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No segundo Sabá da décima segunda Lua, na cidade de Lamento, uma garota caiu do céu.
Sua pele era azul, seu sangue, vermelho.
Ela quebrou um portão de ferro, entortando-o com o impacto, e lá ficou pendurada, arqueada de um jeito impossível, graciosa como uma bailarina desmaiada nos braços de seu amor. Uma lança fina ancorava-a no lugar. A ponta, saliente em seu esterno, brilhava como um broche. Ela estremeceu brevemente enquanto seu fantasma se soltava, e botões de bastão-do-imperador choviam de seus longos cabelos.
Mais tarde, eles diriam que eram corações de beija-flor e não botões de flor.
Eles diriam que ela não derramou sangue, mas chorou sangue. Que ela estava lasciva, mostrando-lhes a língua e os dentes, de cabeça para baixo e morrendo, que ela vomitou uma serpente que se transformou em fumaça quando atingiu o chão. Eles diriam que um bando de mariposas veio, frenético, e tentou levantá-la dali.
Isso foi verdade. Só isso.
Contudo, eles não tinham uma oração. As mariposas não eram maiores do que as bocas abertas das crianças, e mesmo dezenas juntas só puderam puxar mechas de seu cabelo escurecido até que suas asas cederam, empapadas com o sangue dela. Elas foram lançadas para longe com os botões de flor quando uma rajada de vento engasgada de areia veio descendo a rua. A terra levantou-se sob os pés. O céu girou em seu eixo. Um brilho estranho lançou-se através da fumaça ondulante, e as pessoas de Lamento tiveram de fechar os olhos. Areia soprando e luz quente e o odor de salitre. Houve uma explosão. Eles poderiam ter morrido, todos e facilmente, mas só essa garota havia morrido, sacudida de algum bolso do céu.
Seus pés estavam descalços, sua boca manchada de roxo. Seus bolsos estavam cheios de ameixas. Ela era jovem e adorável e surpresa e morta.
Ela também era azul.
Azul como opalas, azul-claro. Azul como centáureas, ou asas de libélula, ou um céu de primavera – não de verão.
Alguém gritou. O grito atraiu outras pessoas. As outras também gritaram, não porque uma garota estava morta, mas porque a garota era azul, e isso significava alguma coisa na cidade de Lamento. Mesmo depois que o céu parou de girar, e a terra aquietou-se, e a última fumaça foi cuspida do local da explosão e dispersou-se, os gritos continuaram, alimentando-se de voz em voz, um vírus do ar.
O fantasma da garota azul se recompôs e empoleirou-se, enlutado, sobre a ponta da lança que se projetava, poucos centímetros acima de seu peito imóvel. Ofegando em choque, ela inclinou a cabeça invisível para trás e olhou, tristemente, para cima.
Os gritos continuavam e continuavam...
E do outro lado da cidade, no alto de uma cunha de metal maciço e límpido como espelho, uma estátua moveu-se, como se acordada pelo tumulto e, lentamente, levantou sua grande cabeça com chifres.
PARTE I
shrestha (SHRES-thuh) substantivo
Quando um sonho se transforma em realidade – mas não para o sonhador.
Arcaico; de Shres, o deus bastardo da sorte, que se acreditava punir os suplicantes por oferendas inadequadas, concedendo o desejo de seu coração a outra pessoa.
1
MISTÉRIOS DE LAMENTO
Nomes podem perder-se ou serem esquecidos. Ninguém sabia melhor disso do que Lazlo Estranho. Ele teve outro nome primeiro, mas um nome que morrera como uma música sem ninguém mais para cantá-la. Talvez tivesse sido um velho nome de família, polido por usos de geração em geração. Talvez tivesse lhe sido dado por alguém que o amava. Ele gostava de pensar assim, mas não fazia ideia. Tudo o que tinha era Lazlo e Estranho – Estranho porque esse era o sobrenome dado a todos os enjeitados no Reino de Zosma, e Lazlo por causa do tio monge sem língua.
– Ele a teve cortada ao cumprir pena em uma galé – o Irmão Argos disse-lhe quando ele teve idade suficiente para compreender. – Ele era um homem misterioso e silencioso, e você era um bebê misterioso e silencioso, então me veio: Lazlo. Tive que dar nome a tantos bebês naquele ano que escolhia o que aparecia na minha cabeça. – Ele acrescentou, como se pensasse alto: – Não achei que você viveria, de qualquer forma.
Aquele foi o ano em que Zosma se ajoelhou e sangrou rios de homens para uma guerra por nada. A guerra, é claro, não se contentou com os soldados. Campos foram queimados e vilarejos saqueados. Bandos de camponeses desabrigados vagaram pelas terras devastadas, brigando com os corvos pelo restante das colheitas. Tantos morreram que as carroças usadas para levar ladrões para a forca foram usadas para carregar órfãos para os mosteiros e conventos. Eles chegavam como carregamentos de ovelhas, segundo os monges contam, e sem maior conhecimento de sua proveniência, assim como as ovelhas. Alguns tinham idade o suficiente para saber seus nomes, pelo menos, mas Lazlo era apenas um bebê, e um bebê doente.
– Cinza como a chuva, você era – disse o Irmão Argos. – Pensei que, com certeza, morreria, mas você comeu e bebeu e sua cor ficou normal com o tempo. Nunca chorou, nem uma vez, e isso não era natural, mas gostamos de você por isso. Nenhum de nós se tornou monge para ser babá.
Ao que o pequeno Lazlo respondeu, com fogo em sua alma:
– E nenhum de nós se tornou criança para ser órfã.
Mas órfão era o que ele era, e um Estranho, e embora ele tendesse à fantasia, nunca teve nenhuma ilusão a respeito disso. Mesmo quando era menor, entendia que não haveria revelações. Ninguém viria buscá-lo, e ele nunca saberia seu nome verdadeiro.
Talvez seja por isso que o mistério de Lamento o capturou tão completamente.
Na verdade, havia dois mistérios: um velho e um novo. O velho abriu sua mente, mas foi o novo que escalou para dentro, deu várias voltas, e instalou-se com um grunhido – como um dragão satisfeito em uma nova toca aconchegante. E lá ele ficaria – o mistério, em sua mente – exalando enigma por anos a fio.
Tinha a ver com um nome, e a descoberta de que, além de ser perdido ou esquecido, eles também poderiam ser roubados.
Quando aconteceu, ele tinha cinco anos, aluno do Mosteiro Zemonan, havia fugido para o velho pomar, refúgio de insetos voadores, para brincar sozinho. Era o começo do inverno, as árvores estavam pretas e sem folhas. Seus pés quebravam uma casca de gelo a cada passo, e a fumaça de sua respiração o acompanhava como um fantasma amigo.
O Angelus soou, sua voz de bronze derramando-se sobre o curral de ovelhas e as paredes do pomar em ondas lentas e intensas. Era um chamado para a oração. Se ele não entrasse, seria notada sua ausência, e se fosse percebida sua ausência, ele seria chicoteado.
Ele não entrou.
Lazlo sempre encontrava formas de fugir para ficar sozinho, e suas pernas estavam sempre marcadas pela vara de aveleira que ficava pendurada em um gancho com seu nome. Valia a pena. Fugir dos monges, das regras, das tarefas e da vida que o oprimia como sapatos apertados.
Para brincar.
– Volte agora se você sabe o que é bom para você – ele alertava aos inimigos imaginários. Ele segurava uma “espada” em cada mão: galhos negros de macieira com as extremidades firmes retorcidas para fazer empunhaduras. Ele era uma criança abandonada, pequena e desnutrida, com cortes na cabeça onde os monges entalhavam, raspando contra piolhos, mas ele portava-se com uma dignidade única, e não poderia haver dúvida de que, em sua mente, naquele momento, ele era um guerreiro. E não apenas qualquer guerreiro, mas um Tizerkane, o mais feroz que já existiu.
– Nenhum forasteiro – ele dizia a seus inimigos – jamais pousou os olhos na cidade proibida. E enquanto eu respirar, ninguém jamais pousará.
– Estamos com sorte, então – os inimigos respondiam, e lhes eram mais reais à luz do crepúsculo do que os monges cujo canto flutuava morro abaixo vindo do mosteiro. – Porque você não vai respirar por muito mais tempo.
Os olhos acinzentados de Lazlo espremiam-se.
– Vocês acham que podem me derrotar?
As árvores negras dançavam. Sua respiração fantasma desaparecia rapidamente em uma rajada de vento, apenas para ser substituída por outra. Sua sombra estendia-se enorme à sua frente, e sua mente brilhava com guerras antigas e seres alados, uma montanha de ossos derretidos de demônio e a cidade ao lado – uma cidade que desapareceu na névoa do tempo.
Esse era o mistério antigo.
Chegou até ele por um monge senil, o Irmão Cyrus. Ele era inválido, e recaiu sobre os meninos a tarefa de levar-lhe as refeições. Ele não era gentil. Nenhuma figura de avô, nenhum mentor. Ele tinha muita força, e era conhecido por segurar os meninos pelo pulso por horas, forçando-os a repetir catecismos absurdos e confessar todo tipo de maldade que eles mal podiam entender, quanto menos terem cometido. Todos tinham horror dele e de suas mãos nodosas de ave de rapina, e os meninos mais velhos, em vez de protegerem os mais novos, enviavam-nos à sua toca em seu lugar. Lazlo tinha tanto medo quanto o resto, mesmo assim oferecia-se para levar todas as refeições.
Por quê?
Porque o Irmão Cyrus contava histórias.
Histórias não eram bem-vindas no mosteiro. Na melhor das hipóteses, elas distraíam da contemplação espiritual. Na pior, elas honravam deuses falsos e envenenavam o espírito para o pecado. Mas o Irmão Cyrus havia ido além dessas restrições. Sua mente havia se soltado das amarras. Ele nunca parecia entender onde estava, e essa confusão o deixava furioso. Seu rosto ficava contraído e vermelho. A saliva voava quando ele esbravejava. Mas ele tinha seus momentos de calma: quando passava por alguma porta do porão em sua memória, de volta à infância e às histórias que sua avó costumava lhe contar. Ele não conseguia lembrar do nome dos outros monges, ou mesmo das orações que foram sua vocação durante décadas, mas as histórias derramavam-se de sua boca, e Lazlo as ouvia. Ele ouvia como um cacto bebe água da chuva.
No sul e no leste do continente de Namaa – longe, bem longe da nortenha Zosma – havia um vasto deserto chamado Elmuthaleth, cuja travessia era uma arte dominada por poucos e ferozmente guardada contra todos os outros. Em algum lugar no meio de seu vazio ficava uma cidade que nunca foi vista. Era um rumor, uma fábula, mas era um rumor e uma fábula das quais surgiam maravilhas, carregadas por camelos que cruzavam o deserto para incendiar a imaginação das pessoas de toda parte.
A cidade tinha um nome.
Os homens que montavam os camelos, que traziam as maravilhas, contaram o nome e contaram histórias, e o nome e as histórias chegaram, com as maravilhas, até terras distantes, onde evocavam visões de domos cintilantes e cervos brancos dóceis, mulheres tão belas que derretiam a mente, e homens cujas cimitarras cegavam com seu brilho.
Por séculos isso foi assim. Alas de palácios eram dedicadas às maravilhas, e prateleiras de bibliotecas às histórias. Comerciantes ficavam ricos. Os aventureiros ficaram mais ousados e foram encontrar a cidade. Nenhum retornou. Era proibida aos faranji – forasteiros – que, se sobrevivessem à travessia do Elmuthaleth, eram executados como espiões. Não que isso os impedisse de tentar. Proíba um homem de alguma coisa e ele a anseia como a salvação de sua alma, ainda mais quando aquela coisa é a fonte de riquezas incomparáveis.
Muitos tentaram.
Ninguém nunca retornou.
O horizonte do deserto nascia sol após sol, e parecia que nada jamais mudaria. Mas então, duzentos anos atrás, as caravanas pararam de chegar. Nos entrepostos ocidentais do Elmuthaleth – Alkonost e outros – eles esperavam que as silhuetas distorcidas das fileiras de camelos emergissem do vazio como sempre tinha sido, mas elas não apareciam.
E não apareciam.
E não apareciam.
Não havia mais camelos, mais homens, mais maravilhas, e não havia mais histórias. Nunca mais. Essa foi a última que se ouviu sobre a cidade proibida, a cidade invisível, a cidade perdida, e esse foi o mistério que abriu a mente de Lazlo como uma porta.
O que podia ter acontecido? A cidade ainda existia? Ele queria saber tudo. Aprendeu a persuadir o Irmão Cyrus a ir àquele lugar de devaneio, e colecionava histórias como um tesouro. Lazlo não tinha nada, nem uma única coisa, mas desde a primeira vez que ouviu as histórias, elas pareciam sua própria reserva de ouro.
Os domos da cidade, dizia o Irmão Cyrus, eram todos conectados por fitas de seda, e as crianças balançavam-se nelas como equilibristas na corda bamba, indo de palácio em palácio vestindo capas de penas coloridas. Nenhuma porta era fechada para elas, e mesmo as gaiolas ficavam abertas para os pássaros irem e virem ao seu bel-prazer. Frutas maravilhosas cresciam em toda parte, maduras para serem colhidas, e bolos eram deixados nas janelas, para quem quisesse pegar.
Lazlo nunca tinha nem visto um bolo, quanto menos experimentado, e havia apanhado por comer maçãs caídas com o vento que eram mais bicho do que fruta. Essas visões de liberdade e abundância o enfeitiçavam. Certamente, elas distraíam da contemplação espiritual, mas da mesma forma que a visão de uma estrela cadente distrai a dor de uma barriga vazia. Elas marcaram sua primeira consideração de que poderia haver outras formas de viver além daquela que ele conhecia. Formas melhores, mais doces.
As ruas da cidade, dizia o Irmão Cyrus, eram pavimentadas com lápis-lazúli e mantidas minuciosamente limpas, para que nada sujasse os longuíssimos cabelos que as mulheres usavam soltos e as seguiam como capas da seda mais negra. Elegantes cervos brancos andavam pelas ruas como cidadãos, e répteis grandes como os homens flutuavam no rio. Os cervos eram espectrais, e a substância de seus chifres – spectralys, ou lys – era mais preciosa do que ouro. Os répteis eram svytagors, cujo sangue rosa era um elixir de imortalidade. Havia também ravides – felinos grandes com presas como foices –, pássaros que imitavam vozes humanas e escorpiões cuja picada concedia força sobre-humana.
E havia os guerreiros Tizerkane.
Eles carregavam espadas chamadas hreshtek, afiadas o bastante para separar um homem de sua sombra, e mantinham escorpiões em gaiolas de metal enganchadas em seus cintos. Antes da batalha, eles colocavam um dedo através de uma pequena abertura para serem picados, e, sob a influência do veneno, eram irrefreáveis.
– Vocês acham que podem me derrotar? – Lazlo desafiava seus inimigos no pomar.
– Há centenas de nós – eles respondiam – e apenas um de você. O que você acha?
– Acho que vocês deveriam acreditar em todas as histórias que já ouviram sobre os Tizerkane, dar meia-volta e ir embora!
A risada deles soava como um estalar de galhos, e Lazlo não tinha escolha a não ser lutar. Ele enfiava o dedo na pequena gaiola de gravetos pendurada em seu cinto de corda. Não havia nenhum escorpião lá dentro, apenas um besouro amortecido pelo frio, mas ele cerrava os dentes diante da picada imaginária e sentia o poder do veneno em seu sangue. E então levantava suas espadas, braços erguidos em um V, e rugia.
Ele rugia o nome da cidade. Como um trovão, uma avalanche, como o grito de guerra de um serafim que chegou em asas de fogo e limpou o mundo dos demônios. Seus inimigos tropeçavam. Ficavam boquiabertos. O veneno cantava nele, e ele era algo mais do que humano. Era um redemoinho. Era um deus. Os inimigos tentavam lutar, mas não eram páreos para Lazlo. Suas espadas emitiam raios à medida que, de dois em dois, ele desarmava a todos.
No auge da brincadeira, seus devaneios eram tão vívidos que um vislumbre de realidade o teria chocado. Se ele pudesse ficar de lado e ver o menino lutando contra a samambaia endurecida pelo gelo, brandindo galhos no ar, ele mal reconheceria a si mesmo, tão profundamente habitava o guerreiro no cerne de sua mente, que havia acabado de desarmar uma centena de inimigos e os mandado estupefatos para casa. Em triunfo, ele levou a cabeça para trás e soltou um grito de...
... um grito de...
– Lamento!
Ele congelou, confuso. A palavra saíra de sua boca como uma maldição, deixando um gosto de lágrima. Havia buscado o nome da cidade, como momentos antes, mas... havia desaparecido. Ele tentou de novo, e de novo encontrou Lamento em vez do nome. Era como estender a mão para pegar uma flor e voltar com uma lesma ou um lenço úmido. Sua mente esquivou-se. Não podia parar de tentar, contudo, cada vez era pior do que a anterior. Ele tateou pelo que sabia que estivera lá, e tudo o que pescou foi a horrível palavra Lamento, escorregadia de erros, úmida como pesadelos, e tingida com seu resíduo de sal. Sua boca encrespou-se com o amargor. Uma sensação de vertigem tomou conta dele, e a certeza louca de que ela havia sido levada.
Havia sido levada de sua mente.
Ele se sentiu nauseado, roubado. Diminuído. Subiu correndo a colina, arrastando-se sobre muros baixos de pedra, e atravessou o curral de ovelhas, passando pelo jardim e pelo claustro, ainda segurando suas espadas de galho de macieira. Ele não viu ninguém, mas foi visto. Havia uma regra contra correr e, de qualquer forma, ele deveria estar nas vésperas. Ele correu para o quarto do Irmão Cyrus e o sacudiu do sono.
– O nome – ele disse, quase sem fôlego. – O nome sumiu. A cidade das histórias, diga-me o nome dela!
No fundo, ele sabia que não o havia esquecido, que isso era algo diferente, algo sombrio e estranho, mas ainda havia a chance de que, talvez, o Irmão Cyrus se lembrasse, e tudo ficaria bem.
Mas o Irmão Cyrus disse:
– O que você quer dizer, garoto tolo? É Lamento. – Lazlo só teve tempo de ver o rosto do velho cheio de confusão antes de uma mão fechar-se em seu pescoço e empurrá-lo pela porta.
– Espere! – ele implorou. – Por favor. – Sem resultado.
Ele foi arrastado o caminho todo até o escritório do abade e, dessa vez, quando bateram nele, não foi com o galho de aveleira que estava pendurado em uma fileira com os galhos dos outros garotos, mas com um de seus ramos de macieira. Ele não era nenhum Tizerkane agora. Esqueça uma centena de inimigos; ele foi desarmado por um único monge e apanhou com a própria espada. Que herói. Ele mancou por semanas, e foi proibido de ver o Irmão Cyrus, que havia ficado tão agitado por sua visita que teve de ser sedado.
Não houve mais histórias depois disso, e tampouco escapadas – pelo menos, não para o pomar, ou para qualquer lugar fora de sua própria mente. Os monges ficavam em cima dele, determinados a mantê-lo livre de pecado – e de alegria, que, se não era explicitamente um pecado, pelo menos lhe abria caminho. O menino foi mantido ocupado. Se não estava trabalhando, estava rezando. Se não estava rezando, estava trabalhando, sempre sob “supervisão adequada” para prevenir seu desaparecimento como uma criatura selvagem em meio às árvores. À noite ele dormia, exausto como um coveiro, cansado demais até para sonhar. Parecia que o fogo dentro de si havia sido abafado, o trovão e a avalanche, o grito de guerra e o redemoinho, tudo fora aniquilado.
Quanto ao nome da cidade desaparecida, também havia desaparecido. Entretanto, Lazlo sempre se lembrava da sensação dela em sua mente. A sensação era como caligrafia, se caligrafia fosse escrita com mel, e isso era o mais perto que ele – ou qualquer um – podia chegar. Não era apenas ele e o Irmão Cyrus. Onde quer que o nome fosse encontrado – impresso nas lombadas de livros que guardavam suas histórias, nos velhos cadernos amarelados dos mercadores que compravam seus produtos, e tecido nas memórias de qualquer um que o tivesse ouvido – ele havia sido simplesmente apagado, e Lamento havia ficado em seu lugar.
Esse era o novo mistério.
Isso, ele nunca duvidou, era mágica.
2
O SONHO ESCOLHE O SONHADOR
Lazlo cresceu.
Ninguém jamais o chamaria de sortudo, mas poderia ter sido pior. Entre os mosteiros que acolhiam os enjeitados, um era uma ordem flagelante, o outro criava porcos. Mas o Mosteiro Zemonan era famoso por seu scriptorium. Os meninos eram treinados a copiar desde cedo – entretanto, não a ler; ele teve de aprender sozinho essa parte – e aqueles com alguma habilidade eram recrutados como escribas. Habilidade ele tinha, e talvez tivesse ficado ali sua vida inteira, inclinado sobre uma escrivaninha, com o pescoço crescendo para frente em vez de para cima, se os irmãos não tivessem ficado doentes um dia por causa de peixe estragado. Isso foi sorte, ou talvez destino. Alguns manuscritos eram esperados na Grande Biblioteca de Zosma, e Lazlo foi encarregado de entregá-los.
Ele nunca voltou.
A Grande Biblioteca não era um mero lugar para guardar livros. Era uma cidade murada para poetas e astrônomos e toda gama de pensadores entre eles. Ela abarcava não só os vastos arquivos, mas a universidade também, além de laboratórios e estufas, salas de cirurgia e salas de música, e até um observatório celeste. Tudo isso ocupava o que havia sido o palácio real antes que o avô da atual rainha construísse um mais elegante ao longo do Eder e doasse o antigo à Guilda dos Acadêmicos. Ela passava pelo topo da Cordilheira Zosimos, que se erguia cortante da Cidade de Zosma como a nadadeira de um tubarão, e era visível a quilômetros de distância.
Lazlo ficou em um estado de reverência a partir do momento que passou pelos portões. Ficou literalmente boquiaberto quando viu o Pavilhão do Pensamento. Esse era o grandioso nome do salão de baile que agora abrigava a biblioteca de filosofia. Prateleiras erguiam-se doze metros sob um extraordinário teto pintado, e as lombadas dos livros brilhavam em couro com tons de pedras preciosas, suas folhas de ouro brilhando à luz das glaves como olhos de animais. As glaves eram esferas perfeitas polidas, penduradas às centenas e emitindo uma luz branca mais pura do que ele já tinha visto das pedras ásperas e avermelhadas que iluminavam o mosteiro. Homens de vestes cinza subiam em escadas com rodinhas, parecendo flutuar no ar, pergaminhos sacudindo atrás deles como asas à medida que se moviam de prateleira em prateleira.
Era impossível ir embora desse lugar. Ele era como um viajante em um bosque encantado. Cada passo adentro o enfeitiçava ainda mais, e quanto mais entrava, ia de sala em sala como se guiado por instinto, descia escadas secretas para um subsolo em que a poeira se deitava grossa sobre livros imperturbados por anos. Ele os perturbou. Parecia que os tinha despertado, e os livros o despertaram.
Ele estava com treze anos e não brincava de Tizerkane havia anos. Ele não brincava de nada, nem saía do caminho. No mosteiro, era mais uma figura vestida de cinza indo aonde lhe mandavam, trabalhando, rezando, cantando, rezando, trabalhando, rezando, dormindo. Poucos dos irmãos lembravam-se de sua rebeldia, que parecia ter saído dele por completo.
Na verdade, tinha apenas se aprofundado. As histórias ainda estavam lá, cada palavra que o Irmão Cyrus lhe disse. Ele as venerava como a uma pilha de ouro em um canto da sua mente.
Naquele dia, a pilha cresceu. E muito. Os livros sob a poeira, eles eram histórias. Folclore, contos de fadas, mitos e lendas. Eles abrangiam o mundo inteiro. Tinham séculos ou mais, e prateleiras inteiras deles – belas prateleiras – eram histórias de Lamento. Ele retirou um com mais reverência do que já havia sentido pelos textos sagrados no mosteiro, soprou a poeira e começou a ler.
Ele foi encontrado dias mais tarde por um bibliotecário sênior, mas só porque o homem estava lhe procurando, uma carta do abade no bolso de suas vestes. Do contrário, Lazlo poderia ter morado lá embaixo como um menino em uma caverna por sabe-se lá quanto tempo. Poderia ter se tornado feroz: o menino selvagem da Grande Biblioteca, versado em três línguas mortas e todas as histórias já escritas nelas, mas maltrapilho como um mendigo nas ruas de Grin.
Em vez disso, ele foi admitido como aprendiz.
– A biblioteca tem uma mente própria – o velho Mestre Hyrrokkin disse-lhe, levando-o de volta pelas escadas secretas. – Quando ela rouba um menino, nós permitimos que ela o guarde.
Lazlo não poderia pertencer à biblioteca mais verdadeiramente nem se ele mesmo fosse um livro. Nos dias que se seguiram – e depois nos meses e anos, enquanto se tornava um homem – ele era raramente visto sem um livro aberto em frente ao rosto. Lia enquanto andava. Lia enquanto comia. Os outros bibliotecários suspeitavam que, de alguma forma, ele lia enquanto dormia, ou talvez nem dormisse. Nas ocasiões em que desviava o olhar da página, era como se estivesse acordando de um sonho. “Estranho, o sonhador”, eles o chamavam. “Aquele sonhador, Estranho”. E não ajudava o fato de que às vezes ele trombava com as paredes enquanto lia, ou que seus livros favoritos vinham daquele subsolo empoeirado onde ninguém mais ia. Ele perambulava com a cabeça cheia de mitos, sempre meio perdido em uma história de outras terras. Demônios e fabricantes de asas, serafins e espíritos, ele amava tudo isso. Acreditava em magia, como uma criança, e em fantasmas, como um camponês. Seu nariz foi quebrado por um volume de contos de fadas que caiu no seu primeiro dia de trabalho, e isso, disseram, conta tudo o que se precisa saber sobre o excêntrico Lazlo Estranho: cabeça nas nuvens, mundo próprio, contos de fadas e devaneios.
Era isso o que queriam dizer quando o chamavam de sonhador, e não estavam errados, mas não sabiam do principal. Lazlo era sonhador de uma forma mais profunda do que sequer imaginavam. Em outras palavras, ele tinha um sonho – um sonho persistente e que o guiava, era parte de si como uma segunda alma dentro da pele. A paisagem de sua mente era toda devotada ao sonho. Era uma paisagem profunda e arrebatadora, e um sonho magnífico e audaz. Audaz demais, magnífico demais para aqueles como ele. Lazlo sabia disso, mas o sonho escolhe o sonhador, não o contrário.
– O que você está lendo, Estranho? – perguntou o Mestre Hyrrokkin, mancando atrás dele no balcão de informações. – Carta de amor, eu espero.
O velho bibliotecário expressava esse desejo com mais frequência do que era conveniente, sem desanimar com a resposta que era sempre não. Lazlo estava prestes a dar sua resposta de costume, mas fez uma pausa, considerando.
– De certa forma – respondeu, e levantou o papel, quebradiço e amarelado pelo tempo.
Um brilho iluminou os olhos castanhos apagados de Mestre Hyrrokkin, mas quando ajustou seus óculos e olhou para a página, o brilho desapareceu.
– Isso parece ser um recibo – ele observou.
– Ah, mas um recibo de quê?
Cético, Mestre Hyrrokkin espremeu os olhos para ler, então caiu em uma gargalhada que fez todas as cabeças se virarem na imensa sala silenciosa. Eles estavam no Pavilhão do Pensamento. Acadêmicos de vestes escarlate curvavam-se sobre mesas longas, e todos desviaram o olhar de seus pergaminhos e tomos, olhos severos de desaprovação. Mestre Hyrrokkin fez uma mesura, desculpando-se, e entregou o papel de volta a Lazlo, que era uma velha lista de um grande carregamento de afrodisíacos para um rei há muito tempo morto.
– Parece que ele não era chamado de Rei Amoroso pela sua poesia, não é? Mas o que você está fazendo. Diga-me que isso não é o que parece. Pelo amor de Deus, garoto. Diga-me que você não está arquivando recibos no seu dia de folga.
Lazlo já não era mais um garoto, sem traços remanescentes – externamente – do pequeno enjeitado careca com cortes na cabeça. Agora, ele era alto, tinha deixado seus cabelos crescerem uma vez que se viu livre dos monges e de suas lâminas cegas. Os cabelos eram escuros e pesados e ele os amarrava para trás com barbante de amarrar livros e não pensava muito neles. As sobrancelhas eram escuras e pesadas também, seus traços fortes e largos. “Bruto”, alguns poderiam dizer, ou mesmo “ar de malfeitor” por causa de seu nariz quebrado, que fazia um ângulo pronunciado em seu perfil e, de frente, desviava-se distintamente para a esquerda. Tinha uma aparência rústica, severa – e também soava assim: sua voz era grave e masculina e nem um pouco suave, como se tivesse ficado na friagem. Em tudo isso, seus olhos sonhadores eram incongruentes: acinzentados, largos e inocentes. Nesse momento, não olhavam exatamente para o Mestre Hyrrokkin.
– É claro que não – respondeu, sem convicção –, que tipo de louco arquivaria recibos no seu dia de folga?
– Então o que você está fazendo?
Ele deu de ombros.
– Um criado encontrou uma velha caixa de listas num porão. Estou apenas dando uma olhada.
– Bem, isso é um desperdício chocante de juventude. Quantos anos você tem agora? Dezoito?
– Vinte – Lazlo o lembrou, embora, na verdade, ele não pudesse ter certeza, tendo escolhido um aniversário aleatoriamente quando era menino. – E você desperdiçou sua juventude do mesmo jeito.
– Eu sou a moral da história! Olhe para mim. – Lazlo olhou. Ele viu um homem corcunda, cujos cabelos, barba e sobrancelhas brancos como o dente-de-leão invadiam seu rosto de forma que apenas o narizinho e óculos redondos apareciam. Ele parecia, Lazlo pensou, um filhote de coruja caído do ninho. – Você quer terminar seus dias como um troglodita meio cego mancando pelas entranhas da biblioteca? – o velho perguntou. – Vá lá fora, Estranho. Respire o ar, veja coisas. Um homem deve ter rugas de olhar para o horizonte, não só de ler à luz fraca.
– O que é um horizonte? – Lazlo perguntou, com o rosto sério. – É como o fim de um corredor de livros?
– Não – respondeu o Mestre Hyrrokkin. – De jeito nenhum.
Lazlo sorriu e voltou aos recibos. Bem, aquela palavra os fazia parecer tolos, mesmo na sua cabeça. Eram velhos manifestos de carga, que soavam marginalmente mais interessantes, de uma época em que o palácio havia sido a residência real e as mercadorias chegavam de todo canto do mundo. Ele não os estava arquivando. Estava folheando-os em busca dos floreios de um alfabeto particularmente raro. Buscava, assim como sempre buscou, pistas da Cidade Perdida – como havia decidido pensar nela, uma vez que Lamento ainda trazia o gosto de lágrimas.
– Vou num instante – assegurou ao Mestre Hyrrokkin. Podia não parecer, mas ele tinha muita consideração pelas palavras do velho homem. O que não tinha, na verdade, era o desejo de terminar seus dias na biblioteca – meio cego ou outra coisa – e tinha toda esperança de ganhar suas rugas olhando para o horizonte.
O horizonte que ele queria ver, contudo, era muito distante.
E além disso, diga-se de passagem, proibido.
Mestre Hyrrokkin apontou para uma janela:
– Você pelo menos sabe, eu espero, que é verão lá fora? – Quando Lazlo não respondeu, acrescentou: – Grande círculo laranja no céu, decotes mais profundos no sexo oposto. Isso te diz alguma coisa? – Nada ainda. – Estranho?
– O quê? – Lazlo olhou para cima. Ele não tinha ouvido uma palavra sequer. Havia encontrado o que procurava: um maço de recibos da Cidade Perdida, e isso roubara sua atenção.
O velho bibliotecário deu um suspiro teatral.
– Faça como quiser – ele disse, meio em reprovação, meio em resignação. – Apenas se cuide. Os livros podem ser imortais, mas nós não somos. Você desce para as estantes uma manhã e, quando sobe, tem uma barba até a barriga e nunca criou um poema para a garota que conheceu patinando no Eder.
– É assim que se conhece garotas? – perguntou Lazlo, com tom de brincadeira. – Bem, o rio não vai congelar por meses. Tenho tempo para criar coragem.
– Bah! As garotas não são um fenômeno hibernal. Vá agora. Pegue algumas flores e encontre uma garota para presentear. É simples assim. Procure olhos meigos e quadris largos, você está me escutando? Quadris, garoto. Você não viveu até deitar sua cabeça num bom e macio...
Felizmente, ele foi interrompido pela aproximação de um acadêmico.
Lazlo podia facilmente fazer sua pele mudar de cor tanto quanto podia se aproximar e conversar com uma garota, muito menos deitar sua cabeça num bom e macio qualquer coisa. Entre o mosteiro e a biblioteca, mal conhecera uma mulher, ainda mais uma mulher jovem, e mesmo que tivesse a menor ideia do que dizer a uma, ele não imaginava que muitas receberiam bem as investidas de um bibliotecário novato sem dinheiro com um nariz torto e o nome vergonhoso de Estranho.
O acadêmico se foi, e Mestre Hyrrokkin retomou seu sermão.
– A vida não vai simplesmente acontecer a você, garoto – disse ele. – Você tem de fazer acontecer a vida. Lembre-se: o espírito fica preguiçoso quando negligencia as paixões.
– Meu espírito está bem.
– Então você está tristemente errado. Você é jovem. Seu espírito não deveria estar “bem”. Deveria estar efervescente.
O “espírito” em questão não era a alma. Nada tão abstrato. Era o espírito do corpo – o fluido claro bombeado pelo segundo coração através de sua rede de vasos, sutis e mais misteriosos do que o primeiro sistema vascular. Sua função não era propriamente compreendida pela ciência. Você poderia viver mesmo que seu segundo coração parasse e o espírito endurecesse em suas veias. Mas ele tinha alguma conexão com a vitalidade, ou “paixão”, como disse o Mestre Hyrrokkin, e aqueles sem isso eram desprovidos de emoção, letárgicos. Sem espírito.
– Preocupe-se com o seu próprio espírito – Lazlo lhe disse. – Não é tarde demais para você. Tenho certeza que muitas viúvas ficariam felizes de serem cortejadas por um troglodita tão romântico.
– Não seja impertinente.
– Não seja imperioso.
Mestre Hyrrokkin suspirou.
– Tenho saudades da época em que você tinha medo de mim. Por mais curta que tenha sido.
Lazlo deu risada.
– Você tem de agradecer aos monges por isso. Eles me ensinaram a temer os mais velhos. Você me ensinou a não temer, e por isso, sempre serei grato – respondeu carinhosamente e, então, sem poder se segurar, seus olhos voltaram aos papéis em sua mão.
O velho homem viu e soltou um suspiro de exasperação.
– Tudo bem, tudo bem. Aproveite seus recibos. Mas não vou desistir de você. Qual é a razão de ser velho se você não pode importunar os jovens com seu vasto estoque de sabedoria?
– E qual a razão de ser jovem se você não pode ignorar todos os conselhos?
Mestre Hyrrokkin grunhiu e voltou a atenção para a pilha de folhas que tinha retornado à mesa. Lazlo se concentrou em sua pequena descoberta. O silêncio reinava no Pavilhão do Pensamento, quebrado apenas pelas rodinhas das escadas e pelo ruído de páginas virando.
E, após um momento, por um assovio lento e baixo de Lazlo, cuja descoberta, ao que parecia, não era tão pequena assim.
Mestre Hyrrokkin empertigou-se.
– Mais poções de amor?
– Não – respondeu Lazlo. – Veja.
O velho ajustou os óculos, como sempre, e espiou o papel.
– Ah! – exasperou-se, com o ar dos que sofrem há tempos. – Mistérios de Lamento. Eu deveria saber.
Lamento. O nome atingiu Lazlo como uma pontada desagradável atrás dos olhos. A condescendência também o afetou, mas não o surpreendeu. Geralmente, ele guardava o fascínio para si mesmo. Ninguém entendia, quanto menos compartilhava. Houve, uma vez, grande curiosidade em torno da cidade desaparecida e de seu destino, mas depois de dois séculos, ela havia se tornado pouco mais de uma fábula. E quanto ao sinistro negócio do nome, no mundo em geral isso não havia causado grande comoção. Apenas Lazlo havia sentido isso acontecer. Outros ficaram sabendo disso mais tarde, por meio de um lento gotejar de rumores, e para eles pareceu apenas alguma coisa que tinham esquecido. Alguns sussurravam sobre uma conspiração ou truque, mas a maioria decidiu, fechando firmemente uma porta em suas mentes, que sempre tinha sido Lamento, e qualquer alegação contrária era absurda e supérflua. Simplesmente não havia nenhuma outra explicação que fizesse sentido.
Certamente não era magia.
Lazlo sabia que o Mestre Hyrrokkin não estava interessado, mas ele estava animado demais para ligar para isso.
– Apenas leia – afirmou, e segurou o papel debaixo do nariz do velho.
Mestre Hyrrokkin leu e não se impressionou.
– Bem, o que tem?
O que tem? Entre as mercadorias listadas – especiarias, seda e coisas afins – havia um item para bala de sangue de svytagor. Até então, Lazlo só tinha visto referência a isso em fábulas. Era considerado folclore – que os monstros do rio existiam, que seu sangue rosa era colhido como um elixir de imortalidade. Mas aqui estava, comprado e pago pela casa real de Zosma. Da mesma forma, poderia existir um item para escamas de dragão.
– Bala de sangue – ele disse, apontando. – Você não vê? Era real.
Mestre Hyrrokkin bufou.
– Isso torna real? Se fosse real, quem quer que tivesse comido ainda estaria vivo para contar.
– Não exatamente – argumentou Lazlo. – Nas histórias, só se ficava imortal se continuasse comendo, e isso teria sido impossível depois que os carregamentos pararam. – Ele apontou para a data na lista. – Isso tem duzentos anos. Pode até ter vindo da última caravana.
A última caravana que emergiu do Elmuthaleth. Lazlo imaginou um deserto vazio, o sol se pondo. Como sempre, qualquer coisa que tocava os mistérios tinha um rápido efeito sobre ele, como um tambor no seu pulso – em ambos os pulsos, sangue e espírito, os ritmos de seus dois corações entrelaçados como a síncope de duas mãos batendo em tambores diferentes.
Quando ele chegou à biblioteca pela primeira vez, pensou que, com certeza, encontraria respostas ali. Havia os livros de histórias no subsolo empoeirado, é claro, mas havia muito mais do que isso. A própria história do mundo, parecia a ele, estava encadernada ou enrolada em pergaminhos e arquivada nas prateleiras desse lugar maravilhoso. Em sua ingenuidade, achou que até os segredos deveriam estar escondidos aqui, para aqueles que tinham vontade e paciência para procurar. Ele tinha ambos e, por sete anos, estava procurando. Procurou em velhos jornais e pacotes de cartas, relatórios de espiões, mapas e tratados, livros de comércio e minutas dos secretários reais, e qualquer outra coisa que pudesse desenterrar. E quanto mais aprendia, mais a pequena pilha de tesouros crescia, até que se derramou do canto de sua mente a fim de preenchê-la por completo.
Ela também tinha se derramado sobre papel.
Quando menino, no mosteiro, as histórias tinham sido a riqueza de Lazlo. Ele era mais rico agora. Agora ele tinha livros.
Seus livros eram seus livros, entenda: suas palavras, escritas com sua própria mão e costuradas com seus próprios pontos caprichados. Nada de folha dourada em couro, como os livros do Pavilhão do Pensamento. Esses eram humildes. No começo, pescou papel nas lixeiras, folhas usadas que acadêmicos esbanjadores haviam jogado fora, e os juntava com as pontas de fio da enfermaria de livros onde faziam-se reparos. A tinta era difícil de achar, mas aqui, também, os acadêmicos ajudaram sem saber. Eles jogavam fora frascos que ainda tinham um bom tanto no fundo. Era preciso diluir com água, de forma que seus primeiros volumes eram cheios de palavras pálidas, mas depois de alguns anos, começou a receber um salário insignificante que permitia ao menos comprar tinta.
Ele tinha muitos livros, todos enfileirados no beiral da janela de seu quartinho. Os volumes continham sete anos de pesquisa e cada pista e detalhe que se encontrasse sobre Lamento e os dois mistérios.
Eles não continham respostas.
Em algum lugar no meio do caminho, Lazlo aceitou que as respostas não estavam aqui, não em todos esses tomos de todas essas grandes e vastas prateleiras. E onde poderiam estar? E se ele imaginasse que a biblioteca tinha fadas oniscientes para registrar tudo o que acontecia no mundo, não importa quão secreto ou distante? Não. Se as respostas estavam em alguma parte, era no sul e no leste do continente de Namaa, do outro lado do Elmuthaleth, de onde ninguém jamais retornou.
Será que a Cidade Perdida ainda estava de pé? Seu povo ainda estava vivo? O que aconteceu duzentos anos atrás? O que aconteceu quinze anos atrás?
Que poder era capaz de apagar um nome da mente do mundo?
Lazlo queria ir e descobrir. Esse era seu sonho, ousado e magnífico: ir até lá, do outro lado do mundo, e resolver os mistérios.
Era impossível, é claro.
Mas quando é que isso impediu qualquer sonhador de sonhar?
3
AS OBRAS COMPLETAS DE LAZLO ESTRANHO
Mestre Hyrrokkin era imune ao fascínio de Lazlo.
– São histórias, garoto. Coisa de fantasia. Não há elixir da imortalidade. Se existiu algo parecido, era apenas sangue com açúcar.
– Mas veja o preço – Lazlo insistiu. – Será que eles teriam pagado isso por sangue com açúcar?
– O que sabemos de quanto os reis pagariam? Isso não é prova de nada a não ser da ingenuidade de um homem rico.
A excitação de Lazlo começou a diminuir.
– Você está certo – ele admitiu. O recibo provava que alguma coisa chamada bala de sangue havia sido comprada, mas nada além disso. Entretanto, ele não estava pronto para desistir: – Ela sugere, pelo menos, que os svytagors eram reais. – Ele fez uma pausa. – Talvez.
– E se eles fossem? – indagou o Mestre Hyrrokkin. – Nós nunca saberemos. – Ele colocou uma mão no ombro de Lazlo. – Você não é mais criança. Não chegou a hora de deixar isso de lado? – Sua boca não era visível, seu sorriso era discernível apenas por uma ondulação no bigode de dente-de-leão que crescia por sobre a barba. – Você trabalha demais e ganha pouco. Por que acrescentar mais trabalho para não ganhar nada? Ninguém vai lhe agradecer por isso. Nosso trabalho é encontrar livros. Deixe para os acadêmicos encontrarem respostas.
Sua intenção era boa. Lazlo sabia disso. O velho homem era uma criatura da biblioteca do começo ao fim. Seu sistema de castas era, para ele, a regra justa do mundo perfeito. Dentro dessas paredes, os acadêmicos eram a aristocracia, e todos os outros eram seus servos – especialmente os bibliotecários, cuja ordem era apoiá-los em seu trabalho importante. Os acadêmicos eram formados pelas universidades. Os bibliotecários não. Embora pudessem ter a mente para isso, não tinham o ouro. O trabalho era sua educação e, dependendo do bibliotecário, podia superar a de um acadêmico. Mas um mordomo pode superar seu mestre em nobreza e mesmo assim permanecer um mordomo. Era assim para os bibliotecários. Eles não eram proibidos de estudar, desde que isso não interferisse em seus deveres, mas era entendido que se dedicar aos estudos era apenas para o engrandecimento pessoal, e não contribuía para a abundância do conhecimento mundial.
– Por que deixar os acadêmicos se divertirem sozinhos? – Lazlo indagou. – Além disso, ninguém estuda Lamento.
– É porque é um tema morto – respondeu o Mestre Hyrrokkin. – Os acadêmicos ocupam suas mentes com assuntos importantes. – Ele colocou bastante ênfase em importantes.
E, então, como para ilustrar seu argumento, as portas se abriram e um acadêmico entrou.
O Pavilhão do Pensamento havia sido um salão de baile; suas portas tinham o dobro do peso e da largura de portas normais. A maioria dos acadêmicos que ia e vinha achava adequado abrir uma delas, então, silenciosamente, fechá-la atrás de si, mas não esse homem. O acadêmico pousou uma mão em cada folha da porta massiva e empurrou e, no momento em que elas atingiram as paredes e tremeram, ele as atravessou, com as botas soando no chão de mármore, suas passadas longas e confiantes livres do roçar das vestes. Ele desdenhava o traje completo, exceto em ocasiões cerimoniais, portanto, vestia-se com casacos e calças impecáveis, com botas longas de montaria e uma espada de duelo ao seu lado. Sua única menção ao vermelho dos acadêmicos era a gravata, sempre dessa cor. Ele não era um acadêmico comum, mas a apoteose dos acadêmicos: o personagem mais famoso de Zosma, exceto a rainha e a hierarquia, e o mais popular, excetuando ninguém. Ele era jovem, glorioso e dourado. Era Thyon Nero, o alquimista, segundo filho do Duque de Vaal, e afilhado da rainha.
Cabeças se levantaram com a vibração das portas, mas diferentemente da irritação espelhada nos rostos quando Mestre Hyrrokkin gargalhou, desta vez eles registraram surpresa antes de mudar para adulação ou inveja.
A reação do Mestre Hyrrokkin foi de pura adulação. Ele se acendeu como uma glave ao ver o alquimista. Um dia, Lazlo já fizera o mesmo. Hoje, não mais, embora ninguém estivesse olhando para perceber a forma como ele congelou tal qual uma presa e pareceu se encolher com a aproximação do “afilhado dourado”, cujo passo determinado o levou diretamente ao balcão de informações.
Essa visita era incomum. Thyon Nero tinha assistentes para fazer esse tipo de tarefa para ele.
– Milorde – disse o Mestre Hyrrokkin, endireitando-se o máximo que suas costas permitiam. – Que gentileza a sua nos visitar. Mas não precisava se dar ao trabalho de vir pessoalmente. Sabemos que tem coisas mais importantes a fazer do que vir até aqui. – O bibliotecário lançou um olhar para Lazlo. Aqui, no caso de Lazlo não entender o que ele queria dizer, estava o melhor exemplo possível de um acadêmico ocupando sua mente com “assuntos importantes”.
E com quais assuntos importantes Thyon Nero ocupava sua mente?
Com nada menos que o princípio que anima o universo: “azoth”, a essência secreta que os alquimistas buscam há séculos. Ele a havia destilado com dezesseis anos, permitindo que realizasse milagres, dentre os quais, a mais alta aspiração da antiga arte: a transmutação do chumbo em ouro.
– É gentil de sua parte, Hyrrokkin – respondeu o exemplo moral, que tinha não só o rosto, mas também a mente de um deus –, mas achei melhor vir eu mesmo – ele mostrou um formulário de pedido enrolado – para que não fosse questionado se isso é um erro.
– Um erro? Não há necessidade, milorde – Mestre Hyrrokkin assegurou-lhe. – Jamais poderia haver discussão sobre um pedido seu, não importa quem entregasse. Estamos aqui para servir, não para questionar.
– Fico feliz em ouvir isso – disse Nero, com o sorriso conhecido por deixar salões cheios de damas mudas e ofuscadas. E então ele olhou para Lazlo.
Foi tão inesperado, foi como uma imersão na água gelada. Lazlo não tinha se movido desde que as portas se abriram. Era isso que ele fazia quando Thyon Nero estava perto: parava de trabalhar e ficava tão invisível quanto o alquimista fingia que ele era. Lazlo estava acostumado ao silêncio cortante, e o olhar frio que o atravessava como se ele não existisse, então esse olhar veio como um choque, e as palavras, quando o acadêmico falou, como um choque ainda maior.
– E você, Estranho? Está aqui para servir ou para questionar? – Ele foi cordial, mas seus olhos azuis tinham um brilho que encheu Lazlo de pavor.
– Para servir, milorde – respondeu, sua voz tão quebradiça quanto os papéis em suas mãos.
– Bom. – Nero sustentou o olhar, e Lazlo teve de lutar contra a vontade de desviar os olhos. Ambos se olharam, o alquimista e o bibliotecário. Havia um segredo entre eles, que queimava como fogo alquímico. Até o velho Mestre Hyrrokkin sentiu, e observou inquieto os dois jovens. Nero parecia um príncipe de alguma saga contada à luz do fogo, todo esplendor e brilho. A pele de Lazlo não era mais cinza desde que ele era bebê, mas as vestes de bibliotecário eram, e seus olhos também, como se aquela cor fosse seu destino. Ele era quieto, e tinha o talento de uma sombra para passar despercebido, enquanto Thyon atraía todos os olhares como uma chama. Tudo nele era elegante como a seda recém-passada. O rapaz era barbeado por um servo com uma lâmina afiada diariamente, e a conta de seu alfaiate poderia alimentar um vilarejo.
Por outro lado, Lazlo era todo imperfeito: juta em comparação à seda de Nero. Suas vestes não eram novas nem quando chegaram há um ano. A bainha estava gasta de arrastar para cima e para baixo pelos degraus das estantes, e era larga, então a forma de seu corpo ficava perdida lá dentro. Embora tivessem a mesma altura, Nero portava-se como se posasse para um escultor, enquanto os ombros de Lazlo eram curvados em uma posição de cansaço. O que Nero queria?
Nero olhou para o velho homem. O rapaz tinha a cabeça erguida, como se consciente da perfeição de seu maxilar, e quando falava para alguém mais baixo, baixava apenas o olhar, não a cabeça. Ele entregou o formulário de requisição.
Mestre Hyrrokkin desenrolou o papel, ajustou seus óculos e leu. E... reajustou os óculos, e leu novamente. Fitou Nero. E então fitou Lazlo, e Lazlo soube. Sabia para o que era a requisição. Seu corpo ficou amortecido, sentiu como se seu sangue e seu espírito tivessem parado de circular, e a respiração em seus pulmões também.
– Entregue-os no meu palácio.
Mestre Hyrrokkin abriu a boca, confuso, mas nenhum som saiu. Mirou Lazlo novamente, e a luz das glaves brilhou em seus óculos de forma que Lazlo não pôde ver seus olhos.
– Você quer que eu escreva o endereço? – Nero perguntou. Sua afabilidade era totalmente falsa. Todos conheciam o palácio de mármore rosa-claro na frente do rio, dado pela rainha, e ele sabia que todos conheciam. O endereço não era um problema.
– Milorde, é claro que não – respondeu Mestre Hyrrokkin. – É só que, ah...
– Há algum problema? – indagou Nero, seu tom agradável traído pela dureza do olhar.
Sim, Lazlo pensou. Sim, há um problema, mas Mestre Hyrrokkin encolheu-se diante do olhar.
– Não, milorde. Tenho certeza... Tenho certeza que é uma honra. – E as palavras foram como uma faca nas costas de Lazlo.
– Excelente – afirmou Nero. – É isso, então. Espero que me entreguem esta noite. – E ele saiu como chegou, com as botas batendo no chão de mármore e olhos o seguindo.
Lazlo voltou-se para Mestre Hyrrokkin. Seus corações não haviam parado de bater, afinal. As batidas estavam rápidas e irregulares, como um par de mariposas presas.
– Diga-me que não é – o jovem quis saber.
Ainda confuso, o velho bibliotecário apenas mostrou o formulário de requisição. Lazlo o pegou. Leu. Suas mãos tremeram. Era o que havia pensado:
Na letra grande e determinada de Nero, estava escrito: As obras completas de Lazlo Estranho.
Mestre Hyrrokkin perguntou, estupefato:
– Que diabos Thyon Nero quer com seus livros?
4
O DEUS BASTARDO DA SORTE
O alquimista e o bibliotecário não poderiam ser mais diferentes – como se Shres, o deus bastardo da sorte, tivesse colocado os jovens lado a lado e dividido sua cesta de dons entre os dois: todos os dons para Thyon Nero, um a um, até o último; então ele deixou a cesta cair na terra aos pés de Lazlo.
“Faça o que puder com isso”, ele poderia ter dito, se houvesse um deus assim e ele fosse maldoso.
Para Thyon Nero: nascimento, riqueza, privilégio, aparência, charme, excelência.
E para Lazlo Estranho, pegar e tirar a poeira da única coisa que sobrou: honra.
Poderia ter sido melhor para ele se Nero também tivesse aquele dom.
Como Lazlo, Thyon Nero nasceu durante a guerra, mas a guerra, como a sorte, não toca a todos com a mesma mão. Nero cresceu no castelo do pai, longe da visão e do cheiro do sofrimento, bem como da experiência de senti-lo. No mesmo dia que um bebê cinza e sem nome foi jogado em uma carroça em direção ao Mosteiro de Zemonan, uma criança dourada foi batizada de Thyon – o mesmo nome do guerreiro-santo que expulsou os bárbaros de Zosma – em uma cerimônia luxuosa, na qual compareceu metade da corte. Ele era uma criança inteligente e bonita, e embora seu irmão mais velho herdasse os títulos e as terras, ele ficou com todo o resto – amor, atenção, riso, elogios – e reivindicava-os fortemente. Se Lazlo era um bebê silencioso, criado sem afeto por monges rancorosos, Thyon era um pequeno e charmoso tirano que demandava tudo e recebia ainda mais.
Lazlo dormia em um alojamento de meninos, ia para cama com fome, e acordava com frio.
Quando criança, a cama de Thyon tinha o formato de um navio de guerra, com velas e cordames, e até canhões em miniatura, tão pesada que era necessária a força de duas servas para balançá-la para dormir. Seu cabelo era de uma cor tão extraordinária – como o sol em afrescos, nos quais você pode olhar sem queimar os olhos – que permitiam que ele crescesse, embora esse não fosse o costume para os meninos. Ele só foi cortado em seu nono aniversário, para ser tecido em um elaborado colar para sua madrinha, a rainha. Ela o usava, e – para a frustração dos ourives – espalhou a moda de joias com cabelo humano, embora nenhuma das imitações pudesse se comparar ao original em brilho.
O apelido de Thyon, “o afilhado dourado”, esteve com ele desde seu batismo, e talvez tenha determinado seu caminho. Os nomes têm poder, e ele era, desde a infância, associado ao ouro. Fazia sentido, então, que quando entrasse para a universidade, conseguisse seu lugar na escola de alquimia.
O que era a alquimia? Era a metalurgia embrulhada em misticismo. A busca do espiritual por meio do material. O grande e nobre esforço de dominar os elementos para alcançar a pureza, perfeição e divindade.
Ah, e ouro.
Não vamos esquecer do ouro. Os reis o queriam. Os alquimistas prometiam – vinham prometendo por séculos, e se eles alcançaram a pureza e a perfeição em algo, era a pureza e a perfeição de seu fracasso em produzi-lo.
Thyon, treze anos e afiado como a presa de uma víbora, olhou em torno de si para os rituais secretos e filosofias e viu tudo isso como um obscurecimento criado para desculpar o fracasso. Veja como isso é complicado, os alquimistas diziam, enquanto eles mesmos complicavam. Tudo era mirabolante. Os iniciados tinham de fazer um juramento em uma pedra de esmeralda que teria sido extraída da fronte de um anjo caído, e quando apresentado ao artefato, Thyon riu. Ele se recusou a fazer o juramento, e recusou-se a estudar os textos esotéricos, os quais chamava de “consolo para os pretensos magos fadados a viver em um mundo sem magia”.
– Você, jovem, tem a alma de um ferreiro – o mestre de alquimia disse-lhe, friamente.
– Melhor do que a alma de um charlatão – Thyon devolveu. – Prefiro fazer o juramento a uma bigorna e trabalhar honestamente do que ludibriar o mundo com mentiras.
E foi assim que o afilhado dourado fez seu juramento diante de uma bigorna de ferreiro em vez da esmeralda do anjo. Qualquer outra pessoa teria sido expulsa, mas o jovem tinha o aval da rainha, e então o velho guarda não teve escolha a não ser ficar a seu lado e deixá-lo fazer seu juramento ao seu modo. Ele ligava apenas para o lado material das coisas: a natureza dos elementos, a essência e mutabilidade da matéria. Era ambicioso, meticuloso e intuitivo. Fogo, água e ar entregavam-lhe segredos. Minerais revelavam suas propriedades escondidas. E, aos quinze anos, para a profunda tristeza dos “pretensos magos”, ele realizou a primeira transmutação da história ocidental – não ouro, infelizmente, mas chumbo em bismuto – e fez isso, conforme disse, sem recorrer a “espíritos ou feitiços”. Foi um triunfo, pelo qual foi recompensado por sua madrinha com um laboratório próprio, que ocupava a grande e velha igreja da Grande Biblioteca, e nenhuma despesa foi poupada. A rainha o apelidou de “Chrysopoesium” – a partir de chrysopoeia, a transmutação de metal em ouro – e ela usou o colar com os cabelos do afilhado quando foi apresentar-lhe o laboratório. Ambos andaram de braços dados e usando ouro: o dele na cabeça, o dela no pescoço, e os soldados marchando atrás, vestidos com sobretudos de ouro encomendados para a ocasião.
Lazlo estava na multidão de espectadores aquele dia, admirado com o espetáculo e pelo brilhante garoto de ouro que sempre lhe parecera o personagem de uma história – um jovem herói abençoado pela sorte, ascendendo para tomar seu lugar no mundo. Era isso que todo mundo via – como uma plateia de teatro, alegremente despercebidos de que, nos bastidores, os atores encenavam um drama mais sombrio.
Como Lazlo iria descobrir.
Cerca de um ano depois disso, quando tinha dezesseis anos, ele estava andando pela passagem das tumbas uma noite quando ouviu uma voz tão dura e cortante quanto um machado. A princípio, não conseguiu entender as palavras e fez uma pausa, buscando de onde vinham.
A passagem das tumbas era uma relíquia do velho cemitério do palácio, separada do resto do terreno pela construção da torre dos astrônomos. A maioria dos acadêmicos nem sabia que ela existia, mas os bibliotecários sim, porque a usavam como atalho entre as estantes de livros e as salas de leitura na base da torre. Era isso que Lazlo estava fazendo, com os braços cheios de manuscritos, quando ouviu a voz. Havia um ritmo nela, e uma pontuação de tapas ou golpes que a acompanhava. Tap. Tap.
Havia um outro som, quase inaudível. Pensou que fosse um animal e, ao espiar detrás de um mausoléu, viu um braço levantando-se e caindo com aquele brutal e constante tap. Ele brandia um chicote de montaria, e a imagem era inequívoca, mas Lazlo ainda pensou que se tratava de um animal apanhando, porque estava abaixado e encolhido e seus gemidos não eram um som humano.
Uma fúria ardente tomou conta de si, tão rápido quanto o acender de um fósforo. Ele respirou fundo para não gritar.
E segurou-se.
Havia pouca luz, e no instante que sua voz levou para emitir uma única palavra, Lazlo percebeu a cena completa.
Costas curvadas. Um menino ajoelhado. A luz sobre os cabelos dourados. E o Duque de Vaal batendo em seu filho como um animal.
“Pare!”, Lazlo quase disse. Ele segurou a palavra como se tivesse fogo na boca.
– Burro. – Tap. – Imbecil. – Tap. – Preguiçoso. – Tap. – Patético.
E continuou, sem piedade, e Lazlo encolhia-se a cada tap, sua raiva abafada por uma grande confusão. A cada vez que conseguia raciocinar, a raiva reacendia, mais forte do que antes. Mas diante de tal visão, o sentimento que o tomava era de choque. Ele estava familiarizado com punições. Ainda tinha cicatrizes ziguezagueando pelas pernas por causa de todas as chibatadas. Algumas vezes fora trancado na cripta durante a noite apenas com os crânios de monges mortos como companhia, e nem era capaz de contar quantas vezes fora chamado de burro, inútil ou algo pior. Mas isso era ele, que não pertencia a ninguém e não tinha nada. Jamais imaginaria que Thyon Nero poderia ser vítima de tal tratamento, e de tais palavras. Lazlo havia topado com uma cena privada que contradizia tudo o que sabia sobre o afilhado dourado e sua vida encantada, e algo dentro de si se partiu ao ver o outro garoto rebaixado.
Eles não eram amigos. Isso teria sido impossível. Nero era um aristocrata e Lazlo não era de jeito nenhum. Mas Lazlo havia atendido a vários pedidos de Thyon, e uma vez, há muito tempo, quando descobriu um raro tratado metalúrgico que achou que seria de interesse, Nero até disse “obrigado”.
Pode não parecer nada – ou pior, pode ser uma surpresa que ele só tenha dito isso uma vez em todos aqueles anos. Mas Lazlo sabia que garotos como aquele eram treinados a apenas dar ordens, e quando Thyon ergueu os olhos do tratado e falou aquela simples palavra, com seriedade e sinceridade – “obrigado” –, o bibliotecário brilhou de orgulho.
Agora o seu “pare!” ficou queimando na língua; ele queria gritar, mas não gritou. Ficou paralisado, espremido contra o lado frio do mausoléu coberto de musgo, com medo de se mover. O chicote de montaria ficou parado no ar. Thyon balançava a cabeça entre os braços, com o rosto escondido. Ele não emitiu mais nenhum som, mas Lazlo podia ver seus ombros tremendo.
– Levante-se – rosnou o duque.
Thyon endireitou-se, e Lazlo o viu claramente. O rosto estava vermelho, com o cabelo dourado colado à testa em mechas molhadas de lágrimas. Ele parecia bem mais novo do que dezesseis anos.
– Você sabe quanto ela gastou no seu laboratório? – perguntou o duque. – Vidreiros que vieram de Amaya. Uma caldeira construída de acordo com seu projeto. Uma chaminé que é o ponto mais alto da cidade inteira. E o que você fez com isso tudo? Anotações? Medidas?
– A alquimia é feita de anotações e medidas – protestou Thyon. Sua voz estava embargada com as lágrimas, mas ainda mostrava rebeldia. – É preciso conhecer as propriedades dos metais antes de alterá-las.
O duque balançou a cabeça com profundo desdém.
– O Mestre Luzinay estava certo. Você tem a alma de um ferreiro. A alquimia é ouro, você me entende? O ouro é sua vida agora. A menos que você fracasse em produzi-lo, nesse caso, terá sorte de sequer ter vida. Você me entende?
Thyon recuou, espantado com a ameaça.
– Papai, por favor. Só faz um ano...
– Só um ano? – A risada do duque era uma coisa mortal. – Você sabe o que pode acontecer em um ano? Casas caem. Reinos caem. Enquanto você senta no seu laboratório aprendendo as propriedades dos metais.
Isso fez Thyon hesitar, e Lazlo também. Reinos caem?
– Mas... você não pode esperar que eu faça em um ano o que ninguém fez antes.
– Ninguém jamais transmutou metal, entretanto, você fez aos quinze anos.
– Apenas para o bismuto – respondeu o garoto, amargamente.
– Estou bastante consciente da inadequação de seu feito – cuspiu o duque. – Tudo o que ouvi a seu respeito desde que começou a universidade é como você é mais inteligente do que o resto. Então seja mais inteligente, maldito. Eu disse a ela que você conseguiria. Eu garanti a ela.
– Estou tentando, pai.
– Tente com mais afinco! – o duque urrou. Seus olhos estavam arregalados, com o branco do olho aparecendo completamente ao redor da íris. Havia desespero neles, e Lazlo, nas sombras, teve um calafrio. Quando a rainha nomeou o Chrysopoesium, ele achou que era um bom nome para um laboratório de alquimia, pois o havia entendido com espírito de esperança: de que a maior ambição da arte pudesse um dia ser alcançada ali. Mas parecia que não havia “um dia” nessa história. Ela queria ouro e queria agora.
Thyon engoliu em seco e fitou o pai. Uma onda de medo parecia ter se instalado ali. Lentamente, e praticamente sussurrando, o garoto indagou:
– E se não puder ser feito?
Lazlo esperava que o duque gritasse de novo, mas ele apenas rangeu os dentes.
– Deixe-me explicar para você. O tesouro está vazio. Os soldados não podem ser pagos. Eles estão desertando e nossos inimigos já perceberam. Se isso continuar, eles vão invadir. Você está entendendo?
E havia mais. Intrigas desastrosas e dívidas, mas o resumo era muito simples: faça ouro, ou Zosma irá cair.
Lazlo observou Thyon ficar pálido à medida que todo o peso do reino caiu sobre ele, e Lazlo sentiu como se estivesse todo em seus próprios ombros.
E estava.
Não porque ele foi colocado lá por um pai cruel e uma rainha gananciosa, mas porque ele o tomou para si. Lá mesmo na passagem das tumbas, como se fosse um fardo real, físico, colocou-se na posição de ajudar Thyon a carregar o peso – mesmo que Thyon não soubesse.
Por que ele fez isso, se poderia ter virado as costas e continuado sua noite e seguido sua vida, aliviado por não ter de carregar tal fardo? A maioria teria feito isso. Além do mais, a maioria teria corrido para espalhar o rumor antes que a noite tivesse terminado de cair. Mas Lazlo não era a maioria das pessoas. Ele ficou ali nas sombras, pensando furiosamente. Pensava na guerra, e nas pessoas que a última havia roubado dele antes que as pudesse conhecer, e todas as crianças que ficariam órfãs, e todos os nomes que morreriam como músicas.
Durante todo o tempo, ele tinha plena consciência de sua própria inutilidade. Como ele poderia ajudar o afilhado dourado? Ele não era um alquimista, nem um herói; era um bibliotecário, e um sonhador. Ele era um leitor, e o desvalorizado especialista sobre uma cidade há muito perdida para a qual ninguém se importava. O que ele poderia...?
Então teve uma ideia.
Ele não era um alquimista. Era um especialista em uma cidade há muito tempo perdida para a qual ninguém ligava. E acontece que aquela cidade, de acordo com suas lendas, praticava a alquimia desde que Zosma era um vazio povoado de bárbaros. Na verdade, as imagens arquetí-picas da arte e de seus praticantes vieram das velhas histórias trazidas do outro lado do Elmuthaleth: histórias de homens e mulheres poderosos que haviam acessado os segredos da natureza e do cosmos.
Lazlo pensou nisso, e continuou pensando enquanto Thyon e o duque deixaram a passagem das tumbas em um silêncio tenso. Devolveu os manuscritos à biblioteca e continuou pensando sobre isso quando o prédio fechou à noite e ele perdeu o jantar para voltar para seu quarto e para seus livros.
Enquanto os acadêmicos residentes viviam nos grandes quartos de hóspedes dos andares superiores do palácio, os bibliotecários eram abrigados na ala de serviçais, um andar acima da equipe de limpeza, nos quartos antes ocupados pelas aias das senhoras e os valetes. Lazlo entrou em uma longa passagem de teto baixo com muitas portas idênticas, cada uma com uma glave pendurada em um gancho, então tirou a sua e levou para o quarto.
As glaves eram pedras cortadas, natural e perpetuamente luminosas, e não emitiam calor, apenas brilho, cuja cor e intensidade variavam tanto quanto a qualidade das pedras preciosas. Essa era fraca: um pedaço irregular de pedra avermelhada que emitia um brilho turvo. Apesar de o quarto ser pequeno, ela deixava os cantos no escuro. Havia uma cama estreita de um lado e uma escrivaninha e um banquinho do outro. Os dois ganchos presos às paredes continham todas as peças de roupa que Lazlo possuía, e não havia prateleira além do peitoril da janela, que era onde os livros estavam enfileirados. Ele pendurou a glave e começou a folheá-los. Logo estava sentado no chão, encostado na parede, marcando páginas e fazendo anotações. Passos ecoaram no corredor à medida que os outros bibliotecários se recolhiam à noite, mas Lazlo não tinha consciência deles, nem do silêncio que se fez, nem da Lua que nasceu e se pôs. Em algum momento da noite, ele deixou o quarto e foi até o subsolo empoeirado – que não era mais empoeirado havia anos.
Era seu santuário – um domínio de histórias, não só sobre a Cidade Perdida, mas sobre o mundo. Lamento podia ser seu sonho, mas ele amava todas as histórias, e conhecia cada uma das que estavam ali, mesmo as que tivesse de traduzir de uma dúzia de línguas com a ajuda de dicionários e gramáticas. Ali, capturada entre as capas, estava a história da imaginação humana, e nada nunca fora tão belo ou amedrontador, ou bizarro. Ali estavam feitiços e maldições, mitos e lendas, e Estranho, o sonhador, alimentou-se deles por tanto tempo que, se alguém pudesse entrar em sua mente, descobriria uma fantasia. Ele não pensava como as outras pessoas. Ele não desconsiderava a magia sem titubear e não acreditava que contos de fadas eram apenas para crianças. Ele sabia que a magia era real, porque a tinha sentido quando o nome da Cidade Perdida fora roubado de sua mente. E quanto aos contos de fadas, entendeu que eram reflexos das pessoas que os tinham tecido, e estavam repletos de pequenas verdades – intrusões da realidade na fantasia, como... migalhas de pão na barba de um mago.
Ele esperava que essa fosse uma dessas migalhas.
No coração da alquimia estava a crença no azoth, a essência secreta inerente a toda a matéria. Os alquimistas acreditavam que ele poderia ser destilado, permitindo assim dominar as estruturas subjacentes a todo o mundo físico. Para transmutar chumbo em ouro, derivar um solvente universal, e até mesmo um elixir da imortalidade.
Por muito tempo aceitou-se que isso seria feito por meio de algum elaborado processo envolvendo a trindade elementar: sal, mercúrio e enxofre. Um número absurdo de livros e tratados foram escritos sobre o assunto, considerando a completa ausência de evidência empírica. Eles eram repletos de diagramas de dragões engolindo sóis e homens sugando os seios de deusas, e Lazlo os considerava tão desvairados quanto qualquer conto de fadas, embora fossem guardados com mais respeito, na sala de alquimia da biblioteca, que, coincidentemente, antes abrigava o tesouro do palácio.
Enquanto isso, banidos para o andar de baixo, onde nenhum alquimista jamais procuraria, em um livro de histórias da Cidade Perdida, excentricamente intitulado Milagres para o café da manhã, havia menção a outra teoria: de que o próprio alquimista era o ingrediente secreto – que apenas a junção da alma humana com a alma elementar poderia dar nascimento ao azoth.
E lá estava ela, a migalha na barba do mago.
Talvez.
5
MILAGRES PARA O CAFÉ DA MANHÃ
Ele deveria ter esperado, pelo menos por alguns dias. Na verdade, sequer deveria ter ido. Ele entendeu isso mais tarde. Lazlo entendeu muitas coisas mais tarde.
Tarde demais.
O sol estava nascendo quando voltou das estantes agarrando o livro, e embora pudesse estar cansado por ter ficado acordado a noite inteira, a energia vibrava em si. Entusiasmo. Nervosismo. O jovem sentia fazer parte de alguma coisa, e esqueceu que apenas ele sabia disso. Não voltou ao seu quarto, mas foi até o palácio principal e atravessou o terreno até a velha igreja, que agora era o Chrysopoesium.
Toda a cidade esparramava-se lá embaixo. Um brilho iluminava o Eder onde ele se encontrava com o horizonte. À medida que o sol se ergueu, seu brilho subiu pelo rio rapidamente, como um pavio aceso, parecendo carregar a luz do dia consigo. Os sinos da catedral soaram, e todos os sinos da outra igreja se seguiram – leves e doces, como crianças respondendo ao chamado dos pais.
Lazlo achou que Thyon talvez não tivesse dormido também, não com o terrível fardo que carregava. Ele se aproximou das portas, que eram enormes portas de igreja, de bronze moldado, e não eram exatamente construídas para se bater nelas. De qualquer forma, bateu, mas mal pôde ouvir o ruído dos nós dos dedos. Ele poderia ter desistido, se afastado, e se permitido pensar melhor no que estava prestes a fazer. Se a emoção inicial da descoberta tivesse o tempo de se dissipar, certamente ele teria percebido sua loucura, e até quão ingênuo estava sendo. Mas, em vez disso, ele checou o lado da igreja, encontrou uma porta com um sino e o tocou.
E então as coisas aconteceram como aconteceram.
Thyon abriu a porta, impassível. Sem vida.
– Bem? – ele perguntou.
– Sinto muito por te perturbar – Lazlo disse, ou qualquer coisa nesse sentido. Essa parte tornou-se confusa depois. Seu pulso latejava nos ouvidos. Não era de seu feitio tomar a iniciativa. Se sua criação no mosteiro havia lhe ensinado alguma coisa, era em instilar nele uma sensação profunda de inconveniência. Mas ele estava deixando-se levar pela indignação em nome de Thyon, e a onda de solidariedade de um garoto que apanhou por outro e, acima de tudo, pela emoção da descoberta. Talvez ele tivesse deixado escapar “encontrei algo para você”, e mostrado o livro.
Quaisquer que tenham sido suas palavras, Thyon deu um passo para trás para que ele entrasse. O espaço era alto e silencioso, como qualquer igreja, mas o ar fedia a enxofre, como um buraco do inferno. Raios pálidos da luz da aurora derramavam-se através dos vitrais, lançando cor nas prateleiras de vidro brilhante e cobre. A ala central era ocupada por uma longa mesa de trabalho cheia de equipamentos. Toda a abside havia sido tomada por uma caldeira monumental, e uma chaminé de tijolos cortava o centro do domo pintado com afrescos, tapando as cabeças dos anjos.
– Bem, o que é? – Thyon perguntou. Ele estava movendo-se rigidamente, e Lazlo não duvidou que suas costas estivessem cobertas de vergões e machucados. – Suponho que você encontrou outro tratado para mim – disse ele. – Eles são inúteis, você sabe.
– Não é exatamente um tratado. – Lazlo colocou o livro na superfície irregular da mesa de trabalho, notando apenas então o desenho gravado na capa, que mostrava uma colher cheia de estrelas e criaturas míticas. Milagres para o café da manhã parecia um livro infantil, e ele teve a primeira pontada de receio. Apressou-se em abri-lo, para esconder a capa e o título. – Mas tem a ver com ouro – disse, e lançou-se a explicar. Para seu desalento, isso soou tão fora de lugar nesse laboratório lúgubre quanto o livro parecia fora de lugar, e ele se viu apressando-se para manter-se à frente de sua crescente mortificação, o que só o fez parecer mais louco e tolo quanto mais rápido falava.
– Você conhece a cidade perdida de Lamento – afirmou, forçando-se a usar o nome impostor e imediatamente sentiu o gosto de lágrimas –, e seus alquimistas que diziam ter produzido ouro nos tempos antigos.
– Lendas – disse Thyon, desconsiderando.
– Talvez – respondeu Lazlo –, mas não é possível que as histórias sejam verdadeiras? Que eles fizeram ouro?
Ele notou o olhar de incredulidade no rosto de Thyon, mas interpretou-o mal. Pensando que o alquimista achava sua premissa inacreditável, ele continuou, apressado.
– Veja aqui – esclareceu, e apontou para a passagem no livro sobre o próprio alquimista ser o ingrediente secreto do azoth. – Fala da conjunção da alma humana e da alma elementar, que parece, sei lá, inútil, porque como você une a sua alma ao metal? Mas acho que é uma tradução equivocada. Eu já a vi antes. Na Cidade... quer dizer, na língua de Lamento, a palavra usada para “alma” e “espírito” é a mesma. É amarin para ambos. Então acho que isso é um erro. – Ele bateu com o dedo sobre a palavra alma e fez uma pausa. Ali estava, a sua grande ideia. – Acho que significa que a chave para o azoth é o espírito. Espírito do corpo. – Ele estendeu os pulsos, com o lado pálido para cima, expondo as veias para que Thyon entendesse o que ele queria dizer.
E, com isso, ele descobriu que tinha ficado sem palavras. Uma conclusão era necessária, algo para iluminar sua ideia e fazê-la brilhar, mas, como não tinha nenhuma, a ideia ficou simplesmente pairando no ar e soando, francamente, ridícula.
Thyon lançou-lhe um demorado olhar.
– Qual é o sentido disso? – por fim, perguntou, e sua voz parecia fria de perigosa. – O que é isso? Um desafio? Você perdeu alguma aposta? Isso é uma brincadeira?
– O quê? – Assustado, Lazlo meneou a cabeça. Seu rosto esquentou e suas mãos esfriaram. – Não – disse ele, vendo a incredulidade de Thyon. Não era à premissa de Lazlo que ele estava reagindo. Era à sua presença. Em um instante, a percepção de Lazlo mudou e ele entendeu o que tinha acabado de fazer. Ele, Estranho, o sonhador, bibliotecário júnior, tinha entrado no Chrysopoesium, segurando um livro de contos de fadas, e atreveu-se a compartilhar suas ideias sobre o mistério mais profundo da alquimia. Como se ele pudesse resolver o problema que iludiu séculos de alquimistas – inclusive o próprio Nero.
Sua própria audácia, agora que ele a via, deixou-o sem fôlego. Como ele podia ter pensado que isso era uma boa ideia?
– Diga-me a verdade – ordenou Thyon. – Quem foi? Mestre Luzinay? Ele o enviou aqui para zombar de mim, não foi?
Lazlo balançou a cabeça para negar a acusação, mas percebeu que Thyon não estava nem o vendo. Ele estava perdido demais em sua própria fúria e sofrimento. Se estava vendo alguma coisa, eram os rostos de zombaria dos outros alquimistas, ou os cálculos frios da própria rainha, pedindo milagres como se fossem café da manhã. Ou talvez, provavelmente, ele estivesse vendo o desprezo no rosto de seu pai na noite anterior, e sentindo-o na sua carne viva e na dor de cada movimento. Havia nele grande fervura de emoções, como químicos jogados em um alambique: medo como uma névoa de enxofre, amargura tão pronunciada quanto o sal, e o instável mercúrio para o fracasso e o desespero.
– Eu nunca zombaria de você – Lazlo insistiu.
Thyon agarrou o livro, virando-o com atenção para observar o título e a capa. – Milagres para o café da manhã – ele entoou, folheando-o. Havia ilustrações de sereias, bruxas. – Isso não é zombaria?
– Juro que não é. Eu posso estar errado, milorde. Eu... eu provavelmente estou. – Lazlo viu o que aquilo parecia, e queria dizer-lhe que sabia o que era verdade, como o folclore estava repleto de verdades, mas até isso soava absurdo agora; migalhas na barba de um mago e toda aquela bobagem. – Sinto muito. Fui presunçoso ao vir aqui e peço-lhe perdão, mas juro que não quis desrespeitá-lo. Eu só queria ajudar.
Thyon fechou o livro.
– Para me ajudar. Você, ajudar a mim – ele riu. Era um som frio e duro, como gelo se partindo. E durou tempo demais, e com cada nova gargalhada, Lazlo sentiu que diminuía. – Ilumine-me, Estranho – disse Thyon. – Em que versão do mundo você poderia me ajudar?
Em que versão do mundo? Havia mais de uma? Havia uma versão em que Lazlo crescia com um nome e em uma família, e Thyon era colocado na carroça em direção ao mosteiro? Lazlo não conseguia ver isso. Apesar de toda sua imaginação, ele não conseguia formar a imagem de um monge raspando a cabeça dourada dele.
– É claro que você está certo – ele gaguejou. – Só pensei... Você não deveria carregar esse peso sozinho.
Foi... a coisa errada a se dizer.
– Carregar que peso sozinho? – perguntou Thyon, com interrogação firme nos olhos.
Lazlo viu seu erro. Ele ficou paralisado, como na passagem das tumbas, escondido inutilmente nas sombras. No entanto, não havia onde se esconder aqui, e como não havia malícia nele, tudo o que sentia aparecia em seu rosto. Choque. Indignação.
Compaixão.
E, enfim, Thyon entendeu o que havia levado esse bibliotecário júnior à sua porta nas primeiras horas da manhã. Se Lazlo tivesse esperado – semanas ou mesmo dias –, Thyon talvez não tivesse feito a ligação tão instantaneamente. Mas suas costas estavam ardendo de dor, e o olhar de Lazlo havia se desviado para elas como se ele soubesse. Pobre Thyon, que apanhou do pai. Em um instante ele soube que Lazlo o havia visto em seu momento mais frágil, e à fervura de emoções acrescentou-se mais uma.
Era vergonha. E ela acendeu todas as outras.
– Sinto muito – disse Lazlo, sem saber pelo que sentia muito, se pelo fato de Thyon ter apanhado, ou por ter assistido àquilo.
– Não ouse ter pena de mim, seu nada – Thyon vociferou com tanto veneno em sua voz que Lazlo se encolheu como se tivesse levado uma picada.
O que se seguiu foi uma terrível e nauseante névoa de ódio e indignação. Um rosto vermelho e contorcido. Dentes à mostra e punhos cerrados e vidro estilhaçado. Tudo isso se distorceu em pesadelos nos dias que se seguiram, e adornado pelo horror e arrependimento de Lazlo, que saiu tropeçando pela porta, talvez uma mão tenha lhe dado um empurrão, talvez não. Talvez ele tenha apenas tropeçado e se esparramado pelo pequeno lance da escada, mordendo a língua de forma que sua boca ficasse cheia de sangue. E ele estava engolindo sangue, tentando parecer normal em seu caminho de volta ao palácio principal.
Ele chegou às escadas antes de perceber que tinha deixado o livro para trás. Nada de milagres para o café da manhã. Nada de café da manhã, não hoje com a língua mordida inchando na boca. E ele não tinha jantado na noite anterior, nem dormido, mas não estava nem um pouco faminto ou cansado, e tinha algum tempo para se recompor antes de começar seu turno, então o fez. Lavou o rosto na água fria, e enxaguou a boca, cuspindo vermelho na pia. Sua língua estava horrível, a palpitação e a dor pareciam encher sua cabeça. Ele não falou uma palavra o dia todo e ninguém nem percebeu. Ele temia que Thyon mandasse demiti-lo, e ficou esperando por isso, mas não aconteceu. Nada aconteceu. Ninguém descobriu o que ele havia feito naquela manhã. Ninguém sequer sentiu falta do livro, exceto ele, que sentiu muita falta.
Três semanas mais tarde ele soube da notícia. A rainha viria à Grande Biblioteca. Foi a primeira vez que ela a visitou desde a entrega do Chrysopoesium, que, ao que parece, tinha sido um investimento sábio.
Thyon Nero havia feito ouro.
6
PAPEL, TINTA E ANOS
Coincidência?
Por centenas de anos, alquimistas vinham tentando destilar o azoth. Três semanas depois da visita de Lazlo ao Chrysopoesium, Thyon Nero o fez. Lazlo tinha suas suspeitas, mas eram apenas suspeitas – até que, um dia, abriu a porta de seu quarto e encontrou Thyon lá dentro.
A pulsação de Lazlo falhou. Seus livros estavam derrubados no chão, as páginas vincadas debaixo deles como as asas quebradas de pássaros. Thyon segurava um em suas mãos. Era o melhor livro de Lazlo, sua encadernação quase digna do Pavilhão do Pensamento. Ele até havia iluminado a lombada com lâminas de restos de folha dourada que levou três anos para juntar. A Cidade Perdida, dizia, na caligrafia que aprendera no mosteiro.
O livro atingiu o chão com um baque, que Lazlo sentiu em seus dois corações. Ele queria inclinar-se para pegá-lo, mas permaneceu parado na porta do quarto e olhou para o invasor, sua compostura e elegância tão deslocadas no quartinho sujo quanto um raio de sol em um porão.
– Alguém sabe que você foi ao Chrysopoesium? – Thyon perguntou.
Lentamente, Lazlo balançou a cabeça.
– E o livro. Alguém mais sabe dele?
E lá estava. Não havia coincidência. Lazlo estava certo. O espírito era a chave para o azoth. Era quase engraçado – não só que a verdade tenha sido encontrada em um conto de fadas, mas que o grande ingrediente secreto fosse uma coisa tão comum quanto um fluido corporal. Todo alquimista que viveu e morreu em busca dele tinha a resposta o tempo todo correndo em suas próprias veias.
Se a verdade fosse conhecida, qualquer um com uma panela e fogo tentaria fabricar ouro, retirando espírito de suas veias, ou roubando-o de outras pessoas. Então, ele não seria tão precioso, e tampouco o afilhado dourado seria tão especial. Com isso, ele entendeu o que estava em jogo. Thyon queria manter o segredo do azoth a todo custo.
E Lazlo era um custo.
Ele considerou mentir, mas não conseguiu pensar em nenhuma mentira que pudesse protegê-lo. Hesitante, balançou a cabeça novamente, e achou que nunca tinha estado tão consciente de algo quanto estava da mão de Thyon na empunhadura de sua espada.
O tempo desacelerou. Ele observou os dedos de Thyon perderem a cor, viu o palmo de aço visível estender-se à medida que a espada era puxada da bainha. Ela tinha uma curva, como uma costela. E tinha o brilho de um espelho à luz da glave, refletindo o dourado e o cinza. Os olhos de Lazlo prenderam-se nos de Thyon. Ele viu a frieza, como se Thyon pesasse as consequências de matá-lo e o risco de deixá-lo viver.
E sabia como terminava esse cálculo. Com ele vivo, haveria sempre alguém que sabia o segredo, enquanto matá-lo não teria nenhuma consequência. Thyon poderia deixar sua ancestral espada gravada atravessada no corpo de Lazlo, e ela lhe seria devolvida limpa. A coisa toda seria simplesmente arrumada. Alguém como Nero podia fazer o que quisesse com alguém como Lazlo.
Mas... ele não fez.
E guardou a espada na bainha.
– Você nunca falará disso – alertou ele. – Nunca escreverá sobre isso. Ninguém jamais saberá. Você me entende?
– Sim – respondeu Lazlo, rouco.
– Jure – Thyon ordenou, mas então pousou os olhos sobre os livros no chão e abruptamente mudou de ideia. – Pensando bem, não jure. – Seus lábios curvaram-se com um escárnio sutil: – Prometa-me três vezes.
Lazlo ficou assustado. Uma promessa tripla? Era o que as crianças faziam nos contos de fadas, e quebrá-la era uma maldição, e era mais poderosa para Lazlo do que qualquer voto em nome de algum deus ou monarca seria.
– Eu prometo – afirmou, tremendo com a frieza da proximidade da própria morte. – Eu prometo – disse novamente, e seu rosto estava quente e queimando. – Eu prometo.
As palavras, repetidas, tinham o ritmo de um encantamento, e foram as últimas que se passaram entre os dois jovens por mais de quatro anos. Até o dia que o afilhado dourado foi pessoalmente ao balcão de informações para requisitar os livros de Lazlo.
As obras completas de Lazlo Estranho.
Segurando o formulário de requisição, as mãos de Lazlo tremeram. Os livros eram dele, e eram tudo o que possuía. Ele os havia feito, e os amava da forma que alguém ama as coisas que saíram de suas próprias mãos, mas mesmo isso não era o bastante. Não eram apenas uma coleção de anotações. Eram onde ele guardava seu sonho impossível – toda descoberta que já havia feito sobre a Cidade Perdida, cada pedaço de quebra-cabeça que juntara. E não era pela simples acumulação de conhecimento, mas com o objetivo de um dia... driblar a impossibilidade. De ir para lá de alguma forma, para onde nenhum forasteiro jamais estivera. De cruzar o deserto, ver aqueles domos brilhantes com seus próprios olhos, e descobrir, por fim, o que aconteceu com a Cidade Perdida.
Seus livros eram um registro de sete anos de esperança. Até o fato de tocá-los lhe dava coragem. E agora eles iam cair nas mãos de Thyon Nero?
– Que diabos Thyon Nero pode querer com seus livros? – Mestre Hyrrokkin havia perguntado.
– Não sei – respondeu Lazlo, perdido. – Nada. Apenas tirá-los de mim.
O velho estalou a língua.
– Com certeza essa mesquinhez não é do feitio dele.
– Você acha? Bem, então talvez ele os deseje ler de cabo a rabo.
Lazlo disse isso em um tom que fez Mestre Hyrrokkin entender seu ponto. Aquele cenário era ainda mais ridículo.
– Mas por quê? – Hyrrokkin persistiu. – Por que ele quereria tirá-los de você?
E Lazlo não podia lhe responder isso. O que ele mesmo estava se perguntando era: por que agora, quatro anos depois? Ele não havia feito nada para quebrar sua promessa, ou para atrair a ira de Nero de alguma forma.
– Por que ele pode? – ele perguntou, desolado.
Ele resistiu à requisição. É claro que sim. Foi direto ao mestre dos arquivos para expor seu caso. Os livros eram seus, explicou, e não propriedade da biblioteca. Sempre ficou claro que a expertise dos bibliotecários não merecia o termo acadêmica. Como tal, como eles podiam, agora, ser requisitados? Era contraditório e injusto.
– Injusto? Você deveria estar orgulhoso, jovem – Villiers, o mestre, disse a ele. – Thyon Nero se interessou pelo seu trabalho. É um grande dia para você.
Um grande dia, certamente. Por sete anos, Lazlo tinha sido “Estranho, o sonhador”, e seus livros eram “rabiscos” e “tolices”. Agora, de uma hora para outra, eles eram sua “obra”, validada e roubada de uma só vez.
– Por favor – ele implorou, com urgência e em voz baixa. – Por favor, não dê meus livros a ele.
E... eles não deram.
Fizeram com que ele os desse.
– Você está se desgraçando – Villiers soltou. – E não vou permitir que você desgrace a biblioteca também. Ele é o afilhado dourado, não um ladrão de estantes. Ele os devolverá quando tiver terminado. Agora vá.
Então Lazlo não teve escolha. Colocou-os em uma caixa em cima de um carrinho de mão e os empurrou para fora da biblioteca, pelos portões da frente e pela estrada que espiralava em volta da Cordilheira Zosimos. Ele fez uma pausa para olhar a paisagem. O Eder brilhava ao sol, como o vívido castanho dos olhos de uma garota bonita. O Novo Palácio ficava do outro lado, tão fantástico quanto um cenário de uma peça de teatro. Pássaros voavam em círculos sobre os barcos de pesca, e uma longa flâmula dourada tremulava na cúpula do palácio rosa-claro de Nero. Lazlo caminhou devagar até lá. Tocou o sino com profunda relutância. Lembrou-se de quando tocou outro sino quatro anos antes, com Milagres para o café da manhã nas mãos. Ele não o vira novamente. Será que seria diferente com esses livros?
Um mordomo atendeu e pediu a Lazlo para deixar a caixa, mas ele se recusou.
– Preciso ver Lorde Nero – anunciou, e quando Thyon finalmente se apresentou, Lazlo perguntou apenas: – Por quê?
– Por quê? – O alquimista estava de camisa, sem sua gravata vermelha. A espada estava presa ao corpo e sua mão descansava casualmente na empunhadura. – Eu sempre quis perguntar isso a você.
– Para mim?
– Sim. Por que, Estranho? Por que você o deu a mim? Ele. O segredo, e tudo o que se seguiu dele, sendo que você poderia tê-lo guardado e ter se tornado alguém.
A verdade é que – e nada conseguiria persuadir Nero a acreditar nisso – nunca havia ocorrido a Lazlo tirar vantagem disso. Nas tumbas, aquele dia, havia ficado muito claro para ele: aquela era uma história de rainhas gananciosas e pais malvados, e guerra no horizonte, não era a sua história. Era a história de Thyon. Guardar para si... seria como roubar. Era simples assim.
– Eu sou alguém – respondeu o bibliotecário. E apontou para a caixa. – Isso é o que sou. – E então, com intensidade, pediu: – Não os tire de mim. Por favor.
Houve um momento, muito breve, em que a indiferença deixou o rosto de Thyon, e Lazlo viu algo de humano nele. Arrependimento, talvez. Então desapareceu.
– Lembre-se de sua promessa – ele advertiu, e fechou a porta na cara de Lazlo.
Lazlo voltou para seu quarto tarde aquela noite, tendo se arrastado para o jantar a fim de evitá-lo. Ao chegar à porta, pegou a glave do gancho, hesitou, então pendurou-a de volta. Com uma respiração profunda, entrou. Ele esperava que a escuridão atenuasse a perda, mas a luz da lua era suficiente para banhar o peitoril da janela com um brilho suave. O vazio era total. O quarto parecia oco e morto, como um corpo com os corações retirados. Respirar não era fácil. Ele se deixou cair na beirada da cama.
– São apenas livros – disse a si mesmo. Apenas papel e tinta.
Papel, tinta e anos.
Papel, tinta, anos e seu sonho.
Ele balançou a cabeça. O sonho estava em sua mente e em sua alma. Thyon podia roubar seus livros, mas não podia lhe roubar isso.
Tentou se convencer disso naquela primeira e longa noite privado de seus livros, e teve dificuldade de dormir por se perguntar onde estariam e o que Nero havia feito com eles. Ele podia tê-los queimado, ou os colocado em um porão bolorento. Ele podia estar agora mesmo rasgando-os página por página, dobrando-as em forma de pássaros e lançando-os de sua janela, um a um.
Quando finalmente dormiu, Lazlo sonhou que seus livros estavam enterrados debaixo da terra, e que a grama que crescia deles sussurrava “Lamento, Lamento” quando o vento soprava, e todos os que ouviam sentiam as lágrimas arder em seus olhos.
Lazlo nunca considerou que Thyon pudesse estar lendo seus livros. Que, em um quarto tão opulento, com seus pés para cima em um banquinho acolchoado e uma glave de cada lado, ele os estaria lendo noite adentro enquanto servos lhe levavam chá e jantar e, depois, chá novamente. Certamente, Lazlo nunca o imaginou tomando notas, com uma pena de cisne e tinta de polvo de um tinteiro incrustrado de lys, que tinha, na realidade, vindo de Lamento cerca de quinhentos anos atrás. Que seu belo rosto não teria zombaria ou malícia, mas sim estaria atento, vivo e fascinado.
O que era muito pior.
Porque se Lazlo pensava que um sonho não podia ser roubado, ele subestimava Thyon Nero.
7
SONHO IMPOSSÍVEL
Sem seus livros, Lazlo sentia que uma ligação vital com seu sonho tinha sido cortada. A Cidade Perdida nunca havia parecido tão distante, ou tão inalcançável. Era como se uma névoa houvesse se erguido, forçando-o a confrontar uma verdade desconfortável.
Seus livros não eram seu sonho. Além disso, havia enfiado o sonho nas páginas como um marcador de livros e estivera contente de deixá-lo lá por bastante tempo. O fato era: nada que pudesse fazer ou ler ou encontrar dentro da Grande Biblioteca de Zosma o aproximaria de Lamento. Apenas uma viagem faria isso.
Mais fácil falar do que fazer, é claro. Era muito longe. Ele poderia encontrar um jeito de alcançar Alkonost, o cruzamento entre o continente e o entreposto ocidental do Elmuthaleth. Embora não tivesse qualificações que o recomendassem, havia pelo menos uma chance de que pudesse ser contratado por um comboio de mercadores e trabalhasse para chegar até lá. Depois disso, entretanto, ele estaria sozinho. Nenhum guia atravessaria o deserto com um faranji. Nem sequer lhes venderiam camelos para que pudessem tentar sozinhos – o que, de qualquer forma, seria suicídio.
E mesmo supondo que conseguisse cruzar o deserto, ainda haveria a Cúspide para enfrentar: a montanha de vidro branco que, segundo as lendas, era a pira funerária de demônios. Havia apenas um caminho para atravessá-la: pelos portões do Forte Misrach, onde os faranji eram executados como espiões.
Se a cidade estivesse morta, ele poderia atravessar para explorar suas ruínas. A ideia era infindavelmente triste. Ele não queria encontrar ruínas, mas uma cidade cheia de vida e cor, como a das histórias. Mas se a cidade estivesse viva, então podia esperar ser estripado e esquartejado e servido em pedaços às aves de rapina.
Não era difícil ver por que ele havia guardado o sonho nos livros, por segurança. Mas agora era tudo o que lhe restava, e era preciso dar uma bela olhada nele. Não era encorajador. Para qualquer lado que olhasse, tudo o que via era: impossível. Se o sonho escolhe o sonhador, então o dele havia escolhido mal. O sonho precisava de alguém muito mais ousado. Precisava do trovão e da avalanche, do grito de guerra e do redemoinho. Precisava de fogo.
Foram um ponto baixo as semanas depois que Thyon Nero levou seus livros. Os dias se arrastaram. As paredes se fecharam. Ele sonhou com desertos e grandes cidades vazias e imaginou que podia sentir os minutos e as horas de sua vida passando, como se ele não fosse nada além de uma ampulheta de carne e osso. Ele se viu olhando para as janelas, melancólico, ansiando por aquele horizonte distante e inatingível.
E foi assim que viu o pássaro.
Lazlo estava em cima de uma das escadas do Pavilhão do Pensamento, tirando livros para um filósofo impaciente que andava de um lado para o outro lá embaixo.
– Não tenho o dia inteiro – o homem gritou.
Eu tenho, pensou Lazlo, empurrando a escada para rolar nos trilhos. Ele estava na fileira de cima de estantes muito altas, ao longo da parede norte, onde a montanha em formato de nadadeira de tubarão despencava em um despenhadeiro íngreme até a cidade. Havia janelas estreitas entre cada seção de estantes, e ele tinha vislumbres do céu de verão à medida que passava deslizando por elas. Estante, janela, estante, janela. E lá estava ele: um pássaro, pairando em uma corrente de ar, como os pássaros gostavam de fazer desse lado da montanha, parado no lugar como uma pipa. Mas ele nunca tinha visto um pássaro como esse. Ele parou a escada para observá-lo, e alguma coisa ficou bem quieta no seu íntimo. O animal era de um branco puro, uma ave de rapina de bico curvo, e era imenso, maior do que as águias caçadoras que vira com os nômades que passavam pelo mercado. Suas asas eram como as velas de uma pequena embarcação, cada pena tão larga quanto um cutelo. Mas não foram apenas a cor ou o tamanho que chamaram sua atenção. Havia algo naquele pássaro. Algum truque de luz? Seus contornos... não eram definidos, pareciam derreter contra o céu azul, como açúcar se dissolvendo no chá.
Como a imagem difusa de um fantasma visto através do véu do mundo.
– O que você está fazendo aí em cima? – gritou o filósofo. Lazlo o ignorou. Ele inclinou-se para frente para espiar através do clarão do vidro. O pássaro fez uma pirueta em torno de uma das grandes asas e lançou-se em uma lenta e graciosa espiral. Ele o observou mergulhar e elevar-se para lançar sua sombra sobre a estrada abaixo, e sobre o teto de uma carruagem.
A carruagem real. A testa de Lazlo bateu na janela com sua surpresa. Havia uma procissão chegando pela estrada longa e sinuosa: não apenas a carruagem, mas fileiras de soldados montados na frente e atrás, o sol refletindo em suas armaduras. Ele espremeu os olhos. Uma tropa de soldados se diferenciava das outras, mas ele estava longe demais para ver com clareza. A armadura não brilhava. A montaria movia-se com uma andadura estranha. A estrada se curvava em torno da face sul da montanha, e logo toda a procissão havia desaparecido de sua vista. A imensa águia branca planou atrás dela e, então...
Talvez Lazlo tivesse desviado o olhar. Talvez tivesse piscado. Ele achava que não, mas de uma hora para outra o pássaro não estava mais lá. Estava e, então, não estava mais, e mesmo que ele tivesse piscado, não poderia ter desaparecido de sua visão tão rapidamente. Não havia onde se esconder ali perto. O rufar de tambor do sangue e do espírito de Lazlo aumentou. O pássaro havia desaparecido.
– Você aí! – O filósofo estava ficando irritado.
Lazlo olhou para baixo.
– A rainha vem nos visitar hoje? – ele perguntou.
– O quê? Não.
– Porque a carruagem real está chegando.
Os acadêmicos sentados ali perto ouviram e olharam para cima. A notícia espalhou-se em murmúrios. As visitas reais eram raras e, geralmente, anunciadas com antecedência. Logo os acadêmicos estavam se levantando das mesas e deixando seus materiais para trás a fim de se reunirem no pátio de entrada. Lazlo desceu da escada e os acompanhou, sem nem mesmo ouvir seu nome ser chamado pelo bibliotecário do balcão de informações.
– Estranho, onde você está indo? Estranho.
O pássaro havia desaparecido. Era magia. Lazlo sabia, como soubera antes. Seja lá o que tivesse acontecido com o verdadeiro nome da cidade, a magia era a responsável. Ele nunca duvidara disso, mas temia que nunca visse prova de que ela existia. Ele tinha um trio de medos que habitavam suas entranhas como dentes engolidos, e quando estava quieto demais com os próprios pensamentos, eles o mordiam por dentro. Este era o primeiro: que ele nunca encontraria provas de que a magia existe.
O segundo: que ele nunca descobriria o que aconteceu em Lamento.
O terceiro: que ele sempre seria tão sozinho quanto era agora.
Por toda sua vida, o tempo passara da única forma que ele soubera que o tempo passava: lento e sem pressa, como as areias escorrendo por uma ampulheta, de grão em grão. E se a ampulheta era real, então na parte de baixo e o gargalo – o passado e o presente –, as areias da vida de Lazlo seriam tão cinza quanto suas vestes, tão cinza quanto seus olhos, mas o topo – o futuro – guardava uma brilhante tempestade de cor: anil e canela, branco reluzente e amarelo-dourado, e o rosa-claro do sangue dos svytagors. Era o que ele esperava, o que sonhava: que, no curso do tempo, de grão em grão, o cinza desse lugar ao sonho e as areias de sua vida se acendessem.
Agora o pássaro. A presença da magia. E algo além do alcance de sua compreensão. Uma afinidade, uma ressonância. Ele sentia como... como um virar de páginas, e uma história apenas começando. Havia uma luz fraca de familiaridade nisso, como se ele conhecesse a história, mas tivesse esquecido. E, naquele momento, por nenhum motivo que ele pudesse colocar em palavras, a ampulheta se estilhaçou. Era uma vez aquele cinza frio dos dias, a espera diligente pelo futuro. O sonho de Lazlo havia se derramado no ar, a cor e a tempestade dele não eram mais um futuro a ser alcançado, mas um ciclone, aqui e agora. Ele não sabia o que, mas tão certo quanto alguém sente o corte dos cacos de vidro quando uma ampulheta cai de uma prateleira e se quebra, ele sabia que alguma coisa estava acontecendo.
Agora.
8
TIZERKANE
Soldados e carruagem entraram em um tropel pelos portões. O séquito real era sempre um espetáculo deslumbrante, mas não foi isso que parou os pés de Lazlo tão abruptamente, como se sua alma tivesse voado na frente do corpo e o abandonado. Ela não fez isso, claramente, embora talvez tenha se inclinado para frente, como um pescoço estendido. Uma alma estendida.
Uma maravilha tão viva e absoluta que ele nunca havia experimentado na vida.
Guerreiros. Aquela era a única palavra para os homens que cavalgavam atrás da rainha. Eles não eram de Zosma. Mesmo em guerra, os soldados da coroa dificilmente mereciam o termo, que pertencia às antigas batalhas e gritos de horror. Pertencia a homens como esses, de elmos com presas e placas de bronze no peito, com machados amarrados às costas. Eles se erguiam. Sua montaria era alta, fora do comum. Não eram cavalos, eram criaturas que ele nunca vira antes, ágeis, grandiosas e complicadas. Os longos pescoços dobravam-se como os de garças; as pernas eram finas e tinham muitas articulações; os focinhos pareciam de veados, com grandes olhos pretos e orelhas como feixes de plumas brancas. E, além disso, tinham chifres: grandes e ramificados, com um brilho parecido com o reflexo de prismas de ouro aquecido. Lys.
Os chifres eram de spectralys porque as criaturas eram espectrais. Entre todas as pessoas ali reunidas e que estavam chegando, apenas Lazlo reconheceu os veados brancos da Cidade Perdida, e só ele sabia quem eram aqueles guerreiros.
– Tizerkane – sussurrou.
Tizerkane. Vivos. As implicações eram profundas. Se estavam vivos, então a cidade também estava. Nenhum rumor em duzentos anos e, agora, guerreiros Tizerkane cavalgavam pelos portões da Grande Biblioteca. Na total improbabilidade do momento, pareceu a Lazlo que seu sonho havia cansado de esperar e simplesmente... havia vindo buscá-lo.
Havia um bom número de guerreiros. As presas em seus elmos eram os dentes de ravides, e as gaiolas em seus cintos carregavam escorpiões, e eles não eram todos homens. Um olhar mais atento revelava que as placas peitorais de bronze eram esculpidas em relevo, e enquanto metade tinha peitorais quadrados com mamilos pequenos, a outra metade tinha seios, o metal gravado ao redor do umbigo com a tatuagem elilith dada a todas as mulheres da Cidade Perdida quando atingiam a fertilidade. Mas isso passou despercebido no primeiro momento emocionante de sua chegada.
Toda a atenção foi capturada pelo homem que cavalgava à frente.
Diferentemente dos outros, ele não usava elmo nem armadura – mais humano por não estar escondido, mas não menos impressionante por isso. Ele não era nem jovem nem velho, com seus cabelos negros selvagens começando a ficar grisalhos na fronte. O rosto era quadrado, pardo e queimado de sol, seus olhos pedaços de azeviche dispostos em um olhar sorridente. Havia uma vitalidade impressionante nele, como se respirasse todo o ar do mundo e só deixasse o suficiente para os outros por pura benevolência. Ele era forte, com o peito duas vezes maior do que o de um homem normal, os ombros duas vezes mais largos. Grandes faixas douradas prendiam suas mangas na depressão entre o bíceps e o deltoide, e seu pescoço era escuro com tatuagens obscuras. Em vez de uma placa no peito, ele usava um colete de pele amarelada, e um cinturão largo e surrado no qual se penduravam duas espadas. Hreshtek, pensou Lazlo, e suas mãos se fecharam em torno das empunhaduras fantasma de suas espadas de galho de macieira. Ele sentia a textura delas, seu peso e equilíbrio precisos enquanto as girava acima da cabeça. As memórias o inundavam. Já fazia quinze anos, mas podiam ser quinze minutos desde que sua centena de inimigos fugira no gelo.
Há muito tempo, quando ele ainda era selvagem. Quando era poderoso.
Ele procurou no céu, mas não viu sinal do pássaro fantasma. O jardim estava em um silêncio sepulcral, exceto pela respiração dos cavalos. Os espectrais não faziam barulho, movendo-se com a graça de dançarinos. Um soldado abriu a porta da carruagem e, quando a rainha apareceu, Mestre Ellemire, chefe da Guilda dos Acadêmicos e diretor da Grande Biblioteca, tomou sua mão e a ajudou a descer. Ele era um homem alto e elegante, com uma voz grave como trovão, mas ficou pálido diante dos recém-chegados, sem palavras. E então, da direção do Chrysopoesium, veio o som de botas. O passo longo e confiante.
Uma onda de cabeças virou-se em direção ao som. Lazlo não precisava olhar. Tudo se encaixava. A requisição de seus livros de repente fez sentido, e ele entendeu que Thyon não os tinha queimado nem jogado as páginas pela janela como pássaros. Ele devia saber dessa visita extraordinária. Teria lido sobre eles e se preparado. É claro.
Ele apareceu, andando vivamente. Fez uma pausa para beijar a mão de sua madrinha, e curvou-se brevemente diante de Mestre Ellemire antes de se virar para os Tizerkane como se ele fosse o representante da biblioteca e não o homem mais velho.
– Azer meret, Eril-Fane – disse ele, com a voz limpa e forte. – Onora enet, en shamir.
Prazer em conhecê-lo, Eril-Fane. Sua presença é uma honra. Lazlo ouviu, apesar da distância. Era a saudação tradicional aos convidados na língua perdida. Aprendida, palavra por palavra, em seus livros.
Havia levado anos para ele desenvolver um dicionário funcional da língua e mais para desvendar a pronúncia provável de seu alfabeto. Anos. E Thyon chegou e falou aquela frase como se estivesse sempre ali, conhecida, tão comum quanto qualquer pedrinha do chão, em vez da gema rara e preciosa que era.
O guerreiro – Eril-Fane, como Thyon o havia chamado – ficou maravilhado de ser cumprimentado em sua própria língua e respondeu calorosamente. E suas boas-vindas são uma bênção, foi o que ele disse. Lazlo entendeu. Foram as primeiras palavras que ouviu de um falante nativo, e soava como sempre imaginara: como caligrafia, se a caligrafia fosse escrita com mel.
Embora Lazlo tivesse entendido as palavras, Thyon não entendeu, mas disfarçou bem, fazendo uma cortesia pomposa antes de mudar para a língua comum e dizer:
– Este é um dia do qual são feitos os sonhos. Nunca pensei que veria um guerreiro Tizerkane.
– Vejo que é verdade o que dizem sobre a Grande Biblioteca de Zosma – Eril-Fane respondeu, também na língua comum. Seu sotaque nas sílabas suaves era como pátina no bronze. – Que o vento está a seu serviço, e sopra todo o conhecimento do mundo à sua porta.
Thyon riu, bem à vontade.
– Se fosse assim tão simples. Não, é bem mais trabalhoso do que isso, mas se é passível de conhecimento, ouso dizer que é conhecido aqui, e se possuir metade do fascínio da história de vocês, então também merece a reputação.
Eril-Fane desmontou e outra guerreira fez o mesmo: uma mulher alta que ficou parada como se fosse sua sombra. O restante permaneceu montado, e seus rostos não eram impassíveis como os das fileiras de soldados de Zosma. Eles eram tão vívidos, cada um, quanto o de seu general – de interesse aguçado e animados. Era uma diferença marcante. Os guardas de Zosma eram como estátuas montadas, olhos vazios e fixados no nada. Eles podiam ter sido forjados em vez de nascidos. Mas os Tizerkane devolviam o olhar aos acadêmicos que os observavam, e os rostos emoldurados pelas presas de ravide, embora ferozes, também estavam fascinados. Ávidos, até mesmo esperançosos e, acima de tudo, humanos. Era intenso. Era maravilhoso.
– Esta não é a primeira parada na nossa jornada – explicou Eril-Fane, sua voz como uma música rouca –, mas é a primeira vez que somos recebidos com palavras familiares. Eu vim em busca de estudiosos, mas não imaginei que nós mesmos fôssemos um assunto de interesse acadêmico.
– Como poderia duvidar disso, senhor? – disse Thyon, com ar de sinceridade. – Sua cidade tem sido meu fascínio desde que tenho cinco anos, brincando de Tizerkane no pomar, e senti seu nome... arrancado da minha mente.
Às vezes, um momento é tão marcante que corta um espaço no tempo e fica girando ali, enquanto o mundo se apressa ao seu redor. Esse foi um momento assim. Lazlo ficou parado, atordoado, um zumbido bramindo em seus ouvidos. Sem seus livros, seu quarto parecia um corpo com os corações arrancados. Agora, seu corpo parecia um corpo com os corações arrancados.
E havia mais. A rainha e o Mestre Ellemire juntaram-se à conversa. Lazlo ouviu tudo: a preocupação e o interesse antigo que tinham com a distante cidade lendária e seus mistérios, e com que entusiasmo receberam a notícia dessa visita. Todos foram convincentes. Ninguém que os ouvisse suspeitaria que eles jamais pensaram em Lamento até poucas semanas atrás. Sem dúvida os acadêmicos ali reunidos estavam se perguntando como poderiam ignorar um interesse tão profundo e antigo por parte do mestre da guilda e da monarca – o que dava para notar pelo mais observador entre eles, com uma nova tiara caríssima de lys no alto de seus cachos grisalhos.
– Então, senhor – disse o Mestre Ellemire, talvez tentando tirar a autoridade de Thyon –, quais são as notícias de Lamento?
Um passo em falso. O guerreiro foi estoico, mas não pôde esconder inteiramente seu recuo, como se o nome o causasse dor física.
– Eu nunca a chamo assim – interrompeu Thyon, suavemente, como uma confissão. – Me dá um gosto amargo na língua. Penso nela como Cidade Perdida.
Foi outra facada nos corações de Lazlo, e rendeu a Thyon um olhar de consideração de Eril-Fane.
– Nós tampouco usamos esse nome – ele disse.
– Então, como a chamam? – perguntou a rainha, ranzinza.
– Chamamos de nossa casa, Vossa Majestade.
– E vocês estão muito distantes dela – observou Thyon, chegando ao ponto.
– Vocês devem estar se perguntando o porquê.
– Confesso que estou, e muito mais além disso. Eu os recebo na nossa grande cidade de conhecimento e espero que possamos ser úteis.
– Assim como eu – disse o guerreiro –, mais do que você possa imaginar.
Eles entraram na biblioteca, e Lazlo pôde apenas vê-los partir. Havia uma sensação em seus dois corações, contudo, como a de atiçar brasas. Havia fogo nele. Não estava abafado, apenas coberto, mas queimaria como as asas do serafim antes que isso terminasse.
9
UMA OPORTUNIDADE RARA
A notícia espalhou-se rápido: o visitante queria falar com os acadêmicos.
– O que será que ele quer? – perguntaram-se, entrando no Teatro Real. O comparecimento foi voluntário, e unânime. Se a visão dos guerreiros não fora suficiente para cutucar sua curiosidade, havia o rumor de uma “oportunidade rara”. Eles conversavam enquanto tomavam seus lugares.
– Dizem que ele trouxe uma arca de pedras preciosas do tamanho de um baú de dote.
– E você viu a tiara? É lys...
– Você viu as criaturas? Um par de chifres podia salvar um reino.
– Apenas tente chegar perto de um.
– Os guerreiros!
– Alguns são mulheres.
– Entre todas as loucuras indecentes!
Mas, na maioria dos casos, questionavam-se acerca do homem.
– Dizem que ele é uma espécie de herói – Lazlo ouviu. – O libertador de Lamento.
– Libertador? De quem?
– De quem ou de quê? – foi a resposta cifrada.
– Eu não sei, mas ele é chamado de Matador de Deuses.
Tudo mais na mente de Lazlo deu um passo para abrir espaço para essa nova informação. O Matador de Deuses. Ele admirou-se. O que o guerreiro tinha matado que atendia pelo nome de deus? Por quinze anos, os mistérios de Lamento nunca estiveram distantes de seus pensamentos. Por sete anos, vasculhou a biblioteca por pistas do que havia acontecido lá. E, agora, aqui estavam os Tizerkane, e as respostas que ele procurava debaixo desse mesmo teto, e novas perguntas também. O que eles estavam fazendo aqui? Apesar da traição de Nero, um deslumbramento crescia em si. Uma oportunidade rara. Podia ser o que ele esperava? E se fosse? Em toda sua fantasia – e em todo seu desespero – nunca previra isso: que seu sonho impossível pudesse simplesmente... chegar cavalgando pelos portões.
Ele não se sentou em meio ao mar de vestes escarlates, mas ficou em pé no fundo do teatro, nas sombras. Os acadêmicos haviam sido convocados, não os bibliotecários, e ele não queria arriscar que o mandassem embora.
Eril-Fane subiu ao palco. Um silêncio se fez rapidamente. Muitos dos acadêmicos estavam vendo-o pela primeira vez, e podia-se quase sentir o ceticismo deles cuidadosamente cultivado, sendo derrotado.
Se havia deuses a serem mortos, esse era o homem para o trabalho.
A pulsação de Lazlo palpitou em todo corpo à medida que o Matador de Deuses começou a falar.
– Faz dois séculos que minha cidade perdeu o mundo – disse o guerreiro –, e ficou perdida para ele. Algum dia a história será contada, mas não hoje. Hoje é suficiente dizer que passamos por um longo período sombrio e saímos dele vivos e fortes. Nossas dificuldades agora ficaram para trás. Todas menos uma. – Ele pausou. Uma melancolia escureceu sua voz e seu rosto, os mistérios de Lamento, escritos no rosto de seu próprio herói. – A... sombra de nosso tempo de escuridão ainda nos assombra. Ela não representa perigo. Isso eu posso dizer. Não há nada a temer. Garanto a vocês. – Ele fez uma pausa, e Lazlo inclinou-se para a frente, mal respirando. Por que ele estava garantindo? O que importava o medo deles? Será que ele queria dizer...?
– Vocês devem saber – ele continuou – que minha cidade foi sempre proibida aos faranji. “Forasteiros”, como nós chamaríamos vocês. – Ele sorriu um pouco e acrescentou: – Carinhosamente. É claro. – E um riso baixo espalhou-se pela plateia.
– Vocês também devem ter ouvido que os faranji que insistiram em tentar sua sorte foram executados, todos eles.
O riso cessou.
– Sou grato à sua rainha por nos dar uma recepção amigável aqui.
Riso novamente, ainda que hesitante. Era seu jeito – o calor dele, como vapor se levantando do chá. Alguém olhava para ele e pensava, eis um grande homem, e também um homem bom, embora poucos homens raramente sejam ambas as coisas.
– Ninguém nascido desse lado do Elmuthaleth jamais viu o que está além dele. Mas isso está prestes a mudar. – Um zumbido encheu os ouvidos de Lazlo, mas ele não perdeu uma palavra. – Vim convidá-los para visitar minha cidade, como meus convidados pessoais. Esse último... problema que resta, não fomos capazes de resolver sozinhos. Nossa biblioteca e universidade foram destruídas duzentos anos atrás. Literalmente destruídas, vocês entendem, e nossos sábios junto a elas. Então não temos o conhecimento nem a expertise de que precisamos. Matemática, engenharia, metalurgia. – Um gesto vago com os dedos indicava que ele falava em termos amplos. – Viemos de longe para reunir uma delegação de homens e mulheres... – e, quando disse isso, seus olhos avaliaram a multidão, como se para confirmar o que ele já havia observado: que não havia mulheres entre os acadêmicos de Zosma. Um sulco formou-se em sua testa, mas ele continuou: – que possam fornecer o que nos falta, e ajudar-nos a colocar o último espectro do passado em seu devido lugar.
Ele observou a multidão, deixando seus olhos pausarem nos rostos. E Lazlo, que estava acostumado à quase invisibilidade que sua insignificância lhe conferia, ficou sacudido ao sentir o peso daquele olhar sobre si. Por um segundo ou dois ele permaneceu ali: uma chama de conexão, a sensação de ser visto e escolhido.
– E se essa chance, por si só – Eril-Fane continuou –, não os tentar a interromper sua vida e trabalho, por, ao menos, um ano, mais provavelmente dois, tenham certeza de que serão bem recompensados. Além disso, para aquele que resolver o problema – sua voz era rica de promessa – a recompensa será grandiosa.
Com isso, quase todos os acadêmicos de Zosma estavam prontos para aprontarem seus baús e partir para Elmuthaleth. Mas aquilo não seria assim. Não era um convite aberto, o Matador de Deuses continuou dizendo. Ele mesmo selecionaria os delegados baseados em suas qualificações.
Suas qualificações.
As palavras esmagaram Lazlo como uma mudança súbita na gravidade. Ele não precisava ser informado de que “sonhador” não era uma qualificação. Não era o suficiente desejar mais do que qualquer um. O Matador de Deuses não tinha vindo para o outro lado do mundo a fim de realizar o sonho de um bibliotecário júnior. Ele vinha em busca de conhecimento e expertise, e Lazlo sabia que aquilo não significava um “especialista” faranji da Cidade Perdida. Matemática, engenharia, metalurgia, ele havia dito. Ele vinha em busca de conhecimento prático.
Ele vinha por homens como Thyon Nero.
10
NENHUMA HISTÓRIA CONTADA AINDA
O Matador de Deuses estava há dois dias entrevistando acadêmicos na Grande Biblioteca de Zosma e, no fim, convidou apenas três pessoas para a delegação. Eram eles: um matemático, um filósofo natural e, sem nenhuma surpresa, o alquimista Thyon Nero. A Lazlo não foi nem mesmo concedida uma entrevista. Não foi Eril-Fane que a negou, mas Mestre Ellemire, que estava supervisionando o processo.
– Bem, o que é? – o mestre perguntou, impaciente, quando Lazlo chegou à frente da fila. – Você tem alguma mensagem para alguém?
– O quê? Não – respondeu Lazlo. – Eu gostaria... de uma entrevista. Por favor.
– Você, uma entrevista? Tenho certeza de que ele não está recrutando bibliotecários, garoto.
Havia outros acadêmicos em volta, que juntaram-se à zombaria.
– Você não sabe, Ellemire? Estranho não é apenas um bibliotecário. Ele é praticamente um acadêmico. Em contos de fadas.
– Sinto muito dizer – o mestre falou a Lazlo, com os olhos carregados de desdém – que Eril-Fane não mencionou nenhuma fada.
– Talvez eles tenham um problema com elfos em Lamento – completou outro. – Você sabe alguma coisa sobre armadilhas para elfos, Estranho?
– Ou dragões. Talvez sejam dragões.
Isso continuou por algum tempo.
– Eu só gostaria de uma chance para falar com ele – Lazlo implorou, sem sucesso. Mestre Ellemire não “desperdiçaria o tempo do convidado” enviando alguém “evidentemente desqualificado”, e Lazlo não conseguiu encontrar argumentos em sua defesa. Ele era desqualificado. O fato era que, se conseguisse ver o Matador de Deuses, nem sabia o que iria dizer. O que ele poderia dizer para se recomendar? Eu conheço um monte de histórias?
Foi a primeira vez que sentiu, por si mesmo, um pouco do desprezo que os outros sentiam por ele.
Quem já havia gastado tanta energia em um sonho apenas para ficar impotente quando ele era concedido aos outros? Outros, além disso, que não tinham gastado nenhuma energia nisso. Seu sonho impossível tinha, contra todas as probabilidades, cruzado desertos e montanhas para chegar a Zosma e fazer um convite sem precedentes.
Mas não a ele.
– Eu lhe devo um agradecimento, Estranho – disse Thyon Nero, mais tarde, depois que tudo estava decidido e os Tizerkane estavam se preparando para partir.
Lazlo conseguiu apenas fitá-lo, indiferente. Um agradecimento por quê? Por ajudá-lo quando ele estava desesperado e sozinho? Por entregar-lhe o segredo de sua fama e fortuna? Por salvar o tesouro real e permitir a Zosma pagar seu exército e evitar a guerra?
Não. Nada disso.
– Seus livros são bastante informativos – ele disse. – É claro, imagino que os verdadeiros acadêmicos terão um interesse por Lamento agora, e registros amadores não serão necessários. Ainda assim, não é um trabalho ruim. Você deveria estar orgulhoso.
Orgulhoso. Lazlo lembrou-se daquele obrigado solitário de quando eles eram meninos, e não podia acreditar que tivesse sido sincero.
– O que você está fazendo aqui? – indagou. – Não deveria estar lá com os escolhidos?
Os Tizerkane estavam montados, espectrais brilhando em branco e lys, os guerreiros com seus rostos bronze, bravios e vivos. Eril-Fane despedia-se da rainha, e o matemático e o filósofo natural também estavam com eles. Os acadêmicos escolhidos não iam partir com os Tizerkane hoje. Eles os encontrariam dentro de quatro meses no caravançará, em Alkonost, onde a delegação completa iria se reunir para atravessar o Elmuthaleth. Levaria tempo para que concluíssem os trabalhos e se preparassem para a viagem. Nenhum deles era aventureiro, pelo menos, ainda não. Enquanto isso, os Tizerkane continuariam suas viagens, buscando mais delegados nos reinos de Syriza, Thanagost e Maialen. Ainda assim, Lazlo não sabia o que Thyon estava fazendo misturado aos não escolhidos. Além de se vangloriar.
– Oh, estou indo – afirmou Nero. – Só queria que você soubesse que seus livros foram de grande ajuda. Eril-Fane ficou muito impressionado com o meu conhecimento da cidade. Você sabe, ele disse que eu era o primeiro forasteiro que conheceu que sabia alguma coisa a respeito dela. Isso não é ótimo?
Ótimo não foi a palavra que veio à mente de Lazlo.
– De qualquer forma – continuou Thyon –, eu não queria que você achasse que fez todo aquele trabalho por nada.
E Lazlo não era uma criatura de raiva ou inveja, mas sentiu a queimadura de ambas – como se suas veias fossem pavios e elas estivessem ardendo através dele, deixando caminhos de cinzas à sua passagem.
– Por que você quer ir? – ele perguntou, amargo. – Não significa nada para você.
Thyon deu de ombros. Tudo nele era perfeito: suas roupas passadas e barbear perfeito, sua voz cavalheiresca e expressão jovial.
– Histórias serão contadas sobre mim, Estranho. Você devia saber disso. Precisa haver aventura nelas, não acha? Seria uma lenda chata se acontecesse em um laboratório.
Uma lenda? A história do afilhado dourado, que destilou o azoth e salvou reinos. Tudo girava em torno dele, e não de Lamento. Ele deu um tapa nas costas de Lazlo.
– É melhor eu ir me despedir. E não se preocupe, Estranho. Você terá seus livros de volta.
Isso não era um conforto. Por anos, os livros de Lazlo representaram seu sonho. Agora, representariam o fim dele.
– Não fique tão carrancudo – pediu Thyon. – Um dia eu voltarei para casa e, quando voltar, prometo – ele colocou uma mão sobre os corações –, vou lhe contar tudo sobre os mistérios de Lamento.
Entorpecidamente, Lazlo observou-o se afastar. Não era justo. Embora soubesse que esse era um pensamento infantil, quem sabia melhor do que ele que a vida não era justa? Ele aprendera essa lição antes que soubesse andar, antes que pudesse falar. Mas como ele podia aceitar isso? Como podia continuar a partir disso, sabendo que sua chance havia chegado e partido, e que ele não tivera nem mesmo a permissão para tentar? Ele imaginou dar um passo à frente naquele instante, naquele lugar, na frente de todo mundo, e apelar diretamente a Eril-Fane. O pensamento fez seu rosto queimar e sua voz secar, e ele podia muito bem ter se transformado em pedra.
Mestre Hyrrokkin encontrou-o ali e pousou uma mão consoladora sobre seu braço.
– Sei que é difícil, Estranho, mas vai passar. Alguns homens nasceram para coisas grandiosas e, outros, para ajudar grandes homens a fazer coisas grandiosas. Não há vergonha nisso.
Lazlo podia ter dado risada. O que Mestre Hyrrokkin diria se soubesse da ajuda que Lazlo já havia dado ao afilhado dourado? O que todos diriam, aqueles acadêmicos que zombaram dele, se soubessem que um conto de fadas tinha a chave para o azoth? Quando Lazlo foi até Thyon com seus “milagres para o café da manhã”, era tão claramente a história de Thyon que ele nem havia considerado guardá-la para si. Mas... essa era a sua história.
Ele era Estranho, o sonhador, e esse era o seu sonho.
– Quero ajudar um grande homem a fazer coisas grandiosas – respondeu ao bibliotecário. – Quero ajudar Eril-Fane. Quero ajudar a Cidade Perdida.
– Meu garoto – disse o Mestre Hyrrokkin com uma tristeza profunda –, como você poderia ajudar?
E Lazlo não sabia como, mas sabia uma coisa. Ele não poderia ajudar se ficasse ali. Observou Eril-Fane se despedir de Thyon. A cena deslumbrava. Realeza, guerreiros e animais espetaculares. Eril-Fane colocou o pé no estribo e montou. Thyon ficou ao lado dele, uma parte perfeita de um quadro perfeito. Algumas pessoas nasciam para habitar essas cenas. Era nisso que Mestre Hyrrokkin acreditava, e o que sempre ensinaram a Lazlo. E outros nasciam para... o quê? Para ficar em pé no meio da multidão e não fazer nada, não tentar nada, não dizer nada, e aceitar cada nada amargo como seu dever?
Não. Apenas... não.
– Espere! Por favor.
As palavras haviam saído dele. Ali, na frente de todos. Seus batimentos cardíacos eram ensurdecedores. Sua cabeça parecia embrulhada em um trovão. Os acadêmicos esticaram o pescoço para ver entre eles quem havia falado, e ficaram espantados – até pasmos – ao verem o bibliotecário júnior de fala mansa e olhos sonhadores abrir caminho em meio à multidão. Ele também estava espantado, e deu um passo à frente com uma sensação de irrealidade. Eril-Fane o havia escutado e olhava para trás, curioso. Lazlo não sabia onde estavam seus pés e suas pernas. Era como se estivesse flutuando, mas supôs que era mais provável que estivesse andando e não conseguisse senti-los. Essa ousadia ia contra tudo dentro de si, mas era isso, sua última chance: agir agora, ou perder o sonho para sempre. Ele obrigou-se a andar em frente.
– Meu nome é Lazlo Estranho – afirmou, e todos os guerreiros Tizerkane viraram a cabeça como se fossem um só para vê-lo.
Seus rostos vívidos mostravam a surpresa – não porque Lazlo havia gritado, mas porque ele havia gritado na língua perdida e, diferentemente de Thyon, ele não a tratou como uma coisa comum, mas como a pedra preciosa e rara que era. As palavras, nos tons reverentes de sua voz rouca, soaram como um encantamento mágico.
– Posso implorar um minuto do seu tempo? – indagou, ainda na língua deles, e não deve ter parecido enlouquecido, embora estivesse perto disso; ele sentia-se enlouquecido, porque Eril-Fane fez seu espectral virar a fim de observá-lo e, meneando a cabeça, sinalizou para que se aproximasse.
– Quem é esse? – Lazlo ouviu a rainha perguntar, sua voz distorcida. – O que ele está dizendo?
Thyon deu um passo à frente, os olhos passando rapidamente entre Lazlo e Eril-Fane.
– Senhor – Thyon disse rapidamente, perdendo sua fachada elegante –, você não precisa se dar ao trabalho. Ele é apenas um bibliotecário.
A testa de Eril-Fane enrugou-se.
– Apenas? – ele perguntou.
Se Thyon tivesse, de fato, lido As obras completas de Lazlo Estranho, então deveria saber que em Lamento de antigamente os guardiões dos livros eram os guardiões da sabedoria, e não servos como eram em Zosma. Percebendo que seu desprezo havia errado o alvo, apressou-se em completar:
– Só quero dizer que ele não tem o tipo de conhecimento que está buscando.
– Entendo – disse Eril-Fane, voltando sua atenção a Lazlo. E, então, em sua própria língua, com o que pareceu ser, ao ouvido destreinado de Lazlo, uma enunciação lenta e cuidadosa, indagou: – E o que posso fazer por você, jovem?
O conhecimento de Lazlo da língua falada era tênue, mas ainda assim conseguiu responder, em uma gramática incerta:
– Quero ir com vocês. Por favor, deixe-me servi-los.
A surpresa de Eril-Fane era evidente.
– E por que não me procurou antes?
– Não tive permissão, senhor – respondeu Lazlo.
– Entendo – disse Eril-Fane, mais uma vez, e Lazlo pensou detectar um incômodo em seu tom. – Diga-me, como você aprendeu nossa língua?
Hesitante, Lazlo contou.
– Eu... eu criei uma decodificação com velhos documentos de comércio. Era um ponto de partida. Então li cartas, livros. – O que ele poderia dizer? Como poderia falar sobre as horas, centenas de horas, passadas inclinando-se sobre livros de registro, seus olhos nadando à luz fraca de uma glave enquanto sua mente traçava os arabescos e floreios de um alfabeto que parecia música? Como poderia explicar que isso havia preenchido sua mente como nenhuma outra coisa jamais preenchera, como números para um matemático ou ar para uma flauta? Ele não podia. Apenas disse: – Isso me tomou sete anos.
Eril-Fane absorveu tudo, lançando um olhar de soslaio para Thyon Nero, que estava rígido e alarmado, e se ele estava comparando o conhecimento superficial do alquimista com a compreensão profunda de Lazlo, não deixou isso claro.
– E por que você a aprendeu? – ele perguntou a Lazlo, que tropeçou na resposta. Ele não tinha certeza exatamente do que disse, mas tentou dizer:
– Porque a sua cidade me fascina. Ainda posso sentir o sabor do seu verdadeiro nome, e sei que a magia é real, porque senti isso naquele dia, e tudo o que sempre quis foi ir para lá e descobrir.
– Descobrir a magia? Ou a minha cidade?
– Sua cidade – respondeu Lazlo. – Ambas. Embora a magia... – Ele tateou por palavras, e acabou voltando à língua comum, frustrado. – Temo que a magia seja sombria – explicou –, para ter feito uma coisa como apagar um nome. Essa foi minha única experiência dela. Bem – ele acrescentou –, até o pássaro branco.
– O quê? – O Matador de Deuses ficou sério de repente. – Que pássaro branco?
– A... águia fantasma – explicou Lazlo. – Não é sua? Ela chegou com vocês, achei que fosse.
– Ela está aqui? – indagou Eril-Fane, atento. Ele procurou no céu, na linha dos telhados. – Quando você a viu? Onde?
Ela? Lazlo apontou para além do palácio.
– Quando vocês estavam chegando pela estrada – disse ele. – Ela parecia estar seguindo. E desapareceu bem na frente dos meus olhos.
– Por favor, Estranho – Thyon interrompeu, aflito. – Do que você está falando? Pássaros que desaparecem? – Ele riu, como alguém riria de uma criança com alguma ideia tola, mas soou terrivelmente falso. – Agora realmente devo insistir que você deixe nosso convidado em paz. Afaste-se já e poderá manter seu emprego.
Lazlo o encarou. A mão do alquimista pousou, casualmente, na empunhadura da espada, mas não havia nada casual na maldade que ardia em seu olhar. Não era apenas maldade, mas medo, e Lazlo entendeu duas coisas: que ele não manteria seu emprego, não depois de uma insolência como essa, e que também não teria permissão para ir embora, não com o segredo que carregava. Ao se apresentar, ele havia arriscado tudo. De repente, tudo estava claro. Uma coragem incomum e viva tomou conta de si quando se voltou para Eril-Fane.
– Senhor – disse ele –, é verdade que não tenho qualificação em engenharia nem nas ciências. Mas posso ser útil para vocês. Ninguém trabalhará mais intensamente, prometo. Posso ser seu secretário, cuidar de contratos para os delegados, escrever cartas, cuidar da contabilidade. Qualquer coisa. Ou tomarei conta dos espectrais. Carregarei água. O que vocês precisarem. Eu... Eu... – Ele não estava em total posse de si mesmo. As palavras derramavam-se. Sua mente estava acelerada. Quem sou eu?, ele se perguntou. O que tenho a oferecer? E antes que pudesse retirar suas palavras, ouviu a si mesmo dizer: – Eu posso contar histórias. Conheço um monte de histórias – antes de cair em um silêncio doloroso.
Conheço um monte de histórias.
Ele tinha mesmo acabado de dizer isso? Thyon Nero riu. Eril-Fane, não. Ele trocou um olhar com a segunda-em-comando, a mulher alta e ereta ao seu lado. Lazlo não entendeu. Notou que ela era bonita, de um jeito bem diferente das mulheres de Zosma. Não estava pintada e não sorria. Havia linhas em torno de seus olhos, de boas risadas, e em volta de sua boca, de tristeza. Ela não falou, mas algo se passou entre os dois. Esses segundos foram os mais longos da vida de Lazlo, e os mais pesados de destino. Se eles o deixassem para trás, será que ele duraria um dia? O que Nero faria a ele, e quando?
Então Eril-Fane limpou a garganta.
– Faz muito tempo que não ouvimos novas histórias – disse ele –, e eu poderia mesmo ter um secretário. Junte suas coisas. Você vai conosco agora.
A garganta de Lazlo prendeu sua respiração. Seus joelhos pareciam ter virado água. O que o estivera segurando todo esse tempo? O que quer que fosse, soltou-o, e foi tudo o que ele pôde fazer para não tropeçar. Todos estavam assistindo. Todos estavam ouvindo. O silêncio chocante foi quebrado pelos murmúrios.
– Não tenho nada para pegar – respondeu, quase sem voz. Era verdade, mas mesmo que tivesse um palácio cheio de posses, não poderia ir pegá-las agora, por medo de voltar e descobrir que os Tizerkane haviam ido embora e sua chance, seu sonho – e sua vida – ido junto com eles.
– Bem, então suba – disse Eril-Fane, e um espectral foi guiado em sua direção.
Um espectral. Para ele.
– Esta é Lixxa – afirmou o guerreiro, colocando as rédeas na mão de Lazlo, como se ele soubesse o que fazer com elas. Ele nunca havia montado em um cavalo, quanto menos em uma criatura dessas, então ficou lá olhando para as rédeas e o estribo, e os rostos dos Tizerkane olhando-o com curiosidade. Ele estava acostumado a esconder-se atrás de livros ou nas sombras. Era o meio do verão, da manhã, em plena luz do dia. Não havia livros para se esconder atrás, e nenhuma sombra – apenas Lazlo Estranho em suas vestes cinza gastas, com seu nariz que fora quebrado por contos de fadas, parecendo o herói de uma história jamais contada.
Ou, de uma história ainda não contada.
Ele montou. Foi desengonçado, e não estava vestido para cavalgar, mas conseguiu passar uma perna por cima, e isso parecia ser o principal. Suas vestes subiram até os joelhos. As pernas eram pálidas, e as solas de seus sapatos estavam muito gastas. Lixxa sabia o que fazer, e seguiu quando os outros passaram pelo portão. Todos os olhos estavam em Lazlo, e todos estavam arregalados, exceto os de Thyon, que estavam espremidos, de fúria.
– Você pode ficar com os livros – Lazlo disse a ele, e deixou-o parado ali. Ele deu uma última olhada para a multidão ali reunida, vestes escarlates e um cinza ocasional, e viu Mestre Hyrrokkin, olhando-o surpreso e orgulhoso. Lazlo fez um gesto de cabeça para o velho, a única pessoa além de Thyon que sabia o que isso significava para ele, e quase chorou.
Estou indo a Lamento, pensou, e podia ter rido disso, mas manteve a compostura, e quando os guerreiros Tizerkane cavalgaram para fora da Grande Biblioteca e fora de Zosma, Estranho, o sonhador, foi junto a eles.
11
DÉCIMA SEGUNDA LUA
Isso foi na sexta lua, verão no norte.
Agora, era a décima segunda lua, e inverno em Zosma, o Eder congelado, e jovens talvez compondo poemas para garotas que conheceram patinando no gelo.
Lazlo Estranho não estava entre eles. Estava cavalgando um espectral na frente de uma longa e ondulante fila de camelos. Atrás deles havia todo o vazio do mundo conhecido: céu monótono acima, chão monótono abaixo, e entre os dois nada além de centenas de quilômetros, exceto o nome Elmuthaleth para os lábios ressecados amaldiçoarem.
Os meses de viagem o mudaram. Sua palidez de biblioteca havia queimado e depois bronzeado. Seus músculos haviam se enrijecido e as mãos, calejado. Ele sentia-se mais endurecido, como carne pendurada para curar, e embora não visse seu reflexo há semanas, não tinha dúvida de que Mestre Hyrrokkin ficaria satisfeito.
– Um homem deve ter rugas de olhar para o horizonte – dissera o velho bibliotecário –, não só de ler à luz fraca.
Bem, ali estava o horizonte com o qual Lazlo sonhara desde os cinco anos de idade. À frente, finalmente, estava a dura fronteira do deserto: a Cúspide. Recortada e brilhante, era uma formação longa e baixa de rocha branca ofuscante, e uma perfeita muralha para o que ficava além dela: ainda não visível e nunca antes vista por olhos faranji, estava a cidade que perdera seu nome e, dentro dela, o problema para o qual o Matador de Deuses buscou ajuda para resolver.
Era a primeira semana da décima segunda lua, do outro lado do Elmuthaleth, e Estranho, o sonhador, bibliotecário clandestino e acadêmico de contos de fadas, nunca estivera com tanta sede, ou tão maravilhado.
PARTE II
thakrar (THAH.krahr) substantivo
O ponto preciso do espectro do assombro em que o encantamento se transforma em pavor, ou o pavor em encantamento.
Arcaico; das sacerdotisas extáticas de Thakra, adoradoras do serafim, cuja dança ritual expressava o dualismo da beleza e do terror.
12
BEIJANDO FANTASMAS
– Você pode beijar um fantasma.
– Imagino que saiba disso.
– Eu sei. É como beijar uma pessoa.
– Agora, isso é algo que você não sabe.
Sarai demorou-se na meia-luz da galeria, ouvindo os ritmos de Pardal e Rubi discutindo. A discussão entre elas nunca ficava muito acalorada, mas tampouco extinguia-se por completo. Sabia que assim que colocasse os pés no jardim, elas iriam enfiá-la no meio da discussão, mas não estava acordada o bastante para isso. Era fim de tarde; havia acabado de acordar, e levou algum tempo para sacudir os efeitos do lull, a bebida que tomava para ajudar a dormir.
Bem, ela não precisava de ajuda para dormir. Suas noites eram longas e cheias de trabalho sombrio; ela ficava exausta ao amanhecer, e cochilava assim que se permitia fechar os olhos. Mas não os fechava até tomar seu lull, que a impedia de sonhar.
Sarai não sonhava. Não ousava.
– Eu já beijei pessoas – disse Rubi. – Eu beijei você.
– Beijinhos na bochecha não contam – respondeu Pardal.
Sarai podia ver as duas, brilhando ao sol do fim do dia. Pardal havia acabado de fazer dezesseis anos, e Rubi iria completá-los em mais alguns meses. Como Sarai, elas usavam camisolas de seda que seriam consideradas roupas de baixo se houvesse alguém por perto para vê-las. Qualquer pessoa viva, quer dizer. Elas estavam colhendo ameixas, com os braços nus se estendendo entre os galhos pontiagudos, suas cabeças escuras de costas para ela, uma penteada, e outra tempestuosa como o vento. A tempestuosa era Rubi, que se recusava a usar seu cabelo em tranças e agia como se estivesse morrendo quando tentavam pentear os fios emaranhados.
Sarai entendeu, pelo tom do debate, que ela havia beijado fantasmas. Ela suspirou, não era uma surpresa, exatamente. Dos cinco deles, Rubi era a mais ardente, e a que mais tendia ao tédio.
– É fácil para você – ela disse a Sarai uma noite dessas. – Você vê pessoas toda noite. Você pode viver. O resto de nós está apenas aqui preso com os fantasmas.
Sarai não discutiu. Parecia assim para os outros, é claro. Ela via as pessoas de Lamento toda noite, mas isso não facilitava nada. Ao contrário. Toda noite ela era testemunha do que nunca deveria ser. Não era viver. Era tortura.
– Que bom, você está acordada – disse Feral, chegando à galeria. Era uma longa galeria abobadada, que escondia o jardim da vigilância da cidadela, e era onde o jantar logo seria servido para os cinco. Aqui, o lustroso mesarthium azul do qual toda a cidadela era construída se atenuava quase como um remendo perto das orquídeas de Pardal. Centenas delas, dezenas de variedades, longas, achatadas, espiraladas, elas vestiam as colunas em uma floresta de flores. Vinhas abraçavam os pilares, e epífitas aderiam ao teto como anêmonas, ou abrigando borboletas. Era suntuoso, ilusório. Você quase esquecia de onde estava. Quase podia se imaginar livre, e andando pelo mundo.
Quase.
Quanto a Feral, ele era aliado de Sarai e também servia de pai para as outras três. Tinha dezessete anos, como ela, e este ano quase havia passado a linha para a vida adulta. Ele era alto, ainda magro por causa do crescimento rápido, e havia começado a fazer a barba – ou, como Pardal dizia, a “abusar de seu pobre rosto com facas”. Era verdade que não tinha dominado a arte, mas estava melhorando. Sarai não viu novos ferimentos nele, apenas um vergão sarando e um antigo na extremidade de seu queixo.
Achou que ele parecia cansado.
– Dia ruim? – perguntou. As garotas não eram sempre fáceis de lidar, e uma vez que Sarai era noturna por necessidade, ficava para Feral a obrigação de ver se haviam feito suas tarefas e obedecido a Regra.
– Ruim, não – disse Feral. – Apenas longo.
Era estranho para Sarai pensar que os dias podiam ser longos. Ela dormia durante todos eles, do amanhecer até quase o entardecer, e sempre sentia que estava abrindo os olhos apenas um momento depois de fechá-los. Era o lull, que engolia seus dias em uma tragada cinza.
– E você? – ele quis saber, com os olhos castanhos preocupados. – Noite ruim?
Todas as noites de Sarai eram ruins. Ruim parecia a ela a própria natureza da noite.
– Apenas longa – ecoou com um sorriso tristonho, colocando uma mão no pescoço fino e rolando a cabeça de um lado para o outro. Ela sabia que ele não conseguiria entender, que ele fazia sua parte para manter os cinco vivos, e ela a dela. Não adiantava reclamar.
– Onde está Minya? – ela perguntou, notando a ausência da quinta integrante de sua peculiar família.
Feral ergueu os ombros.
– Não a vejo desde o café da manhã. Talvez esteja com a Grande Ellen.
A Grande Ellen havia administrado o berçário da cidadela antes do Massacre. Agora, administrava tudo. Bem, tudo que ainda estava funcionando, o que não era muito.
– Beijadora de fantasma – eles ouviram do jardim. A voz suave de Pardal enrolou-se com o riso, e foi interrompida por um “ai!”, quando Rubi arremessou uma ameixa nela.
– Quem foi? – Sarai perguntou a Feral. – Para quem ela apontou os lábios?
Feral fez um som que era o equivalente a um dar de ombros.
– Kem, eu acho.
– Sério? Kem? – Sarai enrugou o nariz. Kem estivera com eles desde o começo. Fora soldado de infantaria antes do Massacre, e ainda usava a farda com a qual morreu, o que na mente de Sarai sugeria uma distinta falta de imaginação.
– Por quê? – Feral perguntou a Sarai, movendo as sobrancelhas. – Quem você beijaria?
Em um tom ao mesmo tempo irônico e leve, Sarai respondeu:
– Beijo dezenas de pessoas toda noite. – E ela tocou um lugar um pouco acima da curva externa de uma sobrancelha cor de canela. – Bem aqui. Homens, mulheres, bebês e avós. Eu os beijo e eles tremem. – Sua voz era como o gelo, e também seus corações. – Eu os beijo e eles se entristecem.
– Isso não é beijar – disse Feral. Ele estivera provocando, brincalhão, mas agora não mais.
Ele estava certo, é claro. Não era beijar o que Sarai fazia às pessoas no profundo da noite.
– Talvez não – ela respondeu, ainda irônica, ainda leve –, mas é o mais perto que jamais chegarei disso. – Ela baixou os ombros e levantou o queixo. Fim da discussão, sua postura dizia.
Feral parecia querer insistir no assunto, mas, de repente, a voz de Rubi ergueu-se.
– Bem, vamos resolver isso, então? – ela disse, cantarolando um chamado de “Feral, onde está você?”.
Feral congelou como uma presa sob a sombra de uma ave de rapina.
– Ah, não – ele se exasperou.
Rubi apareceu em um arco da arcada, parecendo mais uma orquídea da floresta, sua forma magra como um caule sustentando uma florescência de cabelos abundantes. Feral tentou desaparecer da visão dela, mas era tarde demais. Ela o tinha visto.
– Aí está você. Ah, oi, Sarai, espero que tenha dormido bem. Feral, preciso de você por um segundo.
Pardal estava bem atrás dela.
– Você não precisa dele – disse ela. – Deixe-o em paz!
E a sequência de eventos que se seguiram foi uma ilustração perfeita do pequeno caos que se passava para sempre na cidadela.
Rubi pegou Feral pelo colarinho e puxou seu rosto na direção do dela. Ele resistiu. Ela segurou, pressionando seus lábios contra os dele e fazendo algo com a boca que parecia e soava mais como devorar do que com beijar.
A temperatura caiu. O ar sobre suas cabeças agitou-se e escureceu, uma nuvem formou-se a partir do nada, cinza e densa, pesada de chuva. Em poucos segundos a galeria estava tomada pelo cheiro penetrante do ozônio e de uma umidade que os fazia sentir que estavam dentro de uma tempestade mesmo antes que os primeiros pingos se rompessem adiante, gordos, cheios e muito frios, tal qual o fundo de um balde se quebrando. Sarai sentiu o respingar frígido, mas Rubi era o alvo, e a garota ficou molhada em um instante.
Ela ficou sem fôlego e libertou os lábios de Feral da sucção. Ele desvencilhou-se e cambaleou para trás, com olhar fixo e limpando a boca, que não estava devorada, mas brilhando com saliva. Rubi tentou esquivar-se da nuvem, mas ela a perseguiu.
– Feral, pare com isso! – ela gritou, mas ele não parou, então ela foi correndo em sua direção, com nuvem e tudo. Ele escapou e escondeu-se atrás de Sarai, com quem Rubi se chocou em um splash de seda molhada e gelada.
Foi a vez de Sarai perder o fôlego. A chuva era ártica.
– Feral! – ela conseguiu grasnar. A nuvem desapareceu como havia surgido, e Sarai afastou-se de Rubi, chocada e pingando. Sob seus pés, o chão tinha se tornado um lago raso e extenso. As orquídeas brilhavam, riachos de chuva escorrendo de suas pétalas carnudas. Sua própria camisola estava escura de tão molhada, e colada ao corpo, e ela estava completamente acordada agora.
– Muito obrigada – Sarai disse a Feral, que ainda estava limpando a saliva do rosto.
– Por nada – ele respondeu, carrancudo.
Quando eram pequenos, achavam que ele fazia as nuvens, e por que não pensariam assim? Não havia ninguém para lhes explicar aquilo, ou explicar o dom de Sarai a ela, ou os dons das meninas a elas. Os deuses haviam morrido e os abandonado à própria sorte.
Feral desejava, e as nuvens apareciam. Mesmo antes que soubesse desejá-las, elas vinham, ligadas aos seus humores e terrivelmente inconvenientes, segundo a Grande Ellen. Quantas vezes o berçário não foi inundado porque quando o menino estava com raiva ou entusiasmado, as nuvens enchiam o ar em torno dele? Agora ele conseguia controlá-las, mais ou menos, e as chamava de propósito. Às vezes, eram nuvens de chuva, pesadas e escuras e, às vezes, tufos brancos aerados que derramavam uma sombra delicada e retorciam-se em forma de aves de rapina ou castelos no ar. Havia neve de tempos em tempos, sempre uma surpresa, e granizo, menos surpreendente, e, às vezes, vapores de mormaço quente e úmido que tinham cheiro de doença e decomposição. Ocasionalmente, havia o perigo de um raio. Sarai e Feral tinham dez ou onze anos quando uma pipa de papel apareceu com alguma neblina, e perceberam que ele não fazia as nuvens, as retirava de céus longínquos. Ele as roubava.
Ladrão de Nuvens, elas chamavam-no, e essa era a parte dele na tarefa de mantê-los vivos. O rio era distante e a chuva era sazonal. A única fonte de água durante a maior parte do ano eram as nuvens de Feral.
O cabelo desgrenhado de Rubi havia ficado liso como pele de lontra, ainda pingando o restante de chuva. A camisola branca estava colada ao corpo e bastante transparente, com os pequenos mamilos e seu umbigo plenamente visíveis. Ela não fez nenhum gesto para se cobrir. Feral desviou os olhos.
Rubi virou-se para Pardal e admitiu, com surpresa evidente:
– Sabe, você está certa. Não é como beijar fantasmas. É mais quente. E... mais molhado. – Ela riu e balançou a cabeça, minando espumas de chuva pelas mechas de cabelo. – Bem mais molhado.
Pardal não compartilhou da sua risada. Afetada, a garota girou nos calcanhares descalços e saiu correndo para o jardim.
Rubi virou-se para Sarai.
– O que há de errado com ela? – perguntou, perfeitamente ignorante do que estivera claro para Sarai havia meses: que a afeição de Pardal por Feral havia mudado dos sentimentos fraternais que todas tinham por ele para algo... bem, para usar as palavras de Rubi... mais quente. Sarai não ia explicar isso para Rubi, ou para Feral, que era igualmente ignorante. Essa era apenas uma das formas pelas quais a vida estava ficando mais complicada à medida que eles cresciam.
Ela deu um tapinha em sua camisola molhada e suspirou. Pelo menos a dela era cinza-escuro, e então não tinha ficado transparente como a de Rubi, mas ela ainda assim precisaria se trocar.
– É quase hora do jantar – ela disse a Rubi. – Sugiro que você se seque.
Rubi olhou para si mesma, e de volta para Sarai.
– Tudo bem – respondeu, e Sarai viu a faísca em seus olhos.
– Não assi... – disse ela, mas era tarde demais.
Rubi ardeu em chamas. Sarai teve de se jogar para trás para evitar a explosão de calor à medida que Rubi era engolida por uma coluna laranja de fogo crepitante. Ela acendeu-se em um instante, como óleo de lamparina beijado por uma faísca, mas morreu mais lentamente, as chamas diminuindo até que sua forma fosse visível dentro delas, a carne absorvendo cada lambida do fogo, uma a uma. Seus olhos eram o último reservatório de chamas, ardendo tão vermelho quanto seu nome, de forma que, por um momento, ela parecia a estátua de uma deusa má, e então voltou a ser apenas ela mesma – ela e apenas ela, nem um farrapo ou cinza que restasse de sua roupa.
Eles a chamavam de Fogueira, por motivos óbvios. Enquanto o bebê Feral pode ter causado algum inconveniente, a bebê Rubi tivera um efeito mais perigoso, acentuado pela volatilidade de sua natureza. Era uma coisa boa, então, que suas babás já estivessem mortas. Fantasmas não pegavam fogo, e nem o mesarthium, então não havia risco de atear fogo à cidadela.
– Tudo seco – afirmou a garota, e assim ela estava. Seu cabelo, sem queimar, estava desgrenhado novamente, ainda crepitando com a cinese do fogo, e Sarai sabia que se o tocasse, sentiria o calor de um braseiro, assim como também sentiria na pele nua. Ela balançou a cabeça, feliz que Pardal tivesse perdido a demonstração.
Feral ainda estava em pé, virado de costas.
– Me diga quando eu puder olhar – ele disse, entediado.
Sarai disse a Rubi:
– Isso foi um desperdício de roupa.
Rubi deu de ombros.
– Qual é o problema? Não viveremos por tempo suficiente para ficarmos sem roupas.
Sua voz era tão casual, tão pragmática, que suas palavras passaram por todas as defesas de Sarai e a penetraram. Era um choque maior do que a chuva.
Não viveremos por tempo suficiente...
– Rubi! – disse Sarai.
Feral, igualmente chocado, virou-se, com garota nua ou não:
– É isso mesmo que você pensa? – perguntou a ela.
– O quê? Você não? – Rubi parecia genuinamente surpresa, parada ali, seca pelo fogo e bela, nua, à vontade consigo mesma, e azul. Azul como opalas, azul-claro. Azul como centáureas, ou asas de libélula, ou um céu de primavera – não de verão. Assim como o resto deles.
Azul como cinco assassinatos esperando para acontecer.
– Você acha que vamos ficar velhos aqui? – ela questionou, alternando o olhar entre os dois, gesticulando para as paredes ao redor deles. – Você deve estar brincando. Esse é realmente um futuro que você pode imaginar? Sarai piscou. Não era uma pergunta que ela se permitia fazer. Eles faziam o melhor que podiam. Eles obedeciam a Regra. Às vezes, ela quase acreditava que isso seria suficiente.
– Muitas coisas podem acontecer – respondeu, e ouviu como sua meia-voz estava entalhada de incerteza, e como ela soava extremamente fraca.
– Como o quê? – Rubi perguntou. – Além da morte, quero dizer.
E Sarai não conseguiu pensar em nada.
13
SOPA DO PURGATÓRIO
Sarai despiu-se de sua camisola pegajosa e molhada e deixou-a cair no chão do closet. Seda cinza empoçada no chão de metal azul. Dedos dos pés azuis, pernas azuis, seu reflexo azul no espelho azul, que não era de vidro, mas de mais mesarthium, polido até um alto brilho. A única coisa que não era azul eram seus cabelos – que eram castanho-avermelhados, como a canela – e o branco dos seus olhos. O branco dos dentes também, se ela estivesse sorrindo, mas com certeza não estava.
“Não viveremos por tempo suficiente para ficarmos sem roupas”, Rubi havia dito.
Sarai olhou para a fileira de camisolas penduradas na arara fina de mesarthium. Havia tantas, e todas tão bonitas. E sim, eram roupas de baixo, mas ela, Rubi e Pardal preferiam-nas à alternativa: os vestidos.
As únicas roupas que tinham ou que teriam – como a única vida que tinham ou teriam – eram as que a cidadela fornecia, e a cidadela fornecia as roupas de deusas mortas.
O closet era tão grande quanto um saguão. Havia dezenas de vestidos, todos eles suntuosos demais para usar, e terríveis demais. Cetim, ornamentos e brocados duros, encrustados de pedras e decorados com peles de animais com cabeça, olhos vidrados, presas e tudo mais. Um deles tinha uma saia como uma gaiola esculpida em osso de baleia, outro um rabo longo feito de centenas de asas de pombas costuradas juntas. Havia um corpete de ouro puro moldado, feito para parecer a carapaça de um besouro, e uma gola em forma de leque feita com as espinhas de peixes venenosos, com minúsculos dentes costurados em padrões como pequenas pérolas. Havia chapéus e véus, espartilhos com adagas escondidas, capas elaboradas, e sapatos altos e instáveis esculpidos no ébano e coral. Tudo era espalhafatoso, pesado e cruel. Para Sarai, eram as roupas que um monstro usaria se estivesse tentando se passar por humano.
O que estava bem perto da verdade. O monstro era Isagol, a deusa do desespero.
Sua mãe, morta há quinze anos.
Sarai tinha mil memórias de Isagol, mas nenhuma delas era sua. Ela era nova demais – tinha apenas dois anos quando aquilo aconteceu. Aquilo. O Massacre. Brilho de faca e sangue espalhando-se. O fim de um mundo e o começo de outro. As lembranças que tinha de sua mãe eram todas de segunda mão, emprestadas dos humanos que ela visitava à noite. Em alguns, a deusa estava viva, em outros, morta. Ela foi assassinada usando um vestido verde iridescente encrustado de jade e asas de besouro, e parecia-se tanto com Sarai que as visões de seu corpo eram como ver uma profecia de sua própria morte. Exceto pela faixa preta que Isagol pintava atravessando os olhos, de têmpora a têmpora, como uma máscara fina.
Sarai olhou para a prateleira de maquiagem e perfumes da mãe.
O pote de pigmento de negro de fumo estava bem ali, intocado todo esse tempo. Sarai não o usou pois não tinha vontade de se parecer ainda mais com a deusa do desespero do que já se parecia.
Ela concentrou-se nas camisolas. Precisava se vestir. Seda branca ou vermelha, ou preta decorada com vinho. Dourada ou verde-amarelada, ou rosa como o céu da aurora. Ela continuava ouvindo o eco das palavras de Rubi – não viveremos por tempo suficiente – e vendo na fileira de camisolas dois possíveis fins:
Em um deles, ela era assassinada e as camisolas ficavam sem uso. Humanos as queimavam ou rasgavam em pedaços, e a queimavam e rasgavam em pedaços também. No outro, ela viveria e passariam anos para vestir todas elas. Fantasmas lavavam-nas e penduravam-nas de volta, incontáveis vezes ao longo dos anos, e ela as usava uma a uma e, então, envelheceria usando-as.
Parecia tão artificial a ideia de envelhecer, que ela teve de admitir para si mesma, finalmente, que não tinha mais esperança no futuro do que Rubi.
Foi uma revelação brutal.
Ela escolheu a preta para combinar com seu humor, e retornou à galeria para o jantar. Rubi tinha voltado de seu próprio closet vestida com uma camisola tão transparente que bem podia ter continuado nua. Fazia pequenas chamas dançarem na ponta de seus dedos enquanto Feral estava inclinado sobre seu grande livro de símbolos, ignorando-a.
– Minya e Pardal? – Sarai perguntou a eles.
– Pardal continua no jardim, amuada com alguma coisa – disse Rubi, seu egocentrismo aparentemente admitindo que não tinha nenhuma pista sobre o que essa coisa poderia ser –, e Minya não apareceu.
Sarai ficou pensando nisso. Minya normalmente ficava esperando para amolá-la logo que ela saía do quarto. “Conte alguma coisa horrível”, ela dizia, com os olhos brilhantes, ansiosa por saber de sua noite. “Você fez alguém chorar? Fez alguém gritar?”. Por anos, Sarai ficou feliz de contar tudo a ela.
Não mais.
– Vou buscar Pardal – ela disse.
O jardim era um terraço amplo que se estendia pela largura da cidadela, encostado no corpo alto e indomável da estrutura de um lado, e descendo em uma queda abrupta de outro, limitada apenas por uma balaustrada na altura dos quadris. Arbustos que antes eram topiarias bem cuidadas haviam crescido e transformado-se em grandes árvores, e caramanchões de vinhas haviam se derramado além dos canteiros para subir desordenadamente pelas paredes e colunas e revestir a grade. A natureza florescia, mas não sozinha. Ela não poderia, não nesse lugar artificial. Era Pardal que a fazia florescer.
Sarai encontrou-a colhendo botões de anadne. Anadne era a flor sagrada de Letha, a deusa do oblívio. Destilada, ela produzia o lull, a bebida que Sarai tomava para impedi-la de sonhar.
– Obrigada por fazer isso – agradeceu Sarai.
Pardal olhou para cima e sorriu.
– Ah, eu não ligo. Grande Ellen disse que era tempo de um novo lote. – Ela deixou cair um punhado de flores em seu cesto e esfregou a palma da mão. – Mas gostaria que você não precisasse disso, Sarai. Gostaria que fosse livre para sonhar.
Sarai também queria isso, mas ela não era livre, e desejar não faria com que isso acontecesse.
– Posso não ter meus próprios sonhos – disse ela, como se não importasse muito –, mas tenho os sonhos de todo o mundo.
– Não é a mesma coisa. É como ler mil diários em vez de escrever o seu.
– Mil? – disse Sarai. – Mais parecido com cem mil. – Que era aproximadamente a população de Lamento.
– São tantos – disse Pardal, maravilhada. – Como você cuida deles?
Sarai deu de ombros.
– Não sei se cuido, mas dá para aprender bastante em quatro mil noites.
– Quatro mil. Nós estamos vivos há tanto tempo assim?
– Muito mais que isso, tonta.
– Para onde é que vão os dias? – Havia uma doçura no sorriso discreto de Pardal. Ela era tão doce quanto o perfume do jardim e tão gentil, e Sarai não podia deixar de pensar como o dom dela combinava perfeitamente com ela. Bruxa das Orquídeas, eles a chamavam. Ela sentia o pulsar da vida nas coisas e cuidava a fim de fazê-las crescer. Ela era, Sarai pensava, como a primavera destilada em uma pessoa.
O dom de Rubi também era uma extensão de sua natureza: fogueira, iluminando como um farol, queimando como um fogo selvagem fora de controle. E Minya e Feral, será que seus dons combinavam com eles? Sarai não gostava desse pensamento, porque, se fosse assim, se suas habilidades revelassem alguma verdade essencial sobre suas almas, o que diriam sobre ela?
– Eu estava pensando – disse Pardal –, como nossa vida acordada é como a cidadela. Fechada, quero dizer. Dentro de casa, sem céu. Mas sonhar é como o jardim. Você pode sair da prisão e sentir o céu à sua volta. Num sonho você pode estar em qualquer parte. Você pode ser livre. Você merece ter isso também, Sarai.
– Se a cidadela é nossa prisão – Sarai respondeu –, também é nosso santuário. – Ela tirou um botão branco do caule e deixou-o cair no cesto de Pardal. – É o mesmo com o lull. – Dormir podia ser uma terra devastada e cinza para ela, mas sabia o que estava à espreita além do círculo seguro do lull, e estava contente com o cinza. – Além disso, meus sonhos não seriam como um jardim. – Ela tentou não invejar o fato de que os de Pardal eram assim, ou que seu dom fosse tão simples e tão belo, enquanto o dela não era nada disso.
– Talvez um dia eles possam ser – respondeu Pardal.
– Talvez – disse Sarai, e a esperança nunca pareceu uma mentira tão grande. – Vamos jantar – falou, e entraram juntas.
– Boa noite, prole – Pequena Ellen os cumprimentou, carregando uma sopeira da cozinha. Como Grande Ellen, Pequena Ellen estava com eles desde o começo. Ela também havia trabalhado no berçário da cidadela, e com as duas Ellens, a distinção era necessária. Uma delas era maior no status e no tamanho, tanto foi assim que o próprio Skathis, o deus das bestas e lorde dos Mesarthim, tinha-as apelidado de grande e pequena Ellen.
Rubi soltou um suspiro pesaroso quando o jantar foi colocado à sua frente.
– Sopa de kimril. De novo. – Ela encheu a colher e deixou a sopa escorrer em seu prato. Era bege, com a consistência de água parada. – Você sabe o que é isso? É a sopa do purgatório. – Virando-se para Pardal, indagou: – Você não pode plantar algo novo para comermos?
– Eu certamente poderia – Pardal respondeu, com uma acidez em seu tom que não estava lá quando conversou com Sarai –, se meu dom fosse invocar sementes a partir do nada. – Ela tomou um gole delicado de sua colher. – O que não é.
Pardal podia fazer as coisas crescerem, mas tinha de ter algo a partir da qual começar. Na maior parte, os jardins da cidadela eram ornamentais – cheios de flores exóticas, com poucas coisas comestíveis. Era sorte deles que algum jardineiro há tempos houvesse feito um pequeno canteiro de ervas, verduras e alguns legumes, e era muita sorte que seu visitante esporádico, o grande pássaro branco, que eles chamavam de Aparição, por seu hábito de desaparecer em pleno ar, tinha derrubado alguns tubérculos de kimril no jardim uma vez, do contrário, teriam morrido de fome há muito tempo. Kimril era fácil de cultivar, nutritivo, embora quase sem sabor, e agora era a base da dieta monótona deles. Sarai perguntou-se se o pássaro sabia que aquilo tinha feito a diferença entre a vida e a morte para cinco abominações azuis, ou se tinha simplesmente sido um acaso. Ele nunca os trouxera mais nada, então ela supunha que havia sido um acaso.
Pardal cultivava a comida. Feral mantinha os barris de chuva cheios. Rubi também fazia sua parte. Não havia combustível para queimar, então ela queimava. Ela fazia o fogo que cozinhava as refeições e aquecia os banhos, e Minya, bem, ela era responsável pelos fantasmas, que faziam a maior parte do trabalho. Sarai era a única que não tinha parte nas tarefas mundanas dos seus dias.
Sopa do purgatório, ela pensou, mexendo na sua com a colher. A refeição mais simples possível, servida na porcelana mais fina, e apoiada sobre uma travessa elaborada de prata entalhada. Seu cálice também era de prata entalhado, com um desenho de galhos de mirantina entrelaçados. Há muito tempo, os deuses haviam bebido vinho nele. Agora, havia apenas água da chuva.
Há muito tempo, existiam deuses. Agora havia apenas crianças andando por aí com as roupas de baixo de seus pais mortos.
– Não dá mais – exasperou-se Rubi, derrubando a colher na sopa e espirrando na mesa e na sua nova camisola. – Não consigo colocar mais nenhuma colher desse mingau insípido na boca.
– Você precisa ser tão dramática? – Feral perguntou, ignorando sua colher para virar o prato e beber a dele. – Não é tão horrível. Pelo menos temos sal na despensa. Imagine quando ele acabar.
– Eu não disse que era horrível – explicou Rubi. – Se fosse horrível, não seria a sopa do purgatório, seria? Seria a sopa do inferno. O que teria de ser mais interessante.
– Ah-ham – concordou Pardal. – Da mesma forma que ser eternamente torturada por demônios é mais “interessante” do que não ser eternamente torturada por demônios.
Elas tinham um debate permanente sobre os méritos do que é “interessante”. Rubi afirmava que sempre valia a pena, mesmo se viesse com perigo e terminasse em destruição.
– O purgatório é mais do que não ser torturada – ela argumentou –, é não ser nada, nunca. Você pode não ser torturada, mas você também nunca será tocada.
– Tocada? – As sobrancelhas de Pardal ergueram-se. – Como foi que chegamos no toque?
– Você não quer ser tocada? – Os olhos de Rubi arderam vermelhos, e os cantos de seus lábios viraram-se para cima, maliciosos. Havia tamanho desejo em suas palavras, tamanha fome. – Você não gostaria de ter alguém para dar uma fugidinha e fazer coisas?
Pardal ficou vermelha com isso, um calor rosado subindo pelo azul de suas bochechas e dando a elas um tom violeta. Ela lançou um olhar para Feral, que não percebeu. Ele olhava para Rubi.
– Nem pense nisso – ele disse para ela, direto. – Você se aproveitou de mim o bastante por um dia.
Rubi revirou os olhos.
– Por favor. Aquilo foi um experimento que não vou repetir. Você beija muito mal.
– Eu? – ele perguntou. – Aquilo foi tudo você! Eu nem fiz nada...
– Foi por isso que foi terrível! Você deveria ter feito alguma coisa! Não é paralisia facial. É beijar...
– Parece mais se afogar. Nunca pensei que alguém pudesse produzir tanta saliva...
– Meus queridos, minhas víboras – veio a voz calmante de Grande Ellen, flutuando pela sala. Sua voz flutuava, e ela veio flutuando em seguida, sem tocar o chão. Não se preocupava com a ilusão de andar. Grande Ellen, mais do que qualquer outro fantasma, havia abandonado toda pretensão de mortalidade.
Os fantasmas não seguiam as mesmas leis que os vivos. Se eles apareciam exatamente como eram em vida, era porque escolhiam assim, quer por acreditarem que eram perfeitos assim, ou por medo de perderem sua última pedra angular com a realidade na forma de seu próprio rosto familiar, ou – no caso de Kem, o criado – porque simplesmente não tiveram a ideia de mudar. Entretanto, isso era relativamente raro. A maioria deles, com o tempo, fazia pelo menos alguns pequenos ajustes à sua forma de fantasma. Pequena Ellen, por exemplo, tinha, quando viva, apenas um olho (o outro havia sido extraído por uma deusa de mau humor). Na morte, ela o restaurou, e fez seus dois olhos maiores e com cílios mais espessos na barganha.
Mas era Grande Ellen a verdadeira mestra do estado pós-morte. Sua imaginação era um instrumento de encantamento, e ela criou, a partir da matéria de sua condição de fantasma, uma expressão sempre mutável de seu maravilhoso eu.
Esta noite ela usava um ninho de pássaros como coroa, e um elegante pássaro verde empoleirado nele, cantando. Era apenas uma ilusão, mas uma ilusão perfeita. Seu rosto era mais ou menos o seu próprio: um rosto de matrona, bochechas altas, vermelhas e redondas – “bochechas de felicidade”, Sarai assim as chamava –, mas no lugar de seus cabelos brancos como lã, havia folhas, derramando-se atrás dela como se pegas por uma brisa. Ela colocou uma cesta de biscoitos na mesa. Biscoitos de flor de kimril, tão insossos quanto a sopa.
– Chega de resmungar e rosnar – ela disse. – Que história é essa de beijar?
– Ah, nada – respondeu Feral. – Rubi só tentou me afogar com saliva. Pensando nisso, alguém viu Kem ultimamente? Ele não está morto em uma poça de saliva em algum lugar, está?
– Bem, ele está com certeza morto – observou Sarai. – Eu não saberia dizer sobre a saliva.
– Provavelmente esteja se escondendo – disse Rubi –, ou talvez implorando a Minya para libertá-lo de seu tormento.
Rubi não se intimidou.
– Diga o que quiser. Ele adorou. Aposto que está escrevendo um poema sobre isso.
Sarai deixou escapar uma risada abafada por causa da ideia de Kem escrever um poema. Grande Ellen suspirou.
– Esses lábios vão lhe causar problemas, minha bela chama.
– Espero que sim.
– A propósito, onde está Minya? – perguntou Grande Ellen, olhando para a cadeira vazia da menina.
– Achei que ela pudesse estar com você – disse Sarai.
Grande Ellen balançou a cabeça.
– Não a vi o dia inteiro.
– Eu chequei os aposentos dela – disse Rubi. – Ela também não estava lá.
Todos se entreolharam. Não era como se alguém pudesse se perder na cidadela – não a menos que pulasse do terraço. E Sarai achava que, entre os cinco, Minya era a menos capaz de fazer isso.
– Onde ela poderia estar? – indagou Pardal.
– Não a tenho visto muito ultimamente – disse Feral. – Me pergunto onde ela pode estar passando seu tempo.
– Vocês estão sentindo a minha falta? – perguntou uma voz atrás deles. Era uma voz de criança, brilhante como um sino e tão doce quanto açúcar de confeiteiro.
Sarai virou-se, e lá estava Minya na porta. Uma criança de seis anos, pelo menos na aparência, ela era suja, de rosto redondo e membros finos. Seus olhos eram grandes e brilhantes, como só os de uma criança ou de espectrais poderiam ser, menos a inocência de ambos.
– Onde você estava? – Grande Ellen perguntou.
– Apenas fazendo amigos – respondeu a menina. – Estou atrasada para o jantar? O que é? Não é sopa de novo.
– Foi o que eu disse – cantarolou Rubi.
Minya deu um passo à frente, e ficou claro o que ela queria dizer com “fazendo amigos”.
Havia um fantasma atrás dela, como se fosse um bicho de estimação. Ele tinha acabado de morrer, seu rosto ainda chocado, e Sarai sentiu um aperto na garganta. Mais um não.
Ele moveu-se no rastro de Minya, rígido, como se lutando contra uma compulsão. Ele podia resistir o quanto quisesse. Era dela agora, e não adiantava lutar para resgatar seu livre-arbítrio. Este era o dom de Minya. Ela pescava espíritos no ar e obrigava-os a servi-la. Assim a cidadela estava servida pelos mortos: uma dúzia de serviçais para atender às necessidades de cinco crianças que não eram mais crianças.
Ela não tinha um apelido, da forma que Feral era o Ladrão de Nuvens, Rubi era a Fogueira e Pardal era a Bruxa das Orquídeas. Sarai tinha um nome também, mas Minya era apenas Minya, ou “patroa” dos fantasmas que ela prendia nas teias de ferro da vontade.
Era um poder extraordinário. Depois da morte, as almas eram invisíveis, incorpóreas e efêmeras, durando alguns dias se muito entre a morte e a evanescência, durante os quais elas podiam apenas apegar-se a seus corpos ou vagar sem rumo até sua dissolução final – a menos, é claro, que Minya os pegasse e cuidasse deles. Eles eram tornados sólidos pela ligação com ela – substância e matéria, no lugar de carne e sangue. Tinham mãos para trabalhar, bocas para beijar. Podiam falar, dançar, amar, odiar, cozinhar, ensinar, fazer cócegas, e até ninar bebês à noite, mas apenas se Minya permitisse. Eles estavam sob controle dela.
Este era um homem, ainda com a aparência de seu corpo carnal. Sarai o conhecia. É claro que sim. Ela conhecia as pessoas de Lamento melhor do que ninguém, incluindo seus líderes, incluindo a sacerdotisa. Eles eram seu trabalho sombrio, eram suas noites. Cedo ou tarde todos morreriam e iriam se encontrar à mercê de Minya, mas enquanto vivessem, era a misericórdia de Sarai que importava.
– Diga-nos seu nome – Minya ordenou ao fantasma.
Ele rangeu os dentes, engasgando para guardar o nome para si. Segurou-se por quatro ou cinco segundos e parecia exausto, porém, determinado. Não entendeu que Minya estava brincando com ele, que estava lhe permitindo livre-arbítrio suficiente para acreditar que tinha uma chance contra ela. Era cruel, como abrir uma gaiola para o pássaro voar, mas deixá-lo preso pela perna, e a liberdade ser apenas uma ilusão. Minya comandava uma dúzia de fantasmas o tempo todo, mesmo enquanto dormia. Seu poder sobre eles era total. Se ela quisesse que ele dissesse seu nome, ele o diria. Se ela quisesse que ele cantasse, ele cantaria. Nesse momento, ela se divertia deixando-o pensar que podia resistir a ela.
Sarai não disse nada, não podia ajudá-lo. Ela não queria. Ele a mataria se pudesse, e aos outros também. Se estivesse vivo, ele os picaria em pedacinhos com as próprias mãos.
E ela não podia realmente culpá-lo por isso.
Por fim, Minya arrancou-lhe o nome dos lábios.
– Ari-Eil! – ele disse, soltando o ar.
– Você é jovem – disse Rubi, que estava fixada nele com um interesse incomum. – Como morreu? Alguém o matou? – ela perguntou, em um tom parecido com o que perguntaria de sua saúde.
Ele a fitou com puro horror, seus olhos passando de Rubi para Feral, para Pardal e Sarai, tentando processar a visão de seus corpos azuis.
Azul. Tão azul quanto a tirania, a escravidão e os monstros nas ruas. Seus olhos cruzaram com os de Sarai por um longo e trêmulo momento e ela sabia o que ele estava vendo. Isagol, a Terrível, renascida dos mortos. Mas o rosto de Sarai era jovem demais, e devia parecer nu sem a faixa preta pintada nos olhos. Ela não era Isagol. Ela viu o momento em que ele percebeu isso: o que ela era, e não quem. O que todos eles eram.
– Cria dos deuses – ele sussurrou, e Sarai sentiu a repugnância tão fortemente como se ela também tivesse a substância dada pela ligação com Minya. O ar ficou escorregadio. Rançoso. Ele balançou a cabeça e espremeu os olhos, como se pudesse negar a existência deles. Aquilo servia como uma afirmação, e nada mais. Cada novo fantasma que recuava diante deles em choque provava que ainda não haviam quebrado a Regra.
A Regra, a única. Autoimposta, ela continha, em sua simplicidade, inúmeras proibições. Se eles vivessem mil anos, ainda estariam descobrindo novas coisas que não deveriam fazer.
Nenhuma evidência de vida.
Era este: o mantra de quatro palavras que governava sua existência. Eles não deveriam revelar nenhuma evidência de vida. A todo custo, a cidadela deveria parecer abandonada. Eles deveriam continuar escondidos e não dar aos humanos nenhuma pista de que estavam ali, ou de que, inconcebivelmente, cinco abominações haviam sobrevivido ao Massacre e criado uma existência ali por quinze anos.
Nessa reação do fantasma, eles viram que tudo ia bem, que ainda eram um segredo: os frutos da carnificina, que escaparam de dedos sangrentos.
– Vocês estão mortos – o homem afirmou, quase implorando para que fosse verdade. – Nós os matamos.
– Quanto a isso... – disse Rubi.
Minya deu um puxão na coleira invisível do fantasma, que o derrubou no chão, de joelhos.
– Nós não estamos mortos – ela disse – Mas você está.
Ele já devia saber disso, mas as palavras foram como um soco. Ele olhou em volta, absorvendo tudo: esse lugar que ele conhecia apenas de seus piores pesadelos.
– Aqui é o inferno? – ele indagou, rouco.
Rubi riu:
– Quem dera! Bem-vindo ao purgatório. Aceita uma sopa?
14
BELA E CHEIA DE MONSTROS
Lazlo apertou sua lança e moveu-se lentamente pela areia do deserto, Ruza à sua esquerda, Tzara à direita. Os dois Tizerkane também carregavam lanças, e embora Ruza estivesse ensinando-o a usá-la, Lazlo ainda se sentia como um impostor.
– Não serei de nenhuma ajuda se tiver que usá-la – afirmou, antes de saírem à caça.
A criatura que buscavam era uma coisa saída das histórias. Ele nunca havia imaginado que elas eram reais, muito menos que iriam atrás de uma.
– Não se subestime, faranji – Ruza respondeu, sua voz cheia de conforto. – Sempre posso empurrá-lo para a boca da criatura e correr. Então você terá salvado minha vida e nunca esquecerei.
– Legal! – disse Lazlo. – Esse é exatamente o tipo de heroísmo que me inspirou a brincar de Tizerkane quando eu era criança.
– Não vai dar em nada – Tzara interrompeu, empurrando Ruza. – Vamos só cutucá-la. Você só pode apreciar uma threave depois de ter visto uma. É só isso.
Apenas cutuque. Cutuque um monstro. E então?
– Veja o horror – Eril-Fane havia dito, aprovando a excursão. A caravana havia ajustado seu curso para dar à coisa um amplo espaço para se mover, mas Ruza queria que Lazlo visse as espécies mais horrendas do Elmuthaleth. As threaves eram predadores de emboscada. Elas entocavam-se sob a areia e ficavam esperando, por anos até, para que as presas passassem, e só eram uma ameaça se você tivesse o azar de andar sobre uma. Mas graças aos gaviões de threave da caravana, eles sabiam exatamente onde a coisa estava.
Baixo no céu, um dos pássaros voou em círculos para marcar o lugar onde a threave estava enterrada. As caravanas sempre empregavam falcoeiros com pássaros especiais que podiam sentir o fedor das criaturas e evitá-las – e, ocasionalmente, caçá-las, como faziam agora, embora sem intenção de matar. Estavam a apenas vinte metros da criatura, e a nuca de Lazlo ardia. Ele nunca havia perseguido nada antes.
– Ela sabe que estamos chegando – disse Ruza –, pois pode sentir as vibrações de nossos passos. Deve estar ficando excitada. Sua boca se encherá de suco digestivo, quente e borbulhante. Será como cair numa banheira se ela o comer. Um banho realmente horrível.
Ele era o mais novo dos Tizerkane, tinha apenas dezoito anos, e foi o primeiro a dar boas-vindas a Lazlo. Não que qualquer um deles o tenha feito se sentir mal recebido. Era apenas que Ruza tinha uma natureza ansiosa – ansiosa para provocar, mais do que qualquer outra coisa –, e tomou para si a tarefa de ensinar a Lazlo as habilidades básicas, tais como montar, atirar lanças, xingar. Ele era um bom professor de línguas, principalmente porque falava muito, mas não era confiável – como Lazlo descobriu cedo quando perguntou a Azareen, a segunda-em-comando de Eril-Fane, o que revelou não ser a frase “posso ajudar você com isso?”, mas sim “você quer sentir o cheiro das minhas axilas?”.
Ela recusou.
Isso foi no começo. Sua língua perdida melhorou o bastante para saber quando Ruza estava tentando enganá-lo – o que acontecia na maior parte do tempo.
– Xiu! – disse Tzara. – Observe a areia.
Lazlo observou. O falcão desenhou um círculo com sua sombra, mas ele não viu sinal da besta enterrada. Não havia nada que distinguisse a areia dali da areia em qualquer outro lugar.
De repente, Tzara parou.
– Você gostaria de fazer as honras? – ela perguntou. Ela era outra guerreira jovem. Seu rosto era liso e bronzeado, com um nariz nobre e uma cicatriz dividindo a sobrancelha direita. Ela tinha os cabelos raspados, exceto por uma faixa de alguns centímetros no centro da cabeça, que deixava longa e entrelaçada em uma única trança.
– Honras? – perguntou Lazlo.
Ela entregou-lhe uma pedra.
– Apenas atire a pedra.
Lazlo segurou a lança em uma mão e a pedra na outra. Olhou para o trecho de areia e a sombra do pássaro rodeando, respirou fundo e... atirou a pedra, fazendo um arco no ar. E... ele esperava que algo acontecesse. Esperava até que fosse monstruoso, mas talvez não houvesse como se preparar para seu primeiro monstro. No instante em que a pedra atingiu a superfície da areia, o chão do deserto sofreu uma erupção.
Areia voou. Ela pinicou seu rosto e entrou em seus olhos de forma que a coisa que se levantou na frente dele à primeira vista era apenas uma névoa grande e eriçada. Ele deu um salto para trás, a lança pesando em sua mão, e conseguiu tropeçar nos próprios pés e cair sentado com um baque. Ruza e Tzara não caíram, nem mesmo ergueram as lanças, e ele imitou essa calma, limpou a areia dos olhos, e observou.
Era como uma aranha imensa, pensou, sua mente em busca de comparações que fizessem sentido com a coisa. Mas não fazia muito sentido. Podia lembrar um grande abdômen inchado com pernas, mas as proporções estavam erradas. As pernas eram curtas demais, e não podiam levantar o peso da criatura. Não eram pernas de jeito nenhum, Lazlo percebeu. Eram quelíceras.
Partes da boca.
Elas estavam movendo-se selvagemente – uma dúzia de apêndices pretos do tamanho de seus próprios braços e com pinças para pegar presas e arrastá-las em direção à... sua boca.
Lazlo não sabia dizer o quanto da threave estava enterrada ainda na areia, mas de onde podia ver, ela era feita quase inteiramente de boca. Não tinha nem olhos, apenas um grande e pulsante esfíncter, aberto, cheio de dentes, quente e vermelho. As quelíceras retorciam-se, buscando uma presa, e o papo-esfíncter sofria espasmos, dentes abrindo e fechando, procurando algo para morder. Não encontrando nada, ela soprou uma explosão de ar quente repleto de algo malcheiroso – os sucos digestivos que Ruza havia mencionado?
Como um “banho realmente horrível”, de fato. Lazlo teve de se perguntar quantos aventureiros, cruzando o deserto sem o benefício dos falcões de threave, haviam terminado sua aventura em mandíbulas como esta. “A armadilha da natureza”, Ruza a chamava, e eles deixaram-na lá, ilesa, para esperar a próxima onda de aventureiros faranji tolos o bastante para tentar a travessia.
Eles juntaram-se novamente à caravana, que havia parado para levantar acampamento.
– E então? – perguntou Eril-Fane. – O que tem a dizer sobre as threaves?
– Preciso atualizar minha lista de “jeitos que espero não morrer” – respondeu Lazlo.
Eril-Fane riu.
– De fato. Nós podíamos ter vindo para o oeste antes, mas ninguém havia treinado um falcão de threave em duzentos anos. Decidimos esperar até que essa arte fosse dominada.
– Decisão sábia – afirmou Lazlo. Duzentos anos. O primeiro mistério de Lamento, aquele que abriu sua mente como a uma porta. “Minha cidade perdeu o mundo, e ficou perdida para ele”, Eril-Fane dissera em Zosma. Lazlo estivera em sua companhia diariamente desde então, e não estava perto de saber o que isso significava.
Logo, contudo.
Amanhã.
– Vou colocar as redes de neblina – ele disse.
– Não precisa – Eril-Fane respondeu. Ele estava esfregando seu espectral, Syrangelis. – Temos água suficiente para amanhã.
As redes eram feitas para retirar a condensação do ar frio da noite, e eram uma fonte suplementar importante de água no Elmuthaleth. Era a última noite de travessia e a água nas peles duraria até que atingissem seu destino. Lazlo ergueu os ombros.
– Não há nada como neblina recém-coletada – respondeu, e saiu para montar as redes mesmo assim. A água nas peles já tinha dois meses e, além disso, ele tinha se acostumado ao trabalho – que envolvia uma marreta de madeira dura para enfiar estacas na areia. Isso o soltava depois de um dia longo na sela, e embora ficasse envergonhado em admitir, gostava da mudança que o trabalho tinha feito em seu corpo. Quando tirou seu chaulnote branco para tomar banho – ou o que se passava por “banho” no deserto, ou seja, esfregar a pele com uma mistura de areia e raiz de negau pulverizada – havia uma rigidez e contorno que não estavam lá antes.
Até suas mãos não pareciam suas hoje em dia. Antes, ele tinha um único calo, de segurar a caneta. Agora, as palmas estavam duras e o dorso das mãos estava tão bronzeado quanto seu rosto. Seus olhos acinzentados pareciam alguns tons mais claros pelo contraste com a pele escurecida, e os meses de viajar ao sol não tinham lhe rendido só linhas de expressão. Eles haviam mudado o formato de seus olhos, deixando-os mais estreitos contra a luz, e alterado a linha de sua fronte, puxando-a para frente e costurando-a entre as sobrancelhas em um único sulco. Essas pequenas mudanças lavraram uma grande transformação, substituindo sua incerteza de sonhador por uma intensidade de caçador.
Esse era o poder de meio ano de horizontes.
Lazlo tinha razão em afirmar que, agora, ele tinha pouca semelhança com o bibliotecário júnior que saiu cavalgando de Zosma seis meses antes com os Tizerkane. Na verdade, quando os delegados reuniram-se em Alkonost para atravessarem o deserto juntos, Thyon Nero não o reconheceu.
Fazia quatro meses que haviam se visto pela última vez e, para a surpresa de Lazlo, o afilhado dourado tinha passado por ele várias vezes no caravançará antes de perceber, com um susto visível, quem ele era.
Com seus longos cabelos castanhos e chaulnote branco com capuz, cavalgando um espectral com panache e falando a língua perdida como se sua voz rouca fosse feita para ela, Lazlo podia quase se passar por um Tizerkane. Era difícil acreditar que ele era o mesmo sonhador infeliz que costumava andar de encontro às paredes enquanto lia.
Horizontes em vez de livros. Cavalgar em vez de ler. Era uma vida diferente lá fora, mas não se engane: Lazlo era o mesmo sonhador que sempre fora, talvez até mais. Ele pode ter deixado seus livros para trás, mas carregava todas as histórias consigo, para fora dos recantos iluminados por glaves da biblioteca em direção a paisagens muito mais adequadas para elas.
Como esta.
Ele endireitou a rede de neblina e espiou a Cúspide por cima dela. Primeiro, achou que fosse uma miragem. No meio do Elmuthaleth, o céu encontrava-se com o chão em um círculo ininterrupto, plano e sem saliências, até onde os olhos podiam ver. Viajar por meio dele, dia após dia, por semanas, acampar e levantar acampamento a cada entardecer e alvorecer com uma semelhança que fundia os dias em uma névoa, isso desafiava a mente a acreditar que podia terminar. Quando o primeiro brilho apareceu a distância, pensou que fosse uma ilusão, como os lagos que, às vezes, eles viam que desapareciam à medida que se aproximavam, mas essa não tinha desaparecido. Durante os últimos dias ela tinha passado de um traço pálido no horizonte e transformado-se na... bem, na Cúspide, o que quer que a Cúspide fosse.
Ela formava a fronteira leste do Elmuthaleth, e os outros faranji contentavam-se em chamá-la de cadeia de montanhas, mas ela não se parecia com uma cadeia de montanhas. Não tinha picos. A formação inteira – um tipo de monte imenso – era branca, do chão pardo do deserto até o azul do céu. Ela parecia um cristal leitoso, ou talvez gelo.
Ou... parecia o que os mitos diziam que era.
– Quase lá. Difícil de acreditar.
Era a voz de Calixte. Ela era uma das outras faranji. Chegando atrás de Lazlo para compartilhar a vista, ela empurrou para trás o capuz de seu chaulnote para revelar a cabeça bonita e pequena. Ela estava nua como um ovo da primeira vez que Lazlo a viu – raspada forçosamente, como sua própria cabeça havia sido antes, e com a mesma rudeza –, mas, agora, seus cabelos estavam crescendo. Era uma penugem castanha macia como a plumagem de uma avezinha. Seus machucados haviam desaparecido há tempos, mas ela ainda tinha cicatrizes onde as algemas tinham deixado seus pulsos e tornozelos em carne viva.
Calixte não só era a primeira garota que Lazlo considerou amiga, mas também a primeira criminosa.
– Nesse horário amanhã... – disse ele. Não precisava terminar o pensamento. A ansiedade era palpável. Nesse horário amanhã eles estariam lá. Subiriam pela trilha que atravessava o Forte Misrach até o topo da Cúspide, e colocariam os olhos pela primeira vez no que estava além dela.
Lamento.
– Última chance para o “uma teoria” – disse Calixte. Seu caderno roto estava em suas mãos. Ela o levantou e sacudiu como se fosse uma borboleta.
– Você não desiste, não é?
– É o que dizem. Veja, ainda resta uma página – ela mostrou a ele. – Guardei para você.
– Você não deveria.
– Sim, eu deveria. Não pense que vou deixar você chegar até a Cúspide sem me dar pelo menos uma.
Uma teoria.
Quando os delegados encontraram-se em Alkonost, tinham imaginado que seriam informados do motivo de sua jornada. A natureza do “problema” de Lamento. Eles tinham esse direito, é claro, depois de ir tão longe. E quando Eril-Fane levantou-se na cabeceira da mesa em sua primeira refeição conjunta, eles esperaram com uma expectativa silenciosa pela informação que lhes era de direito. Na manhã seguinte, colocariam os pés no terrível Elmuthaleth. Era apenas justo que soubessem o porquê – e, preferencialmente, enquanto ainda pudessem voltar se assim escolhessem.
– Em seu tempo entre nós – Eril-Fane lhes disse –, vocês serão convidados a acreditar em coisas que neste momento achariam impossíveis de acreditar. Vocês são homens e mulheres racionais que acreditam no que podem ver e provar. Nada será ganho contando a vocês agora. Pelo contrário. Vocês descobrirão que o vazio implacável do Elmuthaleth tem um jeito de amplificar o que se passa em suas mentes. Prefiro amplificar sua curiosidade do que seu ceticismo.
Em outras palavras: é uma surpresa.
E, assim, foram em mistério, mas não sem ressentimento e muita especulação. A travessia fora difícil, desanimadora e monótona, física e mentalmente exaustiva. A bolsa de teorias foi ideia de Calixte, e uma boa ideia. Lazlo viu como deu aos outros uma faísca de vida, para jogar uma espécie de jogo, ter algo para ganhar. Não fazia mal que eles gostassem de ouvir a si mesmos falar, e isso lhes dava uma oportunidade. Era simples: você tentava adivinhar qual era o problema, e Calixte escrevia em seu livro. Você podia fazer quantas teorias quisesse, mas cada uma custava dez pratas, pagas para a bolsa, que era uma coisa esfarrapada de brocado verde velho com um broche espalhafatoso. Calixte disse que foi de sua avó, mas também disse que veio de uma família de assassinos – ou de uma família de acrobatas, dependendo de seu humor – então era difícil de saber em que acreditar.
Uma vez que chegassem a Lamento e tudo fosse revelado, quem quer que tivesse chegado mais perto na adivinhação ganharia a bolsa – que já tinha cerca de quinhentas pratas, e estava estourando em suas costuras verdes puídas.
Lazlo não escreveu uma teoria sequer no livro.
– Não deve haver nenhuma ideia que ainda não foi escrita – ele argumentou.
– Bem, não há mais nenhuma ideia chata que não tenha sido escrita, isso é certeza. Se eu ouvir mais uma variação masculina da teoria da conquista, posso me matar. Mas você pode fazer melhor. Você sabe que pode. É um contador de histórias. Sonhe alguma coisa louca e improvável – ela implorou. – Alguma coisa bela e cheia de monstros.
– Bela e cheia de monstros?
– Todas as melhores histórias são assim.
Lazlo não discordou. Ele fez um ajuste final na rede e se voltou para o acampamento.
– No entanto, não é um concurso de histórias.
Calixte o seguiu.
– Mas é. É um concurso de história real, e acho que a verdade deve ser mais estranha do que aqueles lá são capazes de sonhar. – Ela apontou com o caderno em direção ao centro do acampamento, onde o resto dos faranji estavam reunidos esperando o jantar. Desde o início eles se estabeleceram no papel de convidados – a maioria deles – e estavam contentes de não fazer nada enquanto os condutores da caravana e os Tizerkane – e Lazlo – faziam todo o trabalho. Eles já haviam coberto seus chaulnotes leves com os mais pesados de lã para se protegerem do frio da noite – prova de que nenhuma caloria de energia foi convertida em calor por meio do trabalho respeitável. Com seus capuzes levantados e suas idas e vindas sem propósito, Lazlo achou que pareciam um bando de fantasmas na hora do café.
– Talvez não – ele concedeu.
– Então cabe a você – disse Calixte. – Você não pode evitar ter uma ideia estranha. Qualquer ideia que tiver será uma ideia Estranha. Entendeu?
Lazlo deu risada. Normalmente, as brincadeiras com seu nome não eram tão bem-humoradas.
– Eu não sou membro da delegação – ele a lembrou. O que ele era? Contador de histórias, secretário e faz-tudo, nem Tizerkane nem delegado, apenas alguém que foi atrás de um sonho.
– Mas você é um faranji – ela rebateu. E isso era verdade, embora ele não se encaixasse com o resto deles. Ele chegou às cidades montado em um espectral, afinal, e a maioria deles achou que ele era de Lamento – pelo menos, até Thyon Nero livrá-los dessa ideia.
“Ele é apenas um camponês órfão de Zosma, vocês sabem”, dissera ele, caso se sentissem tentados a demonstrar qualquer coisa parecida com respeito por Lazlo.
– Mesmo se eu ganhar – Lazlo disse a Calixte –, os outros apenas dirão que eu já sabia da resposta de Eril-Fane.
– Não ligo para o que eles dirão – Calixte respondeu. – O jogo é meu. Eu decido o vencedor, e eu acredito em você.
Lazlo ficou surpreso pela força de sua gratidão – ser acreditado, mesmo por uma ladra de túmulos de uma família de assassinos, ou acrobatas, dependendo de seu humor.
Calixte, como ele, não se encaixava entre os demais. Mas ela, diferentemente dele, era membro da delegação. A integrante mais inusitada, talvez, e a menos esperada. Ela foi uma surpresa até para Eril-Fane, que havia ido a Syriza procurar um construtor, não uma acrobata.
Era seu primeiro destino depois de Zosma e, assim, a primeira experiência de Lazlo como secretário do Matador de Deuses tinha sido o recrutamento de Ebliz Tod, construtor de Espiral de Nuvem, a estrutura mais alta do mundo. E que estrutura. Ela parecia uma concha fina, pontuda e enorme, ou um chifre de unicórnio saindo da terra, e dizia-se que tinha mais de cento e oitenta metros. Era uma espiral simples e elegante, sem janelas e adornos. Syriza era conhecida por suas espirais, e essa era a rainha de todas elas.
Eril-Fane ficou impressionado e concordou com todas as demandas de Ebliz Tod para atraí-lo para Lamento. Um contrato formal foi preparado por Lazlo, em sua competência oficial, e assinado, e a comitiva da cidade perdida estava pronta para continuar sua jornada quando Lazlo mencionou uma fofoca que havia ouvido:
De que uma garota havia escalado a Espiral de Nuvem.
– Sem cordas – ele contou a Eril-Fane. Apenas com suas mãos e pés descalços, apoiada na única fenda que percorria a torre em espiral, desde a base até o topo.
– E ela chegou ao topo? – Eril-Fane queria saber, espremendo os olhos para olhar a torre e avaliar a viabilidade de tal feito.
– Dizem que sim. Aparentemente, colocaram-na na prisão por causa disso.
– Prisão? Por subir numa torre?
– Por violar um túmulo – Lazlo corrigiu.
Não importava que o homem que a havia construído ainda estivesse vivo, a Espiral de Nuvem era um túmulo real, e toda forma de luxo havia sido disposta nela para o conforto pós-morte do rei. Além do óculo no topo (para a “respiração das almas”), havia apenas uma entrada. Ela nunca era deixada sem guardas, mas quando um tesoureiro entrou na tumba com seus braços cheios de itzal (jarros contendo as almas de animais, sendo que a prática do itzal de escravos e do itzal de esposas foi – felizmente – abolida), encontrou uma garota sentada de pernas cruzadas no sarcófago encrustado de joias, fazendo malabarismo com esmeraldas.
Ela confirmou que tinha escalado a espiral e entrado pelo óculo, mas disse que não tinha ido para roubar. Estava apenas praticando seu malabarismo, disse. Qualquer um não faria o mesmo? Quando Eril-Fane foi à prisão – e encontrou uma criança abandonada careca, machucada e com algemas enferrujadas, faminta e defendendo-se com um prego –, ele perguntou por que ela tinha feito aquilo, e ela respondeu com orgulho: “porque eu posso”.
E Lazlo supôs que esse também devia ser o motivo que a trouxe junto com eles: porque ela podia escalar uma torre de cento e oitenta metros apenas com suas pequenas mãos e pés descalços. Ele não sabia por que essa habilidade podia ser valiosa. Era uma peça de um quebra-cabeça.
Ebliz Tod: um homem que podia construir uma torre.
Calixte Dagaz: uma garota que podia escalar uma.
Thyon Nero: o alquimista que havia destilado o azoth.
Jonwit Belabra: matemático.
Phathmus Mouzaive: filósofo natural, gostava de declarar que seu campo era nada menos do que “as leis físicas do universo”, mas cujo foco, na realidade, era algo mais específico: campos magnéticos.
Kae Ilfurth: engenheiro.
Os Fellerings: metalúrgicos, irmãos gêmeos.
Fortune Kether: artista – renomado publicamente por seus afrescos e, em particular, pelas catapultas que projetou para reis em guerras.
Drave: apenas Drave, chamado de explosionista, cujo trabalho era montar cargas de dinamite em minas, e cujos créditos incluíam explodir o flanco de montanhas.
Soulzeren e Ozwin Eoh, um casal: ela, mecânica, ele, botânico e agricultor, que juntos inventaram um veículo que chamaram de trenó de seda. Um veículo que podia voar.
Esses eram os delegados do Matador de Deuses. Informados apenas de que o problema em Lamento era “a sombra de um tempo sombrio”, a única pista real que tinham para suas teorias era... eles mesmos. A resposta, concluíram, devia ser encontrada em alguma configuração de suas áreas de expertise. Trabalhando ao revés, que tipo de problema essas habilidades podiam solucionar?
Como Calixte tinha lamentado, a maioria das teorias eram marciais, envolvendo conquista, armas e defesa. Lazlo podia entender o porquê – catapultas, explosivos e metal sugeriam tal direção –, mas ele não achava que seria nada parecido com isso. Eril-Fane havia dito que o problema não lhes representava perigo, e ele não podia imaginar que o general dos Tizerkane deixaria sua cidade por tanto tempo se estivesse sob uma ameaça. Mas algo, ele havia dito, ainda os assombrava. Ele havia usado essa palavra. Assombrar. Apenas Lazlo havia considerado que seu significado podia ser literal. Imaginou que havia fantasmas. Matador de Deuses. Os fantasmas de deuses mortos? Ele não colocaria isso no livro de Calixte. Por um lado, aquelas pessoas dificilmente seriam chamadas para tratar de um dilema assim, e, por outro, porque ririam dele se ele escrevesse.
Foi esse o motivo pelo qual ele não tinha dado uma teoria, por que tinha medo de ser zombado? Não. Ele achou que era porque queria que Calixte estivesse certa: que a verdade fosse algo mais estranho do que qualquer coisa que pudessem imaginar. Ele não queria adivinhar a resposta, nem mesmo por quinhentas pratas. Queria subir no topo da Cúspide amanhã, abrir os olhos e ver.
– No momento em que vocês virem a cidade – Eril-Fane havia prometido –, entenderão qual é o problema.
No momento em que virem a cidade.
No momento.
Qualquer que fosse o problema, ficaria claro em um olhar. Essa era outra peça do quebra-cabeça, mas Lazlo não queria pensar nisso.
– Não quero adivinhar – ele disse a Calixte. – Quero ser surpreendido.
– Então seja surpreendido! – ela disse, exasperada. – Você não precisa acertar, só precisa dar uma sugestão interessante.
Eles estavam de volta ao acampamento. As tendas baixas de lã haviam sido erguidas, e os Tizerkane haviam prendido os espectrais em uma estrutura maior da mesma lã cozida. Os camelos, com seus mantos peludos, passavam as noites sob o frio das estrelas. Os condutores os haviam descarregado, colocando os fardos em um quebra-ventos, embora até então a noite estivesse calma. A pluma de fumaça do fogo erguia-se como as cordas encantadas do mercado em Alkonost que ficavam suspensas no ar enquanto meninos pequenos subiam e desciam delas.
Os faranji ainda estavam esperando pelo jantar. Havia aves de rapina no céu, circulando e crocitando sons horríveis que Lazlo imaginava que podiam ser traduzidos como morram para que possamos comê-los.
Eril-Fane soltou um falcão mensageiro, que subiu entre as aves, gritando o alerta de uma ave de rapina antes de sair em direção à Cúspide. Lazlo observou-o ir, e isso, mais do que qualquer outra coisa, fez com que ele percebesse a proximidade de seu destino.
A inacreditável iminência de seu sonho impossível.
– Tudo bem – ele disse a Calixte. – Você venceu.
Ela virou a cabeça para trás e ululou, e todo mundo no acampamento virou-se para olhar.
– Silêncio, sua assombração – ele disse, rindo. – Eu lhe darei uma teoria, tão louca e improvável quanto eu puder inventar.
– E bela e cheia de monstros – ela o lembrou.
– E bela e cheia de monstros – ele concordou, e então soube o que ia dizer a ela.
Era a história mais antiga do mundo.
15
A HISTÓRIA MAIS ANTIGA DO MUNDO
O serafim era o mito mais antigo do mundo. Lazlo havia lido todos os livros sobre folclore na Grande Biblioteca, cada pergaminho, cada canção e saga que haviam sido transmitidos de voz em voz ao longo de séculos de tradição oral para finalmente ser capturados em papel, e esse era o mais antigo. Ele datava de vários milênios – talvez até sete – e era encontrado em quase todas as culturas – inclusive na da Cidade Perdida, onde os seres eram adorados. Eles podiam ser chamados de enkyel, anjelin, anjos, s’rith, serifain ou serafim, mas a história central permanecia a mesma, e era a seguinte:
Eles eram seres de extrema beleza com asas de fogo sem fumaça – três homens e três mulheres – e há muito, muito tempo, antes que o tempo tivesse nome, desceram dos céus.
Vieram para olhar e ver que tipo de mundo era, e encontraram um solo rico e mares calmos, plantas que sonhavam que eram pássaros e subiam até as nuvens com folhas como asas. Eles também encontraram os ijji, uma raça enorme e terrível que mantinha os humanos como escravos, bichos de estimação ou alimento, dependendo da versão da história. Os serafins tiveram pena dos humanos, e por eles mataram os ijji, todos, e empilharam os mortos à beira do grande mar de poeira e queimaram-nos em uma pira do tamanho de uma lua.
E, assim, dizia a história, foi como os homens ganharam a supremacia sobre o mundo que era Zeru, enquanto os demônios foram riscados dele pelos anjos. Há muito tempo em um tempo há muito perdido, as pessoas acreditavam nisso, e também acreditaram que os serafins iriam retornar um dia e julgá-los. Havia templos e sacerdotisas, ritos de fogo e sacrifícios, mas isso foi há muito tempo. Ninguém mais acreditava nos velhos mitos.
– Pegue o seu lápis – Lazlo disse a Calixte, saindo da tenda. Ele havia tirado um tempo para cuidar de seu espectral, Lixxa, e depois de si mesmo. Seu último banho de areia. Ele não sentiria falta disso. – Está pronta? Vai ser bom. Extremamente improvável.
– Vamos fazer, então.
– Tudo bem. – Ele limpou a garganta. Calixte balançava o lápis, impaciente. – O problema – disse ele, como se fosse perfeitamente razoável – é que os serafins voltaram.
Ela parecia satisfeita. Inclinou a cabeça e começou a escrever.
Da direção dos faranji, Lazlo ouviu uma risada.
– Serafins – alguém zombou. – Absurdo.
Ele os ignorou.
– É claro que você conhece os serafins – ele disse a Calixte. – Eles desceram dos céus, mas você sabe para onde vieram? Vieram para cá. – Ele gesticulou ao seu redor. – O grande mar de poeira, como é chamado nos contos. O que poderia ser além do Elmuthaleth? E a pira funeral do tamanho de uma lua? – Ele apontou para o único ponto saliente na imensidão plana.
– A Cúspide? – Calixte perguntou.
– Olhe para ela. Não é cristal, não é mármore e, definitivamente, não é gelo.
O sol havia se derretido em uma faixa de cobre e o céu estava de um azul profundo. A Cúspide parecia ainda mais de outro mundo do que à luz do dia, brilhando como se estivesse acesa por dentro.
– Então, do que é? – Calixte quis saber.
– Os ossos fundidos de demônios assassinados – explicou Lazlo, da mesma forma que o Irmão Cyrus havia lhe dito uma vez. – Milhares deles. O fogo sagrado queimou sua carne, e os ossos, do que quer que fossem feitos, derreteram-se e viraram vidro. Você ainda pode ver os crânios, cheios de dentes, e discernir as colunas e longos pés de esqueleto. Aves de rapina fazem ninhos nos grandes buracos dos olhos. Nada pode sobreviver lá a não ser os que comem os mortos.
Calixte havia parado de escrever. Seus olhos estavam arregalados.
– Verdade? – ela perguntou, sem fôlego.
Lazlo sorriu. Extremamente improvável, ele estava prestes a lembrá-la, mas alguém respondeu primeiro.
– É claro que não é verdade – disse a voz, com uma lentidão de paciência exagerada. Era Ebliz Tod, o construtor. Ele não tinha gostado de compartilhar o convite do Matador de Deuses com a garota que tinha “escalado a Espiral de Nuvem como um inseto”, e fazia reclamações, como: “haver uma ladra entre nós humilha os que têm verdadeiras habilidades”. Então disse a ela, com a maior condescendência:
– Querida, sua credulidade é tão vasta quanto esse deserto. Pode perder-se nela e nunca encontrar fatos ou razão.
Alguns riram com ele, maravilhando-se de que alguém pudesse acreditar nesse tal absurdo. Thyon Nero estava encostado no quebra-vento, dourado pelo pôr do sol e pela luz do fogo.
– Estranho acredita nisso também – ele disse a Drave, o explosionista, que estava sentado ao seu lado, apagado pela proximidade. O afilhado dourado conseguia ter uma aparência elegante mesmo em meio à travessia do deserto. O sol havia dado à sua pele um tom alegre e dourado, e descolorido as pontas dos cabelos até um brilho pálido. As magras rações de viagem tinham apenas acentuado os belos contornos de seu rosto, e sua barba curta – aparada, diferentemente das dos outros – conferia-lhe maturidade e credibilidade sem sacrificar seu esplendor juvenil.
Drave, por outro lado, era magro e envelhecido pelo tempo além de sua idade, que estava perto dos trinta anos. Vindo de Maialen, onde o sol era escasso, ele era muito branco, e havia sofrido no Elmuthaleth mais do que qualquer um, queimando e descascando, queimando e descascando, seu rosto era uma colcha de retalhos de rosa e vermelho com pedaços marrons de pele morta desprendendo-se.
Os dois formavam um par improvável: o alquimista e o explosionista. Haviam andado juntos desde Alkonost, e começaram a cavalgar e a fazer as refeições juntos. Para qualquer outra pessoa, aquilo pareceria amizade, mas Lazlo não via isso como qualquer coisa tão benigna. Thyon Nero não tinha “amigos” em Zosma, mas sim admiradores, e Drave parecia disposto a exercer esse papel, até mesmo buscando o café da manhã e limpando a areia das botas para ele, e sem a recompensa da gratidão. Lazlo se perguntava se o “obrigado” de muito tempo atrás fora o único que o alquimista dissera na vida. Entretanto, ele não sentia pena de Drave. Ficou claro para ele que o explosionista não estava em busca de amizade, mas do segredo do ouro.
Boa sorte com isso, ele pensou, irônico.
– Ele acredita em tudo, até em fantasmas – Thyon acrescentou, arrancando um riso desdenhoso de Drave antes de voltar seus olhos para Lazlo. – Não é mesmo, Estranho?
Aquilo lembrou Lazlo do dia horrível no balcão de informações quando ele requisitou os livros de Lazlo: o olhar cortante e repentino direcionado a ele. A pergunta incisiva, com a intenção de desconcertar. E então sentiu uma sombra de seu antigo medo. Em toda essa jornada, Nero mal havia falado com ele, exceto por poucos comentários agressivos, mas Lazlo sentiu o fervor do seu olhar algumas vezes e perguntou-se se o alquimista ainda o contava como um custo – a única pessoa viva que conhecia seu segredo.
Quanto à pergunta de Thyon, sua resposta foi reservada.
– Eu admito, prefiro uma mente aberta a uma fechada – respondeu.
– Você chama de mente aberta acreditar que homens chegaram voando do céu com asas de fogo?
– E mulheres – disse Lazlo. – Seria uma espécie lamentável se só tivesse homens.
– Mais provável uma espécie inexistente – observou Calixte. – Os homens não têm útero nem bom senso.
Um pensamento perturbador ocorreu a Lazlo. Ele se virou para Ruza, falando na língua perdida para perguntar-lhe:
– Existem threaves machos e fêmeas? Por Deus, diga-me que aquelas coisas não acasalam.
– Os bebês threave devem vir de algum lugar – disse Ruza.
– Mas como eles se encontram? – Lazlo se perguntou. – E como eles...? – Ele deixou o restante passar sem dizer.
– Não sei, mas aposto que quando se encontram, aproveitam ao máximo. – O jovem guerreiro ergueu as sobrancelhas.
Lazlo fez uma careta. Ruza ergueu os ombros.
– O quê? Pelo que sabemos, as histórias de amor das threaves são as mais belas de todos os tempos...
Calixte deu risada. Ela também tinha se dado ao trabalho de aprender a língua, com Tzara como sua principal professora, assim como Ruza foi o de Lazlo. As duas mulheres estavam sentadas juntas agora, e Calixte sussurrou alguma coisa para Tzara que fez a guerreira morder a língua e ficar vermelha.
– Desculpe – interrompeu Thyon, com o olhar aflito de alguém que acredita que está sendo zombado. E uma vez que ele não tinha se dado ao trabalho de aprender a língua perdida, podia quase ser perdoado por pensar isso. Ele refez sua pergunta. – Você acredita que homens e mulheres desceram dos céus com asas de fogo?
Lazlo nunca disse que acreditava nos serafins. Mesmo em seus livros não fizera tal afirmação. Ele não tinha nenhuma prova, ou mesmo fé. Simplesmente lhe interessava – bastante – como as culturas de Zeru se apoiavam na mesma história. No mínimo, ela revelava os padrões de migração dos povos antigos. E, no máximo, revelava muito mais. Mas tudo isso era irrelevante. Ele não estava tentando ganhar a bolsa de teorias, afinal de contas. Estava apenas satisfazendo Calixte.
– Não vejo problema em considerar todas as ideias – respondeu. – Por exemplo, você poderia ter chegado no azoth se tivesse fechado seus olhos arbitrariamente para certos compostos químicos?
Thyon cerrou os dentes. Quando ele respondeu, uma tensão havia substituído o tom de zombaria.
– A alquimia é uma ciência. Não há comparação.
– Bem, não sou alquimista – disse Lazlo, afável. – Você me conhece, Estranho, o sonhador, cabeça nas nuvens. – Ele fez uma pausa e acrescentou com um sorriso: – Milagres para o café da manhã.
O rosto de Thyon virou uma pedra com a menção ao livro. Lazlo o estava ameaçando? De forma alguma. Ele nunca quebraria sua promessa tripla, e ouviu suas próprias provocações com uma sensação de irrealidade. Ele não era mais um bibliotecário júnior à mercê do afilhado dourado, e qualquer medo que sentisse dele tinha se desvanecido. Ainda assim, era estúpido cutucá-lo. Então, virou-se para Calixte.
– Agora, onde eu estava?
Ela olhou no caderno:
– Os ossos fundidos de demônios assassinados.
– Certo. Então foi aqui que os serafins desceram ou, mais provavelmente, lá, na cidade. – Ele fez um gesto em direção à Cúspide, e além dela. – E lá mataram os perversos ijji, deixando a raça jovem e atraente dos homens e mulheres livre de inimigos, e partiram novamente. Milênios se passaram. Os humanos prosperaram. E, então, um dia, conforme profetizado... os serafins retornaram.
Ele esperou para que a caneta de Calixte o acompanhasse.
– Tudo bem – ela respondeu. – Você tem a parte dos monstros, e acho que vou lhe dar a beleza. Pelo seu rosto adorável, se não pelos serafins – ela acrescentou, em uma provocação. Lazlo nem mesmo ficou vermelho. Se Calixte achava seu rosto adorável, o que ele achava implausível, considerando o ponto central, não havia nada de atração ou desejo por trás disso. Não, ele tinha visto o jeito como ela olhava para Tzara, e como Tzara retribuía o olhar, e isso servia como uma educação ampla no tema do desejo. – Mas qual – Calixte perguntou a ele – é o problema?
– Estou chegando lá – disse Lazlo, embora ainda não houvesse entendido essa parte de sua teoria louca e improvável. Ele olhou em volta. Viu que não eram apenas os faranji que estavam prestando atenção, mas os moradores da Cidade Perdida também: os Tizerkane, os condutores de camelos e o velho Oyonnax, o xamã. Eles não podiam compreender a língua comum, mas a voz naturalmente fisgou seus ouvidos. Eles estavam acostumados a ouvi-lo contar histórias, embora isso normalmente acontecesse depois do jantar, quando o céu estava escuro e ele só conseguia ver seus rostos pela luz tremeluzente da fogueira. Ele fez uma tradução rápida para que pudessem acompanhar. Eril-Fane estava ouvindo entretido, e Azareen também, que talvez fosse mais para ele do que a segunda-em-comando, embora Lazlo não conseguisse entender a natureza de seu relacionamento. A proximidade entre os dois era palpável, mas também, de certa forma... dolorosa. Eles não compartilhavam uma tenda, como vários pares de guerreiros faziam, e embora não mostrassem afeição física, estava claro para qualquer um que tivesse olhos que Azareen amava Eril-Fane. Os sentimentos de Eril-Fane eram mais difíceis de interpretar. Apesar de todo seu carinho, havia algo de reservado nele.
Os dois tinham uma história, mas de que tipo?
Em todo caso, este não era o quebra-cabeça atual de Lazlo. O problema, ele pensou, procurando inventar. Serafins e ijji.
Ele viu Mouzaive, o filósofo natural, em pé ao lado da cozinheira, Madja, com o prato nas mãos e um olhar mal-humorado no rosto, e foi dali que veio sua faísca de inspiração.
– A segunda vinda dos serafins. Pode ter começado com temor e reverência, mas o que vocês imaginam? – indagou ele, primeiro na língua comum e depois na língua perdida. – Acontece que eles são hóspedes terríveis. Extremamente deslumbrados consigo mesmos. Nunca levantam um dedo. Esperam ser servidos para tudo. Eles nem mesmo montam suas próprias tendas ou ajudam com os camelos. Eles apenas... ficam por aí, esperando ser alimentados.
Calixte escreveu, mordendo o lábio para segurar a risada. Alguns dos Tizerkane riram, bem como Soulzeren e Ozwin, o casal das máquinas voadoras. Acostumados a plantar nas terras ruins de Thanagost, eles não eram do tipo que fica parado, ajudavam como podiam. O mesmo não podia ser dito dos outros, que ficaram rígidos com a afronta.
– Ele está sugerindo que nós devemos trabalhar? – perguntou Belabra, o matemático, e causou murmúrios espantados.
– Resumindo – Lazlo concluiu –, o propósito desta delegação é persuadir os serafins a irem embora. Educadamente, é claro. Se isso não funcionar: expulsão forçada. – Ele fez um gesto para os delegados. – Explosões e catapultas, e assim por diante.
Soulzeren começou a bater palmas e se curvou. Percebeu a presença de Eril-Fane de novo, e viu como seu divertimento irônico havia se aguçado para uma espécie de avaliação penetrante. Azareen o olhava da mesma forma franca que Lazlo respondeu erguendo os ombros em sinal de desculpas. Era uma ideia ridícula, além de mesquinha e pouco política, mas ele não havia sido capaz de resistir.
Calixte preencheu a última página do livro, e ele tirou suas dez pratas, que era muito mais dinheiro do que já tinha segurado antes de receber seu primeiro salário de Eril-Fane.
– Adeus, boa moeda – ele ofertou, resignando-se –, porque nunca mais a verei novamente.
– Não seja melancólico, Estranho. Você pode ganhar – disse Calixte, sem convicção. Ela examinou a moeda e declarou que ela tinha “um ar triunfante”, antes de enfiá-la na bolsa cheia, forçando as costuras. Parecia que uma moeda a mais poderia abri-la inteira. A última página do livro, o último espaço na bolsa, e o jogo das teorias terminara.
Agora tinham apenas de esperar até o dia seguinte para ver quem ganhou.
A temperatura caiu à medida que o deserto ficou escuro. Lazlo vestiu o chaulnote de lã sobre o de linho e colocou o capuz. A fogueira do acampamento ardia contra a noite azul profunda, e todos os viajantes reuniram-se em volta de seu brilho. Sua última noite de sede, comida insossa de viagem, traseiros doendo, esfoladura da sela, banho seco e areia em cada prega da roupa e da pele. A última noite de deitar no chão duro, e cair no sono com os encantamentos murmurados do xamã jogando seus pós na fogueira.
A última noite de encantamento.
Lazlo olhou para a Cúspide, sutil à luz das estrelas. Os mistérios de Lamento haviam sido como música para o seu sangue desde que podia se lembrar. Nessa hora, no dia seguinte, não seriam mais mistérios.
O fim da imaginação, pensou, mas não da maravilha. Esta estava apenas começando, tinha certeza disso.
16
UMA CENTENA DE PEDACINHOS DE ESCURIDÃO
Sarai estava irritada. Depois do jantar, Feral roubou uma tempestade de neve de algum céu longínquo e comeram neve com geleia de ameixa na sobremesa, mas ela mal aproveitou. Pardal e Rubi jogaram bolas de neve uma na outra, suas risadas, um pouco exageradas demais, suas miras um pouco certas demais, e Minya fugiu para algum lugar, prometendo devolver o fantasma Ari-Eil ao seu desvanecimento natural.
Sarai odiava quando Minya trazia novos fantasmas à cidadela. Cada um era como um espelho lhe refletindo sua monstruosidade.
Caso você esqueça que é uma abominação, aqui está uma velha que vai gritar ao vê-la. Aqui está um jovem que pensará que está no inferno.
Aquilo fazia maravilhas para a sua autoestima.
– Por que ela precisa fazer isso? – soltou em voz alta. Na galeria agora estavam apenas ela e Feral, inclinado sobre seu livro. Não era papel, mas folhas finas de mesarthium, gravadas com símbolos. Se eram letras, não podiam ser mais diferentes do fluido e belo alfabeto de Lamento, que Grande Ellen os ensinou a ler e escrever. Aquele não tinha ângulos, apenas curvas. Esse não tinha curvas, apenas ângulos. Sarai achava que parecia brutal, de certa forma. Não entendia como Feral podia ficar debruçado naquilo, quando por anos não havia tido nenhuma sorte para decifrá-lo. Ele dizia que podia quase sentir o significado, como se estivesse bem ali, esperando para ser resolvido, tal qual um caleidoscópio que precisasse ser girado.
Ele traçou um símbolo com a ponta do dedo.
– Por que quem precisa fazer o quê? – ele perguntou.
– Minya. Trazer fantasmas para cá. Trazer o ódio deles para a nossa casa. – Sarai ouviu-se. Como soava mesquinho reclamar de como aquilo era inconveniente para si mesma. Todavia, ela não sabia dizer o que estava realmente sentindo. Era inconcebível ter pena de um humano, fantasma ou vivo.
– Bem – disse Feral, distraído –, pelo menos temos você para levar nosso ódio para a casa deles.
Sarai piscou várias vezes, rapidamente, e olhou para suas mãos. Não havia maldade nas palavras de Feral, mas elas doeram como um beliscão. Talvez ela estivesse sensível após a revelação de Rubi quanto ao destino, e a percepção de que ela também pensava assim. E talvez fosse inveja do fato de que Feral conjurava neve, Pardal plantava flores e Rubi produzia calor e fogo, enquanto ela... fazia o que fazia.
– É isso que eu faço? – ela indagou, sua voz saindo fraca. – Me admira que vocês não me chamem de Mensageira do Ódio.
Feral ergueu os olhos do livro:
– Eu não quis dizer no mau sentido.
Sarai riu, sem alegria.
– Feral, como o ódio pode não ser mau?
– Se é merecido. Se é vingança.
Vingança. Sarai ouviu o jeito que ele falou, e entendeu uma coisa. Vingança deve ser dita com dentes cerrados, saliva voando, as cordas da alma da pessoa tão emaranhadas nesse sentimento que é impossível se livrar, mesmo que se tente. Se você a sente – se você realmente a sente –, então você fala como se ela fosse um coração ainda batendo apertado na sua mão, com sangue correndo pelo braço, pingando do cotovelo, e você não pode soltá-lo. Feral não falou desse jeito, em hipótese alguma. Poderia ter sido qualquer palavra. Poeira, xícara ou ameixa. Não havia calor nela, nenhum coração ainda batendo, nada de sangue. Vingança era apenas uma palavra para ele.
Essa percepção a encorajou.
– E se não for? – ela perguntou, hesitante.
– E se não for o quê?
Sarai não tinha nem certeza do que queria dizer. E se não fosse vingança? E se não fosse merecido? Ou, ainda mais primariamente: e se não fosse mesmo ódio que ela sentisse pelos humanos, não mais? E se tudo houvesse mudado, tão lentamente que sequer sentira enquanto acontecia?
– Não é vingança – ela explicou, passando as mãos nas têmporas e fitando-o, tentando decifrá-lo. – Eu esgotei isso faz anos. Você não sente mais isso, sente? Não de verdade? Tenho certeza de que Rubi e Pardal não sentem.
Feral pareceu inquieto. As palavras de Sarai eram muito simples, mas desafiavam o princípio básico de suas vidas: de que tinham um inimigo. De que eles eram um inimigo. Via que não restava um grande ódio em Feral, que não admitiria isso. Seria como uma blasfêmia.
– Mesmo que não sintamos – ele se esquivou –, Minya tem ódio suficiente por todos nós.
Ele não estava errado. A animosidade de Minya ardia mais forte do que o fogo de Rubi, e por um bom motivo: ela era a única deles que se lembrava do Massacre. Fazia quinze anos. Sarai e Feral tinham dezessete agora; Pardal tinha dezesseis, e Rubi quase. E Minya? Pois bem. Embora parecesse uma criança de seis anos, não era uma. Na verdade, era a mais velha dos cinco, e quem salvara os outros quinze anos atrás quando ela tinha mesmo seis anos, e o restante eram apenas bebês. Ninguém entendia o porquê ou como, mas ela não envelheceu desde o dia sangrento em que os humanos celebraram a vitória sobre os deuses, executando os filhos que deixaram para trás.
Apenas cinco haviam sobrevivido, e só por causa de Minya. Sarai sabia do Massacre por meio de sonhos e memórias roubados, mas Minya lembrava-se. Ela tinha brasas acesas no lugar dos corações, e seu ódio era tão quente agora quanto nunca.
– Acho que é por isso que ela o faz – refletiu Sarai. – Que ela traz os fantasmas, quero dizer. Para que possamos ver como eles olham para nós, e jamais esqueçamos quem somos.
– Isso é bom, não é? – argumentou Feral. – Se esquecermos, podemos relaxar. Quebrar a Regra. Nos entregarmos.
– Pode ser – Sarai admitiu. Era verdade que o medo os mantinha cuidadosos. Mas qual era o propósito do ódio?
Pensou que era como a threave do deserto, uma besta da areia que podia sobreviver por anos comendo nada além de sua própria pele abandonada. O ódio podia fazer isso também – viver de nada além de si mesmo –, mas não para sempre. Como uma threave, o ódio só se sustentava até que alguma refeição mais rica aparecesse. Ele esperava por uma presa.
O que eles estavam esperando?
Sarai podia ver que Feral não compartilhava de seu conflito, e como poderia? Os únicos humanos que ele conhecia eram fantasmas, ainda atordoados com o primeiro choque da morte para encontrarem-se aqui, no teatro de seus pesadelos, escravizados por uma garotinha impiedosa tão azul quanto suas piores memórias. Isso com certeza não trazia à tona o melhor dos humanos. Mas depois de quatro mil noites entre eles – em suas casas, em suas peles – Sarai os conhecia de uma forma que os outros não poderiam, e também perdera aquela habilidade fácil para odiar. Ela deixou o assunto de lado.
– O que Rubi disse mais cedo... – ela especulou –, você também sente assim?
– Que parte? Sobre a sopa ser insípida ou o inferno ser interessante?
Sarai balançou a cabeça, sorrindo.
– Você sabe que parte quero dizer.
– Ah, sim. Que não tem problema queimar nossas roupas quando estamos irritados porque vamos morrer jovens?
– Essa parte – Sarai ficou mais hesitante. – Feral, você consegue nos imaginar envelhecendo?
– Claro que consigo – respondeu, sem hesitação. – Serei um distinto cavalheiro idoso com longos bigodes, três mulheres, uma dúzia de filhos... – Três mulheres? – Sarai interrompeu. – Quem, nós? Você vai casar com todas nós?
– Bem, naturalmente. Eu não gostaria que ninguém ficasse de fora. Exceto Minya, e acho que ela não ligaria.
– Não, acho que você está certo quanto a isso – respondeu Sarai, divertida. – Ela não tem o perfil de esposa.
– Enquanto você...
– Ah, sim. Levo tanto jeito. Mas como isso vai funcionar? Você vai fazer um rodízio entre nós numa escala, ou escolherá de acordo com seu humor?
– Uma escala parece ser mais justo – ele disse, solene. – Sei que não será fácil, todas vocês tendo de me dividir, mas devemos fazer o melhor numa situação imperfeita. – Ele lutava para manter a boca serena com uma expressão de seriedade, mas não conseguiu evitar o humor em seus olhos.
– Uma situação imperfeita – Sarai repetiu. – É isso que temos aqui? – Ela gesticulou ao redor. A galeria. A cidadela. Sua existência precária e condenada.
– Um pouco para o lado imperfeito, sim – explicou Feral com pesar, e então não conseguiram mais manter a seriedade diante de tamanho eufemismo. Sarai riu primeiro, dando uma gargalhada, e Feral a seguiu, a hilaridade fez sua mágica mundana, decantando a tensão das costas da jovem e aliviando o terror frio que estivera pressionando-a a noite inteira.
E é assim que você segue em frente. Você dá risada das partes sombrias. Quanto mais partes sombrias, mais você tem de rir. Com rebeldia, com despreocupação, com histeria, da forma como puder. Sarai suspeitou que sua mãe, a deusa do desespero, não aprovasse isso.
Mas ela teria amado o dom da filha.
A noite avançou. Os outros foram para seus quartos. Sarai também foi, mas não para dormir. Seu dia estava apenas começando.
Seus aposentos haviam sido os de sua mãe, e eram os segundos em tamanho e esplendor, perdendo apenas para os de Minya, que eram um verdadeiro palácio, cercado dentro do corpo da cidadela, e tinham sido o domínio de seu pai: Skathis, deus das bestas e lorde dos Mesarthim, o mais monstruoso de todas elas.
Os de Sarai ficavam na extremidade do lado destro – que era uma forma de dizer direito, assim como sinistro era uma forma de dizer esquerdo – do longo corredor curvo a partir da galeria. A porta não fechava. Todas as portas na cidadela – tudo na cidadela – ficou congelado como estava no momento da morte de Skathis. Portas que estavam abertas permaneceram firmemente abertas. Portas fechadas eram permanentemente intransponíveis. Vastos setores da cidadela estavam, de fato, fechados, seus conteúdos eram um mistério. Quando os cinco eram menores, gostavam de imaginar outras crianças sobrevivendo nas alas fechadas, levando vidas paralelas, e brincavam de imaginar quem elas seriam, e que dons possuíam para tornar sua existência enclausurada suportável.
Grande Ellen lhes contou das crianças que conheceu em seus anos no berçário. Uma garota que conseguia projetar ilusões com a mente. Um menino que podia imitar os rostos dos outros. Outro cujas lágrimas podiam curar qualquer ferimento – um belo dom, mas ele estava destinado a passar a vida inteira chorando.
O mais invejável para eles, naquela época, era o da garota que podia trazer as coisas dos sonhos. Se ela pudesse sonhar, podia carregar consigo. Brinquedos, harpas, gatinhos, bolos, coroas e borboletas. Eles adoravam imaginar todas as coisas que teriam se possuíssem esse dom: pacotes de sementes para Pardal plantar uma verdadeira horta, e livros para Feral, que queria aprender mais do que os fantasmas podiam ensinar. Para Sarai: uma boneca que cobiçara em Lamento, que ela viu sendo abraçada por uma menina que dormia durante uma de suas visitas noturnas. Um exército para Minya, que sempre foi sombria. Para Rubi, uma jarra inteira de mel para comer sem dividir com ninguém.
– Você deveria ter aquele dom – Rubi dissera a Sarai. – É muito melhor que o seu.
– Só é bom até você ter um pesadelo – Sarai respondeu, com má vontade.
– E se ela sonhasse com uma ave de rapina – disse Minya, sorrindo – e quando acordasse ela bicasse sua cabeça?
Agora entendiam que se qualquer um tivesse ficado trancado em outros setores da cidadela, teria morrido em dias. Os cinco eram os únicos seres vivos ali.
Sarai não podia fechar sua porta, mas puxou a cortina que pendurou ali para tampá-la. Tinham de respeitar as cortinas uns dos outros, mas era um sistema imperfeito, especialmente no que dizia respeito a Minya. Uma situação imperfeita, Sarai se lembrou, mas a efervescência do riso perdera o gás.
Uma antecâmara levava ao quarto de dormir. Diferentemente das paredes austeras do corredor, esse quarto imitava a arquitetura de Lamento, com colunas sustentando um entablamento ornamental e o teto alto arqueado. Lá embaixo, na cidade, as construções eram de pedra, intrincadamente esculpida com cenas do mundo natural e mítico. Entre as mais belas estava o Templo de Thakra, no qual uma dúzia de mestres escultores trabalharam por quarenta anos, dois deles ficaram cegos no processo. Só o friso exibia mil pardais tão reais que os pássaros de verdade passavam suas vidas cortejando-os em vão. Aqui nessas câmaras havia duas vezes mais pássaros, misturando-se a serafins e lírios, espectrais e vinhas, e embora o trabalho provavelmente tivesse sido feito em uma hora ou duas, era ainda mais perfeito do que o do templo. Eles foram criados em mesarthium, não em pedra, e não tinham sido entalhados nem moldados. Não era assim que o mesarthium funcionava.
A cama com dossel ocupava uma plataforma no centro do quarto. Sarai não dormia nela. Era grande demais, como um palco. Havia outra cama, mais razoável, enfiada em uma alcova atrás do closet. Quando era mais nova, imaginava que havia pertencido a uma criada, mas em determinado momento passou a entender que era para os consortes e amantes de Isagol, ou seja lá como fossem chamados. O próprio pai de Sarai teria dormido nessa cama quando Isagol não o queria na sua. Seu pai. Quando percebeu isso, sentiu como se fosse uma violação de seu refúgio, imaginá-lo ali, reconfortando-se naquela privacidade enquanto deitava acordado, planejando o massacre dos deuses.
Era a cama de Sarai agora, mas não usaria por horas. Atravessou descalça a porta do terraço e saiu à luz da lua.
Sarai tinha dezessete anos, uma deusa e uma garota. Metade de seu sangue era humano, mas isso não dizia nada. Ela era azul. Era filha dos deuses. Era um anátema. Ela era jovem. Era adorável. Tinha medo. Cabelos ruivos e pescoço fino, e usava uma camisola que havia pertencido à deusa do desespero, que era longa demais, e arrastava-se atrás de si, a bainha gasta de esfregar no chão, indo e vindo, indo e vindo. Andando nesse terraço, Sarai poderia ter ido à Lua e voltado.
Exceto, é claro, que, se pudesse andar até a Lua, jamais voltaria.
Era hora. Ela fechou os olhos. Fechou-os bem cerrados. Seu dom era horrível. Ela nunca deixou que ninguém a visse invocá-lo. Ela podia ensinar a Ari-Eil uma coisinha ou outra sobre repugnância, pensou. Respirou fundo. Podia senti-lo crescer dentro de si, brotando como lágrimas. Ela segurou por mais um momento. Sempre havia esse impulso: de guardá-la, essa parte dela mesma. Escondê-la. Mas ela não tinha esse luxo. Tinha trabalho a fazer, então abriu a boca.
E gritou.
Era claramente um grito – a tensão do ricto em sua face, cabeça para frente, garganta estendida –, mas nenhum som saiu. Sarai não gritou um som, mas algo diferente. Ela foi emitida: uma escuridão suave, borbulhante. Parecia uma nuvem.
Mas não era uma nuvem.
Cinco, dez segundos. Gritou seu grito silencioso. Ela gritou um êxodo.
Gritando na noite, a escuridão rachou-se em uma centena de pedaços esvoaçantes como retalhos de veludo soprados pelo vento. Uma centena de pedacinhos de escuridão, eles se separaram e juntaram-se em um pequeno tufão que varreu sobre os telhados de Lamento, rodopiando e girando em suaves asas de crepúsculo.
Sarai gritou mariposas. Mariposas e sua própria mente, dividida em uma centena de pedaços e arremessada para o mundo.
17
A MUSA DOS PESADELOS
Todos os filhos dos deuses tinham dons mágicos, embora algumas de suas habilidades merecessem o termo dom mais do que outras. Não havia como prever o que seria, cada um se manifestava em seu próprio tempo, à sua própria maneira. Alguns, como os de Feral e Rubi, deixavam-se conhecer espontaneamente – e vividamente – enquanto ainda eram bebês. Tempestades e fogueiras no berçário. Neve e raios, ou lençóis queimados, deixando nada além de um bebê irritado e nu fumegando em um berço. Outras habilidades levavam mais tempo para serem descobertas, e dependiam do ambiente e da circunstância – como a de Pardal, que precisava de um jardim, ou pelo menos de uma semente, para se manifestar. Ela ainda engatinhava quando isso aconteceu. Grande Ellen adorava contar a história: de como a pequena Pardal havia atravessado a galeria engatinhando com suas mãos gordinhas até as orquídeas que não floresciam desde o Massacre. Elas pareciam estacas em um vaso, e Grande Ellen não impediu a garota de agarrá-las. Não havia muita coisa para brincar na cidadela, e as orquídeas estavam além de qualquer esperança. Ela estava distraída – provavelmente por Rubi – e quando olhou novamente, não foram estacas em vasos que viu, mas o pequeno rosto de Pardal paralisado com a visão de um botão abrindo a partir da madeira morta que tinha em suas mãozinhas.
Bruxa das Orquídeas. Ladrão de Nuvens. Fogueira. Seus dons manifestaram-se sem esforço, naturalmente. Isso não podia ser dito sobre o dom de Sarai.
Enquanto Feral, Rubi e Pardal não conseguiam se lembrar do tempo antes de sua magia, ela conseguia. Lembrava-se de se perguntar qual seria o seu dom, e esperar que fosse bom. Os outros também esperavam. Bem, as garotas eram muito pequenas, mas Feral e Minya estavam bastante conscientes: o dom de Sarai era o último desconhecido. Eles estavam presos na cidadela para sobreviver ali conforme podiam, pelo maior tempo possível, e havia dons que podiam tornar isso mais fácil. Quanto a Sarai, ela não queria apenas que tornasse a vida mais fácil, não era o bastante. Ela queria salvá-los.
Havia um dom, acima de todos, que poderia ter feito isso. Era o dom de Skathis, e embora era provável que fossem herdados por seus filhos, os poderes dos deuses eram imprevisíveis, e havia uma chance de que se manifestasse nos outros. No entanto, Sarai sabia que ela não o tinha, pois fora testada quando bebê. Todos eles foram. Korako, a deusa dos segredos, foi a responsável por isso, e por administrar outros testes para determinar habilidades mais difíceis de compreender. Korako estava morta agora, junto com Skathis e Isagol, Letha, Vanth e Ikirok – os Mesarthim, todos assassinados pelo Matador de Deuses, Eril-Fane.
O dom que Sarai mais desejara não era o de Skathis, mas sim o de voar. Havia deuses que podiam voar, de acordo com Grande Ellen, e havia imaginado que um dia apenas começaria a subir, e subir, e subir para a liberdade. Em suas fantasias, ela levava os outros junto, mas eles nunca chegavam a um destino, porque ela não conseguia imaginar que lugar poderia existir no mundo para seres como eles. Havia dons bons pelos quais desejar, e havia dons ruins aos quais temer, e quanto mais o tempo passava, mais se preocupava que o dela fosse um desses. Ela tinha cinco anos e nada tinha acontecido. Seis, e ainda nada.
E então... um não, nada. Não era alguma coisa, tampouco. Não ainda, não totalmente. Apenas uma sensação crescendo dentro de si, e não era uma sensação boa.
Primeiro, parecia um pouco com segurar palavras cruéis em vez de dizê-las – como elas ficam queimando atrás da língua como um veneno secreto, pronto para ser cuspido no mundo. Ela segurou. Não contou a ninguém. Ficou mais forte, mais pesado. Ela resistiu. Desde o início, parecia errado, e só piorou. Havia uma inquietação, uma vontade de gritar, e toda essa sensação errada, essa urgência... Só acontecia à noite. À luz do dia ela ficava bem, e essa parecia mais uma pista de que havia uma coisa sombria e má dentro de si. Brotando, crescendo, subindo, preenchendo-a – algo dentro dela que não deveria estar lá, e toda noite que se passava era mais difícil resistir às suas compulsões.
Sua garganta queria gritar. Sua alma também. Ela lutou contra isso como se houvessem demônios por dentro tentando sair e devastar o mundo.
Deixe-os sair, Minya teria dito. O mundo merece a devastação.
Foi Minya que, por fim, tirou aquilo dela – arrastou-os para fora, sua centena de pedacinhos de escuridão.
– Vejo o que você está fazendo – ela acusou Sarai uma noite, encurralando-a no jardim. Aquele foi o ano em que ambas tinham a mesma idade. Sarai a havia alcançado, e logo cresceria mais que ela, enquanto Minya ficou para sempre a mesma. – Você acha que não sei? – a garotinha acusou. – Você está escondendo o seu dom. Bem, não é seu para esconder. Qualquer que seja, ele pertence a todos nós.
Sarai não argumentou. Estavam nisso juntos, e ela tinha a esperança de que seu dom os libertasse. Mas essa esperança havia ido embora.
– E se for ruim? – ela sussurrou, temerosa.
– Ruim será bom – Minya disse, fervente. – Nós precisamos de ruim, Sarai. Para a vingança.
Ela sabia como dizer a palavra, dentes cerrados e saliva voando, todo o seu ódio descarregado. Seu dom era o que era. Ela podia punir os humanos, mas só depois que eles morriam, e isso não satisfazia. Sarai podia ter sonhado em voar e fugir, mas não Minya. Ela esperava que a magia de Sarai fosse uma arma contra o inimigo. E as duas garotinhas podiam parecer iguais naquela noite no jardim – como colegas de brincadeira –, mas não eram. Minya era a terrível irmã mais velha que havia salvado a vida de todos, e eles fariam qualquer coisa por ela, até mesmo odiar. Essa parte era fácil, na verdade. Natural. Eles não conheciam outra coisa além de fantasmas, a cidadela, e odiar os humanos que os odiavam.
Então Sarai não resistiu ao grito naquela noite, e as coisas sombrias dentro dela ganharam asas. Saíram borbulhando de seus lábios e, no fim, não eram demônios, mas mariposas.
O horror disso. Insetos saindo de seu corpo.
Quando finalmente acabou – aquela primeira aparição, cinco ou dez segundos pareceram uma eternidade – ela caiu de joelhos e perdeu seu jantar entre as raízes de uma ameixeira. Minya assistira a tudo com olhos arregalados e um fascínio doentio. As mariposas estavam frenéticas, porque Sarai estava frenética. Batiam as asas e rodopiavam em uma coreografia desesperada. A garganta de Sarai ardia – do vômito, não das mariposas. Mais tarde, compreendeu que elas não ferviam sua garganta. Não estavam na verdade dentro dela, não assim. Elas vinham dela – uma dimensão de sua mente ou alma que tomava forma apenas quando elas apareciam, surgindo de algum lugar no ar de seu grito. Ela sentia o roçar de asas macias contra seus lábios, mas isso era tudo. Sarai não se afogava com as mariposas. Ela não era uma colmeia viva com a barriga cheia de crisálidas que se rompiam ao anoitecer. Nada tão terrível. Mas foi terrível o bastante daquela primeira vez, e violento, irritante e atordoante. Ajoelhou-se entre as raízes da ameixeira e cambaleou. Sua mente parecia ter se descascado, estava nua e espalhada. Ela segurou em um nó da raiz enquanto o mundo se partia em pedaços e girava.
Ela podia ver através dos olhos das mariposas. De toda centena delas de uma vez. Por isso ficou atordoada, cambaleou e girou. Podia ver o que elas viam, e ouvir o que elas ouviam, sentir o cheiro e o sabor que sentiam também, e até sentir o que quer que suas asas, pés e antenas felpudas tocassem. Esse era o seu dom, grotesco e maravilhoso:
Sua consciência tinha asas. Ela não podia voar, mas sua consciência podia. Era uma espécie de fuga, mas sem liberdade, pois ainda era uma prisioneira, uma monstruosidade secreta. Mas agora era uma prisioneira e monstruosidade secreta que podia espionar a vida que jamais teria.
Se isso fosse tudo, ainda assim seria útil: ter uma janela para ver Lamento, à noite, pelo menos – as mariposas eram estritamente noturnas –, para ver algo do inimigo e saber o que ele estava fazendo. Mas isso não era tudo. Era apenas o começo de sua habilidade estranha e sombria.
Esta noite, não mais criança, Sarai fez o mesmo que vem fazendo há quatro mil noites. Saiu no terraço e gritou suas mariposas para o céu. Elas desceram para Lamento, voando sobre a topografia de telhados como se tivesse sido setorizada em um mapa. Os insetos dividiram-na entre si, mergulharam em chaminés, espremeram-se através de frestas nas janelas. Elas eram escuras, pequenas e adoráveis – o roxo exato da noite, com um brilho de luz das estrelas na água escura. As antenas eram plumas adequadas para abanar uma minúscula rainha, os corpos como botões de salgueiro: compactos, felpudos, maravilhosos.
No terraço, Sarai andava de lá para cá. Uma energia inquieta a atravessava. Ela nunca conseguia ficar parada quando suas mariposas estavam fora. Tinha os olhos abertos, mas sem foco. Ela deixava apenas o suficiente de sua consciência para fazer aquilo: andar pela extensão do terraço e saber se alguém se aproximasse. O resto de sua mente estava em Lamento, em uma centena de lugares ao mesmo tempo.
Dentre outras casas, entrou na de Ari-Eil. A janela estava aberta. Sua mariposa voou direto para dentro. O cadáver dele estava deitado na mesa da cozinha. Ela não o tocou, apenas olhou. Ele era bonito mesmo agora, mas a imobilidade era terrível, o abismo entre o sono e a morte, imenso. Era estranho ver a concha vazia quando seu fantasma havia estado na cidadela há tão pouco tempo. Quando os humanos morriam, suas almas prendiam-se invisivelmente aos corpos pelo tempo que conseguiam – um ou dois dias – e então perdiam a ligação e eram requisitados pelo chamado natural da evanescência. O céu os levava. As almas ascendiam e voltavam para o céu, sendo incorporadas por ele.
A menos que Minya os pegasse para brincar, é claro.
Ari-Eil não fora casado; aquela era a casa de sua família, e sua irmã mais nova cochilava ao seu lado, dormindo na vigília. Seu nome era Hayva e tinha a idade de Sarai, que não podia deixar de pensar como a vida da garota seria diferente se os deuses estivessem vivos.
Ao mesmo tempo em que estava lá, na cozinha de Ari-Eil, ela estava entrando em outras casas, olhando para outros rostos. Entre eles estavam mulheres que não tinham tanta sorte quanto Hayva, mas que eram jovens quando os deuses comandavam Lamento. Não era Lamento então, é claro. Esse nome veio com o Massacre, mas combinava com os dois séculos de reinado dos Mesarthim. Se houve algo em abundância em todos esses anos, certamente foram as lágrimas.
Todos esses lares, todas essas pessoas. Brinquedos espalhados e botas gastas e tudo tão diferente do que era na cidadela. Não havia mesarthium nessas casas, mas tijolo, madeira e pedra. Colchas feitas à mão e tapetes de tecidos, gatos enrodilhados ao lado dos humanos em suas camas bagunçadas. Sarai ia até eles – os humanos, não os gatos. As mariposas encontravam-nos adormecidos em suas camas. Seu toque era leve. Os adormecidos nunca acordavam. Homens e mulheres, crianças e avós. As mariposas pousavam em sua fronte, ou na saliência dos ossos da face. Havia intimidade nisso. Sarai conhecia os odores dos humanos, e os ritmos de sua respiração. Ela era uma conhecedora de cílios – a forma como eles descansavam, a forma como vibravam. E a textura da pele em torno dos olhos, como era frágil, e a primeira a se enrugar, e o movimento brusco e palpitante do globo atrás das pálpebras. Ela podia dizer só de olhar se um adormecido estava sonhando ou descansando entre os sonhos. Ninguém que já tenha vivido, pensou, sabia mais sobre olhos fechados do que ela.
Também vira um bom tanto de pele nua – que não fosse azul – e observara a pulsação das gargantas desprotegidas e pulsos pálidos. Ela via as pessoas em seu momento mais vulnerável, sozinhas ou juntas, dormindo ou fazendo outras coisas que são feitas no escuro. Havia, ela descobriu, um número incontável de jeitos de os corpos entrelaçarem-se. Aquilo era uma educação. Antes era engraçado e chocante. Ela contava para os outros sobre isso logo pela manhã, e eles se surpreendiam e davam risada, mas agora não era mais engraçado nem chocante. Havia crescido nela, imperceptivelmente, uma espécie de agitação, uma atração. Sarai entendia o anseio de Rubi. Ela não espionava mais nesses momentos privados, mas mesmo a visão de um braço forte e nu enlaçando delicadamente uma cintura ou ombro podia fazê-la doer com a vontade. Ser um corpo de um par que conhecia aquela fusão. Procurar e encontrar. Ser procurada e encontrada. Pertencer a uma certeza mútua.
Acordar de mãos dadas.
Na cidadela, a garganta de Sarai fechou-se. Suas mãos cerraram-se. Aquilo não era coisa para seres como ela.
– Beijo dezenas de pessoas toda noite – dissera a Feral no início daquela noite.
– Isso não é beijar – ele respondera, e estava certo. Beijar não era o que Sarai fazia com os humanos enquanto sonhavam. Na verdade, tudo até esse ponto era preâmbulo – o voo da cidadela, espremer-se por chaminés e pousar nas frontes. Ver e sentir, cheirar, provar e tocar, eram apenas o limiar de seu dom. Aqui estava a totalidade dele:
Quando uma mariposa fazia contato com uma pessoa dormindo, Sarai podia entrar no sonho tão facilmente quanto passar por uma porta, e uma vez que estava lá, fazia o que bem entendia.
As mentes ficavam abertas para ela – ou, pelo menos, a superfície ficava, e o que quer que borbulhasse debaixo a fim de pintá-las com reprodução de imagens, sensação e emoção, combinando e recombinando infinitamente no esforço incansável de fazer sentido, de fazer o eu. Porque o que é uma pessoa a não ser a soma de todos os fragmentos de memória e experiência: um conjunto finito de componentes com uma infinita gama de expressões. Quando uma mariposa pousava na testa de uma pessoa adormecida, Sarai mergulhava em seu sonho. O que o sonhador estivesse experienciando, ela experienciava, e não como uma espectadora infeliz. Logo que entrava – uma saqueadora invisível, que não era vista nem sentida – o sonho era dela para controlar. No domínio do real, podia ser apenas uma garota, escondida e em perigo, mas na mente inconsciente era todo-poderosa: feiticeira e contadora de histórias, titereira e encantadora das sombras.
Sarai era a Musa dos Pesadelos.
Minya havia lhe dado esse nome, e o propósito que vinha com ele. Minya a havia tornado o que ela era.
– Precisamos do ruim, Sarai – a garotinha dissera. – Para nos vingar.
E Sarai se tornara a arma que Minya queria que ela fosse, e punia os humanos da única forma que podia: através de seus sonhos. O medo era seu meio, e os pesadelos sua arte. Toda noite, por anos, ela havia atormentado os sonhadores de Lamento.
– Você fez alguém chorar? – Minya lhe perguntava de manhã. – Fez alguém gritar?
A resposta era sempre sim.
Por muito tempo, essa coisa nova e excitante havia sido o foco de suas vidas. Os outros quatro iam ao seu quarto de manhã para se juntarem em sua cama assim que as mariposas retornavam, e ela lhes contava tudo: o que e quem tinha visto, como eram as casas na cidade, como eram as pessoas. Minya só queria saber dos pesadelos, mas os outros eram mais interessados em Lamento. Ela contava sobre pais que iam confortar os filhos quando os pesadelos os acordavam, e todos ficavam imóveis e quietos, ouvindo com uma intensidade terrível. Havia sempre, entre eles, uma confusão de inveja e desejo, pois odiavam os humanos, mas também queriam ser como eles. Queriam puni-los e queriam ser abraçados por eles. Serem aceitos, honrados, amados, como o filho de alguém. E uma vez que não podiam ter nada disso, tudo tomava a forma de rancor. Qualquer um que já tenha sido excluído entende o que sentiam, e ninguém havia sido tão excluído quanto aquele grupo.
Então eles acrescentavam o cinismo ao desejo, e era como acrescentar riso à escuridão – autopreservação de um tipo bem feio. E, assim, eles se endureceram, escolhendo devolver o ódio com mais ódio.
Sarai colocou uma mariposa em Hayva, a irmã de Ari-Eil, e sobre outras pessoas adormecidas em outras casas. Por toda a cidade, ela afundou-se nos sonhos de Lamento. A maioria era mundana, a contabilidade rotineira da mente. Alguns sonhos destacavam-se. Um homem estava dançando com a mulher do vizinho. Uma velha estava caçando uma ave de rapina com nada além de uma faca de vidro de demônio. Uma mulher grávida imaginava seu bebê nascendo azul, e preferia que fosse o azul da morte ao azul dos deuses.
Hayva sonhava com seu irmão.
Duas crianças brincavam em um quintal. Era um simples fragmento de memória. Havia uma árvore morta, e Ari-Eil estava segurando nos ombros de Hayva para que ela pudesse pendurar flores de papel nos galhos. Como a maioria das árvores em Lamento, ela nunca floresceria novamente, e os dois brincavam que ainda estava viva.
Sarai ficou ali, invisível para os irmãos. Mesmo que quisesse que eles a vissem, não a veriam. Esse era o limite de seu dom conforme ela sabia a partir da longa experiência. No início, tentava de tudo para chamar a atenção dos humanos. Ela gritava e assobiava, mas nunca a ouviam, beliscava-os, mas nunca sentiam. Nos sonhos dos outros, ela era um fantasma, fadada a nunca ser vista.
Agora estava acostumada com isso. Observou as duas crianças decorarem os galhos mortos com flores de papel e perguntou-se se aquilo era o máximo que Lamento podia esperar. Uma vida falsa.
Não era isso que ela também tinha?
O que ela estava fazendo aqui, nessa casa, nesse sonho? Se estivesse tentando ganhar um elogio de Minya, não se conteria, mas usaria a meiguice e a tristeza de Hayva contra ela. Sarai tinha um arsenal de terrores. Ela era um arsenal de terrores. Durante todos esses anos os vinha colecionando, e onde poderia guardá-los senão dentro de si? Ela sentia-os no seu cerne, cada imagem e cena de medo e mau presságio, de vergonha, choque e sofrimento, de massacre e agonia. Era por isso que não ousava mais sonhar: porque em seu próprio sono ela era como um sonhador qualquer, à mercê de seu inconsciente. Quando dormia, ela não era a feiticeira ou a encantadora sombria, mas apenas uma garota adormecida sem controle sobre os terrores internos.
Quando era mais nova, não teria hesitado em assustar Hayva com visões horríveis de seu irmão morto. Ela o teria feito morrer de duzentas novas maneiras, cada uma mais repulsiva que a anterior. Ou então teria feito o garotinho dessa memória afetuosa transformar-se em uma coisa morta-viva voraz, que arremessaria a irmã no chão e enfiaria os dentes em seu crânio enquanto ela acordava gritando.
Antigamente, Sarai teria imaginado o deleite de Minya, e feito o pior. Não mais.
Essa noite, imaginou o deleite de Minya e fez o seu melhor. Encarnando Pardal, sua meiga Bruxa das Orquídeas, a menina desejou que a árvore morta voltasse a viver e observou surgirem folhas e brotos enquanto as duas crianças dançavam em torno dela, rindo. No cômodo de verdade, onde a irmã estava largada em uma cadeira ao lado do corpo do irmão morto, seus lábios curvaram-se em um sorriso leve. A mariposa voou de sua sobrancelha esquerda e Sarai deixou o sonho e voou de volta para a noite.
É engraçado como você pode passar anos vendo apenas o que quer ver, e escolhendo a indignação como se escolhe uma camisola, deixando todas as outras penduradas na vara fina de mesarthium. Se a indignação fosse uma camisola, então por anos Sarai havia usado apenas uma: a do Massacre.
Ela o conhecia muito bem, por conta dos sonhos. Inúmeras vezes viu o episódio na mente dos homens que o tinham perpetrado – na de Eril-Fane mais do que todas.
Brilho de faca e sangue espalhando-se. As Ellens mortas no chão para que os homens que as haviam matado pisassem sobre seus corpos. O terror e os gritos de misericórdia de meninas e meninos com idade suficiente para entender o que estava acontecendo. A lamúria e o choro de bebês pequenos demais para entender qualquer coisa, mas chocados pelo terror dos outros. Todos aqueles gritos: subtraídos um a um como se o silêncio fosse o objetivo.
E o objetivo fora atingido.
Quase trinta vozes foram subtraídas do mundo naquele dia, sem contar os seis deuses e a dezena de humanos que, como as Ellens, haviam tentado impedir. Sarai, Feral, Rubi e Pardal teriam sido mais quatro pequenos corpos no berçário aquele dia, não fosse por Minya. Os humanos tinham feito aquilo. Haviam matado bebês. Não era surpresa que Sarai tivesse se tornado a Musa dos Pesadelos, uma deusa vingativa para assombrar seus sonhos.
Mas, como dissera a Feral, sua vingança tinha se esgotado anos atrás.
A desgraça – e a coisa sobre a qual ela nunca ousava falar – era que para explorar os medos dos humanos, ela precisava conviver com eles. E não era possível fazer isso por mil noites sem entender, mesmo a contragosto, que os humanos também eram sobreviventes. Os deuses haviam sido monstros e mereciam morrer.
Mas seus filhos não. Não na época, e não agora.
A cidadela era sua prisão e seu santuário, mas por quanto tempo mais seria ambas as coisas? Não importava o quanto obedecessem a Regra, algum dia os humanos chegariam. Se o horror dos fantasmas recém-capturados por Minya lhes dizia alguma coisa, era que as pessoas de Lamento fariam novamente o que fizeram antes. E como eles poderiam se defender?
Mariposas, nuvens, flores, fogo e fantasmas. Eles não eram impotentes, mas Sarai não tinha ilusões. Eles não podiam sobreviver a um segundo Massacre. Sua única esperança era não serem descobertos.
Ela andou no terraço, para cá e para lá sob a luz da lua, enquanto na cidade suas mariposas iam de casa em casa como abelhas de flor em flor. Sua consciência era um instrumento sutil, podendo se dividir igualmente entre sua centena de sentinelas, ou transferir-se entre elas em qualquer configuração, concentrando-a onde a atenção fosse necessária e recuando onde não fosse. A cada momento sua percepção mudava. Ela tinha de reagir em um bater de asas, confiar em seus instintos, perambular pela cidade mergulhando e emergindo das mentes, girar uma centena de mariposas em sua dança selvagem, torcer os sonhos e afiá-los, atacar com deuses e monstros pelos caminhos do inconsciente. E sempre, sempre, o que quer que fizesse, quaisquer medos que empregasse, a cada um ela anexava um adendo furtivo, como notícias devastadoras no final de uma carta. Era sempre o mesmo. Todo pesadelo que sacudia as pessoas adormecidas de Lamento carregava o mesmo alerta subliminar.
Era um horror sem nome da cidadela e de tudo que ela continha.
Esse era o trabalho que ela tinha se proposto: tecer em todos os sonhos de Lamento um pavor tão potente que ninguém ousaria olhar para a cidadela, muito menos chegar perto dela. Até agora havia sido suficiente.
A noite pareceu muito longa, mas terminou como todas as noites terminam, e Sarai chamou suas mariposas de volta para casa. Ela parou de andar e esperou. Os insetos voaram por meio dos últimos raios de luz das estrelas, voltando à formação de um sifão de asas girando e, abrindo boca, colocou-os para dentro.
No começo, o retorno era ainda pior do que o êxodo. Daquela primeira vez, Sarai não havia conseguido, pois simplesmente não podia abrir a boca para elas, e teve de vê-las transformarem-se em fumaça quando o sol se levantou.
Então ficara muda o dia inteiro, como se sua voz tivesse virado fumaça com as mariposas.
Mas chegou a noite, contudo, e ela sentiu que estavam brotando novamente, à medida que todo o ciclo começou mais uma vez e aprendeu que, se quisesse ser capaz de falar, era melhor abrir a boca e deixar as mariposas voltarem.
– Quem é que vai querer beijar uma garota que come mariposas? – Rubi perguntou uma vez em um espírito de comiseração. E Sarai pensou então – como agora – que beijar não era um problema que se apresentaria para ela. De qualquer forma, ela não comia as mariposas. Não havia nada para se engasgar, nenhuma criatura para engolir. Apenas o roçar suave de asas contra seus lábios enquanto os insetos se fundiam a ela, deixando um retrogosto de sal e fuligem. Sal das lágrimas, fuligem das chaminés, e Sarai estava inteira novamente. Inteira e esgotada.
Ela mal havia voltado para dentro quando a Pequena Ellen entrou, carregando a bandeja matutina com o lull em um pequeno frasco de cristal, e um prato de ameixas para cortar o amargor.
– Bom dia, querida – disse a fantasma.
– Bom dia, amor – respondeu Sarai. E estendeu a mão para pegar seu lull, e bebeu seu esquecimento cinzento.
18
OS OSSOS FUNDIDOS DE DEMÔNIOS ASSASSINADOS
Fora toda sua contação de histórias fantasiosas e conversa sobre mentes abertas, o que Lazlo esperava, de fato, encontrar à medida que a caravana se aproximava da Cúspide? Um rochedo fissurado de mármore partido pelo tempo? Rochas que se parecessem com ossos a ponto de gerar um mito, com uma pedra aqui e ali no formato de um crânio?
Não foi isso que ele encontrou.
– São ossos de verdade – afirmou a Eril-Fane, e tentou decifrar uma confirmação na expressão do herói, mas Eril-Fane só deu um sorriso fantasma e manteve o silêncio que carregara consigo o dia todo.
– São ossos de verdade – Lazlo afirmou novamente, para si mesmo. Aquilo ali. Não era uma pedra que se parecia com um crânio. Era um crânio, e havia centenas deles. Não, havia milhares nessa vasta massa branca, em que centenas podiam ser vistos pela trilha. Dentes nas mandíbulas, afiados como qualquer hreshtek e, nos buracos dos olhos, o que falara: ninhos de aves de rapina, que eram coisas estranhas e felpudas, construídos com coisas roubadas – fitas caídas ou madeixas de cabelos, franjas rasgadas de xales e até penas perdidas. Os pássaros propriamente ditos mergulhavam e gritavam, entrando e saindo de saliências que só podiam ser vértebras, segmentadas e esporeadas e, inequivocamente: mãos gigantes, pés gigantes. Ossos do carpo afilados tão longos quanto o braço de um homem. Nós dos dedos do tamanho de punhos. Eles estavam derretidos, fundidos. Os crânios eram curvos, como velas deixadas muito perto do fogo, então nenhum tinha o mesmo formato. Mas mantinham o formato suficiente. Um dia, aquelas tinham sido criaturas vivas.
Geralmente, embora não gostasse de se gabar, ele teria gostado de ver o rosto dos outros faranji agora, o de Thyon em particular. Mas o afilhado dourado estava preso em um camelo, na parte de trás da caravana, e Lazlo teve de se contentar com as exclamações que ecoavam de Calixte, que era dada a gabar-se.
– Ei, Tod, eu estou mesmo vendo isso? – ele a ouviu dizer. – Ou estou perdida em minha vasta credulidade? – E, um momento depois: – O que você está fazendo aqui, Tod? Você não sabe que é rude perambular na credulidade de alguém? – E então: – Isso é fato ou razão que estou encontrando? Espere, não, são mais ossos de demônio.
Ele suspeitou que ela logo se cansaria da piada.
– Você está surpreso – Eril-Fane observou Lazlo. – Do jeito que falou a noite passada, achei que você sabia.
– Sabia? Não, eu achava... não sei o que eu achava. Eu achava que mesmo que fosse verdade, não seria tão obviamente verdade.
Era extremamente óbvio e, de certa forma, grande demais para caber em sua mente – como tentar enfiar a Cúspide em seu pequeno crânio. Não era todo dia que se tinha a prova de um mito e, se aquilo não fosse prova, ele não sabia o que era.
– Os serafins? – indagou a Eril-Fane. – Eles eram reais, também?
– Se há provas, você quer dizer? – Eril-Fane perguntou. – Nada desse tipo. Mas como não morreram aqui, não poderiam ter deixado ossos. O Thakranaxet sempre foi prova suficiente para nós.
O Thakranaxet era o épico dos serafins. Lazlo encontrou algumas passagens ao longo dos anos, embora o poema em sua completitude nunca houvesse chegado a Zosma. Ouvindo a reverência no tom de Eril-Fane, ele entendeu que era um texto sagrado.
– Vocês o cultuam.
– Sim.
– Espero que eu não os tenha ofendido com a minha teoria.
– De jeito nenhum – disse Eril-Fane. – Eu gostei dela.
Eles continuaram cavalgando. Deslumbrado, Lazlo observou as formações extraordinárias ao seu redor:
– Este era um jovem – explicou, apontando para um crânio menor do que os outros. – É o crânio de um bebê demônio. E isso é uma montanha de ossos de demônios derretidos. Estou cavalgando sobre ela em um espectral. – Ele acariciou as longas orelhas brancas de Lixxa, que relinchou, e ele lhe murmurou palavras doces antes de continuar. – Estou cavalgando sobre a pira funeral dos ijji com o Matador de Deuses. De quem eu sou secretário.
O sorriso fantasma de Eril-Fane tornou-se menos fantasma.
– Você está narrando? – ele perguntou, intrigado.
– Eu deveria estar – Lazlo respondeu, e começou, em uma voz dramática: – A Cúspide, que parecia baixa no horizonte, era formidável de perto, e a caravana levou várias horas para subir pela trilha em ziguezague até o Forte Misrach, sendo o único caminho para atravessá-la. Era também o lugar onde, por séculos, os faranji haviam sido atraídos e esquartejados e servidos como alimento para os sirrahs. Lazlo Estranho fitou o céu – aqui, Lazlo fez uma pausa para fitar o céu – onde as aves de rapina circulavam, gritando e quase prendendo guardanapos de jantar em volta de suas gargantas sujas. E ele se perguntava, com um frisson de preocupação: era possível que ele tivesse sido levado tão longe apenas para servir de comida aos comedores de carniça?
Eril-Fane riu, e Lazlo contou isso como uma pequena vitória. Uma espécie de tristeza estava crescendo no Matador de Deuses à medida que se aproximavam de seu destino. Lazlo não conseguia entender. Ele não deveria estar contente de retornar para casa?
– Um frisson de preocupação? – repetiu Eril-Fane, levantando uma sobrancelha.
Lazlo apontou para os pássaros.
– Eles estão ameaçadoramente felizes em nos ver.
– Acho que devo lhe contar. Devido à falta de aventureiros faranjis, os sirrahs estavam ficando desnutridos. Foi considerado necessário atrair alguns viajantes para cá para suprir essa falta. Afinal, os pássaros precisam comer.
– Droga. Se você tivesse me falado antes, eu teria colocado isso no livro de Calixte. Então eu poderia usar o dinheiro do prêmio para subornar os executores.
– Tarde demais – respondeu Eril-Fane com remorso. – Agora estamos aqui.
E ali, de fato, eles estavam. Os portões da fortaleza à sua frente. Tizerkanes de armaduras os abriram, recebendo seu líder e camaradas com uma alegria solene. Olharam para Lazlo com curiosidade, e para o resto dos forasteiros também, assim que os camelos foram levados através dos portões para a praça central da fortaleza. Ela era entalhada diretamente na rocha – ou melhor, nos ossos derretidos pelo calor – que se erguia em paredes altas de ambos os lados, mantendo o céu a distância. Quartel e estábulos enfileiravam-se pelas paredes, e havia cocheiras e uma fonte – a primeira água não racionada que viram por meses. Cerca de vinte metros à frente havia outro portão. O caminho, Lazlo pensou, e quase não conseguiu processar direito.
– No momento em que virem a cidade – Eril-Fane havia dito –, vocês entenderão o motivo disso tudo.
O que poderia ser que ficaria claro à primeira vista?
Ele desmontou e levou Lixxa para um cocho, então foi até a fonte e derramou água sobre a cabeça com as duas mãos, em concha. A sensação da água, fria e distinta, molhando seu couro cabeludo e correndo pelo pescoço, era inimaginavelmente boa. A próxima mão em concha foi para beber, e a próxima, e a próxima. Depois disso: esfregou seu rosto, enfiando os dedos na barba que crescia e coçava. Agora que haviam quase chegado, ele se permitiu um breve conforto. Nada de luxo, que estava além do seu horizonte, mas o simples conforto: lavar o rosto, fazer a barba, uma refeição, uma cama. Ele compraria algumas roupas com seus salários assim que tivesse a chance. Embora nunca tivesse comprado roupas e nem sabia como fazer, mas imaginou que descobriria. O que alguém vestia, quando podia vestir qualquer coisa?
Nada cinza, pensou, e lembrou-se da sensação de determinação de quando se desfez de suas vestes de bibliotecário ao se juntar a Eril-Fane – e do remorso, também. Ele havia amado a biblioteca, e sentira-se, quando criança, como se ela tivesse uma espécie de senciência, e talvez o amasse também. Mas mesmo que fosse apenas paredes e um teto com papéis dentro, ela o havia encantado e atraído, e dado-lhe tudo de que precisara para se tornar quem era.
Será que a veria novamente, ou o velho Mestre Hyrrokkin? Embora houvesse se passado apenas seis meses, a Grande Biblioteca se tornara memória, como se sua mente tivesse classificado seus sete anos lá e os arquivado em um passado mais distante. Seja lá o que acontecesse aqui, Lazlo sabia que aquela parte de sua vida havia acabado. Ele cruzara continentes e bebido da luz das estrelas em rios sem nome. Não havia como voltar.
– Estranho! – gritou Calixte, aproximando-se dele com seu jeito dançante. Seus olhos estavam iluminados quando ela o agarrou pelos ombros e o sacudiu. – Ossos, Estranho! Isso não é demoníaco? – Seu tom deixava claro que demoníaco era bom, se é que isso existe. Lazlo achava que não. Independentemente da maneira como olhasse aquilo – o que quer que os ijji tenham sido, e o que quer que os tenha matado, anjos ou não –, esse monte de ossos era um túmulo épico. Mas haveria tempo para pensar nas implicações mais tarde. Por enquanto, ele se permitiu maravilhar-se.
Calixte estendeu a mão em concha para ele.
– Aqui. Sei que você seria virtuoso demais para fazer isso. – Curioso, estendeu a mão e ela deixou cair um fragmento curvo e afiado de vidro branco brilhante. – É um canino da Cúspide – ela explicou, com um sorriso largo.
Um dente de ijji.
– Você quebrou isso? – ele maravilhou-se. Ela teve de desmontar, talvez até escalar.
– Bem, ninguém disse para não desfigurar a montanha.
Lazlo balançou a cabeça, sorrindo, e pensou que se ele não tivesse ouvido o rumor em Syriza e mencionado a Eril-Fane, Calixte talvez ainda estivesse na prisão, ou sequer ainda estaria viva.
– Obrigado – ele agradeceu, fechando sua mão em volta do dente.
Foi o primeiro presente que lhe deram na vida.
Havia uma pequena refeição esperando por eles – simples, mas deliciosa por ser fresca. Pão macio e salgado com queijo branco, fatias de carne condimentada e pedaços de uma fruta grande e redonda com gosto de chuva açucarada. Ninguém falou e, naquele momento, não havia divisões entre eles – ricos ou pobres, estrangeiros ou nativos, acadêmicos ou secretário. Não importava que Thyon Nero tivesse crescido com iguarias e Lazlo Estranho com migalhas, os dois nunca haviam se deliciado tanto com uma refeição.
– Ei, Tod! – disse Calixte, com a boca cheia de pão. – Ainda estamos na minha credulidade? Porque se estivermos, você me deve por essa refeição.
Tudo bem, talvez algumas divisões persistissem.
Os sirrahs continuavam circulando, gritando seu coro voraz, e as fileiras foram perturbadas mais uma vez, assim como no dia anterior, pela passagem de um falcão mensageiro. Com a metade de seu tamanho, ele mergulhou através do rabisco de suas asas rotas e malcheirosas, afastando-os com seu grito penetrante. Eril-Fane levantou o braço e o pássaro espiralou em uma descida elegante, pairou no vento, e pousou.
O Matador de Deuses pegou a mensagem e a leu, e quando ergueu os olhos da página, procurou Lazlo – primeiro com o olhar e depois com os pés.
– Notícias? – perguntou Lazlo, quando ele se aproximou.
– O que, isso? – Ele mostrou a mensagem. – Mais para ordens.
– Ordens? – De quem? Um comandante? Um governador? – Eu achava que você dava as ordens.
Eril-Fane riu.
– Não para minha mãe – respondeu.
Lazlo piscou. De todas as improbabilidades daquele momento, esta foi a que mais o surpreendeu. Ele havia cruzado o Elmuthaleth ao lado do Matador de Deuses e agora carregava, em seu bolso, o dente de uma criatura do mito mais antigo do mundo. Mas mito era o terreno mediano de sua mente, que sequer havia pensando que o Matador de Deuses pudesse ter uma mãe.
Porque ele era um herói. Porque ele parecia moldado no bronze, não nascido como um homem mortal. Porque Lazlo, que não tinha mãe, tendia a esquecer-se da existência delas. Ocorreu-lhe que talvez nunca tenha encontrado uma, ou pelo menos nunca trocado mais do que uma palavra ou duas com uma. Isso parecia impossível, mas fora assim.
– Ela está ansiosa para conhecê-lo – disse Eril-Fane.
Lazlo o fitou, sem reação.
– Eu? Mas como ela sabe...? – Ele se calou, um nó se formando em sua garganta. O Matador de Deuses tinha uma mãe esperando por ele em Lamento. Ele tinha mandado notícias de sua chegada iminente, e o bilhete recebido parecia apropriado para mencionar Lazlo.
– Você ficará com ela quando chegar à cidade.
– Oh – disse Lazlo, surpreso. Os faranji ficariam hospedados na Câmara dos Mercadores; ele imaginou que também ficaria lá.
– Ela insiste, acredito. Espero que você não se importe. Não será tão grandioso quanto a câmara, mas garanto que será confortável. – Lazlo não sabia o que era mais extraordinário: que Eril-Fane se sujeitasse à insistência da mãe ou que ele imaginasse que Lazlo se importaria.
– Não, confortável é bom. – Essas foram as palavras que sua mente lhe ofereceu. Confortável é bom. – Espere. – Ele então se deu conta da escolha de palavras de Eril-Fane. – Você disse quando eu chegar à cidade. Você não vem conosco?
– Não hoje à noite.
– O quê? Por quê?
Eril-Fane parecia cansado. A vitalidade que normalmente irradiava dele havia quase desaparecido. Desviando os olhos como se tivesse vergonha, explicou:
– Eu não durmo bem em Lamento. – Foi a única vez que Lazlo o ouviu usar esse nome, e isso o assustou. E completou, tentando sorrir: – Então, estou lhe oferecendo minha mãe como substituta. Espero que você consiga suportar o rebuliço. Ela não tem ninguém para cuidar há algum tempo, então imagino que vai aproveitar ao máximo.
– Será o primeiro rebuliço que terei de enfrentar – respondeu Lazlo, ouvindo alguma coisa crua em sua voz que não podia ser atribuída a uma garganta seca –, mas imagino que vou me sair bem.
O Matador de Deuses sorriu, com um olhar afetuoso que acentuava suas rugas, e estendeu o braço para dar-lhe um tapinha no ombro. E Lazlo, que não só não tinha mãe como também não tinha pai, achou que ter um devia ser parecido com isso.
– Bem, então aqui estamos – anunciou o grande homem, e observou o portão a distância e pareceu se endurecer. – Você está pronto?
Lazlo fez que sim.
– Então vamos.
19
A SOMBRA DO NOSSO TEMPO ESCURO
Eril-Fane guiou o grupo para o portão da cidade. Assim que entrou, se virou em silêncio com o espectral a fim de encará-los. Havia peso em seu silêncio. Havia tensão e resignação em seu rosto, até mesmo um vestígio de pavor.
– Há duzentos anos, houve uma tempestade... – Ele fez uma pausa. Todos se prenderam na palavra tempestade. Os metalúrgicos gêmeos trocaram um olhar esperançoso, porque nenhuma de suas teorias envolvia um furacão.
– Não foi como as outras tempestades – Eril-Fane continuou. – Não havia chuva, apenas vento e raios, e os raios eram diferentes de tudo o que conhecíamos. Foi exatamente acima da cidade, furiosa. Ela formou uma esfera... como se mãos enormes tivessem varrido o céu e reunido todos os raios do mundo numa bola. – Ele encenou isso, os ombros largos ergueram-se à medida que as mãos arrastaram o espectro dos raios e lhe deram forma, e o seguraram.
– Ela parou. – Ele deixou as mãos caírem. – A noite caiu escura. Não havia lua, nem estrelas. As pessoas não conseguiam ver nada, mas sentiram uma mudança na atmosfera, uma pressão. E quando o sol nasceu, elas viram o porquê. Como vocês verão.
Em seguida, virou sua montaria e os guiou através do portão. O caminho era cavado profundamente no vidro de demônio, e estreito, de forma que tinham de andar em fila única. Ele se curvava e subia, gradualmente se alargando. Eles cavalgaram para frente e para cima. O céu ficou mais largo, de um azul profundo e sem nuvens.
E então, repentinamente, chegaram a um extremo e tudo estava à sua frente.
O Elmuthaleth até então era um alto platô deserto, plano e seco. Desse lado da Cúspide, o mundo caía em um profundo abismo. Era longo e curvo, esculpido por um rio – um rio que fazia o Eder parecer um gotejo, seu som catastrófico audível mesmo de onde estavam. Mas nenhuma surpresa podia ser tão grande com um rio, não importa quão épico. Simplesmente não há surpresa suficiente no mundo.
“A sombra do nosso tempo escuro ainda nos assombra”, o Matador de Deuses havia dito. E Lazlo tinha se concentrado no tempo escuro, e tinha se perguntado sobre a palavra assombra, mas nunca pensara em considerar sombra.
Era, literalmente, uma sombra.
Lá estava a cidade – a famosa Lamento, não mais perdida –, em pleno dia, mas ela estava escura.
Lazlo sentiu como se o topo de sua cabeça se abrisse e o universo tivesse deixado cair um fósforo aceso. Naquele momento, entendeu que era menor do que imaginava e que o domínio do desconhecido era maior. Muito maior. Porque não podia haver dúvida:
Aquilo que fazia sombra sobre Lamento não era deste mundo.
– Estranho – disse Calixte, e ela não quis dizer o adjetivo estranho, que ficava imensamente aquém da visão à frente deles. Não, ela estava falando com Lazlo. Ela pesou a bolsa de teorias em sua palma e disse, em um sussurro atordoado: – Acho que você ganhou.
20
NOTÍCIAS DO MORTO
Havia fantasmas na sala. Sarai os ouviu sussurrando antes de abrir os olhos, e a luz dourada do dia oscilou – luz, sombra, luz, sombra – à medida que eles se moviam entre a janela e sua cama. Primeiro ela achou que fosse Pequena Ellen, junto talvez com Awyss e Feyzi, as camareiras, e sentiu uma ligeira irritação por elas terem entrado sem permissão. Não era hora de acordar, pois ainda sentia no peso de seus membros e pálpebras o encantamento cinzento do lull.
Os sussurros ficaram mais nítidos.
– Os corações, mire nos corações.
– Não nos corações. Você pode acertar uma costela. A garganta é melhor.
– Aqui, deixe que eu faço.
Os olhos de Sarai se abriram subitamente. Não era Pequena Ellen ou Awyss ou Feyzi ou qualquer um dos serviçais. Era um grupo de mulheres velhas, e elas se assustaram e afastaram-se da cama, todas juntas.
– Está acordada! – uma delas gritou.
– Faça agora! – guinchou outra.
E antes que Sarai pudesse processar o que estava acontecendo, uma das fantasmas avançou em sua direção e levantou uma faca, seu rosto selvagem com ódio e determinação, e Sarai não conseguia sair do caminho. Ela simplesmente não conseguia se mover rápido o bastante, não através da névoa de lull. A lâmina da faca brilhou e todas as suas memórias emprestadas do Massacre vieram se derramando – brilho de faca e bebês gritando – e ela estava gritando, e as velhas estavam gritando, mas não a que estava com a faca. Ela estava chorando de raiva, e a faca ainda estava levantada, seu braço tremendo enquanto lutava para completar o arco que havia começado e levar a faca até a garganta de Sarai.
– Não posso – ela lamentou, com pura frustração. Lágrimas riscaram seu rosto. Ela tentou com toda sua vontade, mas seu braço não a obedecia, e a faca caiu de sua mão para perfurar o colchão, ao lado do quadril da menina.
Sarai conseguiu enfim se mover, ficando de joelhos e se afastando das fantasmas. Seus batimentos cardíacos aceleraram, enviando vibrações de pânico por todo o corpo, muito embora ela soubesse que estava a salvo. As fantasmas não podiam machucá-la. Era o primeiro imperativo do feitiço de Minya: os mortos não podiam ferir os vivos, contudo, aquelas fantasmas não sabiam disso. A que tinha avançado ficou perturbada. Sarai a conhecia, e não sabia que ela tinha morrido. Seu nome era Yaselith, e sua história era a da maioria das mulheres de sua geração – e de todas as gerações nascidas e criadas sob o governo dos Mesarthim, quando Skathis chegou cavalgando em Rasalas, sua grande besta de metal, e tirou meninos e meninas de seus lares.
O que aconteceu na cidadela, ninguém jamais contou. Antes que retornassem, Letha encarregou-se deles. Letha, deusa do oblívio, mestra do esquecimento. Ela podia zerar uma mente em um piscar de olhos, e fazia isso, roubando anos inteiros das meninas e dos meninos da cidade, para que quando Skathis os levasse de volta eles não tivessem memória de seu tempo com os deuses. Seus corpos, contudo, carregavam marcas que não podiam ser apagadas facilmente, porque mais havia sido roubado deles além das memórias.
Os olhos de Yaselith estavam molhados e vermelhos, os cabelos tão brancos e sem peso quanto uma lufada de fumaça. Ela estava tremendo violentamente com a respiração aos trancos e, quando falou, a voz rouca parecia o riscar de um fósforo:
– Por quê? – indagou. – Por que não posso matá-la?
E Sarai, confrontada com uma quase assassina na pessoa de uma velha morta, não sentiu raiva. Não dela, de qualquer forma. Minya era outra história. O que novos fantasmas estavam fazendo na cidadela?
– Não é culpa sua – Sarai respondeu quase gentilmente –, mas você não pode me ferir.
– Então você deveria se ferir. Matar-se, garota. Tenha piedade de nós todos. Faça isso. Faça.
E então todas estavam sussurrando isso, empurrando as cortinas da cama larga de Isagol para circundar Sarai pelos lados. “Faça”, elas a incitavam. “Tenha alguma decência. Faça isso”. Havia um brilho selvagem em seus olhos, e Sarai conhecia todas elas, mas não entendia como podiam estar ali, porque nenhuma delas estava morta, e seu pânico aumentou e expandiu-se à medida que ela viu sua própria mão pegar a faca. Seu primeiro pensamento foi que ela estava morta e Minya estava fazendo-a agir assim, porque ela não conseguia se impedir. Sua mão se fechou em volta do punho da faca e a tirou da cama. De onde a lâmina saiu, do pequeno rasgo no tecido, sangue pulsou em jorros arteriais.
E mesmo essa louca irrealidade não conseguiu trazê-la de volta à consciência. Camas não podem sangrar. Ela estava tão imersa na paisagem do pesadelo até mesmo para questioná-lo. Sua mão se virou, posicionando a ponta da adaga contra o peito, e olhou para os rostos zombeteiros das velhas de Lamento, não vendo um fim neles. Onde antes havia cinco ou seis, agora havia dezenas, seus rostos empurrando a cortina diáfana da cama de forma que suas bocas e olhos pareciam buracos negros e, mesmo assim, o que a surpreendeu não foram os rostos, mas sim as cortinas.
O que ela estava fazendo na cama de sua mãe?
Aquele foi o último pensamento antes de enfiar a faca em seus dois corações e sentar-se ereta com um enorme susto e se encontrar em sua própria cama. Sozinha. Nenhum fantasma, nenhuma faca, nada de sangue. Nada de respiração, tampouco. Seu susto parecia não ter fim. Ela estava se afogando nele e não conseguia expirar. As mãos em garras com cada músculo rígido, um grito tomou seu crânio, lavando todo pensamento. O sentimento permaneceu por um tempo até ela achar que morreria simplesmente por não conseguir respirar e, então, por fim, o susto a deixou e ela se dobrou, expulsando o ar enquanto seu corpo lembrava-se do que fazer. Permaneceu longos minutos enrolada em si mesma apenas respirando, com a garganta ardendo, olhos bem fechados, antes que pudesse enfrentar a verdade.
Ela havia tido um sonho.
Ela começou a tremer incontrolavelmente. Um sonho havia atravessado a barreira.
– Oh, não – sussurrou, e enrolou-se ainda mais enquanto pensava no significado daquilo. – Oh, não.
O lull deveria impedi-la de sonhar. Será que havia se esquecido de tomá-lo? Não, ela ainda podia sentir o amargor atrás da língua.
Então como ela havia sonhado?
Lembrou da época antes do lull, e no ataque violento de pesadelos que levara a Grande Ellen a começar a lhe preparar o lull. Na época, era como se todos os terrores que colecionara ao longo dos anos, seu arsenal inteiro, tivesse se voltado contra ela. Era disso que o nada cinzento a protegia – ou deveria proteger.
Por fim, saiu da cama. Ela gostaria de ter tomado um banho, mas isso significaria ir ao quarto da chuva e encher a banheira, então chamar Rubi para aquecê-la, e demandaria mais trabalho do que podia encarar. Então apenas derramou a água fria de seu jarro e lavou-se. Penteou e trançou os cabelos, e colocou uma camisola limpa antes de ir ao quarto principal, onde a cama grande de sua mãe estava intocada, as cortinas livres das mulheres fantasmas com rostos selvagens. Ainda assim, ela estremeceu e passou rápido pelo móvel, atravessando a porta-cortina e indo até o corredor, onde encontrou Pequena Ellen trazendo a bandeja da tarde com chá – não chá de verdade, o qual já não tinham há muito tempo, mas uma infusão de ervas para ajudar a afastar os efeitos do lull – e biscoitos, uma vez que Sarai sempre dormia e perdia o almoço.
– Você levantou cedo – disse a fantasma, surpresa, e Sarai esforçou-se para esconder a perturbação.
– Acho que eu não chamaria a tarde de cedo – respondeu com um sorriso fraco.
– Bem, cedo para você. Alguma coisa a acordou?
– Esse é o meu chá? – Sarai indagou, fugindo da pergunta. Pegou a xícara da bandeja nas mãos de Pequena Ellen e a encheu com o pequeno bule. O aroma de hortelã encheu o ar. – Obrigada, Ellen – agradeceu, e levou a xícara consigo, deixando a fantasma, confusa, para trás.
Ela passou pela galeria e foi para a cozinha para falar com Grande Ellen, a quem perguntou, em estrita confidência, se era possível deixar o lull mais forte.
– Mais forte? – repetiu a mulher, arregalando os olhos, e depois estreitando-os. – O que aconteceu?
– Nada aconteceu – Sarai mentiu. – Só temo que ele se torne menos eficaz com o tempo. – E ela havia pensado nisso, mas... ele não havia se tornado menos eficaz com o tempo. Parou de funcionar da noite para o dia, o que não era algo com o qual estava preparada para lidar.
– Bem, e ficou? Não minta para mim. Você sabe que eu sei quando está mentindo. – Sua voz era grave, e Sarai a encarou, Grande Ellen transformara seu rosto no de um falcão, olhos amarelos e severos debaixo da inclinação abrupta do cenho emplumado, um bico curvo mortal onde seu nariz deveria estar.
– Não – Sarai protestou, rindo apesar da situação. – Você sabe que não consigo resistir ao falcão.
– Olhe nos meus olhos e apenas tente mentir.
Era um jogo de quando eles eram menores. Grande Ellen nunca tentou forçar ou ordenar que se comportassem ou obedecessem, pois não teria dado certo, especialmente quando seus dons eram ainda voláteis e não totalmente sob seu controle. Ela usava métodos mais elaborados, como esse, e conquistava resultados melhores. Era, na verdade, muito difícil mentir para um falcão.
– Isso não é justo – exasperou-se Sarai, cobrindo os olhos. – Você não pode apenas confiar em mim e me ajudar?
– É claro que posso, mas preciso saber quão urgente é. Eu me perguntava quando você desenvolveria uma tolerância. – Quando, não se. – Está acontecendo?
Sarai descobriu os olhos e encontrou Grande Ellen de volta à forma humana, o olhar acusador de falcão substituído por um olhar humano penetrante, mas compassivo. Em resposta, ela balançou a cabeça quase imperceptivelmente e ficou grata por Grande Ellen não investigar mais.
– Tudo bem, então – a fantasma respondeu, com competência em vez de uma grande preocupação. – Tome meia dose extra de manhã, e vou mexer no próximo lote para ver o que pode ser feito.
– Obrigada – agradeceu Sarai.
Seu alívio deve ter sido audível, porque Grande Ellen deu-lhe um olhar que era de falcão mesmo sem a transformação. Ela alertou, com cautela:
– Isso não vai funcionar para sempre, você sabe. Não importa o que façamos.
– Não se preocupe comigo – disse Sarai com uma indiferença fingida, mas enquanto saía para a galeria acrescentou, em um tom mais baixo que só ela podia ouvir: – Acho que não precisamos nos preocupar com o para sempre.
Ela viu Pardal primeiro, ajoelhada entre as orquídeas, o rosto sonhador e as mãos cheias de vinhas, que visivelmente cresciam e caíam lentamente de seus dedos para se entrelaçar nas vinhas já plantadas a fim de preencher as lacunas onde o mesarthium ainda aparecia. Na mesa, Minya e Feral estavam diante do tabuleiro de quell, compenetrados no jogo. Era evidente pelo olhar furioso de Feral que ele estava perdendo, enquanto Minya parecia meio entediada, e bocejou antes de mover sua peça.
Sarai nunca ficara tão feliz com a monotonia previsível da vida na cidadela quanto agora. Ela até gostaria de uma sopa de kimril com toda sua insipidez reconfortante.
Essa noite, contudo, não seria nem reconfortante nem insípida.
– Pobrezinho – ela ouviu Rubi murmurar e, virando-se para olhar, viu-a em pé diante de Ari-Eil. Sarai parou onde estava. Era estranho vê-lo novamente depois de ver seu corpo. Minya havia prometido soltá-lo, mas com toda certeza ele ainda estava lá e, se havia compreendido os fatos básicos dessa nova existência – de que todos estavam vivos e ele não –, não mudara sua forma de tratar aquele grupo. A confusão havia desaparecido, o que apenas deixou mais espaço em sua expressão para a hostilidade. Minya havia colocado-o no canto, da mesma forma que alguém encosta uma vassoura ou guarda-chuva quando não está usando, e ele surpreendentemente ainda tentava resistir a ela.
Ou não tão surpreendentemente, talvez. Enquanto Sarai observava, ele conseguiu, com um esforço incrível, deslizar o pé alguns centímetros, o que só podia significar que Minya ainda estava brincando com ele, segurando-o imperfeitamente para permitir uma esperança falsa.
Rubi estava parada na frente dele, séria – para ela – em uma camisola preta na altura dos joelhos. Suas mãos estavam entrelaçadas nas costas, e um pé enrolado recatadamente em torno do outro tornozelo.
– Sei que deve ter sido um choque terrível – Rubi explicava ao fantasma –, mas você verá que não é tão ruim. O que aconteceu antes, nada disso foi a gente. Nós não somos como nossos pais. – Ela estendeu a mão para tocar seu rosto.
Foi um gesto carinhoso. Rubi era descuidada, mas não estava brincando com o fantasma como Minya. Sarai sabia que ela queria consolar. O homem morto, contudo, não estava no clima de consolo.
– Não me toque, filha dos deuses – ele rosnou, e mordeu sua mão como um animal.
Rubi recuou.
– Que rude – disse ela, e virou-se para Minya. – Você o deixou fazer isso.
– Nada de morder – Minya disse ao fantasma, embora, é claro, Rubi estivesse certa: ele não teria sido capaz de mordê-la a menos que Minya permitisse. Conhecendo-a, Sarai pensou que provavelmente ela o tinha feito morder, pois os usava como marionetes, às vezes. Sarai lembrou-se de seu pesadelo, e de não ter controle sobre sua mão que segurava a faca, e estremeceu com a ideia de ser um brinquedo de Minya.
– Minya – Sarai protestou –, você prometeu deixá-lo ir.
As sobrancelhas de Minya ergueram-se.
– Prometi? Isso não parece nem um pouco comigo.
Nem um pouco. Minya era muitas coisas – perversa, caprichosa e obstinada entre eles. Era como uma criatura selvagem, às vezes furtiva e rude, até mesmo mal-educada, e com a falta de empatia que pertence aos assassinos e crianças pequenas. Tentativas de civilizá-la não funcionavam. Ela era invulnerável ao elogio, razão e vergonha, o que significava que não podia ser convencida nem persuadida, e ela era esperta, o que a fazia difícil de enganar. Ela era ingovernável, perfeitamente egoísta, melindrosa e dissimulada. Uma coisa que ela não era – jamais – era prestativa.
– Bem, você prometeu – Sarai persistiu. – Então... deixe-o ir? Por favor?
– O que, agora? Mas estou bem no meio do jogo.
– Tenho certeza de que você vai sobreviver a essa inconveniência.
Feral vinha examinando o tabuleiro, o queixo enterrado na mão, mas ergueu apenas os olhos, surpreso ao ouvir Sarai discutindo com Minya. Como uma regra, isso era uma coisa que eles evitavam, mas a raiva de Sarai a deixara despreocupada. No momento, ela não estava com vontade de pisar em ovos com os caprichos da garotinha. Depois do sonho que teve, a última coisa de que precisava era outro fantasma maligno olhando para ela.
– Qual é o problema com você? – Minya indagou. – Imagino que esteja sangrando.
Sarai levou um tempo para entender o que aquilo queria dizer, tanto que pensou no sangue que saiu do ferimento na cama, e na pressão fantasma da faca contra seu peito. Mas era do seu sangramento mensal a que Minya se referia, e tal sugestão a deixou ainda mais brava.
– Não, Minya. Diferentemente de você, o resto de nós experimenta uma gama completa de emoções, incluindo, mas não se limitando à aflição quando somos obrigados a suportar o ódio dos mortos.
E não era o rosto de Ari-Eil que estava em sua mente quando dissera isso, mas o das velhas a encurralando, e ela sabia que pelo menos parte de sua raiva com Minya era resquício do sonho e era irracional – porque Minya não tinha, de fato, soltado as velhas para perambularem pela cidadela e tentar assassiná-la. Mas parte de ser irracional é não se importar com estar sendo irracional e, nesse momento, ela não se importava.
– Ele a está incomodando tanto assim? – Minya perguntou. – Posso fazê-lo ficar de frente para a parede, se isso ajudar.
– Não ajuda – respondeu Sarai. – Apenas o deixe ir.
Os outros estavam assistindo, segurando a respiração, olhos arregalados. Os olhos de Minya eram sempre grandes, e agora brilhavam.
– Você tem certeza? – ela perguntou, e pareceu uma armadilha.
Mas que tipo de armadilha poderia ser?
– Claro que tenho certeza – respondeu Sarai.
– Está bem – disse Minya, em um tom cantarolado que significava que aquilo ia contra seu juízo –, mas é estranho que você não queira ouvir as notícias dele primeiro.
Notícias?
Sarai tentou imitar a calma fingida de Minya.
– Que notícias?
– Primeiro você não queria ouvir e agora quer. – Ela revirou os olhos. – Sério, Sarai. Decida-se.
– Eu nunca disse que não queria ouvir – Sarai respondeu abruptamente. – Você nunca disse que havia algo a ser ouvido.
– Você está irritada – Minya pontuou. – Tem certeza de que não está sangrando?
O que você sabe sobre isso? Sarai queria perguntar. Se você decidisse crescer, então talvez falássemos sobre isso. Mas ela não estava irritada o bastante – nem descuidada o bastante – para falar a palavra cresça para Minya, então apenas cerrou os dentes e acalmou-se.
Minya virou-se para Ari-Eil.
– Venha aqui – ela disse, e ele foi, embora ela ainda exercesse apenas controle parcial, permitindo-o resistir cada passo de forma que ele foi cambaleando e tropeçando. Era grotesco assistir, o que, é claro, era o ponto. Ela o levou até o lado oposto da longa mesa onde estava sentada. – Vá em frente e conte a eles o que você me contou.
– Conte você mesma – ele cuspiu.
E não era com o fantasma que ela brincava agora, arrastando aquele suspense, mas com o restante do grupo. Minya fez uma pausa para estudar o tabuleiro de quell, demorando-se para mover uma de suas peças, e Sarai podia ver na expressão de Feral que era um movimento devastador. Minya pegou a peça capturada com um olhar satisfeito e convencido. Um grito estava crescendo na mente de Sarai e, com ele, um pressentimento horrível de que a mortalha de condenação do dia anterior estivesse levando a esse momento.
Que notícias?
– Foi sorte nossa você ter morrido – Minya declarou, redirecionando-se para o fantasma. – Do contrário, nós poderíamos ter sido pegos inteiramente de surpresa.
– Não importa se vocês estão surpresos – rosnou o homem morto. – Ele os matou uma vez, e fará de novo.
Sarai sofreu um solavanco. Pardal levou um susto. Feral sentou-se, ereto.
– Minya – disse ele –, do que ele está falando?
– Conte-lhes – ordenou Minya. Sua voz ainda estava viva, mas não como um sino. Como uma faca. Ela colocou-se sobre seus pés, que estavam nus e sujos, e subiu da cadeira para a mesa, andando pela extensão até ficar de frente ao fantasma. Os dois estavam quase da mesma altura: ele, um homem adulto imponente; ela, uma criança pequena e bagunceira. Nada mais de suspense, e nada de ilusão de liberdade. Sua força de vontade o agarrou e suas palavras saíram como se ela tivesse enfiado a mão em sua garganta e arrancando-as de lá.
– O Matador de Deuses está vindo! – ele gritou, sem fôlego. Isso Minya o fez dizer, mas o resto foi falado livremente. Selvagemente. – E ele vai destruir seu mundo.
Minya olhou por sobre o ombro. Sarai viu Skathis em seus olhos, como se o deus das bestas estivesse, de certa forma, vivo em sua filha pequena. Era um olhar arrepiante: frio e acusador, cheio de culpa e triunfo.
– Bem, Sarai? – ela perguntou. – O que você tem a dizer a esse respeito? Seu pai está voltando para casa.
21
O PROBLEMA EM LAMENTO
– O que é isso? – Lazlo perguntou. Ele se sentia perfeitamente equilibrado no ponto entre o encantamento e o pavor, e não sabia o que sentir. Pavor, tinha de ser, porque foi o que vislumbrou no rosto de Eril-Fane, mas como ele poderia não se sentir encantado com tal visão?
– Aquilo – explicou Eril-Fane – é a cidadela dos Mesarthim.
– Mesarthim? – disse Lazlo, no mesmo momento em que Thyon Nero perguntou: – Cidadela? – Suas vozes chocaram-se, e seus olhares também.
– Cidadela, palácio, prisão – explicou Eril-Fane. Sua voz era severa, e reduziu-se a quase nada na última palavra.
– Aquilo é um prédio? – perguntou Ebliz Tod, impetuoso e incrédulo. Sua Espiral de Nuvem, ao que parecia, não era a estrutura mais alta do mundo.
A altura da coisa era apenas um elemento de sua magnificência, e nem mesmo era o mais importante. Era alta, certamente. Mesmo a quilômetros de distância era claramente gigantesca, mas como medir adequadamente a altura se ela não ficava apoiada no chão?
A coisa flutuava. Estava fixa no espaço, absolutamente imóvel, bem acima da cidade, sem nenhum meio possível de suspensão – a menos, é claro, que houvesse algum andaime no céu. Era composta de um metal azul brilhante, com um brilho quase espelhado, tão suave quanto a água e sem ângulos retilíneos ou planos, mas cheia de contornos, flexível como a pele. Não parecia uma coisa construída ou esculpida, mas sim feita de metal derretido. Lazlo mal conseguia decidir o que era mais extraordinário: que ela flutuava, ou que tomava a forma de um ser imenso, porque foi aqui que sua teoria louca e improvável se tornou louca e improvavelmente verdadeira. Por assim dizer.
A inimaginável estrutura tinha a forma de um serafim. Era uma estátua gigante demais para ser concebida: em pé, ereta, pés em direção à cidade, cabeça no céu, braços para fora em uma postura de súplica. Suas asas estavam bem abertas. Suas asas. Aquela grande envergadura de metal. Elas estavam abertas em uma extensão tão gigantesca que cobriam toda a cidade, bloqueando a luz do sol. A luz da lua, das estrelas, toda a luz natural.
Não era isso que Lazlo quis dizer com sua teoria, mesmo de brincadeira, mas ele tinha dificuldade de saber o que era mais louco ou mais improvável: o retorno de seres míticos do céu ou uma estátua de metal de centenas de metros de altura flutuando no ar. A imaginação, ele pensou, não importava quão vívida era, ainda estava amarrada em alguma medida ao que era conhecido, e isso estava além de qualquer coisa que pudesse imaginar. Se o Matador de Deuses tivesse lhes contado antes, teria soado absurdo até mesmo para ele.
Os delegados encontraram suas vozes e derramaram um dilúvio de perguntas.
– Como ela flutua?
– O que é esse metal?
– Quem fez isso?
– Como isso chegou lá?
Lazlo perguntou:
– Quem são os Mesarthim? – E aquela foi a primeira pergunta que Eril-Fane respondeu. Mais ou menos.
– A pergunta é: quem eram os Mesarthim. Eles estão mortos agora. – Lazlo pensou ter visto um traço de tristeza nos olhos do Matador de Deuses, mas não conseguia entender bem. Os Mesarthim só podiam ser os “deuses” cujas mortes tinham lhe rendido o nome de Matador de Deuses. Mas se ele os matou, por que deveria ficar triste? – E aquilo – ele acrescentou, apontando – também está morto.
– O que você quer dizer com está morto? – alguém perguntou. – Estava vivo antes? Aquela... coisa?
– Não exatamente – explicou Eril-Fane –, mas se movia como se estivesse. Ela respirava. – Ele não olhava ninguém, parecendo muito distante. Caiu em silêncio observando a imensidão da estranheza à frente e então soltou o ar dos pulmões: – Quando o sol se levantou naquele dia, duzentos anos atrás, ela estava lá. Quando as pessoas saíram de casa, olharam para cima e a viram, houve muitas que se alegraram. Nós sempre idolatramos os serafins aqui. Pode parecer um conto de fadas para alguns de vocês, mas nossos templos são construídos com os ossos de demônios e isso não é um conto de fadas para nós. – Ele fez um gesto em direção ao grande anjo de metal. – Nosso livro sagrado fala de uma Segunda Vinda. Isso não é o que pensávamos que seria, mas muitos queriam acreditar. Nossas sacerdotisas sempre nos ensinaram que a divindade, em virtude de seu grande poder, deve abarcar tanto a beleza quanto o terror. E aqui estão ambos. – Ele balançou a cabeça. – Mas no fim, a forma da cidadela pode ter sido apenas uma piada de mau gosto. O que quer que fossem, os Mesarthim não eram serafins.
Todos estavam em silêncio. Os faranji pareciam tão estupefatos quanto Lazlo. Alguns cenhos franziram-se à medida que as mentes racionais tentavam compreender essa prova do impossível – ou pelo menos até então inconcebível. Outros estavam com semblantes pasmos de perplexidade. Os Tizerkane pareciam sérios, e... isso era estranho, mas Lazlo percebeu, primeiro em Azareen e a forma como ela mantinha os olhos fixos em Eril-Fane, que nenhum deles estava olhando para a cidadela. Ruza ou Tzara não estavam, nem nenhum deles. Para Lazlo parecia que todos olhavam para qualquer parte exceto para lá, como se não pudessem suportar a visão da coisa.
– Eles não tinham asas, não eram seres de fogo como os serafins, e havia seis deles, três homens e três mulheres. Nenhum exército, nada de servos. Eles não precisavam – explicou Eril-Fane –, pois tinham a magia. – E deu um sorriso amargo. – Magia não é conto de fadas, como temos motivo para saber aqui. Eu queria que vocês vissem isso antes que eu tentasse explicar, pois tinha certeza que suas mentes iriam resistir. Mesmo agora, com a prova à sua frente, posso ver que estão relutando.
– De onde eles vieram? – Calixte perguntou.
Eril-Fane simplesmente sacudiu a cabeça.
– Não sabemos.
– Mas vocês dizem que eles eram deuses? – perguntou Mouzaive, o filósofo natural, que estava com dificuldade de acreditar no divino.
– O que é um deus? – respondeu Eril-Fane. – Não sei a resposta para isso, mas posso lhes dizer o seguinte: os Mesarthim eram poderosos, mas não eram nada sagrados.
Eril-Fane afundou-se no silêncio e o grupo esperou para ver se ele o quebraria. Havia tantas perguntas que desejavam fazer, mas mesmo Drave, o explosionista, sentiu o peso do momento e segurou a língua. Quando Eril-Fane falou, contudo, foi apenas para dizer:
– Está ficando tarde. Vocês precisam chegar à cidade.
– Nós vamos para lá? – alguns deles indagaram, com medo nas vozes. – Bem debaixo daquela coisa?
– É seguro – o Matador de Deuses os assegurou. – Prometo a vocês. É apenas uma concha agora. Está vazia há quinze anos.
– Então qual é o problema? – Thyon Nero perguntou. – Por que exatamente você nos trouxe aqui?
Lazlo ficou surpreso com o fato de Nero não ter entendido. Ele observava a monstruosidade ofuscante e a sombra debaixo dela. “A sombra do nosso tempo escuro ainda nos assombra”. Eril-Fane pode ter matado os deuses e libertado seu povo da escravidão, mas aquela coisa ainda permanecia, bloqueando o sol e lhes impondo um longo tormento.
– Para nos livrarmos daquilo – Lazlo esclareceu ao alquimista, tão certo quanto estivera sobre qualquer coisa – e devolvermos o céu para a cidade.
22
PADRÃO DE LUZ, RABISCO DE ESCURIDÃO
Lazlo olhou para cima em direção à brilhante cidadela de metal estranhamente azul flutuando no céu.
Sarai olhou para baixo, para o brilho da Cúspide, para além do sol que logo iria se pôr, e para o fio fino que serpenteava pelo vale em direção a Lamento. Era a trilha. Espremendo os olhos, ela pôde discernir um progresso de pequenas manchas contra o branco.
Lazlo era uma das manchas.
Em volta de ambos, vozes discutiam e conflitavam – especulação, debate, alarme –, mas os dois as ouviam apenas como barulho, absortos em seus próprios pensamentos. A mente de Lazlo estava incendiada com o encantamento, o fósforo aceso atiçando estopim atrás de estopim. Linhas queimando corriam através de sua consciência, conectando pontos distantes e preenchendo lacunas, apagando interrogações e acrescentando uma dúzia a mais para cada uma apagada. Uma dúzia de dúzias. Não havia fim às perguntas, mas os esboços de respostas estavam começando a aparecer, e elas eram surpreendentes.
Entretanto, se sua absorção era um padrão de luz, a de Sarai era um rabisco de escuridão. Por quinze anos, ela e os outros sobreviveram escondendo-se, presos na cidadela dos deuses assassinados e existindo precariamente nela. E talvez eles sempre tivessem sabido que esse dia chegaria, mas a única vida – a única sanidade – havia sido acreditar que era possível mantê-los longe. Agora, aquelas manchas à distância, quase pequenas demais para serem vistas, estavam vindo inexoravelmente em sua direção para tentar desmantelar seu mundo, e os farrapos que restavam da crença de Sarai a haviam abandonado.
O Matador de Deuses havia retornado a Lamento.
Ela sempre soubera quem era seu pai. Muito antes de começar a gritar mariposas e enviar seus sentidos à cidade, ela sabia sobre o homem que tinha amado sua mãe e a matado, e que a teria matado também, se ela estivesse no berçário com os outros. Imagens surgiram do seu arsenal de horrores. A forte mão dele rasgando a garganta de Isagol com uma faca. Crianças e bebês gritando, os mais velhos debatendo-se nos braços de seus assassinos. Veias arteriais espumando, jatos vermelhos que saltavam. “A garganta é melhor”, a velha dissera no pesadelo de Sarai. Ela estendeu as mãos para a garganta e as fechou como se pudesse protegê-la.
Seu pulso estava frenético, sua respiração irregular, e parecia impossível que pessoas pudessem viver com uma coisa tão frágil quanto a pele mantendo o sangue, a respiração e o espírito a salvo dentro do corpo.
Na balaustrada do jardim na cidadela dos Mesarthim, com fantasmas espiando sobre seus ombros, os filhos dos deuses observaram sua morte cavalgar para Lamento.
E no céu acima – vazio, vazio, vazio e então não vazio – uma ave branca apareceu no azul, como a ponta de uma faca enfiada em um véu, e onde quer que estivesse, e como quer que tenha chegado, estava ali agora, e estava observando.
PARTE III
mahal (muh.HAHL) substantivo
Um risco que trará enorme recompensa ou consequência desastrosa.
Arcaico; de mahalath, uma névoa mítica que transforma a pessoa em deus ou em monstro.
23
NÃO MAIS PERDIDA
A lendária Lamento, não mais perdida.
Do topo da Cúspide, onde a delegação do Matador de Deuses estava, uma trilha descia para o cânion do rio Uzumark, com o branco vidro de demônio gradualmente dando lugar à pedra cor de mel dos penhascos, espirais e arcos naturais e ao verde das florestas tão densas que as copas das árvores pareciam um tapete de musgos visto de cima. E as cachoeiras podiam ser cortinas de seda clara penduradas no topo dos penhascos, numerosas demais para contar. Com cortinas de cachoeira e tapetes de floresta, o cânion parecia uma sala longa e bela, e Lamento uma cidade de brinquedo – um modelo dourado – no seu centro. O surrealismo chocante da cidadela – o tamanho da coisa – destruía o senso de escala da mente.
– Eril-Fane quer que eu escale aquilo? – Calixte perguntou, olhando para o grande serafim.
– Qual é o problema? Não conseguiria? – provocou Ebliz Tod.
– Preciso alcançá-la primeiro – ela brincou. – Imagino que é aí que você entra. – Ela acenou para ele, com um gesto majestoso. – Seja gentil e construa escadas para mim.
Tod ficou ofendido e momentaneamente sem fala e, durante a pausa, Soulzeren interrompeu:
– Na verdade, seria mais rápido voar. Nós podemos arrumar os trenós de seda em poucos dias.
– Entretanto, isso é apenas para chegar lá – observou seu marido, Ozwin. – Essa será a parte fácil. Livrar-se dela, este será um outro problema.
– O que você acha? – Soulzeren indagou. – Mudá-la de lugar? Desmontá-la?
– Explodi-la – completou Drave, o que atraiu olhares incrédulos de todo mundo.
– Você está vendo que ela fica exatamente acima da cidade – Lazlo observou.
– Então eles saem do caminho.
– Imagino que eles estejam tentando evitar uma destruição assim.
– Então por que me convidaram? – ele perguntou, sorrindo.
– Realmente, por quê? – Soulzeren murmurou.
Drave estendeu a mão para bater no ombro de Thyon Nero.
– Você ouviu isso? – ele perguntou, uma vez que Thyon não tinha dado risada. – Por que me convidaram se não querem destruição, hein? Por que trazer dez camelos de pólvora se não querem explodir aquela coisa de volta para o céu?
Thyon sorriu discretamente e assentiu, embora fosse claro que sua mente estava ocupada com outra coisa, claramente processando o problema à sua maneira. Ele se manteve reservado, enquanto os outros delegados vociferavam. Por meses seus intelectos estiveram perdidos no mistério. Agora o céu apresentava o maior quebra-cabeça científico que jamais haviam encontrado, e todos consideravam seu lugar nele, bem como suas chances de resolvê-lo.
Mouzaive falava com Belabra sobre ímãs, mas Belabra não estava ouvindo. Ele murmurava cálculos indecifráveis, enquanto os Fellering – os metalúrgicos gêmeos – discutiam a possível composição do metal azul.
Quanto a Lazlo, ele se sentia maravilhado e, ao mesmo tempo, humilhado. Soubera desde o primeiro momento que não tinha qualificações para a delegação do Matador de Deuses, mas foi só depois de ver o problema que percebeu como parte dele ainda tinha esperança de que seria ele a pessoa a resolvê-lo. Ridículo. Um livro de histórias podia ter o segredo do azoth, e o conhecimento das histórias pode ter lhe conquistado um lugar no grupo, mas ele dificilmente achava que elas lhe dariam alguma vantagem agora.
Bem, mas ele estava ali, e ajudaria da forma que pudesse, mesmo que apenas fazendo serviços para os delegados. O que o Mestre Hyrrokkin dizia? “Alguns homens nasceram para coisas grandiosas e, outros, para ajudar grandes homens a fazer coisas grandiosas”. Ele também dissera que não havia vergonha nisso, e Lazlo concordava.
Ainda assim, era demais esperar que o “homem nascido para coisas grandiosas” não fosse Thyon Nero? Qualquer um menos ele, pensou Lazlo, rindo um pouco de sua própria mesquinhez.
A caravana desceu a trilha pelo vale e Lazlo observou ao redor, boquiaberto. Ele estava mesmo ali, vendo aquilo. Um cânion de rocha dourada, fileiras de floresta preservada, um grande rio verde apagado pela névoa das cachoeiras, correndo junto à sombra da cidadela. Lá, um pouco antes da cidade, o Uzumark alargava-se em um delta e era dividido em faixas por rochas e pequenas ilhas antes de simplesmente desaparecer. Depois da cidade, ele reaparecia e continuava sua jornada tumultuosa para o leste e para longe. O rio parecia correr debaixo da cidade.
A distância, Lamento era surpreendentemente da forma que Lazlo imaginara – ou pelo menos como ele a imaginava há tanto tempo através de um véu de sombras. Havia os domos dourados, embora menos do que ele pensasse, e não brilhavam. A luz do sol não os atingia. No momento em que o sol descia o suficiente para lançar seus raios por baixo das asas abertas da cidadela, ele já tinha passado o topo da Cúspide, e apenas trocava uma sombra por outra.
Mas era mais do que isso. Havia um ar de abandono na cidade, uma sensação de desespero perene. Lá estavam os muros defensivos, construídos em uma oval harmoniosa, mas a harmonia estava quebrada. O muro estava destruído em quatro lugares. Dispostos com precisão geométrica nos pontos cardeais estavam quatro peças do mesmo metal estranho da cidadela. Eram grandes blocos cônicos, cada um tão grande quanto um castelo, mas pareciam totalmente lisos, sem janelas e portas. De cima, os blocos pareciam um conjunto de pesos de papel segurando as pontas da cidade para que ela não voasse.
Era difícil enxergá-los dessa distância, mas parecia haver algo no topo de cada um. Uma estátua, talvez.
– O que são esses grandes blocos? – Lazlo perguntou a Ruza, apontando.
– São as âncoras.
– Âncoras? – Lazlo espremeu os olhos, avaliando a posição dos blocos em relação ao grande serafim no céu, que parecia estar centralizado no ar acima deles. – Elas funcionam como âncoras? – questionou. E pensou em navios no porto e, nesse caso, haveria uma corrente até a âncora. Nada visível conectava o serafim aos blocos. – Elas evitam que a cidadela fique à deriva?
O sorriso de Ruza foi irônico.
– Eles nunca se deram ao trabalho de explicar para nós, Estranho, apenas as colocaram no dia em que chegaram, sem se importar com o que havia debaixo delas, e lá elas estão desde então. – Ruza apontou com a cabeça para a procissão atrás deles. – Acha que um desses gênios será capaz de movê-las?
– Mover as âncoras? Você acha que é assim que se move a cidadela?
Ruza deu de ombros.
– Ou o quê? Amarrar cordas nela e puxar? Tudo o que sei é que ela não vai partir do mesmo jeito que chegou. Não com a morte de Skathis.
Skathis.
O nome era como o sibilar de uma serpente. Lazlo o assimilou, e percebeu que Ruza estava falando. Bem, ele estava sempre falando. O ponto principal era: o segredo que os tinha amarrado até agora havia aparentemente se rompido. Lazlo podia fazer perguntas. Ele virou para seu amigo.
– Não olhe para mim desse jeito – disse Ruza.
– De que jeito?
– Como se eu fosse um livro bonito que você está prestes a abrir e saquear com seus olhos loucos e ávidos.
Lazlo riu.
– Olhos loucos e ávidos? Saquear? Você está com medo de mim, Ruza?
Ruza ficou paralisado repentinamente.
– Você sabe, Estranho, que perguntar a um Tizerkane se ele tem medo de você é desafiá-lo para um combate?
– Bem – respondeu Lazlo, ciente de que não podia acreditar em tudo o que Ruza dizia –, então estou contente que disse isso a você e não a uma das temíveis guerreiras como Azareen ou Tzara.
– Isso não é nada gentil – disse Ruza, ofendido. Seu rosto enrugou-se. Ele fingiu chorar. – Eu sou temível – ele insistiu. – Eu sou.
– Está bem, está bem – Lazlo o consolou. – Você é um guerreiro muito feroz. Não chore. Você é aterrorizante.
– Mesmo? – perguntou Ruza, com uma vozinha esperançosa. – Você não está dizendo isso da boca para fora?
– Seus dois bobos – disse Azareen, e Lazlo sentiu uma pontada curiosa de orgulho, ao ser chamado de bobo por ela, com o que podia ter sido um quê de carinho. Ele trocou um olhar arrependido com Ruza enquanto Azareen passou por eles na trilha e tomou a frente.
Pouco tempo antes, Lazlo tinha visto-a discutindo com Eril-Fane, e ouvira o bastante para entender que ela desejava ficar com ele no Forte Misrach. “Por que você tem de enfrentar tudo sozinho?”, ela tinha perguntado antes de se virar e deixá-lo lá. E quando Lazlo olhou pela última vez para acenar, a caravana voltando à trilha e o Matador de Deuses ficando para trás, ele parecia não só diminuído, mas também assombrado.
Se era seguro na cidade, como ele prometeu, então por que estava daquele jeito, e por que não foi junto a eles?
O que aconteceu aqui?, Lazlo se questionou. Ele não fez mais perguntas. Em silêncio, cavalgaram o restante do caminho até Lamento.
Eril-Fane ficou parado no cume e observou a caravana tomar o caminho da cidade. Levou uma hora para chegarem, entrando e saindo de vista entre as árvores e, quando deixaram a floresta de uma vez, estavam distantes demais para ele ver quem era quem. Conseguia apenas discernir os espectrais dos camelos, e isso era tudo. Estava escurecendo, o que não ajudava.
Azareen estaria à frente, com as costas eretas, o rosto erguido, e ninguém atrás dela suspeitaria de seu olhar. De solidão. A tristeza brutal e confusa.
Ele fez isso com ela. Inúmeras vezes.
Se ela simplesmente desistisse de Eril-Fane, ele poderia parar de destruí-la. Ele jamais poderia ser o que ela esperava – o que fora um dia. Antes disso, ele era um herói. Antes mesmo de ser um homem.
Antes ele fora o amante da deusa do desespero.
Eril-Fane estremeceu. Mesmo depois de todos esses anos, a ideia de Isagol, a Terrível, causava uma tempestade dentro de si – rancor e saudade, desejo e desgosto, violência e até afeição –, tudo isso agitando, sangrando e contorcendo-se, como uma cova de ratos comendo uns aos outros vivos. Era isso que seus sentimentos eram agora, o que Isagol havia feito com eles. Nada bom ou puro podia sobreviver nele. Tudo era corrupção e ferida, sufocando em sua autodepreciação. Como ele era fraco, como era patético. Embora tivesse assassinado a deusa, não estava livre dela, e nunca estaria.
Se apenas Azareen o deixasse. Todo dia ela esperava que ele se tornasse quem era antes, e assim carregava não só o próprio fardo da solidão, mas o dela também.
Assim como o de sua mãe. Pelo menos ele podia enviar Lazlo para ela cuidar, e isso a ajudaria. Mas ele não podia enviar alguém para casa com Azareen para tomar seu lugar como... como marido.
Só ela poderia fazer essa escolha, e ela não faria.
Eril-Fane havia dito a Lazlo que não dormia bem em Lamento. Bem, isso, na verdade, era minimizar o problema. Seu sangue ficava frio só de pensar em fechar os olhos na cidade. Mesmo dali de cima, onde a distância fazia da cidade um brinquedo – um brilho bonito de glaves longínquas e ouro envelhecido –, ele sentia sua atmosfera como tentáculos esperando para arrastá-lo de volta, e não podia parar de tremer. Melhor que ninguém o visse assim. Se o Matador de Deuses não podia manter sua compostura, como os outros poderiam?
Sentindo-se como o maior covarde do mundo, ele virou as costas para sua cidade, seus convidados, e sua mulher, a quem não amava porque ele não podia amar, e cavalgou de volta pela trilha curta até o Forte Misrach.
Amanhã, ele disse a si mesmo. Amanhã ele enfrentaria Lamento, e seu dever, e os pesadelos que o perseguiam. De alguma forma encontraria a coragem para terminar o que havia começado quinze anos antes e libertaria seu povo do último vestígio de seu longo tormento.
Mesmo que nunca libertasse a si mesmo.
24
OBSCENIDADE. CALAMIDADE. CRIA DOS DEUSES.
– Eu te disse que morreríamos antes de ficarmos sem vestidos – disse Rubi, e toda sua bravata insolente havia desaparecido. Ela podia ter brincado sobre morrer quando era uma abstração, mas agora não estava brincando.
– Ninguém vai morrer – assegurou Feral. – Nada mudou.
Todas o olharam.
– Nada exceto o fato de que o Matador de Deuses está de volta – Rubi observou.
– Com homens e mulheres inteligentes do mundo lá fora – Pardal acrescentou.
– Dispostos a nos destruir – Minya concluiu.
– Não para nos destruir – argumentou Feral. – Eles não sabem que estamos aqui.
– E o que você acha que eles vão fazer quando nos encontrarem? – perguntou Minya. – Expressarão surpresa educadamente e se desculparão por entrar em nossa casa sem pedir licença?
– Não chegará a isso – ele disse. – Como eles poderão chegar perto de nós se não podem voar? Estamos seguros aqui em cima.
Embora não admitisse, Sarai podia ver que ele estava preocupado também. Eram os forasteiros. O que os cinco sabiam sobre o resto do mundo e a capacidade de seu povo? Nada.
Eles estavam no terraço do jardim, que ficava no topo do peito do grande serafim, estendendo-se de ombro a ombro, e tinha uma vista da cidade até a Cúspide. Impotentes, o grupo observava a procissão descer a montanha e desaparecer dentro da cidade. Sarai estava entre as ameixeiras, as mãos tremendo, pousadas na balaustrada. À frente dela não havia nada além do vazio – uma queda reta em direção aos telhados. Ela estava inquieta, parada tão perto. Ela descia todas as noites através dos sentidos de suas mariposas, mas isso era diferente. As mariposas tinham asas, ela, não. Deu um passo cuidadoso para trás e segurou firme em um galho forte.
No entanto, Rubi era descuidada e inclinou-se muito para fora.
– Onde você acha que eles estão agora? – ela perguntou. E pegou uma ameixa para lançar o mais forte que podia. Pardal se assustou. Eles viram a fruta fazer um arco no ar.
– Rubi! O que você está fazendo? – Pardal perguntou.
– Talvez eu atinja um deles.
– A Regra...
– A Regra – Rubi repetiu, revirando os olhos. – Você acha que elas não caem das árvores sozinhas? Oh, veja, uma ameixa! – Ela fez a mímica de pegar algo do chão, examinar, então virar a cabeça para olhar para cima. – Deve ter alguém vivendo lá em cima! Vamos matá-los!
– Acho que dificilmente uma ameixa sobreviveria à queda – Feral observou.
Rubi lhe lançou o olhar mais frio que talvez já tenha existido. Então, inesperadamente, começou a rir, levando a mão à barriga e dobrando-se ao meio.
– Acho que dificilmente uma ameixa sobreviveria à queda – ela repetiu, rindo mais alto. – E quanto a mim? – ela perguntou, passando uma perna por cima da balaustrada, e Sarai sentiu um frio na barriga. – Você acha que eu sobreviveria à queda? Agora, isso sim seria quebrar a Regra.
Pardal assustou-se.
– Chega – pediu Sarai, puxando Rubi de volta. – Não seja tonta. – Ela podia sentir o pânico pulsando por baixo da pele naquele momento, e fez um esforço para abafá-lo. – Feral está certo. É muito cedo para nos preocuparmos.
– Nunca é cedo para nos preocuparmos – respondeu Minya que, diferentemente dos demais, não parecia nem um pouco preocupada. Ao contrário, ela parecia entusiasmada. – A preocupação leva à preparação.
– Que tipo de preparação? – Pardal perguntou, com a voz trêmula. Ela olhou em volta para o jardim, para os graciosos arcos da galeria, através dos quais a mesa do jantar podia ser vista, e o fantasma Ari-Eil ainda estava em pé, rígido, onde Minya o havia deixado. Uma brisa balançou a cortina de vinhas, que era a única coisa que separava o lado de dentro do lado de fora. – Nós não podemos nos esconder. Se pudéssemos ao menos fechar as portas...
“Portas” na cidadela não eram nada como as de madeira entalhada à mão que Sarai conhecia da cidade. Elas não abriam e fechavam, não tinham fechaduras nem trancas. Não eram objetos, apenas aberturas no mesarthium liso. As abertas eram assim. As fechadas não eram portas, apenas extensões lisas das paredes, porque na época em que a cidadela estava “viva”, o metal simplesmente derretia-se aberto e fechado, tomando forma sem emendas.
– Se pudéssemos fechar as portas – Minya lembrou-a lentamente –, isso significaria que poderíamos controlar o mesarthium. E se pudéssemos controlar o mesarthium, poderíamos fazer muito mais do que fechar as portas. Havia um tom ácido em sua voz. Minya, sendo filha de Skathis, sempre teve uma amargura supurando no seu íntimo, pelo fato de não ter herdado seu poder – o único poder que poderia tê-los libertado. Era o dom mais raro de todos, e Korako havia monitorado de perto os bebês em busca de algum sinal dele. Em todos os anos de Grande Ellen no berçário, o dom havia se manifestado apenas uma vez, e Korako tinha levado o bebê na mesma hora.
O mesarthium não era um metal comum. Ele era adamante perfeito: impenetrável, inatacável. Não podia ser cortado nem perfurado; ninguém jamais conseguira fazer um risco sequer nele. Ele tampouco fundia-se, mesmo a fornalha mais quente e o ferreiro mais forte não podiam amassá-lo. Até o fogo de Rubi não tinha efeito sobre ele. Entretanto, de acordo com a vontade de Skathis, ele se moldava, mudando de forma em novas configurações como a fluidez do mercúrio. Duro e frio ao toque, ele, contudo, tinha se fundido em sua mente, e as criaturas que lhe davam o título de “deus das bestas” – em vez de meramente “deus do metal” – haviam sido coisas vivas.
Havia quatro monstros de mesarthium, um para cada um dos imensos blocos de metal posicionados no perímetro da cidade. Rasalas fora seu favorito e, embora os cidadãos de Lamento acreditassem que a besta era apenas metal animado pela mente de Skathis, esse entendimento era soterrado pelo terror. O medo que sentiam dele era como uma entidade, e Sarai entendia o porquê. Milhares e milhares de vezes ela o tinha visto nos sonhos da população, e era difícil até mesmo para ela não acreditar que a criatura não estava viva. A cidadela no céu também parecia viva. Na época, qualquer um que olhasse para cima provavelmente a encontraria observando de volta com seus olhos imensos e inescrutáveis.
Tal havia sido o dom de Skathis. Se eles o tivessem, então as portas seriam uma preocupação menor, pois poderiam devolver a vida à cidadela inteira e movê-la para onde quisessem – embora Sarai não conseguisse imaginar nenhum lugar que os quisesse.
– Bem, não podemos, podemos? – disse Pardal. – E não podemos lutar...
– Você não pode – concordou Minya, com desdém, como se o dom de Pardal, que os tinha alimentado por anos, não tivesse valor por não ser violento. – E você... – direcionou a Feral, com igual desdém. – Se quiséssemos assustá-los com trovões, você poderia ser útil. – Ela o incitou durante anos para aprender a manejar e mirar raios, com resultados desanimadores. Estava além do seu controle e, embora isso se devesse aos parâmetros naturais de seu dom e não a uma falha pessoal, não o poupava do julgamento de Minya. Na sequência, seus olhos desviaram-se para Sarai, e aqui o olhar foi além do desdém para algo mais combativo. Rancor, frustração, maldade. Sarai os conhecia bem, pois suportara as ferroadas desde que parara de fazer cegamente tudo o que Minya dizia.
– E então tem a Fogueira – Minya disse, passando para Rubi, sem desdém, mas com uma consideração fria.
– O que tem eu? – perguntou Rubi, cautelosa.
O olhar de Minya focou nela.
– Bem, suponho que você possa fazer mais com o seu dom do que aquecer a banheira e queimar as roupas.
Rubi ficou pálida de um azul cerúleo sem sangue.
– Você quer dizer... queimar pessoas?
Minya soltou uma risadinha.
– Você é a única de nós cinco que é uma arma e nunca nem mesmo considerou...
Rubi a interrompeu.
– Eu não sou uma arma.
A alegria de Minya desapareceu. Ela disse friamente:
– Quando se trata da defesa da cidadela e de nossas vidas... sim, você é.
Às vezes é possível vislumbrar a alma de uma pessoa em uma centelha de expressão, e Sarai vislumbrou a de Rubi, o desejo que estava no seu íntimo. No dia anterior refletira que o dom de Rubi expressava sua natureza, e isso era verdade, mas não da forma como Minya queria. Rubi era calor e volatilidade, ela era paixão, mas não violência. Desejava beijar, não matar. Parecia bobo, mas não era. Ela tinha quinze anos e estava furiosamente viva e, por um breve momento, Sarai viu suas esperanças expostas e destruídas, e sentiu nelas o eco de suas próprias. De ser outra pessoa.
De não ser... isso.
– Sério? – afirmou Feral. – Se tivermos que lutar, que chance você acha que temos? O Matador de Deuses matou os Mesarthim, que eram muito mais poderosos do que nós.
– Ele teve a vantagem da surpresa – explicou Minya, quase mostrando os dentes. – Teve a vantagem da traição. Agora nós a temos.
Um pequeno soluço escapou de Pardal. Qualquer calma que eles estivessem fingindo estava desaparecendo. Não, Minya estava acabando com a calma, deliberadamente. O que há de errado com você?, Sarai queria perguntar, mas sabia que não iria se satisfazer. Em vez disso, com toda a autoridade que conseguiu reunir, falou:
– Nós não sabemos nada ainda. Feral está certo. É muito cedo para nos preocuparmos. Vou descobrir o que puder hoje à noite e amanhã saberemos se precisamos ter essa conversa ou não. Por enquanto, é hora do jantar.
– Não estou com fome – disse Rubi.
Tampouco estava Sarai, mas ela pensou que se pudessem agir normalmente, talvez se sentissem normais. Um pouquinho, pelo menos. Embora fosse difícil se sentir normal com um fantasma olhando para você da ponta da mesa.
– Minya – incomodava-a ser gentil, mas ela se obrigou –, você pode, por favor, mandar Ari-Eil para longe para podermos comer em paz? – Ela não pediu que a garota o soltasse, pois entendia que Minya queria mantê-lo por perto, mesmo que apenas para atormentar Sarai.
– Certamente, já que você pediu tão educadamente – respondeu Minya, combinando seu tom gentil com um quê de zombaria. Ela não deu um sinal visível, mas, na sala de jantar, o fantasma movimentou-se e girou em direção à porta interna. Minya havia parado de brincar com ele, aparentemente, visto que ele não lutara dessa vez, mas praticamente deslizou para longe de suas vistas.
– Obrigada – agradeceu Sarai, e entraram.
O jantar não era sopa de kimril, embora Sarai duvidasse que Rubi teria expressado qualquer objeção a ela essa noite.
Ela estava estranhamente quieta, e Sarai podia imaginar o teor de seus pensamentos. Os seus próprios eram sombrios o bastante, e ela não estava diante da ideia de queimar pessoas vivas. O que Feral disse era verdade, que jamais poderiam vencer uma batalha. Assim que fossem descobertos, não havia um cenário no qual a vida continuasse.
Ela não se demorou na galeria depois do jantar e pediu a Rubi que lhe esquentasse um banho.
Todas as suítes tinham banheiros com banheiras profundas de mesarthium, mas a água não saía mais dos canos, então, usavam uma banheira de cobre na sala da chuva. A “sala da chuva” era o aposento fora das cozinhas que designaram para Feral evocar as nuvens. Ali havia barris e um canal no chão captava a água que sobrava e a desviava para o jardim. Kem, o criado fantasma, disse que lá fora o açougue e o canal era para o sangue e os grandes ganchos no teto eram para pendurar carne. Mas não havia mais traço de sangue, assim como nenhum sangue ficara no berçário ou nos corredores. Uma das primeiras ordens de Minya para os fantasmas após o Massacre foi de limpar todo o sangue.
Sarai colocou água na banheira com um balde, e Rubi pôs as mãos do lado e as acendeu. Apenas as mãos, como se segurasse bolas de fogo. O cobre conduzia o calor muito bem e logo a água estava quente, então Rubi saiu. Sarai submergiu, lavando os cabelos com o sabão que Grande Ellen preparava com as ervas do jardim. Tinha a sensação peculiar de que estava se preparando – como se seu corpo fosse sair da cidadela, e não apenas seus sentidos. Ela estava até nervosa, como se fosse conhecer pessoas novas. Conhecer. Estava prestes a espionar novas pessoas e violar suas mentes. O que importava se seus cabelos estavam limpos? Elas não a veriam, nem teriam qualquer consciência de sua presença. Nunca tinham. Em Lamento, era ela quem era a fantasma, e uma fantasma livre, invisível, incorpórea, insubstancial como um murmúrio.
De volta ao closet, colocou uma camisola. Olhando-se no espelho, descobriu que havia perdido a capacidade de ver-se com os próprios olhos. Ela via apenas o que os humanos veriam. Não uma garota ou uma mulher ou alguém no meio disso. Os humanos não veriam sua solidão, seu medo ou sua coragem, muito menos sua humanidade. Eles veriam apenas obscenidade. Calamidade.
Cria dos deuses.
Algo tomou conta de si. Uma onda de rebeldia. Seus olhos varreram o closet. Passando das camisolas para os vestidos terríveis, os chapéus e leques, potes de pintura facial de sua mãe e todos os acessórios macabros da deusa do desespero. E quando saiu de lá, Pequena Ellen, que havia lhe levado chá, olhou duas vezes e quase derrubou a bandeja.
– Oh, Sarai, você me assustou.
– Sou apenas eu – respondeu, embora não se sentisse muito ela mesma. Nunca havia desejado se parecer com sua mãe, mas nesta noite, sentia falta de um pouco da ferocidade da deusa, então pintou a faixa preta de Isagol atravessando os olhos, de têmpora a têmpora, e bagunçou os cabelos vermelho-canela, deixando-os o mais selvagens possível.
Ela virou-se para o terraço – que era a mão direita estendida do gigante serafim de metal – e saiu para encontrar-se com a noite e os recém-chegados.
25
A NOITE E OS RECÉM-CHEGADOS
Sarai gritou suas mariposas para Lamento, e para baixo os insetos rodopiaram. Em uma noite normal, eles se separariam e dividiriam a cidade entre cem caminhos, mas não nesta noite. Ela precisava de todo o foco nos recém-chegados. Nesta noite, os cidadãos de Lamento não chorariam por causa dela.
O fantasma Ari-Eil havia lhes contado – ou sido compelido por Minya a contar-lhes – que os faranji ficariam abrigados na Câmara dos Mercadores, onde uma ala fora transformada apenas para hospedá-los. Sarai nunca estivera lá. Como não era uma residência, nem mesmo procurara pessoas adormecidas ali, levou alguns minutos para localizar a ala certa. O lugar era palaciano, com uma grande estrutura central coberta por um domo dourado, e paredes de pedra nativa cor de mel. Tudo era esculpido no estilo tradicional. Lamento não era uma cidade que temia a ornamentação. Séculos de escultores haviam embelezado cada superfície de pedra com padrões, criaturas e serafins.
Belos pavilhões abertos eram conectados por corredores cobertos a prédios externos com domos menores. Havia fontes e, antigamente, jardins cheios de frutas e flores, mas que haviam secado na sombra amaldiçoada.
A cidade inteira já fora um jardim. Não mais. A Bruxa das Orquídeas, Sarai pensou ao passar, poderia dar um jeito nisso daqui.
Exceto pelo fato de que ela seria assassinada ali mesmo.
Primeiro, as mariposas testaram as portas dos terraços, mas as encontraram fechadas, e muito bem-feitas para ter qualquer rachadura que as permitisse invadir, então voaram para as chaminés. Lá dentro, os cômodos eram grandiosos e abrigavam a primeira delegação estrangeira já recebida além da Cúspide. Por séculos, a cidade tivera fama por seus artesãos e esses cômodos serviam como amostra: os tapetes mais finos sobre chão de mosaicos dourados e cor de lys, com lençóis bordados, paredes com afrescos, as madeiras do teto esculpidas e objetos maravilhosos nas estantes e paredes, cada um uma obra de arte.
Mas Sarai não estava ali pela arte. Entre os onze cômodos ocupados, ela contou treze pessoas adormecidas, uma das quais não era faranji, mas uma guerreira Tizerkane, Tzara, abraçada pelos braços finos de uma jovem com cabelo muito curto e macio. Isso queria dizer que havia doze forasteiros ao todo, a maioria homens mais velhos e antiquados. Havia apenas uma outra mulher: não tão jovem, nem tão magra, dormindo ao lado de um homem forte. Esses eram os únicos casais, e as únicas mulheres; todo o restante eram homens e dormiam sozinhos. Mais da metade roncava. Um pouco menos da metade fedia. Era fácil dizer quem havia desfrutado dos banhos preparados, porque as banheiras estavam cobertas de sujeira marrom de semanas sem água. Aqueles com banheiras limpas simplesmente não tinham transferido ainda a sujeira de seus corpos para a água, e Sarai relutou em pousar suas mariposas neles. No céu, seu nariz enrugou-se como se ela estivesse experienciando o fedor masculino concentrado pela primeira vez.
Com todas as mariposas divididas entre tão poucos cômodos, ela foi capaz de estudar cada pessoa de vários pontos de vista e absorver cada detalhe. Dois dos homens eram tão parecidos que, por um momento, ficou confusa, pensando que dois grupos de mariposas estavam lhe enviando a mesma informação. Elas não estavam; percebeu que os homens eram gêmeos. Um era especialmente feio, com um ar carrancudo e maldoso mesmo dormindo, e outro lembrava um réptil mudando de pele, a pele morta do seu rosto soltava-se, enrolando-se em cachos. Suas mãos eram nodosas e com cicatrizes de queimaduras, como cera de vela derretida; ele cheirava como um animal morto. As moças eram muito mais agradáveis – tinham a pele macia e cheiravam bem. Ao redor do umbigo de Tzara, Sarai viu a tatuagem elilith dada a todas as garotas de Lamento quando se tornavam mulheres. A de Tzara era uma serpente engolindo o rabo, que simbolizava o ciclo de destruição e renascimento, e havia se tornado popular desde a derrota dos deuses. O casal mais velho usava anéis de ouro iguais em seus dedos anulares ásperos e calejados, e as unhas do homem, como as de Pardal, tinham meias-luas escuras de trabalhar com a terra. Também tinha terra no quarto: a mesa elegante estava coberta por dezenas de pequenos sacos de lona cheios de plantinhas, e Sarai se perguntou como é que plantas entravam nos planos do Matador de Deuses para conquistar a cidadela.
Entretanto, um sonhador em particular atraiu uma parte indevida de sua atenção, sem que ela tivesse a intenção disso. Era um processo instintivo, sua concentração fluía entre as sentinelas de acordo com a necessidade. Mas isso não era necessidade. Esse forasteiro não parecia mais importante que os outros. Ele era simplesmente mais belo.
Ele era dourado.
Tinha cabelos de uma cor que ela nunca vira. Seus próprios cabelos castanho-avermelhados eram incomuns em Lamento, onde todos tinham cabelos preto, mas a cor dos dele era da luz do sol, longos o bastante na frente e com uma onda suficiente para fazer um cacho que dava vontade de enrolar nos dedos. Fora a garota abraçada a Tzara, ele era o único dos faranji que era jovem, embora não tão jovem quanto Sarai. Ele era magnífico e tinha ombros largos, havia dormido apoiado em travesseiros com um livro aberto em seu peito nu. Através da visão de suas mariposas, Sarai viu que a capa tinha o desenho de uma colher cheia de estrelas e criaturas, mas sua atenção foi atraída pelo rosto, que era uma obra de arte tão fina quanto a coleção de maravilhas do quarto. Havia certa elegância nas linhas dele, uma escultura perfeita a cada ângulo e curva que ele era quase irreal. Uma peça de museu.
Ela se lembrou de que não estava lá para ficar maravilhada com a beleza desse forasteiro, mas para descobrir quem ele era, e qual a natureza da ameaça que ele representava, e o mesmo com o restante dos desconhecidos, cuja aparência apresentava menos distração. Ela observou todos e eram apenas humanos dormindo, tão vulneráveis com suas bocas relaxadas e seus longos dedos dos pés pálidos saindo por baixo das cobertas. Com poucas exceções, eles eram quase ridículos. Parecia impossível que pudessem ser a morte dela.
Basta. Ela não aprenderia nada sobre os convidados do Matador de Deuses olhando para eles. Era hora de olhar dentro deles.
Em onze quartos, onde treze humanos dormiam – dez homens e três mulheres, uma das quais não era uma forasteira e, portanto, não era uma vítima –, mariposas que estavam pousadas nas paredes e nas camas movimentaram-se e tomaram o ar, voando a pouca distância para pousar na pele. Nenhum dos humanos sentiu os pés leves como pena das criaturas aladas descendo sobre suas frontes e ossos da face, muito menos a intrusão suave da Musa dos Pesadelos em suas mentes.
Invisível, incorpórea, insubstancial como um murmúrio, Sarai entrou em seus sonhos, e o que ela descobriu lá, nas horas que se seguiram, provou que os forasteiros estavam longe de ser ridículos.
E que seriam, de fato, a morte dela.
Azareen vivia em um conjunto de quartos em cima de uma padaria em Quedavento – o distrito era assim chamado devido às ameixas que caíam das árvores dos deuses. Ela subiu pela escada dos fundos, no quintal onde a padaria e a taverna adjacente deixavam os latões de lixo. O lugar fedia e tinha aquele outro cheiro, característico de Quedavento: fermentação. As ameixas estavam sempre caindo, como se as árvores fossem encantadas e nunca morressem.
Azareen odiava ameixas.
Ela colocou a chave na fechadura, empurrou a porta e entrou. Dois anos de poeira acumulada tomava conta de tudo. Os cobertores estavam velhos, os armários vazios. Sua mãe ou irmãs poderiam ter cuidado dos quartos, mas tê-las ali daria margem para conversas que ela não gostaria de ter, tais como por que ela ainda vivia ali, sozinha, quando poderia ficar com qualquer uma delas, ou mesmo se casar e ter uma família, antes que fosse tarde demais.
– Eu já sou casada – ela lhes diria, mas o que poderiam responder? Era verdade, de certa forma, mesmo que seu marido a tivesse liberado da promessa que havia feito dezoito anos antes, quando era apenas uma garota. Dezesseis anos, e Eril-Fane tinha dezessete. Como ele era bonito. Os dois eram jovens demais para casar, mas isso não os impediu. À sombra dos Mesarthim, todo o tempo parecia fugaz, e o casal simplesmente não podia esperar.
Ah, as memórias. Elas vinham à tona dos destroços, rápidas e afiadas o suficiente para espetá-la: de querê-lo tanto que não sabia como sobreviveria uma noite sem ele. E então, por fim, não tendo de sobreviver.
Sua noite de núpcias. Como eles eram jovens e macios, cheios de desejo, incansáveis e ardentes. Cinco noites. Foi isso o que tiveram: cinco noites, há dezoito anos. Aquele era seu casamento. E então... o que veio depois.
Azareen deixou sua sacola cair no chão e olhou em volta. Pequeno, sufocante e silencioso, era uma mudança e tanto em relação ao Elmuthaleth. Ela tinha uma sala, um quarto e uma pequena cozinha com um banheiro. Havia parado na casa de sua irmã para visitar a família depois de acomodar os faranji na câmara, e tinha jantado lá. Ela precisava de um banho, mas isso podia esperar até amanhã, então foi direto para a cama, onde, dezoito anos antes, havia passado cinco noites de desejo, incansáveis e ardentes com seu belo e jovem marido antes que os deuses o tivessem roubado.
O silêncio caiu. Azareen imaginou que pudesse sentir a sombra, o peso e a pressão da cidadela acima. Era o peso e a pressão de tudo o que acontecera lá – e de tudo o que não acontecera por causa dela.
A mulher não trocou de roupa, apenas tirou as botas e estendeu a mão para sua sacola, no pequeno bolso que havia costurado para guardar sua posse mais preciosa.
Era um anel de prata envelhecida. Ela o colocou, como sempre fazia apenas à noite, colocou as mãos sob a bochecha, e esperou que o sono a levasse.
Um quilômetro ou mais dali, em uma rua pavimentada com lápis-lazúli, como nas histórias de infância de um velho monge, em uma casa muito menos grandiosa do que a Câmara dos Mercadores e bem mais aconchegante do que os cômodos de Azareen, Lazlo estava indo para a cama. O sol iria se levantar em uma hora. Ele não tivera a intenção de ficar acordado a noite toda, mas como podia evitar?
Ele estava ali.
– Há apenas uma forma de celebrar o fim de uma jornada como essa – sua anfitriã havia lhe dito quando o saudou na Câmara dos Mercadores e o levou para casa com ela –, e é com comida, um banho e uma cama, na ordem que você preferir.
Suheyla era seu nome. Seus cabelos eram uma cobertura branca, cortados curtos tipicamente masculinos, e seu rosto era um exemplo perfeito de como alguém pode ser bela sem o ser. Ela brilhava de bondade e da mesma vitalidade que Eril-Fane irradiava, mas sem a sombra que havia crescido nele à medida que se aproximaram de Lamento. Havia seriedade nela, mas nada severo ou triste. Seus olhos eram do mesmo sorriso profundo que os de seu filho, com sinais de rugas mais extensos nos cantos. Ela era baixinha e vigorosa, vestida com uma túnica colorida e bordada, adornada com borlas e presa por um cinto largo com desenhos. Discos de ouro batido em suas têmporas eram conectados por uma corrente fina que atravessava sua testa.
– Você é muito bem-vindo aqui, jovem – ela disse com uma sinceridade que Lazlo quase sentiu que tinha chegado em casa.
Casa – uma coisa sobre a qual ele sabia tão pouco quanto sabia sobre mães. Antes desse dia, nunca havia colocado os pés em uma casa. Quanto a ter uma preferência, isso também era novo. Você pega o que recebe e é grato por isso. Uma vez que essa mensagem está bem arraigada em você, parece presunção achar que os gostos e desgostos de alguém pode importar para outras pessoas.
– Qualquer ordem que fizer mais sentido – ele tinha respondido, quase como uma pergunta.
– Dane-se o sentido! Você pode comer na banheira se desejar. Você mereceu.
E Lazlo nunca havia tomado um banho no qual desejasse se demorar, já que os banhos no monastério eram com baldes de água fria do poço que o faziam tremer, e na biblioteca eram em chuveiros mornos e tinham de ser rápidos. Ainda assim, sentindo profundamente que sua sujeira era uma imposição imperdoável, ele escolheu banhar-se primeiro, e assim descobriu, aos vinte anos, o prazer incomparável de se submergir na água quente.
Quem imaginaria?
Ele não havia escolhido comer na banheira – ou mesmo demorar-se além do tempo considerável que levou para ficar limpo –, estando ansioso demais para continuar a conversa com Suheyla. Ela tinha, no caminho da câmara, entrado para sua pequena lista de pessoas favoritas, junto com Eril-Fane, Calixte, Ruza e o velho Mestre Hyrrokkin. Quando ele viu a quantidade de comida que havia posto para ele, contudo, sua enraizada abnegação veio à superfície. Havia pequenas aves assadas, cubos de carne em um molho aromático e crustáceos curvos no espeto. Havia uma salada de grãos e outra de verduras, e uma bandeja de frutas e meia dúzia de pequenas tigelas com pastas e outra meia dúzia de temperos, e o pão era um disco grande demais para a mesa, pendurado em um gancho que existia para esse propósito, de forma que bastava levantar a mão e rasgar um pedaço. E havia doces cobertos com mel que brilhavam, pimentas, chá e vinho... e era tudo demais para ele.
– Sinto muito ter dado tanto trabalho – desculpou-se, ganhando um olhar aguçado.
– Hóspedes não são trabalho! – Suheyla respondeu. – São uma bênção. Não ter ninguém para quem cozinhar, isso sim é uma tristeza. Mas um jovem emagrecido pelo Elmuthaleth precisando engordar? Isso é um prazer.
E o que ele podia fazer além de agradecer e comer sua parte?
Que maravilha, ele nunca tinha comido tão bem! E nunca se sentiu tão satisfeito, ou tinha se demorado à mesa tanto tempo, ou conversado tanto ou estado tão à vontade com alguém que tinha acabado de conhecer. E assim sua apresentação ao mundo das casas e mães foi poderosamente boa, e embora tivesse sentido, em sua primeira caminhada pela cidade dos seus sonhos, que nunca se sentiria cansado novamente, ele estava de fato muito, muito cansado, coisa que Suheyla percebeu.
– Vamos lá – disse ela. – Eu o mantive acordado até muito tarde.
Mais cedo, ele havia deixado sua sacola de viagem perto da porta.
– Pode deixar – ele respondeu, quando ela se abaixou para pegá-la.
– Bobagem – ela disse e, em um vislumbre, percebeu que a mulher não tinha a mão direita, apenas um pulso liso e fino, embora isso não a tivesse atrapalhado nem um pouco quando enganchou a alça da sacola nele e a colocou no ombro. Ele se perguntou como não tinha percebido isso antes.
Ela o levou até uma das portas pintadas de verde que se abriam para o pátio.
– Este era o quarto do meu filho – explicou, gesticulando para que ele entrasse.
– Ah. Mas ele não vai querer ficar aqui?
– Acho que não. – Havia um tom de tristeza na voz. – Diga-me, como ele dorme... lá fora? – Ela fez um gesto vago para o oeste, indicando o restante do mundo, Lazlo imaginou.
– Não sei – ele respondeu, surpreso. – Bem o bastante. – Que resposta mais inadequada para dar a uma mãe preocupada. Bem o bastante. E como Lazlo saberia? Nunca tinha lhe passado pela cabeça que Eril-Fane pudesse ter vulnerabilidades. Ele percebeu que todo esse tempo estivera olhando para o Matador de Deuses como um herói, não um homem, mas os heróis também são homens – e mulheres – e vítima de problemas humanos como todo mundo.
– Isso é bom – disse Suheyla. – Talvez isso tenha melhorado, estando fora daqui.
– Isso? – perguntou Lazlo, lembrando-se da forma como Eril-Fane tinha desviado os olhos e dito que não dormia bem em Lamento.
– Ah, pesadelos. – Suheyla abandonou o assunto e colocou a mão no rosto de Lazlo. – É muito bom tê-lo aqui, jovem. Durma bem.
Mariposas derramaram-se das chaminés da Câmara dos Mercadores.
Era antes do amanhecer. Alguns moradores da cidade estavam acordando. Os padeiros já trabalhavam e carroças passavam tranquilamente pela praça do mercado, trazendo seus fardos diários de produção das fazendas do vale. Sarai não planejava ficar tanto tempo nos sonhos dos forasteiros, mas encontrou neles um mundo tão estranho, tão cheio de visões para as quais não tinha contexto, que mal havia sentido o tempo passar.
O oceano: uma vastidão inenarrável. Leviatãs tão grandes quanto palácios, presos a pontões impedindo-os de submergir para sua liberdade. Minas de glaves como luz do sol enterrada. Torres como presas. Homens com lobos em coleiras patrulhando campos azuis deslumbrantes. Tais imagens tratavam de um mundo além da sua compreensão e, espalhadas nelas – estranhas entre coisas estranhas e tão difíceis de separar da fantasia louca dos sonhos como flocos de neve de um cesto de renda – estavam as respostas que ela procurava.
Quem eram esses forasteiros e qual a natureza da ameaça que representavam?
Quanto à primeira, eram homens e mulheres motivados por ideias e movidos por inteligência e habilidades raras. Alguns tinham famílias, outros não. Alguns eram gentis, outros não. Ela não poderia conhecê-los em uma noite de invasão, apenas formou impressões; isso era tudo. Mas quanto à segunda pergunta...
Sarai estava atordoada por visões de explosões, geringonças e torres impossíveis – e garotas subindo em torres impossivelmente altas – e ímãs, serras, pontes, frascos de químicos miraculosos e... e... e máquinas voadoras.
“Eles não podem voar”, Feral havia dito, mas parecia que estava errado. Quando Sarai primeiro viu o veículo nos sonhos da mulher faranji mais velha, desconsiderou, achando que era fantasia. Sonhos estão cheios de voos e isso não a preocupara. Mas quando ela viu o mesmo veículo na mente do marido, teve de notar. A coisa era lustrosa, tinha um desenho simples e era específica demais para ser uma coincidência no sonho de duas pessoas, não importava que estivessem deitadas lado a lado, tocando-se. Os sonhos não se transferiam de um sonhador para outro. E havia algo a mais que fez Sarai acreditar. Ela vivia no céu. Ela conhecia o mundo lá em cima de uma forma que os humanos não conheciam, e a maioria dos sonhos de voar não acertava o reflexo do sol se pondo sobre o topo das montanhas, o fluxo dos ventos, a aparência do mundo lá de cima. Mas esse casal, com suas mãos calejadas, sabia como era. Não havia dúvida: eles tinham estado lá.
Então haveria quanto tempo até que as máquinas voadoras estivessem no ar, levando invasores para o jardim do terraço e para a palma da mão do serafim, bem onde Sarai estava agora?
“Amanhã saberemos se precisamos ter essa conversa ou não”, ela havia dito aos outros na noite anterior, quando Minya estava matraqueando aquela conversa sobre lutar. Bem, eles teriam de ter a conversa, e rápido. Sarai se sentiu nauseada.
Lá em cima na cidadela, ela começou seu caminhar incansável com olhos abertos e visão embaçada. Não havia ninguém perto, mas ela sabia que os outros deviam estar esperando. Se eles dormiram, levantaram-se cedo para encontrá-la assim que as mariposas voltassem, e ouvir o que ela tinha para contar. Será que estavam do outro lado de sua cortina agora? Esperava que eles ficassem lá até que ela estivesse pronta.
Sarai considerou chamar as mariposas de volta. O horizonte ao leste já estava clareando e todas cairiam mortas à primeira aparição do sol. Mas havia algo que ainda tinha de fazer e estivera adiando a noite inteira. Ela tinha de visitar o Matador de Deuses.