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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


TURBILHÃO V.2 / James Clavell
TURBILHÃO V.2 / James Clavell

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

QUINTA-FEIRA, 22 de fevereiro

       A NOROESTE DE TABRIZ: 11:20H. De onde estava sentado, nos degraus da cabine do 212 estacionado no alto da montanha, Erikki podia divisar o território da União Soviética. Lá embaixo, o rio Aras corria para leste em direção ao mar Cáspio, serpenteando através de gargantas e formando a maior parte da fronteira Irã-URSS. Para a esquerda, ele podia ver a Turquia, até onde se elevava o monte Ararat, a cinco mil metros de altura, e o 212 não estava parado muito longe da entrada da caverna onde havia o posto americano de escuta secreto.

       Onde havia, pensou com um sorriso. Ao pousar ali na tarde da véspera — com o altímetro marcando 2. 825 metros — o bando de combatentes esquerdistas fedayins que levara com ele invadiu a caverna, mas não encontrou nenhum americano e quando Cimtarga revistou-a, viu que todo o equipamento importante tinha sido destruído e que não havia nenhum livro de códigos. Havia evidências de uma partida apressada, mas nada de valor para ser confiscado.

 

 

 

 

       — Vamos esvaziá-la de qualquer maneira — dissera Cimtarga para seus homens, como fizeram com os outros. E perguntara a Erikki: — Você pode pousar ali? — E apontou lá para baixo, onde estavam os mastros com os radares. — Eu quero desmontá-los.

       — Não sei — respondera Erikki. A granada que Ross lhe dera ainda estava presa debaixo do seu braço esquerdo. Cimtarga e seus captores não o haviam revistado e sua faca pukoh ainda estava nas costas. — Vou dar uma olhada.

       — Nós vamos dar uma olhada, capitão. Vamos juntos — dissera Cimtarga, com uma gargalhada. — Assim você não ficará tentado a nos deixar.

       Eles voaram até lá. Os mastros estavam presos em bases de concreto na face norte da montanha, numa pequena área plana em frente.

     — Se o tempo estiver como hoje, tudo bem, mas se começar a ventar, não dá. Eu poderia planar e içá-lo para baixo. — E sorrira ferozmente.

       — Não, obrigado. Eu não quero morrer cedo — rira Cimtarga.

       — Para um soviético, especialmente da KGB, você não é um mau sujeito.

       — Nem você, para um finlandês.

       Desde domingo, quando Erikki começara a pilotar para Cimtarga, tinha começado a gostar dele — não que se pudesse realmente gostar de qualquer pessoa da KGB ou confiar nela, pensou. Mas o homem fora gentil e justo, dera-lhe uma porção correta de todos os alimentos, e na noite anterior, dividira uma garrafa de vodca com ele e dera-lhe o melhor lugar para dormir. Eles tinham dormido numa aldeia vinte quilômetros ao sul, em cima de tapetes sobre um chão de terra. Cimtarga dissera que embora aquele fosse em grande parte um território curdo, a aldeia era secretamente fedayim e segura.

       — Então por que me manter sob vigilância?

       — É segura para nós, capitão, não para o senhor.

       Há duas noites atrás, no palácio do khan, quando Cimtarga e os guardas foram buscá-lo, logo depois de Ross ter partido, ele fora levado para a base aérea e, no escuro e contra os regulamentos do DAC tinha voado para as montanhas a norte de Khoi. Lá, ao amanhecer, recolhera um carregamento completo de homens armados e voara para o primeiro dos dois postos de radar americanos. O posto estava destruído e vazio, como este aqui.

       — Alguém deve ter avisado a eles que nós estávamos vindo — disse Cimtarga, aborrecido. — Espiões matyeryebyets!

       Mais tarde, Cimtarga lhes disse que os nativos informaram que os americanos tinham partido há duas noites atrás, levados por helicópteros muito grandes e sem identificação.

       — Teria sido muito bom apanhá-los espionando. Muito bom. Dizem que os filhos da mãe conseguem ver o que se passa a mil quilômetros no interior do nosso território.

       — Você teve sorte deles não estarem aqui, vocês poderiam ter se envolvido numa luta que teria criado um incidente internacional.

       — Não teria nada a ver conosco, nada — rira Cimtarga. — Teriam sido os curdos novamente, mais um trabalhinho deles, um bando de assassinos, hein? Eles teriam levado a culpa. Malditos yezdvas, hein? Eventualmente, os corpos seriam encontrados, em território curdo. Isso seria prova suficiente para Carter e a sua CIA

       Erikki se mexeu nos degraus do helicóptero, com o assento gelado por causa do metal, deprimido e cansado. Na noite anterior, ele tinha tornado a dormir mal, com pesadelos sobre Azadeh. Ele não dormia bem desde o aparecimento de Ross.

       Você é um idiota, pensou pela milésima vez. Eu sei, mas isso não adianta. Nada parece adiantar. Talvez o trabalho o esteja deixando esgotado. Você tem pilotado horas demais em condições ruins, muitos vôos durante a noite. E também há a preocupação com Nogger — e Rakoczy e as mortes. E Ross. E principalmente Azadeh. Será que ela está em segurança?

       Ele tentara fazer as pazes com ela a respeito do seu Johnny na manhã seguinte.

       — Eu admito que fiquei com ciúmes. É estúpido ficar com ciúmes. Eu jurei pelos antigos deuses dos meus antepassados que poderia viver com a lembrança dele. Eu posso e o farei — dissera, mas dizer isso não o apaziguara. — Apenas não pensei que ele fosse tão... tão homem e tão... tão perigoso. Aquele kookri é páreo para a minha faca.

       — Nunca, meu querido, nunca. Eu estou muito feliz por você ser você e eu ser eu e por estarmos juntos. Como poderemos sair daqui?

       — Nem todos juntos nem ao mesmo tempo — respondera com sinceridade. — É melhor os soldados darem o fora enquanto podem. Com Nogger e eles, e enquanto você está aqui... eu não sei, Azadeh. Eu não sei como poderemos fugir, por enquanto. Vamos ter que esperar. Talvez pudéssemos entrar na Turquia...

       Ele agora estava olhando para a Turquia, tão perto e tão longe, com Azadeh ainda em Tabriz — trinta minutos por ar até lá. Mas quando? Se entrássemos na Turquia e o meu helicóptero não fosse apreendido, e se eu pudesse reabastecer e conseguíssemos voar até Al Shargaz, costeando a fronteira. Se se se! Deuses dos meus ancestrais, ajudem-me!

       Tomando vodca na noite anterior, Cimtarga estivera tão taciturno como sempre, mas bebera bastante e eles partilharam a garrafa, de copo em copo, até a última gota.

       — Tenho outra para amanhã à noite, capitão.

      — Ótimo. Quando você terá terminado comigo?

       — Vamos levar dois ou três dias para terminar aqui, depois vamos voltar para Tabriz.

       — E depois?

       — Depois eu vou saber.

       Se não fosse pela vodca, Erikki teria praguejado. Ele se levantou e observou os iranianos empilhando o equipamento para ser embarcado. A maioria parecia ser bem comum. E quando ele caminhou pelo terreno incerto, com as botas esmagando a neve, o seu guarda foi junto. Não havia nenhuma chance de escapar; durante todos os cinco dias, ele não tivera nenhuma chance.

       — Nós gostamos da sua companhia — dissera Cimtarga, lendo-lhe os pensamentos, com seus olhos orientais brilhando.

       Mais acima, ele podia ver alguns homens trabalhando nos mastros de radar, desmontando-os. Perda de tempo, pensou. Até eu sei que não há nada de especial com relação a eles.

       — Isso não importa, capitão — dissera Cimtarga. — O meu mestre gosta de quantidade. Ele disse para levar tudo. É melhor demais do que de menos.

        Por que você se preocupa? Você é pago por hora. — Mais uma vez ele rira, sem provocação.

       Sentindo os músculos do pescoço endurecidos, Erikki esticou os braços e tocou a ponta dos pés e, nesta posição, deixou os braços e a cabeça ficarem pendurados, depois girou a cabeça o mais que pôde, deixando o peso da cabeça esticar os tendões e ligamentos e músculos e estender as juntas, sem forçar nada, usando apenas o peso.

       — O que está fazendo? — perguntou Cimtarga, aproximando-se dele.

       — Isso é ótimo para dor no pescoço. — Ele tornou a colocar os óculos escuros. Sem eles a luz refletida pela neve era desconfortável. — Se você fizer isso duas vezes por dia, jamais terá dor no pescoço.

       — Ah, você também tem dores no pescoço? Eu estou sempre atacado. Tenho que ir a um quiroprático pelo menos três vezes por ano. Isso ajuda?

       — É garantido. Uma garçonete me ensinou. Carregar bandejas o dia inteiro dá muita dor no pescoço e nas costas, como os pilotos; é uma maneira de viver. Experimente só. — Cimtarga curvou-se como Erikki tinha feito e moveu a cabeça. — Não, você está fazendo errado. Deixe solta a cabeça, os braços e os ombros, você está duro demais.

       Cimtarga obedeceu e sentiu o pescoço estalar e as juntas se soltarem e quando tornou a se levantar, disse:

       — Isso é maravilhoso, capitão, estou-lhe devendo um favor.

       — Foi em troca da vodca.

       — Vale mais do que uma garrafa de vod...

       Erikki ficou olhando para ele, espantado, enquanto o sangue jorrava do peito de Cimtarga, causado pela bala que o apanhara pelas costas. Então ouviu-se um urro acompanhado de outros enquanto nativos saíam dos esconderijos no meio das rochas e das árvores soltando gritos de combate e "Allah-u Ak-barrr" — atirando enquanto avançavam. O ataque foi breve e violento e Erikki viu os homens de Cimtarga caindo por todo o platô, rapidamente derrotados. O seu próprio guarda, um dos poucos que estava carregando uma arma, começara a atirar, mas foi imediatamente atingido, e agora um nativo barbado estava em pé sobre ele, terminando de matá-lo com a coronha do rifle. Outros entraram nas cavernas. Houve mais tiroteio, depois silêncio outra vez.

       Dois homens correram em sua direção e ele levantou as mãos, sentindo-se nu e idiota, com o coração disparado. Um desses virou Cimtarga de frente e tornou a atirar nele. O outro passou por Erikki e entrou na cabine do 212 para certificar-se de que não havia ninguém escondido lá. Agora o homem que tinha atirado em Cimtarga estava parado diante de Erikki, respirando com dificuldade. Ele era pequeno, de barba, com a pele cor de azeitona, olhos e cabelos escuros, usava roupas rasgadas e fedia.

       — Abaixe as mãos — disse num inglês carregado. — Eu sou o xeque Bayazid, o chefe daqui. Nós precisamos de você e do seu helicóptero.

       — O que vocês querem de mim?

       Em volta deles, os nativos matavam os feridos e tiravam tudo o que os mortos possuíam de valor.

       — Emergência. — Bayazid sorriu de leve ao ver o ar de espanto de Erikki. — Muitos de nós trabalham nas plataformas. Quem é este cão? — Ele fez um gesto na direção de Cimtarga, caído a seus pés.

       — Ele dizia chamar-se Cimtarga. Era um soviético. Acho que era da KGB

       — É claro que era soviético — disse o homem, grosseiramente. — É claro que era da KGB. Todos os soviéticos no Irã são da KGB. Papéis, por favor. — Erikki entregou-lhe sua identidade. O nativo leu-a e balançou a cabeça. E para surpresa de Erikki, devolveu-a. — Por que você está pilotando para o cão soviético? — E ouviu silenciosamente, com a fisionomia ficando mais fechada à medida que Erikki contava como Abdullah Khan armara-lhe uma cilada. — Abdullah Khan não é homem para a gente se meter. O braço de Abdullah, o Cruel, atinge muito longe, mesmo nas terras dos curdos.

       — Vocês são curdos?

       — Curdos — disse Bayazid, pois a mentira era conveniente. Ele se ajoelhou e revistou Cimtarga. Não havia nenhum documento, só um pouco de dinheiro, que ele guardou. Além da automática e da munição, que também tomou. — Você está com o tanque cheio?

       — Três quartos.

       — Eu quero ir trinta quilômetros ao sul. Eu mostro o lugar. Apanhar uma emergência e depois ir para Rezaieh, para o hospital de lá.

       — Por que não Tabriz? É muito mais perto.

       — Rezaieh é no Curdistão. Os curdos estão seguros lá, em geral. Tabriz pertence aos nossos inimigos: iranianos, o xá ou Khomeini, não faz nenhuma diferença. Vá para Rezaieh.

       — Está bem. O Hospital Overseas seria melhor. Eu já estive lá antes e eles têm uma pista para helicópteros. Eles estão acostumados com emergências. Nós podemos reabastecer o aparelho lá. Eles têm combustível para helicóptero, pelo menos tinham nos... nos velhos tempos.

       Bayazid hesitou.

       — Bom. Sim. Vamos imediatamente.

       — E depois de Rezaieh?

       — E depois, se nos ajudar, talvez você seja solto para tirar a sua mulher do Gorgon Khan — o xeque Bayazid virou-se e gritou para os seus homens se apressarem e entrarem no helicóptero. — Ligue os motores, por favor.

       — E quanto a ele? — Erikki apontou para Cimtarga. — E os outros?

       — Os animais e os pássaros vão limpar isto logo.

       Eles levaram algum tempo para embarcar e partir, com Erikki agora cheio de esperança. Não houve problema para encontrar o lugar na pequena aldeia. A emergência era uma mulher idosa.

       — Ela é o chefe do nosso clã — disse Bayazid.

       — Eu não sabia que as mulheres podiam ser chefes.

       — Por que não, desde que sejam bastante sábias, bastante fortes, bastante espertas e venham de famílias certas? Nós somos muçulmanos ortodoxos não esquerdistas ou xiitas hereges que põem os mulás entre o homem e Deus. Deus é Deus. Vamos partir imediatamente.

       — Ela fala inglês?

       — Não.

       — Ela parece estar muito doente. Talvez não agüente a viagem.

       — Seja como Deus quiser.

       Mas ela agüentou a viagem de uma hora e Erikki pousou na pista do hospital. O Hospital Overseas fora construído, equipado e era sustentado pelas companhias de petróleo. Ele voara baixo o tempo todo, evitando Tabriz e os campos de aviação militares. Bayazid fora na frente com ele, e seis guardas armados tinham ido atrás com a chefe. Ela estava deitada na maca, acordada mas imóvel. Sentindo muitas dores, mas sem se queixar.

       Segundos depois de pousarem, já havia um médico e alguns ajudantes perto do helicóptero. O médico usava um casaco branco com uma grande cruz vermelha na manga, por cima de pesados suéteres, aparentava cerca de trinta anos, era americano, e tinha círculos negros em volta dos olhos injetados de sangue. Ele se ajoelhou ao lado da maca enquanto os outros esperavam em silêncio. Ela gemeu um pouco quando ele tocou no seu abdômen, embora as suas mãos fossem experientes. Um instante depois, ele falou com ela num turco hesitante. Ela deu um pequeno sorriso e balançou a cabeça, agradecendo. Ele fez um sinal para os ajudantes e eles levantaram a maca e a levaram embora. Obedecendo a uma ordem de Bayazid, dois dos seus homens foram junto com ela.

       O médico disse para Bayazid num dialeto hesitante:

       — Excelência, eu preciso de nome e idade e... — ele procurou a palavra certa. — História. História médica.

       — Fale em inglês.

       — Ótimo. Obrigado, aga. Eu sou o dr. Newbegg. Temo que ela esteja no fim, aga, o pulso dela é quase zero. É velha e eu diria que está tendo uma hemorragia, sangrando, por dentro. Ela levou alguma queda recentemente?

       — Fale mais devagar, por favor. Queda? Sim, sim, há dois dias atrás. — Bayazid parou por causa do barulho de tiros ali perto, depois continuou: — Sim, há dois dias atrás. Ela escorregou na neve e caiu em cima de uma pedra, bateu com o lado numa pedra.

       — Acho que ela está sangrando por dentro. Vou fazer o possível, mas... sinto muito, não posso prometer boas notícias.

       — Insha'Allah.

       — Vocês são curdos?

       — Curdos. — Novo tiroteio, ainda mais perto desta vez. Todos eles olharam na direção de onde veio o barulho. — Quem são?

       — Não sei, são os mesmos, eu acho — falou o médico, inquieto. — Faixas Verdes contra esquerdistas, esquerdistas contra Faixas Verdes, contra curdos, muitas facções, e todos estão armados. — Ele esfregou os olhos. — Eu farei o que puder pela senhora. Talvez seja melhor o senhor vir comigo, aga, o senhor pode ir me dando os detalhes enquanto andamos. — E saiu andando depressa.

       — Doutor, o senhor ainda tem combustível aqui? — perguntou Erikki. O médico parou e olhou para ele sem entender.

       — Combustível? Oh, combustível para helicóptero? Eu não sei. Os tanques de gasolina ficam nos fundos. — Ele subiu as escadas até a entrada principal, com as abas do casaco batendo.

       — Capitão — disse Bayazid —, o senhor vai esperar aqui até eu voltar.

       — Mas e o combustível? Eu...

       — Espere aqui. Aqui. — Bayazid foi rapidamente atrás do médico. Doi"s dos seus homens foram com ele. Dois ficaram com Erikki.

       Enquanto Erikki esperava, checou tudo. Os tanques estavam quase vazios. De vez em quando, carros e caminhões chegavam com feridos para serem recebidos por médicos e estudantes. Muitos olhavam com curiosidade para o helicóptero, mas nenhum se aproximou. Os guardas cuidaram disso. Durante a viagem até ali, Bayazid tinha dito:

       — Durante séculos, nós, os curdos, temos tentado ser independentes. Nós, um povo diferente, com uma língua diferente e costumes diferentes. Agora existem talvez seis milhões de curdos no Azerbeijão, no Curdistão, na fronteira soviética, deste lado do Iraque e na Turquia. — Ele tinha quase cuspido esta palavra. — Durante séculos nós temos lutado contra eles, juntos ou sozinhos. Nós dominamos as montanhas. Nós somos bons lutadores. Salah-al-din, ele era curdo. Você o conhece? Salah-al-din... Saladino foi o cavaleiro muçulmano, oponente de Ricardo Coração de Leão durante as Cruzadas no século XII, que se fez sultão do Egito e da Síria e capturou o Reino de Jerusalém em 1187, depois de esmagar as forças aliadas dos cruzados.

       — Sim, eu o conheço.

       — Hoje há outros Salah-al-dins entre nós. Um dia nós tornaremos a conquistar os lugares santos. Depois que Khomeini, o traidor do Islã, for atirado na sarjeta.

       — Vocês armaram uma cilada para Cimtarga e para os outros e os mataram só por causa da emergência? — perguntara Erikki.

       — É claro. Eles eram inimigos. Seus e nossos. — Bayazid sorrira o seu sorriso torto. — Nada acontece nas nossas montanhas sem que saibamos. A nossa chefe estava doente e vocês por perto. Nós vimos os americanos partirem, vimos os carniceiros chegarem, e você foi reconhecido.

       — Oh? Como?

       — O Ruivo da Faca? O infiel que mata assassinos como piolhos e depois ganha uma filhote de Gorgon como recompensa! Piloto de emergências? — Os olhos escuros, quase pretos, estavam achando graça. — Oh, sim, capitão, nós o conhecemos bem. Muitos de nós trabalham com madeira e também com petróleo... um homem tem que trabalhar. Mesmo assim, é bom que o senhor não seja nem soviético nem iraniano.

       — Depois da emergência, você e seus homens me ajudarão contra o Gorgon Khan?

       — Essa maldita desavença é sua, não nossa — rira Bayazid. — Abdullah está conosco, por enquanto. Nós não somos contra ele. O que você fizer é lá com Deus.

       Estava frio no pátio do hospital, um vento leve ainda aumentava mais o frio. Erikki andava para cima e para baixo para manter o sangue circulando. Eu tenho que voltar para Tabriz. Tenho que voltar e arranjar um jeito de apanhar Azadeh e partir com ela para sempre.

       Um tiroteio ali perto o assustou e também aos guardas. Fora dos portões do hospital o tráfego ficou mais lento, com as buzinas tocando com irritação, depois engarrafou rapidamente. As pessoas começaram a passar correndo. Houve novo tiroteio e os que foram apanhados nos seus veículos saltaram para se proteger ou fugir. Do lado de dentro dos portões, havia uma área grande, o 212 estava parado de um dos lados. O tiroteio estava pior agora e muito mais perto. Algumas janelas de vidro no último andar do hospital se estilhaçaram. Os dois guardas deitaram na neve atrás do helicóptero, Erikki estava uma fera pelo fato do seu aparelho estar tão exposto e não sabia para onde correr nem o que fazer, sem tempo para decolar e sem combustível suficiente para ir a lugar nenhum. Algumas balas ricochetearam e ele se abaixou enquanto a batalha prosseguia do lado de fora dos portões. Então ela terminou tão rapidamente como tinha começado. As pessoas começaram a sair de onde estavam, as buzinas começaram a tocar e logo o tráfego estava tão normal e horrível como sempre.

       — Insha'Allah — disse um dos nativos, depois empunhou o rifle e se pôs em guarda. Um pequeno caminhão de gasolina se aproximava, vindo de trás do hospital, dirigido por um jovem iraniano com um largo sorriso. Erikki foi ao encontro dele.

       — Oi, capitão — disse alegremente o motorista, com um sotaque carregado de Nova York. — Eu vou abastecer o seu aparelho. O seu destemido líder, xeque Bayazid, arranjou isto. — Ele cumprimentou os nativos num dialeto turco. Imediatamente eles relaxaram e o cumprimentaram de volta. — Capitão, vamos encher até a boca. O senhor tem algum tanque de reserva?

       — Não. Só o normal. Eu sou Erikki Yokkonen.

       — Claro. O Ruivo da Faca. — O rapaz sorriu. — O senhor é uma espécie de lenda por aqui. Eu abasteci o seu aparelho uma vez, há mais ou menos um ano. — Ele estendeu a mão. — Eu sou Ali 'Gasolina'... isto é, Ali Reza.

       Eles trocaram um aperto de mão e, enquanto conversavam, o rapaz começou a encher o tanque.

       —Você freqüentou uma escola americana? — Erikki perguntou.

       — Não. Eu fui adotado, por assim dizer, pelo hospital, há anos, muito antes deste aqui ter sido construído, quando eu era um garoto. Nos velhos tempos, o hospital atendia a um dos Guetos Dourados da parte leste da cidade. O senhor sabe, capitão, Apenas Pessoal Americano, um depósito da ExTex. — O rapaz sorriu, tampou cuidadosamente o tanque e começou a encher o outro. — O primeiro médico que me adotou foi Abe Weiss. Grande sujeito, grande. Ele me colocou na folha de pagamento, me ensinou a respeito de sabão, meias, Colheres e banheiros... diabo, todo o tipo de utensílios não-iranianos para ratos de rua como eu, sem família, sem casa, sem nome, sem nada. Ele costumava dizer que eu era o seu hobby. Ele me deu até o nome. Então, um dia, ele partiu.

       Erikki viu a tristeza nos olhos do rapaz, rapidamente disfarçada.

       — Ele me passou para o doutor Templeton e este fez o mesmo. Às vezes é meio difícil saber quem eu sou. Sou curdo mas não sou. Sou ianque mas não sou, sou judeu mas não sou, sou muçulmano mas não sou. — Ele deu de ombros. — É um pouco confuso, capitão. O mundo e tudo o mais, hein?

       — Sim. — Erikki deu uma olhada na direção do hospital. Bayazid estava descendo as escadas com seus dois soldados, ao lado dos ajudantes que carregavam uma maca. A velha estava coberta agora, dos pés à cabeça.

       — Vamos partir assim que estivermos abastecidos — disse Bayazid, secamente.

       — Sinto muito — disse Erikki.

       — Insha'Allah. — Eles ficaram olhando os ajudantes colocarem a maca na cabine. Bayazid agradeceu-lhes e eles foram embora. Em pouco tempo o aparelho estava abastecido.

       — Obrigado, sr. Reza — Erikki estendeu a mão — Obrigado.

       O rapaz olhou fixamente para ele.

       — Ninguém nunca me chamou de senhor antes, capitão, nunca. — Ele apertou a mão de Erikki. — Obrigado. A qualquer hora que o senhor precisar de gasolina, eu estou às ordens.

       Bayazid subiu na cabine ao lado de Erikki, amarrou o cinto e colocou os fones no ouvido, com o motor esquentando.

       — Agora vamos voltar para a aldeia de onde saímos.

       — E depois? — perguntou Erikki.

       — Vou consultar o novo chefe — disse Bayazid, mas ele estava pensando, este homem e o helicóptero devem valer um bom resgate, talvez para o khan, talvez para os soviéticos ou talvez para o seu próprio povo. O meu povo precisa de cada tostão que puder conseguir

      

       PERTO DE TABRIZ UM — NA ALDEIA DE ABU MARD: 18:16H. Azadeh apanhou a tigela de arroz e a tigela de horisht, agradeceu à mulher do senhorio e atravessou a neve suja, coberta de lixo, até a cabana que ficava um pouco afastada. Seu rosto estava magro, sua tosse não era nada boa. Ela bateu na porta e depois entrou.

       — Alô, Johnny, Como você se sente? Melhorou um pouco?

       — Estou bem — ele disse. Mas não estava.

       A primeira noite eles tinham passado numa caverna não muito longe dali, encolhidos, tremendo de frio.

       — Não podemos ficar aqui, Azadeh — ele dissera ao amanhecer. — Vamos morrer congelados. Vamos ter que tentar a base.

       Eles tinham caminhado através da neve e observado às escondidas. Viram os dois mecânicos e até Nogger Lane de vez em quando — e o 206 — mas havia homens armados por toda a base. Dayati, o gerente da base, tinha se mudado para a cabana de Azadeh e Erikki — ele, sua mulher e seus filhos.

       — Filhos e filhas de um cão — Azadeh sibilou, vendo a mulher usando um par de botas suas. — Talvez pudéssemos nos esgueirar para as cabanas dos mecânicos. Eles nos protegerão.

       — Eles só andam escoltados; eu aposto que eles são vigiados até de noite. Mas quem são os guardas, são Faixas Verdes, são os homens do khan, quem são?

       — Eu não conheço nenhum deles, Johnny.

       — Eles estão atrás de nós — disse, sentindo-se muito deprimido, sofrendo muito com a morte de Gueng. Tanto Gueng quanto Tenzing estavam com ele desde o começo. E tinha havido Rosemont. E agora Azadeh. — Mais uma noite desabrigados e estamos fritos.

       — A nossa aldeia, Johnny. Abu Mard. Ela pertence à nossa família há mais de um século. Eles são leais, eu sei que são. Nós estaríamos seguros lá por um dia ou dois.

       — Com a minha cabeça a prêmio? E a sua também? Eles mandariam avisar ao seu pai.

       — Eu pediria a eles para não fazerem isso. Eu diria que os soviéticos estavam tentando raptar-me e que você estava me ajudando. Isso é verdade. Eu diria que precisamos nos esconder até o meu marido voltar. Ele sempre foi muito popular, Johnny, os seus vôos de emergência salvaram muitas vidas ao longo dos anos.

       Ele a olhou, pensando numa dúzia de contras.

       — A aldeia fica na estrada, quase na beira da estrada e...

       — Sim, é claro que você tem toda a razão e faremos o que você achar melhor, mas a aldeia se estende para dentro da floresta. Nós poderíamos nos esconder lá. Ninguém esperaria isso.

       Ele percebeu-lhe o cansaço.

       — Como você se sente? Você se sente forte?

       — Não me sinto forte, mas estou bem.

       — Nós poderíamos pegar uma carona, seguir adiante mais algumas milhas. Teríamos que evitar as barreiras, é muito menos perigoso do que a aldeia, o que acha?

       — Eu... eu preferia não ir. Eu poderia tentar. — Ela hesitou e depois disse: — Eu preferia não ir, hoje não. Você vai. Eu fico esperando. Erikki pode voltar hoje.

       — E se ele não voltar?

       — Eu não sei. Vai você.

       Ele tornou a olhar para a base. Um ninho de víboras. Era suicídio ir para lá. De onde eles estavam, numa elevação, ele podia divisar a estrada principal. Ainda havia homens vigiando a barreira — ele supunha que fossem Faixas Verdes e a polícia — uma fila de automóveis estava parada, esperando para deixar a área. Ninguém vai nos dar uma carona agora, pensou, a não ser que seja para receber a recompensa.

       — Você vai para a aldeia. Eu vou esperar na floresta.

       — Sem você, eles simplesmente me devolverão a meu pai. Eu os conheço, Johnny.

       — Talvez eles traiam você de qualquer jeito.

       — Seja como Deus quiser. Mas nós poderíamos conseguir um pouco de comida e de calor, talvez até uma noite de descanso. Ao amanhecer, nós poderíamos fugir. Talvez possamos conseguir um carro ou um caminhão com eles. O calênder tem um velho Ford. — Ela abafou um bocejo. Os homens armados não estavam muito longe. Era mais do que provável que houvesse patrulhas na floresta. Ao ir para lá eles tiveram que fazer um desvio para evitar uma. A aldeia é uma loucura, pensou. Rodear a barreira vai levar horas à luz do dia, e de noite... mas nós não podemos passar outra noite ao relento.

       — Vamos para a aldeia — disse.

       E eles foram, no dia anterior, e Mustafá, o calênder, escutara a história dela e evitara olhar para Ross. A notícia da chegada deles tinha corrido de boca em boca e em poucos minutos toda a aldeia sabia, e essas notícias foram somadas a outras, sobre a recompensa oferecida pelo Sabotador e raptor da filha do khan. O calênder tinha dado à Ross uma cabana de um só cômodo com chão de terra e velhos tapetes. A cabana ficava bem afastada da estrada, do outro lado da aldeia, e ele notou os olhos de aço, os cabelos emaranhados e a barba pontuda, e também sua carabina, o kookri e a mochila cheia de munição. Ele convidou Azadeh para ficar na sua casa. Era uma cabana de dois cômodos. Não tinha eletricidade nem água corrente. A vala era o banheiro.

       Ao anoitecer, uma velha levara comida quente e uma garrafa de água para Ross.

       — Obrigado — ele agradeceu, com a cabeça doendo e já com febre. — Onde está Sua Alteza? — A mulher deu de ombros. Ela era corpulenta, com a cara marcada de varíola e cacos marrons de dentes. — Por favor, peça-lhe para me receber.

       Mais tarde, mandaram chamá-lo. Na casa do chefe, vigiado pelo chefe, sua esposa, alguns dos seus filhos e uns poucos anciãos, ele cumprimentou Azadeh cautelosamente — como um estranho cumprimentaria um nobre. Ela estava usando o chador evidentemente, e estava ajoelhada sobre tapetes virados para a porta. Seu rosto tinha uma palidez amarelada, doentia, mas ele achou que poderia ser da luz da lamparina.

       — Salaam, Alteza, a senhora está bem de saúde?

       — Salaam, aga, sim, obrigada, e o senhor?

       — Estou com um pouco de febre, eu acho.

       Ela viu os seus olhos se levantarem do tapete por um instante.

       — Eu tenho remédio. O senhor está precisando?

       — Não. Não, obrigado.

        Com tantos olhos e ouvidos atentos, o que ele queria dizer era impossível.

       — Talvez eu possa cumprimentá-la amanhã — disse. — Que a paz esteja com a senhora, Alteza.

       — E com o senhor também.

       Ele levara algum tempo para dormir. E ela também. A aldeia despertou ao amanhecer, as fornalhas foram atiçadas, as cabras ordenhadas, o horisht de legumes foi posto para cozinhar — com pouca coisa para torná-lo mais nutritivo, exceto um pedaço de galinha, em algumas cabanas um pedaço de cabrito ou carneiro, a carne velha, dura, rançosa. Tigelas de arroz, mas nunca em número suficiente. Comiam duas vezes por dia nas épocas melhores, de manhã e antes do anoitecer. Azadeh tinha dinheiro e pagou pela sua comida. Isso não passou despercebido. Ela pediu que fosse colocada uma galinha inteira no horisht da noite para ser partilhada por todos da casa e pagou por isso. O que também não passou despercebido.

       Antes do anoitecer, ela disse:

       — Agora eu vou levar comida para ele.

       — Mas, Alteza, não está certo a senhora servi-lo — disse a esposa do calênder. — Eu carrego as tigelas. Podemos ir juntas se a senhora quiser.

       — Não, é melhor que eu vá sozinha porq...

       — Deus nos proteja, Alteza. Sozinha? Ver um homem que não é seu marido? Oh, não, isto seria escandaloso, isto seria muito escandaloso. Venha. Eu carrego.

       — Ótimo. Obrigada. Seja como Deus quiser. Na noite passada ele disse que estava com febre. Pode ser a peste. Eu sei que os infiéis carregam doenças ruins a que não estamos acostumados. Eu só queria poupá-la de uma provável agonia. Obrigada por me poupar.

       Na noite anterior todo mundo vira o filete de suor no rosto do infiel. Todo mundo sabia como os infiéis eram maus, a maioria deles adoradores de Satã e feiticeiros. Quase todo mundo acreditava secretamente que Azadeh tinha sido enfeitiçada, primeiro pelo Gigante da Faca, e agora outra vez pelo Sabotador.

       Silenciosamente, a mulher do chefe entregara as tigelas a Azadeh e ela caminhou através da neve.

       Agora ela o olhava na semi-escuridão do quarto, que tinha como janela um buraco na parede de barro, sem vidro, coberto apenas por um saco. O ar estava pesado com o cheiro de urina e lixo da vala lá fora.

       — Coma, coma enquanto está quente. Eu não posso ficar muito tempo.

       — Você está bem? — Ele estivera deitado sob o único cobertor, inteiramente vestido, cochilando, mas agora sentava-se com as pernas cruzadas e alerta. A febre diminuíra um pouco com a ajuda de remédios que ele trazia no estojo de primeiros socorros, mas seu estômago estava embrulhado. — Você não parece muito bem.

       — Nem você. — ela sorriu. — Eu estou bem. Coma.

       Ele estava com muita fome. A sopa era rala, mas ele sabia que isso era melhor para o seu estômago. Sentiu outro espasmo começando mas controlou-o e passou.

       — Você acha que poderíamos fugir? — disse, entre uma colherada e outra, tentando comer devagar.

       — Você poderia, eu não.

       Enquanto cochilava durante o dia, tentando recuperar as forças, ele tinha tentado fazer um plano. Uma vez tentara sair da aldeia caminhando. Apareceram cem olhos em cima dele, todo mundo vigiando. Ele foi até o final da aldeia e depois voltou. Mas tinha visto o velho caminhão.

       — E quanto ao caminhão?

       — Eu perguntei ao chefe. Ele disse que estava enguiçado. Não sei se estava mentindo ou não.

       — Não podemos ficar aqui por muito mais tempo. Uma patrulha vai acabar aparecendo. Ou o seu pai vai ouvir falar sobre nós ou então alguém vai contar a ele. A nossa única esperança é fugir.

       — Ou seqüestrar o 206 junto com Nogger.

       — Com todos aqueles homens lá?

       — Uma das crianças me contou que eles voltaram para Tabriz hoje.

       — Você tem certeza?

       — Não tenho certeza, Johnny. — Uma onda de ansiedade invadiu-a. — Mas não há nenhum motivo para a criança mentir. Eu... eu costumava ensinar aqui antes de me casar. Eu fui a única professora que eles jamais tiveram e sei que eles gostavam de mim. A criança disse que só ficaram um ou dois lá. — Ela sentiu mais um arrepio de frio que a enfraqueceu. Tantas mentiras, tantos problemas nas últimas semanas, pensou. Foram apenas semanas? Tanto terror desde que Rakoczy e o mulá irromperam na nossa sauna. Está tudo tão difícil agora. Erikki, onde está você? Ela teve vontade de gritar, onde está você?

       Ele terminou a sopa e o arroz e catou o último grão, pesando os prós e os contras, tentando planejar. Ela estava ajoelhada em frente e ele viu o seu cabelo emaranhado, a sua sujeira, a sua exaustão e a sua gravidade.

       — Pobre Johnny — ela murmurou e tocou-o. — Eu não lhe trouxe muita sorte, trouxe?

     — Não seja boba. Nada disso é culpa sua. — Ele sacudiu a cabeça. — Nada disso. Ouça, nós vamos fazer o seguinte: vamos ficar aqui esta noite. Amanhã, assim que clarear, vamos sair daqui. Vamos tentar a base; se isto não funcionar, então pegamos uma carona. Você tenta fazer o chefe nos ajudar mantendo a boca fechada, a mulher dele também. Os resto dos aldeões deve se comportar se ele mandar, pelo menos para nos dar uma chance. Prometa-lhes uma grande recompensa quando as coisas estiverem normais de novo, e olhe aqui... — Ele enfiou a mão no esconderijo da sua mochila, encontrou as rúpias de ouro, dez delas. — Dê-lhe cinco e guarde as outras cinco para uma emergência.

       — Mas... mas e quanto a você? — perguntou, com os olhos arregalados e mais esperançosa com tanto pishkesh potencial.

       — Eu tenho mais dez — disse, mentindo com facilidade. — Fundos de emergência, cortesia do governo de Sua Majestade.

       — Oh, Johnny, eu acho que agora temos uma chance. Isso é muito dinheiro para eles.

        Os dois olharam pela janela quando começou a ventar, levantando o saco que cobria a janela. Ela se levantou e ajustou o saco o melhor que pôde. Mas não conseguiu cobrir toda a abertura.

       — Não tem importância — ele disse. — Venha cá e sente-se. — Ela obedeceu, sentando-se mais perto dele. — Tome. Por via das dúvidas. — Ele lhe entregou a granada. — Abaixe a alavanca, tire o pino, conte até três e atire. Três, não quatro.

       Ela balançou a cabeça, levantou o chador e guardou a granada num dos bolsos da sua jaqueta de esqui. Suas calças de esqui estavam enfiadas nas botas.

       — Obrigada. Agora eu me sinto melhor. Mais segura. — Involuntariamente, ela o tocou e desejou que não o tivesse feito, pois sentiu o seu fogo. — É... é melhor eu ir. Vou trazer-lhe comida assim que clarear. Depois partiremos.

       Ele se levantou e abriu a porta. Lá fora estava escuro. Nenhum dos dois viu a figura se afastando da janela, mas os dois sentiram olhos observando-os de toda a parte.

       — E quanto a Gueng, Johnny? Você acha que ele vai nos encontrar?

       — Ele estará vigiando, esteja onde estiver. — Ele sentiu um novo espasmo começando. — Boa noite, durma bem.

       — Durma bem.

       Eles sempre diziam isso um para o outro nos velhos tempos. Seus olhos se trocaram bem como os seus corações e os dois se sentiram aquecidos e ao mesmo tempo cheios de pressentimentos. Então ela se virou, ficando imediatamente invisível por causa do chador escuro. Ele viu a porta da cabana do chefe se abrir, ela entrou e fechou a porta. Ele ouviu um caminhão subindo a estrada não muito longe, depois um carro buzinando, que passou e logo se afastou. O espasmo veio e foi muito forte e ele vomitou. A dor foi muito intensa, mas foi pouco o que ele pôs para fora e se sentiu agradecido por Azadeh já ter ido embora. Ele agarrou um pouco de neve com a mão esquerda e se limpou. Ainda havia olhos observando-o, de todos os lados. Filhos da mãe, pensou, depois tornou a entrar na cabana e se sentou no grosseiro colchão de palha.

       Na escuridão, ele lubrificou o kookri. Não havia necessidade de afiá-lo. Já tinha feito isso mais cedo. Luzes refletiam-se na lâmina. Dormiu com ele fora da bainha

      

       NO PALÁCIO DO KHAN: 23:19H. O médico segurava o pulso do khan e tornou a checá-lo.

       — O senhor precisa descansar bastante, Alteza — disse, preocupado — e tomar uma pílula destas de três em três horas.

       — De três em três horas... está bem. — disse Abdullah Khan, com a voz fraca e respirando com dificuldade. Ele estava apoiado em almofadas na cama que fora feita sobre espessos tapetes. Ao lado da cama estava Najoud, sua filha mais velha, de 35 anos, e Aysha, sua terceira esposa, de 17. As duas mulheres estavam pálidas. Havia dois guardas na porta e Ahmed estava ajoelhado ao lado do médico. — Agora... deixe-me.

       — Eu voltarei ao amanhecer com uma ambulância e...

       — Nada de ambulância! Eu vou ficar aqui! — O rosto do khan ficou vermelho, e a dor atravessou-lhe o peito. Eles o observaram, mal respirando. Quando conseguiu falar, ele disse com voz rouca: — Eu vou ficar... aqui.

       — Mas Alteza, o senhor já teve um ataque cardíaco, graças a Deus um ataque leve — o médico disse com a voz fraquejando. — Não se sabe quando o senhor poderia ter... eu não tenho nenhum equipamento aqui; o senhor precisa de tratamento urgente e de observação.

       — Qualquer... qualquer coisa que o senhor precisa, traga para cá. Ahmed, providencie isto.

       — Sim, Alteza. — Ahmed olhou para o médico.

       O médico guardou o estetoscópio e o aparelho de pressão na sua maleta antiquada. Na porta, ele tornou a calçar os sapatos e saiu. Najoud e Ahmed o seguiram. Aysha hesitou. Ela era pequenina, estava casada há dois anos e tinha um filho e uma filha. O rosto do khan tinha uma palidez doentia e sua respiração era difícil. Ela se ajoelhou perto dele e pegou-lhe a mão, mas ele a empurrou com raiva, esfregando o peito, xingando-a. O medo dela aumentou.

       Lá fora no hall, o médico parou. Seu rosto era velho e enrugado, mais velho do que sua idade, seu cabelo era branco.

       — Alteza — disse para Najoud —, era melhor ele estar num hospital. Tabriz não serve. Teerã seria muito melhor. Ele deveria ir para Teerã, embora a viagem até lá possa... Teerã é melhor do que aqui. A pressão dele está muito alta, tem estado alta há anos mas, bem, seja como Deus quiser.

       — Qualquer coisa que o senhor precise, nós podemos trazer — disse Ahmed.

       O médico retrucou, zangado.

       — Idiota, eu não posso trazer uma sala de operação, mais um dispensário e um ambiente esterilizado para cá.

       — Ele vai morrer? — perguntou Najoud, com os olhos arregalados.

       — Quando Deus quiser, só quando Deus quiser. A pressão dele está alta demais... eu não sou mágico e nós temos poucos recursos. Você tem idéia do que causou o ataque? Houve alguma discussão ou algo assim?

       — Não, não houve nenhuma discussão, mas foi Azadeh com certeza. Foi ela de novo, aquela minha meia-irmã. — Najoud começou a torcer as mãos.

       — Foi ela, fugindo com o Sabotador ontem de manhã, foi..

       — Que Sabotador? — O médico perguntou estarrecido.

       — O Sabotador que todo mundo está procurando, o inimigo do Irã. Mas eu tenho certeza que ele não a raptou, eu tenho certeza que ela fugiu com ele. Como ele poderia raptá-la de dentro do palácio? Foi ela que causou toda a raiva de Sua Alteza. Nós estamos todos aterrorizados desde ontem de manhã.

       Bruxa idiota! pensou Ahmed. A explosão de ódio foi por causa dos homens de Teerã, Hashemi Fazir e o infiel que falava farsi, e o que eles pediram para o meu mestre fazer e ele concordou. Uma coisa tão insignificante, entregar-lhes um soviético, um pretenso amigo que era um inimigo, isso certamente não é motivo para explodir. Foi esperteza do meu mestre dar início às coisas: depois de amanhã o desgraçado vem para o lado de cá da fronteira e vai cair na teia e os dois inimigos de Teerã vão voltar e também vão cair na teia. O meu mestre vai decidir logo e então eu vou agir. Enquanto isso, Azadeh e o Sabotador estão seguros na aldeia, conforme meu mestre deseja — o chefe mandou-lhe um recado assim que eles chegaram lá. Poucos homens na terra são tão espertos quanto Abdullah Khan e só Deus vai decidir quando ele deve morrer, não este cão deste médico.

       — Vamos indo — ele disse. — Por favor, perdoe-me, Alteza, mas nós temos que apanhar uma enfermeira e remédios e alguns equipamentos. Doutor, temos que nos apressar.

       A porta no final do corredor se abriu. Aysha estava ainda mais pálida.

       — Ahmed, Sua Alteza quer falar um instante com você.

       Quando estavam a sós, Najoud segurou o médico pela manga e murmurou:

       — Qual é a gravidade do estado de Sua Alteza? O senhor precisa dizer-me a verdade. Eu tenho que saber.

       O médico levantou as mãos, impotente.

       — Eu não sei, não sei. Eu venho esperando pelo pior há mais de um ano. O ataque foi leve. O próximo pode ser definitivo ou não, dentro de uma hora ou de um ano, eu não sei.

       Najoud estivera em pânico desde que o khan desmaiara há duas horas atrás. Se o khan morresse, então Hakim, irmão de Azadeh, seria o seu herdeiro legítimo — os dois irmãos de Najoud tinham morrido na infância. O filho de Aysha ainda não tinha um ano. O khan não tinha nenhum irmão vivo, então o seu herdeiro seria Hakim. Mas Hakim caíra em desgraça e fora deserdado, logo teria que haver um regente. O seu marido, Mahmud, era o mais velho dos genros. Ele seria o regente, a menos que o khan determinasse outra coisa.

        Por que ele determinaria outra coisa? pensou, sentindo mais uma vez um buraco no estômago. O khan sabe que eu dirijo o meu marido e fortaleço a todos nós. O filho de Aysha — ora, uma criança doentia, tão doentia quanto a mãe. Seja como Deus quiser, mas os bebês costumam morrer. Ele não é uma ameaça, mas Hakim — Hakim é.

       Ela se lembrou de ter ido procurar o khan quando Azadeh voltou da escola na Suíça:

       — Pai, eu lhe trago más notícias, mas o senhor precisa saber a verdade. Eu ouvi Hakim e Azadeh conversando. Alteza, ela contou a ele que ficou grávida, mas tirou o filho com a ajuda de um médico.

       — O quê?

       — Sim... eu a ouvi dizer isso.

       — Azadeh não seria capaz... Azadeh não poderia ter feito uma coisa dessas!

       — Pergunte a ela. Por favor, não diga quem lhe contou, mas pergunte a ela diante de Deus, pergunte a ela, faça com que um médico a examine, mas espere, isso não é tudo. Contra a sua vontade, Hakim está resolvido a tornar-se pianista e disse a ela que vai fugir e pediu a Azadeh para ir com ele para Paris. "Então você poderá casar-se com o seu amante", ele disse, mas ela disse, Azadeh disse: "Papai vai trazê-lo de volta, ele vai nos obrigar a voltar. Ele nunca nos deixará partir sem a sua permissão, nunca." Então Hakim disse: "Eu irei. Não vou ficar aqui e desperdiçar a minha vida. Eu irei!" E ela disse novamente: "Papai nunca permitirá isso, nunca." "Então é melhor que ele morra", disse Hakim e ela disse: "Eu concordo”.

       — Eu... eu não acredito nisso!

       Najoud recordou o rosto dele ficando roxo e o terror que ela sentiu.

       — Diante de Deus. Eu os ouvi dizendo isso, Alteza, diante de Deus. Então eles disseram que precisavam fazer um plano, nós... — Ela se encolhera quando ele gritou com ela, ordenando-lhe que contasse exatamente o que eles tinham dito.

       — Ele disse exatamente, Hakim disse: "Um pouco de veneno no seu halvah, ou numa bebida, podemos subornar um criado, talvez possamos subornar um dos seus guardas para matá-lo ou poderíamos deixar os portões abertos de noite para os assassinos... há centenas de maneiras para que qualquer um dos seus milhares de inimigos faça isso por nós, todo mundo o odeia. Nós precisamos refletir e ter paciência..."

       Fora fácil para ela lançar o seu veneno, inventando cada vez mais mentiras, até que em pouco tempo ela própria estava acreditando nelas — mas não inteiramente.

       Deus vai me perdoar, disse a si mesma, como costumava dizer sempre. Deus vai me perdoar. Azadeh e Hakim sempre nos odiaram, e a todo o resto da família, sempre quiseram nos ver mortos, banidos, para ficar com a nossa herança, eles e aquela bruxa da mãe deles que lançou um feitiço sobre papai para que ele nos virasse o rosto por tantos anos. Oito anos ele ficou sob o feitiço dela — Azadeh isso, Azadeh aquilo, Hakim isso, Hakim aquilo. Por oito anos ele nos ignorou e a nossa mãe, sua primeira esposa, não tomou nenhum conhecimento de mim, casou-me displicentemente com esse idiota, Mahmud, esse fedorento, impotente, mau, roncador, e arruinou a minha vida. Espero que o meu marido morra, comido pelos vermes, mas não antes de se tornar khan para que o meu filho possa ser khan depois dele.

       Papai precisa livrar-se de Hakim antes de morrer. Que Deus o mantenha vivo para fazer isso — ele tem que fazer isso antes de morrer — e Azadeh tem que ser humilhada, expulsa, destruída também — melhor ainda, apanhada em adultério com o Sabotador, oh sim, então a minha vingança estará completa.

 

SEXTA-FEIRA, 23 de fevereiro

       PERTO DE TABRIZ UM, NA ALDEIA DE ABU MARD: 6:17H. Ao amanhecer, o rosto de outro Mahmud, o mulá marxista-islâmico, estava contorcido de raiva.

       — Você se deitou com este homem? — gritou. — Diante de Deus, você se deitou com ele?

       Azadeh estava de joelhos diante dele, apavorada.

       — O senhor não tem nenhum direito de invadir...

       — Você se deitou com este homem?

       — Eu... eu sou fiel ao meu... meu marido — ela gaguejou. Há poucos segundos atrás, ela e Ross estavam sentados nos tapetes da cabana, comendo apressadamente a refeição que ela trouxera, felizes juntos, prontos para partir imediatamente. O chefe aceitara com humildade e gratidão o pishkesh, quatro rúpias de ouro para ele e uma dada em segredo à sua esposa, e dissera a eles para escaparem da aldeia pelo lado da floresta assim que terminassem de comer, abençoando-a. Então a porta fora aberta com violência, estranhos tinham entrado, dominando-os e arrastando-os para fora, atirando-a aos pés de Mahmud e imobilizando Ross.

       — Eu sou fiel, eu juro, eu sou fi...

       — Fiel? Por que você não está usando o chador! — Ele gritara para ela, com quase toda a aldeia reunida em volta deles, em silêncio e com medo. Uma meia dúzia de homens armados apoiavam-se nas suas armas, dois dominavam Ross, que estava deitado de bruços na neve, inconsciente, com sangue escorrendo da testa.

       — Eu estava... eu estava usando o chador mas eu... eu o tirei enquanto estava comendo...

       — Você tirou o seu chador numa cabana com a porta fechada enquanto comia com um estranho? O que mais você tinha tirado?

       — Nada, nada — disse mais apavorada ainda, apertando o seu casaco em volta do corpo. — Eu só estava comendo e ele não é um estranho, mas um velho amigo... um velho amigo do meu marido — ela se corrigiu apressadamente, mas o mulá havia notado a hesitação. — Abdullah Khan é meu pai e o senhor não tem nenhum direito...

       — Velho amigo? Se você não é culpada, não tem nada a temer! Diante de Deus, você se deitou com ele? Jure!

       — Calênder, mande chamar o meu pai, mande chamá-lo! — O calênder não se moveu. Todos os olhos estavam presos nela. Sem poder fazer nada, ela viu o sangue na neve, o seu Johnny gemendo, voltando a si. — Eu juro por Deus que sou fiel ao meu marido! — Ela gritou. O grito atingiu a todos eles e entrou na consciência de Ross e o fez acordar.

       — Responda à pergunta, mulher! É sim ou não? Em nome de Deus, você se deitou com ele? — O mulá estava em pé, debruçado sobre ela como um corvo agourento, os aldeões esperando, todo mundo esperando, as árvores e o vento esperando... até mesmo Deus.

       — Insha'Allah!

       O medo a abandonou. Em seu lugar ficou o ódio. Ela encarou Mahmud enquanto se levantava. — Em nome de Deus, eu sou e sempre fui fiel ao meu marido — ela declarou. — Em nome de Deus, sim, eu amei este homem, há muitos anos atrás.

       Suas palavras fizeram estremecer muitos dos que estavam lá e Ross ficou perplexo por ela ter admitido isso.

       — Meretriz! Mulher perdida! Você admite abertamente a sua culpa. Você será punida de acordo com...

       — Não — Ross gritou para ele. Ele se ajoelhou e embora os dois mujhadins tivessem armas apontadas para a sua cabeça, ele os ignorou. — Não foi culpa de Sua Alteza. O culpado sou eu, só eu, só eu!

       — Você será punido, infiel, não se preocupe — disse Mahmud, depois voltou-se para os aldeões. — Todos vocês ouviram a meretriz admitir fornicação, todos vocês ouviram o infiel admitir fornicação. Para ela só existe um castigo. Para o infiel... o que deve acontecer com o infiel?

       Os aldeões esperaram. O mulá não era o mulá deles, nem da aldeia, nem era um mulá verdadeiro, mas um marxista-islâmico. Ele viera sem ser convidado. Ninguém sabia por que ele viera, só que ele aparecera subitamente como a fúria de Deus, junto com os esquerdistas, que também não eram da aldeia.

       Não eram xiitas verdadeiros, apenas loucos. O imã não dissera cinqüenta vezes que todos esses homens eram loucos, que só fingiam servir a Deus, secretamente adorando o Satã Marx-Lenin?

       — Bem? Ele deve partilhar do castigo dela?

       Ninguém respondeu. O mulá e seus homens estavam armados.

       Azadeh sentiu todos os olhos cravados nela, mas não conseguiu mais se mover nem falar. Ela ficou lá em pé, com os joelhos tremendo, as vozes distantes, até mesmo a de Ross gritando:

       — Vocês não têm nenhum direito de julgar a ela nem a mim. Vocês estão desafiando a Deus... — um dos homens lhe deu um empurrão brutal que o fez cair no chão e depois pôs a bota no pescoço dele, imobilizando-o.

       — Vamos castrá-lo e terminar com isso — disse o homem e outro retrucou:

       — Não, foi a mulher que o tentou. Eu a vi levantar o chador para ele na cabana na noite passada. Olhe para ela agora, tentando-nos a todos. O castigo para ele não são cem chibatadas?

       — Ele pôs as mãos nela, cortem as mãos dele — disse um outro.

       — Ótimo — concordou Mahmud. — Primeiro as mãos, depois o chicote. Amarrem-no!

        Azadeh tentou gritar contra esta maldade, mas nenhum som saiu da sua garganta, o sangue batia nos seus ouvidos, seu estômago estava revirado, sua mente confusa, enquanto eles arrastavam o seu Johnny, lutando e esperneando, para amarrá-lo com os braços e as pernas abertas entre duas estacas — lembrando-se de quando ela e Hakim eram crianças e ele, cheio de audácia, apanhara uma pedra e atirara no gato, e o gato tinha berrado enquanto rolava no chão, ferido, e tentava fugir, berrando o tempo todo até que um guarda atirara nele, mas agora... agora ela sabia que ninguém iria atirar nela. Ela se jogou em cima de Mahmud, com as unhas de fora, mas perdeu as forças e desmaiou.

       Mahmud olhou para ela.

       — Encostem-na na parede — disse para alguns dos seus homens —, depois tragam o seu chador. — Ele se virou e olhou para os aldeões. — Quem é o açougueiro aqui? Quem é o açougueiro da aldeia? — Ninguém respondeu. Sua voz ficou mais dura. — Calênder, quem é o seu açougueiro?

       Rapidamente, o chefe apontou para um homem no meio da multidão, um homem pequeno, vestido com roupas grosseiras.

       — Abrim, Abrim é o nosso açougueiro.

       — Vá buscar a sua faca mais afiada — disse-lhe Mahmud. Os outros vão apanhar as pedras.

       Abrim foi fazer o que ele mandou. Seja como Deus quiser, os outros murmuraram.

       — Vocês já assistiram a algum apedrejamento? — perguntou alguém. Uma mulher muito velha respondeu:

       — Eu assisti a um, uma vez. Foi em Tabriz, quando eu era menina. — Sua voz tremeu. — A adúltera era esposa de um lojista do bazar, sim, eu me lembro que era a esposa de um lojista. O seu amante também era um lojista e eles cortaram a cabeça dele em frente à mesquita, depois os homens a apedrejaram. As mulheres também podiam jogar pedras se quisessem, mas não jogaram, eu não vi nenhuma mulher fazer isso. O apedrejamento levou muito tempo e durante anos eu ouvi os gritos.

       O adultério é um grande mal e tem que ser castigado, quem quer que seja a pecadora, até mesmo ela. O Corão manda cem chicotadas para o homem... o mulá é o juiz, não nós. — disse o calênder

       Mas ele não é um mulá de verdade e o imã alertou contra a maldade deles!

       — O mulá é o mulá, a lei é a lei — disse sombriamente o calênder, desejando secretamente ver o khan humilhado e esta mulher que ensinara coisas novas e perturbadoras para os seus filhos destruída. — Apanhem as pedras.

       Mahmud estava parado na neve, ignorando o frio, os aldeões, o Sabotador que praguejava e gemia e, desesperado, tentava soltar-se das cordas e a mulher inerte no muro.

       Naquela manhã, antes do amanhecer, quando viera para tomar a base, ele ouvira dizer que o Sabotador e ela estavam na aldeia. Ela, a da sauna, ele pensara, tomado pela raiva, ela que se exibira, a rameira, filha do maldito khan que finge ser o nosso protetor mas que traiu a nós e a mim, planejando uma tentativa de assassinato contra mim na noite passada, uma rajada de metralhadora do lado de fora da mesquita depois da última oração, que matou a muitos, mas não a mim. O khan quis que eu fosse morto, eu que estou protegido pela Palavra Sagrada de que o Islã junto com Marx-Lenin são a única maneira de ajudar o mundo a se erguer.

       Ele a olhou, vendo as pernas longas vestidas com calças azuis de esqui, o cabelo solto, os seios salientes sob a jaqueta azul e branca. Rameira, pensou, odiando-a por tentá-lo. Um dos seus homens atirou o chador em cima dela. Ela gemeu um pouco mas não saiu do seu transe.

       — Eu estou pronto — disse o açougueiro, empunhando a faca.

       — Primeiro a mão direita — disse Mahmud aos seus homens. — Amarrem-no acima dos pulsos.

       Eles amarraram tiras de saco, rasgadas da janela, bem apertadas, com os aldeões se aproximando para ver melhor, e Ross usou toda a sua energia para impedir que o terror o dominasse, vendo apenas a cara marcada de varíola por cima da faca de trinchar, o bigode e a barba desgrenhados, os olhos sem expressão, o polegar do homem experimentando a faca distraidamente. Então os seus olhos entraram em foco. Ele viu Azadeh sair do seu torpor e se lembrou.

       — A granada! — berrou. — Azadeh, a granada!

       Ela o ouviu claramente e procurou no bolso da jaqueta enquanto ele continuava a berrar, assustando o açougueiro, atraindo a atenção de todo mundo para ele. O açougueiro se aproximou xingando-o, agarrou-lhe a mão direita com firmeza, fascinado por ela, moveu-a de um lado para o outro, com a faca preparada, decidindo onde cortar, dando a Azadeh o tempo necessário para atravessar o pequeno espaço que os separava e atirar-se contra ele, fazendo-o voar pela neve junto com a faca, depois virar-se para Mahmud, tirar o pino e ficar lá, tremendo, segurando a alavanca.

       — Afastem-se dele — ela gritou. — Afastem-se!

       Mahmud não se moveu. O resto todo se espalhou, alguns tropeçando, correndo através da praça para se abrigar, xingando e gritando.

       — Rápido, para cá, Azadeh — gritou Ross. — Azadehl — Ela escutou através do seu torpor e obedeceu, recuando na direção dele, vigiando Mahmud, com bolhas de espuma nos cantos da boca. Então Ross viu Mahmud se virar e caminhar em direção a um dos seus homens que estava fora de alcance e gemeu, sabendo o que ia acontecer. — Rápido, apanhe a faca e solte-me — disse para distrai-la. — Não solte a alavanca — eu os vigio para você.

       Atrás dela, ele viu o mulá pegar o rifle de um dos seus homens, destravá-lo e se virar para eles. Agora ela estava com a faca do açougueiro e estendeu a mão para cortar as cordas que lhe prendiam a mão direita e ele sabia que a bala iria matá-la ou feri-la, a alavanca se soltaria, haveria quatro segundos de espera, e depois o esquecimento para ambos, mas rápido e limpo e sem obscenidades.

       — Eu sempre a amei, Azadeh — sussurrou e sorriu, e ela levantou a cabeça, espantada, e sorriu de volta.

       O rifle disparou, o coração dele parou, depois houve outro tiro e mais outro, mas eles não vieram de Mahmud e sim da floresta, e agora Mahmud gritava e se contorcia na neve. Então uma voz acompanhou os tiros:

       — Allah-u Akbarl Morte a todos os inimigos de Deus! Morte a todos os esquerdistas, morte a todos os inimigos do imã!

       Com um urro de ódio, um dos mujhadins correu em direção à floresta e morreu. No mesmo instante, os outros fugiram, tropeçando uns nos outros na pressa de se esconder. Em poucos segundos a praça da aldeia estava vazia, exceto pelos uivos de Mahmud, com o turbante fora da cabeça. Na floresta, o líder do grupo de quatro assassinos do Tudeh, que o tinham seguido desde o amanhecer, fez com que ele se calasse com uma rajada de metralhadora, depois os quatro se retiraram tão silenciosamente quanto tinham chegado.

       Ross e Azadeh ficaram olhando espantados para a aldeia vazia.

       — Não pode ser... não pode ser... — ela murmurou, ainda tonta.

        — Não largue a alavanca — ele disse com voz rouca. — Não largue a alavanca. Rápido, solte-me... rápido!

       A faca era muito afiada. Suas mãos estavam trêmulas e vagarosas e ela o cortou, mas não muito fundo. Assim que ficou livre, ele agarrou a granada, com as mãos dormentes e doendo, mas segurou a alavanca, começando a respirar de novo. Ele entrou cambaleando na cabana, encontrou o kookri que ficara enrolado no cobertor durante a primeira luta, enfiou-o na bainha e pegou a carabina. Na porta, ele parou.

       — Azadeh, rápido, apanhe o seu chador e a mochila e siga-me. — Ela ficou olhando para ele. — Rápido!

       Ela obedeceu como um autômato, e ele a levou para fora da aldeia e para dentro da floresta, com a granada na mão direita e a arma na esquerda. Depois de uma corrida de um quarto de hora, ele parou e escutou. Ninguém os seguia. Azadeh ofegava atrás dele. Ele viu que ela trouxera a mochila mas esquecera o chador. Sua roupa de esqui azul-clara sobressaía nitidamente na neve e no meio das árvores. Ele continuou a correr. Ela foi tropeçando atrás dele, sem conseguir falar. Mais cem metros sem problemas.

       Não via ainda nenhum lugar para parar. Ele continuou, mais devagar agora, com uma dor violenta do lado, quase vomitando, com a granada ainda pronta. Azadeh fraquejando cada vez mais. Ele encontrou o caminho que levava aos fundos da base. Ainda não estavam sendo perseguidos. Perto da elevação, nos fundos da cabana de Erikki, ele parou, esperando por Azadeh, então seu estômago piorou, ele tropeçou e caiu de joelhos, vomitando. Muito fraco, ele se levantou e subiu a elevação para se proteger melhor. Quando Azadeh o alcançou, respirava com dificuldade. Ela se atirou na neve ao lado dele, vomitando.

       Lá embaixo, perto do hangar, ele viu o 206, sendo lavado por um dos mecânicos. Ótimo, pensou, talvez o estejam preparando para voar. Três revolucionários armados estavam numa varanda próxima, sob a projeção de um trailer, fumando, abrigados do vento. Não havia nenhum sinal de vida no resto da base, embora saísse fumaça da chaminé da cabana de Erikki e da que era partilhada pelos mecânicos, e da cozinha. Ele podia ver até a estrada. A barreira ainda estava lá, guardada por alguns homens, e havia alguns caminhões e carros parados.

       Seus olhos voltaram-se novamente para os homens na varanda e ele pensou em Gueng e em como o seu corpo fora atirado como um saco de ossos velhos na sujeira da pick-up, debaixo dos pés deles, talvez desses mesmos homens, talvez não. Por um momento, sua cabeça doeu com a força do ódio. Ele olhou para Azadeh. Ela respirava melhor, ainda mais ou menos em choque, sem enxergá-lo de verdade, com um filete de saliva e de vômito escorrendo pelo queixo. Com a manga, ele limpou-lhe o rosto.

       — Nós estamos bem agora, descanse um pouco e depois continuamos.

       Ela balançou a cabeça e a apoiou nos braços, mais uma vez no seu mundo particular. Ele voltou a se concentrar na base.

       Passaram-se dez minutos. Quase nada mudou. Lá em cima, a camada de nuvens era um cobertor sujo, e a neve pesada. Dois dos homens armados entraram no escritório e ele podia vê-los de vez em quando através das janelas. O terceiro homem prestava pouca atenção ao 206. Não havia nenhum outro movimento. Então um cozinheiro saiu da cozinha, urinou na neve, e tornou a entrar. Mais algum tempo. Agora um dos guardas saiu do escritório e foi andando pela neve até o trailer dos mecânicos, com um M16 pendurado no ombro. Abriu a porta e entrou. Alguns instantes depois tornou a sair. Com ele, estava um europeu alto, vestindo roupa de piloto, e um outro homem. Ross reconheceu Nogger Lane e o outro mecânico. O mecânico disse alguma coisa a Lane, depois acenou e tornou a entrar no trailer. O guarda e o piloto foram andando em direção ao 206.

       Todo mundo localizado, pensou Ross, com o coração disparado. Desajeitadamente, ele checou a carabina, com a granada na mão direita atrapalhando, depois colocou no bolso os dois últimos cartuchos e a última granada que ficara na mochila. De repente, o medo o invadiu e ele teve vontade de sair correndo, oh, Deus, ajude-me a fugir, a me esconder, a estar em casa, seguro, em qualquer lugar longe dali...

       — Azadeh, eu vou até lá agora — ele se forçou a dizer. — Prepare-se para correr para o helicóptero assim que eu acenar ou gritar. Preparada? — E a viu olhar para ele e balançar a cabeça, formulando um sim com os lábios, mas ele não tinha certeza se ela realmente compreendera. Ele tornou a repetir e sorriu encorajadoramente. — Não se preocupe — Ela concordou com a cabeça.

       Então abriu a bainha do kookri e saiu correndo como um animal selvagem atrás de alimento.

       Ele deslizou por trás da cabana de Erikki, protegido pela sauna. Lá dentro havia barulho de crianças e uma voz de mulher. A boca seca, a granada morna nas mãos. Esgueirando-se de abrigo em abrigo, enormes tambores, pilhas de canos e serrotes e toras de reserva, sempre mais para perto do treiller-escritório. Olhando em volta para ver o guarda e o piloto aproximando-se do hangar, o homem da varanda observando-os preguiçosamente. A porta do escritório se abriu, um outro guarda saiu tendo ao seu lado um novo homem, mais velho, maior, sem barba, possivelmente europeu, usando roupas de melhor qualidade e armado com uma arma Sten. No cinto de couro grosso em volta da cintura dele, havia um kookri dentro da bainha.

       Ross soltou a alavanca, ela pulou.

       — Um, dois, três — e ele saiu de onde estava, atirou a granada nos homens que estavam na varanda, a quarenta metros de distância, e tornou a se abaixar atrás do tanque, já preparando outra.

       Eles o tinham visto. Por um momento ficaram paralisados, depois enquanto se atiravam no chão para se proteger, a granada explodiu, destruindo a maior parte da varanda, matando um deles, atordoando o outro e mutilando o terceiro. No mesmo instante, Ross correu, com a carabina apontada, com a nova granada na mão direita, o dedo indicador no gatilho. Não havia nenhum movimento na varanda, mas perto do hangar o mecânico e o piloto se atiraram na neve e puseram os braços sobre a cabeça, em pânico, o guarda correu para o hangar e, por um momento, ficou desprotegido. Ross atirou e errou, correu para o hangar, notou uma porta nos fundos e desviou-se para lá. Ele abriu a porta e pulou para dentro. O inimigo estava do outro lado, atrás de um motor, com a arma apontada para a outra porta. Ross estourou a cabeça dele, com o tiro ecoando nas paredes de chapa ondulada, depois correu para a outra porta. Através dela, ele podia ver o mecânico e Nogger Lane deitados na neve, perto do 206. Ainda protegido, ele gritou para eles:

       — Rápido! Quantos inimigos há aqui? — Nenhuma resposta. — Pelo amor de Deus, respondam!

       Nogger Lane levantou a cabeça, com o rosto branco.

       — Não atire, nós somos civis, ingleses, não atire!

       — Quantos inimigos existem aqui?

       — Havia... havia cinco... cinco... este aqui e o resto no escritório... eu acho que no escritório...

       Ross correu para a porta traseira, atirou-se no chão e espiou para fora, no nível do chão. Nenhum movimento. O escritório estava a cinqüenta metros de distância — a única proteção era rodeando o caminhão. Ele ficou em pé e atirou-se para lá. Balas arrancaram pedaços de metal e depois pararam. Ele tinha visto o clarão saindo de uma janela quebrada do escritório.

       Depois do caminhão havia um espaço aberto, e neste espaço, um fosso que se estendia a perder de vista. Se eles continuarem lá dentro, eu os pego. Se eles saírem, e devem sair, sabendo que estou sozinho, as chances são maiores para eles.

       Ele se arrastou para a frente, de barriga, pronto para a batalha. Estava tudo quieto, o vento, os pássaros, o inimigo. Estavam todos esperando. Dentro do fosso agora. Avançando devagar. Chegando mais perto. Vozes e uma porta rangendo. Silêncio de novo. Mais um metro. Mais um. Agora! Ele preparou os joelhos, enfiou os dedos dos pés na neve, soltou a alavanca da granada, contou até três, ficou em pé de um salto, escorregou mas conseguiu manter o equilíbrio, e atirou a granada pela janela quebrada, mais à frente do homem que estava lá em pé, com a arma apontada para ele, e tornou a se atirar na neve. A explosão fez cessar a rajada de metralhadora, quase explodiu os seus próprios tímpanos e mais uma vez ele estava de pé, correndo em direção ao trailer, atirando enquanto corria. Pulou por cima de um cadáver e continuou, ainda atirando. De repente, a sua arma parou e o seu estômago revirou-se, até conseguir tirar o cartucho usado e enfiar um novo. Ele tornou a atirar no cara da metralhadora e depois parou.

       Silêncio. Depois um grito ali perto. Cautelosamente, ele deu um chute na porta quebrada e saiu para a varanda. O que tinha gritado estava sem as pernas, enlouquecido, mas ainda vivo. Em volta da sua cintura estava o cinto de couro e o kookri que tinham sido de Gueng. Ross ficou cego de fúria, e arrancou o kookri da bainha.

       — Você conseguiu isto na barreira? — gritou em farsi.

       — Ajude-me ajude-me ajude-me... — Um paroxismo em alguma língua estrangeira e depois: — Quem é você quem... ajude-me... — O homem continuou a gritar e misturado com os gritos exclamava: — Ajude-me... sim eu matei o Sabotador... ajude-me...

       Com um berro de gelar o sangue, Ross atirou-se sobre ele e quando sua vista clareou, ele estava olhando para a cabeça que pendia da sua mão esquerda. Enojado, ele a deixou cair e virou-se. Por um momento, não soube onde estava, depois sua mente clareou, suas narinas encheram-se com o cheiro de sangue e pólvora, ele se viu nos destroços do trailer e olhou em volta.

       A base estava paralisada, mas havia homens correndo em direção a ela, vindos da barreira. Perto do helicóptero, Lane e o mecânico ainda estavam imóveis na neve. Correu para eles, procurando proteger-se.

       Nogger Lane e o mecânico Arberry o viram chegando e ficaram apavorados — o maníaco nativo, fedayim ou mujhadin, de barba pontuda, cabelos desgrenhados e olhos selvagens, que falava um inglês perfeito, cujas mãos estavam manchadas de sangue da cabeça que há poucos instantes eles o viram arrancar de um único golpe e com um urro alucinado, a faca manchada de sangue ainda nas mãos, outra na bainha, a carabina na outra mão. Eles ficaram de joelhos, com as mãos para cima.

       — Não nos mate. Nós somos amigos, civis, não nos ma...

       — Calem a boca! Preparem-se para decolar. Rápido! — Nogger Lane ficou estarrecido.

       — O quê?

       — Pelo amor de Deus, ande logo! — Ross disse zangado, furioso peio pavor do rosto deles, completamente esquecido da sua própria aparência. — Você — ele apontou para o mecânico com a faca de Gueng. — Você está vendo aquela elevação ali?

     — Sim... sim, senhor — Arberry respondeu.

       — Vá até lá o mais depressa que puder, há uma moça lá, traga-a até aqui... — Ele parou ao ver Azadeh sair da beirada da floresta e começar a correr pela colina em direção a eles. — Esqueça, vá buscar o outro mecânico, depressa pelo amor de Deus, os filhos da mãe da barreira estarão aqui a qualquer momento

       — Vá, ande! — Arberry saiu correndo, apavorado, mas mais apavorado ainda com os outros homens que podia ver vindo pela estrada. Ross virou-se para Nogger Lane: — Eu lhe disse para ligar o motor.

       — Sim... sim senhor... aquela... aquela mulher... não é Azadeh, a Azadeh de Erikki, é?

       — Sim. Eu lhe disse para ligar os motores.

       Nogger Lane nunca decolou com um 206 tão depressa, nem os mecânicos nunca correram tanto. Azadeh ainda tinha que atravessar uns cem metros e os inimigos já estavam muito perto. Então Ross se abaixou sob as hélices e se pôs entre ela e eles, esvaziando a arma na direção deles. Eles abaixaram as cabeças e se espalharam, e ele atravessou o espaço vazio na direção deles com um berro. Algumas cabeças se levantaram. Mais uma rajada de balas e mais outra, economizando munição, fez com que eles conservassem as cabeças baixas, Azadeh se aproximando agora, mas mais devagar. Ela conseguiu fazer um último esforço e passou por ele, cambaleando em direção à cabine, sendo puxada para dentro pelos mecânicos. Ross tornou a atirar, recuando, pulou para o assento da frente e eles subiram.

      

       BASE AÉREA DE KOWISS: 17:20H. Starke pegou a carta que tinha recebido e olhou para ela. O ás de espadas. Ele resmungou, supersticioso como a maioria dos pilotos, mas colocou-a na mão junto com as outras cartas. Os cinco estavam no seu bangalô, jogando pôquer: Freddy Ayre, Doe Nutt, Pop Kelly e Tom Lochart, que chegara de Zagros Três na véspera com mais um carregamento de peças, prosseguindo com a evacuação, mas tarde demais para a volta. Por causa da ordem proibindo vôos hoje, dia santo, ele estava retido lá até a madrugada do dia seguinte. Havia fogo na lareira, a tarde estava fria. Em frente a eles havia uma pilha de dinheiro, a maior era de Kelly, a menor de Doe Nutt.

       — Quantas cartas, Pop? — perguntou Ayre.

       — Uma — Kelly disse sem hesitação, descartou e colocou as quatro que conservara na mesa, viradas para baixo. Ele era um homem alto, magro, com o rosto enrugado, cabelos louros e ralos, ex-RAF e com cerca de quarenta anos. Seu apelido era 'Pop' porque ele tinha sete filhos e mais um a caminho.

       Ayre entregou-lhe a carta fazendo um floreio. Kelly simplesmente olhou-a por um momento, depois, sem virá-la, misturou-a vagarosamente com as outras e, com muito cuidado e bem devagar, levantou as cartas, deu uma olhadinha no canto direito de cada carta e suspirou alegremente.

       — Merda! — disse Ayre e todos riram. Exceto Lochart, que olhava sombriamente para as suas cartas. Starke franziu a testa, preocupado com ele mas muito contente de que estivesse lá. Havia a mensagem secreta de Gavallan, que Jonh Hogg trouxera no 125, para ser discutida.

       — Eu abro com mil riais — disse Doe Nutt e todo mundo o olhou. Normalmente, ele apostava no máximo cem riais.

       Distraidamente, Lochart estudou as suas cartas, sem muito interesse no jogo, com a mente em Zagros e em Xarazade. Na noite anterior, a BBC tinha relatado grandes agitações durante as marchas de protesto das mulheres em Teerã, Isfahan e Meshed, com novas marchas marcadas para hoje e amanhã.

       — É muito para mim — ele disse, e jogou as cartas na mesa.

       — Eu vou, Doe, e aumento para dois mil — disse Starke e a confiança de Doe Nutt desapareceu. Nutt tinha pedido duas cartas, Starke uma e Ayre três.

       Kelly olhou para a sua seqüência, de quatro a oito.

       — Os seus dois mil, Duke, e aumento para três mil.

       — Desisto — disse Ayre, na mesma hora, atirando na mesa dois pares, de reis e dez.

       — Desisto — disse Doe Nutt, com um suspiro de alívio, chocado consigo mesmo por ter sido tão ousado e atirou na mesa as três damas que recebera, certo de que Starke tinha uma seqüência, um flush ou um full.

       — Os seus três mil, Pop e aumento para trinta... mil — disse Starke, suavemente, sentindo-se bem por dentro. Ele desistira de um par de seis para manter quatro copas, tentando um flush. Com o ás de espadas tinha apenas um flush incompleto, mas que se tornaria uma mão vitoriosa caso pudesse blefar e fazer Kelly recuar.

       Todos os olhos estavam em Kelly. O aposento estava silencioso. Até Lochart ficou interessado.

       Starke esperou pacientemente, controlando o rosto e as mãos, inquieto com o ar de confiança que cercava Kelly e imaginando o que faria se Kelly tornasse a aumentar a aposta, sabendo o que Manuela diria se descobrisse que ele estava disposto a colocar uma semana de salário num flush incompleto.

       Ela ia ter um ataque, ele pensou e sorriu.

       Kelly estava suando. Ele tinha visto o ligeiro sorriso de Starke. Já o apanhara blefando uma vez, mas isso fora há muitas semanas atrás e não por trinta mil, só por quatro. Não posso me arriscar a perder o salário de uma semana, mas esse sem-vergonha pode estar blefando. Alguma coisa me diz que o velho Duke está blefando e eu bem que estou precisando de um salário extra. Kelly tornou a verificar as cartas para ter certeza de que a sua seqüência era uma seqüência — é claro que é uma maldita seqüência, pelo amor de Deus, e Duke está blefando. E começou a dizer:

       — Eu aceito os seus trinta mil — mas parou e disse: — Pode levar, Duke. — Jogou as cartas na mesa e todo mundo riu. Exceto Starke. Ele pegou o baralho e enfiou as cartas lá dentro e embaralhou para ter certeza de que não seriam vistas.

       — Eu aposto como você estava blefando, Duke — disse Lochart e riu.

       — Eu? Com um straight flush? — disse Starke, inocentemente, dando uma risadinha. Ele olhou as horas. — Eu tenho que fazer a ronda. Vamos parar e continuar depois do jantar, certo? Tom, você quer vir comigo?

       — Claro. — Lochart vestiu o casaco e saiu com Starke.

       Esta era a melhor hora do dia para eles em épocas normais — pouco antes de escurecer, todos os vôos terminados, todos os helicópteros lavados e reabastecidos, prontos para o dia seguinte, a expectativa de um drinque, tempo para ler um pouco, escrever algumas cartas, ouvir música, comer, ligar para casa e depois dormir.

       A base estava em ordem.

       — Vamos dar uma volta, Tom — disse Starke. Quando é que você vai voltar para Teerã?

       — Que tal hoje à noite?

       — Está mal, hein?

       — Pior. Eu sei que Xarazade esteve na Marcha das Mulheres, embora eu tivesse dito a ela para não ir, além de tudo mais.

       Na noite passada, Lochart contara a ele a respeito do pai dela, e tudo sobre a perda do HBC. Starke ficara estarrecido, ainda estava, e mais uma vez deu graças a Deus por não saber de nada quando foi levado para interrogatório por Hussein e seus Faixas Verdes.

       — Mac já deve estar cuidando de Xarazade, Tom. Ele vai providenciar para que ela fique bem.

       Quando Lochart chegou lá, eles conseguiram falar com McIver no HF, com a recepção boa para variar, e tinham pedido a ele para ver se ela estava bem. Dentro de poucos minutos, eles tornariam a fazer a sua única ligação diária para o QG em Teerã.

       — As chamadas estão restritas, mas só até a situação se normalizar, então vocês poderão ligar quantas vezes quiserem. Dentro em breve — dissera o comandante da base, major Changiz. E embora eles estivessem monitorizados pela torre principal que ficava na base da Força Aérea, o vínculo mantinha a sanidade deles e dava uma aparência de normalidade.

       — Depois que Zagros Três estiver vazio, no domingo, e vocês todos estiverem aqui, por que não levar o 206 logo cedo na segunda-feira? Eu vou arranjar isto com Mac — disse Starke.

       — Obrigado, seria ótimo. — Agora que a sua base estava fechada, Lochart estava nominalmente sob o comando de Starke.

       — Você já pensou em dar o fora, pilotar o 212 no lugar de Scot? Uma vez fora de Zagros ele deverá ficar em segurança. Ou melhor ainda, vocês dois partirem? Eu vou falar com Mac.

       — Não, obrigado, Xarazade não pode deixar a família neste momento.

       Eles continuaram a caminhar mais um pouco. A noite estava caindo depressa, fria mas seca, o ar cheirando a gasolina por causa da enorme refinaria que ficava ali perto e que ainda estava quase que totalmente desativada e às escuras, exceto pelas altas chaminés queimando gás de petróleo. Na base, as luzes já estavam acesas na maioria dos bangalôs, hangares e na cozinha — eles tinham os seus próprios geradores para o caso de faltar eletricidade na base. O major Changiz dissera a Starke que não havia mais nenhuma possibilidade do sistema de geradores da base ser prejudicado.

       — A revolução já acabou, capitão, o imã está no governo

       — E os esquerdistas?

       — O imã ordenou que eles fossem eliminados a menos que se adaptassem ao nosso Estado islâmico — respondera o major Changiz, com voz dura e ameaçadora. — Esquerdistas, curdos, baha'is, estrangeiros, qualquer inimigo. O imã sabe o que fazer.

       Imã. Foi a mesma coisa durante o interrogatório de Starke diante do komiteh de Hussein. Quasxi como se ele fosse um semideus, pensara Starke. Hussein fizera o papel de juiz e promotor e a sala, no prédio da mesquita, estava lotada de homens hostis de todas as idades, todos Faixas Verdes, cinco juizes — nenhum advogado.

       — O que você sabe sobre a fuga dos inimigos do Islã de Isfahan, de helicóptero?

       — Nada.

       Imediatamente, um dos outros quatro Juizes, todos jovens, rudes e quase analfabetos, disse:

       — Ele é culpado de crimes contra Deus e de crimes contra o Irã por ser um explorador a serviço dos demônios americanos. Culpado.

       — Não — atalhou Hussein. — Isto é um tribunal, um tribunal corânico. Ele está aqui para responder a perguntas, não para ser acusado de crimes, ainda não. Ele não é acusado de crime algum. Capitão, diga-nos tudo o que sabe sobre q crime de Isfahan.

       O ar da sala era fétido. Starke não viu nem um rosto simpático e, no entanto, todos sabiam quem ele era, todos sabiam sobre a sua batalha contra os fedayins em Bandar Delam. E seu medo era como uma dor incômoda, por saber que estava sozinho agora, à mercê deles.

       Tomou fôlego e escolheu as palavras cuidadosamente.

       — Em nome de Deus, o misericordioso, o compassivo — disse, começando do jeito que começam todas as surás do Corão, e uma agitação de surpresa percorreu a sala. — Eu mesmo não sei de nada, não testemunhei nada, nem tive nada a ver com isso. Eu estava em Bandar Delam na ocasião. Pelo que eu saiba, nenhum dos meus homens teve nada a ver com isso. Eu só sei o que Zataki de Abadan me contou quando voltou de Isfahan. Ele disse exatamente o seguinte: "Nós ouvimos dizer que na terça-feira alguns partidários do xá, todos oficiais, fugiram para o sul num helicóptero pilotado por um americano. Que Deus amaldiçoe todos os adoradores de Satã." Foi só isso o que ele disse. Isto é tudo o que sei.

       — Você é um adorador de Satã — interrompeu um dos outros juizes triunfantemente —, você é americano. Você é culpado.

       — Eu sou um seguidor do Livro e já provei que não sou nenhum adorador de Satã. Se não fosse por mim muitos aqui nesta sala estariam mortos.

       — Se nós tivéssemos morrido na base estaríamos agora no paraíso — gritou um Faixa Verde, zangado, lá do fundo da sala. — Nós estávamos fazendo o trabalho de Deus. Não tinha nada a ver com você, infiel — gritos de apoio. Subitamente, Starke soltou um urro de raiva.

       — Por Deus e pelo Profeta de Deus — gritou — eu sou um seguidor do Livro e o Profeta nos concedeu privilégios e proteções especiais! — Ele estava tremendo de raiva, seu medo desaparecera, ele estava com ódio deste tribunal ilegal e da sua cegueira, estupidez, ignorância e intolerância. — O Corão diz; "Oh, Povo do Livro, não saia dos caminhos da verdade da sua religião; nem siga os desejos daqueles que já se perderam e que fizeram com que muitos outros se perdessem". Eu não o fiz — ele terminou com a voz áspera, erguendo o punho — e que Deus amaldiçoe aquele que disser o contrário.

       Estarrecidos, todos ficaram olhando para ele, até Hussein.

       Um dos juizes quebrou o silêncio.

       — Você... você citou o Corão? Você lê árabe tão bem quanto fala farsi?

       — Não, não, mas...

       — Então você teve um professor, um mulá?

       — Não, não, eu li...

       — Então você é um feiticeiro! — Um outro gritou. — Como você pode conhecer o Corão se não teve professor nem sabe ler árabe, a língua sagrada do Corão?

       — Eu o li em inglês, na minha própria língua.

       O espanto e o descrédito foram maiores ainda, até que Hussein falou:

       — O que ele diz é verdade. O Corão está traduzido em muitas línguas estrangeiras.

       Espanto ainda maior. Um jovem olhou para ele com os olhos míopes por trás de lentes grossas e rachadas, com o rosto marcado de varíola.

       — Se está traduzido em outras línguas, Excelência, por que não foi traduzido para o farsi para que pudéssemos ler — caso soubéssemos ler?

       — A língua do Sagrado Corão é o árabe — disse Hussein. — Para conhecer direito o Sagrado Corão o crente tem que ler o árabe. Os mulás de todos os países aprendem árabe por este motivo. O Profeta, cujo nome seja louvado, era árabe, Deus falou com ele nesta língua para outros escreverem. Para conhecer verdadeiramente o Sagrado Corão, ele precisa ser lido da forma como foi escrito. — Hussein virou seus olhos negros para Starke. — Uma tradução fica sempre a dever ao original, não é verdade?

       Starke notou a expressão estranha do mulá.

       — Sim — disse, com a sua intuição dizendo-lhe para concordar. — Sim, sim, é verdade. Eu gostaria de poder lê-lo no original.

       Houve outro silêncio. O jovem de óculos disse:

       — Se você conhece tão bem o Corão que é capaz de citá-lo como se fosse um mulá, por que você não é muçulmano, por que não é um crente?

       Uma agitação percorreu a sala. Starke hesitou, quase em pânico, sem saber como responder mas certo de que uma resposta errada o mandaria para a forca! O silêncio aumentou, então ele ouviu a própria voz dizendo:

       — Porque Deus ainda não retirou a pele que cobre os meus ouvidos, nem abriu ainda o meu espírito — depois acrescentou involuntariamente: — Eu não resisto e espero. Espero pacientemente.

       A atmosfera da sala mudou. Agora o silêncio era gentil. Compassivo. Hussein falou baixinho:

       — Vá até o imã e sua espera estará terminada. O imã abriria o seu espírito para a glória de Deus. O imã abriria o seu espírito. Eu sei. Eu já me sentei aos pés do imã. Eu ouvi o imã pregando a Palavra, ensinando a Lei, espalhando a Calma de Deus. — Um suspiro percorreu a sala e agora todos estavam concentrados no mulá, observavam seus olhos e a luz que havia neles, percebiam a modificação da sua voz e o êxtase que havia nela. Até Starke se sentia abatido e ao mesmo tempo exaltado. — O imã não veio para abrir o espírito do mundo? O imã não apareceu no meio de nós para limpar o Islã da maldade e para espalhar o Islã pelo mundo, para carregar a mensagem de Deus... como foi prometido? O imã é.

       A palavra ficou soando na sala. Todos eles entenderam. E também Starke. Mahdi! ele pensou, disfarçando o seu choque. Hussein está dando a entender que Khomeini é, na realidade, o Mahdi, o legendário décimo-segundo imã que desapareceu há séculos e que os xiitas acreditam que esteja apenas oculto da vista humana — o Imortal, que Deus prometeu que reapareceria algum dia para reinar sobre um mundo perfeito.

       Viu todos eles olhando para o mulá. Muitos balançando a cabeça, com as lágrimas rolando pelo rosto, todos enlevados e satisfeitos e nenhum cético no meio deles. Meu Deus, pensou, atônito, se os iranianos cobrirem Khomeini com este manto, o seu poder não terá limites, haverá vinte, trinta milhões de homens, mulheres e crianças desesperados para cumprir as suas ordens, que caminharão alegremente para a morte a um sinal dele — e por que não? Mahdi poderia garantir-lhes um lugar no paraíso, garantir!

       — Deus é grande — disse alguém e outros repetiram e começaram a conversar entre si, guiados por Hussein, esquecidos de Starke. Finalmente, se lembraram dele e o deixaram partir, dizendo:

       — Procure o imã, olhe e acredite...

       Ao caminhar de volta para o acampamento, seus pés estavam estranhamente leves e ele agora recordava que o ar nunca lhe parecera tão perfumado, que nunca se sentira tão cheio da alegria de viver. Talvez seja porque eu estive muito perto da morte, pensou. Eu era um homem morto e de alguma forma recebi de volta o dom da vida. Por quê? E Tom, por que ele escapou de Isfahan, de Dez Dam e até o próprio HBC? Haverá uma razão? Ou foi apenas sorte?

       E agora, no lusco-fusco, ele observava Lochart, muito preocupado com ele. Foi terrível o que houve com o HBC, terrível o que houve com o pai de Xarazade, terrível o beco sem saída em que ele e Xarazade se encontram. Em breve eles terão que escolher: irem juntos para o exílio, de onde provavelmente jamais poderão voltar — ou se separarem, provavelmente para sempre.

       — Tom, existe algo de muito especial, muito secreto, só entre nós dois. Johnny Hogg trouxe uma carta de Andy Gavallan. — Eles estavam a uma distância segura da base, caminhando pela estrada, ao longo da cerca de arame farpado, e sem perigo de serem ouvidos. Mesmo assim, ele manteve a voz baixa. — Basicamente, Andy está muito pessimista com relação ao nosso futuro aqui e diz que está pensando em retirar tudo para diminuir o prejuízo.

       — Não há necessidade disso — Lochart respondeu depressa, com uma certa impaciência. — As coisas vão voltar ao normal. Têm que voltar. Andy tem que fazer força para isso. Nós estamos fazendo, então ele também pode.

       — Ele está fazendo uma força danada, Tom. É apenas uma questão de finanças, você sabe disso melhor do que ninguém. Nós não estamos sendo pagos pelo trabalho feito há meses, não temos trabalho suficiente agora para os aparelhos e os pilotos que estão aqui estão sendo pagos com dinheiro de Aberdeen, o Irã está uma bagunça c nós estamos passando maus bocados aqui.

       — Você está dizendo isso porque Zagros Três foi desativado e portanto vai dar um enorme prejuízo? Não é culpa minha se...

       — Acalme-se, Tom. Andy foi informado de que todas as companhias estrangeiras, associadas ou sejam lá o que forem, especialmente de helicópteros, serão nacionalizadas muito breve.

       Lochart encheu-se de esperança. Isso não me daria uma desculpa perfeita para ficar? Se eles roubarem — nacionalizarem — os nossos aparelhos, vão precisar de pilotos treinados, eu sei falar farsi, poderia treinar iranianos, o que deve ser o objetivo deles e — e quanto ao HBC? Sempre de volta ao HBC, pensou desanimado, sempre de volta ao HBC.

       — Como é que sabe disso, Duke?

       — Andy disse que foi informado de fonte 'seguríssima'. O que ele está nos pedindo... a você, Scrag, Rudi e eu, é que se ele e Mac conseguirem arquitetar um plano viável, nós e quantos pilotos mais forem necessários saiamos daqui com os nossos aparelhos através do golfo.

       Lochart olhou para ele de boca aberta.

       — Jesus, você quer dizer simplesmente decolar, sem autorização nem nada?

       — Claro... mas fale baixo.

       — Ele está louco! Como conseguiríamos coordenar Lengeh, Bandar Delam, Kowiss e Teerã? Todo mundo teria que partir ao mesmo tempo e as distâncias são diferentes.

       — De alguma forma isso terá que ser feito, Tom. Andy disse que é isso ou fechar.

       — Eu não acredito! A companhia está operando no mundo inteiro.

       — Ele diz que se perdermos o Irã estaremos acabados.

       — É fácil para ele — Lochart disse com amargura. — É só dinheiro. É fácil forçar a nossa barra quando ele está bem e em segurança e só o que tem a arriscar é dinheiro. Ele está dizendo que se retirar só o pessoal e deixar o resto aqui a S-G vai estourar?

       — Sim, é isso o que ele está dizendo.

       — Eu não acredito nisso.

       Starke deu de ombros. Seus ouvidos perceberam o suave lamento do banshee e eles se viraram para olhar para o outro lado da base, lá no fundo do campo. No lusco-fusco, eles puderam ver Freddy Ayre com suas gaitas de fole onde, com o consentimento de todos, ele tinha permissão para praticar.

       — Maldição — Starke disse azedo —, esse barulho me deixa maluco. Lochart ignorou-o.

       — Não é possível que você vá concordar com um maldito seqüestro, porque é isso que vai ser! Eu não concordo com isso de jeito nenhum. — Ele viu Starke dar de ombros. — O que dizem os outros?

       — Eles ainda não sabem e não serão consultados por enquanto. Como eu disse, isto fica só entre nós, no momento. — Starke consultou o relógio. — Está quase na hora de ligar para o Mac. — Ele viu Lochart estremecer. O lamento das gaitas de fole era levado pelo vento. — Não sei como alguém pode dizer que isso é música — disse. — A idéia de Andy merece ser levada em consideração, Tom. Como um plano extremo.

       Lochart não respondeu, sentindo-se mal, achando tudo ruim. Até o ar cheirava mal, poluído pela refinaria ao lado e ele desejou estar de volta a Zagros, lá perto das estrelas, onde o ar e a terra não eram poluídos, mas desejando também, desesperadamente, estar em Teerã que era ainda mais poluída — mas onde ela estava.

       — Não conte comigo — disse.

       — Pense nisso, Tom.

       — Já pensei e estou fora, é loucura, a idéia toda. Assim que você pensar melhor, vai ver que é um plano maluco.

       — Claro, meu velho. — Starke imaginou quando o seu amigo iria perceber que ele, Lochart, dentre todos eles, era o que teria mais necessidade de participar, de uma forma ou de outra.

      

       NO HOTEL INTERNACIONAL, AL SHARGAZ: 18:42H. —Você poderia fazer isso, Scrag? — perguntou Gavallan, quase ao pôr-do-sol.

       — Para mim seria fácil retirar secretamente os meus homens e os meus cinco aparelhos de Lengeh, Andy — respondeu Scragger. — Teria que ser no dia certo e nós teríamos que nos esgueirar por baixo do radar de Kish, mas poderíamos fazê-lo, se os rapazes quisessem tomar parte na brincadeira. Mas levando também todas as peças sobressalentes? Não há jeito, é impossível.

       — Você o faria se fosse possível? — perguntou Gavallan. Ele tinha chegado hoje de Londres e todas as notícias de negócios que recebera de Aberdeen eram horríveis. A Imperial Air estava aumentando a pressão, boicotando-o no mar do Norte, as companhias de petróleo o estavam espremendo e Linbar pedia uma reunião especial de diretoria para investigar o 'possível' desmando da S-G. — Você o faria, Scrag?

       — Apenas eu no meu pássaro e todo mundo em segurança fora daqui? Como um relâmpago.

       — Os seus rapazes o fariam?

       Scragger pensou por um momento e tomou um gole de cerveja. Eles estavam sentados numa mesa de um dos imaculados terraços que cercavam a piscina do hotel, um dos mais novos do pequeno domínio, com outros hóspedes espalhados ali por perto mas nenhum muito próximo, o ar perfumado e com uma brisa suficiente apenas para balançar as folhas das palmeiras e trazer a promessa de uma noite perfeita.

       — Ed Vossi faria. — Ele riu. — Ele tem bastante de malandragem austríaca e da impetuosidade ianque. Não acho que Willi Neuchtreiter o fizesse Seria duro para ele quebrar tantas regras quando não é ele quem está sendo ameaçado. O que diz Duke Starke? E Tom Lochart e Rudi?

       — Ainda não sei. Eu mandei uma carta para Duke, via Johnny Hogg, na quarta-feira.

       — Isso não é um tanto perigoso?

       — Sim e não. Johnny Hogg é um mensageiro de confiança, mas este é um grande problema... conseguir comunicar-me em segurança. Tom Lochart estará em Kowiss em breve. Você soube a respeito de Zagros?

       — Se soube! Aquele pessoal da montanha é todo doido. E quanto ao velho Rudi?

       — Ainda não sei como contactá-lo em segurança. Talvez Mac tenha alguma idéia. Vou viajar no 125 que vai de manhã para Teerã e nós vamos conversar no aeroporto. Depois eu torno a voltar para cá e tenho uma reserva no vôo noturno para Londres.

       — Você está exagerando um pouco, não está, meu velho?

       — Estou com alguns problemas, Scrag.

       Gavallan ficou olhando para o copo, girando distraidamente o uísque em volta dos cubos de gelo. Outros hóspedes passavam de um lado para o outro Três eram moças, de biquíni, com a pele dourada, longos cabelos pretos, com as toalhas jogadas displicentemente nos ombros. Scragger viu-as, suspirou e depois tornou a concentrar a atenção em Gavallan.

       — Andy, talvez eu tenha que levar Kasigi de volta para a Irã-Toda dentro de um ou dois dias... O velho George está lambendo os pés de Kasigi desde que ele concordou em pagar dois dólares a mais sem reclamar Kasigi acha que o barril vai subir para vinte dólares até o Natal

       A preocupação de Gavallan aumentou

       — Se isto acontecer, vai repercutir em todas as nações industrializadas A inflação vai tornar a subir. Acho que ninguém sabe disso melhor do que eles — Mais cedo, assim que Scragger falara em Kasigi e em Toda, ele reagira imediatamente, uma vez que a Struan's forneceu pessoal e fretou muitos dos navios construídos pela Toda e eram velhos associados.

       — Há anos, eu conheci o patrão desse Kasigi, um homem chamado Hiro Toda. Ele alguma vez mencionou isso?

       — Não, não. Nunca. Onde você o conheceu? No Japão?

       — Não, em Hong Kong. Toda estava tratando de negócios com a Struan's, a companhia para a qual eu trabalhava, naquela época era a Navegação Toda, construtores de navios, não o enorme conglomerado que é hoje. — O rosto de Gavallan endureceu. — Eu venho de uma família de antigos comerciantes de Xangai. A nossa companhia foi mais ou menos exterminada durante a Primeira Guerra, então nós nos juntamos à Struan's. O meu velho estava em Nanquim em 1931 quando os japoneses a saquearam e ele foi preso em Xangai logo depois de Pearl Harbor e nunca chegou a sair do campo de prisioneiros. — Ele observou os reflexos no seu copo, com a melancolia aumentando. — Nós perdemos bons amigos em Xangai e em Hong Kong. Eu não poderei jamais perdoa-los pelo que fizeram na China, mas a vida continua, não é? A gente tem que enterrar o passado algum dia, embora seja bom conservar as cicatrizes.

       — Comigo é a mesma coisa — Scragger deu de ombros. — Kasigi parece ser um bom sujeito.

       — Onde ele está agora?

       — No Kuwait. Ele vai voltar amanhã e eu tenho que levá-lo para Lengeh de manhã.

       — Se você for até a Irã-Toda, acha que pode dar um jeito de se encontrar com Rudi? Quem sabe sondá-lo um pouco?

       — Claro. É uma boa idéia, Andy

       — Quando você estiver com Kasigi, diga-lhe que eu conheço o seu presidente.

       — Claro, claro que sim. Eu poderia perguntar-lhe se.. — ele parou e olhou por cima do ombro de Gavallan: — Veja Andy, que colírio para os olhos!

       Gavallan olhou em direção ao poente. O pôr-do-sol estava maravilhoso — vermelhos, roxos, marrons e dourados colorindo as nuvens distantes, o sol já quase todo sob o horizonte, colorindo de sangue as águas do golfo, a brisa fazendo tremular a luz das velas sobre as mesas postas para o jantar no terraço.

       — Você tem razão, Scrag — disse imediatamente. — É a hora errada para se falar em coisas sérias, isso pode esperar. Não há nada no mundo que se compare a um pôr-do-sol.

       — Hein? — Scragger olhou para ele sem compreender. — Pelo amor de Deus, eu não estava me referindo ao pôr-do-sol, eu estava me referindo à garota.

       Gavallan suspirou. A garota era Paula Giancani, que tinha acabado de sair da piscina, com um biquíni mínimo, as gotas de água brilhando na sua pele cor de azeitona. Ela enxugou as pernas, os braços e as costas e tornou a enxugar as pernas, vestindo um roupão atoalhado, totalmente consciente de que não havia nenhum homem nas redondezas que não estivesse apreciando a sua performance — e nenhuma mulher que não estivesse com inveja - Você é um tremendo filho da mãe, Scrag

       Scragger riu e carregou no sotaque

       — E a minha única alegria na vida, seu bode velho! Cristo, essa Paula é demais!

       Gavallan examinou-a.

       — Bem, as garotas italianas geralmente têm algo de especial, mas esta jovem... ela não é uma beleza estonteante como Xarazade nem tem o mistério exótico de Azadeh, mas eu concordo, Paula é demais.

       E como os demais, eles ficaram olhando enquanto ela caminhava por entre as mesas, acompanhada pelo desejo e pela inveja, até desaparecer no vasto saguão do hotel. Eles iam jantar todos juntos mais tarde, Paula, Genny, Manuela, Scragger, Gavallan, Sandor Petrofi e John Hogg. O jumbo da Alitalia de Paula estava outra vez em Dubai, a poucos quilômetros dali, aguardando autorização para seguir para Teerã e buscar mais um carregamento de italianos, e Genny

       McIver tinha-se encontrado com ela por acaso, fazendo compras. Scragger suspirou.

       — Andy, meu velho, não há dúvida de que eu gostaria de ir para a cama com ela.

       — Não lhe faria o menor bem, Scrag.

        Gavallan deu uma risada e pediu mais um uísque com soda a um garçom paquistanês sorridente, impecavelmente vestido, que veio na mesma hora. Alguns dos outros hóspedes já estavam elegante e luxuosamente vestidos para jantar, na última moda de Paris, com muitos decotes, dinner jackets brancos e engomados — junto com roupas mais esportivas e igualmente caras. Gavallan usava um terno de tropical bem cortado, Scragger estava de uniforme, camisa branca de manga curta com dragonas, calças e sapatos pretos.

      — Cerveja, Scrag?

       — Não, obrigado, companheiro. Eu vou acabar esta e me preparar para a Estonteante Paula.

       — Sonhador! — Gavallan tornou a se virar na direção do pôr-do-sol, sentindo-se melhor, mais confiante, na companhia desse velho amigo. O sol já estava quase todo abaixo do horizonte, mais lindo do que nunca, fazendo-o lembrar dos entardeceres da China nos velhos tempos, levando-o de volta a Hong Kong e Kathy e Ian, para a alegria da Casa Grande do Penhasco, a família inteira forte e saudável, a casa deles num promontório em Shek-o, quando eles eram jovens e estavam todos juntos, Melinda e Scot ainda crianças, amahs indo e vindo, sampanas, traineiras e navios de todos os tamanhos lá embaixo, ao pôr-do-sol, num mar sem perigos.

       O restinho de sol desapareceu sob o mar. Com grande solenidade, Gavallan bateu palmas baixinho.

       — Por que isso, Andy?

       — Hum? Oh, sinto muito, Scrag. Nos velhos tempos nós costumávamos aplaudir o sol, Kathy e eu, assim que ele desaparecia. Para agradecer ao sol por existir, pelo espetáculo ímpar e por estarmos vivos e podermos desfrutá-lo... aquele pôr-do-sol estava sendo visto pela última vez. Como hoje. Você nunca mais vai tornar a ver este pôr-do-sol. — Gavallan tomou um gole do seu uísque, admirando o entardecer. — A primeira pessoa que me fez pensar nisso foi um cara maravilhoso, nós nos tornamos grandes amigos... ainda o somos. Um grande homem, sua mulher também é formidável. Algum dia vou contar-lhe a respeito deles. — Ele virou as costas para o poente, inclinou-se e disse baixinho: — Lengeh, você acha que é possível?

       — Oh, sim, se fôssemos apenas nós em Lengeh. Ainda assim teríamos que planejar cuidadosamente, o radar de Kish está mais sensível do que nunca, mas poderíamos esgueirar-nos por baixo dele no dia certo. O grande problema é que o nosso pessoal iraniano, bem como o nosso atualmente simpático mas zeloso komiteh e o nosso novo palhaço antipático da IranOil saberiam em poucos minutos do nosso golpe, não poderiam deixar de saber com todos os aparelhos no ar. Eles se comunicariam imediatamente com o DAC e eles mandariam um alerta para Dubai, Abu Dhabi, para cá, de fato desde Omã até a Arábia Saudita, Kuwait e Bagdá, ordenando que eles apreendessem os aparelhos assim que chegássemos. Mesmo que todos nós conseguíssemos chegar até aquibem, o velho xeque é um grande sujeito, um liberal e um amigo, mas que diabo, ele não poderia ir contra o DAC iraniano, se este estivesse com a razão... e mesmo que não estivesse. Ele não poderia comprar uma briga com o Irã, ele tem uma boa percentagem de xiitas entre os ortodoxos, não tão numerosos quanto outros Estados do golfo, mas em número maior do que muitos.

       Gavallan levantou-se e caminhou até a beirada do terraço e olhou para a velha cidade lá embaixo — antigamente um porto de pérolas, um domínio de piratas e um mercado de escravos, um centro de comércio e como Sohar no Omã, chamada de Porto da China. Desde a antigüidade, o golfo era o traço de união marítimo entre o Mediterrâneo — na época o centro do mundo — e a Ásia. Mercadores fenícios dedicados à navegação, que vinham originalmente de Omã, dominavam esta rota de comércio incrivelmente rica, descarregando as mercadorias da Ásia e da índia em Shatt-al-Arab, e dali por uma curta rota de caravana até os seus mercados, eventualmente construindo os seus próprios impérios no Mediterrâneo, fundando cidade-estado como Cartago, que ameaçaram a própria Roma.

       A velha cidade murada estava linda ao escurecer, com seus telhados chatos, protegida de construções modernas, com a fortaleza do xeque dominando-a. Ao longo dos anos, Gavallan passara a conhecer e admirar o velho xeque. O domínio estava cercado pelos Emirados mas era um território independente e soberano com pouco mais de trinta quilômetros de profundidade e dez quilômetros de costa. Mas no fundo do mar, numa extensão de 150 quilômetros até águas iranianas, havia uma lagoa de petróleo de muitos bilhões de barris, de extração fácil. Assim, Al Shargaz tinha a cidade velha e uma cidade nova com uma dúzia de hotéis modernos e arranha-céus e um aeroporto que podia receber um jumbo. Em riqueza, não era nada comparada aos Emirados ou à Arábia Saudita ou ao Kuwait, mas havia abundância de tudo, se se escolhesse com sabedoria. O xeque era tão experiente quanto os seus ancestrais fenícios, tão ferozmente independente quanto eles, e embora ele próprio não soubesse ler nem escrever, seus filhos eram formados pelas melhores universidades do mundo. Ele, sua família e sua tribo eram os donos de tudo, a sua palavra era lei, ele era sunita, não um fundamentalista, e tolerante com os seus súditos e hóspedes estrangeiros, desde que estes se comportassem.

       — Ele também detesta Khomeini e todos os fundamentalistas, Scrag.

       — Sim, mas não vai ter coragem de comprar uma briga com Khomeini. Isso não vai nos ajudar.

       — Mas também não vai nos prejudicar. — Gavallan sentia-se revigorado pelo pôr-do-sol. — Eu estou planejando fretar dois jumbos de carga, mandá-los para cá, e quando os nossos helicópteros chegarem, nós desmontamos os rotores, enchemos os jumbos e damos o fora. A chave é a rapidez da operação, e o planejamento.

       Scragger assoviou.

       — Você está realmente disposto a fazer isso?

       — Estou disposto a ver se podemos fazer isso, Scrag, e quais são as chances. Esta é a questão mais importante, se perdermos todos os nossos helicópteros iranianos, equipamentos e peças, teremos que fechar. Nenhum seguro vai cobrir tudo isso e nós ainda temos que pagar o que devemos. Você é um dos sócios, vai poder ver os números hoje à noite. Eu os trouxe para você e para Mac.

       Scragger pensou a respeito da sua participação na companhia, todo o interesse que ele tinha, e em Nell e nos seus filhos e nos filhos destes lá em Sydney, e na fazenda de Baldoon que fora durante um século a fazenda de criação dê gado e ovelhas da família mas que tinha sido perdida na grande seca, e na qual ele estava de olho há anos e anos, querendo recuperar para eles.

       — Eu não preciso olhar os números, Andy. Se você diz que está assim tão ruim é porque está. — Ele observava as cores do céu. — Vou lhe dizer uma coisa, eu cuido de Lengeh se você conseguir armar um plano e se os outros concordarem. Depois do jantar, talvez a gente pudesse discutir a logística por uma hora e terminar a discussão no café da manhã. Kasigi não estará de volta do Kuwait antes das nove. Nós vamos pensar em alguma coisa.

       — Obrigado, Scrag. — Gavallan deu-lhe um tapa no ombro, inclinando-se para ele. — Estou muito contente por você estar aqui, por você ter estado conosco por todos esses anos. Pela primeira vez eu acho que temos uma chance e não estou sonhando.

       — Com uma condição, meu velho — acrescentou Scragger. Gavallan ficou imediatamente em guarda, e disse:

       — Eu não posso consertar o seu exame médico se ele não estiver bom Não há nenhuma maneira de...

       — Você me dá licença? — Scragger ficou triste. — Não tem nada a ver com o Dirty Duncan e o meu exame médico ele estará bom até eu ter 73 anos. Não, a condição é que no jantar você me ponha sentado ao lado da estonteante Paula, com Genny ao lado dela e Manuela do meu lado, e aquele húngaro chifrudo, Sandor, no outro extremo junto com Johnny Hogg.

       — Feito!

       — Grande! Agora, não se preocupe, meu velho. Eu já fui suficientemente sacaneado por generais de cinco estrelas para ter aprendido alguma coisa. Está na hora de trocar de roupa para o jantar. Lengeh já está ficando chata. — Ele se afastou, magro, ereto e animado.

       Gavallan entregou o seu cartão de crédito para o sorridente garçom paquistanês.

       — Não há necessidade, sahib, basta assinar a nota — disse o homem. Depois acrescentou suavemente: — Se me permite uma sugestão, effendi, quando o senhor pagar, não use o American Express, é o mais caro para a direção.

       Espantado, Gavallan deixou uma gorjeta e se afastou.

      Do outro lado do terraço, dois homens ficaram observando ele se afastar. Ambos estavam bem vestidos e tinham cerca de quarenta anos, um era americano, o outro do Oriente Médio. Ambos estavam usando pequenos aparelhos de surdez. O homem do Oriente Médio brincava com uma caneta-tinteiro antiquada, e quando Gavallan passou por um árabe bem vestido e uma jovem européia muito atraente, o homem com a caneta-tinteiro ficou curioso, apontou a caneta para eles e a manteve apontada. Imediatamente, os dois homens ouviram nos seus fones de ouvido:

       — Minha querida, quinhentos dólares americanos está muito acima do preço de mercado — o homem estava dizendo.

       — Isso depende do mercado a que você esteja se referindo, meu querido ela respondeu, com um agradável sotaque da Europa Central, e eles a viram sorrir docemente. — O preço inclui a roupa de baixo da melhor seda que você tem vontade de rasgar e o instrumento que você deseja inserido no momento apropriado. Eficiência é eficiência e serviços especiais exigem um tratamento especial e se a sua agenda só permite que seja executado entre seis e oito da noite de amanhã...

       As vozes sumiram quando o homem virou a tampa e colocou a caneta na mesa com um sorriso irônico. Ele era bonito e tinha a pele cor de azeitona, trabalhava em importação e exportação de tapetes como gerações de antepassados seus, fora educado na América e seu nome era Aaron Ben Aaron — mas sua principal ocupação era no Serviço Secreto israelense.

       — Eu nunca teria imaginado que Abu bin Talak fosse tão tarado — disse secamente.

       O outro homem resmungou.

       — Eles são todos tarados. Eu não teria imaginado que a garota fosse uma prostituta.

       Os longos dedos de Aaron brincaram com a caneta, relutando em largá-la.

       — Aparelhinho bom este, Glenn, poupa um bocado de tempo. Gostaria de ter tido um desses a mais tempo.

       — A KGB lançou um novo modelo este ano, com um alcance de cem metros. — Glenn Wesson tomou um gole do seu bourbon com gelo. Ele era americano, um antigo negociante de petróleo. Sua profissão verdadeira era agente da CIA — Não é tão pequena quanto esta mas funciona.

       — Você pode arranjar-nos algumas?

       — É mais fácil você fazer isso. Faça os seus amigos pedirem a Washington. — Eles viram Gavallan desaparecer no saguão. — Interessante.

       — O que você acha? — perguntou Aaron.

       — Acho que poderíamos atirar uma companhia britânica de helicóptero aos lobos de Khomeini quando quiséssemos, junto com todos os seus pilotos. Isto faria Talbot ter um ataque, assim como Robert Armstrong e todo o M16, o que não é uma má idéia. — Wesson riu baixinho. — Talbot precisa de um bom susto de vez em quando. Qual é o problema com a S-G? Você acha que eles são uma operação disfarçada do M16?

       — Não temos certeza do que eles estão tramando, Glenn. Nós suspeitamos exatamente do contrário, foi por isso que eu achei que deveríamos investigar. Coincidências demais. Aparentemente eles são legítimos, no entanto eles têm um piloto francês, Sessonne, que está dormindo com uma mensageira muito bem relacionada da OLP, Sayada Bertolin; eles têm um finlandês, Erikki Yokkonen, intimamente associado com Abdullah Khan, e este é com toda a certeza um agente duplo inclinando-se mais para a KGB do que para o nosso lado e que é franca e violentamente anti-semita; Yokkonen é muito amigo do homem do Serviço Secreto da Finlândia, Christian Tollonen, que é suspeito por definição, as ligações familiares de Yokkonen na Finlândia colocam-no na posição certa para ser um perfeito agente soviético disfarçado e nós acabamos de receber uma informação de que ele está lá em Sabalan com o seu 212, ajudando os soviéticos a desmontar todos os postos de radar de vocês.

       — Jesus. Você tem certeza?

       — Não. Eu disse que foi uma informação. Mas nós estamos checando. Em seguida, o canadense Lochart: Lochart é casado com uma moça de uma conhecida família anti-sionista de lojistas do bazar, agentes da OLP estão morando no seu apartamento atualmente, e...

       — Sim, mas nós soubemos que o lugar foi confiscado e não se esqueça de que ele tentou ajudar aqueles oficiais pró-xá e pró-Israel a escapar.

       — Sim, mas eles foram abatidos lá em cima, estão todos mortos e, curiosamente, ele está vivo. Valik e o general Seladi estariam certamente incluídos ou apoiando qualquer gabinete formado no exílio. Nós perdemos mais dois aliados muito importantes. Lochart é suspeito, sua mulher e a família dela são pró-Khomeini, o que significa contra nós. — Aaron sorriu sardonicamente. — Nós não somos o grande Satã depois de vocês? Depois: o americano Starke ajudou a sufocar um ataque fedayim a Bandar Delam, e se tornou muito amigo de outro feroz inimigo do xá e de Israel, o fanático Zataki que...

       — Quem?

       — Um inimigo do xá, intelectual, muçulmano sunita que organizou as greves dos campos de petróleo de Abadan, que explodiu três postos policiais e que agora está comandando o Komiteh Revolucionário de Abadan e que não deverá viver muito. Uma bebida?

       — Claro, obrigado. O mesmo. Você mencionou Sayada Bertolin. Ela também está sendo vigiada por nós. Você acha que ela pode mudar de lado?

       — Eu não confiaria nela. A melhor coisa a fazer com ela é simplesmente vigiá-la e ver a quem ela pode levar. Nós estamos atrás do seu controlador. Ainda não conseguimos identificá-lo. — Aaron pediu a bebida de Wesson e uma vodca para ele. — Vamos voltar à S-G. Então Zataki é um inimigo. Starke fala farsi, como Lochart. Ambos andam em más companhias. Depois vem Sandor Petrofi: dissidente húngaro com a família ainda morando na Hungria, outro agente em potencial da KGB ou pelo menos um instrumento da KGB Rudi Lutz, alemão, com família do outro lado da Cortina de Ferro, sempre um suspeito; Neuchtreiter, em Lengeh, a mesma coisa. — Ele fez um sinal para onde Scragger estivera sentado. — O velho é simplesmente um assassino treinado, um mercenário capaz de apontar para nós, para você, para qualquer um com o mesmo resultado. Gavallan? Você deveria mandar o seu pessoal em Londres vigiá-lo. Não se esqueça de que foi ele quem escolheu todos os outros, não se esqueça de que ele é britânico possivelmente a sua operação não passa de um disfarce para uma operação da KGB e...

       — De jeito nenhum — disse Wesson, subitamente irritado. Maldição, pensou, por que esses sujeitos são tão paranóicos?, até o velho Aaron, que é um dos melhores. — É conveniente demais. De jeito nenhum.

       — Por que não? Ele poderia estar enganando-os. Os britânicos são mestres nisso, como Philby, McLean, Blake e todo o resto.

       — Como Crosse. — Os lábios de Wesson estreitaram-se. — Nisso você está certo, meu velho.

       — Quem?

       — Roger Crosse. Há uns dez anos atrás, o Senhor Espião-Mestre, mas morto e enterrado com toda a habilidade que os ingleses têm. Ele é um daqueles do clube dos Velhos Camaradas, o pior traidor de todos.

       — Quem foi Crosse?

       — O antigo patrão e amigo de Armstrong do Setor Especial de Hong Kong nos velhos tempos. Oficialmente um diretor sem importância do M16, mas na verdade o chefe das suas operações mais importantes, do Serviço Secreto Especial, traidor, executado pela KGB a seu próprio pedido pouco antes de o pegarmos.

       — Vocês provaram isto? Que eles o executaram?

       — Claro. Um dardo envenenado a curta distância, foi isso que o matou. Nós o havíamos encurralado, não havia nenhum modo dele poder escapar como os outros. Nós o tínhamos nas mãos, agente triplo. Nessa época, nós tínhamos um informante dentro da embaixada soviética em Londres, um cara chamado Brodnin. Ele nos entregou Crosse e desapareceu, pobre infeliz, alguém deve tê-lo entregue.

       — Malditos britânicos, eles cultivam espiões como se fossem pulgas.

       — Não é verdade, eles têm também alguns grandes pegadores. Todos nós temos traidores.

       — Nós não temos.

       — Não aposte nisso, Aaron. — Wesson disse com amargura. — Há traidores em toda parte. Com todos os vazamentos de informação que tem havido no Irã, antes e depois da saída do xá, tem que haver algum outro traidor muito bem posicionado do nosso lado.

       — Talbot ou Armstrong? Wesson estremeceu.

       — Se for um dos dois é melhor a gente pedir demissão.

       — É isso que o inimigo quer que você faça, peça demissão e dê o fora do Oriente Médio. Mas nós não podemos fazer isso, por isso é que pensamos de modo diferente — disse Aaron, com os olhos escuros e frios, o rosto determinado, observando-o cuidadosamente. — Por falar nisso, por que o nosso velho amigo coronel Hashemi Fazir deveria escapar impune do assassinato do novo chefão da Savama, general Janan?

       Wesson empalideceu.

       — Janan está morto? Tem certeza?

       — Uma bomba no carro, segunda à noite. — Os olhos de Aaron estreitaram-se. — Por que tanta tristeza? Ele era um dos seus?

       — Poderia ter sido. Nós, ahn, estivemos negociando. — Wesson hesitou, depois suspirou. — Mas Hashemi ainda está vivo? Pensei que ele estivesse na lista de condenações prioritárias do Komiteh Revolucionário.

       — Ele esteve, mas não está mais. Ouvi dizer esta manhã que o nome dele foi retirado, o seu posto confirmado, reintegrado no Serviço Secreto, tudo isto, supostamente, com a aprovação lá do alto.

       Aaron tomou um gole do seu drinque.

       — Se ele está outra vez por cima, depois de tudo o que fez pelo xá e por nós, ele tem que ter um protetor muito forte.

       — Quem? — Wesson viu o outro dar de ombros, examinando o terraço com os olhos. O seu sorriso desapareceu. — Isso pode significar que ele esteve trabalhando para Khomeini o tempo todo.

       — Talvez. — Aaron tornou a brincar com a caneta-tinteiro. — Uma outra curiosidade. Na terça-feira, Hashemi foi visto embarcando no 125 da S-G junto com Armstrong, no aeroporto de Teerã; eles foram para Tabriz e voltaram três horas depois.

       — Não é possível!

       — O que significa tudo isso?

       — Jesus, eu não sei, mas acho melhor descobrirmos. — Wesson baixou ainda mais a voz. — Uma coisa é certa, para Hashemi ter recuperado o prestígio, ele tem que saber onde estão enterrados cadáveres muito importantes, hein? Uma informação dessas seria muito valiosa... muito valiosa, digamos! para o xá.

       — O xá? — Aaron esboçou um sorriso mas parou quando viu a expressão de Wesson. — Você não imagina seriamente que o xá tenha alguma chance de voltar, não é?

       — Coisas mais estranhas têm acontecido, meu velho — disse Wesson, Confiantemente, e terminou o seu drinque. Por que será que esses caras não entendem o que está acontecendo no mundo?, pensou. Já estava na hora deles ficarem mais espertos, de pararem de só pensar em Israel, a OLP e o Oriente Médio, e dar-nos espaço para manobrar. — É claro que o xá tem uma chance, embora a chance do seu filho seja maior. Assim que Khomeini estiver morto e enterrado, haverá uma guerra civil, o exército assumirá e eles precisarão de um governante. Reza daria um bom monarca constitucional.

       Aaron Ben Aaron disfarçou com dificuldade a sua descrença, espantado por Wesson ser tão ingênuo. Depois de todos os anos que você passou no golfo e no Irã, pensou, como consegue se enganar tanto a respeito das forças que estão destruindo o Irã? Se ele fosse um homem diferente, teria xingado Wesson pela estupidez que ele representava, deixando de perceber as centenas de sinais de alarme, as montanhas de relatórios do serviço secreto, reunidos a custa de tanto sangue e deixados de lado sem serem lidos, os anos de súplicas a políticos, generais e serviços de espionagem — americanos e iranianos — avisando-os da revolução que estava se formando.

       Tudo sem resultado. Durante anos e anos. É a Vontade de Deus, pensou Deus não quer que as coisas sejam fáceis para nós. Fáceis? Ao longo de toda a história, as coisas nunca foram fáceis para nós. Nunca.

       Ele viu Wesson observando-o.

       — O quê?

       — Espere e verá. Khomeini é um homem velho, não vai durar até o fim do ano. Ele está velho e o tempo está a nosso favor. Espere e verá.

       — Vou esperar. — Aaron desistiu de discutir. — Enquanto isso, o problema que temos nas mãos é o seguinte: a S-G poderia ser uma fachada para células inimigas. Pensando bem, pilotos de helicóptero especializados em apoiar a indústria de petróleo seriam trunfos valiosos para todo tipo de sabotagens, se as coisas piorarem.

       — Claro. Mas Gavallan quer sair do Irã. Você ouviu.

       — Talvez ele soubesse que estávamos ouvindo, ou seja uma cilada que ele está armando.

       — Vamos, Aaron. Eu acho que ele está limpo, e o resto é coincidência. — Wesson suspirou. — Está bem, eu vou mandar vigiá-lo e ele não vai nem cagar sem você ficar sabendo, mas que diabo, meu velho, os seus amigos vêem inimigos até debaixo da cama, no telhado e debaixo do tapete.

       — Por que não? Eles estão em toda parte: conhecidos, desconhecidos, ativos e passivos. — Aaron observava metodicamente à sua volta, checando os recém-chegados, esperando por inimigos, consciente da multidão de agentes inimigos em Al Shargaz e no golfo. E nós sabemos que há inimigos aqui, na cidade velha e na nova, subindo a estrada para Omã e descendo para Dubai, Bagdá e Damasco, para Moscou, Paris e Londres, do outro lado do mar em Nova York, indo para o sul em direção aos dois cabos, e para o norte em direção ao Círculo Ártico, onde quer que existam pessoas que não são judias. Só um judeu não é automaticamente suspeito e mesmo assim, hoje em dia, você precisa ser cuidadoso.

       Há muitos entre os escolhidos que não querem o sionismo, que não querem ir para a guerra nem pagar por ela, que não querem entender que Israel está pendurado na balança junto com o xá, o nosso único aliado no Oriente Médio e o único fornecedor da OPEP para os nossos tanques e aviões e que foi posto para fora, não querem saber que as nossas costas estão voltadas para o Muro das Lamentações e que nós temos que lutar e morrer para proteger a nossa terra sagrada de Israel, que recuperamos à custa de tantos sacrifícios, com a ajuda de Deus.

       Ele olhou para Wesson, com amizade, perdoando-o pelos seus erros, admirando-o como profissional, mas com pena dele: ele não era um judeu e portanto era suspeito.

       — Eu estou contente por ter nascido judeu, Glenn. Isso torna a vida muito mais fácil.

       — Como?

       — Você sabe onde está pisando.

      

       NA DISCO TEX, HOTEL SHARGAZ: 23:52H. Americanos, britânicos e franceses dominavam a sala — com alguns japoneses e outros asiáticos. A maioria era européia, com muito mais homens do que mulheres, as idades variando entre 25 e 45 anos: a mão-de-obra estrangeira do golfo tinha que ser jovem, forte e de preferência solteira, para sobreviver à vida dura e solitária. Alguns bêbados, outros barulhentos. Feios e não tão feios, gordos e não tão gordos, a maioria deles elegantes, frustrados e vulcânicos. Alguns de Shargaz e de outras partes do golfo, mas só os ricos, os ocidentalizados, os sofisticados e os homens. Esses, em sua maioria, estavam sentados no nível superior tomando refrigerantes e apreciando as mulheres, e os poucos que dançavam, no pequeno salão lá embaixo, o faziam com mulheres européias: secretárias, funcionárias de embaixadas, enfermeiras ou funcionárias do hotel — muito disputadas. Nenhuma mulher árabe ou de Shargaz ia lá.

       Paula estava dançando com Sandor Petrofi, Genny com Scragger e Johnny Hogg estava de rosto colado com a moça com quem estivera conversando no terraço, dançando bem devagar.

       — Quanto tempo você vai ficar aqui, Alexandra? — murmurou.

       — Até a próxima semana, só até a próxima semana. Depois eu preciso me encontrar com meu marido, no Rio.

       — Oh, mas você é tão jovem para ser casada! Você vai ficar aqui sozinha?

       — Sim, sozinha, Johnny. É triste, não?

       Ele não respondeu, apenas apertou-a um pouco mais e agradeceu a sorte de ter apanhado o livro que ela deixara cair no saguão. As luzes estroboscópicas o deixaram tonto por um momento, depois viu Gavallan no nível superior, em pé perto da grade, pensativo e mais uma vez sentiu pena dele. Mais cedo, providenciara para ele, relutantemente, o vôo noturno para Londres, tentando persuadi-lo a descansar mais um dia.

       — Eu sei como os atrasos dos aviões o prejudicam, senhor.

       — Não há problema, Johnny, obrigado. A nossa partida para Teerã ainda está marcada para as dez horas?

       — Sim, senhor. Ainda temos prioridade para decolar. Assim como o vôo para Tabriz.

       — Vamos torcer para que corra tudo bem, e possamos chegar lá e voltar imediatamente.

       John Hogg sentiu o corpo da moça de encontro ao seu.

       — Você quer jantar amanhã? Eu devo estar de volta lá pelas seis.

       — Talvez. Mas não antes das nove.

       — Perfeito.

       Gavallan olhava os pares que dançavam, mal enxergando-os, depois virou-se, desceu a escada e saiu para o terraço. A noite estava linda, uma lua enorme, sem nuvens. Em volta havia uma grande extensão de jardins bem tratados, delicadamente iluminados, cercados de muros, com alguns dos chafarizes ligados.

       O Shargaz era o maior hotel do país, de um lado o mar, do outro o deserto, sua torre tinha 18 andares, com cinco restaurantes, três bares, salão para coquetéis, café, discoteca, duas piscinas, saunas, salas de vapor, quadras de tênis, salão de ginástica, um local para compras com uma dúzia de butiques e antiquários, uma loja de tapetes Aaron, salões de cabeleireiros, uma sala de vídeo, padaria, jogos eletrônicos, escritórios de telex, um grupo de datilógrafas e, como todos os modernos hotéis europeus, todos os quartos tinham ar-condicionado, banheiros completos, serviço de quarto 24 horas por dia — geralmente feito por sorridentes paquistaneses — lavagem de roupa para o mesmo dia, serviço instantâneo de passar roupa, uma TV a cores em todos os quartos, cinema, um canal ligado com o mercado de ações e ligações por satélite com todas as capitais do mundo.

       É verdade, pensou Gavallan, mas ainda assim é um gueto. E embora os governantes de Al Shargaz, Dubai e Sharjah sejam liberais e tolerantes, os estrangeiros possam beber nos hotéis, e possam até comprar bebidas, que Deus o ajude se você revendê-las para muçulmanos. As nossas mulheres podem dirigir, fazer compras e passear, mas não há nenhuma garantia de que isso vá durar. A poucas centenas de metros de distância, os habitantes de Shargaz estão vivendo como têm vivido há séculos, a poucos quilômetros de distância, do outro lado da fronteira, a bebida é proibida, uma mulher não pode dirigir nem andar sozinha na rua e tem que cobrir o cabelo e os braços e ombros e usar calças folgadas, e lá no deserto verdadeiro, as pessoas levam uma vida miserável.

       Há alguns anos, ele tinha alugado um Range Rover e um guia e, junto com McIver e Genny e sua nova mulher, Maureen, fora para o deserto para passar a noite num dos oásis na beira do Rub'al-Khali, a Região Vazia. Tinha sido um dia de primavera perfeito. Poucos minutos depois deles terem passado pelo aeroporto, a estrada transformara-se numa trilha que terminou rapidamente e eles se viram viajando através da vasta extensão de pedras, sob o céu. Fizeram um piquenique e depois continuaram, algumas vezes em terreno arenoso, ou-

       trás vezes em terreno rochoso, atravessando uma região selvagem onde não chovia nunca e não crescia nada. Nada. Quando pararam e desligaram o motor, o silêncio chegou até eles como se fosse uma presença física, o sol se pôs e o espaço os envolveu.

       A noite era negra, as estrelas enormes, as tendas boas, os tapetes macios e o silêncio ainda maior, o espaço ainda maior, era inconcebível todo aquele espaço.

       — Eu odeio isso, Andy — murmurara Maureen. — Isso me assusta barbaramente.

       — A mim também. Não sei por que, mas assusta. — Em torno das palmeiras do oásis, o deserto se estendia em direção a todos os horizontes, ameaçador e sobrenatural. — A imensidão parece sugar a sua vida. Imagine como será no verão!

       — Isto me faz sentir menos que um grão de areia — ela tremeu. — Está me esmagando, me fazendo perder o equilíbrio. Bem, rapaz, uma vez é o bastante para mim. O que serve para mim é a Escócia. Londres um pouquinho, e aqui nunca mais.

       E ela nunca mais tinha voltado. Como a Nell de Scrag, pensou. Eu não as culpo. Já é bastante duro para os homens aqui no golfo, imagine para as mulheres... Ele olhou em volta. Genny estava saindo do salão pelas janelas francesas, abanando-se, parecendo muito mais jovem do que em Teerã.

       — Olá, Andy. Você é que é esperto, está tão abafado lá dentro, e a fumaça, ugh!

       — Eu nunca fui muito de dançar.

       — Eu só danço quando Duncan não está comigo. Ele é tão antiquado. — Ela hesitou. — No vôo de amanhã, você acha que eu po...

       — Não — ele disse bondosamente. — Ainda não. Daqui a uma semana, mais ou menos. Deixe a poeira assentar.

       Ela concordou, sem esconder a decepção.

       — O que foi que Scrag disse?

       — Sim, se os outros concordarem e se for viável. Nós tivemos uma boa conversa e vamos tomar café juntos amanhã. — Gavallan pôs o braço em volta dela e deu-lhe um abraço. — Não se preocupe com Mac, eu vou me certificar de que ele esteja bem.

       — Eu tenho outra garrafa de uísque para ele, você não se importa, não é?

       — Vou colocar na minha valise. Nós recebemos ordens do DAC para não carregar bebidas no compartimento de bagagem dos aviões, mas não há problema, eu levo na bagagem de mão.

       — Então talvez seja melhor não levar, não desta vez. — Ela ficou perturbada pela seriedade dele, tão pouco comum. Pobre Andy, todo mundo pode ver que ele está fora de si de tão preocupado. — Andy, posso fazer uma sugestão?

       — É claro, Genny.

       — Use esse coronel e Robert, quer aízer, Armstrong, esse pessoal importante que você tem que transportar para Tabriz. Por que não pedir a elas para deixarem você voltar por Kowiss? Diga que você tem que apanhar alguns motores para consertar. Então você pode falar diretamente com Duke.

       — Muito boa idéia. Você vai ser a primeira da classe.

       Ela se inclinou e lhe deu um beijo fraterno.

       — Você também não é assim tão mau. Bem, vou voltar para o baile. Desde a guerra que não sou tão popular. — Ela riu e ele também. — Boa noite, Andy.

       Gavallan voltou para o seu hotel, que ficava um pouco adiante. Ele não notou os homens que o seguiam, nem que o seu quarto tinha sido revistado, seus papéis lidos, nem que tinham colocado aparelhos de escuta no quarto e no telefone.

 

SÁBADO, 24 de fevereiro

       NO AEROPORTO INTERNACIONAL DE TEERÃ: 11:58H. A porta da cabine do 125 fechou-se atrás de Robert Armstrong e do coronel Hashemi Fazir. Lá da cabine do piloto, John Hogg levantou os polegares para Gavallan e McIver, que estavam em pé na pista, ao lado do carro, e saiu taxiando, em direção a Tabriz. Gavallan tinha acabado de chegar de Al Shargaz e este era o primeiro momento que ele tinha a sós com McIver.

       — Como estão as coisas, Mac? — perguntou, com o vento gelado levantando as suas roupas de inverno e fazendo a neve rodopiar em volta deles.

       — Problemas, Andy.

       — Eu sei disso. Conte-me rapidamente. McIver aproximou-se.

       — Eu acabei de saber que temos menos de uma semana antes que segurem os nossos aparelhos no chão aguardando a nacionalização.

       — O quê? — Gavallan ficou subitamente estatelado. — Foi Talbot quem lhe contou?

       — Não, Armstrong, há poucos minutos atrás, quando o coronel foi ao banheiro e nós ficamos sozinhos. — O rosto de McIver contorceu-se. — O filho da mãe me contou isso com aquela sua gentileza fingida: "Eu não contaria com mais de dez dias se fosse você. Uma semana seria mais seguro. E não se esqueça, sr. McIver, em boca fechada não entra mosca."

       — Meu Deus, ele sabe que estamos planejando algum? coisa? — Uma rajada de vento cobriu-os de neve.

       — Eu não sei, simplesmente não sei, Andy.

       — E quanto ao HBC? Ele disse alguma coisa?

       — Não. Quando eu perguntei sobre os papéis, ele só disse: "Eles estão em segurança”.

       — Ele disse onde deveríamos nos encontrar hoje? McIver sacudiu a cabeça.

       — "Se eu voltar em tempo, entrarei em contato". Filho da mãe. — E puxou com violência a porta do carro.

       Nervoso, Gavallan limpou a neve da roupa e entrou. As janelas estavam fechadas. McIver ligou o descongelador e o ventilador no máximo, o aquecimento também no máximo, depois colocou um cassete para tocar, aumentou o volume e depois tornou a baixar, praguejando.

       — O que houve mais, Mac?

       — Tudo — McIver explodiu. — Erikki foi seqüestrado pelos soviéticos ou pela KGB e está em algum lugar perto da fronteira da Turquia com o 212, fazendo sabe Deus o quê. Nogger acha que ele foi forçado a ajudá-los a esvaziar os postos secretos de radar dos americanos. Nogger, Azadeh, dois dos nossos mecânicos e um capitão britânico escaparam vivos de Tabriz por um triz, eles chegaram ontem e estão na minha casa... pelo menos estavam quando saí hoje de manhã. Meu Deus, Andy, você precisava ter visto o estado em que eles estavam quando chegaram. O capitão é o mesmo que salvou a vida de Charlie em Doshan Tappeh e que Charlie deixou em Bandar-e Pahlavi...

       — Ele o quê?

       — Foi uma operação secreta. Ele é um capitão dos gurkhas... o nome é Ross, John Ross, ele c Azadeh estavam bastante incoerentes, Nogger também estava um bocado nervoso, e, bem, pelo menos eles estão seguros agora... — A voz de McIver falseou. — Sinto dizer que perdemos um mecânico em Zagros, Effer Jordon, ele levou um tiro e...

       — Jesus Cristo! O velho Effer está morto?

       — Sim... sim, temo que sim e o seu filho foi atingido... nada de grave — McIver acrescentou apressadamente ao ver Gavallan empalidecer. — Scot está bem, ele...

       — Como foi?

       — A bala entrou na carne do ombro direito. Nenhum osso foi atingido, foi só uma ferida na carne. Jean-Luc disse que eles têm penicilina, um médico e a ferida está limpa. Scot não poderá pilotar o 212 amanhã para Al Shargaz, então eu pedi a Jean-Luc para fazê-lo e levar Scot com ele, depois voltar para Teerã no próximo vôo do 125 e então nós o faremos voltar para Kowiss.

       — Que diabo aconteceu?

       — Não sei exatamente. Recebi uma mensagem atrasada de Starke, esta manhã, e ele tinha acabado de receber a notícia de Jean-Luc. Parece que há terroristas agindo em Zagros, suponho que seja o mesmo bando que atacou

       Bellissima e Rosa, eles deviam estar emboscados na floresta ao redor da nossa base. Effer Jordon e Scot estavam levando peças para embarcar no 212 logo depois do amanhecer e foram atingidos. O pobre Effer levou a maior parte dos tiros, e Scot apenas um... — Mais uma vez McIver acrescentou apressadamente, vendo a expressão de Gavallan: — Jean-Luc me assegurou que Scot está bem, Andy, juro por Deus.

       — Eu não estava pensando só em Scot — Gavallan falou sombriamente. — Effer estava conosco desde o começo. Ele não tem três filhos?

       — Sim, sim, tem. É terrível. — McIver engrenou e saiu com o carro através da neve, em direção ao escritório. — Eles ainda estão no colégio, eu acho.

       — Vou fazer algo por eles assim que voltar. Continue e falar sobre Zagros.

       — Não há muito mais o que dizer. Tom Lochart não estava lá. Ele teve que passar a noite em Kowiss na sexta-feira. Jean-Luc disse que eles não viram nenhum dos atacantes, ninguém viu, os tiros saíram da floresta. A base está um caos com os nossos aparelhos fazendo hora-extra, trazendo homens das plataformas e transportando-os em grupos para Shiraz, todo mundo se matando de trabalhar para tirar tudo antes do prazo final: amanhã ao pôr-do-sol.

       — Eles vão conseguir?

       — Mais ou menos. Vamos tirar todos os nossos operários e companheiros, a maior parte das peças mais valiosas e todos os helicópteros e mandá-los para Kowiss. O equipamento de apoio da plataforma terá que ser deixado, mas isso não é responsabilidade nossa. Deus sabe o que vai acontecer com a base e as plataformas, sem manutenção.

       — Vai tudo voltar a ser um deserto.

       — Vai mesmo, que maldito desperdício! Que estupidez! Eu perguntei ao coronel Fazir se havia algo que ele pudesse fazer. O filho da mãe apenas deu aquele seu sorriso safado e disse que já era difícil descobrir o que estava acontecendo no escritório ao lado em Teerã, imagine lá no sul. Eu perguntei a ele sobre o komiteh no aeroporto, se eles não poderiam ajudar? Ele disse que não, que os komitehs não têm quase nenhuma ligação com ninguém, nem mesmo em Teerã. Ele disse exatamente o seguinte: "Lá em Zagros, no meio de nômades semicivilizados e nativos, a menos que você tenha armas, que seja iraniano, de preferência um aiatolá, o melhor que você tem a fazer é obedecer." — McIver tossiu e assou o nariz com irritação. — O desgraçado não estava rindo de nós, Andy. Mas também não estava infeliz.

       Gavallan sentia-se desanimado, tantas perguntas a serem respondidas, tudo ameaçado, aqui e em casa. Uma semana até o dia fatal, Graças a Deus que Scot... pobre Effer... Meu Deus, Scot ferido! Ele olhou sombriamente para fora e viu que estavam se aproximando da área de carga.

       — Pare o carro um minuto, Mac, é melhor conversar em particular, não?

       — Desculpe, sim, eu não estou raciocinando com clareza.

       — Você está bem, isto é, a sua saúde?

       — Oh, estou ótimo, se ao menos eu conseguisse me livrar dessa tosse... É só que... é só que estou com medo. — McIver disse isso sem se alterar, mas o fato dele admitir isso perturbou Gavallan. — Eu estou descontrolado, já perdi um homem, há o problema do HBC como uma espada sobre as nossas cabeças, o velho Erikki está em perigo, todos nós estamos em perigo, a S-G e tudo o que lutamos para construir. — Ele brincou com a direção. — Gen está bem?

       — Sim, está — Gavallan respondeu pacientemente, preocupado com ele. Era a segunda vez que respondia a essa pergunta. McIver havia-lhe perguntado isso assim que ele descera os degraus do 125. — Genny está ótima, Mac — respondeu, repetindo o que já dissera antes. — Estou trazendo uma carta dela, ela conversou com Hamish e com Sarah, as duas famílias estão bem e o jovem Angus já tem o seu primeiro dente. Está tudo bem em casa e eu estou com uma garrafa de Loch Vay na minha maleta, que ela mandou para você. Ela tentou entrar no 125 sem que Johnny Hogg percebesse, para se esconder no banheiro, mesmo depois de eu ter dito que não. — Pela primeira vez ele viu a sombra de um sorriso no rosto de Mac.

       — Genny é intratável, não há dúvida. Estou contente que ela esteja lá e não aqui, muito contente, mas é estranho como sentimos falta delas. — McIver ficou olhando para a frente. — Obrigado, Andy.

       — De nada. — Gavallan pensou por um momento. — Por que mandar o Jean-Luc levar o 212? Por que não Tom Lochart? Não seria melhor tirá-lo daqui?

       — É claro, mas ele não sai do Irã sem Xarazade... este é outro problema.

       — A música do cassete acabou e ele pôs para tocar o outro lado. — Eu não consigo encontrá-la. Tom estava preocupado com ela, pediu-me para ir até a casa da família dela perto do bazar, o que fiz. Não obtive resposta, não parecia haver ninguém lá, Tom tem certeza que ela foi à Marcha de Protesto das mulheres.

       — Cristo! Nós soubemos dos tumultos e das prisões pela BBC, e das agressões de uns loucos contras algumas das mulheres. Será que ela foi presa?

       — Espero que não. Você soube do que aconteceu com o pai dela? Oh, é claro que sim, eu mesmo lhe contei da última vez que você esteve aqui, não foi? — McIver limpou distraidamente o vidro da frente. — O que você quer fazer? Esperar aqui até o avião voltar?

       — Não. Vamos para Teerã. Nós temos tempo? — Gavallan deu uma olhada no relógio. Eram 12:25h.

       — Oh, sim. Nós temos uma carga de 'mercadorias supérfluas' para embarcar. Dará tempo se formos agora.

       — Ótimo. Eu gostaria de ver Azadeh e Nogger, e este homem, Ross, e principalmente Talbot. Poderíamos passar pela casa dos Bakravan para ver se temos sorte. O que acha?

       — Boa idéia. Estou contente que esteja aqui, Andy, muito contente. — Ele engrenou o carro e saiu, com as rodas derrapando.

       — Eu também, Mac. Na verdade, eu também nunca estive tão deprimido. McIver tossiu e pigarreou.

       — As notícias de casa são muito ruins?

       — Sim. — Gavallan limpou lentamente o vidro da janela do seu lado com as costas da luva. — Vai haver uma reunião especial de diretoria da Struan's na segunda-feira. Eu terei que aparecer com respostas a respeito do Irã. Uma chateação!

       — Linbar estará lá?

       — Sim. Aquele desgraçado vai arruinar a Casa Nobre antes de sair. É uma burrice expandir a companhia para a América do Sul quando a China está prestes a se abrir.

       McIver franziu a testa ao perceber a tensão na voz de Gavallan, mas não disse nada. Há muito que sabia da rivalidade e do ódio que existia entre eles, das circunstâncias da morte de David MacStruan e da surpresa de todo mundo em Hong Kong por Linbar ter conseguido o posto mais alto. Ele ainda tinha muitos amigos na colônia que lhe enviavam recortes com os últimos boatos ou fofocas — a alma de Hong Kong — sobre a Casa Nobre e seus rivais. Mas ele nunca os discutira com o amigo.

       — Sinto muito, Mac — Gavallan dissera rispidamente —, eu não quero discutir esse tipo de coisa, nem nada que diga respeito a Ian, Quillan, Linbar ou qualquer outra pessoa ligada à Struan's. Oficialmente, eu não estou mais com a Casa Nobre. Vamos deixar as coisas como estão.

       É justo, McIver pensara na época e tinha continuado a manter o acordo. Ele olhou para Gavallan. Os anos tinham sido bondosos com Andy, disse a si mesmo, ele ainda é um homem bastante atraente, mesmo com todos esses problemas.

       — Não se preocupe, Andy. Não há nada que você não possa resolver.

       — Eu gostaria de poder acreditar nisso nesse momento, Mac. Sete dias representam um enorme problema, não?

       — Problema é brincadeira — McIver notou que o marcador de gasolina estava no vazio e explodiu: — Alguém deve ter roubado gasolina enquanto estávamos estacionados. — Ele parou, saltou do carro e tornou a voltar, batendo a porta. — O maldito filho da mãe quebrou a fechadura. Vou ter que reabastecer. Felizmente nós ainda temos alguns tambores de vinte litros e o tanque do subsolo ainda está pelo meio com combustível de helicóptero para emergências. — E tornou a ficar em silêncio, com a mente perturbada por Zagros, Jordon, o HBC e os sete dias. Quem será que vamos perder em seguida? Silenciosamente, começou a praguejar e então ouviu a voz de Genny dizendo: "Nós podemos fazê-lo se quisermos, eu sei que podemos, eu sei..."

       Gavallan pensava no filho. Eu não vou sossegar enquanto não o vir com os meus próprios olhos. Amanhã, se tudo der certo. Se Scot não estiver de volta antes da hora do meu avião para Londres, eu cancelo e volto no domingo. E tenho que dar um jeito de ver Talbot — talvez ele possa me dar alguma ajuda. Meu Deus, só sete dias...

       McIver reabasteceu o carro rapidamente, depois saiu do aeroporto e entrou no tráfego. Um grande jato de transporte da Força Aérea dos Estados Unidos passou voando baixo, pronto para aterrissar.

       — Eles estão fazendo a manutenção de cerca de cinco jumbos por dia, com supervisores militares e Faixas Verdes 'supervisionando', todo mundo dando ordens, cancelando-as, e ninguém prestando atenção — disse McIver. — A BA me prometeu três lugares em cada um dos seus vôos para os nossos compatriotas. Com bagagem. Eles esperam pousar um jumbo aqui dia sim, dia não.

       — E o que eles querem em troca?

       — As jóias da Coroa! — disse McIver, tentando melhorar o ânimo deles, mas a piada soou sem graça. — Não, nada, Andy. O gerente da BA, Bill Shoesmith, é um grande amigo meu e está fazendo um grande trabalho. — Ele desviou o carro da carcaça queimada de um ônibus, que estava de lado tomando metade da estrada, como se estivesse perfeitamente bem estacionado. — As mulheres vão tornar a marchar hoje. Há rumores de que vão continuar até Khomeini ceder.

       — Se elas permanecerem unidas, ele vai ter que ceder.

       — Eu não sei mais o que pensar atualmente. — McIver continuou dirigindo por mais algum tempo e depois fez um sinal mostrando os pedestres que passavam para um lado e para o outro. — Eles parecem achar que está tudo bem. As mesquitas estão lotadas, as marchas de apoio a Khomeini atraem multidões, os Faixas Verdes estão combatendo destemidamente os esquerdistas, que também os combatem com a mesma coragem. — Ele tossiu. — Os nossos empregados, bem, eles me tratam com a costumeira gentileza e adulação iranianas e nunca se sabe o que eles estão realmente pensando. Mas tenho certeza que eles querem ver a gente F-O-R-A! — E subiu na calçada para evitar colidir com um carro que vinha pela contramão, tocando a buzina, andando depressa demais para as condições da estrada, depois prosseguiu. — Maldito idiota — disse. — Se não fosse pelo fato de que eu amo o velho Lulu, eu iria atrás deles e lhes daria uma lição! — Olhou para Gavallan e sorriu. — Andy, estou muito contente por você estar aqui. Obrigado. Sinto-me melhor agora. Desculpe.

       — Não há problema — Gavallan disse calmamente, mas por dentro estava fervendo. — E quanto a Turbilhão? — perguntou, incapaz de se conter.

       — Bem, sejam sete dias ou setenta... — McIver desviou para evitar outro acidente, devolveu o gesto obsceno e continuou. — Vamos fingir que estamos todos de acordo e que poderíamos apertar o botão no dia D se quiséssemos, dentro de sete dias. Não, Armstrong disse que é melhor não contar com mais de uma semana, então vamos dizer seis dias a partir de hoje, na próxima sexta-feira. Uma sexta-feira seria o melhor dia de qualquer modo, não?

       — Por ser o dia santo deles, sim, eu também pensei nisso.

       — Então, resumindo o que Charlie e eu conseguimos imaginar: Fase Um: De hoje em diante, mandaremos para fora todos os estrangeiros e peças que pudermos, de todas as maneiras que pudermos, no 125, de caminhão para o Iraque ou a Turquia, ou como bagagem e excesso de bagagem pela BA. De algum modo, eu vou fazer Bill Shoesmith aumentar as nossas reservas de lugares e nos dar prioridade no espaço de carga. Nós já retiramos dois dos nossos 212 'para reparos' e o de Zagros está marcado para sair amanhã. Ainda temos cinco aparelhos aqui em Teerã, um 212, dois 206 e dois Alouettes. Vamos mandar o 212 e os Alouettes ostensivamente para atender ao pedido de helicópteros feito por 'Pé-quente', embora só Deus saiba para que ele os está querendo. Duke diz que não está usando todos os aparelhos. De qualquer maneira, vamos deixar os dois 206 aqui para disfarçar.

       — Deixá-los?

       — Não há nenhum modo de retirar todos os nossos helicópteros, Andy, não importa o tempo de que dispomos. Agora, no dia D menos dois, na quarta-feira, o resto do pessoal aqui do QG, Charlie, Nogger, o resto dos pilotos e mecânicos, e eu; nós embarcamos no 125 na quarta-feira e nos mandamos para Al Shargaz, a menos, é claro, que possamos retirar alguns pela BA. Não se esqueça que pensam que estamos trabalhando com força total, entra um, sai um. Depois nós...

       — E quanto a papéis, vistos de saída?

       — Vou tentar conseguir alguns em branco com Ali Kia. Vou precisar de alguns cheques em branco da Suíça, ele compreende pishkesh mas também é membro do conselho, muito esperto, louco por dinheiro, mas não está disposto a arriscar a pele. Se ele não puder, então nós vamos simplesmente utilizar o pishkesh para embarcar no 125. A nossa desculpa para os sócios, Ali Kia ou quem quer que seja, quando eles descobrirem que nós partimos, é que você convocou uma conferência urgente em Al Shargaz. É uma desculpa fraca, mas isso não importa. Assim termina a Fase Um. Se formos impedidos de partir, então aqui termina o Turbilhão, porque seremos usados como reféns para a devolução dos aparelhos, e eu sei que você não vai concordar em nos sacrificar. Fase Dois: nós nos esta...

       — E quanto aos pertences de vocês? E de todos os caras que têm apartamentos e casas em Teerã?

       — A companhia vai ter que pagar uma indenização justa. Será parte dos lucros e prejuízos do Turbilhão. De acordo?

       — Ê a quanto vai esse total, Mac?

       — Não muito. Nós não temos outra opção.

       — Sim, sim. Eu concordo.

       — Fase Dois: Nós nos estabelecemos em Al Shargaz, e aí muita coisa já terá acontecido. Você já terá providenciado para que os jumbos 747 de carga cheguem a Al Shargaz na tarde do dia D menos um. Nessa ocasião, de alguma forma, Starke já terá escondido tambores de duzentos litros, em número suficiente para que eles atravessem o golfo. Outra pessoa terá escondido mais combustível em alguma ilha deserta perto da Arábia Saudita ou dos Emirados para Starke, caso ele necessite, e para Rudi e seus rapazes de Bandar Delam que precisarão dele com certeza. Scrag não tem problemas de combustível. Enquanto isso, você terá conseguido registros britânicos para todos os aparelhos que estamos planejando 'exportar', e terá conseguido permissão para atravessar o espaço aéreo do Kuwait, da Arábia Saudita e dos Emirados. Eu ficarei encarregado da operação Turbilhão propriamente dita. Na madrugada do dia D, você me diz sim ou não. Se for não, é definitivo. Se for sim, eu ainda posso cancelar esta ordem se achar prudente, e então também será definitivo. De acordo?

       — Com duas condições, Mac: você me consultará antes de cancelar, da mesma forma que eu o consultarei antes de decidir sim ou não, e segundo, se não conseguirmos no dia D, tornaremos a tentar em D mais um e D mais dois.

       — Está bem. — McIver deu um profundo suspiro. — Fase Três: na madrugada do dia D, ou D mais um ou D mais dois, três dias é o máximo que eu acho que podemos arriscar, nós enviaremos pelo rádio uma mensagem em código que significará 'Vá!' As três bases deverão indicar que receberam a mensagem e, imediatamente, todos os aparelhos deverão decolar e dirigir-se para Al Shargaz. Deverá haver uma diferença de quatro horas entre a chegada de Scrag e a chegada do último aparelho, provavelmente o de Duke, se tudo correr bem. Assim que os aparelhos pousarem em qualquer lugar fora do Irã, nós substituiremos os registros iranianos por registros britânicos e estaremos legais. Assim que pousarem em Al Shargaz, os 747 serão carregados e decolarão com todo mundo a bordo. — McIver soltou o ar. — Simples.

       Gavallan não respondeu imediatamente, examinando o plano, procurando os furos — a grande quantidade de riscos.

       — Está bom, Mac.

       — Não está, Andy, não está nada bom.

       — Eu estive com Scrag ontem e tivemos uma longa conversa. Ele diz que para ele Turbilhão é possível e ele participa se pudermos realizá-lo. Disse que sondaria os outros durante o fim-de-semana e se comunicaria comigo, mas tinha certeza de que no dia marcado poderia retirar os seus aparelhos e os rapazes.

       McIver balançou a cabeça mas não disse mais nada, apenas continuou a guiar, as ruas cobertas de gelo e perigosas, enfíando-se por ruazinhas para evitar as vias principais que sabia estarem congestionadas.

       — Não estamos muito longe do bazar agora.

       — Scrag disse que talvez pudesse ir até Bandar Delam nos próximos dias, conversar com Rudi e sondá-lo. Cartas são muito arriscadas. Por falar nisso, ele me deu um bilhete para você.

       — O que está escrito, Andy?

       Gavallan apanhou a sua maleta no banco de trás. Encontrou o envelope e colocou os óculos.

       — Está endereçado a: "D.D. capitão McIver, Esq."

       — Qualquer dia eu vou lhe dar uma lição por causa do seu maldito 'Dirty Duncan' — disse McIver. — Leia para mim.

       Gavallan abriu o envelope, tirou o papel que tinha um outro preso nele e resmungou.

       — A carta diz apenas: "Foda-se." Junto vem um relatório médico... — Deu uma olhada nele — ... assinado pelo dr. G. Gernin, consulado da Austrália, Al Shargaz. O velho filho da mãe está com o colesterol normal, sua pressão arterial é 13 por 8, açúcar normal... tudo normal e tem um P.S. na letra de Scrag: "Eu vou te dar um porre no meu aniversário, quando eu fizer 73 anos, seu velho corno!"

       — Espero que sim, mas ele não vai conseguir, o tempo não está do lado dele. Ele... — McIver freou cuidadosamente. A rua ia dar na praça em frente à mesquita do bazar, mas a saída estava bloqueada por homens aos gritos, alguns sacudindo armas. Não havia nenhuma maneira de voltar ou desviar, então McIver diminuiu a marcha e parou. — São as mulheres de novo — disse, ao ver a demonstração mais adiante, com gritos e manifestações de violência. O tráfego dos dois lados da rua engarrafou imediatamente, com as buzinas tocando raivosamente. Não havia calçadas, só as costumeiras valas cheias de detritos e neve, umas poucas barracas de rua e pedestres.

       Eles estavam bloqueados de todos os lados. Os assistentes começaram a juntar-se aos que estavam mais adiante, invadindo a rua, no meio dos carros e caminhões. Entre eles, havia garotos e rapazes, e um deles fez um gesto grosseiro para Gavallan pela janela lateral, um outro chutou o pára-lama e depois saíram correndo, rindo.

       — Malditos filhos da mãe — McIver podia vê-los pelo espelho, com outros jovens se juntando em volta deles. Mais homens passaram, mais olhares hostis, e alguns bateram nos lados do carro com suas armas. Lá na frente, o grupo de mulheres gritando "Allah-u Akbarrr"... estava passando pela esquina.

       O barulho de uma pedra batendo no carro os assustou, por pouco não atingindo a janela, depois o carro inteiro começou a balançar quando os garotos o cercaram, pulando para cima e para baixo nos pára-choques, fazendo mais gestos obscenos. A raiva de McIver explodiu e ele abriu violentamente a porta, atirando no chão uns dois garotos, depois saltou e avançou para o grupo, que se espalhou imediatamente. Gavallan saltou com a mesma rapidez, avançando contra os que estavam tentando virar o carro por trás. Agarrou um deles e o atirou longe. A maioria recuou, escorregando e gritando, em meio aos xinga-mentos de pedestres, mais dois dos maiores atacaram Gavallan por trás. Ele os viu avançando e socou um no peito, empurrou o outro de encontro a um caminhão, deixando-o sem ação, e o motorista do caminhão riu e bateu na carroceria. McIver respirava com força. Os garotos estavam fora do seu alcance, gritando obscenidades.

       — Cuidado, Mac!

       McIver se abaixou. A pedra por um triz não o atingiu na cabeça e foi bater num caminhão e os garotos, dez ou doze deles, avançaram. Não havia nenhum lugar para onde McIver pudesse ir, e ele ficou firme ao lado do capô e Gavallan encostou as costas no carro, também preparado. Um dos garotos avançou para Gavallan com um pedaço de pau levantado como um cassetete enquanto outros três atacaram pelos lados. Ele se esquivou mas o pau atingiu seu ombro de raspão; ele prendeu a respiração, atirou-se sobre o garoto, atingiu-o no rosto, escorregou e caiu deitado na neve. Os outros vieram correndo para o linchamento. De repente, eleja não estava mais na neve, cercado de pés que chutavam, mas estava sendo ajudado a se levantar. Um Faixa Verde armado o ajudava, os garotos estavam encostados no muro sob a mira de outro, um velho mulá ali perto gritava com eles, zangado, pedestres os cercavam. Apalermado, viu que McIver também estava mais ou menos ileso perto da frente do carro, depois o mulá veio até ele e falou em farsi.

       — Man zaban-e shoma ra khoob nami danam, Agha.

       — Desculpe, mas não falo a sua língua, Excelência — disse Gavallan, com dor no peito.

       O mulá, um velho de barba e turbante brancos e vestes pretas, virou-se e gritou por cima do barulho dos espectadores e das pessoas dos outros carros.

       Relutante, um dos motoristas saltou, se aproximou e cumprimentou o mulá com deferência, ouviu o que ele disse, depois falou com Gavallan num inglês bom embora um pouco hesitante:

       — O mulá diz que os garotos erraram em atacá-lo, aga, e que desobedeceram à lei, e que o senhor não estava desobedecendo a nenhuma lei nem os estava provocando.

       Mais uma vez ele ouviu o que o mulá dizia, depois tornou a voltar-se para Gavallan e McIver.

       — Ele quer que vocês saibam que a República Islâmica é obediente às leis eternas de Deus. Os garotos desobedeceram à lei que proíbe que se ataquem estrangeiros desarmados que estão pacificamente ocupando-se dos seus negócios. — O homem, barbado, de meia-idade, com as roupas gastas, voltou-se para o mulá que agora se dirigia em voz alta à multidão e aos garotos e houve aprovação e concordância por parte de todos. — Vocês são testemunhas de que a lei é cumprida, os culpados são punidos e a justiça é feita imediatamente.

       O castigo são cinqüenta chicotadas, mas primeiro os garotos vão pedir perdão a vocês e a todos os outros que se encontram aqui.

       Em meio ao tumulto da demonstração que acontecia ali ao lado, os garotos aterrorizados foram empurrados e chutados para perto de McIver e de Gavallan, foram colocados de joelhos e pediram perdão servilmente. Depois foram colocados contra o muro e açoitados com chicotes de carroceiros oferecidos prontamente pela multidão que assistia interessada. O mulá, os dois Faixas Verdes e outros escolhidos pelo mulá fizeram cumprir a lei. Sem piedade.

       — Meu Deus — murmurou Gavallan, enojado. O motorista-tradutor disse rispidamente:

       — Este é o Islã. O Islã tem apenas uma lei para todo o povo, um castigo para cada crime e justiça imediata. A lei é a lei de Deus, intocável, eterna, não como no seu corrupto ocidente onde as leis podem ser distorcidas e a justiça distorcida e demorada, em proveito de advogados que vivem das distorções, corrupções, crimes ou infortúnios dos outros... — Os gritos de alguns dos garotos o interromperam. — Aqueles filhos de um cão não têm orgulho — disse o homem, revoltado, voltando para o seu carro.

     Quando o castigo terminou, o mulá advertiu bondosamente os que ainda estavam conscientes, depois mandou-os embora e seguiu com os seus Faixas Verdes. A multidão debandou, deixando McIver e Gavallan ao lado do carro. Os seus atacantes agora eram trouxas patéticas de farrapos, inertes, sujos de sangue ou garotos que gemiam tentando levantar-se. Gavallan se aproximou para ajudar um deles, mas o garoto se afastou aterrorizado e ele parou e voltou. Os pára-lamas estavam amassados, havia arranhões na pintura por causa das pedras que os garotos tinham atirado. McIver parecia mais velho do que antes.

       — Não posso dizer que eles não mereceram o castigo — disse Gavallan.

       — Nós teríamos sido pisoteados e mortos se o mulá não tivesse aparecido

        — McIver falou com a voz rouca, contente por Genny não estar lá. Ela teria sentido cada uma das chicotadas que eles levaram, pensou, com o peito e as costas doendo por causa dos golpes. Ele tirou os olhos do carro, e mexeu com os ombros, sentindo dor. Então notou o homem que traduzira as palavras do mulá para ele ainda preso no tráfego e caminhou com dificuldade através da neve até onde ele estava.

       — Obrigado, obrigado por nos ajudar, aga — disse, gritando pela janela, por sobre o barulho. O carro era velho e estava arriado com o peso de mais quatro homens que se apertavam lá dentro.

       O homem baixou o vidro.

       — O mulá pediu um tradutor, eu estava ajudando a ele, não a vocês — ele disse. — Se vocês não tivessem vindo para o Irã, aqueles garotos idiotas não teriam sido tentados pela sua nojenta exibição de riqueza material.

       — Desculpe, eu só queria agradecer...

       — E se não fosse pelos seus filmes e programas de televisão igualmente nojentos, que glorificam as suas malditas gangues de rua e os seus estudantes revoltosos, que o xá importou sob a influência dos seus mestres para corromper a nossa juventude, inclusive o meu próprio filho e os meus próprios alunos, aqueles pobres imbecis seriam obedientes à lei. É melhor que vocês partam antes que sejam apanhados desobedecendo à lei. — Ele levantou o vidro e tocou a buzina com raiva.

      

       NO APARTAMENTO DE LOCHART: 14:37H. Ela bateu na porta da cobertura numa rápida sucessão de batidas combinadas. Estava usando um véu e um chador sujo de terra.

       Uma série de batidas soou em resposta. Ela deu de novo quatro batidas rápidas e uma lenta. No mesmo instante, a porta se abriu um pouquinho e Teymour apareceu com um revólver na cara dela e ela riu.

       — Você não confia em ninguém, meu querido? — disse em árabe, num dialeto palestino.

       — Não, Sayada, nem mesmo em você — respondeu, e quando teve certeza de que ela era mesmo Sayada Bertolin e estava sozinha, ele abriu mais a porta, e ela tirou o véu e o lenço e caiu nos braços dele. Ele fechou e trancou a porta. — Nem mesmo em você. — Depois ele a beijou avidamente. — Você está atrasada.

       — Não. Você é que está adiantado. — Mais uma vez ela riu, se afastou e entregou-lhe a sacola. — Aqui está a metade, trago o resto amanhã.

       — Onde você deixou o resto?

       — Num armário do Clube Francês. — Sayada Bertolin tirou o chador e se transformou. Estava usando uma jaqueta de esqui acolchoada, um suéter de gola alta, saia de lã, meias grossas e botas altas forradas de pele, tudo de costureiros famosos. — Onde estão os outros? — perguntou.

       — Eu os mandei sair — disse, sorrindo com os olhos.

       — Ah, amor na tarde. E quando eles voltam?

       — No pôr-do-sol.

       — Perfeito. Primeiro uma chuveirada. A água ainda está quente?

       — Oh, sim, e o aquecimento central está ligado, assim como o cobertor elétrico. Quanto luxo! Lochart e sua mulher sabiam como viver, esta é uma verdadeira... qual é mesmo a palavra francesa? Ah, sim, garçonnière.

       O riso dela o aqueceu.

       — Você não tem idéia do pishkesh que é um chuveiro quente, meu querido, muito melhor do que uma banheira. Sem falar no resto. — Ela se sentou numa cadeira para tirar as botas. — Mas quem sabia viver era o velho safado do Bakravan, não Lochart. Originalmente, este apartamento era para uma amante.

       — Você? — perguntou sem malícia.

       — Não, meu querido, ele gostava delas bem jovens. Eu não sou amante de ninguém, nem mesmo do meu marido. Foi Xarazade quem me contou. O velho Jared sabia viver, é uma pena que não tenha tido mais sorte na morte.

       — Ele já tinha cumprido o seu papel.

       — Aquela não era a maneira de tratar um homem daqueles. Estupidez!

       — Ele era um notório agiota e partidário do xá, apesar de ter dado dinheiro a rodo para Khomeini. Ele tinha ofendido às leis de Deus e...

       — As leis dos fanáticos, meu querido, dos fanáticos. Assim como você e eu quebramos todos os tipos de leis, hein? — Ela se levantou e o beijou de leve, caminhou sobre os lindos tapetes do corredor e foi para o quarto de Lochart e Xarazade, atravessou-o e entrou no banheiro coberto de espelhos, ligou o chuveiro e ficou lá esperando a água esquentar. — Eu sempre adorei este apartamento.

       Ele se encostou na porta.

       — Os meus superiores mandaram agradecer-lhe por tê-lo sugerido. Como estava a marcha?

       — Horrível. Os iranianos são uns animais, gritando palavrões e obscenidades para nós, sacudindo os seus pênis para nós, tudo porque queremos um pouco de igualdade, queremos nos vestir ao nosso gosto, para tentarmos ser bonitas por algum tempo, nós só somos jovens tão pouco tempo. — Mais uma vez ela colocou a mão debaixo do chuveiro, experimentando a água. — O seu Khomeini vai ter que ceder.

       — Nunca. Esta é a sua força. E só alguns são animais, Sayada, o resto não conhece outra coisa. Onde está a sua civilizada tolerância palestina?

       — Os homens daqui transformaram isso num buraco fedorento, Teymour. Se você fosse uma mulher, entenderia. — Ela tornou a experimentar a água e sentiu o calor começando. — Está na hora de voltar para Beirute. Eu nunca me sinto limpa aqui. Há meses que não me sinto limpa.

       — Eu também vou ficar feliz em voltar. A guerra aqui está terminada, mas não na Palestina, no Líbano ou na Jordânia. Eles precisam de soldados treinados lá. Há judeus para matar, a maldição do sionismo para destruir e lugares sagrados para recuperar.

       — Estou feliz por você voltar a Beirute — disse, com um olhar convidativo. — Eu recebi ordens de voltar para casa também dentro de duas semanas, o que me convém perfeitamente, porque assim eu ainda posso marchar. O protesto marcado para quinta-feira vai ser o maior de todos!

       — Eu não entendo por que você se dá ao trabalho, o Irã não é problema seu e todas as suas marchas e protestos não vão levar a nada.

       — Você está enganado. Khomeini não é nenhum idiota. Eu tomo parte nas marchas pela mesma razão pela qual trabalho para a OLP: Pela nossa terra, pela igualdade, igualdade para as mulheres da Palestina... e, sim, para as mulheres de toda parte. — Seus olhos castanhos tornaram-se selvagens e ele nunca a tinha visto mais linda. — As mulheres estão marchando, meu querido, e pelo Deus dos coptas, o único Deus, e pelo seu Marx-Lenin que você tanto admira secretamente, os dias da dominação dos homens estão chegando ao fim.

       — Eu concordo — ele disse imediatamente e riu. Ela riu junto com ele.

       — Você é um chauvinista, você que compreende. — A temperatura da água estava perfeita. Ela tirou a jaqueta de esqui. — Vamos tomar banho juntos.

       — Ótimo, conte-me sobre os papéis.

       — Depois. — Ela se despiu sem nenhuma vergonha e ele fez o mesmo, ambos excitados mas pacientes, pois eles eram amantes confiantes, amantes há três anos, no Líbano, na Palestina e aqui em Teerã. E eles ensaboaram-se e brincaram um com o outro, cada vez mais intimamente e mais sensualmente e mais eroticamente até que ela gritou e tornou a gritar e então, no momento em que ele a penetrou, eles se fundiram perfeitamente, com uma urgência cada vez maior, implodindo juntos. Depois, mais tarde, em paz juntos, deitados na cama, com o cobertor elétrico os agasalhando, ela perguntou, sonolenta, com um grande suspiro:

       — Que horas são?

       — Hora de amar.

       Calmamente ela estendeu a mão para ele e ele recuou, despreparado, protestando, depois tomou-lhe a mão e abraçou-a.

       — Ainda não, nem mesmo com você, meu amor! — ela disse, satisfeita, nos braços dele.

       — Cinco minutos.

       — Nem daqui a cinco horas, Teymour.

       — Uma hora...

       — Duas horas — ela disse sorrindo. — Dentro de duas horas você estará pronto outra vez, mas então eu não estarei aqui. Você terá que levar para a cama uma das prostitutas dos seus soldados. — Ela abafou um bocejo, depois espreguiçou-se como um gato. — Oh, Teymour, você é um amante maravilhoso, maravilhoso. — Depois ela escutou um ruído. — Foi o chuveiro?

       — Sim, eu o deixei correndo. Que luxo, hein?

       — Sim, mas é também um desperdício.

       Ela deslizou para fora da cama e fechou a porta do banheiro, usou o bidê, depois entrou no chuveiro e cantou para si mesma enquanto lavava os cabelos, depois se enrolou numa fina toalha, secou o cabelo com um secador elétrico e quando voltou, esperava encontrá-lo adormecido. Mas ele não estava dormindo. Estava deitado na cama com a garganta cortada. O cobertor que o cobria estava empapado de sangue, seus testículos cortados estavam arrumados no travesseiro ao lado dele e dois homens estavam ali olhando para ela. Ambos estavam armados, com os revólveres munidos de silenciadores. Pela porta aberta do quarto, ela viu um outro homem de guarda na porta da frente.

       — Onde está o resto dos papéis? — um dos homens disse num inglês com um sotaque estranho, o revólver apontado para ela.

       — No... no Clube Francês.

       — Em que lugar do Clube Francês?

       — Num armário. — Ela estava há muitos anos na OLP e era muito experiente para entrar em pânico. Seu coração batia lentamente e ela tentava decidir o que fazer antes de morrer. Havia uma faca em sua bolsa, mas ela tinha deixado a bolsa na mesinha-de-cabeceira e agora ela estava em cima da cama, com o seu conteúdo espalhado, e não havia nenhuma faca. Não havia nenhuma arma por perto para ajudá-la. Nada a não ser o tempo. Ao entardecer os outros voltariam. Mas ainda não estava perto do entardecer. — Na seção de senhoras — acrescentou.

       — Em que armário?

       — Não sei. Não há números e o costume é entregar o que se quer guardar para a atendente; assina-se o nome no livro que ela rubrica e ela devolve seja lá o que for quando se pede. Mas só para a própria pessoa.

       O homem olhou para o outro que balançou a cabeça de leve. Os dois homens tinham cabelos e olhos escuros, usavam bigodes e ela não conseguiu localizar o sotaque. Eles podiam ser iranianos, árabes ou judeus — e de qualquer lugar, desde o Egito até a Síria ou o Iêmen.

       — Vista-se. Se você tentar alguma coisa, não irá para o inferno sem dor como este homem. Nós não o acordamos antes. Está claro?

       — Sim. — Sayada voltou e começou a se vestir. Ela não tentou se esconder. O homem ficou na porta e observou-a cuidadosamente, não o seu corpo, mas as suas mãos. Eles são profissionais, pensou, sentindo-se mal.

       — Onde você conseguiu os papéis?

       — De alguém chamado Ali. Eu nunca o havia visto antes...

       — Pare! — A palavra soou cortante como uma faca embora tenha sido dita em voz baixa. — Da próxima vez que você mentir para nós, eu vou cortar fora o lindo bico do seu seio e vou fazê-la comê-lo, Sayada Bertolin. Uma mentira só, para experimentar, está perdoada. Mas nunca mais. Continue.

       Ela agora estava com medo.

       — O nome do homem era Abdullah bin Ali Sabá, e hoje de manhã ele foi comigo até o velho prédio perto da universidade. Ele mostrou o caminho até o apartamento e nós procuramos onde nos tinham mandado.

       — Quem tinha mandado?

       — A 'Voz'. A voz no telefone. Eu só o conheço como uma voz. De vez em quando ele liga para mim com instruções especiais.

       — E como você o reconhece?

       — Pela sua voz, e há sempre um código. — Ela enfiou o suéter pela cabeça e agora estava vestida, exceto pelas botas. A automática com o silenciador não se movera. — O código é que ele sempre menciona o dia anterior de uma forma ou de outra nos primeiros minutos, qualquer que seja o dia.

       — Continue.

       — Nós revistamos debaixo do assoalho e encontramos o material: cartas, fichas e alguns livros. Eu os coloquei na bolsa e fui para o Clube Francês e... e então, como a alça da bolsa arrebentou, eu deixei a metade lá e vim.

       — Quando foi que você conheceu o homem, Dimitri Yazernov?

       — Eu não o conheci, apenas me mandaram ir lá com Abdullah e me certificar de que ninguém estava observando, para encontrar os papéis e entregá-los a Teymour.

       — Por que Teymour?

       — Eu não perguntei, eu nunca pergunto.

       — Inteligente de sua parte. O que Teymour faz... fazia?

       — Eu não sei exatamente, a não ser que ele era um iraniano, treinado como um Combatente da Liberdade pela OLP.

       — Que ramo?

       — Não sei. — Por trás do homem, ela conseguia enxergar o quarto, mas manteve os olhos longe da cama e no homem que sabia demais. Pelo interrogatório, eles podiam ser agentes da Savama, da KGB, da CIA, do M16, de Israel, da Jordânia, da Síria, do Iraque, até mesmo dos grupos extremistas da OLP que não reconheciam Arafat como líder. Qualquer um deles gostaria de se apoderar do conteúdo do cofre do embaixador dos Estados Unidos.

       — Quando é que o francês, seu amante, volta?

       — Não sei — disse imediatamente, deixando transparecer a sua surpresa.

       — Onde ele está agora?

       — Na sua base, em Zagros. Ela é chamada de Zagros Três. — Onde está o piloto Lochart?

       — Eu acho que também está em Zagros.

       — Quando é que ele volta para cá?

       — Você quer dizer para cá? Para este apartamento? Eu acho que ele não vai mais voltar para cá.

       — Para Teerã?

       Seus olhos desviaram-se para o quarto apesar dela ter tentado resistir e ela viu Teymour. O seu estômago revirou, ela agarrou o vaso sanitário e vomitou violentamente. O homem observou sem emoção, satisfeito de que uma das suas barreiras tivesse sido rompida. Ele estava acostumado a que os corpos reagissem espontaneamente ao terror. Ainda assim, continuou a cobri-la com o revólver e ficou olhando cautelosamente, com medo de que fosse um truque.

       Quando o espasmo passou, ela limpou a boca com um pouco d'água, tentando dominar a náusea, xingando Teymour por ter sido tão estúpido a ponto de mandar os outros embora. Estúpido! Teve vontade de berrar, uma coisa estúpida quando você está cercado de inimigos da direita, da esquerda e do centro. Eu alguma vez me importei de fazer amor quando havia outras pessoas em volta, contanto que a porta estivesse fechada? Ela tornou a se recostar na pia, encarando o seu destino.

       — Primeiro nós vamos ao Clube Francês — ele disse. — Você vai apanhar o resto do material e me entregar. Está claro?

       — Sim.

       — De agora em diante você vai trabalhar para nós. Secretamente. Você vai trabalhar para nós. De acordo?

       — Eu tenho escolha?

       — Sim. Você pode morrer. Sofrendo. — Os lábios do homem estreitaram-se ainda mais e os seus olhos se tornaram venenosos. — Depois que você morrer, uma criança chamada Yassar Bialik receberá a nossa atenção.

       O rosto dela ficou sem cor.

       — Ah, bom! Então você se lembra do seu filhinho que mora com a família do seu tio na rua dos Mercadores de Flores de Beirute? — O homem olhou fixamente para ela e depois perguntou: — Bem, de acordo?

       — Sim, sim, é claro — ela disse, mal conseguindo falar. É impossível eles saberem do meu querido Yassar, nem mesmo o meu marido sabe...

       — O que aconteceu com o pai do garoto?

       — Ele... ele foi morto... ele foi... morto.

       — Onde?

       — Nas colinas de Golan.

       — É triste perder um jovem marido alguns meses depois do casamento — disse o homem. — Quantos anos você tinha?

       — Dez... dezessete.

       — A sua memória não falha. Ótimo. Agora, se você escolher trabalhar para nós, você, seu filho, seu tio e sua família estarão seguros. Se você não nos obedecer cegamente ou se tentar trair-nos, ou cometer suicídio, o menino Yassar deixará de ser um homem e deixará de ver. Está claro?

       Ela balançou a cabeça desamparadamente, com o rosto cinzento.

       — Se nós morrermos, outros se certificarão de que sejamos vingados. Não tenha dúvidas quanto a isso. Agora, qual é a sua escolha?

       — Eu trabalharei para vocês. — E deixarei o meu filho seguro e me vingarei, mas como, como? pensou.

       — Ótimo, pelos olhos, testículos e pênis do seu filho, você trabalhará para nós?

       — Sim. Por favor... para quem eu vou trabalhar? — Os dois homens sorriram. Sem humor.

       — Nunca torne a perguntar isso, nem tente descobrir. Nós lhe diremos quando for necessário, se for necessário. Está claro?

       — Sim.

       O homem com o revólver retirou o silenciador e guardou-o no bolso, junto com o revólver.

       — Nós queremos saber imediatamente quando o francês ou Lochart vão voltar. Será tarefa sua descobrir. E também quantos helicópteros eles têm aqui em Teerã e onde. Está claro?

       — Sim. E como eu entro em contato com você, por favor?

       — Você receberá um número de telefone. — Os olhos se tornaram ainda mais duros. — Só para você. Está claro?

       — Sim.

       — Onde Armstrong mora? Robert Armstrong?

       — Eu não sei. — Ela ficou atenta. Havia boatos de que Armstrong era um assassino treinado, usado pelo M16.

       — Quem é George Talbot?

       — Talbot? Ele é um funcionário da embaixada britânica.

       — Que tipo de funcionário? Quai é o trabalho dele?

       — Não sei, é apenas um funcionário.

       — Algum deles é seu amante?

       — Não. Eles... eles vão ao Clube Francês algumas vezes. São conhecidos.

       — Você vai se tornar amante de Armstrong. Está claro?

       — Eu... eu vou tentar.

       — Você tem duas semanas. Onde está a esposa de Lochart?

       — Eu... eu acho que na casa dos Bakravan, perto do bazar.

       — Trate de se certificar disso. E consiga uma chave da porta da frente. — O homem viu os olhos dela pestanejarem e disfarçou o seu divertimento. Se isso for contra os seus princípios, não faz mal. Em breve você estará comendo merda satisfeita, se nós quisermos. — Apanhe o seu casaco, nós vamos sair imediatamente.

       Ela estava com os joelhos bambos quando atravessou o quarto em direção à porta da rua.

       — Espere! — O homem tornou a enfiar as coisas que estavam espalhadas dentro da bolsa dela e depois, pensando melhor, embrulhou displicentemente o que estava em cima do travesseiro num dos lenços de papel dela e colocou também dentro da bolsa. — Para você se lembrar que deve obedecer.

       — Não, por favor. — As lágrimas escorreram. — Eu não posso... isso não.

       O homem enfiou-lhe a bolsa nas mãos.

       — Então jogue fora.

       Ela cambaleou de volta para o banheiro e jogou aquilo na latrina, tornando a vomitar violentamente, mais do que antes.

       — Depressa!

       Quando recuperou o controle das pernas, ela o encarou.

       — Quando os outros... quando eles voltarem e descobrirem... se eu não estiver aqui eles... eles vão saber que... que eu estou trabalhando para aqueles que... que fizeram isto e...

       — É claro. Você acha que nós somos idiotas? Você acha que estamos sozinhos? Assim que eles voltarem, serão mortos e este lugar será incendiado.

      

       NO APARTAMENTO DE McIVER: 16:20H. — Eu não sei, sr. Gavallan — disse Ross. — Não me lembro de muita coisa depois que deixei Azadeh na colina e fui para a base, até mais ou menos a hora que chegamos aqui. — Ele estava usando uma das camisas do uniforme de Pettikin, um suéter preto, calças e sapatos pretos e estava limpo e barbeado, mas seu rosto mostrava completa exaustão. — Mas antes disso, tudo aconteceu como... como eu lhe contei.

       — Terrível — disse Gavallan. — Mas graças a Deus por você, capitão. Se não fosse por você, os outros estariam mortos. Sem você, todos eles estariam perdidos. Vamos tomar um drinque, está muito frio. Vamos tomar um uísque. — Ele se dirigiu a Pettikin. — Charlie?

       Pettikin foi até o aparador.

       — Claro, Andy.

       — Eu não quero, obrigado, sr. McIver — disse Ross.

       — Eu vou querer, e o sol ainda está alto. — atalhou McIver.

       — Eu também — disse Gavallan. Os dois tinham chegado há pouco tempo, ainda abalados por causa do incidente e preocupados porque, na casa dos Bakravan, eles bateram várias vezes sem resultado. Depois tinham vindo para cá. Ross, cochilando no sofá, dera um pulo quando a porta da rua se abriu, empunhando ameaçadoramente o seu kookri.

       — Desculpe — dissera, tremendo, tornando a guardar a arma.

       — Está tudo bem — fingira Gavallan, ainda apavorado. — Eu sou Andrew Gavallan. Oi Charlie! Onde está Azadeh?

       — Ela ainda está dormindo, lá dentro — respondeu Pettikin.

       — Sinto muito tê-lo assustado — dissera Gavallan. — O que foi que aconteceu em Tabriz, capitão?

       Então Ross contara a eles, de uma forma um tanto incoerente, numa narrativa bastante desordenada. O fato de ter sido acordado de um sono pesado o desorientara. Sua cabeça doía, tudo doía, mas ele estava satisfeito por estar contando o que tinha acontecido, reconstituindo tudo, enchendo aos poucos os espaços vazios, pondo as peças no lugar. Com exceção de Azadeh. Não, eu ainda não consigo encaixá-la.

       Naquela manhã, ao acordar no meio de um pesadelo, ele estava aterrorizado, com as coisas todas embaralhadas, motores a jato, armas, pedras, explosões e frio, e olhara para as próprias mãos para ter certeza do que era sonho e do que era realidade. Então vira um homem olhando para ele e gritara: Onde está Azadeh?

       — Ela ainda está dormindo, capitão Ross, ela está no quarto de hóspedes lá dentro — Pettikin dissera a ele, acalmando-o. — Lembra-se de mim? Charlie Pettikin? Doshan Tappeh?

       Vasculhando a sua memória. As coisas voltando aos poucos, coisas medonhas. Grandes lacunas, muito grandes. Doshan Tappeh? O que houve em Doshan Tappeh? Tinha ido até lá para pegar carona num helicóptero e...

       — Ah, sim capitão, como vai? Prazer em vê-lo. Ela está dormindo?

       — Como um bebê.

       — A melhor coisa para ela é dormir — dissera, ainda sem conseguir raciocinar direito.

       — Primeiro uma xícara de café. Depois um banho, fazer a barba. Eu vou lhe arranjar algumas roupas e material para se barbear. Você é mais ou menos do meu tamanho. Está com fome? Nós temos ovos e um pouco de pão, o pão está meio azedo.

       — Oh, não obrigado, não estou com fome. Você é muito gentil.

       — Eu lhe devo um favor. Não, pelo menos dez. Estou muito satisfeito em vê-lo. Ouça, por mais que eu queira saber o que aconteceu... bem, McIver foi ao aeroporto apanhar o nosso patrão, Andy Gavallan. Eles vão voltar logo, você vai ter que contar a eles e então eu vou saber. Portanto, nenhuma pergunta até lá, você deve estar exausto.

       — Obrigado, sim... as coisas ainda estão um pouco... eu não consigo me lembrar de quase nada do que aconteceu depois de ter deixado Azadeh na colina, apenas alguns pedaços, como um sonho, até acordar há um momento atrás. Quanto tempo eu dormi?

       — Você esteve fora do ar umas 16 horas. Nós, Nogger e nossos dois mecânicos, ajudamos vocês dois a virem até aqui e depois vocês dois adormeceram. Nós pusemos você e Azadeh na cama como se fossem bebês, Mac e eu. Despimos vocês, limpamos parte da sujeira, carregamos vocês para a cama, não com muita delicadeza, aliás, mas vocês não acordaram, nenhum dos dois.

      — Ela está bem? Azadeh?

       — Oh, sim. Eu fui olhá-la umas duas vezes, mas ela ainda está dormindo. O que... desculpe, nada de perguntas! Primeiro tomar banho e fazer a barba. Desconfio que a água não está muito quente, mas eu coloquei um aquecedor elétrico no banheiro, não está muito ruim...

       Agora Ross observava Pettikin, que estava servindo uísque a McIver e a Gavallan.

       — Tem certeza de que não quer, capitão?

       — Não, não, obrigado. — Sem perceber, ele sentiu o seu pulso direito e o esfregou. O seu nível de energia estava caindo rapidamente. Gavallan notou o cansaço do homem e viu que não tinha muito tempo.

       — Quanto a Erikki. Você não consegue lembrar-se de mais nada para nos dar uma idéia de onde ele possa estar?

       — Nada mais do que já contei a vocês. Talvez Azadeh possa ajudar. O nome do soviético era algo como Certaga, o homem com quem Erikki foi obrigado a trabalhar na fronteira. Como eu disse, eles a estavam usando para ameaçá-lo e houve alguma complicação a respeito do pai dela e uma viagem que eles iam fazer juntos. Desculpe, não consigo me lembrar exatamente. O outro homem, o que era amigo de Abdullah Khan, chamava-se Mzytryk, Petr Oleg. — Isso fez Ross lembrar-se da mensagem de Vien Rosemont para o khan, mas ele decidiu que isso não era da conta de Gavallan, nem a matança, nem o fato de ter empurrado o velho na frente do caminhão na colina, nem que um dia ele voltaria à aldeia e arrancaria a cabeça do açougueiro e do calênder que, se não fosse pela graça de Deus ou pelos espíritos da montanha, teriam apedrejado a ela e mutilado a ele. Ele faria isso depois de prestar contas a Armstrong, ou a Talbot ou ao coronel americano, mas antes disso, perguntaria a eles quem havia traído a operação em Meca. Alguém traíra. Por um momento, a lembrança de Rosemont, Tenzing e Gueng o cegaram. Quando seus olhos clarearam, ele viu o relógio na lareira.

       — Eu tenho que ir a um edifício perto da embaixada britânica. É muito longe daqui?

       — Não, nós podemos levá-lo, se quiser.

       — Poderia ser agora? Sinto muito, mas acho que vou apagar de novo se não fizer isso logo.

       Gavallan olhou para McIver.

       — Mac, vamos sair agora... talvez eu consiga encontrar Talbot. Nós ainda teremos tempo de voltar e falar com Azadeh e com Nogger, se ele estiver aqui.

       — Boa idéia.

       Gavallan se levantou e vestiu o casaco. Pettikin disse para Ross:

       — Vou lhe emprestar um casaco e umas luvas. — Ele viu os olhos dele desviarem-se para o corredor. — Você gostaria que eu acordasse Azadeh?

       — Não, obrigado. Eu... eu vou só dar uma olhada nela.

       — É a segunda porta à esquerda.

       Eles o viram caminhar pelo corredor, com seu andar silencioso como o de um gato, abrir a porta sem fazer barulho e ficar lá em pé por um momento e depois tornar a fechá-la. Ele apanhou o seu rifle e os dois kookris, o dele e o de Gueng. Pensou por um momento e depois colocou o dele sobre a lareira.

       — Caso eu não volte, diga a ela que é um presente, um presente para Erikki. Para Erikki e para ela.

      

       NO PALÁCIO DO KHAN: 17:19H. O calênder de Abu Mard estava de joelhos, apavorado.

       — Não, não, Alteza, eu juro que foi o mulá Mahmud quem nos disse...

       — Ele não é um mulá verdadeiro, seu filho de um cão, todo mundo sabe disto! Por Deus, vocês... vocês iam apedrejar a minha filha? — O khan berrou, com o rosto vermelho, respirando com dificuldade — vocês decidiram? vocês decidiram que iam apedrejar a minha filha?

       — Foi ele, Alteza — gemeu o calênder —, foi o mulá que decidiu depois de interrogá-la e ela ter admitido ter cometido adultério com o Sabotador...

       — Seu filho de um cão! Vocês ajudaram e protegeram o falso mulá... Mentiroso! Ahmed contou-me o que aconteceu! — O khan se ergueu nos travesseiros, com um guarda atrás dele e Ahmed e outros guardas perto do calênder que estava em frente a ele, Najoud, sua filha mais velha e Aysha, sua jovem esposa sentadas de um dos lados, tentando esconder o terror e o ódio e apavoradas que ele se virasse contra elas. Ajoelhado ao lado da porta, ainda vestido com as roupas sujas de viagem e cheio de horror, estava Hakim, irmão de Azadeh, que acabara de chegar e fora levado até lá sob escolta, em resposta a um chamado do khan, e que ouvira com igual raiva o relato de Ahmed sobre o que acontecera na aldeia.

       — Seu filho de um cão! — O khan tornou a gritar, a saliva escorrendo pela boca. — Você deixou... você deixou o cão do Sabotador escapar... você o deixou arrastar a minha filha com ele... você abrigou o Sabotador e depois... depois ousou julgar alguém da minha... MINHA família e ia apedrejá-la... sem pedir a minha... MINHA aprovação?

       — Foi o mulá... — o calênder gritou, e ficou repetindo a mesma coisa.

       — Façam-no calar a boca!

       Ahmed atingiu-o com força num dos ouvidos, deixando-o momentaneamente tonto. Depois colocou-o de novo de joelhos e sibilou:

       — Diga mais uma palavra e eu corto a sua língua. O khan estava tentando recuperar o fôlego.

       — Aysha, dê-me... dê-me uma daquelas... daquelas pílulas.

       Ela correu para obedecer, ainda de joelhos, abriu o frasco, colocou uma pílula na sua boca e limpou-a para ele. O khan manteve a pílula debaixo da língua como o médico recomendara e logo o espasmo passou, a pressão nos ouvidos diminuiu e o quarto parou de balançar. Seus olhos injetados voltaram a se fixar no velho que tremia e gemia incontrolavelmente.

       — Seu filho de um cão! Então você ousa morder a mão do seu dono. Você, o seu açougueiro e a sua aldeia fedorenta. Ibrim — o khan disse para um dos guardas. — Leve-o de volta para Abu Mard e faça com que ele seja apedrejado, que os aldeões apedrejem a ele, depois corte fora as mãos do açougueiro.

      Ibrim e outro guarda obrigaram o velho a se levantar, fizeram-no calar a boca e abriram a porta, parando quando Hakim disse severamente:

       — E depois ponha fogo na aldeia!

       O khan olhou para ele, estreitando os olhos.

       — Sim, e depois ponha fogo na aldeia — repetiu e manteve os olhos em Hakim que enfrentou seu olhar, procurando ter coragem. A porta se fechou e o silêncio ficou mais pesado, quebrado apenas pela respiração penosa de Abdullah.

       — Najoud, Aysha, saiam! — disse.

      Najoud hesitou, querendo ficar, querendo ouvir a sentença que seria pronunciada a respeito de Hakim, vibrando por Azadeh ter sido apanhada em adultério devendo portanto, ser punida quando fosse recapturada. Bom, bom, bom. Junto com Azadeh, eles dois desaparecem: Hakim e o Ruivo da Faca.

       — Eu estarei aqui ao lado, Alteza — ela disse.

       — Você pode ir para os seus aposentos. Aysha, espere no final do corredor. — As duas mulheres saíram. Ahmed fechou a porta, satisfeito, estava tudo correndo conforme o planejado. Os outros dois guardas esperaram em silêncio.

       O khan virou-se com dificuldade, fazendo um sinal para eles.

       — Esperem lá fora. Ahmed, você fica. — Depois que todos saíram e só eles três estavam no quarto grande e frio, o khan tornou a olhar para Hakim.

       — Ponha fogo na aldeia, você disse. Foi uma boa idéia. Mas isso não desculpa a sua traição, nem a da sua irmã.

       — Nada desculpa a traição contra um pai, Alteza. Mas nem Azadeh nem eu traímos nem planejamos nada contra o senhor.

       — Mentiroso! Você ouviu Ahmed! Ela admitiu ter dormido com o Sabotador, ela o admitiu.

       — Ela admitiu 'amá-lo' Alteza, há muitos anos passados. Ela jurou por Deus que nunca cometeu adultério nem traiu o marido. Nunca! Na frente daqueles cães e filhos de cães e pior ainda, daquele mulá da esquerda, o que deveria dizer a filha de um khan? Ela não tentou proteger o seu nome na frente daquela gente maldita?

       — Ainda torcendo palavras, ainda protegendo a prostituta em que ela se tornou?

       O rosto de Hakim ficou cor de cera.

       — Azadeh se apaixonou do mesmo modo que mamãe. Se ela é uma prostituta, então você prostituiu a minha mãe.

       O sangue tornou a subir ao rosto do khan.

       — Como você ousa dizer uma coisa dessas?

       — É verdade. Você dormiu com ela antes de se casarem. Como ela o amava, deixou que você fosse secretamente ao quarto dela e se arriscou a morrer. Ela se arriscou a morrer porque o amava e você implorou. A nossa mãe não convenceu o pai a aceitá-lo como marido dela ao invés do seu irmão mais velho, que a desejava como segunda esposa para ele? — A voz de Hakim falhou, lembrando-se dela ao morrer, quando ele tinha sete anos e Azadeh seis, sem entender muito, só que ela estava sofrendo terrivelmente por causa de uma coisa chamada 'tumor' e que lá fora, no pátio, seu pai Abdullah estava desesperado. — Ela não tomou sempre a sua defesa contra o pai dela e seu irmão mais velho e depois, quando seu irmão foi morto e você se tornou o herdeiro, não foi ela que negociou a paz com o pai?

       — Você não pode... não pode saber dessas coisas, você era... era muito pequeno!

       — A velha babá Fatemeh nos contou, ela nos contou antes de morrer, ela nos contou tudo o que conseguiu lembrar...

       O khan mal ouvia, recordando também, recordando o acidente que o irmão sofrerá numa caçada e que ele arquitetara com tanta habilidade — a velha babá devia saber disso também e se ela sabia, então Hakim e Azadeh sabiam, e era mais um motivo para silenciá-los. Recordando, também, todo o tempo de magia que ele tivera com Napthala, a Fada, antes e depois do casamento e durante todos os anos até o início da dor. Eles ainda não estavam casados havia um ano quando Hakim nasceu, dois quando veio Azadeh, Napthala tinha apenas 16 anos na época, pequenina, fisicamente do mesmo tipo que Aysha, mas mil vezes mais bonita, seu longo cabelo era como ouro. Mais cinco anos maravilhosos, nenhum outro filho, mas isso nunca importou, ele finalmente não tinha um filho, alto e forte — quando os três filhos que teve com a primeira esposa tinham todos nascido doentes, morrendo logo, suas quatro filhas feias e faladeiras? Sua mulher não estava ainda com 22 anos, em boa saúde, tão forte e maravilhosa quanto as duas crianças que tinha gerado? Havia muito tempo para mais filhos.

       Então a dor começara. E a agonia. Nenhuma ajuda de nenhum dos médicos de Teerã.

       — Insha'Allah — eles disseram.

       Nenhum alívio, exceto as drogas, cada vez mais fortes, enquanto ela se acabava. Que Deus lhe conceda a paz do paraíso e que eu possa me encontrar lá com ela.

       Ele observava Hakim, vendo nele o mesmo tipo de Azadeh que era parecida com a mãe, ouvindo-o falar:

       — Azadeh apenas se apaixonou, Alteza. Se ela amava esse homem, o senhor não pode perdoá-la? Ela não tinha apenas 16 anos quando foi mandada para uma escola na Suíça, da mesma forma que mais tarde eu fui mandado para Khoi?

       — Porque vocês dois eram traiçoeiros, ingratos e perigosos! — O khan gritou, sentindo outra vez a pressão nos ouvidos. — Saia! Você vai... vai ficar longe dos outros, sob guarda, até eu mandar chamá-lo. Ahmed, providencie isso, depois volte aqui.

       Hakim se levantou, quase em lágrimas, sabendo o que ia acontecer e sem poder evitá-lo. Ele saiu, Ahmed deu as ordens necessárias aos guardas e voltou. Agora os olhos do khan estavam fechados, seu rosto cinzento, sua respiração mais difícil do que antes. Por favor, meu Deus, não o deixe morrer ainda, rezou Ahmed.

       O khan abriu os olhos e olhou para ele.

       — Eu tenho que decidir a respeito dele, Ahmed. Depressa.

       — Sim, Alteza — começou o seu conselheiro, escolhendo cuidadosamente as palavras —, o senhor só tem dois filhos, Hakim e o bebê. Se Hakim morrer ou — ele deu um sorriso estranho — se por acaso ficasse cego ou aleijado, então Mahmud, marido de Sua Alteza Najoud, seria regente até...

       — Aquele idiota? As nossas terras e o nosso poder estarão perdidos em um ano! — Manchas vermelhas apareceram no rosto do khan e lhe parecia cada vez mais difícil pensar com clareza. — Dê-me outra pílula.

       Ahmed obedeceu e deu-lhe água para beber, ajudando-o.

       — O senhor está nas mãos de Deus, vai se recuperar, não se preocupe.

       — Não me preocupar? — o khan resmungou, com dor no peito. — Deus quis que o mulá morresse a tempo... estranho. Petr Oleg manteve o acordo... embora ele... o mulá morreu depressa demais... depressa demais...

       — Sim, Alteza.

       O espasmo tornou a passar.

       — Quai é o seu conselho... com relação a Hakim? Ahmed fingiu pensar um momento.

       — O seu filho Hakim é um bom muçulmano, ele poderia ser treinado, ele tem cuidado bem dos seus negócios em Khoi e não fugiu embora talvez o pudesse ter feito. Ele não é um homem violento, exceto para proteger a irmã, não? Mas isso é muito importante, pois aí está a solução. — Ele chegou mais perto e disse baixinho: — Declare-o seu herdeiro, Alte...

       — Nunca!

       — Desde que ele jure por Deus que vai proteger o seu irmão mais moço como protegeria a sua irmã, desde que, além disso, a sua irmã volte imediatamente por sua própria vontade para Tabriz. Na verdade, Alteza, o senhor não tem nenhuma prova real contra eles, só boatos. Permita-me descobrir a verdade a respeito dos dois e comunicar secretamente ao senhor.

       O khan estava concentrado, ouvindo atentamente, embora o estorço cansasse.

       — Ah, o irmão é a isca para atrair a irmã, assim como ela foi a isca para atrair o marido?

       — Assim cada um deles serve de isca para o outro! Sim, Alteza, é claro que o senhor pensou nisso antes de mim. Em troca do senhor ter favorecido o irmão, ela deve jurar diante de Deus ficar aqui para ajudá-lo.

       — Ela o fará, oh, sim, ela o fará.

       — Então os dois estarão ao alcance do senhor e o senhor poderá se divertir com eles como quiser, dando e tomando à sua vontade, quer eles sejam culpados ou não.

       — Eles são culpados.

       — Se eles forem culpados, e eu vou descobrir rapidamente caso o senhor me conceda total autoridade para investigar o caso, então a Vontade de Deus será que eles morram lentamente, que o senhor declare o marido de Fazulia como o próximo khan, e ele não é muito melhor do que Mahmud. Se eles não forem culpados, então deixe Hakim continuar como herdeiro, desde que ela fique. E se acontecer, mais uma vez pela Vontade de Deus, que ela fique viúva, ela poderia até desposar aquele que o senhor escolhesse, Alteza, para manter Hakim como seu herdeiro. Até um soviético, caso ele escape da armadilha, não?

       Pela primeira vez naquele dia, o khan sorriu. Naquela manhã, quando Armstrong e o coronel Hashemi Fazir tinham chegado para prender Petr Oleg Mzytryk, eles tinham fingido estar devidamente preocupados com a saúde do khan da mesma forma que ele fingira estar mais doente do que se sentia. Tinha mantido a voz fraca e hesitante e muito baixa, de modo que os dois tiveram que se inclinar para ouvi-lo.

       — Petr Oleg vem aqui hoje. Eu ia encontrá-lo, mas pedi que ele viesse até aqui por causa da minha... porque estou doente. Mandei um recado para que ele viesse aqui e ele deverá estar na fronteira ao entardecer. Em Julfa. Se vocês forem imediatamente, terão muito tempo... ele passa pela fronteira num pequeno helicóptero soviético e pousa numa estrada secundária próxima da estrada Julfa-Tabriz, onde seu carro o espera... não há como não encontrar o desvio, aquele é o único... alguns quilômetros ao norte da cidade... é a única estrada secundária, um lugar isolado, pouco mais do que uma trilha. O modo como vocês vão apanhá-lo é problema de vocês e... e como eu não posso estar presente, vocês me darão uma fita da... da investigação?

       — Sim, Alteza — dissera Hashemi. — Como o senhor nos aconselharia a apanhá-lo?

       — Interrompa a estrada nos dois lados do desvio com dois caminhões velhos, bem carregados... de lenha ou engradados de peixe... a estrada é estreita e sinuosa e cheia de buracos e tem muito tráfego, então uma emboscada deve ser fácil. Mas... mas tenham cuidado, sempre há alguns carros com membros do Tuden para protegê-lo, ele é um homem esperto e corajoso... há uma cápsula de veneno na sua lapela.

       — Em qual delas?

       — Não sei... Eu não sei. Ele vai pousar na altura do pôr-do-sol. Vocês não podem errar o desvio, é o único...

       Abdullah Khan suspirou, pensativo. Muitas vezes ele fora apanhado pelo mesmo helicóptero para ir para a fazenda em Tbilisi. Tinha passado temporadas muito boas lá, comida abundante, mulheres jovens e atenciosas, de lábios cheios e loucas para agradar. E depois, se estivesse com sorte, Vertinskya, a bruxa, para outros divertimentos. Ele viu Ahmed observando-o.

       — Eu espero que Petr escape da armadilha. Sim, seria bom que ele... que ele a tivesse. — O cansaço o dominou. — Eu vou dormir agora. Mande de volta o meu guarda e depois que eu tiver comido esta noite, reúna a minha 'devotada' família aqui e faremos conforme você sugeriu. — O seu sorriso era cínico. — É bom não ter ilusões.

       — Sim, Alteza. — Ahmed levantou-se. O khan invejou-lhe a agilidade e o corpo forte.

       — Espere, há mais alguma coisa. — O khan pensou um momento, um processo estranhamente cansativo. — Ah, sim, onde está o Ruivo da Faca?

       — Está com Cimtarga perto da fronteira, Alteza. Cimtarga disse que eles poderiam ficar alguns dias fora. Eles partiram na terça-feira à noite.

       — Terça-feira? Que dia é hoje?

       — Sábado, Alteza — respondeu Ahmed, disfarçando a preocupação.

       — Ah, sim, sábado. — Outra onda de cansaço. Sentia uma sensação estranha no rosto e ergueu a mão para esfregá-lo, mas achou demais o esforço. — Ahmed, descubra onde ele está. Se alguma coisa acontecer... se eu tiver um outro ataque e... bem, providencie para que eu seja levado para Teerã, para o Hospital Internacional, imediatamente. Imediatamente. Entendido?

       — Sim, Alteza.

       — Descubra onde ele está e... e nos próximos dias mantenha-o por perto.. domine Cimtarga. Mantenha o da faca por perto.

       — Sim, Alteza.

       Quando o guarda retornou ao quarto, o khan fechou os olhos e se sentiu afundando nas profundezas.

       — Não há nenhum outro Deus além de Deus.. —murmurou, com muito medo.

        

       PERTO DA FRONTEIRA AO NORTE, A LESTE DE JULFA: 18:05H. Era quase hora do pôr-do-sol e o 212 de Erikki estava sob um alpendre rude, construído apressadamente, com mais de trinta centímetros de neve no telhado por causa da tempestade da véspera, e ele sabia que muito mais tempo de exposição numa temperatura abaixo de zero arruinaria o aparelho.

       — O senhor não pode me dar cobertores ou palha ou alguma coisa para manter o aparelho aquecido? — perguntara ao xeque Bayazid assim que eles voltaram de Rezaiyeh com o corpo da velha, a chefe, há dois dias. — O helicóptero precisa de calor.

       — Nós não temos o suficiente nem para os vivos.

       — Se ele congelar, não vai funcionar — retrucara, aborrecido pelo xeque não ter permitido que ele partisse imediatamente para Tabriz, que ficava a menos de cem quilômetros de distância, preocupadíssimo com Azadeh e imaginando o que teria acontecido com Ross e Gueng. Se ele não funcionar, como sairemos dessas montanhas?

       De má vontade, o xeque ordenara ao seu povo que construísse o alpendre e lhe dera algumas peles de carneiro e cabra que ele usara onde achava que seriam mais necessárias. Logo depois do amanhecer, na véspera, ele tentara partir. Para seu total desespero, Bayazid tinha-lhe dito que ele e o 212 seriam usados para conseguir um resgate.

       — O senhor pode ser paciente, capitão, e andar livremente pela aldeia com um guarda calmo, para cuidar do seu avião — dissera Bayazid secamente — ou o senhor pode ser impaciente e agressivo e então será amarrado e amordaçado como se fosse um animal selvagem. Eu não estou procurando confusão, capitão, não quero nem confusão nem discussão. Nós queremos um resgate de Abdullah Khan.

       — Mas eu já disse que ele me odeia e que não vai contribuir para o meu res..

       — Se ele disser que não, nós vamos procurar o resgate em outro lugar. Com a sua companhia em Teerã ou junto ao seu governo. Talvez com os seus patrões soviéticos. Enquanto isso, o senhor permanece aqui como hóspede, comendo como nós comemos, dormindo como nós dormimos, partilhando igualmente de tudo. Ou amarrado, amordaçado e com fome. Seja como for, o senhor fica até o resgate ser pago.

       — Mas isto pode levar meses e..

       — Insha'Allah!

       Durante todo o dia anterior a metade da noite, Erikki tentara pensar numa maneira de escapar da armadilha. Eles tinham-lhe tirado a granada, mas deixaram a faca. Mas seus guardas eram atentos e constantes. Com toda aquela neve, ser-lhe-ia impossível descer até o vale com botas de pilotar e sem equipamento de inverno, e mesmo que conseguisse, estava em território hostil. Tabriz ficava a menos de trinta minutos de helicóptero, mas e a pé?

       — Mais neve esta noite, capitão.

       Erikki olhou em volta. Bayazid estava a um passo de distância e ele não o ouvira se aproximar

       — Sim, e mais uns dias com este tempo e o meu pássaro não vai mais voar A bateria vai arriar e a maior parte dos instrumentos vai se estragar. Tenho que ligar o motor para carregar a bateria e esquentar o motor, tenho que fazer isso. Quem vai pagar um resgate para tirar um 212 enguiçado destas montanhas?

       Bayazid pensou por um momento.

      — Por quanto tempo o motor deve ser ligado?

       — Dez minutos por dia. Isso é o mínimo.

       — Está bem. Assim que estiver escuro, você pode fazer isso, todos os dias, mas primeiro me peça. Nós o ajudaremos a arrastá-lo, aliás, é ele ou ela?

        Erikki franziu a testa.

       — Eu não sei. Naves são sempre tratadas no feminino, e esta é uma nave do céu. — E deu de ombros.

       — Muito bem. Nós o ajudaremos a arrastá-lo para fora e você pode ligá-lo e enquanto o motor estiver esquentando, haverá cinco armas apontadas a curta distância, para o caso de você ficar tentado.

       Erikki riu.

       — Então eu não ficarei tentado.

       — Ótimo. — Bayazid sorriu. Ele era um homem bonito, apesar dos dentes estragados.

       — Quando é que o senhor vai mandar um recado para o khan?

       — Já mandei. Com toda esta neve, leva-se um dia para descer até a estrada, mesmo a cavalo, mas depois não leva muito tempo para chegar a Tabriz. Se o khan responder favorável e imediatamente, talvez a gente tenha uma resposta amanhã, talvez depois, dependendo da neve.

       — Talvez nunca. Quanto tempo o senhor vai esperar?

       — Todo o povo lá do Extremo Norte é assim tão impaciente? Erikki fechou a cara.

       — Os antigos deuses ficavam muito impacientes quando ficavam presos contra a vontade, e eles nos transmitiram isso. É ruim ficar preso contra a vontade, muito ruim.

       — Nós somos um povo pobre, em guerra. Precisamos aceitar o que o Único Deus nos dá. Pedir resgate é um costume antigo. — Ele sorriu levemente. — Nós aprendemos com Saladino a ser cavalheirescos com os nossos prisioneiros, ao contrário de muitos cristãos. Os cristãos não são conhecidos por seu cavalheirismo. Nós somos tra... — Seus ouvidos eram mais aguçados do que os de Erikki, bem como os seus olhos. — Olhe lá embaixo no vale!

       Agora Erikki também escutou o motor. Ele levou um momento para perceber o helicóptero camuflado voando baixo e se aproximando, vindo do norte.

       — Um Kajychokiv 16. Um aparelho de combate soviético... o que ele está fazendo?

       — Está indo para Julfa. — O xeque cuspiu no chão. — Aqueles filhos de um cão vão e vêm à vontade.

       — Costumam entrar muitos atualmente?

       — Não muitos. Mas um já é o bastante.

      

       PERTO DO DESVIO DE JULFA: 18:15H. A sinuosa estrada secundária através da floresta estava coberta de neve. Havia umas poucas marcas de caminhão e de carroça além das feitas pelo velho Chevrolet que estava estacionado debaixo de uns pinheiros perto do descampado, a alguns metros da estrada principal. Pelo binóculo, Armstrong e Hashemi podiam ver dois homens usando casacos grossos e luvas sentados no banco da frente, com as janelas abertas, ouvindo atentamente.

     — Ele não tem muito tempo — resmungou Armstrong.

       — Talvez ele não venha, afinal.

       Eles estavam vigiando, há meia hora, de uma pequena elevação no meio das árvores, que dava para a área de pouso. O carro deles e o resto dos homens de Hashemi tinham estacionado discretamente na estrada principal, abaixo e atrás de onde eles se encontravam. Estava tudo muito silencioso, havia pouco vento. Alguns pássaros passaram por cima deles, crocitando lamentosamente.

       — Aleluia! — murmurou Armstrong, com sua excitação aumentando. Um dos homens tinha aberto a porta lateral e saíra. Agora ele olhava em direção ao norte. O motorista ligou o motor. Então, lá de cima, eles escutaram o barulho do helicóptero se aproximando, viram-no passar pela elevação e descer no vale, beirando o topo das árvores, com o motor funcionando bem. Ele fez um pouso perfeito, levantando uma nuvem de neve. Podiam ver o piloto e um outro homem ao lado dele. O passageiro, um homem pequeno saltou e foi se encontrar com o outro homem. Armstrong praguejou.

       — Você o reconhece, Robert?

       — Não, aquele não é Suslev. Não é Petr Oleg Mzytryk. Tenho certeza.

       — Armstrong estava imensamente desapontado.

       — Cirurgia plástica?

       — Não, nada disso. Ele é um cara grande, corpulento, da minha altura.

       — Eles o observaram encontrar-se com o outro e entregar-lhe alguma coisa.

       — Aquilo era uma carta? O que foi que ele entregou, Robert?

       — Parecia um embrulho, podia ser uma carta. — Armstrong resmungou outro palavrão, concentrando-se nos lábios deles.

       — O que eles estão dizendo? — Hashemi sabia que Armstrong podia ler lábios.

       — Eu não sei. Não é nem farsi nem inglês.

       Hashemi praguejou e tornou a focalizar o seu binóculo, que já estava perfeitamente focalizado.

       — Parecia ser uma carta. — O homem disse mais algumas palavras e depois voltou para o helicóptero. Imediatamente o piloto acelerou e decolou. O outro homem então voltou para o Chevrolet.

       — E agora? — Hashemi perguntou irritado.

       Armstrong observou o homem caminhando em direção ao carro.

       — Duas opções: interceptar o carro conforme o planejado e descobrir o que foi entregue, desde que conseguíssemos neutralizar aqueles dois filhos da mãe antes deles destruírem o material... mas isso mostraria que nós sabemos o ponto de chegada do Senhor Importante, ou simplesmente seguir o carro, presumindo que seja uma mensagem para o khan marcando uma nova data. — Ele já tinha vencido a decepção pelo fato de Mzytryk ter evitado a armadilha. É preciso ter sorte no nosso jogo, lembrou a si mesmo. Não importa, da próxima vez nós vamos pegá-lo e ele vai nos levar até o traidor, até o quarto, quinto e sexto homem e eu vou mijar nos seus túmulos e no de Suslev, ou seja lá como Petr Oleg Mzytryk chame a si mesmo, se tiver a sorte do meu lado. — Nós não precisamos nem segui-los, vão direto para o khan.

       — Por quê?

       — Porque ele é uma peça vital no Azerbeijão, seja a favor ou contra os soviéticos, então eles vão querer saber em primeira mão o estado do coração dele, e quem foi que ele escolheu como regente até o bebê alcançar a maioridade. O poder não vai junto com o título, com as terras e com a riqueza?

       — E com as contas numeradas na Suíça. Mais uma razão para vir imediatamente.

       — Sim, mas não se esqueça de que algo sério pode ter acontecido em Tbilisi para explicar a demora. Os soviéticos estão tão ansiosos e tão preocupados quanto nós a respeito do Irã.

       Eles viram o homem entrar no Chevrolet e começar a falar abruptamente.

       O motorista engrenou e virou em direção à estrada principal.

       — Vamos voltar para o nosso carro.

       A descida foi fácil, o tráfego estava pesado na estrada Julfa—Tabriz, lá embaixo, com alguns faróis já acesos e sem nenhuma maneira da sua presa escapar da emboscada caso eles decidissem levá-la avante.

       — Hashemi, outra possibilidade é que Mzytryk tenha descoberto na última hora que foi traído pelo filho e que tenha mandado um aviso para o khan, cujo disfarce também teria sido descoberto. Não se esqueça que nós ainda não descobrimos o que aconteceu com Rakoczy desde que o seu finado amigo general Janan o deixou escapar.

       — Aquele cão nunca faria isso por sua própria conta — Hashemi disse isso com um esgar, recordando a sua imensa alegria ao tocar no botão e ver a explosão do carro-bomba esmagar aquele inimigo junto com a sua casa, o seu futuro e o seu passado. — Isso deve ter sido ordenado por Abrim Pahmudi.

       — Por quê?

       Hashemi olhou para Armstrong mas não percebeu nenhuma astúcia oculta nele. Você conhece segredos demais, Robert, sabe a respeito das fitas de Rakoczy, e, pior ainda, sabe da existência do meu Grupo Quatro e da minha ajuda para Janan entrar no inferno, onde o velho khan em breve irá encontrá-lo, para onde Talbot deve ir dentro de poucos dias e você, meu velho amigo, quando eu quiser. Será que eu deveria contar-lhe que Pahmudi ordenou que Talbot fosse punido pelos seus crimes contra o Irã? Será que eu deveria contar-lhe que estou feliz em obedecer? Durante anos eu quis que Talbot desaparecesse, mas nunca ousei virar-me contra ele sozinho. Agora é Pahmudi o culpado, que Deus o faça arder, e mais uma pedra será tirada do meu caminho. Ah, sim, e o próprio Pahmudi na próxima semana. Mas você, Robert, você será o assassino escolhido para fazer isso, provavelmente para morrer. Pahmudi não merece nenhum dos meus verdadeiros assassinos.

       Ele riu consigo mesmo, descendo a colina, sem sentir o frio, sem se preocupar pelo fato de Mzytryk não ter aparecido. Eu tenho coisas mais importantes com que me preocupar, estava pensando. Eu tenho que proteger o meu Grupo Quatro de assassinos a qualquer custo. Eles são a minha garantia de um paraíso na terra com poder maior do que o do próprio Khomeini.

       — Pahmudi é o único que poderia ter ordenado a libertação de Rakoczy — disse. — Em breve eu vou descobrir o porquê e onde ele está. Ou ele está na embaixada soviética, num esconderijo soviético ou num calabouço da Savama.

       — Ou fora do país, numa hora dessas.

       — Então ele está morto. A KGB não tolera traidores. — Hashemi sorriu sardonicamente. — Qual é a sua aposta?

       Por um momento, Armstrong não respondeu, espantado com a pergunta pouco comum de Hashemi, que não aprovava apostas, assim como ele. Agora. A última vez que ele tinha apostado fora em Hong Kong em 1963, com dinheiro de suborno que fora colocado em sua gaveta quando ele era um superintendente da CID. Quarenta mil dólares de Hong Kong — cerca de sete mil dólares americanos então. Contra todos os seus princípios, ele tirara o heung yau, a graxa perfumada, como era chamado lá, da gaveta e, nas corridas daquela tarde, apostara tudo num cavalo chamado Pilot Fish, numa tentativa doida de recuperar as suas perdas no jogo — cavalos e mercado de ações.

       Este fora o primeiro dinheiro de suborno que ele tirara em 18 anos embora sempre houvesse dinheiro disponível em abundância. Naquela tarde, ele ganhara uma bolada e devolvera o dinheiro antes que o sargento da polícia notasse que ele fora tocado — e ainda sobrara mais do que o suficiente para as suas dívidas. Mesmo assim, ele tinha ficado tão desgostoso consigo mesmo e tão apavorado com a sua estupidez, que nunca mais jogara, nem tocara em heung yau de novo, embora sempre houvesse oportunidade.

       — Você é um idiota, Robert — alguns dos seus colegas costumavam dizer —, não há nenhum mal num dinheirinho extra para a aposentadoria.

       — Aposentadoria? Que aposentadoria? Cristo, por vinte anos um policial em Hong Kong andando direito, 11 anos aqui, com a mesma honestidade, ajudando esses idiotas sanguinários, e foi tudo para o brejo. Graças a Deus eu só tenho a mim com que me preocupar, nem mulher, nem filhos, nem parentes próximos, só eu. Ainda assim, se eu pegar o maldito Suslev, que vai me levar até um dos nossos mais importantes traidores, terá valido a pena.

       — Como você, eu não sou homem de apostas, Hashemi, mas se fosse... — parou e ofereceu-lhe um cigarro e eles acenderam os cigarros, satisfeitos. A fumaça se misturou com o ar frio e ficou bem visível na luz do entardecer.

       — Se eu fosse, diria que Rakoczy foi o pishkesh do seu Pahmudi para algum chefão soviético, só como medida de precaução.

       Hashemi riu.

       — Você está se tornando mais iraniano a cada dia que passa. Eu vou ter que ser mais cuidadoso. — Eles já estavam quase no carro agora e o seu ajudante saltou para abrir a porta de trás para ele. — Nós vamos diretamente para a casa do khan, Robert.

       — E quanto ao Chevrolet?

       — Vamos mandar que outros o sigam, eu quero chegar na casa do khan primeiro. — O rosto do coronel endureceu. — Apenas para me certificar de que aquele traidor está mais do nosso lado do que do deles.

      

       NA BASE AÉREA DE KOWISS: 18:35H. Starke olhou para Gavallan inteiramente perplexo.

       — 'Turbilhão' dentro de seis dias?

       — Temo que sim, Duke. — Gavallan desabotoou o casaco e colocou o chapéu no cabide do hall. — Quis contar-lhe pessoalmente. Sinto muito, mas tem que ser. — Os dois homens estavam no bangalô de Starke e ele tinha colocado Freddy Ayre do lado de fora para ter certeza de que ninguém ouviria a conversa. — Eu soube hoje de manhã que todos os nossos aparelhos vão ser impedidos de voar, aguardando a nacionalização. Nós temos seis dias para planejar e executar o Turbilhão', caso o ponhamos em prática. Isso quer dizer na próxima sexta-feira. No sábado já estaremos fora do prazo.

       — Jesus. — Distraidamente, Starke abriu a jaqueta e foi até o aparador, deixando uma pequena trilha de neve e água no tapete. No fundo da gaveta de baixo estava a sua última garrafa de cerveja. Ele tirou a tampa, despejou metade num copo e entregou a Gavallan. — Saúde — disse, bebendo da garrafa, e se sentou no sofá.

       — Saúde.

       — Quem está dentro, Andy?

       — Scrag. Ainda não sei quanto ao resto dos rapazes dele, mas vou saber amanhã. Mac preparou um esquema e um plano de três fases, que está cheio de furos, mas é viável. Vamos dizer que seja viável. E quanto a você e seus rapazes?

       — Qual é o plano de Mac? Gavallan contou-lhe.

       — Você tem razão, Andy. Está cheio de furos.

       — Se você fosse tentar uma fuga, como planejaria, saindo daqui? Você tem a distância mais longa e o trajeto mais difícil.

       Starke foi até o mapa de vôo na parede e apontou para uma linha que ia de Kowiss até uma cruz no golfo, a algumas milhas da costa, indicando uma plataforma.

       — Esta plataforma chama-se Destroços e é uma das que servimos regularmente — disse, e Gavallan notou como sua voz ficara tensa. — Nós levamos cerca de vinte minutos para alcançar a costa e mais dez para ir até a plataforma. Eu esconderia combustível na praia, perto deste lugar. Acho que isso poderia ser feito sem causar muita suspeita; só há dunas de areia e nenhuma casa numa distância de muitos quilômetros, e muitos de nós costumávamos fazer piqueniques lá. Um pouso de 'emergência' para checar os mecanismos de flutuação antes de sair para o mar não faria o radar ficar muito agitado embora eles estejam ficando mais nervosos a cada dia que passa. Nós teríamos que esconder dois tambores de duzentos litros por helicóptero para atravessar o golfo e teríamos que reabastecer o aparelho no ar, manualmente.

       Já estava quase anoitecendo. Das janelas divisava-se a pista e a base da Força Aérea. O 125, com prioridade para decolar para Al Shargaz, estava estacionado no pátio, esperando pela chegada do caminhão-tanque. Faixas Verdes nervosos e atarefados o cercavam. Não era realmente necessário reabastecê-lo, mas Gavallan dissera a Johnny Hogg que solicitasse o reabastecimento para lhe dar mais tempo de falar com Starke. Os outros dois passageiros, Arberry e Dibble, enviados em licença depois da sua fuga de Tabriz, estavam apertados no meio de um carregamento completo de engradados de peças, encaixotadas apressadamente e marcadas em inglês e em farsi: PARA CONSERTO IMEDIATO E DEVOLUÇÃO A TEERÃ, e não tiveram permissão para desembarcar, nem mesmo para esticar as pernas. Nem os pilotos, exceto para checar o aparelho e supervisionar o reabastecimento quando o caminhão chegasse.

       — Você iria para o Kuwait? — perguntou Gavallan, quebrando o silêncio.

       — Claro. O Kuwait seria a melhor escolha, Andy. Nós teríamos que reabastecer o aparelho no Kuwait, depois dar um jeito de seguir pela costa até Al Shargaz. Se dependesse de mim, acho que reservaria mais combustível para um caso de necessidade. — Starke apontou para um pontinho que representava uma ilha perto da Arábia Saudita. — Aqui seria bom. É melhor ficar ao largo da costa da Arábia Saudita, não se sabe o que eles fariam. — Ele ficou olhando desanimadamente para todas as distâncias. — A ilha se chama Jellet, o Sapo, que é com o que ela se parece. Nenhuma casa, nada, mas ótima para pescar. Manuela e eu estivemos lá uma ou duas vezes quando eu estava estacionado em Bahrain. Eu guardaria combustível lá.

       Ele tirou o quepe e enxugou o suor da testa, depois tornou a colocar-lo, com o rosto mais vincado e cansado do que normalmente, pois os vôos estavam mais confusos do que normalmente, cancelados, depois marcados de novo, e cancelados outra vez, Esvandiary, mais abominável do que nunca, todo mundo tenso e irritado, nenhuma correspondência nem contato com a família há semanas, a maioria do seu pessoal, inclusive ele, com licenças e substituições atrasadas. Além disso, ainda havia o problema do pessoal e dos aparelhos que estavam chegando de Zagros Três e a questão do que fazer com o corpo do velho Effer Jordon quando este chegasse amanhã. Esta fora a primeira pergunta de Starke ao se encontrar com Gavallan nos degraus do 125.

       — Eu já tratei disso, Duke — dissera Gavallan, gravemente, com o vento gelado a dez nós. — Eu tenho permissão da ATC para o 125 voltar amanhã à tarde para apanhar o caixão. Vou mandá-lo para a Inglaterra no primeiro vôo disponível. Terrível. Verei a mulher dele assim que voltar e farei o que puder.

       — Que azar. Graças a Deus o jovem Scot está bem, não?

       — Sim, mas é terrível que alguém tenha morrido, terrível. — E se fosse o corpo de Scot e o caixão de Scot? pensou de novo Gavallan, e essa pergunta o perseguia sem parar. E se tivesse sido Scot, você aceitaria a notícia do assassinato com tanta facilidade? Não, é claro que não. Só o que você pode fazer é agradecer aos deuses dessa vez e fazer o melhor que puder, apenas fazer o melhor que puder. — Curiosamente, a ATC de Teerã e o komiteh do aeroporto ficaram tão chocados quanto nós e foram muito prestativos. Vamos conversar, eu não tenho muito tempo. Estou trazendo cartas para alguns dos rapazes e uma de Manuela. Ela está bem, Duke. Ela disse para você não se preocupar. As crianças estão bem e querem ficar no Texas. Os seus pais também estão bem; ela me pediu para lhe dizer isso assim que o encontrasse...

       Depois, Gavallan tinha lançado a bomba dos seis dias e agora a mente de Starke estava enevoada.

       — Com os aparelhos de Zagros aqui, eu terei três 212, um Alouette e três 206 mais uma quantidade de peças. Nove pilotos, incluindo Tom Lochart e Jean-Luc e 12 mecânicos. Isso é demais para um plano como 'Turbilhão', Andy.

       — Eu sei. — Gavallan olhou pela janela. O caminhão de combustível estava parando ao lado do 125 e ele viu Johnny Hogg descer a escada. — Quanto tempo vai levar para reabastecer?

       — Se Johnny não os apressar, três quartos de hora, fácil.

       — Não é muito para se fazer um plano. — disse Gavallan. Ele tornou a olhar para o mapa. — Mas nenhum tempo seria suficiente para isso. Há alguma plataforma perto desse lugar que esteja vazia, ainda fechada?

       — Dezenas. Existem dezenas que ainda estão do mesmo jeito que os grevistas as deixaram há meses atrás. Portas soldadas, loucura, não? Por quê?

       — Scrag disse que uma delas poderia ser o lugar ideal para guardar combustível e reabastecer.

       Starke franziu a testa.

       — Não na nossa área, Andy. Ele tem algumas plataformas grandes, as nossas são todas muito pequenas. Não temos nenhuma que pudesse agüentar mais de um helicóptero de cada vez, e nós não iríamos querer ficar esperando a vez. O que foi que o velho Scrag disse? Gavallan contou a ele.

       — Você acha que ele vai ver Rudi?

       — Ele disse que iria nos próximos dias. Agora, eu não posso mais esperar. Você poderia arranjar uma desculpa para ir até Bandar Delam?

       Os olhos de Starke estreitaram-se.

       — Claro. Talvez pudéssemos enviar dois dos nossos aparelhos para lá e dizer que os estamos redistribuindo, melhor ainda, dizer ao 'Pé-quente' que os estamos emprestando por uma semana. Ainda podemos conseguir algumas autorizações ocasionais, desde que aquele filho da puta esteja fora do caminho.

       Gavallan tomou um gole da cerveja, fazendo-a durar.

       — Nós não podemos mais operar no Irã. O pobre velho Jordon não podia ter morrido e eu estou tremendamente arrependido de não ter ordenado uma evacuação há semanas. Terrivelmente arrependido.

       — Você não tem culpa dele ter morrido, Andy.

       — De uma certa forma, tenho. De qualquer modo, nós temos que dar o fora. Com ou sem os aparelhos. Temos que tentar salvar o que pudermos, sem arriscar a vida do pessoal.

       — Qualquer retirada será tremendamente arriscada, Andy — A voz de Starke era gentil.

       — Eu sei. Gostaria que você perguntasse aos seus rapazes se eles tomariam parte na operação Turbilhão'.

       — Não há nenhuma maneira de retirarmos todos os helicópteros, nenhuma.

       — Eu sei, por isso eu proponho que nos concentremos apenas nos 212. — Gavallan viu Starke olhá-lo com mais interesse. — Mac concordou. Você poderia retirar três?

       Starke pensou por um momento.

       — Dois é o máximo que eu posso conseguir. Nós precisaríamos de dois pilotos, digamos com um mecânico por helicóptero para emergências e alguma ajuda extra para lidar com os tambores de reserva ou reabastecimento durante o vôo. Isso seria o mínimo. Seria arriscado, mas se tivermos sorte... — Ele assoviou desafinadamente. — Talvez pudéssemos mandar o outro 212 para o Rudi em Bandar Delam. Claro, por que não? Eu diria ao 'Pé-quente' que ele foi emprestado por dez dias. Você poderia me enviar um telex solicitando a transferência. Mas que diabo, Andy, ainda assim nós precisaríamos de três pilotos aqui e...

       O telefone interno tocou.

       — Droga — disse irritado, levantando-se para atender. — Estou tão acostumado com os telefones mudos que cada vez que um toca eu levo um susto. Alô, aqui é Starke. Sim?

       Gavallan observou Starke, alto, magro e muito forte. Eu gostaria de ser assim tão forte, pensou.

       — Ah, obrigado — Starke estava dizendo. — Sim, claro, obrigado, sargento. Quem?... Claro, ponha-o na linha. — Gavallan notou a mudança na voz dele e prestou mais atenção. — Esta noite... Não, não podemos, agora não... NÃO! Não podemos! Agora não, estamos ocupados. — Desligou o telefone e resmungou um "filho da puta". — 'Pé-quente' queria falar conosco. "Quero vocês dois no meu escritório imediatamente!" Veado! — Tomou um gole de cerveja e se sentiu melhor. — Era também Wazari lá da torre comunicando que o último dos nossos aparelhos acabou de pousar.

       — Quem?

       — Pop Kelly, ele está trabalhando na plataforma Destroços, transportando alguns operários de uma plataforma para outra. Eles estão com falta de pessoal, exceto os komitehs que estão mais preocupados com encontros para rezar e com tribunais ilegais do que com a extração de petróleo. — Ele estremeceu. — Vou-lhe dizer uma coisa, Andy, os komitehs são patrocinados pelo demônio. — Gavallan notou o termo mas não disse nada e Starke prosseguiu. — Eles são o inferno.

       — Sim. Azadeh quase foi assassinada — apedrejada.

       — O quê?

       Gavallan contou-lhe sobre a aldeia e a fuga dela de lá.

       — Nós ainda não sabemos onde está o velho Erikki. Eu a vi antes de partir e ela estava... apalermada é a palavra certa, ainda não tinha se recuperado do choque.

      O rosto de Starke ficou ainda mais severo. Com esforço, ele abafou a raiva.

       — Digamos que possamos retirar os 212, e os rapazes? Nós ainda temos três pilotos e talvez dez mecânicos para retirar antes da fuga, o que faremos com eles? E as peças? Nós estaríamos deixando para trás três 206 e o Alouette... e quanto aos nossos pertences, nossas contas bancárias, apartamentos em Teerã, fotografias e as coisas das crianças. Droga, não apenas nossos mas de todos os outros caras, daqueles que retiramos durante o êxodo? Se dermos o fora, tudo estará perdido, tudo.

       — A companhia reembolsará todo mundo. Eu não posso devolver os objetos, mas nós pagaremos pelas contas bancárias e cobriremos o resto. As contas, na maioria, são pequenas, uma vez que vocês guardam os seus fundos na Inglaterra e os vão retirando na medida em que precisam. Nos últimos meses, com certeza desde que os bancos entraram em greve, nós temos depositado todos os salários em Aberdeen. Nós os indenizaremos pela mobília e artigos pessoais. Eu acho que não poderíamos mesmo retirar quase nada. Os portos ainda estão fechados, as transportadoras são praticamente inexistentes, as estradas de ferro não estão funcionando, o transporte aéreo praticamente não existe. Todo mundo será indenizado.

       Starke balançou lentamente a cabeça. Ele terminou a cerveja até a última gota.

       — Mesmo que consigamos retirar os 212, você vai ter um tremendo prejuízo.

       Gavallan disse pacientemente.

       — Não. Calcule você mesmo. Cada 212 vale um milhão de dólares, cada 206 150 mil, um Alouette 500 mil. Nós temos doze 212 no Irã. Se conseguíssemos retirá-los, ficaríamos em boa situação, ainda continuaríamos no negócio, e eu poderia absorver as perdas do Irã. Por pouco. Os negócios estão crescendo e doze 212 nos manteriam trabalhando. Quaisquer peças que conseguíssemos retirar seriam um bônus extra. Poderíamos também nos concentrar apenas nas peças dos 212. Com os 212, nós podemos continuar operando.

       Ele tentou manter a confiança, mas ela estava diminuindo. Tantos obstáculos para vencer, tantas montanhas para escalar, precipícios para atravessar. Sim, mas não se esqueça de que uma viagem de dez mil léguas começa com o primeiro passo. Seja um pouquinho chinês, disse a si mesmo. Lembre-se da sua infância em Xangai e da velha babá Ah Soong e do que ela lhe contou a respeito do destino: em parte sorte, em parte carma: "O que está escrito está escrito, jovem senhor, seja bom ou ruim. Às vezes se pode rezar por um destino bom e consegui-lo, às vezes não. Mas ayeeyah, não confie demais nos deuses — os deuses são como as pessoas. Eles dormem, vão almoçar, ficam bêbados, esquecem os seus deveres, mentem, prometem e tornam a mentir. Reze o quanto quiser, mas não se fie nos deuses — só em você e na sua família e mesmo com eles, fie-se em si mesmo. Lembre-se de que os deuses não gostam das pessoas, jovem senhor, porque as pessoas os fazem lembrar deles mesmos..."

       — É claro que vamos conseguir retirar os rapazes, todos eles. Nesse meio tempo, você poderia pedir voluntários para pilotar os nossos dois aparelhos, se, se eu apertar o botão da operação 'Turbilhão'?

       Starke tornou o olhar para o mapa. Então ele disse:

       — Claro. Serei eu e Freddy ou Pop Kelly. O outro pode levar o 212 para Rudi e se juntar a ele na sua operação, eles não têm que percorrer uma distância tão grande. — E deu um sorriso amargo. — Certo?

       — Obrigado — disse Gavallan, sentindo-se melhor. — Obrigado. Você mencionou a operação 'Turbilhão' para Tom Lochart quando ele esteve aqui?

       — Claro. Ele disse para não contar com ele, Andy.

       — Oh. — A sensação agradável desapareceu. — Então é assim. Se ele ficar, não poderemos executar o plano.

       — Ele vai ter que ir, Andy, queira ou não — Starke disse cheio de piedade. — Ele está comprometido. Com ou sem Xarazade. Esta é a parte dura... com ou sem ela. Ele não pode escapar do que houve com o HBC, com Valik e Isfahan.

       Depois de um momento, Gavallan disse:

       — Acho que você tem razão. Injusto, não?

       — Sim. Tom está bem, ele vai acabar compreendendo. Mas não tenho tanta certeza quanto a Xarazade.

       — Mac e eu tentamos vê-la em Teerã. Fomos à casa dos Bakravan e batemos durante dez minutos. Não houve resposta. Mac foi até lá ontem também. Talvez eles simplesmente não estejam atendendo à porta.

       — Isto não é típico dos iranianos. — Starke tirou a jaqueta e pendurou-a no hall. — Assim que Tom chegar aqui amanhã, vou mandá-lo para Teerã se ainda houver claridade suficiente, ou no mais tardar na segunda-feira de manhã. Eu ia tratar disso com Mac hoje à noite durante a nossa comunicação diária.

       — Boa idéia. — Gavallan passou para o problema seguinte. — Também não sei o que fazer com relação a Erikki. Estive com Talbot e ele disse que veria o que pode fazer, depois fui até a embaixada da Finlândia e falei com um primeiro-secretário chamado Tollonen e também contei a ele. Ele pareceu muito preocupado, e sem saber o que fazer. "Este é um país selvagem e a fronteira é tão instável quanto a rebelião, insurreição ou luta que está acontecendo lá.

       Se a KGB estiver envolvida..." Ele deixou isso solto no ar, Duke, assim mesmo: "Se a KGB estiver envolvida..."

       — E quanto a Azadeh, o pai dela, o khan, não pode ajudar?

       — Parece que todos tiveram uma briga danada. Ela estava muito abalada. Eu pedi a ela para esquecer os seus documentos iranianos e embarcar no 125 e esperar por Erikki em Al Shargaz, mas ela recusou terminantemente. Não vai arredar pé daqui até o Erikki aparecer. Eu mostrei a ela que o khan faz as suas próprias leis. Ele pode alcançá-la aqui em Teerã e raptá-la facilmente, se quiser. Ela disse: "Insha'Allah."

       — Erikki está bem. Eu aposto. — Starke estava confiante. — Os seus deuses ancestrais vão protegê-lo.

       — Espero que sim. — Gavallan não tinha tirado o casaco. Mesmo assim, ainda estava com frio. Pela janela, ele podia ver que o reabastecimento ainda não terminara. — Que tal uma xícara de café antes de partir?

       — Claro. — Starke foi até a cozinha. Sobre a pia, havia um espelho e sobre o fogão em frente, uma velha tapeçaria emoldurada que uma amiga de Falls Church dera a Manuela de presente de casamento. PÉSSIMA COMIDA CASEIRA. Ele sorriu, lembrando-se de como eles tinham rido ao recebê-la, depois notou o reflexo de Gavallan no espelho, olhando para o mapa. Devo estar louco, pensou, voltando a se preocupar com os seis dias e com os dois helicópteros. Como é que vamos conseguir limpar a base e ainda nos manter inteiros, porque de um jeito ou de outro Andy está com a razão, nós estamos acabados aqui. Devo estar louco para concordar em participar da operação. Mas que diabo, você não pode pedir a um dos seus rapazes para ser voluntário se você mesmo não for. Sim, mas...

       Houve uma batida na porta, que se abriu em seguida. Freddy Ayre disse baixinho:

       — 'Pé-quente' está vindo para cá com um Faixa Verde.

       — Entre, Freddy, e feche a porta — disse Starke. Eles esperaram em silêncio. Houve uma batida imperiosa. Ele abriu a porta e viu o sorriso arrogante de Esvandiary, reconhecendo instantaneamente o jovem Faixa Verde como sendo um dos homens do mulá Hussein e também um membro do komiteh do seu interrogatório.

       — Salaam — disse educadamente.

       — Salaam, aga — disse o Faixa Verde, com um sorriso tímido. Ele usava óculos de lentes grossas e rachadas, roupas puídas e um M16.

       Por um momento, a mente de Starke falhou e ele se ouviu dizendo:

       — Sr. Gavallan, acho que o senhor conhece 'Pé-quente'.

       — O meu nome é Esvandiary. Sr. Esvandiary! — O homem disse, zangado. — Quantos vezes eu vou ter que lhe dizer isso? Gavallan, seria bom para a sua operação livrar-se deste homem antes que o expulsemos como indesejável.

       Gavallan enrubesceu com a grosseria do outro.

       — Agora, espere um minuto, o capitão Starke é o melhor capi...

       — Você é 'Pé-quente' e também um filho da puta — explodiu Starke, brandindo o punho, subitamente tão perigoso que Ayre e Gavallan ficaram apavorados, Esvandiary recuou um passo e o jovem Faixa Verde abriu a boca. — Você sempre foi 'Pé-quente' e eu o chamaria de Esvandiary ou de qualquer outro maldito nome que você quisesse se não fosse pelo que você fez com o capitão Ayre. Você é um filho da puta e merece uma lição e vai levar uma muito em breve!

       — Eu vou levá-lo diante do komiteh aman..

        — Você é um covarde comedor de merda, portanto vá tomar no cú. — Starke virou-se insolentemente para o Faixa Verde que ainda estava olhando para ele de boca aberta e, sem fazer uma pausa, mudou para farsi, com a voz agora educada e respeitosa. — Excelência, eu disse a este cão — ele fez um sinal grosseiro com o polegar na direção de Esvandiary — que ele é um comedor de merda, um covarde, que precisa de homens armados para protegê-lo enquanto ele manda que outros homens surrem e ameacem membros desarmados e pacíficos da minha tribo, contra a lei, que não...

       Sufocado de raiva, Esvandiary tentou interromper, mas Starke não deixou.

       — ... que não quer me enfrentar como homem, com faca, espada, revólver ou punhos, de acordo com o costume entre os beduínos, para evitar um duelo de sangue, e também de acordo com o meu costume.

       — Duelo de sangue? Você enlouqueceu! Em nome de Deus, que duelo de sangue? Duelos de sangue são contra a lei... — Esvandiary gritou e continuou a discussão, com Gavallan e Ayre assistindo sem poder fazer nada, sem entender farsi e completamente atônitos pela explosão de Starke.

       Mas o jovem Faixa Verde não deu ouvidos a Esvandiary, depois levantou a mão, ainda maravilhado com Starke e sua sabedoria e nem um pouco invejoso.

       — Por favor, Excelência Esvandiary — disse, com os olhos aumentados pela grossura das lentes velhas e rachadas, e quando se fez silêncio, ele disse a Starke: — O senhor reivindica o antigo direito de um duelo de sangue contra este homem?

       Starke podia sentir o coração batendo e ouviu sua voz responder com firmeza:

       — Sim — sabendo que era um jogo perigoso, mas que ele tinha que ar riscar. — Sim.

       — Como pode um infiel reivindicar esse direito? — disse Esvandiary, furioso. — Isso aqui não é o deserto da Arábia Saudita, as nossas leis proíbem..

       — Eu reivindico esse direito!

       — Seja como Deus quiser — disse o Faixa Verde e olhou para Esvandiary — Talvez este homem não seja um infiel, não verdadeiramente. Este homem pode reivindicar o que quiser, Excelência.

       — Você está louco? É claro que ele é um infiel e você não sabe que esses malditos duelos são contra a lei? Seu idiota, isso é contra a lei, é..

       — O senhor não é um mulá! — disse o rapaz, zangado. — O senhor não é um mulá para dizer o que é contra a lei! Cale a boca! Eu não sou nenhum camponês analfabeto, eu sei ler e escrever e sou um membro do komiteh para manter a paz aqui e agora o senhor está ameaçando esta paz. — Ele olhou para Esvandiary, que mais uma vez recuou. — Eu vou perguntar ao komiteh e ao mulá Hussein — ele disse para Starke. — Há pouca chance deles concordarem, mas... seja como Deus quiser. Eu concordo que a lei é a lei e que um homem não precisa de outros homens armados para surrar homens inocentes contra a lei, nem mesmo para castigar o mal, por pior que seja, apenas da força de Deus. E se virou para sair

       — Um momento, aga — disse Starke. E estendeu a mão e apanhou um casaco de reserva que estava pendurado numa cabine ao lado da porta aberta.

       — Tome — disse, oferecendo o casaco —, por favor, aceite este pequeno presente.

       — Eu não poderia — disse o rapaz, com os olhos arregalados e cheios de desejo.

       — Por favor, Excelência, é tão insignificante que nem merece agradecimentos.

       Esvandiary começou a dizer alguma coisa mas parou quando o rapaz olhou para ele, depois este tornou a dirigir a atenção para Starke.

       — Eu não poderia aceitar. É tão valioso que não poderia aceitá-lo de Sua Excelência.

       — Por favor — Starke disse pacientemente, continuando com a formalidade, depois segurou o casaco para o rapaz vestir.

       — Bem, se o senhor insiste... — disse o rapaz, fingindo relutância. Ele entregou o M16 a Ayre enquanto vestia o casaco, os outros sem saber direito o que estava acontecendo, exceto Esvandiary, que olhava e esperava, jurando vingança. — É maravilhoso — disse o rapaz, fechando o zíper, sentindo-se aquecido pela primeira vez em muitos meses. Nunca na sua vida ele tivera um casaco parecido. — Obrigado, aga. — Ele viu o olhar no rosto de Esvandiary e seu desprezo por ele aumentou. Ele não estava apenas aceitando pishkesh como era o seu direito? — Eu vou tentar convencer o komiteh a conceder-lhe o direito que Vossa Excelência solicita — ele disse, e depois saiu satisfeito.

       Imediatamente, Starke virou-se para Esvandiary.

       — Agora, que diabo você quer?

       — Há muitas licenças e vistos de permanência de pilotos vencidos.

       — Não há nenhuma licença de pilotos americanos ou britânicos vencida, só de iranianos, e elas são automáticas se as outras estiverem em ordem! É claro que estão vencidas! Os seus escritórios não estão fechados há meses? Deixe de ser imbecil!

       Esvandiary ficou rubro e assim que começou a responder, Starke virou-lhe as costas e olhou diretamente para Gavallan pela primeira vez.

       — É evidente que não se pode mais operar aqui, sr. Gavallan. O senhor mesmo viu, nós estamos sendo impedidos, Freddy foi espancado, nós estamos atados e não há jeito de se trabalhar com toda essa confusão. Eu acho que o senhor deveria fechar a base por uns dois meses. Imediatamente!

       Gavallan, de repente, compreendeu.

       — Eu concordo — disse e pegou a dica. Starke suspirou de alívio, saiu de perto e sentou-se com uma raiva fingida, com o coração disparado. — Eu vou fechar a base imediatamente. Vamos mandar todos os nossos aparelhos e o nosso pessoal para outro lugar. Freddy, pegue cinco homens com licenças vencidas e embarque-os no 125 imediatamente com toda a sua bagagem, agora mesmo e...

       — O senhor não pode fechar a base — gritou Esvandiary. Nem pode...

       — Está fechada, por Deus — disse Gavallan, fingindo um ataque de raiva.

        — São os meus aviões e os meus homens e nós não vamos nos submeter a todo esse aborrecimento e espancamento. Freddy, quem está com licenças vencidas?

       Ayre começou a dar nomes e Esvandiary ficou em estado de choque. Fechar a base não lhe convinha de jeito nenhum. O ministro Ali Kia não estaria aqui na quinta-feira e ele não lhe ofereceria nesta ocasião um extraordinário pishkesh'! Se a base fosse fechada, isso arruinaria os seus planos.

       — O senhor não pode tirar os nossos helicópteros desta área sem a minha aprovação — gritou. — Eles são propriedade iraniana!

       — Eles são propriedade da sociedade mista, caso sejam pagos — Gavallan gritou de volta, com um ódio ameaçador. — Eu vou me queixar às autoridades de que o senhor está interferindo com as ordens do imã de fazer a produção voltar ao normal. O senhor está! O...

       — O senhor está proibido de fechar. Eu farei o komiteh colocar Starke na cadeia por motim se...

       — Conversa mole! Starke, eu estou ordenando que você feche a base. 'Pé-quente', você parece esquecer que nós somos bem relacionados. Eu vou me queixar diretamente com o ministro Ali Kia. Ele faz parte do nosso conselho agora e vai cuidar de você e da IranOil!

       Esvandiary empalideceu.

       — O ministro Kia está no... no... no conselho?

       — Sim, sim, está. — Por um segundo, Gavallan ficou sem saber o que dizer. Ele tinha usado o nome de Kia porque era o único que conhecia no atual governo e estava estarrecido pelo impacto que isso causara em Esvandiary. Mas se aproveitou logo da vantagem. — O meu caro amigo Ali Kia vai cuidar de tudo isso! E de você também. Você é um traidor do Irã! Freddy, coloque cinco homens a bordo do 125 agora mesmo! E Starke, mande todos os aparelhos que temos para Bandar Delam assim que clarear. Assim que clarear!

       — Sim senhor!

       — Espere — disse Esvandiary, vendo o seu plano em ruínas. — Não há necessidade de fechar a base, sr. Gavallan. Pode ter havido algum mal-entendido, principalmente por causa de Petrofi e daquele homem, Zataki. Eu não fui responsável por aquele espancamento, não fui eu! — E fez força para parecer razoável, mas por dentro queria gritar de raiva e ver todos eles na cadeia, açoitados e implorando uma piedade que nunca teriam. — Não há necessidade de fechar a base, sr. Gavallan. Os vôos podem normalizar-se.

       — Está fechada — disse Gavallan, autoritariamente e olhou para Starke pedindo ajuda. — Por mais que eu seja contra isso.

       — Sim senhor. O senhor tem razão. — Starke foi muito respeitoso. — É claro que o senhor pode fechar a base. Nós podemos redistribuir os helicópteros ou mantê-los na reserva. Bandar Delam precisa imediatamente de um 212 para... para o contrato da Irã-Toda. Talvez pudéssemos enviar-lhe um dos nossos e fechar o resto.

       Esvandiary disse rapidamente:

       — Sr. Gavallan, o trabalho está voltando ao normal rapidamente. A revolução foi bem-sucedida e já terminou, o imã está no poder. Os komitehs... os komitehs desaparecerão em breve. Há os contratos da Guerney para cumprir, haverá necessidade do dobro de 212. Quanto à renovação de licenças vencidas, Insha'Allah, nós esperaremos trinta dias. Não há necessidade de interromper as operações. Não há necessidade de ser precipitado, sr. Gavallan, o senhor está nesta base há muito tempo, o senhor tem um grande investimento aqui e...

       — Eu conheço o nosso investimento — Gavallan respondeu realmente com raiva, detestando aquele ar servil. — Muito bem, capitão Starke, eu vou seguir o seu conselho e por Deus, é melhor que o senhor esteja com a razão. Ponha dois homens no 125 esta noite, os substitutos estarão aqui dentro de uma semana. Mande o 212 para Bandar Delam amanhã. Ele vai ficar emprestado por quanto tempo?

       — Seis dias, senhor. Estará de volta no domingo. Gavallan disse para Esvandiary:

       — Ele voltará dependendo da situação aqui.

       — O 212 é nosso... o 212 pertence à base, sr. Gavallan — Esvandiary corrigiu-se rapidamente. — Ele está nos nossos relatórios. Terá que voltar. Quanto ao pessoal, a regra é que os pilotos e mecânicos substitutos devem chegar primeiro para ficar no lugar daqueles que vão sair de licença e...

       — Então nós vamos ter que quebrar as regras, sr. Esvandiary. Ou então eu fecho a base agora — Gavallan disse secamente e cruzou os dedos. — Starke, ponha dois homens no avião esta noite, deixe apenas um grupo reduzido aqui e embarque todo o resto do pessoal no vôo de quinta-feira, e nós os mandaremos de volta com todos os substitutos na sexta-feira, caso a situação se normalize.

       Starke viu a raiva de Esvandiary voltando, então disse rapidamente:

       — Nós não temos permissão para voar no Dia Santo, senhor. A equipe completa deve voltar no sábado de manhã. — E olhou para Esvandiary. — Você não concorda?

       Por um momento, Esvandiary pensou que iria explodir, com o ódio quase se sobrepondo à sua determinação.

       — Se você... se você pedir desculpas... pelos nomes feios e pela grosseria. Houve um longo silêncio, a porta ainda estava aberta, a sala gelada, mas

       Starke sentiu o suor escorrendo pelas suas costas enquanto decidia o que responder. Eles tinham conseguido muito — caso quisessem levar adiante a Operação Turbilhão — mas Esvandiray não era nenhum idiota e uma capitulação rápida o faria ficar desconfiado, assim como uma recusa poderia ameaçar o que eles tinham conseguido.

       — Eu não peço desculpas por nada. Mas, no futuro, eu o chamarei de sr. Esvandiary.

       Sem dizer uma palavra, Esvandiary virou as costas e saiu. Starke fechou a porta, com a camisa grudada no corpo debaixo do suéter.

       — Que diabo significa tudo isso, Duke? — perguntou Ayre zangado. — Vocês estão malucos?

       — Só um instante, Freddy. — disse Gavallan. — Duke, você acha que 'Pé-quente' vai concordar com tudo isso?

       — Eu... eu não sei. — Starke sentou-se, com os joelhos tremendo. — Jesus.

       — Se ele concordar... se ele concordar... Duke, você foi brilhante! Foi uma idéia brilhante, brilhante!

       — Você pegou a bola no ar, Andy, e fez o gol.

       — Se é que foi um gol. — Gavallan enxugou o suor da testa. Ele começou a explicar para Ayre, mas parou quando o telefone tocou.

       — Alô? Aqui é Starke... Claro, espere um momento... Andy, é a torre.

       McIver está no HF. Wazari está perguntando se você quer atender agora ou se prefere ligar para ele depois. McIver mandou dizer que tem um recado para você de um cara chamaod Avisyard.

       Na sala de controle, Gavallan apertou o botão de transmissão quase doente de preocupação, com Wazari observando-o e outro Faixa Verde que falava inglês igualmente atento.

       — Sim, capitão McIver?

       — Boa noite, sr. Gavallan, estou contente por tê-lo alcançado. — A voz de McIver soava cheia de estática e neutra. — Como o senhor está recebendo?

       — Três por cinco, capitão McIver, prossiga.

       — Acabei de receber um telex de Liz Chen. Ele diz: "Por favor, transmita ao sr. Gavallan o seguinte telex, datado de 25 de fevereiro, que acabou de chegar: 'O seu pedido foi aprovado, [assinado] Masson Avisyard'. Foi enviada uma cópia a Al Shargaz." — Fim da mensagem.

       Por um momento Gavallan não acreditou no que estava ouvindo.

       — Aprovado?

       — Sim, eu repito: "O seu pedido foi aprovado." Telex assinado por Masson Avisyard. O que devo responder?

       Gavallan teve dificuldade em evitar demonstrar sua alegria. Masson era o nome do seu amigo no escritório de registros aeronáuticos em Londres e o 'pedido' era para passar temporariamente todos os helicópteros baseados no Irã para registros britânicos.

       — Apenas comunique o recebimento, capitão McIver.

       — Nós podemos prosseguir com o plano.

       — Sim. Eu concordo. Vou partir dentro de poucos minutos, há mais alguma coisa?

       — No momento não, só rotina. Eu porei o capitão Starke a par de tudo esta noite, no horário habitual. Estou muito satisfeito com a resposta de Masson, boa viagem.

       — Obrigado, Mac. — Gavallan desligou o microfone e devolveu-o para o jovem sargento Wazari. Ele tinha notado o rosto inchado, o nariz quebrado e os dentes que estavam faltando. Mas não disse nada. O que poderia dizer? "Obrigado, sargento?"

       Wazari fez um sinal para o pátio lá embaixo onde a equipe de abastecimento tinha começado a enrolar as longas mangueiras.

       — O tanque já está cheio, s... — Ele evitou o automático 'senhor'. — Nós, ahn, nós não temos luzes de pista, então é melhor embarcar o quanto antes.

       — Obrigado. — Gavallan sentia-se leve ao caminhar em direção à escada. O HF interno começou a falar. — Aqui é o comandante da base. Chame o sr. Gavallan.

       Imediatamente Wazari ligou o botão de transmissão.

       — Sim senhor. — Nervosamente, ele entregou o microfone a Gavallan cuja cautela tinha aumentado. — É o maj... desculpe, ele agora é coronel, coronel Changiz.

       — Sim, coronel? Andrew Gavallan.

       — Os estrangeiros não têm permissão de usar o HF para mensagens em código. Quem é Masson Avisyard?

       — Um engenheiro projetista — disse Gavallan. Foi a primeira idéia que lhe ocorreu. Tome cuidado, este filho da mãe é esperto. — Eu não estava...

       — Qual foi o seu 'pedido' e quem é... — Houve uma ligeira pausa e vozes abafadas — ... quem é Liz Chen?

       — Liz Chen é a minha secretária, coronel. O meu pedido foi... — Foi o quê? Ele teve vontade de gritar, então, de repente, a resposta surgiu na sua cabeça. —... limitar os assentos a um grupo de seis filas de dois assentos de cada lado do corredor de um novo helicóptero, o X63. Os fabricantes queriam uma arrumação diferente, mas os nossos engenheiros acreditam que este grupo de seis por quatro trará mais segurança e permitirá uma saída mais rápida em caso de emergência. Também economizaria dinheiro e...

       — Sim, muito bem — o coronel interrompeu-o. — Eu repito, o HF não deve ser usado exceto com autorização prévia até que o estado de emergência tenha terminado, e de jeito nenhum em código. O seu reabastecimento está completo, o senhor está autorizado a decolar imediatamente. O pouso de amanhã para buscar o corpo do incidente de Zagros não foi aprovado. EcoTangoLimaLima pode pousar na segunda-feira entre 11 e 12 horas, dependendo de confirmação do QG, que será enviada pelo radar de Kish. Boa noite.

       — Mas nós já temos uma aprovação formal de Teerã, senhor. O meu piloto entregou-a ao chefe da pista assim que chegou.

       A voz do coronel ficou ainda mais dura:

       — A autorização de segunda-feira está sujeita a confirmação por parte do QG da Força Aérea Iraniana. QG da Força Aérea Iraniana. Esta é uma base da Força Aérea Iraniana, o senhor está sujeito ao regulamento e à disciplina da Força Aérea e agirá de acordo com ela. Entendeu?

       Depois de uma pausa, Gavallan disse:

       — Sim, senhor, eu entendi, mas nós somos uma companhia civil...

        — O senhor está no Irã, numa base da Força Aérea Iraniana e portanto sujeito aos regulamentos e à disciplina da Força Aérea. — O canal ficou mudo. Nervosamente, Wazari arrumou a sua mesa já meticulosamente arrumada.

 

DOMINGO, 25 de fevereiro

       ZAGROS — PLATAFORMA BELLISSIMA: 11:05H. Num frio terrível, Tom Lochart observava Jesper Almqvist, o especialista em perfuração, manejar o enorme gancho que agora estava suspenso por um cabo sobre o poço. Em volta deles estavam os destroços queimados da plataforma e dos trailers, o resultado do ataque terrorista, já meio enterrados na neve.

       — Pode baixar — gritou o jovem sueco. Imediatamente, o seu assistente, dentro da pequena cabine, movimentou o guincho. Lutando contra o vento, Jesper guiou, com dificuldade, o gancho para dentro do envólucro de metal do poço. O gancho levava uma carga explosiva sobre duas meias taças de metal presas em volta de um anel de borracha. Lochart podia ver o quanto os dois homens estavam cansados. Este era o décimo quarto poço que eles estavam tampando nos últimos três dias, ainda havia mais cinco para tampar, só faltavam sete horas para o pôr-do-sol e cada poço exigia duas ou três horas de trabalho em boas condições, uma vez que eles estivessem no local.

       — Condições desgraçadas — resmungou Lochart, igualmente cansado. Horas demais de vôo desde que o Faixa Verde do komiteh determinara o prazo, problemas demais: lutando para fechar todo o campo com seus 11 poços diferentes, correndo até Shiraz para apanhar Jesper, transportando pessoal para Shiraz desde o amanhecer até o anoitecer, peças para Kowiss, decidindo o que levar e o que deixar, impossível fazer tudo em tão pouco tempo. Depois a morte de Jordon e o ataque a Scot.

       — Isso aí, mantenha-o onde está! — gritou Jesper, depois correu até a cabine.

       Lochart observou-o checar o nível de profundidade e depois apertar um botão. Houve uma explosão abafada. Uma nuvem de fumaça saiu do buraco. Imediatamente, o seu assistente içou os restos do cabo enquanto Jesper voltava, fechava os canos sobre o buraco, e estava pronto.

       — A carga de explosivos junta as duas meias taças — Jesper explicara antes. — Isso força o selo de borracha de encontro ao revestimento de metal e ele está tampado, o selo dura uns dois anos. Quando você quiser abri-lo, nós voltamos e, com uma ferramenta especial, retiramos a tampa e ele fica novo. Talvez.

       Ele enxugou o rosto com a manga.

       — Vamos dar o fora, Tom! — Voltou para a cabine, desligou o interruptor elétrico principal, enfiou todas as folhas de computador numa pasta, fechou e trancou a porta.

       — E quanto a todo o equipamento?

       — Fica. A cabine é boa. Vamos subir a bordo, eu estou gelado. — Jesper dirigiu-se para o 206 que estava parado na pista. — Assim que eu voltar para Shiraz, irei à IranOil e tentarei que eles nos dêem permissão para voltar e apanhar a cabine, junto com as outras. Onze cabines são um investimento grande demais para deixar para trás, sem uso. Dependendo do tempo, elas duram um ano, trancadas. Elas são projetadas para agüentar um bocado de mau tempo, embora não um ataque. — Ele fez um gesto em direção aos destroços em volta deles. — Que coisa estúpida!

       — Sim.

       — Estúpida! Tom, você deveria ter visto os executivos da IranOil quando eu lhes contei que vocês tinham sido expulsos e que o sr. Será ia fechar o campo.

       — Jesper sorriu, louro, de olhos azuis. — Eles berraram como porcos no matadouro e juraram que não havia nenhuma ordem dos komitehs para interromper a produção.

       — Eu ainda não sei por que eles não voltaram com você para dominar estes filhos da mãe daqui.

       — Eu os convidei e eles disseram que viriam na próxima semana. Isso aqui é o Irã, eles não virão nunca. — Ele tornou a olhar para o campo. — Só este poço produz 16 mil barris por dia. — Ele se sentou no assento da esquerda ao lado de Tom. Seu assistente, um bretão taciturno, entrou atrás e fechou a porta. Lochart ligou o motor, com o aquecimento no máximo.

       — Agora, plataforma Maria, certo? Jesper pensou um momento.

       — É melhor deixá-la para o fim. A plataforma Rosa é mais importante.

       — E abafou outro bocejo. — Temos dois poços em funcionamento para tampar lá e o que está ainda sendo perfurado. Os pobres desgraçados não tiveram tempo de retirar cerca de sete mil pés de canos, então vamos ter que tampá-lo com tudo lá dentro. Um desperdício danado. — Ele fechou o cinto de segurança e se encolheu mais para perto da saída de ar quente.

       — O que acontece depois?

       — Rotina. — O rapaz riu. — Quando você quiser reabrir, nós tiramos a tampa e depois começamos a pescar o cano, peça por peça. Lento, cansativo e caro. — Mais um enorme bocejo. Ele fechou os olhos e adormeceu instantaneamente.

       Mimmo Sera estava esperando o 206 na plataforma Rosa. Havia também um 212 na pista, com o motor trabalhando, Jean-Luc nos controles, homens carregando a bagagem e subindo a bordo.

       — Buon giorno, Tom.

       — Oi, Mimmo. Como está indo? — Lochart acenou para Jean-Luc.

       — Estes são os meus últimos homens, exceto por um operário que vai ajudar Jesper. — Mimmo Será estava exausto. — Não houve tempo de recolher o cano do Três.

       — Não há problema, vamos tampá-lo como está.

       — Si. — Um sorriso cansado. — Pense em todo o dinheiro que você vai ganhar retirando-o.

       — Dois mil e seiscentos metros a... talvez nós façamos um preço especial para você — riu Jesper

       Bem-humoradamente, o outro fez um gesto expressivo, bem italiano.

       — Vou deixar vocês dois trabalhando. A que horas você quer que eu venha buscá-lo? — perguntou Lochart.

       Jesper olhou o relógio. Era quase meio-dia.

       — Venha às quatro e meia. Certo?

       — Quatro e meia em ponto. O pôr-do-sol é às 6:37h. — Lochart foi até o 212.

       Jean-Luc estava inteiramente agasalhado contra o frio, mas mesmo assim conseguia ser elegante.

       — Vou levar este lote diretamente para Shiraz. São os últimos, exceto por Mimmo e a sua tripulação.

       — Ótimo. Como estão as coisas lá embaixo?

       — Um caos. — Jean-Luc praguejou com vontade. — E sinto cheiro de desgraça, mais desgraça.

       — Você está sempre esperando alguma desgraça. A não ser quando está na cama. Não se preocupe, Jean-Luc.

       — É claro que estou preocupado. — Jean-Luc observou por um momento o aparelho sendo carregado; estava quase terminado agora, malas, mochilas, dois cachorros, dois gatos, e uma carga completa de homens esperando impacientemente. Depois tornou a virar-se, baixou a voz e disse com seriedade: — Tom, quanto antes estivermos fora do Irã, melhor.

       — Não. Zagros é um caso isolado. Eu ainda tenho esperança de que o Irã volte a funcionar. — O HBC apareceu diante dos olhos de Lochart, depois Xarazade e 'Turbilhão'. Ele não tinha contado a ninguém a respeito da operação 'Turbilhão' nem a sua conversa com Starke:

       — Vou deixar isto para você, Duke — tinha dito antes de partir. — Você pode apresentar o caso melhor do que eu. Eu sou totalmente contra.

       — Claro. É um direito seu. Mac aprovou a sua viagem para Teerã na segunda-feira.

       — Obrigado. Ele já esteve com Xarazade?

       — Não, Tom, ainda não.

       Onde ela se meteu? pensou, sentindo outro aperto no peito.

       — Vejo você na base, Jean-Luc. Faça uma boa viagem.

       — Certifique-se de que Scot e Rodrigues estejam prontos quando eu voltar. Terei que fazer uma parada rápida se quiser chegar em Al Shargaz hoje à noite. — Bateu a porta da cabine, olhou em volta e obteve autorização para subir, depois agradeceu, e voltou-se. — Vou subir. Certifique-se de que Scot suba a bordo discretamente, hein? Eu não quero ser atacado lá em cima. Eu ainda acho que Scot era o alvo deles, ninguém mais.

       Lochart balançou a cabeça e foi para o 206.

       Ele voltava de Kowiss, na véspera, quando a desgraça aconteceu. Jean-Luc tinha acabado de acordar na hora e, por acaso, estava olhando pela janela.

       — Os dois, Scot e Jordon, estavam muito perto um do outro, transportando peças, carregando o HIW — ele tinha contado a Lochart assim que este pousou. — Eu não vi os primeiros tiros, apenas ouvi, mas vi Jordon cambalear e gritar, atingido na cabeça, e Scot olhar na direção das árvores atrás do hangar. Depois Scot se curvou para ajudar Jordon. Eu já vi muitos homens atingidos por balas para saber que o pobre Effer estava morto antes mesmo de tocar o chão. Então houve mais tiros, três ou quatro, mas não era uma metralhadora, parecia mais um M16 automático. Desta vez Scot levou um tiro no ombro e caiu na neve ao lado de Jordon, meio encoberto por ele. Jordon estava entre ele e as árvores. Então as balas continuaram a chover... sobre Scot, Tom, eu tenho certeza.

       — Como você pode ter certeza, Jean-Luc?

       — Eu tenho certeza. Effer estava diretamente na linha de fogo, diretamente, e levou todos os tiros. Os atacantes não estavam atirando na base, só em Scot. Eu agarrei a minha pistola Very e saí, não vi ninguém, mas atirei na direção das árvores. Quando cheguei onde estava Scot, ele estava histérico e Jordon todo arrebentado, tinha levado uns oito tiros. Nós levamos Scot para a enfermaria. Ele está bem, Tom, foi uma ferida no ombro, eu o vi ser tratado, a ferida está limpa e a bala atravessou a carne.

       Lochart tinha ido imediatamente ver Scot no trailer que eles chamavam de enfermaria. Kevin O'Sweeney, o médico, disse:

       — Ele está bem, capitão.

       — Sim — repetiu Scot, com o rosto branco e ainda em estado de choque. — Estou bem sim, Tom.

       — Deixe-me falar com Scot por um momento, Kevin. — Quando estavam a sós, ele disse baixinho: — O que houve enquanto eu estive fora, Scot, você esteve com Nitchak Khan? Com alguém da aldeia?

       — Não, com ninguém.

       — E você não contou a ninguém o que aconteceu na praça?

       — Não, não, de jeito nenhum. Por quê, o que está havendo, Tom?

       — Jean-Luc acha que você era o alvo, não Jordon nem a base, só você.

       — Oh, Cristo! O velho Jeffer morreu por minha causa?

       Lochart recordou o desespero de Scot. Todos na base ficaram muito tristes, mas as pessoas continuaram a trabalhar freneticamente, encaixotando peças, carregando os dois 212, o 206 e o Alouette para hoje, o último dia em Zagros. A única hora animada foi o jantar — um churrasco de perna de cabrito que Jean-Luc tinha cozinhado com bastante arroz e horisht.

       — Grande churrasco, Jean-Luc — ele tinha dito.

       — Sem alho francês e a minha habilidade, isto teria gosto de carneiro inglês, Ugh!

       — O cozinheiro comprou-o na aldeia?

       — Não, foi um presente. O jovem Darius, o que fala inglês, ele nos trouxe a carcaça inteira na sexta-feira, a mulher de Nitchak mandou de presente.

       De repente, Lochart sentiu um gosto ruim na boca.

       — A mulher dele?

       — Oui. O jovem Darius disse que ela tinha caçado de manhã. Mon Dieu, eu não sabia que ela era uma caçadora, você sabia? O que foi que houve, Tom?

       — Foi um presente para quem? Jean-Luc franziu a testa.

       — Para mim e para a base... na verdade, Darius disse: "Isto aqui foi a senhora que mandou para a base e para agradecer a ajuda da França ao imã, que Deus o proteja." Por quê?

       — Por nada. — dissera Lochart, mas mais tarde tinha levado Scot para um canto. — Você estava aqui quando Darius entregou o cabrito?

       — Sim, sim, estava. Por acaso eu estava no escritório e agradeci e... — O rosto de Scot perdeu a cor. — Agora que estou pensando nisto, Darius disse quando estava saindo: "É uma sorte a senhora ter tão boa pontaria, não?" Eu acho que eu disse: sim, fantástico. Isso foi uma dica, não foi?

       — Sim. Se você juntar isto ao meu lapso, e que agora, refletindo melhor, começo a achar que foi uma armadilha proposital. Eu também fui enganado, e agora Nitchak sabe que nós dois poderíamos servir de testemunhas contra a aldeia.

       Na noite anterior e durante todo aquele dia, Lochart tinha ficado imaginando o que fazer, como tirar a si mesmo e a Scot de lá, e ainda não tinha achado uma solução.

      Distraidamente, ele subiu no 206, esperou até Jean-Luc se afastar e decolou. Agora ele voava sobre a ravina dos Camelos Quebrados. A estrada que conduzia à aldeia ainda estava enterrada debaixo de toneladas de neve trazidas pela avalanche. Eles nunca a desobstruirão, pensou. No platô montanhoso ele podia ver rebanhos de ovelhas e cabras com seus pastores. Na frente ficava a aldeia de Yazdek. Ele a contornou. A escola era uma cicatriz na terra, preta no meio da brancura. Alguns aldeões estavam na praça e olharam para cima rapidamente e depois continuaram o que estavam fazendo. Não vou sentir pena de partir, pensou. Não depois de Jordon ter sido assassinado aqui. Zagros Três nunca mais será a mesma.

       A base estava um caos, com os homens se movimentando por lá — os últimos a serem trazidos de outras plataformas e que deveriam ir para Shiraz e de lá para fora do Irã. Mecânicos exaustos xingavam enquanto continuavam a empacotar peças, empilhar caixas e bagagem para serem embarcadas para Kowiss. Antes de conseguir sair da cabine, o carro-tanque chegou com Freddy

       Ayre empoleirado no capô. Na véspera, por sugestão de Starke, Lochart trouxera Ayre e outro piloto, Claus Schwartenegger, para substituírem Scot.

       — Eu tomo conta dele agora, Tom — disse Ayre. — Você vai comer.

       — Obrigado, Freddy. Como foram as coisas?

       — Difíceis. Claus levou outro carregamento de peças para Kowiss e vai voltar a tempo de levar o último. Ao anoitecer eu vou levar o Alouette, ele está cheio até a borda e mais um pouco. Qual você quer pilotar?

       — O 212. Eu vou levar Jordon. Claus pode levar o 206. Você vai para Shiraz?

       — Sim. Nós ainda temos dez pessoas para levar para lá. Eu estava, ahn, pensando em levar cinco passageiros ao invés de quatro em duas viagens. Certo?

       — Se eles forem pequenos, sem bagagem e desde que eu não veja. Certo? Ayre riu, com o frio realçando as suas manchas roxas.

       — Eles estão tão ansiosos, acho que não estão ligando muito para bagagens. Um dos caras da plataforma Maria disse que eles ouviram tiros por perto.

       — Provavelmente um dos aldeões caçando. — O fantasma da caçadora com o seu rifle possante, aliás, de qualquer um dos kash 'kai, todos atiradores experientes, o encheu de terror. Nós estamos tão desamparados, pensou, mas disfarçou. — Faça uma boa viagem, Freddy. — E foi até a cozinha e se serviu de um pouco de horisht.

       — Aga — disse o cozinheiro, nervosamente, com os outros quatro ajudantes agrupados em volta dele. — Nós estamos com dois meses de salários atrasados. O que vai acontecer conosco e com o nosso salário?

       — Eu já lhe disse, Ali. Nós vamos levá-los de volta a Shiraz, de onde vocês vieram. Esta tarde. Nós vamos pagar os seus salários lá e assim que eu puder, vou mandar o salário do mês de aviso prévio que estamos devendo a vocês. Vocês mantenham contato através da IranOil como sempre. Quando nós voltarmos, vocês terão os seus empregos de volta.

       — Obrigado, aga. — O cozinheiro estava com eles há um ano. Ele era um homem magro, pálido, com uma úlcera de estômago. — Eu não quero mais ficar no meio destes bárbaros — disse nervosamente. — A que horas nós vamos?

       — Antes do pôr-do-sol. Às quatro horas você começa a arrumar tudo e deixe tudo em ordem.

       — Mas, aga, para que isso? Assim que nós partirmos os Yazdeks virão roubar tudo.

       — Eu sei — disse Lochart, exausto. — Mas você vai deixar tudo em ordem e eu vou trancar a porta e talvez eles não roubem.

       — Seja como Deus quiser, aga. Mas eles virão.

       Lochart terminou de comer e foi para o escritório. Scot Gavallan estava lá, com o rosto abatido, o braço numa tipóia. A porta se abriu. Rod Rodrigues entrou, com olheiras negras e o rosto cansado.

       — Oi, Tom, você não esqueceu, hein? — Ele perguntou ansiosamente. — Eu não estou na lista.

       — Não há problema. Scot, Rod vai no HJX. Ele vai com você e Jean-Luc para Al Shargaz.

       — Ótimo. Mas eu estou bem, Tom. Acho que prefiro ir para Kowiss.

       — Pelo amor de Deus, você vai para Al Shargaz e não quero discussão!

       Scot ficou vermelho.

       — Sim, está bem, Tom. — Ele saiu. Rodrigues quebrou o silêncio.

        — O que você quer que mandemos no HJX?

       — Como é que eu vou saber, que diabo — Lochart parou. — Desculpe, eu estou ficando cansado. Desculpe.

       — Não se preocupe, Tom. Nós todos estamos cansados. Talvez possamos mandá-lo vazio, hein?

      Com muito esforço, Lochart afastou o cansaço.

       — Não, coloque o motor de reserva a bordo, e quaisquer outras peças de 212 para completar a carga.

       — Claro. Isso seria bom. Talvez... A porta foi aberta e Scot entrou rapidamente.

       — Nitchak Khan! Olhe pela janela!

       Vinte homens ou mais estavam se aproximando pelo caminho que levava à aldeia. Todos estavam armados. Outros já estavam se espalhando pela base, e Nitchak Khan estava se dirigindo ao escritório. Lochart foi até a janela dos fundos, abriu-a.

       — Scot, vá até a minha cabana, afaste-se das janelas, não deixe que eles o vejam e não se mexa até eu chegar. Rápido!

       Scot pulou a janela com dificuldade e saiu correndo. Lochart fechou a janela.

       A porta se abriu. Lochart levantou-se.

       — Salaam, calênder.

       — Salaam. Estranhos foram vistos aqui perto, na floresta. Os terroristas devem ter voltado, então eu vim proteger vocês. — Os olhos de Nitchak Khan eram duros. — Seja como Deus quiser, mas eu não gostaria que houvesse mais mortes antes de vocês partirem. Nós ficaremos aqui até o pôr-do-sol. — E saiu.

       — O que foi que ele disse? — perguntou Rodrigues, sem entender farsi. Lochart contou a ele e o viu estremecer.

       — Não há problemas, Rod — disse, disfarçando o seu próprio medo. Não havia nenhuma chance deles decolarem ou pousarem sem voar baixo pela floresta, um alvo perfeito. Terroristas? Conversa fiada! Nitchak sabe sobre Scot e sobre mim e eu aposto que ele tem atiradores plantados em toda parte, e se ele ficar aqui até o pôr-do-sol não há nenhuma maneira de fugir, ele vai saber em que helicóptero nós estamos. Insha'Allah. Insha'Allah, mas enquanto isso, que diabo você vai fazer?

       — Nitchak Khan conhece os arredores — disse com tranqüilidade, sem querer amedrontar Rod, já havia medo demais na base. — Ele vai nos proteger, Rod, caso eles estejam lá. O motor de reserva já está embalado?

       — Hum? Claro, Tom, claro, está embalado.

       — Você se encarrega de colocá-lo no helicóptero. Vejo você mais tarde Não se preocupe.

       Durante um longo tempo, Lochart ficou olhando para a parede. Quando chegou a hora de voltar para a plataforma Rosa, Lochart foi procurar Nitchak Khan.

       — Você não vai querer ver se a plataforma Rosa foi fechada direito, calênder? Ela fica na sua terra — disse e embora o velho estivesse relutante, ele conseguiu persuadi-lo com lisonjas a acompanhá-lo. Com o khan a bordo, Lochart sabia que estaria seguro por enquanto.

       Até agora tudo bem, pensou. Eu vou ter que ser o último a partir. Até estarmos bem longe, Scot e eu, eu vou ter que ser muito esperto. Há muito a perder agora: Scot, os rapazes, Xarazade, tudo.

      

       NA PLATAFORMA ROSA: 17H. Jesper guiava o caminhão velozmente pelo caminho entre os pinheiros que levava ao último poço a ser tampado. Ao lado dele estava Mimmo Será. O operário e o seu assistente estavam atrás, e ele cantava baixinho, mais para se manter acordado. O platô era largo, havia quase um quilômetro entre cada poço, a paisagem era bonita e selvagem.

       — Estamos atrasados — disse Mimmo, cansado, olhando para o sol que baixava no horizonte. — Stronzo!

       — Nós vamos conseguir — retrucou Jesper. No seu bolso estava a última das barras de chocolate energizantes. Os dois homens a repartiram. — Isto se parece um bocado com a Suécia — disse Jesper, derrapando numa curva, animando-se com a velocidade.

       — Nunca estive na Suécia. Lá está ele — exclamou Mimmo. O poço estava numa clareira, já em funcionamento e produzindo cerca de 12 mil barris por dia, todo o campo era imensamente rico. Sobre o poço havia uma coluna gigantesca de válvulas e canos, chamada de árvore de Natal, que o ligava ao oleoduto principal. — Este foi o primeiro que perfuramos aqui — disse distraidamente. — Antes do seu tempo.

       Quando Jesper desligou o motor, o silêncio foi estonteante, não havia necessidade de bombas para trazer o óleo para a superfície. A enorme pressão do gás, preso na camada de óleo a milhares de metros de profundidade, fazia isto para eles e continuaria fazendo por muitos anos.

       — Nós não temos tempo para tampá-lo direito, sr. Será. A menos que o senhor queira prolongar a nossa permanência.

       O homem sacudiu a cabeça e puxou o gorro para cima das orelhas.

       — Por quanto tempo as válvulas agüentarão? Jesper deu de ombros.

       — Deveriam agüentar indefinidamente, mas sem conservação nem inspeção periódicas? Não sei. Talvez indefinidamente, a menos que tenhamos um escapamento de gás, ou se uma das válvulas ou selos estiver com defeito.

       — Stronzo!

       — Stronzo — repetiu Jesper, depois fez um sinal para o seu assistente e para o operário e avançou. — Vamos apenas fechá-lo, sem tampar. — A neve afundava sob os pés deles. O vento agitava a copa das árvores e então eles ouviram o barulho do helicóptero voltando da base. — Vamos acabar logo com isso.

       Eles estavam ocultos da pista e dos prédios principais da plataforma Rosa, que ficavam a um quilômetro de distância. Irritado, Mimmo acendeu um cigarro e se encostou no capô, observando os três homens trabalharem, lutandocom as válvulas, algumas emperradas, depois apanhando a enorme chave inglesa para soltá-las, depois a bala ricocheteou na árvore de Natal e o ruído que se seguiu ecoou pela floresta. Todos ficaram paralisados. E esperaram. Nada.

       — Vocês viram de onde ela veio? — murmurou Jesper. Ninguém respondeu. Mais uma vez eles esperaram. Nada. — Vamos terminar — disse, e mais uma vez pôs o seu peso sobre a chave inglesa. Os outros se adiantaram para ajudar. Imediatamente houve outro tiro e a bala entrou no pára-brisa do caminhão, abriu um buraco na parede da cabine, arrebentou a tela do computador e outros instrumentos elétricos antes de sair pelo outro lado. Silêncio.

       Não havia nenhum movimento em parte alguma. Apenas o vento e a neve caindo, agitada pelo vento. Barulho dos jatos do helicóptero na manobra de pouso.

       Mimmo Sera gritou em farsi:

       — Estamos apenas fechando o poço, Excelências, para ficar mais seguro. Nós vamos fechá-lo e depois partiremos. — Mais uma vez eles esperaram. Nenhuma resposta. Mais uma vez: — Nós só estamos deixando o poço seguro! Seguro para o Irã, não para nós! Para o Irã e o imã. É o petróleo de vocês e não nosso.

       Mais uma vez esperaram e não se ouviu nenhum som além dos sons da floresta. Galhos quebrando. Ao longe, um animal gritou.

       — Mamma mia — disse Mimmo Será, com a voz rouca de tanto gritar, depois se adiantou e apanhou a chave inglesa e a bala passou tão perto do seu rosto que ele sentiu a sua passagem. Ele levou um choque enorme. A chave inglesa escorregou-lhe das mãos. — Todo mundo para o caminhão. Vamos embora.

       Ele recuou e entrou no banco da frente. Os outros o seguiram. Exceto Jesper. Ele foi buscar a chave inglesa e quando viu o estrago que a bala tinha feito na sua cabine, no seu equipamento, fechou a cara, sua raiva explodiu e ele sacudiu a chave inglesa na direção da floresta com um palavrão e ficou lá em pé um momento, com os pés ligeiramente afastados, sabendo que era um alvo fácil mas sem se importar.

       — Fòrbannadesshitdjàvlar—murmurou Jesper, satisfeito em dizer o palavrão em sueco, depois subiu para o assento do motorista. O caminhão voltou por onde tinha vindo e quando já estava fora da vista, uma saraivada de balas dos dois lados da floresta atingiu a árvore de Natal, arrancando pedaços de metal, que se espalharam pela neve e pelo ar. Depois silêncio. Então alguém riu e gritou:

       — Allahhhh-u Akbarrr...

       O grito ecoou. Depois morreu.

      

       EM ZAGROS TRÊS: 18:38H. O sol tocou o horizonte. As últimas peças e bagagens estavam sendo colocadas a bordo. Todos os quatro helicópteros estavam alinhados, dois 212, o 206 e o Alouette, e os pilotos estavam prontos. Jean-Luc andava de um lado para o outro, a partida tinha sido atrasada por Nitchak Khan que, mais cedo, ordenara arbitrariamente que todos os aparelhos partissem ao mesmo tempo, o que tornava impossível para Jean-Luc alcançar Al Shargaz, apenas Shiraz, onde teria que passar a noite, uma vez que os vôos noturnos eram proibidos no Irã.

       — Explique outra vez a ele, Tom — disse Jean-Luc, furioso.

       — Ele já disse a você que não, já me disse que não, então é não, e de qualquer maneira já está muito tarde. Está tudo pronto, Freddy?

       — Sim — Ayre gritou irritado. — Estamos esperando há mais de uma hora!

       Com uma expressão severa, Lochart dirigiu-se até onde estava Nitchak Khan, que percebera a raiva e a irritação dos estrangeiros e ficara secretamente encantado pelo transtorno que lhes causara. Ao lado de Nitchak Khan estava o Faixa Verde que Lochart presumia que fosse do komiteh e alguns aldeões. O resto tinha ido embora durante a tarde. Para a floresta, ele pensou, com a boca seca.

       — Calênder, estamos quase prontos.

       — Seja como Deus quiser. Lochart gritou:

       — Freddy, última carga, agora. — Ele tirou o seu gorro e os outros fizeram o mesmo enquanto Ayre, Rodrigues e dois mecânicos traziam o caixão que estava no hangar e o levavam cuidadosamente até o 212 de Jean-Luc. Depois de terminado, Lochart se aproximou. — Pessoal de Shiraz a bordo. — Ele apertou a mão de Mimmo Será, de Jesper, do operário e do assistente de Jesper à medida que eles foram subindo a bordo, ajeitando-se no meio da bagagem, das peças e do caixão. Inquietos, Mimmo Será e o seu operário italiano se benzeram, depois colocaram os cintos.

       Jean-Luc subiu para o lugar do piloto com Rodrigues ao seu lado. Lochart virou-se para o resto dos homens.

       — Todos a bordo!

       Vigiados cuidadosamente por Nitchak Khan e pelo Faixa Verde, os restantes subiram a bordo, Ayre pilotava o Alouette, Claus Schwartenegger o 206, todos os lugares estavam ocupados, os tanques cheios, os compartimentos de bagagem cheios, os deslizadores externos carregados de lâminas de rotor avulsas. O 212 de Lochart estava entulhado até em cima:

       — Quando chegarmos em Kowiss já teremos gasto um bocado de combustível, então estaremos dentro da lei. De qualquer maneira, vamos descer o tempo todo — dissera a todos os pilotos ao falar com eles mais cedo.

        Agora ele estava sozinho, em pé na neve de Zagros Três, todo mundo já tinha embarcado e as portas estavam fechadas.

       — Decolem! — ordenou, com a tensão aumentando. Ele tinha dito a Nitchak Khan que decidira coordenar a decolagem.

       Nitchak Khan e o Faixa Verde aproximaram-se de Lochart.

       — O jovem piloto, aquele que foi ferido, onde está ele?

       — Quem? Oh, Scot? Se ele não está aqui, está em Shiraz, calênder — disse Lochart e viu a raiva surgir na cara do velho e a boca do Faixa Verde se escancarar. — Por quê?

       — Isso não é possível — discordou o Faixa Verde.

       — Eu não o vi a bordo, ele deve ter ido num vôo mais cedo... — Lochart teve que levantar a voz acima do ruído dos jatos, todos os motores agora estavam funcionando com força máxima — ...num vôo mais cedo, quando nós estávamos nas plataformas Rosa e Maria, calênder. Por quê?

       — Isso não é possível, calênder — repetiu o Faixa Verde, assustado, enquanto o velho virava-se para ele. — Eu estava vigiando cuidadosamente.

       Lochart se abaixou para evitar as hélices e foi até a janela do piloto do 212 de Jean-Luc, entregando-lhe um grosso envelope branco.

       — Tome, Jean-Luc. Bonne chance — disse. — Decole! — Por um instante ele viu o esboço de um sorriso antes de correr para se proteger. Jean-Luc acelerou ao máximo para decolar rapidamente e o aparelho subiu e se afastou, com o vento das hélices sacudindo as suas roupas e as dos aldeões, os jatos abafando o que Nitchak Khan estava gritando.

       Ao mesmo tempo — também como havia sido combinado antes — Ayre e Schwartenegger aceleraram, afastando-se um do outro antes de subir devagar em direção às árvores. Lochart ficou de dedos cruzados e então o furioso Faixa Verde o agarrou pela manga e o fez virar-se.

       — Você mentiu — o homem estava gritando — você mentiu para o calênder. O jovem piloto não partiu mais cedo! Eu o teria visto, eu estava observando cuidadosamente. Diga ao calênder que você mentiu!

       Repentinamente, Lochart arrancou a manga da mão do rapaz, sabendo que cada segundo significava mais alguns metros de altitude, mais alguns metros em direção à salvação.

       — Por que eu mentiria? Se o jovem piloto não está em Shiraz, então ele ainda está aqui. Revistem o campo, revistem o meu aparelho! — E saiu andando em direção ao seu 212 e ficou em pé ao lado da porta aberta, vendo com o canto dos olhos o 212 de Jean-Luc agora sobre a linha das árvores, Ayre tão sobrecarregado que mal podia voar, e o 206 ainda subindo. — Em nome de Deus, vamos procurar — disse, atraindo a atenção deles para si e para longe dos helicópteros que se afastavam, desejando que eles não revistassem o avião, mas o próprio campo. — Como um homem poderia se esconder aqui? Impossível. Que tal o escritório ou os trailers talvez ele esteja escondido...

       O Faixa Verde tirou a arma do ombro e apontou para ele.

       — Diga ao calênder que você mentiu, senão vai morrer!

       Quase sem nenhum esforço, Nitchak Khan arrancou a arma da mão do rapaz e a atirou na neve.

       — Eu sou a lei em Zagros, não você! Volte para a aldeia! — Cheio de medo, o Faixa Verde obedeceu na mesma hora.

       Os aldeões esperavam e observavam. O rosto de Nitchak Khan estava tenso e seus olhos iam de um helicóptero para outro. Eles estavam longe agora, mas não fora do alcance dos homens que ele tinha postado em volta da base — para atirar apenas se ele desse o sinal, só ele. Um dos helicópteros menores estava inclinado, subindo ainda o mais depressa possível, fazendo um grande círculo. Para vigiar-nos, pensou Nitchak Khan, para ver o que vai acontecer. Seja como Deus quiser.

       — É perigoso derrubar as máquinas voadoras — dissera sua mulher. — Isso nos trará azar.

       — Os terroristas farão isto, não nós. O jovem piloto nos viu e o piloto-chefe que fala farsi sabe. Eles não devem escapar. Os terroristas não têm piedade, eles não se importam com a lei e a ordem, e como provar que eles nãoexistem? Essas montanhas não estão cheias de bandidos? Nós não perseguimos esses terroristas o mais que pudemos? O que poderíamos ter feito para evitar a tragédia? Nada.

       E agora, diante dele, estava o último dos infiéis, o seu principal inimigo, aquele que o enganara e mentira, conseguindo fazer o outro demônio partir escondido. Pelo menos este não vai escapar, ele pensou. Só havia um pedacinho de sol sobre o horizonte. Enquanto ele olhava, o sol desapareceu.

       — Que a paz esteja com você, piloto.

       — E com você também, calênder, que Deus o proteja — disse Lochart, secamente. — Aquele envelope que eu dei ao piloto francês. Você viu quando eu o entreguei?

       — Sim, sim, eu vi.

       — Aquela era uma carta endereçada ao Komiteh Revolucionário em Shiraz, com uma cópia para o calênder iraniano em Dubai, do outro lado do grande mar, assinada pelo jovem piloto, testemunhada por mim, contando exatamente o que aconteceu na praça da aldeia, quem o fez, a quem, quem foi morto, o número de homens amarrados no caminhão dos Faixas Verdes antes deste cair na ravina dos Camelos Quebrados, o assassinato de Nasiri, o seu...

       — Mentiras, só mentiras! Pelo Profeta, o que significa esta palavra. Assassinato? Assassinato? Isso é para bandidos. O homem morreu. Foi a Vontade de Deus — disse teimosamente o velho, consciente dos aldeões com os olhos fixos em Lochart. — Ele era um partidário conhecido do satânico xá a quem você vai encontrar, com certeza, muito em breve, no inferno.

       — Talvez sim, talvez não. Talvez o meu empregado leal que foi covardemente assassinado aqui por cães covardes já tenha falado com o Único Deus e o Único Deus saiba quem está dizendo a verdade.

       — Ele não era muçulmano, ele não serviu ao Islã e...

       — Mas ele era cristão e os cristãos servem ao Único Deus e o meu companheiro foi morto numa emboscada feita por covardes, filhos de um cão, que só tiveram coragem de atirar de tocaia, certamente comedores de merda e homens da Mão Esquerda e amaldiçoados! É verdade que ele foi assassinado como o outro cristão lá na plataforma. Por Deus e pelo Profeta de Deus, a morte deles será vingada!

       Nitchak Khan deu de ombros.

       — Terroristas — ele repetiu, amedrontado —, os terroristas fizeram isso, é claro que foram os terroristas! Quanto à carta, é tudo mentira, mentira, o piloto era mentiroso, nós todos sabemos o que houve na aldeia. Tudo o que ele disse é mentira.

       — Mais uma razão para que a carta não seja entregue. — Lochart estava escolhendo as palavras com muito cuidado. — Portanto, por favor, proteja-me dos 'terroristas' enquanto eu me afasto. Só eu posso evitar que a carta seja entregue. — Seu coração batia desordenadamente enquanto ele observava o velho apanhar um cigarro, pesando os prós e os contras, e acender o cigarro com o isqueiro de Jordon e ele tornou a imaginar como poderia vingar-se da morte de Jordon, uma parte ainda não resolvida do plano que até agora tinha funcionado perfeitamente: ele tinha afastado o atento Nitchak Khan dali, Scot Gavallan se escondera no caixão e embarcara no 212 de Jean-Luc, o corpo de Jordon fora colocado no caixote que servia para carregar caudas de rotorese levado para o seu 212, depois a carta e os três helicópteros decolando juntos, tudo perfeitamente planejado.

       E agora estava na hora de terminar. Ayre, no Alouette, estava circulando lá em cima, fora de alcance.

       — Salaam, calênder. Que a justiça de Deus esteja com você — disse e se dirigiu à cabine de pilotagem.

       — Eu não tenho controle sobre os terroristas! — E quando Lochart não parou, Nitchak gritou ainda mais alto: — Por que você impediria a entrega das mentiras, hein?

       Lochart subiu para a cabine, desejando estar longe, detestando aquele lugar e aquele velho.

       — Porque, diante de Deus, eu detesto mentiras.

       — Diante de Deus, você impediria a entrega destas mentiras?

       — Diante de Deus, eu providenciarei para que a carta seja queimada. Que a justiça de Deus esteja com você, calênder, e com Yazdek. — Ele deu partida no motor. O primeiro jato pegou. As hélices começaram a girar. Mais botões. Agora o segundo motor pegou e ele ficou observando o velho o tempo todo. Apodreça no inferno, desgraçado, pensou. Suas mãos estão manchadas com o sangue de Jordon, e de Gianni também, eu tenho certeza, embora não possa provar. Talvez o meu também.

       Esperando. Agora todos os mostradores estavam no verde. Ele decolou.

       Nitchak Khan observou o helicóptero balançar no ar, hesitar, depois virar lentamente e começar a subir. É tão fácil levantar a mão, pensou, e o infiel e esse monstro barulhento se transformariam numa pira funerária despencando do céu, e quanto à carta, mentiras, só mentiras.

       Dois homens mortos? Todo mundo sabe que eles estão mortos por sua própria culpa. Nós os convidamos para virem aqui? Não, eles vieram para explorar a nossa terra. Se não tivessem vindo para cá, ainda estariam vivos e esperando pelo inferno que é o lugar deles.

      Seus olhos não se afastaram nem por um momento das máquinas voadoras. Ainda havia muito tempo. Ele fumou devagar, apreciando imensamente o cigarro, deliciando-se com a idéia de que poderia destruir uma máquina tão poderosa com um simples gesto. Mas não o fez. Ele se lembrou do conselho da esposa e acendeu um outro cigarro na ponta do anterior e o fumou, esperando pacientemente. Em pouco tempo, o barulho odioso das máquinas diminuiu, desaparecendo rapidamente e depois, lá em cima, ele viu o menor dos aparelhos parar de circular e também se dirigir para o sul e para oeste..

       Quando todos os ruídos que lembravam os infiéis tinham desaparecido, ele achou que a paz voltara novamente a Zagros.

       — Incendeiem a base — disse para os outros.

       Em pouco tempo as chamas estavam altas. Sem nenhuma pena, ele atirou o isqueiro no meio das chamas e, satisfeito, caminhou para casa.

 

SEGUNDA-FEIRA, 26 de fevereiro

       PERTO DA BASE AÉREA DE BANDAR DELAM: 9.16H. Debaixo de uma chuva torrencial, a caminhonete Subaru, com o símbolo da Irã-Toda na porta, corria pela estrada, com os limpadores do pára-brisas funcionando a todo o vapor, a estrada estava cheia de buracos e poças d'água, e o motorista era iraniano. Scragger estava sentado pouco a vontade ao lado dele, com o cinto de segurança amarrado e, atrás, um mecânico de rádio japonês se segurava o melhor que podia. Lá na frente, no meio do aguaceiro que caía, Scragger viu um ônibus velho atravancando quase toda a estrada e, não muito longe, o trânsito que vinha em sentido contrário.

       — Minoru, diga-lhe para ir mais devagar novamente. Ele é um irresponsável.

       O jovem japonês inclinou-se para a frente e falou asperamente em farsi, e o motorista balançou tranqüilamente a cabeça e não deu a menor atenção, enfiou a mão na buzina e a manteve lá enquanto desviava para o outro lado da pista, ultrapassando o ônibus, acelerando quando deveria ter freado, der-rapando, corrigindo, ao passar pelo pequeno espaço entre o ônibus e os carros que vinham na direção contrária, com os três veículos tocando freneticamente as buzinas.

       Scragger tornou a praguejar. Sorrindo satisfeito, o motorista, um jovem barbudo, tirou os olhos da estrada e disse alguma coisa em farsi, caindo numa enorme poça d'água. Minoru traduziu:

       — Ele está dizendo que com a ajuda de Deus nós estaremos no campo de aviação dentro de poucos minutos, capitão Scragger.

       — Com a ajuda de Deus nós chegaremos lá inteiros e não aos pedaços. — Scragger tinha querido dirigir, mas não permitiram, nenhum empregado da Irã-Toda tinha permissão para dirigir.

       — Nós achamos que esta era uma boa política, capitão Scragger, as estradas, as regras e os iranianos sendo como são — dissera Watanabe, o engenheiro responsável. — Mas Muhammad é um dos nossos melhores motoristas e muito confiável. Vejo-o à noite.

       Para alívio de Scragger, ele viu o campo de aviação um pouco à frente. Havia Faixas Verdes guardando os portões. O motorista não prestou nenhuma atenção neles, simplesmente foi passando e parou, respingando água para todos os lados, defronte ao prédio de dois andares.

       — Allah-u Akbar — disse orgulhosamente. Scragger respirou aliviado.

       — Allah-u Akbar — repetiu, soltou o cinto de segurança, abrindo o guarda-chuva enquanto olhava em volta, pois era a primeira vez que ia lá. Um grande pátio de manobras e uma torre pequena, algumas janelas quebradas, outras pregadas, o prédio de dois andares em ruínas, com mais janelas quebradas, trailers da S-G, bons hangares agora fechados por causa da tempestade, com buracos de balas por toda a parte, até nas paredes dos trailers. Ele deu um assovio, lembrando-se de ter ouvido falar na luta que tinha havido ali entre os Faixas Verdes e os mujhadins. Deve ter sido bem pior do que Duke contou, ele pensou.

       Dois jatos de passageiros da Royal Iran Air estavam estacionados displicentemente — o 'Royal' riscado grosseiramente com tinta preta — os pneus arriados, as janelas da cabine de pilotos quebradas e apodrecendo lá.

       — Que sacrilégio — murmurou, ao ver a chuva entrar dentro da cabine.

       — Minoru, meu filho, diga a Muhammad para não mover um músculo até estarmos prontos para partir, certo?

       Minoru obedeceu, depois saiu para a chuva atrás de Scragger. Scragger ficou em pé ao lado do carro, sem saber para onde ir. Então a porta de um dos trailers se abriu.

       — Mein Gott, Scrag! Eu achei que era você. Que diabo você está fazendo aqui? — era Rudi Lutz, sorrindo satisfeito. Então ele viu Starke juntar-se a Rudi e seu coração bateu mais rápido.

       — Oi, meus filhos! — e trocou um caloroso aperto de mão com cada um deles, todos três falando ao mesmo tempo. — Bem, Duke, é uma surpresa agradável.

       — Que diabo você está fazendo aqui, Scrag?

       — Uma coisa de cada vez, meu filho. Este aqui é Minoru Fuyama, técnico de rádio da Irã-Toda. O meu UHF pintou o sete na viagem. Eu estou vindo de Lengeh. Minoru retirou o aparelho e ele está no carro, você pode substituí-lo?

       — Não há problema. Venha, sr. Fuyama. — Rudi foi até o outro trailer para procurar Fowler Joines e tomar as providências.

       — Estou um bocado contente em vê-lo, Scrag. Tenho muito o que conversar com você — disse Starke.

       — A respeito de questões climáticas e turbilhões?

       — Sim, sim. Eu diria que o clima não sai da minha cabeça. — Starke estava envelhecido, seus olhos percorreram a base, a tempestade parecia pior do que antes e o dia quente e úmido.

       — Eu vi Manuela em Al Shargaz, ela está a mesma de sempre, linda, ansiosa, mas bem.

       Rudi voltou, chapinhando na água e levou-os para o trailler-escritório.

       — Você não vai poder voar com esse tempo, Scrag. Quer uma cerveja?

       — Não obrigado, meu chapa, mas adoraria uma xícara de café. — Scragger respondeu automaticamente embora o seu desejo por uma cerveja gelada fosse imenso. Mas desde o seu primeiro exame médico com o dr. Nutt, logo depois dele ter vendido a Sheik Aviation para Gavallan, quando o dr. Nutt tinha dito: "Scrag, a menos que você deixe de fumar e diminua a cerveja, não poderá mais pilotar dentro de uns dois anos", ele tinha sido supercuidadoso. É isso mesmo, pensou. Nada de cigarros, nem de bebida, nem de comida, e um monte de garotas.

       — Você ainda tem reservas, Rudi? Em Lengeh as coisas estão ficando pretas, exceto para de Plessey e seu vinho.

       — Eu consegui um pouco num cargueiro que está atracado no porto — Rudi respondeu de dentro da pequena cozinha, onde estava pondo a chaleira no fogo. — Emergência, um marinheiro com a cabeça e o rosto arrebentados. O capitão disse que tinha sido uma queda, mas parecia mais uma boa briga. Nada de surpreendente, aliás, o navio está ancorado há três meses. Mein Gott Scrag, você viu o engarrafamento no porto quando chegou? Deve haver mais de cem navios esperando para descarregar, ou para apanhar petróleo.

       — Está acontecendo a mesma coisa em Kharg e ao longo de toda a costa, Rudi. Está tudo cheio. Os ancoradouros estão cheios até em cima de caixotes, sacos e sabe Deus o que mais, tudo apodrecendo no sol ou na chuva. Mas chega de falar sobre isso; o que você está fazendo aqui, Rudi?

       — Eu trouxe um 212 de Kowiss ontem. Se não fosse pelo tempo, eu teria partido de madrugada. Estou contente de não tê-lo feito.

       Scragger percebeu a cautela na voz dele e olhou em volta. Pelo que pudesse ver, não havia ninguém ouvindo.

       — Algum problema? — Ele viu Starke sacudir a cabeça. Rudi ligou o gravador. Wagner. Scragger detestava Wagner. — O que há?

       — Estou sendo apenas precavido. Estas malditas paredes são finas demais, e eu peguei um dos empregados espionando. Eu acho que a maioria deles são espiões. E temos um novo administrador na base, Numir. Numir o Horrível, nós o chamamos. Ele está de folga hoje, senão você estaria explicando por que está aqui em triplicata. — Rudi baixou mais o tom de voz. — Temos que falar sobre os turbilhões. Mas o que você está fazendo aqui, Scrag? Por que não se comunicou conosco?

       — Cheguei na Irã-Toda ontem, trazendo um cara chamado Kasigi, que é o grande comprador do petróleo de Siri e um dos chefões da Irã-Toda. O velho

       Georges de Plessey arrumou isto. Vou ficar só hoje, amanhã cedo eu devo partir. Andy me pediu para vê-lo e sondá-lo assim que eu pudesse. Não consegui me comunicar com você pelo UHF. Pode ter sido por causa da tempestade, eu cheguei bem na hora. Não consegui autorização para voar até aqui, então arranquei um fio do aparelho por via das dúvidas e 'precisei urgentemente de um conserto'. Duke, Andy falou-lhe a respeito do que conversamos em Al Shargaz?

       — Sim, sim, falou. E é melhor você saber que há mais uma complicação. Disseram a Andy que vamos ficar sem poder voar esperando a nacionalização e que só temos cinco dias... só cinco dias para agir. Se formos executar a operação, tem que ser no máximo até sexta-feira.

       — Jesus Cristo! — Scragger sentiu um aperto no peito. — Duke, não há nenhuma possibilidade de me preparar até sexta-feira.

       — Andy disse que só tiraremos os 212.

       — Hein?

       Starke explicou o que tinha acontecido em Kowiss e o que esperava que fosse acontecer "caso Andy dê sinal verde."

       — Nada de "caso ele dê". Andy tem que dar. A questão é: vamos arriscar os nossos pescoços?

       Starke riu.

       — Você já arriscou o seu. Eu disse que estava dentro se todo o mundo estivesse. Com dois 212 é possível para mim, e agora que... bem, agora que o nosso pássaro terá outra vez um registro britânico assim que estivermos fora, isso torna as coisas legais.

       — Torna uma ova — disse Rudi. — Não tem nada de legal. Eu disse isso a você ontem à noite e Pop Kelly concordou. Scrag, como...

       — Pop está aqui?

       — Claro — disse Starke. — Ele veio comigo. — E explicou o motivo e depois acrescentou: — 'Pé-quente' aprovou o 'empréstimo', nós pusemos dois caras no 125 e o resto deve sair na quinta-feira, mas não tenho tanta certeza. O coronel Changiz disse que no futuro todo o movimento de pessoal deve ser aprovado por ele, não apenas por 'Pé-quente'.

       — Como é que você vai voltar?

       — Eu vou num 206. — Starke olhou pela janela, para a chuva. — Maldito aguaceiro!

       — Deverá passar até de noite, Duke — Scragger disse com segurança.

       — Como é que você vai retirar os seus homens, Scrag? Hein? — perguntou Rudi.

       — Se forem apenas os meus dois 212, isso torna as coisas mais fáceis. Muito mais fáceis. — Scragger viu Rudi beber um bocado de cerveja bem gelada, as gotículas brilhando na lata, e a sua sede aumentou. — Sexta-feira será um bom dia para uma fuga porque os iranianos estarão rezando ou algo semelhante.

       — Não tenho tanta certeza disto, Scrag — disse Rudi. — Eles continuam o operar o radar na sexta-feira, e forçosamente saberão que há algo errado com os meus quatro pássaros atravessando o golfo, imagine com os seus três e os dois de Duke. Abadan está um bocado sensível em relação a helicópteros, especialmente depois do HBC.

       — Houve mais alguma investigação a respeito dele, Rudi?

       — Sim, na semana passada Abbasi esteve aqui, ele é o piloto que explodiu o aparelho. As mesmas perguntas, nada mais.

       — Ele sabe que o irmão dele era o piloto do HBC?

       — Ainda não, Scrag.

       — Tom Lochart teve um bocado de sorte, um bocado de sorte.

       — Nós todos tivemos um bocado de sorte. Até agora — disse Starke. — Exceto Erikki. — E contou a Scragger o pouco que sabia.

       — Cristo, o que mais? Como vamos executar a operação Turbilhão com ele ainda no Irã?

       — Nós não podemos, Scrag. É o que eu acho — disse Rudi. — Nós não podemos deixá-lo aqui.

       — Está certo, mas talvez... — Starke tomou um gole de café, um pouco enjoado por causa da ansiedade que estava sentindo. — Talvez Andy não aperte o botão. Enquanto isso, nós esperamos que Erikki escape ou seja libertado antes de sexta-feira. Aí Andy vai poder apertar o botão. Merda, se dependesse de mim, só de mim, vê lá se eu me arriscaria numa operação como Turbilhão.

       — Nem eu — disse Rudi, igualmente nervoso.

       — Se fossem os seus aviões, a sua companhia e o seu futuro, eu aposto que você faria. Eu sei que eu o faria. — Scragger sorriu. — Eu sou a favor do Turbilhão. Tenho que ser, cara, nenhuma companhia me empregaria na minha idade, então eu tenho que manter Dirty Dunc e Andy Gav no negócio se quiser continuar voando. — A chaleira começou a apitar. Ele se levantou. — Eu estou dentro, Rudi. E você? Você está dentro ou fora?

       — Eu, eu estou dentro se vocês dois estiverem, e se for viável, mas não gosto disso nem um pouco e estou lhe dizendo francamente que só retirarei os meus quatro se eu realmente achar que temos uma chance. Nós conversamos com os outros pilotos na noite passada, Scrag. Marc Dubois e Pop Kelly disseram que tentariam, Block e Forsythe disseram não, obrigado, então nós temos três pilotos para quatro 212. Eu pedi a Andy para me mandar um voluntário. — Rudi mostrou a sua inquietação. — Mas reissen mit scheissenl Eu vou ter, de qualquer maneira, quatro para levantar vôo, todos ao mesmo tempo, quando somos obrigados a ter autorização prévia, com Faixas Verdes por toda a base, o nosso operador de rádio, Jahan, não é nenhum idiota, e ainda temos Numi, o Horrível. — E franziu a testa.

       — Você não vai ter nenhum problema, meu velho — disse Scrag, brincando. — Diga-lhes que vocês vão prestar uma homenagem à vitória de Khomeini voando sobre Abadan.

       — Vá à merda, Scrag! — A música terminou e Rudi virou a fita. Então o seu rosto ficou sério. — Mas eu concordo com você que Andy vai mesmo apertar o botão na sexta-feira. Quanto a mim, eu acho que se um de nós desistir, todos desistem, de acordo?

       Scragger quebrou o silêncio.

       — Se Andy disser vai, eu vou. Tenho que ir.

      

       PORTO DE BANDAR DELAM: 15:17H. A caminhonete de Scragger saiu de uma rua principal no meio da cidade barulhenta e entrou numa rua secundária, atravessou-a e depois virou na praça em frente a uma mesquita, com Muhammad dirigindo como sempre, com a mão constantemente enfiada na buzina. A chuva tinha diminuído bastante, mas o dia ainda estava horrível. No banco de trás, Minoru cochilava, abraçado ao aparelho de rádio substituto. Scragger estava olhando distraidamente para a frente, tinha tanta coisa para pensar, planos, códigos, e Erikki? Que azar desgraçado! Mas se há alguém que possa dar um jeito é ele. Juro por Deus que o velho Erikki vai achar uma saída. Digamos que ele não consiga ou que o velho Andy não dê o sinal verde, o que você vai fazer para arranjar trabalho? Vou pensar nisso na semana que vem.

       Ele não viu o carro de polícia sair correndo de uma rua lateral, derrapar na superfície escorregadia e bater na traseira deles. Muhammad não poderia ter evitado o acidente, e a velocidade do carro de polícia, mais a do deles, fez com que deslizassem pela rua, batessem numa barraca e atropelassem a multidão, matando uma velha, decapitando outra, ferindo muitos ao cair com as rodas dentro da vala, fazendo com que o carro virasse e batesse de encontro ao muro, com um estrondo.

       Instintivamente, Scragger cobrira o rosto com as mãos, mas o choque final fez com que sua cabeça batesse na lateral do carro, deixando-o momentaneamente desacordado, só não tendo se machucado seriamente por causa do cinto de segurança. O motorista fora projetado pelo pára-brisa e estava agora com metade do corpo para fora do carro, bastante ferido. Atrás, o assento protegera Minoru e ele foi o primeiro a se recuperar, com o rádio ainda no colo. No meio dos gritos e do pandemônio, ele abriu a porta e saltou, passando despercebido no meio de pedestres e feridos, sem notarem que ele era um passageiro, uma vez que os japoneses da Irã-Toda eram comuns nas ruas.

       Naquele momento, os ocupantes do carro da polícia que estava atravessado no meio da rua com a frente amassada chegaram correndo. A polícia abriu caminho até a caminhonete, deu uma olhada no motorista, abriu a porta do outro lado e tirou Scragger lá de dentro.

       Gritos zangados de "Americano!" e mais gritos e barulho, Scragger ainda estava tonto.

       — Obrigado... eu... eu estou bem... — mas eles o seguraram com firmeza, gritando com ele.

       — Pelo amor de Deus — gaguejou — eu não estava dirigindo... que diabo está... — Em volta dele, um tumulto de farsi, pânico e raiva e um dos policiais o algemou e depois o arrastaram para o outro carro, o enfiaram no assento de trás e entraram, ainda xingando-o. O motorista deu a partida.

       Do outro lado da rua, Minoru tentava inutilmente abrir caminho no meio da multidão para ajudar Scragger. Ele parou, cabisbaixo, enquanto o carro se afastava pela rua.

      

       PERTO DE DOSHAN TAPPEH: 15:30H. McIver dirigia pela estrada vazia que costeava a cerca de arame farpado do campo de aviação militar. Os pára-choques estavam tortos e havia muito mais mossas do que antes. Um dos faróis estava rachado e preso com fita adesiva, a lâmpada de uma das lanternas estava faltando, mas o motor ainda funcionava bem e os pneus de neve rodavam com segurança. Havia neve dos lados da estrada. Não havia sol, o tempo estava nublado, com as nuvens cobrindo tudo, exceto a base das montanhas ao norte. Estava frio e ele estava atrasado.

       Do lado de dentro do pára-brisa havia um grande cartão verde e, ao vê-lo, o grupo de Faixas Verdes e os guardas da Força Aérea parados perto do portão fizeram-no entrar, depois tornaram a se juntar em volta de uma fogueira para se manterem aquecidos. Ele se dirigiu para o hangar da S-G. Tom Lochart saiu de uma porta lateral para se encontrar com ele.

       — Oi, Mac — disse, entrando rapidamente no carro. Ele estava usando o seu uniforme de piloto e carregava a sua maleta de vôo, tendo acabado de chegar de Kowiss. — Como está Xarazade?

       — Sinto ter demorado tanto, o trânsito estava horrível.

       — Você a viu?

       — Não, ainda não, sinto muito. — Ele viu a tensão imediata de Lochart. — Fui lá outra vez hoje cedo. Um empregado atendeu a porta mas não pareceu entender o que eu estava dizendo. Vou levar você até lá assim que puder. — Ele reduziu e virou no portão. — Como foi em Zagros?

       — Um horror, vou lhe contar tudo num segundo — Lochart disse apressadamente. — Antes de sairmos, temos que nos apresentar ao comandante da base.

       — Ah, é? Por quê? — McIver freou.

       — Eles não disseram. Deixaram um recado com o empregado que quando você chegasse aqui hoje deveria falar com o comandante da base. Algum problema?

       — Não que eu saiba. — McIver fez a volta. O que será agora? pensou, controlando a sua ansiedade.

       — Pode ser por causa do HBC?

       — Esperemos que não.

       — O que aconteceu com Lulu? Você deu uma batida?

       — Não, foram uns vândalos na rua — disse McIver, com a cabeça no HBC.

       — Eles estão cada vez piores. Alguma notícia de Erikki?

       — Nada. Ele simplesmente desapareceu. Azadeh passa o dia sentada ao lado do telefone, no escritório.

       — Ela ainda está com você?

       — Não, ela voltou para o apartamento dela no sábado. — McIver estava indo para os prédios que ficavam do outro lado da pista. — Conte-me sobre Zagros... — Ele escutou sem fazer comentários até que Lochart tivesse terminado. — Terrível, simplesmente terrível!

       — Sim, mas Nitchak Khan não deu o sinal para nos derrubarem. Se tivesse dado, teria conseguido. Seria muito difícil desmentir aquela história de terroristas. De qualquer maneira, quando chegamos a Kowiss, Duke e Andy tinham tido um pega com 'Pé-quente'. — Contou-lhe sobre isso. — Mas o ardil parece estar funcionando: ontem, Duke e Pop levaram o 212 para Rudi e esta manhã o EcoTangoLimaLima chegou para apanhar o corpo de Jordon.

       — Terrível. Eu me sinto muito responsável pelo velho Effer.

       — Acho que todos nós. — Lá na frente eles podiam ver o prédio do QG com sentinelas do lado de fora. — Nós todos carregamos o caixão até o helicóptero, o jovem Freddy tocou uma canção fúnebre na gaita, não havia muito mais a fazer. Curiosamente, o coronel Changiz enviou uma guarda de honra da Força Aérea e nos deu um caixão decente. Os iranianos são muito estranhos. Eles pareciam genuinamente compungidos. — Lochart estava falando automaticamente, doente de ansiedade por causa da demora. Tivera que esperar em Kowiss, depois voara até aqui com a ATC perturbando-o, depois não havia nenhum meio de transporte e tivera que esperar interminavelmente por McIver e agora mais um atraso. O que aconteceu com Xarazade?

       Eles estavam perto do prédio que abrigava a suíte do comandante da base e o refeitório dos oficiais, onde tinham passado tantos momentos agradáveis no passado. Doshan Tappeh fora uma base de elite — o xá mantinha parte da sua frota de jatos particulares lá e o seu Fokker Friendship. Agora as paredes do prédio de dois andares estavam furadas de balas e destruídas aqui e ali por bombas, a maioria das janelas estava quebrada, algumas cobertas por tábuas. Lá fora, alguns Faixas Verdes e aviadores desleixados estavam postados como sentinelas.

       — Que a paz esteja com vocês! Excelência McIver e Lochart estão aqui para falar com o comandante do campo. — Lochart disse em farsi. Um dos Faixas Verdes fez sinal para eles entrarem. — Por favor, onde fica o escritório?

       — Lá dentro.

       Eles subiram os degraus em direção à porta principal, o ar estava pesado com cheiro de fumaça, pólvora e esgoto. Ao chegarem ao último degrau, a porta principal se abriu e apareceu um mulá com alguns Faixas Verdes, arrastando dois jovens oficiais da Força Aérea com as mãos amarradas e os uniformes sujos e rasgados. Lochart ficou de boca aberta, reconhecendo um deles.

       — Karim! — exclamou e McIver também reconheceu o rapaz. Karim Peshadi, o adorado primo de Xarazade, o homem a quem ele havia pedido para tentar retirar a autorização do HBC da torre.

       — Tom! Em nome de Deus, diga-lhes que eu não sou nem espião nem traidor — Karim gritou em inglês. — Tom, diga a eles!

       — Excelência — Lochart disse em farsi para o mulá —, deve haver algum engano. Este homem é o capitão Peshadi, um leal partidário do aiatolá, um...

       — Quem é você, Excelência? — perguntou o mulá, um homem de olhos escuros, baixo e atarracado. — Americano?

       — Meu nome é Lochart, Excelência, canadense, piloto da IranOil, e este é o chefe da nossa companhia que fica do outro lado do campo, capitão McIver, um...

       — Como é que você conhece esse traidor?

       — Excelência, estou certo de que há algum engano, ele não pode ser um traidor, eu o conheço porque ele é primo da minha esposa e fi...

       — Sua esposa é iraniana?

       — Sim, Exce...

       — Você é muçulmano?

       — Não, Excel...

       — Então é melhor se divorciar e salvar a alma dela da perdição. Seja como Deus quiser. Não há engano algum a respeito desses traidores. Cuide da sua vida, Excelência. — O mulá fez um sinal para os Faixas Verdes. Imediatamente, eles desceram os degraus, arrastando os dois oficiais que gritavam e protestavam a sua inocência, depois ele se voltou para a porta da frente.

       — Excelência — Lochart gritou atrás dele, alcançando-o. — Por favor, em nome do único Deus, eu sei que aquele rapaz é leal ao imã, é um bom muçulmano, um patriota, eu sei com certeza que ele foi um dos que lutaram contra os Imortais aqui em Doshan Tappeh, ele ajudou a revo...

       — Pare! — Os olhos do mulá ficaram ainda mais duros. — Esse problema não é da sua conta, estrangeiro. Nós não somos mais governados por estrangeiros, nem por leis estrangeiras, nem por um xá dominado por estrangeiros. Você não é iraniano, nem juiz, nem legislador. Aqueles homens foram julgados e condenados.

       — Eu imploro pela sua paciência, Excelência, deve haver algum erro, deve... — Lochart se virou ao ouvir uma sucessão de tiros de rifle ali perto. As sentinelas estavam olhando para algumas barracas e prédios do outro lado da estrada. Então os Faixas Verdes reapareceram, vindos de trás de uma das barracas, pondo as armas no ombro. Eles tornaram a subir os degraus. O mulá fez sinal para que eles entrassem.

       — A lei é a lei — disse o mulá, observando Lochart. — A heresia tem que ser exterminada. Já que você conhece a família dele, pode dizer-lhes para pedir perdão a Deus por ter abrigado uma tal criatura.

       — E ele foi considerado culpado de que crime?

       — Não foi 'considerado' culpado, Excelência — disse o mulá, com raiva na voz. — Karim Peshadi admitiu publicamente ter roubado um caminhão e ter deixado a base sem permissão, admitiu publicamente ter participado de demonstrações proibidas, declarou publicamente ser contra o nosso Estado absolutista islâmico, se opôs publicamente à abolição do Ato do Matrimônio, contrário aos princípios islâmicos, defendeu publicamente atos contrários à lei islâmica, foi apanhado em ações suspeitas de sabotagem, negou publicamente o total absolutismo do Corão, desafiou publicamente o direito do imã de ser faqira, aquele que está acima da lei e que é o árbitro final da lei. — Ele puxou as suas vestes mais para junto do corpo por causa do frio. — Que a paz esteja com você. — E tornou a entrar no prédio.

       Por um momento, Lochart não conseguiu falar. Então ele explicou a McIver o que tinha sido dito.

       — Suspeito de atos de sabotagem, Tom? Ele foi apanhado na torre?

       — Que importância tem isso? — disse Lochart, com amargura. — Karim está morto. Por crimes contra Deus.

       — Não, meu rapaz — McIver disse bondosamente —, não contra Deus, contra a versão deles da verdade expressa em nome do Deus que eles nunca irão conhecer. — Ele endireitou os ombros e entrou no prédio. No fim, acabaram encontrando o comandante da base e foram recebidos.

       Atrás da mesa estava um major. O mulá sentava-se a seu lado. A única decoração da pequena sala desarrumada era uma grande fotografia de Khomeini.

       — Eu sou o major Betami, sr. McIver — o homem disse secamente em inglês. — Este é o mulá Tehrani. — Depois ele olhou para Lochart e mudou para farsi. — Como Sua Excelência Tehrani não fala inglês, você traduzirá para mim. O seu nome, por favor.

       — Lochart, capitão Lochart.

       — Sentem-se por favor, vocês dois. Sua Excelência disse que você é casado com uma iraniana. Qual era o nome dela de solteira?

       Os olhos de Lochart ficaram duros.

       — A minha vida particular só interessa a mim, Excelência.

       — Não você sendo um piloto de helicóptero estrangeiro no meio da nossa revolução islâmica contra a dominação estrangeira — disse o major, zangado. — Nem sendo uma pessoa que conhece traidores do país. O senhor tem algo a esconder, capitão?

       — Não, não, é claro que não.

       — Então, por favor, responda à pergunta.

       — O senhor é da polícia? Com que autoridade...

       — Eu sou um membro do komiteh de Doshan Tappeh — disse o mulá — O senhor prefere ser intimado oficialmente? Agora? Neste minuto?

       — Eu prefiro não ser interrogado a respeito da minha vida privada.

       — Se o senhor não tem nada a esconder, pode responder à pergunta. Por favor, escolha.

       — Bakravan. — Lochart viu que os dois homens tinham identificado o nome. Seu estômago ficou ainda mais embrulhado.

       — Jared Bakravan, o agiota do bazar? Uma de suas filhas?

       — Sim.

       — O nome dela, por favor.

       Lochart controlou a raiva, aumentada ainda mais pelo assassinato de Karim. Foi um assassinato, ele teve vontade de gritar, não importa o que vocês digam.

       — Sua Excelência Xarazade. McIver estava observando atentamente.

       — Do que se trata, Tom?

       — Nada. Nada, eu explico depois.

       O major tomou nota num pedaço de papel.

       — Qual é o seu relacionamento com o traidor Karim Peshadi?

       — Eu o conheço há cerca de dois anos, ele foi um dos meus alunos no curso de pilotos. Ele é primo da minha esposa... era primo da minha esposa. E eu só posso repetir que é inconcebível que ele fosse um traidor do Irã ou do Islã.

       O major fez outra anotação no bloco, com a pena rangendo.

       — Onde o senhor está morando, capitão?

       — Eu... eu não tenho certeza. Eu estava na casa dos Bakravan, perto do bazar. O nosso... nosso apartamento foi confiscado.

       O silêncio cresceu na sala, tornando-a claustrofóbica. O major terminou de escrever, depois apanhou uma folha cheia de anotações e olhou diretamente para McIver.

       — Primeiro, nenhum helicóptero estrangeiro pode entrar ou sair do espaço aéreo de Teerã sem autorização do QG da Força Aérea.

       Lochart traduziu e McIver balançou a cabeça. Isso não era nenhuma novidade, exceto que o komiteh do Aeroporto Internacional de Teerã tinha acabado de dar instruções oficiais por escrito, em nome do todo-poderoso Komiteh Revolucionário, de que só o komiteh podia autorizar e conceder tais autorizações. McIver tinha conseguido permissão para mandar o 212 que faltava e um dos seus Alouettes para Kowiss "em empréstimo temporário" bem a tempo, ele pensou com amargura, concentrando-se no major, mas imaginando quai teria sido a discussão em farsi com Lochart.

       — Segundo: nós queremos uma lista completa de todos os helicópteros sob sua responsabilidade, em que lugar do Irã eles se encontram, os números dos motores e a quantidade e o tipo de peças que vocês estão carregando em cada helicóptero.

       Lochart viu McIver arregalar os olhos, mas sua mente estava presa em Xarazade e na razão pela qual eles queriam saber onde ele morava e qual era o seu relacionamento com Karim, mal ouvindo as palavras que estava traduzindo.

       — O capitão McIver diz que: "Muito bem. Isso vai demorar um pouco por causa das comunicações, mas eu vou conseguir o mais cedo possível.

       — Eu gostaria de ter isso amanhã.

       — Se eu conseguir até lá, Excelência, fique certo de que o senhor a terá. O senhor a terá o mais cedo possível.

       — Terceiro: todos os seus helicópteros na área de Teerã serão reunidos aqui a partir de amanhã, e de agora em diante o senhor os operará daqui.

       — Eu irei certamente informar aos meus superiores da IranOil a respeito da sua solicitação, major. Imediatamente.

       O rosto do major endureceu.

       — A Força Aérea é que decide isso.

       — É claro. Eu informarei aos meus superiores imediatamente. Isto é tudo, major?

       — Quanto ao helicóptero. — E o mulá consultou uma anotação que estava na mesa em frente a ele. — HBC. Nós...

       — HBC! — McIver permitiu que o seu pânico explodisse numa raiva que Lochart teve dificuldade em transmitir: "A segurança é de responsabilidade da Força Aérea na base e eu não sei como eles puderam ser tão relapsos para deixar que o HBC fosse seqüestrado! Eu já reclamei várias vezes sobre isso, sentinelas que não aparecem, nenhum guarda à noite. Um roubo de um milhão de dólares. Insubstituível! Eu estou movendo uma ação contra a Força Aérea por negligência e...

       — Não foi culpa nossa — começou o major, com raiva, mas McIver não prestou atenção e continuou na ofensiva, não dando nenhuma chance a ele de falar, e nem Lochart, que transformou a tirada de McIver em palavras e frases apropriadas para um ataque ainda mais esmagador sobre a negligência da Força Aérea.

       — ... uma negligência inacreditável... eu poderia dizer mesmo uma traição deliberada e um complô por parte de outros oficiais, por permitir que algum americano desconhecido entrasse no nosso hangar, debaixo do nariz dos nossos supostos guardiães, recebesse autorização para voar, dada pelos nossos supostos protetores, e depois prejudicasse o grande Estado iraniano! Imperdoável! É claro que isso foi traição e planejada previamente por 'pessoas desconhecidas com posto de oficiais' e eu devo insis...

     — Como o senhor ousa insinuar que...

       — É claro que deve ter sido com a convivência de oficiais da Força Aérea. Quem é que controla a base? Quem é que controla o rádio, quem é que fica na torre, nós consideramos a Força Aérea responsável e eu estou registrando a queixa para os escalões mais altos da IranOil, exigindo restituição e... e na próxima semana, eu vou pedir uma indenização ao ilustre Komiteh Revolucionário e ao próprio imã, que Deus o proteja! Agora, Excelência, se me permite, nós vamos tratar do nosso trabalho. Que a paz esteja com os senhores.

       McIver dirigiu-se para a porta, seguido de Lochart, os dois homens cheios de adrenalina, McIver se sentindo mal, com dor no peito.

       — Esperem! — ordenou o mulá.

       — Sim, Excelência?

       — Como você explica que o traidor Valik, que 'por acaso' era um sócio da sua companhia e parente e partidário do xá, Bakravan, tenha chegado em Isfahan nesse helicóptero para apanhar outros traidores, um dos quais era o general Seladi, outro parente de Bakravan, sogro de um dos seus pilotos-chefes? A boca de Lochart estava seca quando ele repetiu essas palavras, mas McIver não hesitou e voltou ao ataque.

       — Não fui eu quem indicou o general Valik para o conselho, ele foi indicado por iranianos importantes de acordo com a lei daquela época. Nós não procuramos sócios iranianos, a lei iraniana é que nos obrigava a tê-los, eles nos foram impingidos. Eu não tenho, nada a ver com isso. Quanto ao resto, Insha'Allah, foi a vontade de Deus! — Com o coração disparado, ele abriu a porta e saiu. Lochart terminou de traduzir.

       — Salaam — ele disse e depois saiu.

       — Isso não vai ficar assim — gritou o major, atrás deles.

      

       PERTO DA UNIVERSIDADE: 18:07H. Eles estavam deitados um ao lado do outro sobre macios tapetes em frente à lareira que crepitava alegremente no aposento agradável. Xarazade e Ibrahim Kyabi. Eles não estavam se tocando, apenas olhando o fogo, ouvindo a música do gravador, pensativos, todos dois muito conscientes da presença do outro.

       — Tu, dádiva do universo — ele murmurou — tu dos lábios de rubi e hálito de vinho, tu, língua do paraíso...

       — Oh, Ibrahim — ela riu — que é isso de "língua do paraíso"?

       Ele se apoiou no cotovelo e olhou para ela, abençoando o destino que havia permitido que ele a salvasse do fanático louco na Marcha das Mulheres, o mesmo destino que em breve o levaria até Kowiss para vingar o assassinato do seu pai.

       — Eu estava citando o Rubãiyãt — ele disse, sorrindo para ela.

       — Eu não acredito numa só palavra! Acho que você inventou tudo isso. — Ela lhe devolveu o sorriso, depois afastou os olhos do brilho do seu amor, tornando a olhar para as chamas.

       Depois da primeira Marcha de Protesto, há seis dias, eles tinham conversado muito até esta noite, discutindo a revolução e encontrando uma causa em comum no assassinato do pai dele e do pai dela, ambos filhos da solidão agora, uma vez que suas mães não compreendiam, apenas choravam e repetiam Insha'Allah e nunca desejavam vingança. Suas vidas viraram do avesso assim como o seu país, Ibrahim não era mais um crente — acreditava apenas na força e no propósito do povo — a fé dela estava abalada, sendo questionada pela primeira vez, imaginando como Deus podia permitir tanta maldade e todas as outras maldades que tinham ocorrido desde então, a corrupção da terra e do seu espírito.

       — Eu concordo, Ibrahim, você tem razão. Nós não nos livramos de um déspota para aceitar outro! Você tem razão, o despotismo dos mulás se torna mais claro a cada dia — dissera. — Mas por que Khomeini se opõe aos direitos que o xá nos concedeu, direitos razoáveis?

       — São direitos inalienáveis que pertencem a você enquanto ser humano, não são para serem concedidos pelo xá nem por ninguém, assim como o seu corpo pertence a você, e não é um "campo para ser arado".

       — Mas por que o imã se opõe?

       — Ele não é um imã, Xarazade, apenas um aiatolá, um homem e um fanático. Porque ele está fazendo o que os padres sempre fizeram no decorrer da história: ele está usando a sua versão da religião para anestesiar o povo, para mantê-lo dependente, inculto, para assegurar o poder dos mulás. Ele não quer que apenas os mulás se responsabilizem pela educação? Ele não afirma que só os mulás compreendem a 'lei', estudam a 'lei', têm conhecimento da 'lei'? Como se eles sozinhos detivessem todo o saber!

       — Eu nunca pensei nisto assim, eu aceitei tanta coisa, tanta. Mas você está certo, Ibrahim, você torna tudo claro para mim. Você tem razão, os mulás só acreditam no que está no Corão, como se o que era certo no tempo do Profeta, que a paz esteja com ele, servisse para o dia de hoje! Eu me recuso a ser uma escrava sem direito de votar e de escolher...

       Encontraram muitas idéias em comum, ele, um moderno estudante universitário, ela, querendo ser moderna, mas insegura do caminho a seguir. Partilharam segredos e desejos, compreendendo instantaneamente um ao outro, usando as mesmas nuances, partilhando da mesma herança — ele tão parecido com Karim no discurso e na aparência que poderiam ser irmãos.

       Naquela noite ela dormira tranqüilamente e na manhã seguinte saíra cedo para se encontrar com ele de novo, tomando café numa pequena cafeteria, ela usando o chador para se proteger e se esconder, rindo tanto juntos, por tudo e por nada. Ambos conscientes das correntes, sem precisar falar nelas. Depois uma segunda Marcha de Protesto, maior do que a primeira, melhor e com pouca oposição.

       — Quando você tem que voltar, Xarazade?

       — Eu, eu disse a mamãe que voltaria tarde, que ia visitar uma amiga do outro lado da cidade.

       — Vou levá-la para lá agora, depressa, e você pode sair logo e então, se você quiser, nós poderemos conversar mais um pouco, ou melhor ainda, eu tenho um amigo que tem um apartamento e discos maravilhosos...

       Isto foi há cinco dias atrás. As vezes o seu amigo, um outro líder estudantil do Tudeh, estava em casa, às vezes havia outros estudantes, rapazes e moças, nem todos comunistas — novas idéias, discussões livres, idéias embriagadoras a respeito da vida e do amor, e de viver livremente. Ocasionalmente, eles ficavam sozinhos. Dias maravilhosos, marchando, conversando, rindo e ouvindo discos e noites de paz em casa, perto do bazar.

       Na véspera, a vitória. Khomeini cedera, publicamente, dizendo que as mulheres não estavam obrigadas a usar o chador desde que cobrissem os cabelos e se vestissem com discrição. Na noite passada eles tinham celebrado, dançando alegremente no apartamento, todos eles jovens, depois se beijaram e voltaram para casa. Mas na noite passada o seu sono fora perturbado pela visão dos dois juntos. Erótico. Naquela manhã ela tinha ficado deitada, sonolenta, amedrontada e no entanto excitada.

       A fita terminou. Era dos Carpenters, lenta, romântica. Ele a virou e o outro lado era melhor ainda. Será que eu vou ter coragem? Ela perguntou a si mesma sonhadoramente, sentindo a força dos olhos dele. Por uma fresta da cortina ela podia ver que o céu estava escurecendo.

       — Está quase na hora de ir — disse sem se mover, com um tremor na voz.

       — Jari pode esperar — ele disse ternamente. Jari, sua empregada, sabia das visitas secretas. — É melhor que ninguém saiba — ele tinha dito no segundo dia —, nem mesmo ela.

       — Ela tem que saber, Ibrahim, ou eu nunca poderei sair sozinha, nunca poderei vê-lo. Eu não tenho nada a esconder, mas sou casada e é... — Não foi preciso dizer 'perigoso'. Todos os momentos que eles passavam a sós significavam perigo.

       Então ele concordara e pedira ao destino que a protegesse, como fez agora.

       — Jari pode esperar.

       — Sim, pode, mas primeiro temos que fazer algumas compras e o meu querido irmão Meshang não... esta noite eu tenho que jantar com ele e Zarah.

       Ibrahim ficou assustado.

       — O que é que ele quer? Ele não desconfia de você?

       — Oh, não, é só um jantar de família, só isso. — Langorosamente, ela o olhou. — E quanto ao seu negócio em Kowiss? Você vai esperar mais um dia ou vai amanhã?

       — Não é urgente — ele disse despreocupadamente. Ele tinha adiado várias vezes embora o seu supervisor do Tudeh tivesse dito que cada dia a mais que ele ficava em Teerã aumentava o perigo:

       — Você já esqueceu o que aconteceu com o camarada Yazernov? Nós soubemos que o serviço secreto estava envolvido! Eles devem ter visto você entrando no prédio com ele, ou saindo de lá.

       — Eu tirei a barba, não voltei mais para casa e estou evitando a universidade. Aliás, camarada, é melhor que não nos encontremos por um dia ou dois, eu acho que estou sendo seguido. — Ele sorriu consigo mesmo, lembrando-se da rapidez com que o outro homem, um velho partidário do Tudeh, tinha desaparecido ao dobrar uma esquina.

       — Por que o sorriso, meu querido?

       — Por nada. Eu te amo, Xarazade — ele disse com simplicidade e acariciou-lhe o seio enquanto a beijava.

       Ela devolveu o beijo, mas não completamente. A paixão dele cresceu, bem como a dela, embora ela tentasse controlar-se, com a mão dele acariciando-a, deixando fogo no seu rastro.

       — Eu te amo, Xarazade... ame-me.

       Ela não queria afastar-se do calor, nem das suas mãos, nem da pressão dos seus membros, nem do tumulto do seu coração. Mas o fez.

       — Agora não, meu querido — ela murmurou e recuperou o fôlego e então, quando o seu coração se acalmou um pouco, ela olhou para ele, buscando os seus olhos. Ela viu decepção, mas não raiva. — Eu... eu não estou preparada, não para o amor, agora não...

       — O amor acontece. Eu amei você desde o primeiro momento. Você está segura, Xarazade, o seu amor estará seguro comigo.

       — Eu sei, oh, sim, eu sei disso. Eu... — Ela franziu a testa, sem entender a si mesma, só que agora era errado. — Eu tenho que estar certa do que estou fazendo. E agora eu não estou.

       Ele lutou consigo mesmo, então inclinou-se e beijou-a, sem forçar o beijo — confiante de que em breve eles se tornariam amantes. Amanhã. Ou depois.

       — Você é ajuizada como sempre — disse. — Amanhã nós teremos o apartamento só para nós. Eu prometo. Vamos nos encontrar como sempre, tomar café no lugar de sempre. — Ele se levantou e ajudou-a a levantar-se. Ela o abraçou e agradeceu e o beijou e ele abriu a porta da frente. Silenciosamente, ela vestiu o chador, jogou-lhe mais um beijo e saiu, deixando um rastro de perfume. Então isso também desapareceu.

       Depois de trancar a porta, ele voltou e calçou os sapatos, ainda sentido. Pensativamente, apanhou o seu M16 que estava num canto da sala, checou o mecanismo e a munição. Longe do feitiço dela, ele não tinha nenhuma ilusão a respeito do perigo ou das realidades da sua vida — e de que breve morreria. A sua excitação aumentou.

       Morte, pensou. Martírio. Dar a minha vida por uma causa justa, aceitar livremente a morte, desejando-a. Oh, eu o farei. Eu não posso liderar um exército como o Senhor dos Martírios, mas posso revoltar-me contra os satanistas que se autodenominam mulás e me vingar deles no mulá Hussein de Kowiss por ter assassinado o meu pai em nome de falsos deuses e por ter profanado a Revolução do Povo!

       Ele sentiu o seu êxtase aumentar. Como o outro. Mais forte do que o outro.

       Eu a amo com toda a minha alma, mas deveria ir amanhã. Não preciso de um grupo comigo, sozinho seria mais seguro. Eu posso pegar um ônibus facilmente. Eu deveria ir amanhã. Deveria, mas não posso, não posso, ainda não. Depois que fizermos amor..

     

       AEROPORTO DE AL SHARGAZ: 18:17H. A quase mil e trezentos quilômetros de distância para sudeste, do outro lado do golfo, no heliporto, Gavallan estava vendo o 212 se preparando para pousar. A tarde estava agradável, o sol desaparecia no horizonte. Agora ele podia ver Jean-Luc nos controles com um dos pilotos ao lado dele, não Scot, como ele tinha esperado no primeiro momento. Sua ansiedade aumentou. Ele acenou e então, quando as pás pousaram no solo, ele se dirigiu impaciente para a porta da cabine. Esta foi aberta. Ele viu Scot soltando o cinto com uma das mãos, o outro braço numa tipóia, o rosto pálido e tenso, mas inteiro.

       — Oh, meu filho — disse, com o coração batendo aliviado, querendo correr e abraçá-lo mas se controlando e esperando até que Scot tivesse descido os degraus e estivesse ali na pista ao lado dele.

       — Oh, rapaz, eu estava tão preocupado...

       — Não precisava, papai, eu estou bem, muito bem. — Scot abraçou o seu pai com o braço bom, um contato tão necessário para os dois, esquecidos dos outros. — Cristo, estou muito contente em vê-lo. Eu pensei que você fosse esperado em Londres hoje.

       — E sou esperado. Estou de partida daqui a uma hora. — Agora eu estou, estava pensando Gavallan, agora que você está aqui são e salvo. — Estarei lá assim que puder. — E limpou uma lágrima, fingindo que era poeira, e apontou para um carro parado ali perto. Genny estava na direção. — Não quero ser exagerado, Scot, mas Genny vai levá-lo ao hospital agora mesmo, só para tirar uma radiografia, está tudo providenciado. Sem estardalhaço, eu prometo. Há um quarto reservado para você ao lado do meu no hotel. Está bem?

       — Está bem, papai. Eu, ahn, eu... estou precisando de uma aspirina. Confesso que estou me sentindo pessimamente. A viagem foi um bocado acidentada. Eu, ahn, você já está de partida? Quando é que você volta?

       — Assim que puder. Dentro de um ou dois dias. Ligo para você amanhã, está bem?

       — Scot hesitou, com o rosto se contraindo.

       — Você poderia... você poderia vir comigo. Eu posso contar-lhe a respeito de Zagros, você teria tempo?

       — É claro. Foi muito ruim?

       — Sim e não. Nós todos escapamos, exceto Jordon, mas ele foi morto por minha causa, papai, ele foi... — Os olhos de Scot encheram-se de lágrimas embora sua voz permanecesse firme e controlada. — Não posso fazer nada sobre isso... nada. — Ele enxugou as lágrimas e resmungou um palavrão e se abraçou ao pai com a mão boa. — Não posso fazer nada... não sei como...

       — A culpa não foi sua, Scot — disse Gavallan, arrasado com o desespero do filho, assustado por ele. — Vamos embora... — E gritou para Jean-Luc: — Vou levar Scot para tirar uma radiografia, voltarei logo.

      

       TEERÃ — NO APARTAMENTO DE McIVER: 18:35H. Charlie Pettikin e Paula estavam sentados à mesa, à luz de velas, brindando com taças de vinho junto com Sayada Bertolin. Havia uma grande garrafa de Chianti aberta, travessas com dois grandes salames, um parcialmente comido, uma enorme fatia de queijo dolce latíe ainda intacto e duas bagueítes francesas que Sayada trouxera do Clube Francês, uma já no fim.

       — Pode estar havendo uma guerra — ela tinha dito com uma alegria forçada ao chegar sem ter sido convidada, há meia hora — mas aconteça o que acontecer, os franceses têm que ter um pão decente.

       —Vive Ia France e Viva Alitalia — respondera Pettikin, convidando-a com relutância para entrar, sem querer dividir Paula com ninguém. Desde que o interesse de Paula por Nogger Lane terminara, ele tinha entrado no páreo, cheio de esperanças. — Paula chegou esta tarde no vôo da Alitalia, contrabandeou tudo isso arriscando a própria vida, e não está com uma aparência fantástica?

       — É o dolce latte, Sayada. Charlie me disse que era o seu favorito — disse Paula, rindo.

       — Não é o melhor queijo do mundo? Tudo que é italiano não é o melhor do mundo?

       Paula apanhou o saca-rolhas e entregou a ele, com seus olhos esverdeados mandando arrepios pela sua espinha.

       — Para você, caro.

       — Magnífico! Será que todas as moças da Alitalia são tão gentis, corajosas, lindas, eficientes, doces, cheirosas, afetuosas e, ahn, cinematográficas?

       — É claro.

       — Venha para a festa, Sayada — ele tinha dito. Quando ela chegou mais perto, ele viu que ela estava com um ar estranho. — Você está bem?

       — Oh, sim, não é nada. — Sayada ficou satisfeita pela luz de vela que permitiu que ela disfarçasse. — Eu, ahn, obrigada, eu não vou ficar, eu... só estou com saudades de Jean-Luc, queria descobrir quando ele vai voltar, e achei que vocês gostariam das baguettes.

       — Foi ótimo você ter chegado. Há semanas que não comemos um pão decente, obrigado, mas fique de qualquer jeito. Mac foi apanhar o Tom em Doshan Tappeh. Tom deve saber de Jean-Luc. Eles devem estar chegando a qualquer momento.

       — Como está Zagros?

       Nós tivemos que fechar. — Enquanto ele providenciava os copos e ar rumava a mesa, com Paula ajudando e fazendo quase tudo, ele explicou a elas o motivo e contou-lhes a respeito do ataque terrorista à plataforma Bellissima, da morte de Gianni e, mais tarde, de Jordon, e do ferimento de Scot. — Um horror, mas aconteceu.

       — Terrível — disse Paula. — Isto explica por que nós vamos voltar por Shiraz e temos instruções de deixar cinqüenta lugares em aberto. Deve ser para os nossos compatriotas de Zagros.

       — Que azar — disse Sayada, imaginando se deveria passar essa informação. Para eles, e ele.

       A Voz tinha ligado ontem cedo, perguntando a que horas ela tinha deixado Teymour no sábado.

       — Por volta de cinco, cinco e quinze, por quê?

       — O maldito prédio pegou fogo pouco antes de escurecer, em algum lugar do terceiro andar, atingindo os outros andares. O prédio inteiro foi destruído, muitas pessoas morreram, e não há nenhum sinal de Teymour nem dos outros. É claro que os bombeiros chegaram tarde demais...

       Ela não teve dificuldade em chorar de verdade e deixar a sua agonia transparecer. Mais tarde a Voz tinha ligado de novo

       — Você deu os papéis a Teymour?

       — Sim... sim, eu dei.

       Tinha havido um palavrão abafado.

       — Esteja no Clube Francês amanhã de tarde. Deixarei instruções no seu armário. — Mas não havia nenhuma mensagem, então ela apanhara o pão na cozinha e fora para lá. Não havia nenhum outro lugar para ir e ela ainda estava muito assustada.

       — Que coisa triste — Paula estava dizendo:

       — Sim, mas chega disto — disse Pettikin, censurando-se por ter contado a elas. Isso não é problema delas, pensou. — Vamos comer, beber e nos alegrar.

       — Pois amanhã estaremos mortos? — perguntou Sayada.

       — Não. — Pettikin levantou o copo e sorriu para Paula. — Pois amanhã estaremos vivos. Saúde! — Ele brindou com ela e depois com Sayada, e pensou, que dupla fantástica, mas Paula é de longe a mais bonita..

       Sayada estava pensando: Charlie está apaixonado por esta sereia que vai se aproveitar dele quanto quiser e depois cuspir os restos sem hesitação, mas por que será que eles — os meus novos senhores, sejam eles quem forem — por que será que eles querem saber sobre Jean-Luc e Tom e querem que eu seja amante de Armstrong, e como eles sabem a respeito do meu filho, que Deus os amaldiçoe.

       Paula estava pensando: Eu odeio esta merda de cidade onde todo mundo está tão deprimido e melancólico como esta pobre mulher que obviamente está com o problema de sempre, amoroso, quando existe Roma, sol, Itália, e uma vida doce para gozar, vinho, risos e amor para desfrutar, crianças para gerar com um marido para adorar mas só enquanto o demônio se comportar — por que será que todos os homens são uns safados e por que será que eu gosto deste homem, Charlie, que é e não é velho demais, é e não é pobre demais, é e não é masculino demais...

       — Alora — ela disse, com o vinho tornando os seus lábios mais suculentos — Charlie, amore, nós precisamos nos encontrar em Roma. Teerã é tão... tão depressão, scusa, deprimente.

       — Não quando você está por perto — ele disse. Sayada os viu sorrir um para o outro e os invejou.

       — Acho que voltarei mais tarde — disse, levantando-se. Antes que Pettikin pudesse dizer alguma coisa, uma chave girou na fechadura e McIver entrou.

       — Oh, olá — disse, tentando esquecer o cansaço. — Oi, Paula, oi, Sayada. Que surpresa agradável. — Então ele notou a mesa. — O que é isso, Natal? — Ele tirou o casacão e as luvas.

       — Foi Paula quem trouxe, e Sayada trouxe pão. Onde está Tom? — perguntou Pettikin, sentindo imediatamente que havia alguma coisa errada.

       — Eu o deixei na casa dos Bakravan, perto do bazar.

       — Como vai ela? — perguntou Sayada. — Eu não a vejo desde... desde o dia da marcha, primeiro de março.

       — Eu não sei, garota, apenas deixei-o lá e vim para casa. — McIver aceitou um copo de vinho, devolvendo o olhar de Pettikin. — O tráfego estava horrível. Eu levei uma hora para chegar aqui. Saúde! Paula, você é um colírio para os olhos. Você vai passar a noite aqui?

       — Se não for incomodar? Eu vou sair cedo amanhã de manhã, não vou precisar de condução, caro, um dos membros da tripulação me deixou aqui e vem me buscar amanhã. Genny disse que eu podia usar o quarto de hóspedes. Ela achou que ele poderia estar precisando de uma faxina, mas ele me parece limpo. — Paula se levantou e os dois homens, involuntariamente, foram imediatamente atraídos pela sensualidade dos seus movimentos. Sayada xingou-a, com inveja, imaginando por que seria, o uniforme não era, com certeza, pois era muito severo embora lindamente cortado, sabendo que ela própria era muito mais bonita, muito mais bem vestida, mas não da mesma raça. Vaca!

       Paula apanhou a bolsa e tirou duas cartas que entregou a McIver.

       — Uma de Genny e uma de Andy.

       — Obrigado, muito obrigado — agradeceu McIver.

       — Eu estava saindo, Mac — disse Sayada. — Só queria perguntar quando é que Jean-Luc vai voltar.

       — Provavelmente na quarta-feira. Ele está transportando um 212 para Al Shargaz. Ele deve chegar lá hoje e voltar na quarta-feira. — McIver olhou para as cartas. — Não precisa ir embora, Sayada... dêem-me licença um minuto.

       Ele se sentou na poltrona ao lado do aquecedor que estava funcionando a meio vapor e acendeu um abajur. A luz tirou muito do romantismo da sala. A carta de Gavallan dizia: "Oi, Mac, escrevo às pressas, cortesia da mais linda de todas! Estou esperando por Scot. Depois parto para Londres esta noite, se ele estiver bem, mas voltarei dentro de dois dias, três no máximo. Consegui tirar Duke de Kowiss e o mandei falar com Rudi, caso Scrag se atrase — ele deve estar de volta na terça-feira. Kowiss está muito confuso — eu tive uma briga feia com 'Pé-quente' — e Zagros também. Acabei de falar com Masson e é isso mesmo. Então estou dando o sinal verde para o plano. Está dado. Vejo você na quarta-feira. Dê um abraço em Paula por mim e Genny manda dizer que você não ouse fazer isso!"

       Ele ficou olhando para a carta, depois recostou-se na poltrona por um momento, ouvindo, distraído, uma história que Paula estava contando sobre o vôo para Teerã. Então ele apertou o botão. Não se iluda, Andy, eu sabia que você iria apertá-lo desde o primeiro momento — foi por isto que eu disse: Certo, desde que eu possa cancelar a operação se achar que é arriscada demais e a minha decisão é definitiva. Eu acho que você deve apertar o botão até o fim. Você não tem outra alternativa se quiser sobreviver.

       O vinho estava muito bom. Ele terminou o copo, depois abriu a carta de Genny. Eram apenas notícias de casa e das crianças, todos com saúde e felizes, mas ele a conhecia bem demais para não ver nas entrelinhas a sua preocupação: "Não se preocupe, Duncan, e não se esforce demais. E não pense que estou planejando uma casinha cheia de flores na Inglaterra. Eu estou aqui praticando a dança do ventre, então é melhor você se apressar. Amor, Gen."

       McIver sorriu para si mesmo, se levantou e se serviu de mais vinho, sentindo-se mais calmo agora. Brindou com Pettikin:

       — Um brinde às mulheres. Vinho fantástico, Paula. Andy mandou-lhe um abraço... — Na mesma hora ela sorriu, estendeu a mão e tocou nele e ele sentiu um arrepio percorrer-lhe o braço. O que será que ela tem? perguntou a si mesmo, perturbado, e disse rapidamente para Sayada: — Ele mandaria um para você também se soubesse que você estava aqui. — Uma das velas na lareira estava derretendo. — Deixe que eu apanho. Algum recado?

       — Tem um recado de Talbot. Ele está fazendo tudo o que pode para encontrar Erikki. Duke ficou preso em Bandar Delam por causa de uma tempestade, mas deve voltar a Kowiss amanhã.

       — E Azadeh?

       — Ela está melhor hoje. Paula e eu a acompanhamos até em casa. Ela está bem, Mac. É melhor você comer alguma coisa, não há nada para jantar.

       — Que tal jantarmos no Clube Francês? A comida ainda está passável — disse Sayada.

       — Eu adoraria — Paula disse animadamente e Pettikin praguejou. — Que idéia maravilhosa, Sayada! Charlie?

       — Ótimo, Mac?

       — Claro, se for por minha conta e se vocês não se importarem de voltar cedo. — McIver segurou o copo contra a luz, admirando a cor do vinho. — Charlie, quero que você leve o 212 para Kowiss bem cedinho, Nogger vai levar o Alouette. Você pode ficar ajudando Duke uns dois dias. Vou mandar Shoesmith num 206 para buscá-lo no sábado. Está bem?

       — Claro — disse Pettikin, imaginando o motivo da mudança nos planos que eram que McIver, Nogger e ele próprio embarcassem no vôo de quarta-feira, e dois outros pilotos iriam para Kowiss amanhã. Por quê? Deve ter sido a carta de Andy. Turbilhão? Será que Mac vai cancelar?

      

       NAS FAVELAS DE JALEH: 18:50H. O velho carro parou no beco. Um homem saltou e olhou em volta. O beco estava deserto, muros altos, uma vala de um dos lados que já estava coberta de neve e lixo há muito tempo. Do outro lado de onde o carro tinha parado, fracamente iluminada pela luz do farol, havia uma praça arruinada. O homem deu uma batida no teto. Os faróis foram apagados. O motorista saltou e foi ajudar o outro homem, que tinha aberto a mala. Juntos eles carregaram o corpo, enrolado num cobertor escuro, através da praça.

       — Espere um pouco — o motorista disse em russo. Ele apanhou a lanterna e acendeu-a por um instante. O círculo de luz mostrou a abertura no muro que ele estava procurando.

       — Ótimo — disse o outro, e eles a atravessaram, depois tornaram a parar para se localizarem.

       Agora eles estavam num cemitério velho, quase abandonado. Eles foram iluminando túmulo por túmulo — algumas das inscrições em russo, algumas em letras romanas — até encontrar o túmulo aberto, recém-cavado. Havia uma pá enfiada no monte de terra.

       Eles foram até a beirada. O homem mais alto, o motorista, disse:

       — Pronto?

       — Sim. — Eles deixaram o corpo cair no buraco. O motorista iluminou-o com a lanterna. — Endireite-o.

       — Ele não vai ligar a mínima — disse o outro homem e apanhou a pá. Era um homem muito forte e de ombros largos e começou a encher o túmulo. O motorista acendeu um cigarro, atirando o fósforo, com raiva, dentro do túmulo.

        — Talvez você devesse dizer uma oração por ele. O outro riu.

       — Marx-Lenin não aprovariam. Nem o velho Stalin.

       — Aquele filho da puta... que ele apodreça!

       — Olhe o que ele fez pela mãe Rússia! Ele construiu um império, o maior do mundo, coagiu os britânicos, enganou os americanos, formou o maior e melhor exército, marinha e aeronáutica e tornou a KGB assim tão poderosa.

       — Com cada rublo que possuíamos e vinte milhões de vidas. Vidas de russos.

       — Dispensáveis! A escória, idiotas, a ralé, havia muito mais gente no lugar de onde eles vieram. — O homem estava suando agora e entregou a pá para o outro. — O que há com você, afinal?, você já estava enfezado desde cedo.

       — Estou só cansado. Desculpe.

       — Todo mundo está cansado. Você precisa de alguns dias de descanso. Candidate-se a ir para Al Shargaz. Eu tive três dias ótimos lá, não queria mais voltar. Eu pedi para ser transferido de uma vez para lá. Temos uma operação grande lá agora, crescendo todo dia, os israelenses também intensificaram as suas operações, assim como a CIA. O que foi que aconteceu desde que eu parti?

       — O Azerbeijão está esquentando. Há boatos de que o velho Abdullah Khan está morto ou morrendo.

       — A Seção 16/a?

       — Não, ataque de coração. O resto está normal. Você se divertiu mesmo? O outro riu.

       — Tem uma secretária da Intourist lá que é muito hospitaleira. — Ele coçou o saco ao se lembrar. — Quem é esse desgraçado, afinal?

       — O nome dele não estava relacionado — disse o motorista.

       — Nunca está. Então quem era ele?

       — Um agente chamado Yazernov, Dimitri Yazernov.

       — Não significa nada para mim. E para você?

       — Ele era um agente na área da universidade; eu trabalhei com ele por algum tempo, há um ano atrás. Esperto, gênero culto, cheio de baboseiras ideológicas. Parece que ele foi apanhado pelo Serviço Secreto e seriamente interrogado.

       — Filhos da mãe! Eles o mataram, não foi?

       — Não. — O homem mais alto parou de trabalhar por um momento e olhou em volta. Não havia nenhuma chance deles estarem sendo ouvidos e embora ele não acreditasse em fantasmas nem em Deus nem em nada, só no Partido e na KGB, a cabeça do partido, ele não estava gostando daquele lugar. Ele baixou a voz. — Quando ele foi recuperado, há quase uma semana, ele estava mal, inconsciente, nunca deveria ter sido removido, não no seu estado. A Savama o tirou das mãos do Serviço Secreto. O diretor acha que a Savama também trabalhou nele antes de devolvê-lo. — Ele se apoiou na pá por um momento. — A Savama o devolveu com o recado que achavam que ele tinha revelado tudo através do terceiro nível. O diretor disse para descobrir depressa quem era ele, se ele tinha outras certidões secretas, ou se era um espião interno ou um disfarce para alguém mais alto, e que diabos ele tinha contado a eles, quem ele era, afinal. Ele não consta das nossas fichas como sendo outra coisa além de um agente da área universitária. — Ele enxugou o suor da testa e começou a trabalhar de novo. — Eu ouvi dizer que o grupo esperou um tempão que ele recobrasse a consciência, então hoje eles desistiram e tentaram acordá-lo.

       — Um erro? Alguém exagerou na dose?

       — Quem sabe? O pobre infeliz está morto.

       — Esta é uma das coisas que me assusta — disse o outro, estremecendo. — Receber uma dose forte demais. Não há nada que você possa fazer a respeito. Ele não chegou a acordar? Não disse nada?

       — Não. Nadinha. A merda é ele ter sido apanhado. Foi culpa dele. O filho da mãe estava trabalhando por conta própria.

       O outro praguejou.

       — Como foi que ele conseguiu?

       — Não faço a menor idéia! Eu me lembro dele como um desses que acham que sabem tudo e riem do Livro. Esperto? Uma ova! Esses filhos da mãe não valem os problemas que causam. — O homem mais alto trabalhava duro e sem parar. Quando se cansava, o outro o substituía.

        Em pouco tempo, o túmulo estava tapado. O homem alisou a terra, ofegante.

       — Se esse cretino se deixou apanhar, então por que estamos tendo todo esse trabalho?

       — Quando o corpo não pode ser repatriado, o camarada tem direito a um enterro decente, está no Livro. Este é um cemitério russo, não é?

       — Claro que sim, mas eu é que não queria ser enterrado aqui. — O homem limpou a terra das mãos, depois virou-se e urinou no túmulo mais próximo.

       O homem mais alto estava apanhando uma lápide.

       — Me ajuda aqui. — Juntos, eles levantaram a lápide e a colocaram sobre o túmulo que tinham acabado de encher.

       Por que o desgraçado teve que morrer, pensou, amaldiçoando-o. A culpa não foi minha. Ele devia ter agüentado a dose. Malditos médicos! Eles deveriam saber! Nós não tivemos escolha, o filho da mãe estava afundando de qualquer maneira e havia muitas perguntas a serem respondidas, como o que havia de tão importante com relação a ele para que o maldito filho da mãe do Hashemi Fazir se encarregasse pessoalmente de interrogá-lo, junto com aquele filho da puta do Armstrong. Aqueles dois profissionais importantes não perdem tempo com arraia miúda. E por que foi que Yazernov disse "Fedor..." pouco antes de morrer? Qual o significado disso?

       — Vamos embora — disse o outro homem. — Este lugar é horrível e fede, fede mais do que o normal. — Ele pegou a pá e saiu andando na escuridão.

       Neste momento a inscrição da lápide atraiu a atenção do motorista, mas estava escuro demais para ler. Ele acendeu a lanterna um instante. A inscrição dizia: "Conde Alexi Pokenov, Plenipotenciário do xá Nasiru'd Din, 1830-1862."

       Yazernov ia gostar disto, ele pensou, sorrindo cinicamente.

      

       NA CASA DOS BAKRAVAN, PERTO DO BAZAR: 19:15H. A porta da rua foi aberta.

       — Salaam, Alteza. — O empregado observou Xarazade entrar para o pátio alegremente, seguida de Jari e tirar o chador, e agora ela estava sacudindo os cabelos e afofando-os com os dedos. — O... o seu marido está de volta, Alteza; ele voltou logo depois do pôr-do-sol.

       Por um instante, Xarazade ficou imóvel sob a luz das lamparinas a óleo que piscavam no pátio coberto de neve.

       Então está acabado, ela estava pensando. Acabou antes de começar. Quase começou hoje, eu estava pronta e no entanto não... e agora, agora estou a salvo do... do meu desejo — era desejo ou amor, será que era isso que eu estava tentando decidir? Eu não sei, não sei, mas amanhã... amanhã eu o verei uma última vez, tenho que vê-lo mais uma vez, só mais uma vez... só para dizer adeus.

       Seus olhos se encheram de lágrimas e ela correu para dentro de casa, atravessou os salões, subiu as escadas, entrou no seu quarto e caiu nos braços dele.

       — Oh, Tommyyyy, você esteve tanto tempo longe!

       — Oh, eu senti tantas saudades suas, onde você... Não chore, minha querida, não há motivo para chorar...

       Seus braços estavam em volta dela e ela sentiu o cheiro familiar de gasolina e óleo que vinha das suas roupas de piloto, penduradas no cabide. Ela viu a seriedade dele. O HBC surgiu na sua mente, mas ela o afastou e, sem dar-lhe um segundo, ficou na ponta dos pés, beijou-o e disse rapidamente:

       — Tenho novidades maravilhosas, estou grávida, oh, sim, é verdade, eu estive no médico e amanhã vou apanhar o resultado do teste, mas eu sei — O seu sorriso era alegre e franco. — Oh, Tommy — ela continuou na mesma velocidade, sentindo o seu abraço cada vez mais apertado —, você quer se casar comigo, por favor, por favor?

       — Mas nós somos casad...

       — Diga que sim, oh, por favor, diga que sim! — ela levantou os olhos e viu que ele ainda estava pálido e sorrindo muito pouco, mas isso já era o suficiente naquele momento e ela o ouviu dizer:

       — É claro que eu me caso com você.

       — Não, diga direito: "Eu me caso com você, Xarazade Bakravan. Eu me caso com você, eu me caso com você" — então ela o ouviu repetir e isso tornou tudo perfeito.

       — Perfeito — ela exclamou e abraçou-o, depois se afastou dele e correu para o espelho para ajeitar a maquilagem. E viu o rosto de Lochart no espelho, tão severo, inquieto. — O que foi?

        — Você tem certeza sobre a criança?

       — Oh, eu tenho certeza — ela riu —, mas o médico precisa de provas, maridos precisam de provas. Não é maravilhoso?

       — Sim, sim, é. — Ele pôs as mãos nos ombros dela. — Eu te amo! Na cabeça dela, ela ouviu o outro 'eu te amo' que tinha sido dito com tanta paixão e desejo e pensou como era estranho que embora o amor do seu marido fosse uma coisa certa e provada, o de Ibrahim não era — e no entanto o de Ibrahim era sem reservas enquanto que, mesmo depois das notícias maravilhosas, o seu marido estava de testa franzida.

       — Já se passou um ano e um dia, Tommy, um ano e um dia que você quis — ela disse docemente e se levantou da penteadeira, pôs as mãos em volta do pescoço dele, sorrindo para ele, sabendo que precisava ajudá-lo: "Os estrangeiros não são como nós, princesa" Jari tinha dito "suas reações são diferentes, sua educação é diferente, mas não se preocupe, seja tão encantadora como sempre e ele será como argila nas suas mãos..."

       Tommy vai ser o melhor pai do mundo, ela prometeu a si mesma, imensamente feliz por não ter cedido naquela tarde por ter contado a sua novidade, e agora eles viveriam felizes para sempre.

       — Nós vamos, Tommy, não vamos?

       — O quê?

      — Viver felizes para sempre?

       Por um instante a alegria dela sufocou a sua tristeza por causa de Karim Peshadi, do que fazer e como fazer. Ele a ergueu nos braços e se sentou na poltrona, embalando-a.

       — Oh, sim. Oh, sim. Nós vamos ser felizes. Há tanto o que conversar — eles foram interrompidos por Jari batendo na porta.

       — Entre Jari.

       — Por favor, desculpe-me, Excelência, mas Sua Excelência Meshang e Sua Alteza chegaram e estão esperando para ter o prazer de vê-los quando for conveniente.

       — Diga a Sua Excelência que estaremos lá assim que tivermos acabado de trocar de roupa. — Lochart não notou o alívio de Jari quando Xarazade balançou afirmativamente a cabeça e riu para ela.

       — Vou preparar o seu banho, Alteza — disse Jari e entrou no banheiro. — Não é maravilhoso, Excelência? Oh, meus parabéns, Excelência, meus parabéns...

       — Obrigado, Jari — Lochart disse distraidamente, pensando na criança e em Xarazade, cheio de preocupação e felicidade. Tudo está tão complicado agora, tão difícil.

       — Difícil não — Meshang disse depois do jantar.

       A conversa tinha sido chata, com Meshang dominando-a como sempre fazia, agora que era o chefe da casa. Xarazade e Zarah quase não falaram, Lochart falou muito pouco — não havia sentido em mencionar Zagros, uma vez que Meshang nunca tinha se interessado pelas suas opiniões nem pelo que ele fazia. Por duas vezes ele esteve a ponto de contar-lhes sobre Karim — não há razão para contar-lhes ainda, tinha pensado, escondendo o seu desespero, Por que eu vou ser mensageiro de más notícias?

       — Você não está achando a vida difícil em Teerã hoje em dia? — perguntou. Meshang estava se queixando dos novos regulamentos implantados no bazar.

       — A vida sempre foi difícil — disse Meshang —, mas quando se é iraniano, quando se é um lojista experiente, com cautela e compreensão, com trabalho e lógica, até o Komiteh Revolucionário pode ser dobrado. Nós sempre dobramos os cobradores de impostos, os xás, comissários e os paxás ianques e ingleses.

       — Estou contente em saber disto, muito contente.

       — E eu estou muito contente por você estar de volta, eu estava querendo falar com você — disse Meshang. — Minha irmã já lhe contou sobre a criança?

       — Sim, já. Não é maravilhoso?

       — Sim, é. Deus seja louvado. Quais são os seus planos?

       — O que você quer dizer?

       — Onde vocês vão viver? Como é que você vai pagar por tudo agora? O silêncio foi longo.

       — Nós vamos dar um jeito — Lochart começou. — Eu preten...

       — Não sei como você vai conseguir, logicamente falando. Eu estive vendo as contas do ano passado e... — Meshang parou quando Zarah se levantou.

       — Não acho que esta seja uma boa hora para falar em contas — ela disse, com o rosto branco, e o de Xarazade também.

       — Bem, eu acho que é — Meshang disse asperamente. — Como é que a minha irmã vai sobreviver? Sente-se, Zarah, e ouça! Sente-se! E, daqui para a frente, quando eu disser que você não vai a uma marcha de protesto ou a qualquer outro lugar, você vai obedecer ou eu lhe dou uma surra! Sente-se — Zarah obedeceu, chocada com a violência e a brutalidade dele. Xarazade estava sem ação, o seu mundo estava ruindo. Ela viu o seu irmão virar-se para Lochart.

       — Agora, capitão, as suas contas do ano passado, as contas pagas por meu pai, sem falar nas que estão atrasadas e ainda não foram pagas, são substancialmente maiores do que o seu salário. Não é verdade?

       O rosto de Xarazade estava ardendo de vergonha e de raiva e antes que Lochart pudesse responder, ela disse rapidamente, na sua voz mais melosa:

       — Meshang querido, você tem toda a razão em se preocupar conosco, mas o apart...

       — Por favor, fique quieta! Eu tenho que perguntar ao seu marido, não a você, isto é problema dele, não seu. Bem, capitão...

       — Mas Meshang querido...

       — Fique quieta! Bem, capitão, é ou não é verdade?

       — Sim, é verdade — Lochart respondeu, procurando desesperadamente uma maneira de sair do abismo. — Mas você deve se lembrar de que Sua Excelência me deu o apartamento, de fato todo o prédio, e os outros aluguéis pagavam as contas e o resto era para a mesada de Xarazade, e sou eternamente grato por isso. Quanto ao futuro, eu tomarei conta de Xarazade, é claro que sim.

       — Com o quê? Eu li o seu processo de divórcio e está claro que com o que você paga à sua ex-mulher e aos seus filhos, há muito pouca chance de manter a minha irmã longe da miséria.

       Lochart ficou engasgado de raiva. Xarazade se mexeu na cadeira e Lochart viu o seu medo e dominou o impulso de dar um soco em Meshang.

       — Está tudo bem, Xarazade. O seu irmão tem o direito de perguntar. É justo, ele tem este direito. — Ele viu o ar convencido do outro e percebeu que a guerra estava declarada. — Nós vamos dar um jeito, Meshang. O nosso apartamento não vai ficar confiscado para sempre, ou então podemos arranjar outro. Nós vamos...

       — Não há nem apartamento nem edifício. Ele pegou fogo no sábado. Está tudo destruído.

       Eles o olharam estatelados, e a mais chocada foi Xarazade.

       — Oh, Meshang, você tem certeza? Por que não me contou? Por...

       — Será que você tem tantas propriedades assim que não as verifique de vez em quando? Está tudo destruído.

       — Oh, Cristo! — Lochart murmurou.

       — É melhor você não blasfemar — disse Meshang, achando difícil não demonstrar a sua satisfação. — Então não há nem apartamento nem edifício nem nada. Insha'Allah. E agora, como você pretende pagar as suas contas?

       — Seguro! — Lochart exclamou. — Deve haver um segu...

       Uma gargalhada o interrompeu, Xarazade derrubou um copo d'água e ninguém reparou.

       — Você acha que o seguro será pago? — Meshang riu ironicamente. — Agora? Mesmo que haja seguro? Você perdeu o juízo, não há nenhum seguro, nunca houve. Então, capitão: muitas dívidas, nenhum dinheiro, nenhum capital, nenhum prédio. Não que ele fosse legalmente seu, era apenas uma saída honrosa que meu pai tinha arranjado para lhe dar meios de cuidar de Xarazade. — Ele apanhou um pedaço de halvah e enfiou na boca. — Então, o que você propõe?

       — Eu vou dar um jeito.

       — Como?, diga-me por favor. E Xarazade, é claro, tem o direito, o direito legal, de saber. Como?

       — Eu tenho jóias, Tommy, posso vendê-las — murmurou Xarazade. Cruelmente, Meshang deixou que estas palavras ficassem soando no ar, encantado de ver Lochart encurralado, humilhado, sem nada. Infiel imundo! Se não fosse pelos Locharts do mundo, os estrangeiros gananciosos, exploradores do Irã, nós estaríamos livres de Khomeini e seus mulás, meu pai ainda estaria vivo, Xarazade estaria bem casada.

       — E então?

       — O que você sugere? — disse Lochart, sem escapatória.

       — O que você sugere?

       — Não sei.

       — Enquanto isso, você não tem casa, deve bastante dinheiro e em breve estará desempregado. Eu duvido que a sua companhia vá ter licença para operar aqui por muito tempo mais; com toda a razão, as companhias estrangeiras são persona non grata. — Meshang estava encantado por ter-se lembrado da expressão latina. — Não são mais nem desejadas nem necessárias.

       — Caso isso aconteça, eu vou me demitir e me oferecer para pilotar helicópteros em companhias iranianas. Eles vão precisar de pilotos imediatamente. Eu sei falar farsi, sou um piloto e um instrutor experiente. Khomeini... o imã quer que a produção de petróleo seja normalizada imediatamente, então é claro que eles vão precisar de pilotos treinados.

       Meshang riu consigo mesmo. Na véspera, o ministro Ali Kia tinha ido ao bazar, devidamente humilde e ansioso por agradar, levando um pishkesh diferente — a sua "taxa de consultoria" não estava para ser renovada? — e tinha contado a ele os seus planos de adquirir todos os aviões das sociedades mistas e congelar todas as contas bancárias.

       — Nós não teremos dificuldade em conseguir todos os mercenários que precisamos para pilotar os nossos helicópteros, Excelência Meshang — Kia tinha dito. — Eles virão em bandos pela metade dos salários normais.

       Sim, eles virão, mas não você, marido temporário da minha irmã, nem mesmo por um décimo do salário.

       — Eu sugiro que você seja mais prático. — Meshang examinou as suas unhas bem tratadas, que esta tarde tinham acariciado a garota de 14 anos que Ali Kia lhe oferecera. "A primeira de muitas, Excelência!" Linda circassiana de pele clara, o casamento temporário daquela tarde que ele estenderia por toda a semana, com muita facilidade. — Os governantes atuais do Irã são xenófobos, particularmente com respeito a americanos.

       — Eu sou canadense.

       — Duvido que isso importe. É lógico presumir que você não terá permissão para ficar. — Ele olhou severamente para Xarazade. — Nem para voltar.

       — Suposições — Lochart disse entredentes, vendo a expressão do rosto dela.

       — Capitão, a caridade do meu falecido pai não pode mais ser mantida. Os tempos estão difíceis. Eu quero saber como o senhor pretende sustentar a minha irmã e o seu filho, onde o senhor pretende viver e como.

       Lochart levantou-se repentinamente, surpreendendo todo mundo.

       — O senhor expôs o seu caso muito claramente, Excelência Meshang. Terá a sua resposta amanhã.

       — Eu quero uma resposta agora. Lochart fechou ainda mais a cara.

       — Primeiro eu vou conversar com a minha mulher e amanhã eu conversarei com o senhor. Vamos, Xarazade. — E se retirou. Com o rosto banhado de lágrimas, ela saiu atrás dele e fechou a porta.

       Meshang sorriu sardonicamente, apanhou outro doce e começou a comê-lo.

       Zarah suspirou, enraivecida.

       — Em nome de Deus, o que...

       Ele se levantou e deu-lhe uma bofetada.

       — Cale a boca! — gritou. Não era a primeira vez que ele batia nela, mas nunca com tanta violência. — Cale a boca ou eu me divorciarei de você! Eu me divorciarei de você, está ouvindo? Eu vou tomar uma outra esposa de qualquer maneira, alguém jovem, não uma velha chata e seca como você. Você não compreende que Xarazade está correndo perigo, que nós todos estamos correndo perigo por causa desse homem? Vá pedir perdão a Deus pelos seus péssimos modos! Saia! — Ela saiu correndo. Ele atirou um copo atrás dela.

      

       NOS SUBÚRBIOS AO NORTE: 21:14H. Azadeh guiava velozmente o carro pequeno e muito amassado pela rua ladeada de belas casas e edifícios — quase todos às escuras, alguns destruídos. Estava com os faróis altos, ofuscando os carros que vinham em sentido contrário, com a mão enfiada na buzina.

       Ela freou, derrapou ao ultrapassar perigosamente alguns carros, evitando por pouco um acidente, e entrou na garagem de um dos edifícios com os pneus cantando.

       A garagem estava às escuras. Ela tinha uma lanterna no bolso, acendeu-a, saltou e trancou o carro. O seu casaco era bem contado e quente, estava usando saia, botas, luvas de lã e chapéu, tinha os cabelos soltos. Do outro lado da garagem havia uma escada e um interruptor. Quando ela o experimentou, a lâmpada mais próxima acendeu e apagou. Ela subiu as escadas devagar. Havia quatro apartamentos em cada andar. O apartamento que seu pai tinha emprestado a ela e a Erikki ficava no terceiro andar em frente à rua. Hoje era segunda-feira. Ela estava lá desde sábado.

       — Não é perigoso, Mac — ela dissera ao anunciar que ia para lá e ele tentara convencê-la a ficar no apartamento dele — mas se meu pai me quiser de volta em Tabriz, o fato de estar aqui na sua casa não vai me ajudar nem um pouco. No apartamento eu tenho um telefone, só estarei a um quilômetro de distância daqui e posso vir a pé facilmente. Lá eu tenho roupas e uma empregada. Eu vou dar notícias todos os dias, irei para o escritório e ficarei esperando. É só o que posso fazer.

       Ela não dissera que preferia ficar longe dele e de Charlie Pettikin. Eu gosto muito deles, pensou, mas eles são um tanto velhos e pedantes, nada parecidos com Erikki, nem com Johnny. Ah, Johnny, o que vou fazer a seu respeito? Será que terei coragem de tornar a vê-lo?

       O terceiro andar estava escuro mas ela tinha a lanterna e encontrou a chave, enfiou-a na fechadura, sentiu que alguém a olhava e se virou, assustada. O vagabundo sujo e barbado estava com as calças abertas e sacudiu o pênis duro para ela.

       — Estava esperando por você, princesa de todas as prostitutas, e que Deus me castigue se ele não estiver pronto para você, de frente, de costas ou de lado... — Ele se aproximou dizendo obscenidades e ela recuou em direção à porta, aterrorizada, agarrou a chave, virou-a na fechadura e abriu a porta.

       O doberman estava lá. O homem estacou. O cachorro rosnou ameaçadoramente e em seguida atacou. Em pânico, o homem gritou e tentou afastar o cachorro, depois saiu correndo pelas escadas, com o cachorro latindo e rosnando, mordendo as suas pernas, rasgando as suas roupas, e Azadeh gritou:

       — Mostre-me agora!

       — Oh, Alteza, eu não ouvi a senhora bater, o que está havendo? — falou o velho empregado, saindo apressadamente da cozinha.

       Zangada, ela enxugou o suor do rosto e contou a ele.

       — Que Deus o amaldiçoe, Ali, eu já lhe disse vinte vezes para me esperar lá embaixo com o cachorro. Eu venho na hora, venho sempre na hora. Você não raciocina?

       O velho se desculpou, mas uma voz grossa atrás dele o interrompeu.

       — Vá buscar o cachorro! — Ela se virou. Seu estômago contraiu-se.

       — Boa noite, Alteza. — Era Ahmed Dursak, alto, barbado, assustador, em pé na porta da sala. Insha'Allah, ela pensou. A espera terminou e agora começa tudo de novo.

       — Boa noite, Ahmed.

       — Alteza, perdoe-me, eu não imaginava que o povo de Teerã fosse assim, senão eu mesmo a teria esperado lá embaixo. Ali, o cão!

       Amedrontado e ainda murmurando desculpas, o criado desceu as escadas. Ahmed fechou a porta e observou Azadeh tirar as botas e enfiar os pés em sandálias turcas. Ela passou por ele e entrou na sala confortável, mobiliada à moda ocidental e sentou-se, com o coração batendo. Havia um fogo crepitando na lareira. O chão estava coberto de tapetes valiosos e havia outros pendurados nas paredes. Ao lado dela havia uma mesinha. Na mesinha estava o kookri que Ross tinha deixado.

       — Você tem notícias do meu pai e do meu marido?

       — Sua Alteza, o khan, está muito doente, muito doente e...

       — Que doença? — perguntou Azadeh, realmente preocupada.

       — Um ataque cardíaco.

       — Que Deus o proteja. Quando foi que aconteceu?

       — Na última quinta-feira. — Ele leu o seu pensamento. — Foi no dia em que você e... e o Sabotador foram para a aldeia de Abu Mard, não foi?

       — Acho que sim. Os últimos dias foram muito confusos — ela disse friamente. — Como está o meu pai?

       — O ataque de quinta-feira foi brando, graças a Deus. Pouco antes da meia-noite de sábado ele teve outro. Muito pior. — Ele observou-a.

       — Qual a gravidade? Por favor, não brinque comigo! Conte-me tudo de uma vez.

       — Ah, sinto muito, Alteza, não tive a intenção de brincar. — Ele manteve a voz educada e os olhos longe das pernas dela, admirando o seu fogo e o seu orgulho e desejando muito brincar com ela. — O médico disse que foi um ataque e agora o lado esquerdo de Sua Alteza está parcialmente paralisado; ele ainda pode falar com alguma dificuldade, mas sua mente está lúcida como sempre. O médico disse que ele se recuperaria muito mais depressa em Teerã, mas a viagem ainda não é possível.

       — Ele vai se recuperar? — ela perguntou.

       — Eu não sei, Alteza. Seja como Deus quiser. Para mim, ele parece muito doente. O médico, eu não o acho grande coisa, tudo o que ele disse foi que as chances de Sua Alteza seriam melhores se ele estivesse aqui em Teerã,

       — Então traga-o para cá o mais depressa possível.

       — Eu trarei, Alteza, não se preocupe. Mas tenho uma mensagem para a senhora. O khan, seu pai, disse: "Eu quero vê-la, imediatamente. Não sei quanto tempo vou viver, mas certas providências precisam ser tomadas e confirmadas. O seu irmão está aqui comigo e..."

       — Que Deus o proteja — exclamou Azadeh. — O meu pai fez as pazes com Hakim?

       — Sua Alteza fez dele o seu herdeiro. Mas...

       — Oh, isso é maravilhoso, maravilhoso, Deus seja louvado! Mas...

       — Por favor, seja paciente e deixe-me terminar a mensagem: "O seu irmão Hakim está aqui comigo e eu o tornei meu herdeiro, sujeito a certas condições, de sua parte e da dele." — Ahmed hesitou e Azadeh teve vontade de se intrometer, de mostrar a sua alegria, esquecendo a cautela. O seu orgulho a impediu. — "É necessário, portanto, que você volte imediatamente com Ahmed." Este é o fim da mensagem, Alteza.

       A porta da frente se abriu. Ali tornou a trancá-la e soltou o cachorro. Imediatamente, este correu para a sala e pôs a cabeça no colo de Azadeh.

       — Muito bem, Reza — ela disse afagando-o, agradecendo a oportunidade de recuperar o controle. — Sente-se. Ande, sente-se! — O cachorro obedeceu alegremente, depois deitou-se aos pés dela, observando a porta e vigiando Ahmed que estava em pé perto do outro sofá. Distraidamente, sua mão brincava com o cabo do kookri, sentindo-se tranqüilizada pelo seu toque. Ahmed estava consciente disto e de suas implicações. — Diante de Deus, você me disse a verdade?

       — Sim, Alteza, diante de Deus.

       — Então iremos imediatamente. — Ela se levantou. — Você veio de carro?

       — Sim, Alteza. Eu trouxe a limusine e o motorista. Mas há mais algumas notícias... boas e más. Sua Alteza recebeu um pedido de resgate. Sua Excelência, o seu marido, está nos mãos de bandidos, homens das tribos... — Ela tentou manter a compostura, com os joelhos subitamente fracos. — ...em algum lugar perto da fronteira soviética. Tanto ele quanto o helicóptero. Parece que estes... estes bandidos dizem ser curdos, mas o khan duvida. Eles surpreenderam o soviético Cimtarga e seus homens e mataram todos eles, capturando Sua Excelência e o helicóptero, segundo eles na quinta-feira cedo. Depois eles voaram para Rezaieh, onde ele foi visto e pareceu estar bem antes de tornar a partir.

       — Graças a Deus — foi tudo o que o seu orgulho permitiu-lhe dizer. — Estão pedindo um resgate pelo meu marido?

       — O pedido de resgate chegou no sábado, através de intermediários. Assim que Sua Alteza recobrou a consciência ontem, ele me entregou a mensagem para a senhora e me mandou aqui para apanhá-la.

       Ela ouviu a palavra 'apanhar' e compreendeu a sua gravidade, mas Ahmed não demonstrou nada e pôs a mão no bolso.

       — Sua Alteza Hakim mandou isto para a senhora. — E entregou-lhe um envelope selado. Ela o abriu, assustando o cachorro. O bilhete era com a letra de Hakim: "Minha querida, Sua Alteza me declarou seu herdeiro e nos reintegrou a ambos, sob certas condições, condições maravilhosas, fáceis de aceitar.

       Volte depressa, ele está muito doente, e não tratará do resgate antes de falar com você. Salaam."

       Cheia de felicidade, ela saiu correndo, arrumou a mala, escreveu um bilhete para McIver, dizendo a Ali para entregar no dia seguinte. Pensando melhor, apanhou o kookri e saiu. Ahmed não disse nada, apenas foi atrás dela.

 

TERÇA-FEIRA, 27 de fevereiro

       BANDAR DELAM: 8:15H. Kasigi caminhava apressadamente atrás do policial de ar severo pelos corredores apinhados do hospital — o mecânico de rádio, Minoru, ia um pouco atrás. Homens, mulheres e crianças, doentes e feridos, estavam em maças ou cadeiras ou em pé ou simplesmente deitados no chão, esperando que alguém os atendesse, os doentes graves misturados com os não tão graves, alguns urinando, outros comendo e bebendo alimentos trazidos por seus parentes, em grande número — e todos os que podiam, queixando-se em altos brados. Enfermeiras e médicos atarefados entravam e saíam dos quartos, mas todas as mulheres vestiam o chador, exceto umas poucas inglesas, enfermeiras, cuja touca severa era quase o equivalente, sendo portanto aceitável.

       No fim, o policial encontrou a porta que procurava e abriu caminho para o interior da enfermaria lotada. Havia camas alinhadas dos dois lados e mais uma fileira no centro, todas ocupadas por pacientes masculinos — seus parentes, de visita, conversavam ou reclamavam, crianças brincavam, e num dos cantos, uma mulher cozinhava num fogão portátil.

       Scragger estava com um dos pulsos e um dos tornozelos algemados numa velha cama de ferro. Ele estava deitado num colchão de palha todo vestido e de sapatos, tinha um curativo em volta da cabeça, estava sujo e barbado. Quando ele viu Kasigi e Minoru atrás do policial, sua fisionomia iluminou-se.

       — Olá companheiros — disse com a voz rouca.

       — Como vai o senhor, capitão? — disse Kasigi, estarrecido com as algemas.

       — Se eu pudesse ficar livre estaria bem.

       O policial interrompeu agressivamente em farsi, para se mostrar para os espectadores.

       — É este o homem que vocês queriam ver?

       — Sim, Excelência — Minoru respondeu por Kasigi.

       — Então agora já o viram. Vocês podem comunicar ao seu governo ou a quem quiserem que ele recebeu tratamento. Ele será julgado pelo komiteh de trânsito. — Pomposamente, ele se virou para sair.

       — Mas o capitão não estava dirigindo — retrucou Kasigi, pacientemente, em inglês, com Minoru traduzindo para ele, tendo passado a maior parte da noite repetindo isso e continuara repetindo durante a manhã, para diversos policiais de vários postos, recebendo sempre versões variadas da mesma resposta: "Se o estrangeiro não estivesse no Irã, o acidente não teria acontecido, é claro que ele é o responsável."

       — Não importa que ele não estivesse dirigindo, mesmo assim ele é o responsável! — O policial respondeu zangado, com sua voz ecoando nas paredes. — Quantas vezes será preciso repetir isto? Ele estava encarregado do carro. Ele o requisitou. Se ele não o tivesse requisitado, o acidente nunca teria acontecido, pessoas foram mortas e feridas, é claro que ele é o responsável.

       — Mas eu repito que o meu assistente aqui foi testemunha e dará testemunho de que o acidente foi causado pelo outro carro.

       — As mentiras ditas diante do komiteh serão tratadas com severidade — disse o homem, ameaçadoramente, já que ele era um dos que estavam no carro de polícia.

       — Não são mentiras, aga. Existem outras testemunhas — disse Kasigi, endurecendo a voz, embora não tivesse outras testemunhas. — Eu insisto que este homem seja solto. Ele trabalha para o meu governo, que investiu bilhões de dólares no pólo petroquímico da Irã-Toda em benefício do Irã e, particularmente, de todo o povo de Bandar Delam. A menos que ele seja solto imediatamente, imediatamente, eu mandarei que todos os japoneses saiam daqui e interromperei todo o trabalho! — A sua raiva aumentou, pois na verdade ele não tinha autoridade nem iria dar uma ordem dessas. — Vou parar tudo!

       — Pelo Profeta, nós não estamos mais sujeitos à chantagem estrangeira - o homem gritou e se virou para sair. — O senhor vai ter que discutir isto

       Com o komiteh.

       — A menos que ele seja libertado imediatamente, todo o trabalho vai parar e não haverá mais empregos. Nenhum! — Enquanto Minoru traduzia, Kasigi notou uma diferença no silêncio e no ar das pessoas que estavam em volta deles. E até o próprio policial, consciente de que todos os olhos estavam pregados nele e sentindo a súbita hostilidade. Um jovem ali perto, usando uma faixa verde no pijama, disse agressivamente:

       — Você quer pôr em risco os nossos empregos, hein? Quem é você? Como vamos saber que você não é um homem do xá? Você já foi liberado pelo komiteh!

       — É claro que sim! Em nome do Único Deus, eu sou a favor do imã há anos! — o policial respondeu zangado, mas uma onda de medo o percorreu. — Eu ajudei a revolução, todo mundo sabe disso. Você — ele apontou para Kasigi, maldizendo-o por estar causando todo esse problema — siga-me! E abriu caminho no meio dos espectadores.

       — Eu voltarei, capitão Scragger, não se preocupe — Kasigi e Minoru saíram atrás do policial.

       O policial conduziu-os por uma escada e por um corredor, depois desceu mais um lance de escadas, tudo apinhado de gente. O nervosismo de Kasigi aumentou na medida em que eles desciam. Agora o homem estava abrindo uma porta com um cartaz em farsi pregado nela.

       Kasigi começou a suar frio. Eles estavam no necrotério. Mesas de mármore cheias de corpos cobertos por lençóis sujos. Muitos deles. Cheiro de produtos químicos, sangue, formol e excrementos.

       — Aqui está! — O policial disse e puxou um lençol, descobrindo o corpo decapitado de uma mulher. Sua cabeça estava colocada perto do tronco, com os olhos abertos. — O seu carro causou a morte dela, e quanto a ela e a sua família? — Kasigi notou o 'seu' e sentiu um arrepio gelado. — E aqui! — Ele afastou um outro lençol. Uma mulher com o rosto irreconhecível. — E então?

       — Nós... nós sentimos muito, é claro... é claro que sentimos muito pelo fato de ter havido feridos, sentimos profundamente, mas isto é carma, Insha'Allah, não é culpa nossa nem do piloto que está lá em cima. — Kasigi teve dificuldade em controlar a náusea. — Sentimos profundamente.

       Minoru traduziu, o policial estava recostado insolentemente na mesa. Então ele respondeu e os olhos do jovem japonês se arregalaram.

       — Ele está dizendo, ele está dizendo que a fiança para soltar o sr. Scragger imediatamente é de um milhão de riais. Imediatamente. O que o komiteh decidir não é da conta dele.

       Um milhão de riais eram cerca de 12 mil dólares.

       — Isto não é possível, mas nós poderíamos pagar cem mil riais dentro de uma hora.

        — Um milhão! O homem gritou. Ele agarrou a cabeça da mulher pelos cabelos e levantou-a na frente de Kasigi, que teve que fazer força para ficar firme.

       — E quanto aos filhos dela que estão condenados a serem órfãos para sempre? Eles não merecem uma compensação?

       — Não... não há esta quantidade de dinheiro na fábrica, sinto muito. O policial praguejou e continuou a insistir, mas então a porta se abriu e alguns auxiliares entraram empurrando um carrinho com outro corpo, olhando-os com curiosidade. Abruptamente, o policial disse:

       — Muito bem, iremos imediatamente para o seu escritório.

       Eles foram até lá e apanharam a última quantia que Kasigi tinha oferecido — 250 mil riais — cerca de três mil dólares — mas sem recibo, só com um acordo verbal de que Scragger poderia sair. Sem confiar no homem, Kasigi entregou-lhe a metade no escritório e pôs o resto num envelope que guardou no bolso. Eles voltaram para o hospital. Lá, ele esperou no carro enquanto Minoru e o homem entravam. A espera pareceu interminável, mas finalmente Minoru e Scragger saíram e ele entregou o envelope ao policial. O homem amaldiçoou todos os estrangeiros e se retirou furioso.

       — Bem — disse Kasigi e sorriu para Scragger. Eles apertaram-se as mãos, com Scragger agradecendo calorosamente, pedindo desculpas por todo o trabalho, os dois homens xingando o destino, depois abençoando-o, e entrando rapidamente no carro. O motorista iraniano saiu com o carro e entrou no trânsito, xingou um carro que o ultrapassou e quase bateu nele, tocando a buzina.

       — Diga-lhe para ir mais devagar, Minoru — disse Kasigi. Minoru obedeceu e o motorista balançou a cabeça, sorriu e obedeceu. Mas isso só durou alguns segundos.

       — O senhor está bem, capitão?

       — Oh, sim. Estou com uma tremenda dor de cabeça, mas estou bem. O pior foi a vontade de urinar.

       — O quê?

       — Os filhos da mãe me deixaram algemado à cama e não permitiram que eu fosse ao banheiro. Eu não podia urinar na cama nem nas calças, e só hoje de manhã é que uma enfermeira me trouxe uma garrafa. Cristo, eu pensei que a minha bexiga fosse estourar. — Scragger esfregou os olhos, fatigado. — Não há problema, meu velho. Fico-lhe devendo uma. Mais o resgate! De quanto foi?

       — Nada. Não foi nada. Nós temos um fundo para essas eventualidades.

       — Isso não é problema, Andy Gavallan vai pagar. Oh, isso me faz lembrar, ele disse que conheceu o seu patrão há alguns anos: Toda, Hiro Toda.

       — Ah so desu ka! — Kasigi estava genuinamente surpreso. — Gavallan tem helicópteros no Japão?

       — Oh, não. Foi quando ele era comerciante na China, perto de Hong Kong, quando ele estava trabalhando para a Struan's. — Este nome acendeu um sinal vermelho para Kasigi, que disfarçou. — Já ouviu falar?

       — Sim, uma grande companhia. A Toda tem, ou teve, negócios com a Struan's — Kasigi disse suavemente, mas guardou a informação para futuras considerações. Não fora Linbar Struan quem cancelara unilateralmente cinco contratos de aluguel de navios há dois anos, o que quase nos arruinou? Talvez Gavallan pudesse ser um instrumento para recuperá-los, de um modo ou de outro. — Sinto muito por você ter passado por tudo isso.

       — Não foi culpa sua, cara. Mas Andy gostaria de pagar o resgate. Quanto foi que eles pediram?

       — Foi muito modesto. Por favor, é um presente. Você salvou o meu navio.

       Depois de uma pausa, Scragger disse:

       — Então eu lhe devo dois favores, meu velho.

       — Nós escolhemos o motorista. A culpa foi nossa.

       — Onde está ele, onde está Muhammad?

       — Sinto muito, ele morreu. Scragger praguejou.

       — A culpa não foi dele, não foi mesmo.

       — Sim, sim, eu sei. Nós indenizamos a sua família e faremos o mesmo com as vítimas. — Kasigi estava tentando perceber até que ponto Scragger estava abalado, desejando muito saber quando ele estaria apto para pilotar, e muito irritado com o atraso de um dia. Era imperativo que ele voltasse para Al Shargaz o mais cedo possível, e depois para o Japão. O seu trabalho aqui estava terminado. O engenheiro-chefe Watanabe estava agora totalmente do seu lado, as cópias dos seus relatórios anteriores fortaleceriam a sua posição e ajudá-lo-iam enormemente, e à Hiro Toda, a recuperar a possibilidade de persuadir o governo a declarar a Irã-Toda um Projeto Nacional.

       Não a possibilidade, a certeza! Ele pensou, mais confiante do que nunca. Nós seremos salvos da bancarrota, derrotaremos os nossos inimigos, Mitsuwari e Gyokotomo, recuperaremos o nosso prestígio e teremos lucro, muito lucro! Além disso, tinha havido aquele golpe de sorte, Kasigi permitiu-se um sorriso cínico, a explosiva cópia do relatório particular do falecido engenheiro-chefe Kasusaka para a Gyokotomo, datado e assinado, que Watanabe tinha 'achado' milagrosamente numa pasta esquecida enquanto ele estava em Al Shargaz. Terei que ter muito cuidado ao usá-lo, muito cuidado mesmo, mas isso faz com que seja ainda mais importante que eu volte logo para casa.

       As ruas estavam entupidas de tráfego. Lá no alto, o céu ainda estava encoberto, mas a tempestade tinha passado e ele sabia que o tempo estava adequado para voar. Ah, eu gostaria de ter o meu próprio avião, ele pensou. Digamos um Lear Jet. A recompensa por todo o trabalho que eu tive aqui deveria ser substancial.

       Ele se deixou embalar docemente, desfrutando da sensação de realização e poder.

       — Parece que vamos conseguir iniciar a obra muito em breve, capitão.

       — Ah, é?

       — Sim. O chefe do novo khomeiniomeh nos garantiu sua cooperação. Parece que ele conhece um dos seus pilotos, um capitão Starke. O nome dele é Zataki.

       Scragger olhou-o rapidamente.

       — Ele é o cara que o Duke, Duke Starke, salvou dos esquerdistas e levou para Kowiss. Se eu fosse você, companheiro, teria cuidado com ele. — E contou a Kasigi o quanto o homem era instável. — Ele é um louco.

       — Ele não me deu essa impressão, de jeito nenhum. É curioso... os iranianos são muito curiosos. Mas o mais importante é como o senhor está se sentindo.

       — Eu estou ótimo agora — Scragger exagerou. O dia e a noite de ontem tinham sido péssimos, com toda aquela gritaria, algemado na cama, sem conseguir se fazer entender, cercado de gente hostil, vigiando de todo o lado. Perdido. E com medo. A dor aumentando. O tempo terrivelmente lento, a esperança diminuindo, certo de que Minoru estava ferido ou morto junto com o motorista de modo que ninguém saberia onde ele estava nem o que tinha acontecido.

       — Nada que uma boa xícara de chá não cure. Se você quiser partir imediatamente, eu estou bem. Basta um banho rápido, uma barba e uma xícara de chá e alguma coisa para comer e nós estaremos a caminho.

       — Excelente. Então vamos partir assim que o senhor estiver pronto. Minoru já instalou o rádio e o checou.

       Durante todo o caminho até a refinaria e durante o vôo de volta a Lengeh, Kasigi esteve de muito bom humor. Perto de Khang, eles acharam que tinham localizado o enorme tubarão-martelo que Scragger tinha mencionado antes. Eles voaram baixo e perto da costa, com as nuvens ainda baixas e pesadas, com alguns nimbos aqui e ali e alguns relâmpagos ameaçadores, mas a viagem não foi má, apenas jogou um pouco. O controle de radar e as autorizações foram eficientes e imediatas, o que aumentou os temores de Scragger. Só faltam dois dias para a operação Turbilhão sem contar com hoje, era o pensamento que ocupava a sua mente. Perder um dia torna tudo ainda mais difícil, pensou, ansioso. O que será que aconteceu desde que eu viajei?

       Bem depois de Khan, ele parou para reabastecer e descansar. O seu estômago ainda doía muito e ele notou um pouco de sangue na urina. Nada de muito preocupante, disse a si mesmo. É claro que tinha que haver uma pequena hemorragia depois de um acidente daqueles. Eu tive mesmo uma bruta sorte!

       Eles estavam numa duna de areia, terminando de comer — arroz frio com pedaços de peixe e picles. Scragger comeu um bom pedaço de pão iraniano que apanhara na cozinha impecável e um monte de yakitori de galinha com molho de soja, que adorava. Kasigi tomava uma cerveja japonesa que Scragger recusara:

       — Obrigado, mas beber e pilotar são coisas que não combinam. Kasigi comeu com parcimônia, Scragger com rapidez e apetite.

       — Grude bom esse. Assim que estiver pronto, acho melhor partirmos.

       — Já terminei. — Em pouco tempo, eles estavam novamente no ar.

       — Vai dar tempo de me levar até Al Shargaz ou Dubai ainda hoje?

       — Não se formos para Lengeh. — Scragger ajustou os fones de ouvido. — Sabe de uma coisa?, Quando falarmos com o Controle de Tráfego de Kish, eu vou perguntar se podemos desviar o aparelho para Bahrain. Lá, você poderia apanhar um avião local ou internacional. Vamos precisar reabastecer em Lavan, mas se eles concordarem com o pedido, aprovarão. Como eu disse, devo-lhe dois favores.

       — Você não me deve nada — Kasigi sorriu consigo mesmo. — Ontem, na reunião do komiteh, aquele homem, Zataki, perguntou em quanto tempo nós estaríamos operando com a nossa frota completa de helicópteros. Eu prometi uma ação imediata. Como você sabe, a Guerney não trabalha mais para nós. O que eu queria eram três dos seus 212 e dois 206 para os próximos três meses, com um contrato de um ano para ser negociado depois, dependendo das nossas necessidades, renovável anualmente. Isso seria possível?

       Scragger hesitou, sem saber o que responder. Normalmente, uma oferta dessas faria os sinos tocarem de lá até Aberdeen, Gavallan viria pessoalmente ao telefone e todo mundo receberia uma enorme gratificação. Mas com a operação Turbilhão marcada, com a Guerney de fora e mais ninguém disponível, não havia nenhuma maneira de ajudar a Kasigi.

       — Quando, ahn, quando você precisaria dos aparelhos? — perguntou para ganhar tempo para pensar.

       — Imediatamente — respondeu Kasigi, observando um petroleiro lá embaixo. — Eu garanti a Zataki e ao komiteh que se eles cooperassem, nós começaríamos imediatamente. Amanhã ou depois no mais tardar. Talvez você pudesse pedir ao seu escritório central para eles desviarem alguns dos 212 estacionados em Bandar Delam que não estão sendo totalmente aproveitados. É possível?

       — Vou perguntar assim que pousarmos.

       — Durante mais ou menos uma semana, nós vamos precisar de uma ligação com o Kuwait para apanhar e substituir turmas de operários japoneses. Zataki disse que o komiteh deles combinaria com o komiteh do aeroporto de Abadan para que este nos fosse aberto. Certamente, lá para o fim da semana.

       Scragger escutava meio distraído os planos confiantes do homem que se tornara seu amigo, sem o qual ele ainda estaria algemado a uma cama. Sua escolha era simples: ou você conta a ele sobre a operação Turbilhão ou o deixa na mão. Mas se contar, estará traindo alguém que confia ainda mais em você, um amigo da vida inteira. Kasigi poderia deixar escapar alguma coisa sobre a operação. Ele na certa contaria a de Plessey. A questão é até onde eu posso confiar nele — e em de Plessey?

       Muito agitado, ele olhou pela janela e tornou a checar a sua posição.

       — Desculpe interrompê-lo, mas tenho que me comunicar com o radar. — E apertou o botão do transmissor: — Radar de Kish, aqui é Hotel Sierra-Tango, está me ouvindo?

       — HST, radar de Kish, estamos ouvindo quatro por cinco, continue.

       — HST a serviço da Irã-Toda voltando para a base em Lengeh, aproximando-se de Lavan a trezentos metros, um passageiro a bordo. Solicita permissão para reabastecer em Lavan e desviar-se para Bahrain para deixar o passageiro, que tem negócios urgentes para resolver relacionados ao Irã.

       — Solicitação recusada. Nenhum vôo através do golfo é autorizado sem um pedido feito com 24 horas de antecedência. Vire para 095 graus, direção de Lengeh, comunique-se ao se aproximar de Kish, não quando estiver em cima de Kish. Entendido?

       Scragger olhou para Kasigi, que ouvira a conversa.

       — Sinto muito, companheiro. — E desviou o aparelho para a nova posição. — Aqui HST. Entendido. Solicito permissão para ir a Al Shargaz amanhã de manhã com um passageiro.

       — Fique na escuta. — Ouviu-se um barulho de estática. A estibordo, continuava o fluxo constante de petroleiros que entravam e saíam dos terminais do golfo, da Arábia Saudita, dos Emirados, de Abu Dhabi, Bahrain, Kuwait e Iraque. Nenhum deles estava sendo carregado em Khang nem em Abadan, onde, normalmente, haveria uma dúzia sendo carregados e uma dúzia esperando. Agora só havia um enxame de navios esperando, alguns há mais de dois meses. O céu ainda estava encoberto e ameaçador.

       — HST, aqui é Kish. Nesta instância, o seu pedido para ir de Lengeh para Al Shargaz foi aprovado para amanhã, quarta-feira, dia 28, ao meio-dia. Até decisão posterior, repito, todos os vôos através do golfo exigirão um pedido com 24 horas de antecedência, e todos, repito, todos os motores necessitam de autorização para serem ligados. Entendido?

       Scragger praguejou e depois respondeu.

       — O que foi? — perguntou Kasigi.

       — Nós nunca tivemos que obter permissão para ligar os motores antes. Os filhos da mãe estão realmente ficando muito nervosos. — Scragger estava pensando na sexta-feira e na decolagem dos seus dois 212, com Kish se intrometendo e ficando eficiente demais. — Bando de gente metida!

       — Sim. Você vai poder chefiar as nossas operações com helicópteros?

       — Há um monte de caras melhores do que eu.

       — Ah, desculpe, mas seria muito importante para mim. Eu saberia que a operação estaria em boas mãos.

       Mais uma vez Scragger hesitou.

       — Obrigado, se fosse possível, eu o faria, é claro que sim.

       — Então está decidido. Eu vou fazer uma solicitação formal ao sr. Gavallan. — Kasigi olhou para Scragger. Alguma coisa mudou, pensou. O quê? Pensando bem, o piloto não reagiu com tanto entusiasmo quanto seria de se esperar ao me ouvir propor o acordo, e ele deve ter percebido o valor do contrato que lhe está sendo oferecido. O que será que ele está escondendo? — Você poderia contatar Bandar Delam através da sua base em Kowiss para perguntar se eles podem fornecer-nos pelo menos um 212 amanhã? — perguntou, tentando descobrir mais um pouco.

       — Sim, sim, é claro... assim que chegarmos.

       Ah, pensou Kasigi, que observara e escutara com bastante atenção. Eu estava certo, alguma coisa estava errada. A camaradagem desapareceu. Por quê? Eu não disse nada que pudesse ofendê-lo. Não pode ser o acordo — é ótimo para qualquer companhia de helicópteros. Será a saúde dele?

       — Você está se sentindo bem?

       — Oh, sim, meu velho. Eu estou ótimo.

       Ah, desta vez o sorriso foi sincero e a voz normal. Então tem que ser algo relacionado aos helicópteros.

       — Se eu não puder contar com a sua ajuda, as coisas vão ficar muito difíceis para mim.

       — Sim, eu sei. Se dependesse de mim, eu gostaria de poder ajudá-lo. Ah, o sorriso desapareceu e a voz ficou séria de novo. Por quê? E por que esse "se dependesse de mim" como se ele quisesse ajudar mas alguém o tivesse proibido? Gavallan? Será que ele sabe que Gavallan não vai me ajudar por causa da Struan's?

        Durante algum tempo, Kasigi imaginou todas as possibilidades mas não conseguiu encontrar uma resposta satisfatória. Então resolveu usar o único artifício, quase infalível, possível de ser usado com um estrangeiro como aquele.

       — Meu amigo — disse, usando o seu tom de voz mais sincero —, eu sei que algo está errado, por favor, diga-me o que é. — Ao ver que o rosto de Scragger ficara ainda mais solene, ele deu o golpe fatal. — Você pode confiar em mim, eu sou seu amigo.

       — Sim, sim, eu sei disso, companheiro.

       Kasigi observou o rosto de Scragger e esperou, viu o peixe se debatendo no anzol que estava pendurado numa linha muito fina e muito forte, presa a uma pá de rotor quebrada, a um aperto de mão, ao perigo compartilhado a bordo do Rikumaru, a uma mesma guerra, e ao respeito comum que tinham pelos companheiros mortos. Tantos companheiros mortos, todos tão jovens. Sim, pensou, sentindo uma raiva súbita, mas se tivéssemos um décimo dos aviões deles, dos seus armamentos e navios, e uma vigésima parte do seu petróleo e da sua matéria-prima, nós teríamos sido invencíveis e o imperador jamais teria sido obrigado a terminar a guerra daquele jeito. Nós seríamos invencíveis — se não fosse pela bomba, pelas duas bombas. Que os deuses castiguem por toda a eternidade aqueles que inventaram a bomba que quebrou a resistência do imperador.

       — O que é?

       — Eu, ahn, não posso contar-lhe agora, desculpe. Kasigi captou sinais de perigo.

       — Por que, meu amigo? Eu lhe asseguro de que pode confiar em mim — disse, procurando tranqüilizá-lo.

       — Sim... sim, mas não depende só de mim. Amanhã, em Al Shargaz. Tenha paciência, sim?

       — Se é assim tão importante, eu deveria saber já, você não acha? — Mais uma vez Kasigi esperou. Ele conhecia o valor da paciência e do silêncio numa hora dessas. Não havia necessidade de lembrar ao homem a sua dívida para com ele. Ainda não.

       Scragger estava se lembrando. Em Bandar Delam, Kasigi salvou o meu pescoço, não há dúvida. A bordo do navio dele, em Siri, ele provou que tem coragem e hoje provou que é um bom amigo, ele não precisava ter tido todo aquele trabalho e agido com tanta rapidez. Para ele não faria diferença esperar mais um dia ou dois.

       Ele verificou os instrumentos e o espaço lá fora e não viu nenhum sinal de perigo, Kish apareceria a estibordo dentro de pouco tempo e ele olhou para Kasigi. Kasigi olhava para a frente, com o rosto forte e bonito bastante preocupado. Que merda, meu velho, se você não cumprir o que prometeu, Zataki vai ficar fora de si de raiva. Mas você não pode fazê-lo. Não pode, meu velho, e é duro ver você aí sentado, sem me dizer o quanto eu lhe devo.

       — Kish, aqui é HST. Aproximando-me de Kish, firme em trezentos.

      — Aqui é Kish. Mantenha-se em trezentos. Há tráfego vindo do leste em três mil.

       — Eu os tenho no meu campo visual. — Eram dois caças. Ele os apontou para Kasigi que não os havia localizado. — São F14, provavelmente vindo de Bandar Abbas — disse. Kasigi não respondeu, só balançou a cabeça e isto fez Scragger sentir-se ainda pior. Os minutos se arrastaram.

       Então Scragger decidiu, odiando ser forçado a dizer isto:

       — Sinto muito, mas você vai ter que esperar até Al Shargaz. Só Andy Gavallan pode ajudá-lo, eu não posso.

       — Ele pode ajudar? De que maneira? Qual é o problema? Depois de uma pausa, Scragger disse:

       — Se há alguém que pode ajudar, é ele. Vamos deixar as coisas como estão, meu velho.

       Kasigi percebeu a sua determinação mas não desistiu, deixando as coisas ficarem como estavam por enquanto, com a cabeça fervilhando com outros sinais de perigo. O fato de Scragger não ter caído na sua armadilha, não tendo revelado o segredo, fez com que ele o respeitasse ainda mais. Mas isto não o desculpa, pensou furioso. Ele disse o suficiente para me pôr de sobreaviso, agora depende de mim descobrir o resto. Então Gavallan é a chave? Para quê?

       A cabeça de Kasigi estava prestes a explodir. Eu não prometi àquele louco do Zataki que começaríamos a trabalhar imediatamente? Como é que esses homens têm a coragem de pôr em risco todo o nosso projeto — o nosso Projeto

       Nacional. Sem helicópteros, não podemos começar. É uma traição contra o Japão! O que será que eles estão tramando?

       Com grande esforço, ele manteve a fisionomia tranqüila.

       — Não há dúvida de que procurarei Gavallan o mais cedo possível, e vamos torcer para você chefiar a nossa nova operação, hein?

       — Andy Gavallan é quem vai decidir, depende dele.

       Não tenha tanta certeza, estava pensando Kasigi, porque aconteça o que acontecer, eu conseguirei os helicópteros imediatamente — os seus, os da Guerney, não me importa quais. Mas pelos meus ancestrais samurais, a Irã-Toda não vai mais ser colocada em perigo! Não vai! E nem eu!

      

       TABRIZ — NO PALÁCIO DO KHAN: 10:50H. Azadeh seguiu Ahmed através do quarto mobiliado em estilo ocidental, até perto da cama alta, e agora que estava outra vez no interior daquelas paredes, sentiu a sua pele se arrepiar de medo. Sentada ao lado da cama, estava uma enfermeira vestindo um uniforme branco engomado, com um livro aberto no colo, observando-os com curiosidade através dos óculos. As janelas estavam cobertas com pesadas cortinas de brocado para evitar correntes de ar. As luzes tinham sido diminuídas e o fedor do velho se espalhava pelo quarto.

       Os olhos do khan estavam fechados, seu rosto pálido e a respiração difícil; seu braço estava ligado a um frasco de soro pendurado ao lado da cama. Semi-adormecida numa cadeira ali perto, estava Aysha, pequena e encolhida, com o cabelo despenteado e o rosto molhado de lágrimas. Azadeh sorriu para ela, com pena; depois disse para a enfermeira, com uma voz que não era a sua:

       — Como está Sua Alteza?

       — Bem. Mas não pode agitar-se nem ser perturbado — respondeu a enfermeira, num turco hesitante. Azadeh olhou para ela e viu que era européia, tinha cerca de cinqüenta anos, cabelos pintados de castanho e uma cruz vermelha na manga.

       — Oh, a senhora é inglesa ou francesa?

       — Escocesa — respondeu a mulher, em inglês, francamente aliviada, com um ligeiro sotaque. Ela falou baixo, observando o khan. — Sou a irmã Bain, do Hospital de Tabriz, e o paciente está indo bem dentro do quadro, considerando-se que não obedece às ordens. E quem é você, por favor?

       — Sou a filha dele, Azadeh. Acabei de chegar de Teerã. Ele mandou me buscar. Nós... nós viajamos a noite inteira.

       — Ah, sim? — disse, surpresa de que um homem tão feio pudesse ter gerado uma filha tão linda. — Se me permitir uma sugestão, mocinha, seria melhor deixá-lo dormir. Assim que ele acordar, eu digo que você está aqui e mando chamá-la. É melhor que ele durma.

       Ahmed perguntou, irritado:

       — Por favor, onde está o guarda de Sua Alteza?

     — Não há necessidade de homens armados num quarto de doente. Eu o mandei embora.

       — Haverá sempre um guarda aqui, a menos que o khan o mande sair ou eu o mande sair. Zangado, Ahmed virou as costas e saiu.

       — É só um costume, irmã — disse Azadeh.

       — Sim, muito bem. Mas este é outro costume que não faz nenhuma falta. Azadeh tornou a olhar para o pai, mal o reconhecendo, tentando controlar o terror que tomou conta dela. Mesmo neste estado, pensou, mesmo neste estado ele ainda pode destruir a todos nós. A Hakim e a mim — ele ainda tem o seu cão de guarda, Ahmed.

       — Por favor, diga a verdade, como está ele?

       As rugas do rosto da enfermeira tornaram-se ainda mais pronunciadas.

       — Estamos fazendo todo o possível.

      — Seria melhor para ele estar em Teerã?

       — Sim, se ele vier a ter outro ataque, sim, seria melhor. — Irmã Bain tirou o pulso dele enquanto falava. — Mas agora eu não acharia conveniente removê-lo, de jeito nenhum, por enquanto não. — Ela fez uma anotação numa ficha e depois olhou para Aysha. — Você podia dizer à senhora que não há necessidade dela ficar aqui, ela deveria descansar, pobre criança.

       — Desculpe, mas eu não posso interferir. Desculpe, mas isto também é um costume. É provável... é provável que ele tenha outro ataque?

       — Nunca se sabe, mocinha, isto está nas mãos de Deus. Nós esperamos o melhor. — Elas viraram a cabeça quando a porta se abriu. Hakim estava lá, sorrindo. Os olhos de Azadeh se iluminaram e ela disse para a enfermeira:

       — Por favor, chame-me assim que Sua Alteza acordar — depois saiu depressa do quarto e fechou a porta, e o abraçou. — Oh, Hakim, querido, já faz tanto tempo — disse sem fôlego. — Oh, é mesmo verdade?

       — Sim, sim, é, mas como... — Hakim parou ao ouvir passos. Ahmed e um guarda surgiram no corredor e vieram até eles. — Estou contente que você esteja de volta, Ahmed — ele disse educadamente. — Sua Alteza também vai ficar muito contente.

       — Obrigado, Alteza. Aconteceu alguma coisa durante a minha ausência?

       — Não, a não ser que o coronel Fazir esteve aqui hoje de manhã para falar com papai.

       Ahmed ficou gelado.

       — Ele teve permissão para entrar?

       — Não. Você deixou instruções para que ninguém fosse admitido sem a permissão de Sua Alteza; ele estava dormindo na hora e tem estado dormindo quase o dia inteiro. Eu tenho verificado de hora em hora e a enfermeira diz que ele continua na mesma.

       — Ótimo. Obrigado. O coronel deixou algum recado?

       — Só que estava indo para Julfa hoje conforme tinha combinado com o seu sócio. Isso faz algum sentido para você?

       — Não, Alteza — Ahmed mentiu tranqüilamente. Ele olhou de um para o outro mas antes que pudesse dizer qualquer coisa, Hakim disse:

        — Nós estaremos no Salão Azul; por favor, avise-nos assim que papai acordar.

       Ahmed os viu sair de braços dados pelo corredor, o rapaz alto e bonito, a irmã esguia e atraente. Traidores? Não havia muito tempo para tirar a prova, pensou. Voltou para o quarto do doente e viu a palidez do khan, e suas narinas se rebelaram contra o cheiro. Ficou de cócoras, sem se importar com a enfermeira, e começou a sua vigília.

       O que será que o filho de um cão do Fazir queria? perguntou a si mesmo. No sábado à noite, quando Hashemi Fazir e Armstrong tinham voltado de Julfa sem Mzytryk, Fazir pedira para ver o khan. Ahmed estava presente quando o khan os recebeu e disse estar tão espantado quanto eles pelo fato de Mzytryk não estar no helicóptero.

       — Voltem amanhã. Se o homem me trouxer uma carta, vocês poderão lê-la — tinha dito o khan.

       — Obrigado, mas nós vamos esperar. O Chevrolet não pode estar muito longe.

       Então eles esperaram, com o khan nervoso mas sem poder fazer nada, com os homens de Hashemi emboscados em volta do palácio. Uma hora mais tarde o Chevrolet chegara. Ele próprio tinha admitido o motorista enquanto Hashemi e o infiel que falava farsi se escondiam num quarto ao lado.

       — Eu tenho uma mensagem particular para Sua Alteza — tinha dito o soviético.

       No quarto do khan, o soviético disse:

       — Alteza, eu devo lhe entregar isto quando o senhor estiver sozinho.

       — Entregue-me agora, Ahmed é o meu conselheiro de toda confiança. Entregue-me! — Relutantemente, o homem obedeceu e Ahmed recordou a vermelhidão que se espalhou pelo rosto do khan assim que ele começou a ler

       — Tem alguma resposta? — o soviético perguntou agressivamente. Engasgado de raiva, o khan balançara negativamente a cabeça e mandara o homem embora. Depois entregara a carta a Ahmed. Ela dizia: "Meu amigo, fiquei chocado ao saber da sua doença e estaria com você agora se não fosse obrigado a ficar aqui devido a assuntos urgentes. Tenho más notícias para você: é possível que você e a sua rede de espionagem tenham sido revelados para o Serviço Secreto ou a Savama — você sabia que aquele vira-casaca do Abrim Pahmudi agora chefia esta nova versão da Savak? Se você foi denunciado para

       Pahmudi, prepare-se para fugir imediatamente ou em breve será levado pilara a câmara de tortura. Eu alertei o nosso pessoal para ajudá-lo caso seja necessário. Caso eu ache seguro, chegarei na terça-feira ao anoitecer. Boa sorte. O khan não tivera escolha a não ser mostrar a mensagem para os dois homens.

       — Isso é verdade? Com relação a Pahmudi?

       — Sim. Ele é um velho amigo seu, não? — tinha dito Fazir, provocando-o.

       — Não... não é. Saiam daqui!

       — Certamente, Alteza. Enquanto isso, o palácio vai ficar sob observação. Não há necessidade de fugir. Por favor, não faça nada para impedir a chegada de Mzytryk na terça-feira, não faça nada para encorajar mais revoltas no Azerbeijão. Quanto a Pahmudi e à Savama, eles não podem fazer nada aqui sem a minha aprovação. Eu sou a lei em Tabriz agora. Obedeça e eu o protegerei, desobedeça e você será o seu pishkesh.

       Então os dois homens tinham saído, e o khan explodira de raiva, mais furioso do que Ahmed jamais o vira. O paroxismo se tornou pior e depois cessou subitamente, com o khan caído no chão e Ahmed olhando para ele, pensando que estivesse morto, mas não estava. Estava apenas com uma palidez cadavérica e tremia, com a respiração sufocada.

       — Seja como Deus quiser — murmurou Ahmed, sem querer passar de novo por uma situação daquelas.

      

       NO SALÃO AZUL: 11:15H. Quando estavam a sós, Hakim abraçou Azadeh, levantando-a no ar.

       — Oh, é maravilhoso, maravilhoso, ver você de novo.. — ela disse. Mas ele murmurou:

       — Fale baixo, Azadeh, há ouvidos em toda a parte e alguém pode interpretar mal o que dissermos e tornar a contar mentiras.

       — Najoud? Que ela seja amaldiçoada para sempre e...

       — Psss, querida, ela não pode nos prejudicar agora. Eu sou o herdeiro oficial.

       — Oh, conte-me o que aconteceu, conte-me tudo!

       Eles se sentaram no longo sofá de almofadas e Hakim começou a talar com rapidez.

       — Primeiro sobre Erikki. O resgate é de dez milhões de riais, por ele e o 212 e..

       — Papai pode pechinchar e pagar, ele pode pagar com certeza, e depois procurá-los e destruí-los.

       — Sim, sim, é claro que pode e ele me disse na frente de Ahmed que assim que você voltasse ele iniciaria as negociações e é verdade que ele me declarou seu herdeiro desde que eu jurasse por Deus que cuidaria do jovem Hassan como cuidaria de você. É claro que eu jurei imediatamente, e disse que você também juraria por Deus fazer o mesmo, que nós dois iríamos jurar que ficaríamos em Tabriz, eu para aprender como sucedê-lo e você para me ajudar, oh, como vamos ser felizes!

       — É só isso que temos que fazer? — perguntou, incrédula.

       — Sim, sim, é só isso. Ele me declarou seu herdeiro diante de toda a família. Eles pareciam que iam morrer, mas isso não tem importância, papai declarou as condições na frente deles, eu concordei imediatamente, é claro, assim como você vai concordar. Por que não?

       — É claro, é claro, qualquer coisa! Deus está velando por nós! — Mais uma vez ela o abraçou, enterrando o rosto no seu ombro, para secar as lágrimas de alegria que estava derramando. Durante toda a viagem de volta de Teerã, uma viagem horrível, com Ahmed mudo, ela tinha pensado, aterrorizada, nas tais condições. Mas e agora? — É inacreditável, Hakim, é como uma mágica! É claro que cuidaremos do pequeno Hassan e você passará o domínio para ele ou os seus sucessores se é isto o que papai deseja. Que Deus nos proteja e proteja também a ele e a Erikki, e Erikki poderá pilotar o quanto quiser, por que não? Oh, vai ser maravilhoso. — Ela secou as lágrimas. — Oh, eu devo estar horrível.

       — Você está linda. Agora conte-me o que aconteceu com você. Eu só sei que você foi apanhada na aldeia com... com o Sabotador inglês e que conseguiram escapar.

       — Foi um outro milagre, só com a ajuda de Deus, Hakim, mas na hora foi horrível, aquele mulá malvado... eu não me lembro como conseguimos fugir, só do que Johnny, do que Johnny me contou. O meu Johnny, Hakim.

       Ele arregalou os olhos.

       — O Johnny da Suíça?

       — Sim, sim, era ele; era ele o oficial britânico.

       — Mas como... isso parece impossível.

       — Ele salvou a minha vida, Hakim, há tanto o que contar!

       — Quando papai soube do que aconteceu na aldeia ele... você sabe que o mulá foi morto pelos Faixas Verdes, não sabe?

       — Eu não me lembro disso, mas Johnny me contou.

       — Quando papai soube do que aconteceu na aldeia, ele fez Ahmed arrastar o calênder até aqui, interrogou-o, depois mandou-o de volta, ordenou que ele fosse apedrejado, que as mãos do açougueiro fossem cortadas e que a aldeia fosse incendiada. Incendiar a aldeia foi idéia minha... aqueles cães!

       Azadeh estava terrivelmente chocada. Incendiar a aldeia inteira era uma vingança terrível demais.

       Mas Hakim não deixou que nada perturbasse a sua euforia.

       — Azadeh, papai retirou o guarda que me vigiava e eu posso ir aonde quiser. Eu cheguei até a apanhar um carro e ir a Tabriz hoje, sozinho. Todo mundo me trata como herdeiro, toda a família, até Najoud, embora eu saiba que ela está se roendo de raiva. — Ele contou como tinha sido arrastado de Khoi até lá, pensando que ia ser morto ou mutilado. — Você não se lembra quando eu fui banido, ele me amaldiçoou e jurou que o xá de Abbas sabia como lidar com filhos traidores?

       Ela estremeceu, recordando aquele pesadelo, as imprecações e o ódio do pai, tão injusto, uma vez que eles eram inocentes.

       — O que foi que o fez mudar? Por que ele mudaria com relação a nós, a você?

       — Foi a Vontade de Deus. Deus abriu os olhos dele. Ele deve saber que está perto da morte e precisa tomar providências... ele é o khan. Talvez ele esteja com medo e queira se redimir. Nós não éramos culpados de nada. Que importância tem o motivo? Eu não me importo. Nós estamos finalmente livres do seu jugo, livres.

      

       NO QUARTO DO DOENTE: 11:16H. O khan abriu os olhos. Sem mexer com a cabeça, ele olhou em volta. Ahmed, Aysha e o guarda. Nenhuma enfermeira. Então ele se concentrou em Ahmed que estava sentado no chão.

       — Você a trouxe? — ele pronunciou as palavras com dificuldade.

       — Sim, Alteza. Há poucos minutos.

       A enfermeira entrou no seu campo de visão.

       — Como o senhor se sente, Excelência? — ela perguntou em inglês, conforme ele lhe ordenara, dizendo-lhe que o turco dela era horrível.

       — Na mesma.

       — Deixe-me ajeitá-lo um pouco. — Com grande ternura e cuidado, e força, ela o ergueu e ajeitou os travesseiros e a cama. — O senhor precisa da garrafa, Excelência?

       O khan pensou um pouco.

       — Sim.

       Ela a colocou e ele se sentiu embaraçado por isto estar sendo feito por uma infiel, mas desde que ela chegara, ele percebera que ela era tremendamente eficiente, muito sábia e muito boa, a melhor de Tabriz, Ahmed tinha providenciado isso — muito melhor do que Aysha, que se mostrara completamente inútil. Ele viu Aysha sorrir timidamente para ele, com seus olhos grandes e assustados. Eu imagino se jamais tornarei a enfiá-lo de novo, até o fim, duro como um pau, como da primeira vez, incentivado pelas suas lágrimas e gemidos.

       — Excelência?

       Ele aceitou a pílula e o gole de água e ficou satisfeito com o frescor das mãos da enfermeira que guiaram o copo. Aí tornou a ver Ahmed e sorriu para ele, satisfeito por ter de volta o seu confidente.

       — Fez boa viagem?

       — Sim, Alteza.

       — Ela veio de boa vontade? Ou à força? — Ahmed sorriu.

       — Foi como o senhor planejou, Alteza. De boa vontade. Exatamente como o senhor planejou.

       — Eu acho que o senhor não deveria falar tanto, Excelência — disse a enfermeira.

       — Dê o fora.

       Ela bateu delicadamente no ombro dele.

       — O senhor quer comer alguma coisa, talvez um pouco de horisht'!

       — Halvah.

       — O médico disse que os doces não fazem bem ao senhor.

       — Halvah!

       A irmã Bain suspirou. O médico tinha proibido os doces e depois tinha dito:

       — Mas se ele insistir, a senhora pode dar, quantos ele quiser, que diferença faz isso agora? Insha'Allah. — Ela os encontrou e enfiou um na boca do khan e limpou a saliva, e ele o mastigou com prazer, tão liso e tão doce.

       — A sua filha chegou de Teerã, Excelência — ela disse. — Ela me pediu para avisá-la assim que o senhor acordasse.

       Abdullah Khan estava achando muito estranho falar. Ele tentava pronunciar as frases, mas sua boca não se abriu quando devia, e as palavras ficavam na sua mente por um longo tempo e então, quando uma forma simplificada do que ele queria dizer saía de sua boca, as palavras não eram bem formadas, embora devessem ser. Mas por quê? Eu não estou fazendo nada de um modo diferente do que antes. Antes de quê? Eu não me lembro, só me lembro de uma grande escuridão e do meu sangue rugindo e de estar sendo picado por agulhas em brasa e de não poder respirar.

       Eu agora posso respirar, ouvir e ver perfeitamente e a minha mente está trabalhando com clareza e está cheia de planos tão bem feitos como sempre. Só que não consigo colocá-los para fora.

       — Como?

       — O quê, Excelência? — Mais uma vez a demora.

       — Como falar melhor?

       — Ah — ela disse, compreendendo imediatamente, uma vez que tinha muita experiência com ataques. — Não se preocupe, o senhor terá um pouco de dificuldade no início. Conforme o senhor for melhorando, vai recuperar o controle de tudo. O senhor deve descansar o máximo possível, isso é muito importante. Descansar e tomar os remédios, e ter paciência, e ficará em forma novamente. Está bem?

       — Sim.

       — O senhor quer que eu mande chamar a sua filha? Ela estava muito ansiosa em falar com o senhor. Uma moça tão bonita.

       Pausa.

       — Mais tarde. Vejo mais tarde. Saia todo mundo... menos Ahmed. — A irmã Bain hesitou, depois tornou a bater gentilmente na mão dele.

       — Eu vou lhe dar dez minutos, se o senhor prometer que depois vai descansar. Está bem?

       — Sim.

       Quando ficaram a sós, Ahmed chegou mais perto da cama.

       — Sim, Alteza?

       — Que horas são?

       Ahmed consultou o relógio. Era de ouro trabalhado e ele o admirava muito.

       — São quase onze e meia de terça-feira.

       — Petr?

       — Não sei, Alteza. — Ahmed contou-lhe o que Hakim tinha dito. — Se Petr vier para Julfa hoje, Fazir estará esperando por ele.

       — Insha'Allah. Azadeh?

       — Ela estava realmente preocupada com a sua saúde e concordou em vir imediatamente. Há poucos momentos eu a vi junto com o seu filho. Eu tenho certeza que ela irá concordar com tudo para protegê-lo, assim como ele o fará para protegê-la. — Ahmed estava tentando dizer tudo de forma clara e concisa, sem querer cansá-lo. — O que o senhor deseja que eu faça?

       — Tudo. — Tudo o que discuti com você e um pouco mais, pensou o khan, com prazer, com o seu entusiasmo aumentando: Agora que Azadeh está de volta, corte o pescoço do mensageiro do pedido de resgate, para que os nativos façam o mesmo com o piloto; descubra se aqueles dois são traidores por todos os meios possíveis, e se forem, arranque os olhos de Hakim e mande-a para o norte, para Petr. Se não forem, pique Najoud em pedacinhos e os mantenha presos aqui, até que o piloto esteja morto, depois mande-a para o norte. E Pahmudi! Agora que estou oferecendo uma recompensa pela cabeça dele que tentaria até a Satã, Ahmed, ofereça-a primeiro a Fazir e diga-lhe que eu quero vingança, eu quero que Pahmudi seja torturado envenenado, picado, mutilado, castrado...

       O seu coração começou a falhar, palpitando e ele levantou a mão para esfregar o peito, mas a mão não se moveu. Nem uma polegada. Mesmo quando ele olhou para ela, caída na cama, desejando que se movesse, não houve nenhum movimento. Nada. Nem sensação. Nem na mão e nem no braço. O medo tomou conta dele.

       Não tenha medo, a enfermeira disse, ele lembrou a si mesmo, desesperado, com ondas rugindo no seu ouvido. Você teve um ataque, só isso, não foi muito forte e o médico disse que muitas pessoas sofrem ataques. O velho Komargi teve um há um ano e ainda está vivo e ativo e afirma que ainda dorme com a sua jovem esposa. Com tratamento moderno... você é um bom muçulmano e irá para o paraíso, então não há nada a temer, nada a temer, nada a temer... nada a temer, se eu morrer, eu vou para o paraíso...

       Eu não quero morrer, gemeu. Eu não quero morrer, tornou a gemer, mas foi só na sua cabeça, não emitiu nenhum som.

       — O que é, Alteza?

       Ele viu a ansiedade de Ahmed e se acalmou um pouco. Graças a Deus eu tenho Ahmed. Eu posso confiar em Ahmed, pensou, banhado em suor. O que é mesmo que eu quero que ele faça?

       — Família toda aqui mais tarde. Primeiro Azadeh, Hakim, Najoud... compreende?

       — Sim, Alteza. Para confirmar a sucessão?

       — Sim.

       — Eu tenho a sua permissão para interrogar Sua Alteza?

       Ele balançou a cabeça concordando, com as pálpebras pesadas, esperando que a dor no peito diminuísse. Enquanto esperava, mexeu com as pernas, sentindo os pés dormentes. Mas nada se moveu, não da primeira vez, só da segunda e só com muito esforço. O terror voltou a tomar conta dele. Em pânico, ele mudou de idéia:

       — Pague o resgate rapidamente, traga o piloto para cá, Erikki aqui, eu para Teerã, compreende? — Ele viu Ahmed concordar com a cabeça. — Depressa — murmurou e fez sinal para que ele saísse, mas a sua mão esquerda não se moveu. Apavorado, tentou a mão direita e conseguiu, com dificuldade, mas conseguiu. Parte do seu pânico desapareceu. — Pague resgate agora. Mantenha segredo. Chame a enfermeira.

      

       NO DESVIO DE JULFA: 18:25H. Hashemi Fazir e Armstrong estavam mais uma vez emboscados debaixo das árvores cobertas de neve. Lá embaixo, o Chevrolet esperava, com os faróis apagados, as janelas abertas, dois homens no banco da frente, como da outra vez. Lá no fundo da encosta, atrás deles, nos dois lados da estrada Julfa-Tabriz, havia uma centena de homens a postos para interceptar o carro. O sol tinha desaparecido sobre as montanhas e agora o céu estava escurecendo depressa.

       — Ele não tem mais muito tempo — tornou a resmungar Hashemi.

       — Da outra vez ele chegou ao anoitecer. Ainda não está escuro.

       — Maldito seja ele e todos os seus ancestrais. Estou gelado até os ossos.

       — Não falta muito agora, Hashemi, meu velho! — Se dependesse dele, Armstrong sabia que esperaria eternamente para agarrar Mzytryk, aliás Suslev, aliás Brodnin. Ele se oferecera para esperar em Tabriz depois do fracasso de sábado. — Deixe os homens comigo, Hashemi, eu preparo a emboscada na terça-feira. Você volta para Teerã, eu espero aqui, o apanho e levo para você.

       — Não, vou partir imediatamente e voltarei na terça-feira bem cedo. Você pode ficar aqui.

       'Aqui' era um esconderijo, um apartamento que dava para a Mesquita Azul, quente e cheio de estoques de uísque.

       — Você estava dizendo a verdade quando falou para Abdullah Khan que agora você é a lei aqui e que a Savama e Pahmudi não podem fazer nada sem o seu apoio?

       — Sim, oh, sim.

       — Pahmudi é mesmo uma obsessão para Abdullah. Por que isso?

       — Pahmudi fez com que Abdullah fosse expulso de Teerã.

       — Cristo! Por quê?

       — Uma velha inimizade, de muitos anos. Desde que Abdullah se tornou khan em 1953, ele advertiu agressivamente vários primeiros-ministros e funcionários da corte para serem cautelosos com relação a reformas políticas e as chamadas modernizações. Pahmudi, o intelectual bem-educado, treinado na Europa, o desprezava, foi sempre adversário dele, sempre impedindo que ele tivesse acesso ao xá. Infelizmente para o xá, Pahmudi tinha a confiança do xá.

       — Para traí-lo no fim.

       — Oh, sim, Robert, talvez até desde o começo. A primeira vez que Pahmudi e Abdullah se enfrentaram publicamente foi em 1963, a respeito das reformas propostas pelo xá dando às mulheres o direito de votar, estendendo esse direito aos não-muçulmanos e permitindo que não-muçulmanos fossem eleitos para o Majilis. É claro que Abdullah, assim como todo iraniano que fosse capaz de raciocinar, sabia que isso provocaria uma reação imediata em todos os líderes religiosos, especialmente Khomeini, que estava começando a aparecer naquela época.

       — É inacreditável que ninguém conseguisse ter acesso ao xá — dissera Armstrong — para avisá-lo.

       — Muitos o fizeram, mas ninguém com bastante influência sobre ele. A maioria apoiou Khomeini, publicamente ou em segredo, eu o fiz. Abdullah perdeu um round atrás do outro para Pahmudi. Contra os nossos conselhos, o xá mudou o calendário, do islâmico, que era tão sagrado para os muçulmanos quanto o a.C e o d.C. para os cristãos e tentou forçar uma contagem falsa até Ciro, o Grande... é claro que isso revoltou todos os muçulmanos e depois de quase haver uma revolução, ele voltou atrás... — Hashemi terminou o seu drinque e se serviu de outro. — Então, publicamente, Pahmudi disse a Abdullah para dar o fora, literalmente. Eu tenho tudo isso documentado. Disse que ele era estúpido, atrasado, que estava vivendo na Idade Média, "o que não é de espantar, vindo do Azerbeijão", e mandou que ele ficasse longe de Teerã até que fosse chamado ou seria preso. O pior é que debochou dele e fez publicarem algumas caricaturas dele.

       — Eu nunca pensei que Pahmudi fosse tão imbecil — disse Armstrong, para encorajá-lo a continuar, imaginando se ele acabaria se distraindo e revelando alguma coisa de valor.

       — Graças a Deus ele é. E é por isso que os seus dias estão contados. Armstrong recordou a estranha confiança que Hashemi tinha demonstrado e o quanto ele se sentira perturbado. Esta sensação permanecera com ele durante todo o tempo em que esperara a volta de Hashemi para Tabriz, sem coragem de andar pelas ruas que ainda estavam cheias de grupos rivais tentando dominá-las. Durante o dia, a polícia e o exército legalista mantinham a paz em nome do aiatolá. À noite, era difícil, se não impossível, deter pequenos grupos de fanáticos inclinados à violência, que aterrorizavam certas partes da cidade:

       — Nós ainda podemos esmagá-los facilmente se aquele velho demônio do Abdullah nos ajudar. — Dissera Hashemi, zangado.

       — Abdullah Khan ainda tem tanto poder assim, mesmo estando meio morto?

       — Oh, sim, ele ainda é o chefe hereditário de uma grande tribo. Sua riqueza, oculta e real, poderia rivalizar-se com a de um xá, não com a do xá Muhammad Reza, mas com certeza com a do seu pai.

       — Ele vai morrer muito breve. E depois?

       — O seu herdeiro terá o mesmo poder, presumindo-se que aquele pobre filho da puta do Hakim fique vivo para usá-lo. Eu já lhe contei que ele foi declarado herdeiro?

       — Não, o que há de estranho nisso?

       — Hakim é o filho mais velho do khan que foi banido para Khoi há anos, em desgraça. Ele foi trazido de volta e reinstaurado nos seus direitos.

       — Por quê? Por que ele foi banido?

       — O mesmo de sempre. Ele foi apanhado conspirando contra o pai do mesmo modo que Abdullah conspirou contra o pai dele.

       — Você tem certeza?

       — Não, mas curiosamente o pai de Abdullah morreu na fazenda do seu Mzytryk, em Tbilisi. — Hashemi sorriu sardonicamente com o efeito da sua informação..— De apoplexia.

       — Há quanto tempo você sabe disso?

       — Há bastante tempo. Nós vamos perguntar a Mzytryk se isso é verdade quando o agarrarmos. Nós o agarraremos, embora isso fosse mais fácil com Abdullah vivo, não há a menor dúvida. — Hashemi ficou sério. — Eu espero que ele fique vivo tempo suficiente para ordenar que nos dêem apoio para terminar com a guerra. Depois ele pode apodrecer. Eu odeio aquele velho safado pela sua traição e por ter-nos usado em proveito próprio, foi por isso que eu o ameacei com Pahmudi. É claro que eu o odeio, mas mesmo assim jamais o entregaria a Pahmudi, à sua maneira, ele é um patriota. Bem, vou para Teerã, Robert, você sabe onde me encontrar. Você gostaria de uma companhia na sua cama?

       — Só de água corrente quente e fria.

       — Você deveria experimentar um pouco, tentar um garoto para variar. Oh, pelo amor de Deus, não fique tão envergonhado. Você me desaponta tanto, não sei por que sou tão paciente com você.

       — Obrigado.

       — Vocês, ingleses, são todos tão depravados com relação a sexo, a maioria de vocês não passa de homossexuais enrustidos ou declarados, o que o resto acha extremamente desagradável e pecaminoso, contra as leis de Deus, o que não é. E no entanto na Arábia, onde a relação entre homens é historicamente normal e comum, porque pela lei não se pode tocar numa mulher a menos que você seja casado com ela, o homossexualismo tal como você o entende é desconhecido. Um homem prefere sodomia, e daí? Isto não interfere com a sua masculinidade aqui. Permita-se ter uma experiência nova, Robert. Enquanto isso, ela ficará aqui para você usá-la se desejar. Não me insulte pagando-a.

       "Ela" era uma caucasiana, cristã, atraente e ele dormira com ela sem necessidade nem paixão, apenas por educação, e agradecera e deixara-a dormir na cama e ficar no dia seguinte para limpar e cozinhar e distraí-lo e então, antes dele acordar hoje de manhã, ela desaparecera.

       Agora Armstrong olhava para o céu a ocidente. Estava muito mais escuro do que antes, a claridade estava indo embora depressa. Eles esperaram mais meia hora.

       — O piloto não poderá pousar agora, Robert. Vamos embora.

       — O Chevrolet ainda não se moveu. — Armstrong pegou a automática e checou-a. — Eu vou na hora em que o Chevrolet for, certo?

       O iraniano olhou para ele, com o rosto fechado.

       — Há um carro lá embaixo, estacionado de frente para Tabriz. Ele o levará para o nosso esconderijo. Espere por mim lá. Eu vou voltar para Teerã; há alguns assuntos importantes que não podem esperar, mais importantes do que este filho de um cão. Eu acho que ele sabe que estamos atrás dele.

       — Quando você estará de volta?

       — Amanhã. Ainda há o problema do khan. — E saiu andando na escuridão, praguejando.

       Armstrong o viu afastar-se, satisfeito por ficar sozinho. Hashemi estava ficando cada vez mais difícil, mais perigoso do que o normal, sempre pronto para explodir, com os nervos à flor da pele, tenso demais para um chefe do Serviço Secreto com tanto poder e um bando de assassinos particulares. Robert, está na hora de começarmos uma retirada. Eu não posso, ainda não. Vamos, Mzytryk, há luar suficiente para pousar, pelo amor de Deus.

       Pouco depois das dez horas, os faróis do Chevrolet se acenderam. Os dois homens levantaram os vidros e partiram. Cuidadosamente, Armstrong acendeu um cigarro, com a mão enluvada protegendo a pequena chama contra o vento. A fumaça causou-lhe um enorme prazer. Quando acabou de fumar, ele atirou a ponta de cigarro na neve e apagou-a. Então ele também partiu.

      

       PERTO DA FRONTEIRA ENTRE O IRÃ E A UNIÃO SOVIÉTICA: 23:05H. Erikki fingia dormir na pequena cabana, com um cavanhaque crescendo. Um pavio, flutuando no óleo, dentro de uma velha tigela de barro, lançava estranhas sombras. Restos de madeira incandescente brilhavam dentro da lareira de pedra. Ele abriu os olhos e olhou em volta. Não havia mais ninguém na cabana. Sem fazer barulho, ele escorregou por baixo dos cobertores e peles de animais. Estava inteiramente vestido. Calçou as botas, certificou-se de que sua faca estava no cinto e foi até a porta, abrindo-a devagar.

       Por um instante, ficou lá, escutando, com a cabeça ligeiramente de lado. Camadas de nuvens encobriam a lua e o vento balançava ligeiramente os galhos do pinheiro. A aldeia estava silenciosa sob a camada de neve. Ele não viu nenhum guarda. Não havia nenhum movimento perto do alpendre onde o 212 estava estacionado. Movendo-se como um caçador, ele rodeou as cabanas e se dirigiu para o alpendre.

       O 212 estava coberto, com peles e cobertores nos lugares mais importantes, todas as portas fechadas. Através de uma janela lateral da cabine, ele pode ver dois nativos deitados nos assentos, enrolados em cobertores, roncando. Havia rifles ao lado deles. Ele avançou mais um pouco. O guarda na cabine do piloto estava abraçado com a arma, inteiramente acordado. E ainda não tinha visto Erikki. Passos silenciosos se aproximaram, com o cheiro de cabras e ovelhas e tabaco velho a precedê-los.

       — O que foi, piloto? — perguntou baixinho o jovem xeque Bayazid.

       — Eu não sei.

       Agora o guarda escutou a voz deles e espiou pela janela da cabine, saudou o seu líder e perguntou qual era o problema. Bayazid respondeu:

       — Nada. — E fez sinal para ele continuar de guarda e observou a noite Pensativamente. Nos poucos dias em que o estrangeiro estava na aldeia, ele acabara por apreciá-lo e respeitá-lo, como homem e como caçador. Hoje ele o levara para a floresta, para testá-lo, e depois, como um outro teste e para seu próprio prazer, dera-lhe um rifle. O primeiro tiro de Erikki matou um cabrito montes bem distante, com tanta perfeição quanto ele o teria matado. Dar o rifle a ele tinha sido excitante, sem saber o que o estrangeiro faria, se ele iria tentar virá-lo contra ele ou fugir para a floresta, onde poderia caçá-lo com enorme prazer. Mas o Ruivo da Faca apenas caçara e guardara os seus pensamentos para si mesmo, embora todos pudessem sentir a violência aflorando.

       — Você percebeu alguma coisa. Perigo? — perguntou.

       — Eu não sei. — Erikki olhou para a escuridão e deu uma olhada em volta. Não havia nenhum outro som além do vento, uns poucos animais noturnos caçando, nada de estranho. Mesmo assim ele estava inquieto. — Ainda não teve notícias?

       — Não, mais nada. — Naquela tarde, dois dos mensageiros tinham voltado.

       — O khan está muito doente. Quase morto. — dissera o homem. — Mas prometeu responder logo.

       Bayazid tinha repetido tudo fielmente para Erikki.

       — Piloto, seja paciente — disse, não querendo nenhum problema. O que é que o khan tem?

       — Está doente. O mensageiro disse que soube que ele está doente, muito doente. Doente!

       — E se ele morrer, o que acontece?

       — O herdeiro dele vai pagar. Ou não vai pagar, Insha 'Allah. — O xeque ajeitou o rifle no ombro. — Venha abrigar-se, está frio. — Da beirada da cabana ele agora podia enxergar o fundo do vale. Estava tudo calmo e silencioso, com alguns clarões de vez em quando na estrada lá embaixo.

       A pouco mais de trinta minutos do palácio e de Azadeh, pensava Erikki. E sem maneira de fugir.

       Toda vez que ele ligava os motores para recarregar as baterias e circular o óleo, havia cinco armas apontando para ele. Às vezes ele passeava até a beirada da aldeia ou, como hoje, se levantava, pronto para tentar escapar a pé, mas não tinha nunca oportunidade, os guardas estavam sempre alerta. Hoje, durante a caçada, ele se sentira tentado a fugir, o que, evidentemente, seria inútil, já que eles estavam apenas fazendo um jogo com ele.

       — Não é nada, piloto, volte para a cama — disse Bayazid. — Talvez tenhamos boas notícias amanhã. Seja como Deus quiser.

       Erikki não disse nada, perscrutando a escuridão, incapaz de se livrar dos maus pressentimentos. Talvez Azadeh esteja em perigo ou talvez... talvez não seja nada ou eu esteja apenas enlouquecendo com a espera e com a preocupação por não saber o que está acontecendo. Será que Ross e o soldado conseguiram fugir? E quanto a Petr matyeryebyets Mzytryk e Abdullah?

       — Seja como Deus quiser, eu concordo, mas eu quero partir. Chegou a hora.

       O rapaz sorriu, mostrando os dentes estragados.

       — Então eu terei que amarrá-lo. Erikki sorriu da mesma forma.

       — Vou esperar até amanhã à noite, e então, ao amanhecer, vou partir.

       — Não.

       — Será melhor para você e para mim. Nós poderemos ir para o palácio com os seus companheiros, eu posso aterr...

       — Não. Nós vamos esperar.

       — Eu posso aterrissar no pátio e falar com ele e você receberá o resgate e...

       — Não. Nós vamos esperar. Vamos esperar aqui. Lá não é seguro.

       — Ou partimos juntos ou eu vou sozinho. O xeque deu de ombros.

       — Você já foi avisado, piloto.

      

       NO PALÁCIO DO KHAN: 23:38H. Ahmed ia levando Najoud e o marido, Mahmud, pelo corredor, na frente dele, como se fossem gado. Ambos estavam com roupas de dormir, descabelados e aterrorizados. Najoud chorava e havia dois guardas atrás deles. Ahmed ainda tinha a sua faca na mão. Há meia hora, ele tinha entrado nos aposentos deles com os guardas, os acordara bruscamente, dizendo que o khan finalmente descobrira que eles mentiram ao dizer que Hakim e Azadeh tinham conspirado contra ele, porque naquela mesma noite um dos criados admitiu ter ouvido a mesma conversa e afirmou que nada de mal havia sido dito.

       — Mentiras — gaguejou Najoud, deitada na cama feita sobre tapetes, meio cega pela luz da lanterna que um dos guardas mantinha apontada para o seu rosto. O outro guarda tinha um revólver encostado na cabeça de Mahmud. — Tudo mentira...

       Ahmed tirou sua faca, bem afiada, e colocou-a sob o seu olho esquerdo.

       — Não são mentiras, Alteza! A senhora cometeu perjúrio diante do khan, diante de Deus, por isso eu estou aqui, cumprindo ordens do khan, para cegá-la. — E tocou nela com a ponta da faca e ela gritou:

       — Não, por favor, eu imploro, por favor, não... espere, espere...

       — A senhora admite ter mentido?

       — Não. Eu não menti. Deixe-me ver o meu pai. Ele nunca teria ordenado isso sem primeiro falar comigo...

       — A senhora nunca mais vai vê-lo. Por que ele deveria falar com a senhora? A senhora mentiu antes e vai mentir outra vez!

       — Eu... eu nunca menti, nunca menti...

       Seus lábios torceram-se num sorriso. Durante todos aqueles anos, ele sempre soubera que ela tinha mentido. Isto não fizera nenhuma diferença para ele. Mas agora fazia.

       — A senhora mentiu, em nome de Deus. — A ponta da faca arranhou a pele dela. A mulher, apavorada, tentou gritar, mas ele apertou-lhe a boca com a outra mão e se sentiu tentado a apertar mais um pouco e terminar logo com tudo. — Mentirosa!

       — Piedade — ela gemeu — piedade em nome de Deus... Ele diminuiu a pressão, mas não retirou a ponta da faca.

       — Eu não posso perdoá-la. Peça perdão a Deus, o khan já decretou a sua sentença!

       — Espere... espere — ela disse, desesperada, sentindo os músculos dele se retesarem para o ataque —, por favor... deixe-me ver o khan... deixe-me implorar a piedade dele, eu sou sua fi...

       — A senhora admite ter mentido?

       Ela hesitou, em pânico. Imediatamente, a faca espetou mais um pouco e ela gaguejou:

       — Eu admito... eu admito que exage...

       — Em nome de Deus, a senhora mentiu ou não? — Ahmed murmurou, com raiva.

       — Sim... sim... por favor, deixe-me ver o meu pai... por favor. — As lágrimas escorriam e ele fingiu hesitar, depois olhou para o marido dela, que estava deitado no tapete, tremendo de medo.

       — Você também é culpado!

       — Eu não sabia de nada. — Mahmud gaguejou. — De nada, eu nunca menti para o khan, nunca, eu não sabia de nada...

       Ahmed empurrou os dois para a frente. Guardas abriram a porta do quarto do doente. Azadeh, Hakim e Aysha estavam lá, chamados inesperadamente, em trajes de dormir, assustados, a enfermeira também, o khan acordado e ofegante, com os olhos injetados. Najoud caiu de joelhos e disse que tinha exagerado com relação a Hakim e Azadeh e quando Ahmed chegou mais perto, ela confessou:

       — Eu menti, menti, por favor, pai, perdoe-me, por favor, perdoe-me, perdoe-me... piedade... piedade... — Mahmud também estava gemendo e chorando, dizendo que não sabia de nada, senão teria falado, é claro que sim, diante de Deus, ambos implorando misericórdia, e todo mundo sabendo que não haveria nenhuma.

       O khan limpou a garganta. Silêncio. Todos os olhos estavam fixos nele. Ele mexeu com a boca, mas não saiu som algum. A enfermeira e Ahmed se aproximaram dele.

       — Ahmed fica e Azadeh e Hakim... o resto sai, eles sob escolta.

       — Alteza — a enfermeira disse gentilmente —, isso não pode esperar até amanhã? O senhor já se cansou demais. Por favor, deixe para amanhã.

       O khan sacudiu a cabeça.

       — Agora.

       A enfermeira sentia-se muito cansada.

       — Eu não assumo nenhuma responsabilidade, Excelência Ahmed. Por favor, seja o mais breve possível. — Exasperada, ela saiu.

       Dois guardas obrigaram Najoud e Mahmud a se levantarem e os arrastaram para fora. Aysha seguiu-os tremendo. Por um momento, o khan fechou os olhos, recuperando as forças. Agora só a sua respiração estrangulada quebrava o silêncio. Ahmed, Hakim e Azadeh esperaram. Passaram-se vinte minutos. O khan abriu os olhos. Para ele, tinham-se passado apenas alguns segundos.

       — Meu filho, confie em Ahmed, faça dele o seu conselheiro.

       — Sim, pai.

       — Jurem por Deus, vocês dois.

       Ele ouviu atentamente enquanto os dois repetiam:

       — Eu juro por Deus que confiarei em Ahmed e farei dele o meu conselheiro. — Mais cedo, eles tinham jurado diante de toda a família a mesma coisa e tudo o mais que o khan exigira: cuidar do pequeno Hassan e protegê-lo; Hakim fazer de Hassan o seu herdeiro; os dois permanecerem em Tabriz e Azadeh ficar pelo menos dois anos sem sair do Irã.

       — Desta forma, Alteza — Ahmed tinha explicado antes —, nenhuma influência externa, como a do marido, poderá afastá-la antes dela ser enviada para o norte, seja culpada ou inocente.

       Isto é aconselhável, pensou o khan, aborrecido com Hakim e com Azadeh por terem permitido que a mentira de Najoud tivesse ficado sem castigo por tantos anos — odiando Najoud e Mahmud por serem tão fracos. Nenhuma coragem, nenhuma força. Bem, Hakim vai aprender e ela também vai aprender. Se eu tivesse um pouco mais de tempo..

       — Azadeh.

       — Sim, pai?

       — Najoud, que castigo?

       Ela hesitou, assustada de novo, sabendo como a cabeça dele funcionava, percebendo a armadilha em que havia caído.

       — Expulsão. Expulse-a, o marido, e toda a família.

       Sua idiota, você nunca criará um khan dos Gorgons, pensou, mas estava cansado demais para falar e por isso fez sinal para que ela saísse. Antes de sair, Azadeh foi até a cama e beijou a mão do pai.

       — Tenha piedade deles, papai, por favor. — E forçou um sorriso, afagou-o mais uma vez e saiu.

       Ele a observou fechar a porta.

       — Hakim?

       Hakim também tinha percebido a armadilha e estava gelado, com medo de desagradar o pai, desejando vingança mas não a sentença terrível que o khan pronunciaria.

       — Que eles sejam banidos para sempre, sem um tostão — disse. — Deixe-os ganhar o próprio pão daqui para a frente e expulse-os da tribo.

       Um pouco melhor, pensou Abdullah. Normalmente, este seria um castigo terrível. Mas não se você fosse um khan e eles uma perpétua ameaça. Mais uma vez ele fez um sinal com a mão, mandando-o sair. Como Azadeh, ele beijou a mão do pai e desejou-lhe boa-noite.

       Quando ficaram a sós, Abdullah disse:

       — Ahmed?

       — Amanhã, mande-os para as terras desertas ao norte de Meshed, sem um tostão, sob escolta. Dentro de um ano e um dia, quando eles estiverem certos de terem escapado vivos, quando tiverem algum negócio, uma casa ou uma cabana, ponha fogo em tudo e mate-os, junto com os três filhos.

       Ele sorriu.

       — Ótimo, faça isso.

       — Sim, Alteza. — Ahmed também sorriu, muito satisfeito.

       — Agora vou dormir.

       — Durma bem, Alteza. — Ahmed viu as pálpebras dele se fecharem e o rosto despencar. Em poucos segundos, o doente estava roncando.

       Ahmed sabia que tinha que ser muito cuidadoso agora. Ele abriu a porta silenciosamente. Hakim e Azadeh estavam esperando no corredor, junto com a enfermeira. Preocupada, a enfermeira entrou no quarto, tomou o pulso do khan, examinando-o atentamente.

       — Ele está bem? — Azadeh perguntou da porta.

       — Quem pode saber, mocinha? Ele se cansou, se cansou demais. É melhor vocês todos sairem agora.

       Nervosamente, Hakim virou-se para Ahmed.

       — O que foi que ele decidiu?

       — Serão banidos para as terras ao norte de Meshed, devendo partir amanhã bem cedo, sem um tostão, além de terem sido expulsos da tribo. Ele mesmo lhe dirá amanhã, Alteza.

       — Seja como Deus quiser. — Azadeh estava muito aliviada pelo fato dele não ter ordenado o pior. Hakim estava radiante por ele ter seguido o seu conselho.

       — Minha irmã e eu, ahn, nós não sabemos como agradecer-lhe por nos ter ajudado, Ahmed, e, bem, por ter revelado a verdade depois de tanto tempo.

       — Obrigado, Alteza, mas eu apenas cumpri ordens do khan. Quando chegar a hora, vou servi-lo da mesma forma com que tenho servido a Sua Alteza, ele me fez prometer isso. Boa noite. — Ahmed sorriu para si mesmo e fechou a porta, voltando para perto da cama

       — Como está ele? — perguntou à enfermeira.

       — Não muito bem, aga. — Ela estava com dor nas costas e muito cansada. — Eu preciso de alguém para me substituir amanhã. Precisamos de duas enfermeiras e uma irmã. Desculpe, mas não posso continuar sozinha.

       — O que a senhora precisar, contanto que fique. Sua Alteza aprecia o cuidado que a senhora tem com ele. Se quiser, eu posso ficar tomando conta dele por uma hora ou duas. Há um sofá no outro quarto e eu posso chamá-la se houver alguma coisa.

       — Oh, é muito gentil de sua parte. Obrigada, um descanso me faria bem, mas me chame se ele acordar e me chame de qualquer maneira dentro de duas horas.

       Ele a acompanhou até o quarto ao lado, disse ao guarda para vir rendê-lo dentro de três horas e dispensou-o, depois começou a vigília. Meia hora depois, ele foi espiar a enfermeira. Ela dormia profundamente. Ele voltou para o quarto, trancou a porta, respirou profundamente, despenteou os cabelos e correu para a cama, sacudindo o khan.

       — Alteza — sussurrou como se estivesse apavorado —, acorde, acorde! O khan despertou de um sono pesado sem saber onde estava nem o que tinha acontecido, nem se estava tendo outro pesadelo.

       — O que... o que... Então seus olhos entraram em foco e ele viu Ahmed, parecendo apavorado, o que era muito estranho. Ele levou um choque. — O que...

       — Rápido, o senhor tem que se levantar, Pahmudi está lá embaixo — Ahmed falou ofegante —, alguém abriu a porta para eles, o senhor foi traído, alguém o entregou, Hashemi Fazir o entregou a Pahmudi e à Savama como pishkesh, depressa, levante-se, eles dominaram os guardas e estão vindo para levá-lo... — Ele viu o terror nos olhos do khan e continuou depressa: — Eles são muitos! Rápido, o senhor precisa fugir...

       Rapidamente, ele retirou o soro e afastou as cobertas, ajudando o homem aterrorizado a se levantar e, de repente, o empurrou de volta para a cama e olhou para a porta.

       — Tarde demais — murmurou. — Ouça, eles estão chegando com Pahmudi na frente, eles estão chegando!

       Com o peito ardendo, o khan imaginou que estava ouvindo passos, que estava vendo Pahmudi, que estava vendo o seu rosto fino, radiante, e os instrumentos de tortura lá fora, no corredor, sabendo que não haveria misericórdia e que eles o manteriam vivo para arrancar-lhe a vida aos poucos. Enlouquecido, ele gritou para Ahmed: Rápido, ajude-me. Eu posso chegar até a janela, nós podemos fugir por lá se você me ajudar! Em nome de Deus, Ahmed... mas não conseguiu pronunciar as palavras. Tornou a tentar, mas sua boca não se coordenava com o seu cérebro, os músculos do seu pescoço se retesaram com o esforço, suas veias se intumesceram.

       Pareceu-lhe uma eternidade o tempo que passou tentando gritar e chamar por Ahmed, que ficou parado vigiando a porta, sem ajudá-lo, com os passos se aproximando cada vez mais.

       — Socorro — conseguiu dizer, tentando sair da cama, com as cobertas impedindo-o, sufocando-o, com a dor no peito aumentando cada vez mais, tão monstruosa quanto o barulho.

       — Não há escapatória, eles estão aqui. Eu vou ter que deixá-los entrar! No limite do seu terror, ele viu Ahmed dirigir-se para a porta. Com o resto das suas forças, gritou para ele parar, mas só o que saiu foi um gemido estrangulado. Então ele sentiu alguma coisa estalar no seu cérebro. Uma centelha de lucidez atravessou-o. A dor cessou, o barulho cessou. Ele viu Ahmed sorrir. Seus ouvidos captaram o silêncio do corredor e o silêncio do palácio e ele soube que fora realmente traído. Com um último e supremo esforço, ele tentou se atirar sobre Ahmed, com o fogo na sua cabeça iluminando o caminho para dentro do túnel, vermelho, quente e líquido, e lá, no nadir, ele apagou o fogo e possuiu a escuridão.

       Ahmed certificou-se de que o khan estava morto, satisfeito por não ter sido obrigado a sufocá-lo com o travesseiro. Rapidamente, tornou a conectar o soro, verificou se não havia nenhum vazamento traiçoeiro nele, arrumou um pouco a cama e então, com muito cuidado, examinou o quarto. Não viu nada que pudesse incriminá-lo. Estava ofegante, com a cabeça latejando e seu alívio era imenso. Verificou tudo mais uma vez, depois foi até a porta, destrancou-a silenciosamente e voltou para perto da cama. O khan estava deitado nos travesseiros, com sangue saindo pelo nariz e pela boca.

       — Alteza! — berrou. — Alteza... — então se inclinou e agarrou-o por um momento, depois soltou-o e atravessou o quarto correndo e abriu a porta.

       — Enfermeira! — gritou e correu para o outro quarto, acordou a mulher e arrastou-a de volta para o quarto do Khan.

       — Oh, meu Deus — ela murmurou, com as pernas bambas de alívio por não ter acontecido quando ela estava sozinha com ele, podendo ser acusada por aquele guarda-costas violento ou por aquelas pessoas malucas, que gritavam e ameaçavam. Bem acordada agora, ela enxugou a testa e ajeitou os cabelos, sentindo-se nua sem a touca. Rapidamente, fez o que tinha que ser feito e fechou os olhos dele, ouvindo os gemidos e lamentos de Ahmed.

       — Ninguém poderia ter feito nada, aga. Poderia acontecer a qualquer momento. Ele estava sofrendo muito, a sua hora tinha chegado, foi melhor assim, melhor do que viver como um vegetal.

       — Sim... sim, acho que sim. — As lágrimas de Ahmed eram verdadeiras, lágrimas de alívio. — Insha'Allah. Insha'Allah!

       — O que foi que aconteceu?

       — Eu... eu estava cochilando e ele... ele engasgou e começou a sangrar pelo nariz e pela boca. — Ahmed enxugou as lágrimas, deixando a voz falsear.

       — Eu o agarrei na hora em que ele estava caindo da cama e então... então eu não sei... ele desmaiou... e eu fui chamá-la correndo.

       — Não se preocupe, aga, não havia nada a fazer. Às vezes é súbito e rápido, às vezes não. É melhor quando é rápido, é uma bênção. — Ela suspirou e ajeitou o uniforme, satisfeita por poder sair daquele lugar. — Ele, ahn, ele precisa ser limpo antes de chamarmos os outros.

       — Sim. Por favor, deixe-me ajudar, eu quero ajudar.

       Ahmed ajudou-a a limpar o sangue e a torná-lo apresentável e o tempo todo estava fazendo planos: Najoud e Mahmud banidos antes do meio-dia, o resto do castigo daqui a um ano e um dia; depois descobrir se Fazir agarrou Petr Oleg; em seguida, certificar-se de que a garganta do mensageiro do pedido de resgate tinha sido cortada naquela tarde, conforme ele ordenara em nome do khan.

       Imbecil, disse para o cadáver, imbecil em pensar que eu pagaria o resgate para trazer o piloto de volta para levá-lo para Teerã e salvar a sua vida. Por que salvar uma vida por mais um mês ou uns dias? É perigoso ficar doente e impotente por causa da doença, as mentes ficam embotadas, oh, sim, o médico me disse o que deveria esperar, que a sua cabeça pioraria cada vez mais, que o senhor ficaria cada vez mais vingativo, cada vez mais perigoso, podendo até virar-se contra mim! Mas agora, agora a sucessão está assegurada, eu posso dominar o garoto e, com a ajuda de Deus, me casar com Azadeh. Ou então mandá-la para o norte — o buraco dela é igual a outro qualquer.

       A enfermeira observava Ahmed de vez em quando, suas mãos fortes e hábeis, sua delicadeza, sentindo-se pela primeira vez satisfeita com a presença dele e sem medo, vendo-o pentear a barba do morto. As pessoas são tão estranhas, pensou. Ele deve ter gostado muito desse velho malvado.

 

 

                                                                  CONTINUA

 

 

QUARTA-FEIRA, 28 de fevereiro

       TEERÃ: 6:55H. McIver continuou a separar as pastas e os papéis que tirara do cofre grande do escritório, colocando na maleta só os que eram de extrema importância. Estava fazendo isso desde às cinco e meia da manhã e agora sua cabeça e suas costas doíam e a maleta estava quase cheia. Eu deveria levar tanta coisa mais, pensou, trabalhando o mais depressa que podia. Dentro de uma hora, talvez menos, a turma de empregados iranianos chegaria e ele teria que parar.

       Que pestes, pensou irritado, nunca estavam aqui quando precisávamos deles, mas agora, nestes últimos dias, não consigo me livrar deles, são como uma praga: "Oh, não, Excelência, por favor, deixe-me trancar o escritório para o senhor, permita-me este privilégio"... ou então: "Oh, não, Excelência, eu abro o escritório para o senhor, eu insisto, isto não é trabalho para Vossa Excelência". Talvez eu esteja ficando paranóico, mas é como se fossem todos espiões, com instruções para nos vigiar, os sócios estão mais intrometidos do que nunca. Quase como se houvesse alguém atrás de nós.

 

 

 

 

       E no entanto, até agora — deixa eu bater na madeira — está tudo funcionando perfeitamente. Ao meio-dia, mais ou menos, nós partimos; Rudi já está preparado para sexta-feira, com todo o pessoal extra e um carregamento de peças que saiu de Bandar Delam por terra e foi para Abadan, onde um Trident da BA conseguiu pousar, com autorização do amigo do Duke, Zataki, para retirar operários britânicos; em Kowiss, nesta altura, Duke já deve ter escondido o combustível de reserva, e todos os rapazes têm licença para partir amanhã no 125 — deixa eu bater de novo na madeira — três caminhões carregados de peças já foram para Bunshire para serem embarcados em navio para Al Shargaz; 'Pé-quente', o coronel Changiz e aquele maldito mulá, Hussein, ainda estão se comportando direito — tenho que bater na madeira mais umas cinqüenta vezes; em Lengeh, Scrag não deve estar tendo problemas, há muitos navios disponíveis para as suas peças e não há mais nada a fazer a não ser esperar pelo dia D, não, pelo dia T.

       O único ponto negativo é Azadeh. E Erikki. Por que ela não falou comigo antes de sair atrás do pobre Erikki? Meu Deus, ela foge de Tabriz para salvar a pele e depois torna a cair na armadilha. Mulheres! São todas malucas. Resgate? Conversa fiada! Eu aposto que é outra armadilha preparada pelo pai dela, aquele velho filho da mãe. Ao mesmo tempo, é como Tom Lochart disse: "Ela teria ido de qualquer maneira, Mac, e você teria contado a ela a respeito da Operação Turbilhão?

       Seu estômago começou a arder. Mesmo que todos nós consigamos partir, ainda resta o problema de Erikki e Azadeh. E também o de Tom e Xarazade. Como vamos conseguir pô-los a salvo? Tenho que pensar em alguma coisa. Nós ainda temos...

 

 

                                                                 

 

                                                   

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