito de saber se o Exército recebeu mesmo ordem de esmagar a revolta. Bakhtiar tem que agir logo ou estará liquidado. Mas se ele o fizer, haverá um banho de sangue porque os iranianos são um povo violento, sanguinário — desde que seja a serviço do Islã.
Ah, Islã! E Deus. Onde estará o Verdadeiro Deus agora?
Em todos os corações e pensamentos dos crentes. Os xiitas são crentes. E Xarazade também. E toda a família dela. E você? Não, ainda não, mas estou me esforçando para isso. Prometi a ele que me esforçaria, prometi que leria o Corão e manteria a mente aberta. E?
Agora não é a hora de pensar nisso. Seja prático, pense de maneira prática. Ela está em perigo. Com ou sem chador ela não vai se envolver, mas por que não? É o país dela.
Sim, mas ela é minha esposa e vou ordenar que fique fora disso. E que tal a propriedade do pai dela no mar Cáspio, perto de Bandar-e Pahlavi? Talvez possam levá-la para lá, ou mandá-la para lá — o tempo agora está bom, não tão frio quanto aqui, embora nossa casa seja quente, com o reservatório de combustível sempre cheio, com lenha para o fogo e comida na geladeira, graças ao pai dela e à família.
Meu Deus, devo tanto a ele, tanto.
Um ligeiro ruído distraiu-lhe a atenção. Xarazade estava em pé na porta vestindo o chador e um véu leve que ele nunca tinha visto antes. Seus olhos nunca foram tão brilhantes. O chador farfalhava à medida que ela se aproximava. Então ela o abriu. Não estava usando nada por baixo. Ao vê-la ele perdeu o fôlego.
— Então? — A voz dela, como sempre, era baixa e palpitante, o farsi soava doce. — E agora, Excelência, meu marido, agora o meu chador o agrada?
Ele estendeu a mão para segurá-la, mas ela recuou um passo, rindo.
— No verão, as prostitutas da noite usam o chador desta maneira, dizem
— Xarazade.
— Não.
Desta vez ele a agarrou com facilidade. O gosto dela, seu brilho, sua maciez.
— Talvez, meu senhor — disse entre um beijo e outro, provocando-o delicadamente —, talvez sua escrava use sempre seu chador assim, nas ruas, no bazar, muitas mulheres o fazem, dizem...
— Não, só em pensar eu fico louco. — Fez menção de carregá-la, mas ela murmurou:
— Não, meu amor, vamos ficar aqui.
— Mas os criados...
— Esqueça-os, eles não vão nos perturbar, esqueça-os, esqueça tudo, eu imploro, meu amor, e só se lembre de que esta casa é sua, este é o seu lar e eu sou sua escrava para sempre.
Ficaram. Como sempre, a paixão dela acompanhou a sua, embora não pudesse entender como ou por que, apenas sentir que com Xarazade ele ia ao paraíso, de verdade, ficava no jardim do paraíso com essa ninfa do paraíso e depois voltava em segurança com ela para a terra.
Mais tarde, durante o jantar, a campainha da porta perturbou-lhes a paz. O criado Hassan atendeu e depois veio até a sala, fechando a porta.
— Senhor, é Sua Excelência, o general Valik — disse em voz baixa. — Ele pede desculpas por ter chegado tão tarde, mas diz que é importante e pergunta se Vossa Excelência pode conceder-lhe alguns minutos.
Lochart deixou transparecer sua irritação, mas Xarazade estendeu a mão, tocou-o suavemente e a irritação desapareceu.
— Receba-o, meu amor. Vou esperar por você na cama. Hassan, traga um prato limpo e esquente o horisht. Sua Excelência deve estar com fome.
Valik desculpou-se profusamente por ter chegado tão tarde, recusou duas vezes a comida mas, afinal, deixou-se persuadir e comeu com voracidade. Lochart esperou pacientemente, cumprindo a promessa feita ao sogro de se lembrar dos hábitos iranianos — que a família vinha em primeiro lugar, que era sinal de boa educação contornar um assunto, não ser nunca contundente nem direto. Em farsi, isso era muito mais fácil do que em inglês. Assim que pôde, mudou para o inglês.
— Estou muito feliz em vê-lo, general. O que posso fazer pelo senhor?
— Eu só soube que você estava de volta a Teerã, há meia hora atrás. Este horisht foi o melhor que já comi nos últimos anos. Sinto muito vir perturbá-lo tão tarde.
— Não tem importância, — Lochart deixou o silêncio prolongar-se. O homem mais velho comeu sem se sentir embaraçado por estar comendo sozinho
Um pedaço de carneiro ficou preso em seu bigode e Lochart o observou fascinado, imaginando quanto tempo ainda demoraria, então Valik limpou a boca.
— Meus cumprimentos a Xarazade... seu cozinheiro é bem treinado. Vou dizer isso a meu primo predileto, Excelência Jared.
— Obrigado — Lochart esperou.
Mais uma vez o silêncio ficou suspenso entre eles. Valik tomou um pouco de chá.
— A licença para o 212 foi entregue?
— Até a hora que saímos não. — Lochart não estava preparado para aquela pergunta. — Sei que Mac mandou um mensageiro esperar. Poderia ligar para ele mas, infelizmente, nosso telefone está com defeito. Por quê?
— Os sócios gostariam que você se encarregasse do vôo.
— O capitão McIver designou o capitão Lane, supondo-se que haja uma licença.
— Será concedida. — Valik tornou a limpar a boca e serviu-se de mais chá. — Os sócios gostariam que você pilotasse. Estou certo que McIver não se importará.
— Sinto muito, mas tenho que voltar para Zagros, quero verificar se está tudo bem. — E contou em poucas palavras o que acontecera lá.
— Tenho certeza que Zagros pode esperar alguns dias. Tenho certeza que Jared ficaria contente que você achasse mais importante fazer o que os sócios pedem.
— Terei prazer em fazer qualquer coisa. O que há de tão importante para os sócios neste vôo, algumas peças sobressalentes, alguns riais? — perguntou Lochart, com a testa franzida.
— Todos os vôos são importantes. Os sócios se preocupam em fornecer o melhor serviço. Então, está tudo certo?
— Bem, em primeiro lugar, eu teria que resolver isso com Mac, em segundo, duvido que o 212 consiga a licença, em terceiro, de fato, eu preciso voltar para minha base.
— Tenho certeza de que Mac dará o seu consentimento. — E Valik deu o seu sorriso mais simpático. — Você terá licença para deixar o espaço aéreo de Teerã. — Ele se levantou. — Vou ver Mac agora e direi a ele que você concordou. Agradeça a Xarazade, e mais uma vez, mil desculpas por vir tão tarde, mas estamos numa época atribulada.
— Ainda quero saber o que há de tão importante a respeito de algumas peças sobressalentes e cem mil riais — disse Lochart, sem se mover de onde estava.
— Os sócios decidiram que é importante, e então meu querido amigo, sabendo que você estava aqui e conhecendo seu relacionamento com minha família, presumi, imediatamente, que você ficaria feliz em fazer isso, se eu, em pessoa, lhe pedisse. Somos da mesma família, não somos? Isso foi dito secamente, embora o sorriso permanecesse.
— Tenho prazer em fazer qualquer coisa para ajudar, mas...
— Ótimo, então está combinado. Obrigado. Não precisa me acompanhar até a porta. — Da porta, o general Valik se virou e olhou em volta intencionalmente. — Você é um homem de sorte, capitão. Eu o invejo.
Depois que Valik saiu, Lochart sentou-se ao lado do fogo que morria, olhando para as chamas. Hassan e uma empregada tiraram os pratos, disseram boa-noite, mas ele não escutou — nem ouviu Xarazade que foi até lá um pouco depois, olhou para ele e depois voltou silenciosamente para a cama, deixando-o em paz com seus pensamentos.
Lochart estava aborrecido. Sabia que Valik estava a par de que tudo que havia de valor no apartamento, além do próprio apartamento, que fora presente de casamento do pai de Xarazade. Jared Bakravan dera-lhe, de fato, todo o edifício — pelo menos a renda dos aluguéis. Poucos sabiam da discussão que tiveram:
— Aprecio muito sua generosidade, mas não posso aceitar tudo isso, senhor — dissera Lochart. — É impossível.
— Mas são coisas materiais, coisas sem importância.
— Sim, mas é demais. Sei que meu salário não é muito, mas podemos nos arranjar. De verdade.
— Sim, é claro. Mas por que o marido de minha filha não poderia viver confortavelmente? De que outra forma você poderá ficar tranqüilo para aprender os costumes iranianos e cumprir sua promessa? Eu lhe asseguro, meu filho, isso tem pouco valor para mim. Agora você faz parte da minha família. A família é a coisa mais importante no Irã. A família zela pela família.
— Sim, mas sou eu que tenho que zelar por ela... eu, não o senhor.
— É claro, e com a Ajuda de Deus, com o tempo, poderá sustentá-la da forma que ela está acostumada. Mas isso agora não é possível pois precisa sustentar sua ex-mulher e sua filha. O que eu quero é ajeitar as coisas de uma forma civilizada, do modo iraniano. Você prometeu viver como nós vivemos, não?
— Sim. Mas por favor, não posso aceitar tudo isso. Dê o que quiser para ela, não para mim. Prometo fazer o melhor que puder.
— Tenho certeza que sim. Mas enquanto isso, é um presente meu para você, não para ela. Isto torna possível dá-la a você.
— Dê a ela, não...
— É a Vontade de Deus que o homem seja o senhor da casa — dissera Jared Bakravan com rispidez. — Se a casa não for sua, então você não será o senhor. Devo insistir. Sou o chefe da família e Xarazade fará o que eu disser, e devo insistir por Xarazade, senão o casamento não poderá se realizar. Percebo o seu dilema ocidental, embora não o compreenda, meu filho. Mas aqui, os costumes iranianos é que mandam, e a família zela pela família...
Na ampla solidão da sala de estar, Lochart balançou a cabeça para si mesmo. Está certo, e eu escolhi Xarazade, aceitei, mas... mas aquele filho da mãe do Valik jogou tudo isso na minha cara e me fez sentir vergonha outra vez e eu o odeio por isso, odeio por não pagar por tudo isso, e sei que o único presente que posso dar a ela é a liberdade que, de outro modo, não teria e a minha vida, se for preciso. Pelo menos ela agora é canadense e não precisa ficar aqui.
Não se iluda, ela é iraniana e sempre será. Será que ela se sentiria em casa em Vancouver, com toda aquela chuva, sem família, sem amigos, sem nada do Irã? Sim, sim, acho que sim; por algum tempo eu compensaria todo o resto. Por algum tempo, é claro, não para sempre.
Era a primeira vez que se defrontava com o problema real que havia entre eles. O nosso Irã desapareceu para sempre, o velho, o do xá. Não importa que o novo talvez seja melhor. Ela vai se adaptar e eu também. Eu falo farsi e ela é minha mulher e Jared é poderoso. Se tivermos que partir temporariamente, vou compensá-la por esta separação temporária, quanto a isso não haverá problema. O futuro ainda é cor-de-rosa, eu a amo muito e Deus seja louvado por ela...
O fogo já estava quase apagado e ele sentiu o cheiro reconfortante de madeira queimada e, junto com ele, um traço do perfume dela. As almofadas ainda guardavam as marcas onde tinham deitado juntos e embora estivesse totalmente satisfeito e saciado, ainda ansiava por ela. Ela é realmente uma huri, um espírito do paraíso, pensou sonolento. Estou enfeitiçado por ela e é maravilhoso, não tenho nenhuma queixa, e se eu morresse hoje já saberia como é o paraíso. Ela é maravilhosa, Jared é maravilhoso, no devido tempo seus filhos serão maravilhosos e sua família...
Ah, família! A família zela pela família, esta é a lei, tenho que fazer o que Valik pediu, gostando ou não. Tenho que fazer, o pai dela deixou isso muito claro.
A última acha crepitou e, antes de morrer, acendeu por um instante.
— O que haverá de tão importante numas poucas peças e nuns poucos riais? — perguntou às chamas.
As chamas não responderam.
SEGUNDA-FEIRA, 12 de fevereiro
EM TABRIZ UM: 7:12H. Charlie Pettikin dormia um sono sobressaltado, encolhido sobre um colchão no chão, coberto apenas por uma manta, com as mãos amarradas para a frente. Acabava de amanhecer e estava muito frio. Os guardas não permitiram que ele levasse o aquecedor portátil e o prenderam na parte da cabana de Erikki Yokkonen que era usada, normalmente, como depósito. O gelo brilhava no interior das vidraças da pequena janela. A janela tinha barras pelo lado de fora. A neve cobria o parapeito.
Ele abriu os olhos e se ergueu, espantado, sem saber, por um momento, onde estava. Então a memória voltou e ele se encolheu contra a parede, com o corpo todo doendo.
— Que maldita confusão! — resmungou, tentando relaxar os ombros. Com ambas as mãos, esfregou desajeitadamente os olhos para espantar o sono, e esfregou o rosto, sentindo-se imundo. A barba crescida estava pontilhada de fios brancos. Detesto ficar barbado, pensou.
Hoje é segunda-feira. Cheguei aqui no sábado, ao cair da noite, e eles me prenderam ontem de manhã. Filhos da mãe!
Sábado à noite tinha havido muitos ruídos em volta da cabana, o que o deixara ainda mais inquieto. Uma vez, teve certeza de ouvir vozes abafadas. Sem fazer barulho, apagou as luzes, destrancou a porta e ficou em pé nos degraus, com a pistola de sinalização nas mãos. Cuidadosamente examinou a escuridão. Então viu, ou achou que viu, um movimento a uns trinta metros de distância, depois outro mais adiante.
— Quem está aí? — gritou, com sua voz ecoando estranhamente. — O que quer?
Ninguém respondeu. Outro movimento. Onde? A trinta, quarenta metros — difícil calcular distâncias à noite. Olhe, lá está outro! Seria um homem? Ou apenas um animal ou a sombra de um galho. Ou talvez... o que era aquilo? Lá perto do pinheiro.
— Você aí! O que quer?
Nenhuma resposta. Não conseguia distinguir se era um homem ou não. Zangado e até um pouco assustado, apontou e puxou o gatilho. O bang pareceu um trovão e ecoou pela montanha, a chama vermelha saltou em direção à árvore, ricocheteou formando uma chuva de faíscas, borrifou em outra árvore e caiu, crepitando e chiando, num monte de neve. Ele esperou.
Não aconteceu nada. Ruídos na floresta, o telhado do hangar rangendo, vento no alto das árvores, às vezes neve caindo de um galho de árvore curvado pelo peso que se endireitava, livre de novo. Fazendo bastante estardalhaço, bateu iradamente com os pés para espantar o frio, acendeu a luz, tornou a carregar a pistola e tornou a trancar a porta.
— Você vai ficar igual a uma velha rabugenta quando ficar velho — disse alto, depois acrescentou: — Merda! Odeio o silêncio, odeio ficar sozinho, odeio a neve, odeio o frio, odeio sentir medo e o que aconteceu de manhã em Galeg Morghi me abalou, maldição... não há dúvida de que se não fosse pelo jovem Ross aquele Savak filho da puta teria me matado!
Checou a porta e todas as janelas para ver se estavam trancadas, fechou as cortinas, depois serviu uma farta dose de vodca e misturou-a com um pouco de suco de laranja que estava no congelador e sentou em frente ao fogo para se recompor. Havia ovos para o café e ele tinha uma arma. O aquecedor a gás funcionava bem. Lá dentro estava confortável. Depois de algum tempo, sentiu-se melhor, mais seguro. Antes de ir para a cama no quarto de hóspedes, tornou a checar as fechaduras. Quando ficou satisfeito, tirou as botas e se deitou na cama. Logo adormeceu.
Pela manhã, o medo noturno desaparecera. Depois de um café com ovos fritos sobre pão frito, exatamente como ele gostava, arrumou o quarto, vestiu a roupa acolchoada de piloto, destrancou a porta e então uma metralhadora foi enfiada na sua cara, seis revolucionários entraram na sala e o interrogatório começou. Foram horas de interrogatório.
— Não sou um espião, não sou americano. Já disse que sou inglês — repetiu mais uma vez.
— Mentiroso, seus papéis dizem que você é sul-africano. Por Alá, eles também são falsos? — O líder, o homem que chamava a si mesmo de Fedor Rakoczy, tinha uma aparência dura, era mais alto e mais velho do que os outros, tinha olhos castanhos e falava inglês com sotaque. As mesmas perguntas, sem parar. — De onde você vem, por que você está aqui, quem é o seu superior na CIA, quem é o seu contato aqui, onde está Erikki Yokkonen?
— Não sei. Já disse cinqüenta vezes que não sei. Não havia ninguém aqui quando pousei ontem ao entardecer. Fui enviado para apanhá-lo, a ele e a sua mulher. Eles tinham coisas para resolver em Teerã.
— Mentiroso! Eles fugiram no meio da noite, há duas noites atrás. Por que eles fugiram se você vinha apanhá-los?
— Já disse a vocês. Ele não estava me esperando. Por que eles fugiriam? Onde estão Dibble e Arberry, os nossos mecânicos? Onde está o nosso gerente, Dayati e...
— Quem é o seu contato da CIA em Tabriz?
— Não tenho nenhum contato. Somos uma companhia britânica e exijo ver o nosso cônsul em Tabriz. Eu...
— Os inimigos do povo não podem exigir nada! Nem mesmo piedade. É pela Vontade de Deus que estamos em guerra. Na guerra as pessoas são mortas.
O interrogatório durara toda a manhã. Apesar dos seus protestos, eles tinham levado todos os seus papéis, seu passaporte e seus vistos de permanência e de saída, que eram vitais, e o amarraram e atiraram ali com ameaças terríveis, caso tentasse fugir. Mais tarde, Rakoczy e dois guardas voltaram.
— Por que não disse que tinha trazido as peças sobressalentes para o 212?
— Vocês não perguntaram — respondera Pettikin, zagando. — Quem são vocês afinal? Devolvam os meus papéis. Exijo que chamem o cônsul britânico. Desamarrem minhas mãos, maldição!
— Deus o castigará se você blasfemar! Fique de joelhos e peça perdão a Deus. — Eles o obrigaram a se ajoelhar. — Peça perdão! — Ele obedeceu, odiando-os.
— Você também pilota um 212, além de um 206?
— Não — disse, levantando-se com dificuldade.
— Mentiroso! Está na sua licença. — Rakoczy jogara a licença sobre a mesa. — Por que está mentindo?
— Que diferença faz? Você não acredita em nada que eu digo. Você não vai acreditar na verdade. É claro que sei que está na minha licença. Então não vi quando vocês a levaram? É claro que piloto um 212 se for escalado.
— O komiteh vai julgá-lo e determinar sua sentença. — Rakoczy dissera isso com tanta dureza que ele sentiu um frio na espinha. Então eles o deixaram sozinho.
Ao entardecer, trouxeram um pouco de arroz e sopa, tornando a ir embora. Ele quase não tinha dormido e agora, ao amanhecer, viu o quanto estava fraco. Seu medo começou a crescer. Uma vez, no Vietnã, tinha sido derrubado, capturado e condenado à morte pelos vietcongues, mas seu esquadrão voltara para libertá-lo com mísseis e Boinas-Verdes e tinham destruído a aldeia e os vietcongues junto com ela. Esta foi outra ocasião em que escapou da morte certa. "Nunca aposte na morte até que esteja morto. Assim, meu velho" dissera seu jovem comandante americano "assim você consegue dormir de noite." — O comandante era Conroe Starke. Seu esquadrão de helicóptero era misto, americanos, britânicos e alguns canadenses, sediados em Da Nang. Ele agora estava metido em outra maldita encrenca.
Imagino como Duke estará se saindo agora, pensou. Filho da mãe sortudo. Sortudo por estar a salvo em Kowiss e sortudo por ter Manuela. Aquela é um estouro e parece um urso koala — aconchegante, com aqueles grandes olhos castanhos, e as curvas na medida certa.
Deixou a mente divagar, pensando nela e em Starke, em onde estariam Erikki e Azadeh, naquela aldeia do Vietnã — e no jovem capitão Ross e nos seus homens. Se não fosse por ele! Ross era outro salvador. Nessa vida você tem que ter salvadores para sobreviver, aquelas pessoas estranhas que apareciam milagrosamente na sua vida sem nenhum motivo aparente, bem na hora, para lhe dar a chance que você necessita desesperadamente, ou para arrancá-lo da desgraça, do perigo ou do mal. Será que aparecem porque você rezou pedindo ajuda? No desespero você sempre reza, de algum modo, mesmo que não seja para Deus. Mas Deus tem muitos nomes.
Ele se lembrou do velho Soames da embaixada com o seu "Não se esqueça, Charlie, Maomé, o Profeta, declarou que Alá — Deus — tem três mil nomes. Mil só são conhecidos pelos anjos, mil pelos profetas, trezentos estão na Tora, o Velho Testamento, outros trezentos no Zabur, que são os Salmos de Davi, outros trezentos no Novo Testamento, e noventa e nove no Corão. Isto dá 2.999. Um nome foi oculto por Deus. Em árabe ele é chamado: Ism Allah ala'zam: o Maior dos Nomes de Deus. Todos os que lerem o Corão o terão lido sem saber. Deus é esperto em esconder o seu Maior Nome, hein?
Sim, se houver um Deus, Pettikin pensou, com dor e com frio.
Pouco antes do meio-dia, Rakoczy voltou com seus dois homens. Surpreendentemente, Rakoczy ajudou-o a se levantar e começou a desamarrá-lo.
— Bom dia, capitão Pettikin. Sinto muito pelo engano. Siga-me por favor. — E mostrou o caminho até a sala principal. Havia café na mesa. — Você toma café preto ou ao estilo inglês, com leite e açúcar?
Pettikin esfregava os pulsos doloridos, tentando pôr a mente para funcionar.
— O que é isso? O prisioneiro está recebendo café reforçado?
— Desculpe, mas não entendi.
— Não foi nada. — Pettikin encarou-o, ainda inseguro. — Com leite e açúcar. — O café estava delicioso e revigorou-o. Serviu-se de mais café. — Então foi um engano, foi tudo um engano?
— Sim, eu, hum, eu chequei a sua história e ela confere. Deus seja louvado. Você partirá imediatamente. Voltará para Teerã.
Pettikin sentiu um nó na garganta pela súbita libertação — pelo menos aparente, pensou desconfiado.
— Preciso de combustível. Todo o nosso combustível foi roubado, não há nenhum no depósito.
— Seu aparelho foi reabastecido. Eu mesmo supervisionei isso.
— Você entende de helicópteros? — Pettikin se perguntava por que o homem parecia tão nervoso.
— Um pouco.
— Desculpe, mas eu, hum, eu não sei o seu nome.
— Smith. Sr. Smith. — Fedor Rakoczy sorriu. — Você vai partir agora, por favor. Imediatamente.
Pettikin encontrou suas botas de pilotar e calçou-as. Os outros homens observaram-no em silêncio. Notou que eles usavam metralhadoras soviéticas.
Sobre a mesa, ao lado da porta, estava a sua maleta e, ao lado, os documentos. Passaporte, visto, carteira de trabalho e o DAC iraniano — a licença para pilotar. Tentando não demonstrar seu espanto, certificou-se de que estavam todos lá e enfiou-os no bolso. Quando se dirigiu para a geladeira, um dos homens ficou na frente e fez sinal para que ele se afastasse.
— Estou com fome — Pettikin disse, ainda desconfiado.
— Tem comida no seu helicóptero. Siga-me, por favor.
Lá fora, o ar tinha um cheiro bom, o dia estava frio e bonito, com um céu azul e limpo. Algumas nuvens estavam se formando a oeste. Na direção do leste, a passagem sobre o desfiladeiro estava clara. Em volta dele, a floresta toda cintilava, com a neve refletindo a luminosidade. O 206 estava em frente ao hangar, com as janelas e o pára-brisa limpos. Lá dentro, tudo parecia normal, embora o estojo com o mapa estivesse agora num bolso lateral e não ao lado do seu assento, onde normalmente o deixava. Cuidadosamente, começou a fazer uma checagem pré-decolagem.
— Apresse-se, por favor — disse Rakoczy.
— É claro.
Pettikin fingiu que se apressava, mas não o fez, não deixando escapar nada em sua inspeção, com todos os sentidos alerta para encontrar uma possível sabotagem, fosse sutil ou grosseira. Checou o combustível, o óleo, tudo. Percebeu que os homens estavam ficando cada vez mais nervosos. Ainda não havia ninguém mais na base. No hangar, ele podia ver o 212 com o motor desmontado. As peças que trouxera tinham sido colocadas sobre um banco perto do motor.
— Você já está pronto — Rakoczy disse isso como se fosse uma ordem.
— Entre, você vai reabastecer em Bandar-e Pahlavi como antes. — Ele se virou para os outros, abraçou-os apressadamente e subiu para o assento da direita.
— Decole imediatamente. Vou com você para Teerã. — Colocou a metralhadora entre os joelhos, apertou o cinto, trancou a porta com cuidado, depois apanhou os fones que estavam pendurados atrás dele e colocou-os no ouvido, mostrando claramente que estava acostumado com o interior de uma cabine.
Pettikin notou que os outros dois tinham-se colocado em posições defensivas, de frente para a estrada. Apertou o botão de partida. Logo o barulho, a familiaridade — e o fato de que 'Smith' estava a bordo e portanto era improvável que houvesse sabotagem — fizeram-no sentir-se mais aliviado.
— Lá vamos nós — disse no microfone e decolou deslizando com rapidez, inclinou suavemente o aparelho e subiu rumo ao desfiladeiro.
— Ótimo — disse Rakoczy —, muito bem. Você pilota muito bem. — Como quem não quer nada, colocou a metralhadora sobre os joelhos, com o cano apontando na direção de Pettikin. — Por favor, não pilote bem demais.
— Coloque a trava de segurança, ou não pilotarei de jeito nenhum.
— Concordo que é perigoso durante o vôo. — E Rakoczy colocou a trava depois de alguma hesitação.
A duzentos metros de altura, Pettikin nivelou o aparelho, então inclinou-o de repente e voltou em direção ao campo de pouso.
— O que está fazendo?
— Estou apenas querendo me orientar.
Estava confiando no fato de que embora 'Smith' estivesse familiarizado com uma cabine, não soubesse pilotar um 206, do contrário, ele mesmo o teria levado. Seus olhos procuravam, lá embaixo, um motivo para o nervosismo do homem e para sua pressa em partir. O campo parecia igual. Perto do entroncamento da estradinha estreita da base com a estrada principal, que ia para noroeste em direção a Tabriz, havia dois caminhões. Os dois se dirigiam para a base. Daquela altura, podia ver facilmente que eram caminhões do Exército.
— Vou pousar para ver o que eles querem.
— Se você o fizer — disse Rakoczy, sem demonstrar nenhum temor —, isso vai-lhe custar muita dor e mutilação permanente. Por favor, vá para Teerã... mas primeiro para Bandar-e Pahlavi.
— Qual é o seu nome verdadeiro?
— Smith.
Pettikin deixou as coisas ficarem como estavam, fez uma curva e depois acompanhou a estrada que seguia a direção sudeste para Teerã, rumando para o desfiladeiro e aguardando o momento propício — confiante agora de que em algum lugar, no meio do caminho, ele teria a sua chance.
EM TEERÃ: 8:30H. Tom Lochart passou devagar com o seu velho Citroen através dos escombros causados pelos combates noturnos, rumando para Galeg Morghi. A manhã estava gelada e desagradável, e ele já estava atrasado embora tivesse saído de casa antes do amanhecer.
Tinha passado por muitos cadáveres e por pessoas que choravam seus mortos, por muitas carcaças queimadas de carros e caminhões, algumas ainda fumegantes — despojos dos tumultos da noite. Grupos de civis armados ainda dominavam sacadas ou barricadas e ele tivera que fazer muitos desvios. Agora, vários homens usavam a faixa verde de Khomeini no braço. Todos os Faixas Verdes estavam armados. As ruas pareciam agourentamente sem tráfego. De vez em quando, passavam caminhões da polícia com as sirenes ligadas, e também uns poucos carros e caminhões, mas não prestaram nenhuma atenção nele, exceto para buzinar, mandando-o sair da frente, praguejando. Xingou-os de volta, quase sem se importar com o fato de chegar ou não ao aeroporto, pois essa seria a solução perfeita para o seu dilema. Só a idéia da esposa e dos filhos de Valik nas mãos da Savak é que o fazia prosseguir.
Como uma mulher tão maravilhosa quanto Annoush, que sempre fora tão gentil com ele desde que entrara para a família, podia ter-se casado com um filho da mãe daqueles? E como aquelas duas crianças maravilhosas, que adoravam Xarazade e o chamavam de tio Excelência podiam...
Deu uma guinada para evitar um carro que saiu de uma rua lateral na contramão. O carro não parou e ele xingou o carro, Teerã, o Irã e Valik, e disse:
— Insha'Allah — em voz alta, mas isso não ajudou em nada.
O céu estava coberto de nuvens escuras, carregadas de neve, o que não lhe agradou nem um pouco; tinha detestado sair do calor da sua cama. Pouco antes do amanhecer, o despertador o acordara.
— Pensei que você não ia, querido. Pensei que você tivesse dito que só ia partir amanhã.
— Tenho um vôo imprevisto, pelo menos acho que tenho. Foi por isso que Valik veio aqui. Tenho que ver Mac primeiro, mas se eu tiver que ir, ficarei ausente por alguns dias. Torne a dormir, querida. — Tinha feito a barba e se vestido apressadamente, tomara uma xícara de café e saíra. Lá fora ainda estava escuro, havia apenas um vislumbre de claridade, o ar estava cáustico com a fumaça pesada. Ao longe, ouvia-se o inevitável tiroteio esporádico. De repente, teve um pressentimento.
McIver morava a poucos quarteirões de distância. Lochart ficou surpreso de encontrá-lo completamente vestido.
— Alô, Tom. Entre. A licença chegou à meia-noite, entregue por mensageiro. Valik tem poder; não acreditei que a conseguíssemos. Quer café?
— Obrigado. Ele veio vê-lo ontem à noite?
— Sim. — McIver foi andando na frente para a cozinha. O café estava cheiroso. Não havia nem sinal de Genny, Paula ou Nogger Lane. Ele serviu Lochart. — Valik me disse que esteve com você e que você concordou em ir.
— Eu disse que iria se você concordasse, e depois de falar com você, e se nós conseguíssemos a licença. Onde está Nogger?
— Voltou para o apartamento dele. Eu o dispensei na noite passada. Ele ainda está muito abalado por ter-se envolvido naquele tumulto.
— Posso imaginar. O que aconteceu com a moça? Paula?
— Está no quarto de hóspedes, o vôo dela da Alitalia ainda não saiu, mas provavelmente ela vai partir hoje. George Talbot, da embaixada, passou por aqui ontem à noite e contou que ouviu dizer que os revolucionários foram expulsos do aeroporto e que hoje, se tudo corresse bem, haveria alguns vôos partindo e chegando.
— Então talvez Bakhtiar vença afinal — disse Lochart balançando a cabeça, pensativo.
— Vamos torcer que sim. A BBC, hoje de manhã, informou que Doshan Tappeh ainda está nas mãos de Khomeini e que os Imortais o estão cercando, esperando sentados nos traseiros.
Lochart estremeceu ao pensar em Xarazade lá. Ela prometera não tornar a fazer aquilo.
— Talbot disse alguma coisa a respeito de golpe?
— Apenas que o boato é que Carter se opõe. Se eu fosse iraniano, e general, não hesitaria. Talbot concordou, disse que o golpe deve ser dado nos próximos três dias, tem que ser, os revolucionários estão conseguindo armas demais
Lochart quase podia ver Xarazade entoando aquela ladainha junto com outras milhares de pessoas, o jovem capitão Karim Peshadi declarando-se a favor de Khomeini e três Imortais desertando.
— Não sei o que faria, Mac, se fosse um deles.
— Graças a Deus não somos e isto aqui é o Irã, não a Inglaterra, conosco nas barricadas. De qualquer maneira, Tom, se o 125 chegar hoje, vou colocar Xarazade nele. Ela estará mais segura em Al Shargaz, pelo menos por umas duas semanas. Ela conseguiu o passaporte canadense?
— Sim, mas Mac, acho que ela não vai.
Lochart contou que Xarazade participara da revolta em Doshan Tappeh.
— Meu Deus, ela precisa examinar a cabeça. Vou mandar Gen conversar com ela.
— Genny vai para Al Shargaz?
— Não. Se dependesse de mim, ela já estaria lá, há uma semana. Vou fazer o que puder. Xarazade está bem?
— Maravilhosa, mas eu gostaria muito que Teerã acalmasse. Fico doente de preocupação com ela aqui e eu em Zagros. — Lochart tomou um gole de café. — Se é para ir, é melhor eu andar logo. Fique de olho nela, sim? — E olhou para McIver, com um olhar franco e direto. — Qual é o objetivo deste vôo, Mac?
— Conte-me exatamente o que Valik lhe disse ontem à noite — retrucou McIver, encarando-o.
Lochart contou-lhe. Exatamente.
— Ele é um filho da mãe por diminuí-lo dessa maneira.
— Ele conseguiu me humilhar. Infelizmente, ele é da família e no Irã... bem, você sabe. — Lochart disfarçou a amargura. — Perguntei a ele o que havia de tão importante em algumas peças e alguns riais, e ele me enrolou. — Viu que McIver estava com a cara fechada e parecia mais velho e mais grave do que nunca, até mesmo mais duro. — Mac, o que há afinal de tão importante com essas peças e esse dinheiro?
McIver terminou o café e serviu-se de um pouco mais. Abaixou a voz.
— Não quero acordar nem Genny nem Paula, Tom. Isso é entre nós. — E contou a Lochart o que acontecera no escritório. Exatamente.
— Savak? Ele, Annoush e os pequenos Setarem e Jalal? Meu Deus! — Lochart sentiu o sangue subir-lhe ao rosto.
— Foi por causa disso que concordei em tentar. É preciso. Também estou num beco sem saída. Nós dois estamos. E tem mais. — McIver contou-lhe a respeito do dinheiro.
— Doze milhões de riais, em dinheiro? Ou o equivalente na Suíça? — perguntou Lochart, quase engasgando.
— Fale baixo. Sim, doze para mim e doze para o piloto. Ontem à noite ele disse que a oferta ainda estava de pé e que eu não fosse ingênuo. — E McIver acrescentou zangado: — Se Gen não estivesse aqui, eu o teria atirado na rua.
Lochart mal o ouvia. Doze milhões de riais ou dinheiro em outro lugar? Mac tem razão. Se Valik ofereceu isso, aqui em Teerã, o que não pagaria quando estivesse perto da fronteira?
— Cristo!
O que você acha, Tom? Você ainda quer ir?
— Não posso recusar. Não posso. Muito menos agora que conseguimos a licença. — Ela estava em cima da mesa da cozinha e ele a apanhou. Estava escrito: EP-HBC permissão para Bandar Delam. Vôo prioritário para transporte de peças de reposição urgentes. Reabastecer na Base II da Força Aérea em Isfahan. Um tripulante: capitão Lane. O nome Lane fora riscado, e tinham escrito: Doente. Piloto substituto________. Havia um espaço em branco que ainda não fora preenchido por McIver.
McIver deu uma olhada em direção à porta da cozinha, que estava fechada, e depois tornou a olhar para Lochart.
— Valik quer ser apanhado fora de Teerã. Em segredo.
— Isso cheira cada vez pior. Qual é o local de embarque?
— Se você conseguir chegar em Bandar Delam, Tom, e nem isso é certo, ele vai pressioná-lo para levá-los até o Kuwait.
— É claro. — Lochart devolveu o olhar de McIver.
— Ele vai usar todo tipo de pressão, a família, Xarazade, tudo. Especialmente dinheiro.
— Milhões. Em dinheiro vivo... que nós dois sabemos que eu estou precisando. — A voz de Lochart não se alterou. — Mas se eu voar para o Kuwait sem uma autorização iraniana, num helicóptero com registro iraniano, sem a aprovação nem do Irã nem da companhia, com passageiros iranianos não-autorizados tentando escapar do seu governo ainda legal, eu serei um seqüestrador, sujeito a Deus sabe quantas acusações criminais aqui e no Kuwait. As autoridades do Kuwait apreenderiam o helicóptero, me atirariam na cadeia, e com certeza me extraditariam para o Irã. De qualquer maneira, teria destruído meu futuro como piloto e jamais poderia voltar para o Irã e para Xarazade. A Savak seria até capaz de agarrá-la, portanto não vou fazer uma coisa dessas.
— Valik é um patife perigoso. Ele vai armado. Poderia colocar uma arma na sua cabeça e obrigá-lo a prosseguir.
— Isso é possível. — A voz de Lochart não se alterou, mas por dentro ele estava fervendo. — Eu não tenho opção. Tenho que ajudá-lo, e vou fazê-lo, mas não sou nenhum imbecil. — Depois de uma pausa, acrescentou: — Nogger está a par disso?
— Não.
Na vigília daquela noite, depois de avaliar os possíveis planos, McIver decidira ir ele mesmo e não arriscar a vida nem de Lane nem de Lochart. Para o diabo com o exame médico e com o fato disso ser ilegal, dissera a si mesmo, este é um vôo maluco, então um pouco mais de loucura não vai fazer mal nenhum.
Seu plano era simples: depois de conversar com Tom Lochart, diria apenas que resolvera não autorizar o vôo, que não assinaria a licença e que iria de carro até o local de embarque com gasolina suficiente para Valik fazer a viagem de carro. Mesmo que Lochart quisesse ir com ele, seria fácil marcar um encontro e não aparecer, e simplesmente ir direto para Galeg Morghi, colocar seu próprio nome na licença como piloto e decolar. No local de embarque...
— O quê? — perguntou.
— Só há três possibilidades — repetiu Lochart. — Você se recusa a autorizar o vôo, você me autoriza ou autoriza uma outra pessoa. Você dispensou Nogger, Charlie não está aqui, então sobramos eu e você. Você não pode ir, Mac. De jeito nenhum, é perigoso demais.
— É claro que eu não iria, a minha licença...
— Você não pode ir, Mac — disse Lochart com firmeza. — Sinto muito. Você simplesmente não pode.
McIver suspirou, sua sabedoria venceu sua obsessão em voar e ele se decidiu pelo segundo plano.
— Sim. Você tem razão. Concordo. Mas ouça com atenção: se você quer ir, isso é com você, eu não estou mandando. Vou autorizá-lo, se é o que você quer, mas sob condições. Se você chegar no local de embarque e estiver tudo limpo, apanhe-os. Então vá para Isfahan. Valik disse que poderia arranjar isso. Se Isfahan estiver OK, prossiga. Talvez o 'sr. Jeitinho' possa ajeitar isso também. É nisso que nós vamos ter que apostar.
— É nisso que eu estou apostando.
— Bandar Delam é o fim da linha. Você não vai atravessar a fronteira. Concorda? — McIver estendeu a mão.
— Combinado — disse Lochart, apertando-lhe a mão e rezando para conseguir manter a promessa.
McIver disse-lhe qual era o lugar combinado, assinou a licença e notou que suas mãos tremiam. Se algo sair errado, adivinhe atrás de quem a Savak virá? De nós dois. E talvez até de Gen, pensou McIver, mais uma vez cheio de horror. Não contou a Lochart que ela tinha ouvido o que Valik dissera na noite anterior e que tinha calculado o resto. "Mas eu estou de acordo, Duncan. É terrivelmente arriscado, mas você tem que tentar ajudá-los, e Tom também, ele também não tem opção."
McIver entregou a licença a Lochart.
— Tom, você tem ordens expressas de não atravessar a fronteira. Se o fizer, acho que você perderá mesmo tudo, inclusive Xarazade.
— Esse esquema é todo doido, mas, é isso.
— Sim, boa sorte.
Lochart balançou a cabeça, devolveu-lhe o sorriso e partiu.
McIver fechou a porta da frente. Espero que tenha sido a decisão correta, pensou, com a cabeça doendo. Era loucura eu mesmo ir, e no entanto... Gostaria que fosse eu que estivesse indo e não ele, gostaria...
— Oh — exclamou, espantado. Genny estava em pé ao lado da porta da cozinha, com um robe quente sobre a camisola. Não estava usando os óculos e olhou para ele apertando os olhos.
— Eu... eu estou muito feliz por você não ter ido, Duncan — disse num fio de voz.
— O quê?
— Ora, vamos, seu bobo, eu conheço você muito bem. Você não pregou olho tentando tomar uma decisão... nem eu, preocupada com você. Sei que se eu fosse você, teria ido, ou querido ir. Mas, Duncan, Tom é forte e vai ficar bem e eu desejo muito que ele leve Xarazade e não volte nunca mais... — As lágrimas começaram a rolar pelo seu rosto. — Estou tão contente que você não tenha ido. — Enxugou as lágrimas e foi para o fogão pôr água para ferver. — Sinto muito, eu às vezes me descontrolo. Desculpe.
— Gen, se o 125 chegar hoje, você vai embora nele? Por favor — pediu, abraçando-a.
— Certamente, querido, se você também for.
— Mas Gen, você tem que ir.
— Duncan, deixe-me falar um instante, por favor. — Ela se virou e pôs os braços em volta dele, descansando a cabeça no seu peito e continuou a falar na mesma vozinha que tanto o perturbava. — Três dos seus sócios já fugiram com as famílias e com todo o dinheiro que conseguiram, o xá e sua família foram embora com todo o dinheiro deles, milhares de outros, a maior parte das pessoas que conhecemos, já partiram, você mesmo disse isso, e agora, se até mesmo o grande general Valik está fugindo, apesar de todos os seus contatos e ele deve tê-los dos dois lados do muro, e... e se nem os Imortais conseguiram esmagar a pequena rebelião de Doshan Tappeh, feita por uns poucos cadetes da Força Aérea e por civis mal armados, praticamente no quintal deles, já está na hora de nós irmos embora.
— Nós não podemos, Gen — explodiu, e ela podia ouvir o coração dele batendo no peito e sua preocupação aumentou. — Isso seria um desastre
— Seria apenas por pouco tempo, até as coisas melhorarem.
— Se eu fugisse do Irã, isso arruinaria a S-G.
— Isso eu não sei, Duncan, mas certamente a decisão depende de Andy, não de você. Foi ele que nos mandou para cá.
— Sim, ele me perguntou o que eu achava e não pude aconselhá-lo a desistir e deixar para trás vinte ou trinta milhões de dólares em helicópteros e peças. Nesta confusão, eles não durariam uma semana, seriam saqueados ou danificados, nós perderíamos tudo, tudo. Não se esqueça, Gen, todo o dinheiro da nossa aposentadoria está empregado na S-G, tudo.
— Mas, Duncan, você não acha que..
— Eu não vou deixar os nossos helicópteros e peças aqui-. — McIver sentiu o sangue subir e ficou momentaneamente em pânico ao pensar nisso. — Eu simplesmente não posso.
— Então leve-os com você.
— Pelo amor de Deus, não podemos tirá-los daqui-, não podemos arranjar as licenças, não podemos tirar os registros iranianos, não podemos. . estamos presos aqui até a guerra acabar.
— Não estamos, não, Duncan. Nem você, nem eu, nem os nossos rapazes, você tem que pensar neles também. Temos que sair. Eles vão nos expulsar de qualquer maneira, quem quer que vença, principalmente Khomeini. — Um arrepio percorreu-a ao pensar no primeiro discurso dele feito no cemitério: "Eu rezo para que Deus corte as mãos de todos os estrangeiros."
EM TABRIZ UM: 9:30H. O Range Rover vermelho saiu dos portões do palácio do khan em direção a Tabriz, e à estrada que levava a Teerã. Erikki dirigia e Azadeh estava a seu lado. Fora o primo dela, coronel Mazardi, o chefe de polícia, quem persuadira Erikki a não ir para Teerã na sexta-feira.
— A estrada estaria extremamente perigosa; é ruim durante o dia — ele disse. — Os revoltosos não vão voltar já, vocês estão perfeitamente seguros. É muito melhor ir ver Sua Alteza, o khan, e pedir seu conselho. Seria muito mais sábio.
— Erikki, é claro que faremos o que você decidir, mas eu realmente ficaria mais feliz se passássemos a noite em casa e víssemos papai — dissera Azadeh.
— Minha prima tem razão, capitão; é claro que vocês podem fazer o que quiserem, mas eu juro pelo Profeta, que Deus guarde as Suas palavras eternamente, que a segurança de Sua Alteza é tão importante para mim quanto para você. Se ainda se sente inclinado a partir, parta amanhã. Posso assegurar-lhe que não há perigo aqui. Vou colocar guardas. Se esse tal de Rakoczy ou qualquer outro estrangeiro ou esse mulá chegarem a meio quilômetro daqui ou do palácio Gorgon, vão se arrepender.
— Oh, sim, Erikki, por favor — falou Azadeh, com entusiasmo. — É claro, meu querido, que faremos o que você quiser, mas talvez você desejasse consultar Sua Alteza, meu pai, sobre que atitude tomar.
Com relutância, Erikki concordara. Arberry e o outro mecânico, Dibble, tinham decidido ir para o Hotel Internacional de Tabriz e passar o fim-de-semana lá.
— As peças devem chegar na segunda-feira, capitão. O velho unha-de-fome do McIver sabe que o nosso 212 tem que estar funcionando na quarta-feira ou terá que nos mandar um outro e ele não vai gostar disso. Vamos ficar quietos, fazer o nosso trabalho e colocar o aparelho em condições de voar. O gerente da base pode ir nos buscar. Somos britânicos, não temos com que nos preocupar; ninguém vai tocar em nós. E não se esqueça que estamos trabalhando para o governo deles, quem quer que seja o maldito governo, e não temos nenhuma briga com esses malditos, esses sangüinários, perdoe-me. Não se preocupe conosco, nem o senhor nem a patroa. Vamos ficar quietos e esperar o senhor voltar na quarta-feira. Divirtam-se em Teerã.
Então Erikki fora, acompanhado pelo coronel Mazardi, para Tabriz. O gigantesco palácio dos khans Gorgons localizava-se no sopé das montanhas, e ocultava vários hectares de jardins e pomares por trás de altos muros. Quando chegaram, toda a casa estava acordada e reunida — madrasta, meias-irmãs, sobrinhas, sobrinhos, empregados e filhos dos empregados, mas não Abdullah Khan, seu pai. Azadeh foi recebida de braços abertos, com lágrimas, alegria e mais lágrimas, e fizeram planos imediatos para um grande almoço no dia seguinte para comemorar a sorte de a terem em casa depois de tanto tempo.
— Mas que horror! Bandidos e um mulá vagabundo ousaram entrar na sua propriedade? Mas Sua Alteza, nosso amado pai, não doou um monte de dinheiro e centenas de hectares de terra para diversas mesquitas em Tabriz e nos seus arredores?
Erikki Yokkonen foi recebido com educação, mas com reserva. Todos tinham medo dele, por causa do seu tamanho, da sua rapidez com a faca, da violência do seu temperamento, e não conseguiam compreender a delicadeza dele com os amigos, nem o imenso amor que demonstrava por Azadeh. Ela era a quinta de seis meias-irmãs, e havia um meio-irmão mais moço. Sua mãe, morta há vários anos, fora a segunda mulher de Abdullah. Seu adorado irmão de sangue, Hakim, um ano mais velho do que ela, fora banido por Abdullah Khan e ainda estava em desgraça em Khoi, no noroeste — banido por crimes contra o khan pelos quais tanto ele quanto Azadeh juravam que não era culpado.
— Primeiro um banho — disseram suas meias-irmãs, alegremente —, depois você pode contar-nos o que aconteceu, com todos os detalhes, todos os detalhes. — E rindo, arrastaram Azadeh. No refúgio da sala de banho, quente, aconchegante, luxuosa e completamente fora do alcance de todos os homens, conversaram e fofocaram até de madrugada.
— O meu Mahmud não faz amor comigo há uma semana — disse Najoud, a meia-irmã mais velha de Azadeh.
— Deve ser outra mulher, Najoud querida — alguém disse.
— Não, não é isso. Ele está tendo problemas de ereção.
— Oh, pobre querida! Já tentou dar-lhe ostras...
— Ou experimentou usar óleo de rosas nos seus seios...
— Ou esfregou-o com extrato de jacarandá, chifre de rinoceronte e almíscar...
— É tirado de uma antiga receita do tempo de Ciro, o Grande. Isso é segredo, mas o pênis do Grande Rei era muito pequeno quando ele era jovem, mas depois que conquistou os medas, milagrosamente seu pênis se tornou motivo de inveja. Parece que conseguiu uma poção mágica dos medas que se ele esfregasse por um mês... O sumo sacerdote deles deu-a a Ciro em troca de sua vida, com a condição do Grande Rei jurar manter o segredo dentro da família. E o segredo tem passado de pai para filho, através dos séculos, e agora, queridas irmãs, ele está em Tabriz!
— Oh, com quem, queridíssima irmã Fazulia, com quem? Que as bênçãos de Deus estejam para sempre com você, com quem? O desgraçado do meu marido, Abdullah, que os seus três últimos dentes caiam, não tem uma ereção há anos. Com quem?
— Oh, fique quieta, Zadí, como ela pode dizer se você fica falando? Continue, Fazulia.
— Sim, fique quieta, Zadi, e agradeça a sua sorte. O meu Hussan vive ereto, de manhã, de tarde e de noite, e vive tão cheio de desejo que não me dá tempo nem para escovar os dentes!
— Bem, o segredo do elixir foi comprado pelo tataravô do atual dono por um preço enorme, me disseram que custou um punhado de diamantes...
— Eeeeeeeeeeeeee...
— ... mas agora pode-se comprar um pequeno frasco por cinqüenta mil riais.
— Oh, é muito caro! Onde vou arranjar tanto dinheiro?
— Como sempre, você pode arranjá-lo no bolso dele, e pode, evidentemente, pechinchar. Nada é demais para se ter uma poção dessas, já que não podemos ter outros homens.
— Se funcionar...
— É claro que funciona, oh, onde se compra isso, querida Fazulia?
— No bazar, na loja de Abu Bakra bin Hassan bin Saiidi. Eu sei o caminho! Iremos amanhã. Antes do almoço. Você irá conosco, querida Azadeh!
— Não, obrigada, querida irmã.
Elas deram várias risadas e uma das mais jovens disse:
— Pobre Azadeh, ela não precisa nem de jacarandá nem de armisca, ela precisa do contrário.
— Jacarandá e almíscar, garota, com chifre de rinoceronte — disse Fazulia.
Azadeh riu junto com elas. Todas tinham lhe perguntado, abertamente ou em particular, se o pênis do seu marido era tão grande quanto ele e como podia, sendo tão magra e frágil, lidar com aquilo e suportar seu peso.
— Com mágica — respondera para as mais jovens. — Facilmente — dissera para as mais sérias. — Com um êxtase inacreditável, como deve ser no jardim do paraíso — para as ciumentas e para aquelas que detestava e que queria provocar
Nem todo mundo aprovara seu casamento com esse gigante estrangeiro. Muitos tinham tentado influenciar seu pai contra ele e contra ela. Mas ela vencera e sabia quem eram os seus inimigos: sua meia-irmã Zadi, louca por sexo, a mentirosa prima Fazulia, com seus exageros idiotas, e, principalmente, a víbora do grupo, a irmã mais velha, Najoud, e o seu infame marido, Mahmud, que Deus os castigue pelas suas maldades.
— Najoud, querida, estou muito feliz de estar em casa, mas está na hora de dormir.
E foram para cama. Todas elas. Algumas alegres, outras tristes, algumas odiando, outras amando, algumas com os maridos, outras sozinhas. Os homens podiam ter quatro esposas ao mesmo tempo, de acordo com o Corão, desde que tratassem todas elas com igualdade — só Maomé, o Profeta, tivera permissão para ter quantas esposas desejasse. De acordo com a tradição, o Profeta teve 11 esposas durante sua vida, embora não ao mesmo tempo. Algumas morreram, de outras ele se divorciou, e algumas sobreviveram a ele. Mas todas o honraram para sempre.
Erikki acordou quando Azadeh deitou-se na cama ao seu lado.
— Devemos partir o mais cedo possível, Azadeh, minha querida.
— Sim — concordou, quase dormindo, com a cama tão confortável e ele tão confortável. — Sim, quando você quiser, mas por favor, não antes do almoço, porque a querida madrasta vai chorar rios de lágrimas...
— Azadeh!
Mas ela já estava dormindo. Ele suspirou, também satisfeito, e voltou a dormir.
Eles não partiram no domingo conforme o planejado — o pai dela disse que não era conveniente, pois queria conversar com Erikki primeiro. Hoje de madrugada, segunda-feira, depois das orações conduzidas pelo pai dela, e depois do café — café, pão, mel, iogurte e ovos — tiveram permissão para partir e agora pegavam a estrada principal para Teerã, e na frente deles estava a barreira.
— É estranho — disse Erikki. O coronel Mazardi combinara encontrá-los ali, mas não estava à vista, nem havia ninguém na barreira.
— Polícia — retrucou Azadeh, com um bocejo. — Nunca estão onde se precisa deles.
A estrada subia em direção ao desfiladeiro. O céu estava claro e azul e a luz já banhava os picos das montanhas. Lá embaixo, no vale, ainda estava escuro, frio e úmido; a estrada estava escorregadia, com montículos de neve, mas isso não o preocupou porque o Range Rover tinha tração nas quatro rodas e ele trazia correntes. Mais além, quando chegou ao desvio que ia para a base, ele passou direto. Sabia que a base estava vazia, que o 212 estava a salvo aguardando reparos. Antes de deixar o palácio, tentara entrar em contato com seu administrador, Dayati, sem sucesso. Mas não se importou. Erikki se ajeitou no assento, estava com os tanques cheios e com seis latas de cinco galões de reserva, que apanhara na bomba particular de Abdullah.
Posso chegar facilmente em Teerã ainda hoje, pensou. E voltar na quarta-feira, se voltar. Aquele filho da mãe do Rakoczy deu notícias realmente muito ruins.
— Quer um pouco de café, querido? — perguntou Azadeh.
— Obrigado. Veja se consegue pegar a BBC ou a Voz da América nas ondas curtas. — Aceitou satisfeito o café quente da garrafa térmica, escutando o barulho da estática, do efeito heteródino e das estações soviéticas e quase mais nada. As estações iranianas ainda estavam fora do ar por causa da greve, exceto as que eram operadas pelos militares.
Durante o fim-de-semana, amigos, parentes, vendedores, empregados, tinham trazido boatos a respeito de tudo, desde a iminência de uma invasão soviética até uma também iminente invasão americana, desde golpes militares bem-sucedidos na capital até a covarde rendição de todos os generais a Khomeini e a renúncia de Bakhtiar.
— Asneira! — dissera Abdullah Khan. Ele era um homem corpulento de uns sessenta anos, de barba, com olhos escuros e lábios grossos, coberto de jóias e ricamente vestido. — Por que Bakhtiar iria renunciar? Ele não ganha nada com isso e, por enquanto, não há nenhum motivo.
— E se Khomeini vencer? — perguntara Erikki.
— É a Vontade de Deus. — O khan estava reclinado sobre tapetes no grande salão, Erikki e Azadeh sentavam-se em frente, e seu guarda-costas armado estava em pé, atrás dele. — Mas a vitória de Khomeini será apenas temporária, caso ele a consiga. As Forças Armadas vão dominá-lo, a ele e a seus mulás, mais cedo ou mais tarde. Khomeini é um homem velho. Morrerá logo, e quanto mais cedo melhor, pois embora tenha cumprido a Vontade de Deus e tenha sido o instrumento para expulsar o xá, cuja hora tinha chegado, ele é vingativo, bitolado, e tão megalomaníaco quanto o xá, se não for mais. Ele vai, com toda a certeza, assassinar mais iranianos do que o xá jamais o fez.
— Mas ele não é um homem santo, piedoso e tudo o que um aiatolá deve ser? — perguntou Erikki, cautelosamente, sem saber o que esperar. — Por que Khomeini faria isso?
— É o hábito dos tiranos. — O khan riu e apanhou outro halvah, um doce turco que ele adorava.
— E o xá? O que vai acontecer agora? — Apesar de Erikki não gostar do khan, estava satisfeito pela oportunidade de ouvir a opinião dele. Sua vida e de Azadeh no Irã dependia muito do khan e Erikki não tinha nenhuma vontade de partir.
— Será como Deus quiser. Muhammad Xá fez um bem enorme ao Irã, como seu pai antes dele. Mas nos últimos anos estava totalmente voltado para si mesmo e não queria ouvir ninguém, nem mesmo a xabanu, a imperatriz Farah, que é dedicada a ele e muito inteligente. Se tivesse juízo, abdicaria imediatamente em favor do seu filho Reza. Os generais precisam de um motivo para se unir, eles poderiam treiná-lo até que estivesse preparado para assumir o poder. Não se esqueça de que o Irã tem sido uma monarquia há quase três mil anos, sempre governado por um monarca com poderes absolutos, alguns diriam um tirano, só destituído pela morte. — Ele sorrira, com seus lábios grossos e sensuais. — Dos xás Qajar, nossa dinastia legítima que governou por 150 anos, só um, o último da linhagem, meu primo, morreu de causas naturais. Somos um povo oriental, não ocidental, que entende tortura e violência. A vida e a morte não são julgadas pelos seus padrões. — Seus olhos escuros pareceram ficar ainda mais escuros. — Talvez seja a Vontade de Deus que os Qajars voltem... sob o governo deles o Irã prosperou.
Não foi isso o que eu ouvi dizer, pensara Erikki. Mas se manteve calado. Não me compete julgar o que aconteceu ou o que acontecerá aqui.
Durante todo o domingo houve interferência na transmissão da BBC e da Voz da América, o que não era incomum. A Rádio de Moscou estava alta e clara, como sempre, e a Rádio Iramana Livre que transmitia até Tbilisi, ao norte da fronteira, também estava alta e clara como sempre. Suas transmissões em farsi e em inglês falavam em revolta geral contra "o governo ilegal de Bakhtiar, contra o xá e seus patrões americanos, comandados pelo intrigante e mentiroso presidente Carter. Hoje Bakhtiar tentou obter as boas graças do povo cancelando um total de 13 bilhões de dólares de contratos militares ilegais impostos ao país pelo recém-deposto xá: oito bilhões de dólares com os Estados Unidos, contratos para a compra de tanques centuriões dos ingleses, no valor de dos bilhões e trezentos milhões de dólares, mais dois reatores nucleares franceses, e um da Alemanha, no valor de dois bilhões e setecentos milhões de dólares. Esta notícia colocou em pânico os líderes ocidentais e, sem dúvida, levará a uma merecida crise nas bolsas de valores capitalistas..."
— Perdoe-me por perguntar, pai, mas o Ocidente vai falir? — perguntara Azadeh.
— Não desta vez — respondera o khan e Erikki viu seu rosto ficar mais frio. — A menos que os soviéticos decidam que chegou a hora de suspender o pagamento dos oitenta bilhões de dólares que devem aos bancos ocidentais, e até a alguns bancos orientais. — Ele rira sardonicamente, brincando com o fio de pérolas que usava em volta do pescoço. — É claro que os agiotas orientais são muito mais espertos; pelo menos não são tão gananciosos. Emprestam criteriosamente e exigem garantias e não acreditam em ninguém, muito menos no mito da 'caridade cristã'. — Todo mundo sabia que os Gorgons eram donos de enormes propriedades no Azerbeijão, terra rica em petróleo, de grande parte da Madeira Iraniana, de propriedades costeiras no mar Cáspio, da maior parte do bazar de Tabriz e da maioria dos bancos comerciais de lá.
Erikki lembrou-se dos boatos que ouvira sobre Abdullah Khan quando estava tentando conseguir permissão para se casar com Azadeh, sobre seu pão-durismo e sua falta de compaixão nos negócios: "Um caminho rápido para o paraíso ou para o inferno é dever um rial a Abdullah, o Cruel, não pagar invocando pobreza e ficar em Azerbeijão.
— Pai, permita-me perguntar, o cancelamento de tantos contratos vai causar prejuízos, não vai?
— Não, você não tem permissão para perguntar. Você já fez perguntas demais para um dia. Uma mulher deve refrear a língua e ouvir. Você pode sair agora.
Imediatamente, ela se desculpou pelo seu erro e saiu obedientemente.
— Com licença.
Erikki também se levantou para sair, mas o khan o fez parar.
— Eu ainda não lhe dei licença para sair. Sente-se. Agora, por que você está com medo de um único soviético?
— Não estou com medo dele, mas do sistema. Aquele homem tem que ser da KGB.
— Por que então você não o matou?
— Isso não teria ajudado e sim prejudicado a nós, à base, à Madeira Iraniana, à Azadeh, talvez até ao senhor. Ele me foi enviado por outros. Ele nos conhece, conhece o senhor. — Erikki observara o khan cuidadosamente.
— Eu conheço uma porção deles. Os russos, soviéticos ou czaristas, sempre cobiçaram o Azerbeijão, mas têm sido bons fregueses do Azerbeijão, e nos ajudaram contra os nojentos ingleses. Eu os prefiro aos ingleses, eu os compreendo. — Sorriu ainda mais friamente. — Seria fácil remover este Rakoczy.
— Ótimo, então faça isso, por favor. — Erikki dera uma gargalhada. — E todos os outros também. Isso seria realmente executar o trabalho de Deus.
— Não concordo — dissera o khan, mal-humorado. — Isso seria fazer o trabalho de Satã. Sem os soviéticos contra eles, os americanos e seus cães, os ingleses, dominariam a nós e ao resto do mundo. Eles engoliriam o Irã. Quase o fizeram no governo do Muhammad Xá. Sem a Rússia Soviética, quaisquer que sejam seus defeitos, não haveria resistência às estratégias nojentas da América, à sua arrogância nojenta, aos seus modos infames, seus jeans infames, sua música infame, sua comida infame, sua democracia infame, suas atitudes infames em relação à mulher, à lei e à ordem, sua pornografia nojenta, sua atitude ingênua em relação à diplomacia, e ao seu perverso, sim, esta é a palavra correta, ao seu perverso antagonismo ao Islã.
A última coisa que Erikki queria era um outro confronto. Mas apesar de sua resolução, sentiu a raiva subindo.
— Nos fizemos um açor..
— Por Deus, é verdade! — o khan gritou para ele. — É verdade.
— Não é, e nós fizemos um acordo diante do seu Deus e dos meus espíritos de que não discutiríamos política, nem a do seu mundo nem a do meu.
— É verdade, admita! — Abdullah Khan rosnou, com a cara contorcida de raiva. Uma das mãos dirigiu-se para a faca que estava na cintura, e imediatamente o guarda empunhou sua metralhadora, apontando para Erikki. — Em nome de Alá, você está me chamando de mentiroso, em minha própria casa? — berrou.
— Eu só estou lembrando ao senhor, Alteza, o acordo que fizemos em nome de Alá! — Os olhos escuros injetados de sangue o encararam. Ele o encarou de volta, pronto para sacar sua própria faca e matar ou ser morto; o perigo entre os dois era muito grande.
— Sim, sim, isso também é verdade — resmungou o khan, e o acesso de raiva passou tão depressa quanto começara. Ele olhou para o guarda e mandou-o embora, zangado. — Saia!
A sala agora estava muito silenciosa. Erikki sabia que havia outros guardas por perto e orifícios para observação nas paredes. Sentiu a testa coberta de suor e o peso de sua faca pukoh no meio das costas.
Abdullah Khan sabia que a faca estava lá e que Erikki a usaria sem hesitação. Mas o khan concedera-lhe permissão perpétua para andar armado na presença dele. Há dois anos atrás Erikki salvara-lhe a vida.
Isso aconteceu no dia em que Erikki pediu-lhe permissão para se casar com Azadeh e foi recusado imperiosamente.
— Não, por Alá, eu não quero infiéis na minha família. Saia da minha casa! Pela última vez!
Erikki erguera-se do tapete, com dor no coração. Nesse momento, ouviram ruído de luta do lado de fora da porta, seguido por tiros, então a porta abriu com violência e por ela entraram dois homens, assassinos armados com metralhadoras, enquanto a luta continuava no corredor. O guarda-costas do khan matou um, mas o outro crivou-o de balas e apontou a arma para Abdullah Khan, que estava sentado no tapete, em estado de choque. Antes que o assassino pudesse puxar o gatilho pela segunda vez, ele morreu, com a faca de Erikki atravessada na garganta. Na mesma hora, Erikki saltou em cima dele, arrancou-lhe a metralhadora das mãos e a faca da garganta, no mesmo instante em que outro assassino entrava na sala, atirando. Erikki acertara o rosto do homem com a metralhadora, matando-o, quase arrancando-lhe a cabeça com a força da pancada, depois correu, enfurecido, para o corredor. Três dos atacantes e dois guarda-costas estavam mortos ou morrendo. Os outros dois fugiram, mas Erikki foi atrás deles e os matou, voltando correndo para dentro. E foi só quando encontrou Azadeh, e viu que ela estava bem, que a sede de sangue o abandonou e ele se acalmou.
Erikki recordou como a havia deixado e voltado para o grande salão. Abdullah ainda estava sentado sobre os tapetes
— Quem eram aqueles homens?
— Assassinos. Inimigos, como os guardas que os deixaram entrar — respondera Abdullah Khan, com ódio. — Foi a Vontade de Deus que você estivesse aqui para me salvar, é pela Vontade de Deus que estou vivo. Você pode se casar com Azadeh, sim, mas por eu não gostar de você, nós dois vamos jurar diante do meu Deus e do seu, seja lá o que for que você adore, não discutir nem religião nem política, seja do seu mundo ou do meu, então talvez eu não tenha que mandar matá-lo.
E agora os mesmos frios olhos escuros o observavam. Abdullah Khan bateu palmas. Instantaneamente, a porta se abriu e um criado apareceu.
— Traga café! — O homem saiu rapidamente. — Vou deixar de lado esse assunto sobre o seu mundo e passar para outro que podemos discutir: minha filha, Azadeh.
Erikki colocou-se mais ainda na defensiva, sem saber até que ponto seu pai a controlava, ou quais eram os seus direitos como marido enquanto estivesse no Azerbeijão — um feudo do velho. Se Abdullah Khan ordenasse a Azadeh para voltar para casa e se divorciar dele, será que ela o faria? Acho que sim, temo que sim — ela não vai escutar uma só palavra contra o pai. Ela defendeu até o seu ódio paranóico pela América explicando o que o havia causado:
— Ele foi mandado para lá, para cursar a universidade, pelo seu pai. Ele passou uma fase terrível na América, Erikki, aprendendo a língua e tentando conseguir um diploma em economia como seu pai ordenara antes de ter permissão para voltar para casa. Meu pai odiava os outros estudantes, que zombavam dele porque não sabia jogar os seus jogos, porque era mais pesado do que eles, o que no Irã é um sinal de saúde, mas não na América, e era lento para aprender Mas, principalmente, por causa dos trotes que teve de agüentar; foi obrigado, Erikki, a comer coisas impuras que são contra a nossa religião, como carne de porco, a beber cerveja, vinho e outras bebidas alcoólicas, o que é contra a nossa religião, a fazer coisas indescritíveis e foi chamado de nomes horríveis. Eu também ficaria zangada se fosse comigo. Por favor, seja paciente com ele. Os soviéticos não o fazem ver sangue pelo que fizeram com seu pai, sua mãe e seu país? Tenha paciência com ele, por favor. Ele não concordou com o nosso casamento? Tenha paciência com ele.
Eu tenho sido muito paciente, pensou Erikki, mais paciente do que com qualquer outro homem, louco para a entrevista terminar.
— O que há com minha mulher, Alteza? — Era costume chamá-lo assim, e Erikki o fazia de vez em quando, por educação.
— Naturalmente, o futuro da minha filha me interessa. Qual é o seu plano quando chegar a Teerã?
— Não tenho nenhum plano. Só acho que é prudente tirá-la de Tabriz por alguns dias. Rakoczy disse que eles estavam 'solicitando' os meus serviços. Quando a KGB diz isto no Irã, na Finlândia ou até mesmo na América, é melhor você ficar alerta e se preparar para ter problemas. Se eles a raptassem, eu ficaria nas mãos deles.
— Eles poderiam raptá-la em Teerã muito mais facilmente do que aqui, se este for o plano deles. Você se esquece que está no Azerbeijão — e apertou os lábios com desprezo —, não no país de Bakhtiar.
— Só sei que isso é o que eu acho que é melhor para ela. Eu disse que a protegeria com minha própria vida, e o farei. Até que o futuro político do Irã esteja definido, por você e outros iranianos, acho que isso é a melhor coisa a fazer.
— Neste caso, vá. — O khan falara de uma forma tão brusca que ele tinha ficado assustado. — Se você precisar de ajuda, envie-me o seguinte código...
— Pensou por um momento. Então seu sorriso tornou-se sardônico: — Envie-me a frase: 'todos os homens nasceram iguais'. Esta é outra verdade, não é?
— Não sei, Alteza — disse cuidadosamente. — Seja ou não verdade, é certamente a Vontade de Deus.
Abdullah dera uma gargalhada, levantando-se e deixando-o sozinho no grande salão e Erikki sentira um frio na alma, profundamente perturbado pelo homem cujos pensamentos ele nunca pôde ler.
— Você está com frio, Erikki? — perguntou Azadeh.
— Oh, não, nem um pouco — disse, voltando à realidade, ouvindo o motor funcionando bem enquanto subiam a estrada da montanha em direção ao desfiladeiro. Havia pouco tráfego para ambos os lados. Quando saíram da curva, alcançaram a luz do sol e chegaram ao topo; imediatamente, Erikki mudou suavemente de marcha e ganhou velocidade ao iniciarem a longa descida. A estrada, construída por ordem do Reza Xá, bem como a ferrovia, era uma maravilha da engenharia, com cortes, aterros, pontes e partes íngremes sem nenhuma proteção do lado do precipício, com a superfície escorregadia, cheia de montes de neve. Ele tornou a trocar a marcha, dirigindo depressa mas com prudência, muito satisfeito por não terem saído à noite. — Posso tomar um pouco mais de café?
— Vou gostar de ver Teerã — disse Azadeh, servindo-lhe o café. — Há um monte de compras para fazer, Xarazade está lá, e eu tenho uma lista de coisas para comprar para minhas irmãs, creme facial para minha madrasta...
Ele mal ouvia, com o pensamento em Rakoczy, em Teerã, em McIver, e no próximo passo.
A estrada descia em curvas. Diminuiu a velocidade e passou a dirigir com mais cuidado, vendo algum tráfego pelo retrovisor. Logo atrás havia um carro de passageiros, superlotado como sempre, e o motorista dirigia perto demais, depressa demais e com a mão permanentemente na buzina, mesmo quando era impossível sair da frente. Erikki fechou os ouvidos à impaciência, com a qual ele nunca se acostumara, nem à maneira imprudente dos iranianos dirigirem, até mesmo Azadeh. Fez a curva seguinte com a inclinação mais acentuada, e mais à frente, não muito longe, viu um caminhão cheio de carga subindo e um carro ultrapassando-o pela contramão. Freou, apertando-se contra a encosta. Nesse momento, o carro atrás dele acelerou, passou por ele tocando a buzina, ultrapassando-o sem olhar, saindo pela contramão. Os dois carros bateram e ambos caíram no precipício de 150 metros de altura, pegando fogo. Erikki encostou ainda mais e parou. O caminhão não parou, apenas continuou subindo a montanha como se nada tivesse acontecido e os outros carros fizeram o mesmo.
Ele chegou na beirada e olhou para o vale lá embaixo. Destroços dos carros, ainda incendiando, espalhavam-se pela encosta a duzentos metros, sem possibilidade de haver sobreviventes, e sem nenhuma chance de se descer até lá sem equipamento adequado. Quando voltou para o carro, sacudiu a cabeça com tristeza.
— Insha'Allah, meu querido — disse Azadeh, calmamente. — Foi a Vontade de Deus.
— Não, não foi, foi pura estupidez.
— É claro que você tem razão, querido, foi certamente estupidez — disse imediatamente, na sua voz mais apaziguadora, vendo sua raiva e não entendendo, como não entendia muito do que se passava pela cabeça desse homem estranho que era seu marido. — Você tem toda a razão, Erikki. Foi pura estupidez, mas foi pela Vontade de Deus que a estupidez desses motoristas causou-lhes a morte e daqueles que viajavam com eles. Foi a Vontade de Deus ou a estrada estaria livre. Você tem toda a razão.
— Tenho mesmo? — disse, cansado.
— É claro que sim, Erikki. Toda a razão.
Prosseguiram. As aldeias que ficavam à beira da estrada ou que eram cortadas por ela, eram pobres ou muito pobres, com ruazinhas de terra, choupanas e casas toscas, altos muros, algumas mesquitas sem vida, lojinhas de rua, cabras, ovelhas e galinhas, e as moscas, que ainda não eram a praga em que se tornavam no verão. Havia sempre lixo nas ruas e nos joub — os fossos — e as inevitáveis matilhas de cães sarnentos, abandonados, freqüentemente raivosos. Mas a neve tornava a paisagem e as montanhas pitorescas, e o dia continuou a ser bom, embora frio, com o céu azul e nuvens se formando.
Dentro do Range Rover estava quente e confortável. Azadeh usava uma roupa de esqui acolchoada e um suéter de cashmere por baixo, do mesmo tom de azul, botas curtas. Ela tinha tirado a jaqueta e o gorro de esqui, e seus cabelos cheios, naturalmente escuros e ondulados, caíam-lhe pelos ombros. Perto do meio-dia, pararam para almoçar ao lado de um riacho. No começo da tarde, viajaram através de plantações de maçã, pêra e cereja, no momento desfolhadas e nuas, depois chegaram aos arredores de Qazvin, uma cidade de uns 150 mil habitantes e muitas mesquitas.
— Quantas mesquitas existem ao todo no Irã, Azadeh? — perguntou.
— Uma vez eu ouvi dizer que eram vinte mil — respondeu sonolenta, abrindo os olhos e espiando à sua frente. — Ah, Qazvin! Você fez um bom tempo, Erikki! — Bocejou, ajeitou-se mais confortavelmente e voltou a cochilar. — Há vinte mil mesquitas e cinqüenta mil mulás, segundo dizem. Neste ritmo estaremos em Teerã dentro de duas horas...
Ele sorriu quando ela tornou a cochilar. Estava se sentindo mais seguro agora, satisfeito por já ter vencido a maior parte da viagem. Depois de Qazvin a estrada era boa até Teerã. Em Teerã, Abdullah Khan tinha muitas casas e apartamentos, a maioria alugados para estrangeiros. Alguns, reservava para uso próprio e de sua família, e dissera a Erikki que, desta vez, por causa dos distúrbios, eles podiam ficar num apartamento não muito distante do de McIver.
— Obrigado, muito obrigado — agradecera Erikki e, mais tarde, Azadeh comentara:
— Não sei por que ele foi tão gentil. Não... não é típico dele. Ele odeia você e me odeia por mais que tente agradá-lo.
— Ele não odeia você, Azadeh.
— Peço desculpas por discordar de você, mas ele me odeia. Vou lhe dizer mais uma vez, meu querido, foi minha irmã mais velha, Najoud, quem realmente o envenenou contra mim e contra meu irmão. Ela e o seu maldito marido. Não se esqueça de que minha mãe era a segunda esposa do meu pai, tinha quase a metade da idade da mãe de Najoud e era duas vezes mais bonita e apesar de minha mãe ter morrido quando eu tinha sete anos, Najoud ainda guarda o veneno, não na nossa frente, é claro, ela é muito esperta para isso. Erikki, você não imagina como as mulheres iranianas podem ser sutis, enganadoras e poderosas, ou o quanto podem ser vingativas sob uma aparência tão doce. Najoud é pior do que a serpente do jardim do Éden! Ela é a causa de toda a inimizade. — Seus lindos olhos azuis esverdeados encheram-se de lágrimas. — Quando eu era pequena, meu pai nos amava de verdade, ao meu irmão Hakim e a mim, e nós éramos os seus favoritos. Ele passava mais tempo conosco, na nossa casa, do que no palácio. Então, quando mamãe morreu, fomos morar no palácio, mas nenhum dos nossos meios-irmãos e irmãs gostavam realmente de nós. Quando fomos para o palácio, Erikki, tudo mudou. Foi Najoud.
— Azadeh, você se acaba com esse ódio. É você quem sofre e não ela. Esqueça-a. Agora, ela não tem mais nenhum poder sobre você e vou-lhe dizer mais uma vez: você não tem nenhuma prova.
— Não preciso de provas. Eu sei. E nunca vou esquecer.
Erikki não respondeu. Não havia sentido em discutir, em remexer no que fora a causa de muita violência e muitas lágrimas. É melhor botar para fora do que guardar, é melhor deixá-la enfurecer-se de vez em quando.
A estrada agora deixava os campos e entrava em Qazvin, uma cidade igual a muitas outras cidades iranianas, barulhenta, abafada, suja, poluída e engarrafada. Ao lado da estrada ficavam os joub que contornavam a maioria das estradas do Irã. Aqui, os fossos tinham um metro de profundidade, com partes de concreto, e com lama, gelo e água escorrendo por eles. Árvores cresciam lá dentro, as pessoas lavavam suas roupas neles, às vezes os usavam como reservatório de água para beber, ou como esgoto. Depois dos fossos, começavam os muros. Muros que escondiam casas ou jardins, grandes ou pequenos, ricos ou miseráveis. Nas cidades, as casas em geral tinham dois andares, eram sem graça, com a forma de um caixote, algumas de tijolo, outras de argila, algumas com reboco, mas quase todas escondidas. A maioria tinha chão de terra, poucas possuíam água corrente, eletricidade e algum tipo de instalação sanitária.
O tráfego aumentou com uma rapidez espantosa. Bicicletas, motocicletas, ônibus, caminhões, carros de todos os tamanhos, marcas e idades, desde os mais novos até os mais velhos, quase todos amassados, alguns decorados com pinturas de várias cores e pequenas luzes, de acordo com a fantasia do dono. Erikki passara diversas vezes por ali, nos últimos anos, e conhecia todos os locais de engarrafamento possíveis. Mas não havia nenhum outro caminho, nenhum desvio contornando a cidade, embora houvesse um antigo plano para isso. Sorriu desdenhosamente, tentando ignorar o ruído, e pensou: Nunca farão esse desvio, os moradores não agüentariam o silêncio. Os habitantes de Qazvin e de Rasht, no mar Cáspio, eram alvos de muitas piadas iranianas.
Desviou-se de um destroço queimado, depois colocou uma fita cassete de Beethoven e aumentou o volume para abafar o barulho. Mas não adiantou muito.
— Este tráfego está pior do que o normal! Onde está a polícia? — disse Azadeh, agora totalmente desperta. — Você está com sede?
— Não, obrigado. — Olhou para ela, de suéter e com os cabelos soltos realçando-lhe a beleza. Sorriu. — Mas estou com fome... com fome de você.
— Eu não estou só com fome, estou faminta — disse rindo, e lhe deu o braço.
— Ótimo! — Eles eram felizes juntos.
Como sempre, a estrada estava ruim, com vários buracos — em parte pelo uso, em parte por causa dos reparos e obras infindáveis, embora raramente houvesse sinalização ou barreiras de segurança. Ele se desviou de um buraco bastante fundo e depois passou devagar por outro destroço que fora empurrado de qualquer maneira para um dos lados. Nesse momento, um caminhão amassado veio da direção oposta, com a buzina tocando furiosamente. Estava brilhantemente decorado, tinha os pára-lamas amarrados com arame, a cabine aberta e sem vidro, e a tampa do tanque era um pedaço de pano. Na traseira, uma pilha alta de galhos de árvore, e três passageiros precariamente pendurados. O motorista estava embrulhado num casaco esfarrapado de pele de carneiro. Havia dois outros homens a seu lado. Quando Erikki passou, percebeu, surpreso, que todos o olhavam. Poucos metros adiante, um ônibus amassado e superlotado veio pesadamente em sua direção. Com muito cuidado, desviou para mais perto do fosso, raspando com o lado do carro para dar passagem ao ônibus, suas rodas bem na beirada, e então parou. Mais uma vez, viu que ó motorista e todos os passageiros o olharam ao passar, mulheres de chador, rapazes barbados e bem agasalhados contra o frio. Um deles sacudiu o punho para ele. Um outro gritou um palavrão.
Nós nunca tivemos nenhum problema antes, pensou Erikki, pouco à vontade. Para onde quer que olhasse, via os mesmos olhares zangados. Da rua e dos veículos. Tinha que ir devagar por causa dos enxames de motocicletas e bicicletas que passavam no meio dos carros, dos ônibus e dos caminhões que disputavam espaço na única pista — sem obedecer a nenhuma outra lei de tráfego a não ser às que lhes agradavam — e agora um rebanho de ovelhas saía de uma rua lateral e inundava a estrada, com os motoristas xingando os pastores e os pastores xingando de volta, todo mundo zangado e impaciente, e as buzinas tocando sem parar.
— Maldito tráfego! Ovelhas estúpidas! — disse Azadeh, impaciente-mente, agora bem acordada. — Toque a buzina, Erikki!
— Tenha paciência, volte a dormir. Não há jeito de ultrapassar ninguém — gritou por cima do tumulto, consciente da inimizade que o cercava. — Seja paciente!
Para atravessar outros trezentos metros, levaram meia hora, com mais tráfego vindo de ambos os lados para se juntar ao fluxo que foi ficando cada vez mais lento. Vendedores de rua, pedestres e lixo. Agora ele se arrastava atrás de um ônibus que ocupava quase toda a estrada, quase arranhando os carros do outro lado, andando a maior parte do tempo com uma das rodas sobre a borda do fosso. Os motociclistas passavam sem o menor cuidado, batendo na carroceria do Range Rover e dos outros veículos, xingando-se uns aos outros e a todo mundo que estava em volta, empurrando e chutando as ovelhas, fazendo-as debandar. Vindo de trás, um pequeno carro encostou nele e o motorista enfiou a mão na buzina num paroxismo de raiva que fez o ódio subir à cabeça de Erikki. Feche os ouvidos, ordenou a si mesmo. Tenha calma! Não há nada que você possa fazer! Tenha calma!
Mas achou isso cada vez mais difícil. Depois de meia hora, as ovelhas entraram numa picada e o tráfego andou um pouco mais depressa. Então, depois da curva seguinte, apareceu um conserto na estrada sem nenhuma sinalização, e um buraco com mais de um metro de profundidade, cheio de água, impedia a passagem. Um grupo de trabalhadores insolentes estava agachado ali perto, gritando palavrões e fazendo gestos obscenos.
Era impossível avançar ou recuar. Todo o tráfego foi obrigado a se desviar para uma ruazinha estreita, e o ônibus que estava na frente não conseguiu fazer a curva, tendo que parar e manobrar, causando mais tumulto e mais gritos de raiva, e quando Erikki deu marcha à ré para dar espaço para o ônibus, um carro azul todo amassado que estava atrás dele desviou para o lado oposto da estrada, ultrapassando-o, e enfiando-se na pequena abertura, obrigando o carro que vinha em sentido contrário a frear e derrapar. Uma das rodas do carro entrou no fosso e o carro balançou perigosamente. O tráfego agora estava totalmente enrolado.
Furioso, Erikki puxou o freio de mão, abriu a porta e foi até o carro que estava pendurado no fosso, usando toda a sua força para puxá-lo para a estrada. Ninguém mais ajudou, apenas xingavam e contribuíam para aumentar a confusão. Então Erikki caminhou em direção ao carro azul mas, neste momento, o ônibus fez a curva e houve espaço para andar e o motorista do carro azul engrenou e arrancou com um gesto obsceno.
Com esforço, Erikki relaxou os punhos. Os veículos dos dois lados da estrada buzinavam para ele. Entrou no carro e engrenou.
— Tome — disse Azadeh, inquieta. E lhe passou uma xícara de café.
— Obrigado. — Tomou o café, guiando com uma das mãos, o tráfego mais uma vez ficando lento. O carro azul desaparecera. Quando pôde falar calmamente, ele disse: — Se eu tivesse posto as mãos nele ou no carro, eu os teria feito em pedaços.
— Sim. Sim, eu sei. Erikki, você notou como todo mundo está hostil conosco? Como estão zangados?
— Sim, notei.
— Mas por quê? Nós já passamos por Qazvin mais de vinte ve... — Azadeh recuou involuntariamente quando um monte de lixo bateu de repente na sua janela, e chegou para perto dele, assustada. Erikki praguejou e fechou os vidros, depois estendeu o braço por cima dela e trancou a porta. Um monte de estrume foi jogado no pára-brisa.
— O que está havendo com esses matyeryebyets! — resmungou. — É como se estivéssemos exibindo uma bandeira americana e acenando com retratos do xá. — Uma pedra foi jogada não se sabe de onde e ricocheteou do lado do carro. Então o ônibus que estava na frente deles saiu da ruazinha lateral e entrou na ampla praça com uma mesquita ao fundo, onde havia barracas de feira e duas pistas de tráfego de cada lado. Para alívio de Erikki, puderam aumentar a velocidade. O tráfego ainda estava pesado, mas já começava a fluir e ele colocou em segunda, buscando a saída para Teerã, do outro lado da praça. No meio do caminho, as duas pistas começaram a ficar mais congestionadas à medida que mais veículos se juntavam aos que se dirigiam para a estrada de Teerã.
— Isso nunca esteve tão ruim — resmungou. — O que será que está impedindo o tráfego?
— Deve ser outro acidente — disse Azadeh, muito inquieta. — Ou obras na estrada. Vamos voltar? O tráfego não está tão ruim daquele lado.
— Temos muito tempo — disse para animá-la. — Vamos sair daqui em um minuto. Assim que sairmos da cidade, tudo estará bem. — Lá na frente, estava tudo parado de novo e o barulho aumentou. As duas pistas tornavam a se unir, engarrafando, com muita gritaria, impropérios, com os carros andando, parando e se arrastando a dez quilômetros por hora, as barracas e as carroças invadindo a estrada e subindo pelo fosso. Estavam quase na saída quando alguns jovens começaram a correr ao lado do carro gritando insultos, alguns obscenos. Um dos rapazes bateu na janela.
— Cão americano...
— Porco americano...
A estes homens se juntaram outros e algumas mulheres vestindo o chador, com os punhos levantados. Erikki estava encurralado e não podia sair da estrada nem aumentar a velocidade, nem podia retroceder. Sentiu a raiva crescer com a impotência. Alguns homens batiam no capô, nas laterais e nas janelas do Range Rover. Agora já havia um bando deles e os que estavam do lado de Azadeh provocavam-na, fazendo gestos obscenos, tentando abrir a porta. Um dos rapazes pulou no capô mas escorregou e caiu mas conseguiu sair do caminho antes que Erikki passasse por cima dele.
O ônibus da frente parou. Imediatamente, houve uma confusão frenética de passageiros que queriam entrar e outros que queriam sair. Então Erikki viu uma abertura, pisou no acelerador, atirando um homem no chão, ultrapassou o ônibus, quase atropelando os pedestres que andavam displicentemente pelo meio dos veículos, e entrou numa rua lateral que estava milagrosamente livre, acelerou e entrou em outra, evitou por pouco um bando de motocicletas e prosseguiu. Logo ficou inteiramente perdido, pois a única coisa igual nas cidades grandes ou pequenas eram os vira-latas, o lixo e o tráfego, mas ele se orientou pela sombra do sol e finalmente chegou numa rua mais larga, enfiou o carro no fluxo do tráfego, tornou a sair, e logo chegou a uma rua que reconheceu, uma rua que o levou para outra praça, em frente a outra mesquita e depois de volta à estrada de Teerã.
— Está tudo bem agora, Azadeh, eram apenas uns vândalos.
— Sim — respondeu, abalada. — Deviam ser chicoteados.
Erikki vinha observando as multidões próximas à mesquita, nas ruas e nos veículos, tentando encontrar uma pista para aquela hostilidade inesperada. Há algo de estranho, pensou. O que era? Então sentiu um vazio no estômago.
— Não vi nenhum soldado nem nenhum caminhão do Exército, desde que saímos de Tabriz. Nenhum. Você viu?
— Não, não vi.
— Alguma coisa aconteceu. Alguma coisa séria.
— Guerra? Os soviéticos invadiram a fronteira? — Seu rosto perdeu ainda mais a cor.
— Duvido. Haveria tropas indo para o norte, ou aviões. Não se preocupe — disse, mais para convencer a si mesmo. — Vamos nos divertir em Teerã, Xarazade está lá e também muitos amigos seus. Já estava na hora de você mudar um pouco. Talvez eu tire a licença a que tenho direito. Podíamos ir para a Finlândia por uma ou duas semanas...
Estavam saindo do centro da cidade e entrando nos subúrbios. Os subúrbios estavam em ruínas, com as mesmas casas e muros e ruas esburacadas. Aqui, a estrada para Teerã se alargava em quatro pistas, duas de cada lado, e embora o tráfego ainda estivesse lento e pesado, mal chegando a vinte quilômetros por hora, ele não se importou. Um pouco à frente, a estrada Abadan—Kermanshah bifurcava-se em direção a sudoeste, e ele sabia que ela escoaria bastante o tráfego. Automaticamente, seus olhos examinaram os mostradores da mesma forma que examinariam os instrumentos de sua cabine, e não foi a primeira vez que desejou estar voando, longe de toda aquela bagunça. O mostrador de gasolina registrava menos de um quarto. Em pouco tempo teria que reabastecer, mas isso não seria problema, com tanto combustível de reserva no carro.
Diminuíram a marcha para ultrapassar outro caminhão estacionado displicentemente perto de alguns vendedores de beira de estrada, o ar pesado com o cheiro do diesel. Então mais lixo surgiu não se sabe de onde e se espalhou pelo pára-brisa.
— Talvez fosse melhor voltarmos, Erikki e regressar a Tabriz. Talvez pudéssemos passar por fora de Qazvin.
— Não — disse, estranhando que ela estivesse amedrontada; normalmente, ela não tinha medo de nada. — Não — repetiu com mais delicadeza.
— Vamos para Teerã descobrir qual é o problema, depois decidiremos o que fazer.
Ela chegou mais para perto dele e pôs a mão no seu joelho.
— Aqueles vândalos me assustaram. Que Deus os amaldiçoe — murmurou, os dedos brincando nervosamente com o colar de turquesas que usava em volta do pescoço. A maioria das mulheres iranianas usava turquesas ou contas azuis, ou uma única pedra azul contra o mau-olhado. — Aqueles cães danados! Por que fizeram aquilo? Demônios. Que Deus os amaldiçoe eternamente! — Logo na saída da cidade havia um grande campo de treinamento do Exército e uma base aérea. — Por que não há soldados aqui?
— Eu também gostaria de saber.
O desvio para a estrada Abadan—Kermanshah surgiu à direita. Grande parte do tráfego se dirigia para lá. Cercas de arame farpado dividiam as duas estradas — como em quase todas as rodovias do Irã. As cercas eram necessárias para evitar que ovelhas, bodes, vacas, cachorros — e pessoas — atravessassem as estradas. Os acidentes eram muito freqüentes e a mortalidade alta.
Mas isso é normal para o Irã, pensou Erikki. Como aqueles pobres idiotas que caíram da encosta da montanha. Ninguém para tomar conhecimento, ninguém para comunicar o fato, ninguém para enterrá-los. Exceto os falcões, os animais selvagens e as matilhas de cães danados.
Com a cidade atrás deles, sentiram-se melhor. O campo tornou a surgir, mais uma vez os pomares para além do fosso e do arame farpado. As montanhas Elburz ao norte e os campos se ondulando para o sul. Mas em vez de andar mais depressa, as duas pistas ficaram ainda mais vagarosas e congestionadas, depois fundiram-se outra vez numa só, com mais batidas, gritaria e raiva. Cansado, ele xingou as inevitáveis obras que deviam estar causando a retenção, diminuiu a marcha, suas mãos e pés trabalhando automaticamente, mal notando o anda-pára, anda-pára, com os motores rangendo e esquentando, o barulho e a frustração crescendo em cada veículo. De repente, Azadeh apontou para a frente.
— Olhe!
Uns cem metros à frente havia uma barreira. Grupos de homens a cercavam. Alguns estavam armados, todos eram civis e estavam pobremente vestidos. A barreira ficava próxima a uma pequena aldeia, com barracas na margem da estrada e na campina do lado oposto. Aldeões, mulheres e crianças, se misturavam com os homens. Todas as mulheres usavam o chador negro ou cinzento. A cada carro que parava, papéis eram verificados para que o veículo tivesse permissão de passar. Vários carros tinham sido retirados da estrada e levados para a campina, onde grupos de homens interrogavam os ocupantes. Erikki viu mais armas no meio deles.
— Não são Faixas Verdes — disse.
— Não há nenhum mulá. Você está vendo algum?
— Não.
— Não são nem do Tudeh, nem mujhadins, nem fedayins.
— É melhor você ficar com a carteira de identidade preparada — e sorriu para ela. — Vista o casaco para não se resfriar quando eu abrir a janela, e ponha o chapéu. — Não era o frio que o preocupava. Era a curva dos seus seios, por baixo do suéter, a delicadeza da sua cintura e o seu cabelo solto.
No porta-luvas havia uma faca pukoh pequena, dentro de um estojo. Ele a escondeu na bota direita. A outra, a sua faca grande, estava por baixo do casaco, nas costas.
Quando finalmente chegou a vez deles, homens rudes e barbados cercaram o Range Rover. Alguns tinham rifles americanos, um tinha um AK47. Havia algumas mulheres, apenas rostos dentro do chador, que olharam para Azadeh com reprovação.
— Papéis — um dos homens disse em farsi, estendendo a mão, com um hálito fedorento, e o cheiro desagradável de roupas e corpos sujos invadiu o carro. Azadeh ficou olhando para a frente, tentando não prestar atenção aos olhares e comentários e na proximidade, a que não estava acostumada.
Educadamente, Erikki entregou sua carteira de identidade e a de Azadeh. O homem segurou-as, olhou-as e passou-as para um rapaz que sabia ler. Todos os outros esperaram em silêncio, observando, batendo com os pés por causa do frio. Finalmente, o rapaz disse em farsi:
— Ele é um estrangeiro de algum lugar chamado Finlândia. Vem de Tabriz. Não é americano.
— Ele parece americano — disse alguém.
— A mulher se chama Gorgon, ela é mulher dele... pelo menos é isso que está nos papéis.
— Eu sou mulher dele — disse Azadeh, rispidamente. — Se...
— Quem lhe perguntou alguma coisa? — O primeiro homem interrompeu-a rudemente. — O seu nome de família é Gorgon, que é um sobrenome de latifundiários, e o seu sotaque é sofisticado como os seus modos e é mais do que provável que você seja uma inimiga do povo.
— Eu não sou inimiga de ninguém. Por...
— Cale-se. As mulheres devem ter modos, devem ser castas e cobrir-se e ser obedientes mesmo num Estado socialista. — O homem se virou para Erikki. — Para onde vocês vão?
— O que foi que ele disse, Azadeh? — perguntou Erikki. Ela traduziu.
— Para Teerã — disse calmamente para o sujeito. — Azadeh, diga a ele que estamos indo para Teerã. — Tinha contado seis rifles e uma automática. Estava preso pelo tráfego, não havia nenhuma maneira de escapar. Ainda.
— Meu marido não fala farsi — acrescentou Azadeh, depois de traduzir.
— Como podemos ter certeza disso? E como vamos saber se vocês são mesmo casados? Onde está a certidão de casamento?
— Não está comigo. Na minha carteira de identidade está escrito que eu sou casada.
— Mas esta carteira é do tempo do xá. Uma carteira ilegal. Onde está sua carteira nova?
— Uma carteira dada por quem? Assinada por quem? — retrucou agressivamente. — Devolva os nossos documentos e nos deixe passar!
A firmeza dela perturbou-os. O homem hesitou.
— Você deve compreender que há muitos espiões e inimigos do povo que precisam ser apanhados...
Erikki podia sentir o coração batendo. Caras fechadas, pessoas da Idade Média. Feias. Mais homens se juntaram ao grupo que estava em volta deles. Um deles acenou raivosa e barulhentamente para os carros e caminhões que estavam atrás, mandando-os passar para serem examinados. Ninguém buzinava. Todo mundo esperava pacientemente a sua vez. E por cima de todo o barulho do tráfego, crescia um pavor silencioso.
— O que está havendo aqui? — Um homem atarracado abriu caminho através da multidão. Os outros lhe deram passagem respeitosamente. Sobre o ombro, trazia uma metralhadora tcheca. O outro explicou e entregou-lhe os papéis. O rosto do homem atarracado era redondo e barbado, seus olhos escuros e suas roupas pobres e sujas. Um tiro foi disparado de repente e todas as cabeças se viraram para a campina.
Um homem estava caído no chão ao lado de um carro pequeno que tinha sido retirado da estrada. Um dos rebeldes debruçava-se sobre ele com uma automática na mão. O outro passageiro fora empurrado contra o carro, com as mãos em cima da cabeça. De repente, ele conseguiu se livrar e correu. O homem que tinha a arma levantou-a e atirou, errou e tornou a atirar. Desta vez o homem que corria gritou e caiu, gemendo em agonia, tentando se arrastar, sem poder mais mexer com as pernas. Lentamente, o homem com o revólver foi até lá, esvaziou o tambor em cima dele, matando-o aos poucos.
— Ahmed! — gritou o homem atarracado. — Por que desperdiçar balas quando podia fazer isso com suas botas? Quem são eles?
— Savak! — Um murmúrio de satisfação percorreu a multidão e os aldeões, e alguém bateu palmas.
— Idiota! Então por que matá-los tão depressa? Traga-me os papéis deles.
— Os cães tinham papéis dizendo que eram negociantes de Teerã, mas eu conheço um Savak quando o vejo. Você quer os papéis falsos?
— Não. Rasgue-os. — O homem atarracado tornou a virar-se para Erikki e Azadeh. — É assim que os inimigos do povo serão exterminados.
Ela não respondeu. As identidades deles estavam naquelas mãos pegajosas, E se os nossos papéis também forem considerados falsos? Insha'Allah!
Quando o homem atarracado terminou de examinar as identidades, ele encarou Erikki. Depois a ela.
— Você afirma ser Azadeh Gorgon Yokkonen... mulher dele?
— Sim.
— Ótimo. — Ele enfiou as identidades deles no bolso e fez um sinal com o polegar em direção à campina. — Diga a ele para guiar até lá. Vamos revistar o carro.
— Mas o...
— Faça isso. AGORA! — O homem atarracado subiu no pára-lama, com as botas arranhando a pintura. — O que é aquilo? — perguntou, apontando para a cruz azul sobre fundo branco que estava pintada no teto.
— É a bandeira finlandesa — disse Azadeh. — Meu marido é finlandês.
— Por que ela está lá?
— Porque ele gosta.
O homem atarracado cuspiu, depois tornou a apontar na direção da campina.
— Depressa! Para lá. — Quando chegaram num lugar vazio, com a multidão atrás, ele desceu. — Fora. Quero revistar o carro para ver se tem armas e contrabando.
— Nós não temos nem armas nem...
— Fora! E você, mulher, guarde a língua! — As velhas da multidão o apoiaram. Ele fez um sinal, iradamente, para os dois corpos abandonados na lama. — A justiça do povo é rápida e definitiva, não se esqueça disso. — Apontou para Erikki. — Diga ao gigante do seu marido o que eu falei. Se é que ele é seu marido.
— Erikki, ele está dizendo que a justiça... que a justiça do povoe rápida c definitiva e que não se esqueça disso. Tome cuidado, meu querido. Nós, nós temos que sair do carro. Eles querem revistá-lo.
— Está bem. Mas saia pelo meu lado.
Elevando-se acima da multidão, Erikki saiu. Protetoramente, pôs o braço em volta dela, com homens, mulheres e algumas crianças cercando-os, deixando-lhes pouco espaço. O fedor de corpos sujos era esmagador. Ele podia senti-la tremer, por mais que tentasse ocultá-lo. Juntos, viram o homem atarracado e outros subirem no carro impecável, pisando nos assentos com suas botas enlameadas. Outros destrancaram a porta de trás, tirando e espalhando negligentemente as coisas deles, mãos sujas mexendo em bolsos, abrindo tudo — as malas dele e as dela. Então um dos homens exibiu as roupas de baixo e as camisolas finas de Azadeh para os assovios e zombarias da multidão. As velhas resmungaram sua desaprovação. Uma delas esticou a mão e tocou-lhe o cabelo. Azadeh recuou mas os que estavam atrás não se afastaram. Imediatamente, Erikki se moveu para ajudar, mas a massa não saiu do lugar, embora os que estavam perto dele tenham gritado, quase esmagados, e seus gritos enfureceram os outros que se aproximaram ainda mais, ameaçadoramente, gritando com ele.
De repente, Erikki percebeu, pela primeira vez, que não podia proteger Azadeh. Sabia que podia matar uma dúzia antes que o dominassem e o matassem, mas isso não a protegeria.
Isso o abalou profundamente.
Suas pernas ficaram fracas e ele sentiu uma vontade incontrolável de urinar, o cheiro do seu próprio medo o sufocou e teve que lutar contra o pânico que o invadia. Entorpecido, observou seus pertences serem profanados. Alguns homens se afastavam com os galões de gasolina que eram vitais para eles, sem os quais nunca chegariam a Teerã, uma vez que todos os postos de gasolina estavam em greve. Tentou obrigar as pernas a se mexerem, mas elas não funcionaram, nem sua boca. Então uma das velhas gritou com Azadeh que sacudiu a cabeça como se estivesse tonta, e os homens gritaram junto, empurrando-os, fechando o cerco em volta deles, com seu cheiro fétido enchendo-lhes as narinas, os ouvidos dele entupidos de farsi.
O braço de Erikki ainda estava em volta dela, e no meio do barulho Azadeh olhou para cima e ele percebeu o seu terror, mas não conseguiu ouvir o que ela estava dizendo. Novamente tentou abrir mais espaço para os dois, mas tornou a fracassar. Desesperado, procurou conter o pânico selvagem, claustrofóbico e o desejo crescente de lutar que estavam começando a tomar conta dele, sabendo que se começasse, isso iniciaria o tumulto que os destruiria. Mas não pôde conter-se e atacou cegamente com o cotovelo livre, no exato momento em que uma camponesa robusta, com olhos estranhos e raivosos abriu caminho pela multidão e atirou o chador no peito de Azadeh, despejando um paroxismo de farsi em cima dela, distraindo a atenção do homem que caíra atrás dele, e que agora estava deitado sob seus pés, com o peito amassado pelo golpe de Erikki.
A multidão berrava com ela e com ele, dizendo a ela para pôr o chador, e Azadeh gritava: — Não, não, deixem-me me paz... — completamente desorientada. Durante toda a sua vida, nunca fora ameaçada daquela maneira, nunca estivera no meio de uma multidão como aquela, nunca estivera tão perto de camponeses, nem nunca sentira tanta hostilidade.
— Vista-o, meretriz...
— Em nome de Deus, vista o chador...
— Não em nome de Deus, mulher, em nome do povo...
— Deus é grande, obedeça a palavra...
— Dane-se Deus, em nome da revolução...
— Cubra seu cabelo, rameira e filha de uma rameira...
— Obedeça ao Profeta cujo nome seja louvado...
Os gritos e as vaias aumentaram, pés pisavam o homem que estava morrendo no chão, então alguém puxou o braço de Erikki que ainda estava em volta de Azadeh e ela sentiu que a outra mão dele procurava a faca grande e gritou:
— Não, Erikki, não, eles vão matá-lo...
Em pânico, empurrou a camponesa e vestiu o chador, repetindo "Allah-u Akbarr" e isso abrandou um pouco os que estavam perto, as vaias diminuíram, embora as pessoas de trás continuassem empurrando para ver melhor, amassando os outros de encontro ao Range Rover. Naquela confusão, Azadeh e Erikki ganharam um pouco mais de espaço em volta, embora ainda estivessem encurralados. Ela não o olhou, simplesmente agarrou-se nele, tremendo como um cachorrinho apavorado, envolvida naquela mortalha grosseira. Houve uma gargalhada quando um dos homens colocou o sutiã dela no próprio peito e desfilou afetadamente.
O vandalismo continuou até que, subitamente, Erikki sentiu alguma coisa diferente em volta deles. O homem atarracado e seus seguidores tinham parado e estavam olhando fixamente na direção de Qazvin. Enquanto os observava, viu que se misturavam com a multidão. Em questão de segundos tinham desaparecido. Outros homens perto da barreira estavam entrando nos carros e arrancavam rápido em direção à estrada de Teerã. Agora os aldeões também olhavam na direção da cidade, depois os outros, até que toda a multidão ficou paralisada. Aproximando-se pela estrada, em meio às fileiras de veículos, vinha um outro grupo de homens, conduzidos por mulás. Alguns mulás e muitos homens estavam armados.
— Allah-u Akbar — gritavam. — Deus e Khomeiiini! — e depois começaram a correr, atacando a barreira.
Soaram tiros, o fogo foi respondido pelo pessoal da barreira e as forças opostas se enfrentaram com pedaços de pau, pedras, barras de ferro e alguns revólveres. O resto da multidão se espalhou. Os aldeões correram para a proteção de suas casas, os motoristas e passageiros fugiram dos carros, correram para as valas ou se lançaram ao chão.
Os gritos, os tiros, o barulho do conflito tiraram Erikki de sua paralisia. Empurrou Azadeh em direção ao carro, apanhando apressadamente seus pertences que estavam mais próximos, atirando-os na mala do carro e batendo a porta. Uma meia dúzia de aldeões começaram também a recolher as coisas, mas eles os tirou do caminho com um empurrão, pulou para o banco do motorista, deu a partida, manobrou e saiu em disparada pela campina, costeando a estrada. Bem na frente, à direita, viu o homem atarracado, com três dos seus seguidores, entrando num carro e se lembrou que ainda estavam com seus documentos. Durante um segundo pensou em parar, mas rejeitou a idéia e manteve o curso em direção às árvores que margeavam a estrada. Mas então viu o homem atarracado tirar a metralhadora do ombro, apontar e atirar. A rajada foi um pouco alta e Erikki, com os reflexos estimulados pelo ódio, deu um golpe na direção e enfiou o pé no acelerador, enquanto o homem recarregava a arma. O pára-choque maciço do carro atirou o homem de encontro à lataria, esmagando-o, e a metralhadora continuou atirando até acabarem as balas, que furaram o metal, estilhaçando o pára-brisa, com o Range Rover funcionando como um aríete. Furioso, Erikki deu marcha à ré e tornou a atacar, passando por cima dos destroços, achatando-os, e teria saído e continuado a carnificina com as próprias mãos, mas nesse momento viu pelo espelho retrovisor que havia homens correndo na direção deles, então manobrou e fugiu.
O Range Rover fora construído para aquele tipo de terreno, com os pneus para neve aderindo à superfície acidentada. Em poucos instantes, estavam no meio das árvores e fora de alcance, e ele virou em direção à estrada, mudou de marcha, travou os diferenciais e subiu por cima do fosso, arrebentando a cerca de arame farpado. Uma vez na estrada, destravou os diferenciais, mudou de marcha e foi embora depressa.
Só quando já estava bem longe foi que a nuvem de sangue saiu dos seus olhos. Apavorado, ele se lembrou da rajada de balas caindo em cima do carro, e que Azadeh estava com ele. Em pânico, procurou-a com os olhos. Mas ela estava bem, embora paralisada de medo e encolhida no assento, agarrada nele com as duas mãos. Havia buracos de bala no vidro e no teto do carro, mas Azadeh nada sofrerá, embora, por um segundo, não conseguisse reconhecê-la, vendo apenas um rosto iraniano enfeiado pelo chador — como qualquer um das dezenas de milhares que se viam no meio da multidão.
— Oh, Azadeh — murmurou, e puxou-a para ele, guiando com uma só mão. Em seguida, diminuiu a marcha, parou no acostamento e abraçou-a enquanto os soluços a sacudiam. Não notou que o marcador de gasolina indicava que o tanque estava quase vazio nem que o tráfego aumentava, nem os olhares hostis dos passantes, nem que muitos carros transportavam revolucionários para Teerã.
EM ZAGROS TRÊS: 15:18H. Os quatro homens estavam deitados em tobogãs, descendo a encosta atrás da base, com Scot Gavallan um pouco à frente de Jean-Luc Sessonne, que estava lado a lado com Nasiri, o gerente da base e com Nitckak Khan uns vinte metros atrás. Era uma corrida organizada por Jean-Luc, o Irã contra o Mundo, e todos quatro tentavam excitadamente aumentar a velocidade. A neve parecia uma poeira branca — uma neve muito leve em cima de uma camada dura de gelo — e sem trilha. Todos tinham subido até o cume atrás da base, com Rodrigues e um aldeão como juízes da partida. O prêmio para o vencedor era de cinco mil riais — cerca de sessenta dólares — e uma das garrafas de uísque de Lochart:
— Tom não vai se importar — dissera Jean-Luc, com imponência. — Ele está tirando uma licença extra, gozando das delícias de Teerã, enquanto temos que ficar na base! E não sou eu que estou no comando? É claro. Este comandante está requisitando a garrafa para a glória da França, o bem das minhas tropas e para os nossos gloriosos senhores, os Yazdek Kash'kais — acrescentara, sob aplausos generalizados.
Era uma linda tarde de sol, a dois mil e quinhentos metros de altura, o céu sem nuvens e muito azul, o ar gelado. Durante a noite, a neve tinha parado de cair. Nevara desde que Lochart partira para Teerã, há três dias. Agora a base e as montanhas em volta eram um reino encantado de pinheiros, neve e cumes que atingiam quatro mil metros de altura — com cerca de setenta centímetros de neve fresca.
À medida que os competidores desciam, a encosta ficava mais íngreme, com algumas saliências encobertas fazendo-os pular de vez em quando. Ganharam velocidade, quase desaparecendo às vezes, sob o esguichos de neve, todos alegres e determinados a vencer.
Na frente, agora, havia um grupo de pinheiros. Scot freou habilmente, com a ponta das botas de esqui, agarrando os suportes curvos da frente com as mãos enluvadas, e contornou graciosamente as árvores, depois fez uma curva e começou a descer o último declive em direção à linha de chegada, onde o resto da base e os aldeões aplaudiam e gritavam. Nasiri e Jean-Luc frearam uma fração de segundo depois, contornaram as árvores uma fração de segundo mais depressa e fizeram a curva em meio a uma cascata de neve, alcançando-o, fazendo com que a diferença entre os três ficasse mínima.
Nitchak Khan não freou nem se desviou. Ele se entregou a Deus pela centésima vez, fechou os olhos e entrou no meio dos pinheiros.
— lnsha'Allahhhh!
Passou a poucos centímetros da primeira árvore, mais perto ainda da seguinte, abriu os olhos bem a tempo de evitar por um centímetro uma colisão, arrancou uma dúzia de galhos ganhando velocidade, voou pelos ares ao passar por uma saliência, evitando milagrosamente uma árvore caída e...
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