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EM ZAGROS TRÊS: 15:18H. Os quatro homens estavam deitados em tobogãs, descendo a encosta atrás da base, com Scot Gavallan um pouco à frente de Jean-Luc Sessonne, que estava lado a lado com Nasiri, o gerente da base e com Nitckak Khan uns vinte metros atrás. Era uma corrida organizada por Jean-Luc, o Irã contra o Mundo, e todos quatro tentavam excitadamente aumentar a velocidade. A neve parecia uma poeira branca — uma neve muito leve em cima de uma camada dura de gelo — e sem trilha. Todos tinham subido até o cume atrás da base, com Rodrigues e um aldeão como juízes da partida. O prêmio para o vencedor era de cinco mil riais — cerca de sessenta dólares — e uma das garrafas de uísque de Lochart:
— Tom não vai se importar — dissera Jean-Luc, com imponência. — Ele está tirando uma licença extra, gozando das delícias de Teerã, enquanto temos que ficar na base! E não sou eu que estou no comando? É claro. Este comandante está requisitando a garrafa para a glória da França, o bem das minhas tropas e para os nossos gloriosos senhores, os Yazdek Kash'kais — acrescentara, sob aplausos generalizados.
Era uma linda tarde de sol, a dois mil e quinhentos metros de altura, o céu sem nuvens e muito azul, o ar gelado. Durante a noite, a neve tinha parado de cair. Nevara desde que Lochart partira para Teerã, há três dias. Agora a base e as montanhas em volta eram um reino encantado de pinheiros, neve e cumes que atingiam quatro mil metros de altura — com cerca de setenta centímetros de neve fresca.
À medida que os competidores desciam, a encosta ficava mais íngreme, com algumas saliências encobertas fazendo-os pular de vez em quando. Ganharam velocidade, quase desaparecendo às vezes, sob o esguichos de neve, todos alegres e determinados a vencer.
Na frente, agora, havia um grupo de pinheiros. Scot freou habilmente, com a ponta das botas de esqui, agarrando os suportes curvos da frente com as mãos enluvadas, e contornou graciosamente as árvores, depois fez uma curva e começou a descer o último declive em direção à linha de chegada, onde o resto da base e os aldeões aplaudiam e gritavam. Nasiri e Jean-Luc frearam uma fração de segundo depois, contornaram as árvores uma fração de segundo mais depressa e fizeram a curva em meio a uma cascata de neve, alcançando-o, fazendo com que a diferença entre os três ficasse mínima.
Nitchak Khan não freou nem se desviou. Ele se entregou a Deus pela centésima vez, fechou os olhos e entrou no meio dos pinheiros.
— lnsha'Allahhhh!
Passou a poucos centímetros da primeira árvore, mais perto ainda da seguinte, abriu os olhos bem a tempo de evitar por um centímetro uma colisão, arrancou uma dúzia de galhos ganhando velocidade, voou pelos ares ao passar por uma saliência, evitando milagrosamente uma árvore caída e voltou ao chão batendo com o peito com tal força que ficou sem fôlego. Mas se segurou, empinando, deslizou em direção a um dos competidores por um instante, depois recuperou o equilíbrio e voou para fora da floresta mais depressa do que os outros, numa linha mais reta do que os outros, dez metros na frente dos outros, com todos os aldeões berrando entusiasticamente.
Os quatro agora convergiam, agarrados nos tobogãs, procurando aumentar ao máximo a velocidade, Scot, Nasiri e Jean-Luc aproximando-se cada vez mais de Nitchak Khan. Ali, a neve não estava tão boa e algumas pequenas saliências os fizeram pular, obrigando-os a se segurarem com mais força. Mais duzentos metros, cem — os homens da base e os aldeões gritando e pedindo a Deus pela vitória — oitenta, setenta, sessenta, cinqüenta e então...
Havia uma pedra grande bem escondida. Estando na liderança, Nitchak Khan foi o primeiro a se descontrolar e cair, perdendo a respiração, depois Scot e Jean-Luc voaram e se esparramaram, com seus tobogãs lançando nuvens de flocos de neve. Nasiri tentou desesperadamente se desviar deles e da pedra, e inclinou o tobogã, derrapando violentamente e despencando pela encosta até parar um pouco à frente dos outros, também sem fôlego.
Nitchak Khan se ergueu e limpou a neve do rosto e da barba.
— Louvado seja Deus — murmurou, estarrecido por não estar com nenhum membro quebrado, e olhou em volta, à procura dos outros. Estes também estavam-se levantando, Scot morrendo de rir de Jean-Luc que também estava ileso mas que continuava deitado de costas, gritando palavrões em francês. Nasiri tinha entrado de cabeça num monte de neve e Scot, ainda rindo, foi ajudá-Io. Ele também estava só um pouco avariado, mas sem nada de grave.
— Ei, vocês aí em cima — alguém gritava lá de baixo. Era Effer Jordon.
— E essa maldita corrida? Ainda não terminou.
— Vamos, Scot. Vamos, Jean-Luc, pelo amor de Deus!
Scot esqueceu Nasiri e começou a correr em direção à chegada, uns cinqüenta metros adiante, mas escorregou e caiu na neve pesada, levantou-se e tornou a escorregar, os pés pesando como chumbo. Jean-Luc se ergueu e saiu correndo atrás dele, seguido de perto por Nasiri e Nitchak Khan. Os gritos da multidão redobraram à medida que os homens lutavam contra a neve, caindo, engatinhando, levantando e tornando a cair no terreno difícil, esquecidos das dores. Scot ainda estava um pouco à frente.
— Vamos Nitchak Khan, vamos, Jean-Luc, vamos Nasiri — o mecânico Fowler Joines, com a cara vermelha, os animava, acompanhado dos aldeões.
Mais dez metros. O velho Khan estava um metro na frente quando tropeçou e caiu de cara no chão. Scot passou à frente, com Nasiri quase do lado e Jean-Luc poucos centímetros atrás. Todos corriam com dificuldades, escorregando, tropeçando, arrancando com esforço suas botas da neve fofa. Então todo mundo começou a gritar quando Nitchak Khan se pôs a engatinhar pela neve nos últimos metros, e Jean-Luc e Scot deram um mergulho desesperado em direção à linha de chegada, e todos eles se estatelaram num monte de neve em meio a gritos e aplausos.
— Scot venceu...
— Não, foi Jean-Luc...
— Não, foi o velho Nitchak...
Depois de recuperar o fôlego, Jean-Luc disse:
— Já que não há nenhuma opinião definida e que até o nosso venerável mulá não tem certeza, eu, Jean-Luc, declaro Nitchak Khan o vencedor, por um nariz de vantagem. — Houve aplausos que aumentaram quando ele acrescentou: — E como os derrotados perderam bravamente, eu os recompensarei com outra das garrafas de uísque de Tom, que ordeno que seja dividida entre todos os estrangeiros ao cair da tarde.
Todo mundo apertou a mão de todo mundo. Nitchak Khan concordou com uma corrida no mês seguinte e, como ele obedecia à lei e não bebia, regateou avaramente mas vendeu o uísque que ganhara para Jean-Luc pela metade do seu valor. Todo mundo tornou a aplaudir e, de repente, alguém deu um grito de alerta.
Na direção norte, lá no alto das montanhas, um clarão vermelho caiu na direção do vale. O silêncio foi imediato. O clarão desapareceu. Depois um outro surgiu e tornou e cair: SOS urgente.
— Emergência — disse Jean-Luc, apertando os olhos para ver melhor.
— Deve ser na plataforma Rosa ou na plataforma Bellissima.
— Já vou indo — Scot Gavallan saiu apressado.
— Vou com você — disse Jean-Luc. — Vamos levar um 212 e acompanhá-lo num vôo de verificação.
Em poucos minutos já estavam no ar. A plataforma Rosa era uma das plataformas que eles tinham conseguido através do antigo contrato da Guerney, Bellissima era uma das regulares. Todas as onze plataformas daquela área tinham sido instaladas por uma companhia italiana para a IranOil, e embora todas fossem ligadas por rádio com Zagros Três, a conexão nem sempre era possível por causa das montanhas e da estática. Os foguetes de sinalização eram um substituto.
O 212 subiu com estabilidade, passando dos três mil e quinhentos metros, com os vales cobertos de neve brilhando à luz do sol. O teto operacional deles era seis mil metros, dependendo da carga. Agora a plataforma Rosa estava bem à frente, numa clareira sobre um pequeno platô a três mil e oitocentos metros. Havia apenas uns poucos trailers para moradia e galpões espalhados ao acaso em volta da torre. E um heliporto.
— Plataforma Rosa, aqui é Jean-Luc. Está me ouvindo? — Esperou pacientemente.
— Alto e claro, Jean-Luc! — Era a voz alegre de Mimmo Sera, o homem da companhia, o posto mais elevado no campo, um engenheiro encarregado de todas as operações. — O que vocês têm para nós, hein?
— Niente, Mimmo! Vimos um clarão vermelho e estamos verificando.
— Madonna, emergência? Não fomos nós. — Imediatamente, Scot interrompeu a aproximação, fez uma curva e dirigiu-se para o novo alvo, subindo mais. — Bellissima?
— Vamos checar.
— Mantenha-nos informados, hein? Não conseguimos contato com vocês desde a última tempestade. Quais são as últimas novidades?
— As últimas notícias que tivemos foram há dois dias atrás: A BBC noticiou que em Doshan Tappeh os Imortais tinham sufocado uma rebelião de cadetes da Força Aérea e de civis. Não temos notícias do nosso QG em Teerã nem de mais ninguém. Se tivermos notícias, passo um rádio para vocês.
— Eh, rádio! Jean-Luc, vamos precisar de mais 12 carregamentos de canos de seis polegadas e a quantidade normal de cimento a partir de amanhã, OK?
— Bien sür! — Jean-Luc ficou encantado com o serviço extra e com a oportunidade de provar que eles eram melhores do que a Guerney. — Como vão as coisas?
— Perfuramos até dois mil e quinhentos metros e tudo indica que vai ser outra mina. Quero correr o poço na próxima segunda-feira, se possível. Será que você podia chamar a Schlumberger para mim?
Schlumberger era uma firma de renome internacional, que fabricava e fornecia equipamentos para coletar amostras e medir eletronicamente, com enorme precisão, a quantidade de petróleo que o poço poderia fornecer e a qualidade das diversas camadas, instrumentos para guiar as brocas, instrumentos para retirar brocas quebradas, instrumentos para perfurar, por explosão, o revestimento de aço do buraco para que o petróleo pudesse fluir no interior do cano, além dos especialistas que os utilizam. Extremamente caro, mas absolutamente necessário. 'Correr um poço' era a última tarefa antes de cimentar o revestimento de aço no lugar e fazer o poço jorrar.
— Onde quer que eles estejam, Mimmo, nós os traremos na segunda-feira... se Khomeini quiser.
— Mamma mia, diga a Nasiri que precisamos deles. A transmissão estava ficando cada vez mais fraca.
— Não há problema. Chamo você quando estiver voltando. — Jean-Luc olhou para fora da cabine, Estavam voando sobre um dos picos, ainda subindo, com os motores começando a vibrar. — Merde, estou com fome — disse, e se espreguiçou no assento. — Eu me sinto como se tivesse sido massageado por uma perfuratriz, mas foi uma grande corrida.
— Você sabe, Jean-Luc, você chegou na linha um segundo antes de Nitchak Khan. Pelo menos.
— É claro, mas nós franceses somos magnânimos, diplomatique, e muito práticos. Eu sabia que ele nos revenderia o nosso uísque pela metade do preço; se ele fosse declarado perdedor, isso nos teria custado uma fortuna. — Jean-Luc riu. — Mas se não fosse por aquela pedra, eu não teria hesitado. Teria vencido facilmente.
Scot sorriu e não disse nada, respirando com facilidade, mas consciente da sua respiração. Acima de quatro mil metros, de acordo com o regulamento, os pilotos deveriam usar máscaras de oxigênio se fossem ficar lá em cima por mais de meia hora. Mas eles nunca carregavam nenhuma e, até agora, nenhum piloto tinha sentido qualquer outro desconforto além de uma dor de cabeça, embora levasse uma semana mais ou menos para a pessoa se acostumar a viver a dois mil e quinhentos metros de altura. Era mais duro para os trabalhadores de Bellissima.
As paradas deles em Bellissima costumavam ser muito curtas. Apenas se arrastavam até lá com uma carga de, no máximo, duas toneladas. Canos, bombas, diesel, guinchos, geradores, produtos químicos, comida, trailers, tanques, homens e lama — o nome genérico dado ao líquido que era bombeado para dentro do poço para remover resíduos, para manter a broca lubrificada, para controlar o óleo ou o gás, e sem o qual era impossível uma perfuração profunda. Depois saíam de lá, leves ou com uma carga completa de homens ou de equipamentos para serem reparados ou substituídos.
Nós não passamos de um caminhão de entregas, pensou Scot, seus olhos examinando o céu, os instrumentos e tudo em volta. Sim, mas que maravilha estar voando e não dirigindo. Embaixo, os penhascos estavam bem próximos, a linha das árvores ficara para trás há muito tempo. Eles ultrapassaram o último cume. Agora podiam ver o poço.
— Bellissima, aqui é Jean-Luc, estão me ouvindo?
A plataforma Bellissima era a mais alta da cordilheira, ficava exatamente 4.100 metros acima do nível do mar. A base estava encarapitada numa saliência, logo abaixo do topo. Do outro lado da saliência, a montanha descia dois mil metros, quase a prumo, até um vale de 16 mil quilômetros de largura por cinqüenta quilômetros de comprimento, um enorme talho na superfície da terra.
— Bellissima, aqui é Jean-Luc. Estão me ouvindo? Ainda nenhuma resposta. Jean-Luc mudou de canal.
— Zagros Três, está me ouvindo?
— Alto e claro, capitão — veio a resposta imediata do seu operador de rádio iraniano, Aliwari. — Excelência Nasiri está aqui ao meu lado.
— Espere nesta freqüência. A emergência é em Bellissima, mas não conseguimos nenhum contato pelo rádio. Vamos pousar.
— Roger. Esperando.
Como sempre acontecia em Bellissima, Scot ficou maravilhado com a monumental convulsão geológica que criara o vale. E, como todos que visitavam este poço, mais uma vez pensou na enormidade do risco, do esforço e do dinheiro necessários para encontrar o campo de petróleo, escolher o lugar, levantar a torre e perfurar milhares de metros para tornar os poços lucrativos. Mas eles o eram, extremamente lucrativos, assim como toda esta enorme área com seus vastos depósitos de óleo e gás, encurralados em cones de calcário, dois a três mil metros abaixo da superfície. E mais um enorme investimento e um enorme risco para ligar este campo ao oleoduto que cavalgava as montanhas Zagros, unindo as refinarias de Isfahan, no centro do Irã às de Abadan, no golfo — outro extraordinário feito de engenharia da velha Companhia de Petróleo Anglo-lraniana, agora nacionalizada e rebatizada de IranOil. "Roubada, Scot, meu rapaz, roubada é a palavra certa", seu pai dissera muitas vezes. Scot Gavallan sorriu consigo mesmo, pensando em seu pai, com um sentimento de afeto. Tenho muita sorte em tê-lo, pensou. Ainda sinto falta de mamãe, mas foi melhor que ela tivesse morrido. É terrível para uma mulher ativa e bonita se tornar um corpo impotente, paralítico, e com a mente intacta até o fim, e ela foi a melhor mãe que uma pessoa poderia desejar. Foi uma tragédia a morte dela, principalmente para papai. Mas estou feliz por ele ter se casado de novo, Maureen é um barato, papai é um barato, minha vida é ótima e o futuro cor-de-rosa. Ainda tenho muito tempo para voar, um bocado de garotas, e dentro de dois anos eu me caso: que tal Tess? Seu coração acelerou. É uma droga que Linbar seja tio dela e que ela seja a sua sobrinha favorita, mas por sorte não tenho nada a ver com ele, ela só tem dezoito anos, então ainda temos muito tempo.
— De que lado você vai pousar, mon vieux? — ouviu através dos fones
— Vou descer pelo lado oeste — disse, voltando à realidade.
— Ótimo. — Jean-Luc estava tentando ver alguma coisa. Não havia nenhum sinal de vida. O lugar estava todo coberto de neve, quase enterrado. Só o heliporto estava limpo. Rolos de fumaça saíam dos trailers. — Ah! Veja!
Viram a figura de um homem, todo agasalhado, em pé perto do heliporto e acenando para eles.
— Quem é?
— Acho que é Pietro. — Scot concentrara-se no pouso. Naquela altitude e por causa da posição sobre a saliência, havia rajadas súbitas de vento, turbulências e redemoinhos, não se podia errar. Ele se aproximou por cima do abismo, com os redemoinhos fazendo-os balançar, depois corrigiu o aparelho com precisão e pousou.
— Ótimo. — Jean-Luc voltou sua atenção para o homem agasalhado que agora reconhecia como sendo Pietro Fieri, um dos chefes da plataforma, o segundo em importância depois do homem da companhia. Eles o viram fazer um gesto com a mão como se estivesse cortando a garganta, o sinal para desligar os motores, indicando que a emergência não exigia uma decolagem imediata. Jean-Luc fez sinal para o homem se aproximar da janela e a abriu. — Qual é o problema, Pietro? — gritou por sobre o barulho dos motores.
— Guineppa está doente — Pietro gritou em resposta. Mario Guineppa era o 'homem da companhia'. E Pietro bateu com a mão no lado esquerdo do peito. — Nós achamos que pode ser o coração. E isso não é tudo. Olhe lá! — Ele apontou para cima. Scot e Jean-Luc levantaram a cabeça para ver melhor mas não conseguiram ver o que o deixava tão agitado
Jean-Luc saltou. O frio o atingiu e ele apertou os olhos que se encheram de água por causa dos redemoinhos provocados pelos rotores, os óculos escuros não ajudando grande coisa. Então ele viu o problema e seu estômago deu um salto. A algumas centenas de metros próximo ao cume, e exatamente em cima do acampamento, havia um enorme bloco de neve e gelo.
— Madonna!
— Se isso se soltar, vai causar uma enorme avalanche por toda a encosta e talvez nos leve junto e a tudo o que existe no vale. — O rosto de Pietro estava azulado do frio. Ele era gordo e muito forte, tinha uma barba grisalha e seus olhos castanhos e perspicazes estavam apertados por causa do vento. — Guineppa quer conversar com você. Venha até o trailer dele, sim?
— E aquilo? — Jean-Luc fez sinal com o polegar para cima.
— Se descer, desceu — Pietro disse com uma risada, seus dentes muito brancos contrastando com a cor do seu casaco manchado de óleo. — Vamos!
— Afastou-se do helicóptero, agachado e saiu andando. — Vamos!
Jean-Luc analisou, inquieto, o bloco de gelo. Aquilo podia ficar lá por várias semanas ou cair a qualquer momento. Acima do cume o céu estava límpido, mas o calor que vinha do sol da tarde era muito fraco.
— Fique aqui, Scot, mantenha-o ligado — gritou, e então seguiu Pietro, com dificuldade, através da neve.
O trailer de dois cômodos de Mario Guineppa estava aquecido e desarrumado, havia mapas nas paredes, roupas manchadas de óleo, luvas e chapéus pendurados em cabides, além de toda a parafernália de quem trabalhava com petróleo espalhada pelo escritório/sala de estar. Ele estava no quarto, deitado na cama, completamente vestido a não ser pelas botas, um homem alto e grande de 45 anos, com um nariz imponente, geralmente corado e resistente, mas agora pálido, com os lábios estranhamente azulados. O chefe do outro turno, Enrico Banastasio, estava com ele — um homenzinho moreno, de olhos escuros e rosto fino.
— Ah, Jean-Luc! Que bom ver você — disse Guineppa, com uma voz cansada.
— Eu digo o mesmo, mon ami.
Muito preocupado, Jean-Luc abriu sua jaqueta de vôo e sentou-se ao lado da cama. Guineppa era o responsável por Bellissima há dois anos — doze horas de trabalho, doze de descanso, dois meses lá, dois de licença — conseguira três poços muito produtivos, com espaço para perfurar mais quatro. — Você vai para o hospital em Shiraz.
— Isso não é importante, primeiro temos que cuidar daquele bloco. Jean-Luc, eu estava...
— Evacuaremos o lugar e deixaremos aquele stronzo nas Mãos de Deus — disse Banastasio.
— Mamma mia, Enrico — retrucou Guineppa, irritado. — Torno a dizer que acho que podemos dar uma ajuda a Deus, com a ajuda de Jean-Luc. Pietro concorda. Hein, Pietro?
— Sim — disse Pietro da porta, com um palito na boca. — Jean-Luc, eu fur criado em Aosta, nos Alpes italianos, então eu entendo de montanhas e de avalanches eacho..
— Si, e seipazzo, sim, e você é maluco — disse rispidamente Banastasio.
— Nel tuo culo, no teu cú — Pietro fez um gesto obsceno. — Com a sua ajuda, Jean-Luc, é fácil deslocar aquele stronzo.
— O que você quer que eu faça? — perguntou Jean-Luc.
— Leve Pietro e sobrevoe o cume, até um lugar que ele vai-lhe mostrar, na face norte. Ele vai atirar uma banana de dinamite na neve, de lá, e isso afasta o perigo daqui — respondeu Guineppa.
— Basta isso e o bloco desaparece. — Pietro sorriu radiante.
— Pelo amor de Deus, vou tornar a repetir que é muito arriscado. Nós deveríamos evacuar primeiro. Depois, se você quiser, experimente a sua dinamite — disse Banastasio ainda com mais raiva, com seu inglês de sotaque americano.
O rosto de Guineppa crispou-se de dor. Ele levou uma das mãos ao peito.
— Se evacuarmos, teremos que fechar tudo e...
— E daí? Então fechamos. E daí? Se você não liga para sua própria vida, pense nos outros. Eu sou a favor da evacuação imediata. Depois dinamitar. Jean-Luc, não é mais seguro?
— É claro que é mais seguro — respondeu cautelosamente Jean-Luc, sem querer agitar ainda mais o doente. — Pietro, você diz que entende de avalanches. Quanto tempo esta vai agüentar?
— Meu nariz diz que vai acontecer logo. Há rachaduras por baixo. Talvez amanhã, talvez esta noite. Eu sei onde dinamitar. E é muito seguro. — Pietro olhou para Banastasio. — Posso fazê-lo, não importa o que esse stronzo ache.
— Jean-Luc, eu e o meu pessoal vamos sair. Imediatamente. O que quer que se decida. — Banastasio levantou-se e saiu.
— Jean-Luc, leve Pietro lá para cima. Agora. — Pediu Guineppa, virando-se na cama.
— Antes nós vamos levar todo mundo para a plataforma Rosa, e você vai ser o primeiro — disse rispidamente Jean-Luc —, e depois dinamitar. Se funcionar, você volta para cá, se não, há bastante espaço para você na plataforma Rosa, por algum tempo.
— O primeiro não, o último... não há necessidade de evacuar. Jean-Luc mal o escutou. Estava calculando o número de homens a retirar.
Cada um dos dois turnos tinha nove homens — o chefe, seu assistente, o químico que controlava a lama e decidia a respeito dos seus componentes e do seu peso, o perfurador, que cuidava da perfuratriz, o operador de motores, responsável por todos os guinchos, bombas e assim por diante, e quatro operários para fixar ou soltar os canos e sondas.
— Vocês não têm sete iranianos, cozinheiros e operários?
— Sim. Mas estou dizendo que não é necessário evacuar — disse Guineppa, exausto.
— É mais seguro, mon vieux. — Jean-Luc virou-se para Pietro. — Diga a todo mundo para levar pouca coisa e andar depressa.
— Sim ou não? — perguntou Pietro, olhando para Guineppa.
— Solicite um voluntário para ficar aqui. Se ninguém quiser, Mãe de Deus, feche — concordou Guineppa, cansado do esforço.
Pietro estava claramente desapontado. Ainda pautando os dentes, saiu. Guineppa tornou a virar-se na cama, tentando encontrar uma posição mais confortável, e começou a praguejar. Parecia mais fraco do que antes.
— É melhor evacuar, Mario — disse baixo Jean-Luc.
— Pietro tem juízo e é inteligente mas esse porco mísero do Banastasio não presta, só causa problemas, e foi por culpa dele que o rádio quebrou, eu sei!
— O quê?
— O rádio quebrou durante o turno dele. Agora nós precisamos de um novo, você tem um de reserva?
— Não, mas vou ver se posso lhe arranjar um. Pode ser consertado? Talvez um dos nossos mecânicos possa...
— Banastasio disse que escorregou e caiu em cima dele, mas eu o ouvi batendo no rádio com um martelo porque ele não queria funcionar... Mamma mia! — Guineppa fechou os olhos, apertou o peito e começou a praguejar de novo.
— Há quanto tempo você está sentindo dores?
— Há dois dias. Hoje está pior. Aquele stronzo do Banastasio! — Guineppa resmungou. — Mas o que se podia esperar? Está no sangue. A família dele é meio-americana, não? Dizem que o lado americano tem ligações com a Máfia.
Jean-Luc sorriu consigo mesmo, sem acreditar, não prestando muita atenção ao que ele dizia. Sabia que eles se odiavam. Guineppa, o nobre português-romano, e Banastasio, o camponês siciliano-americano. Mas isso não é tão surpreendente assim, pensou, ilhados aqui em cima, com doze horas de trabalho e doze de folga, dia após dia, mês após mês, por melhor que seja o salário.
Ah, o salário! Como eu gostaria de ter o salário deles! Até o operário mais humilde ganha em uma semana o que eu ganho em um mês — umas miseráveis 1.200 libras esterlinas por mês para mim, um capitão, e encarregado do treinamento, com quatro mil e oitocentas horas! Mesmo com as míseras 500 libras de bonificação mensais por estar no exterior, não é suficiente para sustentar minha mulher, meus filhos, pagar colégio, prestações e os maldidos impostos... quanto mais a melhor comida e o melhor vinho e a minha querida Sayada. Ah, Sayada, como eu senti saudades suas!
Se não fosse por causa de Lochart...
Que merda! Tom Lochart podia ter-me deixado ir com ele e eu poderia estar agora em Teerã nos braços dela! Meu Deus, como eu preciso dela. E de dinheiro. Dinheiro! Que os sacos de todos os cobradores de impostos se desfaçam em pó e seus perus desapareçam! Eu mal tenho com o que viver e se o Irã entrar pelo cano então, o que vai acontecer? Aposto que a S-G não vai sobreviver. Azar o deles; sempre haverá trabalho para um piloto de helicóptero bom como eu, em qualquer parte do mundo.
— Sim, mon vieux! — perguntou, ao ver que Guineppa o observava.
— Só vou embarcar na última viagem.
— É melhor ir na frente, há um médico na plataforma Rosa.
— Eu estou bem, honestamente.
Então Jean-Luc ouviu seu nome sendo chamado e vestiu o casaco.
— Posso fazer alguma coisa por você?
— Apenas levar Pietro lá para cima com a dinamite. — Sorriu cansado Guineppa.
— Farei isso, mas por último, e se tiver sorte, antes do anoitecer. Não se preocupe.
Lá fora, o frio tornou a atingi-lo. Pietro esperava por ele. Os homens já estavam reunidos perto do helicóptero, com sacolas e malas de vários tamanhos. Banastasio passou, levando um grande pastor alemão.
— O homem disse para só levar coisas leves — disse-lhe Pietro.
— É o que estou fazendo — respondeu Banastasio, com a mesma rispidez.
— Eu tenho os meus papéis, o meu cachorro e os meus homens. O resto pode ser substituído pela maldita companhia. — Depois, virando-se para Jean-Luc:
— Você tem uma carga grande, é melhor se apressar.
Jean-Luc checou os homens a bordo, e o cachorro, depois chamou Nasiri pelo rádio e disse-lhe o que iam fazer.
— OK, Scot, pode ir. Você pilota — disse Jean-Luc e saltou. Viu Scot arregalar os olhos.
— Sozinho?
— Por que não, mon bravei Você já completou as horas necessárias. Este é o seu terceiro vôo de treinamento. Você tem que começar em algum momento. Ande logo.
Observou Scot levantar vôo. Em menos de cinco segundos o helicóptero estava sobre o abismo, a dois mil e quinhentos metros de altura, e ele sabia o quanto esta primeira decolagem solitária de Bellissima seria impressionante e maravilhosa, invejando a sensação que o rapaz devia estar sentindo. O jovem Scot merece, pensou, observando-o criticamente.
— Jean-Luc!
Desviou os olhos do helicóptero que se afastava e procurou em volta, imaginando o que havia de diferente. Então percebeu que era o silêncio, tão grande que pensou estar surdo. Por um momento, sentiu-se estranhamente desequilibrado, até um pouco enjoado, depois o barulho do vento voltou e ele se sentiu bem de novo.
— Jean-Luc, aqui! — Pietro estava na sombra, com um grupo de homens, do outro lado do acampamento, fazendo sinal para ele. Caminhou com dificuldade até eles. Estavam estranhamente silenciosos.
— Olhe lá — disse nervosamente Pietro, e apontou para cima. — Bem embaixo do bloco. Lá! Uns dez ou vinte metros abaixo. Está vendo as rachaduras?
Jean-Luc viu-as. Seus testículos se encolheram. Enquanto eles olhavam houve um grande rugido. Toda aquela massa pareceu se mover um bocadinho. Um pequeno naco de gelo e neve despencou. Foi ganhando velocidade e aumentando de tamanho ao descer pela encosta íngreme. Eles ficaram paralisados de horror. A avalanche, agora uma massa com toneladas de neve e gelo, caiu a apenas uns cinqüenta metros deles.
Um dos homens quebrou o silêncio.
— Vamos torcer para que o helicóptero não volte rodopiando como um camicase. Isso poderia ser o detonador, amico. Mesmo um ligeiro ruído poderia fazer despencar aquele stronzo inteiro.
NOS CÉUS, PERTO DE QAZVIN: 15:17H. Desde que Charlie Pettikin saíra de Tabriz, há quase duas horas, com Rakoczy — o homem que ele conhecia como Smith — tinha mantido o 206 o mais estável possível, na esperança de embalar o homem da KGB, fazendo-o dormir ou, pelo menos, baixar a guarda. Pela mesma razão, evitara conversar, tirando os fones do ouvido e pendurando-os no pescoço. No fim, Rakoczy desistira, passando apenas a observar o ter reno lá embaixo. Mas permaneceu alerta, com a arma no colo e o polegar na trava de segurança. E Pettikin ficou imaginando quem seria ele, o que faria, a que grupo de revolucionários pertenceria — fedayim, mujhadin ou partidário de Khomeini — ou se pertenceria aos legalistas, à polícia, ao Exército ou à Savak, e, neste caso, por que era tão importante para ele chegar a Teerã. Nunca ocorreu a Pettikin que o homem era russo e não iraniano.
Em Bandar-e Pahlavi, onde o reabastecimento foi terrivelmente lento, ele não tinha feito nada para quebrar a monotonia, apenas gastara seus últimos dólares americanos, observara enquanto os tanques eram reabastecidos, e depois assinara a nota oficial da IranOil. Rakoczy tentara puxar conversa como empregado que estava reabastecendo o helicóptero, mas o homem foi hostil, estava visivelmente assustado de ser visto reabastecendo aquele helicóptero estrangeiro, e ainda mais assustado com a metralhadora que estava no assento dianteiro.
Durante todo o tempo em que estiveram no chão, Pettikin tinha pesado as chances de tentar agarrar a metralhadora. Mas não houve nenhuma chance. A metralhadora era tcheca. Na Coréia ele tinha visto muitas. E também no Vietnã. Meu Deus, pensou, parece ter sido há um milhão de anos.
Decolara de Bandar-e Pahlavi e agora se dirigia para o sul a uma altura de trezentos e cinqüenta metros, seguindo a estrada de Qazvin. A leste, podia ver a praia onde tinha deixado o capitão Ross e seus dois paraquedistas. Mais uma vez ficou imaginando como souberam que voaria para Tabriz e qual seria a missão deles. Espero que consigam — seja lá o que for que tenham que fazer. Deve ser alguma coisa urgente e importante. Espero tornar a ver Ross, isso me agradaria...
— Por que está sorrindo, capitão?
A voz veio através dos fones. Automaticamente, na hora de decolar, ele os tinha posto. Olhou para Rakoczy e deu de ombros, depois voltou a controlar seus instrumentos e o chão lá embaixo. Quando estava sobre Qazvin, inclinou-se para sudeste, seguindo a estrada de Teerã, novamente se retraindo. Seja paciente, disse a si mesmo, e aí viu Rakoczy ficar tenso e aproximar o rosto da janela, olhando para baixo.
— Incline-se para a esquerda... um pouco para a esquerda — ordenou Rakoczy, com urgência na voz, a atenção inteiramente concentrada no solo. Pettikin inclinou suavemente o helicóptero, com Rakoczy no lado baixo.
— Não, mais! Incline 180 graus.
— O que é? — perguntou Pettikin. Aumentou a inclinação, subitamente consciente de que o homem se esquecera da metralhadora que estava no seu colo. Seu coração disparou.
— Lá, na estrada. Aquele caminhão.
Pettikin não prestou nenhuma atenção ao que se passava lá embaixo. Manteve os olhos na metralhadora, calculando a distância cuidadosamente, com o coração batendo.
— Onde? Não estou vendo nada... — aumentou ainda mais a inclinação, para tomar um novo rumo. — Que caminhão? Você diz...
Com a mão esquerda ele agarrou a arma pelo cano e atirou-a, de qualquer jeito, para a parte de trás da cabine. Ao mesmo tempo, sua mão direita puxou o controle ainda mais para a esquerda, depois para a direita e de novo esquerda-direita, fazendo o helicóptero sacudir terrivelmente. Rakoczy foi apanhado totalmente de surpresa e sua cabeça bateu na lateral do aparelho, ficando momentaneamente tonto. Rápido, Pettikin fechou o punho esquerdo e lançou-o contra o queixo do homem para deixá-lo inconsciente. Mas Rakoczy, treinado em karatê, com reflexos rápidos, conseguiu deter o golpe com o antebraço. Ainda meio tonto, ele se agarrou no pulso de Pettikin, recuperando as forças a cada segundo. Enquanto os dois homens lutavam, o helicóptero continuava perigosamente inclinado, com Rakoczy ainda na parte de baixo. Eles se agarraram um ao outro, praguejando, atrapalhados pelos cintos de segurança. Os dois ficavam cada vez mais nervosos, e Rakoczy, que estava com as duas mãos livres, começou a dominar.
De repente, Pettikin segurou o controle com os joelhos, e com a mão direita tornou a golpear o rosto de Rakoczy. O golpe não pegou direito, mas o esforço o desequilibrou, empurrando a alavanca para a esquerda e prejudicando o delicado equilíbrio dos seus pés nos pedais de direção. Imediatamente, o helicóptero virou de lado, perdeu toda a sustentação — nenhum helicóptero pode voar sozinho nem mesmo por um segundo — com a força centrífuga puxando ainda mais o seu peso para um lado e, na confusão, a alavanca geral foi empurrada para baixo. O helicóptero despencou, descontrolado.
Em pânico, Pettikin abandonou a luta. Às cegas, lutou para recuperar o controle, com os motores roncando e os instrumentos enlouquecidos. Mãos, pés e treinamento lutando contra o pânico, tentando corrigir as manobras. Caíram trezentos metros antes que conseguisse endireitar e equilibrar o aparelho, com o coração na boca, e o chão coberto de neve a 15 metros.
Suas mãos tremiam. Era difícil respirar. Então sentiu alguma coisa dura enfiada no lado do corpo e ouviu Rakoczy praguejando. Embotadamente, percebeu que a língua não era iraniana, mas não a reconheceu. Olhou para ele e viu o rosto contorcido de ódio e o metal cinzento da arma e se xingou por não ter pensado nisso. Com raiva, tentou empurrar a arma, mas Rakoczy a apertou contra o seu pescoço.
— Pare ou vou explodir sua cabeça, seu matyeryebyets!
Rápido, Pettikin inclinou violentamente o aparelho, mas a arma foi pressionada com mais força, machucando-o. Sentiu a trava de segurança sendo solta.
— Sua última chance!
O chão estava muito próximo, passando por eles vertiginosamente. Pettikin viu que não conseguiria abalá-lo.
— Está bem. Está bem — disse, endireitando o aparelho e começando a subir. A pressão da arma aumentou e, com ela, a dor. — Pelo amor de Deus, você está me machucando e tirando meu equilíbrio! Como posso pilotar se...
Rakoczy simplesmente apertou a arma com mais força, gritando com ele, xingando-o, batendo com a cabeça dele contra as traves da porta.
— Pelo amor de Deus! — gritou desesperado Pettikin, tentando colocar os fones de ouvido que tinham sido arrancados durante a luta. — Como é que eu posso pilotar com uma arma no pescoço? — A pressão cedeu um pouco e ele endireitou o aparelho. — Quem é você, afinal?
— Smith! — Rakoczy também estava nervoso. Mais um segundo, pensou, e nos teríamos esparramado como um monte de merda. — Você pensa que está lidando com um matyeryebyets amador? — Antes que pudesse se controlar, seus reflexos o levaram a atingir Pettikin na boca.
Pettikin desequilibrou-se com o golpe e o helicóptero balançou mas foi controlado. Sentiu o calor se espalhando pelo rosto.
— Faça isso de novo e eu viro o aparelho de cabeça para baixo — disse com grande decisão.
— De acordo — disse imediatamente Rakoczy. — Peço desculpas por essa... por essa estupidez, capitão. — Cuidadosamente, voltou a se endireitar no assento mas manteve a arma pronta e apontada. — Sim, não havia necessidade disso. Sinto muito.
— Você está se desculpando? — Pettikin encarou-o confuso.
— Sim. Por favor, me desculpe. Eu não sou um bárbaro. — Rakoczy se recompôs. — Se você me der a sua palavra de que vai parar de tentar me atacar, eu largo a arma. Juro que você não corre nenhum perigo.
— Está bem — disse, depois de refletir por um momento. — Se me disser quem você é e o que faz.
— Você me dá a sua palavra?
— Sim.
— Muito bem, eu aceito a sua palavra, capitão. — Rakoczy tornou a travar a arma e guardou-a. — Meu nome é Ali bin Hassan Karakose e eu sou curdo. A minha casa, a minha aldeia, fica na encosta do monte Ararat, na fronteira entre o Irã e a União Soviética. Pela Graça de Deus, sou um Combatente pela Liberdade contra o xá e contra qualquer outra pessoa que queira nos escravizar. Isso o satisfaz?
— Sim. Sim, estou satisfeito. Então se...
— Por favor, mais tarde. Primeiro vá até lá. Depressa. — Rakoczy apontou para baixo. — Desça e chegue mais perto.
Estavam a duzentos e cinqüenta metros, à direita da estrada Qazvin— Teerã. Uma aldeia estendia-se pelos dois lados da estrada um quilômetro para trás e eles podiam ver a fumaça sendo espalhada pelo vento forte.
— Onde?
— Lá, ao lado da estrada.
A princípio, Pettikin não conseguiu ver o que o homem estava apontando, sua mente estava cheia de perguntas a respeito dos curdos e dos seus séculos de guerra contra os xás persas. Então, viu um monte de carros e caminhões parados de um dos lados da estrada, e homens cercando uma caminhonete moderna que tinha uma estrela azul sobre um fundo branco no teto, e o resto do tráfego se arrastando lentamente.
— Você quer dizer lá? Você quer se aproximar daqueles carros e daqueles caminhões? — perguntou, com o rosto ainda ardendo e o pescoço doendo. — Aquele grupo de caminhões perto da caminhonete com a cruz azul no teto?
— Sim.
Obedientemente, Pettikin iniciou a descida.
— O que há de tão importante neles? — perguntou, levantando os olhos. Viu o homem encará-lo com suspeita. — O que é agora?
— Você realmente não sabe o que significa uma cruz azul sobre um fundo branco?
— Não. O que é? — Pettikin olhava para a caminhonete que estava muito mais perto agora, perto o bastante para ver que se tratava de um Range Rover vermelho, cercado por uma multidão enfurecida, e que um dos homens estava arrebentando as janelas traseiras com a coronha de um rifle.
— É a bandeira da Finlândia — ouviu através dos fones e o nome 'Erikki' surgiu em sua mente.
— Erikki tinha um Range Rover — exclamou e viu a janela ser despedaçada. — Você acha que é Erikki?
— Sim... sim, é possível.
Imediatamente, ele desceu e aumentou a velocidade, esquecendo-se da dor, com a excitação sobrepujando todas as perguntas que lhe vieram à cabeça, de como e por que este Combatente pela Liberdade conhecia Erikki. Agora podia ver a multidão se virando para eles e pessoas se dispersando. Passou muito rápido e baixo, mas não conseguiu ver Erikki.
— Conseguiu vê-lo?
— Não. Não pude ver o interior do carro.
— Nem eu — disse ansiosamente Pettikin —, mas alguns daqueles bandidos estão armados e estão quebrando as janelas. Você os viu?
— Sim, devem ser fedayins. Um deles atirou em nós. Se você... Rakoczy parou, segurando-se firme, enquanto o helicóptero fazia uma curva de 180 graus, a cinco metros do chão, e tornava a voltar. Desta vez a multidão fugiu, com as pessoas tropeçando umas nas outras. Os veículos, que trafegavam nas duas direções, tentaram aumentar a velocidade ou pararam subitamente, com um caminhão carregado derrapando e batendo em outro. Vários carros e caminhões saíram da estrada e um deles quase virou dentro do fosso.
Quando estava bem emparelhado com o Range Rover, Pettikin fez uma volta de noventa graus para vê-lo de frente — levantando uma nuvem de neve — por tempo suficiente para reconhecer Erikki, depois fez outra volta de noventa graus para subir.
— É ele mesmo. Você viu os buracos de balas no pára-brisa? — perguntou, chocado. — Pegue a metralhadora aí atrás. Vou firmar o aparelho e depois vamos pegá-lo. Depressa, quero mantê-los atordoados.
Imediatamente, Rakoczy abriu o cinto de segurança, esticou a mão pela janela de comunicação mas não conseguiu apanhar a arma que estava no chão. Com grande dificuldade, ele se virou no assento e engatinhou pela abertura, tentando alcançá-la, e Pettikin viu que o homem estava nas suas mãos. Seria tão fácil abrir a porta e empurrá-lo para fora. Tão fácil. Mas impossível.
— Ande logo! — Gritou e ajudou-o a voltar ao assento. — Coloque o cinto.
Rakoczy obedeceu, tentando recuperar o fôlego, abençoando o fato de Pettikin ser amigo do finlandês, sabendo que se suas posições estivessem invertidas ele não hesitaria em abrir a porta.
— Estou pronto — disse levantando a metralhadora, estarrecido com a burrice de Pettikin. Os ingleses são tão burros que os filhos da mãe merecem perder. — O que...
— Aqui vamos nós! — Pettikin acelerou o aparelho, fazendo a curva e mergulhando. Ainda havia alguns homens armados perto da caminhonete, com as armas apontadas para eles. — Vou amaciá-los e quando eu disser 'fogo' dê uma rajada por cima da cabeça deles!
O Range Rover se aproximou rapidamente, hesitou e depois rodopiou como um bêbado — não havia nenhuma árvore perto — tornou a hesitar e partiu em direção ao helicóptero que dançava em volta deles. Pettikin freou subitamente, a uns vinte metros de distância, a trinta metros do chão.
— Fogo! — ordenou.
Imediatamente, Rakoczy lançou uma rajada de balas pela janela, mirando não acima das cabeças, mas bem no meio de um grupo de homens e mulheres que estavam agachados atrás da caminhonete de Erikki, fora da linha de visão de Pettikin, matando ou ferindo alguns deles. Todos os que estavam perto fugiram em pânico — os gritos dos feridos se misturando ao ronco dos motores.
Motoristas e passageiros saltaram dos carros e caminhões e foram engatinhando pela neve como podiam. Mais uma rajada e mais pânico, agora todo mundo corria para se proteger, e o tráfego estava todo parado. Na estrada, alguns rapazes saíram de trás de um caminhão carregando rifles. Rakoczy atirou neles e nos que estavam perto.
— Faça 360 graus — gritou.
Imediatamente, o helicóptero fez uma piraeta, mas não havia ninguém perto. Pettikin viu quatro corpos na neve.
— Eu disse sobre as cabeças, pelo amor de Deus! — gritou, mas nesse momento a porta do Range Rover se abriu e Erikki saltou, com a faca numa das mãos. Por um momento ficou sozinho, depois uma mulher coberta com o chador apareceu do lado dele. Na mesma hora Pettikin pousou o aparelho mantendo-o quase no ar.
— Venham! — Gritou, acenando para eles. Começaram a correr, com Erikki quase carregando Azadeh, a quem Pettikin ainda não reconhecera.
Ao lado dele, Rakoczy abriu a porta, saltou, abriu a porta de trás e se virou, pondo-se em guarda. Deu mais uma rajada em direção aos carros. Erikki parou, perplexo ao ver Rakoczy.
— Depressa! — gritou Pettikin, sem entender o motivo da hesitação de Erikki. — Erikki, venha! — Então reconheceu Azadeh. — Meu Deus... — murmurou, depois gritou: — Venha, Erikki!
— Rápido, eu não tenho mais muita munição! — gritou Rakoczy, em russo.
Erikki levantou Azadeh no colo e correu. Algumas balas passaram perto. Quando chegaram ao helicóptero, Rakoczy ajudou a colocar Azadeh na traseira do aparelho, depois empurrou Erikki com o cano da metralhadora.
— Largue sua faca e entre na frente! — Ordenou em russo.
Meio paralisado de susto, Pettikin viu Erikki hesitar, com o rosto contorcido de raiva.
— Por Deus, há munição mais do que suficiente para ela, para você e para este imbecil deste piloto. Suba!
De algum lugar no meio do tráfego, uma metralhadora começou a atirar. Erikki jogou a faca na neve e subiu no assento da frente, Rakoczy deslizou para o lado de Azadeh e Pettikin decolou e acelerou, ziguezagueando como uma perdiz assustada, e depois subiu para os céus.
— Que diabo está acontecendo? — perguntou, quando pôde falar. Erikki não respondeu. Virou a cabeça para se certificar de que Azadeh estava bem. Ela estava com os olhos fechados, encolhida num canto, ofegante, tentando recuperar o fôlego. Viu que Rakoczy tinha fechado o cinto de segurança dela, mas quando Erikki estendeu a mão para tocá-la, o russo fez sinal com a arma para ele parar.
— Ela ficará bem, eu prometo — ele continuou a falar em russo —, desde que você se comporte como o seu amigo foi ensinado a se comportar. — Manteve os olhos nele enquanto enfiava a mão na sua sacola e apanhava outro pente de balas. — Você já sabe. Agora faça o favor de virar para a frente.
Tentando controlar sua fúria, Erikki obedeceu. Colocou os fones no ouvido. Não havia meio de Rakoczy ouvir o que eles dissessem — não havia nenhum intercomunicador lá atrás — e pareceu-lhes estranho estarem tão livres e no entanto tão aprisionados.
— Como você nos encontrou, Charlie, quem mandou você? — perguntou, com a voz grave.
— Ninguém — disse Pettikin. — O que é que há com aquele filho da mãe? Fui para Tabriz para apanhar você e Azadeh, fui seqüestrado por aquele filho da puta lá atrás e ele me obrigou a ir para Teerã. Foi pura sorte, por Deus, o que foi que houve com vocês?
— Nós ficamos sem gasolina. — Erikki contou-lhe brevemente o que tinha acontecido. — Quando o motor parou, pensei que estava liquidado. Todo mundo parecia ter enlouquecido. Num momento estava tudo bem, depois estávamos outra vez cercados, como na barreira. Tranquei todas as portas, mas era só uma questão de tempo... — Ele se virou novamente. Azadeh estava com os olhos abertos e tinha tirado o chador do rosto. Sorriu para ele, cansada, esticou o braço para tocá-lo, mas Rakoczy impediu-a.
— Por favor, desculpe-me, Alteza — disse em farsi —, mas espere até pousarmos. Tudo ficará bem. — Repetiu isso em russo, acrescentando para Erikki: — Tenho um pouco d'água aqui. Você gostaria que eu desse para sua mulher?
— Sim, por favor. — E observou Azadeh bebendo, agradecida.
— Você quer um pouco?
— Não, obrigado — disse educadamente, embora estivesse sedento, não querendo receber nenhum favor. Sorriu para ela encorajadoramente. — Azadeh, foi como um maná dos céus, hein? Charlie foi como um anjo.
— Sim... sim. Foi a Vontade de Deus. Estou bem agora, Erikki, graças a Deus. Agradeça a Charlie por mim...
Ele escondeu sua preocupação. O segundo tumulto a aterrorizara. E ele, ele tinha jurado que se conseguisse escapar vivo daquela confusão, nunca mais viajaria sem um revólver e, de preferência, granadas de mão. Viu Rakoczy observando-o. Balançou a cabeça e tornou a virar para a frente.
— Matyerybyets — resmungou, automaticamente verificando os instrumentos.
— Esse sujeito é um lunático; não havia necessidade de matar ninguém, eu disse a ele para atirar por cima das cabeças. — Pettikin baixou ligeiramente a voz, inquieto por estar falando tão abertamente, embora não houvesse nenhum modo de Rakoczy escutar. — O filho da mãe quase me matou duas vezes. Como você o conhece, Erikki? Você ou Azadeh já estiveram metidos com os curdos?
— Curdos? Você está se referindo àquele matyerybye lá atrás? — Erikki olhou para ele espantado.
— É claro que sim, Ali bin Hassan Karakose. Ele vem do monte Ararat. Ele é curdo, faz parte dos Combatentes pela Liberdade.
— Ele não é nenhum curdo, é russo e trabalha para a KGB.
— Meu Deus! Você tem certeza? — Pettikin estava visivelmente chocado.
— Oh, sim. Ele afirma ser muçulmano, mas aposto que isso também é mentira. Ele me disse que o nome dele é Rakoczy, outra mentira. Todos eles são mentirosos, por que nos contariam alguma coisa, a seus inimigos?
— Mas ele jurou que era verdade e eu lhe dei a minha palavra. — Furioso, Pettikin contou-lhe a respeito da luta e do trato que tinham feito.
— Você é que é idiota, Charlie, não ele. Você nunca leu Lenin? Stalin? Marx? Ele só está fazendo o que todos os membros da KGB e todos os comunistas fazem: fazer qualquer coisa a favor da causa 'sagrada', poder total e absoluto para o partido comunista da União Soviética, e fazer com que nós nos enforquemos para poupar-lhes o trabalho. Meu Deus, eu gostaria de uma vodca.
— Um conhaque duplo seria melhor.
— Os dois juntos seria melhor ainda. — Erikki analisou o chão lá embaixo. Eles estavam voando bem, com os motores funcionando perfeitamente e com bastante combustível. Seus olhos examinaram o horizonte procurando Teerã. — Não falta muito agora. Ele já disse onde devemos pousar?
— Não.
— Então talvez a gente tenha uma chance.
— Sim. — A apreensão de Pettikin aumentou. — Você mencionou uma barreira na estrada. O que aconteceu lá?
— Fomos parados. Esquerdistas. Tivemos que fugir. Não temos mais documentos, nem Azadeh nem eu. Nada. Um filho da mãe gordo que estava na barreira ficou com eles e não houve tempo de recuperá-los. — Estremeceu. — Eu nunca senti tanto medo, Charlie. Nunca. Estava impotente no meio daquele tumulto e quase cagando de medo porque não podia protegê-la. Aquele gordo fedorento filho da mãe ficou com tudo, passaporte, identidade, licença para pilotar, tudo.
— Mac vai-lhe arranjar outros documentos, e sua embaixada lhes dará novos passaportes.
— Eu não estou preocupado comigo. E Azadeh?
— Ela também vai conseguir um passaporte finlandês. Como Xarazade conseguiu um canadense, não se preocupe.
— Ela ainda está em Teerã, não está?
— Com certeza. Tom também deve estar lá. Ele estava sendo esperado ontem, devia chegar de Zagros, trazendo correspondência de casa... — Que estranho, pensou Pettikin. Eu ainda me refiro à Inglaterra como 'casa', mesmo depois de ter perdido Claire, de ter perdido tudo. — Ele acabou de chegar de licença.
— Era isto o que eu queria, sair de licença. Estou com uma licença vencida. Talvez Mac possa mandar alguém me substituir. — Erikki deu um soco de leve em Pettikin. — O que tiver de ser, será, hein? Ei, Charlie, aquele foi um vôo e tanto. Quando eu o vi, pensei que estava sonhando ou então que já estava morto. Você viu a minha bandeira finlandesa?
— Não, foi o Ali... como foi que você o chamou? Rekowski?
— Rakoczy.
— Rakoczy a reconheceu. Se ele não a tivesse reconhecido eu não saberia. Sinto muito. — Pettikin olhou para ele. — O que ele quer com você?
— Não sei, mas seja o que for, é para atender a propósitos soviéticos. — Erikki praguejou. — Então nós devemos a vida a ele, hein?
— Sim, eu não poderia fazer aquilo tudo sozinho. — Olhou em torno. Rakoczy estava totalmente alerta. Azadeh cochilava, com o lindo rosto cheio de sombras. Balançou ligeiramente a cabeça e depois virou-se. — Azadeh parece estar bem.
— Não, Charlie, não está. — Disse Erikki, sentindo uma dor por dentro. — Hoje foi um dia terrível para ela. Ela disse que nunca tinha estado tão perto de camponeses antes... Quero dizer cercada, presa. Hoje eles a fizeram sentir-se desprotegida. Agora ela viu a verdadeira face do Irã, a realidade do seu povo. Isto e mais o fato de ter sido obrigada a usar o chador. — Mais uma vez um arrepio percorreu-o. — Foi um estupro. Eles estupraram a sua alma. Agora acho que tudo vai ser diferente para ela, para nós. Acho que ela vai ter que escolher. A família ou eu, o Irã ou o exílio. Eles não nos querem aqui, Charlie. A nenhum de nós.
— Não, você está errado. Talvez para você e Azadeh seja diferente, mas eles ainda vão precisar do petróleo e por isso precisarão de helicópteros. Nós ainda vamos servir por alguns anos, por uns bons anos. Com os contratos da Guerney e todo... — Pettikin parou, sentindo uma batida no ombro e virou a cabeça. Azadeh estava acordada agora. Ele não ouviu o que Rakoczy disse e então tirou um dos fones.
— O quê?
— Não use o rádio, capitão e prepare-se para pousar fora da cidade, onde eu disser.
— Eu... eu tenho que pedir permissão.
— Não seja idiota! Permissão de quem? Está todo mundo ocupado demais lá embaixo. O aeroporto de Teerã está sitiado, assim como Doshan Tappeh e Galeg Morghi. Aceite o meu conselho e desça no pequeno aeroporto de Rudrama, depois de me deixar.
— Eu tenho que me comunicar. Os militares insistem.
— Os militares? — E Rakoczy riu sardonicamente. — E o que você iria comunicar? Que pousou ilegalmente perto de Qazvin, ajudou a matar cinco ou seis civis e apanhou dois estrangeiros que estavam fugindo. Fugindo de quem? Do povo.
Pettikin virou para a frente com a cara fechada, disposto a se comunicar, mas Rakoczy inclinou-se e sacudiu-o rudemente.
— Acorde! Os militares não existem mais. Os generais aceitaram a vitória de Khomeini. Os militares não existem mais. Eles se renderam!
Todos olharam para ele estarrecidos. O helicóptero balançou. Apressadamente, Pettikin fez a correção.
— Do que é que você está falando?
— Na noite passada os generais ordenaram que todas as tropas voltassem aos seus quartéis. De todas as armas — todos os homens. Eles abandonaram o campo de batalha em favor de Khomeini e da sua revolução. Agora não há mais nem exército nem polícia entre Khomeini e o poder. O povo venceu!
— Não é possível — discordou Pettikin.
— Não — Azadeh disse assustada. — Meu pai teria sabido.
— Ah, Abdullah, o Grande? — Rakoczy retrucou com um sorriso de deboche. — Ele agora já deve saber, se ainda estiver vivo.
— Não é verdade.
— É... é possível que seja, Azadeh — disse Erikki, chocado. — Isto explicaria por que nós não vimos nem policiais nem soldados, e também por que a multidão estava tão hostil.
— Os generais nunca fariam isso — ela afirmou, abalada, depois virou-se para Rakoczy. — Seria suicídio, para eles e para milhares de pessoas. Dig; a verdade, por Alá!
O rosto de Rakoczy mostrou a sua satisfação, o seu prazer por distorcei as palavras e símear a dissensão para perturbá-los.
— Agora o Irã está nas mãos de Khomeini, dos seus mulás e da sua guarde revolucionária.
— É mentira.
— Se isto é verdade — disse Pettikin—, Bakhtiar está acabado. Elenun...
— Aquele fraco imbecil nem começou! — Rakoczy começou a rir. — O aiatolá Khomeini fez os generais se borrarem de medo e agora vai cortar as suas gargantas por medida de segurança.
— Então a guerra está terminada.
— Ah, a guerra — repetiu Rakoczy, sombriamente. — Está acabada. Para alguns.
— Sim — disse Erikki, preparando-lhe uma armadilha. — E se o que você diz é verdade, está tudo terminado para você também. Para todos os do Tudeh e para todos os marxistas. Khomeini vai massacrar vocês todos.
— Oh, não, capitão. O aiatolá foi a espada para destruir o xá, mas foi o povo quem empunhou a espada.
— Ele, os seus mulás e o povo vão destruir você. Ele é tão anticomunista quanto antiamericano.
— É melhor esperar para ver, em vez de se iludir, hein? Khomeini é um homem prático e adora o poder, não importa o que ele diga agora.
Pettikin viu Azadeh empalidecer e sentiu uma sensação igual.
— E os curdos? — perguntou asperamente. — O que você me diz deles? Rakoczy inclinou-se para a frente, com um estranho sorriso.
— Eu sou um curdo, não importa o que o finlandês tenha dito a você a respeito de Rússia e KGB. Ele pode provar o que diz? É claro que não. Quanto aos curdos, Khomeini vai tentar nos esmagar, se o deixarem, junto com todas as minorias tribais ou religiosas, os estrangeiros e a burguesia, os proprietários de terra, os agiotas, os partidários do xá e — ele acrescentou com um sorriso de deboche — e todas as pessoas que não aceitarem a sua interpretação do Corão. Ele vai derramar rios de sangue em nome do seu Alá, do seu, não do único e verdadeiro Deus. Se aquele filho da mãe puder. — Olhou para baixo, conferindo o rumo, depois acrescentou ainda mais sardonicamente. — Aquela Espada de Deus herética já cumpriu sua tarefa e agora vai ser transformada numa relha de arado... e enterrada.
— Você quer dizer assassinado? — perguntou Erikki.
— Enterrado — mais uma vez ele riu —, quando der na veneta do povo.
Azadeh tentou arranhar-lhe o rosto, amaldiçoando-o. Ele a dominou facilmente e segurou-a, enquanto ela se debatia. Erikki olhava, pálido de raiva. Não havia nada que ele pudesse fazer. Por enquanto.
— Pare! — disse rudemente Rakoczy. — Você mais do que ninguém deveria querer esse herege morto. Ele vai esmagar Abdullah Khan e todos os Gorgons e você junto com eles, se vencer. — Ele a empurrou. — Comporte-se ou vou ser obrigado a machucá-la. É verdade, você, mais do que ninguém, deveria querer vê-lo morto. — Levantou a metralhadora. — Virem-se, vocês dois.
Eles obedeceram, com ódio do homem e da arma. Lá na frente, surgiam os arredores de Teerã, a uns quinze quilômetros de distância. Seguiam a estrada e a ferrovia, com as montanhas Elburz à esquerda, aproximando-se da cidade pelo lado oeste. O céu estava carregado de nuvens pesadas, e não havia sol.
— Capitão, está vendo o rio, lá, onde a ferrovia o atravessa? E a ponte?
— Sim, estou vendo — disse Pettikin, tentando fazer um plano para dominá-lo, assim como Erikki também estava fazendo, imaginando se poderia virar e agarrá-lo, mas estava do outro lado.
— Pouse um quilômetro ao sul, atrás daqueles arbustos. Está vendo? Não muito longe dos arbustos havia uma estrada secundária que ia para
Teerã. Com pouco tráfego.
— Sim, e depois?
— E depois você está dispensado. Por enquanto. — Rakoczy riu e esfregou a nuca de Pettikin com o cano da arma. — Com os meus agradecimentos. Mas não se vire mais. Mantenham-se virados para a frente, vocês dois, fiquem com os cintos amarrados e saibam que estou vigiando atentamente. Quando aterrissar, faça-o com segurança e habilidade e quando eu estiver livre, decole. Mas não se virem ou eu posso me assustar. Homens assustados puxam o gatilho. Entendido?
— Sim. — Pettikin estudou o local de pouso. Ajustou os fones. — Parece bem para você, Erikki?
— Sim. Cuidado com os montes de neve. — Erikki tentou manter o nervosismo fora da sua voz.
— Deveríamos ter um plano.
— Acho que ele... que ele é esperto demais, Charlie.
— Talvez ele cometa algum erro.
— Eu só preciso de um.
O pouso foi simples e fácil. A neve, levantada pelas hélices, formava ondas ao lado das janelas.
— Não se virem!
Os nervos dos dois homens estavam em pandarecos. Ouviram a porta se abrir e sentiram o ar gelado. Então Azadeh gritou:
— Erikkiiii!
Apesar das ordens, os dois homens se viraram. Rakoczy já estava do lado de fora, arrastando Azadeh com ele, resistindo, lutando e tentando se agarrar na porta, mas ele a dominou facilmente. A arma já estava pendurada no ombro dele. Imediatamente, Erikki abriu a porta e saltou, deslizou sob a fuselagem e atacou. Mas chegou tarde. Uma rajada de balas o fez parar. A dez metros de distância, livre das hélices, Rakoczy apontava a arma para eles com uma das mãos e com a outra agarrava com firmeza a gola do chador de Azadeh. Por um instante, ela também ficou parada, depois redobrou os esforços, gritando e chorando, batendo nele, pegando-o desprevenido. Erikki atacou.
Rakoczy agarrou-a com as duas mãos e empurrou-a violentamente na direção de Erikki, interrompendo o ataque e fazendo os dois caírem no chão. No mesmo instante, deu um pulo para trás, virou-se e saiu correndo, tornou a virar, com a arma apontada, o dedo no gatilho. Mas não houve necessidade de atirar, pois o finlandês e a mulher ainda estavam de joelhos, meio aturdidos. Ele viu Erikki recuperar o controle e empurrá-la protetoramente para trás dele, preparando-se para tornar a atacar.
— Pare — ordenou —, ou desta vez eu vou matar todos vocês. PARE! — Deu uma rajada de metralhadora na neve. — Voltem para o helicóptero. Vocês dois! — Agora totalmente alerta, Erikki olhou-o com suspeita. — Andem! Vocês estão livres. Vão!
Terrivelmente assustada, Azadeh subiu no banco de trás. Erikki foi recuando devagar, protegendo-a com o seu corpo. Rakoczy manteve a arma apontada. Viu o finlandês se sentar atrás, com a porta ainda aberta, os pés escorados no esqui. Imediatamente os motores aceleraram. O helicóptero subiu meio metro do chão, girou devagar ficando de frente para ele, com a porta de trás sendo fechada. Seu coração bateu ainda mais depressa. Agora, pensou, mato vocês todos ou nós vivemos para lutar ainda uma outra vez?
O momento pareceu-lhe durar uma eternidade. O helicóptero recuou, aos poucos, ainda um alvo muito tentador. Apertou de leve o dedo no gatilho. Mas não o suficiente. Alguns metros mais adiante o aparelho balançou, se afastou rapidamente sobre os campos cobertos de neve e se dirigiu para o céu.
Ótimo, pensou, quase vencido pelo cansaço. Teria sido melhor se eu tivesse conseguido levar a mulher como refém, mas não importa. Nós poderemos agarrar a filha do velho Abdullah Khan amanhã ou depois. Ela pode esperar e Yokkonen também. Enquanto isso há um país a ser dominado, há generais, mulás e aiatolás para matar... e outros inimigos.
NO AEROPORTO DE TEERÃ: 17:05H. McIver guiava cuidadosamente pela estrada que acompanhava a cerca de arame farpado, dirigindo-se para o portão que levava à área de carga. A estrada cobrira-se de uma neve escorregadia. A temperatura estava muito baixa, o céu carregado, e faltava menos de uma hora para anoitecer. Mais uma vez ele olhou para o relógio. Não há muito tempo, pensou, ainda aborrecido com o fechamento do seu escritório pelo komiteh, na noite anterior. De manhã bem cedo tentara entrar no edifício, mas ainda estava guardado e todas as suas tentativas de obter permissão para verificar o telex mostraram-se infrutíferas.
— Maldita gente — dissera Genny quando ele regressou ao apartamento, furioso, — Deve haver alguma coisa que possamos fazer. Que tal George Talbot? Ele não pode ajudar?
— Duvido, mas vale a pena tentar. Se Valik estivesse... — McIver parou. — Tom já deve ter reabastecido nesta altura e já deve estar chegando. Onde quer que seja.
— Tomara que sim — disse ela, fazendo uma prece silenciosa. — Vamos torcer pelo melhor. Viu alguma loja aberta?
— Nenhuma, Gen. O almoço vai ser sopa em lata e uma cerveja.
— Sinto muito, mas a cerveja acabou.
Ele tentara se comunicar com Kowiss e com as outras bases no seu HF, mas não obteve resposta de nenhuma delas. Também não conseguiu pegar nem a BBC nem a AFN. Ele tinha ouvido por algum tempo os inevitáveis comentários antiamericanos da Rádio Livre do Irã em Tbilisi e desligara com raiva. O telefone estava mudo. Tentara ler, mas não conseguira, com a mente cheia de preocupações a respeito de Lochart, Pettikin, Starke e todos os outros, detestando estar proibido de usar seu escritório e o telex e, no momento, sem controle da situação. Isso nunca acontecera antes, nunca. Maldito xá por ter partido e deixado tudo desmoronar. Antigamente era tudo maravilhoso. Qualquer problema era só ir até o aeroporto, pegar um avião para Isfahan, Tabriz, Abadan, Ormuz, Al Shargaz ou qualquer outro lugar, depois fazer o resto do percurso de helicóptero, sempre que se tivesse vontade. As vezes Genny ia junto, para passear — faziam piqueniques e tomavam uma cerveja bem gelada.
— Que droga!
Logo depois do almoço, o HF se manifestara. Era Freddy Ayre, de Kowiss, para comunicar que o 212 estaria no aeroporto de Teerã por volta das 17 horas, vindo de Al Shargaz, um pequeno território independente que ficava a mil e trezentos quilômetros ao sul de Teerã, do outro lado do golfo, e onde a S-G tinha um escritório.
— Ele disse se tinha uma licença, Freddy? — perguntara McIver, nervosamente.
— Não sei. A única coisa que o nosso QG em Al Shargaz disse foi: "ETA Teerã 1700, avise a McIver. Não consigo me comunicar com ele", e repetiu isso várias vezes.
— Como estão as coisas por aí?
— Tudo bem — respondera Ayre. — Starke ainda está em Bandar Delam e não conseguimos nenhum contato com eles exceto por um snafu* há meia hora atrás.
*Snafu — Situation normal, ail fucked-up. (Situação normal, merda geral.)
— Rudi enviou isso? — McIver tentara manter a voz calma.
— Sim.
— Mantenha-se em contato com eles e conosco. O que foi que aconteceu com seu operador de rádio hoje de manhã? Tentei me comunicar durante umas duas horas e não consegui.
Houve uma longa pausa.
— Ele foi detido.
— Mas por quê?
— Não sei, Mac... capitão McIver. Assim que souber eu comunicarei. Também assim que puder vou mandar Marc Dubois de volta para Bandar Delam, mas, bem, as coisas estão um pouco confusas por aqui. Estamos limitados ao território da base, há... há uma amável e encantadora patrulha armada na torre, todos os vôos estão cancelados exceto as emergências e mesmo assim temos que ir acompanhados por guardas. E nenhum vôo fora da nossa área está autorizado.
— Por que tudo isso?
— Não sei. O nosso adorado comandante, coronel Peshadi, me assegurou que era uma coisa temporária, só por hoje e talvez amanhã. Aliás, às 15:16h, nós recebemos um breve chamado do capitão Scragger, em Charlie Eco Zulu Zulu, a caminho de Bandar Delam, num vôo especial.
— Por que diabo ele está indo para lá?
— Não sei, senhor. O velho Ser... o capitão Scragger disse que foi requisitado por de Plessey, em Siri. Eu, ahn, eu acho que não tenho mais muito tempo. O nosso amável guarda está ficando nervoso, mas se o senhor conseguir mandar o 125 para cá, Peshadi disse que dará permissão para ele pousar. Vou tentar tirar Manuela daqui, mas não tenha muita esperança, ela está mais nervosa que um coelho dentro de um canil, sem notícias de Starke.
— Posso imaginar. Diga-lhe que estou mandando Gen. Vou desligar agora, Deus sabe quanto tempo vou levar até o aeroporto. — E dirigiu sua atenção para Genny. — Gen, faça a mala...
— O que você quer levar, Duncan? — ela perguntou com uma voz doce.
— Não sou eu que vou, é você.
— Não seja bobo, querido. Se você quer esperar o 125, é melhor se apressar, mas tenha cuidado e não se esqueça dos retratos! Ah, por falar nisso, esqueci de dizer que, enquanto você estava tentando entrar no escritório, Xarazade mandou um dos empregados dela até aqui nos convidar para jantar.
— Gen, você vai partir com o 125 e está decidido!
A discussão não tinha durado muito. Ele saíra e usara estradas secundárias, quase todos os principais cruzamentos estavam bloqueados pela multidão. Todas as vezes que o pararam, mostrou o retrato de Khomeini com a frase VIDA LONGA PARA O AIATOLÁ escrita em farsi e o deixaram passar. Não viu nem soldados nem policiais, então não precisou do retrato do xá com a frase LONGA VIDA PARA O GLORIOSO IRÃ escrita embaixo. Ainda assim, levou duas horas e meia para fazer um percurso que levava, normalmente, uma hora, a ansiedade por chegar atrasado crescendo a cada minuto.
Mas o 125 não estava em nenhuma das pistas, nem na área de carga, nem perto do terminal que ficava do outro lado do campo. Olhou outra vez para o relógio: 17:17h. Só mais uma hora de claridade. Ele vai chegar por pouco, se é que vai chegar, pensou. Só Deus sabe, eles podem ter voltado.
Perto do terminal, vários jatos civis ainda estavam presos no chão. Um deles, um 747 da Royal Iranian Air era uma ruína retorcida, destruído pelo fogo. Os outros pareciam em boas condições — estava longe demais para enxergar os emblemas, mas entre eles devia estar o avião da Alitalia. Paula Giancani ainda estava hospedada com eles, com Nogger Lane de plantão. Ela é uma garota simpática, pensou distraidamente.
Na frente dele, agora, erguia-se o portão da área de carga e depósito. O depósito estava fechado desde a última quarta-feira. E automaticamente, ficara fechado também na quinta e na sexta — o dia sagrado dos muçulmanos — era este o fim-de-semana iraniano, e nem ele, nem ninguém da sua equipe tinha conseguido chegar lá no sábado ou no domingo. O portão estava aberto e desguarnecido. Passou por ele e se dirigiu para o pátio dianteiro. Na sua frente estava o galpão de carga da alfândega e cercas com avisos em inglês e em farsi: PROIBIDA A ENTRADA, CHEGADA, PARTIDA, MANTENHA DISTÂNCIA, além das tabuletas com os nomes das diversas companhias internacionais de aviões e de helicópteros que tinham escritórios permanentes ali. Normalmente, era quase impossível entrar com o carro no pátio. Havia mil homens trabalhando vinte e quatro horas, descarregando a enorme quantidade de produtos, civis e militares, que entravam no Irã em troca de parte dos noventa milhões de dólares diários de petróleo que eram exportados. Mas agora a área estava deserta. Centenas de caixotes de madeira e caixas de papelão de todos os tamanhos estavam espalhados na neve — muitos abertos e saqueados, a maioria encharcada. Havia alguns carros e caminhões abandonados, e um caminhão queimado. Os galpões estavam cheios de buracos de balas.
O portão da alfândega, que impedia a entrada no pátio de manobras, estava fechado, preso apenas por um ferrolho. O aviso, em inglês e em farsi, dizia: PROIBIDA A ENTRADA SEM APROVAÇÃO DA ALFÂNDEGA. Ele esperou, depois buzinou e tornou a esperar. Ninguém atendeu, então saltou, abriu o portão e voltou para o carro. Poucos metros depois parou, tornou a fechar o portão e se dirigiu para o complexo da S-G: escritório, depósitos, hangares e oficina com espaço para quatro 212 e cinco 206, contendo agora três 206 e um 212.
Para seu alívio, as portas ainda estavam trancadas. Estava com medo que os depósitos e o hangar tivessem sido arrombados e saqueados ou destruídos. Aquele era o depósito principal da companhia, no Irã, para peças de reposição e consertos. Mais de dois milhões de dólares em peças de reposição e ferramentas especializadas estavam guardadas lá, além das bombas de reabastecer e os tanques subterrâneos contendo uma carga secreta de duzentos mil litros de combustível para helicóptero que McIver tinha 'perdido' quando começaram as agitações.
Examinou o céu. O vento indicava que o 212 pousaria pelo lado oeste, na pista 29 da esquerda, mas não havia nenhum sinal dele. Destrancou a porta, fechando-a de novo, e caminhou rapidamente pelo saguão gelado até o escritório principal onde ficava o telex. Estava desligado.
— Malditos idiotas — murmurou em voz alta. As ordens eram para que ficasse ligado o tempo todo. Quando o ligou, nada aconteceu. Experimentou as luzes, mas elas também não acenderam. — Maldito país. — Irritado, foi até os receptores-transmissores em HF e UHF e ligou-os. Ambos funcionavam à bateria, para o caso de emergências. O zumbido deles o reconfortou.
— Eco Tango Lima Lima — disse alto no microfone, fornecendo as letras de matrícula do 125: ETLL. — Aqui é McIver, estão me ouvindo?
— Eco Tango Lima Lima. Se estamos, meu velho — a resposta lacônica chegou imediatamente. — Aqui em cima está um bocado solitário. Nós estamos chamando há meia hora. Onde você está?
— No escritório de carga. Sinto muito, Johnny — disse, reconhecendo a voz do seu principal comandante. — Foi difícil como o diabo chegar até aqui. Acabei de chegar. Onde você está?
— Trinta quilômetros rumo sul, a três mil metros de altitude e descendo em aproximação de rotina, esperando pousar na pista 29 esquerda. O que está havendo, Mac? Não conseguimos falar com a torre de Teerã. De fato, não recebemos nenhum chamado desde que entramos no espaço aéreo do Irã.
— Meu Deus! Nem do radar de Kish?
— Nem deles, meu velho. O que está havendo?
— Não sei. A torre estava operando ontem... até a meia-noite de ontem. Os militares nos deram licença para um vôo para o sul. — McIver estava perplexo, sabendo que o radar de Kish era muito meticuloso com relação a todo o tráfego que entrava e saía, principalmente através do golfo. — O aeroporto está deserto, o que é muito esquisito. No caminho havia uma multidão de gente nas ruas, algumas barricadas, mas nada fora do comum, nenhum tumulto nem nada.
— Algum problema para pousar?
— Duvido que algum dos aparelhos auxiliares de pouso esteja funcionando, mas o lençol de nuvens está a uns mil e quinhentos metros, e a visibilidade é de quinze quilômetros. A pista parece boa.
— O que você acha?
McIver pesou os prós e os contras de uma aterrissagem sem assistência ou licença da torre.
— Você tem combustível suficiente para uma viagem de volta?
— Oh, sim. Você está sem combustível?
— No momento, só para uma emergência.
— Estou atravessando a camada de nuvens a mil e quinhentos metros e já estou vendo vocês.
— OK, Eco Tango Lima Lima. O vento está soprando do leste a uma velocidade aproximada de dez nós. Normalmente você pousaria na 29 esquerda. A base militar parece estar fechada e deserta, portanto não deve haver nenhum outro tráfego. Todos os vôos civis, entrando ou saindo, foram cancelados. Sugiro que você sobrevoe o aeroporto e se estiver tudo bem desça imediatamente. Não fique aí por cima, há muitos brincalhões pregando peças por aqui. Assim que pousar, posicione o aparelho de modo a poder decolar rapidamente, só por precaução. Eu vou me encontrar com você.
— Eco Tango Lima Lima.
McIver tirou um lenço e enxugou as mãos e a testa. Mas quando se levantou, o seu coração deu um salto no peito.
Havia um guarda da alfândega na porta, com a mão displicentemente pousada no coldre do revólver. Seu uniforme estava sujo e amarrotado, o rosto arredondado mostrava uma barba de três ou quatro dias.
— Oh — disse McIver, lutando para aparentar calma. — Salaam, aga. — Não o reconheceu como sendo um dos guardas habituais.
O homem trocou ostensivamente a mão que segurava o revólver, com os olhos indo de McIver para os aparelhos de rádio e de volta para McIver. Hesitantemente, pois McIver falava muito pouco farsi, ele disse:
— Inglissi me danid, Agha? Be bahk shid man zaban-e shoma ra khoob nami danam. O senhor fala inglês? Desculpe-me por favor, mas eu não falo a sua língua.
— O que está fazendo aqui? — resmungou o guarda, num inglês hesitante, com os dentes manchados de fumo.
— Eu... eu sou o capitão McIver, chefe da S-G Helicópteros — respondeu, devagar e com cuidado. — Eu só estou... só estou checando o meu telex e estou aqui para esperar um dos meus aviões.
— Avião? Que avião? O que...
Neste momento, o 125 passou diretamente sobre o aeroporto, a trezentos metros de altura. O guarda saiu correndo do escritório, seguido de perto por McIver. Eles viram as belas linhas do jato de dois motores contra um céu escuro e pesado, e ficaram olhando por um momento enquanto ele fazia uma curva pronunciada para pegar a pista.
— Que avião, hein?
— E o nosso vôo regular... o nosso vôo regular de Al Shargaz.
Este nome fez com que o homem despejasse uma torrente de palavras.
— Be bahk shid nana dhan konan. Sinto muito, não compreendo.
— Não pousar... não pousar, compreende? — O homem apontou furioso em direção ao avião e ao escritório onde estava o HF. — Avise avião!
McIver concordou calmamente, não se sentindo nada calmo, e fez sinal para que ele tornasse a entrar no escritório. Contou dez mil riais, cerca de 110 dólares, e ofereceu ao homem.
— Por favor, aceite a taxa de pouso; o dinheiro do pouso.
O homem soltou mais uma torrente de farsi. McIver pôs o dinheiro sobre a mesa e depois se dirigiu para o depósito. Destrancou uma porta. No pequeno cômodo, construído ali exatamente com este objetivo, havia vários tipos de peças e três latões de vinte litros, cheios de gasolina. Pegou um latão e o colocou do lado de fora, lembrando-se do que o general Valik dissera: um pishkesh não era um suborno, mas um presente e um ótimo costume iraniano. Depois de pensar um segundo, McIver decidiu sair e deixar a porta aberta — três latões eram mais do que suficientes para garantir que não houvesse problemas.
— Be bahk shid, Agha. Por favor, com licença Excelência. — Depois acrescentou em inglês: — Eu preciso encontrar com meus patrões.
O homem saiu do edifício e entrou no carro, sem olhar para trás.
— Maldito filho da mãe, quase me causou um ataque do coração! — murmurou McIver, depois tirou o homem da cabeça e se dirigiu para a pista. A neve tinha só uns poucos centímetros de profundidade e não estava muito ruim. As marcas que seu carro tinha deixado eram as únicas, e as outras pistas estavam igualmente intactas. O vento aumentara, piorando o frio, mas ele não notou, concentrado no avião.
O 125 surgiu, fazendo uma curva pronunciada, com o trem e os flaps abaixados, deslizando de lado habilmente para perder altura e diminuir a distância de aproximação. John Hogg freou e pousou, deixando o avião rodar até estar em segurança e mesmo então usando os freios com muito cuidado. Entrou na pista de taxiar, acelerou para se encontrar com McIver e parou perto do primeiro caminho de acesso de volta à pista.
Quando McIver se aproximou, a porta estava aberta e John Hogg esperava, enrolado num casaco, batendo com os pés no chão por causa do frio.
— Oi, Mac — exclamou, um homem esbelto e elegante de rosto fino e bigode. — Que ótimo ver você. Venha aqui para dentro, está mais quente.
— Boa idéia. — McIver desligou o carro e seguiu-o, subindo os degraus e entrando no avião. Lá dentro estava aconchegante, as luzes acesas, o café pronto, jornais de Londres nas prateleiras. McIver sabia que havia vinho e cerveja na geladeira, um toalete com vaso sanitário e papel macio lá atrás. Era a civilização outra vez. Trocou um aperto de mão caloroso com Hogg e acenou para o co-piloto.
— Prazer em vê-lo, Johnny. — E abriu a boca de espanto. Sentado em uma das poltronas do avião de oito lugares, sorrindo para ele, estava Andy Gavallan.
— Olá, Mac!
— Meu Deus! Meu Deus, Chinês, que bom ver você — disse McIver, apertando-lhe a mão. — Que diabo você está fazendo aqui? Por que não me avisou que vinha? Que foi...
— Devagar, rapaz. Café?
— Meu Deus, sim. — McIver sentou-se em frente a ele. — Como vai Maureen? E a pequena Electra?
— Estão ótimas. Maravilhosas! Ela ainda vai fazer dois anos e já é um terror! Achei que precisávamos conversar, então entrei neste pássaro e aqui estou.
— Você nem sabe o quanto estou contente. Você está com uma aparência ótima — disse McIver.
— Obrigado, rapaz, você também não está mal. Como é que você está passando, de verdade, Mac? — perguntou Gavallan, mais atentamente.
— Muito bem. — Hogg colocou o café na frente de McIver. Com uma pequena dose de uísque para ele e outra para Gavallan.
— Ah, obrigado, Johnny — disse McIver, animando-se. — Saúde! — Brindou com Gavallan e engoliu a bebida satisfeito. — Estou mais gelado que um cadáver. Acabei de ter um pega com um maldito guarda da alfândega! Por que você está aqui? Algum problema, Andy? Oh, e quanto ao 125? Tanto os revolucionários quanto os legalistas andam muito exaltados. Qualquer um deles pode chegar aqui e apreendê-lo à força.
— Johnny Hogg está vigiando. Vamos conversar a respeito dos meus problemas num instante, mas achei que era melhor vir até aqui e ver com os meus próprios olhos. Temos muita coisa em jogo agora, aqui e fora daqui, com os novos contratos e os aparelhos que estão para chegar. O X63 é um espetáculo, Mac, é o que pode haver de melhor.
— Ótimo, formidável. Quando vamos tê-lo?
— No ano que vem, depois conversamos mais sobre ele. Agora, o Irã é o problema prioritário. Temos que fazer alguns planos de emergência, como manter contato e assim por diante. Ontem eu levei horas em Al Shargaz tentando conseguir uma licença iraniana para vir a Teerã, mas não consegui. Até a embaixada estava fechada; fui pessoalmente ao prédio, em Al Mullah, mas estava fechada. Pedi ao nosso representante para ligar para a casa do embaixador, mas ele tinha saído para almoçar... o dia inteiro. No fim, fui até o controle de tráfego aéreo de Al Shargaz e bati um papo com eles. Eles sugeriram que nós esperássemos, mas eu os convenci a nos dar uma licença e deixar-nos tentar e aqui estamos. Em primeiro lugar, em que estado estão as nossas operações?
McIver relatou o que sabia.
Grande parte do bom humor de Gavallan desapareceu.
— Então Charlie sumiu, Tom Lochart está arriscando o pescoço e todos os nosso negócios no Irã, estúpida ou corajosamente, dependendo do ponto de vista. Duke Starke está passando dificuldades em Bandar Delam com Rudi, Kowiss está sitiada e nós fomos expulsos dos nossos escritórios.
— Sim — acrescentou sombriamente McIver —, eu autorizei o vôo de Tom.
— Provavelmente eu teria feito o mesmo se estivesse aqui, embora isso não justifique o perigo para ele, para nós ou para aquele pobre infeliz do Valik e sua família. Mas eu concordo, a Savak não é prato para ninguém. — Gavallan estava inteiramente desconcertado, embora seu rosto não o demonstrasse. — Ian estava certo de novo.
— Ian? Dunross? Você o viu? Como está aquele doido?
— Ele me ligou de Shangai. — Gavallan contou-lhe o que ele dissera. — Quais são as últimas novidades na situação política por aqui?
— Você deve saber mais do que nós. Nós só conseguimos notícias através da BBC ou da Voz da América. Os jornais ainda não estão circulando e só há boatos — disse McIver, mas ele estava se lembrando dos bons tempos que tinha passado com Dunross em Hong Kong. Ele o ensinara a pilotar um pequeno helicóptero, um ano antes de se juntar a Gavallan em Aberdeen, e embora não tivessem feito uma grande amizade, McIver tinha gostado muito da sua companhia. — Bakhtiar ainda está no poder, com as Forças Armadas por trás dele, mas Bazargan e Khomeini estão lhe mordendo os calcanhares... Oh, maldição, eu esqueci de contar, o chefe Kyabi foi assassinado.
— Meu Deus, que coisa horrível! Mas por quê?
— Nós não sabemos por que nem como nem por quem. Freddy Ayre contou-nos velada...
— Desculpe interromper, senhor — ouviu-se pelo alto-falante, e havia uma nota de urgência na voz plácida de Hogg. — Três carros cheios de homens e de armas estão vindo nesta direção, vindos da área do terminal.
Os dois homens espiaram pelas janelinhas redondas. Conseguiram ver os carros. Gavallan apanhou o binóculo e o ajustou.
— Há cinco ou seis homens em cada carro. Há um mulá no banco da frente do primeiro carro. É gente de Khomeini. — Pendurou o binóculo no pescoço e saiu rapidamente do assento. — Johnny!
— Sim, senhor? — respondeu Hogg, já na porta.
— Plano B! — Imediatamente, Hogg fez um sinal com os polegares para cima para o co-piloto que, na mesma hora, começou a abrir os manetes enquanto Gavallan se enfiava num casaco e apanhava uma sacola de viagem. — Vamos, Mac! — Desceu os degraus de dois em dois, com McIver atrás dele. Assim que eles saíram os degraus foram puxados, a porta fechada, os motores ligados e o 125 taxiou, ganhando velocidade. — Fique de costas para os carros, Mac, não olhe para eles, olhe o avião decolando!
Tudo aconteceu tão depressa que McIver mal teve tempo de puxar o fecho ecler do casaco. Um dos carros avançou para interceptar o avião mas, nessa altura, o 125 já corria pela pista. Em segundos ele decolou e se afastou. Então eles se viraram para enfrentar os carros que chegavam.
— E agora, Andy?
— Isso depende do comitê de recepção.
— Que diabo era o Plano B?
— Melhor que o Plano C, cara — disse Gavallan, rindo. — Este era uma merda. Plano B: Eu salto, Johnny decola imediatamente e não diz a ninguém que teve que sair correndo, amanhã ele volta para me apanhar no mesmo horário; se não houver nenhum contato, visual ou pelo rádio, então Johnny pula um dia e vem uma hora mais cedo. E assim por diante durante quatro dias. Então ele fica estacionado em Al Shargaz e aguarda novas instruções.
— Plano A?
— Esse era se nós pudéssemos ter passado a noite aqui. Eles montando guarda e eu com você.
Os carros pararam, o mulá e os Faixas Verdes os cercaram, apontando as armas para eles, todo mundo gritando. De repente, Gavallan berrou:
— Allah-u Akbar — e todo mundo parou, estatelado. Com um floreio, levantou o chapéu para o mulá, que também estava armado, tirou um documento de aparência oficial do bolso, escrito em farsi, que estava selado com lacre vermelho na ponta. Entregou-o ao mulá. — É uma licença para pousar em Teerã concedida pelo 'novo' embaixador em Londres — disse a McIver enquanto os homens se juntavam em volta do mulá espiando para o papel. — Eu parei em Londres para apanhá-lo. Ele diz que eu sou um VIP, em missão oficial e que posso entrar e sair do país sem ser incomodado.
— Como você conseguiu isso? — perguntou McIver, com admiração.
— Influência, meu rapaz, influência e um grande heung yau. — E cuidadosamente usou o equivalente cantonês a pishkesh.
— Vocês vêm conosco — disse um jovem de barba que estava perto do mulá, com um sotaque americano. — Vocês estão presos!
— Sob que acusação, meu caro senhor?
— Pouso ilegal sem permis...
— Isto aqui é uma licença concedida pelo seu próprio embaixador em Londres! Viva a Revolução! Vida longa para o aiatolá Khomeini!
O jovem hesitou, depois traduziu para o mulá. Houve uma troca furiosa de palavras entre eles.
— Vocês vêm conosco!
— Nós os seguiremos no nosso carro! Vamos, Mac — disse Gavallan, com firmeza e entrou no carro. McIver ligou o motor. Por alguns instantes os homens ficaram sem ação, depois o homem que sabia falar inglês e mais um outro entraram atrás. Ambos carregavam uma AK47
— Vá para o terminal! Vocês estão presos!
No terminal, perto da seção de Imigração, havia mais homens hostis e um funcionário da Imigração muito nervoso. Imediatamente, McIver mostrou o seu passe para o aeroporto, sua carteira de trabalho, explicou quem eles eram e que trabalhavam para a IranOil e tentou convencê-los a deixá-los passar, mas o mandaram calar a boca. O funcionário examinou meticulosamente o papel e o passaporte de Gavallan — com os rapazes o tempo todo em volta deles, com seus corpos fedorentos. Depois abriu a valise de Gavallan e a revistou grosseiramente, mas ela continha apenas um aparelho de barbear, uma camisa, roupa de baixo e roupa de dormir. E um quarto de litro de uísque. Imediatamente a garrafa foi confiscada por um dos rapazes, aberta e despejada no chão.
— Dew neh loh moh — Gavallan disse docemente em cantonês, e McIver quase caiu na gargalhada. — Viva a revolução.
O mulá interrogou o funcionário, e eles puderam ver o medo e o suor dele. No fim, o rapaz que sabia falar inglês disse:
— As autoridades vão ficar com o papel e o passaporte e vocês vão ter que dar mais explicações mais tarde.
— Eu vou ficar com o meu passaporte — disse Gavallan, tranqüilamente.
— O passaporte vai ficar com as autoridades. Os inimigos vão sofrer. Aqueles que desrespeitarem as leis... pousos ilegais e entradas no país. Sofrerão castigos islâmicos. Sua Excelência quer saber quem estava no avião com você.
— Só a minha tripulação, de duas pessoas. Estão no registro anexo à permissão para pousar. Agora, o meu passaporte, por favor, e este documento.
— Vão ficar com as autoridades. Onde você vai ficar? — McIver deu o endereço dele.
O homem traduziu. Mais uma vez houve uma discussão acalorada.
— Informo-lhes que agora seus aviões não podem voar nem pousar sem antes pedir permissão. Todos os aviões são do Irã. Todos os aviões que estão no Irã agora pertencem ao Estado e..
— Os aviões pertencem aos seus donos legais — disse McIver.
— Sim — disse o homem com um riso de deboche —, o nosso Estado islâmico é o dono. Se não gostarem das leis, saiam. Saiam do Irã. Nós não os convidamos para virem aqui.
— Ah, mas você se engana. Nós, da S-G Helicópteros, fomos convidados para vir para cá. Nós trabalhamos para o seu governo e temos servido à IranOil há anos.
— A IranOil é uma companhia do xá. — E o homem cuspiu no chão. — O Estado islâmico é o dono do petróleo, e não os estrangeiros. Vocês logo serão presos junto com todos os outros por um grande crime: roubar o petróleo do Irã.
— Bobagem! Nós não roubamos nada. — disse McIver —Nós ajudamos o Irã a entrar no século vinte! Nós.
— Saiam do Irã, se quiserem — tornou a dizer o porta--voz, sem prestar atenção nele. — Agora todas as ordem vêm do imã Khomeini, que Alá o proteja! Ele diz: nenhum pouso ou decolagem sem permissão. E sempre um dos guardas de Khomeini acompanhará cada avião. Entendido?
— Compreendemos o que você diz — respondeu educadamente Gavallan. — Posso pedir-lhe para nos dar isso por escrito, já que o governo de Bakhtiar pode não concordar.
O homem traduziu e houve muitas gargalhadas.
— Bakhtiar partiu — disse rindo o homem. — Aquele cão do xá está escondido. Escondido, vocês compreendem? O imã é o governo. Só ele!
— Sim, é claro — disse Gavallan, sem acreditar nele. — Nós podemos ir, então?
— Vão. Amanhã apresentem-se às autoridades.
— Onde, e a que autoridades?
— Às autoridades de Teerã.
O homem traduziu para os outros e mais uma vez todo mundo riu. O mulá pôs o passaporte e o papel no bolso e saiu andando com imponência. Alguns guardas foram com ele, levando junto o suado funcionário da Imigração. Os outros ficaram andando por ali, aparentemente a esmo. Alguns ficaram vigiando-os, encostados na parede, fumando, com seus rifles do exército americano pendurados de qualquer jeito.
Estava muito frio no terminal. E muito vazio.
— Ele está com toda a razão, sabe? — disse uma voz. Gavallan e McIver olharam para trás. Era George Talbot, da embaixada britânica, um homem baixo e seco de 55 anos, vestindo uma capa de chuva grossa e um chapéu de pele, de estilo russo. Estava na porta de um escritório da alfândega, acompanhado por um homem alto, de ombros largos, de uns sessenta anos, de olhos azuis, cabelos e bigode grisalhos, vestido displicentemente, usando um cachecol, um chapéu mole e uma capa de chuva velha. Ambos estavam fumando.
— Oh, olá, George, prazer em vê-lo. — Gavallan foi até ele e estendeu a mão. Ele o vinha encontrando através dos anos, tanto no Irã quanto na Malásia, o antigo posto de Talbot, onde a S-G também operava em grande escala. — Há quanto tempo você está aqui?
— Há poucos minutos apenas. — Talbot apagou o cigarro e tossiu distraidamente. — Alô, Duncan! Bem, isto aqui está uma confusão, hein?
— Se está. — Gavallan olhou para o outro homem.
— Ah, posso lhe apresentar o sr. Armstrong?
— Olá — cumprimentou-o Gavallan, imaginando onde o vira antes e quem era ele, notando a dureza do olhar e o rosto forte. Aposto cinqüenta libras como ele é da CIA, se for americano, pensou. — O senhor também é da embaixada? — perguntou como quem não quer nada.
— Não, senhor — respondeu o homem, sorrindo.
Gavallan tinha preparado os ouvidos, mas não detectou um sotaque nem genuinamente inglês nem americano. Pode ser uma coisa ou outra, ou canadense, pensou, é difícil dizer com duas palavras.
— Você está aqui em missão oficial, George? — perguntou McIver.
— Sim e não. — Talbot foi andando para a porta que levava ao pátio do aeroporto, onde o carro de McIver estava estacionado, afastando-os dos ouvidos indiscretos. — Na verdade, assim que ouvimos o barulho do jato de vocês, nós, ahn, nós corremos para cá na esperança de que vocês pudessem levar, ahn, alguns despachos para o governo de Sua Majestade. O embaixador ficaria imensamente grato, mas, bem, nós chegamos bem na hora em que o avião estava decolando. Uma pena!
— Gostaria de ajudar no que for possível — disse Gavallan, também em voz baixa. — Talvez amanhã? — Viu o olhar trocado entre os dois homens e ficou imaginando o que mais estaria errado.
— Será possível, sr. Gavallan? — Perguntou Armstrong.
— É possível. — Gavallan chegou à conclusão que ele era inglês, embora sem muita certeza.
— Você vai partir com ou sem permissão do Irã, uma permissão oficial, nem passaporte? — Talbot sorriu e tossiu sem notar.
— Eu, ahn, tenho uma cópia da permissão. E outro passaporte. Eu pedi um de reserva, oficialmente, no caso de alguma eventualidade
— Irregular, mas prudente — suspirou Talbot. — Sim. Oh, aliás, eu gostaria muito de ter uma cópia da sua permissão para pousar.
— Talvez não seja uma idéia muito boa... oficialmente. Você nunca sabe o tipo de roubo que algumas pessoas andam fazendo hoje em dia.
— Se você, ahn, partir amanhã, nós ficaríamos gratos se tivesse a gentileza de levar o sr. Armstrong. Suponho que Al Shargaz será a sua primeira parada — disse Talbot.
— Isto é um pedido formal? — perguntou Gavallan, hesitante.
— Formalmente informal. — E Talbot sorriu.
— Com ou sem permissão do Irã, visto e passaporte?
— Você tem toda a razão em perguntar. — Disse Talbot dando uma risada. — Eu garanto que os papéis do sr. Armstrong estarão perfeitamente em ordem. — E acrescentou incisivamente para terminar a conversa: — Como você salientou, não há limites para os furtos que estão ocorrendo hoje em dia.
— Muito bem, sr. Armstrong, eu estarei na casa do capitão McIver. O senhor decide se quer entrar em contato comigo. O primeiro ETD será por volta das 17 horas, mas eu não vou ficar esperando. Está bem?
— Obrigado, senhor.
Mais uma vez, Gavallan prestou atenção no sotaque do homem, mas não conseguiu ter certeza.
— George, quando nós começamos a conversar, você disse, referindo-se àquele filho da mãe arrogante: "Ele está com toda a razão, sabe." Está com a razão a respeito de quê? Que agora eu vou ter que procurar ou me apresentar a alguma nebulosa autoridade em Teerã?
— Não. Que Bakhtiar renunciou e está escondido.
— Meu Deus, você tem certeza? — E os dois homens o olharam de boca aberta.
— Bakhtiar renunciou formalmente há umas duas horas atrás e, sabiamente, desapareceu. — A voz de Talbot era suave e calma, a fumaça do cigarro pontuava suas palavras. — Na verdade, a situação se tornou subitamene muito arriscada, daí a nossa, ahn, ansiedade em, bem, não importa. Ontem à noite, o chefe do Estado-Maior, general Ghara-Baghi, apoiado pelos generais, ordenou a todas as tropas que voltassem aos quartéis, declarando que as Forças Armadas, de agora em diante, eram 'neutras', deixando assim o primeiro-ministro totalmente indefeso e entregando o Estado a Khomeini.
— Neutras? — repetiu Gavallan, sem acreditar. — Isso não é possível. Não é possível. Eles estariam cometendo suicídio.
— Concordo, mas é verdade.
— Cristo!
— Evidentemente, apenas algumas unidades vão obedecer, outras vão lutar — disse Talbot. — Certamente a polícia e a Savak não foram afetadas por essa ordem; eles não vão desistir, embora a batalha agora esteja perdida. Insha'Allah, meu velho. Enquanto isso, muito sangue vai correr pelos esgotos, isto eu lhe garanto.
— Mas... se Bakhtiar... isso não significa que tudo terminou? — disse McIver, animando-se. — A guerra civil está terminada, graças a Deus. Os generais impediram um verdadeiro banho de sangue... um banho de sangue completo. Agora voltaremos à normalidade. Os problemas terminaram.
— Oh, não, meu caro — disse Talbot, com mais calma ainda. — Os problemas estão só começando.
NA PLATAFORMA BELLISSIMA: 18:35H. O pôr-do-sol foi glorioso, com nuvens colorindo o horizonte de vermelho, um céu límpido e claro, a estrela vésper brilhando, uma lua quase cheia. Mas fazia muito frio, a quatro mil metros de altitude, e como já estava escuro a leste, Jean-Luc teve dificuldade em enxegar o 212 que se aproximava.
— Lá vem ele, Gianni — Jean-Luc gritou para o perfurador.
Era a terceira viagem de Scot Gavallan. Todo mundo — operários, cozinheiros, três gatos, quatro cachorros e um canário que pertencia a Gianni Salubrio — já tinha sido transportado em segurança para a plataforma Rosa, com exceção de Mario Guineppa, que teimara em esperar até o fim, apesar da insistência de Jean-Luc, e de Gianni, Pietro e mais dois, que estavam ainda fechando a plataforma.
Jean-Luc ficou de olho no bloco que se mexia de vez em quando, dando-lhe arrepios na espinha. Quando o helicóptero voltou da primeira viagem, todo mundo tinha prendido a respiração por causa do barulho, embora Pietro lhes tivesse assegurado que aquilo não passava de lenda — só dinamite começaria uma avalanche, ou um Ato de Deus. E então, como que para desmenti-lo, o bloco tornou a se mover, só um bocadinho, mas o suficiente para fazer os que ainda estavam na plataforma se sentirem mal.
Pietro desligou o último interruptor e as turbinas dos geradores a diesel pararam. Cansado, enxugou o rosto, deixando uma mancha de óleo. Suas costas doíam, e suas mãos também, por causa do frio, mas o poço estava selado e tão seguro quanto possível. Lá adiante, sobre o abismo, viu o helicóptero se aproximando cautelosamente.
— Vamos embora — disse para os outros, em italiano. — Não há mais nada para fazer aqui. Mais nada, a não ser explodir aquele bloco de merda lá em cima.
Os outros se benzeram com irritação e foram andando para o helicóptero, deixando-o sozinho. Ele olhou para o cume.
— Você parece que está vivo — resmungou. — Um monte de merda monstruoso esperando para apanhar a mim e aos meus lindos poços. Mas você não vai conseguir, seu desgraçado!
Foi até o pequeno depósito de dinamite e apanhou os dois explosivos que tinha fabricado — seis bananas de dinamite em cada um, amarradas em volta de um pavio de trinta segundos. Cuidadosamente, colocou-os numa pequena sacola, com um isqueiro e fósforos.
— Mãe de Deus — rezou com simplicidade — faça com que estes desgraçados funcionem.
— Pietro! Ei, Pietro!
— Estou indo, estou indo, ainda temos muito tempo! — Lá fora, ele viu o rosto branco e assustado de Gianni. — O que foi?
— É Guineppa. É melhor dar uma olhada nele.
Mario Guineppa estava deitado de costas, com a respiração difícil e as pálpebras tremendo. Jean-Luc estava ao lado da cama, com a mão no pulso do homem.
— Uma hora está muito rápido... depois eu não consigo pegá-lo — disse, nervoso.
— Mario fez um exame médico rigoroso há quatro semanas, o que ele faz todo ano... cardiograma, tudo. Muito rigoroso. Ele estava perfeito! — Pietro cuspiu no chão. — Médicos!
— Ele foi louco de insistir em ficar — disse Gianni.
— Ele é o chefe, ele faz o que achar melhor. Vamos colocá-lo na maca e sair — Pietro estava com a fisionomia séria. — Não há nada que possamos fazer por ele aqui. Para o inferno com a dinamite, podemos tratar disso mais tarde ou amanhã.
Cuidadosamente, eles o levantaram, o enrolaram em cobertores e o levaram para fora do trailer, debaixo da neve, em direção ao helicóptero. Assim que chegaram lá, a montanha rugiu. Eles olharam para cima. Neve e gelo começaram a cair, ganhando peso. Em segundos, a avalanche avançava com toda a força. Não havia tempo para correr, a única coisa a fazer era esperar. O rugido aumentou. A neve rolou pela montanha, arrastando para o abismo um trailer e um dos enormes tanques de aço que continham lama. Depois terminou.
— Mamma mia — murmurou Gianni, benzendo-se. — Pensei que dessa vez estivéssemos perdidos.
Jean-Luc também se benzera. Agora o bloco estava ainda mais ameaçador, milhares de toneladas pousadas sobre o campo, com parte da rocha exposta. Neve esfarelada continuava a cair sem parar.
— Jean-Luc! — Era Guineppa. Seus olhos estavam abertos. — Não.. Não espere... dinamite agora... é preciso...
— Ele tem razão, é agora ou nunca — disse Pietro.
— Por favor, estou bem... Mamma mia, faça isto agora! Estou bem! Eles correram para o helicóptero. A maca foi colocada na primeira fila de cadeiras e amarrada no lugar. Os outros colocaram os cintos de segurança. Jean-Luc entrou na cabine e sentou-se no assento da esquerda, colocando os fones no ouvido.
— OK, Scot?
— Fantástico, cara — disse Scot Gavallan. — Como está Guineppa?
— Nada bem. — Jean-Luc checou os instrumentos. Estavam todos no verde e havia bastante combustível. — Merdel Aquele bloco vai cair a qualquer momento; vamos prestar atenção nos deslocamentos de ar, vão ser muito fortes. Allonsyl
— Tome. Eu consegui isso para o Pietro enquanto estava esperando na plataforma Rosa. — Scot entregou a Jean-Luc os fones extras, que agora estavam ligados aos deles.
— Darei a ele quando estivermos no ar. Não me sinto seguro aqui. Suba! Imediatamente, Scot abriu os manetes e tirou o 212 do chão, recuou um pouco, virou o aparelho e ergueu-se sobre o abismo. Quando começaram a subir, Jean-Luc virou-se e se arrastou até a cabine.
— Tome, coloque isto, Pietro, agora você está ligado conosco lá na frente.
— Bom, muito bom. — Pietro estava sentado perto da porta.
— Quando começarmos, pelo amor de Deus, pela minha saúde, e pela sua mãe, não vá cair.
Pietro riu nervosamente. Jean-Luc verificou como estava Guineppa, que parecia um pouco melhor agora, tornou a ir para a frente e colocou os fones.
— Está me ouvindo, Pietro?
— Si. Si, a mico.
O helicóptero foi subindo em círculos. Agora eles estavam no mesmo nível do cume. Daquele ângulo, o bloco não parecia tão perigoso. Estavam começando a sacudir um pouco.
— Suba mais uns trinta metros, amico — ouviram através dos fones —, e rume para o norte.
— Roger, Pietro. Você é o navegador agora — disse Scot.
Os dois pilotos se concentraram. Pietro mostrou-lhes o lugar na face norte onde a dinamite poderia soltar o bloco provocando uma avalanche que não atingisse a plataforma.
— Pode funcionar — murmurou Scot. Fizeram uma volta para se certificarem.
— Amico, quando estivermos sobre aquele ponto, a trinta metros, fique planando; eu vou acender o pavio e jogar os explosivos. Buonol — Eles notaram o tremor na voz de Pietro.
— Não se esqueça de abrir a porta, meu velho — disse Scot, secamente. Houve uma torrente de xingamentos em italiano, em resposta. Scot sorriu.
Então, uma corrente de ar os fez cair vinte metros antes que ele pudesse controlar o aparelho. Um minuto depois estavam na altitude e na posição certas.
— Ótimo, amico. Fique aí.
Jean-Luc virou-se para observar. Atrás, na cabine, os outros olhavam para Pietro, fascinados. Ele apanhou a primeira carga e esticou o pavio, cantarolando Aida.
— Mãe de Deus, Pietro — disse Gianni. — Você tem certeza que sabe o que está fazendo?
Pietro fechou o punho esquerdo, pôs o direito, que segurava a dinamite, no antebraço esquerdo e fez um gesto significativo.
— Preparem-se aí na frente — falou ao microfone, e abriu o cinto de segurança. Checou a posição lá embaixo e balançou a cabeça. — Ótimo, mantenha-o firme. Gianni, cuide da porta. Abra-a só um pouquinho que eu faço o resto.
O aparelho balançava, por causa das correntes de ar giratórias, quando Gianni soltou o cinto e foi para a porta.
— Rápido — disse, sentindo-se muito desprotegido, depois falou com o homem que estava mais perto: — Segure o meu cinto! Abra a porta, Gianni!
Gianni conseguiu abrir uns trinta centímetros e a manteve assim, esquecido do doente na maca. O ar rugiu dentro da cabine. O aparelho girou, com a sucção da porta aberta tornando ainda mais difícil para Scot controlá-lo. Pietro segurou o pavio e tentou acender o isqueiro. Falhou. Uma vez, e mais outra, cada vez mais nervoso.
— Mãe de Deus, ande! — O suor caía da testa de Pietro quando o isqueiro finalmente acendeu. O pavio faiscou. Segurando-se com uma das mãos, ele se inclinou para a porta, açoitado pelo vento. O aparelho deu um pinote e os dois homens desejaram ter tomado a precaução de trazer uma corda para se amarrarem. Cuidadosamente, Pietro jogou o explosivo pela abertura. No mesmo instante, Gianni fechou a porta e trancou-a. E então começou a suar.
— Bomba atirada, vamos embora! — ordenou Pietro, com os dentes batendo por causa do frio, e tornou a colocar o cinto. Na mesma hora, o helicóptero se afastou e ele ficou tão aliviado por ter terminado que começou a rir. Histericamente, os outros o imitaram e todos começaram a contagem regressiva: —... seis... cinco... quatro... três... dois... um! — Nada aconteceu. As risadas terminaram tão depressa quanto tinham começado.
— Você o viu cair, Jean-Luc?
— Não. Nós não vimos nada — respondeu sombriamente o francês, sem querer repetir a manobra. — Talvez tenha batido numa pedra e o pavio tenha se soltado. — Mas por dentro ele estava dizendo: Italiano estúpido, não consegue nem prender umas poucas bananas de dinamite num maldito pavio. — Vamos tentar de novo, está bem?
— Por que não? — disse Pietro, Confiantemente. — O detonador estava perfeito. O fato dele não explodir foi um Ato do Demônio. Sim, sem dúvida. Isso acontece muito na neve. Muito mesmo. A neve é uma vagabunda e você nunca...
— Não culpe a neve, Pietro, e foi um Ato de Deus, e não do Demônio — disse supersticiosamente Gianni, benzendo-se. — Por favor, chega de Demônio enquanto estamos no ar.
Pietro apanhou a segunda carga e a examinou cuidadosamente. O arame que amarrava as bananas de dinamite estava firme e o pavio também.
— Olha aí, está vendo, perfeito, como o outro. — Ele o atirou de uma mão para a outra e depois sacudiu-o com força para ver se o pavio se soltava.
— Mama mia — disse um dos homens, com o estômago revirado. — Você está louco?
— Isto aqui não é como nitroglicerina, amico — Pietro disse a ele e bateu no explosivo com mais força ainda. — Olha aí, você está vendo que está bem apertado.
— Não tanto quanto o meu cú — disse Gianni, zangado, em italiano. Quer fazer o favor de parar com isso?
Pietro deu de ombros e olhou pela janela. O cume estava se aproximando. Ele podia ver o lugar exato
— Prepare-se, Gianni. — E então falou no microfone: — Só um pouco mais para leste, signor piloto. Mantenha-o aí... firme... não pode mantê-lo mais firme? Prepare-se Gianni. — Levantou o pavio, com o isqueiro perto da ponta. — Abra esta maldita porta!
Irritado, Gianni soltou o cinto e obedeceu, o helicóptero balançou e ele gritou, perdeu o equilíbrio, caindo sobre a porta, e seu peso fez com que a porta se abrisse mais e ele foi projetado para fora. Mas o homem que estava segurando seu cinto agüentou firme, com Gianni com metade do corpo para dentro e metade para fora e a sucção puxando-os violentamente. No instante em que Gianni abriu a porta, Pietro tinha acendido o isqueiro e o fogo já tinha incendiado o pavio, mas no meio do pânico por causa de Gianni, Pietro tinha se distraído. Instintivamente, ele também tentou agarrar Gianni e a dinamite caiu da sua mão. Todos ficaram olhando estatelados, enquanto ele engatinhava pelo chão, enfiando a mão debaixo das poltronas, enquanto a dinamite rolava de um lado para o outro, com o pavio queimando alegremente — e os fones arrancados do ouvido. Quase desmaiando de medo, Gianni agarrou-se na porta com uma das mãos e começou a se arrastar para dentro, apavorado que o seu cinto arrebentasse e se xingando por ter usado aquele cinto fino ao invés daquele que a mulher tinha-lhe dado de Natal...
Os dedos de Pietro tocaram a dinamite. O pavio encostou nele, queimando-o, mas ele não sentiu dor. Agarrou a dinamite, ainda no chão, virou-se, se apoiou numa cadeira e atirou a dinamite e o que restava do pavio para fora, depois esticou a mão que estava livre e agarrou uma das pernas do amigo, ajudando a puxá-lo para dentro. O outro homem bateu a porta e os dois, Pietro e Gianni, caíram no chão.
— Afaste-se daqui, Scot — disse Jean-Luc, com uma voz fraca.
O helicóptero se inclinou e afastou-se da face norte, sessenta metros abaixo deles. Por um momento, o cume continuou puro, desolado e imóvel. Então houve uma grande explosão, que ninguém no helicóptero ouviu nem sentiu. A neve subiu em espiral e depois começou a assentar. Depois, com um rugido poderoso, toda a face norte desmoronou, a avalanche desceu pelo vale, cortando a encosta da montanha, deixando uma trilha de meio quilômetro de largura até parar.
— Meu Deus, oine! — disse Scot, apontando para a frente. O bloco unha desaparecido Sobre a plataforma Bellissima havia apenas uma ligeira inclinação, o lugar estava intacto exceto onde o trailer e o tanque tinham sido carregados pela primeira avalanche.
— Pietro! — exclamou excitadamente Jean-Luc — Você... — Ele parou. Pietro e Gianni ainda estavam caídos no chão, se recuperando. Os fones de Pietro tinham desaparecido. — Scot, eles não vão conseguir ver pelas janelas. Chegue mais perto e faça a volta para eles poderem ver!
Animadamente, Jean-Luc engatinhou novamente para a cabine e começou a dar tapas em Pietro, cumprimentando-o. Todo mundo olhou para ele com cara de idiota, e quando entenderam o que ele estava gritando por sobre o barulho dos motores, esqueceram o medo e espiaram pelas janelas. E quando viram como a explosão afastara completamente o perigo, deram gritos de alegria. Gianni abraçou Pietro, emocionado, jurando amizade eterna, abençoando-o por salvá-lo, por salvar-lhes as vidas e o emprego.
— Niente, caro — disse Pietro, expansivamente. — Eu não sou um homem de Aosta?
Jean-Luc se debruçou sobre a maca e sacudiu delicadamente Mario Guineppa.
— Mario! Pietro conseguiu! Com perfeição. Bellissima está salva... Guineppa não respondeu. Ele já estava morto.
TERÇA-FEIRA, 13 de fevereiro
NA FACE NORTE DO MONTE SABALAN: 22H. A noite estava terrivelmente fria sob um céu sem nuvens, coberto de estrelas e com uma lua brilhante, e o capitão Ross e seus dois gurkhas avançavam cautelosamente pelo alto da montanha, seguindo o guia e o homem da CIA. Os soldados usavam macacões brancos, com capuz, por cima do uniforme de batalha, além de luvas e roupas de baixo térmicas, e ainda assim o frio os incomodava. Estavam a cerca de dois mil e quinhentos metros, caminhando a favor do vento em direção ao seu objetivo, que estava a um quilômetro de distância, do outro lado do topo. Sobre eles, o vasto cone do vulcão extinto se erguia a cinco mil metros de altura.
— Meshgi, vamos parar para descansar — disse o homem da CIA, em turco, para o guia. Ambos vestiam roupas grossas, usadas pelos homens das tribos.
— Se é isso o que o senhor deseja, aga, então que seja.
O guia indicou o caminho, deixando a trilha e caminhando através da neve até uma pequena caverna que nenhum deles tinha notado. Ele era velho e retorcido como uma oliveira velha, magro e cabeludo, com uma roupa em farrapos, e, no entanto, ainda era o mais forte deles depois de quase dois dias de escalada.
— Ótimo — disse o homem da CIA. Depois, virando-se para Ross: — Vamos ficar escondidos aqui até estarmos prontos.
Ross tirou a carabina do ombro, sentou-se e arriou com satisfação a mochila, com as batatas da perna, as coxas e as costas doendo.
— Meu corpo está todo doído — disse aborrecido —, e eu pensei que estivesse em forma.
— O senhor está em forma, sahib — o sargento gurkha, chamado Tenzing, disse com um sorriso. — Na nossa próxima licença vamos escalar o Everest, hein?
— Nem que você me pague — retrucou Ross, em inglês e os três soldados riram juntos.
— Deve ser fantástico ir até o topo dessa montanha — disse pensativo o homem da CIA.
Ross viu-o olhar para a noite lá fora e para os milhares de metros de montanha lá embaixo. Quando eles tinham se encontrado pela primeira vez perto de Bandar-e Pahlavi, há dois dias, se não soubesse quem ele era, teria pensado que fosse meio-mongol, nepalês ou tibetano, pois o homem da CIA tinha cabelos escuros, uma pele amarelada, olhos asiáticos e se vestia como um nômade.
— O seu contato da CIA é Rosemont, Vien Rosemont, ele é meio-vietnamita, meio-americano — dissera o coronel da CIA. — Ele tem 26 anos, está aqui há um ano, fala farsi e turco, faz parte da segunda geração da CIA e você pode confiar sua vida a ele.
— Parece que vou ter que fazê-lo de qualquer maneira, o senhor não acha?
— Hein? Oh, é claro. Sim, acho que sim. Encontre-se com ele ao sul de Bandar-e Pahlavi, nestas coordenadas, e ele estará lá com o barco. Mantenham-se perto da costa até chegarem ao sul da fronteira soviética, e então voltem para terra.
— Ele é o guia?
— Não. Ele apenas, ahn, sabe a respeito de Meca... este é o nosso código para o posto de radar. Arranjar o guia é problema dele, mas ele vai conseguir. Se ele não estiver no local combinado, espere até sábado à noite. Se ele não chegar até o amanhecer é porque foi apanhado e você desiste. OK?
— Sim. E quanto aos boatos de insurreição no Azerbeijão?
— Pelo que eu sei, está havendo luta em Tabriz e na parte ocidental, nada na região de Ardabil. Rosemont deve saber mais sobre isso. Nós, ahn, nós sabemos que os soviéticos estão de prontidão e prontos para invadir se os habitantes do Azerbeijão expulsarem os partidários de Bakhtiar. Depende dos líderes deles. Um deles é Abdullah Khan. Se você tiver problemas, vá procurá-lo. Ele é um dos nossos. É leal.
— Está bem. E esse piloto, Charles Pettikin. Digamos que ele não queira levar-nos?
— Obrigue-o. De um jeito ou de outro. Esta operação tem a aprovação dos chefões, tanto do seu lado quanto do meu, mas não podemos ter nada por escrito. Certo, Bob?
O outro homem presente ao encontro, um tal de Robert Armstrong que ele também nunca tinha visto antes, balançara a cabeça, concordando.
— Sim.
— E os iranianos? Eles também aprovaram?
— Isso é uma questão de, ahn, de segurança nacional, sua e nossa. Deles também, mas eles... eles estão ocupados. Bakhtiar, bem, pode ser que ele não dure.
— Então é verdade. Os Estados Unidos estão puxando o tapete?
— Não sei dizer, capitão.
— Uma última pergunta: por que não estão mandando o seu próprio pessoal?
— Eles estão todos ocupados. Nós não podemos trazer mais gente para cá com rapidez. Não gente treinada como vocês. — Robert Armstrong respondera pelo coronel.
Não há dúvida que nós somos bem treinados, pensou Ross, relaxando os ombros em carne viva por causa das alças da mochila — escalar, saltar, esquiar, mergulhar, matar silenciosamente ou fazendo barulho, mover-se com a rapidez do vento contra terroristas ou inimigos públicos, e explodir qualquer coisa, em cima ou debaixo d'água, se for preciso. Mas eu tenho muita sorte, tenho tudo o que quero: saúde, diploma universitário, Sandhurst, paraquedistas, Serviços Aéreos Especiais e até os meus bem-amados gurkhas. Sorriu para os dois e disse uma obscenidade em gurkhali, um dialeto vulgar, que os fez rir às gargalhadas. Então viu Vien Rosemont e o guia olhando para ele.
— Perdão, Excelências — disse em farsi —, eu só estava dizendo aos meus irmãos para se comportarem.
Meshgi não disse nada, apenas tornou a prestar atenção na noite. Rosemont tinha tirado as botas e estava massageando os pés por causa do frio.
— Os caras que eu tenho visto, oficiais britânicos, eles não fazem amizade com os seus soldados, não como você.
— Talvez eu tenha mais sorte que os outros. — Com o canto dos olhos, Ross vigiava o guia que tinha se levantado e estava agora em pé na entrada da caverna, escutando. O velho vinha ficando cada vez mais inquieto nas últimas horas. Até onde eu posso confiar nele?, pensou, e então olhou para Gueng que estava mais perto. Na mesma hora, o homenzinho entendeu a mensagem e concordou com a cabeça, imperceptivelmente.
— O capitão é um dos nossos, senhor — dizia Tenzing para Rosemont, orgulhosamente. — Como seu pai e seu avô. E todos dois eram Sheng'khan.
— O que é isso?
— É um título gurkhali — disse Ross, disfarçando o orgulho. — Significa Senhor da Montanha. Não tem muito sentido fora do regimento.
— Três gerações na mesma unidade. Isso é comum?
É claro que não, Ross teve vontade de dizer, incomodado com as perguntas pessoais, embora estivesse gostando de Vien Rosemont. O barco chegara na hora, a viagem pela costa fora rápida e segura, com eles escondidos debaixo da carga. Ao anoitecer, desembarcaram com facilidade e se dirigiram para o próximo ponto de encontro, onde o guia esperava. Depois caminharam depressa para as montanhas, sem que Rosemont reclamasse nenhuma vez, apenas mantendo uma marcha puxada, com pouca conversa e sem fazer muitas perguntas.
Rosemont esperou com paciência, notando que Ross estava distraído. Então viu o guia sair da caverna, hesitar, depois voltar e se agachar na entrada da caverna com o rifle no colo.
— O que é, Meshgi? — perguntou Rosemont.
— Nada, aga. Há rebanhos no vale, de cabras e ovelhas.
— Ótimo. — Rosemont encostou-se na parede, confortavelmente. Foi sorte encontrar esta caverna, pensou, é um bom lugar para se esconder. Tornou a olhar para Ross e viu que este o observava. Depois de um intervalo, acrescentou: É ótimo fazer parte de uma equipe.
— Qual é o plano de agora em diante? — perguntou Ross.
— Quando sairmos daqui, eu vou na frente. Você e os seus homens esperem atrás, até eu me certificar de que está tudo bem, certo?
— Como quiser, mas leve o sargento Tenzing com você. Ele pode proteger sua retaguarda. Eu e Gueng cobriremos vocês dois.
— Claro, parece uma boa idéia. Está bem, sargento? — perguntou Rosemont, depois de uma pausa.
— Sim, sahib. Por favor, diga-me o que quer com palavras simples. Meu inglês não é bom.
— Tudo bem — disse Rosemont, disfarçando o nervosismo. Sabia que estava sendo avaliado por Ross do mesmo modo como o avaliava. Havia muito em jogo.
— Faça Meca ir pelos ares — dissera-lhe o seu diretor. — Temos uma equipe de especialistas para ajudá-lo; não sabemos o quanto eles são bons, mas foi o melhor que pudemos conseguir. O líder é um capitão, John Ross, aqui está o retrato dele e está acompanhado por dois gurkhas, não sei se falam inglês, mas vêm muito bem recomendados. Ross é um oficial de carreira. Ouça, como você nunca trabalhou com ingleses antes, vou-lhe dar um aviso. Não tente fazer amizade nem o chame logo pelo primeiro nome... eles são sensíveis como o diabo no que diz respeito a perguntas pessoais, então vá com calma, OK?
— É claro.
— Pelo que sabemos, vocês vão encontrar Meca vazia. Nossos outros postos, mais próximos da Turquia, ainda estão operando. Estamos querendo agüentar o máximo que pudermos; até lá os chefões já terão feito um acordo com os novos mandachuvas, Bakhtiar ou Khomeini. Mas Meca... malditos sejam os filhos da mãe que nos causaram tanto risco.
— Quanto risco?
— Achamos que eles simplesmente partiram com muita pressa e não destruíram nada. Você já esteve lá, pelo amor de Deus! Meca está cheia de instrumentos altamente secretos, aparelhagem de escuta, de espia, radares de longo alcance, lá estão guardados códigos cifrados de satélites, códigos e computadores em quantidade suficiente para fazer com que o nosso antipático chefe da KGB, Andropov, seja eleito o Homem do Ano, se ele os pegar. Pode acreditar nisso: aqueles filhos da mãe simplesmente deixaram tudo para trás!
— Traição?
— Duvido. Apenas estupidez, burrice. Não havia nem mesmo um plano de emergência em Sabalan, pelo amor de Deus. Nem em nenhum outro lugar. Acho que a culpa não é inteiramente deles. Nenhum de nós calculou que o xá fosse se entregar tão depressa, nem que Khomeini acabasse com Bakhtiar tão depressa. Não tivemos nenhum aviso. Nem mesmo da Savak...
E agora temos que catar os pedaços, pensou Vien. Ou, mais corretamente, mandá-los pelos ares. Olhou para o relógio, sentindo-se muito cansado. Examinou a noite e a lua. É melhor esperar mais uma meia hora. Suas pernas doíam, e também a cabeça. Viu Ross observando-o e sorriu por dentro: Eu não vou falhar, inglês. Mas, e você?
— Mais uma hora e partimos — disse Vien.
— Por que esperar?
— A lua estará mais favorável. Aqui é seguro e temos tempo. Você sabe tudo o que temos que fazer?
— A minha parte é explodir a entrada da caverna e tudo o mais que você mandar em Meca, depois sair correndo até chegar em casa.
— Em casa, para você, é onde? — perguntou Rosemont sorrindo e sentindo-se melhor.
— Não sei realmente — disse Ross, apanhado desprevenido. Nunca fizera esta pergunta a si mesmo. Alguns instantes depois, mais para ele mesmo do que para o americano, acrescentou: — Talvez a Escócia, talvez o Nepal. Minha mãe e meu pai estão em Katmandu, são escoceses como eu, mas estão morando lá desde 1951, quando ele se aposentou. Eu até nasci lá, embora tenha feito quase todos os meus estudos na Escócia. — Os dois lugares são a minha casa, pensou. — E você?
— Washington D.C., na verdade, Falls Church, Virgínia, que quase faz parte de Washington. Eu nasci lá. — Rosemont queria um cigarro mas sabia que podia ser perigoso. — Papai era da CIA. Ele já está morto, mas passou os seus últimos anos em Langley, que fica perto... o QG da CIA é em Langley. — Estava satisfeito em conversar. — Mamãe ainda está em Falls Church, há uns dois anos que eu não vou lá. Você já esteve nos Estados Unidos?
— Não, ainda não. — O vento tinha aumentado um pouco e, por alguns instantes, eles observaram a noite.
— Vai diminuir depois da meia-noite — disse Rosemont, confiante. Ross viu o guia mudar de posição outra vez. Será que ele vai fugir?
— Você já trabalhou com o guia antes?
— Claro. Andei por todas estas montanhas com ele no ano passado; passei um mês aqui. Rotina. Tem um bocado de gente da oposição infiltrada por esta área e nós tentamos vigiá-los. Como eles fazem conosco. — Rosemont observou o guia. — Meshgi é um cara legal. Os curdos não gostam dos iranianos, nem dos iraquianos ou dos nossos amigos do outro lado da fronteira. Mas você tem razão em perguntar.
— Tenzing, vigie tudo aqui por perto, você come depois — falou Ross em gurkhali. Imediatamente, Tenzing se levantou de onde estava e saiu. — Eu o mandei ficar de guarda.
— Ótimo — concordou Rosemont. Ele os observara cuidadosamente na subida e ficara muito impressionado com o modo como eles trabalhavam em equipe, trocando de posições, sempre com um deles cobrindo a retaguarda, sempre parecendo saber o que fazer, sem precisar de ordens, sempre com as armas destravadas. — Isto não é um tanto perigoso? — perguntara.
— Sim, sr. Rosemont, se a pessoa não sabe o que está fazendo — dissera o inglês sem nenhuma arrogância aparente. — Mas quando qualquer árvore, esquina ou pedra pode esconder inimigos, a diferença entre uma arma travada e outra destravada pode significar matar ou morrer.
Vien Rosemont recordou como o outro acrescentara francamente: "Faremos tudo o que for possível para ajudá-lo e tirá-lo de lá" — e ele se perguntou mais uma vez se conseguiriam entrar, quanto mais sair. Fazia quase uma semana que Meca fora abandonada. Ninguém sabia o que esperar quando chegassem lá. Poderia estar intacta, já saqueada ou até ocupada.
— Você sabe que toda esta operação é loucura?
— Não nos cabe questionar isso.
— Nosso papel é obedecer ou morrer? Acho que é uma sacanagem.
— Também acho que é uma sacanagem, se isso ajuda alguma coisa. Foi a primeira vez que eles riram juntos. Rosemont se sentiu muito melhor.
— Ouça, não tive ainda oportunidade de dizer, mas estou contente por ter vocês três a bordo.
— Bem, ahn, prazer em estar aqui. — Ross disfarçou seu embaraço pelo cumprimento. — Aga — disse para o guia —, por favor, coma conosco.
— Obrigado, aga, mas não estou com fome — respondeu o velho, sem se mexer da entrada da caverna.
— Vocês têm muitas unidades especiais no Irã? — perguntou Rosemont, enquanto calçava as botas.
— Não, uma meia dúzia. Nós estamos aqui para treinar os iranianos. Você acha que Bakhtiar vai durar? — Abriu a mochila e distribuiu as latas de carne enlatada.
— Não. O que dizem nas montanhas, ente as tribos, é que ele vai ser deposto, provavelmente morto, até o fim da semana.
— As coisas estão tão ruins assim?
— Piores. Dizem que dentro de um ano o Azerbeijão será um protetorado soviético.
— Que merda!
— Sim. Mas nunca se sabe — Vien sorriu. — É isso que torna a vida interessante.
— Tome — disse Ross, oferecendo-lhe o cantil —, é a melhor pinga iraniana que se pode comprar.
Rosemont fez uma careta e provou um pouco, então sorriu.
— Cristo, é uísque escocês legítimo! — Preparou-se para dar um gole de verdade, mas Ross estava atento e puxou o cantil.
— Vá com calma. É só o que temos, aga.
Rosemont sorriu. Eles comeram rapidamente. A caverna era aconchegante e segura.
— Você esteve no Vietnã? — perguntou Rosemont, com vontade de conversar, achando que o momento era propício.
— Não, nunca estive. Quase fui lá uma vez, quando meu pai e eu estávamos indo para Hong Kong, mas de Saigon fomos desviados para Bangkok.
— Com os gurkhas!
— Não, isso foi há muitos anos, mas agora, de fato, nós temos um batalhão lá.
Ross pensou por um momento: eu tinha sete ou oito anos, meu pai tinha uns parentes em Hong Kong, Dunross, sim, este era o nome deles, e havia uma espécie de reunião de clã. Não me lembro muito de Hong Kong, exceto de um leproso deitado no chão ao lado da estação das barcas. Tinha que passar por ele todo dia. Quase todo dia.
— Meu pai esteve em Hong Kong em 1963 — Vien falou com orgulho. — Ele era o diretor adjunto local da CIA. — Pegou uma pedra e ficou brincando com ela. — Você sabe que eu sou meio-vietnamita?
— Sim, eles me disseram.
— O que mais lhe contaram?
— Só que eu podia confiar minha vida a você.
— Esperemos que eles tenham razão. — E Rosemont sorriu, encabulado. Pensativamente, começou a checar a mira do seu Ml6. — Eu sempre quis visitar o Vietnã. Meu pai, meu verdadeiro pai, era vietnamita, um agricultor, mas ele foi morto pouco antes de eu nascer; isto foi quando os franceses eram os donos da Indochina. Ele foi apanhado pelos vietcongues perto de Dien Bien Phu. Mamãe.. — A tristeza foi embora e ele sorriu. — Mamãe é tão americana quanto um Big Mac e quando ela tornou a casar, escolheu o que havia de melhor. Nenhum pai de verdade teria me amado mais...
— Sahibl — gritou Gueng, de repente, levantando a carabina. Ross e Rosemont agarraram suas armas, então ouviu-se um som agudo, trazido pelo vento, e Ross e Gueng relaxaram.
— É Tenzing.
O sargento apareceu tão silenciosamente quanto saíra. Mas agora seu rosto estava sério.
— Sahib, há muitos caminhões na estrada lá embaixo.
— Em inglês, Tenzing.
— Sim, sahib. Muitos caminhões, eu contei onze, em comboio, na estrada que fica no fundo do vale...
— Aquela estrada leva a Meca. A que distância estavam? — praguejou Rosemont.
— No fundo do vale. Eu fui até o outro lado do cume e há um... — Ele disse uma palavra em gurkhali e Ross lhe deu a tradução em inglês. — Um pro-montório. A estrada contorna o vale e depois começa a subir como uma cobra. Se o rabo da cobra está no vale e a cabeça onde quer que a estrada termine, então os quatro caminhões já estavam bem depois do rabo.
— Uma hora no máximo. — Rosemont tornou a praguejar. — É melhor... Neste momento, houve um pequeno tumulto e eles olharam para a entrada da caverna. Ainda tiveram tempo de ver o guia fugir correndo, com Gueng atrás dele.
— Que diabo...
— Por algum motivo, ele está abandonando o navio — disse Ross. — Esqueça-o. Uma hora nos dá uma chance?
— Claro. Uma boa chance. — Colocaram rapidamente as mochilas e Rosemont armou sua metralhadora. — E quanto a Gueng?
— Ele vai nos alcançar.
— Nós vamos direto. Eu vou primeiro. Se me acontecer alguma coisa, você desiste. Certo?
O frio era quase uma barreira física que eles tinham que vencer, mas Rosemont conduziu-os bem, a neve não estava muito ruim, a lua ajudava, e as botas de alpinismo davam-lhes uma boa tração. Rapidamente alcançaram o topo e começaram a descer do outro lado. Estava mais escorregadio, a encosta coberta de neve, com uns poucos brotos lutando para crescer acima da neve. Na frente estava a boca da caverna, a estrada entrava por ela, com muitas marcas de veículos na neve.
— Podem ter sido feitas pelos nossos caminhões — disse Rosemont, disfarçando a inquietação. — Há umas duas semanas que não neva. — Fez sinal para os outros esperarem e prosseguiu, saindo da estrada e correndo para a entrada da caverna. Tensing seguiu-o, usando o chão como cobertura, movendo-se também rapidamente.
Ross viu Rosemont desaparecer na escuridão. Em seguida Tensing. Sua ansiedade aumentou. De onde estava, não podia enxergar muito além, pois a estrada fazia uma curva, descendo íngreme. O luar tornava os rochedos e o enorme vale ainda mais ameaçadores, e ele se sentiu desprotegido e solitário, odiando a espera. Mas estava confiante. "Se os gurkhas estiverem com você, sempre terá uma chance, meu filho", dissera seu pai. "Proteja-os, e eles sempre o protegerão. E nunca se esqueça, com um pouco de sorte, um dia você será Sheng'Khan." Ross sorrira interiormente, orgulhoso, pois o título era dado muito raramente: só para uma pessoa que tivesse trazido alguma glória para o regimento, que tivesse escalado sozinho um pico bem difícil do Nepal, que tivesse usado o kookri e salvo a vida de um gurkha a serviço do Grande Raj. Seu avô, o capitão Kirk Ross, condecorado com a Cruz de Combate, morto em 1915 na batalha de Somme, recebera-o postumamente; seu pai, o tenente-coronel Gavin Ross, Medalha de Serviços de Guerra, recebeu-o em Burma, em 1943. E eu? Bem, eu escalei um pico difícil, o K4, e isso é tudo até agora, mas ainda tenho muito tempo...
Seus sentidos bem treinados mandaram-lhe um aviso e ele empunhou o kookri, mas era apenas Gueng. O homenzinho estava em pé ao lado dele, respirando com dificuldade.
— Não fui bastante rápido, sahib — murmurou, satisfeito, em gurkhali. — Poderia tê-lo apanhado antes. — Levantou a cabeça decepada e sorriu radiante. — Trago-lhe um presente.
Era a primeira que Ross via. Os olhos estavam abertos. O terror ainda contorcia o rosto do velho. Gueng matou-o, mas fui eu que dei a ordem, pensou, desgostoso. Será que ele era apenas um velho apavorado que queria escapar enquanto havia tempo? Ou seria um espião ou um traidor correndo para entregar-nos ao inimigo?
— O que foi, sahib! — murmurou Gueng, com a testa franzida.
— Nada. Ponha a cabeça no chão.
Gueng atirou-a para o lado. A cabeça rolou um pouco pela ladeira e depois parou.
— Eu o revistei, sahib, e encontrei isto. — Entregou-lhe um amuleto. — Estava em volta do pescoço dele, e isto — entregou-lhe uma pequena bolsa de couro —, isto estava pendurado no saco dele.
O amuleto era apenas uma pedra azul barata, usada contra o mau-olhado. Dentro do pequeno saco havia um cartão plastificado. Ross examinou-o e seu coração quase parou. Neste momento ouviram outro som agudo, numa nota diferente. Imediatamente, apanharam as armas e correram para a boca da caverna, sabendo que Tenzing lhes enviava o sinal de que estava tudo bem e que deviam apressar-se. Dentro da caverna a escuridão pareceu ainda maior mas quando seus olhos se acostumaram, viram uma réstia de luz. Era uma lanterna, com o foco parcialmente coberto.
— Aqui, capitão. — Embora isso fosse dito baixinho, a voz de Rosemont ecoou alto. — Por aqui. — Ele os conduziu para o interior da caverna e quando teve certeza de que era seguro, acendeu a lanterna, iluminando as paredes de pedra e tudo em volta, para tomar conhecimento do terreno. — Vocês podem usar as lanternas. — A caverna era imensa, com muitos túneis e passagens que davam para o exterior, alguns naturais, alguns construídos, e o teto de pedra ficava a uns 15 metros de altura. — Esta é a área de descarga — disse. Quando encontrou o túnel que estava procurando, iluminou-o com a lanterna. No final do túnel, havia uma pesada porta de aço, entreaberta. — Deveria estar trancada — cochichou, com a voz rouca. — Não sei se a deixaram assim ou não, mas é por ali que nós temos que passar.
Ross fez um sinal para Tenzing. No mesmo instante, ele empunhou o kookri e avançou, desaparecendo lá dentro. Automaticamente, Ross e Gueng assumiram posições defensivas. Contra quem? Ross perguntou a si mesmo, sentindo-se desamparado e preso numa armadilha. Poderia haver cinqüenta homens escondidos num desses túneis.
Os segundos se arrastavam. Mais uma vez eles ouviram aquele som agudo. Ross avançou na frente e passou pela porta, seguido por Gueng e depois por Rosemont. Quando Rosemont transpôs a porta, viu que Tenzing tomara posição ali perto e cobria o avanço deles. Fechou a porta e acendeu as luzes. A súbita claridade fez os outros perderem o fôlego.
— Aleluia! — exclamou Rosemont, visivelmente aliviado. — Os chefões calcularam que se os geradores ainda estivessem funcionando, nós teríamos uma boa chance. Esta porta é à prova de luz. — Correu os pesados ferrolhos e pendurou a lanterna no cinto.
Estavam em outra caverna, muito menor, que fora adaptada, o chão tinha sido nivelado e atapetado, as paredes eram mais lisas. Era uma espécie de ante-sala, com mesas, telefones e lixo por toda parte.
— Os caras não perderam mesmo tempo em dar o fora, hein? — disse com amargura, dirigindo-se rapidamente para um outro túnel, atravessando-o e entrando em outra caverna com mais mesas, algumas telas de radar e mais telefones, cinzentos e verdes.
— Os cinzentos são internos, os verdes estão ligados com a torre e com os mastros que ficam no topo, e de lá, por satélite, com Teerã; a mesa telefônica principal fica na embaixada e há outras em vários locais altamente secretos. Eles têm dispositivos automáticos que impedem que as ligações sejam ouvidas sem aparelhos especiais. — Rosemont levantou um aparelho. Estava mudo. — Talvez os caras da Comunicação tenham feito o seu trabalho, afinal de contas. — No extremo oposto da sala havia um túnel. — Aquele túnel conduz à sala do gerador e à seção onde está todo o equipamento que temos que explodir. Quartos, cozinhas, refeitórios, oficinas, tudo isso fica em outras cavernas fora da área de descarga. Cerca de oitenta homens trabalhavam aqui, 24 horas por dia.
— Existe alguma outra saída? — perguntou Ross. Sua sensação de estar enclausurado era mais intensa do que nunca.
— Claro, lá em cima, onde vamos agora.
Os degraus irregulares subiam em direção ao teto abobadado. Rosemont começou a subir. No patamar havia uma porta: ÁREA DE SEGURANÇA MÁXIMA — PROIBIDA A ENTRADA SEM AUTORIZAÇÃO ESPECIAL. Também estava aberta.
— Merda — murmurou.
Esta caverna estava bem equipada, o chão era mais liso, as paredes brancas. Dezenas de computadores, telas de radar e equipamentos eletrônicos estavam espalhados pela sala. Havia mais mesas e cadeiras e telefones, cinzentos e verdes. E dois telefones vermelhos numa mesa central.
— Para que servem estes?
— Estão ligados diretamente com Langley, por satélite militar. — Rosemont levantou um deles. Estava mudo. Puxou um pedaço de papel e verificou-o, depois foi até um painel de interruptores e ligou alguns. Soltou outro palavrão quando se ouviu um chiado baixinho, os computadores começaram a vibrar, esquentando, e três telas de radar ganharam vida, com o traço central se movendo, deixando um desenho difuso na tela. — Malditos filhos da mãe! Deixar tudo assim! — Apontou para quatro computadores que ficavam nos cantos. — Exploda aqueles desgraçados; são os núcleos.
— Gueng!
— Sim, sahib. — O gurkha tirou a mochila e começou a preparar os explosivos plásticos e os detonadores.
— Pavios de meia hora? — perguntou Rosemont.
— Isso mesmo. — Ross olhava fixamente para uma das telas, fascinado. Para o norte ele podia ver grande parte do Cáucaso, todo o mar Cáspio, e para leste até uma parte do mar Negro, tudo com uma clareza extraordinária. — Há um bocado de espaço para vigiar.
Rosemont foi até o painel e ligou um interruptor.
Por alguns instantes, Ross ficou paralisado. Tirou os olhos da tela.
— Agora eu compreendo por que estamos aqui.
— Isto é só uma parte.
— Cristo! Então é melhor andarmos depressa. E quanto à entrada da caverna?
— Não há tempo para fazermos um trabalho decente; e do outro lado desta porta só há mesmo material de rotina, que eles roubaram por aí. Vamos explodir os túneis atrás de nós e usar a saída de emergência.
— E onde é isso?
O americano foi até uma porta. Estava trancada. Apanhou um molho de chaves e encontrou a que queria. A porta se abriu. Atrás dela, havia um lance de escadas que subia em espiral.
— Dá para uma saída na montanha.
— Tenzing, certifique-se de que o caminho está livre. — Tenzing subiu as escadas de dois em dois. — E depois?
— A sala de código e os cofres, vamos explodi-los. Depois as comunicações. Por último a sala do gerador, certo?
— Sim. — Ross apreciava cada vez mais a força e a decisão do americano.
— Antes de começarmos, é melhor você ver isto. — E estendeu o pequeno cartão plastificado. — Gueng alcançou o nosso guia. Isso estava com ele.
O rosto de Rosemont perdeu toda a cor. No cartão havia uma impressão digital, algumas coisas escritas em russo e uma assinatura.
— Uma carteira de identidade! Uma carteira de identidade comunista!
— Atrás deles, Gueng parou um momento.
— Era isso que eu achava. O que diz exatamente?
— Não sei, também não sei ler russo, mas aposto a minha vida como isto é um salvo-conduto. — Sentiu uma onda de frio quando se lembrou de todos os dias e noites que passara na companhia do velho, vagando pelas montanhas, dormindo ao lado dele ao ar livre, sentindo-se muito seguro. E todo aquele tempo estava sendo enganado. Sacudiu a cabeça, atordoado. — Meshgi estava conosco há anos. Ele pertencia ao bando de Ali bin Hassan Karakose. Ali é um líder da resistência e um dos nosso melhores contatos nas montanhas. Um grande cara que opera até em Baku, lá no extremo norte. Jesus, talvez ele tenha sido traído. — Tornou a olhar para o cartão. — Não consigo entender.
— Acho que isso mostra que nós podemos ter sido deliberadamente plantados aqui, alvos fáceis — disse Ross. — Talvez o comboio esteja associado a isso, cheio de tropas para nos pegar. É melhor andarmos depressa, não acha?
Rosemont balançou a cabeça, concordando, tentando dominar o medo que o invadiu, ajudado pela calma do outro homem.
— Sim, sim, você tem razão. — Ainda abalado, atravessou um pequeno corredor, em direção a outra porta. Trancada. Enquanto procurava pela chave no molho, disse: — Eu devo uma desculpa a você e a seus homens. Não sei como fomos enganados nem como esse filho da mãe escapou do controle da segurança, mas ele o fez e você provavelmente está certo: nós fomos plantados aqui. Sinto muito, merda, mas isso não resolve nada.
— Mas ajuda. — Ross sorriu e o medo abandonou-o. — Isso ajuda.
— Obrigado, sim, obrigado. Gueng matou-o?
— Bem — disse Ross, secamente —, Gueng me entregou a cabeça dele. Geralmente eles trazem de volta as orelhas.
— Jesus! Você está com eles há muito tempo?
— Com os gurkhas! Há quatro anos.
Enfiou a chave na fechadura e a porta se abriu. A sala de código estava cuidadosamente arrumada. Telex, impressora e máquinas de copiar. Uma estranha impressora de computador, com um teclado, tinha uma mesa própria.
— Este é o decodificador... Vale o que que você quiser pedir, para a oposição. — Sobre as mesas, havia lápis alinhados. E meia dúzia de manuais. Ross apanhou-os.
— Jesus Cristo... — eram todos livros de código marcados MECA, APENAS UMA CÓPIA. — Bem, pelo menos o código-mestre está trancado.
— Foi até o cofre moderno, com fechadura eletrônica, digital, de zero a nove, que estava encaixado numa parede, leu a combinação no seu pedaço de papel e tocou nos números. Mas a luz que indicava Aberto não acendeu. — Talvez eu tenha pulado um número. Leia para mim, sim?
— Claro. — Ross começou a ler a longa série de números. Atrás deles, Tenzing entrou sem fazer barulho. Nenhum dos dois escutou. —... 125... 721...
— Então eles sentiram, ao mesmo tempo, que havia alguém lá e se viraram, momentaneamente em pânico.
Tenzing disfarçou a satisfação e se fez de surdo aos palavrões. O Sheng'-Khan não dissera a ele para treinar seu filho e fazê-lo conhecer os meios de ataque e assassinato? Não tinha jurado protegê-lo e ser, secretamente, seu professor? "Mas, Tenzing, pelo amor de Deus, não deixe meu filho saber que eu lhe disse isso. Mantenha isso como um segredo entre nós..." Há semanas que tem sido difícil pegar o sahib desprevenido, pensou, satisfeito. Mas Gueng pegou-o hoje e eu também. Melhor sermos nós do que um inimigo; e eles agora estão nos cercando que nem abelhas.
— A escada tem 75 degraus que levam até uma porta de ferro — disse Tenzing, no seu melhor tom de relatório. — A porta está enferrujada, mas eu a forcei. Lá fora há uma caverna, fora da caverna está a noite; é uma boa rota de fuga, sahib. O que não é bom é que de lá eu enxerguei o primeiro caminhão do comboio. — Fez uma pausa, não querendo se enganar. — Talvez ainda reste uma meia hora.
— Volte para a primeira porta, Tenzing, a que nós trancamos. Mine o túnel até a nossa porta de modo que ela não seja atingida. Vinte minutos de pavio a contar de agora. Diga a Gueng para pôr os pavios exatamente com o mesmo tempo a partir de agora.
— Sim, sahib.
Ross virou-se. Notou o suor na testa de Rosemont.
— OK?
Claro. Chegamos até 103.
— Os dois últimos números são 660 e 31. — Viu o americano tocar nos números. A luz começou a piscar. Rosemont estendeu a mão para a alavanca.
— Pare! — Ross enxugou o suor do seu próprio queixo, sentindo a barba espetar. — Isto não estará preparado para explodir?
— É possível. Claro. É possível — disse Rosemont, olhando para o cofre
— Então vamos apenas explodir o desgraçado, sem nos arriscar.
— Eu, eu tenho que checar. Tenho que checar se o código-mestre está lá dentro ou não. Ele e o decodificador são as minhas prioridades. — Tornou a olhar para a luz que piscava. — Volte para a outra sala, proteja-se junto com Gueng, grite quando estiverem prontos. Eu... essa tarefa é minha.
Ross hesitou. Então concordou, apanhou as duas mochilas que continham explosivos e detonadores.
— Onde fica a sala de comunicações? Aí ao lado.
— A sala do gerador é importante?
— Não. Só este cofre, o decodificador e aqueles quatro computadores lá atrás, embora fosse melhor que todo este andar fosse pelos ares. — Rosemont observou Ross se afastar e então virou de costas e tornou a olhar para a alavanca. Sentia um aperto no peito. Aquele filho da puta do Meshgi! Teria apostado minha vida; aliás eu o fiz, todos nós o fizemos, até Ali Karakose. — Está pronto? — gritou impaciente
— Espere! — Mais uma vez seu estômago revirou. Ross estava de volta, atrás dele, sem que tivesse percebido, em suas mãos havia uma corda fina e comprida de náilon que, rapidamente, ele amarrou na alavanca
— Puxe a alavanca quando eu disser, mas não abra a porta. Vamos abri-la lá de fora. — Ross correu para fora. — Agora!
Rosemont respirou fundo para acalmar o coração e colocou a alavanca na posição Abrir, depois correu para a outra caverna. Ross fez sinal para que ele se abaixasse perto da parede.
— Mandei Gueng avisar Tenzing. Pronto?
— Claro.
Ross esticou a corda e depois puxou com força. A corda permaneceu esticada. Puxou com mais força ainda, então ela cedeu um pouco mas depois não veio mais. Silêncio. Nada. Os dois homens suavam.
— Bem — disse Ross, bastante aliviado, e se levantou. — É melhor prevenir do que re... — A explosão abafou suas palavras, uma grande nuvem de fumaça e pedaços de metal voaram para dentro da caverna em que eles estavam, arrancando o ar dos seus pulmões, espalhando mesas e cadeiras. Todas as telas de radar explodiram, as luzes desapareceram, um dos telefones vermelhos soltou-se e voou pela sala, arrebentando-se de encontro à cobertura de aço de um computador. Aos poucos, a poeira assentou, com os dois homens tossindo desesperadamente na escuridão.
Rosemont foi o primeiro a se recuperar. A sua lanterna ainda estava pendurada no cinto. Ele a agarrou.
— Sahib! — Tenzing chamou ansiosamente, correndo para dentro da sala, com a lanterna acesa, e com Gueng ao lado dele.
— Eu... eu estou bem. — Disse Ross, ainda tossindo muito. Tenzing encontrou-o deitado no meio do entulho. Havia um pouco de sangue escorrendo pelo seu rosto, mas era apenas uma ferida superficial causada pelos vidros que tinham voado.
— Graças a todos os deuses — murmurou Tenzing, e ajudou-o a levantar-se.
— Jesus Cristo! — Olhou abobalhado para toda aquela destruição e depois foi tropeçando atrás de Rosemont pela passagem até a sala de código. O cofre desaparecera, e com ele o decodificador, os manuais, os telefones, deixando um enorme buraco na rocha. Todo o equipamento eletrônico tinha virado um monte de metal e fios retorcidos. Pequenos incêndios já começavam a arder.
— Jesus — foi tudo o que Rosemont conseguiu dizer, sua voz pouco mais que um murmúrio, a mente tumultuada pela proximidade da morte, gritando: corra, fuja deste lugar mortal...
— Deus Todo-Poderoso!
Rosemont tentou dizer alguma coisa, não conseguiu, foi até um canto e vomitou.
— É melhor nós... — Ross achou difícil falar, seus ouvidos ainda ecoavam, a cabeça doía violentamente, a adrenalina bombeava-lhe o sangue, e ele tentou dominar a vontade de fugir. — Tenzing, você já terminou?
— Em dois minutos, sahib. — O homem correu para fora.
— Gueng?
— Sim, sahib. Mais dois minutos também. — E também saiu rapidamente.
Ross foi até o outro canto e vomitou. Então se sentiu melhor. Encontrou o cantil e tomou um longo gole, enxugou a boca na manga da sua roupa de combate e foi até onde estava Rosemont, encostado numa parede, e sacudiu-o.
— Você está bem?
— Sim, claro. — Rosemont ainda estava tonto, mas agora sua mente trabalhava. Sentiu um gosto horrível na boca e cuspiu no meio do entulho. Havia pequenos incêndios na sala, lançando sombras estranhas nas paredes e no telhado. Tomou um gole, devagar. Depois de alguns instantes disse: — Não existe nada no mundo que se compare a um uísque escocês. — Tomou mais um gole e devolveu o cantil. — Acho melhor nós darmos o fora daqui.
Com a lanterna, deu uma rápida busca no meio dos destroços, encontrou os restos retorcidos do importantíssimo decodificador e andou com cuidado até a caverna seguinte, colocando os restos perto da carga que estava na base dos computadores.
— O que eu não entendo, é como tudo isso não explodiu e nos mandou para o inferno, com os nosso explosivos todos espalhados por aí.
— Eu... Antes de voltar com a corda e mandar Gueng atrás de Tenzing, eu disse a Gueng para remover os explosivos e os detonadores por medida de segurança.
— Você sempre pensa em tudo?
— Tudo isso faz parte do serviço — disse sorrindo. — Sala de comunicações?
O local foi minado rapidamente. Rosemont olhou para o relógio.
— Oito minutos para a explosão. Vamos esquecer da sala do gerador.
— Ótimo. Tenzing, você vai na frente.
Subiram a escada de emergência. A porta de ferro rangeu quando eles abriram. Uma vez na caverna, Ross tomou a dianteira. Espiou, cautelosamente, para fora, observando tudo em volta. A lua ainda estava alta. A trezentos ou quatrocentos metros de distância, o caminhão da frente subia a última encosta.
— Para que lado, Vien? — perguntou e Rosemont se sentiu animado.
— Para cima — disse, sem demonstrá-lo. — Vamos subir. Se houver soldados atrás de nós, esquecemos a costa e rumamos para Tabriz. Se não houver nenhum soldado, fazemos a volta e regressamos pelo caminho por onde viemos.
Tenzing ia na frente. Ele era como uma cabra das montanhas, mas escolhia o caminho mais fácil, sabendo que os dois homens ainda estavam muito abalados. Aqui a encosta era bem íngreme, mas não muito difícil, e havia pouca neve para atrapalhar. Mal tinham começado a caminhada quando o chão estremeceu, e o som da primeira explosão chegou até eles totalmente abafado. Em rápida sucessão, houve outros pequenos tremores.
Só falta uma, pensou Rosemont, satisfeito com o frio que clareava sua cabeça. A última explosão, na sala de comunicações, onde tinham usado todo o resto dos explosivos, foi muito mais forte e sacudiu realmente a terra. Abaixo deles e à direita, parte da montanha cedeu, com a fumaça saindo da cratera resultante.
— Cristo — murmurou Ross.
— Provavelmente um respiradouro.
— Sahibl Olhe lá!
O caminhão que liderava o comboio tinha parado na entrada da caverna Havia homens pulando para fora, outros olhando para a encosta, iluminada pelos faróis dos outros caminhões. Todos os homens tinham rifles. Ross e os outros se embrenharam ainda mais nas sombras.
— Vamos subir até aquele cume — disse baixinho Rosemont, apontando para cima e para a esquerda. — Ficaremos fora do ângulo de visão deles e bem protegidos. Depois seguimos em direção a Tabriz, quase no rumo leste. Certo?
— Tenzing, adiante!
— Sim, sahib.
Atingiram o cume e o atravessaram, rumando para leste, sem conversar, guardando as energias pois ainda teriam muitos e muitos quilômetros para caminhar. O terreno era acidentado e a neve os atrapalhava. Em pouco tempo, as luvas estavam rasgadas, as mãos e os pés feridos, as pernas doíam mas, não tendo mais as pesadas mochilas para atrapalhar, progrediam bem e o moral estava alto.
Chegaram a um dos caminhos que ziguezagueava pelas montanhas. Sempre que o caminho se bifurcava, eles escolhiam o que fosse mais alto. Havia aldeias no vale, mas muito poucas naquela altura.
— É melhor ficarmos aqui por cima — disse Rosemont —, e... e torcer para não dar de cara com ninguém.
— Você acha que todos são hostis?
— Claro. Esta região não é só antixá, mas também anti-Khomeini, anti todo mundo. — Rosemont estava ofegando. — É aldeia contra aldeia o tempo todo e é uma região de bandidos. — Fez sinal para Tenzing avançar, grato pelo luar e pelo fato de estar com os três.
Tenzing manteve o passo, mas era um passo de montanhista, uniforme, sem pressa, constante e puxado. Depois de uma hora, Gueng tomou a liderança, depois Ross, Rosemont e depois Tenzing de novo. Três minutos de descanso para cada hora, depois recomeçando.
A lua desceu mais no céu. Eles agora já estavam bem longe, o caminho mais fácil, menos íngreme. Este ainda contornava a montanha, mas conduzia para leste, em direção a uma fenda de formato curioso na encosta. Rosemont a reconhecera.
— Lá naquele vale há uma estrada secundária que vai para Tabriz. No inverno, é pouco mais do que uma trilha, mas consegue-se passar com relativa facilidade. Vamos continuar até amanhecer, depois paramos para descansar e fazer um plano. Certo?
Estavam agora bem abaixo da linha das árvores, no início da floresta de pinheiros, andando bem mais devagar e sentindo o cansaço.
Tenzing ainda ia na frente. A neve abafava o barulho dos seus passos e o ar puro o fazia sentir-se muito bem. De repente, pressentiu o perigo e parou. Ross estava bem atrás dele e parou também. Todo mundo ficou esperando, imóvel. Então Ross avançou cautelosamente. Tenzing examinava a escuridão à sua frente, com o luar lançando estranhas sombras. Vagarosamente, os dois homens olharam para os lados. Nada. Nenhum sinal nem cheiro. Esperaram. Um pouco de neve caiu de uma das árvores. Ninguém se moveu. Então uma ave noturna saiu de um galho na frente à direita e voou ruidosamente. Tenzing apontou naquele direção, fazendo sinal a Ross para esperar, tirou o seu kookri e avançou sozinho, sumindo na noite.
Poucos metros depois, Tenzing viu um homem agachado atrás de uma árvore, a uns cinqüenta metros de distância e sua excitação aumentou. Chegando mais perto, percebeu que o homem não o vira. Aproximou-se mais. Então, com o canto dos olhos, viu uma sombra mover-se à esquerda, outra à direita e compreendeu.
— Emboscada! — gritou com toda a força dos pulmões e mergulhou no chão para se proteger.
A primeira rajada de balas passou perto mas não o atingiu. A segunda rajada perfurou seu pulmão esquerdo, abriu um buraco nas suas costas e lançou-o de encontro a uma árvore caída. Mais armas começaram a atirar no lado oposto do caminho, com o fogo cruzado castigando Ross e os outros, que tinham se arrastado para baixo de troncos de árvores e se enfiado nas valas.
Por um momento, Tenzing ficou deitado lá, impotente. Podia ouvir o tiroteio, mas este parecia muito distante, embora soubesse que devia ser bem próximo. Com um tremendo esforço, conseguiu se levantar e atirou na direção das armas que o haviam matado. Viu alguns dos seus atacantes virarem-se para ele e ouviu balas passando, algumas raspando o seu capuz. Uma delas entrou no seu ombro, mas ele nem sentiu, satisfeito por estar morrendo como os homens do regimento deviam morrer. Avançando. Sem medo. Eu não sinto realmente nenhum medo. Eu sou hindu e vou me encontrar com Shiva alegremente, e quando nascer de novo, peço a Brahma, a Vishnu e a Shiva que torne a nascer um gurkha.
Quando ele alcançou a emboscada, seu kookri arrancou o braço de alguém, suas pernas cederam e uma luz monstruosa, incomparável, explodiu em sua cabeça e ele se entregou à morte sem dor.
— Cessem o fogo — ordenou Ross, examinando o terreno, recuperando o controle da luta. Concluiu que havia dois grupos de atiradores contra eles, mas não havia nenhum jeito de alcançar nenhum deles. A emboscada fora bem planejada e o fogo cruzado era mortal. Tinha visto Tenzing ser ferido. Precisou de toda a sua força de vontade para não correr em sua ajuda, mas primeiro tinha que vencer esta batalha e proteger os outros. Os tiros ecoavam pela montanha. Tirou a mochila, encontrou as granadas, certificando-se de que sua arma era totalmente automática, sem saber como sair daquela armadilha. Então vira Tenzing levantar-se com um grito de guerra e avançar pela encosta, criando a distração que Ross precisava. Imediatamente, ordenou a Rosemont:
— Proteja-me — e a Gueng: — Vá! — apontando na direção do mesmo grupo que Tenzing estava atacando.
No mesmo instante, Gueng saiu da sua vala e correu para eles, que estavam distraídos pela ação de Tenzing. Quando viu seu camarada tombar, sua raiva explodiu, soltou o pino da granada e atirou-a no meio deles, jogando-se na neve. Assim que a granada explodiu, ele se levantou, atirando na direção dos gritos, fazendo calar a maioria deles. Viu um homem fugindo, e outro se arrastando, desesperado, para o meio dos arbustos. Um golpe do kookri arrancou parte da cabeça do homem que se arrastava. Uma curta rajada cortou o outro em pedaços e mais uma vez Gueng desviou-se para se proteger, sem saber de onde viria o perigo. Outra granada explodindo desviou sua atenção para o outro lado do caminho.
Ross arrastara-se para a frente. As balas choveram sobre ele, mas Rosemont deu várias rajadas de metralhadora, desviando o fogo, dando a Ross a ajuda que ele precisava, e este alcançou a árvore seguinte, em segurança, encontrou uma vala funda na neve e se atirou lá dentro. Por um segundo esperou, recuperando o fôlego, depois arrastou-se pela neve dura e gelada em direção ao fogo. Agora estava fora da vista dos atacantes e avançou com facilidade. Então ouviu a granada explodir e os gritos e rezou para que Gueng e Tenzing estivessem bem.
O fogo inimigo se aproximava, e quando achou que estava em posição, tirou o pino da primeira granada, com a carabina na mão esquerda e se levantou. Assim que saiu da vala, viu os homens, mas não onde tinha esperado que estivessem. Eram cinco, a uns vinte metros de distância. Eles viraram os rifles em sua direção, mas suas reações foram um pouco mais rápidas e ele já estava no chão, atrás de uma árvore, com a granada preparada e contando antes que dessem os primeiros tiros. Ao contar quatro, saiu de trás da árvore e atirou a granada na direção deles, protegendo a cabeça com os braços. A explosão levantou-o do chão, arrebentou o tronco de uma árvore próxima, enterrando-o sob um monte de galhos e neve.
Mais abaixo, Rosemont esvaziara a arma na direção em que supunha estarem os atacantes. Praguejando em sua ansiedade, enfiou outro pente na arma e tornou a atirar.
Na colina do outro lado do caminho, Gueng agachara-se atrás de uma rocha, esperando que alguém se movesse. Então, perto da árvore que explodira, viu um homem fugindo, abaixado. Atirou e o homem caiu, com o tiro ecoando. Depois, silêncio.
Rosemont sentiu o coração acelerar. Não podia esperar mais.
— Cubra-me, Gueng — gritou, e dando um salto, correu em direção à árvore. Um brilho de fogo à sua direita, as balas assoviando muito próximo, então Gueng começou a atirar lá do outro lado. Houve um grito e o fogo cessou. Rosemont correu para a frente até chegar ao lugar da emboscada, com a carabina pronta. Os três homens estavam inteiramente destroçados, o último ainda morrendo, seus rifles totalmente retorcidos. Todos usavam roupas tribais. Enquanto olhava, o último homem engasgou e morreu. Ele se virou e correu para a outra árvore, arrancando galhos, abrindo caminho na neve para chegar até Ross.
Do outro lado, Gueng esperava e vigiava, para matar qualquer coisa que se movesse. Houve um ligeiro movimento atrás das pedras, onde sua granada explodira os três homens. Ele esperou, mal respirando, mas era apenas um roedor mastigando. Em pouco tempo eles vão limpar o terreno, deixando-o intacto de novo, pensou, maravilhado pelo ciclo dos deuses. Seus olhos examinaram tudo vagarosamente. Viu Tenzing caído de um lado da rocha, com o kookri ainda apertado nas mãos. Antes de partir, vou pegar o kookri, pensou; a família dele vai gostar e seu filho vai usá-lo com a mesma honra. Tenzing Sheng'Khan viveu e morreu como um homem e renascerá da forma que os deuses decidirem. Carma.
Outro movimento. Lá na frente, na floresta. Ele se concentrou.
Do outro lado da trilha, Rosemont puxava os galhos, lutando para arrancá-los, com os braços doendo. Finalmente, alcançou Ross e seu coração quase parou. Ross estava caído no chão, com os braços sobre a cabeça, a carabina perto dele. O sangue manchava a neve e as costas do macacão branco. Rosemont se ajoelhou e virou-o e quase chorou de alívio quando viu que Ross estava respirando. Por um momento, seus olhos olharam sem entender, depois entraram em foco. Ele se ergueu e piscou.
— Tenzing? E Gueng?
— Tenzing foi atingido. Gueng está do outro lado, protegendo-nos. Ele está bem.
— Graças a Deus. Pobre Tenzing.
— Experimente os seus braços e as suas pernas. — Desajeitadamente, Ross moveu os membros. Estava tudo em ordem.
— Minha cabeça está explodindo, mas estou bem. — Olhou em volta e viu os atacantes mortos. — Quem são eles?
— Homens de tribos, bandidos, talvez. — Rosemont examinou o caminho. Nada se mexia. A noite estava bonita. — É melhor darmos o fora daqui antes que surjam mais desses filhos da mãe. Você acha que pode continuar?
— Sim. Dê-me alguns segundos. — Ross limpou a neve do rosto. O frio estava ajudando. — Obrigado, hein?
— É tudo parte do serviço — disse sorrindo, sem jeito. Seus olhos desviaram-se para os assaltantes. Mantendo-se bem abaixado, foi até eles e revistou-os como pôde. Não encontrou nada. — Provavelmente gente daqui ou bandidos. Esses filhos da mãe podem ser bem cruéis quando nos pegam vivos.
Ross concordou com a cabeça e sentiu outro espasmo de dor.
— Estou bem agora, eu acho. É melhor dar o fora. O tiroteio deve ter sido ouvido a quilômetros de distância, e não convém ficarmos por aqui.
— Espere mais um pouco — disse Rosemont que percebera o sofrimento dele.
— Não, eu me sinto melhor andando. — Ross juntou as forças, depois gritou em gurkhali: — Gueng, vamos prosseguir. — Começou a se levantar, mas parou quando ouviu um assovio agudo indicando perigo. — Abaixe-se! — E puxou Rosemont com ele.
Uma única bala de rifle surgiu no meio da noite, escolhendo Rosemont e se alojando em seu peito, ferindo-o mortalmente. Então houve tiros do outro lado da encosta e um grito, e depois silêncio de novo.
Em seguida, Gueng juntou-se a Ross.
— Sahib, acho que este era o último. Por enquanto.
— Sim. — Esperaram com Vien Rosemont até que ele morresse, depois fizeram o que tinham que fazer por ele e por Tenzing. E depois foram embora.
BASE AÉREA MILITAR DE ISFAHAN: 5:40H. A leste, o dia começava a clarear. A base estava calma, não havia ninguém por lá exceto os guardas islâmicos armados que, junto com a população de Isfahan, aos milhares e liderada por mulás, tinham invadido a base ontem e agora a controlavam, com todos os oficiais e soldados do Exército e da Força Aérea confinados aos seus alojamentos, sob escolta ou livres — tendo-se declarado a favor de Khomeini e da revolução.
O sentinela Relazi tinha 18 anos e sentia muito orgulho da sua faixa verde e de estar de guarda do lado de fora do barracão onde estavam o traidor general Valik e sua família, que tinham sido apanhados na véspera, se esgueirando pelo refeitório dos oficiais com o seu piloto estrangeiro da CIA. Deus é grande, pensou. Amanhã eles serão mandados para o inferno junto com todo o infame povo da Mão Esquerda.
Há anos que os Relazi eram sapateiros numa pequena barraca do velho bazar de Isfahan. Sim, pensou, eu fui um bazaari até uma semana atrás, quando o nosso mulá chamou a mim e a todos os fiéis para a batalha de Deus, deu-me a braçadeira de Deus e esta arma e me ensinou como usá-la. Como são maravilhosos os desígnios de Deus.
Ele estava abrigado da neve sob uma saliência da cabana, mas a umidade e o frio o atravessavam apesar de estar usando todas as roupas que possuía no mundo — camiseta, uma camisa grossa por cima, um casaco e uma calça comprados de segunda mão, um velho suéter e um antigo casacão do exército que pertencera a seu pai. Seus pés estavam dormentes.
— Seja como Deus quiser — disse em voz alta e se sentiu melhor. — Vou ser substituído logo e então vou comer. Meu Deus, os soldados vivem como verdadeiros paxás, fazem pelo menos duas refeições por dia, uma com arroz, imagine só, e são pagos toda semana... dinheiro de Satã, mas mesmo assim dinheiro. — Teve um acesso de tosse, com o peito chiando, trocou a carabina do exército americano para o outro ombro, encontrou a guimba de cigarro que estava guardando e acendeu-a.
Pelo Profeta, pensou, satisfeito, quem poderia imaginar que tomaríamos a base tão facilmente, com tão poucos dos nossos mortos e mandados para o paraíso antes que dominássemos os soldados no portão e entrássemos no campo — nossos irmãos na base bloqueando o caminho com caminhões, e outros ocupando os aviões e helicópteros para evitar a fuga dos traidores do xá. Fugindo das balas do inimigo, com o Nome de Deus nos lábios. "Juntem-se a nós, irmãos", nós gritamos, "juntem-se à revolução de Deus, ajudem-nos a fazer o trabalho de Deus! Venham para o paraíso... não vão para o inferno..."
O rapaz tremeu e começou a pronunciar as palavras impressas nele por uma dúzia de mulás, tirados do Corão e interpretadas: "... para viver lá para sempre com todos os pecadores e o povo amaldiçoado da Mão Esquerda, sem provar de nenhuma outra bebida a não ser água fervendo ou metal derretido e matéria em decomposição. E quando o fogo do inferno lhes tiver arrancado toda a pele, eles criarão peles novas de modo que seu sofrimento não cesse nunca..."
Fechou os olhos com a intensidade das suas orações: "Deixe-me morrer com um dos nomes de Deus nos meus lábios, para que eu possa ir diretamente para o jardim do paraíso com todo o povo da Mão Direita, para ficar lá para sempre, para nunca mais sentir fome, para nunca mais ver os irmãos e as irmãs das aldeias com suas barrigas inchadas, lamuriando-se até morrer, para não gritar mais no meio da noite por causa do horror da vida, mas viver no paraíso: para me deitar em almofadas de seda, vestido com roupas de seda verde, servido por jovens rosadas, carregando taças e copos transbordantes de vinho, e provando das frutas mais deliciosas e da carne das aves mais tenras. E a nós pertencerá a rapariga de olhos grandes e escuros, como pérolas escondidas na sua concha, sempre jovem, sempre virgem, no meio de árvores carregadas de frutos, repousando na sombra perto de um riacho, sem nunca envelhecer, sem..."
O golpe de rifle esmagou-lhe o nariz e amassou-lhe o crânio, cegando-o e privando-o para sempre da sua normalidade, mas sem matá-lo, antes que ele caísse no chão, inconsciente. Seu atacante era um soldado, da mesma idade que ele, e este homem apanhou rapidamente a carabina e usou-a para arrebentar a fechadura da porta e abri-la.
— Rápido — murmurou o soldado, suando de medo. Um instante depois, o general Valik pôs a cabeça para fora, cautelosamente. O homem agarrou-lhe o braço. — Vamos, depressa, pelo amor de Deus — sussurrou.
— Que Deus o abençoe... — disse Valik, com os dentes batendo, depois tornou a entrar e saiu com dois embrulhos grandes de dinheiro que o homem enfiou no uniforme de campanha, desaparecendo tão silenciosamente quanto tinha chegado. Valik hesitou um momento, com o coração disparado. Viu a carabina na neve e apanhou-a, carregou-a e pendurou-a no ombro, depois agarrou a maleta, agradecendo a Deus pelo fato dos revolucionários terem sido apressados demais na sua revista para descobrir o fundo falso da maleta antes de os terem enfiado ali para esperar a sentença dos tribunais.
— Sigam-me — sussurrou para sua família. — Mas em nome de Deus, não façam barulho. Sigam-me com cuidado. — Fechou bem o casaco e foi mostrando o caminho no meio da neve. Sua esposa, Annoush, seu filho de oito anos, Jalal, e sua filha Setarem, de seis, hesitavam na porta. Todos estavam usando roupas de esqui. Annoush tinha um casaco de vison por cima, e os guardas islâmicos tinham-na ridicularizado por causa disso, como sendo uma exibição pública de pecado. "Guarde-o com você", tinham dito com desprezo, "só isso já basta para condená-la!" Durante a noite ela tinha ficado satisfeita pelo seu calor, .encolhida no chão de terra da cabana sem aquecimento, enrolando as crianças com ele.
— Venham, meu queridos — murmurou, tentando disfarçar o próprio medo.
O corpo do sentinela bloqueava o caminho, ali deitado na neve, gemendo baixinho.
— Mamãe, por que ele dorme na neve? — cochichou a garotinha.
— Não ligue para isso, minha querida. Vamos depressa. Não façam nenhum barulho agora.
Silenciosamente, ela pulou por cima do corpo. A garotinha não conseguiu e teve que pisar nele, tropeçando e caindo na neve. Mas ela não gritou, apenas se levantou, ajudada pelo irmão. Juntos, de mãos dadas, foram avançando rapidamente.
Valik conduziu-os cautelosamente. Quando chegaram ao hangar onde o 212 ainda estava parado, ele respirou com mais facilidade.
Esta área ficava bem longe do campo principal, do outro lado da enorme pista. Depois de se certificar de que não havia nenhum guarda por perto, ele correu até o helicóptero e espiou o interior da cabine. Para seu grande alívio, não havia guardas dormindo lá dentro. Esperimentou a porta. Não estava trancada. Ele a abriu o mais silenciosamente possível e fez sinal para os outros. Também em silêncio, eles se juntaram a Valik. Ele os ajudou a subir e entrou em seguida, trancando a porta por dentro. Rapidamente, acomodou as crianças com alguns cobertores sob os assentos, recomendando-lhes que não deixassem ninguém perceber sua presença ali, o que quer que acontecesse. Então sentou-se ao lado da mulher, pôs um cobertor em volta dos ombros, pois estava com muito frio, e deu-lhe a mão. As lágrimas desciam pelo rosto dela.
— Tenha paciência, não chore. Não vai demorar muito — cochichou, confortando-a. — Não vamos ter que esperar muito. Insha'Allah.
— Insha'Allah — ela repetiu com a voz entrecortada —, mas o mundo inteiro enlouqueceu... fomos atirados numa cabana imunda como se fôssemos criminosos... o que vai acontecer conosco...
— Com a ajuda de Deus nós conseguiremos chegar até aqui, então por que não conseguimos chegar até o Kuwait?
Eles tinham chegado lá na véspera, pouco antes do meio-dia. Fora um vôo sem incidentes, com todas as estações de rádio silenciosas. Ele confiava no seu motorista, que estava com ele há 15 anos, e que tinha levado o carro de volta para Teerã, com ordens de não dizer a ninguém que eles "tinham ido para a casa deles no mar Cáspio".
— Nesta fuga, não podemos confiar em ninguém — dissera Valik para a esposa enquanto estavam esperando a chegada do helicóptero.
— É claro, mas deveríamos ter trazido Xarazade, isso teria ajudado a ela e a Tom Lochart e teria sido uma garantia de que ele nos levaria até o fim.
— Não, ela nunca teria partido, por que o faria? — respondera-lhe Valik. — Com ou sem Xarazade, não se pode confiar nele; ele é estrangeiro, não é um de nós.
— Teria sido mais sábio trazê-la.
— Não — dissera, sabendo o que teria que ser feito com Lochart.
Durante a viagem de Teerã para Isfahan ele se sentara na frente com Lochart. Tinham voado baixo, evitando cidades e aeroportos. Quando Lochart chamou a base militar de Isfahan, já eram esperados. A torre dera-lhes instruções de onde pousar, com ordens para não tornar a chamar e manter o rádio silencioso. O brigadeiro-do-ar Muhammad Seladi, tio de Valik, que tinha conseguido licença para que eles pousassem e reabastecessem o helicóptero, encontrou-os na pista. O brigadeiro cumprimentara-os sombriamente. Como estava quase na hora do almoço, dissera que eles deveriam comer na base antes de continuar.
— Mas Muhammad, Excelência, temos bastante comida no aparelho — retrucara Valik.
— Eu insisto — respondera nervosamente Seladi. — Eu insisto, Excelência. Você deve apresentar seus cumprimentos ao comandante. É necessário e nós, ahn, precisamos conversar.
Foi nesse intervalo que os Faixas Verdes e a multidão invadiram a base, prenderam todos eles e levaram Lochart para uma outra parte da base. Filhos de cães, Valik pensou zangado, que todos eles queimem no inferno! Eu sabia que nós deveríamos ter reabastecido e partido imediatamente. Seladi é um idiota. É tudo culpa dele...
No andar de cima de um quartel, a meio quilômetro de distância, Tom Lochart dormia. Subitamente, foi despertado por uma agitação no corredor, a porta foi aberta e ele se viu meio cego pela luz de uma lanterna.
— Rápido — disse uma voz, em inglês com sotaque americano e dois homens o ajudaram a se levantar. Em seguida, as duas figuras que ele mal distinguira se viraram e saíram correndo.
Ele levou um segundo para se refazer e depois correu atrás deles pelo corredor, desceu três lances de escada e saiu para o ar livre. Aí ele parou junto com os outros, respirando ofegante. Mal tivera tempo de ver que os dois eram oficiais, um capitão e um major, antes que saíssem correndo de novo no meio da escuridão. O dia começava a clarear. A neve caía levemente, ajudando a ocultá-los e abafando os seus passos.
À frente estava a casa da guarda, com uma fogueira do lado de fora e alguns revolucionários sonolentos amontoados em volta. Os três homens desviaram e correram pelo meio de uma fileira de barracas, tornaram a desviar-se para uma travessa quando um caminhão cheio de guardas entoando cânticos apareceu numa esquina, depois correram pela estrada em direção ao hangar onde estava o 212. Quando chegaram ao hangar, pararam para recuperar o fôlego.
— Ouça, piloto — disse o major, ofegante —, quando eu der o sinal, nós corremos para o helicóptero e decolamos. Pronto?
— E os outros? — perguntou Lochart, sentindo uma pontada do lado e quase sem poder falar. — E o general Valik e a família dele?
— Esqueça-se deles. AH — o major fez um sinal para o outro homem —, Ali vai na frente com você e eu vou atrás. Quanto tempo vai demorar para subir depois que você der a partida?
— Quase nada.
— Faça ainda por menos — disse o major. — Vamos!
Eles correram para o 212, Lochart e Ali, o capitão, em direção à cabine do piloto. Neste momento, Lochart viu um carro sem faróis vindo pela estrada na direção deles e seu coração quase parou.
— Olhe!
— Em Nome de Deus, rápido, piloto!
Lochart redobrou seus esforços, pulou para o assento do piloto, empurrou os interruptores, ligou os motores e começou a aquecer o aparelho. Neste mesmo instante, o major alcançou a porta de correr e abriu-a. Quase desmaiou quando Valik empurrou a carabina na sua cara.
— Oh, é você, major! Deus seja louvado...
— Deus seja louvado pelo senhor ter conseguido escapar, Excelência — o major gaguejou, conseguiu dominar o pânico e subiu no aparelho, que já estava com as hélices girando, mas ainda não estava em condições de voar. — Louvado seja Deus pelo senhor ter escapado... mas onde está o soldado?
— Ele apanhou o dinheiro e fugiu.
— Ele trouxe as armas?
— Não, isto é tudo...
— Filho de um cão! — disse furioso o major, depois gritou para Lochart: — Em nome de Deus, depreeeeessa! — Ele se virou e olhou para o carro que se aproximava. E que se aproximava depressa.
Arrancou a carabina da mão de Valik, ajoelhou-se na porta, mirou o motorista e puxou o gatilho. O tiro foi alto — enquanto atrás dele Annoush e as crianças gritavam de terror — o carro saiu da estrada e passou por trás de uma fileira de cabanas, tornando a aparecer por um instante antes de dar a volta no hangar e desaparecer.
Lochart estava com os fones no ouvido e observava os mostradores subirem, louco para apressá-los.
— Vamos, droga — resmungou, com as mãos e os pés preparados nos controles, o barulho dos jatos aumentando e o capitão ao lado dele rezando alto. Não podia ouvir Annoush soluçando lá atrás nem as crianças apavoradas que tinham engatinhado para fora do esconderijo para enfiar o rosto no colo da mãe, nem Valik e o major gritando para ele andar depressa.
Agulhas subindo. Ainda subindo. Ainda subindo. Quase no verde. Agora! Sua mão esquerda começou a levantar a alavanca de comando, mas o carro saiu de trás do hangar e veio de frente na direção deles, parando a 15 metros de distância. Cinco homens saltaram. Um deles correu diretamente para a cabine do piloto e apontou um rifle automático para ele, os outros se dirigiram para a porta de trás. Tom já estava quase no ar, mas sabia que seria um homem morto se continuasse e viu o homem fazer sinal para ele parar. Obedeceu, depois virou-se para olhar para trás. Os outros homens estavam subindo no aparelho. Eram todos oficiais, Valik e o major os abraçavam, então ele ouviu:
— Decole, pelo amor de Deus! — E sentiu uma cotovelada nos quadris. Era Ali, o capitão, do lado dele.
— Decole! — repetiu Ali, com seu inglês de sotaque americano, e fez um sinal com os polegares para cima para o homem que estava lá fora, ainda com o rifle apontado para eles. O homem correu, entrou e fechou a porta. — Depressa, droga, olhe para lá! — Apontou para o outro lado da pista. Havia mais carros vindo naquela direção. Alguém atirava com uma metralhadora pela janela. Em segundos, Lochart decolou, com todos os sentidos concentrados na fuga.
Atrás dele, alguns oficiais aplaudiram, se seguraram quando o helicóptero se inclinou para escapar, e se espalharam pelos assentos. Muitos eram coronéis. Alguns estavam abalados, particularmente o brigadeiro Seladi, que se sentou entre Valik e o major.
— Não sabia ao certo se era o senhor, brigadeiro Excelência — o major estava dizendo —, então atirei para o alto como um aviso. Deus seja louvado pelo plano ter funcionado tão bem.
— Mas vocês iam decolar. Vocês iam nos deixar! Vocês...
— Oh, não, tio Excelência — Valik interrompeu delicadamente —, foi o piloto inglês, ele estava entrando em pânico e não queria esperar! Eles não têm colhões, os ingleses! Mas não se preocupe — acrescentou —, nós estamos armados, temos comida e estamos salvos! Louvado seja Deus! E mais louvado ainda por eu ter tido tempo para planejar. — Sim, pensou, se não fosse por mim e pelo meu dinheiro, estaríamos todos mortos. Dinheiro para subornar o homem que soltou a nós e a você, e para subornar o major e o capitão para que soltassem Lochart, de quem eu ainda preciso mais um pouco.
— Se tivéssemos ficado, teríamos sido mortos! — O brigadeiro Seladi estava furioso, seu rosto estava roxo de raiva. — Maldito seja esse piloto! Por que você perdeu tempo em soltá-lo? Ali sabe pilotar um 212.
— Sim, mas Lochart tem mais experiência e nós precisamos dele para atravessar este labirinto.
Valik sorriu encorajadoramente para Annoush, que estava sentada do outro lado do corredor, de frente para ele, com a garotinha tremendo nos braços e o filho sentado no chão, cochilando com a cabeça em seu colo. Ela sorriu de volta, debilmente, mudando a criança de posição para aliviar a dor que sentia no corpo inteiro. Ele esticou o braço e tocou nela, depois acomodou-se mais confortavelmente no assento e fechou os olhos, muito cansado, mas muito satisfeito. Você é um homem muito esperto, disse a si mesmo. No fundo do coração ele sabia que sem o estratagema de fingir para McIver que a Savak ia prendê-lo — e principalmente a sua família — nem McIver nem Lochart os teriam ajudado a fugir. Você os avaliou perfeitamente, como fez com Gavallan.
Idiotas!, pensou com desprezo.
Quanto a você, Seladi, meu estúpido e ganancioso tio, que trocou um reabastecimento seguro em Isfahan, que falhou em nos abastecer, para conseguir uma saída segura para você e para 11 dos seus amigos, você é pior. Você é um traidor. Se eu não tivesse um informante antigo no Estado-Maior do QG, eu nunca teria sabido da grande traição dos generais a tempo de fugir. Teríamos sido capturados como moscas num pote de mel em Teerã. Os legalistas ainda podem vencer, a batalha ainda não está perdida, mas enquanto isso eu e minha família vamos observar os acontecimentos da Inglaterra, de St. Moritz ou de Nova York.
Ele se deixou embalar pela força maravilhosa dos jatos que os estavam levando para a segurança, para uma casa em Londres, uma casa de campo em Surrey, outra na Califórnia, e para as contas bancárias que tinha na Suíça e nas Bahamas. Ah, sim, disse a si mesmo com satisfação, e isso me faz lembrar da nossa conta conjunta com a S-G bloqueada nas Bahamas, mais quatro milhões de dólares para nos enriquecer — e fáceis de arrancar das patas de Gavallan. Mais do que suficiente para manter a mim e à minha família em segurança o que quer que aconteça aqui — até que possamos voltar. Mesmo que vença, Khomeini não vai viver para sempre — que Deus o amaldiçoe! Logo nós poderemos voltar para casa, logo o Irã voltará ao normal, enquanto isso, temos tudo que precisamos.
Ele ouviu Seladi ainda resmungando a respeito de Lochart e do fato de quase ter sido deixado para trás.
— Acalme-se, Excelência — disse, e deu-lhe o braço, apaziguando-o, e pensou: Você e os seus cães fujões ainda têm um valor temporário. Talvez como reféns, talvez como iscas, quem sabe? Nenhum pertence à família exceto você, e você nos traiu. — Acalme-se meu querido tio, com a ajuda de Deus, o piloto vai ter o que merece.
Sim. Lochart não devia ter entrado em pânico. Ele devia ter esperado pela minha ordem. É revoltante entrar em pânico.
Valik fechou os olhos e dormiu, muito satisfeito consigo mesmo.
NA REFINARIA IRA-TODA, BANDAR DELAM: 12:04H. Scragger assoviava enquanto bombeava manualmente combustível para o interior dos seus tanques principais, tirando-o de grandes tambores alinhados ao lado do recém-lavado 206, que brilhava ao sol. Ali perto, estava um jovem Faixa Verde acocorado na sombra, apoiado no seu M16 e meio adormecido.
O sol do meio-dia estava quente e uma leve brisa tornava o dia agradável, diminuindo a constante umidade que havia ali na costa. Scragger vestia roupas leves, camisa branca com as insígnias de capitão, calças e sapatos pretos além dos inevitáveis óculos escuros e boné.
Agora os tanques estavam transbordando.
— É isso aí, meu filho — disse para o japonês designado para ajudá-lo.
— Hai, Anjin-san. Sim, sr. piloto — disse o homem. Como todos os empregados da refinaria, ele usava um macacão branco, imaculado, e luvas, com o emblema das Indústrias Irã-Toda nas costas, e com o mesmo escrito em farsi mais acima, e o equivalente em caracteres japoneses embaixo.
— Hai, é isso — disse Scragger, usando uma das palavras que aprendera com Kasigi na véspera, ao voltar de Lengeh. E apontou. — Agora os nossos tanques de longo percurso, e depois vamos encher os de reserva. — Para a viagem que de Plessey tinha generosamente autorizado no domingo à noite, para comemorar a vitória sobre os sabotadores, Scragger retirara o banco de trás e amarrara no lugar dois tambores de duzentos litros.
— Só por precaução, sr. Kasigi. Eu os liguei aos tanques principais. Podemos usar uma bomba manual e até mesmo reabastecer no ar, se formos obrigados, se o senhor concordar em bombear. Então não precisaremos mais pousar para reabastecer. Nunca se sabe como vai estar o tempo no golfo, há sempre tempestades repentinas, nevoeiro, ventos que podem nos pregar peças. Nossa melhor opção é ficarmos um pouco afastados, na direção do mar.
— E o tubarão?
— Aquele velho tubarão-martelo de Kharg? Com um pouco de sorte poderemos vê-lo; se chegarmos tão longe e não formos desviados.
— Não há ainda nenhuma resposta do radar de Kish?
— Não, mas isso não importa. Eles nos deram permissão para ir até Bandar Delam. O senhor tem certeza que pode me reabastecer na sua fábrica?
— Sim, nós temos estoques de tanques, capitão. Campo de pouso, hangar e oficina. Foram as primeiras coisas que construímos; nós tínhamos um contrato com a Guerney.
— Sim, sim, eu sabia disso, mas eles desistiram, não?
— Sim, há cerca de uma semana mais ou menos. Talvez a sua companhia possa assumir o contrato? Talvez eles possam encarregá-lo disso; há trabalho para três 212 e talvez dois 206 constantemente, enquanto estamos em construção.
— Isso faria o velho Andy e Gav ficarem tão felizes quanto um gato num barril de peixe e faria o Dirty Dunc soltar puns! — E Scragger rira.
— O quê?
Scragger tentou explicar a piada a respeito de McIver. Mas quando terminou, Kasigi não tinha rido, dizendo apenas:
— Oh, agora eu compreendo.
Eles são esquisitos, pensou Scragger.
Quando terminou de reabastecer, fez uma nova verificação: motor, rotores, sistema de vôo — embora não esperasse partir hoje. De Plessey pedira-lhe para esperar por Kasigi, para levá-lo para onde ele precisasse, e trazê-lo de volta a Lengeh na quinta-feira. O 206 estava perfeito. Satisfeito, deu uma olhada no relógio, depois apontou para o estômago e esfregou-o.
— Hora do grude, hai?
— Hai! — Seu ajudante sorriu e fez um sinal em direção ao pequeno caminhão que estava ali perto, depois apontou para o prédio de quatro andares que ficava a uns duzentos metros dali, onde ficavam os escritórios dos executivos.
— Prefiro andar — disse, sacudindo a cabeça e fez um gesto com dois dedos para explicar o que era andar, então o jovem se inclinou cumprimentando-o e foi embora no caminhão. Ele ficou parado lá por um momento, observando e sendo observado pelo guarda. Agora que o caminhão tinha partido e que os tanques estavam fechados, podia sentir o cheiro do mar e dos entulhos ali perto, na praia. Estava quase na hora da maré baixa — só havia uma maré por dia no golfo, assim como no mar Vermelho, porque ele era raso e sem acesso ao mar, a não ser através do estreito de Ormuz.
Ele gostava do cheiro do mar. Tinha crescido em Sydney, sempre com a visão do mar. Depois da guerra, tinha se instalado lá de novo. Pelo menos, disse a si mesmo, eu ia para lá entre um trabalho e outro e a mulher e as crianças viviam lá, e ainda vivem, mais ou menos. Seu filho e suas duas filhas já estavam casados e tinham filhos. Sempre que ia para casa de licença, talvez uma vez por ano, ele os via. Tinham um relacionamento distante e amigável.
Nos primeiros anos, sua esposa e filhos vieram morar no golfo. Mas no fim de um mês voltaram para Sydney.
— Nós estaremos em Bondi, Scrag — dissera Nell. — Chega de lugares estranhos para nós, rapaz. — Durante um dos seus longos períodos de serviço no Kuwait, ela tinha encontrado outro homem. Quando Scragger voltou, na vez seguinte, ela lhe disse: — Acho que é melhor nos divorciarmos, rapaz. É melhor para as crianças, e também para você e para mim. — E então eles o fizeram. O novo marido dela viveu mais alguns anos e depois morreu. Scragger e ela voltaram ao seu antigo padrão de amizade. Não que tenhamos deixado de ser amigos, pensou. Ela é uma ótima pessoa, as crianças estão felizes e eu estou voando. Ele ainda lhe mandava dinheiro todos os meses. Ela sempre dizia que não precisava de dinheiro.
— Então guarde-o para uma época de dificuldade, Nell — sempre respondia. Até agora, deixa eu bater na madeira, eles ainda não tinham tido nenhum período de necessidade, nem ela nem as crianças e nem seus netos.
A madeira mais próxima era a coronha do rifle que o revolucionário segurava. O homem o olhava com ar de ódio. Maldito filho da mãe, você não vai estragar o meu dia. Sorriu para ele, depois virou de costas, se espreguiçou e olhou em volta.
Este é um ótimo local para uma refinaria, disse a si mesmo, fica bastante perto de Abadan, dos oleodutos principais que ligam os campos de petróleo do norte aos do sul. É uma grande idéia tentar economizar todo esse gás que está sendo queimado, bilhões de toneladas no mundo todo. É um desperdício criminoso, pensando bem.
A refinaria ficava num promontório, com seu próprio ancoradouro que se estendia por quatrocentos metros golfo adentro, e que Kasigi dissera ser capaz de suportar dois superpetroleiros ao mesmo tempo, qualquer que fosse seu tamanho. Em volta dos campos de pouso para helicópteros havia muitos hectares de instalações para destilação do petróleo e edifícios, tudo aparentemente interligado por quilômetros de canos de plástico e de aço de todos os tamanhos, um verdadeiro labirinto, com enormes torneiras e válvulas, estações de bombeamento e, em toda a parte, guindastes, tratores e enormes pilhas de todo o tipo de materiais de construção, montanhas de concreto e areia, malhas de aço reforçadas, além de áreas para entulho do tamanho de campos de futebol, de caixotes e recipientes protegidos por lonas plastificadas, e estradas, fundações, ancoradouros e escavações semiterminados. Mas quase tudo parado, homens e máquinas.
Quando pousaram, havia um comitê de recepção de uns vinte ou trinta japoneses esperando no campo de pouso, reunidos apressadamente, e uns cem grevistas iranianos e guardas islâmicos armados, alguns usando braçadeiras da OILP, as primeiras que Scragger vira. Depois de muitos gritos e ameaças e de examinar os papéis deles e a licença pelo radar de Kish, o intérprete dissera que podiam ficar, mas que nenhum dos dois poderia partir, nem o helicóptero poderia decolar, sem permissão do komiteh.
A caminho dos escritórios, o engenheiro-chefe Watanabe, que sabia falar inglês, explicara que o komiteh de greve já dava as ordens lá há mais de dois meses. Durante esse tempo quase nada progredira e todo o trabalho tinha cessado.
— Eles não permitem nem mesmo que façamos a manutenção do nosso equipamento. — Era um homem rude, de rosto severo e cabelos grisalhos, de uns sessenta anos, com mãos fortes de operário. Acendeu outro cigarro na ponta do que tinha acabado de fumar.
— E o rádio de vocês?
— Há seis dias eles trancaram a sala de rádio, proibindo o seu uso, e confiscaram a chave. Os telefones estão mudos há semanas, é claro, e o telex não funciona há mais de uma semana. Ainda temos cerca de mil japoneses aqui, dependentes nunca foram permitidos, é claro, as provisões de comida estão no fim e não recebemos nenhuma correspondência há mais de seis semanas. Não podemos sair, não podemos trabalhar. Somos quase prisioneiros e não podemos fazer nada sem muito aborrecimento. Mas, pelo menos, estamos vivos para proteger o que construímos e para esperar pacientemente até que eles nos deixem prosseguir. Estamos realmente muito honrados em vê-lo, Kasigi-san, e ao senhor, capitão.
Scragger deixara-os a tratar dos negócios, sentindo a tensão entre os dois homens, por mais que eles tentassem ocultá-la. À noite, ele tinha feito uma refeição leve, como sempre, permitindo-se apenas uma cerveja japonesa bem gelada. Ora bolas, ela não é tão boa quanto a Foster's. Depois tinha feito seus 11 minutos de exercícios da Força Aérea canadense e fora para cama.
Poucos antes da meia-noite, enquanto ele ainda estava lendo, alguém batera de leve na porta. Kasigi entrara nervoso, pedindo desculpas por incomodá-lo, mas achava que Scragger devia tomar conhecimento, imediatamente, de que ele acabara de ouvir uma transmissão feita por um porta-voz de Khomeini em Teerã, dizendo que todas as Forças Armadas tinham-se declarado a favor dele, que o primeiro-ministro Bakhtiar renunciara e que agora o Irã estava totalmente livre da corja do xá, que por ordens pessoais de Khomeini toda luta deveria cessar, todas as greves deveriam ser interrompidas, que a produção de petróleo deveria recomeçar, que todos os bazares e lojas deveriam reabrir, que todos os homens deveriam entregar suas armas e voltar ao trabalho e, acima de tudo, que todos deveriam agradecer a Deus por ter-lhes concedido a vitória.
— Agora podemos começar de novo. Graças a todos os deuses, hein? Agora as coisas vão voltar ao normal. — E Kasigi sorrira radiante.
Depois que Kasigi saiu, Scragger ficara deitado, com a luz acesa, e a mente trabalhando, imaginando o que poderia acontecer agora. Como tudo aconteceu rápido, pensou. Teria apostado que o xá nunca seria expulso, apostaria mais ainda que Khomeini nunca teria permissão para voltar, e apostaria tudo num golpe militar.
— Isso só serve para mostrar, Scrag, meu velho, que você não sabe nada. — E tinha apagado a luz.
De manhã, tinha acordado cedo, aceitara o chá verde no lugar do chá que costumava tomar de manhã — indiano, muito forte, e sempre com leite condensado — e fora checar, limpar e reabastecer o helicóptero e agora, depois de tudo pronto, estava com muita fome. Cumprimentou levemente o guarda, que não lhe deu nenhuma atenção, e caminhou em direção ao prédio de escritórios.
Kasigi estava em pé diante de uma das janelas do último andar onde ficavam os escritórios dos executivos. Estava na sala de reuniões, um escritório espaçoso, de esquina, com uma mesa enorme e lugar para vinte pessoas sentadas, e tinha estado observando o 206 e Scragger distraidamente, com a cabeça num turbilhão, determinado a conter a raiva. Desde cedo, nessa manhã, ele verificara projeções de custos, relatórios, quantias a serem recebidas, projeções de trabalho, e assim por diante, e tudo isso se resumia num único fato: mais um bilhão de dólares e mais um ano para iniciar a produção. Esta era apenas a segunda vez que ele visitava a refinaria, que não estava na sua esfera de responsabilidades, embora fosse um dos diretores e membro do comitê executivo da presidência, que era o escalão mais alto de poder decisório do conglomerado.
Atrás dele, o engenheiro-chefe Watanabe estava sentado sozinho na ampla mesa, parecendo paciente, mas fumando sem parar como sempre. Ele fora o responsável nos últimos dois anos, chefe adjunto desde que o projeto começara em 1971 — um homem de grande experiência. O antigo engenheiro-chefe morrera na refinaria, de um ataque cardíaco.
Não é de admirar, pensou Kasigi, furioso. Há dois anos — talvez quatro — ele deve ter visto que o nosso orçamento limite, de três e meio bilhões de dólares, não seria suficiente, que já fora ultrapassado e que os prazos de entrega estavam totalmente fora da realidade.
— Por que o engenheiro-chefe Kasusaka não nos informou? Por que ele não fez um relatório especial?
— Ele fez, Kasigi-san — disse educadamente Watanabe —, mas por ordem da direção do convênio aqui. todos os relatórios têm que passar pelos nossos sócios indicados pela corte. E uma praxe iraniana, embora o empreendimento seja sempre considerado uma joint venture, meio a meio, com divisão de responsabilidades, aos poucos os iranianos conseguem manobrar as reuniões, os contratos e as cláusulas, geralmente usando a corte ou o xá como desculpa, até terem o controle de fato e então... — Ele deu de ombros.
"O senhor não tem idéia de como eles são espertos... piores do que um comerciante chinês, muito piores. Concordam em comprar o animal inteiro, mas dão para trás e levam só o filé, deixando o resto da carcaça nas suas mãos.
— Apagou o cigarro fumado pela metade e acendeu outro. — Houve uma reunião de diretoria com todos os sócios, com Gyokotomo-sama, o próprio Yoshi Gyokotomo, presidente do Sindicato, aqui neste escritório, pouco antes do engenheiro-chefe Kasusaka-san morrer. Eu estava presente. Kasusaka-san avisou a todo mundo que os atrasos e complicações burocráticas dos iranianos, pressão é a palavra certa, iriam atrasar o início da produção e causar um grande aumento nos custos. Eu estava presente, eu o ouvi dizer isso com meus próprios ouvidos, mas ele foi vencido pelos sócios iranianos que garantiram ao presidente que tudo seria reformulado, que Kasusaka-san não entendia o Irã nem o modo deles fazerem negócios no Irã. — Watanabe examinou a ponta do seu cigarro. — Kasusaka-san até disse a mesma coisa em particular para Gyokotomo-sama, implorando-lhe para tomar cuidado, e lhe deu um relatório detalhado por escrito.
— Você esteve presente a esse encontro? — perguntou Kasigi fechando a cara.
— Não, mas ele me contou o que tinha dito, que Gyokotomo-sama aceitara o relatório e dissera que ele mesmo o entregaria aos mais altos escalões, em Teerã e no Japão. Mas nada aconteceu, Kasigi-san. Nada.
— Onde está a cópia do relatório?
— Não há nenhuma cópia. No dia seguinte, antes de partir para Teerã, Gyokotomo ordenou que as cópias fossem destruídas. — Mais uma vez o homem deu de ombros. — A obrigação do engenheiro-chefe Kasusaka, e a minha, era e é construir a refinaria, quaisquer que fossem os problemas, e não interferir com o trabalho do Sindicato. — Watanabe acendeu outro cigarro com a ponta do anterior, tragou profundamente, apagou o outro delicadamente, com vontade de esmagá-lo, e de esmagar o cinzeiro, a mesa, o edifício e a refinaria, junto com aquele intruso do Kasigi que ousava interrogá-lo, que não sabia de nada, que nunca tinha trabalhado no Irã, e que tinha essa posição na companhia porque era parente dos Toda. — Ao contrário do engenheiro-chefe Kasusaka — ele acrescentou suavemente —, eu venho guardando as cópias dos meus relatórios mensais.
— So ka? — disse Kasigi, tentando parecer natural.
— Sim — Watanabe confirmou. E há cópias dessas cópias guardadas em lugar bem seguro, pensou, apanhando uma pasta grossa na sua maleta e colocando-a em cima da mesa, caso você tente responsabilizar-me pelos fracassos. — O senhor pode lê-los se quiser.
— Obrigado — com esforço, Kasigi resistiu à tentação de agarrar a pasta imediatamente.
Watanabe esfregou o rosto fatigado. Tinha ficado acordado a maior parte da noite, preparando-se para este encontro.
— Quando voltarmos ao normal, o trabalho vai progredir rapidamente. Estamos com oitenta por cento do trabalho prontos. Estou confiante de que poderemos terminar, com planejamento correto. Está tudo nos meus relatórios, inclusive a questão do encontro de Kasusaka com os sócios e depois com Gyokotomo-sama.
— O que você sugere como uma solução global para a Irã-Toda?
— Não pode haver nenhuma enquanto não voltarmos ao normal.
— Estamos voltando agora. Você ouviu a transmissão.
— Eu ouvi, Kasigi-san, mas normal para mim significa quando o governo de Bazargan estiver inteiramente sob controle.
— Isso acontecerá em poucos dias. E a sua solução?
— A solução é simples: arranjar novos sócios que queiram cooperar, arranjar o financiamento de que precisamos, e dentro de um ano, em menos de um ano, estaremos produzindo.
— Os sócios podem ser mudados?
— Os antigos foram todos apontados ou aprovados pela corte, portanto homens do xá, agora, portanto, suspeitos e inimigos — disse Watanabe com uma voz tão fina quanto os seus lábios. — Nós não vimos nem um deles depois que Khomeini voltou, nem ouvimos falar mais deles. Ouvimos boatos de que tinham todos fugido mas... — Watanabe sacudiu seus ombros enormes. — Não tenho nenhum meio de checar sem telex, sem telefones, sem transporte. Duvido que os novos 'sócios' tenham uma atitude diferente.
Kasigi concordou com a cabeça e olhou pela janela, sem ver nada. Era fácil culpar iranianos e homens mortos e reuniões secretas e relatórios destruídos. O presidente Yoshi Gyokotomo nunca mencionara nenhum encontro com Kasusaka nem nenhum relatório por escrito. Por que Gyokotomo omitiria um relatório tão vital? Ridículo, porque ele e sua companhia estão correndo o mesmo risco que a nossa. Por quê? Se Watanabe estiver dizendo a verdade, e seus relatórios puderem provar isso, por quê?
Então, por um momento que Watanabe notou, o rosto de Kasigi desmoronou ao perceber a resposta: porque o enorme orçamento e o fracasso gerencial do complexo Irã-Toda, somado ao desastroso declínio da frota mercante mundial, levarão à falência as Indústrias Toda de Navegação, levarão à falência o próprio Hiro Toda e nos deixarão prontos para sermos encampados! Por quem? Evidentemente por Yoshi Gyokotomo. É claro que por aquela família de camponeses enriquecidos que nos detestam por termos uma origem nobre, por descendermos de samurais...
Então, mais uma vez, Kasigi pensou que seu cérebro iria explodir: É claro que por Yoshi Gyokotomo, mas ajudado e acobertado pelos nossos arqui-rivais, as Indústrias Mitsuwari! Oh, Gyokotomo vai perder uma fortuna, mas eles podem agüentar esta perda enquanto molharem as mãos certas sugerindo que irão, em conjunto, absorver as perdas da Toda, desmembrá-la e, com a benevolência do Ministério de Indústria e Comércio, colocá-la sob uma outra administração. Junto com os Toda irão os seus parentes: os Kasigi e os Kayama. Bem que eu queria estar morto.
Oh ko!
E agora sou eu que terei que levar estas terríveis notícias. Os relatórios de Watanabe não provarão nada, pois é claro que Gyokotomo vai negar tudo, amaldiçoando-me por tentar acusá-lo e gritando que os relatórios de Watanabe provam conclusivamente a má administração de Hiro Toda durante todos aqueles anos. Então eu vou ter problemas de qualquer maneira. Talvez o plano de Hiro Toda tenha sido colocar-me no meio desta confusão! Talvez ele queira substituir-me por um dos seus irmãos ou dos seus sobri...
Neste instante houve uma batida na porta e esta foi aberta violentamente. O jovem assistente de Watanabe entrou correndo, desculpando-se profusamente por interrompê-los.
— Oh, sinto muito, Watanabe-san, oh, sinto muito.
— O que é? — Watanabe disse, interrompendo-o.
— Há um grande komiteh chegando, Watanabe-San, Kasigi-sama! Olhem! — O jovem, pálido, apontou para as outras janelas que davam para a frente do prédio.
Kasigi chegou lá primeiro. Diante da porta principal havia um caminhão cheio de revolucionários, e outros caminhões e carros vinham atrás. Saltaram vários homens deles e começaram a se juntar em grupos.
Scragger estava se aproximando e eles o viram parar, depois continuar em direção à porta principal, mas fizeram sinal para ele se afastar enquanto uma grande Mercedes se aproximava. Do banco de trás saltou um homem robusto vestido de preto, com um turbante preto e uma barba branca, acompanhado por outro homem bem mais jovem, de bigode, vestido com roupas leves, com a camisa aberta no pescoço. Todos dois usavam óculos. Watanabe prendeu a respiração.
— Quem são eles? — perguntou Kasigi.
— Não sei, mas um aiatolá significa encrenca. Mulás usam turbantes brancos, aiatolás usam turbantes pretos. — Cercados por meia dúzia de guardas, os dois homens entraram no prédio. — Traga-os aqui em cima, Takeo, com toda a cerimônia. — O rapaz saiu correndo no mesmo instante. — Nós até hoje só fomos visitados por um aiatolá uma vez, no ano passado, um pouco antes do incêndio de Abadan. Ele chamou todo o nosso pessoal iraniano para uma reunião, discursou para eles por uns três minutos, e depois mandou que entrassem em greve em nome de Khomeini. — Seu rosto virou uma máscara. — Esse foi o começo dos nossos problemas aqui. Nós, estrangeiros, temos tentado fazer o melhor possível desde então.
— E desta vez? — perguntou Kasigi.
Watanabe deu de ombros, foi até uma escrivaninha e apanhou uma fotografia de Khomeini que Kasigi não tinha notado, pendurado-a na parede.
— Apenas por delicadeza — disse com um sorriso sardônico. — Vamos nos sentar? Eles esperam que sejamos formais. Por favor, sente-se na cabeceira.
— Não, Watanabe-san, por favor. O encarregado é você. Eu sou apenas um visitante.
— Como quiser. — Watanabe sentou-se no seu lugar de sempre e olhou para a porta.
— Como foi isso, sobre o incêndio de Abadan? — perguntou Kasigi, quebrando o silêncio.
— Ah, desculpe — disse Watanabe, sentindo-se na verdade indignado pelo fato de Kasigi ignorar um fato assim tão importante. — Foi em agosto passado, durante o mês sagrado de Ramadan quando nenhum crente pode comer nem beber desde o nascer até o pôr-do-sol e os ânimos geralmente ficam exaltados. Nessa época houve apenas algumas demonstrações de protesto contra o xá, principalmente em Teerã e em Qom, mas nada de sério, e os tumultos foram facilmente contidos pela polícia e pela Savak. No dia 15 de agosto, incendiários puseram fogo num cinema, o Cinema Rex, em Abadan. Todas as portas, 'por acaso', estavam trancadas ou obstruídas, os bombeiros e a polícia, 'por acaso', custaram a chegar, e no pânico morreram quase quinhentas pessoas, na maioria mulheres e crianças.
— Que horror!
— Sim. A nação inteira ficou indignada. Na mesma hora a Savak foi acusada, e portanto o xá, o xá pôs a culpa nos esquerdistas e jurou que a polícia e a Savak não tinham nada a ver com aquilo. É claro que ele determinou um inquérito que se arrastou por semanas. Infelizmente, a questão da responsabilidade não foi esclarecida. — Watanabe estava prestando atenção no barulho de passos. — Esta foi a centelha que uniu as oposições sob o comando de Khomeini e arrancou os Pahlavi do trono.
— Na sua opinião, quem foi que pôs fogo no cinema? — perguntou Kasigi, depois de uma pausa.
— Quem é que queria destruir os Pahlavi? É tão fácil acusar a Savak! — Watanabe ouviu o elevador parar. — O que significam quinhentas mulheres e crianças para um fanático... de qualquer seita?
A porta foi aberta pelo assistente Takeo. O aiatolá e o civil entraram com um ar importante, com seis homens armados em volta. Watanabe e Kasigi levantaram-se educadamente e se curvaram.
— Sejam bem-vindos — Watanabe disse em japonês embora soubesse falar farsi muito bem. — Eu sou Naga Watanabe, o encarregado daqui, este é o sr. Kasigi da nossa matriz no Japão. A quem eu tenho o prazer de me dirigir, por favor?
Takeo, que falava farsi perfeitamente, começou a traduzir, mas o civil, que já tinha sentado, o interrompeu.
— Vous parlez français? — perguntou com rudeza a Watanabe.
— Iye. Não — disse Watanabe, em japonês.
— Bien sür, m'sieur — disse Kasigi, hesitante, pois seu francês era medíocre. — Je parle un peu, mais je parle anglais mieux et m 'sieur Watanabe aussi. Eu falo um pouco de francês, mas falo melhor inglês e o sr. Watanabe também.
— Muito bem — disse o homem secamente, em um inglês com sotaque parisiense. — Então falaremos em inglês. Eu sou Muzadeh, encarregado da região de Abadan pelo primeiro-ministro Bazargan e...
— Mas Bazargan não faz a lei, quem faz é o imã — o aiatolá o interrompeu vivamente. — O imã nomeou temporariamente Bazargan como primeiro-ministro, até que, com a Vontade de Deus, nosso Estado islâmico seja formado. — Ele tinha sessenta e muitos anos, um rosto redondo, sobrancelhas e barba brancas e usava uma roupa preta bem cortada. — Sob a liderança do imã — acrescentou significativamente.
— Sim, é claro — disse Muzadeh, depois continuou a falar como se não tivesse havido nenhuma interrupção —, e devo informar-lhes oficialmente que a Irã-Toda está, a partir de agora, sob nosso controle direto. Haverá uma reunião dentro de três dias para organizar as formas de controle e as futuras operações. Todos os antigos contratos, feitos pelos xá e portanto ilegais, estão suspensos. Eu vou indicar uma nova junta fiscalizadora da qual serei presidente, com representantes dos operários, um operário japonês e o senhor mesmo. O senhor...
— E eu mesmo e um mulá de Bandar Delam — disse o aiatolá, olhando fixamente para ele.
— Nós podemos discutir a formação do comitê mais tarde. — Muzadeh falava zangado, em farsi, e havia uma certa tensão na sua voz. — O importante é que os operários estejam representados.
— O importante é fazer o Trabalho de Deus.
— Nisso o trabalho do povo e o Trabalho de Deus são iguais.
— Não se o 'trabalho do povo' for um disfarce para o trabalho de Satã!
Os seis guardas iranianos mudaram de posição, inquietos. Inconscientemente, eles se reagruparam em dois grupos, quatro de um lado e dois do outro. No silêncio que se seguiu, seus olhos examinaram um a um todos os homens sentados na mesa. Um dos guardas calmamente destravou uma arma.
— O senhor estava dizendo? — Watanabe disse rapidamente e quase acrescentou Banzai, aliviado, quando viu todos voltarem a prestar atenção nele.
— O senhor quer formar um novo comitê?
— Sim. — Com algum esforço, Muzadeh tirou os olhos do aiatolá e continuou: — Você deverá ter todos os livros preparados para serem examinados por nós e será considerado responsável por qualquer... qualquer problema que possa ocorrer, e por crimes passados ou futuros contra o Irã, passados ou futuros.
— Nós temos trabalhado em conjunto com o governo do Irã desde o...
— Com o xá, não com o povo iraniano — Muzadeh interrompeu. Atrás dele, os guardas, rapazes, alguns adolescentes, alguns quase imberbes, começaram a cochichar.
— É verdade, sr. Muzadeh — disse Watanabe, imperturbável. Eleja tinha passado por este tipo de confronto muitas vezes nos últimos meses. — Mas nós somos japoneses. A Irã-Toda está sendo construída por técnicos japoneses com a maior ajuda possível de operários iranianos, e é financiada inteiramente com dinheiro japonês.
— Isso não tem nada...
— Sim, nós sabemos — disse alto o aiatolá, mas Simpaticamente, adiantando-se ao outro —, nós sabemos disto e vocês são bem-vindos no Irã. Nós sabemos que os japoneses não são americanos canalhas, nem ingleses mentirosos, e embora vocês não sejam muçulmanos, para infelicidade de vocês, seus olhos não estando ainda abertos para Alá, nós os consideramos bem-vindos. Mas agora, com a ajuda de Deus, temos o nosso país de volta, agora temos que fazer... que fazer novos acordos para futuras operações. O nosso povo vai ficar aqui, fazendo perguntas. Por favor, cooperem com ele... vocês não têm nada a temer. Lembrem-se, nós queremos esta obra pronta e operando tanto quanto vocês. Meu nome é Ismael Ahwazi, e eu sou o aiatolá desta região. — Ele se levantou com uma rapidez que fez alguns dos homens darem um pulo.
— Nós voltaremos dentro de quatro dias.
Muzadeh falou veementemente em farsi.
— Há outras ordens para estes estran...
Mas o aiatolá já tinha saído. Furioso, Muzadeh se levantou e saiu pisando duro, seguido pelos seus homens.
Quando ficaram sozinhos, Kasigi permitiu-se apanhar um lenço e enxugar a testa. O jovem Takeo ainda estava em estado de choque. Watanabe revistou os bolsos à procura de cigarros, mas o maço estava vazio. Ele o amassou. Takeo despertou e correu até uma gaveta e trouxe um maço novo, abriu-o e ofereceu-o.
— Obrigado, Takeo — disse Watanabe e aceitou fogo. — Pode ir agora.
— Ele olhou para Kasigi. — Então, tudo vai começar de novo.
— Sim — respondeu Kasigi, compreendendo as implicações de um novo komiteh empenhado em terminar a obra. — Esta foi a melhor notícia que poderíamos receber. Isto será muito bem recebido no Japão. — De fato, pensou, cada vez mais animado, esta notícia vai neutralizar o relatório de Watanabe e talvez, de algum modo, nós, Hiro Toda e eu, possamos, juntos, neutralizar Gyokotomo. E se, o que seria ainda melhor, Hiro renunciasse em favor do seu irmão, seria perfeito!
— O quê? — perguntou, vendo que Watanabe estava olhando para ele.
— Eu não quis dizer que o trabalho vai recomeçar, Kasigi-san — disse o engenheiro-chefe, rispidamente. — O novo komiteh não vai ser melhor do que os outros; de fato, será pior. Com os sócios, o inevitável pishkesh abria portas e você sabia em que pé estava. Mas com esses fanáticos, com esses amadores? — Irritado, Watanabe passou a mão nos cabelos. Que os deuses e os espíritos me dêem forças para não xingar este idiota pela sua estupidez, pensou. Seja esperto. Acalme-se, ele não passa de um macaco, não tão bem-nascido quanto você, que é um descendente direto dos senhores do norte.
— Então o aiatolá mentiu? — A alegria de Kasigi evaporou-se.
— Não. Aquele pobre idiota acreditava no que estava dizendo, mas nada disso vai acontecer. A polícia e a Savak, qualquer que seja o seu novo nome, ainda controlam Abadan e esta área. Os habitantes locais são na maioria árabes, sunitas, não iranianos xiitas. Eu estava querendo dizer que a matança vai começar de novo. — Watanabe explicou a discussão que os dois homens tinham tido em farsi. — Agora vai ser muito pior com cada facção tentando conseguir o poder.
— Estes bárbaros não vão obedecer a Khomeini? Não vão depor as armas?
— Eu estou dizendo que os esquerdistas como Muzadeh vão continuar com a guerra, ajudados e acobertados pelos soviéticos, que estão loucos para tomar o Irã, eles sempre quiseram o Irã, sempre desejarão o Irã. Não por causa do petróleo, mas por causa do estreito de Ormuz. Pois com um pé no estreito, eles tomam conta do mundo ocidental... e do Japão. Pelo que me diz respeito, o Ocidente, a América e o resto do mundo podem apodrecer, mas nós seremos obrigados a entrar em guerra se o estreito for proibido para os nossos navios.
— Concordo. É claro que eu concordo. — Kasigi também estava irritado. — Nós todos sabemos disto. É claro que isso significa guerra, enquanto formos dependentes com relação ao petróleo.
— Sim — Watanabe sorriu melancolicamente. — Dez anos, não mais do que isso.
— Sim.
Os dois homens estavam a par do enorme esforço nacional em projetos de pesquisa, conhecidos e secretos, para desenvolver as fontes alternativas de energia que tornariam o Japão auto-suficiente — o Projeto Nacional. As fontes* o sol e o mar.
— Dez anos, sim, só mais dez anos. — Kasigi estava confiante. — Se tivermos dez anos de paz e de acesso livre ao mercado americano, então teremos a nossa fonte alternativa e então seremos os donos do mundo. Mas enquanto isso — acrescentou, com a raiva aumentando —, durante os próximos dez anos teremos que nos submeter a bárbaros e bandidos de toda a espécie.
— Khrushchev não disse que não tinham que fazer nada a respeito do Irã porque "o Irã é uma maçã podre que vai cair nas nossas mãos"? — Watanabe estava furioso. — Eu garanto que aqueles comedores de merda estão sacudindo a árvore com toda a força.
— Nós os derrotamos uma vez — Kasigi disse sombriamente, lembrando-se da guerra naval de 1904, de que seu avô tinha participado. — Poderemos derrotá-los de novo. Aquele homem... Muzadeh? Talvez ele seja apenas progressista e antimulá; nem todos eles são partidários fanáticos de Khomeini
Eu concordo, Kasigi-san. Mas alguns são igualmente fanáticos pelo seu Deus Lenin-Marx e igualmente estúpidos. Aposto como Muzadeh é um desses pseudo-intelectuais, antigo aluno de uma universidade francesa, cujos estudos foram pagos com bolsas de estudo dadas pelo xá, que foi adotado, treinado e adulado por professores de esquerda na França. Passei dois anos na Sorbonne fazendo um curso de pós-graduação. Eu conheço esses intelectuais, esses cretinos e alguns dos professores. Eles tentaram me catequisar uma vez... Um tiroteio lá fora o interrompeu. Por um momento, os dois homens ficaram imóveis, depois correram para a janela. Lá embaixo, o aiatolá e Muzadeh estavam parados nos degraus da frente. Abaixo deles, no pátio, um homem os ameaçava com um rifle automático, sozinho no meio de um semi-círculo de outros homens armados, os outros estavam espalhados, perto dos caminhões, alguns gritando e todos hostis. Scragger estava ali perto e viram-no procurar um lugar melhor para se proteger. O aiatolá levantou os braços e falou com eles. Watanabe não podia ouvir o que o homem estava dizendo. Cuidadosamente, abriu a janela e espiou para fora.
— Ele está dizendo: "Em Nome de Deus, entreguem suas armas, o imã o ordenou. Todos vocês ouviram a transmissão da mensagem dele. Vou repetir, obedeçam-no e entreguem suas armas".
Houve mais gritos zangados, com homens ameaçando uns aos outros. Na confusão, ele viu Scragger se esgueirar e desaparecer atrás de um edifício. Watanabe se debruçou mais, tentando ouvir melhor.
— O homem que os está ameaçando com a arma, não consigo ver se ele está usando uma braçadeira ou não... ah, não está, então deve serfedayin ou tudeh... — Fez-se um grande silêncio no pátio. Imperceptivelmente, os homens começaram a procurar posições melhores, todos armados, cada um vigiando o seu vizinho, todos com os nervos à flor da pele. O homem que ameaçava os dois levantou a arma e berrou para o aiatolá:
— Mande seus homens largarem as armas!
Muzadeh deu um passo à frente, sem querer um confronto ali, sabendo que estava em desvantagem.
— Pare com isto Hassan! Você vai...
— Nós não lutamos, e nem os nossos irmãos morreram para entregarmos as nossas armas e o poder para os mulás!
— O governo tem poder! O governo! — Muzadeh aumentou ainda mais o tom da voz. — Todos podem ficar com suas armas agora, mas deverão entregá-las no meu escritório, já que eu represento o novo governo e o...
— Você não representa — gritou o aiatolá. — Em primeiro lugar, em Nome de Deus, todos os guardas não-islâmicos vão colocar as suas armas no chão e partir em paz. Em segundo lugar, o governo está subordinado ao komiteh revolucionário que está ligado diretamente ao imã, e este homem Muzadeh ainda não foi confirmado, portanto não tem nenhuma autoridade! Obedeçam ou serão desarmados!
— Eu sou o governo aqui. — Não é não!
— Allah-u Akbarrr! — alguém gritou e puxou o gatilho e Hassan, o jovem que estava no centro, foi atingido nas costas e dançou a dança da morte. Imediatamente, outras armas foram disparadas e os homens correram para se abrigar ou se voltaram contra o vizinho. A batalha foi curta e terrível. Muitos morreram, mas os homens de Muzadeh estavam em minoria. Os Faixas Verdes foram impiedosos. Alguns tinham agarrado Muzadeh e agora o mantinham de joelhos no chão, implorando piedade.
Sobre os degraus estava o aiatolá. Uma rajada de balas o atingira no peito e no estômago e agora ele estava caído nos braços de um homem, com o sangue manchando suas vestes. Um filete de sangue escorreu pela sua barba.
— Deus é Grande... Deus é Grande... — murmurou, e depois deu um gemido rouco de dor.
— Mestre — disse o homem que o estava segurando, com lágrimas correndo pelo rosto —, diga a Deus que nós tentamos protegê-lo, diga ao Profeta.
— Deus... é... Grande — murmurou.
— E quanto a Muzadeh? — perguntou alguém. — O que vamos fazer com ele?
— Faça o trabalho de Deus. Mate-o... mate-o como devem matar todos os inimigos do islã. Não existe nenhum outro deus além de Deus...
A ordem foi obedecida imediatamente. Cruelmente. O aiatolá morreu sorrindo, com o Nome de Deus nos lábios. Os outros soluçavam abertamente — invejando-lhe o paraíso.
NA BASE DA FORÇA AÉREA DE KOWISS: 14:32H. Manuela Starke estava na cozinha do bangalô fazendo chili. Música country enchia o pequeno aposento, vinda de um toca-fitas de pilha, colocado no parapeito da janela. No fogão a gás butano havia um panelão cheio de caldo e de alguns dos ingredientes, e quando começou a ferver, ela diminuiu o fogo e deu uma olhada no relógio para calcular o tempo. Bem na hora, pensou. Vamos comer por volta das sete e as velas vão embelezar a mesa!
Havia cebolas e outras coisas para picar e carne de cabra para moer e ela continuou a trabalhar alegremente, cantarolando distraída ou dando uns passos de dança ao som da música. A cozinha era pequena e difícil para se trabalhar, ao contrário da enorme cozinha da velha e linda hacienda espanhola que sua família possuía há quase um século, onde ela, seu irmão e sua irmã foram criados. Mas ela não se importava de estar apertada nem de cozinhar sem os utensílios apropriados. Estava satisfeita de ter alguma coisa para fazer para não pensar em quando tornaria a ver seu marido.
Foi no sábado que Conroe partiu para Bandar Delam com o mulá, pensou, tentando tranqüilizar-se. Hoje é terça-feira, então só se passaram três dias e o dia hoje ainda nem acabou. Na noite passada ele lhe falara pelo rádio: "Oi, querida, está tudo bem aqui, não precisa se preocupar. Desculpe, mas tenho que ir. O tempo de transmissão está controlado no momento, eu te amo e estarei aí logo". A voz dele parecia firme e confiante, mas, mesmo assim, ela teve certeza de ter percebido um nervosismo que tomara conta de sua mente e permeara seus sonhos. Isso é imaginação sua. Ele vai voltar logo — deixe os sonhos para a noite e concentre-se pensando que está tudo bem. Concentre-se na cozinha!
Trouxera os pacotes de chili em pó de Londres, junto com temperos, páprica, pimenta-malagueta, gengibre, alho fresco e pimentas de chili secas e feijões secos e pouca coisa mais, além de uma maleta com roupas de dormir e papel higiênico, que pudera carregar no 747. Trouxera os ingredientes para o chili porque Starke adorava comida mexicana, principalmente chili, e ambos achavam que, fora o caril, era a única forma de tornar a carne de cabra suportável. Não teve necessidade de trazer roupas nem qualquer outra coisa porque ainda tinha algumas coisas no apartamento de Teerã. Além disso, o único presente que trouxe foi uma pequena garrafa de Marmite, que ela sabia que Genny e Duncan McIver adoravam passar na torrada amanteigada feita com o pão que Genny assava — quando ela conseguia comprar farinha e fermento.
Hoje Manuela tinha feito pão. As três fôrmas estavam esfriando na prateleira, cobertas com um pano para evitar as moscas. Malditas moscas, pensou. As moscas estragam o verão, mesmo em Lubbock... Ah, Lubbock, imagino como estarão as crianças.
Billyjoe, Conroe Júnior e Sarita. Sete, cinco e três. Ah, meus amores, pensou satisfeita. Estou tão contente de ter mandado vocês para casa, para o meu pai e os nossos cinco mil hectares de terreno para vocês se esbaldarem, e com o vovô Starke por perto: "Mas não deixem de usar botas por causa das cobras, estão ouvindo?" — com aquela sua voz rude e tão terna.
— Texas para sempre — disse em voz alta e riu sozinha, com os dedos ágeis cortando, moendo e mexendo, provando o cozido de vez em quando, pondo mais sal ou alho. Pela janela, viu Freddy Ayre cruzando a pequena praça para subir para a torre de rádio. Com ele estava Pavoud, o chefe dos empregados. Ele é um homem simpático, pensou. Temos sorte de ter empregados leais. Mais além, ela podia ver a pista principal e grande parte da base, coberta de neve, com o céu coberto de nuvens que ocultavam os cumes das montanhas. Alguns pilotos e mecânicos jogavam bola distraidamente. Marc Dubois, que tinha transportado o mulá de volta de Bandar Delam, estava entre eles.
Não havia mais nada acontecendo ali, apenas manutenção dos aparelhos, verificação de peças, pintura — nenhum vôo desde domingo, quando houve o ataque à base. E o motim. No domingo à noite, três amotinados, um piloto e dois sargentos do regimento de tanques, foram submetidos à corte marcial e, de madrugada, foram mortos. Durante todo o dia de ontem e de hoje a base estivera calma. Ontem eles viram passar dois aviões de combate, mas nenhum outro avião, o que era estranho, pois era uma base de treinamento e geralmente havia muito movimento. Nada parecia mover-se. Apenas uns poucos caminhões, nenhum tanque nem soldados — nem visitantes do lado de cá. Durante a noite tinha havido tiros e gritaria, mas durara pouco.
Ela se olhou criticamente no espelho que estava pendurado num prego sobre a pia, cheia de pratos e panelas sujas, além de talheres e copos. Virou o rosto de um lado para o outro e examinou o que pôde enxergar do seu corpo.
— Você está muito bem, querida — disse para o seu reflexo — mas é melhor você se mexer e começar a dar umas corridas e largar o pão, o chili, o vinho, as torradas, a manteiga, os tacos, os feijões e as panquecas da mamãe cheias de mel, os ovos fritos, o bacon e as batatas fritas...
O ensopado começou a transbordar, distraindo-a. Ela diminuiu mais o fogo, provou o caldo grosso e avermelhado, ainda forte demais por não estar totalmente cozido.
— Puxa vida — disse satisfeita —, isto vai fazer Conroe mais feliz do que um porco na lama... — Sua expressão mudou. Faria, pensou, se ele estivesse aqui. Não faz mal, os rapazes vão gostar.
Começou a lavar a louça, mas não conseguia deixar de pensar em Bandar Delam. Sentiu as lágrimas caindo.
— Oh, merda! Controle-se!
— Emergência! — O grito que foi dado lá fora a assustou e ela olhou pela janela. O futebol tinha parado. Todos os homens estavam olhando para Ayre que corria pelas escadas externas da torre, gritando por eles. Ela os viu juntarem-se em volta dele, e depois se espalharem. Ayre dirigiu-se para o bangalô. Apressadamente, tirou o avental, ajeitou o cabelo, limpou os olhos e foi encontrá-lo na porta.
— O que foi, Freddy?
— Não quis deixar de contar-lhe que a torre deles se comunicou comigo e mandou que eu aprontasse um 212 para uma emergência em Isfahan — disse sorrindo. — Eles conseguiram o consentimento da IranOil.
— Isto não é um tanto longe?
— Oh, não. Fica apenas a trezentos quilômetros, umas duas horas, e ainda está bem claro. Marc vai passar a noite lá e volta amanhã. — Mais uma vez Ayre sorriu. — É bom ter alguma coisa para fazer. Curiosamente, eles pediram que Marc fosse o encarregado.
— Por que ele?
— Não sei. Talvez porque ele seja francês e foram os franceses que ajudaram Khomeini. Bem, tenho que ir. O seu chili está com um cheiro maravilhoso. Marc vai ficar danado por perdê-lo. — E saiu em direção ao escritório, alto e bonito.
Ela ficou parada na porta. Os mecânicos estavam tirando um 212 do hangar e Marc Dubois, fechando seu macacão de vôo, acenou alegremente e correu para observar a verificação do aparelho. Então, viu quatro carros em procissão se aproximando pela estrada. Freddy Ayre também viu. Franziu a testa e entrou no escritório.
— O senhor está com a licença de vôo pronta, sr. Pavoud?
— Sim, Excelência. — Pavoud estendeu-a.
Ayre não notou a tensão do homem, nem que suas mãos estavam tremendo.
— Obrigado. É melhor o senhor vir também, caso eles só falem farsi.
— Mas, Excel...
— Venha! — Abotoando a jaqueta por causa do vento, Ayre saiu apressado. Pavoud enxugou as mãos suadas. Os outros iranianos o observavam, também ansiosos.
— Seja como Deus quiser — disse um deles, agradecendo a Deus por ser Pavoud e não ele.
No 212, a verificação prosseguia. Ayre chegou lá junto com os carros. Seu sorriso desapareceu. Os carros estavam cheios de homens armados, Faixas Verdes, e eles cercaram o helicóptero, com alguns aviadores uniformizados no meio deles.
O mulá Hussein Kowissi saltou do banco da frente do primeiro carro, com um turbante branco e roupas escuras bem novas, e botas velhas e gastas. No seu ombro havia um AK47. Era óbvio que ele estava no comando. Outros homens abriram as portas traseiras do primeiro carro e puxaram o coronel Peshadi para fora, e depois sua esposa. Peshadi gritou com eles, xingando-os, e eles recuaram um pouco. O coronel ajeitou o casaco do uniforme e seu quepe. Sua mulher usava um pesado casacão de inverno e luvas, além de um pequeno chapéu e uma bolsa a tiracolo. Seu rosto estava pálido e abatido, mas, como o marido, mantinha a cabeça orgulhosamente erguida. Ela se voltou para apanhar a maleta que estava no carro, porém um dos Faixas Verdes agarrou-a mas, depois de uma ligeira hesitação, entregou a ela.
— O que está havendo, senhor? — Ayre tentou disfarçar o choque.
— Nós... nós estamos sendo mandados para Isfahan sob escolta! Sob escolta! Minha base... minha base foi traída e está nas mãos de rebeldes! — O coronel não disfarçou sua fúria ao gritar para Hussein em farsi: — Estou-lhe dizendo de novo, o que é que a minha mulher tem a ver com isso? Hein? — acrescentou com um rugido. Um dos nervosos Faixas Verdes empurrou um rifle nas costas dele. Sem desviar os olhos, o coronel empurrou o rifle. — Filho de uma cadela!
— Pare! — Hussein disse em farsi. — São ordens de Isfahan. Eu lhe mostrei as ordens de que o senhor e sua mulher deviam ser enviados imediatamente...
— Ordens? Um pedaço de papel imundo com uma letra ilegível e assinado por um aiatolá de quem eu nunca ouvi falar?
— Entrem no aparelho, todos dois, ou serão arrastados para lá — disse Hussein indo até ele.
— Quando o aparelho estiver pronto! — Insolentemente, o coronel apanhou um cigarro. — Dê-me fogo — ordenou ao homem que estava mais perto, e quando o homem hesitou, ele berrou: — Você é surdo? Fogo!
O homem sorriu com timidez e pegou um fósforo, e todos em volta mostraram sua aprovação, até o mulá, admirando a coragem em face da morte — e do inferno, pois sem dúvida este homem era um homem do xá e iria para o inferno. É claro que sim! Ele não tinha gritado "Longa vida para o xá" há apenas duas horas, durante a noite, quando nós invadimos e ocupamos o campo e sua bela residência, ajudados por todos os soldados e aviadores da base e por alguns dos oficiais, sendo que o resto dos oficiais estava agora atrás das grades? Deus é Grande! Foi a Vontade de Deus, um milagre que os generais tenham desmoronado como o monte de merda que os mulás diziam que eles eram. O imã estava certo de novo, que Deus o proteja.
Hussein foi até Ayre, que estava rígido, perplexo com o que estava acontecendo, tentando compreender. Marc Dubois estava ao seu lado, igualmente chocado, e o exame do aparelho fora interrompido.
— Salaam — disse o mulá, tentando ser educado. — Vocês não têm nada a temer. O imã ordenou que tudo voltasse ao normal.
— Normal? — repetiu Ayre, com raiva. — Este é o coronel Peshadi, comandante de tanques, herói da força expedicionária iraniana enviada a Oman para sufocar uma rebelião apoiada pelos marxistas e uma invasão do Iêmen do Sul! — Isso acontecera em 1973, quando o sultão de Oman pediu ajuda ao xá. — O coronel Peshadi não recebeu o Zolfaghar, sua medalha mais importante, concedida apenas por heroísmo em combate?
— Sim. Mas agora precisam que o coronel Peshadi responda perguntas relativas a crimes contra o povo iraniano e contra as leis de Deus! Salaam, capitão Dubois, fico satisfeito de que seja o senhor que vai nos levar.
— Eu fui solicitado para uma emergência. Isso não é uma emergência — retrucou Dubois.
— É uma evacuação de emergência. O coronel e sua mulher devem ser evacuados para o quartel-general de Isfahan. — Hussein acrescentou com um sorriso sardônico. — Talvez eles sejam emergências.
— Sinto muito — disse Ayre —, mas os nossos aparelhos estão a serviço da IranOil. Não podemos fazer o que estão pedindo.
— Excelência Esvandiary! — gritou o mulá.
Kuram Esvandiary, ou 'Pé-quente' como era apelidado, tinha cerca de trinta anos, era muito popular com os estrangeiros, muito eficiente e treinado pela S-G. Estivera por dois anos em treinamento no QG da S-G em Aberdeen, com uma bolsa concedida pelo xá. Ele veio lá de trás e, por um momento, nenhum dos homens da S-G reconheceu seu administrador. Normalmente, ele se vestia meticulosamente e andava bem barbeado, mas agora estava com uma barba de três ou quatro dias, e usava roupas grosseiras, com uma braçadeira verde, um chapéu mole e um M16 pendurado no ombro.
— A permissão para a viagem está aqui — disse, entregando a Ayre os formulários habituais. — Eu os assinei e estão carimbados.
— Mas, 'Pé-quente', não está vendo que não é uma verdadeira emergência?
— Meu nome é Esvandiary, sr. Esvandiary — disse sem sorrir e Ayre enrubesceu. — E é uma ordem legítima da IranOil que o tem sob contrato aqui no Irã. — Seu rosto endureceu. — Se o senhor recusar uma ordem legítima, em boas condições de vôo, estará quebrando o contrato. Se fizer isso sem motivo, então teremos o direito de nos apoderar de todos os aparelhos, hangares, peças, casas, equipamentos, além de expulsá-los do Irã, imediatamente.
— Você não pode fazer isto.
— Eu agora sou o representante da IranOil aqui — disse Esvandiary, secamente. — A IranOil pertence ao governo. O komiteh revolucionário, sob a liderança do imã Khomeini, que a paz esteja com ele, é o governo. Leia o seu contrato com a IranOil... e também o contrato entre a S-G e a Irã Helicópteros. Vocês vão fazer o vôo ou se recusam a fazê-lo?
— E quanto... — E Ayre controlou a raiva. — Quanto ao primeiro-ministro Bakhtiar e o gov...
— Bakhtiar? — Esvandiary e o mulá olharam-no espantados. — Você ainda não soube? Ele renunciou e fugiu, os generais capitularam ontem de manhã, o imã e o komiteh revolucionário são o governo do Irã agora.
Ayre e Dubois e os estrangeiros que estavam perto ficaram sem fala. O mulá disse alguma coisa em farsi que eles não compreenderam. Os homens riram.
— Capitularam? — foi tudo o que Ayre conseguiu dizer.
— Foi a Vontade de Deus que os generais caíssem em si — disse Hussein, com os olhos brilhando. — Todo o Estado-Maior foi preso. Todos eles. Assim como todos os inimigos do islã serão presos agora. Nós também pegamos Nasiri, já ouviu falar nele? — perguntou exultante o mulá. Nasiri era o odiado chefe da Savak, que o xá tinha mandado prender há poucas semanas atrás e que estava na prisão aguardando julgamento. — Nasiri foi julgado, considerado culpado de crimes contra a humanidade e executado, junto com outros três generais, Rahimi, o chefe da lei marcial de Teerã, Naji, governador-geral de Isfahan, e o comandante dos paraquedistas, Khosrowdad. Vocês estão perdendo tempo. Vão fazer o vôo ou não?
Ayre mal era capaz de pensar. Se o que eles dizem é verdade, então Peshadi e sua mulher estão praticamente mortos. É tudo tão rápido, tão impossível.
— Nós... é claro que faremos um vôo legal. O que vocês querem exatamente?
— Transportar Sua Excelência o mulá Hussein Kowissi para Isfahan, imediatamente. Com o seu pessoal. Imediatamente — disse Esvandiary, impaciente. — Com o prisioneiro e sua esposa.
— Eles... O coronel Peshadi e sua mulher não estão citados na licença. Ainda mais impacientemente, Esvandiary arrancou-lhe o papel das mãos e escreveu alguma coisa nele:
— Agora estão! — Fez um sinal para onde Manuela estava, um pouco mais atrás, com o cabelo enfiado dentro de um chapéu, usando um macacão. Ele a notara assim que ela chegou, atraente como sempre, perturbadora como sempre. — Eu deveria prendê-la por invasão — disse com voz rouca. — Ela não tem o direito de estar nesta base. Não há alojamento para casais, nem estes são permitidos, de acordo com as regras da base e da S-G.
Perto do 212, o coronel Peshadi gritou, zangado, em inglês:
— Vocês vão voar hoje ou não? Estamos ficando com frio. Depressa, Ayre. Quero passar o mínimo de tempo possível com esses vermes.
Esvandiary e o mulá enrubesceram. Ayre respondeu, sentindo-se melhor com a coragem do homem:
— Sim, senhor. Sinto muito. OK, Marc?
— Sim. — Dubois voltou-se para Esvandiary: — Onde está minha permissão militar?
— Anexa à licença. Vale também para sua volta amanhã. — Esvandiary acrescentou em farsi para o mulá: — Sugiro que o senhor embarque, Excelência.
O mulá se adiantou. Os guardas fizeram sinal para Peshadi e sua mulher subirem a bordo. Com as cabeças erguidas, eles subiram os degraus com firmeza. Homens armados entraram no aparelho atrás deles e o mulá sentou-se na frente, ao lado de Dubois.
— Um momento! — disse Ayre, já passado o choque. — Não vamos transportar homens armados. É contra os regulamentos... os seus e os nossos. Esvandiary gritou uma ordem, e fez um sinal na direção de Manuela. Imediatamente, quatro homens armados a cercaram. Outros se aproximaram de Ayre.
— Agora, faça sinal para Dubois partir.
Consciente do perigo, Ayre obedeceu. Dubois respondeu e começou a subir. Em pouco tempo estava no ar.
— Agora para o escritório — disse Esvandiary, acima do ruído dos motores. Mandou que os homens se afastassem de Manuela e voltassem para os carros. — Deixem um carro aqui e quatro guardas. Tenho mais algumas ordens para dar a estes estrangeiros. Você — acrescentou severamente para Pavoud —, verifique todos os aparelhos que existem aqui, todas as peças, todos os tipos de transporte, bem como a quantidade de gasolina, e também o número de empregados, estrangeiros e iranianos, seus nomes, profissões, números de passaporte, vistos de residência, vistos de trabalho, permissões para pilotar. Entendido?
— Sim, sim, Excelência Esvandiary. Sim, cer...
— E eu quero ver todos os passaportes e vistos amanhã. Ande!
O homem saiu apressadamente. Esvandiary foi na frente até o escritório de Starke e sentou-se na cadeira maior, atrás da escrivaninha, seguido por Ayre.
— Sente-se.
— Obrigado, você é muito gentil — disse ironicamente Ayre, sentando-se em frente a ele. Os dois homens eram da mesma idade e ficaram se estudando mutuamente.
— De agora em diante este será o meu escritório. — O iraniano apanhou um cigarro e o acendeu. — Agora que finalmente o Irã está outra vez em mãos iranianas, podemos começar a fazer as mudanças necessárias. Durante as próximas duas semanas você vai agir sob minhas ordens, até que eu tenha certeza de que os nossos hábitos foram entendidos. Eu sou a autoridade mais alta da IranOil em Kowiss e eu é que darei todas as permissões de vôo; ninguém decola sem uma aprovação por escrito e sempre com um guarda armado e...
— É contra a lei aérea e contra a lei iraniana e está proibido. Além disso é muito perigoso. E fim!
Houve um longo silêncio. Então Esvandiary concordou.
— Vocês levarão guardas armados, mas sem munição. — E sorriu. — Está vendo, nós podemos chegar a um acordo. Nós podemos ser razoáveis, oh, sim. Você vai ver, a nova era vai ser boa para vocês também.
— Espero que sim. Para vocês também.
— O que você está querendo dizer?
— Estou querendo dizer que toda revolução de que já ouvi falar sempre acaba por se desgastar, os amigos se transformam rapidamente em inimigos e morrem mais depressa ainda.
— Não a nossa. — Esvandiary estava totalmente confiante. — Não vai ser assim conosco. Nossa revolução é uma revolução realmente popular, de todo o povo. Todo mundo queria a saída do xá. E dos seus patrões estrangeiros.
— Espero que você tenha razão. — Seu filho da mãe imbecil, pensou Ayre, tendo gostado dele um dia. Se os seus líderes podem julgar, condenar e executar quatro generais, todos homens bons com exceção de Nasiri, em menos de 24 horas, podem prender e maltratar bons patriotas como Peshadi e sua mulher, que Deus nos ajude. — Você já terminou comigo por ora?
— Quase. — Esvandiary sentiu uma onda de raiva. Pela janela viu Manuela voltando para o bangalô com alguns dos pilotos, e o desejo aumentou-lhe a raiva. — Seria bom que aprendesse bons modos e que o Irã é um país asiático, oriental, uma potência mundial e que nunca mais será explorado por ingleses, americanos ou mesmo soviéticos. Nunca mais. — Ele se recostou na cadeira e pôs os pés sobre a mesa, como tinha visto Starke e Ayre fazerem uma centena de vezes, as solas dos pés viradas para Ayre, o que sempre fora considerado um insulto daquele lado do mundo. — Os ingleses foram piores do que os americanos. Eles foram motivo de vergonha nacional por 150 anos, tratando o Trono do Pavão e o nosso país como se fossem um feudo deles, usando a defesa da índia como desculpa. Eles deram ordens aos nossos governantes, ocuparam o nosso país três vezes, nos obrigaram a assinar tratados injustos, subornaram os nossos líderes para conceder-lhes vantagens. Durante 150 anos os ingleses e os russos dividiram o meu país, os ingleses ajudaram aquelas outras hienas a roubar as nossas províncias do norte, o nosso Cáucaso, e ajudaram a colocar Reza Khan no trono. Eles nos invadiram, junto com os soviéticos, durante a sua guerra mundial e só os nossos grandes esforços conseguiram partir os grilhões e expulsá-los. — Repentinamente, o rosto do homem se contorceu e ele gritou: — Não é verdade?
Ayre não tinha se mexido e nem piscado.
— 'Pé-quente', e eu prometo que nunca mais vou chamá-lo assim — disse tranqüilamente —, não quero discursos, vou apenas fazer o meu trabalho. Se não conseguirmos um método de trabalho satisfatório, isto é outra coisa. Aí teremos que ver. Se quer este escritório, fique com ele. Se quer fazer uma cena, faça. Dentro dos limites, você tem direito de comemorar. Você venceu, tem o poder, e agora é o encarregado. E você está certo, este é o seu país. Então vamos ficar por aqui, hein?
Esvandiary ficou olhando para ele, com a cabeça doendo do ódio acumulado durante anos e que agora não precisava mais ser reprimido. E embora soubesse que a culpa não era de Ayre, também sabia que há poucos instantes atrás o teria enchido de balas e a todos os outros, se não tivessem obedecido e levado o mulá e o traidor Peshadi para o julgamento e o inferno que ele merecia. Eu não me esqueci do soldado que Peshadi assassinou — aquele que queria abrir os portões para nós — nem os outros, assassinados há dois dias atrás, quando Peshadi nos derrotou e centenas morreram, meu irmão e dois dos meus melhores amigos entre eles. E todos os outros, centenas, talvez milhares deles que morreram em todo o Irã... Não me esqueci de nenhum deles.
Um fio de saliva escorria-lhe pelo queixo e ele o limpou com as costas da mão, recuperando o controle ao lembrar-se da importância de sua missão.
— Está bem, Freddy. — Disse 'Freddy' involuntariamente. — Está bem... esta é a última vez que eu chamo você assim. Está bem, vamos ficar por aqui.
Ele se levantou, muito cansado, mas orgulhoso pelo modo como os dominara e muito confiante de que conseguiria fazer esses estrangeiros trabalharem e se comportarem até serem expulsos. Isto está bem perto, agora, pensou. Não terei dificuldades em colocar em prática o plano a longo prazo dos sócios aqui. Concordo com Valik. Temos muitos pilotos iranianos e não precisamos de estrangeiros. Posso dirigir esta operação — como um dos sócios. Louvado seja Deus por Valik ter sido sempre um partidário secreto de Khomeini! Logo terei uma casa grande em Teerã e meus dois filhos irão para a universidade lá, bem como minha querida Fatmeh, embora talvez ela também deva passar um ou dois anos na Sorbonne.
— Voltarei às nove horas. — Não fechou a porta ao sair.
— Maldição! — resmungou Ayre. Uma mosca começou a se debater contra a vidraça. Ele não a notou e nem o barulho que fazia. Tendo uma idéia súbita, foi para o outro gabinete. Pavoud e os outros estavam nas janelas, vendo a saída dos estrangeiros. — Pavoud!
— Sim... sim, Excelência?
Ayre notou que o rosto do homem estava cinzento e que ele parecia muito mais velho do que habitualmente.
— Você sabia sobre os generais, que eles tinham capitulado? — perguntou, sentindo pena dele.
— Não, Excelência. — Pavoud mentiu com facilidade, acostumado a mentir. Ele estava fechado em si mesmo, tentando recordar, apavorado, se teria escorregado nos últimos três anos e se traído para Esvandiary, sem nunca ter sonhado que o homem pudesse ser, secretamente, um guarda islâmico. — Nós... nós tínhamos ouvido boatos acerca da capitulação deles, mas o senhor sabe como os boatos circulam.
— Sim, sim, tem razão.
— Eu... o senhor se importa que eu me sente?
Pavoud agarrou uma cadeira, sentindo-se muito velho. Ele vinha dormindo muito mal nesta última semana e o trajeto de três quilômetros de bicicleta até ali nesta manhã, da pequena casa de quatro cômodos em Kowiss que ele dividia com a família do irmão — cinco adultos e seis crianças — tinha sido mais cansativa do que o normal. É claro que ele e todo o povo de Kowiss tinham ouvido falar na rendição covarde dos generais. As primeiras notícias tinham vindo da mesquita, espalhadas pelo mulá Hussein, que disse tê-las recebido pelo rádio, secretamente, do quartel-general de Khomeini em Teerã, então devia ser verdade.
Imediatamente, o seu líder do Tudeh tinha convocado uma reunião, todos eles perplexos com a covardia dos generais:
— Isto só demonstra a péssima influência dos americanos, que os traíram e os enfeitiçaram de tal maneira que eles se castraram e cometeram suicídio, pois é evidente que todos eles têm que morrer, seja pelas nossas mãos ou pelas daquele louco do Khomeini.
Todos estavam decididos mas, ao mesmo tempo, tinham medo da luta que se aproximava contra os fanáticos e os mulás, o ópio do povo, e o próprio Pavoud sentiu-se imensamente aliviado quando o líder disse que eles ainda não deveriam sair para as ruas, mas permanecer escondidos e esperar, esperar até vir uma ordem para a revolta geral.
— Camarada Pavoud, é vital que você mantenha o melhor relacionamento possível com os pilotos estrangeiros da base aérea. Nós vamos precisar deles e dos seus helicópteros; ou vamos precisar impedir o seu uso pelos inimigos do povo. Nossas ordens são para calar a boca e esperar, ter paciência. Quando finalmente recebermos ordem de tomar as ruas contra Khomeini, os nossos camaradas do norte virão através da fronteira com suas legiões... Ele viu Ayre observando-o.
— Eu estou bem, capitão, só estou preocupado com tudo isso, e com a... com a nova era.
— Simplesmente faça tudo o que Esvandiary pedir. — Ayre refletiu por um momento. — Vou até a torre para comunicar ao QG o que aconteceu. Você tem certeza de que está bem?
— Sim, sim, obrigado.
Ayre franziu a testa, depois caminhou pelo corredor e subiu as escadas. A espantosa mudança de Esvandiary, que fora afável durante anos, que fora simpático, sem demonstrar nada do ódio que havia dentro dele contra os ingleses. Pela primeira vez desde que estava no Irã, sentiu o futuro deles ameaçado.
Para sua surpresa, a torre estava vazia. Desde o motim de domingo, tinha havido uma guarda permanente lá. Ao justificar a guarda, o major Changiz tinha dado de ombros, com sangue manchando o uniforme:
— Tenho certeza que vocês compreendem, 'emergência nacional'. Muitos homens leais foram mortos aqui hoje e nós não encontramos nenhum traidor, ainda. Até novas ordens, o senhor só deverá transmitir durante o dia, e só o que for absolutamente necessário. Todos os vôos estão cancelados até decisão posterior.
— Está bem, major. Por falar nisso, onde está nosso operador de rádio, Massil?
— Ah, sim, o palestino. Ele está sendo interrogado.
— Posso perguntar por quê?
— Ligações com a OLP e atividades terroristas.
Ontem ele fora informado de que Massil confessara e que fora executado — sem uma chance de ver as provas nem de vê-lo. Pobre infeliz, Ayre pensou, fechando a porta da torre e ligando o equipamento. Massil foi sempre leal a nós e agradecido pelo emprego, mesmo sendo superqualificado — diploma de engenheiro de comunicações da Universidade do Cairo, primeiro da classe, mas sem ter onde praticar e sem pátria. Maldição! Nós não damos valor aos nossos passaportes. Como seria não ter passaporte e ser, digamos, palestino? Deve ser terrível não saber o que vai acontecer em cada fronteira, onde cada funcionário da Imigração, policial, burocrata ou empregado é um inquisidor em potencial.
Graças a Deus eu nasci britânico e isto nem mesmo a Rainha da Inglaterra pode me tirar, embora o maldito governo trabalhista esteja alterando nossa herança ultramarina. Malditos sejam por cada australiano, canadense, neozelandês, africano, queniano, chinês e centenas de outros cidadãos britânicos que dentro em breve terão que ter um maldito visto para entrar em casa!
— Imbecis — resmungou. — Será que eles não percebem que esses são os filhos e filhas de homens que construíram o Império e morreram por ele, em muitos casos?
Esperou os rádios esquentarem. O zumbido deu-lhe prazer, luzes verdes e vermelhas piscando, e não se sentiu mais afastado do mundo. Espero que Angela e o pequeno Frederick estejam bem. Que droga não ter correio nem telefone e o telex estar mudo. Bem, talvez dentro em breve tudo esteja funcionando de novo.
Ligou o botão de transmissão, esperando que McIver ou alguém estivesse na escuta. Então notou que, por hábito, junto com o UHF e o HF, tinha ligado o radar. E se debruçou para desligá-lo. Nesse momento, um pequeno sinal apareceu na margem externa — na linha de trinta quilômetros a noroeste, quase oculto no meio da pesada cortina de montanhas. Perplexo, ele o estudou. A experiência mostrou-lhe logo que era um helicóptero. Certificou-se de que estava ligado em todas as freqüências e quando tornou a olhar, viu o sinal desaparecer. Esperou, mas o sinal não tornou a aparecer. Ou ele desceu ou foi abatido, ou está se mantendo fora do alcance do radar, pensou.
Os segundos se arrastaram. Nenhuma mudança, só as linhas passando. Ainda nenhum sinal.
Seus dedos ligaram o botão de transmissão do UHF, e ele trouxe o microfone mais para perto, então hesitou, mudou de idéia e desligou-o. Não há necessidade de alertar os operadores da torre da base, se houver alguém de serviço lá, pensou. Franziu a testa para a tela. Com um lápis vermelho macio marcou a possível rota de aproximação a oitenta nós. Os minutos se passaram. Podia ter mudado para uma varredura a curta distância, mas não o fez, caso o sinal não estivesse se aproximando, mas sim, e isso era altamente irregular, estivesse se esgueirando por aquela área.
Agora ele deve estar a uns oito ou dez quilômetros, pensou. Apanhou o binóculo e começou a examinar o céu, de norte para oeste até o sul. Seus ouvidos ouviram passos leves na escada. Com o coração disparando, desligou o radar. A tela começava a ficar branca quando a porta se abriu.
— Capitão Ayre? — perguntou o aviador, vestido com um uniforme bem arrumado, um rosto persa, forte, bem barbeado, de vinte e tantos anos, e uma carabina do exército americano nas mãos.
— Sim, sou eu.
— Eu sou o sargento Wazari, o novo controlador de tráfego aéreo. — O homem encostou a carabina na parede, estendeu a mão e cumprimentou Ayre. — Olá, eu recebi um treinamento de três anos na Força Aérea americana e sou controlador militar. Cheguei a trabalhar seis meses no aeroporto Van Nuys. — Seus olhos tinham examinado todo o equipamento. — Isto aqui é bem completo.
— Sim, ahn, sim, obrigado. — Ayre se atrapalhou com o binóculo e finalmente se livrou dele. — O que, ahn, acontece no aeroporto Van Nuys?
— É uma pequena pista em San Fernando Valley, em Los Angeles, mas é o terceiro aeroporto mais movimentado dos Estados Unidos e deixa qualquer um maluco! — Wazari sorriu. — O tráfego é amador, a maioria dos caras são alunos que ainda não aprenderam a distinguir entre o próprio rabo e uma hélice, você tem que lidar com uns vinte ao mesmo tempo, oito no mínimo, todos querendo bancar o ás da aviação. — Ele riu. — É um grande lugar para se aprender controle de tráfego, mas depois de seis meses você está biruta.
— Este lugar aqui é bem tranqüilo. Mesmo em épocas normais. Nós, ahn, nós não temos vôos para fora, como você sabe. Acho que você não vai ter muito o que fazer. — Ayre forçou um sorriso, controlando-se para não examinar o céu.
— Claro. Eu só queria dar uma olhada já que vamos começar bem cedo amanhã. — Tirou do bolso do uniforme um papel e entregou-o a Ayre. — Temos três vôos marcados para as plataformas locais, começando às oito horas, certo? — Sem pensar, ele apanhou um pano e limpou a tela do radar, arrumando também a mesa. O lápis vermelho voltou para o estojo.
— Estes vôos foram autorizados por Esvandiary? — E Ayre tornou a examinar a lista.
— Quem é ele? Ayre lhe disse.
— Bem, capitão — disse o sargento sorrindo —, o major Changiz ordenou-os pessoalmente, então pode apostar que eles estão confirmados.
— Ele... ele não foi preso junto com o coronel?
— É claro que não, capitão. O mulá Hussein Kowissi, indicou o major Changiz para ser o comandante temporário da base, dependendo de confirmação de Teerã. — Ele mexeu com segurança nos canais, ligando o rádio na freqüência da base. — Alô, base, aqui é Wazari na S-G. Precisamos da autorização de Esvandiary, da IranOil, para os vôos de amanhã?
— Negativo — ouviu-se pelo alto-falante, de alguém com um sotaque americano. — Está tudo bem por aí?
— Sim. A decolagem foi realizada sem incidentes. Eu estou com o capitão Ayre agora. — O sargento examinou o céu enquanto falava.
— Ótimo. Capitão Ayre, aqui é o controlador-chefe de tráfego. Qualquer vôo autorizado pelo major Changiz está automaticamente aprovado pela IranOil.
— Eu poderia ter isso por escrito, por favor?
— O sargento terá isso para você, com cópia, às oito horas da manhã, certo?
— Obrigado.
— Obrigado, base — disse Wazari, começando a desligar, então seus olhos se fixaram em alguma coisa. — Espere, base, temos um pássaro se aproximando. Helicóptero, 270 graus...
— Onde? Onde... Estou vendo! Como foi que ele passou pelo radar? Vocês estão com o radar ligado?
— Negativo. — O sargento ajeitou o binóculo. — Bell 212, registro... Não consigo ver, ele está de frente para nós. — Ligou o UHF. — Aqui é o controle militar de Kowiss! Helicóptero se aproximando, qual é o seu registro, qual é o seu destino e qual foi o seu ponto de embarque?
Silêncio, exceto pelo ruído de estática. A mesma coisa foi repetida pela base. Nenhuma resposta.
— Aquele filho da puta está em apuros — resmungou Wazari. Mais uma vez ele ajeitou o binóculo.
Ayre estava com um outro binóculo e seu coração disparara. Quando o helicóptero começou as manobras de pouso, ele leu o registro:
— EP-HBX.
— Eco Peter Hotel Boston Xadrez! — disse o sargento, ao mesmo tempo.
— HBX — confirmou a base. Mais uma vez eles tentaram contato pelo rádio. Nenhuma resposta.
— Ele está dentro dos padrões regulares de pouso. Ele é daqui? Capitão Ayre, ele é um dos seus?
— Não, senhor, não é um dos meus, não está baseado aqui — acrescentou cautelosamente Ayre. — Mas HBX pode ser um registro da S-G.
— Baseado aonde?
— Não sei.
— Sargento, assim que esse sujeito pousar, prenda-o e a todos os passageiros, mande-os para o QG sob escolta, depois faça-me um relatório rápido dizendo quem, por quê e de onde.
— Sim, senhor.
Pensativamente, Wazari escolheu um lápis vermelho e traçou na tela do radar a mesma linha que Ayre tinha desenhado e apagado. Ficou olhando para ela por um momento, sabendo que Ayre o observava atentamente. Mas não disse nada, apenas tornou a limpar a tela e voltou a atenção para o 212.
Em silêncio, os dois homens na torre viram o aparelho fazer uma volta normal e depois frear corretamente e se dirigir para eles. Mas o helicóptero não fez nenhuma tentativa de pousar, apenas permaneceu na altitude correta e fez uma volta bem menor, balançando-se para os dois lados.
— O rádio não está funcionando. Ele quer uma permissão — disse Ayre, e estendeu a mão para as luzes de sinalização. — Certo?
— Claro, pode dar permissão, mas ele ainda está encrencado.
Ayre verificou se as luzes estavam ligadas no verde, permissão para pousar. Dirigiu-as para o helicóptero e acendeu-as. O helicóptero fez um sinal, balançando para os dois lados e começou a se aproximar. Wazari apanhou a carabina e saiu. Mais uma vez Ayre ajustou o binóculo, mas não conseguiu reconhecer o piloto nem o homem que estava ao lado dele, os dois com roupas de inverno e óculos de vôo. Então desceu correndo as escadas.
Outros funcionários da S-G, pilotos e mecânicos, tinham-se juntado para ver. Do lado da base, um carro se aproximava velozmente pela estrada. Manuela estava parada na porta do bangalô. As pistas de aterrissagem ficavam em frente ao prédio de escritórios. Agachados, sob um abrigo, estavam os quatro Faixas Verdes que tinham ficado para trás, com Wazari entre eles. Ayre notou que um deles era muito jovem, quase um adolescente, se atrapalhando com a metralhadora. No seu nervosismo, o rapaz deixou-a cair no chão, com o cano apontando diretamente para Ayre. Mas ela não disparou. Enquanto olhava, o garoto apanhou-a pelo cabo, bateu com a coronha no chão para tirar a neve, e retirou descuidadamente um pouco mais de neve do gatilho. Havia algumas granadas penduradas no seu cinto — pelos pinos. Apressadamente, Ayre foi para perto dos mecânicos, protegendo-se.
— Maldito garoto! — disse um deles, nervosamente. — Ele vai mandar a ele mesmo para o inferno e nós vamos junto. O senhor está bem, capitão? Nós ouvimos 'Pé-quente' gritando como um louco.
— É, foi mesmo. HBX, de onde é ele, Benson?
— De Bandar Delam — respondeu Benson. Era um inglês gorducho, de cara vermelha. — Aposto que é Duke.
Quando o 212 baixou os deslizadores e cortou os motores, Wazari liderou a correria, com alguns dos guardas gritando "Allah-u Akbarrr!" Cercaram o aparelho, com as armas apontadas.
— Malditos imbecis! — disse nervosamente Ayre. — Parecem personagens de comédia-pastelão.
Ainda não conseguia ver o piloto claramente, então se aproximou, rezando para ser Starke. As portas da cabine se abriram. Homens armados pularam lá de dentro, indiferentes aos rotores que ainda estavam girando, gritando saudações, dizendo aos outros para abaixarem as armas. No meio do pandemônio, alguém deu uma rajada de boas-vindas para o ar. Momentaneamente, todo mundo começou a se espalhar, depois, com mais gritos, se agruparam em frente às portas quando o carro chegou e mais homens correram para se juntar aos outros. Várias mãos ajudaram a retirar um mulá. Ele estava gravemente ferido. Depois saiu uma maca. Depois mais feridos e Ayre viu Wazari correndo em sua direção.
— Vocês têm algum médico aqui? — perguntou com urgência na voz.
— Sim. — Ayre virou-se e pôs as mãos em volta da boca. — Benson, vá buscar o doutor e o assistente bem depressa. — Depois disse para o sargento, que voltava junto com ele para perto do helicóptero: — Que diabo está acontecendo?
— Eles estão vindo de Bandar Delam. Houve uma contra-revolução lá, os malditos fedayins...
Ayre viu a porta do piloto se abrir e Starke sair, e não ouviu o resto do que Wazari disse, correndo para a frente.
— Alô, Duke, meu velho. — Deliberadamente, manteve o rosto impassível e a voz normal, embora estivesse tão feliz por dentro que sentiu que podia explodir. — Por onde andou?
— Pescando, meu velho — disse Starke sorrindo, acostumado com a reserva britânica. — De repente, Manuela apareceu correndo no meio da multidão e caiu nos braços dele. Ele a levantou com facilidade e girou com ela.
— Ora, querida — disse com uma voz arrastada —, estou vendo que você gosta de mim, afinal.
Ela estava rindo e chorando ao mesmo tempo e ficou abraçada nele.
— Oh, Conroe, quando eu vi você tive vontade de morrer...
— Nós quase morremos mesmo, querida — disse involuntariamente, mas ela não ouviu e ele a abraçou mais uma vez e colocou-a no chão. — Fique aqui um instante enquanto eu ajeito as coisas. Venha, Freddy.
Ele foi na frente, no meio da confusão. O mulá ferido estava no chão, encostado num dos deslizadores, inconsciente. O homem da maca já estava morto.
— Ponham o mulá na maca — Starke ordenou em farsi. Os Faixas Verdes que ele trouxera no helicóptero obedeceram imediatamente. Wazari, o único de uniforme ali, e os outros homens da base estavam estarrecidos. Nenhum deles se dera conta da presença de Zataki, o líder revolucionário sunita que comandara a resistência em Bandar Delam e que agora estava encostado no helicóptero, observando tudo cautelosamente, disfarçado pela jaqueta de vôo da S-G.
— Deixe-me dar uma olhada, Duke — disse o médico, sem fôlego por causa da corrida, com um estetoscópio pendurado no pescoço. — Estou feliz por você estar de volta. — O dr. Nutt tinha uns cinqüenta anos, era muito corpulento, tinha pouco cabelo e um nariz de beberrão. Ele se ajoelhou ao lado do mulá e começou a examinar o seu peito que estava empapado de sangue.
— É melhor o levarmos para a enfermaria o mais rápido possível. E os outros também.
Starke mandou dois homens que estavam perto carregarem a maca e seguirem o médico. Mais uma vez ele foi obedecido sem discussão pelos homens que trouxera com ele; os outros Faixas Verdes ficaram olhando para ele. Agora havia nove deles, incluindo Wazari e os quatro que tinham ficado.
— O senhor está preso — disse Wazari. Starke olhou para ele.
— Sob que acusação? — perguntou Starke, encarando-o.
— Ordens superiores, capitão. Eu apenas cumpro ordens — respondeu Wazari, hesitante.
— Eu também. Estarei aqui se quiserem conversar comigo, sargento. — Starke sorriu tranqüilizadoramente para Manuela que tinha empalidecido. — Volte para casa, querida. Não há motivo para se preocupar. — Ele se virou e foi para perto da porta lateral para olhar o que acontecia lá dentro.
— Sinto muito, capitão, mas o senhor está preso. Entre no carro. O senhor tem que ir para a base imediatamente.
Quando Starke se virou, deu de cara com o cano de uma arma. Dois Faixas Verdes pularam sobre ele, agarraram-lhe os braços, imobilizando-o. Ayre lançou-se para a frente, mas um dos Faixas Verdes enfiou-lhe um revólver no estômago. Os dois homens começaram a arrastar Starke para o carro. Outros vieram ajudar enquanto ele lutava, amaldiçoando-os. Manuela olhava, em pânico.
Então ouviu-se um berro de raiva e Zataki avançou, arrancou a carabina da mão de Wazari e lançou-a contra a cabeça dele. Só os ótimos reflexos de Wazari, bem treinado em boxe, fizeram com que ele desviasse a cabeça bem a tempo. Antes que pudesse dizer qualquer coisa, Zataki gritou:
— O que é que este cão está fazendo com uma arma? Vocês, seus idiotas, não sabem que o imã ordenou que todos os soldados depusessem as armas?
— Ouça, eu estou autorizado a... — Wazari parou, em pânico. Agora havia uma pistola na sua garganta.
— Você não está autorizado nem mesmo a cagar, até que o komiteh dê licença — disse Zataki. — Você já foi aprovado pelo komiteh!
— Não... não, mas...
— Então, por Deus e pelo Profeta, você é suspeito! — Zataki apertou a pistola contra a garganta de Wazari, depois fez um sinal com a outra mão. — Soltem o piloto e larguem as armas, ou por Deus e pelo Profeta, eu matarei todos vocês. — Quando ele agarrou a arma de Wazari, seus homens já tinham cercado os outros e agora os cobriam por trás. Nervosamente, os dois homens que mantinham Starke imobilizado o soltaram.
— Por que deveríamos obedecê-lo? — perguntou um deles. — Hein? Quem é você para nos dar ordens?
— Eu sou o coronel Zataki, membro do komiteh revolucionário de Bandar Delam, com a graça de Deus. O americano ajudou a nos salvar de um contra-ataque dos fedayins e trouxe o mulá e os outros que precisavam de assistência médica para cá. — Subitamente, sua raiva passou. Ele empurrou Wazari e o sargento se esparramou no chão. — Deixem o piloto em paz! Estão ouvindo? — Apontou e puxou o gatilho e a bala atravessou a gola do casaco de um dos homens que estavam ao lado de Starke. Manuela quase desmaiou e todos se espalharam. — Da próxima vez eu enfio uma bala no meio dos seus olhos! Você — ele rosnou para Wazari —, você está preso. Acho que você é um traidor, portanto vamos investigar. O resto pode ir com Deus, digam ao seu komiteh que eu terei prazer em vê-los. Aqui.
Fez sinal para que fossem embora. Os homens começaram a cochichar e Ayre aproveitou para se aproximar de Manuela e pôr a mão no seu ombro.
— Vá para dentro — murmurou. — Está tudo bem agora. — Viu Starke fazer sinal para eles saírem. Concordou com a cabeça. — Vamos, Duke está dizendo para sairmos.
— Não... por favor, Freddy, eu... eu estou bem, juro. — Ela forçou um sorriso e continuou a rezar para que o homem com a pistola conseguisse dominar os outros e que tudo aquilo terminasse. Por favor, meu Deus, faça com que isso termine.
Todos ficaram observando em silêncio enquanto Zataki esperava, com a pistola na mão, o sargento ao chão, perto dos seus pés, aqueles que eram contra ele olhando-o fixamente, e Starke em pé no meio deles, sem saber se Zataki venceria. Zataki examinou o tambor da arma.
— Vão com Deus, todos vocês — disse de novo, com mais dureza desta vez, enfurecendo-se. — Vocês estão surdos?
Relutantemente, eles saíram. O sargento se levantou, lívido, e ajeitou o uniforme. Ayre viu que ele tentava, bravamente, esconder o terror.
— Você fique ali até eu dizer que pode se mexer. — Zataki olhou para Starke, que observava Manuela. — Piloto, temos que acabar de descarregar o aparelho. Depois os meus homens precisam comer.
— Sim. E obrigado.
— De nada. Essas pessoas não sabiam, eles não têm culpa. — Mais uma vez ele olhou para Manuela, com os olhos escuros examinando-a. — Sua mulher, piloto?
— Minha esposa — respondeu Starke.
— Minha esposa está morta, morreu no incêndio de Abadan com meus dois filhos. Foi a Vontade de Deus.
— Às vezes a Vontade de Deus é insuportável.
— A Vontade de Deus é a Vontade de Deus. Vamos terminar de descarregar.
— Sim. — Starke subiu para a cabine, com o perigo afastado apenas por enquanto, uma vez que Zataki era tão volátil quanto nitroglicerina. Dois feridos ainda estavam amarrados nos assentos bem como duas maças. Ele se ajoelhou ao lado de um deles. — Como está, meu velho? — perguntou baixinho, em inglês.
Jon Tyrer abriu os olhos e piscou, com uma bandagem suja de sangue em volta da cabeça.
— Bem... sim, bem. O que... o que aconteceu?
— Você está enxergando?
Tyrer pareceu surpreso. Olhou para Starke, depois esfregou os olhos e a testa. Para alívio de Starke, ele disse:
— Claro, só que você está um pouco fora de foco e minha cabeça está doendo um bocado, mas posso vê-lo bem. É claro que posso vê-lo, Duke. O que foi que aconteceu?
— Durante o contra-ataque fedayim, hoje de madrugada, você foi apanhado por um fogo cruzado, uma bala pegou sua cabeça de raspão e você começou a correr em círculos como uma galinha degolada, gritando: "Não consigo enxergar... Não consigo enxergar..." Aí você desmaiou e ficou inconsciente até agora.
— Até agora? Maldição! — O americano espiou pela porta da cabine. — Onde estamos?
— Em Kowiss, achei melhor trazer você e os outros para cá depressa.
— Eu não me lembro de nada. Nada. Fedayins! Pelo amor de Deus, Duke, eu não me lembro nem de ter sido trazido para bordo.
— Fique quieto, meu velho. Eu explico mais tarde. — Ele se virou e chamou: — Freddy, arranje alguém para carregar Jon Tyrer para o médico
— acrescentando em farsi, para Zataki, que olhava da porta: — Excelência Zataki, por favor, arranje gente para carregar seus homens para a enfermaria.
— Fez uma pausa. — Meu lugar-tenente, capitão Ayre, vai providenciar comida para todo mundo. O senhor gostaria de comer comigo? Na minha casa?
Zataki deu um sorriso estranho e sacudiu a cabeça.
— Obrigado, piloto — disse em inglês. — Vou comer com os meus homens. Esta noite nós precisamos conversar. O senhor e eu.
— Quando quiser. — Starke saltou para o chão. Os homens começaram a levar todos os feridos. Ele apontou para o bangalô. — Aquela é minha casa, o senhor é bem-vindo lá, Excelência.
Zataki agradeceu e foi embora, empurrando o sargento Wazari na frente. Ayre e Manuela juntaram-se a Starke. Ela tomou-lhe a mão.
— Quando ele puxou o gatilho, eu pensei... — Ela sorriu de leve e mudou para farsi. — Ah, meu amado, como o dia ficou belo agora que você está em segurança ao meu lado.
— E você ao meu lado — Starke sorriu para ela.
— O que aconteceu? Em Bandar Delam? — perguntou em inglês.
— Houve uma maldita batalha entre Zataki e seus homens e uns cinqüenta esquerdistas, na base. Ontem Zataki tomou a base em nome de Khomeini e da revolução. Eu tive um pega com ele quando cheguei lá, mas agora está tudo mais ou menos bem, embora ele seja psicótico, e mais perigoso que uma víbora. Mas o fato é que, de madrugada, os fedayins esquerdistas invadiram o aeroporto em caminhões e a pé. Zataki estava dormindo, bem como o resto dos seus homens, não havia sentinelas, nada. Você já soube que os generais capitularam e que Khomeini é o novo ditador?
— Sim, acabamos de saber.
— Quando percebi o ataque, já estava um pandemônio, balas por todo lado, entrando pelas paredes dos trailers. Eu, você me conhece, eu me abaixei e me arrastei para fora do trailer. Você está com frio, querida?
— Não, não querido. Vamos para casa. Estou precisando de um drinque... Oh, meu Deus...
— O que foi?
Mas ela já estava correndo para casa.
— O chili — eu deixei o chili no forno.
— Jesus Cristo — murmurou Ayre —, pensei que iam atirar em nós ou algo parecido.
— Vamos ter chilfl — perguntou Starke rindo.
— Sim. Bandar Delam?
— Não há muito o que contar, Freddy. — Eles começaram a caminhar para casa. — Eu evacuei o trailer. Acho que os atacantes imaginaram que Zataki e seus homens estavam dormindo lá, mas Zataki tinha posto todo mundo para dormir nos hangares, guardando os helicópteros. Freddy, eles são paranóicos em relação aos helicópteros, acham que vamos fugir neles, ou usá-los para retirar a Savak, os generais ou os inimigos da revolução. De qualquer modo, o velho Rudi e eu, nós estávamos abrigados atrás de um reservatório de lama, então alguns daqueles novos filhos da mãe, não se conseguia distinguir uns do outros, exceto pelo fato dos homens de Zataki gritarem "Allah-u Akbar" enquanto morriam, alguns dos fedayins começaram a atirar nos hangares bem na hora em que Jon Tyrer saía do trailer. Eu o vi cair e fiquei louco. Não vá contar para Manuela. Aí tirei o revólver de um deles e comecei minha guerrinha particular para chegar até Jon. Rudi... — Starke começou a rir. — Aquele é um filho da puta! Rudi também conseguiu uma arma e nós parecíamos Butch Cassidy e Sundance Kid...
— Deus Todo-Poderoso, vocês deviam estar malucos!
— E estávamos, mas conseguimos tirar Jon da linha de fogo e então Zataki e três dos seus homens saíram de um hangar e atacaram como selvagens. Mas, que diabo, ficaram sem munição. Os pobres filhos da mãe ficaram lá parados e eu nunca vi ninguém tão desprotegido. — Ele deu de ombros. — Rudi e eu achamos que não era justo deixar que eles fossem mortos como patos e Zataki tinha sido legal depois que o mulá Hussein saiu, e nós, ahn, chegamos a um acordo. Então atiramos por cima da cabeça dos atacantes e isso deu uma chance a Zataki e aos outros para se abrigarem. — Mais uma vez ele deu de ombros. — Foi isso o que aconteceu — disse. Estavam perto do bangalô. Starke farejou o ar. — Vamos ter chili mesmo, Freddy?
— Sim, a não ser que tenha queimado. Foi só o que aconteceu?
— Claro, exceto que quando o tiroteio acabou achei melhor que viéssemos para Kowiss e para o doutor Nutt. O mulá parecia mal e eu estava assustado com Jon. Zataki disse: "Claro, por que não, eu preciso ir para Isfahan" e aqui estamos. O rádio escangalhou no caminho; eu podia ouvir mas não podia transmitir. Só isso.
Ayre viu-o farejar o ar de novo, sabendo que um psicopata como Zataki jamais teria dado a Starke a autoridade que lhe dera — nem o teria protegido — por tão pouco.
O texano abriu a porta do bangalô. Imediatamente, o cheiro gostoso dos temperos o invadiu, transportando-o para casa, para o Texas, a terra de Deus, e milhares de refeições. Manuela tinha um drinque pronto para ele, do jeito que ele gostava. Mas não bebeu, foi direto para a cozinha, apanhou a colher de pau e provou o ensopado. Manuela ficou olhando, quase sem respirar. Ele provou uma segunda vez.
— O que acham disso? — disse alegremente. Era o melhor chili que ele já tinha comido.
EM DEZ DAM: 16:31H. O 212 de Lochart estava estacionado do lado de fora do barracão que servia de hangar, perto de uma área de pouso bem cuidada que ficava ao lado do pátio de pedras da casa. Lochart estava trepado no helicóptero, checando a coluna do rotor com a sua infinidade de juntas, pinos de segurança — e pontos perigosos — mas não encontrou nada de errado. Cuidadosamente, desceu e limpou as mãos sujas de graxa.
— Tudo bem? — perguntou Ali Abbasi, estendido ao sol. Ele era o jovem e bonito piloto de helicóptero iraniano que ajudara a soltar Lochart na base aérea de Isfahan pouco antes do amanhecer, e viera com ele na cabine até aqui. — Está tudo bem?
— Claro — disse Lochart. — Está perfeito e pronto para partir.
Era um dia bonito, quente e sem nuvens. Quando o sol se pusesse, dentro de uma hora mais ou menos, a temperatura cairia uns vinte graus ou mais, mas isso não tinha importância. Ele sabia que não sentiria frio porque os generais sempre se cuidam — e cuidam daqueles que são necessários à sua sobrevivência.
No momento eu sou necessário para Valik e para o general Seladi, mas só no momento, pensou.
Risos abafados vieram da casa e também dos que estavam tomando sol ou nadando nas águas azuis do lago, lá embaixo. A casa parecia incongruente no meio daquele deserto — um bangalô moderno, de um só andar, espaçoso, com quartos, e aposentos separados para empregados. Localizava-se numa pequena elevação dando para o lago e para a represa, e era a única naquela região. Em volta do lago e da represa havia uma zona árida — com colinas rochosas protejando-se de um platô alto, desprovido de vegetação. Os únicos meios de acesso eram a pé ou por ar, de helicóptero ou num avião leve, que pudesse pousar na estreita pista de terra que fora aberta no terreno acidentado.
Duvido que um pequeno avião de dois motores consiga pousar aqui, pensara Lochart, ao vê-la pela primeira vez. Tem que ser de um monomotor. E não há jeito de subir de novo — se descer tem que ficar. Mas é um ótimo esconderijo, quanto a isto não há dúvida — simplesmente ótimo.
Ali se levantou e se espreguiçou.
Tinham chegado lá de manhã, depois de um vôo sem incidentes. Seguindo as ordens e as instruções do general Seladi, modificadas em voz baixa pelo capitão Ali, Lochart se mantivera perto do chão, esgueirando-se pelos desfiladeiros, evitando todas as cidades e aldeias. O rádio ficara ligado todo o tempo. A única transmissão que escutaram foi um comunicado maldoso de Isfahan, repetido várias vezes, sobre um 212 cheio de traidores que estava fugindo em direção ao sul e que deveria ser interceptado e abatido.
— Eles não deram os nossos nomes, nem o nosso registro — disse excitadamente Ali. — Devem ter esquecido de anotá-los.
— E que diferença faz? — retrucara Lochart. — Devemos ser o único 212 no céu.
— Não faz mal. Mantenha-se no máximo a trinta metros e vire para oeste. Lochart ficara estarrecido, pois pensara estarem se dirigindo para Bandar
Delam, que ficava quase na rota sui.
— Para onde estamos indo?
— Esqueça-se das marcações, eu vou guiá-lo daqui em diante.
— Para onde estamos indo?
— Para Bagdá. — Ali rira.
Ninguém dissera a ele para onde estavam indo até estarem prontos para pousar, e nessa altura, a pouco mais de trezentos quilômetros de Isfahan, voando muito baixo o tempo todo, com ventos contrários, consumindo exageradamente combustível, muito além do máximo previsto — com o ponteiro no vazio. Ali rezava abertamente.
— Se nós pousarmos neste ermo, nunca mais sairemos daqui, e quanto ao combustível?
— Há muito combustível lá, quando chegarmos... Deus seja louvado! — Dissera Ali, excitado quando passaram sobre um cume e viram o lago e o dique. — Deus seja louvado!
Lochart repetira o agradecimento e pousara rapidamente. Ao lado da pista de pouso havia um tanque subterrâneo de vinte mil litros e o barracão-hangar. Lá havia algumas ferramentas e bombas de ar para os pneus, e esquis aquáticos e equipamentos de barco.
— Vamos guardar o aparelho — disse Ali. Juntos, empurraram o 212 para o barracão, onde ele entrou com dificuldade, colocando calços nas rodas. Enquanto Lochart ajustava a tranca do rotor, notou três asas voadoras numa prateleira. Estavam cobertas pela poeira e rasgadas.
— De quem são?
— Este costumava ser o local de fim-de-semana do general da Força Aérea Imperial, Hassayn Aryani. Eram dele.
Lochart assoviou. Aryani era o chefe lendário da Força Aérea que, segundo boatos, também fora uma espécie de capitão da Guarda Pretoriana do tempo dos romanos para o xá, seu confidente e casado com uma de suas irmãs. Ele tinha morrido num acidente com uma asa voadora há dois anos.
— Foi aqui que ele morreu?
— Sim. — Ali apontou para o outro lado do lago. — Dizem que ele pegou uma turbulência e caiu naqueles penhascos.
— Dizem? Você não acredita nisto? — perguntou Lochart.
— Não. Tenho certeza de que ele foi assassinado. Na Força Aérea a maioria pensa como eu.
— Você quer dizer que a asa dele foi sabotada?
— Não sei. — Ali deu de ombros. — Talvez sim, talvez não, mas ele era muito cuidadoso e era um piloto bom demais para entrar numa turbulência. Aryani nunca voaria com mau tempo. — Lá embaixo, podiam ouvir vozes e risos e ver os filhos de Valik brincando perto do lago. — Ele usava um barco a motor para levantar vôo. Colocava esquis aquáticos, segurava numa corda comprida, amarrada ao barco que corria pelo lago e quando já estava a grande velocidade, largava os esquis e subia até uns duzentos, trezentos metros, depois descia em espiral até pousar a poucos centímetros daquele flutuador.
— Ele era assim tão bom?
— É, era sim. Era bom demais e por isso é que foi assassinado.
— Por quem?
— Não sei. Se eu soubesse, ele ou eles já estariam mortos há muito tempo.
— Você o conhecia, então? — perguntou Lochart, percebendo o tom de adoração na voz dele.
— Fui seu ajudante-de-ordens, um dos seus ajudantes-de-ordens, durante um ano. Ele foi o homem mais fantástico que conheci... o melhor general, o melhor piloto, o melhor esportista, esquiador, tudo. Se estivesse vivo agora, o xá nunca teria sido enganado por estrangeiros ou enfeitiçado pelo nosso arquiinimigo Carter, o xá nunca teria partido, o Irã não mergulharia no abismo e os generais não nos teriam traído. — O rosto de Ali Abbasi contorceu-se de raiva. — É impossível conceber que pudéssemos ser atraiçoados desse modo, com ele vivo.
— Então quem o matou? Os partidários de Khomeini?
— Não, não há três anos atrás. Ele era notoriamente nacionalista, xiita, embora moderno. Quem? O Tudeh, os fedayins ou qualquer fanático da esquerda, da direita ou do centro que quisesse ver o Irã enfraquecido. — Ali olhou para ele, olhos escuros num rosto esculpido em pedra. — Existem até os que dizem que certas pessoas em altos postos temiam seu poder e sua popularidade crescentes.
Você quer dizer que o xá poderia ter ordenado a sua morte?
— Não. Não, é claro que não, mas ele era uma ameaça para aqueles que desencaminharam o xá. Ele era um farmandeh, um comandante do povo. Era uma ameaça para muita gente: para os interesses britânicos, porque apoiou o primeiro-ministro Mossadegh que nacionalizou a Petróleo Anglo-Iraniana, apoiou o xá e a OPEP quando quadruplicaram o preço do petróleo. Ele era pró-Israel, embora não antiárabe, era, portanto, uma ameaça para a OLP e para Yasir Arafat. Também podia ser considerado uma ameaça aos interesses americanos... para uma ou todas as Sete Irmãs, porque não ligava a mínima para elas nem para ninguém. Ninguém. Pois era, acima de tudo, um patriota.
— Ali tinha um olhar estranho. — O assassinato é uma arte antiga no Irã. Ibn-al-Sabbah não foi um de nós? — Sorriu com os lábios, mas não com os olhos.
— Nós somos diferentes aqui.
— Desculpe, quem é Ibn-al-Sabbah?
— O Velho Homem das Montanhas, Hassan ibn-al-Sabbah, o líder religioso Isma'ili que criou, no século XI, os Assassinos, e o culto ao assassinato político.
— Oh, claro, desculpe, não estava raciocinando. Ele não era amigo de Ornar Khayyãm?
— Algumas lendas dizem que sim. — A expressão de Ali era dura. — Ayrani foi assassinado, por quem, ninguém sabe. Ainda. — Juntos, fecharam a porta do barracão.
— E agora? — perguntou Lochart.
— Agora nós vamos esperar. Depois prosseguimos. — Para o exílio, pensou Ali. Não importa, será apenas temporário e pelo menos eu sei para onde estou indo, não como o xá, pobre homem, que é um proscrito. Eu posso ir para os Estados Unidos.
Só ele e seus pais sabiam que ele tinha um passaporte americano. Como papai foi esperto, ele pensou:
— Nunca se sabe, meu filho, o que Deus nos reserva — dissera seu pai em tom grave. — Eu o aconselho a pedir um passaporte enquanto pode. As dinastias nunca duram, só as famílias. Os xás vêm e vão, devoram-se uns aos outros, e os dois Pahlavi juntos somam apenas 54 anos como Suas Majestades Imperiais. Quem era Reza Khan antes de se coroar Rei dos Reis? Um soldado aventureiro, filho de camponeses analfabetos de Mazandaran, perto do Cáspio.
— Mas, papai, não há dúvida de que Reza Khan foi um homem especial. Sem ele e Muhammad Reza nós ainda seríamos escravos dos ingleses.
— Os Pahlavi foram úteis para nós, meu filho, de muitas maneiras. Más o Rez Xá falhou, ele falhou consigo mesmo e conosco, por acreditar estupidamente que os alemães ganhariam a guerra e por tentar apoiar o Eixo, dando aos ingleses uma desculpa para depô-lo e exilá-lo.
— Mas, papai, o Muhammad Xá não pode falhar! Ele é mais forte do que seu pai jamais o foi. Nossas Forças Armadas causam inveja ao mundo todo. Temos mais aviões que os ingleses, mais tanques que os alemães, mais dinheiro que Creso, a América é nossa aliada, somos a maior potência militar e política do Oriente Médio e Próximo, e os líderes estrangeiros se curvam diante dele... até Brezhnev.
— Sim, mas ainda não sabemos qual é a Vontade de Deus. Consiga o passaporte.
— Mas um passaporte americano pode ser muito perigoso, você sabe como dizem que quase tudo passa pela Savak e chega até o xá! E se ele ficasse sabendo, ou o general Aryani? Isto seria a minha ruína na Força Aérea.
— E por quê? Pois é claro que você lhes diria orgulhosamente que tinha tirado o passaporte e o mantivera em segredo para o dia em que pudesse usá-lo para o bem dos Pahlavi. Hein?
— É claro!
— Abra os olhos para o mundo, meu filho, as promessas dos reis não têm nenhum valor, elas são feitas por conveniência. Se este xá ou o próximo, ou mesmo o seu grande general tivessem que escolher entre a sua vida e alguma coisa de mais valor para eles, o que escolheriam? Não confie em príncipes, nem em generais, nem em políticos, eles o venderão, a você, à sua família, à sua herança por uma pitada de sal para pôr num prato de arroz que nem se darão ao trabalho de provar...
Como isso era verdade! Carter vendeu a nós e também seus generais, depois vendeu o xá e seus generais, e nossos generais fizeram o mesmo conosco. Mas como puderam ser tão estúpidos a ponto de decretar seu próprio fim? Ele se perguntou, estremecendo ao pensar no quanto estivera perto da morte em Isfahan. Devem ter enlouquecido!
— Está frio na sombra — disse Lochart.
— Sim, está. — Ali o olhou e tentou esquecer a ansiedade. Os generais são todos iguais. Meu pai tinha razão. Mesmo estes dois filhos da mãe, Valik e Seladi, eles nos teriam vendido a todos se fosse necessário, e ainda são capazes disso. Precisam de mim porque sou o único que pode pilotar para eles, fora esse pobre idiota que não sabe da encrenca em que está metido.
— Livre-se deste Lochart — dissera Seladi. — Por que levá-lo para um lugar seguro? Ele deveria ter-nos deixado em Isfahan, por que não deixá-lo aqui? Morto. Não podemos deixá-lo vivo, ele nos conhece e nos trairia.
— Não, meu tio Excelência — respondera Valik. — Ele nos é mais útil como presente para os kuwaitianos ou os iraquianos, eles podem prendê-lo ou extraditá-lo. Foi ele quem roubou um helicóptero iraniano e concordou em transportar-nos por dinheiro. Não foi?
— Sim. Mesmo assim, ele ainda pode dar os nossos nomes para os revolucionários.
— Nessa hora já estaremos em segurança com nossas famílias.
— Eu digo para acabar com ele... ele nos teria sacrificado. Acabe com ele e vamos para Bagdá, não para o Kuwait.
— Por favor, Excelência, reconsidere. Lochart é o piloto mais experiente..
Ali olhou para o relógio. Só faltavam trinta minutos para a partida. Viu Lochart olhar para a casa onde Valik e Seladi estavam. Eu me pergunto quem venceu, Valik ou Seladi? É uma prisão kuwaitiana ou iraquiana para este pobre imbecil bu uma bala na cabeça? Imagino se o enterrarão depois de matá-lo ou se apenas o deixarão para os abutres.
— O que foi? — perguntou Lochart.
— Nada. Nada, capitão, só estava pensando como tivemos sorte em escapar de Isfahan.
— Sim, e ainda acho que lhe devo a vida. — Lochart estava certo de que se Ali e o major não o tivessem libertado ele teria acabado diante de um tribunal do komiteh. E se ele fosse apanhado agora? A mesma coisa. Não se permitira pensar em Xarazade nem em Teerã e nem em um plano. Isso vem depois, tornou a dizer a si mesmo. Depois que você vir o que vai acontecer e onde você vai parar.
Para onde eles estão planejando ir? Para o Kuwait? Ou talvez saltar rapidamente sobre a fronteira até o Iraque? O Iraque geralmente é hostil com os iranianos, isso seria arriscado. O Kuwait é fácil de alcançar daqui e a maioria dos kuwaitianos é sunita e portanto anti-Khomeini. Mas para chegar lá, você tem que atravessar um bocado de espaço aéreo problemático com iranianos ou iraquianos nervosos, agitados e rápidos no gatilho. Nos próximos cem quilômetros deve haver umas vinte bases aéreas iranianas, prontas para o combate, com aviões preparados e dezenas de pilotos apavorados, loucos para provar sua lealdade ao novo regime.
E quanto à sua promessa a McIver de não levá-los na última parte da viagem?
Por causa de Isfahan, você agora está marcado. Não há chance dos revolucionários terem esquecido seu nome e seu registro. Viu alguém anotar seu nome? Não, acho que não. Mesmo assim, é melhor dar o fora enquanto pode, você está envolvido numa fuga, homens foram mortos em Isfahan. Para qualquer lado que se vire, você está marcado.
E quanto a Xarazade? Não posso deixá-la.
Talvez tenha que fazê-lo. Ela está a salvo em Teerã.
E se eles forem procurá-lo e Xarazade abrir a porta e eles quiserem levá-la em seu lugar?
— Gostaria de uma bebida gelada — disse, com a boca subitamente seca. — Poderia tomar uma Coca, ou algo assim?
— Vou ver. — Ambos viraram a cabeça quando os filhos de Valik vieram correndo pelo caminho que dava no lago, seguidos de perto por Annoush.
— Ah — ela lhes disse com seu sorriso alegre, mas com olheiras fundas em volta dos olhos. —, está um dia maravilhoso, não é? Estamos com muita sorte.
— Sim — responderam e ficaram imaginando como uma mulher como ela podia ter casado com um homem daqueles. Ela era uma mulher agradável de se olhar e uma mãe maravilhosa.
— Capitão Abbasi, onde está meu marido?
— Está na casa, Alteza, junto com os outros — disse Ali. — Posso acompanhá-la? Estava indo para lá.
— O senhor poderia procurá-lo, por favor, e pedir-lhe para vir falar comigo?
Ali não queria deixá-la sozinha com Lochart, pois ela estava presente quando Valik e Seladi contaram seu plano a ele, pedindo-lhe conselho quanto ao destino da viagem — embora não tivessem mencionado a eliminação de Lochart, isso fora dito mais tarde.
— Não gostaria de incomodar o general sozinho, Alteza, talvez pudéssemos ir juntos.
— Por favor, encontre-o para mim. — Ela era tão autoritária quanto o general, embora falasse educadamente e sem ofender.
Ali deu de ombros. Insha'Allah, pensou, e afastou-se. Quando estavam a sós, com as duas crianças correndo em volta do barracão, brincando de esconder, Annoush tocou gentilmente em Lochart.
— Ainda não lhe agradeci pelas nossas vidas, Tommy.
Lochart ficou perplexo. Era a primeira vez que ela o chamava pelo nome. Ele tinha sido sempre 'capitão Lochart' ou 'meu primo' ou 'Sua Excelência, o marido de Xarazade'.
— Fiquei feliz em poder ajudar.
— Sei que você e o velho Mac fizeram isso pelas crianças e por mim. Não fique tão surpreso, meu caro, eu conheço os pontos positivos do meu marido e... e as suas fraquezas. Qual é a mulher que não conhece? — Seus olhos encheram-se de lágrimas. — Sei o que isso significa para você. Você arriscou a vida, a de Xarazade, o seu futuro no Irã e talvez a sua companhia.
— Não a de Xarazade. Não, ela está perfeitamente segura. Seu pai, Excelência Bakravan, vai mantê-la em segurança até que ela possa sair. É claro que está segura. — Ele viu os olhos castanhos de Annoush e o que leu neles fez seu coração se contrair.
— Rezo por isso com toda a minha alma, Tommy, e peço a Deus que me conceda este desejo. — Ela afastou as lágrimas. — Nunca me senti tão triste em toda a minha vida. Nunca pensei que pudesse sentir tanta tristeza. Tristeza por estar fugindo, por aquele pobre soldado morrendo na neve, pela nossa família e pelos nossos amigos que têm que ficar, tristeza por ninguém estar mais seguro no Irã. Tenho tanto medo de que todo o nosso círculo vá ser perseguido pelos mulás, nós sempre fomos, como posso dizer? Modernos demais e... progressistas demais. Ninguém mais está seguro aqui. Nem mesmo o próprio Khomeini.
Lochart viu-se respondendo Insha'Allah, mas já não estava prestando atenção nela, subitamente apavorado com a idéia de nunca mais tornar a ver Xarazade, de nunca mais poder voltar ao Irã ou conseguir tirá-la de lá.
— Tudo vai voltar ao normal em breve, poderemos viajar e tudo o mais. É claro que vai. Em poucos meses, tem que ser. É claro que tudo vai voltar ao normal em breve.
— Espero que sim, Tommy, pois eu amo a sua Xarazade e odiaria não poder tornar a vê-la e nem ao pequenino.
— Hein? — Ele a olhou embasbacado.
— Oh, mas é claro que você ainda não sabe — disse ela, depois enxugou o resto das lágrimas. — Era muito cedo para você saber. Xarazade me disse que tinha certeza que estava carregando o seu primogênito.
— Mas... mas, bem ela... — Não pôde continuar, ao mesmo tempo horrorizado e extasiado. — Ela não pode estar!
— Oh, ela ainda não tinha certeza, Tommy, mas sentia que sim. Às vezes uma mulher sabe. A gente se sente tão diferente, tão diferente e tão bem, tão realizada — acrescentou, agora com uma voz plena de felicidade.
Lochart tentava fazer a cabeça trabalhar, completamente consciente de que seria impossível para ela compreender o turbilhão que criara dentro dele. Deus Todo-Poderoso, pensou, Xarazade?
— Ainda faltam alguns dias para ela ter certeza — dizia Annoush. — Acho que três ou quatro. Deixe-me pensar. Sim, incluindo hoje, terça-feira, mais
quatro dias para ter certeza. Seria no dia seguinte à visita ao pai dela — disse delicadamente. — Você deveria vê-lo neste dia santo, sexta-feira, dia 16, pelas suas contas, não é?
— Sim — disse Lochart. Como se eu pudesse esquecer. — A senhora sabia disso?
— É claro. — Annoush ficou espantada com a pergunta. — Um pedido tão extraordinário como este, e uma decisão tão importante teriam que ser conhecidos por todos nós. Oh, não seria maravilhoso se ela estivesse esperando bebê? Você não disse a Excelência Bakravan que queria filhos? Espero que ela tenha sido abençoada por Deus, pois isto certamente fará com que ela fique feliz durante o tempo que levarmos para tirá-la de lá. O Kuwait não é longe. Só lamento que ela não tenha vindo conosco. Isso teria tornado as coisas perfeitas.
— Kuwait?
— Sim, mas não ficaremos lá. Iremos para Londres. — Mais uma vez ela mostrou tristeza. — Não quero deixar a nossa casa e os nossos amigos e... eu não...
Atrás dela, Lochart viu a porta da casa se abrir. Valik e Seladi saíram acompanhados por Ali. Ele notou que os três homens estavam usando armas agora. Devia haver um esconderijo de armas aqui, pensou distraidamente enquanto Ali batia continência e corria pelo caminho em direção ao lago. Radiantes, as duas crianças vieram correndo de trás do barracão e se jogaram nos braços de Valik. Ele girou a garotinha no ar e colocou-a no chão.
— Sim, Annoush? — perguntou à esposa.
— Você queria que eu e as crianças estivéssemos aqui exatamente nesta hora.
— Sim. Por favor arrume Setarem e Jalal. Partiremos em breve. — Imediatamente, as crianças saíram correndo para dentro da casa. — Capitão, o helicóptero está pronto?
— Sim, está.
— Por favor, apronte-se, querida.
— Eu só preciso apanhar o meu casaco. Estou pronta para partir. — Ela sorriu e não se moveu. O resto dos oficiais vinha se aproximando. Vários car regavam rifles automáticos.
Lochart tirou da cabeça Xarazade e o dia santo e mais quatro dias e que brou o silêncio.
— Qual é o plano?
— Bagdá. Nós partiremos em poucos minutos — respondeu Valik
— Pensei que fôssemos para o Kuwait — disse Annoush.
— Decidimos ir para Bagdá. O general Seladi acha que será mais seguro do que se dirigir para o sul. — Valik não parava de observar Lochart. — Quero estar no ar dentro de dez minutos.
— Eu o aconselharia a esperar até duas ou três horas da manhã e..
— Nós poderíamos ficar presos aqui. — Seladi interrompeu friamertte. — Soldados poderiam preparar-nos uma emboscada. Há uma base aérea aqui perto, eles poderiam mandar uma patrulha. Você não entende de assuntos militares. Vamos partir imediatamente para Bagdá.
O Kuwait é melhor e mais seguro, mas em ambos os lugares o helicóptero será apreendido sem uma certidão iraniana. — disse Lochart.
— Talvez sim, talvez não — respondeu Valik, calmamente. — Baksheesh e algumas ligações farão muita diferença. — Você, intruso na minha família, pensou satisfeito, você e mais a oferta do 212 serão um presente que satisfará até os iraquianos, pois nós certamente concordamos que você o pilotou ilegalmente. Até mesmo o certificado que você conseguiu em Teerã foi ilegal. Os iraquianos vão compreender e não nos molestarão. A maioria deles odeia e teme Khomeini e a sua versão do Islã. Com você, o 212 e um pouco mais por fora, por que eles me criariam problemas?
Percebeu que Lochart o observava.
— Sim?
— Eu acho Bagdá uma má escolha.
— Vamos partir agora. — Disse o general Seladi, com rispidez. Lochart enrubesceu com a grosseria. Alguns dos outros homens se mexeram nervosamente.
— Não há dúvida que o senhor vai partir quando o aparelho estiver pronto e o piloto também. O senhor já voou por estas montanhas?
— Não... não, nunca, mas o 212 tem teto e é para Bagdá que nós vamos. Agora!
— Então eu lhe desejo sorte. Eu ainda aconselho o Kuwait e que partam mais tarde, mas o senhor faça como quiser, porque não vou levá-los.
Houve um silêncio ainda mais longo. Seladi ficou vermelho.
— Você vai se preparar para partir, agora.
— No caminho para Isfahan — Lochart disse a Valik —, eu lhe informei que não faria a última parte da viagem. Não vou levá-los para fora do país. Ali pode fazer isso, ele é perfeitamente qualificado.
— Mas agora você está sendo tão procurado quanto nós — disse Valik, estarrecido com a estupidez dele. — É claro que você vai pilotar na última parte da viagem.
— Não, não vou. Vou sair daqui a pé. É claro que vocês não podem perder tempo deixando-me em algum lugar. Ali pode levá-los, ele esteve baseado nesta região e conhece o radar. Deixe-me apenas um rifle e eu vou para Bandar Delam. Certo?
Os outros olharam de Lochart para Seladi e Valik. Esperando.
Valik refletiu sobre este novo problema. Seladi também. Os dois homens chegaram à mesma conclusão: Insha'Allah Lochart escolhera ficar e portanto escolhera as conseqüências.
— Muito bem — disse calmamente Valik. — Ali vai nos levar. — Ele sorriu e então, porque respeitava Lochart como piloto, acrescentou rapidamente: — Como somos um povo muito democrático, eu sugiro que votemos: Iraque ou Kuwait?
— Kuwait — disse imediatamente Annoush, e os outros fizeram coro com ela antes que Seladi pudesse interromper.
Ótimo, Valik pensou, eu me deixei convencer porque Seladi afirmou conhecer o chefe de polícia de Bagdá e disse que uma permissão de trânsito para mim e minha família e para ele não custaria mais de vinte mil dólares em moeda americana, o que seria muito mais barato do que no Kuwait. Quanto os outros terão que pagar é problema deles: espero que tenham dinheiro com eles ou uma maneira de arranjá-lo rapidamente.
— O senhor concorda, é claro, meu tio Excelência? Kuwait. Obrigado, capitão. Talvez o senhor possa comunicar a Ali que ele vai pilotar. Ele está lá embaixo no lago.
— Claro. Vou apanhar as minhas coisas. O senhor vai me deixar um rifle?
— É claro.
Lochart entrou no barracão.
— Tirem o helicóptero para podermos partir — disse Seladi. Eles foram cumprir as ordens. Lochart saiu, colocou sua mochila de vôo e sua mala ao lado da porta e foi andando em direção ao lago. Seladi ficou observando-o, depois caminhou impaciente em direção ao 212.
— Sim, Annoush? — perguntou Valik, ao perceber que sua mulher o observava.
— O que está planejado para o capitão Lochart? — Ela perguntou baixinho embora ninguém pudesse ouvi-los.
— Ele... você ouviu o que ele disse. Ele se recusa a nos levar e quer ficar. Ele vai sair daqui a pé.
— Eu sei como a sua cabeça trabalha, querido. Você vai mandar matá-lo? — Havia um sorriso gentil no seu rosto. — Assassiná-lo?
— Assassinato não seria a palavra correta. — Ele sorriu. — Tenho certeza que você concorda que Lochart representa um grande perigo agora. Eles nos conhece, sabe os nossos nomes. As nossas famílias vão sofrer quando ele for preso, torturado e condenado. É a Vontade de Deus. Ele fez a escolha. Seladi queria que isto fosse feito de qualquer maneira. Uma decisão militar. Eu disse que não, que ele nos levaria adiante.
— Para ser sacrificado no Kuwait, ou em Bagdá?
— Seladi deu as ordens para Ali, não eu. Lochart está marcado, pobre homem. É trágico mas necessário. Você concorda, não?
— Não, meu querido, sinto muito mas não concordo... Então, se ele for ferido, se tocarem nele aqui, muita gente vai se arrepender. — O sorriso de Annoush não mudou. — Você também, meu querido.
O rosto dele ficou vermelho. Os homens já tinham puxado o 212 para fora e agora o empurravam. Ele baixou a voz.
— Você não ouviu, Annoush querida, ele é uma ameaça! Ele não é um de nós, Jared mal o tolera e eu juro que ele é um grande perigo para nós, para aqueles que ficaram para trás. Tanto para a sua família quanto para a minha,
— Você não ouviu o que eu disse, marido? Eu juro que conheço muito bem os perigos, mas se ele for morto aqui, assassinado, você também será morto.
— Não seja ridícula!
— Um dia você vai dormir e não vai acordar. Será a Vontade de Deus. — Seu sorriso não mudou e nem a douçura da sua voz.
Valik hesitou, depois fechou a cara e se dirigiu apressadamente para o lago. As crianças vieram correndo da casa e ela disse gentilmente:
— Esperem aqui, meus queridos, eu volto num instante. Projetada sobre o lago, apoiada em estacas, havia uma área aberta dos lados para churrasco e bar, sob uma cobertura elegante, com alguns degraus que iam até a água para esquiadores ou para o barco a motor que estava amarrado ali perto.
Lochart estava na beira da água, de mãos para cima.
Ali estava com a automática apontada. As ordens de Seladi tinham sido claras: "Vá para o lago e espere. Ou nós o chamaremos de volta ou mandaremos o piloto buscá-lo. Se o piloto for procurá-lo, mate-o e volte imediatamente."
Ele detestara aquela ordem. Bombardear ou atacar revolucionários ou revoltosos de cima de um helicóptero de combate não era assassinato, mas isto era assassinato. Seu rosto estava pálido, ele nunca tinha matado antes e pediu perdão a Deus, mas uma ordem era uma ordem.
— Sinto muito — disse, quase sem poder falar e começou a puxar o gatilho.
Neste instante, as pernas de Lochart pareceram ceder e ele caiu de lado na água. Automaticamente, Ali seguiu-lhe o movimento, mirou no meio das costas como se estivesse praticando tiro ao alvo, sabendo que nunca poderia errar daquela distância. Fogo!
— Pare!
A fração de segundo em que ele hesitou foi tempo suficiente para que o seu cérebro ouvisse a ordem e a obedecesse de boa vontade. Aliviado, sentiu o dedo aliviar a pressão no gatilho. Valik correu até ele e os dois examinaram a água, escura e profunda. Esperaram. Lochart não apareceu.
— Talvez ele esteja debaixo dos degraus, ou do flutuador — disse Ali, enxugando o suor do rosto e das mãos, e agradecendo a Deus por não ter o sangue do piloto na consciência.
— Sim — Valik também estava suando, mas de medo.
Ele nunca vira aquele olhar no rosto de sua mulher antes, o sorriso que prometia a morte durante a noite. São os seus ancestrais assassinos, pensou. Ela é uma qajar, na sua linhagem estão os qajars que cegavam ou matavam os seus rivais ao trono — ou os filhos dos seus rivais — não é verdade que apenas um dos xás qajar, numa dinastia que durou 146 anos, deixou o trono por morte natural? Valik olhou em volta, viu-a em pé no alto do caminho, e então virou-se para Ali.
— Dê-me a arma.
Tremendo, Valik colocou a arma sobre o chão de madeira e gritou:
— Lochart, deixei uma arma aqui para você. Tudo isso foi um erro. O capitão estava enganado.
— Mas, general...
— Suba no helicóptero — ordenou Valik, em voz alta. — Seladi é um idiota. Nunca deveria ter-lhe dado ordens para matar o pobre homem. Vamos partir para o Kuwait imediatamente e não para Bagdá. Ali, vá ligar o aparelho.
Ali saiu. Quando passou perto de Annoush, ele a olhou com curiosidade, depois continuou depressa. Ela desceu e se juntou a Vaiik.
— Você viu? — Ele perguntou.
— Sim.
Esperaram. Não se ouvia nenhum som, não havia nenhuma onda batendo nos pilares. Estava bonito e tranqüilo, a superfície do lago transparente e parada.
— Eu... eu rezo para que ele esteja escondido em algum lugar — disse ela, sentindo um grande vazio na alma, mas agora estava na hora de fazer as pazes. — Estou contente do sangue dele não estar nas nossas mãos. Seladi é um monstro.
— É melhor voltarmos. — Estavam ocultos do helicóptero e da casa. Ele tirou a sua automática e deu um tiro para o chão. — Para Seladi. Eu, ahn, acho que atingi Lochart quando... quando ele veio à tona. Hein?
— Você é um homem bom e inteligente. — Ela lhe deu o braço e eles voltaram de braços dados. — Sem você, sem a sua coragem e a sua esperteza, nunca teríamos escapado de Isfahan. Mas o exílio? Por...
— Exílio temporário — corrigiu jovialmente, sentindo-se enormemente aliviado por ter passado o momento de tensão entre eles. — Depois tornaremos a voltar para casa.
— Seria maravilhoso — disse, forçando-se a acreditar. Tenho que acreditar, ou então vou ficar maluca. Tenho que acreditar por causa das crianças! — Estou contente por você ter escolhido o Kuwait. Jamais gostei de Bagdá e daqueles iraquianos, arg! — Ainda havia sembras nos seus olhos. — Aquilo que Lochart disse sobre esperar até anoitecer estava errado?
— Há uma base aérea a poucas milhas daqui. Nós poderíamos ter sido vistos pelo radar, Annoush, ou por observadores nas montanhas. Nisso Seladi tem razão. A base vai mandar uma patrulha atrás de nós. — Eles chegaram ao topo. As crianças esperavam por eles na porta da cabine e todo mundo já embarcara. Apertaram o passo. — O Kuwait é muito mais seguro. Eu já tinha resolvido ignorar aquele idiota do Seladi. Não se pode confiar nele.
Em poucos minutos estavam no ar, rumando para o norte margeando as montanhas, costeando os penhascos, mantendo-se perto do chão para evitar o perigo da base aérea. AH Abbasi era um bom piloto e conhecia bem a região. Uma vez passada a cadeia de montanhas, desceram sobre o vale e viraram para oeste, esgueirando-se por um desfiladeiro para evitar o perímetro externo do campo de aviação, com a fronteira iraquiana a uns oitenta quilômetros à frente. Os cumes das montanhas estavam cobertos de neve bem como parte das encostas, embora o chão de alguns vales estivesse verde, no meio do deserto de rochas. Passaram sobre uma aldeia inesperada e desconhecida, depois desviaram-se quase que para o sul, mais uma vez seguindo o rio, correndo paralelamente à fronteira que ficava à direita. O vôo devia durar apenas duas horas, dependendo dos ventos, e os ventos eram favoráveis.
Os que estavam na cabine perto das janelas observavam satisfeitos a paisagem que passava depressa, as crianças nos melhores lugares, o major segurando Jalal, Valik com a filha no colo, ao lado de Annoush. Todos estavam contentes, alguns rezavam silenciosamente. Não faltava muito para o pôr-do-sol e este seria bonito, com as nuvens coloridas de vermelho — céu vermelho à noite, felicidade para os pastores — Annoush cantou para Setar em em inglês — e, lá na frente, os motores funcionavam bem, com todos os mostradores no verde.
Ali estava contente de estar pilotando, contente por não ter matado Lochart, que tinha ficado diante dele, sem dizer nada, sem implorar por sua vida e sem rezar, apenas lá, em pé, com as mãos levantadas, esperando. Tenho certeza de que ele está a salvo sob os pilares, graças a Deus...
Deu uma olhada rápida no mapa, refrescando a memória. Mas não precisava olhar, tinha passado muitos anos ali, voando pelos despenhadeiros. Em breve sairia das montanhas e desceria para as planícies pantanosas do Tigre e do Eufrates, ficando perto do chão, costeando Dezful, depois Ahwaz e Khor-ramshahr, depois atravessaria o estuário do Shatt-al-Arab e a fronteira, chegando ao Kuwait e à liberdade.
Na sua frente estava a elevação com o cume saliente que estava esperando, e ele subiu, saindo de um vale para entrar em outro, possuído pela alegria de voar. Então a frase "HBC, suba para trezentos metros e reduza a velocidade" encheu os seus fones e o seu cérebro. Ele não estava no ar nem há seis minutos.
A ordem fora dada em farsi e foi repetida em inglês e depois em farsi e mais uma vez em inglês, e durante todo o tempo em que escutava ele tinha mantido o aparelho baixo, tentando desesperadamente fazer a cabeça funcionar.
— Helicóptero HBC, você está ilegal, saia do vale e reduza a velocidade. Ali Abbasi olhou para cima, examinando o céu, mas não viu nenhum avião. O chão do vale passava vertiginosamente. À sua frente havia outra cadeia de montanhas e depois haveria uma sucessão de vales e montanhas que levavam até às planícies. A fronteira do Iraque ficava a oeste, a uns sessenta quilômetros de distância — vinte minutos.
— Helicóptero HBC, pela última vez, você está ilegal, saia do vale e reduza a velocidade!
Seu cérebro gritou: Você tem três opções: obedeça e morra, tente escapar ou desça e espere cair a noite e tente voar assim que o dia começar a clarear. Se você sobreviver aos foguetes e balas.
Na sua frente, à esquerda, ele viu as árvores e a paisagem descendo, com os lados do vale precipitando-se numa garganta, então lançou-se para lá, decidindo-se pela fuga. Agora sua mente trabalhava bem. Arrancou os fones e se colocou nas mãos de Deus, sentindo-se melhor por causa disto. Diminuiu a velocidade ao se aproximar do final da garganta, desviou-se de algumas árvores e se enfiou em outro vale pequeno, reduzindo ainda mais a velocidade, acompanhando cautelosamente o leito do rio. Surgiram mais árvores e arbustos e o helicóptero se esgueirou entre eles.
Mantenha-se baixo e devagar, poupe combustível e vá com calma para o sul, pensou, mais confiante. Aproxime-se da fronteira quando puder, não se afobe. Eles nunca o pegarão se você usar a cabeça. Vai escurecer dentro em breve e você sabe o bastante de vôo por instrumento para chegar ao Kuwait. Mas como foi que eles nos localizaram? Como souberam? É como se estivessem esperando. Será que eles nos viram no radar indo para Dez Dam? — Cuidado!
As árvores eram mais densas ali e ele contornou um grupo delas na encosta da montanha, chegou mais perto das rochas e subiu para o topo em direção ao próximo vale. Passou sobre ele e desceu para a proteção das rochas, com os olhos examinando à frente e acima, procurando sempre um bom lugar para descer caso o motor falhasse. Estava atento e confiante e fazia bem o seu trabalho. Todos os instrumentos estavam dentro da margem de segurança. Os minutos passavam e embora examinasse cuidadosamente o céu, não viu nada.
No início do próximo vale, girou o helicóptero num ângulo de 360° e examinou novamente o céu. Não havia nada lá em cima.
Salvos! Escapamos dele! Insha'Allah! Respirou fundo e, muito satisfeito, tornou a rumar para o sul. Passou pelo próximo cume. E pelo seguinte e lá na frente estavam as planícies. Os dois aviões de combate estavam esperando. Eram F14.
NO AEROPORTO DE TEERÃ — ESCRITÓRIO DA S-G: 17:48H. —...você não tem permissão para aterrissar! — ouviu-se pelo HF, junto com um bocado de estática. Gavallan, McIver e Robert Armstrong estavam agrupados em volta do rádio, escutando atentamente; pelas janelas, a vista era cansativa e pesada, a noite se aproximava.
A voz apagada de John Hogg tornou a soar, vinda do 125 que se aproximava:
— Controle de Teerã, aqui é Eco Tango Lima Lima, como ontem, nós temos permissão de Kish para pousar e...
— ETLL, você não pode pousar! — A voz do controlador de tráfego estava rouca e assustada e McIver praguejou baixinho. — Vou repetir: negativo, todo o tráfego aéreo civil está retido em terra e todas as chegadas canceladas até novas ordens do imã... — No fundo, eles podiam ouvir outras vozes conversando em farsi, vários microfones abertos para aquela freqüência. — Volte ao ponto de partida.
— Repito, nós temos permissão do radar de Kish para pousar, ele nos passou para o controle de tráfego aéreo de Isfahan, que confirmou a permissão. Longa vida para o aiatolá Khomeini e para a vitória do Islã. Estou a sessenta quilômetros ao sul do posto de controle de Varamin, pronto para descer na pista 29, esquerda. Por favor, confirme se o seu ILS está funcionando. Vocês têm mais tráfego no sistema?
Por alguns momentos, vozes em farsi dominaram a torre, e depois ouviu-se:
— Tráfego negativo, ETLL, ILS negativo, mas você não pode... — A voz em inglês com sotaque americano foi interrompida bruscamente, ouvindo-se uma voz zangada, com um sotaque carregado, dizendo: — Pousos não! Komiteh dá ordens Teerã! Kish não Teerã. Isfahan não Teerã. Nós damos ordens Teerã! Se pousar, você preso.
A voz alegre de John Hogg respondeu imediatamente:
— Eco Tango Lima Lima. Compreendo que vocês não querem que nós pousemos, torre de Teerã, e querem rejeitar as nossas permissões, o que eu acredito que seja um erro de acordo com os regulamentos de tráfego aéreo. Alerta Um, por favor. — Então, imediatamente, na freqüência particular da S-G, misturada com a estática, veio a sua voz tensa: — Chamando QG!
Imediatamente, McIver trocou de canal e falou ao microfone:
— Três sessenta, Alerta Um — o que significava: dê uma volta e aguarde uma resposta. Olhou para Gavallan, que estava com a fisionomia preocupada. Robert Armstrong assoviava baixinho. — É melhor o mandarmos voltar. Se pousar, podem prendê-lo e apreender o aparelho — disse McIver.
— Com permissões oficiais? — perguntou Gavallan. — Você disse à torre que nós temos a carta do embaixador britânico aprovada pelo gabinete de Bazargan...
— Mas não pelo próprio Bazargan, senhor — disse Robert Armstrong —, e mesmo assim, para todos os efeitos, aqueles patifes da torre são a lei no momento. Eu sugiro que... — Ele parou e apontou, com o rosto ainda mais preocupado. — Olhem lá! — Dois caminhões e um carro equipado com rádio, com sua longa antena balançando, estavam se aproximando pela estrada. Enquanto olhavam, os caminhões foram diretamente para a pista 29 esquerda e estacionaram bem no meio dela. Faixas Verdes armados saltaram e tomaram posições defensivas. O carro com rádio continuou andando na direção deles.
— Merda! — resmungou McIver.
— Mac, você acha que eles estão controlando a nossa freqüência?
— É mais seguro presumir que sim, Andy. Gavallan apanhou o microfone.
— Interrompa. B repito B.
— Eco Tango Lima Lima! — Então, na freqüência da torre, ouviu-se uma voz simpática e gentil: — Torre de Teerã: nós concordamos com o seu pedido para cancelar a nossa licença e solicitamos formalmente permissão para pousar amanhã ao meio-dia para entregar peças de reposição urgentes, repetimos urgentes, requisitadas pela IranOil, e desembarcar tripulação com licença vencida, e retornar imediatamente.
— Johnny foi sempre rápido nas suas respostas — resmungou McIver, e depois disse para Armstrong: — Nós vamos colocá-lo...
— Alerta Um, Eco Tango Lima Lima. — Sua voz foi abafada pela torre.
— Nós vamos colocá-lo na lista de passageiros quando pudermos, sr. Armstrong. Sinto, mas hoje não deu certo. E quanto aos seus papéis?
Armstrong tirou os olhos do carro que se aproximava.
— Eu, ahn, eu preferiria ser um consultor da S-G, saindo em licença, se você não se importar. Sem salário, evidentemente. — Ele olhou para Gavallan.
— O que é B repito B?
— Tente outra vez amanhã, à mesma hora.
— E se eles concordarem com o pedido do ETLL?
— Então será amanhã. Você vai ser um consultor.
— Obrigado. Vamos torcer para ser amanhã. — Armstrong olhou para o carro que se aproximava e acrescentou rapidamente: — O senhor vai estar em casa por volta das dez da noite, sr. Gavallan? Talvez eu pudesse dar uma passada por lá. Só para conversar, nada importante.
— Claro. Estarei esperando. Nós já nos encontramos antes, não?
— Sim. Se eu não estiver lá até dez e quinze é que eu me atrasei e não pude ir. O senhor sabe como é. E então me comunicarei com o senhor de manhã.
— Armstrong levantou-se para sair. — Obrigado.
— Está bem. Onde foi que nos encontramos?
— Em Hong Kong. — Robert Armstrong cumprimentou educadamente e saiu, alto e elegante. Eles o viram atravessar o escritório e abrir a porta que levava ao hangar e à porta dos fundos que dava para o estacionamento da S-G, onde ele deixara o seu indescritível carro. O carro de McIver estava parado na frente.
— É como se ele já tivesse estado aqui antes — disse McIver, Pensativamente.
— Hong Kong? Não me lembro dele de jeito nenhum. Você se lembra?
— Não. — McIver franziu a testa. — Vou perguntar a Gen, que tem uma boa memória para nomes.
— Não estou certo de gostar ou de confiar neste tal de Robert Armstrong, não importa o que Talbot diga.
Ao meio-dia, eles tinham ido ver Talbot para descobrir quem era esse Armstrong. Tudo o que George Talbot disse foi:
— Oh, ele é um bom sujeito, e nós, ahn, nós apreciaríamos muito se vocês lhe dessem uma carona, sem fazer muitas perguntas. Vocês ficam para almoçar, é claro? Nós ainda temos um bom filé de linguado de Dover, congelado, bastante caviar ou salmão defumado se quiserem, duas garrafas de La Doucette 76 no gelo, ou salsichas com purê de batata e o vinho da casa, que eu recomendo se vocês preferirem. Pudim de chocolate ou torta de cerejas, e ainda temos metade de um bom Stilton. O mundo pode pegar fogo, mas pelo menos nós podemos vê-lo queimar como cavalheiros. Que tal um gim antes do almoço?
O almoço tinha sido muito bom. Talbot informara que Bakhtiar estava deixando o terreno para Bazargan e que Khomeini poderia evitar mais problemas.
— Agora que não há mais chance de golpe, as coisas vão acabar voltando ao normal.
— Quando você acha que isso vai acontecer?
— Quando 'eles', seja lá quem forem 'eles', ficarem sem munição. Mas, meu velho, o que eu acho não importa. O que importa é o que Khomeini acha, e só Deus sabe o que ele acha.
Gavallan recordou a gargalhada que Talbot tinha dado da sua própria piada e sorriu.
— O que foi? — perguntou McIver.
— Eu estava me lembrando de Talbot no almoço. — O carro ainda estava a uns cem metros de distância. — Talbot está escondendo uma montanha de segredos. Sobre o que você acha que Armstrong quer 'conversar'?
— Provavelmente quer distrair a nossa atenção um pouco mais. Afinal de contas, Mac, nós fomos à embaixada para nos informar sobre ele. Curioso! Geralmente eu não esqueço... Hong Kong? Eu o associo com as corridas em Happy Valley. Vou acabar me lembrando. Uma coisa é preciso dizer a favor dele: é pontual. Eu disse cinco horas e ele estava aqui, embora parecesse ter saído de dentro da parede. — Os olhos de Gavallan brilharam sob as espessas sobrancelhas, depois ele tornou a olhar para o carro que estava estacionado do lado de fora. — Tão certo quanto Deus ter criado a Escócia, ele não quis se encontrar com o nosso simpático komiteh. Eu me pergunto por quê.
O komiteh consistia de dois rapazes armados, um mulá — não o mesmo da véspera — e de Sabolir, o suado funcionário da imigração, ainda muito nervoso.
— Boa noite, Excelências — disse McIver, com as narinas se rebelando contra o cheiro de suor rançoso. — Os senhores gostariam de um pouco de chá?
— Não, não obrigado — respondeu Sabolir. Ele ainda estava muito em guarda, embora tentasse esconder isso sob uma máscara de arrogância. Sentou-se na melhor cadeira. — Nós temos novos regulamentos para vocês.
— Oh? — McIver tinha feito negócios com ele há uns dois anos e de vez em quando dava-lhe uma caixa de uísque, fornecia-lhe gasolina e, uma vez ou outra, passagens e acomodações para ele e a família, para passarem as férias de verão em diversos locais no mar Cáspio: "Nós reservamos acomodações para alguns dos nossos executivos e eles não podem ir, caro sr. Sabolir. É uma pena desperdiçar os quartos, não é?" Uma vez ele tinha arranjado uma viagem de uma semana para duas pessoas, para Dubai. A garota era muito jovem e muito bonita, e por sugestão de Sabolir fora colocada na folha de pagamento da S-G como uma especialista iraniana. — O que podemos fazer pelos senhores?
Para surpresa deles, Sabolir apanhou o passaporte de Gavallan e o formulário de permissão anterior e colocou-os sobre a mesa.
— Aqui estão o seu passaporte e os formulários, ahn, aprovados — disse, com a voz automaticamente untuosa do funcionalismo. — O imã ordenou que as operações normais começassem imediatamente. O, ahn, o Estado islâmico do Irã está de volta à normalidade e o aeroporto será reaberto dentro de três dias, para todo o tráfego normal, já estabelecido. Vocês agora devem voltar a operar normalmente.
— Nós vamos recomeçar a treinar a Força Aérea iraniana? perguntou McIver, quase sem conseguir disfarçar o contentamento, pois este era um contrato muito grande e muito lucrativo.
Sabolir hesitou.
— Sim, eu suponho que s...
— Não — disse firmemente o mulá, em bom inglês. — Não. Não até que o imã ou o Komiteh Revolucionário concorde. Vou providenciar para que o senhor tenha uma resposta certa. Não acho que esta parte da sua operação vá começar agora. Enquanto isso, o trabalho normal: transporte de peças para as bases, vôos destinados a ajudar a IranOil e retomar a sua produção de petróleo, ou para a Madeira Iraniana, e assim por diante. Desde que os vôos sejam aprovados com antecedência, podem começar depois de amanhã.
— Excelente — disse Gavallan, e McIver concordou.
— Os vôos para substituição de pessoal, tanto da tripulação dos aviões quanto do pessoal das plataformas, desde que aprovados com antecedência e caso os papéis estejam em ordem — o mulá continuou — serão reiniciados depois de amanhã. A produção de petróleo será uma prioridade. Um guarda islâmico acompanhará cada um dos vôos internos.
— Se isto for solicitado com antecedência e se o homem chegar na hora. Mas não armado — disse educadamente McIver, preparando-se para a inevitável discussão.
— Guardas islâmicos armados serão levados para a proteção de vocês, para evitar seqüestros por parte dos inimigos do Estado — disse rispidamente o mulá.
— Teremos muito prazer em cooperar, Excelência — Gavallan interrompeu calmamente — muito prazer mesmo, mas estou certo de que o senhor não vai querer arriscar vidas nem colocar em risco o Estado islâmico. Peço formalmente ao senhor para pedir ao imã para concordar com a proibição de armas. É evidente que o senhor tem acesso direto a ele. Enquanto isso, todos os nossos aparelhos ficarão em terra até que eu obtenha uma licença, ou permissão do meu governo.
— Os aparelhos não ficarão em terra, e o senhor voltará a operar normalmente! — O mulá estava furioso.
— Talvez possamos fazer um acordo até a decisão do imã: os seus guardas levam as armas, mas o capitão fica com a munição durante o vôo. De acordo?
O mulá hesitou.
— O imã ordenou que TODAS as armas fossem devolvidas, não foi?
— Sim. Muito bem, eu concordo.
— Obrigado. Mac, prepare um papel para Sua Excelência assinar e informe a todos os nossos rapazes. Agora, nós vamos precisar de novas licenças de vôo, Excelência. As que temos são as velhas, ahn, sem valor, do antigo regime. O senhor nos dará a autorização necessária? O senhor mesmo, Excelência? Obviamente, o senhor é um homem importante e sabe o que está acontecendo. — Ele observou o mulá, que pareceu aumentar de estatura com o elogio. O homem tinha uns trinta anos, sua barba era gordurosa e a roupa puída. Pelo seu sotaque, Gavallan calculou que ele tivesse estudado na Inglaterra, um dos milhares de iranianos que o xá tinha mandado para o estrangeiro com bolsas de estudo, para obterem uma educação ocidental. — O senhor sem dúvida nos dará papéis novos imediatamente, para nos tornar legais com a nova era?
— Bem, ahn, nós forneceremos novos documentos para cada um dos nossos aparelhos, é claro. — O mulá tirou alguns papéis da sua pasta e pôs uns óculos velhos, de lentes grossas, uma delas rachada. O papel que ele procurava estava no fundo. — O senhor tem em sua guarda treze 212 iranianos, sete 206 e quatro Alouettes espalhados por diversos lugares, todos com registro iraniano e pertencentes à Companhia de Helicópteros Iraniana. Está correto?
— Não exatamente. — Gavallan sacudiu a cabeça. — No momento, eles ainda pertencem à S-G Helicópteros de Aberdeen. A Companhia de Helicópteros Iraniana, a nossa sociedade com iranianos, só tomará posse dos aparelhos depois que eles forem pagos.
O mulá franziu a testa, depois aproximou o papel dos olhos.
— Mas o contrato dando a posse dos aparelhos à Companhia Iraniana está assinado, não?
— Sim, mas está sujeito a pagamentos que estão... estão atrasados.
— O imã disse que todas as dívidas serão pagas, então eles serão pagos.
— É claro, mas enquanto isso a posse definitiva depende do pagamento. — Gavallan continuou, cautelosamente, esperando ao mesmo tempo que a torre concordasse com a inteligente solicitação feita por Johnny Hogg de pousar no dia seguinte. Será que este cretino hipócrita poderia ordenar uma permissão? Se Khomeini ordenou que tudo voltasse ao normal, tudo voltará ao normal e eu poderei voltar para Londres em segurança. Com um pouco de sorte, poderia fechar o contrato da ExTex, que cobre as prestações dos novos X63, durante o fim-de-semana.
— Há meses que fazemos os pagamentos destes aparelhos pela CHI, com juros, bancando os custos com os nossos próprios fundos e...
— O Islã proíbe a usura e o pagamento de juros — disse o mulá, com uma determinação que abalou a Gavallan e McIver. — Os bancos não podem cobrar juros. De nenhum tipo. Isto é agiotagem.
Gavallan olhou para McIver, depois voltou a dar toda a atenção ao mulá.
— Se os bancos não podem cobrar juros, como é que os negócios vão funcionar interna e externamente?
— De acordo com a lei islâmica. Só com a lei islâmica. O Corão proíbe a agiotagem. — O mulá acrescentou aborrecido. — O que os bancos estrangeiros fazem é diabólico. Foi por causa deles que o Irã teve tantos problemas. Os bancos são instituições diabólicas e não serão tolerados. Quanto à Companhia de Helicópteros Iraniana, o Komiteh Revolucionário islâmico ordenou que todas as sociedades fossem suspensas, dependendo de uma revisão. — O mulá sacudiu os papéis. — Todos estes aparelhos são iranianos, com registro iraniano, iranianos! — Mais uma vez ele examinou os papéis. — Aqui em Teerã, vocês têm três 212, quatro 206 e um 47G4 aqui no aeroporto, não é?
— Eles estão espalhados — McIver disse cautelosamente —. Aqui, em Doshan Tappeh e em Galeg Morghi.
— Mas estão todos aqui, em Teerã?
McIver o avaliara enquanto Gavallan conversava, tentando, ao mesmo tempo, ler os papéis de cabeça para baixo. O que estava na mão do mulá continha uma lista de todos os aparelhos deles com seus números de registro e era uma cópia da relação que ficavam na torre, que a S-G era obrigada a manter sempre atualizada. Seu estômago revirou quando ele viu um círculo vermelho em volta do EP-HBC — o 212 de Lochart — e também do EP-HFC, o 206 de Pettikin.
— Nós temos um 212 que está emprestado em Bandar Delam — disse, resolvendo se precaver, maldizendo Valik e torcendo para que Tom Lochart estivesse a salvo em Bandar Delam ou voltando de lá. — Os outros estão aqui.
— Emprestado... será o EP... EP-HBC? — disse o mulá, muito satisfeito consigo mesmo. — Agora, por...
— A voz do controlador de tráfego interrompeu-o:
— Eco Tango Lima Lima, pedido recusado. Chame Isfahan em 118.3. Bom dia.
— Correto. Ótimo. — O mulá balançou a cabeça, satisfeito.
Gavallan e McIver praguejaram por dentro e Sabolir, que estivera silencioso, observando a conversa, entendendo perfeitamente que os dois homens tentavam manobrar o mulá, riu consigo mesmo, evitando cuidadosamente cruzar os olhos com qualquer um deles, olhando, por segurança, para o chão. Uma vez, há poucos instantes, quando o mulá estava prestando atenção em outra coisa, ele tinha encarado McIver e sorrira para ele, encorajadoramente, fingindo amizade, temeroso que McIver pudesse acabar com todos os favores anteriores que foram apenas um pagamento por ter facilitado a entrada das peças e a saída do pessoal. Naquela manhã, pelo rádio, um porta-voz do Komiteh Revolucionário islâmico incitara todos os cidadãos leais a denunciar qualquer pessoa que tivesse cometido crimes "contra o Islã". Durante o dia, três dos seus colegas foram presos, o que causou uma onda de horror em todo o aeroporto. Os guardas islâmicos não deram nenhuma razão específica, apenas arrastaram os homens e os colocaram na prisão Evin, a temida prisão da Savak, onde, dizia-se, meia centena de 'inimigos do Islã' tinham sido fuzilados hoje, depois de julgamentos sumários. Entre os detidos estava um dos seus homens, que aceitara os dez mil riais e os três tambores de vinte litros de gasolina do depósito de McIver, ontem. O homem guardara um, e os outros dois ele próprio levara para casa na noite passada, como era seu direito. Oh, Deus, fazei com que eles não revistem a minha casa.
Pelo HF, ouviu-se a voz ainda distante de Johnny Hogg:
— Eco Tango Lima Lima, obrigado. Viva a revolução e bom dia. — Depois, no canal deles, nervosamente: — QG, confirme!
McIver estendeu a mão e mudou de canal.
— Alerta Um! — ordenou, profundamente consciente da presença do mulá. — Você acha...
— Ah. Você fala diretamente com o aparelho; é um canal particular?
— Canal da companhia, Excelência. E a prática habitual.
— Habitual. Sim. Então o EP-HBC está em Bandar Delam? — perguntou o mulá e leu no papel: — Entregando peças. Correto?
— Sim. — Disse McIver, rezando.
— Quando ele deve retornar?
McIver podia sentir o peso da atenção do mulá sobre ele.
— Não sei. Não consegui comunicar-me com Bandar Delam. Assim que souber, comunicarei ao senhor. Agora, Excelência, com relação às autorizações para os nossos diversos vôos, o senhor ach...
— EP-HFC. EP-HFC está em Tabriz?
— Está na pequena pista de Forsha. — Disse McIver, não se sentindo nada à vontade, rezando para que a loucura que tinha acontecido na barreira de Qazvin não tivesse sido comunicada e fosse esquecida. Mais uma vez, ele imaginou onde estaria Erikki que devia ter ido encontrá-los no apartamento às três horas para vir para o aeroporto, mas não tinha aparecido.
— Pista de Forsha?
Ele viu o mulá olhando-o fixamente e fez um esforço para se concentrar.
— O EP-HFC foi para Tabriz no sábado, para entregar peças de reposição e apanhar pessoal. Voltou na noite passada. Estará na nova relação que será entregue amanhã.
— Mas qualquer aparelho que chegue ou que parta deve ser comunicado imediatamente. Nós não temos registro de nenhuma permissão de chegada dada ontem — disse o mulá, aborrecido.
— O capitão Pettikin não conseguiu se comunicar com a torre de controle de Teerã ontem. Os militares estavam tomando conta, acho. Ele tentou se comunicar várias vezes. — McIver acrescentou rapidamente: — Se temos que retomar as operações, quem vai autorizar os nossos vôos para a IranOil? O sr. Darius, como de costume?
— Ahn, sim, presumo que sim. Mas por que a chegada deste vôo não foi comunicada hoje?
— Estou muito impressionado com a sua eficiência, Excelência. — Gavallan falou com uma animação forçada. — É uma pena que os controladores de tráfego, militares, que estavam de serviço ontem não partilhassem desta eficiência. Estou vendo que a nova república islâmica vai suplantar qualquer operação ocidental. Será um prazer servir aos nossos novos patrões. Viva os novos patrões! Posso saber o seu nome?
— Eu, meu nome é Muhammad Tehrani — disse o homem, distraindo-se de novo.
— Então, Excelência Tehrani, posso pedir-lhe para nos conceder o benefício da sua autoridade? Se o meu Eco Tango Lima Lima pudesse ter a sua permissão para pousar amanhã, poderíamos melhorar imensamente nossa eficiência para igualar a sua. Poderei então certificar-me de que a nossa companhia dê ao aiatolá Khomeini e aos seus assistentes pessoais, como o senhor, o serviço a que têm direito. As peças que o ETLL vem buscar porão dois 212 a mais em funcionamento e eu poderei voltar a Londres para intensificar o nosso apoio à Grande Revolução. O senhor concorda, não é mesmo?
— Isso não é possível. O komiteh...
— Estou certo de que o komiteh aceitará o seu conselho. Oh, eu notei que o senhor teve a infelicidade de quebrar os seus óculos. É terrível. Eu mal consigo enxergar sem os meus. Talvez eu pudesse mandar o 125 trazer-lhe um novo par amanhã, de Al Shargaz?
O mulá ficou indeciso. Sua vista era muito ruim. O desejo de uns óculos novos, bons óculos, quase o subjugou. Oh, seria um tesouro inacreditável, um presente de Deus. É claro que Deus é que tinha posto este pensamento na cabeça do estrangeiro.
— Eu não acho... Eu não sei. O komiteh não poderia fazer o que o senhor está pedindo assim tão depressa.
— Eu sei que é difícil, mas se o senhor interceder por nós junto ao seu komiteh, eles certamente vão ouvir. Isto nos ajudaria imensamente e nós ficaríamos em débito com o senhor — Gavallan acrescentou, usando a expressão consagrada pelo tempo que, em qualquer língua, significava: o que o senhor deseja em troca? Ele viu McIver trocar para a freqüência da torre e oferecer-
lhe o microfone. — O senhor aperta o botão para falar, Excelência. Se o senhor nos quiser honrar com a sua ajuda...
O mulá Tehrani hesitou, sem saber o que fazer. Enquanto ele olhava para o microfone, McIver lançou um olhar significativo para Sabolir.
Sabolir compreendeu imediatamente, com os reflexos perfeitos.
— É claro que o seu komiteh vai concordar com qualquer decisão sua, Excelência Tehrani — disse, com sua voz untuosa. — Mas amanhã, pelo que eu entendi, o senhor tem que visitar os outros campos de aviação para se certificar de quantos helicópteros civis estão na sua área, que compreende toda Teerã, e onde eles estão. Não é?
— Minhas ordens são essas, sim — concordou o mulá. — Eu e alguns membros do meu komiteh temos que visitar os outros campos de aviação amanhã.
Sabolir suspirou profundamente, fingindo decepção, e McIver teve dificuldade em prender o riso, tão forçada era a sua performance.
— Infelizmente, não seria possível o senhor visitar todos eles de carro ou a pé e ainda estar de volta para supervisionar, pessoalmente, a chegada e o retorno imediato deste aparelho que, sem nenhuma culpa, foi recusado por causa de controladores de tráfego arrogantes, em Kish e em Isfahan, que ousaram não consultá-lo primeiro.
— É verdade — concordou o mulá. — A culpa foi deles!
— Sete horas seria conveniente para o senhor, Excelência Tehrani? — disse imediatamente McIver. — Nós teríamos prazer em ajudar o seu komiteh de aeroportos. Eu lhe darei o meu melhor piloto e o senhor estará de volta com tempo de sobra para, ahn, para supervisionar a operação. Quantos homens iriam com o senhor?
— Seis... — disse distraidamente o mulá, radiante com a idéia de ser capaz de executar as suas ordens, trabalho de Deus, de uma forma tão conveniente e confortável, como um verdadeiro aiatolá. — Isto... isto poderia ser feito?
— É claro! — disse McIver. — Às sete horas, aqui. O capitão, ahn, o capitão Nathaniel Lane terá um 212 pronto. Sete pessoas incluindo o senhor, e no máximo sete esposas. O senhor, evidentemente, voará na cabine junto com o piloto. Considere tudo combinado.
O mulá só tinha voado duas vezes na vida: para a universidade na Inglaterra e de volta para casa, apertado num vôo especial de estudantes da Iran Air. Ele sorriu e estendeu a mão para o microfone:
— Às sete horas.
McIver e Gavallan não demostraram o seu alívio pela vitória. Nem Sabolir.
Sabolir estava satisfeito pelo mulá ter sido enrolado. Como Deus quiser! Agora, se eu for acusado falsamente, terei um aliado, disse a si mesmo. Este idiota, este falso mulá filho de um cão, não aceitou um suborno? Não um pishkesh , mas dois: óculos novos e uma viagem aérea desnecessária e não autorizada. Ele não permitiu deliberadamente que esses ingleses mentirosos, que ainda pensam que podem seduzir-nos com quinquilharias e roubar as nossas riquezas por uns poucos riais, o fizessem de bobo? Escutem só o idiota, dando aos estrangeiros o que eles desejam!
Ele olhou para McIver, significativamente. E encarou-o. Depois, mais uma vez, tornou a olhar para o chão. Agora, você, seu ocidental arrogante, filho de um cão, ele pensou, qual o favor que me prestará em troca da minha ajuda?
NO CLUBE FRANCÊS: 19:10H. Gavallan aceitou o copo de vinho tinto e McIver o de vinho branco, que o garçom francês, uniformizado, ofereceu-lhes.
Brindaram e beberam satisfeitos, cansados depois da viagem de volta do aeroporto. Estavam sentados com outros convidados, na maioria europeus, homens e mulheres, no salão que dava para os jardins cobertos de neve e para as quadras de tênis, cheio de cadeiras modernas e confortáveis, com um bar completo. Havia muitas outras salas para banquetes, bailes, jantares, jogos, e sauna em outras partes deste edifício que ficava na melhor região de Teerã. O clube francês era o único clube de estrangeiros que ainda estava em funcionamento. O clube americano, com seu enorme complexo de diversões, campos de esporte e de beisebol, bem como os clubes britânico, alemão e muitos outros tinham sido fechados, seus bares e estoques de bebida destruídos.
— Meu Deus, isso é bom — disse McIver, com o vinho branco gelado livrando-o do cansaço. — Não conte a Gen que paramos aqui.
— Não é preciso, Mac, ela vai saber.
— Você tem razão, não faz mal. Consegui reservar lugar para jantar aqui esta noite. Custa os olhos da cara, mas vale a pena. Antes, só havia lugar em pé, a esta hora da noite... — Ele virou a cabeça ao ouvir uma gargalhada de algum francês do outro lado da sala. — Por um instante, pensei que fosse Jean-Luc. Parece que já se passaram anos desde a festa natalina que ele deu aqui. Eu me pergunto se algum dia teremos outra.
— É claro que sim — disse Gavallan, para animá-lo, preocupado porque o amigo parecia ter perdido toda a animação. — Não deixe aquele mulá entristecê-lo.
— Ele me deu arrepios. E Armstrong também, pensando bem. E Talbot. Mas você tem razão, Andy, não devo deixar isso me abater. Estamos em melhor situação do que estávamos há dois dias atrás... — Mais risadas o distraíram e ele começou a pensar em todas as vezes que tinha se divertido ali com Genny, Pettikin e Lochart... não vou pensar nele agora... e com todos os outros pilotos e seus muitos amigos, ingleses, americanos, iranianos. Todos tinham partido, a maioria deles. Costumava ser assim: "Gen, vamos até o clube francês, as finais de tênis são hoje à tarde"... Ou: "Valik está dando um coquetel, a partir das oito horas, no clube de oficiais iranianos"... Ou: "Há um jogo de pólo, um jogo de beisebol, uma competição de natação, uma competição de esqui"... Ou: "Sinto muito, este fim-de-semana nós não podemos, vamos para a casa do embaixador, no Cáspio"... Ou: "Eu adoraria, mas Genny não pode ir, ela está comprando tapetes em Isfahan"...
— É que nós tínhamos tanta coisa para fazer aqui, Andy, a vida social era a melhor possível, quanto a isso não há dúvida. Agora é duro ficar só tentando entrar em contato com os nossos operadores.
— Mac — disse bondosamente —, responda francamente: você quer sair do Irã e deixar uma outra pessoa assumir?
— Meu Deus, onde você foi buscar essa idéia? Não, absolutamente. Só porque eu estava um pouco deprimido você pensou que... Meu Deus, não — ele disse, mas sua mente foi subitamente sacudida pela mesma indagação, impensável há alguns dias atrás: você está perdendo a força de vontade, o controle, a necessidade de seguir em frente. Está na hora de largar? Não sei, pensou, dolorosamente abalado pela verdade, mas seu rosto sorriu. — Está tudo bem, Andy. Nada que não possamos resolver.
— Ótimo. Desculpe, espero que não tenha se importado com a pergunta. Acho que me senti encorajado pelo mulá. A não ser quando ele falou a respeito "dos nossos aparelhos iranianos".
— A verdade é que Valik e os sócios agiram como se os aparelhos fossem deles desde a assinatura do contrato.
— Graças a Deus é um contrato britânico, que vigora sob leis britânicas. — Gavallan olhou por sobre o ombro de McIver e arregalou os olhos. A moça que estava entrando na sala tinha vinte e tantos anos, cabelos e olhos escuros e era estonteante. McIver seguiu-lhe o olhar, animou-se e levantou-se.
— Alô, Sayada — disse, acenando para ela. — Posso apresentar-lhe Andrew Gavallan? Andy, esta é Sayada Bertolin, uma amiga de Jean-Luc. Você gostaria de se sentar conosco?
— Obrigada, Mac, mas não posso, só vim aqui para jogar squash com uma amiga. Você está ótimo. Prazer em conhecê-lo, sr. Gavallan. — Ela estendeu a mão para ele. — Sinto muito, tenho que correr, dê lembranças a Genny.
— O mesmo, garçom, por favor — disse Gavallan, e tornaram a sentar-se. — Mac, aqui entre nós, essa beldade me deixou fraco.
— Geralmente é o contrário. — McIver riu. — Ela é muito popular, trabalha na embaixada do Kuwait, é libanesa e Jean-Luc está enfeitiçado.
— E não é para menos... — O sorriso de Gavallan murchou. Robert Armstrong estava entrando pela porta do lado oposto, com um iraniano alto, de feições marcadas, de uns cinqüenta anos. Ele viu Gavallan, cumprimentou-o rapidamente e continuou a conversar, dirigindo-se para o andar de cima onde havia outras salas. — Que diabo será que esse homem... — Gavallan parou, lembrando-se de repente de quem ele era. — Robert Armstrong, superintendente-chefe da Scotland Yard em Kowloon, é isto que ele é, ou foi!
— Scotland Yard? Você tem certeza?
— Tenho, Scotland Yard ou Departamento Especial... espere um minuto... ele, sim, está certo, ele era amigo de Ian, foi lá que eu o conheci, na Casa Grande da montanha, não nas corridas, embora eu possa tê-lo visto lá também com Ian. Se me lembro bem, foi na noite em que Quillan Gornt chegou como um convidado indesejável... não consigo me lembrar exatamente, mas acho que era a festa de aniversário de casamento de Ian e Penélope, pouco antes de eu sair de Hong Kong... meu Deus, isto foi há quase 16 anos, não admira que eu não me lembrasse dele.
— Tive a sensação de que ele se lembrou de você no momento em que nos encontramos no aeroporto ontem.
— Eu também. — Eles terminaram os drinques e saíram, ambos estranhamente inquietos.
UNIVERSIDADE DE TEERÃ: 19:32H. O comício de mais de mil estudantes esquerdistas no pátio quadrangular estava barulhento e perigoso, com facções demais, fanáticos demais e armas demais. Estava frio e úmido, ainda não havia escurecido, mas algumas luzes e tochas já brilhavam no lusco-fusco.
Rakoczy estava atrás, misturado no meio da multidão, vestido como os outros, parecendo-se com eles, embora agora o seu disfarce tivesse mudado e ele não fosse mais nem Smith nem Fedor Rakoczy, o muçulmano russo, o simpatizante islâmico-marxista, mas, aqui em Teerã, tivesse virado Dimitri Yazernov, representante soviético no Comitê Central do Tudeh — um papel que ele assumia de vez em quando nos últimos anos. Estava em pé num dos cantos do pátio com cinco dos líderes estudantis do Tudeh, ao vento cortante, com o rifle pendurado no ombro, armado e atento, e esperava pelo primeiro tiro.
— A qualquer momento agora — disse baixinho.
— Dimitri, quem eu pego primeiro? — perguntou um dos líderes, nervoso.
— O mujhadin, aquele filho da mãe, aquele que está ali — disse, calmamente, apontando para um homem de barba negra, muito mais velho do que os outros. — Não tenha pressa, Farmad, e siga o meu comando. Ele é profissional e pertence à OLP.
Os outros o encararam, perplexos.
— Por que ele, se pertence à OLP? — perguntou Farmad. Ele era atarracado, quase disforme, com uma cabeça grande e olhos pequenos e inteligentes. — A OLP tem sido nossa amiga durante todos esses anos, dando-nos treinamento, apoio e armas.
— Porque agora a OLP vai apoiar Khomeini — explicou pacientemente. — Khomeini não convidou Arafat para vir aqui na próxima semana? Ele não deu as instalações da missão israelense para a OLP? A OLP pode fornecer todos os técnicos que Bazargan e Khomeini precisam para substituir os israelenses e os americanos, especialmente nos campos de petróleo. Você não quer ver Khomeini forte, quer?
— Não, mas a OLP tem sido...
— O Irã não é a Palestina. Os palestinos devem ficar na Palestina. Vocês venceram a revolução. Por que entregar a vitória para os estrangeiros?
— Mas a OLP tem sido nossa aliada — insistiu Farmad, e Rakoczy ficou satisfeito de perceber-lhe os defeitos antes que esse homem obtivesse algum poder.
— Os aliados que se tornam inimigos não têm nenhum valor. Lembre-se do objetivo.
— Eu concordo com o camarada Dimitri — disse um outro, com a voz tensa, os olhos frios e muito duros. — Nós não queremos a OLP dando ordens aqui. Se você não quiser pegá-lo, Farmad, eu o farei. Todos eles, e todos os cães Faixas Verdes também.
— Não se pode confiar na OLP. — disse Rakoczy, continuando a mesma lição, plantando as mesmas sementes. — Olhe como eles vacilaram e mudaram de posição mesmo em casa, num momento dizendo que eram marxistas, no outro que eram muçulmanos, no outro flertando com o arquitraidor Sadat, depois o atacando. Nós temos documentos que provam isso — acrescentou, com a informação truncada encaixando-se perfeitamente —, e documentos que provam que eles planejam assassinar o rei Hussein e tomar a Jordânia, e fazer a paz em separado com Israel e com a América. Eles mantêm encontros secretos com a CIA e com Israel. Eles não são verdadeiramente anti-Israel...
Ah, Israel, ele pensava, enquanto continuava a lição bem preparada, o quanto você é importante para a mãe Rússia, tão bem localizado ali no meio do caldeirão, uma maneira sempre garantida de enfurecer todos os muçulmanos, especialmente os xeques milionários do petróleo, uma forma garantida de jogar todos os muçulmanos contra todos os cristãos, nossos maiores inimigos — seus aliados americanos, ingleses e franceses — e assim restringir o seu poder e mantê-los, e a todo o Ocidente, desequilibrados, enquanto conquistamos prêmios vitais — o Irã este ano, o Afeganistão também, a Nicarágua no próximo ano, depois o Panamá e o resto, sempre com o mesmo plano: apoderar-nos do estreito de Ormuz, do Panamá, de Constantinopla, e do cofre dos tesouros da África do Sul. Ah, Israel, você é o nosso coringa do jogo mundial de Monopólio. Mas nunca para ser descartado ou vendido! Nós não o abandonaremos! Oh, nós deixaremos que você perca muitas batalhas, mas nunca a guerra, permitiremos que você passe fome, mas não que morra, permitiremos que seus compatriotas banqueiros nos financiem e portanto financiem sua própria destruição. Nós o apoiaremos para sangrar a América até a morte, fortaleceremos os nossos inimigos — mas não demais — e assistiremos à sua devastação. Mas não se preocupe, nunca deixaremos que você desapareça. Oh, não! Nunca. Você é valioso demais.
— Os membros da OLP são arrogantes e cheios de si — um estudante alto disse soturnamente —, e nunca são educados, nem têm noção da importância do Irã no mundo e não conhecem nada do nosso passado.
— É verdade! Eles são camponeses e têm agido como parasitas por todo o Oriente Médio e o nosso Golfo, roubando os melhores empregos.
— Sim — um outro concordou. — Eles são piores que os judeus...
Rakoczy riu consigo mesmo. Ele gostava muito do seu trabalho, gostava de trabalhar com estudantes universitários — sempre um campo fértil — gostava de ensinar. Mas é isso o que eu sou, pensou satisfeito, um professor de terrorismo, de poder e de como tomar o poder. Talvez eu seja mais como um agricultor: planto a semente, alimento-a, protejo-a e depois colho os frutos, trabalhando em qualquer hora e em qualquer estação, como devem fazer os agricultores. Alguns anos são bons e alguns são ruins, mas a cada ano eu avanço um pouco, ganho mais experiência, fico conhecendo um pouco melhor a terra, cada vez mais paciente — primavera verão outono inverno — sempre a mesma terra, o Irã, sempre com o mesmo objetivo: na melhor das hipóteses, o Irã se transformar em solo russo, na pior, transformar-se num satélite russo, para proteger a sagrada terra da Rússia. Com o nosso pé no estreito de Ormuz...
Ah, pensou, com fervor religioso, se eu pudesse dar o Irã para a mãe Rússia, minha vida não teria sido vivida em vão.
O Ocidente merece perder, particularmente os americanos. São tão imbecis, tão egocêntricos, mas principalmente tão estúpidos. É inconcebível que este Carter não enxergue o valor de Ormuz em geral e do Irã em particular e a catástrofe que será para o Ocidente a sua perda. Mas os fatos estão aí: para todos os efeitos ele nos deu o Irã.
Rakoczy recordou o choque de incredulidade que sentiu quando os seus contatos em Washington murmuraram que Carter abandonaria o xá. Ah, que aliado Carter foi para nós. Se acreditasse em Deus, eu rezaria: Deus é Grande, Deus é Grande, proteja o nosso melhor aliado, o presidente amendoim, e permita que ele consiga se reeleger! Com ele reeleito, nós conquistaremos a América e dominaremos o mundo! Deus é Grande, Deus é...
De repente, ele sentiu um calafrio. Fingia ser muçulmano há tanto tempo que às vezes o disfarce virava o seu verdadeiro eu, e ele começava a se questionar e a ter dúvidas.
Eu ainda sou Igor Mzytryk, capitão da KGB, casado com a minha querida Delaurah, minha linda armênia, que está esperando por mim em casa, em Tbilisi? Ela estará em casa, ela que, secretamente, acredita em Deus — o Deus dos cristãos, que é o mesmo Deus dos muçulmanos e dos judeus?
Deus. Deus que tem mil nomes. Existirá um Deus?
Não há nenhum Deus, disse a si mesmo como uma ladainha, e guardou de volta esse pensamento no seu compartimento e se concentrou na batalha que estava por acontecer.
Em volta deles, a tensão estava crescendo no meio da massa estudantil, com gritos zangados de todos os lados:
— Nós não derramamos o nosso sangue para que os mulás ficassem com todo o poder! Unam-se, irmãos e irmãs! Unam-se sob a divisa do Tudeh...
— Abaixo o Tudeh! Unam-se pela causa sagrada islãmico-marxista, nós, mujhadins, derramamos o nosso sangue e somos os mártires do imã Ali, Senhor dos Mártires, e de Lenin...
— Abaixo os mulás e Khomeini, arquitraidor do Irã...
Grandes aplausos acompanhavam esses gritos e outros juntavam-se a eles, então aos poucos, mais uma vez, a palavra que prevalecia era:
— Unam-se, irmãos e irmãs, unam-se aos verdadeiros líderes da revolução, o Tudeh, unam-se para proteger o...
Rakoczy observou a multidão criticamente. Ela ainda estava fragmentada, amorfa, não era ainda uma massa que pudesse ser comandada e usada como uma arma. Alguns espectadores, islâmicos, observavam com graus variados de descontentamento ou raiva. Os poucos moderados balançavam a cabeça e se afastavam, deixando o palco para a grande maioria que estava profundamente comprometida e era anti-Khomeini.
Em volta deles, os edifícios eram altos, de tijolos, a universidade tinha sido construída pelo Reza Xá na década de 30. Há cinco anos, Rakoczy passara algum tempo ali, fingindo ser natural do Azerbeijão, embora os membros do Tudeh o conhecessem como Dimitri Yazernov e soubessem que ele fora enviado — continuando um modelo — para organizar células estudantis. Desde o início, a universidade foi sempre um lugar de oposição, antixá, embora o Muhammad Xá, mais do que qualquer monarca na história da Pérsia, tivesse dado todo o apoio à educação. Os estudantes de Teerã tinham sido a vanguarda da rebelião, muito antes de Khomeini ter-se transformado no seu pólo aglutinador.
Sem Khomeini, nós nunca teríamos conseguido, pensou. Khomeini foi a chama em torno da qual todos nós pudemos nos unir para tirar o xá do trono e expulsar os Estados Unidos. Ele não é nem senil nem fanático como muitos dizem, mas um líder impiedoso, com um plano perigosamente claro, um enorme carisma e um enorme poder entre os xiitas. E agora está na hora dele se juntar ao Deus que nunca existiu.
Rakoczy riu de repente.
— O que foi? — perguntou Farmad.
— Eu só estava pensando no que Khomeini e todos os mulás vão dizer quando descobrirem que não existe e que nunca existiu nenhum Deus. Que não existe nem céu, nem inferno, nem huris e que tudo isso não passa de um mito.
Os outros riram também. Menos um deles. Ibrahim Kyabi. Não havia mais nenhuma alegria nele, só o desejo de vingança. Quando ele fora em casa na véspera, tinha achado sua casa em polvorosa, sua mãe prostrada, chorando, seus irmãos e irmãs desesperados. Acabara de chegar a notícia de que seu pai, engenheiro, tinha sido assassinado por guardas islâmicos do lado de fora do QG da IranOil em Ahwaz e que seu corpo fora abandonado aos abutres.
— Por que razão? — ele gritara.
— Por... por crimes contra o Islã — disse seu tio, Dewar Kyabi, que trouxera a terrível notícia, através das lágrimas. — Foi isso que eles nos disseram... os seus assassinos. Eles eram de Abadan, fanáticos, quase todos analfabetos, e nos disseram que ele era um traidor vendido aos americanos, que durante anos ele tinha colaborado com os inimigos do Islã, ajudando-os a roubar o nosso petróleo, o...
— Mentira, tudo mentira — gritara Ibrahim. — Papai era anti-xá, um patriota, um crente! Quem são esses cães? Quem? Eu vou queimá-los e a seus pais. Como eles se chamam?
— Foi a Vontade de Deus, Ibrahim. Insha'Allah Oh, meu pobre irmão! A Vontade de Deus...
— Não existe nenhum Deus!
Os outros tinham olhado para ele, chocados. Era a primeira vez que Ibrahim exprimia um pensamento que vinha sendo construído há anos, alimentado por colegas que voltavam do estrangeiro, amigos da universidade, por alguns dos professores que nunca tinham dito isso abertamente, apenas encorajado-os a questionar tudo.
— Insha'Allah é para os idiotas — ele dissera —, uma blasfêmia supersticiosa que serve de proteção para os idiotas.
— Você não deve dizer isso, meu filho! — exclamara sua mãe, assustada. — Vá até a mesquita, peça perdão a Deus. O fato de seu pai estar morto é a Vontade de Deus, nada mais. Vá até a mesquita.
— Eu irei — ele disse, mas no seu coração sabia que sua vida tinha mudado. Nenhum Deus poderia ter permitido que isso acontecesse. — Quem eram os homens, tio? Descreva-os.
— Eles eram comuns, Ibrahim, como eu já lhe disse, mais moços do que você, a maioria deles. Não havia nenhum líder ou mulá com eles, embora houvesse um no helicóptero dos estrangeiros que veio de Bandar Delam. Mas o meu pobre irmão morreu maldizendo Khomeini; se ao menos ele não tivesse voltado no helicóptero dos estrangeiros, se ao menos... não importa, Insha'Allah, eles estavam esperando por ele de qualquer jeito
— Havia um mulá no helicóptero?
— Sim, havia.
— Você vai à mesquita, Ibrahim? — Sua mãe tinha tornado a perguntar.
— Sim — ele tinha respondido, a primeira mentira que lhe dizia. Ele não demorara a encontrar os líderes universitários do Tudeh e Dimitri Yazernov, para jurar fidelidade, conseguir uma metralhadora e, acima de tudo, pedir-lhes para descobrir o nome do mulá que estava no helicóptero de Bandar Delam. E agora estava ali esperando, desejando vingança, com a alma gritando contra o ultraje cometido contra seu pai em nome do falso Deus.
— Dimitri, vamos começar! — disse, sua fúria espicaçada pela gritaria da multidão.
— Nós temos que esperar, Ibrahim — disse delicadamente Rakoczy, muito satisfeito por ter o jovem com eles. — Não se esqueça de que a multidão não passa de um meio para um determinado fim. Lembre-se do plano! — Quando ele o relatara, há uma hora atrás, eles tinham ficado estarrecidos.
— Atacar a embaixada americana?
— Sim — dissera calmamente —, um ataque rápido, entrar e sair, amanhã ou depois. Esta noite, o comício vai se transformar numa batalha. A embaixada fica a pouco mais de um quilômetro de distância. Vai ser fácil mandar a multidão enfurecida avançar naquela direção. Que disfarce pode ser mais perfeito para um ataque do que um tumulto? Nós deixamos os mujhadins e os fedayins lutarem contra os guardas islâmicos e matarem-se uns aos outros enquanto tomamos a iniciativa. Esta noite vamos plantar mais sementes. Amanhã ou depois atacaremos a embaixada dos Estados Unidos.
— Mas isso é impossível, Dimitri, impossível.
— É fácil. É só um ataque, não uma tentativa de tomar a embaixada, isso virá mais tarde. Um ataque será uma coisa inesperada, simples de executar. Pode-se prender facilmente o embaixador e todas as outras pessoas durante uma hora mais ou menos, enquanto se saqueia a embaixada. Os americanos não têm capacidade de resistência. Esta é a chave para chegar a eles! Aqui estão as plantas do edifício e o número de fuzileiros e eu estarei lá para ajudar. A ação de vocês será importantíssima. Ela irá para as manchetes mundiais e deixará Khomeini e Bazargan, e principalmente os americanos, numa situação terrivelmente embaraçosa. Não se esqueçam de quem é o verdadeiro inimigo e que agora vocês têm que agir depressa para tirar a iniciativa de Khomeini...
Tinha sido fácil convencê-los. Será fácil criar a oportunidade, ele pensou. E será fácil ir diretamente para o escritório da CIA no porão, e para a sala de rádio, explodir e limpar o cofre e limpá-lo de todos os documentos e livros de códigos, depois subir as escadas dos fundos até o segundo andar, virar à esquerda, ir até o terceiro quarto à esquerda, o quarto do embaixador, e explodir o cofre que fica atrás do quadro pendurado sobre a cama. Súbito, rápido e violento — se não houver nenhuma oposição.
— Dimitri! Olhe!
Rakoczy virou-se rapidamente. Centenas de jovens vinham descendo a rua, com Faixas Verdes e mulás na frente. Imediatamente, Rakoczy urrou:
— Morte a Khomeini! — e deu uma rajada de tiros para o ar. Aqueles tiros inesperados fizeram com que todo mundo ficasse frenético, com gritos e tiros por toda parte, e a multidão começou a se espalhar, tropeçando uns nos outros e gritando.
Antes que pudesse detê-lo, viu Ibrahim mirar nos Faixas Verdes que se aproximavam e atirar. Alguns homens da fila da frente caíram, um urro de raiva explodiu no meio deles e começaram também a atirar naquela direção. Ele mergulhou no chão, praguejando. A torrente de balas não o atingiu, mas pegou Farmad e outros que estavam perto, mas não Ibrahim nem os outros três líderes do Tudeh. Ele gritou e todos se atiraram no chão, enquanto estudantes apavorados abriam fogo com carabinas e pistolas.
Muitos ficaram feridos antes que o grande mujhadin que Rakoczy tinha marcado para ser executado juntasse seus homens e atacasse os guardas islâmicos, fazendo-os recuar. Imediatamente, outros vieram em sua ajuda e o recuo se transformou em fuga, os estudantes soltaram um urro triunfante e o comício se transformou numa batalha.
Rakoczy agarrou Ibrahim, que já ia começar a atirar a esmo.
— Siga-me — ordenou, e foi empurrando Ibrahim e os outros para o abrigo do prédio, depois, quando se certificou de que estavam todos com ele, saiu correndo numa retirada desesperada.
Numa encruzilhada no meio dos jardins cobertos de neve, ele parou um instante para recobrar o fôlego. O vento estava gelado e a noite já tinha caído.
— E Farmad? — perguntou Ibrahim, sem fôlego. — Ele foi ferido!
— Não — respondeu —, ele estava morrendo. Vamos!
Mais uma vez ele disparou pelo jardim, continuou pela rua que ficava perto da faculdade de Ciências, atravessou o estacionamento e só parou quando o ruído do tumulto ficou distante. Sentia uma pontada do lado e quase não conseguia respirar. Quando conseguiu falar, disse:
— Não se preocupem com nada. Voltem para suas casas ou para seus dormitórios. Façam com que todos fiquem preparados para o ataque amanhã ou depois. O comitê dará a ordem. — E se afastou no meio da noite.
NO APARTAMENTO DE LOCHART: 19:30H. Xarazade estava deitada numa banheira de espuma, com a cabeça enfiada num travesseiro à prova d'água, os olhos fechados, com uma toalha em volta da cabeça.
— Oh, Azadeh, minha querida — disse sonolenta, com o suor escorrendo pela testa —, estou tão feliz.
Azadeh também estava na banheira e estava deitada com a cabeça para o outro lado, desfrutando do calor, da intimidade, da água docemente perfumada e do conforto. Seus longos cabelos também estavam envoltos por uma toalha branca e a banheira era grande, funda e confortável. Mas ainda havia círculos escuros sob os seus olhos, e ela não conseguia livrar-se dos terrores da véspera na estrada e no helicóptero. Lá fora, a noite tinha chegado. Tiros soavam ao longe. Nenhuma das duas deu atenção a eles.
— Eu gostaria que Erikki voltasse — disse Azadeh.
— Ele não vai demorar, ainda há muito tempo, querida. O jantar não será antes das nove, temos quase duas horas para nos aprontarmos. — Xarazade abriu os olhos e pôs a mão na coxa esguia de Azadeh, feliz em tocá-la. — Não se preocupe, querida Azadeh, ele vai voltar logo, o seu gigante de cabelos vermelhos. E não se esqueça de que vou passar a noite com os meus pais, assim vocês poderão andar nus por aí a noite inteira! Desfrute do nosso banho, alegre-se e desmaie quando ele voltar. — Elas riram juntas.
— Está tudo maravilhoso agora, você está em segurança, nós todos estamos seguros, o Irã está salvo. Com a ajuda de Deus o imã venceu e o Irã está livre e salvo.
— Eu gostaria de poder acreditar nisso, gostaria de poder acreditar como você acredita — disse Azadeh. — Não consigo explicar o quanto aquelas pessoas lá na estrada eram horríveis. Era como se eu estivesse sendo sufocada pelo ódio delas. Por que elas odiariam, a mim e ao Erikki? O que fizemos contra elas? Nada, e no entanto elas nos odiavam.
— Não pense mais nisso, querida. — Xarazade abafou um bocejo.
— Os esquerdistas são todos loucos, dizendo-se muçulmanos e ao mesmo tempo marxistas. Eles são contra Deus e portanto amaldiçoados. Os camponeses? Eles são ignorantes, como você sabe muito bem, e simplórios na maioria. Não se preocupe. Isso ficou para trás, agora tudo vai melhorar, você vai ver.
— Eu espero, oh, como espero que você tenha razão. Eu não quero que melhore, só quero que volte a ser como era, como sempre foi.
— Oh, voltará — Xarazade sentia-se tão bem, a água estava tão agradável, tão macia, como um útero. Ah, ela pensou, só faltam três dias para que eu tenha certeza e então Tommy diz a papai que é claro que ele deseja filhos e então, no dia seguinte, o grande dia, eu vou ter certeza, embora já tenha certeza agora. Não fui sempre tão regular? Então poderei dar a Tommy o meu presente de Deus e ele ficará muito orgulhoso. — O imã faz o trabalho de Deus. Como pode deixar de ser bom?
— Eu não sei, Xarazade, mas na nossa história os mulás nunca foram dignos de confiança. Eram apenas parasitas dos camponeses.
— Ah, mas agora é diferente — disse Xarazade, sem querer realmente discutir questões assim tão sérias. — Agora nós temos um líder de verdade. Agora ele tem o Irã sob controle pela primeira vez. Ele não é o mais piedoso dos homens, o que mais conhece o Islã e a lei? Ele não faz o trabalho de Deus? Ele não conseguiu o impossível, expulsando o xá e sua terrível corrupção, impedindo os generais de darem um golpe aliados aos americanos? Papai diz que nós estamos mais seguros agora do que jamais estivemos.
— Estamos mesmo? — Azadeh lembrou-se de Rakoczy no helicóptero e do que ele dissera acerca de Khomeini e do retrocesso na história, e ela sabia que muitas vezes ele falara a verdade, e ela o atacara, odiando-o, desejando que ele estivesse morto, pois é claro que ele era um daqueles que usariam os imbecis dos mulás para escravizar todo mundo. — Você quer ser governada por leis islâmicas do tempo do Profeta, de quase mil e quinhentos anos? Ser forçada a usar o chador, perder seu direito de votar, tão duro de conseguir, de trabalhar, de ser tratada como igual?
— Eu não quero votar nem trabalhar nem ser igual. Como pode uma mulher ser igual a um homem? Eu só quero ser uma boa esposa para Tommy, e no Irã, eu prefiro usar o chador na rua. — Delicadamente, Xarazade disfarçou outro bocejo, sonolento por causa do calor. — Insha'Allah, Azadeh querida. É claro que tudo será como antes, mas papai diz que vai ser melhor porque agora nós somos donos de nós mesmos, da nossa terra, do nosso petróleo, de tudo o que existe na terra. Não haverá nenhum general nem político estrangeiro para nos arruinar, e com o malvado xá fora daqui, nós todos viveremos felizes para sempre, você com o seu Erikki, eu com Tommy e muitos e muitos filhos. Como poderia ser diferente? Deus está com o imã e o imã está conosco. Nós temos muita sorte. — Ela sorriu e abraçou afetuosamente a perna da amiga. — Estou tão contente em ter você aqui, Azadeh. Faz tanto tempo que você não vinha a Teerã!
— Sim. — Elas eram amigas há muitos anos. Primeiro na Suíça, onde tinham se conhecido no colégio, embora Xarazade só tivesse ficado um período, infeliz por estar longe da família e do Irã, depois, mais tarde, na universidade, em Teerã. E agora, há pouco mais de um ano, como ambas tinham se casado com estrangeiros que trabalhavam na mesma companhia, elas se aproximaram ainda mais, como duas irmãs, ajudando-se mutuamente a se adaptar às esquisitices estrangeiras:
— Às vezes eu não consigo entender o Tommy, Azadeh — dissera Xarazade chorando no começo. — Ele gosta de ficar sozinho, sozinho mesmo, só eu e ele, a casa vazia, até mesmo sem os empregados. Ele me disse até que gosta de ficar só, lendo, sem ninguém por perto, sem a família, sem os filhos, sem amigos, sem conversar. Oh, às vezes é horrível.
— Erikki é igualzinho — dissera Azadeh. — Os estrangeiros não são como nós. Eles são muito estranhos. Eu gosto de passar dias com amigos, crianças, família, mas o Erikki não. É bom que Erikki e Tommy trabalhem durante o dia. Você tem mais sorte, o Tommy fica fora duas semanas de cada vez e você pode agir normalmente. Aliás, outra coisa, Xarazade, eu levei meses para me acostumar a dormir numa cama e...
— Eu nunca consegui! Oh, fica tão acima do chão, tão fácil de se cair, sempre com uma enorme depressão do lado deles, de modo que a gente fica muito desconfortável e acorda com dor nas costas. Uma cama é horrível, comparada com almofadas macias em lindos tapetes sobre o chão, tão mais confortável e civilizado.
— Sim, mas Erikki não quer usar almofadas nem tapetes. Ele insiste numa cama. Ele simplesmente não quer mais tentar. Às vezes, é um alívio quando ele está fora.
— Oh, nós agora dormimos direito, Azadeh. Eu acabei com aquela besteira de uma cama ocidental depois do primeiro mês.
— Como você conseguiu?
— Oh, eu suspirava a noite inteira e não deixava o pobrezinho dormir. Depois eu dormia de dia, para poder estar descansada de novo para suspirar a noite inteira. — Xarazade rira, encantada. — Depois de sete noites, o pobrezinho cedeu, dormiu como um bebê por três noites seguidas da maneira correta, e agora ele sempre dorme como uma pessoa civilizada. Até quando está em Zagros! Por que você não experimenta? Eu garanto que você vai conseguir, querida, especialmente se também reclamar um pouco que a cama lhe deu dor nas costas e que é claro que você ainda adora fazer amor mas que ele, por favor, tenha cuidado.
— O meu Erikki é mais esperto do que o seu Tommy — Azadeh riu. — Quando o Erikki experimentou dormir nas almofadas em cima do tapete, foi ele que suspirou a noite inteira e ficou se virando de um lado para o outro e não me deixou dormir. Fiquei tão exausta que depois de três noites passei a gostar da cama. Quando visito minha família, eu durmo civilizadamente, embora quando Erikki está no palácio a gente use uma cama. Sabe querida, há outro problema: eu adoro o meu Erikki, mas às vezes ele é tão grosseiro que eu quase morro. Ele fica repetindo 'sim' e 'não' quando pergunto alguma coisa. Como se pode conversar só com sim e não?
Ela sorriu para si mesma. Sim, é muito difícil viver com ele, mas viver sem ele agora é inimaginável. Todo o seu amor, o seu bom humor, o seu tamanho e a sua força, e sempre fazendo o que eu quero, só que com muita facilidade, de modo que eu tenho pouca chance de afiar as minhas garras.
— Nós duas temos muita sorte, Xarazade, não é verdade?
— Oh, sim, querida. Você pode ficar aqui uma ou duas semanas? Mesmo que Erikki tenha que voltar, você fica, por favor?
— Eu gostaria de ficar. Quando Erikki voltar... talvez eu peça a ele. Xarazade se mexeu dentro d'água, fazendo a espuma subir sobre os seios, soprando-a das mãos.
— Mac disse que eles viriam direto do aeroporto para cá, se estivessem atrasados. Genny vem direto do apartamento, mas não antes das nove. Eu também convidei Paula, a garota italiana, mas não para Nogger, para Charlie. — Ela riu. — Charlie quase desmaia quando ela o olha.
— Charlie Pettikin? Oh, mas isso é maravilhoso. Então temos que ajudá-lo. Nós devemos tanto a ele! Vamos ajudá-lo a enfeitiçar a italiana sexy.
— Ótimo! Vamos planejar como dar Paula a ele.
— Como amante ou como esposa?
— Amante. Bem... deixe-me pensar. Quantos anos ela tem? Deve ter no mínimo 27. Você acha que ela daria uma boa esposa para ele? Ele devia ter uma esposa. Todas as garotas que Tommy e eu mostramos discretamente para ele, apenas ele sorri e sacode o ombro. Eu trouxe até a minha prima em terceiro grau que tem 15 anos, achando que isso iria tentá-lo, mas que nada. Oh, que ótimo, agora nós temos algo para planejar. Temos bastante tempo para planejar, e para nos vestirmos e nos aprontarmos. E eu tenho uns vestidos lindos para você escolher.
— É tão estranho, Xarazade, não ter nada. Nada. Nem dinheiro, nem documentos... — Por um momento, Azadeh viu-se de volta ao Land Rover, perto do bloqueio da estrada, e diante dela estava o mujhadin gordo que roubara seus documentos, com sua metralhadora atirando enquanto Erikki o jogava de encontro ao outro carro, esmagando-o como a uma barata, com sangue e porcaria saindo-lhe da boca. — Não ter nada — disse, tentando não lembrar —, nem mesmo um batom.
— Não faz mal, eu tenho tudo isso aos montes. E Tommy vai ficar tão contente em ter você e Erikki aqui. Ele não gosta que eu fique sozinha. Pobre querida, não se preocupe. Agora você está em segurança.
Eu não me sinto nada segura, pensou Azadeh, odiando o medo, que era completamente desconhecido para ela e que, mesmo agora, parecia tirar o calor da água. Não me sinto segura desde que deixamos Rakoczy em terra e mesmo então durara apenas um momento, o êxtase de escapar daquele demônio: eu, Erikki e Charlie ilesos. Mesmo a alegria de achar um carro com gasolina na pequena pista não me livrou do medo. Detesto sentir medo.
Ela se enfiou mais na banheira, depois estendeu o braço e abriu a torneira de água quente, fazendo a água circular.
— Está tão bom aqui — murmurou Xarazade, sentindo a espuma densa e a sensualidade do contato com a água. — Estou muito contente que você queira ficar.
Na noite anterior, quando Azadeh, Erikki e Charlie chegaram ao apartamento de McIver, já estava escuro. Tinham encontrado Gavallan lá, de modo que não havia lugar para eles. Azadeh estava assustada demais para ficar no apartamento do pai, mesmo estando junto com Erikki. Então perguntara a Xarazade se podiam ficar com ela até Lochart voltar. Xarazade ficara encantada, feliz por ter companhia. Tudo começara a ficar bem de novo, mas, durante o jantar, ouviram-se tiros por perto, que a fizeram saltar.
— Não precisa se preocupar, Azadeh — dissera McIver. — São só uns arruaceiros, provavelmente comemorando. Você não ouviu Khomeini ordenar que depusessem todas as armas? — Todo mundo concordara e Xarazade afirmara:
— O imã será obedecido. — Sempre se referindo a Khomeini como 'imã', associando-o, assim, aos 12 imãs dos xiitas, os descendentes diretos de Maomé, o Profeta, quase uma divindade, certamente um sacrilégio: — Mas o que o imã conseguiu foi quase um milagre, não foi? — Xarazade tinha dito isso com sua cativante inocência. — Não há dúvida de que nossa liberdade é uma dádiva de Deus.
Depois estava tão bom na cama com Erikki, mas ele estava estranho e preocupado, não como o Erikki que ela conhecia.
— O que há de errado, o quê?
— Nada, Azadeh, nada. Amanhã eu vou pensar num plano. Não houve tempo esta noite para conversar com Mac ou Gavallan. Amanhã vamos planejar. Agora durma, querida.
Duas vezes durante a noite ela acordara com terríveis pesadelos, tremendo e gritando por Erikki.
— Está tudo bem, Azadeh, eu estou aqui. Foi só um sonho, agora você está em segurança.
— Não, não, não estamos, eu não me sinto segura, Erikki. O que está acontecendo comigo? Vamos voltar para Tabriz, ou então vamos embora para longe dessas pessoas horríveis.
De manhã, Erikki deixara-a para se encontrar com McIver e Gavallan, e ela dormira mais um pouco, mas isso não fez com que ela se sentisse mais descansada. Tinha passado o resto da manhã pensando ou ouvindo as novidades de Xarazade a respeito da sua ida a Galeg Morghi, ou escutando os últimos boatos contados pelos empregados: mais generais fuzilados, novas prisões, a multidão invadindo as prisões, hotéis ocidentais incendiados ou atacados. Boatos de que Bazargan tomara as rédeas do governo, de que os mujhadins tinham-se rebelado no sul, de que os curdos se rebelaram no norte, que o Azerbeijão declarara-se independente, que as tribos nômades dos kash kai e dos bakhtiaris queriam livrar-se do jugo de Teerã; que todo mundo estava depondo as armas ou que ninguém depusera as armas. Rumores de que o primeiro-ministro Bakhtiar fora capturado e morto ou de que escapara para as montanhas, para a Turquia ou para a América; de que o presidente Carter estava preparando uma invasão ou de que Carter reconhecera o governo de Khomeini; de que havia tropas soviéticas na fronteira, prontas para invadir ou de que Brejnev estava vindo para Teerã para cumprimentar Khomeini; de que o xá iria pousar no Curdistão, apoiado pelas tropas americanas, ou de que ele fora morto no exílio.
Depois ela tinha ido almoçar com os pais de Xarazade na casa dos Bak-ravan, perto do bazar, mas só depois de Xarazade ter insistido para que usasse o chador, ela que odiava o chador e tudo o que ele representava. Mais rumores na enorme casa, mas lá eles eram favoráveis, não havia medo, mas uma confiança absoluta. Muita abundância, como sempre, exatamente como em sua própria casa, em Tabriz, com os empregados sorrindo, sentindo-se seguros e dando graças a Deus pela vitória. Jared Bakravan dissera a eles, jovialmente, que agora que o bazar ia ser reaberto, e todos os bancos estrangeiros fechados, os negócios voltariam a ser maravilhosos como eram antes das maléficas leis que o xá tinha instituído.
Depois do almoço, elas voltaram para o apartamento de Xarazade. A pé. Envoltas no chador. Não houvera qualquer problema e todos os homens trataram-nas com deferência. O bazar estava apinhado de gente, com pouca coisa para vender, embora cada comerciante anunciasse uma abundância de mercadorias prontas para serem embarcadas por caminhão, trem ou avião, dizendo que os portos estavam abarrotados de navios carregados de mercadorias. Nas ruas, milhares de pessoas andavam de um lado para o outro, o nome de Khomeini estava nos lábios de todo mundo, entoando Allah-u Akbarr, quase todos os homens e rapazes armados — mas nenhum velho. Em algumas áreas, Faixas Verdes, em vez da polícia, dirigiam o tráfego amadoristicamente, ou ficavam por ali, loucos por uma briga. Em outras áreas, havia a polícia, como sempre. Dois tanques passaram por elas, dirigidos por soldados, com montes de guardas e civis em cima, acenando para os pedestres que aplaudiam.
Mesmo assim, todo mundo estava tenso sob essa capa de alegria, principalmente as mulheres, enroladas em suas mortalhas. Num determinado momento, ao virarem uma esquina, viram um grupo de rapazes cercando uma mulher de cabelos escuros, vestida com roupas ocidentais, debochando dela, gritando insultos, fazendo gestos obscenos, muitos deles se exibindo, sacudindo os pênis para ela. A mulher tinha cerca de trinta anos, estava elegantemente vestida, com um casaco curto e uma saia, pernas e cabelos compridos e um pequeno chapéu. De repente, um homem abriu caminho no meio da multidão e juntou-se a ela, gritando que eles eram ingleses e que os deixassem em paz, mas os homens não lhe deram atenção, empurrando-o e concentrando-se na mulher. Ela estava apavorada.
Não havia nenhuma maneira de Xarazade e Azadeh contornarem a multidão, que crescia rapidamente, e elas se viram obrigadas a presenciar tudo, até que apareceu um mulá que disse à multidão para ir embora, e fez uma preleção para os dois estrangeiros sobre a necessidade de obedecerem aos costumes islâmicos. Quando, finalmente, chegaram em casa, estavam cansadas e se sentiam sujas. Tiraram a roupa e se atiraram na cama.
— Estou satisfeita de ter saído hoje — dissera Azadeh, com uma voz cansada, profundamente preocupada. — É melhor que nós, mulheres, organizemos um protesto antes que seja tarde demais. É melhor que marchemos pelas ruas, sem véu nem chador, para mostrarmos aos mulás o nosso ponto de vista: que não somos escravas, que temos direitos, e que usar o chador é uma coisa que depende de nós e não deles.
— Sim, vamos fazer isso! Afinal de contas, nós também ajudamos nesta vitória! — Xarazade bocejara, semi-adormecida. — Oh, eu estou tão cansada.
Aquela soneca tinha ajudado.
Azadeh observava preguiçosamente as bolhas de espuma estourando, a água agora mais quente, sentindo o cheiro adocicado e agradável do vapor. Ela se ergueu por um momento, alisando a espuma dos seios e braços.
— E curioso, Xarazade, mas eu fiquei contente por estar usando o chador hoje. Aqueles homens eram tão horríveis.
— Os homens nas ruas são sempre horríveis, querida Azadeh. — Xarazade abriu os olhos e observou-a, sua pele dourada brilhando, os seios orgulhosos. — Você é tão linda, querida Azadeh.
— Ah, obrigada, mas você é que é linda. — Azadeh pôs a mão no estômago da amiga e afagou-a. — Mamãezinha, hein?
— Oh, eu espero tanto que sim. — Xarazade suspirou, fechou os olhos e deixou-se embalar pelo calor. — Eu não consigo me imaginar como mãe. Vou saber daqui a três dias. Quando é que você e Erikki vão ter filhos?
— Daqui a um ou dois anos. — Azadeh manteve sua voz calma ao contar a mesma mentira que já tinha contado tantas vezes. Mas ela estava com muito medo de ser estéril, pois não usava anticoncepcionais desde o casamento e desejara, desde o começo, dar um filho a Erikki. Ela era perseguida sempre pelo mesmo pesadelo: de que o aborto tivesse acabado com qualquer possibilidade de ter filhos, por mais que o médico alemão a tranqüilizasse. Como pude ser tão burra?
Tão fácil. Tão apaixonada. Eu tinha apenas 17 anos e estava apaixonada, profundamente apaixonada. Não como agora, com Erikki, por quem daria de bom grado a minha vida. Com Erikki é de verdade e para sempre e gentil e apaixonado e seguro. Com o meu Johnny de olhos claros era como um sonho.
Ah, eu me pergunto onde Johnny estará agora, o que estará fazendo, tão alto e louro, com seus olhos azuis-acinzentados e tão britânico. Com quem terá se casado? Quantos corações mais você partiu, meu querido?
Naquele verão ele estava no colégio em Rougemont — a cidadezinha próxima da que ela estava — ostensivamente para aprender francês. Foi depois que Xarazade voltou. Ela o conhecera no Sonnenhof, apanhando sol, apreciando toda a beleza de Gstaad, cercada de montanhas. Ele tinha 19 anos, ela ia fazer 17 daí a três dias, e durante todo aquele verão eles andaram por toda parte, pelas montanhas e florestas, nadando nos riachos, brincando, fazendo amor, sempre mais aventureiro lá no alto das nuvens.
Mais nuvens do que eu gosto de pensar, disse a si mesma sonhadoramente, eu estava com a cabeça nas nuvens naquele verão, aprendendo a respeito dos homens e da vida, mas sem aprender. Então, no outono, ele lhe dissera:
— Sinto muito, mas agora tenho que partir, tenho que voltar para a universidade, mas estarei de volta no Natal.
E nunca voltou. E muito antes do Natal ela descobrira. Toda a angústia e o terror onde só deveria ter havido felicidade. Apavorada de que a escola descobrisse, pois aí os seus pais teriam que ser informados. Era contra a lei fazer um aborto na Suíça sem o consentimento dos pais e ela foi para a Alemanha onde aquilo era possível, tendo a sorte de encontrar o médico gentil que a tranqüilizara. Não tinha havido nenhuma dor, nenhum problema — só uma pequena dificuldade para conseguir dinheiro. Ela ainda estava apaixonada por Johnny. No ano seguinte, terminada a escola, tudo mantido em segredo, ela voltara para Tabriz. A madrasta, de algum modo, descobrira — tenho certeza que Najoud, minha irmã de criação, me traiu, não foi ela que me emprestou o dinheiro? E depois, também papai descobriu.
Ela fora mantida em reclusão durante um ano. Depois o perdão e a paz — uma espécie de paz. Ela implorara para ir para a universidade em Teerã.
— Eu concordo, contanto que você jure por Deus que não vai ter nenhum caso, vai me prestar obediência absoluta e só vai se casar com quem eu escolher — dissera o khan.
A primeira da classe. Depois pedira para entrar para o Corpo de Professores, qualquer desculpa para sair do palácio.
— Eu concordo, mas só se for nas nossas propriedades. Nós temos aldeias mais do que suficientes para você tomar conta — ele tinha dito.
Muitos homens em Tabriz queriam se casar com ela, mas seu pai os recusara, com vergonha dela. E então Erikki.
— E quando esse estrangeiro, esse... esse gigante pobretão, vulgar, mal-educado, herege, que não sabe falar nem uma palavra de farsi nem de turco, que não sabe nada a respeito dos nossos costumes nem da nossa história, que não sabe se comportar numa sociedade civilizada, cujo único talento é beber enormes quantidades de vodca e pilotar um helicóptero... quando ele descobrir que você não é virgem, que foi maculada, estragada, talvez arruinada para sempre?
— Eu já contei a ele, papai — ela dissera em lágrimas. — Também disse que sem a sua permissão eu não posso me casar.
Então aconteceu o milagre do ataque ao palácio e seu pai quase foi assassinado, e Erikki comportou-se como um guerreiro vingador das antigas lendas. A permissão para o casamento foi outro milagre. A compreensão de Erikki, outro milagre. Mas até agora, nenhum filho. O velho dr. Nutt diz que eu sou normal e perfeita e que tenho que ter paciência. Com a ajuda de Deus, em breve vou ter um filho, e então só haverá felicidade, como com Xarazade, tão linda, com seu belo rosto, seus seios, suas costas, o cabelo e a pele como seda.
Ela sentiu a maciez da amiga em suas mãos e isso lhe deu um enorme prazer. Distraidamente, começou a acariciá-la, deixando-se levar pelo calor e pela ternura. Nós somos abençoadas por sermos mulheres, pensou, podendo tomar banho juntas e dormir juntas, nos beijarmos e nos tocarmos e amar sem nos sentirmos culpadas.
— Ah, Xarazade — murmurou, entregando-se também —, como eu adoro sentir você.
NA CIDADE VELHA: 19:52H. O homem atravessou apressado a praça coberta de neve, perto da antiga mesquita Mehrid, e entrou pelo portão principal do bazar, saindo do frio congelante para uma semi-escuridão quente, apinhada e familiar. Ele tinha uns cinqüenta anos, era corpulento e estava sem fôlego, com o chapéu de astracã meio de lado, vestido com roupas caras. Um burro carregado bloqueou seu caminho pela estreita passagem e ele praguejou, recuou para deixar o animal e seu dono passarem, depois continuou andando apressado, virou à esquerda numa passagem e entrou na rua dos vendedores de roupas.
Não corra, disse a si mesmo muitas vezes, sentindo dor no peito e nas pernas. Agora você está seguro, vá devagar. Mas o terror era mais forte e, ainda em pânico, ele continuou depressa, desaparecendo no enorme labirinto. No seu rastro, com um intervalo de poucos minutos, surgiu um grupo de Faixas Verdes armados. Eles não tinham pressa.
À frente, a estreita rua de lojas de arroz estava bloqueada por multidões maiores do que habitualmente, todos disputando a pequena quantidade que havia para vender. Ele parou por um momento e enxugou a testa, depois prosseguiu. O bazar parecia uma colmeia, palpitando de vida, com centenas de caminhos de terra, corredores e passagens, alinhados de ambos os lados, com lojas mal-iluminadas dando para fora — algumas de dois andares — além de cubículos, muitos não passando de nichos abertos nas paredes, com mercadorias e serviços de todos os tipos — desde comida até relógios estrangeiros, de açougueiros a comerciantes de ouro, de agiotas a negociantes de armas — todos esperando por um freguês, embora, no momento, não houvesse muito o que vender nem o que fazer. Acima do barulho, das vozes e das pessoas que regateavam, o teto alto e abobadado tinha clarabóias para ventilação e para deixar entrar luz durante o dia. O ar era pesado, com o cheiro característico do bazar — cheiro de fumaça e de comida rançosa, de fruta podre e churrasco, de temperos, fezes, poeira, gasolina, mel, tâmaras e restos de comida, tudo misturado com o cheiro dos corpos e do suor da multidão que nascia, vivia e morria aqui.
Pessoas de todas as idades e de todos os tipos comprimiam-se nas passagens — naturais de Teerã, turcomanos, curdos, kash kai, armênios, árabes, libaneses e levantinos — mas o homem não prestou atenção nenhuma nelas, nem nas constantes súplicas para parar e comprar, ele simplesmente foi abrindo caminho no meio da multidão, atravessou rapidamente a sua própria rua, a dos ourives, desceu a rua dos vendedores de especiarias, a dos joalheiros, enfiando-se cada vez mais para o interior do labirinto, com o cabelo molhado de suor por baixo do chapéu de astracã, e o rosto vermelho. Dois vendedores que repararam nele riram e comentaram:
— Por Deus, nunca vi o velho Paknouri andar tão depressa antes. Aquele cão velho deve estar indo receber uma dívida de dez riais.
— É mais provável que o avarento Paknouri tenha um garoto suculento esperando por ele, com a bunda sacudindo para o ar.
A alegria deles depressa acabou, quando os Faixas Verdes armados passaram. Quando eles já estavam a uma distância segura, alguém resmungou:
— O que será que esses filhos de uma cadela querem aqui?
— Eles estão procurando alguém. Deve ser isso. Que seus pais queimem no inferno! Vocês não ouviram dizer que eles têm prendido gente o dia inteiro?
— Estão prendendo pessoas? E o que estão fazendo com elas?
— Colocando-as na cadeia. Eles agora controlam as cadeias. Não ouviram dizer que eles arrombaram a porta da prisão de Evin e soltaram todo mundo e prenderam os carcereiros e que agora estão controlando tudo? Eles organizaram seus próprios pelotões de fuzilamento e seus tribunais e ouvi dizer que fuzilaram vários generais e policiais. E está havendo um tumulto agora mesmo, na universidade.
— Que Deus nos proteja! O meu filho Farmad está num comício lá, o idiota! Eu disse a ele para não ir.
Jared Bakravan, o pai de Xarazade, estava em sua loja, na sala particular que ficava sobre a loja, na rua dos Agiotas, que pertencia à sua família há cinco gerações e que ficava num dos melhores pontos. Sua especialidade era empréstimo e financiamento. Estava sentado numa espessa pilha de tapetes, tomando chá com seu velho amigo, Ali Kia, que conseguira ser nomeado funcionário público no governo de Bazargan. O filho mais velho de Bakravan, Meshang, sentara-se atrás dele, ouvindo e aprendendo — um rapaz bonito de uns trinta anos, com propensão a uma confortável corpulência. Ali Kia usava óculos e estava barbeado, mas Bakravan tinha uma barba branca e era corpulento. Ambos tinham cerca de sessenta anos e se conheciam quase que a vida inteira.
— E como o empréstimo será pago, e em que prazo? — Bakravan perguntou.
— Com os lucros do petróleo, como sempre — Kia respondeu, pacientemente —, da mesma forma que o xá teria feito, num prazo acima de cinco anos, a um por cento ao mês, como de costume. Meu amigo, Mehdi... Mehdi Bazargan, diz que o Parlamento vai garantir o empréstimo assim que se reunir. — Ele sorriu e acrescentou, exagerando um pouco: — Como eu não estou apenas no gabinete de Mehdi, mas também no seu gabinete particular, posso vigiar pessoalmente a negociação. Evidentemente, você sabe o quanto o empréstimo é importante, e que é importante também para o bazar.
— É claro. — Bakravan deu um puxão na barba para evitar cair na gargalhada. Pobre Ali, pensou, pretensioso como sempre! — Não me compete falar nisso, meu amigo, mas alguns dos lojistas me perguntaram sobre os milhões em ouro já adiantados para apoiar a revolução. Adiantados para o fundo em favor do aiatolá Khomeini, que Deus o proteja — acrescentou polidamente, pensando no fundo do coração: Que Deus o tire de nós depressa agora que vencemos, antes que ele e os seus mulás, gananciosos, parasitas, bitolados, façam muito estrago. Quanto a você, Ali, meu velho amigo, deturpador da verdade, que exagera a sua própria importância, você pode ser o meu amigo mais antigo, mas se você acha que eu confiaria em você... Como se algum de nós fosse confiar em qualquer iraniano fora da nossa própria família, e mesmo assim com muita cautela.
— É claro que eu sei que o aiatolá nunca viu, precisou ou tocou num único rial — disse, com franqueza —, mas mesmo assim, nós, lojistas, adiantamos enormes somas de dinheiro, de ouro, de moeda estrangeira, em favor dele, financiando a sua campanha. É claro que pela glória de Deus e do nosso amado Irã.
— Sim, nós sabemos. E Deus os abençoará por isso. E também o aiatolá. É claro que estes empréstimos serão pagos assim que tivermos o dinheiro. Imediatamente! Os empréstimos feitos pelos lojistas de Teerã são os primeiros da fila de pagamento, dentre todas as dívidas internas. Nós, do governo, compreendemos o quanto a ajuda de vocês tem sido importante. Mas, Jared, Excelência, velho amigo, antes de mais nada, nós precisamos tocar a produção de petróleo, e, para isso, precisamos de dinheiro. Os cinco milhões de dólares que precisamos de imediato serão como um grão de arroz dentro de um barril, agora que os bancos estrangeiros vão ser controlados e, na grande maioria, expulsos. O pre...
— O Irã não precisa de nenhum banco estrangeiro. Nós, os lojistas, podemos fazer tudo o que for necessário. Se nos pedirem. Tudo. Se procurarmos com afinco, pela glória do Irã, talvez, talvez possamos descobrir que temos todas as habilidades e ligações em nosso próprio meio. — Bakravan tomou um gole do seu chá com uma elegância estudada. — O meu filho Meshang tem um diploma da Escola de Administração de Harvard. — A mentira não incomodou a nenhum deles. — Com a ajuda de estudantes brilhantes como ele... — E deixou a idéia no ar.
— Oh, mas você certamente não poderia ceder os serviços dele para o meu Ministério das Finanças — atalhou Ali Kia, compreendendo logo a insinuação. — Na certa, ele é importante demais para você e seus colegas? É claro que sim, deve ser!
— Sim, sim, ele é. Mas as necessidades do nosso amado país vêm antes dos nossos desejos pessoais. Isso, evidentemente, se o governo quisesse utilizar o seu raro talento.
— Mencionarei isso para Mehdi amanhã de manhã. Sim, no meu encontro diário com o meu velho amigo e colega meu. — disse Ali Kia, imaginando quando conseguiria obter sua primeira audiência, muito adiada, desde que fora nomeado ministro interino das Finanças. — Posso também dizer a ele que você concorda com o empréstimo?
— Vou consultar os meus colegas imediatamente. A decisão, evidentemente, será deles e não minha — Bakravan acrescentou com um ar de tristeza que não enganou a nenhum dos dois. — Mas vou defender a idéia, velho amigo.
— Obrigado. — Mais uma vez, Kia sorriu. — Nós, do governo, e o aiatolá, apreciaremos a ajuda dos lojistas.
— Estamos sempre prontos para ajudar. Como você sabe, nós temos sempre ajudado — disse suavemente o velho, relembrando o apoio financeiro maciço dado pelo bazar aos mulás, a Khomeini, ao longo dos anos. Ou a qualquer figura política íntegra, como Ali Kia, que fazia oposição a ambos os xás.
Que Deus amaldiçoe os Pahlavis, pensou Bakravan, eles são a causa de todos os nossos problemas. Malditos sejam por todos os problemas que causaram com sua exigência precipitada de modernização, com o seu descaso insano pelos nossos conselhos e nossa influência, por ter convidado os estrangeiros para virem para cá, só de americanos eram cinqüenta mil há um ano, deixando-os se apossarem dos melhores empregos e de todos os negócios bancários. O xá desprezou nossa ajuda, quebrou nosso monopólio, nos sufocou e destruiu nossa herança histórica. Em toda parte, por todo o Irã.
Mas tivemos a nossa vingança. Apostamos o resto da nossa influência e do nosso tesouro no ódio implacável de Khomeini e no seu poder sobre as massas sujas e ignorantes. E vencemos. E agora, com os bancos estrangeiros fechados, com os estrangeiros fora daqui, seremos mais ricos e influentes do que nunca. Este empréstimo será fácil de conseguir, mas Ali Kia e seu governo podem suar um pouco. Nós somos os únicos capazes de levantar o dinheiro. O pagamento oferecido não é ainda suficientemente alto, nem de longe nos compensa pelo fechamento do bazar durante todos estes meses. Mas quanto deveríamos exigir? perguntou a si mesmo, muito satisfeito com as negociações. Talvez a percentagem devesse...
A porta se abriu com violência e Emir Paknouri entrou correndo na sala.
— Jared, eles vão me prender — gritou, com as lágrimas correndo pelo rosto.
— Quem? Quem vai prender você e por quê? — explodiu Bakravan, vendo perturbada a calma habitual da sua casa, com as caras assustadas de ajudantes, vendedores e gerentes se comprimindo na porta.
— Por... por crimes contra o Islã! — Paknouri chorava abertamente.
— Deve haver algum erro! É impossível!
— Sim, é impossível, mas eles... eles vieram à minha casa com o meu nome... há meia hora atrás nós...
— Quem? Diga-me o nome deles e eu destruirei os seus pais! Quem foi na sua casa?
— Eu já disse! Guardas, guardas revolucionários, Faixas Verdes, sim, eles, é claro — disse Paknouri e continuou a falar, sem ouvir o sinal para calar a boca. Ali Kia empalideceu e alguém murmurou "Deus nos proteja!"
— Há meia hora atrás, com o meu nome num pedaço de papel... meu nome, Emir Paknouri, chefe da liga dos ourives que deu milhões de riais... eles foram na minha casa, acusando-me, mas os criados... e minha mulher estava lá e eu... por Deus e pelo Profeta, Jared — ele gritou caindo de joelhos —, eu não cometi nenhum crime, eu sou um dignitário do bazar, eu dei milhões e...
— De repente ele parou, vendo Ali Kia. — Kia, Ali Kia, Excelência, o senhor
sabe perfeitamente o que eu fiz para ajudar a revolução!
— É claro — Kia estava pálido, com o coração disparado. — Deve haver algum erro. — Ele conhecia Paknouri como um lojista muito influente, respeitado, primeiro marido de Xarazade, e um dos seus mais antigos patrocinadores. — Tem que haver um erro!
— É claro que há um erro! — Bakravan abraçou o pobre homem e tentou acalmá-lo. — Tragam um chá imediatamente — ordenou.
— Um uísque. Por favor, você tem uísque? — murmurou Paknouri. — Tomarei chá depois, você tem uísque?
— Não aqui, meu pobre amigo, mas é claro que há vodca. — Trouxeram-na imediatamente. Paknouri tomou-a e engasgou um pouco. E não quis outra. Em seguida ficou mais calmo e tornou a contar o que tinha acontecido.
Ele percebera que algo estava errado quando ouviu vozes alteradas na entrada da sua mansão, que ficava bem ao lado do bazar. Estava no andar de cima com a esposa, preparando-se para jantar.
— O líder dos guardas, havia cinco, estava sacudindo aquele pedaço de papel e pedindo para me ver. É claro que os criados não ousariam incomodar-me, nem deixariam um gorila daqueles entrar, então o chefe dos criados disse que ia ver se eu estava e subiu. Ele nos disse que o papel estava assinado por alguém chamado Uwari, em nome do Komiteh Revolucionário. Em nome de Deus, quem são eles? Quem é esse homem Uwari? Você já ouviu falar nesse homem, Jared?
— É um nome bastante comum — disse Bakravan, seguindo o costume iraniano de ter sempre uma resposta pronta para algo que não se sabe. — O senhor já ouviu falar, Excelência Ali?
— Como você disse, é um nome comum. Este homem mencionou alguma outra pessoa, Excelência Paknouri?
— Pode ter mencionado. Que Deus nos proteja! Mas quem são eles, este Komiteh Revolucionário? Ali Kia, o senhor deve saber.
— Muitos nomes têm sido mencionados — disse Kia, com imponência, disfarçando a inquietação que sentia cada vez que se mencionava o Komiteh Revolucionário. Como todo mundo, dentro e fora do governo, pensou aborrecido, não tenho nenhuma informação verdadeira sobre a sua composição ou quando ou onde ele se reúne, só que surgiu no momento em que Khomeini voltou ao Irã, há menos de duas semanas e, desde ontem, quando Bakhtiar fugiu, vem agindo como se fosse a própria lei, governando em nome de Khomeini e com a sua autoridade, indicando precipitadamente novos juízes, a maioria sem treinamento legal de espécie alguma, autorizando prisões, tribunais revolucionários e execuções imediatas, totalmente fora da lei e da jurisprudência normais. E contra a nossa Constituição! Que todas as suas casas se incendeiem e que eles vão para o inferno que merecem!
— Hoje mesmo de manhã o meu amigo Mehdi — começou confiante, depois parou, fingindo notar pela primeira vez os empregados que ainda estavam amontoados na porta, e fez um sinal imperioso para que eles se afastassem. Quando, com relutância, a porta foi fechada, ele baixou a voz, passando adiante o boato como se fosse uma informação particular: — Hoje de manhã, ahn, com a nossa bênção, Mehdi foi ao aiatolá e ameaçou renunciar a menos que o Komiteh Revolucionário parasse de passar por cima dele e da sua autoridade, e assim os colocou no devido lugar daqui por diante.
— Graças a Deus! — disse Paknouri, muito aliviado. — Nós não vencemos a revolução para deixar que novas ilegalidades substituíssem a Savak, a dominação estrangeira e o xá!
— É claro que não! Graças a Deus, agora o novo governo está nas melhores mãos. Mas por favor, Excelência Paknouri, por favor, continue com a sua história.
— Não há muito mais o que contar, Ali — disse Paknouri, mais calmo e com mais coragem agora, cercado por amigos tão poderosos. — Eu, ahn, eu desci imediatamente para ver aqueles intrusos e disse a eles que aquilo era um erro estúpido, mas aquele cabeça dura, ignorante, bosta de cão apenas sacudiu o papel na minha cara, disse que eu estava preso e que deveria acompanhá-los. Eu disse a eles que esperassem... disse que esperassem e fui apanhar alguns papéis, mas minha esposa... minha esposa me disse para não confiar neles, que talvez eles fossem do Tudeh ou mujhadins ou fedayins, eu concordei com ela e decidi que seria melhor vir aqui consultar vocês e os outros. — Ele afastou da memória os fatos reais, que ele tinha fugido, assim que ouvira o líder anunciar, em nome do Komiteh Revolucionário e de Uwari, que Paknouri, o agiota, seria submetido ao julgamento divino por crimes contra Deus.
— Meu pobre amigo — disse Bakravan. — Meu pobre amigo, como você deve ter sofrido! Não se importe, você agora está seguro. Fique aqui esta noite. Ali, logo depois da primeira prece amanhã, vá ao gabinete do primeiro-ministro e certifique-se de que este assunto seja resolvido e esses idiotas punidos. Nós todos sabemos que Emir Paknouri é um patriota, que ele e todos os ourives apoiaram a revolução e que são essenciais para este empréstimo. — Cansado, fechou os ouvidos a todas as banalidades que Ali Kia estava dizendo.
Ele estudou Paknouri, vendo-lhe o rosto ainda pálido e o cabelo molhado de suor. Pobre sujeito, que choque ele deve ter tido. É lastimável. Com toda a sua riqueza e o seu nome ilustre — ligado aos Qajars através de Annoush, esposa do primo Valik — é uma pena que todo o meu trabalho por Xarazade tenha dado em nada. É uma lástima que eles não tenham tido filhos e assim unido as nossas famílias. Bastava um único filho, pois então, certamente, nunca teria havido o divórcio e os meus problemas não teriam aumentado, com esse estrangeiro, Lochart. Por mais que esse estrangeiro tente aprender os nossos costumes, ele nunca vai conseguir. E como é caro sustentá-lo para manter a reputação da família! Preciso tornar a falar com o primo Valik e pedir-lhe mais uma vez para que Lochart receba um dinheiro extra. Valik e os seus gananciosos sócios da CHI podem muito bem fazer isso por mim, com os milhões que ganham, a maior parte em moeda estrangeira! O que custaria a eles? Nada! O custo seria repassado a Gavallan e à S-G. Os sócios me devem mil favores, a mim que durante anos lhes ensinei como conseguir tanto poder e tanta riqueza com tão pouco esforço!
— Pague a Lochart você mesmo, Excelência Jared — Valik respondera rudemente da última vez em que tinha falado com ele. — Essa responsabilidade é sua. Você participa de tudo o que nós ganhamos. E o que representa uma quantia tão insignificante para o meu primo favorito e o mais rico lojista de Teerã?
— Mas devia ser uma despesa partilhada. Nós podemos usá-lo quando
tivermos cem por cento de controle. Com o novo plano para o futuro da CHI, a sociedade vai ficar mais rica do que nunca e...
— Eu vou consultar os outros sócios imediatamente. É claro que a decisão será deles e não minha...
Mentiroso, pensou o velho, tomando o seu chá, mas eu também teria dito o mesmo. E abafou um bocejo, cansado e com fome. Uma soneca antes do jantar me faria bem.
— Sinto muito, Excelências, mas tenho negócios urgentes para tratar. Paknouri, velho amigo, estou contente de que esteja tudo resolvido. Fique aqui esta noite, Meshang vai arranjar colchões e almofadas, e não se preocupe! Ali, meu amigo, venha comigo até o portão do bazar. Você tem condução? — Ele perguntou por perguntar, sabendo que a primeira regalia de um assessor seria um carro com motorista e gasolina à vontade.
— Sim, obrigado. O primeiro-ministro insistiu para que eu tivesse um carro. Pela importância do nosso ministério, suponho.
— Seja como Deus quiser! — disse Bakravan.
Satisfeitos, eles saíram da sala, desceram as escadas estreitas e entraram no pequeno corredor que levava à loja. Mas os sorrisos desapareceram e suas bocas se encheram de bílis.
Lá, esperando, estavam os mesmos cinco Faixas Verdes, encostados nas mesas e cadeiras, todos armados com carabinas do exército americano, todos na casa dos vinte, com ou sem barba, com as roupas pobres e gastas, alguns com sapatos furados, alguns sem meias. O líder pautava os dentes silenciosamente, os outros estavam fumando, deixando a cinza cair descuidadamente nos valiosos tapetes kash 'kai de Bakravan. Um desses jovens tossia muito enquanto fumava, com a respiração chiada.
Bakravan sentiu uma fraqueza nos joelhos. Todos os seus empregados estavam paralisados, encostados numa das paredes. Todo mundo. Até o seu servidor favorito. Lá fora, na rua, tudo estava muito quieto, não havia ninguém por perto. Até os agiotas das lojas em frente pareciam ter desaparecido.
— Salaam, aga, que a bênção de Deus esteja com o senhor — disse educadamente, com a voz soando estranha. — O que posso fazer pelo senhor?
O líder não prestou nenhuma atenção nele, apenas manteve os olhos fixos em Paknouri, com seu rosto bonito mas marcado pela moléstia parasitária transmitida pelos mosquitos e quase endêmica no Irã. Tinha pouco mais de vinte anos, cabelos e olhos escuros e mãos marcadas pelo trabalho, que brincavam com a carabina. Seu nome era Yusuf Senvar — Yusuf, o pedreiro.
O silêncio cresceu e Paknouri não pôde mais suportar a tensão.
— É tudo um engano — gritou. — Vocês estão cometendo um erro!
— Você pensou que poderia escapar da vingança de Deus fugindo? — A voz de Yusuf era macia, quase gentil, embora com um sotaque rude de camponês que Bakravan não conseguiu localizar.
— Que vingança de Deus? — gritou Paknouri. — Eu não fiz nada de errado, nada.
— Nada? Você não trabalhou para os estrangeiros, associando-se a eles durante anos, ajudando-os a roubar a riqueza da nossa nação?
— É claro que não foi para isso, mas para criar empregos e ajudar a econ...
— Nada? Você não serviu a Satã, o xá, durante anos?
— Não — gritou novamente Paknouri —, eu era da oposição, todo mundo sabe que eu... eu era da opôs...
— Mas assim mesmo você o serviu e cumpriu as suas ordens?
O rosto de Paknouri estava contorcido e quase sem controle. Ele mexeu com a boca mas não conseguiu falar. Então disse com voz rouca:
— Todo mundo o serviu. É claro que todo mundo o serviu, ele era o xá, mas nós trabalhamos pela revolução. O xá era o xá, é claro que todo mundo o serviu enquanto ele esteve no poder...
— O imã não — disse Yusuf, com súbita violência. — O imã Khomeini nunca serviu ao xá. Em nome de Deus, ele o serviu? — Vagarosamente, ele olhou rosto por rosto. Ninguém respondeu.
No silêncio que se seguiu, Bakravan observou o homem pôr a mão no bolso rasgado, apanhar um pedaço de papel e examiná-lo, e viu que ele era o único ali que podia acabar com aquele pesadelo.
— Por ordem do Komiteh Revolucionário — começou Yusuf — e de Ali'allah Uwari, agiota Paknouri você é levado a julgamento. Submeta-se...
— Não, Excelência — Bakravan disse educadamente, mas com firmeza, com as batidas do coração ressoando nos ouvidos. — Aqui é o bazar. Desde o início dos tempos o senhor sabe que o bazar tem as suas próprias leis, os seus próprios líderes. Emir Paknouri é um deles, ele não pode ser preso nem levado contra a sua vontade. Ele não pode ser tocado. Isto é uma lei bazaari que existe desde o começo dos tempos. — Ele olhou para o rapaz, sem medo, sabendo que nem o xá, nem mesmo a Savak, tinham ousado desafiar aquelas leis ou o direito de proteção.
— A lei do bazar é maior do que a lei de Deus, agiota Bakravan? Ele sentiu um arrepio gelado percorrê-lo.
— Não... não, é claro que não.
— Ótimo. Eu obedeço à lei de Deus e faço o trabalho de Deus.
— Mas você não pode prend...
— Eu obedeço à lei de Deus e faço apenas o trabalho de Deus. — Os olhos do homem eram castanhos e francos sob as sobrancelhas pretas. Ele apontou para a sua carabina. — Eu não preciso desta arma. Nenhum de nós precisa de armas para fazer o trabalho de Deus. Eu rezo de todo o coração para ser um mártir de Deus, pois assim irei diretamente para o paraíso, sem a necessidade de ser julgado, com todos os meus pecados perdoados. Se for hoje, então eu morrerei abençoando o meu assassino porque sei que terei morrido fazendo o trabalho de Deus.
— Deus é grande — disse um dos homens, e os outros repetiram.
— Sim, Deus é grande. Mas você, agiota Bakravan, você hoje rezou cinco vezes como o Profeta ordenou?
— É claro, é claro — respondeu Bakravan, sabendo que esta mentira não era pecado por causa do taqiyah, ocultamento, a permissão que o Profeta dá a qualquer muçulmano para mentir a respeito do Islã se a sua vida estiver ameaçada.
— Ótimo. Fique quieto e seja paciente, depois eu me encarregarei de você. — Outro arrepio percorreu Bakravan enquanto ele via o homem voltar a atenção para Paknouri. — Por ordem do Komiteh Revolucionário e de Ali'allah Uwari: agiota Paknouri, submeta-se a Deus pelos crimes contra Deus.
— Eu... eu... você não pode... — Paknouri tentou falar mas não conseguiu. Um pouco de espuma escorreu-lhe pelos cantos dos lábios. Todos o observavam, os Faixas Verdes sem emoção, os outros com horror
Ali Kia Pigarreou.
— Ouça, talvez fosse melhor deixar isso para amanhã — começou, tentando manter um tom importante. — Emir Paknouri está obviamente perturbado pelo err...
— Quem é você? — Os olhos do líder o transpassaram, como haviam feito com Paknouri e Bakravan. — Hein?
— Eu sou o ministro interino Ali Kia — respondeu Ali, mantendo a coragem sob a força daqueles olhos — do Ministério das Finanças, membro do gabinete do primeiro-ministro Bazargan, e sugiro que você espere até...
— Em nome de Deus: você, o seu Ministério das Finanças, o seu gabinete, o seu Bazargan não têm nada a ver comigo ou conosco. Nós obedecemos ao mulá Uwari, que obedece ao Komiteh Revolucionário, que obedece ao imã, que obedece a Deus. — O homem se coçou displicentemente e voltou a atenção outra vez para Paknouri. — Para a rua! — ordenou, com a voz ainda gentil. — Ou nós o arrastaremos.
Paknouri deu um gemido e desmaiou. Os outros ficaram olhando, impotentes. Alguém murmurou: "É a vontade de Deus", e o pequeno copeiro começou a chorar.
— Fique quieto, garoto — disse Yusuf, sem raiva. — Ele está morto? Um dos homens se agachou perto de Paknouri.
— Não. Seja como Deus quiser.
— Seja como Deus quiser. Hassan, levante-o e ponha a cabeça dele na tina de água, e se ele não acordar nós o carregaremos.
— Não — interrompeu corajosamente Bakravan —, não, ele vai ficar aqui, ele está doente e...
— Você é surdo, velho? — Havia uma nova tensão na voz de Yusuf. Uma onda de medo varreu a sala. O garoto enfiou o punho na boca para não soluçar. Yusuf manteve os olhos em Bakravan enquanto o homem chamado Hassan, forte e de ombros largos, levantou Paknouri facilmente e saiu da loja.
— Seja como Deus quiser — disse, com os olhos em Bakravan. — Hein?
— Onde... por favor, para onde vocês o estão levando?
— Para a prisão, é claro. Para onde mais?
— Que... que prisão, por favor? Um dos homens riu.
— E importa que prisão?
Para Jared Bakravan e para os outros a sala agora estava abafada como uma cela, embora o ar não tivesse mudado e a abertura para a rua estivesse como sempre esteve.
— Eu gostaria de saber, Excelência — disse Bakravan, com a voz rouca, tentando disfarçar o ódio. — Por favor.
— Evin.
Era a mais infame das prisões de Teerã. Yusuf percebeu uma nova onda de medo. Eles devem ser todos culpados, já que sentem tanto medo, pensou. Olhou para seu irmão mais moço, que estava atrás dele.
— Dê-me o papel.
Seu irmão não tinha nem 15 anos, estava imundo e tossia muito. Apanhou meia dúzia de papéis e folheou-os. Encontrou o que estava procurando.
— Aqui está, Yusuf.
— Tem certeza de que este é o certo? — perguntou o líder, examinando o papel.
— Sim. — O jovem apontou para o nome com um dedo grosso. Vagarosamente, ele soletrou o nome.
— J-a-r-e-d B-a-k-r-a-v-a-n.
— Que Deus nos proteja! — murmurou alguém. E no enorme silêncio que se seguiu, Yusuf apanhou o papel e estendeu-o para Bakravan. Os outros observavam, paralisados.
Quase sem respirar, o velho apanhou-o, com os dedos trêmulos. Por um momento, não conseguiu focalizar os olhos. Então viu as palavras: "Jared Bakravan, do bazar de Teerã, por ordem do Komiteh Revolucionário e de Ali'allah Uwari, está intimado a comparecer diante do Tribunal Revolucionário, na prisão de Evin, amanhã, imediatamente após a primeira oração, para responder a algumas perguntas." O papel estava assinado: "Ali'allah", com uma letra de analfabeto.
— Que perguntas? — perguntou, bestificado.
— As que Deus quiser. — O líder pôs a carabina no ombro e se levantou.
— Até amanhã. Traga o papel com você e não chegue atrasado. — Nesse momento, ele notou a bandeja de prata, as taças e a garrafa de vodca pela metade que estavam numa mesa baixa, quase escondida por uma cortina na passagem escura, brilhando à luz de algumas velas. — Por Deus e pelo Profeta — disse indignado —, você esqueceu as leis de Deus?
As pessoas se afastaram do seu caminho enquanto ele virava a garrafa, derramando o seu conteúdo no chão de terra e a atirava longe. Um pouco do líquido escorreu para um dos tapetes. Instintivamente, o copeirinho caiu de joelhos e começou a enxugá-lo.
— Pare com isso!
Apavorado, o garoto saiu correndo. Com o pé, Yusuf espalhou a poça.
— Deixe que a mancha o faça lembrar das leis de Deus, velho — disse.
— Se manchar. — Por um momento ele examinou o tapete. — Que cores! Lindo! Lindo! — Suspirou e se coçou, depois voltou-se para Bakravan e Kia.
— Se vocês juntassem toda a riqueza que nós, pasadan, temos, e a juntasse à de toda a nossa família, e à da família dos nossos pais, ainda assim não poderíamos comprar nem um cantinho de um tapete desses. — Yusuf deu um sorriso debochado. — Mas mesmo que eu fosse tão rico quanto você, agiota Bakravan... você sabe que agiotagem também é contra a lei de Deus? Mesmo que eu fosse assim tão rico, não quereria comprar esse tapete. Eu não preciso de um tesouro como esse. Eu não tenho nada, nós não temos nada, nós não precisamos de nada. Só de Deus.
E saiu majestosamente.
PERTO DA EMBAIXADA DOS ESTADOS UNIDOS: 20:15H. Erikki esperava há quase quatro horas. De onde estava sentado, na janela do apartamento do primeiro andar, do seu amigo Christian Tollonen, ele podia ver os muros altos cercando as instalações americanas, bem iluminadas, fuzileiros uniformizados perto dos enormes portões batendo com os pés para espantar o frio, e o grande prédio da embaixada mais atrás. O trânsito ainda estava pesado, com retenções aqui e ali, todo mundo buzinando e tentando avançar, com os pedestres tão impacientes e egocêntricos como sempre. Nenhum sinal estava funcionando. Não havia polícia. Não que isso fizesse alguma diferença, pensou, os habitantes de Teerã não ligam a mínima para as leis do trânsito, nunca ligaram e nunca ligarão. Como aqueles loucos na estrada da montanha que se mataram. Como os habitantes de Tabriz. Ou os de Qazvin.
Ele apertou os punhos enormes ao se lembrar de Qazvin. Na embaixada da Finlândia, naquela manhã, havia comunicados de que Qazvin estava em estado de rebelião, de que nacionalistas azerbeijanos em Tabriz tinham-se rebelado novamente e que prosseguia a luta contra as forças leais ao governo de Khomeini e que aquela província de fronteira, rica em petróleo e altamente estratégica, tinha mais uma vez se declarado independente de Teerã, independência pela qual vinha lutando através dos séculos, sempre ajudada pela Rússia, a inimiga permanente do Irã e que desejava o seu território. Rakoczy e outros como ele deviam estar espalhados por todo o Azerbeijão.
— É claro que os soviéticos estão atrás de nós — dissera Abdullah Gorgon Khan indignado, durante a discussão, pouco antes dele e Azadeh terem partido para Teerã. — É claro que o seu Rakoczy e seus homens estão aqui por imposição. Nós andamos na mais fina corda bamba do mundo porque somos a chave deles para o golfo e para Ormuz, a jugular do Ocidente. Se não fosse por nós, Gorgons, por nossas relações tribais, e por alguns dos nossos aliados curdos, nós agora seríamos uma província soviética, junto com a outra metade do Azerbeijão que os soviéticos nos roubaram anos atrás, ajudados, como sempre, pelos insidiosos britânicos. Oh, como eu odeio os britânicos, mais ainda do que os americanos, que são apenas bárbaros estúpidos e sem educação. É verdade, não é?
— Eles não são assim, não os que eu conheço. E a S-G tem me tratado bem.
— Até agora. Mas vão traí-lo. Os britânicos traem todo mundo que não é britânico e até a eles mesmos, se for preciso.
— Insha'Allah!
Abdullah Gorgon Khan rira sem vontade.
— Insha'Allah! E Insha'Allah que em 1946 os soviéticos tenham recuado da fronteira e que então nós tenhamos destruído os traidores e acabado com a sua 'República Democrática do Azerbeijão' e com a 'República Popular Curda'. Mas eu admiro os soviéticos, eles planejam apenas vencer e mudar as regras em seu próprio benefício. O verdadeiro vencedor da sua guerra mundial foi Stalin. Ele era um colosso. Ele não dominou tudo em Potsdam, Yalta e Teerã? Ele não manobrou Churchill e Roosevelt? Roosevelt não chegou até a ficar com ele em Teerã, na embaixada soviética? Como nós, os iranianos, rimos! O grande presidente deu o futuro para Stalin quando poderia tê-lo mantido atrás das suas próprias fronteiras. Que gênio! Ao lado dele, o seu aliado Hitler era um covarde desajeitado. Como Deus quiser, hein?
— A Finlândia só se juntou a Hitler para lutar contra Stalin e recuperar as nossas terras.
— Mas vocês perderam, vocês escolheram o lado errado e perderam. Até um idiota podia ver que Hitler ia perder. Como pôde o Reza Xá ser tão estúpido? Ah, capitão, eu nunca entendi por que Stalin deixou vocês, finlandeses, vivos. Se fosse eu, teria arrasado a Finlândia como uma lição. Como ele dizimou dezenas de outras terras. Por que ele deixou vocês todos vivos? Por que vocês resistiram a ele na sua Guerra do Inverno?
— Não sei. Talvez. Eu concordo que os soviéticos não vão desistir nunca.
— Nunca, capitão. Mas nós também não. Nós, azerbeijanos, vamos sempre manobrá-los e mantê-los ao largo. Como em 1946.
Mas naquela época o Ocidente era forte, havia a Doutrina Truman para fazer frente ao intervencionismo dos soviéticos, Erikki pensou melancolicamente. E agora? Agora com Carter no comando? Que comando?
Pesadamente, ele se inclinou e tornou a encher o copo, impaciente para voltar para perto de Azadeh. Estava frio no apartamento e ele ainda estava usando o sobretudo — o aquecimento central estava desligado e as janelas deixavam entrar vento. Mas a sala era grande, agradável e masculina, com velhas poltronas, as paredes decoradas com tapetes persas, pequenos mas de boa qualidade, e objetos de bronze. Livros, revistas e jornais estavam espalhados por toda parte, em cima de mesas, cadeiras e estantes — finlandeses, russos e iranianos. Um par de sapatos femininos estava jogado numa das prateleiras. Ele tomou um gole de vodca, apreciando o calor que ela lhe dava, depois tornou a olhar pela janela em direção à embaixada. Por um momento, ele se perguntou se valeria a pena emigrar para os Estados Unidos com Azadeh.
— Os bastiões estão caindo — murmurou em voz alta. — O Irã não é mais seguro, a Europa é muito vulnerável, a Finlândia tem uma espada sobre sua cabeça...
Sua atenção focalizou-se lá embaixo. Agora o tráfego estava totalmente bloqueado por enxames de jovens vindos de duas ruas — a embaixada dos Estados Unidos ficava na esquina de Tahkt-e-Jamshid com a rua principal, chamada Roosevelt. Chamava-se Roosevelt, pensou. Como se chama agora? Rua Khomeini? Rua da Revolução?
A porta da frente do apartamento se abriu.
— Oi, Erikki — disse o jovem finlandês, com um sorriso. Christian Tollonen usava um chapéu de pele em estilo russo e um casaco impermeável debruado de pele que ele comprara em Leningrado, num fim-de-semana de bebedeira com outros amigos da universidade. — O que há de novo?
— Estou esperando há quatro horas.
— Três horas e vinte e dois minutos e meia garrafa da melhor Moskava russa que o dinheiro pode comprar, e nós combinamos três ou quatro horas. — Christian Tollonen tinha trinta e poucos anos, era solteiro, louro de olhos cinzentos, e adido cultural da embaixada da Finlândia. Eles eram amigos desde que ele viera para o Irã, há alguns anos. — Sirva-me uma, por Deus, eu bem que preciso. Estão fazendo uma outra manifestação e eu tive um bocado de dificuldade para passar. — Ele manteve o casaco vestido e foi até a janela.
Agora, as duas partes da multidão tinham se juntado, com as pessoas se comprimindo em frente às instalações da embaixada. Todos os portões tinham sido fechados. Inquieto, Erikki notou que não havia nenhum mulá no meio dos jovens. Eles podiam ouvir os gritos.
— Morte à América, morte a Carter — traduziu Christian — ele sabia falar farsi fluentemente porque seu pai também servira como diplomata no Irã e ele tinha passado cinco anos da sua juventude numa escola em Teerã. — É a mesma merda de sempre, abaixo Carter e o imperialismo americano.
— Nenhum Allah-u Akbar—disse Erikki. Por um momento, sua mente o levou de volta ao bloqueio da estrada, e ele sentiu um frio no estômago. — Nenhum mulá.
— Não. Eu não vi nenhum aqui por perto. — Na rua, diferentes facções se revezavam diante dos portões de ferro. — A maioria é de estudantes universitários. Eles pensaram que eu era russo e me contaram que houve uma terrível batalha na universidade, esquerdistas contra Faixas Verdes, com uns vinte ou trinta mortos ou feridos e a luta ainda continua. — Enquanto eles olhavam, cinqüenta ou sessenta jovens começaram a bater nos portões. — Eles estão loucos por uma briga.
— E não há nenhuma polícia para impedi-los. — Erikki entregou-lhe o copo.
— O que faríamos sem vodca?
— Beberíamos conhaque. — Erikki riu. — Você tem tudo aí?
— Não, mas tenho um começo. — Christian sentou-se numa das poltronas perto da mesa baixa, em frente a Erikki, e abriu a pasta. — Aqui está uma cópia da sua certidão de casamento e da sua certidão de nascimento. Graças a Deus nós temos cópias. Novos passaportes para vocês dois. Consegui que uma pessoa do gabinete de Bazargan os carimbasse com um visto de residência temporário, válido por três meses.
— Você é um mágico!
— Eles prometeram, que lhe dariam uma nova licença iraniana para pilotar, mas não disseram quando. Com sua carteira de identidade da S-G e a fotocópia da sua licença britânica, eles disseram que você está legalizado. Mas o passaporte de Azadeh é temporário. — Ele o abriu e mostrou o retrato. — Não é o comum. Eu tirei um retrato da foto que você me deu, mas servirá até você arranjar um direito. Faça-a assiná-lo assim que estiver com ela. Ela já esteve fora do país depois que vocês se casaram?
— Não, por quê?
— Se ela viajar com um passaporte finlandês... bem, eu não sei como isso afetará sua cidadania iraniana. As autoridades sempre foram muito sensíveis a esse respeito, principalmente com relação aos nativos. Khomeini parece ser ainda mais xenófobo, portanto seu regime deverá ser ainda mais severo. Eles podem interpretar isso como se ela tivesse renunciado à sua nacionalidade. Acho que eles não a deixariam voltar.
Uma explosão de gritos da massa de jovens na rua distraiu-os por um momento. Centenas deles brandiam os punhos fechados e em algum lugar, alguém com um alto-falante os instruía.
— Do modo como eu me sinto neste momento, contanto que possa tirá-la daqui, o resto não importa — disse Erikki.
O homem mais jovem fitou-o. Depois de um momento, disse:
— Talvez ela deva ser prevenida do perigo, Erikki. Não há nenhuma ma-
neira de conseguir uma outra via dos documentos dela, nem um passaporte iraniano, mas seria muito arriscado para ela sair sem eles. Por que você não pede ao pai dela para consegui-los? Ele poderia fazer isso facilmente. Ele é dono de Tabriz quase toda, não é?
Erikki balançou a cabeça, tristemente.
— Sim, mas nós tivemos outra briga pouco antes de partirmos. Ele ainda desaprova o nosso casamento.
Depois de uma pausa, Christian disse:
— Talvez seja porque vocês não têm filhos ainda, você sabe como os iranianos são.
— Nós temos muito tempo para ter filhos — disse Erikki, com dor no coração. Nós teremos filhos no devido tempo, pensou. Não há pressa e o dr. Nutts disse que ela é perfeita. Merda! Se eu não contar a ela o que Christian disse a respeito dos seus documentos iranianos, ela nunca me perdoará, e de qualquer maneira ela nunca partiria sem a permissão do pai. — Para conseguir-lhe novos documentos, nós teremos que voltar, e, bem, eu não quero voltar.
— Por que, Erikki? Geralmente você mal pode esperar a hora de voltar para Tabriz.
— Rakoczy. — Erikki contara-lhe tudo o que acontecera, exceto o assassinato do mujhaditn no bloqueio da estrada e que Rakoczy matara outros durante o resgate. Não vale a pena contar certos detalhes, pensou amargamente.
Christian Tollonen tomou um gole da sua vodca.
— Qual é o verdadeiro problema?
— Rakoczy. — Erikki sustentou-lhe o olhar.
Christian deu de ombros. Tornou a encher os copos, esvaziando a garrafa.
— Prositl
— Prositl Obrigado pelos papéis e pelos passaportes.
A gritaria lá fora tornou a distrair-lhes a atenção. A multidão estava disciplinada embora mais barulhenta. No pátio da embaixada, havia agora mais holofotes acesos, e eles podiam ver claramente os rostos nas janelas.
— Ainda bem que eles têm os seus próprios geradores.
— Sim, e seu próprio sistema de aquecimento, bombas de gasolina, PX, tudo. — Christian foi até o aparador e trouxe outra garrafa. — Isso, e mais o status especial que gozam no Irã. O fato de não necessitarem de vistos, e de não estarem sujeitos às leis iranianas tem causado um bocado de ódio.
— Por Deus, está frio aqui dentro, Christian. Você não tem nenhuma lenha?
— Nem um pedacinho. O maldito aquecimento está desligado desde que eu me mudei para cá, há três meses, quase todo o inverno.
— Talvez seja melhor. — Erikki apontou para o par de sapatos de mulher. — Você recebe bastante calor, hein?
— Às vezes. — E Christian sorriu. — Admito que Teerã é um... costumava ser um dos melhores lugares do mundo para todos os tipos de prazeres. Mas agora, meu amigo... — Uma sombra passou-lhe pelo rosto. — Eu acho que agora o Irã não será o paraíso que esses filhos da mãe lá fora acreditam que conquistaram, mas um inferno na terra para a maioria deles. Principalmente as mulheres. — Ele tomou outro gole de vodca. Houve uma corrente de excitação ao lado do muro da embaixada quando um jovem, com um rifle do exército americano, subiu nos ombros dos outros e tentou, sem sucesso, alcançar o alto do muro. — Fico imaginando o que faria se este muro fosse meu e aqueles filhos da mãe começassem a tentar entrar à força.
— Você arrancaria a cabeça deles. O que seria legal. Não seria? Christian subitamente riu.
— Só se conseguisse. — Ele olhou para Erikki. — E quanto a você? Qual é o seu plano?
— Eu não tenho um plano. Só depois que eu falar com McIver. Não houve chance esta manhã. Ele e Gavallan estavam ambos ocupados tentando achar os sócios iranianos, depois eles tiveram um encontro na embaixada britânica com alguém chamado... eu acho que eles disseram Talbot...
Christian disfarçou o seu súbito interesse.
— George Talbot?
— É, isso mesmo. Você o conhece?
— Sim, ele é segundo secretário. — Christian não acrescentou: Talbot também é, secretamente, o chefe do Serviço Secreto do Irã, há anos, e é um agente muito importante. — Eu não sabia que ele ainda estava em Teerã. Pensei que ele tivesse partido há uns dois dias. O que McIver e Gavallan querem com ele?
Erikki deu de ombros e virou-se, observando distraidamente mais jovens tentando escalar o muro, preocupado com o que fazer a respeito dos documentos de Azadeh.
— Eles disseram qualquer coisa a respeito de querer mais informações a respeito de um amigo dele que encontraram no aeroporto ontem. Alguém chamado Armstrong. Robert Armstrong.
Christian Tollonen quase deixou cair o copo.
— Armstrong? — perguntou, forçando-se a parecer calmo, satisfeito de que Erikki estivesse de costas para ele.
— Sim. — Erikki virou-se para ele. — Significa alguma coisa para você?
— É um nome bastante comum — disse o rapaz, satisfeito em ver que sua voz estava normal. Robert Armstrong, Ml6, ex-Unidade Especial, que estivera no Irã sob contrato por vários anos, supostamente emprestado pelo governo britânico, supostamente conselheiro-chefe do Serviço Secreto do Irã; um homem raramente visto em público e conhecido apenas por poucos, na maioria gente que pertencia à comunidade de informações.
Como eu, ele pensou, e ficou imaginando o que Erikki diria se soubesse que ele era um agente de informações especializado no Irã, que sabia um bocado sobre Rakoczy e muitos outros agentes estrangeiros, que a sua principal tarefa era saber tudo a respeito do Irã mas não fazer nada e nunca interferir em nenhum dos grupos combatentes, internos ou externos, apenas esperar, observar, manter-se informado e se lembrar. O que será que Armstrong ainda está fazendo aqui?
Ele se levantou para disfarçar a inquietação, fingindo querer ver melhor a multidão.
— Eles descobriram o que queriam? — perguntou. Mais uma vez Erikki deu de ombros.
— Não sei. Não fui me encontrar com eles. Eu estava... — ele parou e examinou o outro homem. — É importante?
— Não. Não, nem um pouco. Você está com fome? Você e Azadeh estão livres esta noite?
— Desculpe, esta noite não. — Erikki deu uma olhada no relógio. — É melhor eu voltar. Mais uma vez obrigado pela ajuda.
— De nada. O que você estava dizendo a respeito de McIver e Gavallan? Eles têm um plano de mudar as operações aqui?
— Acho que não. Eu deveria encontrá-los às três horas para ir ao aeroporto, mas era mais importante para mim encontrar-me com você e conseguir os passaportes. — Erikki se levantou e estendeu a mão. — Mais uma vez obrigado.
— De nada. — Christian trocou um aperto de mão caloroso com ele. — Vejo-o amanhã.
Agora, na rua, a gritaria cessara substituída por um silêncio pesado. Os dois homens correram para a janela. Toda a atenção se voltara para a rua principal, cujo nome fora Roosevelt. Então eles ouviram a ladainha cada vez mais alta: "Allahhhhh-uuuuu Akbarrrr!"
— Existe uma saída pelos fundos neste prédio? — murmurou Erikki.
— Não, não existe.
A turba que se aproximava tinha mulás e Faixas Verdes nas primeiras filas, a maioria deles armados, bem como a massa de rapazes que os seguiam. Todos gritavam em uníssono, Deus é grande, Deus é grande, e eram muito mais numerosos do que os estudantes que estavam em frente à embaixada, embora estes também estivessem armados.
Imediatamente, os esquerdistas tomaram posições defensivas nas soleiras das portas e no meio do tráfego. Homens, mulheres e crianças, presos nos carros e caminhões, começaram a se espalhar. Os islâmicos estavam se aproximando depressa. À medida que as primeiras filas passavam pelas calçadas e por entre os veículos engarrafados e se aproximavam dos muros iluminados, o ritmo da sua gritaria aumentava, o passo apertava, e todo mundo se colocava em posição. Então, surpreendentemente, os estudantes começaram a recuar. Silenciosamente. Os Faixas Verdes hesitaram, desconcertados.
A retirada foi pacífica e a turba se acalmou. Em pouco tempo os manifestantes se afastaram e agora nenhum deles ameaçava a embaixada. Os mulás e os Faixas Verdes começaram a dirigir o tráfego. Os espectadores, que tinham fugido ou abandonado os seus veículos, respiraram de novo, agradeceram a Deus por sua interferência e voltaram. Imediatamente, as buzinas e os xingamentos recomeçaram, à medida que carros, caminhões e pedestres lutavam por espaço. Os enormes portões de ferro da embaixada não foram abertos, embora abrissem uma pequena porta lateral.
Christian sentiu a garganta seca.
— Eu teria apostado que ia haver uma batalha terrível. Erikki também estava estarrecido.
— É quase como se eles estivessem esperando os Faixas Verdes e soubessem quando e de onde eles viriam. É quase como se fosse um ensaio para algu... Ele parou e chegou mais perto da janela, com o rosto subitamente vermelho. — Olhe! Lá na porta, aquele é Rakoczy.
— Onde? On... Oh, você diz o homem de jaqueta de vôo conversando com o sujeito baixo? — Christian apertou os olhos para enxergar melhor na escuridão lá embaixo. Os dois homens estavam meio na sombra, mas nesse momento eles apertaram-se as mãos e vieram para a luz. Era mesmo Rakoczy. — Você tem certeza que...
Mas Erikki já tinha aberto a porta da frente e estava no meio das escadas. Christian teve apenas um vislumbre dele tirando a sua grande faca pukoh do cinto e escorregando-a para a manga, com metade dela na palma da mão.
— Erikki, não seja idiota — gritou, mas Erikki já tinha desaparecido. Chrisitan correu de volta para a janela e chegou bem a tempo de ver Erikki sair correndo pela porta, abrir caminho no meio da multidão atrás de Rakoczy, que não estava mais à vista.
Mas Erikki não o perdera de vista. Rakoczy estava a uns cinqüenta metros de distância e ele tinha acabado de vê-lo virando para o sul na Roosevelt antes de desaparecer. Quando Erikki chegou na esquina, viu o soviético lá adiante, andando depressa, mas não demais, com muitos pedestres entre eles, o tráfego lento e muito barulhento. Desviando-se de um grupo de caminhões, Rakoczy desceu o meio-fio, esperou que um velho e amassado Volkswagen passasse e olhou em volta. E viu Erikki. Teria sido quase impossível deixar de vê-lo. Ele era quase trinta centímetros mais alto do que todo mundo. Sem hesitação, Rakoczy saiu correndo, ziguezagueando no meio da multidão e tomou uma rua lateral, correndo muito depressa. Erikki o viu sair correndo e foi atrás dele. Os pedestres xingaram os dois, um velho foi derrubado no chão imundo quando Rakoczy abriu caminho para entrar em outra rua.
A rua lateral era estreita, cheia de lixo, sem iluminação e sem nenhuma loja aberta àquela hora, apenas uns poucos pedestres cansados caminhavam para casa, com milhares de portas e arcos desembocando em pardieiros ou em escadas que levavam a outros pardieiros, tudo cheirando a urina, lixo e comida podre.
Rakoczy estava a pouco mais de quarenta metros à frente. Ele virou num beco, esbarrando nos bancos de rua onde famílias dormiam — e davam urros de raiva ao serem acordadas —, mudou de direção e voou de uma passagem para outra, entrou num beco, já completamente perdido, depois em outro e outro. Apavorado, ele parou, vendo que estava num beco sem saída. Ele fez menção de pegar sua automática, então notou uma passagem bem à sua frente e correu para ela.
As paredes ficavam tão próximas umas das outras que ele podia tocar nelas enquanto corria, com a respiração ofegante, penetrando cada vez mais naqueles formigueiros sinuosos. À sua frente, uma velha estava despejando a sujeira da noite no meio da podridão e ele a derrubou, enquanto outros se encostavam nas paredes para sair da sua frente. Agora Erikki estava apenas uns vinte metros atrás, fortalecido pelo ódio, e ele pulou por cima da velha que ainda estava esparramada no chão, e redobrou seus esforços, diminuindo a distância. Virando a esquina, o seu adversário parou e empurrou um velho banco de rua para o meio do caminho. Antes que Erikki pudesse evitar, chocou-se com ele e caiu, meio tonto. Com um berro de raiva, ele se levantou, cambaleou por um momento, pulou por cima do banco e saiu correndo de novo, com a faca na mão, dobrando a esquina.
Mas o beco estava vazio. Erikki parou. Ele respirava com dificuldade e estava banhado em suor. Era difícil enxergar embora a sua visão noturna fosse muito boa. Então ele notou um pequeno arco. Cautelosamente, ele o atravessou, com a faca preparada. A passagem dava para um pátio aberto, cheio de lixo, onde havia uma carcaça enferrujada de um carro. Muitas portas e aberturas davam para este pequeno espaço, algumas conduzindo a escadas precárias e andares superiores. Estava silencioso — um silêncio sinistro. Ele podia sentir olhos observando-o. Ratos saíram do meio do lixo e desapareceram sob uma pilha de entulho.
Num dos lados, havia um outro arco. Sobre ele havia uma antiga inscrição em farsi que ele não soube ler. Do outro lado do arco, a escuridão parecia ainda mais profunda. Essa entrada escura terminava numa porta aberta. A porta era de madeira e ferro e estava com metade das dobradiças quebradas. Do outro lado, parecia haver um cômodo. Quando ele chegou mais perto, viu uma vela acesa.
— O que você quer?
A voz masculina veio da escuridão e a nuca de Erikki ficou eriçada. A voz tinha falado em inglês — não era a de Rakoczy — com um sotaque estrangeiro, e uma rouquidão estranha.
— Quem... quem é você? — Ele perguntou nervoso, com os sentidos alerta na escuridão, imaginando se era Rakoczy fingindo ser outra pessoa.
— O que você quer?
— Eu... eu quero... eu estou seguindo um homem — ele disse, sem saber em que direção falar, com sua voz ecoando estranhamente no teto alto e que ele não podia ver.
— O homem que você procura não está aqui. Vá embora.
— Quem é você?
— Isso não importa. Vá embora.
A chama da vela era apenas uma réstia de luz no meio da escuridão, fazendo com que esta parecesse ainda maior.
— Você viu alguém passar por aqui, passar correndo por aqui?
O homem riu baixinho e disse alguma coisa em farsi. Imediatamente, pés se arrastando e gargalhadas abafadas cercaram Erikki e ele se virou, protegendo-se com a faca.
— Quem são vocês?
O arrastar de pés continuou. De todos os lados. Em algum lugar, derramaram água numa cisterna. O ar tinha um cheiro úmido e rançoso. Ele ouviu barulho de tiros ao longe. Outro arrastar de pés. Ele tornou a virar-se, sentindo que havia alguém perto dele, mas não vendo ninguém, só o arco e a noite escura lá fora. O suor escorria pelo seu rosto. Cautelosamente, ele foi até a porta e encostou as costas na parede, certo agora de que Rakoczy estava lá. O silêncio tornou-se mais pesado.
— Por que você não responde? — disse. — Você viu alguém? Mais uma vez um risinho abafado.
— Vá embora. — Depois o silêncio.
— Por que você está com medo? Quem é você?
— Quem eu sou não lhe interessa, e não existe medo aqui, exceto o seu. — A voz era tão gentil como antes. Então o homem acrescentou alguma coisa em farsi e houve mais risadas em volta dele.
— Por que você fala inglês comigo?
— Eu falo inglês com você porque nenhum iraniano ou leitor da língua do Livro viria aqui de dia ou de noite. Só um idiota viria aqui.
A visão periférica de Erikki viu alguma coisa ou alguém passar entre ele e a chama da vela. Imediatamente, ele preparou a faca.
— Rakoczy?
— É este o nome do homem que você procura?
— Sim. É este. Ele está aqui, não está?
— Não.
— Eu não acredito em você, seja você quem for. Silêncio, depois um profundo suspiro.
— Seja como Deus quiser — e deu uma ordem baixa em farsi que Erikki não entendeu.
Fósforos foram acesos em volta dele. Velas e lamparinas a óleo brilharam. Erikki engasgou. Havia trouxas esfarrapadas encostadas nas paredes e colunas da caverna. Centenas delas. Homens e mulheres. Os doentes, restos podres de homens e mulheres deitados em palha ou farrapos. Olhos em rostos deformados olhando para ele. Pedaços de membros. Um velho encarquilhado estava quase nos pés dele e ele deu um salto, apavorado, para o meio do portal.
— Somos todos leprosos aqui — disse o homem. Ele estava encostado numa coluna, um monte de farrapos. Outro farrapo cobria-lhe os buracos dos olhos. Não havia sobrado quase nada do seu rosto, exceto os lábios. Fracamente, ele fez um gesto com um toco de braço. — Somos todos leprosos aqui. Impuros. Esta é uma casa de leprosos. Você está vendo esse homem entre nós?
— Não. Não. Eu... eu sinto muito. — Disse Erikki, tremendo.
— Sente muito? — A voz do homem era cheia de ironia. — Sim. Nós todos sentimos muito. Insha'Allah! Insha'Allah!
Erikki queria desesperadamente virar-se e fugir, mas suas pernas não se mexiam. Alguém tossiu, uma tosse rouca, assustadora. Então a sua boca disse:
— Quem... quem é você?
— Eu fui um professor de inglês. Agora sou um impuro, um dos mortos-vivos. Como Deus quiser. Vá embora. Deus seja abençoado por sua misericórdia.
Apatetado, Erikki viu o homem fazer um sinal com o resto dos braços. Obedientemente, as luzes começaram a se apagar, com os olhos ainda a observá-lo.
Lá fora, no ar da noite, ele teve que fazer um esforço para não sair cor rendo, aterrorizado, sentindo-se sujo, com vontade de arrancar as roupas imediatamente e se lavar e ensaboar e tornar a se lavar, sem parar.
— Pare com isso — murmurou, com a pele arrepiada. — Não há nada para temer
QUARTA-FEIRA, 14 de fevereiro
NA PRISÃO DE EVIN: 6:29H. A prisão era igual a qualquer outra prisão moderna — nos bons ou maus dias — cinzenta, melancólica, cercada de muros altos, e terrível.
Hoje, o amanhecer estava estranho, o clarão abaixo do horizonte curiosamente vermelho. Não havia nuvens no céu, pela primeira vez em semanas, e embora ainda estivesse frio, prometia ser um dia incomum. Sem neblina. Com o ar fresco e puro para variar. Um vento ameno expulsou a fumaça dos destroços ainda fumegantes dos carros e das barricas dos combates da noite anterior entre os Faixas Verdes, agora legais, e os legalistas, esquerdistas, combinados com policiais e militares, agora ilegais, bem como a fumaça de inúmeros fogões e lareiras dos milhões de habitantes de Teerã.
Os poucos pedestres que passavam pelos muros da prisão e pelo seu enorme portão, que estava quebrado e com as dobradiças arrancadas, evitavam olhar para os Faixas Verdes que se recostavam indolentemente nos muros, e apressavam o passo. Havia pouco tráfego. Um outro caminhão cheio de prisioneiros e guardas se aproximou e parou um momento no portão principal para ser inspecionado. A barricada provisória foi aberta e tornou a ser fechada. Do lado de dentro dos muros houve uma súbita rajada de tiros de rifle. Do lado de fora, os Faixas Verdes bocejaram e se espreguiçaram.
Com a chegada do sol, começou a chamada dos muezins nos minaretes. Na maior parte das mesquitas, suas vozes eram gravadas em cassete e transmitidas por alto-falantes. E onde quer que o chamado fosse ouvido, os fiéis paravam o que estivessem fazendo, viravam-se de frente para Meca e se ajoelhavam para a primeira oração.
Jared Bakravan tinha parado o carro um pouco mais adiante. Agora, junto com o seu motorista e os outros, ele se ajoelhou e rezou. Tinha passado grande parte da noite tentando encontrar seus amigos e aliados mais importantes. A notícia da prisão ilegal de Paknouri e da sua própria intimação ilegal tinha corrido o bazar. Todo mundo ficou indignado, mas ninguém se ofereceu para organizar um prostesto ou uma greve ou para fechar o bazar. Ele tinha recebido muitos conselhos: prostestar junto ao próprio Khomeini, junto ao próprio ministro Bazargan, não aparecer no tribunal, aparecer mas se recusar a responder a qualquer pergunta. "Seja como Deus quiser", mas ninguém tinha se oferecido para ir com ele, nem mesmo o seu grande amigo e um dos maiores advogados de Teerã, que jurou que era mais importante que intercedesse por ele junto aos juizes da Corte Suprema. Ninguém se ofereceu, a não ser sua mulher, seu filho e suas três filhas que rezavam nos seus próprios tapetes de oração, atrás dele.
Ele terminou a oração e se levantou, tremendo. Imediatamente, o motorista começou a recolher os tapetes de rezar. Jared estremeceu. Esta manhã ele se vestira cuidadosamente e estava usando um casaco pesado, um terno e um chapéu de astracã, mas nenhuma jóia.
— Eu... eu vou a pé daqui — disse.
— Não, Jared — sua mulher, chorosa, começou a falar, mal notando os tiros a distância. — Sem dúvida, é melhor chegar como cabe a um líder. Você não é o lojista mais importante de Teerã? Não ficaria bem para um homem da sua posição chegar a pé.
— Sim, sim, sim, você tem razão. — Ele sentou no banco de trás do carro. Era uma Mercedes azul, nova e bem tratada. Sua mulher, uma matrona gorda, com o penteado caro escondido sob um chador que também cobria o seu longo vison marrom, sentou-se ao lado dele e deu-lhe o braço, com a maquilagem marcada de lágrimas. Seu filho, Meshang, estava igualmente choroso. E suas filhas, Xarazade entre elas, todas usavam o chador, — Sim, você tem razão. Que Deus amaldiçoe esses revolucionários!
— Não se preocupe, papai — disse Xarazade. — Deus irá protegê-lo. Os Guardas Revolucionários estão apenas cumprindo as ordens do imã e o imã cumpre apenas as ordens de Deus. — Ela parecia muito confiante, mas estava com uma aparência tão abatida que ele se esqueceu de lhe dizer para não se referir a Khomeini como imã.
— Sim — disse a ela — é claro que tudo isso é um engano.
— Ali Kia jurou sobre o Corão que o primeiro-ministro Bazargan ia parar com toda essa bobagem — disse sua esposa. — Ele jurou que iria se encontrar com ele na noite passada. As ordens provavelmente já chegaram a... já chegaram lá
Na noite anterior, ele dissera a Ali Kia que sem Paknouri não haveria nenhum empréstimo, que se ele próprio fosse perturbado, o bazar se rebelaria e todos os fundos para o governo, para Khomeini, para as mesquitas, e para Ali Kia pessoalmente seriam suspensos.
— Ali não vai falhar — disse com severidade. — Ele não ousaria. Eu sei demais a respeito de todos eles.
O carro parou do lado de fora do portão principal. Preguiçosamente, os Faixas Verdes olharam para ele. Jared Bakravan tomou coragem.
— Eu não vou me demorar.
— Que Deus o proteja. Nós vamos esperar por você aqui. Vamos esperar aqui. — Sua mulher beijou-o e os outros também, e houve mais lágrimas e depois ele se viu diante dos Faixas Verdes.
— Salaam — disse. — Eu... eu sou uma testemunha no tribunal do mulá Ali'allah Uwari.
O líder dos guardas apanhou o papel, olhou-o de cabeça para baixo e entregou-o a um dos outros que sabia ler.
— Ele é do bazar — disse o outro rapaz. — Jared Bakravan. O líder deu de ombros.
— Mostre-lhe o caminho.
O outro homem foi na frente, entrando pelo portão quebrado. Bakravan seguiu-o, e quando a barricada fechou-se atrás dele, grande parte da sua confiança desapareceu. Era sombrio e úmido naquela pequena área suja que ficava entre os muros e o edifício principal. O ar fedia. A leste, havia centenas de homens amontoados, sentados ou deitados, encolhidos por causa do frio. Muitos usavam uniformes — oficiais. A oeste, o espaço estava vazio. À frente, havia um portão alto de ferro que foi aberto para que ele entrasse. Na sala de espera havia dezenas de outros homens, homens cansados e assustados, sentados em fileiras de bancos, em pé ou simplesmente sentados no chão, alguns oficiais uniformizados, e ele notou até um coronel. Alguns dos outros ele reconheceu, importantes homens de negócios, favoritos da corte, administradores, assessores — mas ele não conhecia intimamente nenhum deles. Alguns o reconheceram. Houve um súbito silêncio.
— Depressa — disse o guarda, mal-humorado. Era um rapaz com o rosto marcado de varíola e ele fez um sinal para o funcionário exausto que estava sentado na escrivaninha. — Aqui está mais um para Sua Excelência, o mulá Uwari.
O funcionário recebeu o papel e dirigiu-se a Bakravan.
— Sente-se, será chamado quando precisarem de você.
— Salaam, Excelência — disse Bakravan, chocado com a grosseria do homem. — E quando será isso? Era para eu estar aqui logo depois da primeira...
— Quando Deus quiser. Será chamado quando precisarem de você — repetiu o homem, despachando-o.
— Mas eu sou Jared Bakravan do baz...
— Eu sei ler, aga! — disse o homem, com mais grosseria ainda. — Quando precisarem de você, eles o chamarão. O Irã é um Estado islâmico agora, com uma lei para todos, não uma lei para os ricos e outra para o povo.
Bakravan foi empurrado por outros que estavam sendo levados para junto do funcionário. Tonto de ódio, ele abriu caminho em direção a uma parede.
De um dos lados, um homem usava um balde como sanitário, que já estava cheio, com urina derramando no chão. Vários olhos observaram Bakravan. Alguns murmuraram: — Que a paz de Deus esteja com você. — A sala fedia terrivelmente. Seu coração estava acelerado. Alguém abriu um espaço para ele num banco e, agradecido, ele se sentou.
— Que as bênçãos de Deus caiam sobre vocês, Excelências.
— E sobre você também, aga. Você é acusado?
— Não, não. Eu fui chamado como testemunha — disse, chocado.
— Vossa Excelência é uma testemunha diante do mulá Uwari?
— Sim, sim. Sou, Excelência. Quem é ele?
— Um juiz, um juiz revolucionário — murmurou o homem. Ele tinha uns cinqüenta anos, era pequeno, seu rosto era mais vincado do que o de Bakravan e seu cabelo crescia em tufos. Ele se contorceu nervosamente. — Ninguém aqui parece saber o que está acontecendo nem por que foi chamado, nem quem é Uwari. Sabem apenas que ele foi indicado pelo aiatolá e julga em seu nome.
Bakravan olhou o homem nos olhos e viu o seu terror e se sentiu ainda mais nervoso.
— Vossa Excelência também é uma testemunha?
— Sim, sim, sou, embora por que me chamaram, a mim, que era apenas um gerente nos correios, eu não saiba.
— O correio é muito importante. Eles provavelmente precisam dos seus conselhos. O senhor acha que vamos esperar muito tempo?
— Insha'Allah. Eu fui convocado para ontem, depois da quarta oração, e estou esperando desde então. Eles me mantiveram aqui a noite inteira. Nós temos que esperar até sermos chamados. Aquele é o único banheiro — disse o homem, apontando para o balde. — Foi a pior noite que eu já passei. Terrível. Durante a noite, eles... houve um bocado de tiroteio; há boatos de que mais três generais e uma dúzia de oficiais da Savak foram executados.
— Cinqüenta ou sessenta — disse o homem que estava do outro lado, saindo do seu estupor. — O número deve estar mais próximo de sessenta. A prisão tem mais gente do que percevejos num colchão. Todas as celas estão lotadas. Há dois dias, os Faixas Verdes arrombaram os portões, dominaram os guardas e os puseram nos calabouços, soltando a maioria dos prisioneiros e começando a encher as celas com outros — ele baixou ainda mais a voz — todas as celas estão lotadas, muito mais do que no tempo do xá, que Deus o amaldiçoe por não... A cada hora que passa, os Faixas Verdes estão trazendo mais gente, fedayim, mujhadin, do Tudeh, misturados a nós, inocentes, os fiéis...
— Ele tornou a baixar a voz, com o branco dos olhos aparecendo —, e gente boa que nunca deveria ser tocada... quando a multidão invadiu a prisão, eles acharam instrumentos elétricos e chicotes e... e camas de tortura e... — O canto da sua boca se encheu de espuma. — ...dizem que os novos carcereiros os estão usando e... e que quando a pessoa entra aqui não sai mais. — Lágrimas começaram a formar-se nos seus pequenos olhos, encravados num rosto redondo.
— A comida é horrível, a prisão é horrível e... e eu tenho úlcera de estômago e aquele filho da mãe daquele funcionário não entende que eu tenho que comer uma comida especial...
Houve um tumulto do outro lado e a porta foi aberta com violência. Meia dúzia de Faixas Verdes entraram na sala e começaram a abrir caminho com seus rifles. Atrás deles, outros guardas cercavam um oficial da Força Aérea que caminhava orgulhosamente, com a cabeça erguida, com as mãos amarradas nas costas, o uniforme desgrenhado, com as dragonas arrancadas. Bakravan ficou perplexo. Era o coronel Peshadi, comandante da Base Aérea de Kowiss — outro primo seu.
Outros reconheceram o coronel, pois muito se tinha falado da vitoriosa expedição iraniana a Dhofar, no sul de Omã, da vitória sobre os marxistas do Iêmen do Sul, que tinham desfechado um ataque quase letal contra o Omã, e também da bravura pessoal de Peshadi liderando os tanques iranianos numa batalha-chave.
— Aquele não é o herói de Dhofar? — perguntou alguém, sem poder acreditar.
— Sim, é ele...
— Que Deus nos proteja! Se prenderam até a ele...
Impaciente, um dos guardas empurrou Peshadi por trás, tentando obrigá-lo a andar depressa. Imediatamente, o coronel voltou-se contra ele, embora embaraçado pelas algemas.
— Filho de um cão! — gritou, com a raiva explodindo — Eu estou andando o mais depressa que posso. Que o seu pai queime no inferno! — O Faixa Verde xingou-o de volta, depois enfiou a coronha do rifle no estômago do coronel. Este perdeu o equilíbrio e caiu, à sua mercê. Mas ainda assim ele xingou os seus captores. E os xingou enquanto estes o levantavam, dois de cada lado, e o arrastavam para fora, para o espaço a oeste entre os muros. E lá ele os xingou, a Khomeini, aos falsos mulás e depois gritou:
— Vida longa para o xá, não existe nenhum outro Deus além de Deus. — As balas o silenciaram.
Na sala de espera fez-se um silêncio terrível. Alguém choramingou. Um velho começou a vomitar. Outros se puseram a sussurar, muitos começaram a rezar, e Bakravan achou que tudo aquilo era um pesadelo, seu cérebro cansado rejeitando a realidade. O ar fétido era frio, mas ele se sentia num forno, sufocando. Será que estou morrendo? perguntou a si mesmo, e abriu o colarinho da camisa. Então alguém tocou nele e ele abriu os olhos. Por um momento, não pôde focalizar a vista nem calcular aonde estava. Ele estava deitado no chão, com o homem pequeno inclinando-se ansiosamente sobre ele.
— Você está bem?
— Sim, sim, acho que sim — disse com voz fraca.
— Você desmaiou, Excelência. Tem certeza que está bem?
Várias mãos o ajudaram a se levantar. Ele agradeceu, embotadamente. Seu corpo parecia muito pesado, seus sentidos estavam entorpecidos, os olhos pesados.
— Ouça — murmurou o homem que tinha úlcera — isso é como a Revolução Francesa, a guilhotina e o terror, mas como isso pode acontecer com o aiatolá Khomeini no poder é o que não consigo entender.
— Ele não sabe — disse o homem pequeno, igualmente amedrontado. — Ele não pode saber, ele não é um homem de Deus, piedoso e o mais sábio dos aiatolás?
O cansaço tomou conta de Bakravan e ele se encostou na parede, deixando sua mente divagar.
Mais tarde, uma mão rude despertou-o.
— Bakravan, eles o chamam. Venha!
— Sim, sim — resmungou, e se levantou, sentindo dificuldade em andar, reconhecendo Yusuf, o líder dos Faixas Verdes que tinha ido ao bazar na noite anterior. Foi tropeçando atrás dele, passando no meio dos outros, saiu da sala e caminhou por um corredor, subiu alguns degraus e atravessou um outro corredor sem aquecimento, com celas dos dois lados, vigias nas portas, passando por guardas e outras pessoas que o olharam estranhamente, enquanto alguém chorava ali por perto.
— Para onde... para onde estão me levando?
— Poupe suas energias, você vai precisar delas.
Yusuf parou numa porta, abriu-a e empurrou-o para dentro. A sala era pequena, claustrofóbica, apinhada de homens. No meio, havia uma mesa de madeira com um mulá e quatro rapazes sentados de cada lado dele, alguns papéis e um livro grande do Corão sobre a mesa, uma pequena janela de grades no alto da parede, um raio de sol contra o azul do céu. Havia Faixas Verdes encostados nas paredes.
— Jared Bakravan, o lojista do bazar, o agiota — disse Yusuf. O mulá levantou os olhos da lista que estava examinando.
— Ah, Bakravan, salaam.
— Salaam, Excelência — disse Bakravan, tremendo. O mulá tinha uns quarenta anos, olhos e barba pretos, um turbante branco e uma veste preta. Os homens que o ladeavam estavam na casa dos vinte, com a barba por fazer ou de barba e pobremente vestidos, com suas armas encostadas na parede atrás deles. — Como... como posso ajudá-lo? — perguntou, tentando manter a calma.
— Eu sou Ali'allah Uwari, indicado pelo Komiteh Revolucionário como juiz, e estes homens também são juizes. Esta corte é governada pela Palavra de Deus e pelo Livro Sagrado. — A voz do mulá era áspera e o seu sotaque Qazvini. — Você conhece este Paknouri, conhecido como agiota Paknouri?
— Sim, mas com licença, Excelência, de acordo com a nossa Constituição e com as antigas leis do bazar, o...
— É melhor responder às perguntas — interrompeu um dos rapazes —, nós não podemos perder tempo com discursos! Você o conhece ou não?
— Sim, sim, é ciar...
— Excelência Uwari — Yusuf interrompeu da porta. — Por favor, quem o senhor quer ver em seguida?
— Paknouri, depois... — O mulá consultou a sua lista de nomes. — Depois o sargento Jufrudi, da polícia.
Um dos que estavam sentados na mesa disse:
— Esse cão foi julgado por um outro tribunal revolucionário na noite passada e foi executado hoje de manhã.
— Seja como Deus quiser. — O mulá riscou o nome. Todos os nomes acima daquele tinham sido riscados. — Então traga Hassen Turlak, da cela 573.
Bakravan quase deu um grito. Turlak era um jornalista e escritor altamente respeitado, meio-iraniano, meio-afegão, um crítico zeloso e corajoso do regime do xá, que tinha até passado alguns anos na prisão por causa da sua oposição.
O rapaz barbado que estava ao lado do mulá coçou, irritado, as perebas do rosto.
— Quem é Turlak, Excelência? O mulá leu na lista.
— Um repórter de jornal.
— É uma perda de tempo ouvi-lo. É claro que ele é culpado — disse um outro. — Não foi ele que afirmou que a Palavra devia ser mudada, que as Palavras do Profeta não serviam para hoje? Ele é culpado, é claro que é culpado.
— Seja como Deus quiser. — O mulá voltou a sua atenção para Bakravan. — Paknouri. Ele alguma vez praticou agiotagem?
Bakravan tirou Turlak da cabeça.
— Não, nunca, e ele...
— Ele emprestava dinheiro a juros.
O estômago de Bakravan ardeu. Ele viu os frios olhos pretos e tentou fazer o seu cérebro trabalhar.
— Sim, mas numa sociedade moderna os ju...
— Não está escrito de forma clara no Sagrado Corão que emprestar dinheiro a juros é agiotagem e contra a lei de Deus?
— Sim. A agiotagem é contra a lei de Deus, mas na sociedade moder...
— O Sagrado Corão é perfeito. A Palavra é clara e eterna. Agiotagem é agiotagem. A lei é a lei. — Os olhos do mulá fixaram-no. — Você defende alei?
— Sim, sim, Excelência, é claro que sim.
— Você pratica os Cinco Mandamentos do Islã? — Esses eram obrigatórios para todos os muçulmanos: recitar o Shahada; orar cinco vezes por dia; dar voluntariamente o Zakat, uma taxa anual, um décimo; jejuar do amanhecer até o anoitecer durante o mês sagrado do Ramadan; e, finalmente, fazer o Hajj, a viagem ritual a Meca uma vez na vida.
— Sim, sim, exceto... exceto o último. Eu ainda não fiz a minha peregrinação a Meca. Ainda não.
— Por que não? — O jovem com o rosto marcado perguntou. — Você tem mais dinheiro do que moscas em bosta de burro. Com o seu dinheiro você podia ir em qualquer máquina voadora, qualquer uma! Por que não?
— É... é a minha saúde — disse Bakravan, mantendo os olhos baixos e rezando para a mentira soar convincente. — O meu... meu coração é fraco.
— Quando você esteve na mesquita pela última vez? — perguntou o mulá.
— Na sexta-feira passada, na mesquita do bazar — respondeu. Era verdade, só que ele não tinha ido lá para rezar, mas para uma reunião de negócios.
— Este Paknouri, ele praticava os Cinco Mandamentos como um verdadeiro crente? — perguntou um dos jovens.
— Eu... eu acho que sim.
— Todo mundo sabe que não, todo mundo sabe que ele era um partidário do xá. Hein?
— Ele era um patriota, um patriota que apoiou financeiramente a revolução e o aiatolá Khomeini, que as bênçãos de Deus caiam sobre ele, que tem apoiado financeiramente os mulás ao longo dos anos e...
— Mas ele falava americano e trabalhava para os americanos e para o xá, ajudando-os a explorarem e roubarem as riquezas do nosso solo, não é?
— Ele, ele era um patriota que trabalhava com os estrangeiros para o bem do Irã.
— Quando o Satã, o xá, ilegalmente formou um partido, Paknouri se alistou, e serviu ao xá nos Majlis, não é? — perguntou o mulá.
— Ele foi um representante, sim — respondeu Bakravan. — Mas ele trabalhou para a rev...
— E ele votou a favor da chamada Revolução Branca do xá que roubou terras das mesquitas, decretou a igualdade das mulheres, implantou tribunais civis e educação estatal contra as leis do Sagrado Corão...
É claro que ele tinha votado a favor disso, Bakravan teve vontade de gritar, com o suor escorrendo pelo rosto e pelas costas. É claro que todos nós votamos a favor! O povo não votou a favor, em massa, e até mesmo muitos aiatolás e mulás? O xá não controlava o governo, a polícia, a Savak, as Forças Armadas e não possuía quase toda a terra? O xá era o poder máximo. Maldito xá, pensou, fora de si de raiva, maldito xá e maldita Revolução Branca de 1963, que começou a confusão, enlouqueceu os mulás e continua a nos prejudicar, todas as suas 'reformas modernas' que foram diretamente responsáveis pela notoriedade do então obscuro aiatolá Khomeini. Nós, os lojistas do bazar, não avisamos mil vezes aos conselheiros do xá? Como se alguma daquelas reformas tivesse importância. Como se alguma daquelas reformas..
— Sim ou não?
Ele voltou subitamente à realidade e amaldiçoou a si mesmo. Concentre-se! pensou em pânico. Este maldito filho de um cão leproso está tentando apanhá-lo! O que foi que ele perguntou? Tenha cuidado. Pela sua vida, tenha cuidado! Ah, sim, a Revolução Branca!
— Emir Paknouri...
— Em nome de Deus, sim ou não! — O mulá interrompeu-o rudemente.
— Ele... sim... sim, ele votou a favor da... da Revolução Branca quando era representante nos Majlis. Sim, sim, ele o fez.
O mulá suspirou e os rapazes se mexeram nas cadeiras. Um deles bocejou e se coçou, brincando distraidamente com o próprio sexo.
— Você é um representante?
— Não, não, eu renunciei quando o aiatolá Khomeini ordenou. O...
— Você quer dizer quando o imã Khomeini, o imã ordenou?
— Sim, sim — disse Bakravan, agitado. — Eu renunciei, ahn, assim que o imã ordenou, eu... eu renunciei imediatamente — disse, e não acrescentou: Nós todos renunciamos por sugestão de Paknouri quando se teve certeza de que o xá decidira partir e passar o poder para o moderado e sensato primeiro-ministro Bakhtiar, mas não para o poder ser usurpado por Khomeini, ele teve vontade de gritar, este nunca foi o plano! Que Deus amaldiçoe os americanos que nos venderam, os generais que nos entregaram, o xá que é o responsável! — Todo mundo sabe... sabe que eu apoiei o imã, que ele viva para sempre.
— Sim, que a bênção de Deus caia sobre ele — repetiu o mulá junto com os outros. — Mas você, Jared Bakravan do bazar, você alguma vez praticou a agiotagem?
— Nunca — Bakravan disse imediatamente, acreditando nisso, embora entrando em pânico. Eu tenho emprestado dinheiro a minha vida inteira, mas os juros têm sido sempre justos e razoáveis, nunca de agiota, nunca. E todas as vezes que eu agi como conselheiro para diversas pessoas e ministros, conseguindo empréstimos, públicos e privados, transferindo fundos para fora do Irã, privados e públicos, ganhando dinheiro, um bocado de dinheiro, isso foi apenas bom negócio e não contra a lei. — Eu me opus à... eu me opus à Revolução Branca e ao xá, sempre que pude. Todo mundo sabia que eu me opu...
— O xá cometeu crimes contra Deus, contra o Islã, contra o Sagrado Corão, contra o imã, que Deus o proteja, contra a fé xiita. Todos aqueles que o ajudaram são igualmente culpados. — Os olhos do mulá eram implacáveis. — Quais são os crimes cometidos por você contra Deus e a Palavra de Deus?
— Nenhum — ele exclamou, chegando ao limite das suas forças. — Em nome de Deus, eu juro, nenhum!
A porta se abriu. Yusuf entrou na sala com Paknouri. Bakravan quase desmaiou de novo. As mãos de Paknouri estavam algemadas para trás. Fezes e urina manchavam as suas calças e havia vômito na frente do seu casaco. Sua cabeça balançava incontrolavelmente, seu cabelo estava embaraçado e imundo, ele havia perdido a razão. Quando ele viu Bakravan, seu rosto se contorceu numa careta.
— Ah, Jared, Jared, velho amigo e colega, Excelência, você veio se juntar a nós no inferno? — Ele deu uma gargalhada. — Não é como eu imaginava, os demônios ainda não chegaram, nem o óleo fervente nem as chamas, mas não existe ar, só fedor, e você fica apertado contra os outros e não pode nem deitar nem sentar, então você fica em pé e aí os gritos recomeçam e os tiros e, o tempo todo, você está sobre um ovo, apertado como uma ova de caviar, mas mas mas... — Ele interrompeu aquele delírio meio incoerente quando viu o mulá. O terror tomou conta dele. — Você é... você é Deus?
— Paknouri — disse gentilmente o mulá — você é acusado de crimes contra Deus. Esta testemunha de acusação diz que...
— Sim, sim, eu cometi crimes contra Deus, eu sou culpado — Paknouri gritou. — Se não, por que eu estaria no inferno? — Ele caiu de joelhos, num acesso de choro, delirando. — Não há nenhum deus além de Deus não é Deus, não há nenhum Deus e Maomé é o seu Profeta de nenhum Deus e... — De repente, ele parou. Seu rosto estava ainda mais contorcido quando ele levantou a cabeça. — Eu sou Deus. Você é Satã!
Um dos rapazes quebrou o silêncio, chocado.
— Ele é um blasfemador. Ele está possuído por Satã. Ele se declarou culpado. Seja como Deus quiser.
Todos os outros balançaram a cabeça, concordando. O mulá disse:
— Seja como Deus quiser. — Ele fez um sinal para um Faixa Verde, que levantou Paknouri e o levou embora e olhou para Bakravan que olhava fixamente para o amigo, horrorizado pela rapidez com que ele fora destruído da noite para o dia. — Agora, Bakravan, você...
— Eu estou com este Turlak esperando lá fora — disse Yusuf, interrompendo-o.
— Ótimo — disse o mulá. Então ele tornou a olhar para Bakravan e este soube que estava tão perdido quanto o seu amigo Paknouri, e que a sentença seria a mesma. Ele sentia o sangue bater nos seus ouvidos. Ele viu os lábios do mulá se movendo, até que pararam e todo mundo olhava para ele
— Por favor? — perguntou, sem entender. — Eu... eu sinto muito, mas não ouvi o que o senhor... o que o senhor disse.
— Você pode sair. Por ora. Faça o trabalho de Deus. — Impaciente, o mulá olhou para um dos Faixas Verdes, um homem alto e feio. — Ahmed, leve-o para fora! — Depois para Yusuf: — Depois de Turlak, o capitão de polícia Muhammad Dezi, cela 917...
Bakravan sentiu um puxão no braço e se virou e saiu. No corredor, ele quase caiu, mas Ahmed o segurou e, com uma gentileza inesperada, encostou-o na parede.
— Recupere o seu fôlego, Excelência — disse.
— Eu... eu estou livre para partir?
— Eu estou tão surpreso quanto o senhor, aga — disse o homem. — Diante de Deus e do Profeta, eu estou tão surpreso quanto o senhor, o senhor é o primeiro a ser libertado hoje, entre acusados e testemunhas.
— Eu... há... há um pouco d'água aqui?
— Aqui não. Mas há muita água lá fora. É melhor o senhor sair. — Ahmed baixou ainda mais a voz. — É melhor sair, hein? Apóie-se no meu braço.
Agradecido, Bakravan apoiou-se nele, mal respirando. Vagarosamente, eles voltaram pelo mesmo caminho por onde tinham vindo. No corredor que levava à sala de espera, Ahmed passou por uma porta lateral, que dava para o espaço que ficava a oeste. O pelotão de fuzilamento estava lá, com três homens amarrados em postes em frente a eles. Um dos postes estava vazio. A bexiga e os intestinos de Bakravan se esvaziaram sem ele querer.
— Depressa, Ahmed! — disse o encarregado, irritado.
— Seja como Deus quiser — disse Ahmed. Alegremente, ele quase carregou Bakravan para o poste vazio que ficava ao lado do de Paknouri, que estava delirando, perdido no seu próprio inferno. — Então você não vai escapar, afinal. Está certo, nós todos ouvimos as suas mentiras, mentiras diante de Deus. Nós todos o conhecemos, conhecemos os seus métodos, conhecemos a sua falta de piedade, sabemos como você tentou comprar o seu caminho para o paraíso com presentes para o imã, que Deus o proteja. Onde você conseguiu todo esse dinheiro, senão através da agiotagem e do roubo?
A rajada de balas não foi bem dada. O encarregado usou displicentemente um revólver para silenciar um dos condenados, depois Bakravan.
— Eu não o teria reconhecido — disse secamente o homem. — Isso mostra o quanto os jornais são traiçoeiros e mentirosos.
— Este não é Hassen Turlak — disse Ahmed —, ele vem depois. O homem olhou para ele.
— Então quem é esse?
— Um lojista do bazar — disse Ahmed. — Os lojistas são agiotas e ímpios. Eu sei. Durante anos eu trabalhei lá, para Farazan, recolhendo o lixo da noite, como meu pai antes de mim, até me tornar pedreiro como Yusuf. Mas esse aí... — Ele arrotou. — Ele era o agiota mais rico. Eu não me lembro de muita coisa a respeito dele, a não ser de como ele era rico, mas me lembro de tudo a respeito das mulheres dele; ele nunca dobrou nem educou as suas mulheres, que nunca usaram o chador, e viviam se exibindo. Eu me lembro muito bem daquela filha dele que visitava a rua dos Agiotas de vez em quando, semi despida, com a pele fresca como creme, o cabelo solto, os seios balançando, as nádegas convidativas, aquela chamada Xarazade, que é a imagem perfeita de uma huri. Eu me lembro de tudo a respeito dela e de como eu a amaldiçoava por colocar maldade na minha cabeça, enlouquecendo-me, como a todos nós, por nos tentar. — Ele coçou o saco, sentindo o pênis endurecer. Que Deus a amaldiçoe e a todas as mulheres que desobedecem à lei de Deus e nos provocam maus pensamentos contra a palavra de Deus. Oh, Deus, deixe-me penetrá-la ou faça de mim um mártir para que eu vá diretamente para o paraíso e faça isso lá. — Ele era culpado de todos os crimes — disse, virando-se.
— Mas... mas ele foi condenado? — perguntou o encarregado do pelotão de fuzilamento.
— Deus o condenou, é claro. Ele o fez. O poste estava vazio e você disse para eu me apressar. Foi a Vontade de Deus. Deus é grande. Deus é grande. Agora eu vou buscar Turlak, o blasfemador. — Ahmed deu de ombros. — Foi a Vontade de Deus.
PERTO DE BANDAR DELAM: 11:58H. Estava na hora da oração de meio-dia e o ônibus velho, vacilante, superlotado, parou na faixa de acostamento. Obedientemente, seguindo o comando de um mulá que era também um dos passageiros, todos os muçulmanos desembarcaram, abriram os seus tapetes de oração e agora encomendavam suas almas a Deus. Exceto pela família hindu, que ficou com medo de perder os lugares, a maioria dos passageiros não-muçulmanos tinha também desembarcado — Tom Lochart entre eles — contente pela oportunidade de esticar as pernas ou aliviar a bexiga. Armênios cristãos, judeus orientais, um casal de nômades kash'kaique, embora muçulmanos, estavam desobrigados por um antigo costume, de fazer a oração do meio-dia e suas mulheres não precisavam usar nem o véu nem o chador, dois japoneses, alguns árabes cristãos — todos eles conscientes do europeu solitário.
O dia estava quente, nublado e úmido por causa da proximidade das águas do golfo. Tom Lochart recostou-se fatigado sobre o capô, que fervia com o motor superaquecido, com a cabeça doendo, as juntas doendo, os músculos doendo, por causa da marcha forçada desde Dez Dam — que estava agora a mais de trezentos quilômetros para o norte — e por causa do desconforto do ônibus lotado e barulhento. Desde Ahwaz, onde conseguira passar uma conversa nos Faixas Verdes e entrar no ônibus, ele estivera espremido num assento que mal dava para dois, que dirá três homens, um deles, um jovem Faixa Verde que carregava o seu M14 junto com o filho, enquanto sua mulher grávida viajava em pé no estreito corredor, junto com mais trinta, no espaço de quinze. Todos os outros lugares estavam igualmente lotados com homens, mulheres e crianças de todas as idades. O ar era fétido, vozes tagarelavam numa confusão de línguas. Acima das cabeças e sob os pés, malas, pacotes e sacolas, bolsas cheias de legumes ou galinhas semimortas, uma ou duas cabras subnutridas — os bagageiros do teto do ônibus estavam igualmente lotados.
Mas eu tenho muita sorte em estar aqui, pensou, com o desespero voltando, mal ouvindo a ladainha do Shahada.
Na véspera, ao entardecer, depois de ouvir o 212 decolar de Dez Dam, saíra de baixo do pequeno ancoradouro, agradecendo a Deus por ter escapado. A água estava muito fria e ele tremia, mas pegou a automática, verificando seu mecanismo, e depois subiu até a casa que estava aberta. Havia comida e bebida na geladeira que ainda funcionava perfeitamente, impulsionada por um gerador. Estava quente dentro de casa. Tirou as roupas e secou-as sobre um aquecedor, xingando Valik e Seladi e desejando que fossem para o inferno. Filhos da puta! O que foi que eu fiz para eles, além de salvar os seus malditos pescoços?
O calor e o conforto da casa eram tentadores. Seu cansaço chegava a doer. Tinha passado a noite anterior em Isfahan quase em claro. Podia dormir e partir de madrugada, pensou. Tenho uma bússola e conheço mais ou menos o caminho: contornar o campo de aviação de Ali Abbasi, depois tomar o rumo leste para pegar a estrada Kermanshah—Ahwaz—Abadan. Não deve haver problema para se conseguir apanhar um ônibus ou pegar uma carona. Ou podia partir agora — o luar vai iluminar o caminho e assim não serei apanhado aqui, se a base aérea enviar uma patrulha. — Ali estava tão nervoso por causa disso quanto Seladi e poderíamos ter sido localizados facilmente. Facilmente. Mas de qualquer maneira, caso seja apanhado, qual vai ser a história?
Pensou sobre isso enquanto preparava um conhaque com soda e um pouco de comida. Valik e os outros tinham aberto duas latas de meio quilo do melhor caviar cinzento beluga e tinham-nas abandonado displicentemente na mesa da sala, parcialmente cheias. Comeu com grande avidez e depois jogou as latas no lixo que estava do lado de fora da porta dos fundos. Depois trancou a casa e partiu.
A marcha forçada pelas montanhas fora difícil, mas não tão difícil quanto esperara. Pouco depois do amanhecer, descera até a estrada Kermanshah—Ahwaz—Abadan. Quase imediatamente, conseguira uma carona com alguns operários coreanos que estavam deixando a usina de aço que construíam sob contrato em Kermanshah — era quase um costume os estrangeiros ajudarem outros estrangeiros na estrada. Eles se dirigiam ao aeroporto de Abadan onde ouviram dizer que havia um avião esperando para levá-los de volta à Coréia.
— Há muita luta em Kermanshah — disseram, num inglês hesitante.
— Todo mundo tem arma. Iranianos matam uns aos outros. Todos malucos, bárbaros, piores que japoneses. — Os coreanos o deixaram perto do terminal de ônibus de Ahwaz. Milagrosamente, conseguira arranjar um lugar no próximo ônibus que passava por Bandar Delam.
— Sim. Mas e agora? Sombriamente, recordou como, depois de ter jogado as latas vazias de caviar no lixo, pensara melhor e voltara para recolhê-las e enterrá-las, limpando o copo que usara e até a maçaneta da porta. Você tem que mandar examinar a cabeça, como se eles fossem verificar impressões digitais! Sim, mas na hora eu achei melhor não deixar nenhum traço de que estivera lá.
Você está doido! Seu nome está na licença de vôo de Teerã, há o transporte não-autorizado de Valik e sua família, a fuga de Isfahan, o fato de 'ter transportado inimigos do Estado, ajudando-os a escapar' para explicar — seja à Savak ou a Khomeini! E como é que a S-G ou McIver vão justificar a falta de um helicóptero iraniano que vai aparecer no Kuwait ou em Bagdá ou seja lá onde for?
Que maldita confusão! Sim. E há Xarazade...
— Não se preocupe, aga — seu pensamento foi interrompido —, estamos todos nas mãos de Deus.
Era o mulá e estava sorrindo para ele. Era um homem jovem, barbado, que entrara no ônibus em Ahwaz com a mulher e três filhos. Trazia um rifle pendurado no ombro.
— O motorista me disse que você fala farsi, que vem do Canadá e é um seguidor do Livro?
— Sim, sim, eu sou, aga — respondeu Lochart, reunindo toda a sua força de vontade. Viu que a oração terminara e que agora todo mundo se amontoava na porta do ônibus.
— Então você irá para o céu, como o Profeta prometeu, se for julgado merecedor, embora não para a nossa parte do céu. — O mulá sorriu timidamente. — O Irã será o primeiro Estado islâmico verdadeiro do mundo, desde o tempo do Profeta. — Mais uma vez o sorriso tímido. — Você é... você é o primeiro estrangeiro seguidor do Livro que eu conheço. Você aprendeu a falar farsi no colégio?
— Fui para um colégio, Excelência, mas a maior parte do tempo eu tive professores particulares. — Lochart apanhou sua valise de piloto, que trazia com ele por precaução, e foi para a fila. Seu lugar já estava ocupado. Na margem da estrada, vários passageiros aliviavam a bexiga ou eva cuavam, homens, mulheres e crianças.
— E Vossa Excelência trabalha com petróleo? — O mulá foi para a fila junto com ele, e imediatamente as pessoas saíram do caminho para dar-lhe passagem. Dentro do ônibus, os passageiros já estavam discutindo, e alguns gritavam com o motorista para que se apressasse.
— Sim, para a grande IranOil — disse Lochart, bem consciente de que os que estavam por perto também escutavam, tentado chegar mais perto para ouvir melhor. Não falta muito agora, pensou, o aeroporto não pode estará mais de alguns quilômetros à frente. Pouco antes do meio-dia avistara um 212 se preparando para descer, vindo da direção do golfo. O aparelho estava muito distante para que pudesse ver se era civil ou militar, mas ia na direção do aeroporto. Vai ser formidável encontrar Rudi e os outros, dormir e...
— O motorista disse que o senhor estava de férias perto de Kermanshah?
— Em Luristan, ao sul de Kermanshah. — Lochart se concentrou. Tornou a contar a história que tinha preparado, a mesma que contara ao vendedor de passagens em Ahwaz, e aos Faixas Verdes que também quiseram saber quem ele era e por que estava em Ahwaz. — Eu estava viajando de carona pelo norte de Luristan, nas montanhas, e fiquei preso numa aldeia por causa de uma nevasca, por uma semana. O senhor está indo para Shiraz? — Essa era a destinação final do ônibus.
— É em Shiraz que fica a minha mesquita e foi lá que eu nasci. Venha. Vamos nos sentar juntos. — O mulá pegou o lugar mais próximo, ao lado de um velho, pôs um dos seus filhos no colo, junto com a arma, e deixou espaço para Lochart do lado do corredor. Relutante, Lochat obedeceu, sem muita vontade de se sentar ao lado de um mulá falante e inquisidor, mas ao mesmo tempo grato por conseguir um lugar. O ônibus estava enchendo rapidamente. As pessoas passavam por ele tentando arranjar lugar ou ir mais para trás.
— O seu país, o Canadá, faz fronteira com o Grande Satã, não?
— O Canadá e a América têm fronteiras comuns — disse Lochart, com a bile subindo à boca. — A grande maioria dos americanos são Gente do Livro.
— Ah, sim, mas muitos são judeus e sionistas, e judeus e sionistas e cristãos são contra o Islã, são inimigos do Islã, e portanto inimigos de Deus. Não é verdade que os judeus e os sionistas governam o Grande Satã?
— Se o senhor está se referindo à América, aga, não é verdade.
— Mas se o imã diz que é, então é. — O mulá foi bastante gentil e confiante e citou o Corão: — Pois Deus está zangado com eles, e eles viverão atormentados para sempre. — E depois acrescentou: — Se o imã...
Houve um tumulto no fundo do ônibus e eles se viraram e viram um dos iranianos puxar raivosamente o indiano de turbante para fora do seu assento para tomar o lugar dele. O indiano deu um sorriso forçado e ficou em pé. De acordo com o costume, era sempre o primeiro a se sentar que tinha o direito de ficar sentado sem ser molestado. A torrente de vozes recomeçou e agora um outro homem, apertado no corredor, começou a xingar todos os estrangeiros em voz alta. Estava malvestido, armado, e ao lado de dois japoneses que estavam apertados num banco junto com um velho curdo maltrapilho, olhando para eles.
— Por que estrangeiros infiéis podem ficar sentados enquanto eu estou em pé? Com a ajuda de Deus, não somos mais lacaios de infiéis! — disse o homem, com mais raiva ainda e fez um sinal para eles, dizendo: — Fora!
Nenhum dos dois japoneses se mexeu. Um deles tirou os óculos e sorriu para o homem. O homem hesitou, começou a avançar mas pensou melhor e então virou-se e gritou para o motorista andar depressa. Pouco antes do japonês tornar a pôr os óculos, seu olhar cruzou com o de Lochart, e ele o cumprimentou com a cabeça e sorriu.
Lochart devolveu o sorriso. Em Ahwaz, enquanto estavam todos se dirigindo para o ônibus, um dos japoneses dirigira-se a Lochart num inglês razoável:
— Siga-nos, senhor, na hora do rush, os ônibus e trens de Tóquio são muito piores. — Demonstrando extrema gentileza, os dois abriram espaço rapidamente, encontraram um lugar para ele e foram sentar-se no fundo do ônibus. Durante a parada de meio-dia, tinham conversado rapidamente, eles disseram que eram engenheiros voltando de uma licença e que estavam indo para a Irã-Toda.
— Ah — disse alegremente o mulá, vendo o motorista voltar para o seu lugar —, agora nós vamos continuar, graças a Deus.
Com um grande floreio, o motorista ligou o motor e o ônibus saiu se arrastando.
— Próxima parada: Bandar Delam — gritou. — Se Deus quiser.
— Se Deus quiser. — O mulá estava muito satisfeito. Mais uma vez voltou a atenção para Lochart e gritou por sobre o barulho: — Aga, o que o senhor estava dizendo a respeito do Grande Satã?
Lochart estava com os olhos fechados e fingiu que não tinha ouvido.
— O que o senhor estava dizendo, aga, sobre o Grande Satã? — repetiu o mulá, tocando nele.
— Eu não estava dizendo nada, aga.
— O quê? Eu não ouvi.
Lochart manteve um ar gentil, sabendo do perigo que corria, e disse mais alto:
— Eu não estava dizendo nada, aga. Viajar é cansativo, não? — Tornou a fechar os olhos. — Acho que vou dormir um pouco.
— Por que não diz nada? — Um rapaz que estava em pé no corredor gritou para ele acima do barulho do motor. — A América é responsável por todos os nossos problemas. Se não fosse pela América, haveria paz no mundo inteiro!
Obstinadamente, Lochart manteve os olhos fechados e tentou fechar os ouvidos, sabendo que estava quase explodindo. Uma parte dele desejando estar com a automática no bolso, a outra parte satisfeita por ela estar na mala. Ele sentiu o mulá sacudindo-o.
— Antes de dormir, aga, o senhor não concorda que o mundo seria muito melhor sem a maldade dos americanos?
Lochart lutou para controlar a raiva e conservou os olhos fechados. Outra sacudidela, bem mais rude, desta vez vinda do corredor, e o homem gritou no seu ouvido:
— Responda à Sua Excelência!
De repente, ficou cheio de toda a propaganda antiamericana e de todas as mentiras que eram impostas continuamente a eles. Branco de raiva, abriu os olhos, empurrou a mão do homem e explodiu em inglês:
— Bem, eu vou lhe dizer, mulá, é melhor você agradecer a Deus pelo fato da América existir, porque sem ela não haveria nada no mundo e nós todos estaríamos num maldito gulag ou debaixo da maldita terra, você, eu, esse idiota e até Khomeini!
— O quê?
Viu o mulá olhando espantado para ele — e percebeu que tinha falado em inglês. Pondo um freio na língua, disse em farsi, sabendo que não havia nenhuma maneira de explicar logicamente:
— Eu estava citando a Sagrada Bíblia em inglês — disse, inventando uma mentira. — Estava citando Abraão quando este estava muito zangado. Abraão disse: "A maldade entra na terra sob muitas formas... é dever do fiel proteger-se contra a maldade, qualquer maldade... toda a maldade". Não é?
O mulá o olhou estranhamente e citou o Corão:
— "E Deus disse a Abraão, Eu farei de você um líder da humanidade, e Abraão disse, e também dos meus descendentes! Deus disse: As minhas promessas não incluem os ímpios."
— Concordo — disse Lochart. — E agora preciso meditar sobre Deus, o único Deus, o Deus de Abraão e Moisés e Jesus e Maomé, cujo Nome seja louvado! — Lochart fechou os olhos. Seu coração disparara. A qualquer momento, esperava que o rapaz batesse com a coronha do rifle na sua cara ou que o mulá mandasse parar o ônibus. Não esperava nenhuma piedade. Mas o momento passou e eles o deixaram entregue às suas supostas orações.
O mulá suspirou, apertado contra o infiel pela falta de espaço. Eu me pergunto como um infiel pode rezar, estava pensando. O que será que ele diz para Deus — mesmo sendo uma pessoa do Livro? Como eles são dignos de pena!
NO AEROPORTO DE BANDAR DELAM: 12:32H. O carro da Força Aérea iraniana passou pelos guardas sonolentos do portão, com a bandeira verde de Khomeini esvoaçando, e parou numa nuvem de poeira ao lado do trailer que servia de escritório para Rudi. Dois oficiais elegantemente uniformizados saltaram. Junto com eles, havia três Faixas Verdes.
Rudi Lutz saiu para se encontrar com os oficiais — um major e um capitão. Quando viu o capitão, o seu rosto se iluminou.
— Alô, Hushang. Eu estava imaginando como você estaria... O oficial mais velho interrompeu-o com raiva.
— Eu sou o major Qazani. Serviço Secreto da Força Aérea. O que pretendia um helicóptero iraniano sob o seu controle ao tentar sair do espaço aéreo iraniano, desobedecendo várias vezes as instruções de um interceptador e ignorando totalmente as ordens de terra?
Rudi olhou-o sem compreender.
— Só há um helicóptero meu no ar, e ele está atendendo a uma emergência pedida pelo controle de radar de Abadan.
— Qual é o seu registro?
— EP-HXX. Do que se trata, afinal?
— É isso que eu quero saber. — O major Qazani passou por ele, entrou no trailer e se sentou. Os seus Faixas Verdes ficaram esperando. — Venha! — disse o major, irritado. — Sente-se, capitão Lutz.
Rudi hesitou, depois sentou-se na sua mesa. Alguns buracos de bala na parede deixavam entrar luz atrás deles. Os Faixas Verdes e o outro oficial entraram e fecharam a porta.
— O HXX é um 206 ou um 212? — perguntou o major.
— É um 212. O que...
— Quantos 212 o senhor tem aqui?
— Dois. HXX e HGC. O radar de Abadan deu permissão para o HXX sair para atender a uma emergência em Kowiss ontem, com feridos por causa de um ataque dos fedayins na madrugada de ont...
— Sim, nós soubemos disso. E soubemos que vocês ajudaram os guardas a mandá-los para o inferno que eles merecem, e agradeço muito por isso, O EP-HBC é um 212 registrado pela S-G?
Rudi hesitou.
— Eu não sei dizer assim de pronto, major. Não tenho os registros aqui de todos os nossos 212, mas poderia descobrir, se conseguisse me comunicar com a nossa base em Kowiss. O rádio não está funcionando desde ontem. Agora, por favor, vou ajudar, se puder, mas do que se trata?
O major Qazani acendeu um cigarro, ofereceu um a Rudi, que sacudiu a cabeça.
— Trata-se de um 212, EP-HBC, acreditamos que seja um 212 operado pela S-G, com um número desconhecido de pessoas a bordo, que atravessou a fronteira do Iraque pouco antes do pôr-do-sol na noite passada, sem nenhuma autorização, ignorando, como já disse, ignorando ordens explícitas do radar para pousar.
— Eu não sei nada sobre isso. — A mente de Rudi estava trabalhando depressa. Tinha que ser alguém fugindo, pensou. — Esse pássaro não é nosso. Nós não podemos nem ligar os motores sem licença do controle de Abadan. É o procedimento obrigatório.
— Como você explicaria então o HBC?
— Pode ser um aparelho da Guerney levando embora uma parte do seu pessoal, ou da Bell, ou de qualquer uma das outras companhias de helicópteros. Tem sido difícil, às vezes impossível, registrar um plano de vôo ultimamente. O senhor sabe o quanto, ahn, o quanto o radar tem estado instável nas últimas semanas.
— Instável não é uma boa palavra — disse o capitão Hushang Ab-basi. Ele era um homem esbelto, muito bonito, com um bigode bem aparado e óculos escuros, e usava insígnias no seu uniforme. Durante todo o ano anterior tinha servido em Kharg, onde ele e Rudi vieram a se conhecer. — E se fosse um aparelho da S-G?
— Então haverá uma explicação plausível. — Rudi estava satisfeito por Hushang ter resistido à revolução, especialmente por ele ter sempre criticado francamente o fato dos mulás se meterem no governo. — O senhor tem certeza que era ilegal?
— Eu tenho certeza que aviões legais possuem autorização, que aviões legais obedecem aos regulamentos aéreos e que aviões legais não empreendem manobras de fuga e correm para a fronteira — disse Hushang.
— E estou quase certo de que vi um emblema da S-G na minha primeira passagem, Rudi.
Os olhos de Rudi se estreitaram. Hushang era um piloto muito bom.
— Era você que estava pilotando o interceptador?
— Eu conduzi a operação de defesa. Fez-se silêncio no trailer.
— O senhor se importa que eu abra uma janela, major? A fumaça — ela me dá dor de cabeça.
— Se o HBC for um helicóptero da S-G, alguém vai ter mais do que uma dor de cabeça — respondeu irritado o major.
Rudi abriu a janela. HBC parece o registro de um dos nossos helicópteros. O que será que está havendo? Parece que estamos sob algum feitiço nos últimos dias: primeiro foi aquele psicopata do Zataki e o assassinato do nosso mecânico, depois o pobre do Kyabi, depois o ataque dos malditos esquerdistas fedayins na madrugada de ontem, quase nos matando e ferindo Jon Tyrer. Cristo, espero que Jon esteja bem! E agora mais encrenca.
Tornou a se sentar, sentindo-se muito cansado.
— O melhor a fazer é perguntar.
— Até onde vocês operam para o norte? — perguntou o major.
— Normalmente? Até Ahwaz. Dezful seria o nosso ponto extre... O telefone interno da base tocou. Ele atendeu e não viu o olhar trocado entre os dois oficiais. — Alô?
Era Fowler Joines, seu mêcanico-chefe.
— Você está bem?
— Sim. Obrigado. Nenhum problema.
— Grite se precisar de ajuda, meu velho, e nós todos iremos correndo.
— O telefone foi desligado.
Ele virou-se para o major, sentindo-se melhor. Desde que enfrentara Zataki, todos os seus homens e pilotos vinham-no tratando como se ele fosse o próprio lorde Gavallan. E desde ontem, quando os fedayins foram derrotados, até mesmo o komiteh de Faixas Verdes vinha se mostrando respeitoso — todos menos o gerente da base, Yemeni, que ainda estava tentando ser durão.
— Dezful é o nosso limite, de mão única. Uma vez nós levamos... — Ele parou. Ia dizer: Uma vez nós levamos o nosso gerente de área para Kermanshah. Mas aí a lembrança do modo brutal e sem sentido pelo qual Kyabi fora assassinado o assaltou e ele tornou a sentir-se mal.
Viu o major e Hashang olhando-o fixamente.
— Sinto muito, eu ia dizer, major, que uma vez nós levamos um grupo até Kermanshah. Podendo reabastecer, como o senhor sabe, nós somos versáteis.
— Sim, capitão Lutz, sim, nós sabemos. — O major apagou o cigarro e acendeu outro. — O primeiro-ministro Bazargan, é claro que com a aprovação do aiatolá Khomeini — acrescentou cautelosamente, sem confiar em Abbasi nem nos Faixas Verdes que talvez pudessem, secretamente, falar inglês —, deu ordens estritas acerca de todos as aeronaves existentes no Irã, especialmente helicópteros. Vamos chamar Kowiss agora.
Foram para a sala de rádio. Imediatamente, Yemeni protestou dizendo que não podia aprovar a chamada, sem permissão do komiteh local, do qual ele tinha nomeado a si mesmo como membro, uma vez que era o único que sabia ler e escrever. Um dos Faixas Verdes foi chamá-los, mas o major ignorou Yemeni e fez o que queria. Kowiss não atendeu ao chamado.
— Seja como Deus quiser. Vai melhorar depois que escurecer, aga — disse o operador de rádio, Jahan, em farsi.
— Sim, obrigado — respondeu o major.
— O que é que o senhor está precisando, aga? — Yemeni disse grosseiramente, odiando a intrusão, com os uniformes do xá fazendo-o ficar frenético. — Eu apanho para o senhor.
— Não preciso de você para nada, filho de um cão — gritou o major, furioso, todo mundo pulou e Yemeni ficou paralisado. — Se você me criar problemas, eu vou arrastá-lo diante do nosso tribunal por interferir com o trabalho do primeiro-ministro e do próprio Khomeini! Saia!
Yemeni saiu voando. Os Faixas Verdes riram e um deles disse:
— Quer que eu arrebente a cabeça dele para o senhor, aga?
— Não, não, obrigado. Ele não é mais importante do que uma mosca comendo bosta de camelo. — O major Qazani deu uma baforada no cigarro, envolvendo-se na fumaça e olhou Pensativamente para Rudi. As notícias de como este alemão salvara Zataki, o comandante revolucionário mais importante daquela região, tinham alcançado a base aérea.
Ele se levantou e foi até a janela. Lá fora, podia ver seu carro e a bandeira verde de Khomeini e os Faixas Verdes vagando por ali. Escória, pensou. Filhos da mãe, todos eles. Nós não nos livramos do controle e da influência dos americanos nem ajudamos a expulsar o xá para passar o controle das nossas vidas e dos nossos lindos aviões para uns mulás piolhentos, por mais corajosos que alguns possam ser.
— Espere aqui, Hushang. Vou deixar dois guardas com você — disse. — Espere aqui e faça a chamada junto com ele. Depois eu mando o carro de volta para apanhá-lo.
— Sim senhor.
O major olhou para Rudi, com um olhar severo. Em inglês, ele disse:
— Eu quero saber se o HBC é um helicóptero da S-G, onde está sediado, como veio parar nesta área e quem estava a bordo. — Deu as ordens necessárias e partiu numa nuvem de poeira.
Hushang mandou os guardas dizerem aos outros o que estava acontecendo. Agora os dois estavam sozinhos.
— Então — disse, e sorriu estendendo a mão. — Estou feliz em vê-lo, Rudi.
— Eu também. — Eles trocaram um caloroso aperto de mão. — Eu estava imaginando como você, ahn, como você estava passando.
— Você quer dizer se eu tinha sido liquidado? — E Hushang riu. — Oh, não acredite nessas histórias todas, Rudi. Não. Está tudo ótimo. Quanto eu deixei Kharg, passei algum tempo em Doshan Tappeh, depois vim para a base aérea de Abadan.
— E depois?
— E depois? — Hushang pensou por um momento. — E então, quando Sua... quando o xá deixou o Irã, o comandante da base nos reuniu, a todos, e disse que considerava cancelado o nosso voto de obediência. Todos nós, das Forças Armadas, juramos obediência ao xá pessoalmente, mas quando ele partiu, foi como se nossos votos tivessem sido renegados. O nosso comandante pediu-nos para escolher o que queríamos fazer, oficiais e soldados, ficar ou partir, mas nos disse: "Nesta base, a transferência de poder para o novo governo legal será feita com disciplina:" Ele nos deu 12 horas para decidir. — Hushang franziu as sobrancelhas. — Uns poucos partiram, na maioria oficiais mais graduados. O que você teria feito, Rudi?
— Teria ficado. É claro. Heimat ist immer Heimat.
— O quê?
— A sua pátria é sempre a sua pátria.
— Ah, sim. Sim, foi isso que eu pensei. — Uma sombra passou por Hushang. — Depois que todos tínhamos escolhido, nosso comandante chamou o aiatolá Ahwazi, o nosso aiatolá-chefe, e realizou formalmente a transferência de poder. Depois matou-se. Ele deixou um bilhete dizendo: "Durante toda a minha vida eu servi a Muhammad Reza Xá assim como meu pai serviu ao Reza Xá, seu pai. Eu não posso servir a mulás ou a políticos, nem viver com este fedor de traição que invade esta terra".
— Ele estava se referindo aos americanos? — perguntou Rudi, hesitante.
— O major acha que ele estava se referindo aos generais. Alguns de nós achamos que ele se referia... à traição do Islã.
— Por parte de Khomeini? — Rudi viu Hushang olhando para ele, com seus olhos castanhos sinceros, seu rosto bem talhado, e por um segundo Rudi teve a sensação desconfortável de que aquele não era mais o seu amigo, mas alguém que tinha o mesmo rosto. Alguém que podia estar pronto para armar-lhe uma armadilha. Que espécie de armadilha?
— Seria traição pensar assim. Não seria? — disse Hushang. Foi uma afirmação, não uma pergunta, e Rudi se pôs mais em guarda ainda. — Eu estou com medo pelo Irã, Rudi. Estamos muito expostos, somos muito valiosos para qualquer uma das superpotências, e somos muito odiados e invejados por tantos aqui em volta.
— Ah, mas suas forças militares são as mais numerosas e bem equipadas daqui. Vocês são a maior potência do golfo. — Ele foi até a pequena geladeira. — Que tal racharmos uma garrafa de cerveja bem gelada?
— Não, obrigado.
Normalmente, ele teria aceito com satisfação.
— Você está de dieta? — Rudi perguntou.
O outro sacudiu a cabeça e deu um sorriso estranho.
— Não. Eu parei. É o meu presente ao novo regime.
— Então vamos tomar chá, como nos velhos tempos — disse Rudi, sem hesitação e foi até a cozinha pôr a chaleira no fogo. Mas estava pensando: Hushang realmente mudou. Mas se você fosse ele teria mudado também, o mundo dele está de pernas para o ar, como a Alemanha Ocidental e a Alemanha Oriental, mas não tão ruim assim. — Como vai o Ali? — perguntou. Ali era o adorado irmão mais velho de Hushang, um piloto de helicóptero que Rudi não conhecia, mas de quem Hushang estava sempre
falando, rindo de suas lendárias aventuras e conquistas em Teerã, Paris e Roma nos velhos tempos. Os bons e velhos tempos, pensou enfaticamente.
— Ali, o Grande, também vai muito bem — disse Hushang, com um sorriso radiante. Pouco antes do xá partir, eles tinham discutido as suas opções secretamente e tinham resolvido que, acontecesse o que acontecese, eles ficariam: "Nós ainda somos a força de elite, nós ainda passamos as nossas licenças na Europa!" Hushang sorriu, tão orgulhoso dele, sem nenhuma inveja do seu sucesso, mas desejando que tivesse um décimo daquele sucesso. — Mas ele vai ter que ir mais devagar agora. Pelo menos no Irã.
A chaleira começou a apitar. Rudi preparou o chá.
— Você se importa que eu pergunte a respeito do HBC? — Ele olhou para a outra sala. Seu amigo o observava. — Tudo bem?
— O que você quer saber?
— O que foi que aconteceu? Depois de uma pausa, Hushang disse:
— Eu era o líder da esquadrilha. Fomos colocados em alerta e recebemos ordens de interceptar um helicóptero que fora localizado esgueirando-se pela área. Era um aparelho civil que estava voando baixo pelos vales perto de Dezful. Ele não respondeu às chamadas de rádio, nem em farsi nem em inglês. Nós esperamos, seguindo o seu rastro. Assim que ele se expôs, eu fiz um vôo rasante em cima dele, foi quando pensei ter reconhecido o emblema da S-G. Mas ele me ignorou completamente, simplesmente virou em direção à fronteira e saiu a toda velocidade. O meu segundo-piloto fez sinal para ele, mas ele fez outra manobra de fuga.
Os olhos de Hushang se estreitaram quando ele recordou a excitação que havia tomado conta dele, caçador e caça, ele que nunca tinha caçado antes, com os ouvidos cheios do grito doce dos seus jatos, de estática e de ordens: "Preparem os mísseis!" Com as mãos e os dedos obedecendo.
Apertando o gatilho, o foguete errando da primeira vez enquanto o helicóptero fazia uma pirueta, atirando-se para um lado e para o outro, ligeiro como uma libélula, com o seu segundo-piloto também atirando e errando por um triz — os mísseis não eram atraídos pelo calor. Tornando a errar. Agora ele já estava sobre a fronteira. Sobre a fronteira e a salvo, mas não a salvo de mim, da justiça, então continuando com o ataque, a impressão de rostos nas janelas, vendo-o dissolver-se numa bola de fogo e quando eu saí do mergulho violento para tornar a olhar ele tinha desaparecido. Só restava uma nuvem de fumaça. E o prazer.
— Eu o destruí — disse. — Eu o fiz explodir no céu.
Rudi virou o rosto para disfarçar o choque. Presumira que o HBC tivesse escapado — seja quem for que estivesse pilotando.
— Não houve nenhum... nenhum sobrevivente?
— Não, Rudi. Ele explodiu — disse Hushang, tentando manter a voz calma. E profissional. — Foi... Foi a primeira vez que eu matei... eu nunca pensei que seria tão difícil.
Não foi um grande combate, pensou Rudi, zangado e desgostoso. Mísseis e canhões contra nada, mas suponho que ordens são ordens e o HBC estava errado, seja quem for que estivesse pilotando, seja quem for que estivesse a bordo. Ele devia ter parado — eu teria parado. Teria mesmo? Se eu fosse o piloto do avião de combate e aqui fosse a Alemanha e o helicóptero estivesse fugindo em direção a uma fronteira controlada pelo inimigo, sabe Deus com quem a bordo, e eu recebesse ordens de... Espere um minuto, será que Hushang fez isto no espaço aéreo iraquiano? Bem, eu não vou perguntar. Tão certo quanto Deus não fala com Khomeini, Hushang não me diria se o tivesse feito. Eu não diria.
Melancolicamente, encheu o bule com a água da chaleira e lembrou-se da outra da sua infância, depois olhou pela janela. Um velho ônibus estava parando na estrada, do lado de fora do perímetro do aeroporto. Ele viu o homem alto saltar. Por um momento, não o reconheceu. Então, com um sobressalto de alegria, reconheceu-o e disse apressadamente.
— Dê-me licença um momento..
Eles se encontraram no portão, com os Faixas Verdes observando-os curiosamente.
— Tom, Wiegeht'sl Como vai? Que diabo você está fazendo aqui? Por que você não nos avisou que estava vindo? Como vai Zagros, e Jean-Luc? — Estava tão feliz que não notou o cansaço de Lochart e nem o estado das suas roupas: sujas, rasgadas e manchadas da viagem.
— Há um bocado que contar, Rudi — disse Lochart. — Um bocado que contar, mas estou exausto. Preciso de um pouco de chá e de um pouco de sono. Está bem?
— É claro. — Rudi sorriu para ele. — É claro. Venha, vou abrir a minha última garrafa secreta de uísque, que eu finjo até para mim mesmo que não existe e então nós... — De repente, ele notou o estado em que o amigo se encontrava e seu sorriso desapareceu. — Que diabo aconteceu com você? Você parece que foi arrastado de costas por um matagal. — Ele viu Lochart olhar imperceptivelmente para os guardas que estavam ali perto escutando.
— Nada, Rudi, nada. Primeiro um banho, hein?
— Claro, sim, é claro. Você, ahn, pode usar o meu trailer. — Muito perturbado, ele caminhou ao lado de Lochart, em direção ao aeroporto. Nunca o tinha visto tão envelhecido e tão vagaroso. Ele parece muito abalado, quase., quase como se tivesse sofrido um acidente grave...
Lá no hangar, viu Yemeni espiando para eles de uma das janelas do escritório. Fowler Joines e o outro mecânico tinham parado de trabalhar e estavam começando a dar uma volta. Então, do outro lado do acampamento, viu Hushang chegar na escada do seu trailer e a cabeça de Rudi pareceu explodir
— Oh, Cristo — exclamou. — Não o HBC?
Lochart parou bruscamente, sem um pingo de cor no rosto
— Como é que você sabe a respeito dele?
— Mas ele disse que o HBC tinha sido destruído, que tinha explodido no ar! Como você conseguiu escapar? Como?
— Destruído? — Lochart estava em choque. — Jesus, quem... quem disse isso?
Os reflexos ajudaram Rudi, e sem dar muito na vista, ele virou as costas para Hushang.
— O oficial iraniano que está na porta. Não olhe, pelo amor de Deus. Ele pilotou o aparelho interceptador, um F14. Ele explodiu o helicóptero! — Colocou um sorriso forçado nos lábios, agarrou Lochart pelo braço, e mais uma
vez tentando não dar na vista, conduziu-o para o trailer mais próximo. — Você pode ficar no quarto de Jon Tyrer — disse com uma jovialidade forçada, e assim que fechou a porta atrás deles, cochichou depressa: — Hushang disse que abateu o HBC perto da fronteira do Iraque ontem, ao pôr-do-sol. Destruiu-o completamente. Como você escapou? Quem estava a bordo? Rápido, conte-me o que aconteceu. Rápido!
— Eu... eu não pilotei na última parte da viagem, eu não estava lá — disse Lochart, tentando fazer a cabeça trabalhar e também mantendo a voz baixa, pois as paredes do trailer eram muito finas. — Eles me deixaram em Dez Dam. Eu caminhei...
— Dez Dam? Que diabo você estava fazendo lá? Quem deixou você? Lochart hesitou. Tudo estava acontecendo muito depressa.
— Eu não sei se deveria... se deveria contar por...
— Pelo amor de Deus, eles estão atrás do HBC, nós temos que fazer alguma coisa depressa. Quem estava pilotando, quem estava a bordo?
— Eram todos iranianos fugindo do Irã. Todos da Força Aérea de Isfahan: general Seladi, oito coronéis e majores de Isfahan, eu não sei o nome deles, e o general Valik, sua mulher e... — Lochart mal conseguiu dizer — e seus dois filhos.
Rudi ficou horrizado. Ele tinha ouvido falar em Annoush e nas duas crianças e tinha encontrado Valik várias vezes.
— Isso é terrível, terrível. Que diabo eu vou dizer?
— O quê? A respeito de quê? As palavras jorraram:
— O major Qazani e Hushang, eles chegaram há menos de meia hora atrás. O major acabou de sair, mas mandou que eu descobrisse se o HBC é da S-G, onde estava sediado e quem estava a bordo. Eu recebi ordens de ligar para Kowiss para saber e Hushang vai estar escutando e ele não é nenhum idiota, nenhum idiota, ele tinha certeza de ter visto o emblema da S-G antes de explodir o aparelho. Kowiss vai ter que dizer que o pássaro era nosso e eles vão chamar Teerã e fim.
Lochart sentou-se numa das camas. Apatetado.
— Eu os avisei. Eu os avisei para esperar até a noite! Que diabo eu posso fazer?
— Saia correndo. Talvez vo... — Houve uma batida na porta e eles ficaram paralisados.
— Skipper, sou eu, Fowler. Trouxe-lhe um pouco de chá, achei que Tom podia estar precisando.
— Obrigado, só um instante, Fowler — disse, e então baixou a voz. — Tom, qual é a sua história? Você tem alguma?
— A melhor que eu pude inventar é que eu estava voltando de umas férias, pegando carona, em Luristan, ao sul de Kermanshah. Fiquei preso numa aldeia por causa de uma nevasca, durante aproximadamente uma semana e no fim consegui uma carona para sair.
— Serve. Onde é a sua base?
— Em Zagros.
— Bom. Alguém já pediu para ver a sua identidade?
— Sim. O vendedor de passagens em Ahwaz e alguns Faixas Verdes.
— Scheissel — Rudi abriu a porta. Fowler Joines entrou com a bandeja de chá.
— Como vai, Tom? — disse com o seu sorriso desdentado.
— É bom ver você, Fowler. Praguejando muito?
— Não tanto quanto Effer Jordon. Como vai o meu velho companheiro? O cansaço tomou conta de Lochart e ele se recostou na parede. Zagros e Effer Jordon, Rodrigues, Jean-Luc, Scot Gavallan e os outros pareciam estar muito distantes.
— Ainda está usando o seu chapéu — disse com grande esforço, aceitou o chá, agradecido, e engoliu-o. Quente, forte, com leite condensado, o maior estimulante do mundo. O que foi que Rudi disse? Sair correndo? Eu não posso, pensou enquanto o sono tomava conta dele. Não sem Xarazade...
Rudi terminou de contar a Fowler a história inventada por Lochart.
— Espalhe por aí.
— Férias pedindo carona? — O mecânico pestanejou. — Tom Lochart? Sozinho? Com você sabe quem em Teerã? Você ficou maluco, meu velho?
Rudi olhou para ele.
— Como quiser, meu velho. — Fowler virou-se para falar com Lochart, mas este já estava dormindo, com o rosto marcado de cansaço. — Puxa! Ele... — Seus astutos olhos azuis, enfiados na sua cara torta, tornaram a olhar para Rudi. — Eu vou espalhar esta história como se fosse o maldito Gênesis. — E saiu.
Pouco antes da porta fechar-se, Rudi viu Hushang esperando ao lado do trailer e arrependeu-se de tê-lo deixado tanto tempo sozinho. Olhou para Lochart. Pobre Tom. Que diabo ele estaria fazendo em Isfahan? Deus do céu, que confusão! Que diabo eu vou fazer agora? Cuidadosamente, tirou a xícara da mão de Tom, mas o canadense acordou assustado.
— Por um momento, Lochart não soube se estava acordando ou sonhando. Seu coração disparara, sentia uma dor de cabeça terrível e estava de volta à represa na beira da água, com Rudi em pé contra a luz, exatamente como Ali, e Lochart sem saber se pulava em cima dele ou se se arriscava a mergulhar, com vontade de gritar: Não atire, não atire...
— Cristo, eu pensei que você fosse Ali — disse. — Sinto muito, estou bem agora. Não foi nada.
— Ali?
— O piloto, o piloto do HBC, Ali Abbasi, ele ia me matar. — Meio adormecido, Lochart contou-lhe o que tinha acontecido. Então notou que Rudi tinha ficado pálido. — O que foi?
Rudi fez um sinal para fora.
— Aquele é o irmão dele: Hushang Abbasi. Foi ele que derrubou o HBC...
TEERÃ: 16:17H. Os dois homens olhavam ansiosamente para o aparelho de telex no escritório de cobertura da S-G.
— Vamos, pelo amor Deus! — murmurou McIver e tornou a olhar para o relógio. O 125 estava marcado para as cinco e meia. — Nós vamos ter que sair daqui a pouco, Andy, nunca se sabe como estará o tráfego.
Gavallan estava se balançando distraidamente numa velha cadeira que rangia.
— Sim, mas Genny ainda não chegou. Assim que ela chegar nós saiinos. Se acontecer o pior, eu posso ligar para Aberdeen de Al Shargaz.
— Se Johnny Hogg conseguir passar pelo espaço aéreo de Kish e Isfahan, e se a autorização valer em Teerã.
— Desta vez ele vai pousar, estou com o pressentimento de que o nosso mulá Tehrani quer os óculos novos. Só espero que Johnny os tenha conseguido.
— Eu também.
Era a primeira vez que o komiteh permitia que um estrangeiro tornasse a entrar no edifício. A maior parte da manhã fora gasta fazendo a limpeza e tornando a ligar o gerador que, evidentemente, estava sem combustível. Na mesma hora, o telex começou a funcionar:
— Urgente! Por favor confirme se o seu telex está funcionando e informe o sr. McIver que eu tenho um telex Avisyard para o patrão. Ele ainda está em Teerã? O telex era de Elizabeth Chen em Aberdeen. 'Avisyard' era um código da companhia, usado raramente, que significava que uma mensagem que só podia ser lida por McIver e que ele mesmo deveria operar o telex. Teve que fazer quatro tentativas para conseguir receber a mensagem de Aberdeen.
— Contanto que não tenhamos perdido nenhum aparelho — disse Gavallan, fazendo uma prece silenciosa.
— Eu estava pensando a mesma coisa. — McIver relaxou os ombros. — Tem alguma idéia do que poderia merecer um Avisyard?
— Não. — Gavallan escondeu a tristeza, pensando no verdadeiro Avisyard, o Castelo Avisyard, onde tinha passado anos tão felizes com Kathy, que foi quem sugeriu o código. Não pense em Kathy agora, disse a si mesmo. Agora não.
— Eu detesto estas maltidas máquinas de telex, elas estão sempre en-guiçando — disse McIver, com o estômago pegando fogo, principalmente por causa da briga que tivera com Genny na noite anterior, insistindo que ela deveria partir hoje no 125, e também porque ainda não recebera nenhuma notícia de Lochart. Além disso, mais uma vez nenhum empregado iraniano se apresentara para trabalhar, só os pilotos, que...
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