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UM ESTRANHO SONHADOR - Parte II
26
PESSOAS DESTRUÍDAS
Sarai tinha vindo inúmeras vezes até essa janela. Mais do que a qualquer outra em Lamento. Era a janela de seu pai e raramente passava uma noite sem visitá-lo.
Uma visita para atormentá-lo – e atormentar a si também, enquanto tentava imaginar ser o tipo de criança que um pai poderia amar em vez de matar.
A janela estava aberta. Não havia obstáculo para entrar, mas ela hesitou e pousou as mariposas no parapeito para espiar lá dentro. Não havia muita coisa no quarto estreito: um armário de roupas, algumas prateleiras, e uma cama com um colchão de penas coberto por uma colcha bordada à mão. Havia apenas luz suficiente entrando pela janela para dar profundidade à escuridão, então ela viu, nos tons de cinza, o contorno de uma forma. Um ombro, voltado para baixo. Ele dormia de lado, com as costas para a janela.
Lá em cima, no seu próprio corpo, os corações de Sarai balbuciaram. Ela estava nervosa, agitada, como se fosse uma espécie de reencontro. Um reencontro unilateral. Fazia dois anos que ele partira e havia sido um alívio tão grande quando ele foi – ficaria livre da perturbação constante de Minya. Todos os dias – todos os dias – a garotinha pedia para saber sobre o que ele tinha sonhado, e o que Sarai tinha soltado sobre seu pai. Qualquer que fosse a resposta, ela nunca estava satisfeita. Minya queria que Sarai o visitasse com um cataclisma de pesadelos, que destruiria sua mente e o deixaria na escuridão para sempre. Ela queria que Sarai o deixasse louco.
O Matador de Deuses sempre foi uma ameaça para o grupo – a maior ameaça. Ele era o coração pulsante de Lamento, o libertador de seu povo e seu maior herói. Ninguém era mais amado ou possuía mais autoridade, e assim ninguém era mais perigoso que ele. Depois da revolta e da libertação, os humanos haviam se mantido muito ocupados. Afinal, tinham dois séculos de tirania para superar. Tiveram de criar um governo do nada, com leis e um sistema de justiça. Também foi preciso restaurar as defesas, a vida civil, a indústria, e pelo menos a esperança do comércio. Um exército, templos, guildas, escolas – foi preciso reconstruir tudo. Foi um trabalho de anos e, durante todo esse tempo, a cidadela esteve sobre suas cabeças, fora de alcance. As pessoas de Lamento não tiveram escolha a não ser trabalhar naquilo que podiam mudar e tolerar o que não podiam – ou seja, nunca sentir o sol no rosto, ensinar as constelações para seus filhos ou colher frutas de suas próprias árvores. Houve discussões sobre mudar a cidade para fora da sombra, começar de novo em outro lugar. Um local foi até mesmo escolhido rio abaixo, mas havia uma história tão profunda ali que era difícil apenas desistir. Essa terra havia sido conquistada para eles por anjos. Com sombra ou não, era sagrada.
Faltavam-lhes os recursos, então, para tomar a cidadela, mas nunca iriam tolerá-la para sempre. Eventualmente, sua determinação iria se concentrar lá em cima. O Matador de Deuses não desistiria.
“Se você não for o fim dele”, Minya dizia, “ele será o nosso”.
E Sarai havia sido a arma de Minya. Com o Massacre vermelho e sangrento em seus corações, ela tinha tentado seu melhor e feito seu pior. Por diversas noites havia coberto Eril-Fane de mariposas e soltado cada terror de seu arsenal. Ondas de horrores, fileiras de monstros. O corpo dele ficava rígido como uma tábua. Ela ouviu dentes quebrando com a força de sua mandíbula cerrada. Nunca havia visto olhos tão espremidos, parecendo que iam se romper. Mas ela não conseguia destruí-lo; não conseguia nem o fazer chorar. Eril-Fane tinha seu próprio arsenal de horrores; ele dificilmente precisava do dela. O medo era o menor deles. Sarai não tinha entendido antes que o medo podia ser um tormento menor. Era a vergonha que o dilacerava, o desespero. Não havia escuridão para a qual pudesse mandá-lo que rivalizasse com o que ele já passava. Ele tinha vivido três anos com Isagol, a Terrível, e sobrevivido a muita coisa para enlouquecer por causa de pesadelos.
Era estranho. Toda noite Sarai dividia sua mente em cem formas, suas mariposas carregando pedaços de sua consciência pela cidade, e quando voltavam para ela, ficava inteira novamente. Era fácil. Mas alguma coisa começou a acontecer na medida em que ela atormentava mais o seu pai – um tipo diferente de divisão dentro dela, e não era tão fácil de reconciliar com o fim da noite.
Para Minya, só existiria para sempre o Massacre. Mas, na verdade, havia muito mais. Havia o antes. Garotas roubadas, anos perdidos, pessoas destruídas. E sempre havia os deuses selvagens e impiedosos.
Isagol, alcançando sua alma e tocando suas emoções como a uma harpa.
Letha, varrendo sua mente, retirando memórias e as engolindo inteiras.
Skathis à porta, vindo buscar sua filha.
Skathis à porta, trazendo-a de volta.
A função do ódio, como Sarai entendia, era erradicar a compaixão – fechar uma porta no íntimo de alguém e esquecer que ela estava lá. Se você tivesse ódio, então podia ver o sofrimento – e causá-lo – e não sentir nada exceto, talvez, uma sórdida justificativa.
Mas em algum ponto... ali naquele quarto, Sarai pensou... ela tinha perdido essa capacidade. O ódio lhe faltara e era como perder um escudo em batalha. Uma vez que ele se foi, todo o sofrimento se levantou para esmagá-la. Era demais.
Foi quando seus pesadelos se voltaram contra ela que começou a precisar do lull.
Com uma respiração profunda, Sarai retirou uma mariposa do parapeito e esporeou-a para a frente, um único fragmento de escuridão despachado para o escuro. Naquela sentinela ela focou sua atenção, e era como se estivesse lá, flutuando a centímetros do ombro do Matador de Deuses.
Exceto...
Ela mal podia dizer qual sentido vibrou primeiro com um pequeno choque de diferença, mas logo entendeu:
Aquele não era o Matador de Deuses.
O tamanho não era o mesmo, nem o cheiro. Quem quer que fosse, era mais magro que Eril-Fane e não se afundava tão profundamente nas penas. À medida que ela se ajustou à escassa luz ambiente, foi capaz de ver os cabelos pretos derramados no travesseiro, mas pouco mais que isso.
Quem era esse, dormindo na cama do Matador de Deuses? Onde estava Eril-Fane? A curiosidade tomou conta de si, e ela fez algo que jamais consideraria em tempos normais. Quer dizer: em tempos de uma ruína menos iminente.
Havia uma glave no criado-mudo, com uma cobertura preta de tricô sobre ela. Sarai direcionou um grupo de mariposas para agarrar o tecido com suas minúsculas patas e afastá-lo o suficiente para descobrir um raio de luz. Se alguém testemunhasse as mariposas comportando-se de uma forma assim tão coordenada, ficaria desconfiado de que não fossem criaturas naturais. Mas esse medo parecia estranho para Sarai agora, comparado às suas outras preocupações. Com aquela pequena tarefa concluída, ela examinou o rosto que estava iluminado pela luz prateada da glave.
Viu um jovem com um nariz torto. As sobrancelhas eram pretas e pesadas e os olhos profundos. Suas maçãs do rosto eram altas e planas, e terminavam retas no maxilar, como um corte de machado. Nada de fineza, nada de elegância. E o nariz. Ele claramente tinha encontrado alguma violência, e emprestava um aspecto de violência ao todo. Seus cabelos eram grossos e escuros, e onde brilhava à luz da glave os reflexos eram de um vermelho quente, não de azul frio. Ele estava sem camisa, e embora quase todo coberto pela colcha, o braço que descansava sobre ela era magro e musculoso. Ele estava limpo, e devia ter se barbeado pela primeira vez em semanas, pois o maxilar e o queixo estavam mais pálidos do que o restante do rosto e quase lisos – daquele jeito que o rosto de um homem nunca é totalmente liso, mesmo depois de um encontro com uma lâmina perfeitamente afiada. Isso Sarai sabia após anos de pousar em rostos adormecidos, e não a partir de Feral que, embora tivesse começado a se barbear, podia passar dias sem que alguém percebesse. Mas não esse homem. Ele não tinha, como Feral, quase ultrapassado a linha para a vida adulta, mas sim a cruzado por completo: um homem em termos absolutos.
Ele não era bonito. Certamente não era uma peça de museu. Havia algo de bruto nele com aquele nariz quebrado, mas Sarai percebeu demorando-se mais na apreciação dele do que tinha se demorado nos outros, exceto pelo rapaz dourado. Porque ambos eram jovens, e ela não era tão imaculada a ponto de ser livre dos desejos que Rubi expressava tão abertamente, nem tão desapegada a ponto de a presença física de homens jovens não ter efeito sobre si. Ela era apenas discreta, como era discreta com muitas outras coisas.
Olhando para os cílios cerrados, ela se perguntou que cor eram seus olhos, e experienciou uma pontada de alienação, pelo fato de ser sua sina ver e nunca ser vista, passar em segredo pelas mentes dos outros e não deixar rastro de si, exceto o medo.
Ela olhou rapidamente para o céu, era melhor correr. Ela não teria tempo de ter uma impressão consistente desse rapaz, mas até mesmo uma pista de quem ele era poderia ser útil. Um estranho na casa de Eril-Fane. O que isso significava?
Ela conduziu uma mariposa para sua testa.
E, imediatamente, caiu em outro mundo.
27
OUTRO MUNDO
Cada mente é um mundo à parte. A maioria ocupa o vasto terreno intermediário daquilo que é comum, enquanto outras são mais distintas: agradáveis, até mesmo belas, ou, às vezes, escorregadias e inexplicavelmente erradas nos sentimentos. Sarai nem se lembrava de como era a sua antes de tê-la transformado no zoológico de terrores que era agora – sua própria mente era um lugar em que ela tinha medo de ficar depois de escurecer, por assim dizer, e tinha de se proteger dela tomando uma bebida que a amortecia com seu nada cinzento. Os sonhos do Matador de Deuses também eram um domínio de horrores, unicamente seus, enquanto os de Suheyla eram tão macios quanto um xale que protege uma criança do frio. Sarai havia invadido milhares de mentes – dezenas de milhares – e passara seus dedos invisíveis por incontáveis sonhos.
Mas ela nunca conhecera nada assim.
Ela piscou e olhou novamente.
Ali estava uma rua pavimentada de lápis-lazúli, as fachadas esculpidas de prédios erguendo-se de ambos os lados. E havia domos dourados, e o brilho da Cúspide a distância. Nos sonhos, a noite inteira Sarai havia residido em paisagens que lhe eram estranhas. Esta não era, e ainda assim era. Ela virou lentamente, absorvendo a curiosa familiaridade e a estranheza que era mais estranha a seu modo do que o completamente estrangeiro tinha sido. Sem dúvidas aquela era Lamento, mas não a Lamento que ela conhecia. O lápis-lazúli era mais azul, o ouro mais brilhante, as esculturas não eram familiares. Os domos – dos quais havia centenas em vez de meramente dezenas – não tinham o formato certo. Tampouco eram feitos com a folha dourada lisa que eram na realidade, mas tinham o padrão de escama de peixe de ouro mais escuro e mais brilhante, de forma que o sol não refletia meramente neles. Ele brincava. E dançava.
O sol.
O sol em Lamento.
Não havia cidadela, nem âncoras. Nada de mesarthium em nenhum lugar, e nenhum traço de melancolia persistente ou sugestão de amargura. Ela estava diante de uma versão de Lamento que existia apenas na mente desse sonhador.
Sarai não tinha como saber que aquela cidadela havia nascido de histórias contadas anos atrás por um monge senil, ou que havia sido alimentada desde então por toda fonte que Lazlo conseguia encontrar. Que ele sabia tudo o que era possível um estrangeiro saber sobre Lamento, e esta era a visão que ele construíra a partir de pedaços.
Sarai tinha entrado em uma ideia da cidade, e era a coisa mais maravilhosa que já vira. Ela dançava por seus sentidos da forma que o sol do sonho dançava sobre os domos. Cada cor era mais profunda, mais rica do que a real, e havia tantas cores. Se a tecedora do mundo tivesse guardado as pontas de cada fio que usara, sua cesta iria se parecer com isso. Havia toldos sobre as barracas do mercado, e fileiras de especiarias em forma de cones. Rosa e vermelho, escarlate e siena. Velhos sopravam fumaça colorida através de longas flautas pintadas, gravando o ar com música sem som. Açafrão e vermelho-alaranjado, púrpura e coral. De cada domo erguia-se uma espiral parecida com uma agulha, todas elas crepitando com bandeiras e interconectadas por fitas por meio das quais crianças corriam dando risada, vestidas com mantos de penas coloridas. Amora e amarelo-limão, verde-acinzentado e chocolate. Suas sombras acompanhavam seus passos lá embaixo de uma forma que nunca poderia acontecer na verdadeira Lamento, envolvida por uma única grande sombra. Os cidadãos imaginários vestiam trajes simples e adoráveis, as mulheres tinham cabelos longos que se arrastavam atrás delas, ou eram sustentados no ar por passarinhos que tinham seu próprio brilho colorido. Dente-de-leão e castanheira, tangerina e amarelo-dourado.
Nos muros cresciam trepadeiras, como devia ter sido antigamente, antes da sombra. Frutas brotavam, suculentas e brilhantes. Pôr do sol e cardo, verdete e violeta. O ar era fragrante com seu perfume de mel e com outro aroma, um que transportou Sarai de volta à infância.
Quando ela era pequena, antes que as despensas da cidadela fossem esvaziadas de provisões insubstituíveis como açúcar e farinha branca, Grande Ellen costumava fazer um bolo de aniversário todo ano: para compartilhar e fazer o açúcar e a farinha durarem pelo máximo possível. Sarai tinha oito anos quando ela fez o último. Os cinco o degustaram, fizeram uma brincadeira para comê-lo com uma lentidão excruciante, sabendo que era o último bolo que comeriam.
E aqui, nessa estranha e adorável Lamento, em que bolos descansavam no parapeito das janelas, com a cobertura brilhando com açúcar cristal e pétalas de flores, pessoas paravam para se servir de uma fatia deste ou daquele, e os moradores das casas entregavam xícaras pelas janelas, para que elas pudessem ter algo para ajudar a descer o bolo.
Sarai bebeu tudo aquilo até se embriagar. Esta era a segunda vez na noite que havia se surpreendido por uma completa dissonância entre um rosto e uma mente. A primeira fora com o faranji dourado. Por mais que seu rosto fosse fino, seus sonhos não eram. Eles eram tão apertados e sem ar quanto caixões. Ele mal podia respirar ou se mover neles, e ela tampouco. E agora isso, esse faranji com feições grosseiras com um ar de violência pôde dar-lhe entrada para tal reino de maravilhas.
Ela viu espectrais passando livres, lado a lado como casais saindo para passear, e outras criaturas que ela reconhecia ou não. Um ravide, com suas presas do tamanho de braços, decorado com colares de contas e borlas, levantou-se nas patas traseiras para lamber um bolo com sua língua longa e áspera. Ela viu um elegante centauro levando uma princesa sentada de lado na sela, e tal era a atmosfera de magia que o casal não estava deslocado ali. Ele virou sua cabeça e beijou a moça demoradamente, deixando as bochechas de Sarai vermelhas. E havia homenzinhos com pés de galinha, andando de costas para que suas pegadas apontassem para o caminho errado, e velhinhas andando por aí em gatos com selas, e garotos com chifres de bode tocando campainhas, e o farfalhar de asas delicadas, e mais coisas adoráveis para onde quer que ela olhasse. Ela estava dentro do sonho a menos de um minuto – indo e vindo duas meras vezes na mão do grande serafim – quando percebeu que tinha um sorriso no rosto.
Um sorriso.
Sorrisos eram raros, dada a natureza de seu trabalho, mas em uma noite como esta, com tantas descobertas, era impensável. Ela o desfez com a mão, envergonhada, e continuou andando. Então esse faranji era bom em sonhos? Grande coisa. Nada disso era útil para ela. Quem era esse sonhador? O que ele estava fazendo ali? Endurecendo-se diante do encantamento, analisou ao redor novamente e viu, à frente, a figura de um homem com longos cabelos pretos.
Era ele.
Isso era normal. As pessoas manifestam-se em seus próprios sonhos com frequência. Ele estava andando para longe dela, e ela se aproximou pela força de vontade – bastou desejar que logo estava bem atrás dele. Esse sonho podia ser especial, mas ainda assim era um sonho e, como tal, ela podia controlá-lo. Sarai podia, se assim quisesse, destruir toda a cor. Transformar tudo em sangue, destruir os domos, enviar as crianças vestidas com penas direto para a morte. Ela podia fazer o ravide domesticado com seus colares de contas e borlas destroçar as adoráveis mulheres de cabelos pretos e longos. Ela podia transformar tudo aquilo em um pesadelo. Esse era o seu dom perverso, muito perverso.
Entretanto, não fez nada disso. Não foi para isso que ela tinha vindo, mas mesmo que fosse, era impensável que destroçasse esse sonho. Não eram apenas as cores e as criaturas de contos de fadas, mas a magia. Não eram nem os bolos. Havia uma sensação ali... de doçura, e segurança, e Sarai desejou...
Ela desejou que fosse real e que pudesse viver ali. Se ravides pudessem andar lado a lado com homens e mulheres e até dividir os bolos, então, talvez, os filhos dos deuses também pudessem.
Real. Pensamento tolo, muito tolo. Aquela era a mente de um estrangeiro. Reais eram os outros quatro esperando por ela, agoniados e apreensivos. Real era a verdade que ela teria de lhes contar, e real era o brilho da aurora subindo no horizonte. Era hora de ir embora. Sarai reuniu suas mariposas. Aquelas empoleiradas na capa preta da glave a soltaram e deixaram que ela descesse novamente, engolindo a fatia de luz e devolvendo o sonhador à escuridão. Elas voaram até a janela e esperaram, mas a que estava na testa do jovem permaneceu. Sarai estava parada, pronta para retirá-la, mas hesitou. Ela estava em tantos lugares ao mesmo tempo; estava na parte plana da palma do serafim, descalça, estava flutuando na janela do quarto do Matador de Deuses, e estava pousada, leve como uma pétala, na testa do sonhador.
E ela estava dentro de seu sonho, parada bem atrás dele. Teve uma vontade inexplicável de ver o rosto do jovem, aqui no lugar que ele criara, com os olhos abertos.
Ele estendeu a mão para pegar uma fruta de uma das trepadeiras.
A mão de Sarai contraiu-se, também querendo uma. Querendo cinco, uma para cada um deles. Ela pensou na filha de deuses que podia trazer coisas dos sonhos e desejou que pudesse retornar com seus braços cheios de frutas. Um bolo equilibrado na cabeça. E montando no ravide domesticado que agora tinha glacê nos bigodes. Como se, com presentes e extravagâncias, ela pudesse amenizar o golpe das notícias.
Algumas crianças escalavam uma grade, e pararam para jogar mais frutas para o sonhador. Ele pegou as esferas amarelas e gritou “obrigado”.
O timbre de sua voz fez Sarai vibrar por dentro. Era profunda, grave e rouca – uma voz como fumaça de madeira, lâminas serrilhadas e botas pisando na neve. Apesar de toda a aspereza, havia também o mais terno tom de timidez na voz. “Eu acreditava quando era menino”, ele disse a um homem em pé ali perto. “Nas frutas de graça para pegar. Mas depois achei que era uma fantasia sonhada para crianças famintas”.
Com atraso, Sarai percebeu que ele estava falando a língua de Lamento. A noite inteira, em todos os sonhos dos estrangeiros, ela raramente tinha ouvido uma palavra que pudesse entender, mas este falava a língua sem nem mesmo um sotaque. Ela se movimentou para o lado, dando a volta para enfim encará-lo.
Ela se aproximou, estudando-o de perfil sem nem disfarçar, assim como alguém estuda uma estátua – ou como um fantasma pode estudar os vivos. No início da noite, ela havia feito a mesma coisa com o faranji dourado, parado bem ao lado do rapaz enquanto ele trabalhava furioso em um laboratório de chamas altas e vidro estilhaçado. Tudo era espinhoso, quente e cheio de perigo, e não importava quão belo ele fosse, ela estivera ansiosa para sair de lá.
Não havia perigo aqui, nem desejo de escapar. Ao contrário, ela fora atraída para mais perto. Uma década de invisibilidade tinha acabado com qualquer hesitação que ela pudesse sentir com uma observação tão flagrante. Notou que os olhos dele eram cinza e o sorriso tinha o mesmo sinal de timidez que a voz. E sim, havia a linha quebrada no nariz. E sim, o corte de suas bochechas até o queixo era abrupto. Mas, para sua surpresa, o rosto, acordado e animado, não transmitia nada da brutalidade que tivera na primeira impressão. Ao invés disso, era doce como o ar em seu sonho.
Ele virou a cabeça na direção dela, e Sarai estava tão acostumada ao seu próprio e intenso não-ser que nem se assustou, ela apenas encarou como uma oportunidade para vê-lo melhor. A menina tinha visto tantos olhos fechados e pálpebras tremendo com sonhos, e cílios agitando-se nas bochechas, que ficou paralisada com aqueles olhos abertos e tão próximos. Ela podia ver, nessa abundância de luz solar, os padrões da íris, que não eram de um cinza sólido, mas tinham filamentos de uma centena de tons de cinza, azul e pérola, e pareciam reflexos de luz oscilando na água, com o mais suave padrão de âmbar circundando as pupilas.
E... com o mesmo interesse que ela o fitava, ele olhava para... Não, não era para ela, pois só podia observar através dela. Ele tinha um ar de fascinação. Havia uma luz em seus olhos de absoluto encantamento. Um encantamento, pensou, e sofreu uma profunda fisgada de inveja de quem ou o quê estava atrás dela que o cativou tão completamente. Por apenas um momento, permitiu-se fingir que era ela. Que ele olhava para ela daquele jeito absorto.
Era apenas fingimento. Um instante de indulgência – como um fantasma que se coloca entre amantes para sentir como é estar vivo. Tudo isso aconteceu em segundos, três no máximo. Ela ficou quieta dentro daquele sonho extraordinário e fingiu que o sonhador estava cativado por ela. Sarai acompanhou o movimento das pupilas do rapaz, que pareciam acompanhar as linhas de seu rosto e a faixa preta que havia pintado nele. Elas desceram, para subir novamente de uma vez depois de ver sua forma vestida com uma camisola e sua pele azul chamativa. Ele corou e, em algum momento daqueles três segundos, deixou de ser um fingimento. Sarai também corou, dando um passo para trás ao perceber o olhar do sonhador a seguir.
Seus olhos a seguiram.
Não havia ninguém atrás dela. Não havia mais ninguém ali. O sonho inteiro se encolheu em uma esfera ao redor dos dois, e não podia haver dúvida de que o encantamento era por ela, ou que foi para ela que ele sussurrou, com vívido e gentil interesse: “Quem é você?”.
A realidade veio como um baque. Ela fora vista. Ela fora vista. Lá em cima na cidadela, Sarai deu um salto para trás e cortou a corda de sua consciência, soltando a mariposa e perdendo o sonho em um instante. Toda a atenção que havia derramado naquela única sentinela foi transferida para seu corpo físico, o que a fez tropeçar e cair de joelhos, sem fôlego.
Era impossível. Nos sonhos, ela era um fantasma. Ele não podia tê-la visto.
Mesmo assim não restava dúvida em sua mente que ele a vira.
Lá embaixo em Lamento, Lazlo acordou com um sobressalto e sentou-se na cama a tempo de testemunhar noventa e nove pedacinhos de escuridão saírem do parapeito da janela e explodirem no ar, onde, com um redemoinho frenético, foram sugadas para fora de vista.
Ele piscou. Tudo estava silencioso e parado. Escuro, também. Ele podia ter duvidado que tivesse visto qualquer coisa se, naquele momento, a centésima mariposa não tivesse saído de sua testa para cair morta em seu colo. Suavemente, ele a pegou na palma da mão. Era uma coisa delicada, com asas peludas da cor do entardecer.
Meio enroscado nos vestígios de seu sonho, Lazlo ainda via os grandes olhos azuis da bela garota azul, e ficou frustrado por ter acordado e a perdido tão abruptamente. Se pudesse voltar para o sonho, pensou, podia encontrá-la de novo? Ele colocou a mariposa morta no criado-mudo e adormeceu novamente.
E encontrou o sonho, mas não a garota. Ela havia desaparecido. Nos momentos seguintes o sol nasceu. Uma luz pálida penetrou na escuridão da cidadela e transformou a mariposa em fumaça sobre o criado-mudo.
Quando Lazlo acordou de novo, algumas horas mais tarde, havia esquecido ambas.
28
NÃO É JEITO DE VIVER
Sarai caiu de joelhos. Tudo o que via era a genuína atenção dos olhos do sonhador – sobre ela – enquanto Feral, Rubi e Pardal corriam pela porta do quarto, onde estavam observando e esperando.
– Sarai! Você está bem?
– O que houve? O que há de errado?
– Sarai!
Minya veio atrás deles, mas não correu para o lado de Sarai e ficou para trás, observando com interesse enquanto eles pegavam-na pelos cotovelos e a ajudavam a se levantar.
Sarai viu a aflição do grupo e controlou a sua, afastando o sonhador de sua mente – por ora. Ele a havia visto. O que isso queria dizer? Os outros estavam enchendo-a de perguntas – perguntas que ela não podia responder, porque suas mariposas ainda não haviam voltado. Os insetos estavam no céu agora, correndo contra o sol que se levantava. Se não chegassem a tempo, Sarai ficaria sem voz até escurecer e cem novas mariposas nascessem dentro dela. Ela não sabia por que aquilo era assim, mas era. Ela levou as mãos à garganta para que os outros entendessem, e fez um gesto para que saíssem e não vissem o que aconteceria a seguir. A garota odiava que alguém visse suas mariposas saindo ou chegando.
Mas o grupo apenas deu um passo atrás, demonstrando apreensão nos rostos, e tudo o que ela pôde fazer quando as mariposas apareceram na beirada do terraço foi virar-se para esconder o rosto enquanto abria a boca para deixá-las entrar.
Noventa e nove.
Em seu choque, ela havia cortado a conexão e deixado a mariposa na testa do sonhador. Seus corações ficaram desamparados. Ela procurou-a com a mente, tateando em busca do fio cortado, como se pudesse reviver a mariposa e atraí-la de volta para casa, entretanto, aquela sentinela estava para sempre perdida. Primeiro, Sarai fora vista por um humano e, então, havia deixado uma mariposa para trás como um cartão de visita. Será que ela estava acabada?
Como ele a havia visto?
Agora andava de cá para lá novamente, por força do hábito. Os outros chegaram ao seu lado, perguntando o que acontecera. Minya ainda ficou para trás, observando. Sarai chegou ao fim da palma do serafim, virou-se e parou. Não havia parapeito nesse terraço para prevenir que alguém caísse. Havia a curva sutil da mão em forma de concha – a carne de metal levantava-se sutilmente para formar uma espécie de grande tigela rasa impedindo andar além da beira. Mesmo quando estava mais distraída, os pés de Sarai registravam a elevação e sabiam ficar no centro plano da palma.
Agora o pânico dos outros a fez voltar a si mesma.
– Conte-nos, Sarai – disse Feral, com a voz firme para mostrar que ele podia aguentar. Rubi estava de um lado e Pardal do outro. Sarai absorveu a visão de suas faces. Ela tivera tão pouco tempo nos últimos anos para simplesmente estar com eles, uma vez que o grupo vivia durante o dia e ela, à noite, e compartilhavam uma refeição no meio disso. Não era jeito de viver. Mas... era a vida, e era tudo o que tinham.
Com um sussurro frágil, falou:
– Eles têm máquinas voadoras. – E observou, desolada, como a compreensão daquilo mudou os três rostos, afastando o último trapo desafiador de esperança, deixando nada além do desespero.
Ela se sentiu como filha de sua mãe.
As mãos de Pardal voaram para sua boca.
– Então acabou – falou Rubi. Eles nem mesmo questionaram. De alguma forma, durante a noite, haviam passado do pânico para a derrota.
Não Minya.
– Olhem para vocês – Minya disse, severa. – Eu juro, vocês parecem prontos para cair de joelhos e mostrar suas gargantas a eles.
Sarai virou-se para ela. O entusiasmo de Minya tinha se acendido. Isso a horrorizava.
– Como você pode estar feliz com isso?
– Tinha que acontecer, cedo ou tarde – foi sua resposta. – Melhor acabar logo com isso.
– Acabar logo? Com o quê, com as nossas vidas?
Minya riu, com escárnio.
– Só se vocês preferirem morrer a se defenderem. Não posso impedi-los caso estejam tão determinados a morrer, mas não é isso que eu vou fazer.
Um silêncio cresceu. Ocorreu a Sarai, e talvez aos outros três ao mesmo tempo que, no dia anterior, quando Minya havia zombado dos vários níveis de inutilidade de cada um em uma luta, ela não mencionou qual seria sua parte na batalha. Agora, diante do desespero, ela irradiava vivacidade. Entusiasmo. Era tão absolutamente errado que Sarai não conseguia entender.
– O que há de errado com você? – ela perguntou. – Por que está tão satisfeita?
– Achei que você nunca perguntaria – disse Minya, com um sorriso que mostrava todos os seus dentinhos. – Venham comigo, quero mostrar algo a vocês.
A casa do Matador de Deuses era um exemplo modesto do tradicional yeldez de Lamento, ou casa com pátio. De fora, apresentava uma fachada de pedra esculpida com um padrão de lagartos e romãs. A porta era sólida, pintada de verde e dava acesso a uma passagem direto para um pátio, que era aberto, cômodo central da casa, usado para cozinhar, comer e se reunir. O clima agradável de Lamento significava que a maior parte das atividades eram feitas ao ar livre. Também significava que, antigamente, o céu tinha sido seu teto, e agora era a cidadela. Apenas os quartos, banheiro e salão de inverno eram fechados. Tais cômodos cercavam o pátio em um U e abriam-se para ele com quatro portas verdes. A cozinha ficava abrigada em um caramanchão coberto, e uma pérgola em volta da área de jantar antes era coberta com vinhas que davam sombra. O local havia tido árvores e uma horta de temperos também, mas nada disso existia mais. Uma moita de arbustos desbotados havia sobrevivido, e havia alguns vasos de flores delicadas da floresta, que podiam crescer sem muito sol, mas que não eram condizentes com a imagem verdejante na mente de Lazlo.
Quando ele saiu do quarto pela manhã, encontrou Suheyla puxando uma armadilha para peixes do poço. Isso era menos estranho do que podia parecer e, na verdade, não era um poço, mas uma abertura até o rio que fluía por baixo da cidade.
O Uzumark não era um único grande canal subterrâneo, mas sim uma rede intrincada de cursos d’água que escavaram a rocha do vale. Quando a cidade fora construída, os brilhantes engenheiros adaptaram os canais para um sistema de encanamento natural. Alguns córregos eram para água fresca, outros para o descarte do lixo. Outros, mais largos, eram canais subterrâneos navegáveis por barcos longos e estreitos iluminados por glaves. De leste a oeste, não havia forma mais rápida de atravessar a longa oval da cidade do que pelos barcos subterrâneos. Havia até mesmo o rumor de um grande lago enterrado, mais profundo do que tudo, no qual um svytagor pré-histórico estava preso por conta de seu tamanho imenso e vivia como um peixe dourado em um aquário, alimentando-se de enguias que procriavam na água fria. Eles o chamavam de kalisma, que significava “deus das enguias”, uma vez que as enguias certamente o veriam dessa forma.
– Bom dia – anunciou Lazlo, saindo no pátio.
– Ah, você está acordado – respondeu Suheyla, alegre. Ela abriu a armadilha e os pequenos peixes brilharam, verdes e dourados, quando ela os jogou em um balde. – Dormiu bem, espero...
– Bem demais, e até muito tarde. Odeio ser um preguiçoso. Sinto muito.
– Bobagem. Se existe um dia para dormir demais, eu diria que é a manhã seguinte à travessia do Elmuthaleth. E meu filho ainda não apareceu, então você não perdeu nada.
Lazlo viu o café da manhã que estava posto na baixa mesa de pedra. Era quase igual ao jantar da noite anterior, o que fazia sentido, já que era a primeira oportunidade de Suheyla de alimentar Eril-Fane em mais de dois anos.
– Posso ajudá-la? – ele perguntou.
– Você coloca a tampa de volta no poço?
Ele fez o que ela pediu, então a seguiu até o fogo, onde observou enquanto ela limpava os peixes com movimentos certeiros de faca, submergia-os no óleo, cobria-os de temperos, e os colocava na grelha. Ele mal podia imaginar como ela poderia ser mais hábil com duas mãos do que já era com uma.
Ela o viu observando. Mais precisamente, viu ele desviar o olhar quando foi pego olhando. Levantando o toco liso e afilado do pulso, disse:
– Não ligo. Pode olhar.
Ele corou, envergonhado.
– Me desculpe.
– Vou estabelecer uma multa por pedidos de desculpa – ela disse. – Eu não quis mencionar na noite passada, mas hoje é o seu novo começo. Dez pratas toda vez que você se desculpar.
Lazlo riu e teve de morder a língua antes de se desculpar por pedir desculpas.
– Fui educado assim – explicou. – Não posso fazer nada.
– Aceito o desafio de reeducá-lo. Daqui em diante você só pode pedir desculpas se pisar no pé de alguém quando estiver dançando.
– Só assim? Eu nem danço.
– O quê? Bem, vamos cuidar disso também.
Ela virou o peixe na grelha. A fumaça tinha aroma de temperos.
– Passei toda a minha vida na companhia de homens velhos – Lazlo contou-lhe. – Se você espera me preparar para a sociedade, terá bastante trabalho em mãos...
As palavras saíram antes que ele pudesse considerá-las. Seu rosto corou e, se ela não levantasse o dedo, ele teria se desculpado novamente.
– Não diga! – a mulher ordenou. Seu ar era severo, mas seus olhos dançavam. – Você não deve ter medo de me ofender, meu jovem. Sou bastante resistente. Quanto a isso... – Ela levantou o punho. – Eu quase acho que eles me fizeram um favor. Dez parece um número muito grande de dedos. E muitas unhas para cortar!
Seu sorriso contagiou Lazlo, que sorriu também.
– Nunca pensei nisso. Sabe, há uma deusa com seis braços na mitologia Maialen. Pense nela.
– Pobre coitada. Mas essa deusa provavelmente tem sacerdotisas para cuidar dela.
– Isso é verdade.
Suheyla colocou o peixe cozido em um prato e lhe entregou, fazendo um gesto em direção à mesa. Ele o levou e encontrou um lugar para o prato. As palavras dela ficaram em sua mente: “quase acho que eles me fizeram um favor”. Quem eram eles?
– Desculpe, mas...
– Dez pratas.
– O quê?
– Você pediu desculpas de novo. Eu te alertei.
– Eu não pedi – Lazlo argumentou, rindo. – “Desculpe” é um imperativo. Eu ordeno que me desculpe. Não é, de forma alguma, um pedido de desculpas.
– Está bem – admitiu Suheyla –, mas da próxima vez, nada disso. Apenas pergunte.
– Está bem. Mas... deixa para lá. Não é da minha conta.
– Apenas pergunte.
– Você disse que eles lhe fizeram um favor. Eu estava apenas pensando a quem você se referiu.
– Ah. Bem, aos deuses.
Apesar da cidadela flutuando acima de suas cabeças, Lazlo ainda não tinha uma clara ideia de como fora a vida sob o domínio dos deuses.
– Eles... cortaram sua mão?
– Eu imagino que sim – disse ela. – Não me lembro. Eles podem ter feito com que eu mesma a cortasse. Tudo o que sei é que eu tinha duas mãos antes de eles me levarem, e apenas uma depois.
Tudo isso foi dito como uma conversa matutina trivial.
– Te levaram? – Lazlo repetiu. – Lá para cima?
Suheyla franziu a testa, como se estivesse perplexa com sua ignorância.
– Ele não te contou nada?
Lazlo entendeu que ela se referia a Eril-Fane.
– Até chegarmos ao topo da Cúspide ontem não sabíamos nem por que tínhamos vindo.
Ela ficou surpresa.
– Bom, vocês são criaturas crédulas, por virem até aqui por um mistério.
– Nada poderia ter me impedido de vir – Lazlo confessou. – Fui obcecado com o mistério de Lamento minha vida inteira.
– Verdade? Eu não fazia ideia de que o mundo se lembrava de nós.
A boca de Lazlo torceu-se para um lado.
– Na verdade, o mundo não se lembra. Apenas eu.
– Bom, isso demonstra caráter – afirmou Suheyla. – E o que você acha, agora que está aqui? – Enquanto falava, ela cortava frutas, e fez um gesto amplo com sua faca. – Está satisfeito com a resolução de seu mistério?
– Resolução? – ele repetiu, com uma risada impotente, e olhou para a cidadela. – Tenho cem vezes mais perguntas do que tinha ontem.
Suheyla seguiu seu olhar, mas assim que levantou os olhos, baixou-os novamente e estremeceu. Como os Tizerkane na Cúspide, ela não aguentava olhar para a cidadela.
– Isso é de se esperar, se meu filho não o preparou. – Ela pousou a faca e colocou as frutas cortadas em uma tigela, que passou para Lazlo. – Ele nunca conseguiu falar sobre isso. – Lazlo começou a levar a tigela à mesa quando ela acrescentou, em voz baixa: – Eles o levaram por mais tempo do que qualquer outra pessoa, sabe.
Ele virou-se para a mulher. Não, realmente ele não sabia. Também não tinha certeza de como expressar seus pensamentos em uma pergunta e, antes que pudesse, Suheyla, ocupando-se em limpar a tábua de cortar, continuou a falar baixinho:
– Eles levavam garotas, principalmente – explicou. – Criar uma garota em Lamento, e, bem, ser uma filha em Lamento era... muito difícil naquele tempo. Toda vez que o chão tremia, sabíamos que era Skathis chegando à porta. – Skathis. Ruza tinha falado esse nome. – Mas, às vezes, levavam nossos filhos também. – Ela passou o chá no coador.
– Eles levavam crianças?
– Os filhos são sempre crianças... mas, tecnicamente, ou fisicamente, pelo menos, Skathis esperava até que eles fossem... maiores.
Maiores.
Aquelas palavras. Lazlo engoliu uma sensação crescente de náusea. Aquelas palavras eram como... Como ver uma faca ensanguentada. Você não precisava ter testemunhado o esfaqueamento para entender o que ela significava.
– Eu me preocupava mais com Azareen do que com Eril-Fane. Para ela, era apenas uma questão de tempo. E os dois sabiam disso, é claro. Foi por isso que se casaram tão jovens. Ela... ela disse que queria ser dele antes de ser deles. E ela foi. Por cinco dias. Mas não foi ela que levaram. Foi ele. Bem. Eles a levaram depois.
Isso era... era terrível, tudo isso. Azareen. Eril-Fane. A natureza rotineira da atrocidade. Mas...
– Eles são casados? – foi o que Lazlo conseguiu perguntar.
– Oh! – Suheyla pareceu arrependida. – Você não sabia. Bem, nenhum segredo está a salvo comigo, não é?
– Mas por que deveria ser um segredo?
– Não é que seja um segredo – explicou, cuidadosamente. – É mais que... não é mais um casamento. Não depois... – Ela virou a cabeça para cima, mas sem olhar para a cidadela.
Lazlo não fez mais perguntas. Tudo o que perguntara sobre Eril-Fane e Azareen, assim como sobre os mistérios de Lamento, havia tomado um ar muito mais sombrio do que jamais poderia imaginar.
– Nós éramos levados para “servir” – Suheyla continuou, sua mudança de pronome lembrando-lhe de que ela própria fora uma das garotas raptadas. – Era como Skathis chamava. Ele chegava à porta ou à janela. – Sua mão tremeu, e ela apertou firme o coto. – Não haviam trazido nenhum criado com eles, então tinha isso. Servir à mesa ou nas cozinhas. E havia camareiras, jardineiros, lavadeiras.
Nessa ladainha havia ficado muito claro que esses trabalhos eram as exceções, e que o “serviço” era de outro tipo.
– É claro, nós não sabíamos de nada até que fosse tarde. Quando nos traziam de volta, cerca de um ano depois, não nos lembrávamos de nada. Mas nem sempre nos traziam. E então um ano era roubado de nós. – Ela baixou o coto, e sua mão moveu-se brevemente para a barriga. – Era como se o tempo não tivesse passado. Letha devorava nossas memórias, entende. – Ela olhou para Lazlo. – Ela era a deusa do oblívio.
Fazia sentido agora – um sentido horrível – o motivo pelo qual Suheyla não sabia o que acontecera com sua mão.
– E... Eril-Fane? – ele indagou, endurecendo-se.
Suheyla olhou para o bule de chá que estava enchendo com água quente da chaleira.
– O esquecimento era uma misericórdia, no fim das contas. Ele só se lembra de tudo porque os matou, e não havia ninguém para levar embora suas memórias.
Lazlo entendeu o que a mulher lhe contava, o que ela estava dizendo sem dizer, mas não parecia possível. Não Eril-Fane, que era o poder encarnado. Ele era um libertador, não um escravo.
– Três anos – disse Suheyla. – Foi esse o tempo que ela ficou com ele. Isagol. A deusa do desespero. – Seus olhos perderam o foco. Ela parecia ter entrado em um grande buraco dentro de si e sua voz transformou-se em um sussurro. – Contudo, se nunca o tivessem levado, ainda seríamos escravos.
Por aquele breve momento, Lazlo sentiu um tremor de pesar dentro da mulher: de que ela não havia sido capaz de manter seu filho em segurança. Aquele era um pesar simples e profundo, mas, debaixo dele, havia um sentimento mais profundo e estranho: de que precisava ficar feliz por aquilo, porque se ela tivesse mantido Eril-Fane em segurança, ele não teria salvado seu povo. Misturavam-se felicidade, pesar e culpa em uma fusão intolerável.
– Sinto muito – disse Lazlo, do fundo de seus dois corações.
Suheyla saiu do lugar longínquo e oco em que estava perdida. Seus olhos aguçaram-se com um sorriso.
– Rá! – disse ela. – Dez pratas, por favor. – E ela estendeu a palma da mão para ele colocar uma moeda nela.
29
OS OUTROS BEBÊS
Minya levou Sarai e os outros para dentro, através do quarto de Sarai, e de volta pelo corredor. Todos os quartos ficavam do lado direito da cidadela. A suíte de Sarai era na extremidade do braço direito do serafim, e as outras ficavam ao longo da mesma passagem, exceto a de Minya. O que antes era o palácio de Skathis ocupava o ombro direito inteiro, o qual atravessaram e, na entrada da galeria, Sarai e Feral trocaram um olhar.
As portas que levavam para cima ou para baixo, à cabeça ou ao corpo da cidadela, estavam fechadas, tal como estavam quando Skathis morreu. Não era possível discernir nem o lugar delas.
O braço sinistro – como era chamado – era acessível, embora o grupo raramente fosse lá. Ele abrigava o berçário, e nenhum deles podia aguentar a visão de berços vazios, mesmo que o sangue tivesse sido lavado há muito tempo. Havia um monte de quartinhos como celas, com nada além de camas. Sarai sabia o que eles eram. Ela os tinha visto em sonhos, mas só nos sonhos das garotas que os ocuparam por último – como Azareen –, cujas memórias haviam sobrevivido a Letha. Sarai não podia pensar em um motivo para Minya levá-los lá.
– Onde estamos indo? – Feral perguntou.
Minya não respondeu, mas eles tiveram a resposta no momento seguinte, quando ela virou em direção ao braço sinistro, mas para um lugar ao qual eles nunca iam – mesmo que por um motivo diferente.
– O coração – afirmou Rubi.
– Mas... – disse Pardal, então interrompeu-se com um olhar de entendimento.
Sarai podia adivinhar o que ela quase dissera e o que a havia impedido, porque a ideia lhe ocorreu no mesmo momento que ocorreu a Pardal. Mas nós não cabemos mais. Aquele foi o pensamento. Mas Minya cabe. Aquele era o entendimento. E Sarai soube então onde Minya vinha passando o tempo quando não a encontravam. Se eles quisessem mesmo saber, teriam descoberto facilmente, mas a verdade é que ficavam felizes quando a garotinha estava longe, então nunca se preocuparam em procurá-la.
Eles viraram uma esquina e chegaram à porta.
Ela não podia mais ser chamada de porta. Tinha menos de trinta centímetros de largura: uma abertura esguia e estreita no metal onde uma porta não havia se fechado completamente quando Skathis morreu. Pela sua altura, que era de cerca de seis metros, estava claro que não tinha sido uma porta comum, embora não houvesse forma de estimar qual era sua largura quando aberta.
Minya mal conseguia atravessar, tendo de passar um ombro primeiro, depois o rosto. Por um momento, pareceu que ela ficaria presa pelas orelhas, mas ela pressionou o rosto e as orelhas ficaram achatadas, e ela teve de mexer a cabeça de um lado para outro para passá-la, então exalar completamente para estreitar o peito o suficiente para o resto do corpo passar. Foi por pouco. Se fosse um pouquinho maior, não teria conseguido.
– Minya, você sabe que nós não conseguimos entrar – Pardal falou enquanto a garotinha desaparecia no corredor do outro lado.
– Esperem aí – ela respondeu, e sumiu.
Eles olharam uns para os outros.
– O que ela quer nos mostrar aqui? – Sarai indagou.
– Será que ela encontrou alguma coisa no coração? – Feral se perguntou.
– Se houvesse algo para encontrar, teríamos encontrado anos atrás.
Antigamente, todos haviam sido pequenos o bastante para entrar.
– Quanto tempo faz? – Feral perguntou, deslizando a mão pela beirada lisa da abertura.
– Mais tempo para você do que para nós – disse Pardal.
– Essa sua cabeça grande – acrescentou Rubi, empurrando-o de leve.
Feral tinha crescido primeiro, depois Sarai, e as garotas um ano ou mais depois. Minya, obviamente, nunca cresceu. Quando eram pequenos, aquele era seu lugar favorito para brincar, em parte porque a abertura estreita o fazia parecer proibido, e em parte porque era muito estranho.
Era uma câmara enorme, perfeitamente esférica, de metal liso e curvo, com uma passagem estreita em volta da circunferência. Em diâmetro devia ter cerca de trinta metros, e suspensa no centro havia uma esfera menor de talvez seis metros de diâmetro, que também era perfeitamente lisa e, como a cidadela inteira, ela flutuava, sustentada no lugar não por cordas ou correntes, mas por uma força insondável. A câmara ocupava o lugar onde os corações ficariam em um corpo de verdade, então era assim que eles a chamavam, mas aquele era apenas o termo que usavam. Eles não tinham ideia de qual tinha sido seu nome ou propósito. Mesmo Grande Ellen não sabia. Era apenas uma grande bola de metal flutuando em uma sala maior de metal.
Ah, e havia monstros empoleirados nas paredes. Dois deles.
Sarai sabia das bestas das âncoras, Rasalas e as outras, pois as tinha visto com seus olhos de mariposa, inertes como eram agora, mas também as tinha visto como eram antes, através dos sonhos das pessoas de Lamento. Em seu arsenal havia um número aparentemente infinito de visões de Skathis montado em Rasalas, carregando mulheres e homens, não mais velhos do que ela era agora. Aquele era seu horror mais frequente, a pior memória coletiva de Lamento. A garota estremeceu em pensar quão displicentemente havia sofrido aquilo, não compreendendo, quando criança, o que ele significava. As bestas das âncoras eram grandes, mas os monstros empoleirados como estátuas nas paredes do coração da cidadela eram maiores.
Eram parecidos com vespas, tórax e abdômen unidos por cinturas finas, asas como lâminas, e ferrões mais longos do que um braço de criança. Sarai e os outros haviam cavalgado neles quando crianças, fingindo que eram reais, mas, se no reino dos deuses os monstros haviam sido algo além de estátuas, Sarai não tinha visões para comprovar. Tinha certeza que as criaturas nunca deixaram a cidadela. Pelo seu tamanho, era difícil imaginá-los saindo daquela sala.
– Lá vem ela – disse Rubi, que estivera espiando o corredor escuro através da abertura. Ela saiu da frente, mas a figura que emergiu de lá não era Minya. Ele não teve de parar e cuidadosamente espremer seu corpo pela abertura, apenas fluiu para fora com a facilidade de um fantasma, o que ele era.
Era Ari-Eil. Ele planou sem olhar o grupo e foi seguido por outro fantasma. Sarai piscou. Esse era familiar, mas ela não sabia de onde, e então ele passou por ela, que não teve tempo de procurar em sua memória porque outro já estava vindo atrás dele.
E mais outro.
E mais outro.
... tantos!
Fantasmas derramaram-se do coração da cidadela, um após o outro, passando pelos quatro sem manifestar-se, e indo reto pelo longo corredor sem portas que levava à galeria e ao terraço do jardim e seus quartos. Sarai se viu prensada contra a parede, tentando compreender esse fluxo de rostos, e eram todos familiares, mas não tão familiares quanto seriam se ela os houvesse visto recentemente.
O que ela não tinha.
Ela fitou um rosto, depois outro. Eram homens, mulheres e crianças, embora a maioria fossem velhos. Nomes começaram a lhe ocorrer. Thann, sacerdotisa de Thakra. Mazli, morta no parto de gêmeos, que também morreram. Guldan, a mestra das tatuagens, a velha que era famosa na cidade por desenhar a elilith mais bela. Todas as garotas queriam que ela fizesse a sua. Sarai não se lembrava exatamente quando ela havia morrido, mas fora com certeza antes de sua primeira menstruação, porque sua reação ao descobrir sobre a morte da velha havia sido muito tola. Fora de desapontamento, por Guldan não poder desenhar a sua elilith quando chegasse o momento. Como se tal coisa fosse acontecer. Que idade ela tinha, doze? Treze? Atrás de suas pálpebras fechadas, ela imaginou a pele de sua barriga parda em vez de azul, decorada com os floreios delicados da velha. E, sim, o corar de vergonha que acompanhava aquela imagem. De ter esquecido, mesmo por um instante, quem ela era.
Como se um humano fosse tocá-la um dia por qualquer motivo que não para matá-la.
Pelo menos quatro anos tinham se passado desde então. Quatro anos. Então como Guldan podia estar ali naquele momento? Era o mesmo com os outros. E havia tantos deles. Todos olhavam para a frente, inexpressivos, mas Sarai viu o apelo desesperado em mais de um par de olhos à medida que passavam. Eles se moviam com a facilidade de fantasmas, mas também com uma intenção severa, marcial, como soldados.
A compreensão veio lentamente e depois de uma só vez. As mãos de Sarai cobriram sua boca. Ambas as mãos, como se segurasse um gemido. Todo esse tempo. Como isso era possível? Lágrimas brotaram em seus olhos. Tantos deles. Tantos!
Tudo, ela pensou. Cada homem, mulher e criança que tinham morrido em Lamento desde... desde quando...? E passado perto o bastante da cidadela em sua jornada evanescente para Minya capturá-los. Fazia dez anos que Pardal e Rubi cresceram demais para entrar no coração. Foi então que ela começou esta... coleção?
– Oh, Minya – Sarai se exasperou, com a profundidade de seu horror.
Sua mente buscou outra explicação, mas não havia nenhuma. Havia apenas esta: por anos, sem que o restante deles soubesse, Minya vinha capturando fantasmas e... guardando-os. Armazenando-os. O coração da cidadela, aquela grande câmara esférica onde apenas Minya podia entrar, havia servido, todo esse tempo como um... cofre. Um armário. Uma caixa-forte.
Para um exército de mortos.
Por fim, Minya saiu, espremendo-se lentamente pela passagem e olhando desafiadoramente para Sarai e Feral, Pardal e Rubi, todos atordoados e sem palavras. A procissão de fantasmas desapareceu virando a esquina.
– Oh, Minya – falou Sarai. – O que você fez?
– O que você quer dizer com o que eu fiz? Você não vê? Nós estamos seguros. Deixe que o Matador de Deuses venha, e todos os seus novos amigos também. Eu os ensinarei o significado de massacre.
Sarai sentiu o sangue deixar seu rosto. Será que ela achava que eles ainda não sabiam?
– Você, entre todas as pessoas, já deve ter tido massacre suficiente na vida.
Minya eterna, Minya imutável. De igual para igual, ela olhou para Sarai:
– Você está errada. Eu terei o bastante quando der o troco.
Um tremor passou por Sarai. Será que isso era um pesadelo? Um pesadelo acordado, talvez. Sua mente havia enfim se partido e todos os terrores estavam derramando-se dela.
Mas não. Isso era real. Minya forçaria uma década de mortos da cidade a lutar contra e matar seus próprios amigos e parentes. Ela se deu conta com uma onda de náusea que errara, todos esses anos, em esconder sua empatia pelos humanos e tudo o que eles passaram. A princípio, ela ficara envergonhada e com medo de que fosse uma fraqueza sua ser incapaz de odiá-los como deveria. Ela imaginava palavras saindo de sua boca, como eles não são monstros, sabe, e imaginava qual seria a resposta de Minya: diga isso aos outros bebês.
Os outros bebês.
Isso era tudo o que ela tinha a dizer. Nada podia superar o Massacre. Argumentar a favor de qualquer qualidade redentora nas pessoas que o tinham cometido era uma espécie de traição. Mas agora Sarai pensou que deveria ter tentado. Em sua covardia, havia deixado os outros com uma simples convicção: eles tinham um inimigo. Eles eram um inimigo. O mundo era um massacre. Ou você o sofria ou o infligia. Se ela tivesse contado o que viu nas memórias tortas de Lamento, e o que ela sentiu e ouviu – o choro convulsivo de pais que não podiam proteger suas filhas, o horror das garotas que voltavam sem memória e corpos violados –, talvez eles tivessem visto que os humanos também eram sobreviventes.
– Deve haver alguma outra forma – Sarai afirmou.
– E se houvesse? – desafiou Minya, fria. – E se houvesse outra forma, mas você fosse patética demais para fazer?
Sarai arrepiou-se com o insulto, depois encolheu-se. Patética demais para fazer o quê? Ela não queria saber, mas tinha de perguntar.
– Do que você está falando?
Minya a considerou, então balançou a cabeça.
– Não, tenho certeza. Você é patética demais. Você nos deixaria morrer primeiro.
– O quê, Minya? – Sarai insistiu.
– Bem, você é a única de nós que pode ir para a cidade – disse a menina. Ela era, de fato, uma criança bonita, mas era difícil fitá-la, não tanto porque fosse desleixada, mas por causa do vazio estranho e frio de seus olhos. Será que ela sempre fora assim? Sarai se lembrava de rir com ela, há muito tempo, quando todos eram crianças. Quando foi que ela mudou e se tornou... isso? – Você não conseguiu enlouquecer o Matador de Deuses – ela estava dizendo.
– Ele é muito forte – Sarai protestou. Mesmo agora ela não conseguia sugerir, nem mesmo para si mesma, que talvez ele não merecesse a loucura.
– Ah, ele é forte – concordou Minya –, mas suponho que nem o grande Matador de Deuses poderia suportar respirar se uma centena de mariposas voassem para dentro de sua garganta.
Se uma centena de mariposas voassem para dentro...
Sarai apenas a encarou. Minya riu com o choque dela. Será que ela entendia o que estava dizendo? Claro que sim, apenas não se importava. As mariposas não eram... Não eram trapos de pano. Também não eram nem mesmo insetos treinados. Elas eram Sarai. Eram sua própria consciência prolongada por meio de longos cordões invisíveis. O que elas experienciavam, ela experienciava, fosse o calor da testa de um sonhador ou a obstrução vermelha e úmida da garganta de um homem sufocando.
– E de manhã – Minya continuou –, quando ele fosse encontrado morto em sua cama, as mariposas voltariam a ser fumaça, e ninguém saberia o que o matou.
Ela estava triunfante – uma criança satisfeita com um plano brilhante.
– Você só poderia matar uma pessoa por noite, eu imagino. Talvez duas. Eu me pergunto quantas mariposas seriam necessárias para sufocar alguém. – Ela deu de ombros. – De qualquer forma, depois que alguns faranji morressem sem explicação, acho que os outros perderiam a coragem. – Ela sorriu, levantando a cabeça. – Bem, eu estava certa? Você é patética demais? Ou pode suportar alguns minutos de asco para salvar nós todos?
Sarai abriu a boca e a fechou. Alguns minutos de asco? Quão trivial ela fazia isso soar.
– Não é o asco – ela disse. – Deus me livre que um estômago forte seja a única coisa que separe matar de não matar. Há a decência, Minya. Misericórdia.
– Decência – a garota cuspiu. – Misericórdia.
A forma como ela disse aquilo. A palavra não tinha lugar na cidadela dos Mesarthim. Seus olhos escureceram como se suas pupilas tivessem engolido suas íris, e Sarai sentiu ela chegar, a resposta que não tolerava argumentação: Diga isso aos outros bebês.
Mas não foi isso que Minya disse.
– Você me dá náusea, Sarai. Você é tão gentil. – E então ela disse palavras que nunca havia dito, não em todos aqueles quinze anos. Em um sussurro baixo e mortal, soltou: – Eu devia ter salvado outro bebê. – Então virou-se e foi atrás de seu terrível exército sofrido.
Sarai sentiu-se estapeada. Rubi, Pardal e Feral a cercaram.
– Estou contente que ela a tenha salvado – falou Pardal, acariciando seus braços e cabelos.
– Eu também – ecoou Rubi.
Mas Sarai estava imaginando um berçário cheio de filhos de deuses – meninas e meninos com pele azul e magia ainda não descoberta – e humanos no meio deles com facas de cozinha. De certa forma, Minya havia livrado os quatro disso. Sarai sempre sentiu o estreito golpe de sorte – como um machado passando perto o bastante para cortar as pontas de suas bochechas – por Minya tê-la salvado. De que ela tinha sobrevivido em vez de um dos outros.
E, antigamente, sobreviver se parecia com um fim. Mas agora... começava a parecer uma vantagem sem objetivo.
Sobreviver para quê?
30
NOME ROUBADO, CÉU ROUBADO
Lazlo não ficou na casa de Suheyla para o café da manhã. Ele achou que mãe e filho gostariam de um tempo sozinhos depois de dois anos de separação. Ele esperou para encontrar Eril-Fane – e tentou guardar seu novo conhecimento em silêncio em seus olhos quando o encontrou. Era difícil; o horror parecia gritar dentro de si. Tudo sobre o herói parecia diferente agora que sabia dessa pequena lasca de informação sobre o que o homem havia passado.
Ele colocou a sela em Lixxa e cavalgou por Lamento, perdendo-se agradavelmente.
– Você parece bem descansada – disse a Calixte, que estava comendo na sala de jantar da câmara quando ele finalmente a encontrou.
– Você não – ela respondeu. – Esqueceu de dormir?
– Como ousa? – provocou, suavemente, sentando-se à mesa. – Você está sugerindo que não estou com perfeito frescor?
– Eu nunca seria tão mal-educada a ponto de sugerir um frescor imperfeito. – Ela deu uma mordida grande em um doce. – Contudo – disse com a boca cheia –, você está cultivando manchas azuis debaixo dos olhos. Então, a menos que tenha recebido socos muito simétricos, aposto que não dormiu o suficiente. Além disso, com o estado de deslumbramento extático em que você estava ontem, não esperava que você fosse capaz de sentar quieto, quanto menos dormir.
– Em primeiro lugar: quem iria me dar um soco? Em segundo lugar: deslumbramento extático. Falou bem.
– Em primeiro lugar: Thyon Nero adoraria socar você. Em segundo lugar: obrigada.
– Ah, ele – disse Lazlo. Podia ter sido uma brincadeira, mas a animosidade do afilhado dourado era palpável. Os outros a sentiam, mesmo que não tivessem ideia do que estava por trás dela. – Entretanto, acho que ele é o único.
Calixte suspirou.
– Você é tão ingênuo, Estranho. Se eles não queriam antes, agora todos eles querem socá-lo por causa da bolsa das teorias. Drave especialmente. Você devia ouvi-lo falando. Ele colocou muitas pratas lá dentro, o tolo. Acho que ele pensou que era uma loteria e, se fizesse mais apostas, seria mais provável ganhar. Enquanto você fez uma só – uma aposta ridícula – e ganhou. Estou abismada de ele não o ter socado ainda.
– Thakra me salvou da bolsa das teorias – disse Lazlo, displicentemente invocando a divindade local, Thakra. Ela era a comandante dos seis serafins, de acordo com a lenda e com o livro sagrado, e seu templo ficava atravessando uma ampla avenida na frente da câmara.
– Salvá-lo de quinhentas pratas? – perguntou Calixte. – Acho que posso ajudá-lo com isso.
– Obrigado, acho que eu me viro – disse Lazlo, que, na verdade, não tinha ideia de onde começar com tanto dinheiro. – Mas como me salvará de explosionistas rancorosos e alquimistas com má vontade?
– Eu vou. Não se preocupe. É culpa minha e assumo total responsabilidade por você.
Lazlo riu. Calixte era magra como um hreshtek, mas bem menos perigosa do que um. Ainda assim, ele não a via como inofensiva, mas sabia que ele era, apesar das aulas de Ruza quanto a atirar lanças.
– Obrigado. Se eu for atacado, vou gritar histericamente e você pode ir me salvar.
– Vou enviar Tzara – disse Calixte. – Ela é magnífica quando luta. – Então acrescentou, com um sorriso secreto: – Embora ela seja ainda mais magnífica fazendo outras coisas.
Calixte não estava errada em chamar Lazlo de ingênuo, mas, mesmo que coisas como amantes fossem remotas para ele, o rapaz entendeu o sorriso e o tom afetuoso em sua voz. Suas bochechas coraram, para o prazer dela.
– Estranho, você está ruborizando.
– Claro que estou – ele admitiu. – Sou um perfeito inocente. Eu ficaria vermelho ao ver a clavícula de uma mulher.
Enquanto ele disse aquilo, uma quase memória cutucou sua mente. As clavículas de uma mulher, e o maravilhoso espaço entre elas. Mas onde ele teria visto isso...? E, então, Calixte puxou sua blusa para o lado a fim de revelar a própria clavícula, e Lazlo riu, perdendo a memória.
– Bom trabalho desnudando o rosto, a propósito – ela disse, balançando os dedos sob o queixo para indicar a barba de Lazlo. – Eu me esqueci de como era aí debaixo.
Ele sorriu.
– Ah. Bem, desculpe lembrá-la, mas estava coçando.
– O que você quer dizer com essas desculpas? Você tem um rosto excelente! – a moça respondeu, examinando-o. – Não é bonito, mas há outras formas de um rosto ser excelente.
Ele tocou no ângulo pronunciado de seu nariz.
– Eu tenho um rosto – era o máximo que ele estava disposto a dizer.
– Lazlo – chamou Eril-Fane do outro lado da sala –, reúna todos, está bem?
Lazlo assentiu e levantou-se.
– Considere-se reunida – ele informou Calixte, antes de ir procurar o resto da equipe.
– Grite se precisar que eu o salve – a moça respondeu.
– Sempre.
Havia chegado a hora de discutir o “problema” de Lamento pra valer. Lazlo já sabia um pouco por meio de Ruza e Suheyla, mas os outros estavam ouvindo pela primeira vez.
– Nossa esperança ao trazê-los aqui – explicou Eril-Fane, dirigindo-se a eles no belo salão da câmara – é de que vocês encontrem uma forma de nos libertar daquela coisa no nosso céu. – Ele olhou de um rosto para o outro, e Lazlo se lembrou daquele dia no teatro da Grande Biblioteca, quando o olhar do Matador de Deuses recaíra sobre ele, e seu sonho havia assumido uma nova clareza: não só ver a Cidade Perdida, mas ajudá-la.
– Um dia já fomos uma cidade de conhecimento – continuou Eril-Fane. – Nossos ancestrais nunca tiveram que buscar forasteiros para pedir ajuda – falou com um tom de vergonha. – Mas isso está no passado. Os Mesarthim, eles eram... notáveis. Deuses ou outra coisa, eles poderiam ter cuidado do nosso medo e o transformado em reverência, conquistando uma verdadeira idolatria. Mas cuidar não era o jeito deles. Eles não vieram para oferecer-se como uma escolha ou ganhar nossos corações. Eles vieram para dominar, total e brutalmente, e a primeira coisa que fizeram foi nos quebrar.
– Antes mesmo de se apresentarem, soltaram as âncoras. Vocês as viram. Eles não as derrubaram. O impacto teria levado abaixo todas as estruturas da cidade e arruinado os canais subterrâneos, represando o Uzumark que corre sob nossos pés e inundando todo o vale. Eles queriam nos governar, não nos destruir, e nos escravizar, não nos massacrar, então deliberadamente colocaram as âncoras e esmagaram apenas o que estava debaixo delas, incluindo a universidade e a biblioteca, a guarnição dos Tizerkane e o palácio real.
Eril-Fane havia mencionado a biblioteca antes. Lazlo se perguntou sobre ela, e que textos preciosos se perderam junto. Será que havia histórias sobre a época dos ijji e dos serafins?
– Foi tudo terrivelmente organizado. Exército, guardiães da sabedoria e família real obliterados em minutos. Qualquer um que tenha escapado foi encontrado nos dias seguintes. Os Mesarthim sabiam tudo. Nenhum segredo podia ser escondido deles. E isso era tudo. Eles não precisavam de soldados, quando tinham sua mágica para... – Ele fez uma pausa, cerrando os dentes. – Para nos controlar. E, então, nosso conhecimento se perdeu, junto com nossa liderança e muitas outras coisas. Uma cadeia de conhecimento passado ao longo de séculos, e uma biblioteca para fazer inveja até mesmo a sua grande Zosma. – Aqui ele sorriu levemente para Lazlo. – Desaparecidos em um instante. Acabados. Nos anos que se seguiram, a busca do conhecimento foi punida. Toda ciência e investigação morreram. O que nos traz a vocês – ele disse aos delegados. – Espero ter escolhido bem.
Agora, finalmente, suas variadas áreas de expertise faziam sentido. Mouzaive, o filósofo natural: para o mistério da suspensão da cidadela. Como ela flutuava? Soulzeren e Ozwin para chegar a ela em seus trenós de seda. Os engenheiros para projetar quaisquer estruturas que fossem necessárias. Belabra para os cálculos. Os gêmeos Fellering e Thyon por causa do metal.
Mesarthium. Eril-Fane explicou-lhes suas propriedades – sua impenetrabilidade a tudo, ao calor, a todas as ferramentas. Tudo, quer dizer, exceto por Skathis, que o manipulava com a mente.
– Skathis controlava o mesarthium – explicou – e assim controlava... tudo.
Metal mágico telepaticamente moldado por um deus e impenetrável a tudo. Lazlo observou as reações dos delegados e podia entender sua incredulidade, certamente, mas havia uma grande instigação ali para acreditar no inacreditável. Ele acreditara que aquele ceticismo automático havia cedido com a visão do enorme serafim flutuando no céu.
– Certamente ele pode ser cortado – afirmou um dos Fellerings. – Com os instrumentos certos e o conhecimento.
– Ou fundido, com calor suficiente – acrescentou o outro, com uma confiança que esbarrava na arrogância. – As temperaturas que podemos atingir com nossas caldeiras são facilmente o dobro do que os seus ferreiros podem alcançar.
Thyon, por sua vez, não disse nada, e havia mais arrogância em seu silêncio do que na fanfarrice dos Fellerings. Seu convite para a delegação estava claro agora. O azoth não era apenas um meio de fazer ouro, na verdade. Ele também produzia o alkahest, o solvente universal – um agente capaz de dissolver qualquer substância no mundo: vidro, pedra, metal e até diamante. Será que o mesarthium também se dissolveria?
Se sim, então ele bem podia ser o segundo libertador de Lamento. Que honra para sua fama, Lazlo pensou, com uma pontada de mágoa: Thyon Nero, o libertador da sombra.
– Por que não vamos até lá? – sugeriu Eril-Fane, diante da incredulidade de seus convidados. – Eu os apresentarei ao mesarthium. É um bom ponto de partida.
A âncora do norte era a mais próxima, perto o suficiente para ir andando até ela – e a caminhada os levou pela faixa de luz chamada de Avenida, embora não fosse uma avenida. Era o único lugar em que a luz do sol incidia sobre a cidade, passando pelo vão onde as asas do serafim uniam-se na frente e não se encontravam direito.
Era ampla como uma avenida e atravessá-la quase fazia parecer que alguém havia passado do crepúsculo para o dia e de volta à escuridão em alguns passos. Ela percorria metade da extensão da cidade e se tornara terreno mais cobiçado, muito embora a maior parte da luz incidisse sobre bairros mais humildes. Havia luz, e aquilo era tudo. Nessa única faixa banhada de sol, Lamento era tão verde quanto Lazlo sempre tinha imaginado e, em contraste, o restante da cidade parecia mais morto.
As asas nem sempre haviam sido estendidas como estavam agora, Eril-Fane explicou a Lazlo.
– Foi o ato de morte de Skathis: roubar o céu, como se já não tivesse roubado o bastante. – Ele olhou para a cidadela lá em cima, mas não por muito tempo.
E não só o céu fora roubado naquele dia, Lazlo ficou sabendo, descobrindo, enfim, a resposta para a pergunta que o tinha assombrado desde que era criança.
Que poder é capaz de aniquilar um nome?
– Foi Letha – Eril-Fane contou. Lazlo já conhecia o nome: deusa do oblívio, mestra do esquecimento. – Ela o comeu. Engoliu-o enquanto morria, e ele morreu com ela.
– Vocês não podiam renomeá-la? – Lazlo perguntou.
– Você acha que não tentamos? A maldição é muito poderosa. Todo nome que damos sofre o mesmo destino que o primeiro. Apenas Lamento permanece.
Nome roubado. Céu roubado. Filhos roubados. Anos roubados. O que os Mesarthim foram, Lazlo pensou, foram ladrões em uma escala épica.
A âncora dominava a paisagem, uma grande massa desajeitada atrás das silhuetas dos domos. Ela fazia todo o resto parecer pequeno, como um pequeno vilarejo de brinquedo construído para crianças. E no topo estava uma das estátuas que Lazlo não conseguia distinguir claramente, fora o fato de parecer bestial – com chifres e asas. Viu Eril-Fane olhando-a também, estremecer e desviar o olhar.
Os dois se aproximaram do muro proibitivo de metal azul, e seus reflexos deram um passo à frente para encontrá-los. Havia algo no metal, de perto – o volume, o brilho, a cor, uma estranheza indefinível –, que provocou um silêncio à medida que estenderam as mãos com vários graus de cautela para tocá-lo.
Os Fellerings haviam trazido uma maleta de instrumentos e começaram a trabalhar imediatamente. Thyon distanciou-se dos outros para examinar à sua própria maneira, com Drave o seguindo, oferecendo-se para segurar sua mochila.
– É liso – atestou Calixte, correndo as mãos pela superfície. – Parece molhado, mas não é.
– Você nunca vai escalar isso – disse Ebliz Tod, tocando-o.
– Quer apostar? – ela retrucou, com o brilho do desafio nos olhos.
– Cem pratas.
Calixte ridicularizou-o.
– Prata. Que chatice.
– Sabe como resolvemos as disputas em Thanagost? – indagou Soulzeren. – Roleta de veneno. Distribua uma rodada de tragos e misture veneno de serpaise em um deles. Você descobrirá que perdeu quando morrer sufocado.
– Você é louca – disse Calixte, admirada. Ela olhou para Tod. – Acho que Eril-Fane pode querê-lo vivo.
– Pode? – Tod indignou-se. – Você que é a pessoa descartável aqui.
– Você é desagradável, não? – ela retrucou. – Pois lhe digo, se eu ganhar, você terá que construir uma torre para mim.
Ele riu alto.
– Construo torres para reis, não para garotinhas.
– Você constrói torres para os cadáveres dos reis – ela respondeu. – E se tem tanta certeza de que não consigo escalar, onde está o risco? Não estou pedindo por uma Espiral de Nuvem. Pode ser uma torre pequena. Não vou precisar de um túmulo mesmo. Por mais que eu mereça a veneração eterna, pretendo nunca morrer.
– Boa sorte com isso – disse Tod. – E se eu ganhar?
– Hummm... – ela ponderou, batendo o dedo no queixo. – O que diz de uma esmeralda?
Ele a observou, impassivo.
– Você não escapou com nenhuma esmeralda.
– Ah, talvez você esteja certo – ela sorriu. – O que eu saberia sobre isso?
– Me mostre, então.
– Se eu perder, mostrarei. Mas se eu ganhar, você só terá que se perguntar se tenho mesmo ou não.
Tod considerou por um momento, seu rosto carrancudo e calculista.
– Sem corda – ele estipulou.
– Sem corda – ela concordou.
Ele tocou o metal novamente, avaliando quão liso era. Ele deve ter reforçado sua certeza de que era impossível escalar, porque aceitou os termos de Calixte. Uma torre contra uma esmeralda. Aposta justa.
Lazlo foi até onde o muro estava livre e passou a mão pela superfície. Como Calixte havia dito, era liso, não meramente polido. E duro e frio, como é de se esperar de um metal à sombra, e sua pele deslizou sem nenhum tipo de fricção. Ele esfregou as pontas dos dedos e continuou pela extensão da âncora. Mesarthium, Mesarthim. Metal mágico, deuses mágicos. De onde eles teriam vindo?
Do mesmo lugar que os serafins? “Eles vieram dos céus”, dizia o mito – ou a história, se de fato tudo fosse verdade. E de onde antes disso? O que havia além do céu?
Será que vieram do grande todo negro cheio de estrelas que era o universo?
Os “mistérios de Lamento” não eram mistérios de Lamento, Lazlo pensou. Eles eram bem maiores do que este lugar. Maiores do que o mundo.
Chegando à esquina da âncora, ele espiou do outro lado e viu uma viela que se dissolvia em pedregulhos. Aventurou-se por ela, ainda esfregando a mão no mesarthium. Olhando para a ponta de seus dedos, percebeu que estavam de um cinza pálido. Ele os esfregou na camisa, mas a cor não saiu.
Do lado oposto ao muro de metal havia uma fileira de casas destruídas, ainda de pé como estavam antes da âncora, mas com as paredes laterais retiradas, como casas de boneca, abertas de um lado. Eram casas de bonecas decrépitas. Ele pôde ver dentro de antigas salas e cozinhas, e imaginar as pessoas que tinham vivido lá no dia em que seu mundo mudou.
Lazlo se perguntou o que estava debaixo dessa âncora. A biblioteca, o palácio ou a guarnição? Os ossos esmagados de reis, guerreiros ou guardiães do conhecimento? Era possível que algum livro tenha sobrevivido intacto?
Seus olhos notaram um trecho de cor à frente. Estava em um muro abandonado de pedra diante do muro de mesarthium, e a viela era estreita demais para Lazlo vê-lo a distância. Só quando se aproximou pôde decifrar que era uma pintura, e só quando estava de frente para o quadro conseguiu ver o que ela retratava.
Ele olhou para ela. E olhou. O choque geralmente chega como um golpe, repentino e inesperado. Mas, nesse caso, tomou conta dele lentamente, à medida que compreendeu a imagem e lembrou-se do que havia, até aquele momento, esquecido.
Só podia ser uma imagem dos Mesarthim. Havia seis deles: três mulheres de um lado, três homens do outro. Todos estavam mortos ou morrendo – espetados, retalhados ou esquartejados. E entre eles, inequivocamente, grandioso, e com seis braços para segurar seis armas, estava o Matador de Deuses. A imagem era grosseira. Quem quer que tivesse feito a pintura não era um artista treinado, mas havia uma intensidade bruta nela que era muito poderosa. Essa era uma pintura de vitória. Era brutal, sangrenta e triunfante.
O motivo do choque de Lazlo não era a violência dela – o sangue espirrando ou a quantidade de tinta vermelha usada para ilustrá-lo. Não havia sido o vermelho que chamou a sua atenção, mas o azul.
Em todas as conversas sobre os Mesarthim até então, ninguém pareceu achar importante mencionar que – se esse mural estivesse correto – eles tinham sido azuis. Assim como seu metal.
E da mesma forma que a garota no sonho de Lazlo.
Como ele podia tê-la esquecido? Foi como se ela tivesse entrado atrás de uma cortina em sua mente e, quando viu o mural, a cortina caiu e ela estava lá: a garota com a pele da cor do céu, que tinha ficado tão perto dele, estudando-o como se ele fosse uma pintura. Até as clavículas eram dela – a coceirinha em sua memória, de onde ele olhou para baixo no sonho e corou ao ver mais da anatomia feminina do que já vira na vida real. O que o fato de ter sonhado com uma garota com roupas de baixo dizia sobre ele?
Mas ela não estava aqui nem lá. Ali estava ela, no mural. Grosseiro como era, sem capturar o que havia de adorável nela, era uma semelhança inequívoca, desde o cabelo – o rico vermelho-escuro do mel de flores silvestres – até a severa faixa pintada sobre os olhos como uma máscara. Diferente da garota em seu sonho, contudo, esta estava usando um vestido.
Além disso... sua garganta estava aberta e esguichando sangue.
Ele deu um passo para trás, sentindo-se nauseado, como se estivesse observando um corpo real e não a retratação de uma garota assassinada que ele viu em um sonho.
– Tudo bem aí?
Lazlo olhou em volta. Era Eril-Fane na entrada da viela. Dois braços, não seis. Duas espadas, e não um arsenal pessoal de lanças e alabardas. Essa pintura, grosseira e ensanguentada, acrescentava ainda outra dimensão à ideia que Lazlo fazia dele. O Matador de Deuses havia matado deuses. Bem, é claro. Mas Lazlo nunca tinha, de fato, formado uma imagem para corresponder à ideia antes, ou se tinha, era uma imagem vaga, e as vítimas eram monstruosas. Não de olhos arregalados e descalças, como a garota em seu sonho.
– Era assim que eles eram? – ele indagou.
Eril-Fane veio olhar. Seus passos desaceleraram quando percebeu o que o mural retratava. Ele apenas assentiu, sem desviar o olhar dele.
– Eles eram azuis – disse Lazlo.
Mais uma vez, Eril-Fane assentiu.
Lazlo olhou para a deusa com a máscara preta pintada, e imaginou, interposta sobre os traços grosseiramente desenhados, os traços delicados que vira na noite anterior.
– Quem é ela?
Eril-Fane levou um momento para responder, e sua voz, quando respondeu, era rouca e quase baixa demais para ouvir.
– Essa é Isagol. Deusa do desespero.
Então esta era ela, o monstro que o havia mantido por três anos na cidadela. Havia tanto sentimento na forma como ele pronunciara seu nome, e era difícil entender porque não era... puro. Era ódio, mas havia tristeza e vergonha misturados também. Lazlo tentou olhar para seu rosto, mas o homem já estava se afastando. Ele observou-o partir e analisou uma última vez a pintura assustadora antes de segui-lo. Observou as manchas, linhas e riachos de vermelho, e este mais novo mistério não era um caminho de linhas iluminadas em sua mente. Era mais como pegadas sangrentas levando para a escuridão.
Como era possível, perguntou-se, que ele tivesse sonhado com a deusa assassinada antes de saber qual era sua aparência?
31
AMORES E VÍBORAS
Do coração da cidadela, Sarai retornou ao seu quarto. Os “soldados” de Minya estavam por toda parte armados com facas, cutelos, picadores de gelo. Eles até tiraram os ganchos de metal da sala da chuva. Em algum lugar havia um arsenal de verdade, mas ele estava fechado atrás de uma sucessão de portas de mesarthium seladas e, de qualquer forma, Minya achava que as facas eram armas apropriadas para uma carnificina. Afinal, eram elas que os humanos haviam usado no berçário.
Não tinha como escapar do exército, principalmente para Sarai, uma vez que seu quarto era voltado para a palma azul-prateada do serafim, iluminada pelo sol. Os fantasmas estavam lá em grande número, e isso fazia sentido, pois o terraço era o lugar perfeito para um veículo pousar, muito melhor do que o jardim com suas árvores e vinhas. Quando o Matador de Deuses viesse, ele chegaria por ali e Sarai seria a primeira a morrer.
Será que ela deveria então agradecer a Minya por sua proteção?
– Vocês não veem? – Minya havia dito, revelando-lhes seu exército. – Estamos seguros!
Entretanto, Sarai nunca se sentira tão desprotegida. Seu quarto fora violado por fantasmas prisioneiros e ela temia que, ao cair no sono, o que a esperava fosse ainda pior. Sua bandeja estava aos pés da cama: lull e ameixas, como em todas as manhãs, embora normalmente nesse horário já estivesse dormindo profundamente e perdida no esquecimento de Letha. Será que o lull funcionaria hoje? Havia meia dose extra, como Grande Ellen havia prometido. Será que tinha sido apenas um acaso no dia anterior?, Sarai se perguntou. Por favor, desejou, desesperada pelo veludo triste do seu vazio. Terrores se agitavam dentro de si e imaginou que podia ouvir um ruído de gritos impotentes nas cabeças de todos os fantasmas. Ela também queria gritar. Não havia sensação de segurança, pensou, abraçando um travesseiro contra o peito.
Sua mente lhe ofereceu uma exceção improvável.
O sonho do faranji. Ela tinha se sentido segura lá.
A memória despertou um silvo desesperado de... pânico? Excitação? Seja lá o que fosse, ela contradizia a própria sensação de segurança que tinha conjurado o pensamento nele para começo de conversa. Sim, o sonho tinha sido doce, mas... ele a havia visto.
O olhar em seu rosto! A admiração, o encantamento. Seus corações aceleraram com o pensamento e suas mãos ficaram úmidas. Não era algo pequeno viver uma vida de não existência e, de repente, ser vista.
Quem era ele, afinal? De todos os sonhos dos faranji, apenas o dele não dera nenhuma pista do motivo pelo qual Eril-Fane o havia levado para lá.
Exausta, amedrontada, Sarai bebeu seu lull e deitou-se na cama. Por favor, pediu, fervorosa – uma espécie de oração para a bebida amarga. Por favor, funcione.
Por favor, afaste os pesadelos.
Lá fora, em seu jardim, Pardal estava com os olhos baixos. Desde que se concentrasse nas folhas e botões, caules e sementes, podia fingir que era um dia normal e que não havia fantasmas fazendo a guarda sob a arcada.
Ela estava fazendo um presente de aniversário para Rubi, que faria dezesseis anos em alguns meses... caso ainda estivessem vivos.
Considerando o exército de Minya, Pardal achou que as chances deles eram boas, mas ela não queria ter de considerar o exército de Minya. Ele a fazia se sentir segura e infeliz ao mesmo tempo, então ela mantinha os olhos baixos e cantarolava, tentando esquecer que eles estavam lá.
Outro aniversário para celebrar sem bolo. As opções para presentes também eram poucas. Normalmente, as garotas desfaziam algum dos horríveis vestidos de seus guarda-roupas e o transformavam em outra coisa. Talvez um cachecol. Um ano, Pardal havia feito uma boneca com rubis de verdade no lugar dos olhos. Seu quarto tinha sido de Korako, então ela tinha todos os vestidos e joias dela para usar, enquanto Rubi tinha os de Letha. As deusas não eram suas mães, como Isagol era de Sarai. As duas eram filhas de Ikirok, deus da folia, que também servira como carrasco em seu tempo livre. Então, elas eram meias-irmãs e as únicas dos cinco que eram parentes de sangue. Feral era filho de Vanth, deus das tempestades – cujo dom ele tinha mais ou menos herdado – e Minya era filha de Skathis. Sarai era a única cujo sangue dos Mesarthim vinha do lado materno. Era raro as deusas darem à luz, de acordo com a Grande Ellen. Uma mulher só podia ter um bebê por vez, ocasionalmente dois. Mas os homens eram capazes de fecundar quantas mulheres quisessem, contanto que houvesse mulheres.
De longe, a maioria dos bebês do berçário tinha sido fecundada em garotas humanas pela trindade de deuses.
O que significava que, em algum lugar de Lamento, Pardal tinha uma mãe.
Quando ela era pequena, demorou para entender ou acreditar que sua mãe não a queria.
– Eu poderia ajudá-la no jardim – ela disse a Grande Ellen. – Eu poderia ser de grande ajuda, sei que poderia.
– Também sei que você poderia, querida – respondeu Grande Ellen –, mas precisamos de você aqui. Como poderíamos viver sem você?
Ela tentou ser gentil, mas Minya não sofria de tal compunção.
– Se a encontrassem no jardim deles, lhe dariam um golpe na cabeça com a enxada e a jogariam fora junto com o lixo. Você é cria de deuses, Pardal. Eles nunca irão querê-la.
– Mas também sou humana – a garota insistiu. – Será que eles podem ter esquecido disso? De que somos seus filhos também?
– Você não entende? Eles nos odeiam mais porque somos deles.
E Pardal não entendia, não na época, mas enfim aprendeu – a partir de uma grosseira e inacreditável afirmação de Minya, seguida de uma explicação gentil e esclarecedora de Grande Ellen – a... mecânica da procriação, e isso mudou tudo. Ela sabia agora qual deveria ter sido a natureza de sua própria concepção e embora o conhecimento fosse uma coisa obscura e vaga, sentiu o horror disso como o peso de um corpo indesejado, o que lhe deu um nó na garganta. É claro que nenhuma mãe iria querê-la, não depois de um começo como esse.
Ela se perguntou quantos dos fantasmas do exército de Minya tinham sido usados assim pelos deuses. Havia muitas mulheres e a maioria era mais velha. Quantas teriam parido bebês dos quais não se lembravam nem desejavam se lembrar?
Pardal manteve os olhos em suas mãos e trabalhou no seu presente, cantarolando baixinho para si mesma. Tentou não pensar se todos ainda estariam vivos no aniversário de Rubi ou que tipo de vida teriam caso estivessem. Ela focou em suas mãos e na sensação calmante de crescimento fluindo delas. Ela estava fazendo um bolo de flores. Ah, não era nada que pudessem comer, mas era bonito e a lembrava do passado, quando ainda havia açúcar na cidadela e alguma medida de inocência também, antes de ela entender sua própria atrocidade.
O bolo tinha até botões de bastão-do-imperador no lugar de velas: dezesseis deles. Ela o daria a Rubi no jantar, pensou. Ela poderia acendê-los com o próprio fogo, fazer um pedido e soprá-los.
Feral estava em seu quarto, olhando para o seu livro. Ele virou as páginas de metal e traçou os símbolos angulares e ásperos com a ponta do dedo.
Se fosse necessário, era capaz de replicar o livro inteiro de cor – de tão bem que o conhecia. Mas isso não adiantava muito, uma vez que não conseguia extrair nenhum significado daquilo. Às vezes, quando se concentrava demais nos símbolos, seus olhos perdiam o foco e então tinha a sensação de que podia ver dentro do metal e sentir um potencial pulsante e dormente. Como um cata-vento esperando por uma rajada para girá-lo. Esperando e desejando que ela viesse.
O livro queria ser lido, Feral pensava. Mas qual era a natureza da rajada capaz de mover esses símbolos? Ele não sabia. Só sabia – ou, pelo menos, suspeitava fortemente – que, se pudesse ler esse alfabeto críptico, poderia descobrir os segredos da cidadela. Poderia proteger as garotas, em vez de meramente... bem, mantê-las hidratadas.
Ele sabia que a água não era uma questão irrelevante e que todos teriam morrido sem seu dom, então ele não tendia a se remoer muito por não ter o poder de Skathis. Esse remorso, em particular, era de Minya, mas às vezes ele também caía vítima desse anseio. É claro, se pudessem controlar o mesarthium, estariam livres e salvos, sem mencionar que seriam indestrutíveis. Mas ninguém o controlava e era inútil perder tempo desejando-o.
Contudo, Feral tinha certeza que se pudesse desvendar o livro, poderia fazer... alguma coisa.
– O que você está fazendo aí? – a voz de Rubi veio da porta.
Ele olhou para cima e fez uma carranca quando viu que ela tinha colocado a cabeça para dentro.
– Respeite a cortina – ele disse, e voltou os olhos ao seu livro.
Mas Rubi não respeitou a cortina. Ela simplesmente rodopiou em seus pés descalços azuis, arqueados e expressivos. Suas unhas dos pés estavam pintadas de vermelho e ela estava vestindo vermelho, estava também com uma expressão determinada que o teria alarmado caso o garoto a tivesse olhado – o que ele não fez. Ele se retesou um pouco. Isso foi tudo.
Ela fez uma carranca por cima de sua cabeça baixa, como ele tinha feito para ela na porta. Era um começo nada promissor. Livro estúpido, ela pensou. Livro estúpido.
Mas ele era o único garoto. Tinha lábios mais quentes do que os fantasmas. Tudo mais quente, ela supunha. Mais importante, Feral não tinha medo dela, o que devia ser mais divertido do que se encostar em um fantasma meio paralisado e dizer-lhe o que fazer a cada poucos segundos. Coloque suas mãos aqui. Agora aqui.
Tão chato.
– O que você quer, Rubi? – perguntou Feral.
Ela estava perto dele agora.
– O lance dos experimentos – explicou ela – é que eles precisam ser repetidos ou então não valem nada.
– O quê? Que experimento? – Ele se virou para ela. Sua testa estava franzida: meio pela confusão, meio pela irritação.
– Beijar – a garota respondeu. Ela tinha dito antes: “esse é um experimento que não vou repetir”. Pois bem. À luz de sua aceleração em direção à ruína, ela tinha reconsiderado.
Ele não.
– Não – ele disse, seco, e virou-se novamente.
– É possível que eu estivesse errada – a garota explicou, com um ar de grande generosidade. – Decidi lhe dar uma nova chance.
Cheio de sarcasmo:
– Obrigado pela generosidade, mas eu dispenso.
A mão de Rubi desceu sobre o livro.
– Escute. – Ela empurrou o livro e sentou-se na beirada da mesa. Sua camisola subiu nas coxas, a pele tão lisa e sem atrito quanto o mesarthium, ou quase.
Contudo, muito mais macia.
Ela apoiou os pés na beirada da cadeira.
– Provavelmente nós vamos morrer – ela disse, em um tom prático. – E, de qualquer forma, mesmo que não morramos, estamos aqui. Estamos vivos. Temos corpos. Bocas. – Ela fez uma pausa e acrescentou, provocativa, passando-a entre os dentes: – Línguas.
Feral corou.
– Rubi... – ele começou a dizer em um tom de rejeição.
Ela o interrompeu.
– Não tem muita coisa para fazer aqui em cima. Não há nada para ler. – Ela apontou para o livro dele. – A comida é ruim. Não tem música. Nós inventamos oito mil jogos e já enjoamos de todos eles. Por que não inventar outra coisa? – sua voz estava ficando rouca. – Não somos mais crianças e temos lábios. Não é motivo suficiente?
Uma voz na cabeça de Feral garantiu-lhe que aquilo não era motivo suficiente. Que ele não queria mais experimentar a saliva de Rubi. Que ele não queria, na verdade, passar mais tempo com ela do que já passava. Podia até mesmo ter uma voz lá em algum lugar ressaltando que se ele tivesse de... passar mais tempo... com uma das garotas, não seria com ela. Quando ele brincou com Sarai sobre casar-se com todas elas, fingiu que não era algo sobre o qual pensasse muito, mas ele pensava. Como não? Ele era um garoto preso com garotas, elas podiam ter sido como irmãs, mas não eram irmãs, e elas eram... bem, elas eram bem bonitas. Sarai primeiro, depois Pardal, se ele tivesse de escolher. Rubi seria a última.
Mas aquela voz parecia vir de muito longe e Sarai e Pardal não estavam lá naquele momento, enquanto Rubi estava muito perto e cheirava tão bem.
E, como ela disse, provavelmente todos iriam morrer.
A bainha de sua camisola era fascinante. Seda vermelha e pele azul contrastavam, as cores pareciam vibrar. E a forma como os joelhos dela estavam unidos, um por cima do outro só um pouquinho e a sensação do pé dela roçando debaixo do seu joelho. Ele não podia deixar de achar os argumentos dela... atraentes.
A garota inclinou-se para a frente, só um pouquinho. Todos os pensamentos sobre Sarai e Pardal desapareceram.
Ele se inclinou para trás o mesmo tanto.
– Você disse que eu era terrível – ele a lembrou, sua própria voz tão rouca quanto a dela.
– E você disse que eu te afoguei – ela respondeu, aproximando-se um pouco mais.
– Tinha mesmo muita saliva – ele observou. Talvez imprudentemente.
– E você foi tão sensual quanto um peixe morto – ela retrucou, sua expressão se fechando.
A situação ficou delicada por um momento. “Meus amores, minhas víboras”, Grande Ellen os havia chamado. Bem, eles eram todos amores e víboras, todos eles. Ou, talvez Minya fosse toda víbora e Pardal fosse toda amor, mas o resto deles era apenas... Era apenas corpo e espírito, juventude e magia, desejo e sim, saliva, tudo isso sufocado, sem lugar para sair. Massacre atrás deles, massacre à frente, e fantasmas por toda parte.
Mas ali, de repente, havia uma distração, fuga, novidade, sensação. O movimento dos joelhos de Rubi era uma espécie de poesia azul e, quando se está tão perto assim de alguém, não vê seus movimentos tanto quanto sente a compressão do ar entre vocês. O roçar da pele, o deslizar. Rubi se moveu e com um simples serpentear furtivo sentou-se no colo de Feral. Seus lábios encontraram os dele. Ela não era nada sutil com a língua. Suas mãos entraram para a festa, pareciam dezenas delas em vez de quatro, e também havia palavras, porque Rubi e Feral ainda não haviam aprendido que não é realmente possível conversar e beijar ao mesmo tempo.
Então levou um momento para acertar isso.
– Acho que vou te dar uma outra chance – admitiu Feral, sem fôlego.
– Sou eu que estou te dando outra chance – Rubi corrigiu, um fio da saliva mencionada brilhando entre seus lábios quando ela se afastou para falar.
– Como vou saber se você não vai me queimar? – Feral perguntou, enquanto deslizava sua mão pelo quadril dela.
– Ah – disse Rubi, despreocupada –, isso só aconteceria se eu perdesse completamente o controle. – Línguas movendo-se com ímpeto, colidindo. – Você teria que ser muito bom. – Dentes batendo. Narizes também. – Não estou preocupada.
Feral quase se ofendeu, mas havia muitas coisas agradáveis acontecendo, então ele aprendeu a segurar a língua, ou melhor, a empregá-la em um propósito mais interessante do que discutir.
Você pode pensar que lábios e línguas ficam sem coisas para experimentar, mas isso não acontece.
– Coloque sua mão aqui – sussurrou Rubi, e ele obedeceu. – Agora aqui – ela ordenou, e ele não colocou. Para satisfação dela, as mãos de Feral tinham uma centena de ideias próprias, e nenhuma delas era entediante.
O coração da cidadela estava vazio de fantasmas. Pela primeira vez em uma década, Minya o tinha para si. Ela se sentou na passagem que dava a volta na circunferência da grande sala esférica, com as pernas penduradas para fora – pernas magras e curtas. Elas não estavam balançando. Não havia nada infantil ou despreocupado na pose. Havia uma escassez de vida na pose, exceto por um sutil movimento para frente e para trás. A garotinha estava rígida, com olhos abertos e expressão impassível. As costas estavam eretas e as mão sujas estavam tão cerradas que os nós dos dedos pareciam prestes a rachar.
Seus lábios estavam se movendo. Muito pouco. Ela sussurrava alguma coisa, repetidamente. Ela havia voltado no tempo quinze anos, vendo essa sala de uma forma diferente.
O dia. O dia em que foi eternamente espetada, como uma mariposa presa pelo tórax com um longo e brilhante alfinete.
Naquele dia, ela havia pegado dois bebês e os segurado apenas com um braço. Ela não tinha gostado disso, tampouco seu braço, mas precisava do outro para arrastar as crianças pequenas: as duas mãozinhas delas presas à sua, molhadas e escorregadias de suor. Dois bebês em um braço, duas crianças tropeçando atrás dela.
Ela os tinha levado para lá, enfiado-os pelo vão da porta quase fechada e virado para correr e resgatar mais. Mas não havia mais crianças. Ela estava no meio do caminho para o berçário quando os gritos começaram.
Às vezes, sentia como se tivesse congelado por dentro no momento em que parou ao som daqueles gritos.
Na época, ela era a criança mais velha do berçário. Kiska, que podia ler mentes, tinha sido a última levada por Korako, para nunca mais voltar. Antes dela havia Werran, cujo grito semeava o pânico nas mentes de quem ouvia. Quanto a Minya, ela sabia qual era seu dom, pois o conhecia havia meses, mas não o estava demonstrando. Uma vez que descobrissem, levariam-na para longe, então ela guardou o segredo da deusa dos segredos e ficou no berçário pelo maior tempo possível. E, assim, ela ainda estava lá no dia em que os humanos se levantaram e mataram seus mestres. Isso não teria problema para ela – que não tinha amor pelos deuses –, caso tivessem parado por aí.
Ela ainda estava no corredor, ouvindo os gritos e seu terrível minguar sangrento. Ela sempre estaria lá e seus braços sempre seriam pequenos demais, assim como tinham sido naquele dia.
Contudo, de forma crucial, ela era diferente. Nunca permitiria a fraqueza ou a delicadeza novamente, ou que o medo ou a incapacidade a mantivesse congelada. Ela ainda não sabia do que era capaz. Seu dom não havia sido testado. É claro. Se ela o testasse, Korako a teria encontrado e levado-a embora. E, então, ela não conheceria a força de seu poder.
Ela poderia ter salvado a todos, se soubesse.
Houve tanta morte na cidadela naquele dia. Ela poderia ter se ligado àqueles fantasmas – até aos fantasmas dos deuses. Imagine.
Imagine.
Ela podia ter se ligado aos próprios deuses e colocado-os a seu serviço, Skathis também. Se ela soubesse o que fazer. Então, podia ter construído um exército e aniquilado o Matador de Deuses e todos os outros antes que chegassem ao berçário.
Em vez disso, ela salvou quatro crianças e, assim, ficou para sempre presa naquele corredor, ouvindo aqueles gritos serem silenciados um a um.
Sem fazer nada.
Seus lábios ainda estavam se movendo, sussurrando as mesmas palavras sem parar.
– Elas foram tudo o que consegui carregar. Elas foram tudo o que consegui carregar.
Não havia eco, nenhuma reverberação. A sala engolia os sons. Engoliu sua voz, suas palavras e suas desculpas eternas e inadequadas. Mas não suas memórias.
Ela nunca se livraria delas.
– Elas foram tudo o que consegui carregar.
– Elas foram tudo o que consegui carregar...
32
O ESPAÇO ENTRE OS PESADELOS
Sarai acordou engasgando com a sensação de uma centena de mariposas úmidas se espremendo em sua garganta. Foi tão real, tão real. Ela, de fato, acreditou que eram suas mariposas, que as havia engolido, nauseantes e vivas. Havia um gosto de sal e de fuligem – sal das lágrimas dos sonhadores, fuligem das chaminés de Lamento – e mesmo depois que recuperou o fôlego e percebeu que era um pesadelo, ainda podia sentir o gosto.
Obrigada, Minya, por esse horror novo em folha.
Não fora o primeiro horror do dia. Nem perto disso. Sua oração para o lull não fora atendida. A garota mal havia dormido por uma hora e o pouco sono que teve foi longe de ser revigorante. Sonhara com a própria morte de meia dúzia de maneiras diferentes, como se sua mente estivesse fazendo uma lista de alternativas. Um menu, por assim dizer, de formas de morrer.
Envenenamento.
Afogamento.
Queda.
Esfaqueamento.
Espancamento.
A garota havia até mesmo sido queimada viva pelos cidadãos de Lamento. E entre as mortes, ela era... o quê? Era uma garota em uma floresta escura que tinha ouvido um galho quebrar. O espaço entre os pesadelos era como o silêncio após a quebra, quando você sabe que seja lá quem tenha feito o ruído, está parado e o observando no escuro. Não havia mais o nada cinzento. A névoa do lull se dissolvera.
Todos os seus terrores estavam livres.
Ela se deitou de costas, seus lençóis chutados para longe, e olhou para o teto. O corpo estava exausto, a mente adormecida. Como o lull podia ter simplesmente parado de funcionar? No seu pulso havia uma cadência de pânico.
O que deveria fazer agora?
A sede e a vontade de ir ao banheiro a levaram a se levantar, mas a perspectiva de deixar a cama era desencorajadora. Sabia o que encontraria logo ali, mesmo dentro de seu próprio quarto:
Fantasmas com facas nas mãos.
Igual às velhas senhoras que a cercaram na cama, desesperadas com a incapacidade de matá-la.
Enfim levantou-se. Vestiu um robe e o que esperava que se passasse por dignidade e emergiu. Lá estavam eles, enfileirados entre a porta para a passagem e a porta que dava para o terraço: oito deles lá dentro; ela não podia ter certeza de quantos estavam fora na mão do serafim. Ela se endureceu e atravessou seu quarto.
Minya, ao que parecia, estava prendendo seu exército com tal controle que eles não podiam formar expressões faciais como a aversão ou o medo, que Sarai conhecia tão bem, mas os olhos permaneciam deles e era incrível ver o quanto podiam transmitir apenas com isso. Havia aversão e medo, sim, enquanto Sarai passou por eles, mas o que mais viu ali foram pedidos de socorro.
Ajude-nos.
Liberte-nos.
Não posso ajudar vocês, ela queria dizer, mas o nó na garganta era maior do que apenas uma falsa sensação de mariposas, era o conflito que a dividia ao meio. Esses fantasmas a matariam em um minuto se estivessem livres. Ela não deveria querer ajudá-los. O que havia de errado com ela?
Sarai evitou os olhares e passou rápido, sentindo que ainda estava presa em um pesadelo. Quem, ela se perguntava, quem vai me ajudar?
Não havia ninguém na galeria, exceto Minya. Bem, Minya e os fantasmas que agora preenchiam a arcada, esmagando as vinhas de Pardal debaixo de seus pés mortos. Ari-Eil estava parado em alerta atrás da cadeira de Minya, parecendo um belo serviçal, exceto por suas feições. Minya tinha deixado o rosto dele livre para refletir seus sentimentos e ele não desapontava. Sarai quase empalideceu com a aspereza do homem.
– Olá – disse Minya. Havia farpas de rancor em sua voz viva e infantil quando perguntou: – Dormiu bem?
– Como um bebê! – Sarai respondeu, animada. O que ela, de fato, queria dizer era que tinha acordado frequentemente gritando, mas não sentiu necessidade de esclarecer a questão.
– Nenhum pesadelo? – indagou Minya.
Sarai cerrou os dentes. Ela não podia suportar mostrar fraqueza, não agora.
– Você sabe que não sonho – retrucou, desejando desesperadamente que isso ainda fosse verdade.
– É mesmo? – disse Minya, levantando as sobrancelhas com ceticismo e, de repente, Sarai se perguntou por que ela estava questionando. Ela não contou a ninguém, exceto a Grande Ellen, sobre seu pesadelo no dia anterior, mas naquele momento, teve certeza de que Minya sabia.
Um choque tomou conta da garota. Era a expressão nos olhos de Minya: frios, indagadores, maldosos. E, assim, Sarai entendeu: Minya não só sabia dos pesadelos como era a causa deles.
Seu lull. Grande Ellen o preparava. Grande Ellen era um fantasma e, assim, estava sujeita ao controle de Minya. Sarai se sentiu nauseada – não só com a ideia de que Minya podia estar sabotando seu lull, mas em pensar que ela manipularia Grande Ellen, que era quase uma mãe para eles. Era horrível demais.
Ela engoliu em seco. Minya a estava observando com atenção, talvez se perguntando se Sarai havia descoberto. Sarai pensou que Minya queria que descobrisse, para que pudesse entender sua posição claramente: se ela quisesse sua névoa cinza de volta, teria de fazer por merecer.
Sarai ficou aliviada, então, quando Pardal chegou. Foi capaz de produzir um sorriso crível e fingir – ela esperava – que estava bem, enquanto por dentro seu espírito sibilava de indignação e de choque pelo fato de Minya ter ido tão longe.
Pardal lhe beijou a bochecha. Seu próprio sorriso era trêmulo e corajoso. Rubi e Feral chegaram logo depois. Estavam discutindo sobre alguma coisa, o que tornou mais fácil fingir que tudo estava normal.
O jantar foi servido. Uma pomba havia sido capturada na armadilha, e Grande Ellen a preparou em um cozido. Parecia tão errado, assim como comer geleia de borboleta ou bifes de espectral. Algumas criaturas eram adoráveis demais para devorar – não que essa opinião fosse compartilhada por toda a mesa de jantar. Feral e Rubi comeram com gosto, não demonstravam nenhuma preocupação com a fonte da carne, e se Minya nunca fora de comer muito, certamente isso não tinha nada a ver com a delicadeza de sentimentos. Ela não terminou seu cozido, mas pegou um ossinho para palitar os pequenos dentes brancos.
Apenas Pardal compartilhava da mesma hesitação de Sarai, embora as duas tenham comido, porque carne era rara e seus corpos tinham necessidade daquilo. Não importava que não tivessem apetite. Elas viviam com porções básicas e estavam sempre com fome.
Assim que Kem retirou os pratos, Pardal se levantou da mesa.
– Eu já volto – disse. – Não saiam daqui.
Eles olharam uns para os outros. Rubi levantou as sobrancelhas. Pardal correu para o jardim e voltou pouco tempo depois segurando...
– Um bolo! – gritou Rubi, levantando-se. – Como é que você...?
Era um sonho de bolo e eles o observaram maravilhados: três camadas altas de branco cremoso decorado com botões, como neve caindo.
– Não fiquem entusiasmados demais – ela alertou. – Não é para comer.
Perceberam que a “cobertura” branca cremosa era de pétalas de orquídea espalhadas com botões de anadne e tudo era feito com flores, até os botões de bastão-do-imperador no topo que pareciam, para todo mundo, dezesseis velas acesas.
Rubi ficou intrigada.
– Então para que serve?
– Para fazer um pedido – Pardal disse. – É um bolo de aniversário adiantado. – Ela o colocou na frente de Rubi. – No caso de...
Todos entenderam o que ela queria dizer, no caso de que não houvesse mais aniversários.
– Bom, isso é horrível – disse Rubi.
– Vá em frente, faça um pedido.
Rubi fez. E embora os bastões-do-imperador já se parecessem com pequenas chamas, ela as acendeu com a ponta dos dedos e assoprou direitinho, todas de uma só vez.
– O que você pediu? – Sarai perguntou.
– Que fosse um bolo de verdade, é claro – disse Rubi. – Será que deu certo? – Ela enfiou os dedos, mas é claro que não havia bolo, apenas mais flores, mas fingiu que estava comendo sem dividir com ninguém.
A noite caiu. Sarai se levantou para ir.
– Sarai – chamou Minya, e ela parou, mas não se virou. Ela sabia o que viria. Minya não tinha desistido. Nunca desistiria. De alguma forma, por simples força de vontade, a garota tinha se congelado no tempo, não só seu corpo, mas tudo. Sua fúria, sua vingança, nada havia diminuído em todos aqueles anos. Era impossível vencer contra tamanha força de vontade. Sua voz elevou-se com o lembrete: – Alguns minutos de asco para salvar nós todos.
Sarai continuou andando. Para salvar nós todos. As palavras pareciam se embrulhar em seu estômago – não mariposas, mas cobras. Ela queria deixá-las para trás na galeria, mas quando atravessou o corredor de soldados-fantasmas que se alinhavam no caminho até seu quarto, seus lábios se abriram e murmuraram todos juntos: “para salvar nós todos, para salvar nós todos” e, depois disso, as palavras que eles só tinham dito com os olhos até então: ajude-nos, salve-nos. Os fantasmas falaram em voz alta, implorando enquanto a garota passava. “Ajude-nos, salve-nos”. E era tudo Minya, brincando com a fraqueza de Sarai.
Brincando com sua misericórdia.
Na porta, ela teve de passar por uma criança. Uma criança. Bahar, nove anos, que tinha morrido no Uzumark, três anos antes, e ainda usava as roupas molhadas de seu afogamento. Era inaceitável, até mesmo para Minya, manter uma criança morta como bicho de estimação. A pequena fantasma ficou parada no caminho de Sarai e as palavras de Minya saíram de seus lábios.
– Se você não o matar, Sarai – ela disse, chorosa –, eu terei que fazê-lo.
Sarai pressionou as palmas das mãos contra os ouvidos e passou rápido por ela. Mas mesmo em seu quarto, onde os fantasmas não a viam, ela ainda os podia ouvir sussurrando: “salve-nos, ajude-nos”, até achar que enlouqueceria.
Ela gritou suas mariposas e encolheu-se em um canto, com os olhos bem fechados, desejando mais do que nunca poder ir junto com elas. Naquele momento, se pudesse derramar toda sua alma nas mariposas e deixar seu corpo vazio – mesmo que não pudesse nunca mais retornar a ele –, ela o teria feito, apenas para ficar livre dos pedidos sussurrados dos homens, mulheres e crianças – mortos de Lamento.
Os homens, mulheres e crianças vivos de Lamento estavam a salvo de seus pesadelos novamente esta noite. Ela retornou aos faranji na câmara, e para os Tizerkane em seu quartel, e para Azareen, sozinha em seu quarto, em Quedavento.
A garota não sabia o que faria se encontrasse Eril-Fane. As cobras que se enrodilhavam em seu estômago tinham migrado para seus corações. Havia escuridão dentro dela, e traição, disso sabia. Mas tudo estava tão emaranhado que ela não sabia se era misericórdia não o matar ou apenas covardia.
Mas ela não o encontrou. O alívio foi tremendo, mas rapidamente transformou-se em outra coisa: uma consciência aumentada do estranho que estava na cama dele. Sarai pousou no travesseiro ao lado de seu rosto adormecido por um longo tempo, repleta de medo e de saudade. Saudade da beleza de seu sonho. Medo de ser vista novamente – e não com surpresa dessa vez, mas pelo pesadelo que ela era.
No fim, ela se decidiu. Pousou em sua testa e entrou em seu sonho. Era Lamento novamente, sua própria Lamento iluminada que não merecia o nome, mas quando ela o viu a distância, não o seguiu. Ela apenas encontrou um pequeno lugar para se encolher – assim como seu corpo estava encolhido em seu quarto – para respirar o ar doce, observar as crianças com seus casacos de penas, e sentir-se segura, pelo menos por algum tempo.
33
TODOS SOMOS CRIANÇAS NO ESCURO
Os primeiros dias de Lazlo em Lamento passaram-se em uma correria de atividade e assombro. Havia a cidade para descobrir, é claro, e tudo o que era doce e amargo nela.
Não era o lugar perfeito que imaginara quando menino. É claro que não era. Se um dia tivesse sido, tinha passado por coisas demais para permanecer daquele jeito. Não havia corda bamba nem crianças com casacos de penas; pelo que conseguiu descobrir, nunca houvera. As mulheres não usavam os cabelos longos como mantos atrás de si, e por um bom motivo: as ruas eram sujas como as de qualquer outra cidade. Tampouco havia bolos nos parapeitos das janelas, mas Lazlo não esperava por isso. Havia lixo e insetos. Não muito, mas o suficiente para impedir que um sonhador idealizasse o objeto de sua antiga fascinação. Os jardins ressecados eram uma frustração e mendigos dormiam como se estivessem mortos, coletando moelas no oco de seus olhos fechados e, no geral, havia muitas ruínas.
E mesmo assim havia tanta cor e som, havia vida: homens-canários com seus pássaros engaiolados, homens sonhadores soprando poeira colorida, crianças com sapatos-harpa fazendo música ao correr. Havia luz e havia escuridão: os templos aos serafins eram mais requintados do que as igrejas em Zosma, Syriza e Maialen juntas, e ver o ritual neles – a dança extática de Thakra – foi a experiência mais mística da vida de Lazlo. Mas havia os padres açougueiros também, fazendo adivinhações nas entranhas de animais, e os profetas em suas pernas de pau, gritando o fim do mundo detrás de suas máscaras de esqueleto.
Tudo isso estava em um horizonte de pedra cor de mel esculpida e domos dourados, as ruas que saíam de um antigo anfiteatro cheio de barracas de mercado coloridas.
Naquela tarde, ele tinha almoçado lá com alguns dos Tizerkane, incluindo Ruza, que o havia ensinado a frase: “Você arruinou minha língua para todos os outros sabores”. Ruza lhe garantiu que era o maior elogio possível ao chefe, mas a jovialidade nos olhos dos outros sugeriam um significado mais... lascivo. No mercado, Lazlo comprou uma camisa e um casaco no estilo local, nenhum deles cinza. O casaco era do verde das florestas distantes e precisava de abotoaduras para segurar as mangas entre os bíceps e os deltoides. Essas vinham em todo material imaginável. As de Eril-Fane eram de ouro. Lazlo escolheu o couro, mais barato e discreto.
Ele comprou meias também. Estava começando a entender o encanto do dinheiro. Comprou quatro pares – uma quantidade extravagante de meias – e não só elas não eram cinza, como os dois pares não eram da mesma cor, um era rosa e outro listrado.
E falando em rosa, ele experimentou bala de sangue em uma pequena loja sob uma ponte. Era real e era horrível. Depois de superar a vontade de cuspir, ele disse à confeiteira, em voz baixa: “Você arruinou minha língua para todos os outros sabores”, e viu os olhos dela arregalarem-se. Ela ficou chocada e, na sequência, vermelha, confirmando suas suspeitas em relação à decência do elogio.
– Obrigado por isso – Lazlo disse a Ruza quando se afastaram. – O marido dela provavelmente vai me chamar para um duelo.
– Provavelmente – concordou Ruza –, mas todo mundo deve duelar pelo menos uma vez.
– Uma vez parece correto para mim.
– Porque você vai morrer – Ruza esclareceu, desnecessariamente. – E não estará vivo para outro duelo.
– Sim – respondeu Lazlo. – Foi isso o que eu quis dizer.
Ruza bateu no ombro dele.
– Não se preocupe. Nós vamos transformá-lo num guerreiro. Você sabe... – Ele olhou para a bolsa de brocado que tinha pertencido à avó de Calixte. – Para começo de conversa, você pode comprar uma carteira enquanto estamos aqui.
– O quê? Você desaprova a minha bolsa? – perguntou Lazlo, segurando-a para mostrar bem o broche espalhafatoso.
– Sim, desaprovo.
– Mas é tão útil! – exclamou Lazlo. – Veja, posso usá-la assim. – Ele demonstrou, com a bolsa pendurada no pulso pelos cordões e girando-a em círculos, como criança.
Ruza simplesmente balançou a cabeça e murmurou:
– Faranji.
Mas mais importante, havia trabalho a ser feito.
Durante aqueles primeiros dias, Lazlo havia providenciado que todos os delegados do Matador de Deuses estivessem instalados em espaços de trabalho para acomodar suas necessidades, bem como materiais e, em alguns casos, assistentes. E como a maioria não tinha se preocupado em aprender nada da língua de seu anfitrião durante a jornada, todos precisavam de intérpretes. Alguns dos Tizerkane entendiam um pouco, mas tinham seus compromissos. Calixte estava quase fluente, mas ela não tinha intenção de passar o tempo ajudando “velhos de mente pequena”. Então Lazlo viu-se muito ocupado.
Alguns dos delegados eram mais fáceis do que outros. Belabra, o matemático, requisitou um escritório com paredes altas, onde pudesse escrever suas fórmulas e lavá-las quando achasse apropriado. Kether, artista e projetista de catapultas, precisava apenas de uma mesa para desenho, que foi levada ao seu quarto na câmara.
Lazlo duvidava que os engenheiros precisassem de muito mais do que isso, mas Ebliz Tod parecia ver isso como uma questão de distinção – de que os convidados mais “importantes” deveriam pedir e receber o máximo. Então, ele ditava demandas elaboradas e específicas que eram dever de Lazlo satisfazer, com a ajuda de vários moradores locais que Suheyla organizou para ajudá-lo. O resultado foi que a oficina de Tod, em Lamento, ultrapassou o seu escritório de Syriza em grandiosidade, embora ele passasse a maior parte do tempo na mesa de desenho no canto.
Calixte não pediu nada, embora Lazlo soubesse que ela estava procurando, com a assistência de Tzara, uma variedade de resinas para preparar pastas grudentas a fim de ajudá-la em sua escalada. Se ela seria chamada por Eril-Fane para fazer isso, era uma dúvida – ela própria suspeitava que ele a tinha convidado mais para resgatá-la da prisão do que por uma necessidade real de sua presença –, mas, de qualquer forma, ela estava determinada a ganhar sua aposta com Tod.
– Alguma sorte? – Lazlo perguntou a ela quando a viu voltando de um teste na âncora.
– Sorte não tem nada a ver com isso – ela respondeu. – É tudo força e inteligência. – Ela piscou, flexionando as mãos como aranhas de cinco patas. – E cola.
Quando ela deixou as mãos caírem, ocorreu a Lazlo que elas não tinham nenhuma descoloração cinza. Ele tinha descoberto, depois de seu próprio contato com a âncora, que as leves manchas sujas não saíam com água, mesmo usando sabão. Mas elas saíram aos poucos e, agora, tinham desaparecido. O mesarthium, pensou, deve reagir com a pele da mesma forma que outros metais, como o cobre. Entretanto, não com a pele de Calixte, que havia acabado de tocar na âncora e não apresentava traços dele.
Os Fellering, Mouzaive, o magnetista, e Thyon Nero precisavam de espaço no laboratório para descarregar o equipamento que trouxeram do oeste. Os Fellering e Mouzaive estavam contentes com os estábulos próximos à câmara, mas Thyon os recusou, buscando outros lugares. Lazlo teve de ir junto, como intérprete e, em um primeiro momento, não entendeu o que o alquimista estava procurando. Thyon recusou algumas salas dizendo que eram muito grandes e outras por serem muito pequenas, antes de decidir pelo sótão de um crematório – um espaço cavernoso maior do que os que rejeitara por serem muito grandes. Também não tinha janelas, com uma única grande porta pesada. Quando ele pediu não menos do que três fechaduras para ela, Lazlo entendeu: ele escolheu o lugar pela privacidade.
O homem desejava guardar o segredo do azoth, ao que parecia, mesmo nessa cidade de onde, há muito tempo, o segredo tinha vindo.
Drave pediu um depósito para guardar sua pólvora e produtos químicos, e Lazlo providenciou um – fora da cidade, no caso de um incidente com fogo. E se a distância significasse ver menos Drave no dia a dia, isso era um bônus.
– É um maldito inconveniente – o explosionista queixou-se, embora o inconveniente fosse mínimo, considerando que, após supervisionar e descarregar os suprimentos, não retornou ao depósito.
– Basta me dizer o que vocês querem explodir que estarei pronto – explicou, e então passou a gastar seu tempo percorrendo a cidade em busca de prazeres e deixando as mulheres incomodadas com seus olhares.
Ozwin, o agricultor-botânico, precisava de uma estufa e de campos para plantar, então também teve de sair da cidade e da sombra da cidadela, para onde suas sementes e mudas veriam a luz do sol.
“Plantas que sonhavam que eram pássaros”, esse era seu trabalho. Aquelas palavras eram do mito dos serafins, descrevendo o mundo como os seres o encontraram quando desceram dos céus: “Encontraram solos ricos, e mares doces, e plantas que sonhavam que eram pássaros e subiam até as nuvens com folhas como asas”. Lazlo conhecia aquela passagem havia anos, e acreditava que era fantasia – mas descobriu em Thanagost que era real.
A planta era chamada de ulola, e era conhecida por duas coisas. Uma: seus arbustos comuns eram o lugar preferido de descanso para as serpaises no calor do dia, o que lhe conferia o apelido de “sombra de cobra”. E outra: suas flores podiam voar.
Ou flutuar, mais precisamente. Eram botões em forma de saco, do tamanho da cabeça de um bebê e, quando morriam, seus restos produziam um gás poderoso que os levantava e os carregava para o céu e para onde quer que o vento soprasse, para soltar sementes em novos solos e começar o ciclo novamente. Elas eram uma peculiaridade dos terrenos erodidos – balões rosa flutuantes que tinham uma forma de aterrissar no meio dos lobos selvagens – e teriam, mais provavelmente, continuado assim se um botânico da Universidade de Isquith – Ozwin – não tivesse se aventurado nos perigos da fronteira em busca de amostras e apaixonado-se pela terra sem lei e, mais especificamente, pela mecânica sem lei – Soulzeren –, preferida pelos generais por seus desenhos extravagantes de armas de fogo. Era uma história de amor e tanto, que envolvia até um duelo (disputado por Soulzeren). Só a combinação única dos dois podia ter produzido o trenó de seda: um veículo superleve, que flutuava com o gás de ulola.
Soulzeren estava montando os veículos em um dos pavilhões da câmara. Quanto à questão de quando voariam, o assunto foi discutido na quinta-feira à tarde, em uma reunião dos líderes da cidade à qual Lazlo compareceu com Eril-Fane. A reunião não transcorreu como Lazlo esperava, de forma alguma.
– Nossos convidados estão trabalhando no problema da cidadela – Eril-Fane reportou aos cinco Zeyyadin, que se traduziam como “primeiras vozes”. As duas mulheres e os três homens constituíam o corpo executivo que havia sido estabelecido depois da queda dos deuses. – Quando estiverem prontos, farão propostas para uma solução.
– Para... movê-la – disse uma mulher. Seu nome era Maldagha, e sua voz estava pesada de apreensão.
– Mas como eles esperam fazer tal coisa? – perguntou um homem corcunda, com longos cabelos brancos e a voz trêmula.
– Se eu pudesse responder isso – explicou Eril-Fane, com um sorriso dos mais sutis –, teria feito eu mesmo e evitado uma longa jornada. Nossos convidados possuem as mentes práticas mais brilhantes em metade do mundo...
– Mas o que é a praticidade contra a magia dos deuses? – o velho interrompeu.
– É a esperança que temos – disse Eril-Fane. – Não será o trabalho de alguns momentos, como era para Skathis, mas o que mais podemos fazer? Podemos estar diante de anos de esforços. Pode ser que o máximo que consigamos é uma torre para poder alcançá-la e destruí-la pouco a pouco até que desapareça. Os netos de nossos netos poderão ter de carregar raspas de mesarthium para fora da cidade à medida que a monstruosidade se encolhe lentamente até o nada. Mesmo assim, mesmo que seja a única forma e nós aqui nessa sala não vivamos para ver acontecer, chegará o dia em que o último pedaço desaparecerá e o céu estará livre.
Eram palavras poderosas, embora ditas suavemente, e pareceram acender a esperança nos outros. Hesitante, Maldagha disse:
– Destruir o metal, você diz. Eles podem cortá-lo? Já o fizeram?
– Ainda não – Eril-Fane admitiu. De fato, a confiança dos Fellering se mostrara equivocada. Como todos os demais, falharam em produzir um risco sequer. Sua arrogância fora substituída por uma determinação descontente. – Mas eles apenas começaram, e temos um alquimista também. O mais bem-sucedido do mundo.
Quanto ao dito alquimista, se ele estava tendo alguma sorte com seu alkahest, estava mantendo em segredo tanto quanto seu ingrediente principal. Suas portas no porão do crematório estavam trancadas, e ele apenas as abria para receber refeições. Ele até pediu para colocarem uma cama para dormir no local – o que não significava, contudo, que estava sempre lá. Tzara ficava de guarda e o tinha visto andando em direção à âncora norte na calada da noite.
Para fazer experimentos com o mesarthium em segredo, Lazlo supôs. Quando Tzara lhe mencionou isso de manhã, ele foi examinar a superfície a fim de buscar qualquer pista de que Thyon tivesse obtido sucesso. Era uma superfície grande, por isso, era possível ter sofrido alguma alteração, embora não achasse isso. Toda a extensão estava tão lisa e artificialmente perfeita quanto da primeira vez que a vira.
Não havia, de fato, nenhuma notícia encorajadora para relatar aos Zeyyadin, não ainda. A reunião tinha outro propósito.
– Amanhã – Eril-Fane lhes disse, e sua voz pareceu pesar no ar – lançaremos um dos trenós de seda.
O efeito de suas palavras foi imediato e... absolutamente inesperado. Em qualquer cidade do mundo, veículos aéreos – veículos aéreos reais e funcionais –, seriam vistos com fascínio. Essa deveria ser uma notícia sensacional. Mas os homens e as mulheres da sala ficaram pálidos. Cinco rostos uniformemente drenados de cor e com uma espécie de pavor atordoado. O velho começou a balançar a cabeça. Maldagha pressionou os lábios para impedir que tremessem e, em um gesto que Lazlo não soube interpretar, levou a mão à barriga. Suheyla fez um movimento similar, e ele pensou que sabia o que significava. Todos esforçaram-se para manter a compostura, mas seus rostos os traíram. Lazlo não tinha visto ninguém parecer tão afetado desde que os meninos do monastério eram levados à cripta para serem punidos.
Ele nunca vira adultos com essa expressão.
– Será apenas um voo de teste – Eril-Fane continuou. – Precisamos estabelecer um meio real de ir e vir entre a cidade e a cidadela. E... – Ele hesitou. Engoliu em seco. E não olhou para ninguém quando disse: – Preciso vê-la.
– Você? – perguntou um dos homens – Você vai subir lá?
Parecia uma pergunta estranha. Nunca havia ocorrido a Lazlo que ele não fosse.
Solenemente, Eril-Fane fitou o homem.
– Eu esperava que você também viesse, Shajan. Você quem esteve lá no fim. – O fim. O dia em que os deuses foram mortos? A mente de Lazlo voltou ao mural da viela, e o herói retratado nele, de seis braços, triunfante. – Ela está morta há todos esses anos, e alguns de nós sabem melhor do que outros o... estado... em que a deixamos.
Ninguém se entreolhou. Era muito estranho. Isso lembrou a Lazlo da forma como evitavam olhar para a cidadela. Ocorreu-lhe que os corpos dos deuses talvez continuassem lá em cima, onde morreram, mas ele não entendia por que isso causava tanto tremor e contração.
– Eu não poderia – respondeu Shajan, olhando para as suas próprias mãos trêmulas. – Você não pode esperar por isso. Veja como estou agora.
Lazlo achou aquilo desproporcional. Um homem adulto reduzido a tremores com a ideia de entrar em uma construção vazia – mesmo aquela construção vazia – porque poderia haver esqueletos lá? E a desproporção apenas aumentava.
– Nós ainda poderíamos mover. – Maldagha deixou escapar, parecendo tão atormentada quanto Shajan. – Vocês não precisam voltar lá. Não precisamos fazer nada disso. – Havia um tom de desespero em sua voz. – Podemos reconstruir a cidade em Enet-Sarra, como já discutimos. As inspeções foram feitas. Só precisamos começar.
Eril-Fane balançou a cabeça:
– Se fizéssemos isso, significaria que eles venceram, mesmo mortos. Eles não venceram. Esta é a nossa cidade, que nossos ancestrais construíram nas terras consagradas por Thakra. Não vamos abandoná-la. Este é o nosso céu e nós o teremos de volta. – Eram palavras do tipo que poderiam ter sido gritadas antes da batalha. Um menino brincando de Tizerkane em um pomar adoraria a sensação delas passando pela língua. Mas Eril-Fane não as gritou. Sua voz soava distante, como o último eco antes que o silêncio se reinstalasse.
– O que foi isso? – Lazlo perguntou depois que saíram.
– Aquilo foi medo – Eril-Fane disse, simplesmente.
– Mas... medo do quê? – Lazlo não conseguia compreender. – A cidadela está vazia. O que pode haver lá para machucá-los?
Eril-Fane expirou lentamente.
– Você tinha medo do escuro quando era criança?
Um arrepio subiu pela coluna de Lazlo. Recordou-se da cripta do mosteiro e das noites trancado com monges mortos.
– Sim.
– Mesmo quando você sabia, racionalmente, que não havia nada que pudesse lhe fazer mal?
– Sim.
– Pois bem. Todos somos crianças no escuro, aqui em Lamento.
34
ESPÍRITO DE BIBLIOTECÁRIO
Outro dia chegava ao fim, outro dia de trabalho e maravilhas, e Lazlo estava retornando à casa de Suheyla para passar a noite. Quando cruzou a avenida, aquela solitária faixa de sol, viu o garoto de entregas da câmara vindo em sua direção com uma bandeja. Percebeu que o menino devia estar voltando do crematório logo à frente trazendo pratos vazios. Ele tinha levado o jantar para Thyon e o trocou pela bandeja vazia do almoço. Lazlo o cumprimentou, e perguntou-se ao passar como Thyon estava indo, pois não o vira desde que ele havia se escondido e não tinha tido notícias para dar a Eril-Fane quando solicitado. Com um momento de hesitação, ele mudou o rumo e foi na direção do crematório. Passando pela âncora no caminho, tocou-a por toda a extensão, tentando imaginá-la ondulando-se e moldando-se como aparentemente fazia para o sombrio deus Skathis.
Quando bateu na porta pesada com três trincos de Thyon, o alquimista atendeu, o que só podia significar que ele achava que o garoto estivesse de volta com mais provisões – ou ele estava esperando outra pessoa, porque assim que viu Lazlo, começou a fechá-la de novo.
– Espere – disse Lazlo, colocando o pé no vão da porta. Por sorte usava botas. Nos tempos antigos de seus chinelos de bibliotecário, seus dedos teriam sido esmagados. Mesmo assim, recuou. Nero não estava de brincadeira. – Venho em nome de Eril-Fane – explicou, irritado.
– Não tenho nada a relatar – disse Thyon. – Pode lhe dizer isso.
O pé de Lazlo ainda estava na porta, segurando-a aberta uns oito centímetros. Não era muito, mas a glave na antecâmara era brilhante, o que lhe permitiu ver Thyon – pelo menos uma faixa de oito centímetros de largura dele – bem claramente.
– Nero, você não está bem?
– Estou bem – o afilhado dourado disse, com condescendência. – Agora, se você pudesse retirar seu pé...
– Não vou – afirmou Lazlo, verdadeiramente alarmado. – Deixe-me vê-lo. Você está um trapo.
Era uma transformação drástica, em apenas poucos dias. Sua pele estava amarela. Até o branco dos seus olhos estava ictérico.
Thyon afastou-se da vista de Lazlo.
– Retire o pé – pediu, em um tom baixo e casual – ou vou testar minha produção de alkahest nele. – Até sua voz parecia ictérica, se isso fosse possível.
Alkahest no pé era uma perspectiva desagradável de considerar. Lazlo perguntou-se quão rápido ele corroeria sua bota de couro.
– Não duvido que você faria isso – respondeu, tão casualmente quanto Thyon. – Aposto que você não o tem em mãos e teria que ir buscá-lo. Durante esse tempo, eu abriria a porta e olharia bem para você. Vamos lá, Nero. Você está doente.
– Não estou doente.
– Você não está bem.
– Não é da sua conta, Estranho.
– Eu não sei mesmo se é ou não, mas você está aqui por um motivo, e você pode muito bem ser a esperança de Lamento, então me convença de que não está doente ou vou direto a Eril-Fane.
Houve um suspiro irritado e Thyon afastou-se da porta. Lazlo abriu-a com o pé e percebeu que não estava errado. Thyon estava com uma aparência péssima – embora, ele admitisse, sua aparência “péssima” fosse melhor do que a aparência da maioria das pessoas. Ainda assim, ele parecia ter envelhecido. Não era só a sua cor. A pele ao redor dos olhos estava flácida e escura.
– Deuses, Nero – exclamou, dando um passo à frente –, o que aconteceu com você?
– Apenas estou trabalhando muito – respondeu o alquimista, com um sorriso severo.
– Isso é ridículo. Ninguém fica assim fatigado por trabalhar duro alguns dias.
Ao dizer isso, os olhos de Lazlo pousaram sobre a mesa de trabalho de Thyon. Era uma versão bagunçada de sua mesa no Chrysopoesium, com vidros e cobre espalhados e pilhas de livros. A fumaça pairava no ar com um aroma sulfúrico que queimava as narinas, e em plena vista estava uma longa seringa. Era de vidro e cobre, e descansava sobre um pano branco com manchas vermelhas. Lazlo a observou e virou-se para Thyon, que devolveu um olhar duro como pedra. O que Lazlo tinha acabado de dizer, que ninguém fica tão fatigado por trabalhar duro por alguns dias?
Mas e se o “trabalho” dependesse de um suprimento constante de espírito, e sua única fonte fosse o próprio corpo? Lazlo soltou ar entre os dentes.
– Seu idiota – praguejou, e viu os olhos de Thyon arregalarem-se de incredulidade. Ninguém chamava o afilhado dourado de idiota. Ele era, contudo, nesse caso. – Quanto você tirou? – Lazlo perguntou.
– Não sei do que está falando.
Lazlo meneou a cabeça. Ele estava começando a perder a paciência.
– Você pode mentir se quiser, mas já sei seu segredo. Se você está tão determinado a guardá-lo, Nero, eu sou a única pessoa no mundo que pode ajudá-lo.
Thyon riu como se isso fosse uma piada.
– E por que você me ajudaria?
Não foi da mesma forma que ele disse no Chrysopoesium quando eram mais jovens. “Você, me ajudar?” Aquilo havia sido a incredulidade de que Lazlo ousasse acreditar que era digno de ajudá-lo. Dessa vez, era mais incredulidade pelo fato de ele querer ajudá-lo.
– Pelo mesmo motivo que lhe ajudei antes – disse Lazlo.
– E qual é? – Nero perguntou. – Por que você me ajudou, Estranho?
Lazlo olhou para ele por um momento. A resposta não podia ser mais simples, mas ele achou que Thyon não tinha as qualidades necessárias para acreditar.
– Porque você precisava – respondeu, e suas palavras geraram um silêncio entre ambos. Ali estava uma noção radical de que você deve ajudar os outros simplesmente porque eles precisam.
Mesmo se eles o odiassem por isso depois? E o punissem? E roubassem você? E mentissem e zombassem de você? Mesmo assim? Lazlo esperava que, de todos os delegados, Thyon não fosse o salvador de Lamento, o libertador da sombra. Mas muito maior do que essa esperança era a de que Lamento fosse libertada por alguém, mesmo que fosse por Nero.
– Você precisa de ajuda agora? – ele perguntou em voz baixa. – Não pode continuar extraindo seu próprio espírito. Isso pode não te matar – ele disse, porque o espírito não era como o sangue e, de certa forma, as pessoas continuavam vivendo sem ele, se é que podia se chamar isso de viver –, mas o tornará feio – explicou – e acho que isso será muito difícil para você.
Thyon enrugou a testa analisando Lazlo para ver se ele não estava zombando. Ele estava, é claro, mas da mesma forma que zombaria de Ruza, ou que Calixte zombaria dele. Era uma decisão de Thyon se sentir ofendido ou não, e talvez ele estivesse apenas muito cansado.
– O que você está propondo? – indagou ressabiado.
Lazlo expirou e passou para o modo de resolução de problemas. Thyon precisava de espírito para produzir o azoth. Em casa, ele devia ter um sistema, embora Lazlo não pudesse imaginar qual era. Como alguém mantinha um fornecimento constante de algo como espírito sem ninguém descobrir? Qualquer que fosse, aqui, sem sair e pedir – e revelar seu ingrediente secreto –, ele tinha apenas o seu próprio, e já havia extraído muito.
Lazlo argumentou brevemente sobre se era a hora de abrir mão do segredo, mas Thyon não ouviu e, finalmente, Lazlo, com um suspiro frustrado, tirou a jaqueta e enrolou a manga da camisa.
– Tire um pouco do meu, certo? Até que possamos pensar em outra solução.
Em todo aquele tempo, Thyon o viu com desconfiança, como se ele estivesse esperando por algum motivo secreto para se revelar. Mas quando Lazlo estendeu o braço, ele só pôde piscar, derrotado. Teria sido mais fácil se pudesse acreditar que havia algum motivo, algum tipo de vingança ou outro tipo de armação. Mas Lazlo ofereceu suas veias. Seu próprio fluido vital. Que motivo poderia haver nisso? Ele estremeceu quando Thyon lhe furou com a agulha, e estremeceu novamente, porque o alquimista errou a veia do espírito e acertou uma veia de sangue. Thyon não era um flebotomista muito habilidoso, mas não pediu desculpas e Lazlo não reclamou. Enfim havia um frasco de fluido claro sobre a mesa, rotulado, com um floreio desdenhoso: ESPÍRITO DE BIBLIOTECÁRIO.
Thyon não agradeceu, mas falou, soltando o braço de Lazlo:
– Você podia experimentar lavar as mãos de vez em quando, Estranho.
Lazlo apenas sorriu, como se a condescendência marcasse um retorno ao território familiar. Ele olhou para a mão em questão, que parecia suja mesmo. Ele a tinha passado pela âncora no caminho para lá, lembrou-se.
– Isso é o mesarthium – explicou, e perguntou, curioso: – Você percebeu que ele é reativo à pele?
– Dificilmente. Não é reativo a nada.
– Bem, você percebeu a pele reagindo a ele? – Lazlo persistiu, desenrolando a manga da camisa.
Thyon apenas levantou a palma das mãos. Elas estavam limpas, e aquela foi sua resposta. Lazlo deu de ombros e vestiu seu casaco. A resposta de Thyon não foi um bom presságio – sobre o mesarthium não ser reativo a nada. Na porta, Lazlo parou.
– Eril-Fane vai querer saber. Existe algum motivo para ter esperança? O alkahest sequer afeta o mesarthium?
Ele achou que o alquimista não ia responder. Sua mão estava na porta, pronta para fechá-la com força. Mas ele pausou por meio segundo, como se Lazlo tivesse ganhado aquela única sílaba relutante, e disse, severo:
– Não.
35
TINTA BORRADA
Sarai se sentia... pequena. Estar tão cansada era como evaporar. Água para vapor. Carne para fantasma. Pouco a pouco, de fora para dentro, ela se sentia começando a desaparecer, ou pelo menos parecia estar em outro estado – de tangível, sangue e espírito, para uma espécie de névoa perdida e flutuante.
Quantos dias haviam se passado dessa forma, vivendo de pesadelo em pesadelo? Parecia que tinham sido dezenas, mas eram provavelmente apenas cinco ou seis.
Esta é minha vida agora, refletiu, olhando para seu reflexo no mesarthium polido do closet. Ela tocou a pele em volta dos olhos com as pontas dos dedos. Era quase roxa, como as ameixas das árvores, e seus olhos pareciam grandes demais – como se, assim como Pequena Ellen, ela os tivesse reimaginado de tal maneira.
Se eu fosse um fantasma, ponderou, analisando-se como uma estranha, o que eu mudaria em mim mesma? A resposta era óbvia demais para admitir, e patética demais. Ela traçou uma linha em volta de seu umbigo, onde sua elilith estaria se fosse uma garota humana. O que as tatuagens tinham que tanto a encantavam? Elas eram bonitas, mas não era só isso. Talvez fosse o ritual: o círculo de mulheres se reunindo para celebrar estarem vivas – e ser uma mulher, que por si só já é mágico. Ou talvez fosse o futuro que a marca pressagiava. Casamento, filhos, família, continuidade.
Ser uma pessoa. Com uma vida. E todas as expectativas de futuro. Todas as coisas com as quais Sarai não ousava sonhar.
Ou... coisas com as quais ela não deveria ousar sonhar. Como os pesadelos, os sonhos eram traiçoeiros e não gostavam de ficar trancados.
Se ela tivesse uma elilith não ia querer uma serpente engolindo o próprio rabo como a de Tzara e a de muitas meninas que haviam chegado à adolescência após a libertação. Ela já sentia que possuía criaturas dentro de si – mariposas, cobras e terrores – e não as queria sobre a pele também. Azareen, dura e estoica como era, tinha uma das tatuagens mais bonitas que Sarai vira – feita por Guldan, é claro, que hoje era recruta do exército infeliz de Minya. Era um padrão delicado de botões de macieira, que eram um símbolo de fertilidade.
Sarai sabia que Azareen odiava a visão da tatuagem e tudo do que ela zombava.
A questão das eliliths. Eram tatuadas nas barrigas das garotas, que tendiam a ser lisas ou apenas ligeiramente curvas. E quando sua promessa de fertilidade fosse cumprida, suas barrigas inchariam, e as tatuagens se esticariam junto, e jamais voltariam a se parecer como antes. Era possível ver as linhas finas borradas onde a pele tinha esticado e depois encolhido novamente.
As garotas que Skathis roubou, suas eliliths eram puras quando ele as tomou, mas não mais quando as devolveu. Mas como Letha engoliu suas memórias, isso era tudo o que sabiam sobre seu tempo na cidadela – o vago borrão da tinta em suas barrigas, e tudo o que ele implicava.
Exceto, quer dizer, pelas garotas que estavam na cidadela no dia em que Eril-Fane matou os deuses. Elas tiveram a pior experiência. Tiveram de descer daquele jeito, suas barrigas ainda cheias com os filhos dos deuses e suas mentes com memórias.
Azareen tinha sido uma delas. E embora tivesse sido uma noiva – e antes disso uma garota apertando as mãos de um círculo de mulheres enquanto botões de macieira eram gravados em volta de seu umbigo com tinta –, a única vez que sua barriga inchou foi com a semente do deus, e ela se lembrava de cada segundo desse processo, dos estupros que deram início até as dores lancinantes que deram fim a isso.
Ela nunca olhou para o bebê, apertando os olhos até que o levassem embora. Contudo, ouviu seu choro frágil, e ainda o ouvia.
Sarai também podia ouvi-lo. Ela estava acordada, mas os terrores eram persistentes. Ela balançou a cabeça na tentativa de sacudi-los para longe.
As coisas que tinham sido feitas. Pelos deuses, pelos humanos. Nada podia sacudi-las para longe.
Ela pegou uma camisola limpa. Verde-clara, não que tenha percebido, apenas estendendo a mão sem olhar e pegando a primeira. Vestiu-a e colocou um robe por cima, com o cinto apertado, e considerou seu rosto no espelho: os imensos olhos assombrados e a história que contavam sobre pesadelos e dias sem dormir. Bastaria olhar para ela e Minya sorriria. “Dormiu bem?”, ela perguntaria. Ela sempre perguntava agora, e Sarai sempre respondia: “como um bebê”, e fingia que tudo estava bem.
Mas não havia como fingir que não tinha roxos sob os olhos. Por um momento considerou pintá-los de preto com a tinta de sua mãe, mas o esforço parecia grande demais, e não enganaria ninguém.
Ela saiu do closet. Com os olhos fixos à frente, passou pelos fantasmas que faziam a guarda. Eles ainda sussurravam as palavras de Minya, mas agora se acostumara a isso. Até com Bahar, nove anos e pele encharcada, que a seguiu pelo corredor, sussurrando “Salve-nos”, e deixando pegadas molhadas que não estavam realmente lá.
Tudo bem, ela nunca poderia se acostumar com Bahar.
– Dormiu bem? – Minya perguntou assim que ela entrou na galeria.
Sarai respondeu com um sorriso pálido:
– Por que não dormiria? – ela perguntou, para mudar um pouco.
– Ah, não sei, Sarai. Teimosia?
Sarai entendeu-a perfeitamente – que ela precisava apenas pedir que seu lull lhe fosse devolvido e Minya faria com que isso acontecesse.
Assim que Sarai fizesse o que ela lhe ordenava.
Ambas não reconheceram a situação abertamente – de que Minya estava sabotando o lull de Sarai –, mas isso estava presente em todos os olhares que compartilhavam.
Alguns minutos de asco para salvar nós todos.
Se Sarai matasse Eril-Fane, Minya a deixaria voltar a dormir. E aí? Será que seu pai perderia um minuto de sono para salvá-la?
Não importava o que ele faria ou não. Sarai não mataria ninguém. Ela era teimosa, muito, e não estava disposta a abrir mão de sua decência ou misericórdia por um dia de sono profundo. Não imploraria pelo lull para Minya. O que quer que acontecesse, ela nunca mais atenderia à vontade perversa de Minya.
Além disso, ela ainda não tinha conseguido encontrá-lo. Então havia isso.
Não que Minya acreditasse nisso, mas era verdade, e ela tinha procurado. Sabia que o homem estava de volta a Lamento, em parte porque Azareen nunca teria voltado sem ele, em parte porque ele apareceu nos sonhos de todos os outros como um fio brilhante os conectando. Mas onde quer que ele estivesse dormindo, onde quer que ele tivesse passado a noite, a garota não o tinha conseguido encontrar.
Sarai riu.
– Eu, teimosa – ela disse, levantando as sobrancelhas. – Você já se olhou no espelho?
Minya não negou.
– Suponho que a pergunta seja: quem é mais teimosa?
Soou como um desafio.
– Acho que vamos descobrir – Sarai respondeu.
O jantar foi servido e os outros chegaram – Pardal e Rubi vieram do jardim; Feral, bocejando, da direção de seu quarto.
– Cochilando? – Sarai perguntou.
Tudo havia ruído nos últimos dias. Ele costumava pelo menos tentar supervisionar as meninas durante o dia e evitar que elas causassem um caos ou quebrassem a Regra. Não que isso importasse mais.
Ele apenas deu de ombros.
– Alguma coisa interessante? – ele perguntou.
Ele queria notícias da noite anterior. Essa era sua rotina agora. Isso a lembrava do tempo em que era mais nova, quando ela ainda lhes contava tudo sobre suas visitas à cidade e todos gostariam de saber coisas diferentes: Pardal, os vislumbres da vida cotidiana; Rubi, as partes impróprias; Minya, os gritos. Feral não tinha um foco na época, mas agora tinha, gostaria de saber tudo sobre os faranji e suas oficinas – os diagramas em suas mesas de desenho, os químicos em seus frascos, os sonhos em suas cabeças. Sarai contava o que podia e juntos tentavam interpretar o nível de ameaça que eles representavam. O garoto dizia que seu interesse era defensivo, mas ela via uma fome em seus olhos – pelos livros e papéis que ela descrevia, os instrumentos e béqueres borbulhantes, as paredes cobertas de números e símbolos que não conseguia entender.
Era a janela da confeitaria para ele, da vida que não tinha, e ela fazia o que podia para torná-la vívida para o garoto. Ao menos isso podia lhe dar. Esta noite, contudo, ela tinha más notícias:
– As máquinas voadoras – respondeu. Estivera observando os equipamentos em um pavilhão da câmara à medida que tomavam forma em estágios, dia a dia, até enfim se tornarem os veículos que vira nos sonhos do casal faranji. Todo o seu pavor finalmente a alcançara. – Elas parecem estar prontas.
Isso fez com que Rubi e Pardal respirassem ruidosamente, assustadas.
– Quando elas vão voar? – Minya perguntou friamente.
– Não sei. Em breve.
– Bem, espero que seja em breve. Estou ficando entediada. Pra quê ter um exército se não posso usá-lo?
Sarai não caiu na de Minya. Ela vinha pensando no que diria, e como diria.
– Não precisaria chegar a isso – retrucou, e virou-se para Feral. – A mulher, ela se preocupa com o tempo. Vi em seus sonhos. O vento é um problema. E também não voará nas nuvens. Acho que as aeronaves não devem ser muito estáveis – ela tentou soar calma, racional, não defensiva nem ofensiva. Estava simplesmente fazendo uma sugestão razoável para evitar o derramamento de sangue. – Se você evocar uma tempestade, podemos evitar que cheguem perto de nós.
Feral absorveu isso, olhando para Minya sem virar o rosto. Ela estava com os cotovelos sobre a mesa, o queixo apoiado em uma das mãos, a outra pegando pedacinhos de seu biscoito de kimril.
– Ah, Sarai – ela disse. – Que ideia!
– É uma boa ideia – afirmou Pardal. – Por que lutar se podemos evitar?
– Evitar? – Minya soltou. – Você acha que se soubessem que estamos aqui, eles estariam preocupados em evitar uma briga? – Então virou-se para Ari-Eil, parado atrás de sua cadeira: – Bom, o que você acha?
Quer ela tenha lhe dado liberdade para responder ou produzido ela mesma a resposta, Sarai não duvidou da verdade dita:
– Eles matariam todos vocês – o fantasma sussurrou, e Minya lançou a Pardal um olhar de eu te disse.
– Não posso acreditar que estamos tendo essa conversa – Minya falou. – Quando seu inimigo está vindo, você não junta nuvens. Você junta facas.
Sarai olhou para Feral, que não correspondeu ao olhar dela. Não havia muito mais a ser dito depois disso. Ela estava relutante em voltar ao seu quartinho, onde estava abarrotado com todos os pesadelos que tinha tido ultimamente, então foi ao jardim com Pardal e Rubi. Havia fantasmas por toda parte, mas as vinhas e as flores formavam recantos onde era possível quase se esconder. De fato, Pardal, enfiando sua mão no solo e concentrando-se por um momento, fez crescer cachos de liríope roxa altos o bastante para escondê-las de vista.
– O que faremos? – Pardal perguntou em voz baixa.
– O que podemos fazer? – Rubi perguntou, resignada.
– Você podia dar um belo abraço caloroso em Minya – sugeriu Pardal, com uma rispidez pouco familiar em sua voz. – Quais foram as palavras dela? Você pode fazer mais com o seu dom do que aquecer água da banheira e queimar suas roupas?
Rubi e Sarai levaram um momento para compreendê-la. Elas estavam perplexas.
– Pardal! – Rubi gritou. – Você está sugerindo que eu... – ela se interrompeu, olhou para os fantasmas e terminou em um sussurro – queime Minya?
– Claro que não – esclareceu Pardal, embora fosse exatamente isso que ela queria dizer. – Eu não sou ela, sou? Não quero que ninguém morra. Além disso – ela disse, provando que estava pensando sobre o assunto –, se Minya morresse, perderíamos as Ellens também, e todos os outros fantasmas.
– E teríamos que fazer todas as tarefas de casa – disse Rubi.
Pardal bateu no ombro dela.
– É com isso que você está preocupada?
– Não – respondeu Rubi, defensiva. – É claro que eu sentiria falta deles também. Mas, sabe, quem é que iria cozinhar?
Pardal balançou a cabeça e esfregou o rosto, dizendo:
– Eu nem tenho certeza se Minya está errada. Talvez seja o único jeito. Mas ela precisa estar tão contente com isso? É horrível.
– Ela é horrível – completou Rubi –, mas é horrível por nós. Você ia querer se opor a ela?
Rubi estivera muito preocupada ultimamente e não tinha percebido a mudança em Sarai, muito menos adivinhado sua causa. Pardal era uma alma mais empática. Ela olhou para Sarai, observando seu rosto cansado e seus olhos roxos.
– Não – respondeu suavemente. – Eu não ia querer isso.
– Então deixamos ela fazer o que bem entender em tudo? – Sarai perguntou. – Vocês não conseguem ver aonde isso leva? Ela fará com que sejamos como nossos pais.
Rubi franziu a testa.
– Nós jamais poderíamos ser como eles.
– Não? – replicou Sarai. – E quantos humanos podemos matar antes de nos tornarmos iguais a eles? Há um número? Cinco? Cinquenta? Uma vez que começarmos, não teremos como parar. Mate um, fira um, e não há esperança para nenhum tipo de vida. Vocês não veem isso?
Sarai sabia que Rubi não queria machucar ninguém, tampouco. Mas ela abriu os cachos de liríope com as mãos, revelando os fantasmas que estavam no jardim.
– Que escolha nós temos, Sarai?
Uma a uma as estrelas apareceram no céu. Rubi disse que estava cansada, embora não parecesse, e foi cedo para a cama. Pardal encontrou uma pena que só podia ser da Aparição e colocou-a atrás da orelha de Sarai.
Ela arrumou o cabelo de Sarai, penteando-o suavemente com os dedos e usando seu dom para torná-lo lustroso. Sarai podia senti-lo crescer, e até ganhar brilho, como se Pardal o estivesse infundindo de luz. Ela acrescentou centímetros; fez com que ficasse armado. Colocou uma coroa de tranças, deixando a maior parte solta, e teceu vinhas e ramos de orquídeas, brotos de samambaia, e aquela pena branca.
E quando Sarai viu-se no espelho de novo antes de enviar suas mariposas, pensou que se parecia mais com um espírito da floresta do que com a deusa do desespero.
36
PROCURANDO UMA LUA
Lamento dormia. Sonhadores sonhavam. Uma grande lua pairava acima e as asas da cidadela cortavam o céu em dois: luz acima e escuridão abaixo.
Na palma da mão estendida do serafim colossal, fantasmas faziam a guarda com cutelos e ganchos de carne em correntes. A lua brilhava forte na ponta de suas lâminas, nítida na ponta de seus terríveis ganchos e luminosa em seus olhos, que estavam arregalados de horror. Eles estavam banhados pela luz, enquanto a cidade afundava-se na escuridão.
Sarai despachou suas mariposas para a câmara, onde a maioria dos delegados estava dormindo pesadamente, para as casas dos líderes da cidade, e algumas para os Tizerkane também. A amante de Tzara estava com ela, mas ambas não estavam... dormindo, então, Sarai afastou sua mariposa imediatamente. Em Quedavento, Azareen estava sozinha. Sarai viu-a destrançar os cabelos, colocar sua aliança e deitar-se para dormir. Contudo, ela não ficou para ver seus sonhos. Os sonhos de Azareen eram... difíceis. Sarai não podia deixar de pensar que tinha um papel em roubar a vida que Azareen deveria ter tido – como se ela existisse em vez de uma criança amada que o casal deveria ter concebido. Podia não ser culpa sua, mas ela não conseguia se sentir inocente.
Ela viu o faranji dourado, que parecia doente, ainda acordado e trabalhando. E viu o feioso, cuja pele devastada pelo sol estava se curando na sombra da cidadela, embora ele não ficasse mais bonito com isso. Ele também estava acordado, cambaleando com uma garrafa na mão. Ela não podia suportar sua mente. Todas as mulheres com quem ele sonhava tinham machucados, e ela não tinha ficado tempo suficiente para descobrir como elas ficaram daquela forma. Ela não o visitou desde a segunda noite.
Cada mariposa, cada batida de asa carregava o fardo opressor do exército de fantasmas, de vingança e o peso de outro massacre. Com a ocupação no terraço, ela ficou do lado de dentro, virando cinco vezes mais em sua caminhada do que fazia lá fora. Sentia falta da luz da lua e do vento. Queria sentir a profundidade infinita do espaço acima e ao redor, não essa jaula de metal. Ela se lembrou do que Pardal disse, sonhar era como o jardim: você podia fugir da prisão por um tempo e sentir o céu ao seu redor.
E Sarai argumentou que a cidadela era uma prisão, mas também um santuário. Essa conversa tinha sido há apenas uma semana e também havia o lull, e olhe para ela agora.
Ela estava tão cansada.
Lazlo estava cansado também. Tinha sido um longo dia, e doar seu espírito também não ajudava. Ele comeu com Suheyla e cumprimentou-a pela comida sem mencionar línguas arruinadas. Tomou outro banho e, embora tenha ficado imerso até a água começar a esfriar, a cor cinzenta não desapareceu de suas mãos. Em seu estado de fadiga, os pensamentos pingavam como beija-flores disso para aquilo, sempre voltando ao medo – o medo da cidadela e de tudo o que acontecera nela. Como todos eles eram assombrados pelo passado, Eril-Fane tanto quanto o resto.
Com isso, dois rostos encontraram espaço na mente de Lazlo. Um de uma pintura da deusa morta e o outro de um sonho: ambos azuis, com cabelos castanho-avermelhados e uma listra de tinta preta atravessando os olhos. Azul, preto e canela, ele viu, e perguntou-se de novo como havia acontecido de sonhar antes de ver a aparência dela.
E por que, se ele, de certa forma, tinha vislumbrado Isagol, a Terrível, ela tinha sido... nada terrível?
Ele saiu da banheira e secou-se, vestiu calças limpas de linho, e estava cansado demais para amarrar o cordão. De volta ao seu quarto, tropeçou e caiu na cama, deitado sobre as colchas, e dormiu no meio da segunda respiração.
E foi assim que Sarai o encontrou: dormindo de bruços com a cabeça apoiada nos braços.
O longo e liso triângulo de suas costas subia e descia com a respiração profunda enquanto a mariposa dela pairou sobre ele, procurando um lugar para pousar. Da forma como ele estava deitado, a testa não era uma opção. Havia a extremidade áspera de seu rosto, mas enquanto o observava, ele afundou mais a cabeça entre os braços, e aquele local de pouso diminuiu e desapareceu. Mas havia suas costas.
Ele havia dormido com a glave descoberta e o ângulo baixo da luz lançava pequenas sombras abaixo de cada músculo, e sombras mais profundas nos ombros e descendo pelo canal de sua coluna. Era uma paisagem lunar para a mariposa. Sarai flutuou suavemente no vale escuro de seus ombros e assim que tocou a pele, entrou em seu sonho.
Ela foi cautelosa, como sempre. Já fazia várias noites que ela o visitava desde a primeira vez, e cada vez ela entrava no sonho silenciosamente, como um ladrão. Um ladrão do quê? Ela não estava roubando seus sonhos, nem mesmo os alterando de alguma forma. Ela estava apenas... desfrutando deles, como alguém que desfruta de música tocada gratuitamente.
Uma sonata pairando sobre o jardim.
Inevitavelmente, contudo, depois de ouvir boa música noite após noite, fica-se curioso sobre quem a toca. Ah, ela sabia quem ele era. Afinal, ela estava pousada em sua testa todo esse tempo – até esta noite, e essa nova experiência de suas costas – e havia uma estranha intimidade nisso. Ela conhecia seus cílios de cor, e seu perfume masculino, sândalo e almíscar. Ela até foi se acostumando ao seu nariz torto. Mas dentro dos sonhos, ela mantinha distância.
E se ele a visse de novo? E se não a visse? Será que havia sido uma falha? Ela queria saber, mas tinha medo. No entanto, essa noite algo havia mudado. Ela estava cansada de se esconder. Ela descobriria se ele podia vê-la, e talvez até o porquê. Ela estava preparada para isso, pronta para qualquer coisa. Pelo menos achava que estava.
Na verdade, nada podia tê-la preparado para entrar no sonho e se encontrar já nele.
De novo, as ruas da cidade mágica – Lamento, mas não era Lamento. Era noite, e a cidadela estava no céu desta vez, mas a lua brilhava apesar disso, como se o sonhador quisesse ter o melhor de dois mundos. E, novamente, havia aquela cor inacreditável, e asas leves, frutas e criaturas de contos de fadas. Havia o centauro com sua mulher. Ela andava a seu lado esta noite, e Sarai sentiu-se quase inquieta até que os viu se beijando. Eles eram permanentes ali; ela teria gostado de conversar com eles e ouvir sua história.
Sarai teve a ideia de que cada pessoa e criatura que ela viu ali era o início de outra história fantástica, e queria seguir todas. Mas principalmente, ela estava curiosa com o sonhador.
Ela o viu à frente, cavalgando um espectral. E foi ali que as coisas se tornaram completamente surreais, porque cavalgando ao lado dele, montada em uma criatura com o corpo de um ravide e a cabeça e asas da Aparição, a águia branca, estava... Sarai.
Para esclarecer, a própria Sarai – a Sarai de verdade – estava a distância, onde ela tinha entrado no sonho em um cruzamento de ruas. Ela os viu.
Viu a si mesma.
Viu a si mesma montada em uma criatura mítica no sonho do faranji.
Ela os observou. Sua boca abriu-se e fechou-se. Como? Ela olhou mais de perto. Desejou estar mais próxima para ver melhor, embora fosse cuidadosa para se manter fora de vista.
A outra Sarai, de onde podia ver, parecia-se exatamente como ela na noite em que ele a havia visto: com os cabelos soltos e a máscara pintada de Isagol. Em outras circunstâncias, ela teria pensado que estava vendo sua mãe, porque a semelhança entre as duas era surpreendente, e os humanos sonhavam com Isagol, enquanto, é claro, que nunca sonhavam com ela. Mas aquela não era Isagol. Sua mãe, apesar de todas as similaridades, possuía uma majestade que ela não tinha, e uma crueldade também. Isagol não sorria. Essa garota, sim. Essa garota azul tinha o rosto de Sarai, e não estava usando um vestido de asas de besouro e adagas, mas sim a mesma camisola com bainha de renda que usou na primeira noite.
Ela era parte do sonho.
O faranji estava sonhando com Sarai. Ele estava sonhando com ela... e não era um pesadelo.
Lá na cidadela, seus passos interromperam-se. Entre os ombros nus do sonhador, a mariposa pousada estremeceu. Uma dor subiu pela garganta de Sarai, como um soluço sem a tristeza. Ela olhou para si mesma do outro lado da rua – tal como era vista e lembrada pelo sonhador – e não viu obscenidade, ou calamidade, ou filhos dos deuses.
Ela viu uma garota sorridente e orgulhosa com uma bonita pele azul. Porque foi isso que ele viu, e esta era sua mente.
É claro, ele também achava que ela era Isagol.
– Perdoe-me por perguntar – ele estava dizendo a ela –, mas por que o desespero, entre todas as coisas das quais poderia ser deusa?
– Não conte a ninguém. – Isagol respondeu. – Eu era deusa da lua – ela sussurrou o resto como um segredo. – Mas então eu a perdi.
– Você perdeu a lua? – o sonhador perguntou, e espiou para o céu, onde a lua estava bastante presente.
– Não aquela – ela respondeu. – A outra.
– Havia outra lua?
– Ah, sim. Há sempre uma reserva, para garantir.
– Eu não sabia disso. Mas... como você perde uma lua?
– Não foi minha culpa – a garota explicou. – Ela foi roubada.
A voz não era de Sarai nem de Isagol, mas apenas uma voz imaginada pelo faranji. A estranheza de tudo aquilo confundiu Sarai. Lá estava seu rosto, seu corpo, com uma voz estranha saindo dele, dizendo palavras extravagantes que não tinham nada a ver com ela. Era como olhar para um espelho e ver outra pessoa ali refletida.
– Podemos ir até a lua procurar uma outra para comprar – o sonhador ofereceu. – Se você quiser.
– Existe uma loja de luas? Tudo bem.
E, então, o sonhador e a deusa foram comprar uma lua. Parecia algo saído de uma história. Bem, era como algo saído de um sonho. Sarai os seguiu em um estado de fascinação, e ambos entraram em uma loja minúscula sob uma ponte, deixando suas criaturas na porta. Ela ficou parada diante da vitrine, passou a mão na cabeça cheia de penas do grifo, e sentiu uma pontada de inveja atormentadora. Ela desejou que realmente fosse ela montada no grifo e olhando as bandejas de joias em busca da lua certa. Havia crescentes e quartos de lua, luas cheias e quase cheias, e não eram amuletos, eram luas – luas reais em miniatura, luminosas e com crateras, como se fossem iluminadas pelos raios de alguma estrela distante.
Sarai/Isagol – a impostora, como Sarai estava começando a pensar nela – não conseguia se decidir entre os astros, e levou todas. O sonhador pagou-as com uma espécie engraçada de bolsa de brocado verde, e no instante seguinte elas estavam brilhando no pulso dela, como um bracelete de amuletos. O par deixou a loja e montou em suas criaturas, Isagol levantando seu bracelete de forma que as luas faziam barulho, como sinos.
– Será que eles a deixarão ser uma deusa da lua novamente? – o sonhador perguntou.
Que história absurda é essa de deusa da lua?, Sarai perguntou-se com uma faísca de ira. Isagol não tinha sido nada tão benigno.
– Ah, não – explicou a deusa. – Estou morta.
– Sim, sei. Sinto muito.
– Não devia sentir. Eu era terrível.
– Você não parece terrível – disse o sonhador, e Sarai teve de morder o lábio. Porque essa não é Isagol, ela queria dizer. Sou eu. Mas tampouco era ela. Podia ter seu rosto, mas era um fantasma – apenas um fragmento de memória dançando em uma corda – e tudo o que ela dizia e fazia vinha da mente do sonhador.
Sua mente, onde a deusa do desespero sacudia luas em um bracelete e “não parecia terrível”.
Sarai podia ter lhe mostrado o que era terrível. Ela ainda era a Musa dos Pesadelos, afinal de contas, e havia visões de Isagol em seu arsenal que o teriam acordado gritando. Mas acordá-lo gritando era a última coisa que ela queria, então ela fez algo diferente.
Ela dissolveu o fantasma como uma mariposa ao nascer do sol, e entrou no seu lugar.
37
UM TOM DE AZUL ENCANTADOR
Lazlo piscou. Em um momento a pintura preta de Isagol atravessava seus olhos e no momento seguinte, não. Em um momento seus cabelos estavam soltos em volta dela como um xale e no momento seguinte estavam brilhando em suas costas como bronze fundido. Ela estava coroada com tranças e vinhas e o que ele primeiro achou que eram borboletas, logo viu que eram orquídeas, com uma única longa pena branca em um ângulo vistoso. Em vez da camisola, a garota usava um robe de seda cor de cereja bordado com botões brancos e açafrão.
Havia uma nova fragrância também, alecrim e néctar, e havia outras diferenças, mais sutis: uma mudança em seu tom de azul, um ajuste na inclinação de seus olhos. Uma espécie de... nitidez em suas linhas, como se um véu diáfano tivesse sido levantado. Ela parecia mais real do que um momento atrás.
Além disso, ela não estava mais sorrindo.
– Quem é você? – a moça indagou, e a sua voz havia mudado. Era mais rica, mais complexa – um acorde em oposição a uma nota. Era mais sombria também, e com ela, a extravagância do momento dissipou-se. Não havia mais luas em seu pulso – e tampouco uma lua visível no céu. O mundo pareceu se apagar, e Lazlo, olhando para cima, percebeu a luz da lua apenas como uma auréola em torno das extremidades da cidadela.
– Lazlo Estranho – ele respondeu, ficando sério. – A seu serviço.
– Lazlo Estranho – ela repetiu, e as sílabas eram exóticas em sua língua. Seu olhar era penetrante, sem piscar. Os olhos eram de um azul mais pálido que sua pele, ele sentiu que ela estava tentando sondá-lo. – Mas quem é você?
Era a menor e a maior pergunta de todas, e Lazlo não sabia o que dizer. No nível mais fundamental, ele não sabia quem era. Ele era um Estranho, com tudo o que isso acarretava – embora o significado de seu nome não faria sentido para ela e, de qualquer forma, ele não achava que ela estivesse perguntando sobre seu pedigree. Então, quem era ele?
Naquele momento, quando ela mudou, também mudaram os arredores. A loja de luas desapareceu, e toda Lamento junto com ela. Desapareceu também a cidadela e a sua sombra. Lazlo e a deusa, ainda montados em suas criaturas, foram transportados bem para o centro do Pavilhão do Pensamento. Doze metros de altura, as prateleiras de livros. As lombadas com seus tons de pedras preciosas, o brilho da folha de ouro. Bibliotecários em escadas como espectros em cinza, e acadêmicos em escarlate inclinados sobre suas mesas. Era tudo o que Lazlo tinha visto naquele dia, sete anos atrás, quando a sorte o havia levado a uma nova vida.
E assim pareceu que aquela era sua resposta, ou ao menos sua primeira resposta. A camada mais externa de seu eu, mesmo depois de seis meses longe dela.
– Sou um bibliotecário – respondeu. – Ou eu era, até recentemente. Na Grande Biblioteca de Zosma.
Sarai olhou em volta, absorvendo tudo aquilo e, momentaneamente, esqueceu sua linha dura de interrogatório. O que Feral faria em um lugar como este?
– São tantos livros – ela observou, intimidada. – Eu nunca imaginei que houvesse tantos livros no mundo inteiro.
Sua admiração ganhou a afeição de Lazlo. Ela podia ser Isagol, a Terrível, mas é impossível alguém que mostre reverência por livros ser irredimível.
– Foi assim que me senti da primeira vez que vi.
– O que há em todos eles? – ela perguntou.
– Nesta sala, são todos de filosofia.
– Esta sala? – E virando-se para ele: – Há mais salas?
Ele deu um sorriso largo.
– Muitas mais.
– Todas cheias de livros?
Ele assentiu, orgulhoso, como se tivesse escrito todos.
– Gostaria de ver meus favoritos?
– Tudo bem – a garota concordou.
Lazlo fez Lixxa andar em frente, e a deusa o seguiu com seu grifo. Lado a lado, tão majestosos quanto um par de estátuas, mas muito mais fantásticos, eles cavalgaram pelo Pavilhão do Pensamento. As asas do grifo roçaram nos ombros dos acadêmicos. Os chifres de Lixxa quase derrubaram uma escada. E Lazlo podia ser um sonhador experiente – nos vários sentidos da palavra –, mas nesse momento ele era como qualquer um. Não estava consciente de que era um sonho. Estava simplesmente dentro dele. A lógica que pertencia ao mundo real tinha ficado para trás, como bagagem em um porto. Este mundo tinha uma lógica própria, era fluido, generoso e profundo. As escadas secretas para seu subsolo empoeirado eram estreitas demais para acomodar grandes animais como esses, mas passaram por elas facilmente. E há muito ele havia limpado os livros com infinito amor e carinho, mas a poeira estava lá da mesma forma que quando os encontrou pela primeira vez: um cobertor suave de anos, guardando todos os melhores segredos.
– Ninguém além de mim leu nenhum desses livros em pelo menos uma vida – ele contou.
A garota tirou um livro e soprou a poeira, que pairou em volta como flocos de neve enquanto ela virava as páginas, mas as palavras estavam em um estranho alfabeto que não conseguia ler.
– O que tem neste aqui? – ela indagou a Lazlo, mostrando-lhe.
– Esse é um dos meus favoritos – ele respondeu. – É o épico da mahalath, uma névoa mágica que vem a cada cinquenta anos e cobre um vilarejo por três dias e três noites. Tudo que é vivo se transforma, para melhor ou para pior. As pessoas sabem quando ela está chegando e a maioria foge de sua passagem. Mas há sempre algumas que ficam e assumem o risco.
– E o que acontece com elas?
– Algumas viram monstros, outras, deuses.
– Então é daí que vêm os deuses – ela disse, secamente.
– Você saberia isso melhor do que eu, minha senhora.
Não mesmo, Sarai pensou, porque ela não sabia mais do que os humanos de onde vieram os Mesarthim. Ela, é claro, estava consciente de que aquilo era um sonho. Estava muito acostumada à lógica dos sonhos para se surpreender por qualquer armadilha, mas não tão cansada para achá-las bonitas. Depois de a poeira pairar, flocos de neve continuaram a cair no recinto. Eles brilhavam no chão como açúcar derramado, e quando ela desmontou do grifo, estava frio debaixo de seus pés descalços. A coisa que a surpreendeu, na qual não conseguia parar de pensar mesmo agora, era que ela estava tendo uma conversa com um estranho. Não importa por quantos sonhos já tivesse navegado, quaisquer devaneios quiméricos que tivesse testemunhado, ela nunca havia interagido. Mas aqui estava ela, conversando – batendo papo. Quase como uma pessoa real.
– E este aqui? – quis saber, pegando outro livro.
Ele leu a lombada:
– Folclore de Vaire. Esse é o pequeno reino ao sul de Zosma. – Ele folheou e sorriu. – Você gostaria deste aqui. É sobre um jovem que se apaixona pela lua e tenta roubá-la. Talvez ele seja o seu culpado.
– E ele consegue?
– Não, ele tem que fazer as pazes com o impossível.
Sarai fez uma careta.
– Você quer dizer que ele tem que desistir.
– Bem, é a lua. – Na história, o jovem Sathaz ficou tão encantado pelo reflexo da lua no poço profundo e imóvel perto de sua casa na floresta que olhava para ela, extasiado, mas sempre que tentava alcançá-la, ela se partia em mil pedaços e o deixava molhado, com os braços vazios. – Mas então – Lazlo acrescentou –, se alguém conseguiu roubá-la de você... –Ele olhou para o pulso nu onde não havia mais lua pendurada.
– Talvez tenha sido ele – ela disse – e a história está errada.
– Talvez – consentiu Lazlo. – E Sathaz e a lua estão vivendo felizes juntos numa caverna em algum lugar.
– E tiveram milhares de filhos juntos, e é daí que vêm as glaves. A união do homem com a lua. – Sarai ouviu-se e se perguntou o que havia de errado com ela. Momentos atrás estava irritada com aquele absurdo sobre a lua que estava saindo da boca de seu fantasma, e agora ela estava fazendo a mesma coisa. Era Lazlo, pensou. Era a mente dele. As regras eram diferentes aqui. A verdade era diferente. Era... mais agradável.
Ele deu um sorriso largo, e vê-lo deu um frio na barriga da Sarai.
– E aquele ali? – ela perguntou, virando-se rapidamente para apontar para um livro grande em uma prateleira mais alta.
– Ah, olá – disse ele, estendendo a mão para pegá-lo. Ele o trouxe para baixo: um tomo imenso, encadernado em veludo verde-claro com uma camada decorativa de prata. – Este – ele disse, passando-o para ela – é o vilão que quebrou meu nariz.
Quando ele o soltou em suas mãos, seu peso quase a fez derrubá-lo na neve.
– Isso? – ela perguntou.
– Meu primeiro dia como aprendiz – ele explicou pesaroso. – Foi sangue para todo lado. Não vou enojá-la apontando para a mancha na lombada.
– Um livro de contos de fadas quebrou seu nariz! – Sarai exclamou, sem conseguir evitar um sorriso ao constatar como estivera errada sua primeira impressão. – Imaginei que você tivesse brigado.
– Foi mais uma emboscada, na verdade. Eu estava na ponta dos pés, tentando pegá-lo – falou, tocando o nariz –, mas ele me pegou.
– Você tem sorte que ele não o decepou – disse Sarai, devolvendo-lhe o livro.
– Muita sorte. Eu tenho tristeza suficiente para um nariz quebrado. Nunca ouvi falar no fim de uma cabeça perdida.
Sarai deixou escapar um risinho.
– Acho que não dá para ouvir muita coisa se você perder a cabeça.
Solenemente, ele disse:
– Espero nunca descobrir.
Sarai observou seu rosto, como ela havia feito da primeira vez que o vira. Além de pensar nele como uma espécie de bruto, ela também o tinha achado feio. Entretanto, olhando agora, achou que a beleza não vinha ao caso. Ele era notável, como o perfil de um conquistador em uma moeda de bronze. E isso era melhor.
Lazlo, sentindo a análise, corou. Sua hipótese sobre a opinião dela quanto à sua aparência era bem menos favorável do que os pensamentos dela sobre o assunto. Sua opinião sobre a aparência dela era simples. Ela era simplesmente adorável, com bochechas redondas e um queixinho, e a boca era suculenta como uma ameixa, o lábio inferior como uma fruta madura com uma prega no meio, e macio como a pele de um damasco. Os cantos de seu sorriso, voltados para cima com satisfação, eram tão nítidos quanto as pontas da lua crescente, e suas sobrancelhas brilhavam contra o azul de sua pele, tão cor de canela quanto seus cabelos. Ele continuava esquecendo que ela estava morta e então se lembrava, e ficava triste toda vez que isso acontecia. Quanto ao fato de ela estar morta e ali, a lógica dos sonhos não se perturbava com enigmas.
– Deus do céu, Estranho – surgiu uma voz, e Lazlo viu mestre Hyrrokkin se aproximar, empurrando um carrinho de biblioteca. – Estive te procurando por toda parte.
Era tão bom vê-lo. Lazlo envolveu-o em um abraço que, evidentemente, constituía um excesso de afeição, porque o velho o empurrou, enfurecido.
– O que deu em você? – ele perguntou, ajeitando suas vestes. – Imagino que em Lamento eles saiam por aí maltratando uns aos outros como ursos lutadores.
– Exatamente como ursos lutadores – respondeu Lazlo. – Sem os ursos. Ou a luta.
Mas Mestre Hyrrokkin tinha visto a companhia de Lazlo. Seus olhos arregalaram-se.
– Mas quem é esta? – ele perguntou, sua voz uma oitava mais alta.
Lazlo os apresentou.
– Mestre Hyrrokkin, esta é Isagol. Isagol, Mestre Hyrrokkin.
Em um sussurro, o velho perguntou:
– Por que ela é azul?
– Ela é a deusa do desespero – Lazlo respondeu, como se isso explicasse tudo.
– Não, ela não é – disse Mestre Hyrrokkin, imediatamente. – Você entendeu errado, garoto. Olhe para ela.
Lazlo olhou, mais para oferecer um olhar de desculpas do que para considerar a afirmação do Mestre Hyrrokkin. Ele sabia quem ela era. Tinha visto a pintura, e Eril-Fane confirmara.
É claro, ela se parecia menos com ela mesma agora, sem a pintura preta nos olhos.
– Você fez como sugeri, então? – perguntou Mestre Hyrrokkin. – Você lhe deu flores?
Lazlo lembrou-se de seu conselho: “colha flores e encontre uma garota para presentear”. Ele se lembrou do resto do conselho também: “olhos meigos e quadris largos”. E corou com a lembrança. A garota era muito magra, e Lazlo não esperava que a deusa do desespero tivesse olhos meigos. Contudo, ela tinha, ele percebeu.
– Flores, não – respondeu, encabulado, querendo afastar qualquer exploração posterior do assunto. Ele sabia das tendências lascivas do velho e estava ansioso para vê-lo partir antes que ele dissesse alguma coisa infeliz. – Não é assim...
Mas Isagol o surpreendeu levantando o pulso, no qual o bracelete havia reaparecido.
– Mas ele me deu a lua – ela disse.
Não havia vários amuletos nele agora, apenas um: uma lua crescente, branca e dourada, pálida e radiante, parecendo ter sido arrancada do céu.
– Muito bem, garoto – afirmou Mestre Hyrrokkin, aprovando o gesto. De novo, o sussurro: – Ela podia ser mais voluptuosa, mas suponho que seja macia o bastante nos lugares certos. Você não vai querer ser cutuca-do por ossos quando...
– Por favor, Mestre Hyrrokkin – disse Lazlo, apressando-se em interrompê-lo. Seu rosto ficou vermelho.
O bibliotecário riu.
– Qual é a vantagem de ser velho se você não pode constranger os mais jovens? Bem, vou deixá-los em paz. Bom dia, minha jovem. Foi um prazer. – Ele beijou a mão dela, então virou-se, cutucando Lazlo com o cotovelo e sussurrando alto enquanto saía: – Que tom de azul encantador!
Lazlo virou-se para a deusa.
– Meu mentor – ele explicou. – Ele tem maus modos, mas bom coração.
– Nem percebi – respondeu Sarai, que não tinha visto nenhum problema com os modos do velho homem, e teve de lembrar-se, em todo caso, que aquela era apenas outra invenção da mente do sonhador. “Você errou, garoto”, o bibliotecário tinha dito. “Olhe para ela”. Será que isso significava que em algum nível Lazlo a via para além do disfarce, e não acreditava que ela fosse Isagol? Ela ficou contente com a ideia, e repreendeu-se por se preocupar com isso. Voltando-se para as estantes, percorreu com o dedo as lombadas de uma fileira de livros.
– Todos estes livros – ela quis saber – são sobre magia? –, refletindo se ele era algum especialista. Se era por isso que o Matador de Deuses o havia trazido consigo.
– São mitos e folclore, principalmente – respondeu Lazlo. – Qualquer coisa considerada muito divertida pelos acadêmicos para ser importante. Eles os colocaram aqui e esqueceram. Superstições, músicas, feitiços. Serafins, presságios, demônios, fadas. – Apontou para uma estante. – Aqueles são todos sobre Lamento.
– Lamento é divertida demais para ser importante? – ela indagou. – Acho que os cidadãos de lá vão discordar de você.
– Não é minha avaliação, acredite. Se eu fosse um acadêmico, poderia defender a cidade, mas você entende, também não sou importante.
– Não? E por que isso?
Lazlo olhou para seus pés, relutante em explicar a própria insignificância.
– Sou um órfão – explicou, fitando-a. – Não tenho família, não tenho nome.
– Mas você me disse seu nome.
– Tudo bem. Tenho um nome que diz ao mundo que não tenho nome. É como uma placa em volta do meu pescoço dizendo “Ninguém”.
– É tão importante ter um nome? – Sarai perguntou.
– Acho que os cidadãos de Lamento diriam que sim.
Sarai não teve resposta para isso.
– Eles nunca o recuperarão, não é? – Lazlo perguntou. – O verdadeiro nome da cidade? Você se lembra?
Sarai não se lembrava. Ela duvidava que o tivesse conhecido.
– Quando Letha roubava uma memória, ela não a guardava numa gaveta como um brinquedo confiscado. Ela a comia e a memória desaparecia para sempre. Esse era o seu dom. Erradicação.
– E o seu dom? – Lazlo perguntou.
Sarai congelou. A ideia de explicar-lhe seu dom trouxe uma sensação imediata de vergonha. Mariposas voam da minha boca, imaginou-se dizendo. Para que eu possa invadir as mentes humanas como estou fazendo com você agora mesmo. Mas, é claro, ele não estava perguntando sobre o dom dela. Por um momento ela esqueceu de quem era – ou não era. Ela não era Sarai aqui, mas esse absurdo fantasma domado de sua mãe.
– Bom, ela não era nenhuma deusa da lua – a garota falou. – Isso é tudo muito absurdo.
– Ela? – Lazlo perguntou, confuso.
– Eu – Sarai respondeu, embora a resposta tenha ficado presa em sua garganta. Isso a afetou com uma pontada de profundo ressentimento, de que essa coisa extraordinária e inexplicável acontecesse: um humano pudesse vê-la – e ele estava falando com ela sem ódio, com algo mais parecido com fascínio e até mesmo encantamento – e ela não tivesse de esconder sua presença. Se ela fosse Isagol, mostraria seu dom. Como um gatinho maléfico com um novelo, ela enrolaria suas emoções até que ele perdesse toda distinção entre amor e ódio, alegria e tristeza. Sarai não queria fazer esse papel, jamais. Ela voltou as perguntas para ele.
– Por que você não tem família? – ela indagou.
– Houve uma guerra. Eu era bebê. Acabei num carrinho de órfãos. É tudo o que sei.
– Então você poderia ser qualquer pessoa. Até mesmo um príncipe.
– Num conto de fadas, talvez – ele sorriu. – Não acredito que houvesse algum príncipe desaparecido. Mas e quanto a você? Deuses têm famílias?
Sarai pensou primeiro em Rubi e Pardal, Feral e Minya, Grande e Pequena Ellens, e nos outros: sua família, mesmo que não fossem de sangue. Então pensou em seu pai, e seus corações endureceram. Mas o sonhador estava fazendo de novo, voltando as questões para ela.
– Somos feitos de névoa – respondeu. – Lembra? A cada cinquenta anos.
– A mahalath. É claro. Então você foi uma das que assumiu o risco.
– Você não faria o mesmo? – ela perguntou. – Se a névoa estivesse chegando, você ficaria e seria transformado, sem saber qual seria o resultado?
– Eu ficaria – ele disse imediatamente.
– Essa foi rápida. Você abandonaria sua verdadeira natureza com tão pouca consideração?
Ele riu disso.
– Você não faz ideia de quanto já considerei isso. Vivi sete anos dentro desses livros. Meu corpo podia estar cumprindo os deveres na biblioteca, mas minha mente estava aqui. Você sabe como me chamavam? Estranho, o sonhador. Eu mal percebia o que estava ao meu arredor na metade do tempo. – Ele ficou surpreso consigo mesmo, falando assim, e com ninguém menos que a deusa do desespero. Mas os olhos dela estavam brilhando de curiosidade, um espelho de sua própria curiosidade sobre ela, e sentiu-se totalmente à vontade. Certamente o desespero era a última coisa na qual pensou ao fitá-la. – Eu andava por aí me perguntando que tipo de asas eu compraria se os fabricantes de asas viessem para a cidade, e se eu preferia montar em dragões ou caçá-los, e se eu ficaria quando a névoa chegasse, e mais do que qualquer outra coisa, como eu chegaria até a Cidade Perdida.
Sarai levantou a cabeça.
– A Cidade Perdida?
– Lamento. Sempre odiei esse nome, então inventei o meu.
Sarai estava sorrindo e querendo perguntar em que livro estavam os fabricantes de asas, e se os dragões eram malvados ou não, mas ao se lembrar de Lamento, seu sorriso lentamente derreteu-se em melancolia, e isso não foi a única coisa que derreteu. Para seu arrependimento, a biblioteca também derreteu, e então estavam em Lamento novamente. Mas dessa vez não era a Lamento dele, mas a dela, e podia estar mais perto da cidade de verdade do que a versão dele, mas tampouco era correta. Com certeza, ainda era bela, mas havia as nuances da proibição também. Todas as portas e janelas estavam fechadas – e os peitoris, desnecessário dizer, não tinham bolos – e era um lugar desolado com jardins mortos e a correria corcunda de uma população que temia o céu.
Havia tantas coisas que ela queria perguntar a Lazlo, que era chamado de “sonhador” mesmo antes de ela tê-lo apelidado assim. Por que você pode me ver? O que você faria se soubesse que sou real? Que asas você escolheria se os fabricantes de asas chegassem? Podemos voltar para a biblioteca, por favor, e ficar um tempo lá? Mas ela não podia dizer nada disso.
– Por que você está aqui? – ela perguntou.
Ele ficou espantado com a mudança repentina no clima.
– É meu sonho desde que eu era criança.
– Mas por que o Matador de Deuses te trouxe? Qual é a sua parte nisso? Os outros são cientistas, construtores. Por que o Matador de Deuses precisa de um bibliotecário?
– Ah, não, não sou um deles. Parte da delegação, quero dizer. Tive que implorar por um lugar na comitiva. Sou o secretário dele.
– Você é o secretário de Eril-Fane.
– Sim.
– Então você deve conhecer os planos. – O pulso de Sarai acelerou. Outra das mariposas estava voando em frente ao pavilhão onde os trenós de seda estavam. – Quando ele virá para a cidadela? – indagou, sem pensar.
Era a pergunta errada. Ela soube disso assim que a proferiu. Talvez fosse o fato de ser direta, ou a sensação de urgência, ou talvez tenha sido o escorregão de ter usado virá em vez de irá, mas algo mudou em seu jeito, como se ele estivesse olhando-a com novos olhos.
E ele estava. Sonhos têm seus ritmos, seus pontos rasos e profundos, e ele estava subindo para um estágio de maior lucidez. A lógica deixada para trás do mundo real veio descendo como raios de sol através da superfície do oceano, e ele começou a entender que nada disso era real. É claro que ele não tinha cavalgado Lixxa pelo Pavilhão do Pensamento. Era tudo fugaz, instável: um sonho.
Exceto por ela.
Ela não era fugaz nem instável. Sua presença tinha um peso, uma profundidade e uma clareza que nada mais tinha – nem mesmo Lixxa, e havia poucas coisas que Lazlo conhecia melhor ultimamente do que a realidade física de Lixxa. Depois de seis meses cavalgando o dia inteiro, ela era quase uma extensão dele. Mas o espectral pareceu de repente insubstancial, e logo que esse pensamento lhe ocorreu, ele se dissolveu. O grifo também. Havia apenas ele e a deusa com seu olhar penetrante e perfume de néctar e... gravidade.
Não gravidade no sentido de solenidade – embora isso, também –, mas gravidade no sentido de uma força. Ele sentiu como se ela estivesse no centro dessa pequena e surreal galáxia – na verdade, que era ela que estava sonhando com ele, e não o contrário.
Lazlo não sabia o que o estava levando a fazer aquilo. Não era de seu feitio. Ele pegou a mão dela e a segurou gentilmente. Era pequena, macia e muito real.
Na cidadela, Sarai levou um susto ao sentir o calor da pele de Lazlo. Uma chama de conexão – ou colisão, como se estivessem há tempos perambulando no mesmo labirinto e, finalmente, dobraram a esquina que os deixaria face a face. Era uma sensação de estar perdida e sozinha e, de repente, nenhuma dessas coisas. Sarai sabia que deveria puxar sua mão, mas não fez isso.
– Você precisa me dizer – ela disse.
Ela podia sentir o sonho ficando mais raso, como um navio encalhando em um banco de areia. Logo ele acordaria.
– As máquinas de voar. Quando vão lançá-las?
Lazlo sabia que era um sonho, e sabia que não era um sonho, e as duas noções andando em círculos em sua mente, deixando-o confuso.
– O quê? – ele indagou. A mão dela parecia o pulsar dos corações dentro da sua.
– As máquinas voadoras – ela repetiu. – Quando?
– Amanhã – ele respondeu, sem pensar.
A palavra, como uma foice, cortou as cordas que a estavam mantendo em pé. Lazlo achou que sua mão ao redor da dela era tudo que a mantinha ereta.
– O que foi? – ele perguntou. – Você está bem?
Ela se afastou, puxou sua mão.
– Me escute – a garota falou, e seu rosto ficou severo. A faixa preta retornou como um golpe cortante e seus olhos arderam ainda mais brilhantes para dar contraste.
– Eles não devem vir – ela disse, com uma voz tão inflexível quanto o mesarthium. As vinhas e orquídeas desapareceram de seus cabelos, e então havia sangue fluindo dele, riachos descendo de sua fronte e se acumulando nos olhos para enchê-los até que não houvesse nada além de poças vermelhas, e ainda assim o sangue fluía, descendo para os lábios e para dentro da boca, encharcando-a enquanto falava.
– Você entende? – ela reforçou. – Se fizerem isso, todos morrerão.
38
TODOS MORRERÃO
Todos morrerão.
Lazlo acordou de supetão e ficou surpreso ao encontrar-se sozinho no quarto. As palavras ecoavam em sua cabeça e uma visão da deusa ficou impressa em sua mente: sangue empoçando-se em seus olhos e pingando até sua boca carnuda. Havia sido tão real que quase não pôde acreditar que era um sonho. Mas é claro que havia sido. Apenas um sonho, o que mais? Sua mente estava transbordando com novas imagens desde sua chegada em Lamento. Os sonhos eram uma forma do cérebro processar tudo aquilo, e agora ele estava com dificuldade de fazer a correlação da garota do sonho com aquela no mural. Vibrante e triste versus... sangrenta e raivosa.
Ele sempre fora um sonhador vívido, mas isso era algo completamente novo. Ainda podia sentir o formato e o peso da mão dela na sua, seu calor e maciez. Tentou afastar a lembrança à medida que começou os afazeres da manhã, mas a imagem daquele rosto continuava invadindo sua mente e o eco assustador de suas palavras: todos morrerão.
Especialmente quando Eril-Fane o convidou para subir para a cidadela.
– Eu? – ele perguntou, assombrado. Eles estavam no pavilhão, ao lado dos trenós de seda. Ozwin preparava os dois; para economizar o gás de ulola, apenas um subiria hoje. Uma vez que chegassem à cidadela, deveriam restaurar seu extinto sistema de roldanas para que as futuras idas e vindas não dependessem de voar.
Era assim que os produtos eram levados da cidade na época dos Mesarthim, com uma cesta grande o suficiente para carregar uma ou duas pessoas – descobriram depois da libertação, quando os libertos a usaram para descer, uma viagem por vez. Mas nas horas de choque e de celebração em que receberam a notícia da morte dos deuses, devem ter se esquecido de amarrar as cordas apropriadamente, pois as cestas se soltaram das roldanas e caíram, deixando a cidadela para sempre – até então – inacessível. Hoje eles restabeleceriam a ligação.
Soulzeren havia dito que podia levar três passageiros além de si mesma. Eril-Fane e Azareen eram dois, e Lazlo recebeu a oferta do último lugar.
– Você tem certeza? – ele perguntou a Eril-Fane – Mas... um dos Tizerkane...?
– Como você sem dúvida observou – disse Eril-Fane –, a cidadela é difícil para nós.
Somos todos filhos da sombra, Lazlo lembrou-se.
– Qualquer um deles viria se eu pedisse, mas ficarão felizes de serem poupados. Você não precisa vir se não quiser. – Um brilho leve tomou conta de seu semblante. – Sempre posso pedir a Thyon Nero.
– Isso é desnecessário – informou Lazlo. – E, de qualquer forma, ele não está aqui.
Eril-Fane olhou em volta.
– Não, ele não está, não é? – Thyon era, na verdade, o único delegado que não tinha aparecido para ver o lançamento. – Devo mandar buscá-lo?
– Não – respondeu Lazlo. – É claro que quero ir.
Na verdade, ele não estava tão certo depois de seu sonho macabro. Apenas um sonho, falou a si mesmo, olhando para a cidadela. O ângulo do sol que nascia deixava escapar alguns raios sob as extremidades das asas, produzindo um brilho recortado ao longo das pontas das imensas penas de metal.
Todos morrerão.
– Você tem certeza de que ela está vazia? – ele soltou, tentando sem sucesso parecer casual.
– Tenho certeza – afirmou Eril-Fane, com um tom austero e decisivo. Ele amoleceu um pouco. – Se você está com medo, saiba que está em boa companhia. Tudo bem se preferir ficar.
– Não, estou bem – Lazlo insistiu.
E foi assim que ele se viu entrando a bordo de um trenó de seda menos de uma hora depois. Apesar do calafrio que não o deixava, ele foi capaz de se maravilhar com esse novo desdobramento de sua vida. Ele, Estranho, o sonhador, ia voar. Voaria na primeira aeronave do mundo, junto a dois guerreiros Tizerkane e uma mecânica que costumava fazer armas de fogo para generais, para uma cidadela de estranho metal azul flutuando sobre a cidade de seus sonhos.
Além dos faranji, cidadãos estavam reunidos para ver a decolagem, Suheyla inclusive, e todos estavam marcados pela mesma apreensão que os Zeyyadin na noite anterior. Ninguém olhava para cima. Lazlo achou o medo deles mais perturbador do que nunca e ficou contente de se distrair com Calixte.
Ela veio e sussurrou:
– Traga-me um souvenir. – E piscou. – Você me deve.
– Não vou furtar a cidadela para você – ele disse, com ar afetado. E então: – Que tipo de souvenir? – Sua mente foi imediatamente para os corpos dos deuses que eles esperavam encontrar, incluindo o de Isagol. Ele estremeceu. Quanto tempo levava para um corpo se tornar um esqueleto? Menos de quinze anos, certamente. Mas ele não quebraria nenhum osso do mindinho para Calixte. Além disso, Eril-Fane explicara que Lazlo e Soulzeren esperariam do lado de fora enquanto ele e Azareen faziam uma busca para garantir que o lugar estava seguro.
– Eu achava que você tinha certeza de que estava vazio – Lazlo observou.
– Vazio dos vivos – foi a resposta para reconfortá-lo.
E então subiram a bordo. Soulzeren colocou óculos que a faziam parecer uma libélula. Ozwin deu-lhe um beijo e soltou as cordas que prendiam os grandes pontões de seda firmemente ao chão. Eles tinham de soltá-las todas de uma vez se quisessem subir reto e não “ziguezaguear como camelos bêbados”, como disse Ozwin. Havia cordas de segurança que se prendiam a equipamentos que Soulzeren deu-lhes para usar – todos menos Eril-Fane, cujos ombros eram largos demais para eles.
– Prenda no seu cinto, então – disse Soulzeren, franzindo a testa. Ela olhou para cima, espremendo os olhos em direção às grandes asas de metal, às solas dos pés do grande anjo e ao céu que podia ver em torno das extremidades. – Não há vento, de qualquer forma. Deve correr bem.
Então fizeram uma contagem regressiva e lançaram-se.
E simples assim... estavam voando.
Os cinco na cidadela reuniram-se no terraço de Sarai, observando, observando, observando a cidade. Se olhassem bastante, ela tornava-se um padrão abstrato: o círculo do anfiteatro na oval formada pelos muros externos, que eram quebrados pelos quatro monólitos das âncoras. As ruas eram labirínticas. Elas os tentavam a traçar caminhos com os olhos, encontrar rotas entre este e aquele lugar. Todos os filhos dos deuses faziam isso, exceto Minya, que havia desejado vê-la de perto.
– Talvez não estejam vindo – afirmou Feral, esperançoso. Desde que Sarai lhe contou sobre a vulnerabilidade dos trenós de seda, ele vinha pensando sobre o assunto, perguntando-se o que faria quando chegasse a hora. Será que ele desafiaria Minya ou desapontaria Sarai? Qual era o caminho mais seguro? Mesmo agora ele estava incerto. Se não viessem, ele não teria de escolher.
Escolher não era o ponto forte de Feral.
– Lá – Pardal apontou, com a mão tremendo. Ela ainda segurava as flores que estivera tramando nos cabelos de Sarai, bastões-do-imperador vermelhos, como as que havia colocado no bolo “para fazer um pedido” de Rubi, exceto pelo fato de estas não serem botões. Eram flores abertas, tão lindas quanto fogos de artifício. Ela já tinha feito o cabelo de Rubi e Rubi o dela. Todas as três usavam desejos no cabelo hoje.
Então os corações de Sarai balançaram, parecendo bater juntos. Ela inclinou-se para frente, apoiando-se na mão do anjo para espiar e seguir a linha do dedo de Pardal até os telhados da cidade. Não, não, não, repetia em sua cabeça, mas viu: uma luz vermelha, erguendo-se do pavilhão da câmara.
Eles estavam vindo. Soltando-se da cidade, deixando telhados, espirais e domos para trás. A forma cresceu, ficando mais distinta, e logo Sarai pôde ver quatro figuras. Seus corações continuaram batendo forte.
Seu pai. É claro que ele era um dos quatro. Era fácil discerni-lo a distância por causa do tamanho. Sarai engoliu em seco. Ela nunca o tinha visto com os próprios olhos. Uma onda de emoção tomou conta da garota, não era fúria, não era ódio. Era anseio. De ser filha de alguém. Um nó formou-se em sua garganta. Ela mordeu o lábio.
E não demorou para que eles se erguessem perto o bastante para que ela pudesse distinguir os outros passageiros. Ela reconheceu Azareen, e não teria esperado menos da mulher que amou Eril-Fane por tanto tempo. A piloto era a mulher faranji mais velha, e o quarto passageiro...
O quarto passageiro era Lazlo.
Seu rosto estava voltado para cima. Ele ainda estava distante demais para ser visto com clareza, mas ela sabia que era ele.
Por que ele não a tinha ouvido? Por que ele não tinha acreditado nela? Bem, ele acreditaria em pouco tempo. Ondas de calor e frio tomaram seu corpo, seguidas de desespero. O exército de Minya estava do lado de dentro do quarto de Sarai, pronto para emboscar os humanos quando pousassem. Formariam um enxame em volta deles com suas facas, cutelos e ganchos de carne. Os humanos não teriam nenhuma chance. Minya ficou parada lá como a pequena general que era, atenta e pronta.
– Tudo bem – ela disse, olhando para Sarai e Feral, Rubi e Pardal com um olhar frio e brilhante. – Todos saiam de vista – ordenou, e Sarai observou enquanto os outros obedeciam.
– Minya – ela começou.
– Agora – gritou Minya.
Sarai não sabia o que fazer. Os humanos estavam vindo. Um massacre estava prestes a acontecer. Entorpecidamente, ela seguiu os outros, desejando que fosse um pesadelo do qual pudesse acordar.
Não era como voar. Não havia nada de pássaro nessa ascensão constante. Eles flutuaram para cima como um botão de ulola muito grande, com um pouco mais de controle do que as flores levadas pelo vento.
Fora os pontões, que eram de seda vermelha especialmente tratada e continham gás de ulola, havia outra bexiga, esta sob a aeronave, que se enchia de ar por meio de pedais na parte de baixo. Não era para flutuar, mas para impulsionar. Por meio de várias válvulas, Soulzeren podia controlar o impulso em diferentes direções – para frente, para trás, para os lados. Havia um mastro e uma vela, também, que funcionavam exatamente como em um barco a vela se os ventos fossem favoráveis. Lazlo tinha visto os voos de teste em Thanagost, e a visão dos trenós movendo-se pelo céu de vento em popa tinha sido mágica.
Olhando para baixo, notou as pessoas nas ruas e nos terraços ficando cada vez menores até que o trenó flutuou tão alto que a cidade se espalhou como um mapa, chegando à altura da parte mais baixa da cidadela, os pés. Subindo e subindo, passando os joelhos, as longas e lisas coxas até o torso, que parecia enrolado em tecido leve – tudo mesarthium e sólido, mas tão astuciosamente moldado que era possível ver os ossos do quadril como se através de um tecido translúcido.
Seja lá o que Skathis tivesse sido, também fora um artista.
Para lançar a maior sombra, as asas eram abertas em leque em um imenso círculo, com as penas escapulares se tocando na parte de trás, as secundárias formando o meio do anel e as longas primárias alcançando toda a circunferência até ficarem paralelas com os braços estendidos do serafim. O trenó de seda subiu pelo espaço entre os braços, alinhando-se com o peito. Ao olhar para cima abaixo do queixo, uma cor chamou a atenção dos olhos de Lazlo. Verde. Fileiras de verde sob as clavículas, estendendo-se de um ombro até o outro.
Eram as árvores que deixavam cair as ameixas no distrito chamado Quedavento, Lazlo pensou. Ocorreu-lhe se perguntar como, com tão pouca chuva, elas ainda estavam vivas.
– Feral – Sarai implorou –, por favor.
Feral cerrou os dentes. Ele não a olhou. Se ela estivesse pedindo para não fazer alguma coisa, ele se perguntou se seria mais fácil do que fazer alguma coisa. Ele olhou para Minya.
– Isso não precisa acontecer – Sarai continuou. – Se você invocar as nuvens agora mesmo, ainda pode forçá-los a voltar.
– Feche sua boca – Minya ordenou, com a voz fria como gelo, e Sarai viu que a enfurecia o fato de não conseguir fazer com que os vivos a obedecessem tão facilmente quanto os mortos.
– Minya – ela implorou –, se ninguém morrer, há esperança de encontrar outra forma.
– Se ninguém morrer! – repetiu Minya. Ela deu uma risada alta. – Então eu diria que é tarde demais para a esperança, quinze anos.
Sarai fechou os olhos e abriu-os novamente.
– Quero dizer agora. Se ninguém morrer agora.
– Se não for hoje, então será amanhã ou no dia seguinte. Quando há um trabalho desagradável para fazer, é melhor fazer logo. Postergar não vai ajudar.
– Pode ser que ajude – disse Sarai.
– Como?
– Eu não sei!
– Fale baixo – Minya sussurrou. – Você entende que uma condição necessária para essa emboscada é a surpresa?
Sarai a observou, o rosto tão duro e intransigente, e novamente viu Skathis em seus traços, até na forma dele. Se Minya tivesse herdado o poder de Skathis, refletiu, será que seria diferente dele, ou subjugaria toda uma população e justificaria tudo dentro dos rígidos parâmetros de justiça. Como essa criança pequena e traumatizada havia mandado neles por tanto tempo? De repente, isso lhe pareceu ridículo. Será que não teria havido outra forma, desde o início? E se Sarai nunca tivesse produzido nenhum pesadelo? E se, desde o começo, ela tivesse acalmado os medos de Lamento em vez de os alimentado? Será que ela teria acabado com todo esse ódio?
Não. Mesmo ela não podia acreditar nisso. Por duzentos anos ele veio crescendo. O que ela poderia ter esperado alcançar em quinze?
Nunca saberia. Ela nunca tivera uma escolha e agora era tarde demais. Esses humanos morreriam.
E depois?
Quando o trenó de seda e seus passageiros não retornassem? Será que eles mandariam o próximo em seguida, para que mais morressem?
E depois?
Quem sabe quanto tempo isso lhes garantiria, quantos meses ou anos eles teriam essa existência de purgatório antes de um ataque maior e mais ousado – mais aeronaves, Tizerkane saltando de navios como piratas abordando uma embarcação. Ou os estrangeiros inteligentes elaborariam algum plano grandioso para afundar a cidadela.
Ou suponha que os humanos simplesmente se dessem por vencidos e abandonassem Lamento, deixando uma cidade fantasma para eles dominarem. Sarai imaginou-a vazia, todas aquelas ruas labirínticas e camas desarrumadas desertas e sentiu, por um momento de choque, como se estivesse se afogando no vazio. Ela imaginou suas mariposas se afogando no silêncio e aquilo pareceu o fim do mundo.
Apenas uma coisa era certa, o que quer que acontecesse: desse momento em diante, os cinco seriam como fantasmas fingindo que ainda estavam vivos.
Sarai queria dizer tudo isso, mas as palavras enroscaram-se dentro de si. Ela tinha segurado a língua por muito tempo. Era tarde demais. Percebeu um flash de vermelho através da porta aberta e sabia que era o trenó de seda, embora seu primeiro pensamento tenha sido sangue.
Todos morrerão.
A expressão de Minya era predatória, ávida. Sua mãozinha estava pronta para dar o sinal, e...
– Não – Sarai gritou, empurrando-a para o lado e passando correndo. Ela empurrou a multidão de fantasmas, que eram tão sólidos quanto corpos vivos, mas sem o calor. Ela chocou-se com uma faca segurada pela mão de um fantasma. A lâmina deslizou por seu antebraço enquanto ela abria caminho para passar. Era tão afiada que a garota a sentiu apenas como uma linha de calor. O sangue correu rápido e, quando um fantasma agarrou seu pulso, foi difícil segurá-la por estar molhada. Ela se libertou e correu para a porta.
O trenó de seda estava lá, manobrando para pousar. Eles já tinham se virado para sua direção e levaram um susto quando ela apareceu. A piloto estava ocupada com as alavancas, mas os outros três a viram.
As mãos de Eril-Fane e Azareen tocaram na bainha de suas hreshteks.
Lazlo, surpreso, disse:
– Você.
E Sarai, com um soluço, gritou:
– Fujam!
39
INIMIGOS PERIGOSOS
Árvores que deveriam estar mortas. Movimento onde deveria haver quietude. Uma figura na porta da cidadela há muito abandonada.
Onde deveria haver nada além de abandono e antigas mortes, lá estava... ela.
O primeiro instinto de Lazlo foi duvidar de que estivesse acordado. A deusa do desespero estava morta e ele estava sonhando. Mas ele sabia que isso, pelo menos, não era verdade. Ele sentiu o silêncio repentino de Eril-Fane, e percebeu a mão grande congelar no cabo da hreshtek meio desembainhada. A de Azareen não, e libertou a arma com um ruído letal.
Lazlo notou tudo isso em sua visão periférica, pois não conseguia se virar para olhar. Não conseguia tirar os olhos dela.
Ela tinha flores vermelhas nos cabelos. Seus olhos estavam arregalados e desesperados. Sua voz cavou um túnel pelo ar. Era rouca e profunda, como uma velha corrente de âncora passando pelo escovém. A garota estava lutando. Mãos a puxaram de lá de dentro. Mãos de quem? Ela segurou-se no batente da porta, mas o mesarthium era liso, não havia nada para lhe dar apoio e havia muitas mãos, agarrando seus braços, cabelos e ombros. Ela não tinha onde se segurar.
Lazlo quis sair em sua defesa. Seus olhos encontraram-se. O olhar era como a luz de um raio. O grito dela ainda ecoava – Fujam! – e então ela desapareceu dentro da cidadela.
Enquanto outros começaram a sair.
Soulzeren tinha, no instante do grito, revertido o movimento do trenó, fazendo-o mover-se suavemente para trás. “Suavemente” era sua única velocidade, exceto com velas e uma boa brisa. Lazlo ficou em pé, experimentando o significado completo de inutilidade enquanto uma onda de inimigos arremessou-se contra eles, movendo-se com uma fluidez esquisita, voando na direção deles como se tivessem sido lançados. Ele não tinha espada para pegar e nada a fazer a não ser ficar parado, observando. Eril-Fane e Azareen ficaram justamente à frente dele e de Soulzeren, protegendo-os desse impossível ataque. Eram muitos e muito rápidos. Eles saíam como abelhas de uma colmeia. Lazlo não conseguiu entender o que estava vendo. Eles estavam vindo. E vinham com tudo.
Eles estavam ali.
Aço contra aço. O som foi direto para seus corações. Ele não podia ficar parado de mãos vazias – inútil – em uma tempestade de aço. Não havia armas extras. Não havia nada além da vara almofadada que Soulzeren tinha para empurrar o trenó para longe de obstáculos quando manobrava para pousar. Ele agarrou-a e enfrentou o motim.
Os inimigos tinham facas, não espadas – facas de cozinha – e seu curto alcance os deixava bem na zona de ataque dos guerreiros. Se fossem inimigos comuns, teria sido possível defender-se com amplos golpes que cortariam dois ou três de uma vez. Mas não eram inimigos comuns. Eram homens e mulheres de todas as idades, alguns de cabelos brancos, alguns ainda crianças.
Eril-Fane e Azareen estavam desviando dos golpes, lançando as facas de cozinha para longe, deslizando sobre a superfície de metal do terraço que ainda estava debaixo do trenó. Azareen assustou-se ao ver uma velha senhora, e Lazlo viu o braço que segurava a espada hesitar.
– Vovó? – ela disse, atordoada, e ele observou, sem piscar, horrorizado, enquanto a mulher levantava um malho, o metal cravejado para bater carne, e o deixou cair bem na cabeça de Azareen.
Não houve um pensamento consciente. Foram os braços de Lazlo que agiram, levantando a vara a tempo. O malho o acertou, e a vara acertou Azareen. Foi inevitável, a força do golpe – imensa para uma idosa! – era grande demais. Mas a vara era acolchoada com algodão e tecido e impediu que o crânio de Azareen fosse partido. O braço da espada de Azareen voltou à vida. Ela afastou a vara e balançou a cabeça para livrar-se dela, e Lazlo viu...
Ele viu a lâmina cortar o braço da velha, atravessá-lo e... nada aconteceu. O braço, sua substância, simplesmente... rearranjou-se em torno da arma e tornou-se inteiro novamente depois de ter sido atravessado. Não havia nem mesmo sangue.
Tudo ficou claro. Esses inimigos não eram mortais e não podiam ser feridos.
A constatação chocou a todos, justamente quando o trenó enfim se afastou do terraço de volta para o céu aberto, ampliando a distância em relação à mão de metal e ao exército de mortos que ela continha.
Foi uma sensação de alívio, um momento para voltar a respirar.
Mas era falsa. Os inimigos continuavam vindo, saltando do terraço e ignorando a distância. Eles saltaram para o céu aberto e... não caíram.
Não havia escapatória. Os fantasmas bateram contra o trenó ao saírem da imensa mão de metal do anjo, sacando facas e ganchos de carne, e os Tizerkane combateram golpe a golpe. Lazlo ficou entre os guerreiros e Soulzeren, segurando a vara. Um inimigo escapou pelo lado, um homem de bigode, e Lazlo cortou-o na metade, apenas para ver as duas metades recomporem-se como em um pesadelo. O truque eram as armas, ele pensou, lembrando-se do malho. Ele atacou de novo, mirando na mão do homem e arrancando-lhe a faca, que caiu no piso do trenó.
Esse exército anormal não tinha nenhum treinamento, mas o que isso importava? Não havia como combatê-los, eles não morriam. De que vale habilidade diante de uma luta como esta?
O fantasma de bigode, sem arma, lançou-se contra Soulzeren, e Lazlo colocou-se entre eles. O fantasma agarrou a vara. Lazlo continuou segurando-a. Eles lutaram. Logo atrás desse homem era possível ver o restante – o enxame de rostos impassíveis e olhos atormentados – e ele não conseguia soltar a vara. A força do fantasma não era natural. Ele não se cansava. Lazlo ficou sem ação quando o próximo inimigo passou pela guarda dos Tizerkane. Uma jovem com olhos assombrados. Um gancho de carne em suas mãos.
Ela o levantou. E abaixou...
... no pontão de estibordo, furando-o. O trenó balançou. Soulzeren gritou. O gás saiu assoviando pelo furo e o trenó começou a girar.
Foi exatamente neste momento, quando ocorreu a Lazlo que ele morreria – exatamente como havia sido alertado, impossivelmente, em um sonho –, que o fantasma com quem ele estava lutando... perdeu a solidez. Lazlo viu suas mãos, em um momento tão duras e reais na madeira da vara, dissolverem-se através dela. A mesma coisa aconteceu com a mulher. O gancho de carne caiu dentro do trenó, embora ela não o tivesse soltado. E então a coisa mais estranha: um olhar doce de alívio passou pelo seu rosto, mesmo quando ela começou a desaparecer de vista. Lazlo pôde ver através da mulher, que fechou os olhos e sorriu, desaparecendo. O homem de bigode foi o próximo. Um instante e seu rosto havia perdido a impassividade, inundado pelo delírio da liberdade, e então também desapareceu. Os fantasmas estavam se dissolvendo. Haviam ultrapassado alguma fronteira e tinham sido libertados.
Nem todos tiveram sorte. A maioria foi sugada para trás como pipas presas a linhas, fisgada de volta para a mão de metal para observar o trenó, girando devagar, mover-se cada vez mais para longe do seu alcance.
Não havia tempo para divagar. O pontão de estibordo vazava o gás e a quilha estava virando para cima.
– Lazlo! – gritou Soulzeren, empurrando seus óculos para a testa. – Passe o seu peso para bombordo e se segure.
Ele fez como ordenado, seu peso equilibrando a inclinação da aeronave enquanto ela colocava um remendo no furo sibilante que o gancho de carne havia feito. A arma ainda estava no chão, imóvel e letal, assim como a faca que caíra também. Azareen e Eril-Fane estavam respirando pesado, suas hreshteks ainda em punho, ombros erguidos. Eles checa-ram um ao outro em busca de ferimentos. Ambos sangravam com cortes nas mãos e nos braços, mas tudo estava bem. Incrivelmente, ninguém tinha um ferimento sério.
Respirando fundo, Azareen virou-se para Lazlo:
– Você salvou minha vida, faranji.
Lazlo quase disse “de nada”, mas ela não tinha agradecido de fato, então ele segurou-se e apenas assentiu. Ele esperava que fosse um gesto digno, talvez até mesmo um pouco duro. Mas duvidava disso. Suas mãos estavam tremendo.
Tudo nele estava tremendo.
O trenó parou de girar, mas ainda estava inclinado. Havia gás suficiente para uma descida lenta. Soulzeren levantou a vela e a mareou, fazendo a proa virar e apontar em direção à campina fora dos muros da cidade.
Isso foi bom. Teriam tempo para recuperar o fôlego antes que os outros chegassem até eles. A ideia dos outros, e todas as perguntas que fariam, tirou Lazlo de sua euforia de sobrevivência e o levou de volta à realidade. Perguntas. Perguntas requeriam respostas. Quais eram as respostas? Ele olhou para Eril-Fane, indagando:
– O que acabou de acontecer?
O Matador de Deuses ficou um bom tempo com as mãos na grade, apoiando-se pesadamente, olhando para longe. Lazlo não conseguia ver o seu rosto, mas podia interpretar seus ombros. Algo muito pesado os estava pressionando. Muito pesado mesmo. Ele se lembrou da garota no terraço, a garota do sonho, e perguntou:
– Aquela era Isagol?
– Não – respondeu Eril-Fane, abrupto. – Isagol está morta.
Então... quem? Lazlo poderia ter perguntado mais, mas Azareen o fitou e o reprovou com um olhar. Ela estava muito abalada.
Eles ficaram em silêncio pelo resto da descida. O pouso foi suave como um sussurro, a aeronave deslizando pela grama alta até que Soulzeren baixou a vela e enfim pararam. Lazlo a ajudou a prendê-la e puderam colocar os pés novamente na superfície do mundo. O grupo estava fora da sombra da cidadela ali. O sol brilhava e a linha nítida da sombra, morro abaixo, formava uma fronteira visível.
Em contraste com a linha dura onde a escuridão começava, Lazlo vislumbrou o pássaro branco, circulando e inclinando-se. Ele sempre estava lá, ponderou. Sempre observando.
– Eles chegarão logo aqui, imagino – afirmou Soulzeren, tirando os óculos e limpando a testa com o braço: – Ozwin não demora.
O Matador de Deuses concordou. Permaneceu em silêncio mais um momento, recompondo-se antes de pegar a faca e o gancho de carne caídos no chão do trenó e jogá-los longe. Ele respirou fundo e falou:
– Não vou lhes ordenar que mintam – disse devagar –, mas vou pedir-lhes isso. Peço que guardemos isso entre nós. Até que eu possa pensar no que fazer a respeito.
Isso? Os fantasmas? A garota? Essa destruição total de que os cidadãos de Lamento acreditavam sobre a cidadela que já temiam com um pavor frio e debilitante? Que tipo de pavor essa nova verdade inspiraria? Lazlo arrepiou-se só de pensar.
– Não podemos... Não podemos simplesmente não fazer nada – falou Azareen.
– Eu sei – disse Eril-Fane, devastado –, mas se contarmos, haverá pânico. E se tentarmos atacar... – Ele engoliu em seco. – Azareen, você viu?
– É claro que vi – ela sussurrou. Suas palavras eram tão cruas. Ela abraçou-se. Lazlo pensou que deveriam ser os braços de Eril-Fane no lugar. Até ele podia ver isso. Mas Eril-Fane estava preso em seu próprio choque e angústia e guardou os braços grandes para si.
– Quem eram eles? – Soulzeren questionou. – O que eles eram?
Lentamente, como uma dançarina fazendo uma reverência até o chão, Azareen abaixou-se sobre a grama dizendo:
– Todos os nossos mortos voltados contra nós. – Seus olhos eram duros e brilhantes.
Lazlo virou-se para Eril-Fane e perguntou:
– Você sabia? Quando estávamos decolando, perguntei se você tinha certeza de que a cidadela estava vazia, e você disse “vazia dos vivos”.
Eril-Fane fechou os olhos, esfregando-os.
– Eu não quis dizer... fantasmas – respondeu, tropeçando na palavra.
– Eu quis dizer corpos. – Ele parecia quase esconder o rosto nas mãos e Lazlo soube que ainda havia segredos.
– Mas a garota... – Lazlo falou, hesitante. – Ela não era nenhum dos dois.
Eril-Fane afastou as mãos dos olhos.
– Não. – Com angústia e um brilho severo de... algo... talvez redenção, ele sussurrou: – Ela está viva.
PARTE IV
sathaz (SAH.thahz) substantivo
O desejo de possuir o que nunca pode ser seu.
Arcaico; do Conto de Sathaz, que se apaixonou pela lua.
40
MISERICÓRDIA
O que Sarai havia acabado de fazer?
Depois que tudo terminara e os cinco viram, por sobre a beirada do terraço, o trenó de seda escapar para baixo para uma campina verde distante, Minya voltou-se para ela, sem falar nada – incapaz de falar – e o silêncio foi pior do que um grito teria sido. A menina tremia com a fúria mal contida e, quando o silêncio se estendeu, Sarai forçou-se a realmente olhar para Minya. O que ela viu não foi apenas fúria. Foi um deserto de descrença e traição.
– Aquele homem nos matou, Sarai – ela sussurrou, quando finalmente encontrou sua voz. – Você pode esquecer isso, mas jamais esquecerei.
– Nós não estamos mortos. – Naquele momento, Sarai não tinha certeza de que Minya sabia disso. Talvez tudo o que ela conhecesse fossem fantasmas, e não fizesse distinção. – Minya, nós ainda estamos vivos.
– Porque eu nos salvei dele! – ela estava gritando. Seu peito erguia-se. Ela era tão magra, dentro de suas roupas esfarrapadas. – Para que você pudesse salvá-lo de mim? É assim que você me agradece?
– Não! – Sarai explodiu. – Eu te agradeci fazendo tudo o que me dizia para fazer! Eu te agradeci sendo uma vingança para você, toda noite, durante anos, a despeito do que isso fazia a mim. Mas nunca era suficiente. E nunca será suficiente!
Minya parecia incrédula.
– Você está brava por nos manter seguros? Sinto muito que tenha sido difícil para você. Talvez nós devêssemos ter esperado você, e nunca tê-la feito usar seu dom horrível.
– Não é isso que estou dizendo. Você distorce tudo. – Sarai estava tremendo. – Devia ter um outro jeito. Você fez a escolha. Você escolheu os pesadelos. Eu era muito nova para saber. Você me usou como a um de seus fantasmas. – Ela estava se afogando em suas próprias palavras, surpresa consigo mesma por conseguir falar, e percebeu Feral emudecido e boquiaberto.
– Então em troca você me traiu. Você traiu a todos nós. Eu posso ter escolhido por você um dia, Sarai, mas hoje a escolha foi sua. – Seu peito levantava e descia com uma respiração animal. Seus ombros eram frágeis como ossos de pássaro. – E você escolheu. Escolheu a eles! – ela berrou na última parte. Seu rosto ficou vermelho, lágrimas escorriam. Sarai nunca a tinha visto chorar antes. Nunca. Até suas lágrimas eram ferozes e raivosas. Nada dos traços suaves e trágicos que pintavam os rostos de Rubi e Pardal. As lágrimas de Minya tinham raiva, praticamente saltando dos olhos em gotas cheias e gordas, como chuva.
Todos estavam paralisados. Pardal, Rubi, Feral, atordoados. Olhavam de Sarai para Minya, de Minya para Sarai, e pareciam prender a respiração. E quando Minya se virou para eles, apontou para a porta e ordenou:
– Vocês três. Fora daqui! – Eles hesitaram, divididos, mas não por muito tempo. Era Minya que lhes causava medo, seus ataques de raiva, seu desapontamento escaldante, e era a ela que costumavam obedecer. Se Sarai tivesse apresentado-lhes uma escolha naquele momento, se tivesse se mantido firme e defendido suas ações, poderia tê-los conquistado para o seu lado. Mas ela não fez isso. A incerteza estava descrita em seu rosto: os olhos arregalados demais, o lábio tremendo e a forma como mantinha o braço sangrando junto ao corpo.
Rubi segurou em Feral e virou-se junto a ele. Pardal foi a última a sair, olhando temerosa da porta e disse as palavras sinto muito. Sarai viu-a sair. Minya permaneceu parada por mais um momento, fitando Sarai como se ela fosse uma estranha. Quando ela falou novamente, sua voz tinha perdido a estridência, a fúria. Estava monótona e velha:
– O que quer que aconteça agora, Sarai, terá sido culpa sua.
E ela girou nos calcanhares e passou pela porta, deixando Sarai sozinha com os fantasmas.
Toda a raiva foi sugada no seu rastro e deixou um vazio. O que mais havia, quando se tirava a raiva, o ódio? Os fantasmas ficaram paralisados – aqueles que restavam, os que Minya havia puxado de volta, da iminência da liberdade, enquanto os outros saíam de seu alcance e fugiam dela – e eles não podiam virar seus rostos para olhar para Sarai, mas seus olhos concentravam-se nela, e ela pensou ter visto perdão neles, e gratidão.
Pela sua misericórdia.
Misericórdia.
Havia sido misericórdia ou traição? Salvação ou condenação? Talvez fossem todas essas coisas alternando-se como em uma moeda jogada para cima, girando de face em face – misericórdia, traição, salvação, condenação. E como ela cairia? Como tudo aquilo terminaria? Cara, os humanos viveriam. Coroa, os filhos dos deuses morreriam. O resultado fora roubado desde o dia em que nasceram.
Uma frieza tomou conta dos corações de Sarai. O exército de Minya a intimidava, mas o que teria acontecido hoje se ele não estivesse lá? E se Eril-Fane tivesse vindo, esperando encontrar esqueletos, e os encontrasse?
Ela ficou com a certeza desolada de que seu pai teria feito de novo o que fizera há quinze anos. Seu rosto estava fixo em sua mente: assombrado para começar, apenas por retornar a esse lugar de tanto tormento. Então surpreso. Afetado pela visão dela. Ela testemunhara o momento exato em que ele entendeu. Foi muito rápido: o primeiro empalidecer de choque, quando pensou que ela era Isagol, e o segundo, quando percebeu que não era.
Quando entendeu quem ela era.
Horror. Foi isso que ela viu em seu rosto, e nada menos que isso. Ela acreditava que tinha se endurecido para qualquer dor que ele pudesse lhe causar, mas estava errada. Esta foi a primeira vez na vida que o tinha visto com os próprios olhos – não filtrado por meio dos sentidos das mariposas ou conjurado no inconsciente dele, ou de Suheyla, ou de Azareen, mas ele, o homem cujo sangue era metade dela, seu pai – e seu horror ao vê-la havia aberto nela um novo botão de vergonha.
Obscenidade, calamidade. Cria dos deuses.
E no rosto do sonhador? Choque, alarme? Sarai não sabia dizer. Tudo acontecera num piscar de olhos, e o tempo todo os fantasmas estavam puxando-a pela porta, arrastando-a para dentro. Seu braço doía. Havia sangue coagulado do antebraço até os dedos e ainda saindo brilhante da longa linha do corte.
Havia marcas florescendo também, onde os fantasmas tinham-na agarrado. A dor pulsante a fazia sentir que as mãos deles ainda estavam lá. Ela queria Grande Ellen – seu toque suave para limpar e cobrir o ferimento, e sua compaixão. Com determinação, ela fez menção de sair, mas os fantasmas bloquearam o caminho. Por um momento, ela não entendeu o que estava acontecendo. Havia acostumado-se à presença deles, sempre endurecendo-se quando tinha de passar por um grupo, mas nunca tinham interferido a passagem dela. Agora, logo que se dirigiu à porta, eles juntaram-se e a impediram de passar. Ela parou. Seus rostos estavam impassíveis como nunca. Ela sabia que não adiantava falar com eles, como se estivessem sob seu próprio controle, mas as palavras saíram de qualquer maneira.
– O quê? Não tenho permissão para sair?
É claro que eles não responderam, apenas obedecendo ordens, e Sarai não iria a lugar algum.
O dia todo, ninguém veio. Isolada e mais cansada do que nunca, ela lavou o braço com a água que restava no jarro e amarrou-o com uma lingerie que rasgou em tiras. Permaneceu no quarto de dormir, como se estivesse se escondendo dos guardas-fantasmas. Ondas quentes de pânico passavam por ela quando se lembrava, mais uma vez, o caos da manhã e a escolha que fizera.
O que quer que aconteça agora, será culpa sua.
Ela não tivera a intenção de escolher. Em seus corações, nunca havia feito e nunca poderia fazer aquela escolha – humanos no lugar dos seus. Não foi isso que ela fizera. Não era uma traidora, mas tampouco era uma assassina. Andando pra lá e pra cá, ela sentiu como se a vida a tivesse guiado até um beco sem saída e a prendido apenas para lhe ensinar uma lição.
Presa presa presa.
Talvez ela sempre tivesse sido prisioneira, mas não dessa forma. As paredes fecharam-se em torno dela. A garota queria saber o que estava acontecendo lá embaixo em Lamento e qual tipo de alvoroço tinha causado a notícia de sua existência. Eril-Fane já devia ter-lhes contado. Eles estariam reunindo armas e falando em estratégia. Será que voltariam em grande número? Será que conseguiriam? Quantos trenós de seda eles tinham? Havia visto apenas dois, mas parecia fácil construí-los. Ela supôs que era apenas uma questão de tempo até que eles pudessem criar uma força de invasão.
Será que Minya achou que seu exército podia segurá-los para sempre? Sarai imaginou uma vida na qual os cinco continuariam como antes, mas agora sitiados, alertas a ataques em todas as horas do dia ou da noite, repelindo guerreiros, empurrando corpos terraço afora para mergulharem na cidade embaixo como as ameixas de Quedavento. Feral chamaria chuvas para lavar o sangue, e todos sentariam-se para jantar enquanto Minya prendia a nova leva de mortos do dia e os colocaria a seu serviço.
Sarai estremeceu, sentindo-se tão impotente. O dia estava claro e continuou assim. Sua necessidade de lull era forte, mas não havia mais névoa cinzenta esperando por ela, não importava quanto lull bebesse. Ela estava tão cansada que se sentia... surrada, como as solas de sapatos velhos, mas não ousava fechar os olhos. O terror do que a esperava além do limiar da consciência era ainda mais poderoso. Ela não estava bem. Fantasmas fora, horrores dentro e nenhum lugar para onde ir. As paredes azuis brilhantes a cercavam. Ela chorou, esperando o anoitecer, que enfim veio. Seu grito silencioso nunca havia sido uma libertação tão grande. Ela gritou tudo e sentiu como se seu próprio ser se partisse no suave dispersar de asas.
Traduzida em mariposas, Sarai lançou-se para as janelas e espremeu-se para sair. O céu era imenso e havia liberdade nele. As estrelas a chamavam como faróis acesos em um vasto oceano escuro enquanto ela se arremessava dividida em uma centena, no ar vertiginoso. Escapar, escapar. Ela voou para longe dos pesadelos, da privação e das costas viradas de seus iguais. Ela voou para longe do beco sem saída onde sua vida a prendia e insultava. Ela voou para longe de si mesma. Um desejo selvagem a tomou para voar o mais longe que podia de Lamento – uma centena de mariposas, uma centena de direções –, voar e voar até que o nascer do sol chegasse e a transformasse em fumaça e todo seu sofrimento também.
– Mate-se, garota – A velha havia dito. – Tenha piedade de nós todos.
Piedade.
Piedade.
Será que seria piedade, colocar um fim em si mesma? Sarai sabia que aquelas palavras cruéis não tinham vindo das velhas-fantasmas, mas de seu eu mais íntimo, envenenado pela culpa de quatro mil noites de sonhos sombrios. Ela também sabia que em toda a cidade e no monstruoso anjo de metal que havia roubado o céu, ela era a única que conhecia o sofrimento dos humanos e dos filhos dos deuses, e pensou que sua piedade era singular e preciosa. Hoje ela havia evitado um massacre, pelo menos por algum tempo. O futuro era cego, mas ela não podia sentir, verdadeiramente, que seria melhor sem ela. Ela se recompôs de sua dispersão. Desistiu do céu com suas estrelas tais quais alarmes de incêndio e voou para Lamento para descobrir o que sua piedade havia desencadeado.
41
ENCANTAMENTO
A deusa era real e estava viva.
Lazlo havia sonhado com ela antes de saber que os Mesarthim eram azuis e isso parecia esquisito o bastante. Muito mais agora que a tinha visto viva, seu rosto adorável exatamente igual ao que conhecera em seus sonhos. Não era coincidência.
Só podia ser magia.
Quando as carroças chegaram para recolher o trenó de seda e os passageiros, os quatro sustentaram uma história simples, de falha mecânica, que não foi questionada por ninguém. Eles minimizaram o evento a tal ponto que o dia continuou dentro da normalidade, embora Lazlo sentisse que a “normalidade” fora deixada para trás para sempre. Ele assimilou tudo tão bem quanto se podia esperar – considerando que esse “tudo” compreendia a quase morte nas mãos de fantasmas selvagens – e encontrou dentro de si, crescendo em meio à consternação e o medo, uma estranha bolha de contentamento. A garota de seus sonhos não era uma invenção e ela não era a deusa do desespero, e não estava morta. O dia inteiro ele passou virando a cabeça para cima para olhar para a cidadela com novos olhos, sabendo que ela estava lá. Como era possível?
Como tudo aquilo era possível? Quem era ela e como tinha entrado em seus sonhos? Naquela noite, ele estava inquieto quando se deitou para dormir, esperando que ela retornasse. Diferentemente da noite anterior, quando se esparramou com o rosto para baixo na cama, sem camisa e inconsciente, sem nem mesmo amarrar o cordão de suas calças, esta noite ele foi vítima de uma formalidade peculiar: vestiu uma camisa, amarrou o cordão da calça e prendeu os cabelos. Até se olhou no espelho – e sentiu-se um tolo por estar preocupado com a aparência, como se ela fosse de alguma forma vê-lo, embora não tivesse ideia de como funcionava tal magia. Ela estava lá em cima e ele ali embaixo, mas ele não conseguia se livrar da sensação de que estava esperando uma visitante – o que teria sido uma experiência nova para ele em qualquer lugar, mas era particularmente provocativa neste local. Estar deitado na cama, esperando a visita de uma deusa...
Ele corou. É claro que não era assim. Olhou para o teto, uma tensão em seus membros, e sentiu como se estivesse interpretando o papel de alguém adormecido em uma peça. Isso não adiantaria. Era preciso dormir de verdade para sonhar, mas o sono não estava chegando fácil, visto que a mente estava agitada por causa do dia. Havia uma espécie de euforia em quase morrer e não morrer. Acrescente a isso sua ansiedade por saber se ela viria. Ele era todo nervosismo, fascinação, timidez e uma esperança profunda.
Lembrou-se maravilhado de como pegara a mão da garota na noite anterior e segurado-a na sua, sentindo a realidade dela, e a conexão que tinha inflamado entre eles quando ele a pegou. Na realidade, ele jamais teria ousado fazer algo tão corajoso. Mas ele não conseguia se convencer que aquilo não era realidade, à sua maneira. Não havia ocorrido no reino físico, isso era verdade. Sua mão não tinha tocado a mão dela. Mas... sua mente havia tocado a mente dela e isso lhe parecia uma realidade mais profunda, uma intimidade ainda maior. A garota havia se surpreendido quando ele a tocara, seus olhos haviam se arregalado. Fora real para ela também, ele pensou. Seus cílios, lembrou-se, eram de um vermelho-dourado, os olhos de um azul translúcido. E se recordava da maneira com a qual ela o fitara pela primeira vez, como se estivesse paralisada, noites atrás, e novamente na noite passada. Ninguém jamais o olhara daquele jeito. Isso fez com que Lazlo quisesse checar o espelho novamente para ver o que ela teria visto – se talvez seu rosto tivesse melhorado sem que ele soubesse – e o impulso foi tão vaidoso, e nada de seu feitio, que ele cobriu os olhos com o braço e riu de si mesmo.
Sua risada diminuiu ao lembrar-se também do sangue brotando e do aviso dela – “todos morrerão” – e do jeito furioso com que ela tinha lutado à porta da cidadela para alertá-lo mais uma vez.
Ele estaria morto se não fosse por ela.
“Fujam!”, a garota havia gritado enquanto mãos a pegavam, arrastando-a para dentro. Como ela parecia determinada e desesperada! Será que estava bem? Será que se machucara? Em que condições ela existia? Como era sua vida? Havia tanta coisa que ele queria saber. Tudo. Lazlo queria saber tudo e queria ajudar. Em Zosma, quando Eril-Fane falara aos acadêmicos com um semblante sombrio sobre o “problema” de Lamento, o rapaz fora tomado pelo mesmo desejo profundo: de ajudar, como se alguém como ele tivesse alguma chance de resolver um problema como esse.
Ocorreu-lhe, enquanto estava deitado com o braço cobrindo os olhos, que a garota estava presa ao problema de Lamento de formas que ele ainda não conseguia entender. Entretanto, uma coisa estava clara: ela não estava a salvo e não era livre, e o problema de Lamento tinha ficado muito mais complicado.
Quem ela havia desafiado com aquele grito, indagou-se, e qual preço que tivera de pagar por isso? Preocupar-se com a garota dobrou sua ansiedade e afastou ainda mais o sono, então ele temeu que o sono nunca chegasse. O rapaz estava ansioso, com medo de perder sua visita, como se seus sonhos fossem uma porta na qual ela estivesse batendo sem encontrar alguém em casa. Espere, pensou. Por favor, espere por mim. E enfim acalmou-se com a ideia, zombando de si mesmo, de “preocupações caseiras”. Ele nunca recebera um convidado antes, então não sabia como se comportar. Como recebê-la se ela viesse, e onde. Se havia orientações de etiqueta para receber deusas nos sonhos, ele nunca tinha encontrado esse livro na Grande Biblioteca.
Não era apenas uma questão de salas de visita e bandejas de chá – embora houvesse isso também. Se ela viesse na realidade, ele ficaria limitado pela realidade. Mas os sonhos eram algo diferente. Ele era Estranho, o sonhador. Esse era seu domínio, e não havia limites nele.
Sarai observou o sonhador lançar o braço sobre os olhos, ouviu-o dar risada. Ela notou sua estranha imobilidade, reconhecendo-a como uma inquietação contida e esperou impacientemente até que se atenuasse e ele dormisse. Sua mariposa estava pousada em um canto sombreado do batente da janela, onde esperou por um longo tempo antes que ele parasse de se mexer, tentando determinar quando havia mesmo cruzado a fronteira. Seu braço ainda estava apoiado sobre o rosto, não podendo ver os olhos, ela não sabia dizer se ele estava fingindo. Uma emboscada estava em sua mente, por motivos óbvios, e ela não conseguia reconciliar a violência da manhã com o silêncio desta noite.
Sarai não tinha encontrado nada do pânico ou a preparação que esperava. O trenó de seda avariado fora levado de volta ao seu pavilhão e lá ele estava abandonado, com um pontão vazio. A mecânica e piloto estava dormindo em sua cama, com a cabeça encostada no ombro do marido, e embora o caos da manhã tivesse entrado em seus sonhos – e nos dele, em menor medida – os demais forasteiros estavam despreocupados. A conclusão de Sarai, a partir das informações de suas mariposas da primeira safra de sonhos da noite, era que Soulzeren tinha contado ao marido e a ninguém mais sobre o... encontro... na cidadela.
Os Zeyyadin estavam da mesma forma no escuro. Nada de pânico. Nenhuma consciência que Sarai pudesse perceber, da ameaça que pairava sobre suas cabeças.
Será que Eril-Fane mantivera segredo? Por que faria isso?
Se ela pudesse perguntar-lhe...
Na verdade, ao mesmo tempo em que sua mariposa estava empoleirada na janela observando o sono chamar Lazlo Estranho, Sarai estava vendo-o não chamar o Matador de Deuses.
Ela o tinha encontrado, embora não estivesse o procurando, pois acreditara que ele estaria desaparecido como em todas aquelas noites em que Sarai visitou Azareen e a encontrou sozinha.
Na verdade, ela ainda estava sozinha. Ela estava na cama, enrolada em uma bola com as mãos sobre o rosto, acordada, enquanto Eril-Fane também estava acordado na pequena sala de estar, cadeiras empurradas para o lado e um colchonete estendido no chão. No entanto, ele não estava deitado nele. Suas costas estavam encostadas na parede e seu rosto estava apoiado nas mãos. Dois cômodos, a porta fechada entre eles. Dois guerreiros com o rosto nas mãos. Sarai, observando-os, imaginou que tudo seria melhor se os rostos e as mãos simplesmente... mudassem de lugar. Ou seja, se Azareen segurasse o rosto de Eril-Fane enquanto ele segurava o dela.
Os dois estavam angustiados e imóveis, quietos e determinados a sofrerem sozinhos! Do ponto de vista de Sarai, ela observava duas poças privadas de sofrimento tão próximas que eram quase adjacentes – como os cômodos conectados com a porta fechada entre eles. Por que não abrir a porta, abrir os braços e fechá-los em torno um do outro? Será que eles não entendiam como, na estranha química das emoções humanas, os sofrimentos dele e dela, misturados, poderiam... compensar um ao outro?
Pelo menos por um tempo.
Sarai queria sentir desprezo por ambos serem tão tolos, mas sabia demais para desdenhá-los. Por anos vira o amor de Azareen por Eril--Fane arruinado ainda no botão, como as orquídeas de Pardal por uma das tempestades de Feral. E por quê? Porque o Matador de Deuses era incapaz de amar.
Por causa do que Isagol lhe causara.
E como Sarai tinha passado a compreender – ou melhor, por anos tinha se recusado a entender até que enfim não houvesse como negar –, por causa do que ele tinha feito. O que ele tinha se forçado a fazer para garantir a liberdade futura de seu povo: matar crianças e, com elas, sua própria alma.
Isso foi o que enfim atravessou sua cegueira. Seu pai salvara o próprio povo e destruído a si mesmo. Por mais forte que parecesse, dentro dele era uma ruína, ou talvez uma pira funeral, como a Cúspide – só que em vez de ossos derretidos dos ijji, ele era feito dos esqueletos de bebês e crianças, incluindo, como ele sempre tinha acreditado, sua própria filha: ela. Esse era o seu remorso. Isso o sufocava como ervas daninhas e podridão, e colônias de insetos, sujando-o e manchando-o, estagnado e fétido, de forma que nada tão nobre quanto o amor, ou o perdão, jamais pudesse ter espaço dentro dele.
A ele era até mesmo negado o alívio das lágrimas. Eis outra coisa que Sarai sabia melhor do que qualquer um: o Matador de Deuses era incapaz de chorar. O nome da cidade era uma provocação. Em todos esses anos, ele fora incapaz de produzir lágrimas. Quando Sarai era jovem e cruel, ela tinha tentado fazê-lo chorar, sem sucesso.
Pobre Azareen. Vê-la encolhida daquele jeito e desnuda de toda sua armadura era como ver um coração retirado do corpo, posto em carne viva em uma tábua, e rotulado de Aflição.
E Eril-Fane, salvador de Lamento, por três anos um brinquedo da deusa do desespero? Qual seria seu rótulo, exceto Vergonha?
Então, a Aflição e a Vergonha moravam em quartos contíguos, com a porta fechada entre eles, segurando a dor em seus braços em vez de juntos. Sarai observou-os, esperando que seu pai adormecesse para poder lhe enviar uma sentinela – se ela ousasse – e saber o que ele estava escondendo em seus corações enquanto escondia o rosto em suas grandes mãos. Ela não podia esquecer o olhar de horror quando a avistara na porta da cidadela, mas tampouco podia entender por que ele tinha guardado o segredo sobre ela.
Agora que ele sabia que ela estava viva, o que planejava fazer a respeito?
E então lá estavam os quatro que tinham voado até a cidadela e vivido para contar a história – embora eles aparentemente não tivessem feito isso. Sarai observou todos eles, os que dormiam e os que estavam acordados. Ela também estava em vários outros lugares, mas a maior parte de sua atenção estava dividida entre seu pai e o sonhador.
Quando teve certeza de que Lazlo enfim caíra no sono – e movido o braço de forma que ela pudesse ver seu rosto –, direcionou a mariposa do batente da janela até ele. Mas ela não conseguiu tocá-lo, e pairou no ar acima dele. Dessa vez seria diferente, sabia. Na cidadela, andando de um lado para o outro, sentia-se tão apreensiva como se estivesse mesmo no quarto com ele, pronta para se assustar com o mínimo movimento.
Com os sentidos de sua mariposa ela sentiu o cheiro de sândalo dele e o aroma puro de almíscar. Sua respiração era profunda e compassada. Tinha ciência de que ele sonhava. Seus olhos movimentavam-se sob as pálpebras, e seus cílios, fechados – tão densos e brilhantes quanto o pelo de gato-selvagem – moviam-se suavemente. E então, ela não podia esperar nenhum instante a mais. Com uma sensação de expectativa e apreensão, cruzou a pequena distância até sua fronte, pousou na pele morna e entrou em seu mundo.
Ele a esperava.
Ele estava bem ali, parado em pé e esperando como se soubesse que ela viria.
Sua respiração parou. Não, ela pensou. Não como se ele soubesse. Mas como se desejasse.
A mariposa assustou-se e rompeu o contato. Ele estava perto demais; ela não estava preparada. Mas aquele piscar de olhos capturou o momento em que a preocupação dele se transformou em alívio.
Alívio. Ao vê-la.
Quando pairou acima dele, com seus corações batendo distantemente em um ritmo selvagem, Sarai percebeu como aguardava pelo pior, certa de que hoje enfim ele devia ter aprendido a sentir aversão a ela – o sentimento que era apropriado. Contudo, não notara nada disso naquele vislumbre. Então encheu-se de coragem e retornou à sua fronte.
Lá ainda estava ele, e ela viu novamente a transformação de preocupação em alívio.
– Sinto muito – ele pediu, com sua voz rouca.
Ele estava mais longe agora. Não tinha se movido, exatamente, mas mudado a concepção de espaço no sonho para não a pressionar no limiar. Ambos estavam parados à margem de um rio, e não era o tumultuoso Uzumark, mas sim um riacho mais tranquilo. Nem Lamento, nem a Cúspide, nem a cidadela estavam visíveis, mas um bom tanto de céu rosa pálido e, sob ele, esse trecho amplo de água verde e sem ondulações, navegada por pássaros com longos pescoços curvos. Ao longo das margens, estendendo-se como se para pegar seus reflexos, havia fileiras de casas rústicas de pedra com as janelas pintadas de azul.
– Eu te assustei – disse Lazlo. – Por favor, fique.
Era engraçada a ideia de que ele podia assustá-la. A Musa dos Pesadelos que atormenta Lamento, assustada em um sonho por um meigo bibliotecário?
– Foi só um sobressalto – ela respondeu, envergonhada. – Não estou acostumada a ser cumprimentada. – Ela não explicou que não estava acostumada a ser vista, que tudo isso lhe era novo ou que as batidas de seus corações estavam se emaranhando, entrando no ritmo e saindo como crianças aprendendo a dançar.
– Eu não queria perdê-la, se você viesse – disse Lazlo. – Esperava que você viesse.
Lá estava, a magia em seus olhos, brilhando como o sol na água. Isso provoca algo em uma pessoa, ser olhada dessa forma – especialmente em alguém acostumada à aversão. Sarai tinha uma nova consciência desconcertante de si mesma, como se nunca tivesse percebido quantas partes móveis tinha, todas para serem coordenadas com alguma graça. Isso funcionava por si só desde que ela não pensasse a respeito. Contudo, bastava começar a se preocupar que tudo dava errado. Como tinha passado a vida inteira sem perceber a estranheza dos braços, a forma como eles simplesmente ficam pendurados nos ombros como carne na janela de um açougue? Ela cruzou-os – sem elegância, ela achou, como uma amadora, escolhendo a saída mais fácil.
– Por quê? – ela perguntou. – O que você quer?
– Eu... Eu não quero nada – ele apressou-se em dizer. É claro, era uma pergunta injusta. Afinal, ela estava invadindo seu sonho, não o contrário. Ele tinha mais direito de perguntar o que ela queria lá. Em vez disso, falou: – Bem, quero saber se você está bem. O que aconteceu com você lá em cima? Você se machucou?
Sarai piscou. Se ela tinha se machucado? Depois do que ele tinha visto e sobrevivido, estava perguntando se ela estava bem?
– Estou bem – respondeu, um pouco rouca devido à dor inexplicável na garganta. Em seu quarto, ela segurou o braço machucado. Ninguém na cidadela tinha ligado para o fato de ela ter se machucado. – Você devia ter me ouvido. Tentei avisá-lo.
– Sim, bem. Achei que você era um sonho. Mas aparentemente não é. – Ele fez uma pausa, incerto. – Você não é, né? Embora, é claro que, se você fosse, e me dissesse que não era, como eu saberia?
– Não sou um sonho – afirmou Sarai. Havia amargura em sua voz. – Sou um pesadelo.
Lazlo soltou uma risadinha incrédula.
– Você não é minha ideia de pesadelo – falou, corando um pouco. – Estou feliz que seja real – ele acrescentou, corando muito. E ambos ficaram parados frente à frente, embora não estivessem olhando um para o outro, mas sim para as pedrinhas do leito do rio entre seus pés.
Lazlo viu que a garota estava descalça e fechava os dedos dos pés em volta das pedrinhas e da lama debaixo deles. Ele estivera pensando nela o dia todo e tinha pouco para continuar, mas ela claramente tinha sido uma surpresa para Eril-Fane e Azareen, o que o levou a supor que sua vida inteira tinha sido vivida na cidadela. Será que ela já tinha colocado os pés no mundo? Com isso em mente, ver seus dedos dos pés azuis curvando-se na lama do rio afetaram-no com pungência.
Depois disso, ver seus tornozelos azuis nus e suas panturrilhas finas lhe causaram grande encantamento, tanto que ele corou e desviou o olhar. Pensou enfim, no meio de tudo, que poderia ser ridículo oferecer algo para beber, mas não sabia o que mais fazer, então arriscou:
– Você aceitaria... aceitaria um chá?
Chá?
Sarai percebeu, pela primeira vez, a mesa à margem do rio. Estava na parte rasa, os pés perdidos em pequenos redemoinhos espumantes que se encaracolavam contra a margem. Havia uma toalha branca e alguns pratos cobertos, junto com uma chaleira e duas xícaras. Um pouco de vapor escapou do bico da chaleira, e ela percebeu que podia sentir o aroma, picante e floral, em meio aos odores terrosos do rio. O que eles chamavam de chá na cidadela era apenas água com ervas, como hortelã e erva-cidreira. Ela tinha uma memória distante do sabor de chá de verdade, enterrada entre suas memórias de açúcar e bolo de aniversário. Fantasiara sobre isso algumas vezes – a bebida propriamente dita, mas isso também. O ritual, de sentar e beber, que parecia para ela, de fora, o coração da cultura. Compartilhar o chá e a conversa (e, era de se esperar, bolo). Ela olhou para a arrumação incongruente com a paisagem ao redor e depois para Lazlo, que prendeu uma parte do lábio inferior entre os dentes e a observava, ansioso.
E Sarai percebeu que fora do sonho seu lábio real estava da mesma forma, preso entre os dentes. O nervosismo era palpável e a desarmou. Ela viu que o rapaz gostaria de agradá-la.
– Isso é para mim? – ela perguntou a meia-voz.
–Desculpe-mesefizalgumacoisadeerrado–explicou-se,embaraçado. – Nunca tive um convidado antes, e não tenho certeza de como fazer.
– Um convidado – Sarai repetiu com voz fraca. Aquela palavra. Quando ela entrava nos sonhos, era uma invasora, uma saqueadora. Nunca havia sido convidada antes. Nunca havia sido bem-vinda. A sensação que se abateu sobre ela era nova – e extravagantemente agradável.
– E eu nunca fui convidada antes – ela confessou. – Então não sei mais do que você.
– Isso é um alívio. Podemos inventar e fazer como quisermos.
Ele puxou a cadeira para ela, que moveu-se para sentar. Nenhum dos dois tinha feito essa simples manobra em terra, muito menos na água, e deram-se conta ao mesmo tempo que havia espaço para errar. Bastava empurrar a cadeira rápido demais ou devagar demais, ou sentar-se cedo demais ou com muito peso, que desventuras poderiam acontecer, talvez até um batismo não intencional do traseiro. Mas saíram-se bem, Lazlo sentou-se na cadeira oposta e, simples assim, eles eram duas pessoas sentadas a uma mesa, mirando-se timidamente através do vapor da chaleira.
Dentro de um sonho.
Dentro de uma cidade perdida.
À sombra de um anjo.
À beira da calamidade.
Mas tudo isso – cidade, anjo e calamidade – parecia a mundos de distância naquele momento. Cisnes passaram como navios elegantes, e o vilarejo era todo pastel, com trechos de sombra azul. O céu era da cor dos pêssegos corados e a linguagem dos insetos sussurrava na grama da campina.
Lazlo considerou a chaleira. Parecia muito pedir que suas mãos derramassem, firmes, o chá nas xícaras delicadas que havia conjurado, então ele fez com que a chaleira virasse sozinha, tarefa que foi cumprida admiravelmente, como se feita por um mordomo invisível. Apenas uma gota pingou fora, manchando a toalha branca, que imediatamente tornou-se limpa de novo.
Imagine, ele pensou, ter esse poder fora do sonho. E então achou engraçado que a limpeza da toalha de mesa tivesse dado origem a esse pensamento, e não a criação de um vilarejo inteiro e um rio com pássaros e as montanhas a distância, ou a surpresa que eles mantinham guardada.
Ele já tivera outros sonhos lúcidos, mas nunca tão lúcidos quanto este. Desde que chegara a Lamento, seus sonhos tinham sido excepcionalmente vívidos. Perguntou-se se seria a influência dela que tornava essa clareza possível. Ou sua própria atenção e expectativa o deixavam nesse estado de consciência elevada?
Eles pegaram as xícaras. Era um alívio para ambos ter algo a fazer com as mãos. Sarai experimentou o primeiro gole, não soube dizer se o sabor – defumado e floral – era sua própria memória de chá, ou se Lazlo estava moldando a experiência sensorial dentro do seu sonho. Será que funcionava assim?
– Não sei seu nome – ele lhe disse.
Sarai nunca, em toda sua vida, tinha ouvido essa pergunta ou dado a resposta a esse questionamento pois nunca havia conhecido alguém. Todos a quem conhecia, conhecera desde sempre – exceto pelos fantasmas capturados, que não eram exatamente afeitos a apresentações.
– É Sarai – respondeu.
– Sarai – ele repetiu, como se o estivesse saboreando. Sarai. O gosto, ele pensou, mas não disse, era de chá – complexo, delicado e não doce demais. Lazlo a fitou, verdadeiramente. Jamais, no mundo, olharia para uma mulher jovem de um jeito tão direto e intenso, mas, de certa forma, isso era aceitável aqui, como se tivessem se encontrado com a intenção tácita de se conhecerem.
– Você irá me falar? – ele indagou. – Sobre você?
Sarai segurou a xícara com ambas as mãos. Respirou o vapor quente enquanto a água fria fazia redemoinhos em volta de seus pés.
– O que Eril-Fane te contou? – ela quis saber, cautelosa.
Através dos olhos de outra mariposa, observou que seu pai não estava mais sentado encostado na parede, agora se movera para a janela aberta da sala de Azareen e estava inclinado para fora, olhando para a cidadela. Será que ele a estava imaginando lá em cima? E, se sim, o que estaria pensando? Se ele dormisse, ela poderia descobrir. Ela não conseguia descobrir a partir de seu rosto, que era como uma máscara mortuária: severo e sem vida, com buracos no lugar dos olhos.
– Ele apenas disse que você não é Isagol – Lazlo respondeu. E fez uma pausa. – Você é... filha dela?
Sarai levantou o olhar para ele.
– Ele disse isso?
Lazlo balançou a cabeça.
– Eu imaginei... Seus cabelos. – Ele havia imaginado outra coisa também. Hesitante, falou: – Suheyla me disse que Eril-Fane era o companheiro de Isagol.
Sarai não disse nada, mas a verdade estava no seu silêncio e em seu esforço orgulhoso para não demonstrar nenhuma dor.
– Ele sabia de você? – Lazlo perguntou, inclinando-se para a frente. – Se ele sabia que era pai...
– Ele sabia. – Sarai falou logo. A meio quilômetro dali, o homem em questão esfregou os olhos com um cansaço infinito, mas não os fechou. – E agora ele sabe que ainda estou viva. Ele disse o que pretende fazer?
Lazlo balançou a cabeça.
– Ele não disse muita coisa. Pediu para não contarmos a ninguém o que aconteceu lá em cima. Sobre você ou qualquer outra coisa.
Sarai imaginou isso. O que ela queria saber era o porquê, e o que vinha depois, mas Lazlo não sabia lhe responder e Eril-Fane ainda estava acordado. Azareen por fim dormira, e Sarai pousou uma sentinela na curva de sua bochecha manchada de lágrimas.
Entretanto, não encontrou respostas. Em vez disso, ela estava mergulhada na violência da manhã. Ela ouviu seu próprio grito de “fujam!” e sentiu o terror ameaçando, cutelos e ganchos de carne e a face de sua própria avó – a avó de Azareen – contorcida em um ódio pouco familiar. A cena repetiu-se inúmeras vezes, impiedosa, com uma diferença terrível: no sonho, as espadas de Azareen eram pesadas como âncoras, pesando em seus braços enquanto ela lutava para defender-se do ataque que vinha da mão do anjo. Ela estava lenta demais. Era um pânico furioso e lento, e inimigos invencíveis, e o resultado não era tão feliz quanto havia sido naquela manhã.
No sonho de Azareen, todos eles morriam, como Sarai tinha dito a Lazlo que aconteceria.
Ela ficou em silêncio na beira do rio, sua atenção atraída para longe. Lazlo, observando que o tom azul de seu rosto tinha se apagado um pouco, perguntou:
– Você está bem?
Ela assentiu, rápido demais. Acabei de ver você morrendo, não falou, mas teve dificuldade de afastar a imagem da mente. O calor de sua testa debaixo da mariposa a confortou, assim como vê-lo do outro lado da mesa. O Lazlo real, o Lazlo do sonho, vivo por causa dela. Ela entendeu que estava tendo uma visão dos assassinatos que evitou e qualquer vergonha que tivesse sentido com o sermão de Minya mais cedo, a partir daquele momento, deixou de sentir.
Com destreza, ela assumiu o controle do pesadelo de Azareen: tornou as armas da guerreira mais leves e retardou o ataque enquanto o trenó de seda flutuava para fora do alcance. Finalmente, ela evanesceu os fantasmas, começando pela avó de Azareen, infundindo o sonho com os suspiros de alívio deles. Os mortos estavam livres e os vivos estavam a salvo e aquele era um fim para o sonho.
Sarai terminou o chá. A chaleira encheu a xícara mais uma vez. Ela agradeceu como se o bule estivesse vivo e então seu olhar demorou-se sobre os pratos cobertos.
– Então – ela perguntou, lançando um olhar para Lazlo. – O que tem aí?
42
DEUS OU MONSTRO, MONSTRO OU DEUS
Lazlo tinha pouca experiência a mais com bolos do que Sarai, então esta foi uma das coisas que inventaram juntos, “da forma que queriam”. Era uma espécie de jogo. Um imaginava os conteúdos do prato e o outro o descobria com um pequeno floreio dramático. Descobriram que podiam conjurar doces de aparência esplêndida, mas não tinham tanto sucesso no que dizia respeito ao sabor. Ah, os bolos não eram ruins. Eles eram doces, pelo menos – essa parte era fácil. Mas era uma doçura insossa, sonhada por órfãos que ficavam com os rostos colados nas janelas das docerias (metaforicamente, pelo menos), e nunca provaram nada.
– Eles são todos parecidos – lamentou Sarai, depois de experimentar uma garfada de sua última criação. Era uma maravilha de se ver: três camadas altas cobertas de cor-de-rosa com pétalas de açúcar, alto demais para caber debaixo da cobertura que o tampava.
– Um truque mágico – Lazlo falou quando o bolo pareceu crescer ao levantar a tampa.
– Tudo aqui é um truque mágico – Sarai completou.
Mas suas receitas podiam ter menos magia e mais realidade. A imaginação, como Lazlo observara anteriormente, está presa, de algum modo, ao conhecido, e ambos eram tristemente ignorantes quanto aos bolos.
– Esses devem ser bons – sugeriu Lazlo, experimentando de novo. – Suheyla fez para mim e acho que me lembro muito bem do sabor.
E era melhor: uma massa de mel cheia de nozes verde-claras e geleia de pétalas de rosa. Não era tão bom quanto o bolo de verdade, mas pelo menos tinha uma especificidade que faltava aos outros, e embora pudessem facilmente desejar que seus dedos ficassem limpos, parecia um triste desperdício de mel imaginário, por isso ambos estavam inclinados a lambê-los.
– Acho que não devemos mais tentar nenhum banquete de sonho – disse Lazlo, quando a tentativa seguinte se provou pouco inspiradora mais uma vez.
– Se fizermos isso, posso fornecer sopa de kimril – afirmou Sarai.
– Kimril? O que é isso?
– Uma raiz muito honrada – ela explicou. – Não tem nenhum sabor para motivar a gula, mas o mantém vivo.
Houve uma pequena pausa enquanto Lazlo considerava as questões práticas da vida na cidadela. Ele estava relutante em abandonar a diversão doce e a leveza que ela tinha levado à sua convidada, mas não podia sentar ali com essa visão dela e não se perguntar sobre a pessoa real, a quem ele tinha visto tão brevemente e sob circunstâncias tão terríveis.
– Ela a manteve viva? – ele perguntou.
– Sim. Pode-se dizer que é um item básico. A horta da cidadela não tem muita variedade.
– Vi árvores frutíferas – falou Lazlo.
– Sim. Nós temos ameixas, graças ao jardineiro. – Sarai sorriu. Na cidadela, no que dizia respeito à comida, agradeciam ao “jardineiro” enquanto outros agradecem a deus. Eles tinham uma dívida ainda maior com a Aparição por aquele monte de tubérculos de kimril que tinham feito toda a diferença. Tais eram as divindades na cidadela dos deuses mortos: um obscuro jardineiro humano e um pássaro antissocial. E, é claro, nada disso importaria sem os dons de Pardal e Feral para nutrir e regar o pouco que tinham. Quão inatingível a cidadela parecia vista debaixo, ela pensou, e mesmo assim como era tênue a vida deles nela.
Lazlo prestara atenção no pronome, no plural.
– Nós? – perguntou casualmente, como se não fosse uma dúvida monumental. Você está sozinha lá em cima? Existem outros como você?
Evasiva, Sarai voltou sua atenção ao rio. Bem onde ela olhou, um peixe saltou, com uma iridescência em suas escamas. Ele mergulhou novamente, saindo de vista. Será que faria alguma diferença, se perguntou, se Lazlo e Eril-Fane descobrissem que havia mais filhos dos deuses vivos na cidadela? A Regra havia sido quebrada. Havia “evidência de vida”. Será que importava saber quanta vida? Pareceu a ela que sim e, de qualquer forma, ela sentia como se fosse uma traição entregar os outros, então falou:
– Os fantasmas.
– Fantasmas comem ameixa?
Tendo se decidido a mentir, ela fez isso descaradamente.
– Vorazmente.
Lazlo deixou passar. Ele queria saber sobre os fantasmas, é claro, e por que estavam armados com utensílios de cozinha, atacando ferozmente seus próprios familiares, mas começou com uma questão um pouco mais fácil, perguntando como foram para lá.
– Imagino que todo mundo precisa estar em algum lugar – respondeu Sarai, esquivando-se.
Lazlo concordou, pensativo.
– Embora alguns tenham mais controle sobre o onde do que outros.
Ele não se referiu aos fantasmas. Inclinou a cabeça um pouco e olhou fixamente para Sarai, que sentiu a pergunta se formando. Ela não sabia que palavras usaria, mas a essência se resumia a por quê. Por que você está lá em cima? Por que você está presa? Por que é esta sua vida? Por que tudo em relação a você? E ela queria lhe contar, mas sentiu que ela mesma tinha uma pergunta brotando dentro de si. Parecia um pouco com o brotar das mariposas ao cair da tarde, mas era algo mais perigoso do que mariposas. Era esperança. Era: você pode me ajudar? Pode me salvar? Pode salvar a nós?
Quando ela descia a Lamento para “encontrar” os convidados do Matador de Deuses, não tinha parâmetros para imaginá-lo. Um... amigo? Um aliado? Um sonhador em cuja mente a melhor versão do mundo crescia como um estoque de sementes. Se ao menos aquilo pudesse ser transplantado para a realidade, a garota desejou, mas não podia. Quem sabia melhor como o solo de Lamento era venenoso do que ela que o havia envenenado por dez longos anos?
Então interrompeu a quase pergunta dele e indagou:
– Falando sobre onde, o que é este lugar?
Lazlo não insistiu. Ele tinha paciência para mistérios. Contudo, todos estes anos os mistérios de Lamento nunca tiveram a urgência deste. Isso era vida ou morte. Quase tinha sido a sua morte. Mas era preciso conquistar a confiança dela. Ele não sabia como fazer isso, então mais uma vez buscou refúgio nas histórias.
– Ah, bem. Estou feliz que tenha perguntado. Esse é um vilarejo chamado Zeltzin. Ou pelo menos é assim que imagino que um vilarejo chamado Zeltzin se pareça. É um lugar comum. Bonito, mas não excepcional, embora haja uma distinção.
Seus olhos brilharam. Sarai descobriu-se curiosa analisando ao redor perguntando-se qual seria essa distinção.
Mais cedo, enquanto estava tentando dormir, a primeira ideia de Lazlo foi criar um tipo elegante de sala de estar para recebê-la, caso ela viesse. Parecia o jeito mais apropriado de fazer as coisas, mesmo que um pouco enfadonho. Por algum motivo, a voz de Calixte apareceu em sua mente.
“Bela e cheia de monstros”, ela dissera. “Todas as melhores histórias são assim”.
E ela estava certa.
– Alguma ideia? – ele perguntou a Sarai.
Ela balançou negativamente a cabeça. Seus olhos também brilhavam.
– Bem, eu também posso te contar – disse Lazlo, divertindo-se. – Ali há uma entrada de mina que leva ao mundo subterrâneo.
– O mundo subterrâneo? – Sarai repetiu, esticando o pescoço na direção que ele apontou.
– Sim, mas essa não é a distinção.
Ela estreitou os olhos.
– Então qual é?
– Também posso te contar que as crianças aqui nascem com dentes e roem ossos de pássaro nos berços.
Ela estremeceu.
– Isso é horrível.
– Mas essa tampouco é a distinção.
– Você não vai me contar? – ela perguntou, ficando impaciente.
Lazlo balançou negativamente a cabeça. Ele estava sorrindo. Isso era divertido.
– Está um silêncio aqui, você não acha? – ele perguntou, provocando-a. – Pergunto-me aonde foi todo mundo.
Estava silencioso. Os insetos tinham parado de zumbir. Havia apenas o som do rio agora. Atrás do vilarejo, campinas estendiam-se até uma cadeia de montanhas que, de longe, pareciam cobertas de uma pelagem escura. Montanhas que pareciam prender a respiração, Sarai pensou. Ela sentiu uma quietude sobrenatural e segurou sua respiração também. E então... as montanhas exalaram, e ela também.
– Ohhh! – ela soltou, espantada. – Isso é...?
– A mahalath – explicou Lazlo.
A névoa de cinquenta anos que produzia deuses ou monstros. Ela estava chegando. Era a neblina – línguas de vapor branco deslocando-se entre as montanhas de pele escura –, mas movia-se como uma coisa viva, com uma inteligência curiosa de caça. Ao mesmo tempo leve e densa, havia certa agilidade nela, quase serpentina. Diferente da neblina, ela não meramente se espalhava e parava, caindo, mais pesada que o ar. Aqui e ali, cachos brancos pareciam erguer-se e espiar em volta antes de baixar novamente no fluxo da maré, como cristas de ondas sugadas de volta à rebentação. Ela estava derramando-se – derramando a si mesma –, deslizando gloriosa e inexoravelmente sobre os declives da campina em um trajeto direto até o vilarejo.
– Você já brincou de imaginar? – Lazlo perguntou a Sarai.
Ela deu risada.
– Não assim. – Ela estava alegre e assustada.
– Devemos fugir? Ou ficamos e nos arriscamos?
A mesa de chá havia desaparecido, as cadeiras e os pratos também. Sem perceber a transição, os dois estavam em pé, molhados até os joelhos no rio, observando a mahalath engolir as casas mais longínquas do vilarejo. Sarai teve de se lembrar de que nada daquilo era real. Era um jogo dentro de um sonho. Mas quais eram as regras?
– Será que ela nos mudará? – ela quis saber. – Ou nós nos mudaremos?
– Não sei – respondeu Lazlo, para quem isso também era novo. – Acho que podemos escolher o que nos tornaremos, ou podemos deixar o sonho escolher, se é que isso faz sentido.
E fazia. Eles podiam exercer controle, ou ceder às suas mentes inconscientes. De qualquer forma, não era uma névoa lhes refazendo, mas eles mesmos. Deus ou monstro, monstro ou deus. Sarai teve um pensamento ruim.
– E se você já é um monstro? – ela perguntou em um sussurro.
Lazlo a fitou e o encanto em seus olhos dizia que ela não era nada disso.
– Qualquer coisa pode acontecer – ele afirmou. – É esse o ponto.
A névoa espalhou-se mais. Ela engoliu os cisnes um a um.
– Ficar ou partir? – Lazlo perguntou.
Sarai ficou de frente para a mahalath. Ela deixou-a vir. E à medida que os primeiros cachos se enrolaram em torno dela como braços, ela procurou a mão de Lazlo e a segurou firme.
43
UM DEMÔNIO SINGULARMENTE FORMIDÁVEL
Dentro da névoa, dentro do sonho, um homem e uma mulher jovens foram refeitos. Mas, primeiro, foram desfeitos, seus contornos desaparecendo como o pássaro branco evanescente, a Aparição, à medida que ele sumia na pele do céu. Qualquer noção de realidade física escapara – exceto por uma: suas mãos, unidas, permanecendo tão reais quanto osso e nervo. Não havia mais mundo, margem de rio ou água, nada sob seus pés – e nada de pés. Havia apenas aquele ponto de contato e, mesmo quando se soltaram de si mesmos, Lazlo e Sarai seguraram-se um no outro.
Assim que a névoa passou em seu caminho e os cisnes refeitos desfilaram sua magnificência no humilde rio verde, ambos viraram-se a fim de se encarar, com os dedos entrelaçados e vislumbraram, vislumbraram, vislumbraram.
Olhos abertos e brilhantes, olhos que não mudaram. Os dele continuavam azul-acinzentados, os dela, azuis. E os cílios dela ainda eram acastanhados cor de mel, e os dele de um preto tão reluzente quanto a pele de um gato-selvagem. Seus cabelos ainda eram escuros, e os dela ainda eram cor de canela, o nariz dele era vítima de contos de fadas e a boca de Sarai era suculenta como uma ameixa.
Ambos estavam iguais de todas as formas, exceto uma.
A pele de Sarai era marrom, e a de Lazlo, azul.
O casal se vislumbrou, vislumbrou e vislumbrou, e estudaram suas mãos unidas, o padrão marrom e azul de seus dedos invertidos, e olharam para a superfície da água, que antes não era um espelho, mas agora sim, porque assim quiseram. E vislumbraram seus reflexos ali, lado a lado, de mãos dadas e não viram nem deuses nem monstros. Os dois tinham mudado tão pouco e aquela única coisa – a cor de suas peles –, mudaria tudo no mundo real.
Sarai olhou para a cor terrosa rica de seus braços e soube, embora estivesse escondida, que ela tinha uma elilith em sua barriga como uma garota humana. Perguntou-se qual era o padrão e desejou dar uma espiada. A outra mão, a que estava unida a de Lazlo, retirou-se suavemente. Não parecia haver mais pretexto para segurá-la, embora tivesse sido agradável enquanto durou.
Ela o fitou. Azul.
– Você escolheu isso? – a garota quis saber.
Lazlo balançou negativamente a cabeça.
– Deixei a cargo da mahalath.
– E ela fez isso. – Ela explicou-se o porquê. Sua própria mudança era fácil de compreender. Ali estava sua humanidade externalizada e todo seu desejo – por liberdade do confinamento de sua jaula de metal. Mas por que ele ficara assim? Talvez, ela pensou, não fosse desejo, mas medo, e essa era a ideia dele de um monstro.
– Bem, me pergunto qual dom ela te deu – ela disse.
– Dom? Você quer dizer magia? Acha que tenho um dom?
– Todas as crias dos deuses têm dons.
– Crias dos deuses?
– É assim que nos chamam.
Nos. Outro pronome no plural, que pairou entre os dois brevemente, mas Lazlo não chamou a atenção dela desta vez.
– Mas, crias... – o garoto repetiu, fazendo uma careta. – Isso não combina. Crias são de cães ou de demônios.
– O significado, creio eu, seja o segundo.
– Bem, você é um demônio singularmente formidável, se me permite.
– Obrigada – a garota agradeceu com sinceridade, pousando uma mão modesta sobre o peito. – Essa é a coisa mais gentil que alguém já me disse.
– Bem, tenho pelo menos uma centena de coisas muito mais gentis para dizer e só não consigo por constrangimento.
A menção ao constrangimento magicamente incentivou o constrangimento. Em seu reflexo, Sarai viu suas bochechas marrons ficarem vermelhas em vez de lavanda, enquanto Lazlo viu o contrário em seu próprio reflexo.
– Então, dons – ele falou, recuperando-se, embora Sarai não se incomodasse se ele demorasse um pouco na centena de coisas mais gentis. – E o seu é... entrar nos sonhos?
Ela assentiu. Não viu necessidade de explicar a mecânica da coisa. O comentário impiedoso de Rubi de um tempo atrás passou por sua mente. “Quem ia querer beijar uma garota que come mariposas?” A ideia de beijar provocou um alvoroço em seu estômago, que era como sentir que suas mariposas moravam dentro dela. Asas, delicadas e fazendo cócegas.
– Então, como sei qual é, esse dom? – Lazlo quis saber. – Como alguém descobre isso?
– É sempre diferente. Às vezes, é espontâneo e óbvio, outras vezes ele precisa ser provocado. Quando os Mesarthim eram vivos, era Korako, a deusa dos segredos, que os revelava. Ou assim me disseram. Devo tê-la conhecido, mas não consigo me lembrar.
A pergunta “quem disse?” era tão palpável que, embora Lazlo não a tenha feito – exceto, talvez, com suas sobrancelhas –, Sarai respondeu assim mesmo.
– Os fantasmas – ela disse. O que, nesse caso, era verdade.
– Korako – repetiu Lazlo. Pensou de novo no mural, mas estivera tão fixado em Isagol que as outras deusas eram um borrão. Suheyla havia mencionado Letha, mas não a outra. – Não ouvi nada sobre ela.
– Não. Você não ouviria. Ela era a deusa dos segredos e o maior segredo que guardava era sobre si mesma. Ninguém nem mesmo sabia qual era seu dom.
– Outro mistério – falou Lazlo, e então conversaram sobre deuses e dons, andando pelo rio. Sarai chutou a superfície e observou as gotas que voavam e formavam arco-íris efêmeros. Eles apontaram para os cisnes, que antes eram idênticos e agora eram estranhos – um com presas e feito de ágata e musgo, outro parecendo folheado a ouro. Um tinha até mesmo se transformado em um svytagor. Ele submergiu e desapareceu sob a água verde opaca. Sarai contou a Lazlo alguns dos melhores dons que aprendeu com Grande Ellen, e citou, entre eles, uma garota que podia fazer as plantas crescerem e um garoto que podia trazer a chuva. Seu próprio dom, se a mahalath tinha lhe dado um, continuava um mistério.
– Mas e quanto a você? – ele quis saber, pausando para colher uma flor que havia acabado de desejar que crescesse. Era uma flor exótica que vira na vitrine de uma floricultura e ele teria ficado constrangido de saber que ela era chamada de flor da paixão. Ele a ofereceu a Sarai. – Se você fosse humana, teria que abandonar seu dom, não?
Lazlo não tinha como saber a maldição que era o dom dela, ou o que o uso do dom havia causado à garota e a Lamento.
– Imagino que sim – respondeu, cheirando a flor, que tinha aroma de chuva.
– Mas então você não poderia estar aqui comigo.
Era verdade. Se fosse humana, Sarai não poderia estar no sonho de Lazlo com ele. Mas... poderia estar no quarto com ele. Um calor explodiu dentro de si, e não era de vergonha nem de constrangimento. Era uma espécie de desejo, mas não do coração. Era um desejo da pele. De ser tocada. Era o desejo dos membros. De se entrelaçarem. Estava centrado em seu abdômen, no lugar de sua nova elilith, e ela passou os dedos sobre a tatuagem novamente e estremeceu. Na cidadela, andando de um lado para o outro, seu corpo verdadeiro estremeceu também.
– É um sacrifício que eu estaria disposta a fazer – explicou.
Lazlo não podia imaginar isso, que uma deusa estivesse disposta a abrir mão de sua magia. Contudo, não era apenas a magia. Ele achava que ela seria bela em qualquer cor, mas percebeu que sentia falta do tom raro de sua pele.
– Você não gostaria de mudar de verdade, não é? – ele persistiu. – Se isso fosse real e você tivesse escolha.
Será que não? Por que outro motivo seu inconsciente – sua mahalath interna – havia escolhido essa transformação?
– Se isso significasse ter uma vida? Sim, eu gostaria.
Ele ficou intrigado.
– Mas você já está viva. – Ele sentiu uma pontada súbita de medo. – Você está, não? Você não é um fantasma como os outros...
– Não sou um fantasma – afirmou Sarai, para alívio dele –, mas sou filha dos deuses e você deve saber que existe uma diferença entre estar viva e ter uma vida.
Lazlo entendia isso. Pelo menos, achou que entendia. Refletiu sobre de alguma forma ser comparável a um órfão no Mosteiro de Zemonan: vivo, mas não vivendo a vida. E como havia encontrado seu caminho de um estado para outro e tinha até mesmo visto seu sonho tornar-se realidade, sentiu ter uma certa qualificação no assunto. Mas não entendia uma peça crucial do quebra-cabeça. Uma peça crucial e sangrenta do quebra-cabeça. Sensato e cordial, ele simpatizou com ela.
– Não deve ser uma vida ficar presa lá em cima. Mas agora que sabemos de você, podemos tirá-la de lá.
– Tirar-me de lá? O quê, para Lamento? – Houve uma mudança repentina de uma surpresa incrédula na voz de Sarai e, enquanto ela falava, reverteu-se à sua cor normal, a pele ficou azul novamente. Lá se foi ser humana, ela pensou. A dura verdade não tolera a imaginação. Como se a sua reversão tivesse dado um fim à fantasia, Lazlo também reverteu-se e era ele mesmo de novo. Sarai ficou quase chateada. Enquanto o garoto tinha a aparência azul, ela quase podia acreditar que havia uma conexão entre os dois. Ela não havia se perguntado, ansiosamente, um pouco antes, se esse sonhador poderia ajudá-la? Poderia salvá-la? Ele não fazia ideia.
– Você entende – explicou, com uma severidade inadequada – que eles me matariam assim que me vissem?
– Quem mataria?
– Qualquer um.
– Não – ele balançou a cabeça, sem querer acreditar. – Eles são pessoas boas. Será uma surpresa, sim, mas não poderiam odiá-la apenas por causa do que seus pais eram.
Sarai parou de andar.
– Você acha que pessoas boas não podem odiar? Você acha que pessoas boas não matam? – Sua respiração acelerou, e ela percebeu que havia esmagado a flor de Lazlo na mão. Ela derrubou as pétalas na água. – Pessoas boas fazem todas as coisas que pessoas más fazem, Lazlo. Só que quando elas fazem, chamam de justiça. – Pausou. Sua voz ficou mais pesada. – Quando eles mataram trinta bebês em seus berços, chamaram isso de necessário.
Lazlo a encarou. Balançou a cabeça, descrente.
– Sabe aquele choque que você viu no rosto de Eril-Fane? – ela continuou. – Não foi porque ele não sabia que tinha uma filha. – Ela inspirou. – Foi porque ele achava que tinha me matado quinze anos atrás. – Sua voz embargou no fim. Engoliu em seco e sentiu, de repente, como se sua cabeça inteira estivesse repleta de lágrimas e se não derramasse algumas, ela explodiria. – Quando ele matou todos os filhos dos deuses, Lazlo – ela acrescentou, e chorou.
Não no sonho, não onde Lazlo pudesse ver, mas em seu quarto, escondida. Lágrimas cobriram suas bochechas da mesma forma que as chuvas de monções cobriam os contornos da cidadela no verão, entrando por todas as portas abertas, um dilúvio de chuva pelo chão liso e não havia nada a fazer a não ser esperar que ela parasse.
Eril-Fane sabia que um dos bebês no berçário era dele, mas não sabia qual. Ele tinha visto a barriga de Isagol crescer com seu filho, é claro, mas depois que a mulher dera à luz, nunca mais o mencionara. Ele perguntou e ela deu de ombros. Ela tinha cumprido o seu dever; depois disso, era problema do berçário. Isagol não sabia nem mesmo se era um menino ou uma menina; não lhe significava nada. E quando ele entrou, ensopado de sangue, no berçário e olhou em volta para os bebês e crianças azuis em comoção, teve medo de ver e saber: ali. Aquele é meu.
Se ele tivesse visto Sarai, com cabelos cor de canela como os da mãe, teria sabido em um instante, mas não a vira porque ela não estava lá, embora não soubesse. Achava que o cabelo dela era escuro como o seu, como o do resto dos bebês. Eles eram um borrão de azul, sangue e gritos.
Todos inocentes. Todos amaldiçoados.
Todos mortos.
Os olhos de Lazlo estavam secos, mas abertos e sem piscar. Bebês. Sua mente rejeitou isso, muito embora, sob a superfície, peças de quebra-cabeça estivessem se juntando. Todo o pavor e a vergonha que ele tinha visto em Eril-Fane. Tudo na reunião com os Zeyyadin, e... e a forma com que Maldagha pôs as mãos na barriga. Suheyla também. Era um gesto maternal. Como ele tinha sido estúpido em não entender, mas como ele poderia, quando passou a vida inteira com homens velhos? Todas as coisas que não faziam sentido tinham mudado o suficiente de posição, e era como inclinar o ângulo do sol de forma que, em vez de olhar por uma janela e cegar-se, ele passava por ela para iluminar tudo o que estava dentro.
Ele sabia que Sarai estava falando a verdade.
Um grande homem e também um homem bom. Era isso que tinha pensado? Mas o homem que matou deuses também matara bebês, e Lazlo entendia agora o que ele temia encontrar na cidadela. “Alguns de nós sabemos melhor do que os outros o... estado... em que a deixamos”, ele dissera. Não os esqueletos de deuses, mas de crianças. Lazlo encurvou-se, sentindo-se mal. Pressionou a palma da mão com firmeza na testa. O vilarejo e os cisnes monstruosos desapareceram. O rio não estava mais lá. Tudo sumiu em um piscar de olhos e Lazlo e Sarai encontraram-se em seu quarto – o quarto do Matador de Deuses. O corpo adormecido de Lazlo não estava esticado na cama. Essa era mais uma paisagem do sonho, pois dormia no quarto e, no sonho, estava em pé no cômodo. Na realidade, uma mariposa estava pousada em sua testa no quarto e, no sonho, a Musa dos Pesadelos estava a seu lado.
A Musa dos Pesadelos, Sarai pensou. Mais do que nunca. Ela tinha, afinal, levado o pesadelo para esse sonhador em quem vinha procurando refúgio. Em seu sono, ele murmurou: “não”, com olhos e punhos bem fechados. A respiração era rápida, assim como a pulsação. Todos os indícios de pesadelo, que Sarai bem conhecia. Tudo o que ela fez foi dizer a verdade, não havia sequer lhe mostrado a verdade. Brilho de faca e sangue espalhado, e todos os corpinhos azuis. Nada a induziria a arrastar aquela memória repulsiva à bela mente dele.
– Sinto muito – ela disse.
Na cidadela, ela soluçou. Ela jamais poderia estar livre da ferida. Sua própria mente seria sempre um túmulo aberto.
– Por que você se desculpa? – Lazlo indagou. Havia doçura em sua voz, mas a vivacidade a tinha deixado. Ela tinha ficado sem brilho, como uma velha moeda. – Você é a última pessoa que devia se sentir culpada. Ele deveria ser um herói! Ele me deixou acreditar nisso. Mas que tipo de herói poderia fazer... isso?
Em Quedavento, o “herói” em questão estava deitado no chão, imóvel como se dormisse, mas seus olhos estavam abertos no escuro, e Sarai pensou novamente que ele era uma ruína tanto quanto era homem. Eril-Fane era, ela pensou, como um templo amaldiçoado: ainda belo de se olhar – a carapaça de algo sagrado –, mas incivilizado por dentro e ninguém, exceto fantasmas, podia cruzar seu limiar.
“Que tipo de herói?”, Lazlo perguntara. Que tipo, de fato. Sarai nunca tinha se deixado erguer em sua defesa. Era impensável, como se os corpos fossem uma barreira entre ela e o perdão. Entretanto, e sem muito saber o que ia dizer, contou a Lazlo, em voz suave:
– Por três anos, Isagol fez com que ele a amasse. Quer dizer... ela não inspirava amor, nem sequer se esforçava para ser digna dele. Ela apenas alcançou sua mente... ou seus corações, ou sua alma... e tocou a nota que o faria amá-la contra tudo o que havia nele. Ela era uma coisa muito sombria. – A garota estremeceu ao pensar que havia saído do corpo dessa coisa tão sombria. – Ela não tirou as emoções conflitantes de Eril-Fane, embora pudesse ter feito isso. Isagol não fez com que ele não a odiasse e deixou o ódio lá, ao lado do amor, pois achava engraçado. E não era... Não era aversão ao lado de luxúria, ou algumas versões triviais de ódio e amor. Veja, era ódio. – Ela colocou tudo o que conhecia de ódio em sua voz, e não seu próprio ódio, mas o de Eril-Fane e do restante das vítimas dos Mesarthim.
– Foi o ódio dos usados e atormentados, que são os filhos dos usados e atormentados, e cujos filhos seriam usados e atormentados. E isso era amor – ela continuou, e colocou tudo aquilo em sua voz também, da forma que foi capaz. Amor que acende a alma como a primavera e a torna madura como o verão. Amor como raramente existe na realidade, como se um mestre alquimista o tivesse pegado e destilado de todas as impurezas, de cada desencanto mesquinho, de cada pensamento vil, em um elixir perfeito, doce, profundo e que tudo consome. – Ele a amava tanto – ela sussurrou. – Era tudo uma mentira. Era uma violação. Mas não importava, porque quando Isagol fazia você sentir alguma coisa, isso se tornava real. Ele a odiava. E a amava. E a matou.
A garota sentou-se na beirada da cama de Lazlo e deixou seu olhar vagar pelas paredes familiares. Memórias que podem ser presas dentro de um quarto, e esse quarto ainda tinha todos os anos em que havia chegado a essa janela, cheia de maldade justificada. Lazlo sentou-se ao lado dela.
– O ódio venceu – ela falou. – Isagol deixou-o lá para se divertir, e por três anos ele lutou uma guerra dentro de si. A única forma de vencer era seu ódio superar aquele amor perfeito, falso e vil. E isso aconteceu. – Ela cerrou os dentes e lançou um olhar para Lazlo. A história não era dela para contar, mas achava que ele precisava saber. – Depois Skathis levou Azareen para a cidadela.
Lazlo já conhecia um pouco da história. “Eles a pegaram depois”, Suheyla havia dito. Sarai sabia de tudo. Só ela sabia da aliança fosca de prata que Azareen colocava no dedo toda noite e tirava logo de manhã. A história de amor deles não foi a única terminada pelos deuses, mas era a única que terminara com os deuses.
Eril-Fane tinha sido levado havia mais de dois anos na época em que Skathis levou Azareen, e talvez ela tenha sido a primeira garota em Lamento que estava feliz em montar no monstro Rasalas e voar até a sua própria escravidão. Pelo menos ela saberia se seu marido ainda estava vivo.
Ele estava. E Azareen aprendeu como era possível estar feliz e devastada ao mesmo tempo. Ela ouviu sua risada antes de ver seu rosto – a risada de Eril-Fane, naquele lugar, tão viva quanto já ouvira – e fugiu do guarda para correr em sua direção, derrapando em uma esquina do corredor liso de metal até avistá-lo, olhando para Isagol, a Terrível, com amor.
Ela sabia o que era aquilo, pois ele a olhara daquele jeito também. Não era fingido, era verdadeiro e, então, depois de mais de dois anos perguntando-se o que acontecera com ele, Azareen descobriu. Além do sofrimento de servir ao “propósito” dos deuses, era seu destino ver o próprio marido amar a deusa do desespero.
E quanto a Eril-Fane, era seu destino ver sua noiva levada pelo sinistro corredor – porta após porta de quartos pequenos com nada dentro, exceto camas. E, por fim, o cálculo de Isagol falhou. O amor não era comparável ao que ardeu em Eril-Fane quando ele ouviu os primeiros gritos de Azareen.
– O ódio foi o triunfo dele – Sarai disse a Lazlo. – Foi quem ele se tornou para salvar sua esposa e todo o seu povo. Tanto sangue em suas mãos, tanto ódio em seus corações. Os deuses tinham criado seu próprio fim. – Ela permaneceu sentada, muda por um momento, e sentiu um vazio onde durante anos seu próprio ódio estivera. Havia apenas uma tristeza terrível agora. – E depois que foram assassinados e todos os escravos foram libertados – explicou, com peso na voz – ainda havia o berçário e um futuro cheio de magia terrível e imponderável.
As lágrimas que até então tinham fluido apenas no rosto real de Sarai deslizaram pelo rosto do sonho também. Lazlo pegou as mãos dela e segurou-as nas suas.
– É uma violência que nunca poderá ser perdoada – suspirou com a voz rouca de emoção. – Algumas coisas são terríveis demais para perdoar. Mas eu acho... Acho que posso entender o que sentiram aquele dia, e o que enfrentaram. O que deviam fazer com crianças que cresceriam para se tornar uma nova geração de torturadores?
Lazlo vacilou com o horror de tudo aquilo e com a sensação inacreditável de que, afinal, sua própria infância tinha sido misericordiosa.
– Mas... se eles tivessem sido acolhidos e criados com amor, não se tornariam torturadores – ele disse.
Soava tão simples, tão claro. Mas o que os humanos sabiam dos poderes dos Mesarthim exceto que podiam ser usados para punir e oprimir, aterrorizar e controlar? Como podiam ter imaginado uma Pardal ou um Feral quando tudo o que conheciam eram Skathis e Isagol e seus iguais? Será que alguém poderia voltar no tempo e esperar que eles fossem tão misericordiosos quanto era possível quinze anos depois com uma mente e um corpo não violados pelos deuses?
A empatia de Sarai deixou-a nauseada. Ela disse que jamais perdoaria, mas parecia que já havia perdoado, e corou com um assombro confuso. Uma coisa era não odiar, e outra perdoar. Ela disse a Lazlo:
– Eu me sinto um pouco como ele às vezes, amando e odiando ao mesmo tempo. Não é fácil ter um paradoxo no cerne de nós mesmos.
– O que você quer dizer? Que paradoxo? Ser humana e cria... – Lazlo não conseguiu dizer cria de deuses, mesmo que ela se chamasse assim. – Humana e Mesarthim?
– Tem isso também, mas não. Quero dizer a maldição do conhecimento. Era fácil quando nós éramos as únicas vítimas. – Nós. Ela fitava suas mãos, ainda unidas, as dela fechadas dentro das dele, mas levantou o olhar e não voltou atrás quanto ao pronome. – Somos em cinco – admitiu. – E para os outros há apenas uma verdade: o Massacre. Mas por causa do meu dom, ou maldição, aprendi como tudo isso foi para os humanos, antes e depois. Conheço o íntimo de suas mentes, por que eles fizeram isso e como isso os mudou. E então quando vejo uma memória daqueles bebês sendo... – As palavras sufocaram-se em um soluço. – Sei que aquele era o meu destino também, sinto a mesma raiva que sempre senti, mas agora há... Há indignação também, por aqueles jovens, homens e mulheres, que foram retirados de seus lares para servir ao propósito dos deuses, e desolação pelo que isso fez a eles, e culpa... pelo que eu fiz a eles.
Ela chorou, e Lazlo puxou-a para um abraço, como se fosse a coisa mais natural do mundo que ele puxasse uma deusa triste para seu ombro, enlaçasse-a nos braços, respirasse o perfume das flores em seus cabelos e até acariciasse levemente sua têmpora com a ponta do polegar. E embora houvesse uma camada de sua mente que soubesse que aquilo era um sonho, ela foi momentaneamente encoberta por outras camadas, mais atrativas, e ele vivenciou o momento como se fosse absolutamente real. Toda a emoção, toda a sensação. A textura da pele, o perfume dos cabelos, o calor da respiração contra sua camisa branca e até a umidade das lágrimas passando por ela. Mas bem mais intenso era o carinho absoluto e inefável que ele sentia, e a solenidade. Como se ele tivesse sido encarregado de algo infinitamente precioso. Como se tivesse feito um juramento e sua própria vida fosse a garantia. Lazlo reconheceria esse instante mais tarde como o momento em que seu centro de gravidade mudou: de ser apenas um – um pilar sozinho, separado – para se tornar metade de alguma coisa que cairia se qualquer um dos lados fosse cortado.
Três medos o atormentavam em sua antiga vida. O primeiro: que ele nunca visse prova da magia. O segundo: que ele nunca descobrisse o que tinha acontecido em Lamento. Esses medos tinham desaparecido; prova e respostas descortinavam-se minuto a minuto. E o terceiro? Que ele sempre seria sozinho?
Ele não entendia ainda – pelo menos não conscientemente –, mas não estava mais sozinho, e tinha um novo conjunto de temores a descobrir: aqueles que vinham com o fato de gostar de alguém que provavelmente se pode perder.
– Sarai – Sarai. O nome dela era como caligrafia e mel. – O que você quer dizer? – ele perguntou, gentilmente. – O que você fez a eles?
E Sarai, permanecendo como estava, com o rosto enfiado no ombro de Lazlo, a testa descansando contra o queixo dele, contou-lhe quem era e o que havia feito e até... Embora sua voz tenha ficado fina como papel... Como ela fazia as coisas, mariposas e tudo mais. E quando ela terminou de contar e estava tensa dentro de seus braços, esperou para ver o que ele ia dizer. Diferentemente dele, ela não conseguia esquecer que aquilo era um sonho. Estava fora e dentro dele ao mesmo tempo. E embora não ousasse fitá-lo enquanto contava-lhe a verdade, sua mariposa observava o rosto adormecido em busca de qualquer expressão que pudesse indicar aversão.
Não houve nenhuma.
Lazlo não estava pensando sobre as mariposas – embora tenha se lembrado daquela que havia caído morta de sua fronte na primeira manhã que acordou em Lamento. O que de fato o capturou foi a implicação dos pesadelos. Isso explicava tanto. Parecia como se o medo fosse uma coisa viva ali, porque era. Sarai o mantinha vivo. Ela cuidava dele como de uma fogueira e certificava-se de que ele nunca se apagasse.
Se houvesse uma deusa assim em um livro de velhas histórias, ela seria a vilã, atormentando os inocentes de seu alto castelo. As pessoas de Lamento eram inocentes – a maioria delas – e ela as atormentava, mas... que escolha ela tinha? A garota herdara uma história que estava repleta de cadáveres e coagulada de inimizade, e estava apenas tentando permanecer viva dentro dela. Lazlo sentiu muitas coisas por ela naquele momento, sentindo a tensão de Sarai enquanto a segurava, e nenhuma delas era aversão.
Ele estava enfeitiçado e ao seu lado. Quando se tratava de Sarai, até os pesadelos pareciam magia.
– A Musa dos Pesadelos – ele disse. – Soa como um poema.
Um poema? Sarai não detectou nenhum escárnio na voz de Lazlo, mas teve de analisá-lo para confirmar, então se sentou ereta e desfez o abraço. Com pesar, ela o fez. Não viu nenhuma zombaria, apenas... Encantamento, ainda encantamento, e ela quis viver nele para sempre.
Sarai perguntou com um sussurro hesitante:
– Você ainda acha que sou um... demônio singularmente formidável?
– Não – respondeu, sorrindo. – Acho que você é um conto de fadas.
Acho que você é mágica, e corajosa, e única. E... – sua voz ficou acanhada. Apenas em um sonho ele poderia ser tão destemido e dizer aquelas palavras. – Espero que você me deixe participar da sua história.
44
UMA SUGESTÃO EXTRAORDINÁRIA
Um poema? Um conto de fadas? Era mesmo assim que ele a via? Agitada, Sarai levantou-se e foi à janela. Não era só sua barriga que sentia um alvoroço como o de asas leves e selvagens, mas seu peito, onde estavam seus corações, e até sua cabeça. Sim, ela queria responder com um prazer tímido. Por favor, faça parte da minha história.
Mas não falou. Observou a noite, a cidadela no céu, e perguntou:
– Será que haverá uma história? Como pode haver?
Lazlo juntou-se a ela na janela.
– Nós encontraremos um jeito. Vou falar com Eril-Fane amanhã. O que quer que ele tenha feito na época, deve querer reparar isso. Não posso acreditar que ele queira machucá-la. Afinal, não contou a ninguém o que aconteceu. Você não viu como ele ficou depois, como ele estava...
– Devastado? – completou Sarai. – Eu o vi depois. Estou observando-o agora. Ele está no chão da sala de estar de Azareen.
– Oh – soltou Lazlo. Era algo que ele não conseguia entender, como ela podia ter tantos olhos no mundo de uma vez só. E Eril-Fane no chão de Azareen, isso também exigia que ele se acostumasse. Eles viviam juntos? Suheyla havia dito que não era mais um casamento, o que quer que existisse entre os dois. Até onde ele sabia, Eril-Fane ainda morava ali.
– Ele deve voltar para casa – disse ele. – Eu posso dormir no chão. Este é o seu quarto, afinal.
– Não é um lugar bom para ele – ela explicou, olhando para o nada pela janela. Seus dentes cerraram-se. Lazlo viu o músculo da face dela se mexer. – Ele teve muitos pesadelos neste quarto. Muitos foram dele mesmo, mas... fui responsável por vários.
Lazlo balançou a cabeça, maravilhado.
– Sabe, achei que fosse tolice, que ele estava se escondendo de seus pesadelos. Mas ele estava certo.
– Eril-Fane estava se escondendo de mim, mesmo que não soubesse. – Uma grande onda de cansaço tomou conta de Sarai. Com um suspiro, fechou os olhos e encostou-se na janela. Estava com a cabeça tão leve quanto estava com os membros pesados. O que faria assim que o sol se levantasse e não pudesse mais ficar ali, na segurança do sonho de Lazlo?
Ela abriu os olhos e o observou.
No quarto de verdade, sua mariposa avaliou o Lazlo real, o relaxamento em seu rosto e os longos membros, soltos no sono. O que ela não daria por um sono descansado assim, sem mencionar o grau de controle que ele tinha dentro dos sonhos. Ela considerou isso.
– Como você fez isso tudo? – ela perguntou. – A mahalath, o chá, tudo isso? Como você molda seus sonhos com tanta intenção?
– Não sei – respondeu. – É novo para mim. Quer dizer, eu tinha alguma lucidez nos sonhos antes, mas não essa previsibilidade, e nunca desse jeito. Só desde que você apareceu.
– Sério? – Sarai ficou surpresa. – Me pergunto por quê.
– Não é assim com os outros sonhadores?
Ela deixou escapar uma risada suave.
– Lazlo, não é nada parecido com os outros sonhadores. Para começar, eles não conseguem nem me ver.
– O que você quer dizer, eles não podem te ver?
– Apenas isso. É por isso que apareci e o encarei daquela primeira vez, sem nenhum pudor. – Ela franziu o nariz, constrangida. – Porque nunca imaginei que você seria capaz de me ver. Com os outros sonhadores, posso gritar bem na frente de seus rostos e eles nunca perceberão. Acredite, eu já tentei. Posso fazer qualquer coisa num sonho, exceto existir.
– Mas... por que isso é assim? Que condição bizarra para o seu dom.
– Uma condição bizarra para um dom bizarro, então. Grande Ellen, a nossa babá fantasma, nunca viu um dom como o meu em todos os seus anos de berçário.
A ruga entre as sobrancelhas de Lazlo – aquela nova que o sol do Elmuthaleth tinha feito nele – aprofundou-se. Quando Sarai falou do berçário, e dos bebês, e dos dons – anos deles – perguntas fizeram fila em sua mente. Mais mistérios de Lamento; quão infindáveis eles eram? Mas havia um mistério mais pessoal que o confrontava.
– Mas por que eu sou capaz de vê-la se ninguém mais consegue?
Sarai deu de ombros, tão perplexa quanto ele.
– Você diz que o chamam de Estranho, o sonhador. Claramente você é melhor em sonhos do que as outras pessoas.
– Oh, claramente – concordou, zombando de si mesmo e um tanto satisfeito. Bastante satisfeito, enquanto assimilava a ideia. Todo esse tempo, desde o momento em que Sarai apareceu à margem do rio e enfiou seus dedos do pé na lama, a noite inteira tinha sido tão extraordinária que ele se sentia... efervescente. Mas quão mais extraordinária ela era, agora que ele sabia como tudo era recíproco.
Contudo, a garota não parecia efervescente, para ser honesto. Ela parecia... cansada.
– Você está acordada agora? – ele quis saber, ainda tentando entender como aquilo funcionava. – Lá na cidadela, quero dizer.
Ela assentiu. Seu corpo estava no quarto. Mesmo naquele espaço confinado, caminhava de um lado para o outro – como um ravide enjaulado, pensou – com apenas um sussurro de sua atenção para guiá-la. Ela sentiu uma pontada de simpatia, abandonada não só por seus iguais, mas por si mesma, deixada vazia e sozinha enquanto ela estava lá, derramando suas lágrimas no peito de um estranho.
Não, não um estranho. O único que a via.
– Então, quando acordo – ele continuou – e a cidade acorda, você vai dormir?
Sarai sentiu um acorde de medo ao pensar em cair no sono.
– É a prática habitual, mas o “habitual” está morto e enterrado.
Ela respirou fundo e soltou o ar. Contou-lhe sobre o lull, como a bebida não funcionava mais e, consequentemente, assim que sua consciência relaxava, era como se as portas para as jaulas de seus medos cativos se abrissem.
E, enquanto a maioria das pessoas pode ter poucos terrores matraqueando em suas jaulas, ela tinha... todos eles.
– Fiz isso comigo mesma. Eu era tão nova quando comecei, e ninguém nunca me falou para considerar as consequências. É claro, parece tão óbvio agora.
– Mas você não consegue simplesmente bani-los? – ele quis saber. – Ou transformá-los?
Ela balançou a cabeça.
– Nos sonhos dos outros tenho o controle, mas, quando durmo, sou impotente, como qualquer sonhador – explicou e observou-o calmamente. – Exceto você. Você não é como qualquer sonhador.
– Sarai – disse Lazlo. Ele viu como ela abandonou seu peso contra a janela, e estendeu o braço para apoiá-la. – Faz quanto tempo que você não dorme?
Ela mal sabia.
– Quatro dias? Não tenho certeza. – Ao ver o olhar assustado dele, ela forçou um sorriso. – Durmo um pouco – completou – entre os pesadelos.
– Mas isso é loucura. Você sabe que pode morrer por privação de sono?
A risada que ela deu em resposta foi austera.
– Eu não sabia disso, não. Você por acaso não sabe quanto tempo leva, sabe? Para que eu possa planejar meu dia? – Ela quis fazer uma piada, mas havia um quê de desespero na pergunta.
– Não – falou Lazlo, sentindo-se impotente. Que situação impossível. Ela estava lá em cima sozinha, ele estava lá embaixo sozinho e, ainda assim, de certa forma, estavam juntos. Ela estava dentro de seu sonho, compartilhando-o. Se ele tivesse aquele dom, pensou, poderia entrar nos seus sonhos e ajudá-la a suportá-los? O que isso significaria? Que terrores ela enfrentava? Lutar com ravides, testemunhar o Massacre o tempo todo? O que quer que fosse, a ideia de ela enfrentá-los sozinha o devastava.
Uma ideia lhe ocorreu. Ela pareceu pousar tão de leve quanto uma mariposa.
– Sarai – ele perguntou, especulativo. – O que aconteceria se você dormisse agora mesmo?
Seus olhos arregalaram-se um pouco.
– O que, você quer dizer aqui? – Ela olhou para a cama.
– Não – respondeu rapidamente, com o rosto esquentando. Em sua cabeça estava claro: ele queria lhe dar um refúgio dos pesadelos, queria ser um refúgio deles. – Quero dizer, se você mantivesse sua mariposa onde ela está, em mim, mas caísse no sono lá, você poderia... você acha que talvez pudesse ficar aqui? Comigo?
Quando Sarai ficou em silêncio, ele ficou com medo de ter ido muito longe com a sugestão. Ele não estava, de certa forma, convidando-a para... passar a noite com ele?
– Só quero dizer – ele apressou-se a explicar – que se você tem medo dos seus próprios sonhos, é bem-vinda aqui no meu.
Um leve frisson de arrepios desceu pelos braços de Sarai. Ela não estava em silêncio porque estivesse ofendida ou desanimada. Ao contrário. Ela estava desarmada. Ela era desejada. Lazlo não sabia sobre as noites que ela tinha invadido sem seu convite, enfiando um pedacinho de sua mente em um canto da dele, para que o encantamento e prazer disso pudesse ajudá-la a suportar... todo o resto. Ela precisava de descanso, muito, e embora tivesse brincado com ele sobre morrer de privação de sono, ela estava, de fato, com medo.
A ideia de que pudesse ficar ali, ficar em segurança ali – com ele – era como uma janela se abrindo, luz e ar entrando. Mas medo, também. Medo da esperança, porque no instante que ela entendeu o que ele estava propondo, Sarai quis tanto que isso funcionasse. E quando foi que ela conseguiu o que desejava?
– Nunca tentei antes – respondeu, esforçando-se para manter a voz neutra. Ela estava com medo de deixar transparecer o seu desejo, no caso de que isso não desse em nada. – Cair no sono pode cortar a ligação e soltar a mariposa.
– Você quer tentar? – perguntou Lazlo, tentando fingir que não estava esperançoso.
– Não deve haver muito tempo antes do nascer do sol.
– Não muito – ele concordou –, mas um pouco.
Ela teve outro pensamento. Estava procurando pontos fracos na ideia, e com medo de encontrá-los.
– E se funcionar, mas meus terrores vierem junto?
Lazlo deu de ombros.
– Nós os afastaremos, ou os transformaremos em vaga-lumes e os prenderemos em potes de vidro. – Ele não estava com medo. Quer dizer. Ele estava apenas com medo de que não funcionasse. Eles podiam enfrentar qualquer outra coisa, juntos. – O que você me diz?
Por um momento, Sarai não confiou na própria voz. Por mais casuais que eles se esforçassem para ser, ambos sentiam algo significativo tomar forma entre eles, e – embora ela não tivesse questionado as intenções dele nem por um minuto – algo íntimo, também. Dormir dentro do sonho dele, quando ela não tinha nem mesmo certeza de que saberia que era um sonho. Onde ela talvez não tivesse controle...
– E se funcionar – ela sussurrou – e eu ficar impotente?
Ela hesitou, mas ele compreendeu.
– Você confia em mim? – ele perguntou.
Isso não era nem uma questão. Ela sentia-se mais segura ali do que em qualquer outro lugar. E, de qualquer forma, perguntou a si mesma, qual risco real havia nisso? É apenas um sonho, ela respondeu, embora, é claro, fosse muito mais.
Ela olhou para Lazlo, mordeu o lábio e rendeu-se, e disse:
– Tudo bem.
45
ESTRANHO AZOTH
No laboratório alquímico improvisado no sótão sem janelas do crematório, uma pequena chama azul tocava a base de vidro curva de um frasco suspenso. O líquido aqueceu-se e mudou de estado, subindo como vapor por meio da coluna de destilação para ir parar no condensador e derramar-se em gotas no frasco de coleta.
O afilhado dourado recuperou-o e segurou-o em frente a uma glave para examiná-lo.
Fluido claro. Poderia ser água, mas não era. Era azoth, uma substância ainda mais preciosa do que o ouro que produzia, porque, diferentemente do ouro, ela tinha múltiplas e maravilhosas aplicações e uma única fonte em todo o mundo: ele mesmo – pelo menos enquanto seu componente fundamental permanecesse secreto.
Um frasco pousava vazio sobre a mesa de trabalho. O rótulo dizia ESPÍRITO DE BIBLIOTECÁRIO, e Thyon sentiu uma fisgada de... repugnância? Ali estava a essência vital do camponês órfão sem nome que tinha o hábito imperdoável de ajudá-lo sem motivo, enquanto permanecia sem malícia, como se fosse uma coisa normal de se fazer.
Talvez fosse repugnância. Thyon empurrou o frasco vazio para o lado abrindo espaço para o próximo procedimento. Ou talvez fosse desconforto. O mundo todo o via da forma que ele queria ser visto: como uma força incontestável, completo e em total comando dos mistérios do universo.
Exceto por Estranho, que sabia quem, de fato, ele era. Ele cerrou os dentes. Se ao menos, pensou, Lazlo tivesse a cortesia de... deixar de existir... então talvez pudesse lhe ser grato. Mas não enquanto estava lá, sempre lá, uma presença benigna rindo com os guerreiros ou fazendo, alegremente, o que precisava ser feito. Ele até criou o hábito de ajudar o cozinheiro da caravana a esfregar a grande panela de sopa com areia. O que ele estava tentando provar?
Thyon balançou a cabeça. Ele sabia a resposta, só não a entendia. Lazlo não estava tentando provar nada. Nada era estratégico com ele. Nada era fingimento. Estranho era apenas Estranho e oferecia seu espírito sem querer nada em troca. Thyon era grato, mesmo que fosse ressentido em igual – ou maior – medida. Ele tinha retirado demais de seu próprio espírito, e aquele era um jogo perigoso. A brincadeira de Lazlo de que aquilo lhe deixaria feio não tinha errado o alvo, mas aquela não era sua única preocupação. Ele vira os mortos de espírito. A maioria não durava muito, ou tirava sua própria vida ou desperdiçava-a pela falta de vontade até mesmo para comer. A vontade de viver, ao que parece, existia naquele fluido claro e misterioso que Estranho tinha lhe dado sem pensar duas vezes.
E Thyon estava bastante restaurado, graças à pausa. Fazia uma nova tentativa com o alkahest, usando o azoth de Estranho dessa vez. Normalmente, sentia uma onda de vivacidade nessa parte de um procedimento químico – a emoção de criar algo que ninguém mais podia, e alterar a própria estrutura da natureza. O alkahest era um solvente universal, que fazia jus ao nome, e nunca o tinha deixado na mão antes. Ele o testou incansavelmente quando estava no Chrysopoesium, e tinha dissolvido todas as substâncias com as quais entrava em contato, até mesmo o diamante.
Mas não o mesarthium. O metal abominável o assustava por sua natureza e já sentia a ignomínia da derrota. Mas o método científico era a religião de Thyon e ditava a repetição dos experimentos – até dos fracassos. Então preparou uma nova leva de químicos e levou o alkahest para a âncora norte para testar mais uma vez. Não estava em sua preparação final, é claro, ou dissolveria seu próprio vasilhame. Ele faria a mistura final no último minuto para ativá-lo.
E, então, quando nada acontecesse – como nada aconteceria –, ele aplicaria o componente neutralizador para desativar o solvente para que não escorresse pelo metal impenetrável e corroesse o chão.
Ele tiraria uma soneca depois. Era nisso que ele estava pensando – sono de beleza, seu bastardo Estranho – quando caminhava pela cidade de Lamento, sem lua, com uma mochila de frascos pendurada no ombro. Ele repetiria o experimento e registraria seu fracasso e então iria para a cama.
Não havia nenhum momento, nem mesmo um segundo, em que Thyon Nero considerasse que o experimento pudesse não fracassar.
46
APENAS UM SONHO
Sarai chamou o resto de suas mariposas para casa mais cedo, deixando apenas uma na testa de Lazlo. Ela hesitou apenas em chamar de volta a que cuidava de seu pai.
Enquanto o observava, corrigiu-se. Não cuidava dele. Não era isso que ela estava fazendo.
Ali ela, finalmente, tinha-o encontrado, e não podia nem mesmo olhar dentro de sua mente.
Era um alívio, admitiu por fim desistindo e retirando a mariposa da parede, fazendo-a sair pela janela de volta ao ar. Estava com medo de saber o que encontraria em seus sonhos agora que ele sabia que a filha estava viva. Será que depois de tudo ainda havia alguma capacidade para a esperança nela – de que ele pudesse estar contente por não estar morta?
Ela afastou a ideia. É claro que ele não estaria contente, mas esta noite não precisava saber. Ela deixou-o com seus pensamentos, quaisquer que fossem eles.
A jornada dos telhados até o terraço era longa para os pedacinhos esvoaçantes, as mariposas, e nunca estivera tão impaciente naqueles minutos enquanto os insetos subiam pelas alturas do ar. Quando por fim chegaram e atravessaram a porta do terraço, viu os fantasmas fazendo guarda e lembrou, com um susto, que era uma prisioneira. Quase havia esquecido e não se demorou pensando nisso. A maior parte de sua atenção estava com Lazlo. Ela ainda estava no quarto junto com ele quando, lá em cima em seu quarto, entreabriu os lábios para receber suas mariposas de volta.
Ela virou-se de costas para ele, no sonho, muito embora soubesse que ele não podia ver sua boca real, ou as mariposas desaparecendo dentro dela. As asas roçaram em seus lábios, suaves como o beijo de um fantasma, e tudo o que podia pensar era como a visão disso o teria enojado.
Quem é que gostaria de beijar uma garota que come mariposas?
Eu não as “como”, ela argumentou consigo mesma.
Seus lábios ainda têm gosto de sal e fuligem.
Pare de pensar em beijar.
E então: a experiência incomum de deitar na cama na escuridão – seu corpo real em sua cama real – na quietude de saber que tanto a cidadela quanto a cidade estavam dormindo e com um fio de sua consciência ainda esticado até Lamento. Fazia anos que não se deitava antes de o sol nascer. Assim como Lazlo tinha deitado rígido, enquanto sua ansiedade para dormir mantinha o sono distante, o mesmo aconteceu com Sarai, uma consciência aguçada de seus membros levantando dúvidas breves sobre como ela os arranjava quando não estava pensando neles. Ela alcançou algo como sua posição natural de dormir – deitada de lado, com as mãos sob a face. Seu corpo cansado e mente mais cansada ainda, que tinham parecido, em sua exaustão, afastar-se um do outro como barcos à deriva, fizeram as pazes com as ondas. Contudo, seus corações estavam batendo rápido demais para dormir. Não de pavor, mas de agitação caso aquilo não funcionasse e... de entusiasmo – tão selvagem e suave quanto um caos de asas de mariposa – caso aquilo funcionasse.
No quarto, lá embaixo na cidade, ela ficou em pé diante da janela por um tempo e falou com Lazlo de um jeito novo e tímido, e aquela sensação de iminência não passou. Sarai pensou nos lamentos invejosos de Rubi sobre como ela “podia viver”. Ela nunca havia sentido que aquilo era verdade, mas agora sim.
Era viver, se era um sonho?
Apenas um sonho, lembrou-se, mas as palavras tinham pouco sentido quando os nós do tapete feito à mão sob seus pés imaginários eram mais vívidos do que o travesseiro macio de seda sob sua face real. Quando a companhia desse sonhador a fez sentir-se acordada pela primeira vez, mesmo enquanto tentava dormir. Ela estava ansiosa, parada lá com ele. Sua mente estava inquieta.
– Eu me pergunto se será mais fácil cair no sono se eu não estiver falando.
– É claro – ele respondeu. – Você quer se deitar? – Ele corou com a própria sugestão. Ela também. – Por favor, fique à vontade. Posso te trazer alguma coisa?
– Não, obrigada – respondeu Sarai. E com uma sensação engraçada de repetir a si mesma, deitou-se na cama, da mesma forma que fizera lá em cima. Ficou perto da beirada. Não era uma cama larga. Ela não achou que ele fosse se deitar também, mas deixou espaço suficiente caso ele o fizesse.
Ele ficou perto da janela, e ela o viu fazendo um gesto de colocar as mãos nos bolsos, apenas para descobrir que suas calças não tinham bolsos, e ficando constrangido por um momento antes de se lembrar que aquilo era um sonho. Então os bolsos apareceram, e suas mãos entraram.
Sarai dobrou as mãos mais uma vez sob a face. Essa cama era mais confortável do que a sua. O quarto inteiro era. Ela gostava das paredes de pedra e vigas de madeira que tinham sido construídas por mãos humanas e ferramentas em vez de pela mente de Skathis. Era confortável e agradável também. Era aconchegante. Nada na cidadela era aconchegante, nem mesmo sua alcova atrás do closet, embora chegasse perto. Surpreendeu-a com uma força renovada o fato de ser a cama de seu pai, da mesma forma que a cama na alcova havia sido dele antes de ser dela. Quantas vezes ela o tinha imaginado deitado acordado ali, planejando assassinatos e vingança? Agora, enquanto ela estava deitada ali, pensou nele como um garoto, temendo ser roubado e levado para a cidadela. Se ele tivesse sonhado em ser um herói, ela pensou, como imaginou que seria? Nada do que era, ela tinha certeza. Nada como um templo arruinado onde apenas fantasmas podem entrar.
E então, bem... não foi repentino, exatamente. Em vez disso, Sarai tornou-se consciente de que algo estava levemente diferente, e ela entendeu o que era: ela não estava mais em múltiplos lugares, mas apenas em um. Ela tinha deslocado sua concentração do seu corpo real deitado em sua cama real, e da mariposa na testa de Lazlo. Ela estava apenas ali, e sentiu que era ainda mais real por isso.
Oh. Ela sentou-se, dando-se conta de onde estava. Ela estava ali. Tinha funcionado. O fio que a ligava à mariposa não tinha se rompido. Ela estava dormindo – ah, o descanso abençoado – e em vez de seu inconsciente repleto de terrores à espreita, ela estava a salvo no inconsciente de Lazlo. Ela riu – um pouco incrédula, um pouco nervosa, um pouco contente. Tudo bem, muito contente. Bem, muito nervosa também. Muito tudo. Ela estava dormindo no sonho de Lazlo.
Ele observou-a, com expectativa. Vê-la ali – suas pernas azuis desnudas até os joelhos, enroscadas em seus cobertores amarrotados, e seus cabelos desgrenhados sobre o travesseiro – era uma visão que doía de tão doce. Ele estava bastante consciente de suas mãos, e não era por causa do constrangimento de não saber o que fazer com elas, mas sim por saber o que desejava fazer com elas. Suas palmas formigavam: a necessidade doída de tocá-la. Suas mãos pareciam bem despertas.
– Então? – ele perguntou, ansioso. – Funcionou?
Ela assentiu, abrindo um sorriso largo e maravilhado que ele não pôde deixar de retribuir. Que noite longa e extraordinária tinha sido. Quantas horas tinham se passado desde que ele fechara os olhos, esperando que ela viesse. E agora... de certa forma, ele não conseguia entender, ela estava... bem... era isso, não? Sua mente só pensava nela.
Ele guardava uma deusa em sua mente da mesma forma que alguém pega uma borboleta nas mãos. Mantendo-a segura tempo suficiente para libertá-la.
Livre. Era possível? Ela podia ficar livre um dia?
Sim.
Sim. De certa forma.
– Bem, então – ele disse, sentindo uma amplidão de possibilidades tão imensa quanto os oceanos. – Agora que você está aqui, o que fazemos?
Era uma boa pergunta. Com as infinitas possibilidades do sonho, não era fácil reduzi-las.
– Podemos ir para qualquer lugar – disse Lazlo. – O mar? Podíamos navegar um leviatã, e libertá-lo. Os campos de Thanagost? Generais e lobos soltos e botões de ulola pairando como bolhas vivas. Ou a Espiral de Nuvem. Podíamos subir nela e roubar esmeraldas dos olhos do sarcófago, como Calixte. Você gostaria de se tornar uma ladra de joias, senhorita?
Os olhos de Sarai brilharam.
– Isso parece divertido – disse ela. Tudo soava maravilhoso. – Mas você só mencionou lugares e coisas reais até agora. Sabe do que eu gostaria?
Ela estava sentada sobre os joelhos na cama, com os ombros eretos e as mãos unidas sobre as pernas. Seu sorriso era um espécime brilhante e ela usava a lua no pulso. Lazlo ficou deslumbrado ao vê-la.
– O quê? – ele perguntou. Qualquer coisa, pensou.
– Eu gostaria que os fabricantes de asas viessem para a cidade.
– Os fabricantes de asas – ele repetiu, e em algum lugar dentro dele, como se um zumbido de engrenagens e um ruído de cadeados, um cofre antes insuspeito de satisfação tivesse sido aberto.
– Como você mencionou outro dia... – disse Sarai, delicada em sua postura acanhada e excitação infantil. – Eu gostaria de comprar asas e testá-las e depois disso talvez nós possamos tentar montar em dragões e ver o que é mais divertido.
Lazlo teve de rir. Ficou cheio de satisfação. Ele achou que nunca tivesse rido desse jeito antes, desse novo lugar dentro dele onde tanta satisfação estava esperando em reserva.
– Você acabou de descrever meu dia perfeito – disse ele, e estendeu a mão, e ela pegou-a.
Ela levantou-se e saiu pelo lado da cama, mas quando seus pés tocaram o chão, um grande abalo fez um tum na rua. Um tremor sacudiu o quarto. Gesso choveu do teto, e toda a excitação desapareceu do rosto de Sarai.
– Ó, deuses – ela disse, em um sussurro. – Está acontecendo.
– O que é? O que está acontecendo?
– Os terrores, meus pesadelos. Eles estão aqui.
47
OS TERRORES
– Mostre-me – pediu Lazlo, que não estava com medo. Como dissera antes, se o terror dela se derramasse, eles lidariam com isso juntos.
Mas Sarai balançou a cabeça, selvagem.
– Não. Isso não. Feche as janelas. Corra!
– Mas o que é? – ele perguntou. Ele moveu-se na direção da janela, não para fechá-la, mas para olhar para fora. Mas antes que fizesse isso, a janela fechou-se à sua frente com um ruído forte e o trinco caiu firmemente no lugar. Com as sobrancelhas erguidas, ele voltou-se para Sarai.
– Bem, parece que você não é impotente aqui afinal de contas.
Quando ela o observou confusa, Lazlo apontou para a janela e falou:
– Você fez isso, não eu.
– Eu fiz? – ela perguntou. Ele assentiu. Ela levantou-se, mas não tinha tempo para reunir sua coragem, porque lá de fora o tum veio de novo, mais baixo agora e com tremores mais sutis, e então de novo e de novo, em uma repetição rítmica.
Tum. Tum. Tum.
Sarai afastou-se da janela.
– Ele está vindo – ela disse, tremendo.
Lazlo seguiu-a. Ele pegou em seus ombros, com delicadeza.
– Está tudo bem – respondeu. – Lembre-se, Sarai, é apenas um sonho.
Ela não conseguia sentir a verdade de suas palavras. Tudo o que sentia era a aproximação, o pavor, o pavor que era tão puro como uma destilação do medo quanto qualquer emoção que Isagol tivesse feito. Os corações de Sarai estavam desvairados de medo, e de angústia também. Como ela podia ter empregado isto, inúmeras vezes, nos sonhos dos sonhadores de Lamento? Que tipo de monstro ela era?
Havia sido sua arma mais poderosa, porque era o medo mais potente deles. E agora estava perseguindo-a.
Tum. Tum. Tum.
Grandes passos incansáveis, mais próximos, mais altos.
– Quem é? – perguntou Lazlo, ainda segurando os ombros de Sarai. Seu pânico, ele descobriu, era contagioso. Parecia passar da pele dela para a dele, subindo pelas as mãos e braços em vibrações de medo. – Quem está vindo?
– Shhh! – ela pediu, com os olhos tão arregalados que mostravam um anel completo de branco, e quando ela sussurrou foi como uma respiração moldada em palavras, e não fez nenhum som. – Ele vai te ouvir.
Tum.
Sarai congelou. Não parecia possível que seus olhos se arregalassem ainda mais, mas foi o que aconteceu e, naquele breve momento de silêncio, os passos cessaram – a pausa terrível que todos os lares de Lamento tinham temido por duzentos anos –, o pânico de Sarai suplantou a racionalidade de Lazlo, de forma que os dois estavam nele, vivendo-o, quando as janelas, sem aviso, foram arrancadas das dobradiças em uma confusão de madeira partindo-se e vidro estilhaçando-se. E lá, do lado de fora, estava a criatura cujos passos sacudiam os ossos de Lamento. Não era uma coisa viva, mas movia-se como se fosse, sinuosa como um ravide e brilhante como mercúrio derramado. Era todo de mesarthium, músculo liso esculpido para poder agachar e saltar. O flanco de um grande felino, o pescoço e a corcunda de um touro, asas tão afiadas e terríveis quanto as asas do grande serafim, embora em escala menor. E uma cabeça... uma cabeça que era feita para os pesadelos.
A cabeça era de cadáver.
Era metal, é claro, mas como o relevo nas paredes do quarto de Sarai – os pássaros e lírios tão reais que zombavam dos mestres entalhadores de Lamento –, era praticamente vivo. Ou melhor, praticamente morto. Era uma coisa morta, uma coisa podre, um crânio com a carne se soltando, revelando dentes até a raiz em uma careta de presas, e no lugar dos olhos não havia nada, apenas uma terrível luz que tudo via. Ele tinha chifres grossos como braços, que afinavam até pontas afiadas; e bateu a pata no chão, atirando a cabeça para frente, com um rugido raspando sua garganta de metal.
Era Rasalas, a besta da âncora norte, e não era o verdadeiro monstro. O verdadeiro monstro estava montado nele: Skathis, deus das bestas, mestre do metal, ladrão de filhos e filhas, atormentador de Lamento.
Lazlo tinha apenas o mural grosseiramente desenhado para se orientar, mas viu o deus que havia roubado tanto – não só filhos e filhas, embora esse fosse o cerne sombrio disso. Skathis havia roubado o céu da cidade, e a cidade do mundo. Que poder tremendo e insidioso isso exigiu, e ali estava o deus em pessoa.
Podia-se esperar uma presença para rivalizar a do Matador de Deuses – uma contrapartida sombria à sua luz, como dois reis se afrontando em um tabuleiro.
Mas não. Ele não era nada perto do Matador de Deuses. Mas ali não havia majestade sombria, não havia nenhuma magnificência. Ele era de estatura mediana e o rosto era apenas um rosto. Ele não era o deus-demônio do mito. Exceto pela cor – aquele azul extraordinário – não havia nada de extraordinário nele, a não ser a crueldade em seu semblante. Ele não era nem bonito nem feio, distinguia-se somente pela malícia que ardia nos olhos cinzentos, e aquele sorriso de serpente, traiçoeiro e venenoso.
Mas ele montava em Rasalas, e aquilo mais do que compensava por qualquer falta de grandiosidade divina. A besta como uma extensão de sua própria psique, cada passo e movimento da cabeça eram dele. Cada rugido que ecoava pela garganta de metal era dele tão certamente como se emitido de sua própria garganta. Seus cabelos eram de um castanho-escuro e ele usava uma coroa de mesarthium com formato de uma grinalda de serpentes engolindo o rabo umas das outras. Elas moviam-se em sua fronte em ondas sinuosas e devoradoras, em círculos, incansáveis. Ele vestia um casaco de veludo e pó de diamantes com longas abas esvoaçantes no formato de lâminas de faca, e as botas eram de couro branco de espectral com fivelas de lys.
Era uma coisa amaldiçoada esfolar um espectral e usar sua pele. Aquelas botas podiam quase ser de couro humano, de tão erradas que eram.
Mas nenhum dos detalhes terríveis podiam responder pela pureza do pavor que tomou conta do quarto – por meio do sonho, embora tanto Lazlo quanto Sarai tivessem perdido a noção desse fato, e estivessem à mercê das torrentes do inconsciente. Aquele pavor puro, como Lazlo havia testemunhado inúmeras vezes desde que chegara a Lamento, era um horror coletivo que havia sido construído por dois séculos. Quantos jovens, homens e mulheres, haviam sido levados em todo aquele tempo, e retornado sem memória depois desse momento – esse momento à sua porta ou janela quando o deus chegou chamando. Lazlo pensou em Suheyla, Azareen e Eril-Fane e tantos outros, levados assim, sem mais nem menos, não importava o que suas famílias fizessem para mantê-los em segurança.
Mais uma vez a pergunta surgiu em sua mente: por quê? Todos os meninos e meninas roubados, suas memórias levadas e muito mais do que isso.
O berçário, os bebês. Por quê?
Por um lado, era óbvio, e certamente nada novo. Se houve um dia um conquistador que não extorquiu esse dízimo devastador de seus súditos, ele é desconhecido na história. Os jovens são espólio de guerra. Posses, mão de obra. Ninguém está seguro. Tiranos sempre levaram quem eles quiseram, e tiranos sempre o farão. O rei de Syriza tinha um harém até hoje.
Mas isso era diferente. Havia alguma coisa sistemática nos sequestros, algo escondido. Era essa ideia que incomodava a mente de Lazlo – mas brevemente, apenas para ser encoberta pelo pavor esmagador. Há poucos minutos ele tinha pensado, indiferente, que podia capturar os terrores de Sarai como vaga-lumes em um pote de vidro. Agora a enormidade desses terrores estava pronta para capturá-lo.
– Estranho, o sonhador – afirmou Skathis, estendendo uma mão despótica. – Venha comigo.
– Não! – gritou Sarai. Ela agarrou o braço de Lazlo e apertou-o contra si.
Skathis sorriu com malícia.
– Venha agora. Você sabe que não há segurança e não há salvação. Há apenas rendição.
Apenas rendição. Apenas rendição.
O que inundava Sarai era o sofrimento de qualquer um que tivesse ficado para trás, cada familiar ou noivo, namorado de infância ou melhor amigo que não podia fazer nada a não ser se render enquanto seu ente querido era levado para cima. Rasalas apoiou-se em suas patas traseiras, com as garras imensas descendo com força sobre o parapeito da janela e destruindo-a. Sarai e Lazlo recuaram aos tropeços, mas mantiveram-se unidos.
– Você não pode levá-lo – disse Sarai, com a voz sufocada.
– Não se preocupe, criança – respondeu Skathis, olhando-a fixamente com seus olhos frios. – Estou levando-o para você.
Ela balançou a cabeça, em um ímpeto, diante da ideia de que isso fosse feito em seu nome – como Isagol havia levado Eril-Fane para si, Skathis levaria Lazlo para ela. Mas então... a ideia – o paradoxo dela, de Skathis tirar Lazlo dela para levá-lo até ela – dividiu Sarai em duas pessoas, aquela na cidadela e a outra em seu quarto, e descobriu a fronteira entre o sonho e a realidade, que tinha se perdido no medo. Isso era apenas um sonho e, desde que ela soubesse disso, não seria impotente dentro dele.
Todo o medo foi varrido como poeira em uma tempestade. Vocêéa Musa dos Pesadelos, Sarai disse a si mesma. Você é a mestra, não escrava deles.
E ela levantou uma mão, sem formar em sua mente um ataque preciso, mas – assim como com a mahalath – deixou uma voz profunda dentro dela decidir.
E, aparentemente, a voz decidira que Skathis estava morto.
Diante dos olhos de Sarai e de Lazlo, o deus sacudiu-se, com os olhos se arregalando em choque enquanto uma hreshtek lhe atravessava o peito. Seu sangue era vermelho – tão vermelho quanto a pintura no mural, na qual, ocorreu a Lazlo, Skathis estava representado exatamente assim: atingido pelas costas, a espada cortando bem entre os seus corações. Uma bolha vermelha apareceu em seus lábios e rapidamente ele estava morto. Muito rapidamente. Essa não era uma representação natural de sua morte, mas um claro lembrete disso. Você está morto, fique morto, deixe-nos em paz. Rasalas, a besta, congelou no lugar – todo mesarthium morrendo com seu mestre –, enquanto, nas suas costas, o lorde dos Mesarthim caía, secando, desinflando, até que nada restasse a não ser uma casca de carne azul, sem sangue e sem espírito a ser carregado dali com um grito terrível, em um flash de branco derretido, pelo grande pássaro, a Aparição, que surgiu do nada e sumiu da mesma forma.
O quarto estava silencioso, exceto pela respiração rápida. O pesadelo havia acabado, e Lazlo e Sarai ainda estavam unidos, olhando para a face de Rasalas, congelado enquanto rosnava. Seus pés enormes ainda estavam em cima do parapeito da janela, garras enfiadas na pedra. Lazlo estendeu um braço trêmulo, fechando a cortina. O outro braço estava na posse de Sarai. Ela ainda o agarrava, com seus dois braços enlaçados nele como se quisesse lutar com Skathis por ele. Mas a garota havia feito melhor do que isso, pois vencera o deus das bestas. Lazlo tinha certeza de que ele não havia feito nada daquilo.
– Obrigado – ele agradeceu, virando-se para ela. Os dois estavam tão perto um do outro, o corpo dela pressionado contra o braço dele. Ao virar-se, ficaram ainda mais próximos, face a face, o rosto dele virado para baixo, o dela para cima, de forma que o espaço entre os dois era pouco maior do que o vapor de chá que, mais cedo naquela noite, havia pairado entre eles na mesa à margem do rio.
Aquilo era novo para ambos – aquela proximidade que misturava respiração e calor – e compartilharam a sensação de que estavam absorvendo um ao outro, derretendo-se juntos em um recipiente único. Era uma intimidade que ambos haviam imaginado, mas nunca com sucesso – agora sabiam. A verdade era muito melhor do que a fantasia. As asas selvagens e suaves estavam em um frenesi. Sarai não conseguia pensar, queria apenas continuar derretendo.
Mas havia algo no caminho. A garota ainda piscava para se livrar da imagem dos dentes brilhantes de Rasalas e do pensamento de que tudo aquilo era culpa sua.
– Não me agradeça – ela disse, soltando o braço de Lazlo e fitando o chão, desviando do olhar dele. – Eu trouxe isso aqui. Você deveria me expulsar. Você não me quer na sua mente, Lazlo. Eu vou simplesmente arruiná-la.
– Você não arruína nada – o garoto respondeu, e sua voz rouca nunca foi tão doce. – Eu posso estar dormindo, mas esta foi a melhor noite da minha vida. – Maravilhado, ele a encarou, suas sobrancelhas cor de canela, a perfeita curva de suas bochechas azuis e aqueles lábios sedutores com a prega no meio, doces como uma fatia de fruta madura. Ele arrastou seu olhar de volta aos olhos dela. – Sarai – ele falou e, se os ravides ronronassem, teriam um som parecido com o jeito como ele pronunciou o nome dela –, você precisa entender. Eu quero você na minha mente.
E ele a queria em seus braços. Ele a queria em sua vida. Ele não a queria presa no céu, não caçada pelos humanos, não sem esperança e não importunada por pesadelos sempre que fechasse os olhos. Ele queria levá-la a uma margem de rio real e deixá-la afundar os dedos dos pés na lama. Ele queria abraçá-la em uma biblioteca real e sentir o cheiro dos livros, abri-los e lê-los um para o outro. Ele queria comprar asas dos fabricantes de asas para que pudessem voar para longe, com um estoque de bala de sangue em um pequeno baú de tesouro, para que pudessem viver para sempre. Lazlo soube, quando vislumbrou o que havia além da Cúspide, que o reino do incompreensível era muito maior do que imaginara e desejava descobrir o quanto maior. Com ela.
Mas primeiro... Primeiro ele desejava muito, muito beijá-la.
Ele procurou consentimento em seus olhos e encontrou. Ela lhe deu gratuitamente. Era como um fio de luz passando de um para o outro, e era mais do que consentimento. Era cumplicidade, desejo. A respiração de Sarai ficou mais rasa e a garota deu um passo à frente, fechando aquele pequeno espaço. Havia um limite àquele derretimento e ambos o encontraram, e desafiaram-no. Seu peito era duro contra o da garota, que era macia contra o dele. Suas mãos fecharam-se em torno da cintura dela. Os braços dela em volta do pescoço dele. As paredes soltaram um brilho como de sol nascente na água revolta. Inúmeras estrelinhas acenderam-se e nem Sarai nem Lazlo sabiam quem estava fazendo aquilo. Talvez ambos estivessem, e havia tanto brilho naqueles diamantes de luz intermináveis, mas havia consciência também, e urgência. Sob a pele do sonho, ambos sabiam que a aurora estava próxima e que seu abraço não poderia sobreviver.
Então Sarai ficou na ponta dos pés, apagando o último espacinho entre seus rostos corados. Seus cílios fecharam-se, acastanhado cor de mel e gato-selvagem, e suas bocas, macias e desejosas, encontraram-se e tiveram apenas tempo para se tocarem e pressionar, e abrirem-se docemente antes que o primeiro raio de luz da manhã entrasse pela janela, tocasse a asa parda da mariposa sobre a testa de Lazlo e, em um sopro de fumaça índigo, a aniquilasse.
48
SEM LUGAR NO MUNDO
Sarai desapareceu dos braços de Lazlo e Lazlo desapareceu dos de Sarai. O sonho compartilhado desfez-se bem no meio e derramou os dois para fora. Sarai acordou em sua cama na cidadela com o calor dos lábios de Lazlo ainda nos seus, e Lazlo acordou na cidade, um sopro de fumaça na forma de mariposa dissipando-se em sua testa. Os dois levantaram-se ao mesmo tempo e para ambos, a repentina ausência era a poderosa inversão da presença que haviam sentido apenas um instante antes. Não a mera presença física – o calor de um corpo contra o seu (embora isso também) –, mas algo mais profundo.
Essa não era a frustração que alguém sente ao acordar de um sonho bom. Era a desolação de ter encontrado o lugar que encaixa, o único lugar verdadeiro, e experienciar o primeiro suspiro inebriante de estar certo antes de ser jogado para longe e atirado em uma solitária e aleatória dispersão.
O lugar era o outro e a ironia era severa, já que não poderiam estar no mesmo lugar fisicamente, e o mais perto que haviam chegado um do outro foi quando Sarai gritou para ele no terraço enquanto os fantasmas a puxavam para dentro.
Entretanto, mesmo sabendo que isso era verdade – que eles não estiveram no mesmo lugar durante essa longa noite, mas praticamente em diferentes planos de existência, ele no solo, ela no céu – Sarai não podia aceitar que eles não estiveram juntos. Ela derrubou-se novamente na cama e seus dedos estenderam-se curiosos para traçar os próprios lábios, em que um momento antes os dele haviam estado.
Não realmente, talvez, mas verdadeiramente. Quer dizer, talvez eles não tivessem se beijado na realidade, mas haviam se beijado de verdade. Tudo sobre essa noite era verdade de uma forma que transcendia seus corpos.
Mas isso não significa que seus corpos quisessem ser transcendidos.
O desejo.
Lazlo também caiu de volta em seus travesseiros, ergueu os punhos até os olhos e pressionou-os. A respiração sibilou entre os dentes cerrados. Ter sido agraciado com a minúscula prova do néctar de sua boca, e o tão breve roçar do veludo de seus lábios, era uma crueldade indizível. Ele se sentiu incendiado. Teve de se convencer que liberar um trenó de seda e voar imediatamente para a cidadela não era uma opção viável. Isso seria como o príncipe subindo à torre da donzela, tão louco de desejo que esquece sua espada e é morto pelo dragão antes mesmo de chegar perto dela.
Exceto pelo fato de que o dragão, neste caso, era um batalhão de fantasmas a quem nenhuma espada podia ferir e, de toda forma, ele não tinha uma espada. Na melhor das hipóteses, tinha um mastro acolchoado, a verdadeira arma de um herói.
Esse problema – não o beijo interrompido, mas todo o impasse da cidade e da cidadela – não seria resolvido com mortes. Isso já havia acontecido demais. Como isso seria resolvido ele não sabia, entretanto, sabia disto: os riscos eram maiores do que qualquer um imaginasse. E os riscos, para ele, agora, eram pessoais.
Desde o dia em que o Matador de Deuses entrou pelos portões de Zosma e fez seu convite extraordinário, passando pelo recrutamento dos especialistas e toda sua especulação interminável até enfim pousar os olhos em Lamento, Lazlo sentira certa liberdade da expectativa. Ah, ele queria ajudar. Muito. Sonhara acordado com isso, embora ninguém pensasse nele em busca de soluções, e ele não estivesse em busca delas pensando em si mesmo também. Ele estava meramente reflexivo. “O que eu poderia fazer?”, era seu pensamento, afinal, não era alquimista, construtor, especialista em metais ou ímãs.
Mas agora a natureza do problema havia mudado. Não eram apenas metais e ímãs, mas fantasmas e deuses, magia e vingança e mesmo que não pudesse ser chamado de especialista em nenhuma dessas coisas, tinha mais recursos para recomendar a si mesmo do que os outros, a começar por uma mente aberta.
E corações abertos.
Sarai estava lá em cima. Sua vida estava em perigo. Então, naquela manhã, Lazlo não se perguntou “o que posso fazer?” enquanto o segundo Sabá da décima segunda lua acordava a cidade de Lamento, mas sim “o que vou fazer?”.
Era uma pergunta nobre e, se o destino tivesse achado conveniente revelar sua resposta surpreendente naquele momento, ele não teria acreditado.
Eril-Fane e Azareen vieram para o café da manhã e Lazlo viu-os sob a lente de tudo o que tivera ciência na noite anterior, e seus corações se ressentiram pelo casal. Suheyla colocou na mesa pãezinhos no vapor, ovos cozidos e chá. Os quatro sentaram-se sobre as almofadas em torno da mesa de pedra baixa no jardim. Suheyla não sabia de nada ainda, além do óbvio: alguma coisa acontecera, alguma coisa mudara.
– Então – ela quis saber –, o que vocês encontraram lá em cima, de verdade? Imagino que a história do pontão era uma mentira.
– Não exatamente uma mentira – respondeu Lazlo. – O pontão teve um vazamento. – Ele tomou um gole de chá. – Com a ajuda de um gancho de carne.
A xícara de Suheyla tilintou no pires.
– Um gancho de carne? – ela repetiu, com os olhos arregalados, depois estreitos. – Como aconteceu de o pontão encontrar um gancho de carne?
A pergunta foi dirigida a Lazlo, uma vez que ele parecia mais inclinado a falar do que os outros dois. Ele virou-se para Eril-Fane e Azareen, pois parecia trabalho dos dois contar, não dele.
Eles começaram pelos fantasmas. Na verdade, nomearam uma grande quantidade deles, a começar pela avó de Azareen. Havia mais do que Lazlo percebera. Tios, vizinhos, conhecidos. Suheyla chorou em silêncio. Até um primo que morrera alguns dias atrás, um jovem chamado Ari-Eil, fora visto. Todos estavam pálidos e doentes com as implicações. Os cidadãos de Lamento, ao que parece, eram cativos até na morte.
– Ou todos fomos condenados e a cidadela é o nosso inferno – disse Suheyla, tremendo – ou há outra explicação. – Encarando o filho. Ela não era do tipo que acreditava em inferno e estava pronta para a verdade.
Eril-Fane limpou a garganta e falou, com enorme dificuldade:
– Há uma... sobrevivente... lá em cima.
Suheyla ficou pálida.
– Uma sobrevivente? – ela engoliu em seco. – Cria dos deuses?
– Uma garota – disse Eril-Fane. Ele teve de limpar a garganta de novo. Cada sílaba parecia lutar contra ele: – com cabelos ruivos. – Cinco palavras simples, uma garota com cabelos ruivos, que desencadearam uma torrente de emoções. Se o silêncio pudesse causar um estrondo, ele o fez. Se pudesse se quebrar como uma onda e inundar um cômodo com toda a força do oceano, ele o fez. Azareen parecia esculpida na pedra. Suheyla segurou na beirada da mesa. Lazlo estendeu uma mão para estabilizá-la.
– Viva? – ela sussurrou, ainda encarando o filho. Lazlo pode ver o sentimento ricochetear nela, a onda hesitante de esperança recuando no solo firme do pavor. Sua neta estava viva. Sua neta era cria dos deuses. Sua neta estava viva. – Conte-me – ela pediu, desesperada para ouvir mais.
– Não tenho mais nada a dizer – respondeu Eril-Fane. – Eu a vi apenas por um instante.
– Ela o atacou? – perguntou Suheyla.
Ele balançou a cabeça, parecendo confuso. Foi Azareen quem respondeu:
– Ela nos alertou – disse ela. Seu cenho estava franzido, seus olhos, atormentados. – Não sei por quê. Mas todos nós estaríamos mortos se não fosse por ela.
Um silêncio frágil instalou-se. Todos trocaram olhares em volta da mesa, tão atordoados e cheios de perguntas que Lazlo finalmente falou.
– Seu nome é Sarai – ele disse, e as três cabeças viraram-se para ele. Ele estivera em silêncio, apartado da violência da emoção deles. Aquelas cinco palavras, “uma garota com cabelos ruivos”, criaram um efeito oposto nele. Carinho, prazer, desejo. Sua voz carregava tudo isso quando pronunciou aquele nome, em um eco do ronronar de ravide com o qual falara a ela.
– Como você pode saber disso? – perguntou Azareen, a primeira a recuperar-se da surpresa. Seu tom era direto e cético.
– Ela me disse – Lazlo explicou. – Ela pode entrar nos sonhos. É o seu dom. Ela entrou no meu.
Eles contemplaram a informação.
– Como você sabe que era real? – Eril-Fane perguntou.
– Não é como os sonhos que eu tinha antes – disse Lazlo. Como ele podia colocar em palavras como foi estar com Sarai? – Sei que isso parece estranho, mas sonhei com ela mesmo antes de vê-la. Antes mesmo de ver o mural e saber que os Mesarthim eram azuis. Foi por isso que lhe perguntei aquele dia. Eu achava que ela era Isagol, porque eu não sabia sobre os... – ele hesitou. Essa era a vergonha secreta deles, e tinha sido escondida dele. As crias dos deuses. A palavra era tão terrível quanto o nome Lamento. – Sobre as crianças – ele soltou. – Mas agora eu sei. Eu... eu sei de tudo.
Eril-Fane o observou, mas era o olhar cego e sem piscar de alguém pensando no passado.
– Então você sabe o que fiz.
Lazlo assentiu. Quando olhava para Eril-Fane agora, o que via? Um herói? Um assassino? Essas coisas anulavam-se mutuamente, ou o assassino sempre sobrepujaria o herói? Será que eles podiam existir lado a lado, tais opostos, como o amor e o ódio que ele carregou por três longos anos?
– Tive de fazer aquilo – disse o Matador de Deuses. – Não podíamos sofrer com eles vivos, não com a magia que os deixaria acima de nós, para novamente nos dominar quando crescessem. O risco era grande demais. – Tudo tinha o tom de algo que fora repetido com frequência e seu olhar apelava para a compreensão de Lazlo. Quando Sarai lhe contou o que Eril-Fane fizera, ele imaginava que o Matador de Deuses se arrependesse disso hoje. Mas lá estava ele, defendendo o massacre.
– Eles eram inocentes – Lazlo falou.
O Matador de Deuses pareceu encolher.
– Eu sei. Você acha que eu queria isso? Não havia outra maneira. Não havia lugar para eles neste mundo.
– E agora? – Lazlo perguntou. Ele sentia-se frio. Essa não era a conversa que ele esperava ter. Eles deviam estar fazendo um plano. Em vez disso, sua pergunta foi respondida com o silêncio, a única interpretação possível disso era: ainda não havia lugar para eles neste mundo. – Ela é sua filha. Ela não é um monstro. Ela está com medo. Ela é gentil.
Eril-Fane encolheu-se ainda mais. As duas mulheres colocaram-se ao lado dele. Azareen lançou um olhar de alerta para Lazlo e Suheyla segurou a mão do filho.
– E quanto aos nossos mortos, presos lá em cima? Isso é gentil?
– Isso não foi ela quem fez – respondeu Lazlo, não para descartar a ameaça, mas pelo menos para exonerar Sarai. – Deve ter sido um dos outros.
Eril-Fane ficou perplexo.
– Outros?
Como eram profundas e emaranhadas as raízes do ódio, refletiu Lazlo, vendo como até mesmo agora, com o remorso e autorrepugnância o corroendo por dentro como um câncer de quinze anos, o Matador de Deuses não sabia dizer se desejava as crias dos deuses vivos ou se os temia assim.
Quanto a Lazlo, ele ficou inquieto com a informação. Sentiu-se nauseado por temer que não pudesse confiar em Eril-Fane.
– Há outros sobreviventes – limitou-se a responder.
Sobreviventes. Havia tanto significado naquela palavra: força, resiliência, sorte, junto à sombra de qualquer crime ou crueldade que tivesse sobrevivido. Nesse caso, Eril-Fane era o crime, a crueldade. Os outros haviam sobrevivido a ele, e a sombra caiu muito escura sobre aquele homem.
– Sarai nos salvou – Lazlo falou em voz baixa. – Agora temos de sal-vá-la, e aos outros também. Você é Eril-Fane. Cabe a você. As pessoas seguirão a sua liderança.
– Não é tão simples assim, Lazlo – disse Suheyla. – Não há como você entender o ódio. É como uma doença.
Ele estava começando a entender. Como Sarai havia dito? “O ódio dos usados e atormentados, que são filhos dos usados e atormentados, e cujos filhos serão usados e atormentados”.
– Então, o que você está dizendo? O que você quer fazer? – Ele encheu-se de coragem e perguntou: – Matá-los?
– Não! – exclamou Eril-Fane. – Não. – Era uma resposta à pergunta, mas veio como se ele estivesse se defendendo de um pesadelo ou de um golpe, como se mesmo a ideia fosse um ataque e ele não pudesse supor-tá-la. Ele colocou o rosto nas mãos, de cabeça baixa. Azareen estava afastada, observando-o, seus olhos castanhos e marejados e tão cheios de dor que ela poderia ser feita disso. Suheyla, com os olhos cheios de lágrimas, pousou sua mão sobre o ombro do filho.
– Vou pegar o segundo trenó de seda – falou levantando a cabeça e, enquanto os olhos das mulheres estavam úmidos, os dele estavam secos. – Vou subir e me encontrar com eles.
Azareen e Suheyla imediatamente opuseram-se à ideia.
– E oferecer-se como sacrifício? – perguntou Azareen. – O que isso vai resolver?
– Me parece que vocês mal conseguiram escapar com vida – Suheyla observou, com mais suavidade.
Eril-Fane olhou para Lazlo, e havia uma impotência no olhar dele, como se quisesse que Lazlo lhe dissesse o que fazer.
– Vou falar com Sarai hoje à noite – ele ofereceu-se. – Vou perguntar se ela pode persuadir os outros a aceitarem uma trégua.
– Como você sabe que ela virá de novo?
Lazlo corou, temendo que vissem o que estava escrito em seu rosto.
– Ela disse que viria – mentiu. Eles ficaram sem tempo para fazer planos, mas ela não precisava dizer. A noite não poderia demorar mais, e ele tinha certeza de que ela sentia o mesmo. E da próxima vez ele não teria de esperar até o chegar preciso da alvorada para puxá-la para perto. Ele limpou a garganta. – Se ela disser que é seguro, podemos subir amanhã.
– Nós? – disse Eril-Fane. – Não. Você não vai. Não arriscarei a vida de ninguém além da minha.
Azareen virou o rosto ao ouvir isso e, na desolação de seus olhos, Lazlo viu uma sombra de angústia de amar alguém que não ama a si mesmo.
– Ah, vou com você – afirmou Lazlo, não com força, mas com simples determinação. Ele estava imaginando desembarcar do trenó de seda na palma do serafim, e Sarai à sua frente, tão real quanto ele, de carne e osso. Ele precisava estar lá. Fosse qual fosse a aparência que esses devaneios produziram em seu rosto, Eril-Fane não tentou argumentar com ele. Quanto a Azareen, ela tampouco seria deixada para trás. Mas, primeiro, os cinco lá na cidadela tinham de concordar, o que só poderia acontecer no dia seguinte.
Enquanto isso, eles tinham de lidar com o dia de hoje. Lazlo tinha de ir à Câmara dos Mercadores de manhã e pedir a Soulzeren e a Ozwin, em particular, para inventarem alguma desculpa plausível para atrasar o lançamento do segundo trenó de seda. Todos estariam esperando que à ascensão fracassada se seguisse um sucesso, o que, é claro, não podiam obter, pelo menos não ainda.
Quanto ao segredo, seria guardado dos cidadãos. Eril-Fane considerou não contar para os Tizerkane, também, por medo de que isso causasse muito tumulto e fosse difícil de esconder. Mas Azareen foi firme em sua defesa e argumentou que precisavam estar preparados para qualquer coisa que acontecesse.
– Eles podem aguentar – disse ela, acrescentando suavemente: – Apenas não precisam saber de tudo ainda.
Ela se referia a Sarai e de quem ela era filha, Lazlo entendeu.
– Há algo que não compreendo – ele disse, enquanto se preparava para sair. Parecia-lhe que o mistério no centro de tudo tinha a ver com as crias dos deuses. – Sarai falou que havia trinta deles no berçário naquele dia.
Eril-Fane olhou diretamente para suas mãos. Os músculos em sua face enrijeceram-se. Lazlo ficou desconfortável em pressionar nessa linha de perguntas e estava longe de ter certeza de que queria mesmo uma resposta, mas pareceu importante demais para não se aprofundar.
– E embora isso... não seja um número pequeno, deve ser apenas uma fração. – Ele estava imaginando o berçário como uma fileira de berços idênticos. Como não tinha entrado na cidadela e visto como tudo era de mesarthium, imaginou berços rústicos de madeira, pouco mais do que caixas de madeira abertas, como as que os monges usavam para os órfãos no mosteiro.
Ali estava a coisa que perturbava Lazlo como um dente faltando. Ele próprio tinha sido um bebê em uma fileira de berços idênticos e compartilhava um nome com incontáveis órfãos para provar isso. Existiam muitos deles, muitos Estranhos, e... ainda havia muitos deles.
– E quanto a todos os outros? – ele indagou, olhando de Eril-Fane para Azareen, e por último para Suheyla, que, ele suspeitava, tinha dado à luz um deles. – Os que não eram mais bebês? Se os Mesarthim vinham fazendo isso todo o tempo... – Isso? Ele estremeceu com sua própria perífrase, usando uma palavra tão sem sentido para obscurecer uma verdade tão medonha. Reprodução. Era isso que eles faziam. Não era?
Por quê?
– Durante dois séculos – ele insistiu –, devia haver milhares de crianças.
Os rostos dos três estavam com o mesmo olhar desolado e percebeu que o compreendiam. Eles podiam tê-lo interrompido e o poupado de dizer, mas não o fizeram, então ele perguntou diretamente:
– O que aconteceu com todo o resto?
Suheyla respondeu. Sua voz estava sem vida:
– Nós não sabemos. Não sabemos o que os deuses fizeram com eles.
49
VÉU DE DEVANEIO
Não houve sono de beleza para Thyon Nero. Bem o oposto.
“Isso pode não te matar”, Estranho tinha dito, “mas o tornará feio.” Thyon lembrou-se da zombaria, o tom fácil de provocação disso, enquanto retirava outra seringa de espírito de suas próprias veias surradas. Não havia outro jeito, ele precisava produzir mais azoth de uma vez. Um lote de controle, depois dos... inexplicáveis... resultados do teste da noite anterior.
Ele lavara todos os vidros e instrumentos com cuidado. Embora pudesse ter requisitado um assistente para fazer essas tarefas servis, tinha ciúmes demais de seu segredo para deixar qualquer um entrar em seu laboratório. De qualquer forma, mesmo que tivesse um assistente, ele mesmo teria lavado os frascos. Era a única forma de se certificar de que não havia impurezas na equação e nenhum fator desconhecido que pudesse afetar os resultados.
Nero sempre tinha evitado o lado místico da alquimia e concentrado-se na ciência pura. Essa era a base de seu sucesso. Realidade empírica. Resultados, repetidos, verificáveis. A solidez da verdade que podia segurar nas mãos. Mesmo enquanto lia as histórias do Milagres para o café da manhã, procurava por pistas. Era da ciência que ele estava atrás, traços de ciência, como a poeira sacudida de uma tapeçaria de milagres.
E quando relia as histórias, ainda era pesquisa.
Quando as lia para cair no sono, um hábito que era tão secreto quanto a receita do azoth, era possível que sua mente divagasse em uma espécie de devaneio que parecia mais místico do que material, mas eram contos de fadas, afinal, e era apenas nesses momentos que sua mente se desligava de seu rigor. O que quer que fosse, desaparecia pela manhã.
Mas a manhã havia chegado. Ele podia não ter janelas para constatar, mas havia um relógio tiquetaqueando regularmente. O sol se levantara e Thyon Nero não estava lendo contos de fadas agora. Ele destilava o azoth como havia feito centenas de vezes antes. Então por que aquele véu tremeluzente de devaneio havia se estendido sobre si agora?
Ele afastou a ideia. O que quer que respondesse pelos resultados de seus experimentos, não era místico e nem era o mesarthium, tampouco o espírito. Havia uma explicação científica para tudo.
Até mesmo “deuses”.
C O N T I N U A
26
PESSOAS DESTRUÍDAS
Sarai tinha vindo inúmeras vezes até essa janela. Mais do que a qualquer outra em Lamento. Era a janela de seu pai e raramente passava uma noite sem visitá-lo.
Uma visita para atormentá-lo – e atormentar a si também, enquanto tentava imaginar ser o tipo de criança que um pai poderia amar em vez de matar.
A janela estava aberta. Não havia obstáculo para entrar, mas ela hesitou e pousou as mariposas no parapeito para espiar lá dentro. Não havia muita coisa no quarto estreito: um armário de roupas, algumas prateleiras, e uma cama com um colchão de penas coberto por uma colcha bordada à mão. Havia apenas luz suficiente entrando pela janela para dar profundidade à escuridão, então ela viu, nos tons de cinza, o contorno de uma forma. Um ombro, voltado para baixo. Ele dormia de lado, com as costas para a janela.
Lá em cima, no seu próprio corpo, os corações de Sarai balbuciaram. Ela estava nervosa, agitada, como se fosse uma espécie de reencontro. Um reencontro unilateral. Fazia dois anos que ele partira e havia sido um alívio tão grande quando ele foi – ficaria livre da perturbação constante de Minya. Todos os dias – todos os dias – a garotinha pedia para saber sobre o que ele tinha sonhado, e o que Sarai tinha soltado sobre seu pai. Qualquer que fosse a resposta, ela nunca estava satisfeita. Minya queria que Sarai o visitasse com um cataclisma de pesadelos, que destruiria sua mente e o deixaria na escuridão para sempre. Ela queria que Sarai o deixasse louco.
O Matador de Deuses sempre foi uma ameaça para o grupo – a maior ameaça. Ele era o coração pulsante de Lamento, o libertador de seu povo e seu maior herói. Ninguém era mais amado ou possuía mais autoridade, e assim ninguém era mais perigoso que ele. Depois da revolta e da libertação, os humanos haviam se mantido muito ocupados. Afinal, tinham dois séculos de tirania para superar. Tiveram de criar um governo do nada, com leis e um sistema de justiça. Também foi preciso restaurar as defesas, a vida civil, a indústria, e pelo menos a esperança do comércio. Um exército, templos, guildas, escolas – foi preciso reconstruir tudo. Foi um trabalho de anos e, durante todo esse tempo, a cidadela esteve sobre suas cabeças, fora de alcance. As pessoas de Lamento não tiveram escolha a não ser trabalhar naquilo que podiam mudar e tolerar o que não podiam – ou seja, nunca sentir o sol no rosto, ensinar as constelações para seus filhos ou colher frutas de suas próprias árvores. Houve discussões sobre mudar a cidade para fora da sombra, começar de novo em outro lugar. Um local foi até mesmo escolhido rio abaixo, mas havia uma história tão profunda ali que era difícil apenas desistir. Essa terra havia sido conquistada para eles por anjos. Com sombra ou não, era sagrada.
Faltavam-lhes os recursos, então, para tomar a cidadela, mas nunca iriam tolerá-la para sempre. Eventualmente, sua determinação iria se concentrar lá em cima. O Matador de Deuses não desistiria.
“Se você não for o fim dele”, Minya dizia, “ele será o nosso”.
E Sarai havia sido a arma de Minya. Com o Massacre vermelho e sangrento em seus corações, ela tinha tentado seu melhor e feito seu pior. Por diversas noites havia coberto Eril-Fane de mariposas e soltado cada terror de seu arsenal. Ondas de horrores, fileiras de monstros. O corpo dele ficava rígido como uma tábua. Ela ouviu dentes quebrando com a força de sua mandíbula cerrada. Nunca havia visto olhos tão espremidos, parecendo que iam se romper. Mas ela não conseguia destruí-lo; não conseguia nem o fazer chorar. Eril-Fane tinha seu próprio arsenal de horrores; ele dificilmente precisava do dela. O medo era o menor deles. Sarai não tinha entendido antes que o medo podia ser um tormento menor. Era a vergonha que o dilacerava, o desespero. Não havia escuridão para a qual pudesse mandá-lo que rivalizasse com o que ele já passava. Ele tinha vivido três anos com Isagol, a Terrível, e sobrevivido a muita coisa para enlouquecer por causa de pesadelos.
Era estranho. Toda noite Sarai dividia sua mente em cem formas, suas mariposas carregando pedaços de sua consciência pela cidade, e quando voltavam para ela, ficava inteira novamente. Era fácil. Mas alguma coisa começou a acontecer na medida em que ela atormentava mais o seu pai – um tipo diferente de divisão dentro dela, e não era tão fácil de reconciliar com o fim da noite.
Para Minya, só existiria para sempre o Massacre. Mas, na verdade, havia muito mais. Havia o antes. Garotas roubadas, anos perdidos, pessoas destruídas. E sempre havia os deuses selvagens e impiedosos.
Isagol, alcançando sua alma e tocando suas emoções como a uma harpa.
Letha, varrendo sua mente, retirando memórias e as engolindo inteiras.
Skathis à porta, vindo buscar sua filha.
Skathis à porta, trazendo-a de volta.
A função do ódio, como Sarai entendia, era erradicar a compaixão – fechar uma porta no íntimo de alguém e esquecer que ela estava lá. Se você tivesse ódio, então podia ver o sofrimento – e causá-lo – e não sentir nada exceto, talvez, uma sórdida justificativa.
Mas em algum ponto... ali naquele quarto, Sarai pensou... ela tinha perdido essa capacidade. O ódio lhe faltara e era como perder um escudo em batalha. Uma vez que ele se foi, todo o sofrimento se levantou para esmagá-la. Era demais.
Foi quando seus pesadelos se voltaram contra ela que começou a precisar do lull.
Com uma respiração profunda, Sarai retirou uma mariposa do parapeito e esporeou-a para a frente, um único fragmento de escuridão despachado para o escuro. Naquela sentinela ela focou sua atenção, e era como se estivesse lá, flutuando a centímetros do ombro do Matador de Deuses.
Exceto...
Ela mal podia dizer qual sentido vibrou primeiro com um pequeno choque de diferença, mas logo entendeu:
Aquele não era o Matador de Deuses.
O tamanho não era o mesmo, nem o cheiro. Quem quer que fosse, era mais magro que Eril-Fane e não se afundava tão profundamente nas penas. À medida que ela se ajustou à escassa luz ambiente, foi capaz de ver os cabelos pretos derramados no travesseiro, mas pouco mais que isso.
Quem era esse, dormindo na cama do Matador de Deuses? Onde estava Eril-Fane? A curiosidade tomou conta de si, e ela fez algo que jamais consideraria em tempos normais. Quer dizer: em tempos de uma ruína menos iminente.
Havia uma glave no criado-mudo, com uma cobertura preta de tricô sobre ela. Sarai direcionou um grupo de mariposas para agarrar o tecido com suas minúsculas patas e afastá-lo o suficiente para descobrir um raio de luz. Se alguém testemunhasse as mariposas comportando-se de uma forma assim tão coordenada, ficaria desconfiado de que não fossem criaturas naturais. Mas esse medo parecia estranho para Sarai agora, comparado às suas outras preocupações. Com aquela pequena tarefa concluída, ela examinou o rosto que estava iluminado pela luz prateada da glave.
Viu um jovem com um nariz torto. As sobrancelhas eram pretas e pesadas e os olhos profundos. Suas maçãs do rosto eram altas e planas, e terminavam retas no maxilar, como um corte de machado. Nada de fineza, nada de elegância. E o nariz. Ele claramente tinha encontrado alguma violência, e emprestava um aspecto de violência ao todo. Seus cabelos eram grossos e escuros, e onde brilhava à luz da glave os reflexos eram de um vermelho quente, não de azul frio. Ele estava sem camisa, e embora quase todo coberto pela colcha, o braço que descansava sobre ela era magro e musculoso. Ele estava limpo, e devia ter se barbeado pela primeira vez em semanas, pois o maxilar e o queixo estavam mais pálidos do que o restante do rosto e quase lisos – daquele jeito que o rosto de um homem nunca é totalmente liso, mesmo depois de um encontro com uma lâmina perfeitamente afiada. Isso Sarai sabia após anos de pousar em rostos adormecidos, e não a partir de Feral que, embora tivesse começado a se barbear, podia passar dias sem que alguém percebesse. Mas não esse homem. Ele não tinha, como Feral, quase ultrapassado a linha para a vida adulta, mas sim a cruzado por completo: um homem em termos absolutos.
Ele não era bonito. Certamente não era uma peça de museu. Havia algo de bruto nele com aquele nariz quebrado, mas Sarai percebeu demorando-se mais na apreciação dele do que tinha se demorado nos outros, exceto pelo rapaz dourado. Porque ambos eram jovens, e ela não era tão imaculada a ponto de ser livre dos desejos que Rubi expressava tão abertamente, nem tão desapegada a ponto de a presença física de homens jovens não ter efeito sobre si. Ela era apenas discreta, como era discreta com muitas outras coisas.
Olhando para os cílios cerrados, ela se perguntou que cor eram seus olhos, e experienciou uma pontada de alienação, pelo fato de ser sua sina ver e nunca ser vista, passar em segredo pelas mentes dos outros e não deixar rastro de si, exceto o medo.
Ela olhou rapidamente para o céu, era melhor correr. Ela não teria tempo de ter uma impressão consistente desse rapaz, mas até mesmo uma pista de quem ele era poderia ser útil. Um estranho na casa de Eril-Fane. O que isso significava?
Ela conduziu uma mariposa para sua testa.
E, imediatamente, caiu em outro mundo.
27
OUTRO MUNDO
Cada mente é um mundo à parte. A maioria ocupa o vasto terreno intermediário daquilo que é comum, enquanto outras são mais distintas: agradáveis, até mesmo belas, ou, às vezes, escorregadias e inexplicavelmente erradas nos sentimentos. Sarai nem se lembrava de como era a sua antes de tê-la transformado no zoológico de terrores que era agora – sua própria mente era um lugar em que ela tinha medo de ficar depois de escurecer, por assim dizer, e tinha de se proteger dela tomando uma bebida que a amortecia com seu nada cinzento. Os sonhos do Matador de Deuses também eram um domínio de horrores, unicamente seus, enquanto os de Suheyla eram tão macios quanto um xale que protege uma criança do frio. Sarai havia invadido milhares de mentes – dezenas de milhares – e passara seus dedos invisíveis por incontáveis sonhos.
Mas ela nunca conhecera nada assim.
Ela piscou e olhou novamente.
Ali estava uma rua pavimentada de lápis-lazúli, as fachadas esculpidas de prédios erguendo-se de ambos os lados. E havia domos dourados, e o brilho da Cúspide a distância. Nos sonhos, a noite inteira Sarai havia residido em paisagens que lhe eram estranhas. Esta não era, e ainda assim era. Ela virou lentamente, absorvendo a curiosa familiaridade e a estranheza que era mais estranha a seu modo do que o completamente estrangeiro tinha sido. Sem dúvidas aquela era Lamento, mas não a Lamento que ela conhecia. O lápis-lazúli era mais azul, o ouro mais brilhante, as esculturas não eram familiares. Os domos – dos quais havia centenas em vez de meramente dezenas – não tinham o formato certo. Tampouco eram feitos com a folha dourada lisa que eram na realidade, mas tinham o padrão de escama de peixe de ouro mais escuro e mais brilhante, de forma que o sol não refletia meramente neles. Ele brincava. E dançava.
O sol.
O sol em Lamento.
Não havia cidadela, nem âncoras. Nada de mesarthium em nenhum lugar, e nenhum traço de melancolia persistente ou sugestão de amargura. Ela estava diante de uma versão de Lamento que existia apenas na mente desse sonhador.
Sarai não tinha como saber que aquela cidadela havia nascido de histórias contadas anos atrás por um monge senil, ou que havia sido alimentada desde então por toda fonte que Lazlo conseguia encontrar. Que ele sabia tudo o que era possível um estrangeiro saber sobre Lamento, e esta era a visão que ele construíra a partir de pedaços.
Sarai tinha entrado em uma ideia da cidade, e era a coisa mais maravilhosa que já vira. Ela dançava por seus sentidos da forma que o sol do sonho dançava sobre os domos. Cada cor era mais profunda, mais rica do que a real, e havia tantas cores. Se a tecedora do mundo tivesse guardado as pontas de cada fio que usara, sua cesta iria se parecer com isso. Havia toldos sobre as barracas do mercado, e fileiras de especiarias em forma de cones. Rosa e vermelho, escarlate e siena. Velhos sopravam fumaça colorida através de longas flautas pintadas, gravando o ar com música sem som. Açafrão e vermelho-alaranjado, púrpura e coral. De cada domo erguia-se uma espiral parecida com uma agulha, todas elas crepitando com bandeiras e interconectadas por fitas por meio das quais crianças corriam dando risada, vestidas com mantos de penas coloridas. Amora e amarelo-limão, verde-acinzentado e chocolate. Suas sombras acompanhavam seus passos lá embaixo de uma forma que nunca poderia acontecer na verdadeira Lamento, envolvida por uma única grande sombra. Os cidadãos imaginários vestiam trajes simples e adoráveis, as mulheres tinham cabelos longos que se arrastavam atrás delas, ou eram sustentados no ar por passarinhos que tinham seu próprio brilho colorido. Dente-de-leão e castanheira, tangerina e amarelo-dourado.
Nos muros cresciam trepadeiras, como devia ter sido antigamente, antes da sombra. Frutas brotavam, suculentas e brilhantes. Pôr do sol e cardo, verdete e violeta. O ar era fragrante com seu perfume de mel e com outro aroma, um que transportou Sarai de volta à infância.
Quando ela era pequena, antes que as despensas da cidadela fossem esvaziadas de provisões insubstituíveis como açúcar e farinha branca, Grande Ellen costumava fazer um bolo de aniversário todo ano: para compartilhar e fazer o açúcar e a farinha durarem pelo máximo possível. Sarai tinha oito anos quando ela fez o último. Os cinco o degustaram, fizeram uma brincadeira para comê-lo com uma lentidão excruciante, sabendo que era o último bolo que comeriam.
E aqui, nessa estranha e adorável Lamento, em que bolos descansavam no parapeito das janelas, com a cobertura brilhando com açúcar cristal e pétalas de flores, pessoas paravam para se servir de uma fatia deste ou daquele, e os moradores das casas entregavam xícaras pelas janelas, para que elas pudessem ter algo para ajudar a descer o bolo.
Sarai bebeu tudo aquilo até se embriagar. Esta era a segunda vez na noite que havia se surpreendido por uma completa dissonância entre um rosto e uma mente. A primeira fora com o faranji dourado. Por mais que seu rosto fosse fino, seus sonhos não eram. Eles eram tão apertados e sem ar quanto caixões. Ele mal podia respirar ou se mover neles, e ela tampouco. E agora isso, esse faranji com feições grosseiras com um ar de violência pôde dar-lhe entrada para tal reino de maravilhas.
Ela viu espectrais passando livres, lado a lado como casais saindo para passear, e outras criaturas que ela reconhecia ou não. Um ravide, com suas presas do tamanho de braços, decorado com colares de contas e borlas, levantou-se nas patas traseiras para lamber um bolo com sua língua longa e áspera. Ela viu um elegante centauro levando uma princesa sentada de lado na sela, e tal era a atmosfera de magia que o casal não estava deslocado ali. Ele virou sua cabeça e beijou a moça demoradamente, deixando as bochechas de Sarai vermelhas. E havia homenzinhos com pés de galinha, andando de costas para que suas pegadas apontassem para o caminho errado, e velhinhas andando por aí em gatos com selas, e garotos com chifres de bode tocando campainhas, e o farfalhar de asas delicadas, e mais coisas adoráveis para onde quer que ela olhasse. Ela estava dentro do sonho a menos de um minuto – indo e vindo duas meras vezes na mão do grande serafim – quando percebeu que tinha um sorriso no rosto.
Um sorriso.
Sorrisos eram raros, dada a natureza de seu trabalho, mas em uma noite como esta, com tantas descobertas, era impensável. Ela o desfez com a mão, envergonhada, e continuou andando. Então esse faranji era bom em sonhos? Grande coisa. Nada disso era útil para ela. Quem era esse sonhador? O que ele estava fazendo ali? Endurecendo-se diante do encantamento, analisou ao redor novamente e viu, à frente, a figura de um homem com longos cabelos pretos.
Era ele.
Isso era normal. As pessoas manifestam-se em seus próprios sonhos com frequência. Ele estava andando para longe dela, e ela se aproximou pela força de vontade – bastou desejar que logo estava bem atrás dele. Esse sonho podia ser especial, mas ainda assim era um sonho e, como tal, ela podia controlá-lo. Sarai podia, se assim quisesse, destruir toda a cor. Transformar tudo em sangue, destruir os domos, enviar as crianças vestidas com penas direto para a morte. Ela podia fazer o ravide domesticado com seus colares de contas e borlas destroçar as adoráveis mulheres de cabelos pretos e longos. Ela podia transformar tudo aquilo em um pesadelo. Esse era o seu dom perverso, muito perverso.
Entretanto, não fez nada disso. Não foi para isso que ela tinha vindo, mas mesmo que fosse, era impensável que destroçasse esse sonho. Não eram apenas as cores e as criaturas de contos de fadas, mas a magia. Não eram nem os bolos. Havia uma sensação ali... de doçura, e segurança, e Sarai desejou...
Ela desejou que fosse real e que pudesse viver ali. Se ravides pudessem andar lado a lado com homens e mulheres e até dividir os bolos, então, talvez, os filhos dos deuses também pudessem.
Real. Pensamento tolo, muito tolo. Aquela era a mente de um estrangeiro. Reais eram os outros quatro esperando por ela, agoniados e apreensivos. Real era a verdade que ela teria de lhes contar, e real era o brilho da aurora subindo no horizonte. Era hora de ir embora. Sarai reuniu suas mariposas. Aquelas empoleiradas na capa preta da glave a soltaram e deixaram que ela descesse novamente, engolindo a fatia de luz e devolvendo o sonhador à escuridão. Elas voaram até a janela e esperaram, mas a que estava na testa do jovem permaneceu. Sarai estava parada, pronta para retirá-la, mas hesitou. Ela estava em tantos lugares ao mesmo tempo; estava na parte plana da palma do serafim, descalça, estava flutuando na janela do quarto do Matador de Deuses, e estava pousada, leve como uma pétala, na testa do sonhador.
E ela estava dentro de seu sonho, parada bem atrás dele. Teve uma vontade inexplicável de ver o rosto do jovem, aqui no lugar que ele criara, com os olhos abertos.
Ele estendeu a mão para pegar uma fruta de uma das trepadeiras.
A mão de Sarai contraiu-se, também querendo uma. Querendo cinco, uma para cada um deles. Ela pensou na filha de deuses que podia trazer coisas dos sonhos e desejou que pudesse retornar com seus braços cheios de frutas. Um bolo equilibrado na cabeça. E montando no ravide domesticado que agora tinha glacê nos bigodes. Como se, com presentes e extravagâncias, ela pudesse amenizar o golpe das notícias.
Algumas crianças escalavam uma grade, e pararam para jogar mais frutas para o sonhador. Ele pegou as esferas amarelas e gritou “obrigado”.
O timbre de sua voz fez Sarai vibrar por dentro. Era profunda, grave e rouca – uma voz como fumaça de madeira, lâminas serrilhadas e botas pisando na neve. Apesar de toda a aspereza, havia também o mais terno tom de timidez na voz. “Eu acreditava quando era menino”, ele disse a um homem em pé ali perto. “Nas frutas de graça para pegar. Mas depois achei que era uma fantasia sonhada para crianças famintas”.
Com atraso, Sarai percebeu que ele estava falando a língua de Lamento. A noite inteira, em todos os sonhos dos estrangeiros, ela raramente tinha ouvido uma palavra que pudesse entender, mas este falava a língua sem nem mesmo um sotaque. Ela se movimentou para o lado, dando a volta para enfim encará-lo.
Ela se aproximou, estudando-o de perfil sem nem disfarçar, assim como alguém estuda uma estátua – ou como um fantasma pode estudar os vivos. No início da noite, ela havia feito a mesma coisa com o faranji dourado, parado bem ao lado do rapaz enquanto ele trabalhava furioso em um laboratório de chamas altas e vidro estilhaçado. Tudo era espinhoso, quente e cheio de perigo, e não importava quão belo ele fosse, ela estivera ansiosa para sair de lá.
Não havia perigo aqui, nem desejo de escapar. Ao contrário, ela fora atraída para mais perto. Uma década de invisibilidade tinha acabado com qualquer hesitação que ela pudesse sentir com uma observação tão flagrante. Notou que os olhos dele eram cinza e o sorriso tinha o mesmo sinal de timidez que a voz. E sim, havia a linha quebrada no nariz. E sim, o corte de suas bochechas até o queixo era abrupto. Mas, para sua surpresa, o rosto, acordado e animado, não transmitia nada da brutalidade que tivera na primeira impressão. Ao invés disso, era doce como o ar em seu sonho.
Ele virou a cabeça na direção dela, e Sarai estava tão acostumada ao seu próprio e intenso não-ser que nem se assustou, ela apenas encarou como uma oportunidade para vê-lo melhor. A menina tinha visto tantos olhos fechados e pálpebras tremendo com sonhos, e cílios agitando-se nas bochechas, que ficou paralisada com aqueles olhos abertos e tão próximos. Ela podia ver, nessa abundância de luz solar, os padrões da íris, que não eram de um cinza sólido, mas tinham filamentos de uma centena de tons de cinza, azul e pérola, e pareciam reflexos de luz oscilando na água, com o mais suave padrão de âmbar circundando as pupilas.
E... com o mesmo interesse que ela o fitava, ele olhava para... Não, não era para ela, pois só podia observar através dela. Ele tinha um ar de fascinação. Havia uma luz em seus olhos de absoluto encantamento. Um encantamento, pensou, e sofreu uma profunda fisgada de inveja de quem ou o quê estava atrás dela que o cativou tão completamente. Por apenas um momento, permitiu-se fingir que era ela. Que ele olhava para ela daquele jeito absorto.
Era apenas fingimento. Um instante de indulgência – como um fantasma que se coloca entre amantes para sentir como é estar vivo. Tudo isso aconteceu em segundos, três no máximo. Ela ficou quieta dentro daquele sonho extraordinário e fingiu que o sonhador estava cativado por ela. Sarai acompanhou o movimento das pupilas do rapaz, que pareciam acompanhar as linhas de seu rosto e a faixa preta que havia pintado nele. Elas desceram, para subir novamente de uma vez depois de ver sua forma vestida com uma camisola e sua pele azul chamativa. Ele corou e, em algum momento daqueles três segundos, deixou de ser um fingimento. Sarai também corou, dando um passo para trás ao perceber o olhar do sonhador a seguir.
Seus olhos a seguiram.
Não havia ninguém atrás dela. Não havia mais ninguém ali. O sonho inteiro se encolheu em uma esfera ao redor dos dois, e não podia haver dúvida de que o encantamento era por ela, ou que foi para ela que ele sussurrou, com vívido e gentil interesse: “Quem é você?”.
A realidade veio como um baque. Ela fora vista. Ela fora vista. Lá em cima na cidadela, Sarai deu um salto para trás e cortou a corda de sua consciência, soltando a mariposa e perdendo o sonho em um instante. Toda a atenção que havia derramado naquela única sentinela foi transferida para seu corpo físico, o que a fez tropeçar e cair de joelhos, sem fôlego.
Era impossível. Nos sonhos, ela era um fantasma. Ele não podia tê-la visto.
Mesmo assim não restava dúvida em sua mente que ele a vira.
Lá embaixo em Lamento, Lazlo acordou com um sobressalto e sentou-se na cama a tempo de testemunhar noventa e nove pedacinhos de escuridão saírem do parapeito da janela e explodirem no ar, onde, com um redemoinho frenético, foram sugadas para fora de vista.
Ele piscou. Tudo estava silencioso e parado. Escuro, também. Ele podia ter duvidado que tivesse visto qualquer coisa se, naquele momento, a centésima mariposa não tivesse saído de sua testa para cair morta em seu colo. Suavemente, ele a pegou na palma da mão. Era uma coisa delicada, com asas peludas da cor do entardecer.
Meio enroscado nos vestígios de seu sonho, Lazlo ainda via os grandes olhos azuis da bela garota azul, e ficou frustrado por ter acordado e a perdido tão abruptamente. Se pudesse voltar para o sonho, pensou, podia encontrá-la de novo? Ele colocou a mariposa morta no criado-mudo e adormeceu novamente.
E encontrou o sonho, mas não a garota. Ela havia desaparecido. Nos momentos seguintes o sol nasceu. Uma luz pálida penetrou na escuridão da cidadela e transformou a mariposa em fumaça sobre o criado-mudo.
Quando Lazlo acordou de novo, algumas horas mais tarde, havia esquecido ambas.
28
NÃO É JEITO DE VIVER
Sarai caiu de joelhos. Tudo o que via era a genuína atenção dos olhos do sonhador – sobre ela – enquanto Feral, Rubi e Pardal corriam pela porta do quarto, onde estavam observando e esperando.
– Sarai! Você está bem?
– O que houve? O que há de errado?
– Sarai!
Minya veio atrás deles, mas não correu para o lado de Sarai e ficou para trás, observando com interesse enquanto eles pegavam-na pelos cotovelos e a ajudavam a se levantar.
Sarai viu a aflição do grupo e controlou a sua, afastando o sonhador de sua mente – por ora. Ele a havia visto. O que isso queria dizer? Os outros estavam enchendo-a de perguntas – perguntas que ela não podia responder, porque suas mariposas ainda não haviam voltado. Os insetos estavam no céu agora, correndo contra o sol que se levantava. Se não chegassem a tempo, Sarai ficaria sem voz até escurecer e cem novas mariposas nascessem dentro dela. Ela não sabia por que aquilo era assim, mas era. Ela levou as mãos à garganta para que os outros entendessem, e fez um gesto para que saíssem e não vissem o que aconteceria a seguir. A garota odiava que alguém visse suas mariposas saindo ou chegando.
Mas o grupo apenas deu um passo atrás, demonstrando apreensão nos rostos, e tudo o que ela pôde fazer quando as mariposas apareceram na beirada do terraço foi virar-se para esconder o rosto enquanto abria a boca para deixá-las entrar.
Noventa e nove.
Em seu choque, ela havia cortado a conexão e deixado a mariposa na testa do sonhador. Seus corações ficaram desamparados. Ela procurou-a com a mente, tateando em busca do fio cortado, como se pudesse reviver a mariposa e atraí-la de volta para casa, entretanto, aquela sentinela estava para sempre perdida. Primeiro, Sarai fora vista por um humano e, então, havia deixado uma mariposa para trás como um cartão de visita. Será que ela estava acabada?
Como ele a havia visto?
Agora andava de cá para lá novamente, por força do hábito. Os outros chegaram ao seu lado, perguntando o que acontecera. Minya ainda ficou para trás, observando. Sarai chegou ao fim da palma do serafim, virou-se e parou. Não havia parapeito nesse terraço para prevenir que alguém caísse. Havia a curva sutil da mão em forma de concha – a carne de metal levantava-se sutilmente para formar uma espécie de grande tigela rasa impedindo andar além da beira. Mesmo quando estava mais distraída, os pés de Sarai registravam a elevação e sabiam ficar no centro plano da palma.
Agora o pânico dos outros a fez voltar a si mesma.
– Conte-nos, Sarai – disse Feral, com a voz firme para mostrar que ele podia aguentar. Rubi estava de um lado e Pardal do outro. Sarai absorveu a visão de suas faces. Ela tivera tão pouco tempo nos últimos anos para simplesmente estar com eles, uma vez que o grupo vivia durante o dia e ela, à noite, e compartilhavam uma refeição no meio disso. Não era jeito de viver. Mas... era a vida, e era tudo o que tinham.
Com um sussurro frágil, falou:
– Eles têm máquinas voadoras. – E observou, desolada, como a compreensão daquilo mudou os três rostos, afastando o último trapo desafiador de esperança, deixando nada além do desespero.
Ela se sentiu como filha de sua mãe.
As mãos de Pardal voaram para sua boca.
– Então acabou – falou Rubi. Eles nem mesmo questionaram. De alguma forma, durante a noite, haviam passado do pânico para a derrota.
Não Minya.
– Olhem para vocês – Minya disse, severa. – Eu juro, vocês parecem prontos para cair de joelhos e mostrar suas gargantas a eles.
Sarai virou-se para ela. O entusiasmo de Minya tinha se acendido. Isso a horrorizava.
– Como você pode estar feliz com isso?
– Tinha que acontecer, cedo ou tarde – foi sua resposta. – Melhor acabar logo com isso.
– Acabar logo? Com o quê, com as nossas vidas?
Minya riu, com escárnio.
– Só se vocês preferirem morrer a se defenderem. Não posso impedi-los caso estejam tão determinados a morrer, mas não é isso que eu vou fazer.
Um silêncio cresceu. Ocorreu a Sarai, e talvez aos outros três ao mesmo tempo que, no dia anterior, quando Minya havia zombado dos vários níveis de inutilidade de cada um em uma luta, ela não mencionou qual seria sua parte na batalha. Agora, diante do desespero, ela irradiava vivacidade. Entusiasmo. Era tão absolutamente errado que Sarai não conseguia entender.
– O que há de errado com você? – ela perguntou. – Por que está tão satisfeita?
– Achei que você nunca perguntaria – disse Minya, com um sorriso que mostrava todos os seus dentinhos. – Venham comigo, quero mostrar algo a vocês.
A casa do Matador de Deuses era um exemplo modesto do tradicional yeldez de Lamento, ou casa com pátio. De fora, apresentava uma fachada de pedra esculpida com um padrão de lagartos e romãs. A porta era sólida, pintada de verde e dava acesso a uma passagem direto para um pátio, que era aberto, cômodo central da casa, usado para cozinhar, comer e se reunir. O clima agradável de Lamento significava que a maior parte das atividades eram feitas ao ar livre. Também significava que, antigamente, o céu tinha sido seu teto, e agora era a cidadela. Apenas os quartos, banheiro e salão de inverno eram fechados. Tais cômodos cercavam o pátio em um U e abriam-se para ele com quatro portas verdes. A cozinha ficava abrigada em um caramanchão coberto, e uma pérgola em volta da área de jantar antes era coberta com vinhas que davam sombra. O local havia tido árvores e uma horta de temperos também, mas nada disso existia mais. Uma moita de arbustos desbotados havia sobrevivido, e havia alguns vasos de flores delicadas da floresta, que podiam crescer sem muito sol, mas que não eram condizentes com a imagem verdejante na mente de Lazlo.
Quando ele saiu do quarto pela manhã, encontrou Suheyla puxando uma armadilha para peixes do poço. Isso era menos estranho do que podia parecer e, na verdade, não era um poço, mas uma abertura até o rio que fluía por baixo da cidade.
O Uzumark não era um único grande canal subterrâneo, mas sim uma rede intrincada de cursos d’água que escavaram a rocha do vale. Quando a cidade fora construída, os brilhantes engenheiros adaptaram os canais para um sistema de encanamento natural. Alguns córregos eram para água fresca, outros para o descarte do lixo. Outros, mais largos, eram canais subterrâneos navegáveis por barcos longos e estreitos iluminados por glaves. De leste a oeste, não havia forma mais rápida de atravessar a longa oval da cidade do que pelos barcos subterrâneos. Havia até mesmo o rumor de um grande lago enterrado, mais profundo do que tudo, no qual um svytagor pré-histórico estava preso por conta de seu tamanho imenso e vivia como um peixe dourado em um aquário, alimentando-se de enguias que procriavam na água fria. Eles o chamavam de kalisma, que significava “deus das enguias”, uma vez que as enguias certamente o veriam dessa forma.
– Bom dia – anunciou Lazlo, saindo no pátio.
– Ah, você está acordado – respondeu Suheyla, alegre. Ela abriu a armadilha e os pequenos peixes brilharam, verdes e dourados, quando ela os jogou em um balde. – Dormiu bem, espero...
– Bem demais, e até muito tarde. Odeio ser um preguiçoso. Sinto muito.
– Bobagem. Se existe um dia para dormir demais, eu diria que é a manhã seguinte à travessia do Elmuthaleth. E meu filho ainda não apareceu, então você não perdeu nada.
Lazlo viu o café da manhã que estava posto na baixa mesa de pedra. Era quase igual ao jantar da noite anterior, o que fazia sentido, já que era a primeira oportunidade de Suheyla de alimentar Eril-Fane em mais de dois anos.
– Posso ajudá-la? – ele perguntou.
– Você coloca a tampa de volta no poço?
Ele fez o que ela pediu, então a seguiu até o fogo, onde observou enquanto ela limpava os peixes com movimentos certeiros de faca, submergia-os no óleo, cobria-os de temperos, e os colocava na grelha. Ele mal podia imaginar como ela poderia ser mais hábil com duas mãos do que já era com uma.
Ela o viu observando. Mais precisamente, viu ele desviar o olhar quando foi pego olhando. Levantando o toco liso e afilado do pulso, disse:
– Não ligo. Pode olhar.
Ele corou, envergonhado.
– Me desculpe.
– Vou estabelecer uma multa por pedidos de desculpa – ela disse. – Eu não quis mencionar na noite passada, mas hoje é o seu novo começo. Dez pratas toda vez que você se desculpar.
Lazlo riu e teve de morder a língua antes de se desculpar por pedir desculpas.
– Fui educado assim – explicou. – Não posso fazer nada.
– Aceito o desafio de reeducá-lo. Daqui em diante você só pode pedir desculpas se pisar no pé de alguém quando estiver dançando.
– Só assim? Eu nem danço.
– O quê? Bem, vamos cuidar disso também.
Ela virou o peixe na grelha. A fumaça tinha aroma de temperos.
– Passei toda a minha vida na companhia de homens velhos – Lazlo contou-lhe. – Se você espera me preparar para a sociedade, terá bastante trabalho em mãos...
As palavras saíram antes que ele pudesse considerá-las. Seu rosto corou e, se ela não levantasse o dedo, ele teria se desculpado novamente.
– Não diga! – a mulher ordenou. Seu ar era severo, mas seus olhos dançavam. – Você não deve ter medo de me ofender, meu jovem. Sou bastante resistente. Quanto a isso... – Ela levantou o punho. – Eu quase acho que eles me fizeram um favor. Dez parece um número muito grande de dedos. E muitas unhas para cortar!
Seu sorriso contagiou Lazlo, que sorriu também.
– Nunca pensei nisso. Sabe, há uma deusa com seis braços na mitologia Maialen. Pense nela.
– Pobre coitada. Mas essa deusa provavelmente tem sacerdotisas para cuidar dela.
– Isso é verdade.
Suheyla colocou o peixe cozido em um prato e lhe entregou, fazendo um gesto em direção à mesa. Ele o levou e encontrou um lugar para o prato. As palavras dela ficaram em sua mente: “quase acho que eles me fizeram um favor”. Quem eram eles?
– Desculpe, mas...
– Dez pratas.
– O quê?
– Você pediu desculpas de novo. Eu te alertei.
– Eu não pedi – Lazlo argumentou, rindo. – “Desculpe” é um imperativo. Eu ordeno que me desculpe. Não é, de forma alguma, um pedido de desculpas.
– Está bem – admitiu Suheyla –, mas da próxima vez, nada disso. Apenas pergunte.
– Está bem. Mas... deixa para lá. Não é da minha conta.
– Apenas pergunte.
– Você disse que eles lhe fizeram um favor. Eu estava apenas pensando a quem você se referiu.
– Ah. Bem, aos deuses.
Apesar da cidadela flutuando acima de suas cabeças, Lazlo ainda não tinha uma clara ideia de como fora a vida sob o domínio dos deuses.
– Eles... cortaram sua mão?
– Eu imagino que sim – disse ela. – Não me lembro. Eles podem ter feito com que eu mesma a cortasse. Tudo o que sei é que eu tinha duas mãos antes de eles me levarem, e apenas uma depois.
Tudo isso foi dito como uma conversa matutina trivial.
– Te levaram? – Lazlo repetiu. – Lá para cima?
Suheyla franziu a testa, como se estivesse perplexa com sua ignorância.
– Ele não te contou nada?
Lazlo entendeu que ela se referia a Eril-Fane.
– Até chegarmos ao topo da Cúspide ontem não sabíamos nem por que tínhamos vindo.
Ela ficou surpresa.
– Bom, vocês são criaturas crédulas, por virem até aqui por um mistério.
– Nada poderia ter me impedido de vir – Lazlo confessou. – Fui obcecado com o mistério de Lamento minha vida inteira.
– Verdade? Eu não fazia ideia de que o mundo se lembrava de nós.
A boca de Lazlo torceu-se para um lado.
– Na verdade, o mundo não se lembra. Apenas eu.
– Bom, isso demonstra caráter – afirmou Suheyla. – E o que você acha, agora que está aqui? – Enquanto falava, ela cortava frutas, e fez um gesto amplo com sua faca. – Está satisfeito com a resolução de seu mistério?
– Resolução? – ele repetiu, com uma risada impotente, e olhou para a cidadela. – Tenho cem vezes mais perguntas do que tinha ontem.
Suheyla seguiu seu olhar, mas assim que levantou os olhos, baixou-os novamente e estremeceu. Como os Tizerkane na Cúspide, ela não aguentava olhar para a cidadela.
– Isso é de se esperar, se meu filho não o preparou. – Ela pousou a faca e colocou as frutas cortadas em uma tigela, que passou para Lazlo. – Ele nunca conseguiu falar sobre isso. – Lazlo começou a levar a tigela à mesa quando ela acrescentou, em voz baixa: – Eles o levaram por mais tempo do que qualquer outra pessoa, sabe.
Ele virou-se para a mulher. Não, realmente ele não sabia. Também não tinha certeza de como expressar seus pensamentos em uma pergunta e, antes que pudesse, Suheyla, ocupando-se em limpar a tábua de cortar, continuou a falar baixinho:
– Eles levavam garotas, principalmente – explicou. – Criar uma garota em Lamento, e, bem, ser uma filha em Lamento era... muito difícil naquele tempo. Toda vez que o chão tremia, sabíamos que era Skathis chegando à porta. – Skathis. Ruza tinha falado esse nome. – Mas, às vezes, levavam nossos filhos também. – Ela passou o chá no coador.
– Eles levavam crianças?
– Os filhos são sempre crianças... mas, tecnicamente, ou fisicamente, pelo menos, Skathis esperava até que eles fossem... maiores.
Maiores.
Aquelas palavras. Lazlo engoliu uma sensação crescente de náusea. Aquelas palavras eram como... Como ver uma faca ensanguentada. Você não precisava ter testemunhado o esfaqueamento para entender o que ela significava.
– Eu me preocupava mais com Azareen do que com Eril-Fane. Para ela, era apenas uma questão de tempo. E os dois sabiam disso, é claro. Foi por isso que se casaram tão jovens. Ela... ela disse que queria ser dele antes de ser deles. E ela foi. Por cinco dias. Mas não foi ela que levaram. Foi ele. Bem. Eles a levaram depois.
Isso era... era terrível, tudo isso. Azareen. Eril-Fane. A natureza rotineira da atrocidade. Mas...
– Eles são casados? – foi o que Lazlo conseguiu perguntar.
– Oh! – Suheyla pareceu arrependida. – Você não sabia. Bem, nenhum segredo está a salvo comigo, não é?
– Mas por que deveria ser um segredo?
– Não é que seja um segredo – explicou, cuidadosamente. – É mais que... não é mais um casamento. Não depois... – Ela virou a cabeça para cima, mas sem olhar para a cidadela.
Lazlo não fez mais perguntas. Tudo o que perguntara sobre Eril-Fane e Azareen, assim como sobre os mistérios de Lamento, havia tomado um ar muito mais sombrio do que jamais poderia imaginar.
– Nós éramos levados para “servir” – Suheyla continuou, sua mudança de pronome lembrando-lhe de que ela própria fora uma das garotas raptadas. – Era como Skathis chamava. Ele chegava à porta ou à janela. – Sua mão tremeu, e ela apertou firme o coto. – Não haviam trazido nenhum criado com eles, então tinha isso. Servir à mesa ou nas cozinhas. E havia camareiras, jardineiros, lavadeiras.
Nessa ladainha havia ficado muito claro que esses trabalhos eram as exceções, e que o “serviço” era de outro tipo.
– É claro, nós não sabíamos de nada até que fosse tarde. Quando nos traziam de volta, cerca de um ano depois, não nos lembrávamos de nada. Mas nem sempre nos traziam. E então um ano era roubado de nós. – Ela baixou o coto, e sua mão moveu-se brevemente para a barriga. – Era como se o tempo não tivesse passado. Letha devorava nossas memórias, entende. – Ela olhou para Lazlo. – Ela era a deusa do oblívio.
Fazia sentido agora – um sentido horrível – o motivo pelo qual Suheyla não sabia o que acontecera com sua mão.
– E... Eril-Fane? – ele indagou, endurecendo-se.
Suheyla olhou para o bule de chá que estava enchendo com água quente da chaleira.
– O esquecimento era uma misericórdia, no fim das contas. Ele só se lembra de tudo porque os matou, e não havia ninguém para levar embora suas memórias.
Lazlo entendeu o que a mulher lhe contava, o que ela estava dizendo sem dizer, mas não parecia possível. Não Eril-Fane, que era o poder encarnado. Ele era um libertador, não um escravo.
– Três anos – disse Suheyla. – Foi esse o tempo que ela ficou com ele. Isagol. A deusa do desespero. – Seus olhos perderam o foco. Ela parecia ter entrado em um grande buraco dentro de si e sua voz transformou-se em um sussurro. – Contudo, se nunca o tivessem levado, ainda seríamos escravos.
Por aquele breve momento, Lazlo sentiu um tremor de pesar dentro da mulher: de que ela não havia sido capaz de manter seu filho em segurança. Aquele era um pesar simples e profundo, mas, debaixo dele, havia um sentimento mais profundo e estranho: de que precisava ficar feliz por aquilo, porque se ela tivesse mantido Eril-Fane em segurança, ele não teria salvado seu povo. Misturavam-se felicidade, pesar e culpa em uma fusão intolerável.
– Sinto muito – disse Lazlo, do fundo de seus dois corações.
Suheyla saiu do lugar longínquo e oco em que estava perdida. Seus olhos aguçaram-se com um sorriso.
– Rá! – disse ela. – Dez pratas, por favor. – E ela estendeu a palma da mão para ele colocar uma moeda nela.
29
OS OUTROS BEBÊS
Minya levou Sarai e os outros para dentro, através do quarto de Sarai, e de volta pelo corredor. Todos os quartos ficavam do lado direito da cidadela. A suíte de Sarai era na extremidade do braço direito do serafim, e as outras ficavam ao longo da mesma passagem, exceto a de Minya. O que antes era o palácio de Skathis ocupava o ombro direito inteiro, o qual atravessaram e, na entrada da galeria, Sarai e Feral trocaram um olhar.
As portas que levavam para cima ou para baixo, à cabeça ou ao corpo da cidadela, estavam fechadas, tal como estavam quando Skathis morreu. Não era possível discernir nem o lugar delas.
O braço sinistro – como era chamado – era acessível, embora o grupo raramente fosse lá. Ele abrigava o berçário, e nenhum deles podia aguentar a visão de berços vazios, mesmo que o sangue tivesse sido lavado há muito tempo. Havia um monte de quartinhos como celas, com nada além de camas. Sarai sabia o que eles eram. Ela os tinha visto em sonhos, mas só nos sonhos das garotas que os ocuparam por último – como Azareen –, cujas memórias haviam sobrevivido a Letha. Sarai não podia pensar em um motivo para Minya levá-los lá.
– Onde estamos indo? – Feral perguntou.
Minya não respondeu, mas eles tiveram a resposta no momento seguinte, quando ela virou em direção ao braço sinistro, mas para um lugar ao qual eles nunca iam – mesmo que por um motivo diferente.
– O coração – afirmou Rubi.
– Mas... – disse Pardal, então interrompeu-se com um olhar de entendimento.
Sarai podia adivinhar o que ela quase dissera e o que a havia impedido, porque a ideia lhe ocorreu no mesmo momento que ocorreu a Pardal. Mas nós não cabemos mais. Aquele foi o pensamento. Mas Minya cabe. Aquele era o entendimento. E Sarai soube então onde Minya vinha passando o tempo quando não a encontravam. Se eles quisessem mesmo saber, teriam descoberto facilmente, mas a verdade é que ficavam felizes quando a garotinha estava longe, então nunca se preocuparam em procurá-la.
Eles viraram uma esquina e chegaram à porta.
Ela não podia mais ser chamada de porta. Tinha menos de trinta centímetros de largura: uma abertura esguia e estreita no metal onde uma porta não havia se fechado completamente quando Skathis morreu. Pela sua altura, que era de cerca de seis metros, estava claro que não tinha sido uma porta comum, embora não houvesse forma de estimar qual era sua largura quando aberta.
Minya mal conseguia atravessar, tendo de passar um ombro primeiro, depois o rosto. Por um momento, pareceu que ela ficaria presa pelas orelhas, mas ela pressionou o rosto e as orelhas ficaram achatadas, e ela teve de mexer a cabeça de um lado para outro para passá-la, então exalar completamente para estreitar o peito o suficiente para o resto do corpo passar. Foi por pouco. Se fosse um pouquinho maior, não teria conseguido.
– Minya, você sabe que nós não conseguimos entrar – Pardal falou enquanto a garotinha desaparecia no corredor do outro lado.
– Esperem aí – ela respondeu, e sumiu.
Eles olharam uns para os outros.
– O que ela quer nos mostrar aqui? – Sarai indagou.
– Será que ela encontrou alguma coisa no coração? – Feral se perguntou.
– Se houvesse algo para encontrar, teríamos encontrado anos atrás.
Antigamente, todos haviam sido pequenos o bastante para entrar.
– Quanto tempo faz? – Feral perguntou, deslizando a mão pela beirada lisa da abertura.
– Mais tempo para você do que para nós – disse Pardal.
– Essa sua cabeça grande – acrescentou Rubi, empurrando-o de leve.
Feral tinha crescido primeiro, depois Sarai, e as garotas um ano ou mais depois. Minya, obviamente, nunca cresceu. Quando eram pequenos, aquele era seu lugar favorito para brincar, em parte porque a abertura estreita o fazia parecer proibido, e em parte porque era muito estranho.
Era uma câmara enorme, perfeitamente esférica, de metal liso e curvo, com uma passagem estreita em volta da circunferência. Em diâmetro devia ter cerca de trinta metros, e suspensa no centro havia uma esfera menor de talvez seis metros de diâmetro, que também era perfeitamente lisa e, como a cidadela inteira, ela flutuava, sustentada no lugar não por cordas ou correntes, mas por uma força insondável. A câmara ocupava o lugar onde os corações ficariam em um corpo de verdade, então era assim que eles a chamavam, mas aquele era apenas o termo que usavam. Eles não tinham ideia de qual tinha sido seu nome ou propósito. Mesmo Grande Ellen não sabia. Era apenas uma grande bola de metal flutuando em uma sala maior de metal.
Ah, e havia monstros empoleirados nas paredes. Dois deles.
Sarai sabia das bestas das âncoras, Rasalas e as outras, pois as tinha visto com seus olhos de mariposa, inertes como eram agora, mas também as tinha visto como eram antes, através dos sonhos das pessoas de Lamento. Em seu arsenal havia um número aparentemente infinito de visões de Skathis montado em Rasalas, carregando mulheres e homens, não mais velhos do que ela era agora. Aquele era seu horror mais frequente, a pior memória coletiva de Lamento. A garota estremeceu em pensar quão displicentemente havia sofrido aquilo, não compreendendo, quando criança, o que ele significava. As bestas das âncoras eram grandes, mas os monstros empoleirados como estátuas nas paredes do coração da cidadela eram maiores.
Eram parecidos com vespas, tórax e abdômen unidos por cinturas finas, asas como lâminas, e ferrões mais longos do que um braço de criança. Sarai e os outros haviam cavalgado neles quando crianças, fingindo que eram reais, mas, se no reino dos deuses os monstros haviam sido algo além de estátuas, Sarai não tinha visões para comprovar. Tinha certeza que as criaturas nunca deixaram a cidadela. Pelo seu tamanho, era difícil imaginá-los saindo daquela sala.
– Lá vem ela – disse Rubi, que estivera espiando o corredor escuro através da abertura. Ela saiu da frente, mas a figura que emergiu de lá não era Minya. Ele não teve de parar e cuidadosamente espremer seu corpo pela abertura, apenas fluiu para fora com a facilidade de um fantasma, o que ele era.
Era Ari-Eil. Ele planou sem olhar o grupo e foi seguido por outro fantasma. Sarai piscou. Esse era familiar, mas ela não sabia de onde, e então ele passou por ela, que não teve tempo de procurar em sua memória porque outro já estava vindo atrás dele.
E mais outro.
E mais outro.
... tantos!
Fantasmas derramaram-se do coração da cidadela, um após o outro, passando pelos quatro sem manifestar-se, e indo reto pelo longo corredor sem portas que levava à galeria e ao terraço do jardim e seus quartos. Sarai se viu prensada contra a parede, tentando compreender esse fluxo de rostos, e eram todos familiares, mas não tão familiares quanto seriam se ela os houvesse visto recentemente.
O que ela não tinha.
Ela fitou um rosto, depois outro. Eram homens, mulheres e crianças, embora a maioria fossem velhos. Nomes começaram a lhe ocorrer. Thann, sacerdotisa de Thakra. Mazli, morta no parto de gêmeos, que também morreram. Guldan, a mestra das tatuagens, a velha que era famosa na cidade por desenhar a elilith mais bela. Todas as garotas queriam que ela fizesse a sua. Sarai não se lembrava exatamente quando ela havia morrido, mas fora com certeza antes de sua primeira menstruação, porque sua reação ao descobrir sobre a morte da velha havia sido muito tola. Fora de desapontamento, por Guldan não poder desenhar a sua elilith quando chegasse o momento. Como se tal coisa fosse acontecer. Que idade ela tinha, doze? Treze? Atrás de suas pálpebras fechadas, ela imaginou a pele de sua barriga parda em vez de azul, decorada com os floreios delicados da velha. E, sim, o corar de vergonha que acompanhava aquela imagem. De ter esquecido, mesmo por um instante, quem ela era.
Como se um humano fosse tocá-la um dia por qualquer motivo que não para matá-la.
Pelo menos quatro anos tinham se passado desde então. Quatro anos. Então como Guldan podia estar ali naquele momento? Era o mesmo com os outros. E havia tantos deles. Todos olhavam para a frente, inexpressivos, mas Sarai viu o apelo desesperado em mais de um par de olhos à medida que passavam. Eles se moviam com a facilidade de fantasmas, mas também com uma intenção severa, marcial, como soldados.
A compreensão veio lentamente e depois de uma só vez. As mãos de Sarai cobriram sua boca. Ambas as mãos, como se segurasse um gemido. Todo esse tempo. Como isso era possível? Lágrimas brotaram em seus olhos. Tantos deles. Tantos!
Tudo, ela pensou. Cada homem, mulher e criança que tinham morrido em Lamento desde... desde quando...? E passado perto o bastante da cidadela em sua jornada evanescente para Minya capturá-los. Fazia dez anos que Pardal e Rubi cresceram demais para entrar no coração. Foi então que ela começou esta... coleção?
– Oh, Minya – Sarai se exasperou, com a profundidade de seu horror.
Sua mente buscou outra explicação, mas não havia nenhuma. Havia apenas esta: por anos, sem que o restante deles soubesse, Minya vinha capturando fantasmas e... guardando-os. Armazenando-os. O coração da cidadela, aquela grande câmara esférica onde apenas Minya podia entrar, havia servido, todo esse tempo como um... cofre. Um armário. Uma caixa-forte.
Para um exército de mortos.
Por fim, Minya saiu, espremendo-se lentamente pela passagem e olhando desafiadoramente para Sarai e Feral, Pardal e Rubi, todos atordoados e sem palavras. A procissão de fantasmas desapareceu virando a esquina.
– Oh, Minya – falou Sarai. – O que você fez?
– O que você quer dizer com o que eu fiz? Você não vê? Nós estamos seguros. Deixe que o Matador de Deuses venha, e todos os seus novos amigos também. Eu os ensinarei o significado de massacre.
Sarai sentiu o sangue deixar seu rosto. Será que ela achava que eles ainda não sabiam?
– Você, entre todas as pessoas, já deve ter tido massacre suficiente na vida.
Minya eterna, Minya imutável. De igual para igual, ela olhou para Sarai:
– Você está errada. Eu terei o bastante quando der o troco.
Um tremor passou por Sarai. Será que isso era um pesadelo? Um pesadelo acordado, talvez. Sua mente havia enfim se partido e todos os terrores estavam derramando-se dela.
Mas não. Isso era real. Minya forçaria uma década de mortos da cidade a lutar contra e matar seus próprios amigos e parentes. Ela se deu conta com uma onda de náusea que errara, todos esses anos, em esconder sua empatia pelos humanos e tudo o que eles passaram. A princípio, ela ficara envergonhada e com medo de que fosse uma fraqueza sua ser incapaz de odiá-los como deveria. Ela imaginava palavras saindo de sua boca, como eles não são monstros, sabe, e imaginava qual seria a resposta de Minya: diga isso aos outros bebês.
Os outros bebês.
Isso era tudo o que ela tinha a dizer. Nada podia superar o Massacre. Argumentar a favor de qualquer qualidade redentora nas pessoas que o tinham cometido era uma espécie de traição. Mas agora Sarai pensou que deveria ter tentado. Em sua covardia, havia deixado os outros com uma simples convicção: eles tinham um inimigo. Eles eram um inimigo. O mundo era um massacre. Ou você o sofria ou o infligia. Se ela tivesse contado o que viu nas memórias tortas de Lamento, e o que ela sentiu e ouviu – o choro convulsivo de pais que não podiam proteger suas filhas, o horror das garotas que voltavam sem memória e corpos violados –, talvez eles tivessem visto que os humanos também eram sobreviventes.
– Deve haver alguma outra forma – Sarai afirmou.
– E se houvesse? – desafiou Minya, fria. – E se houvesse outra forma, mas você fosse patética demais para fazer?
Sarai arrepiou-se com o insulto, depois encolheu-se. Patética demais para fazer o quê? Ela não queria saber, mas tinha de perguntar.
– Do que você está falando?
Minya a considerou, então balançou a cabeça.
– Não, tenho certeza. Você é patética demais. Você nos deixaria morrer primeiro.
– O quê, Minya? – Sarai insistiu.
– Bem, você é a única de nós que pode ir para a cidade – disse a menina. Ela era, de fato, uma criança bonita, mas era difícil fitá-la, não tanto porque fosse desleixada, mas por causa do vazio estranho e frio de seus olhos. Será que ela sempre fora assim? Sarai se lembrava de rir com ela, há muito tempo, quando todos eram crianças. Quando foi que ela mudou e se tornou... isso? – Você não conseguiu enlouquecer o Matador de Deuses – ela estava dizendo.
– Ele é muito forte – Sarai protestou. Mesmo agora ela não conseguia sugerir, nem mesmo para si mesma, que talvez ele não merecesse a loucura.
– Ah, ele é forte – concordou Minya –, mas suponho que nem o grande Matador de Deuses poderia suportar respirar se uma centena de mariposas voassem para dentro de sua garganta.
Se uma centena de mariposas voassem para dentro...
Sarai apenas a encarou. Minya riu com o choque dela. Será que ela entendia o que estava dizendo? Claro que sim, apenas não se importava. As mariposas não eram... Não eram trapos de pano. Também não eram nem mesmo insetos treinados. Elas eram Sarai. Eram sua própria consciência prolongada por meio de longos cordões invisíveis. O que elas experienciavam, ela experienciava, fosse o calor da testa de um sonhador ou a obstrução vermelha e úmida da garganta de um homem sufocando.
– E de manhã – Minya continuou –, quando ele fosse encontrado morto em sua cama, as mariposas voltariam a ser fumaça, e ninguém saberia o que o matou.
Ela estava triunfante – uma criança satisfeita com um plano brilhante.
– Você só poderia matar uma pessoa por noite, eu imagino. Talvez duas. Eu me pergunto quantas mariposas seriam necessárias para sufocar alguém. – Ela deu de ombros. – De qualquer forma, depois que alguns faranji morressem sem explicação, acho que os outros perderiam a coragem. – Ela sorriu, levantando a cabeça. – Bem, eu estava certa? Você é patética demais? Ou pode suportar alguns minutos de asco para salvar nós todos?
Sarai abriu a boca e a fechou. Alguns minutos de asco? Quão trivial ela fazia isso soar.
– Não é o asco – ela disse. – Deus me livre que um estômago forte seja a única coisa que separe matar de não matar. Há a decência, Minya. Misericórdia.
– Decência – a garota cuspiu. – Misericórdia.
A forma como ela disse aquilo. A palavra não tinha lugar na cidadela dos Mesarthim. Seus olhos escureceram como se suas pupilas tivessem engolido suas íris, e Sarai sentiu ela chegar, a resposta que não tolerava argumentação: Diga isso aos outros bebês.
Mas não foi isso que Minya disse.
– Você me dá náusea, Sarai. Você é tão gentil. – E então ela disse palavras que nunca havia dito, não em todos aqueles quinze anos. Em um sussurro baixo e mortal, soltou: – Eu devia ter salvado outro bebê. – Então virou-se e foi atrás de seu terrível exército sofrido.
Sarai sentiu-se estapeada. Rubi, Pardal e Feral a cercaram.
– Estou contente que ela a tenha salvado – falou Pardal, acariciando seus braços e cabelos.
– Eu também – ecoou Rubi.
Mas Sarai estava imaginando um berçário cheio de filhos de deuses – meninas e meninos com pele azul e magia ainda não descoberta – e humanos no meio deles com facas de cozinha. De certa forma, Minya havia livrado os quatro disso. Sarai sempre sentiu o estreito golpe de sorte – como um machado passando perto o bastante para cortar as pontas de suas bochechas – por Minya tê-la salvado. De que ela tinha sobrevivido em vez de um dos outros.
E, antigamente, sobreviver se parecia com um fim. Mas agora... começava a parecer uma vantagem sem objetivo.
Sobreviver para quê?
30
NOME ROUBADO, CÉU ROUBADO
Lazlo não ficou na casa de Suheyla para o café da manhã. Ele achou que mãe e filho gostariam de um tempo sozinhos depois de dois anos de separação. Ele esperou para encontrar Eril-Fane – e tentou guardar seu novo conhecimento em silêncio em seus olhos quando o encontrou. Era difícil; o horror parecia gritar dentro de si. Tudo sobre o herói parecia diferente agora que sabia dessa pequena lasca de informação sobre o que o homem havia passado.
Ele colocou a sela em Lixxa e cavalgou por Lamento, perdendo-se agradavelmente.
– Você parece bem descansada – disse a Calixte, que estava comendo na sala de jantar da câmara quando ele finalmente a encontrou.
– Você não – ela respondeu. – Esqueceu de dormir?
– Como ousa? – provocou, suavemente, sentando-se à mesa. – Você está sugerindo que não estou com perfeito frescor?
– Eu nunca seria tão mal-educada a ponto de sugerir um frescor imperfeito. – Ela deu uma mordida grande em um doce. – Contudo – disse com a boca cheia –, você está cultivando manchas azuis debaixo dos olhos. Então, a menos que tenha recebido socos muito simétricos, aposto que não dormiu o suficiente. Além disso, com o estado de deslumbramento extático em que você estava ontem, não esperava que você fosse capaz de sentar quieto, quanto menos dormir.
– Em primeiro lugar: quem iria me dar um soco? Em segundo lugar: deslumbramento extático. Falou bem.
– Em primeiro lugar: Thyon Nero adoraria socar você. Em segundo lugar: obrigada.
– Ah, ele – disse Lazlo. Podia ter sido uma brincadeira, mas a animosidade do afilhado dourado era palpável. Os outros a sentiam, mesmo que não tivessem ideia do que estava por trás dela. – Entretanto, acho que ele é o único.
Calixte suspirou.
– Você é tão ingênuo, Estranho. Se eles não queriam antes, agora todos eles querem socá-lo por causa da bolsa das teorias. Drave especialmente. Você devia ouvi-lo falando. Ele colocou muitas pratas lá dentro, o tolo. Acho que ele pensou que era uma loteria e, se fizesse mais apostas, seria mais provável ganhar. Enquanto você fez uma só – uma aposta ridícula – e ganhou. Estou abismada de ele não o ter socado ainda.
– Thakra me salvou da bolsa das teorias – disse Lazlo, displicentemente invocando a divindade local, Thakra. Ela era a comandante dos seis serafins, de acordo com a lenda e com o livro sagrado, e seu templo ficava atravessando uma ampla avenida na frente da câmara.
– Salvá-lo de quinhentas pratas? – perguntou Calixte. – Acho que posso ajudá-lo com isso.
– Obrigado, acho que eu me viro – disse Lazlo, que, na verdade, não tinha ideia de onde começar com tanto dinheiro. – Mas como me salvará de explosionistas rancorosos e alquimistas com má vontade?
– Eu vou. Não se preocupe. É culpa minha e assumo total responsabilidade por você.
Lazlo riu. Calixte era magra como um hreshtek, mas bem menos perigosa do que um. Ainda assim, ele não a via como inofensiva, mas sabia que ele era, apesar das aulas de Ruza quanto a atirar lanças.
– Obrigado. Se eu for atacado, vou gritar histericamente e você pode ir me salvar.
– Vou enviar Tzara – disse Calixte. – Ela é magnífica quando luta. – Então acrescentou, com um sorriso secreto: – Embora ela seja ainda mais magnífica fazendo outras coisas.
Calixte não estava errada em chamar Lazlo de ingênuo, mas, mesmo que coisas como amantes fossem remotas para ele, o rapaz entendeu o sorriso e o tom afetuoso em sua voz. Suas bochechas coraram, para o prazer dela.
– Estranho, você está ruborizando.
– Claro que estou – ele admitiu. – Sou um perfeito inocente. Eu ficaria vermelho ao ver a clavícula de uma mulher.
Enquanto ele disse aquilo, uma quase memória cutucou sua mente. As clavículas de uma mulher, e o maravilhoso espaço entre elas. Mas onde ele teria visto isso...? E, então, Calixte puxou sua blusa para o lado a fim de revelar a própria clavícula, e Lazlo riu, perdendo a memória.
– Bom trabalho desnudando o rosto, a propósito – ela disse, balançando os dedos sob o queixo para indicar a barba de Lazlo. – Eu me esqueci de como era aí debaixo.
Ele sorriu.
– Ah. Bem, desculpe lembrá-la, mas estava coçando.
– O que você quer dizer com essas desculpas? Você tem um rosto excelente! – a moça respondeu, examinando-o. – Não é bonito, mas há outras formas de um rosto ser excelente.
Ele tocou no ângulo pronunciado de seu nariz.
– Eu tenho um rosto – era o máximo que ele estava disposto a dizer.
– Lazlo – chamou Eril-Fane do outro lado da sala –, reúna todos, está bem?
Lazlo assentiu e levantou-se.
– Considere-se reunida – ele informou Calixte, antes de ir procurar o resto da equipe.
– Grite se precisar que eu o salve – a moça respondeu.
– Sempre.
Havia chegado a hora de discutir o “problema” de Lamento pra valer. Lazlo já sabia um pouco por meio de Ruza e Suheyla, mas os outros estavam ouvindo pela primeira vez.
– Nossa esperança ao trazê-los aqui – explicou Eril-Fane, dirigindo-se a eles no belo salão da câmara – é de que vocês encontrem uma forma de nos libertar daquela coisa no nosso céu. – Ele olhou de um rosto para o outro, e Lazlo se lembrou daquele dia no teatro da Grande Biblioteca, quando o olhar do Matador de Deuses recaíra sobre ele, e seu sonho havia assumido uma nova clareza: não só ver a Cidade Perdida, mas ajudá-la.
– Um dia já fomos uma cidade de conhecimento – continuou Eril-Fane. – Nossos ancestrais nunca tiveram que buscar forasteiros para pedir ajuda – falou com um tom de vergonha. – Mas isso está no passado. Os Mesarthim, eles eram... notáveis. Deuses ou outra coisa, eles poderiam ter cuidado do nosso medo e o transformado em reverência, conquistando uma verdadeira idolatria. Mas cuidar não era o jeito deles. Eles não vieram para oferecer-se como uma escolha ou ganhar nossos corações. Eles vieram para dominar, total e brutalmente, e a primeira coisa que fizeram foi nos quebrar.
– Antes mesmo de se apresentarem, soltaram as âncoras. Vocês as viram. Eles não as derrubaram. O impacto teria levado abaixo todas as estruturas da cidade e arruinado os canais subterrâneos, represando o Uzumark que corre sob nossos pés e inundando todo o vale. Eles queriam nos governar, não nos destruir, e nos escravizar, não nos massacrar, então deliberadamente colocaram as âncoras e esmagaram apenas o que estava debaixo delas, incluindo a universidade e a biblioteca, a guarnição dos Tizerkane e o palácio real.
Eril-Fane havia mencionado a biblioteca antes. Lazlo se perguntou sobre ela, e que textos preciosos se perderam junto. Será que havia histórias sobre a época dos ijji e dos serafins?
– Foi tudo terrivelmente organizado. Exército, guardiães da sabedoria e família real obliterados em minutos. Qualquer um que tenha escapado foi encontrado nos dias seguintes. Os Mesarthim sabiam tudo. Nenhum segredo podia ser escondido deles. E isso era tudo. Eles não precisavam de soldados, quando tinham sua mágica para... – Ele fez uma pausa, cerrando os dentes. – Para nos controlar. E, então, nosso conhecimento se perdeu, junto com nossa liderança e muitas outras coisas. Uma cadeia de conhecimento passado ao longo de séculos, e uma biblioteca para fazer inveja até mesmo a sua grande Zosma. – Aqui ele sorriu levemente para Lazlo. – Desaparecidos em um instante. Acabados. Nos anos que se seguiram, a busca do conhecimento foi punida. Toda ciência e investigação morreram. O que nos traz a vocês – ele disse aos delegados. – Espero ter escolhido bem.
Agora, finalmente, suas variadas áreas de expertise faziam sentido. Mouzaive, o filósofo natural: para o mistério da suspensão da cidadela. Como ela flutuava? Soulzeren e Ozwin para chegar a ela em seus trenós de seda. Os engenheiros para projetar quaisquer estruturas que fossem necessárias. Belabra para os cálculos. Os gêmeos Fellering e Thyon por causa do metal.
Mesarthium. Eril-Fane explicou-lhes suas propriedades – sua impenetrabilidade a tudo, ao calor, a todas as ferramentas. Tudo, quer dizer, exceto por Skathis, que o manipulava com a mente.
– Skathis controlava o mesarthium – explicou – e assim controlava... tudo.
Metal mágico telepaticamente moldado por um deus e impenetrável a tudo. Lazlo observou as reações dos delegados e podia entender sua incredulidade, certamente, mas havia uma grande instigação ali para acreditar no inacreditável. Ele acreditara que aquele ceticismo automático havia cedido com a visão do enorme serafim flutuando no céu.
– Certamente ele pode ser cortado – afirmou um dos Fellerings. – Com os instrumentos certos e o conhecimento.
– Ou fundido, com calor suficiente – acrescentou o outro, com uma confiança que esbarrava na arrogância. – As temperaturas que podemos atingir com nossas caldeiras são facilmente o dobro do que os seus ferreiros podem alcançar.
Thyon, por sua vez, não disse nada, e havia mais arrogância em seu silêncio do que na fanfarrice dos Fellerings. Seu convite para a delegação estava claro agora. O azoth não era apenas um meio de fazer ouro, na verdade. Ele também produzia o alkahest, o solvente universal – um agente capaz de dissolver qualquer substância no mundo: vidro, pedra, metal e até diamante. Será que o mesarthium também se dissolveria?
Se sim, então ele bem podia ser o segundo libertador de Lamento. Que honra para sua fama, Lazlo pensou, com uma pontada de mágoa: Thyon Nero, o libertador da sombra.
– Por que não vamos até lá? – sugeriu Eril-Fane, diante da incredulidade de seus convidados. – Eu os apresentarei ao mesarthium. É um bom ponto de partida.
A âncora do norte era a mais próxima, perto o suficiente para ir andando até ela – e a caminhada os levou pela faixa de luz chamada de Avenida, embora não fosse uma avenida. Era o único lugar em que a luz do sol incidia sobre a cidade, passando pelo vão onde as asas do serafim uniam-se na frente e não se encontravam direito.
Era ampla como uma avenida e atravessá-la quase fazia parecer que alguém havia passado do crepúsculo para o dia e de volta à escuridão em alguns passos. Ela percorria metade da extensão da cidade e se tornara terreno mais cobiçado, muito embora a maior parte da luz incidisse sobre bairros mais humildes. Havia luz, e aquilo era tudo. Nessa única faixa banhada de sol, Lamento era tão verde quanto Lazlo sempre tinha imaginado e, em contraste, o restante da cidade parecia mais morto.
As asas nem sempre haviam sido estendidas como estavam agora, Eril-Fane explicou a Lazlo.
– Foi o ato de morte de Skathis: roubar o céu, como se já não tivesse roubado o bastante. – Ele olhou para a cidadela lá em cima, mas não por muito tempo.
E não só o céu fora roubado naquele dia, Lazlo ficou sabendo, descobrindo, enfim, a resposta para a pergunta que o tinha assombrado desde que era criança.
Que poder é capaz de aniquilar um nome?
– Foi Letha – Eril-Fane contou. Lazlo já conhecia o nome: deusa do oblívio, mestra do esquecimento. – Ela o comeu. Engoliu-o enquanto morria, e ele morreu com ela.
– Vocês não podiam renomeá-la? – Lazlo perguntou.
– Você acha que não tentamos? A maldição é muito poderosa. Todo nome que damos sofre o mesmo destino que o primeiro. Apenas Lamento permanece.
Nome roubado. Céu roubado. Filhos roubados. Anos roubados. O que os Mesarthim foram, Lazlo pensou, foram ladrões em uma escala épica.
A âncora dominava a paisagem, uma grande massa desajeitada atrás das silhuetas dos domos. Ela fazia todo o resto parecer pequeno, como um pequeno vilarejo de brinquedo construído para crianças. E no topo estava uma das estátuas que Lazlo não conseguia distinguir claramente, fora o fato de parecer bestial – com chifres e asas. Viu Eril-Fane olhando-a também, estremecer e desviar o olhar.
Os dois se aproximaram do muro proibitivo de metal azul, e seus reflexos deram um passo à frente para encontrá-los. Havia algo no metal, de perto – o volume, o brilho, a cor, uma estranheza indefinível –, que provocou um silêncio à medida que estenderam as mãos com vários graus de cautela para tocá-lo.
Os Fellerings haviam trazido uma maleta de instrumentos e começaram a trabalhar imediatamente. Thyon distanciou-se dos outros para examinar à sua própria maneira, com Drave o seguindo, oferecendo-se para segurar sua mochila.
– É liso – atestou Calixte, correndo as mãos pela superfície. – Parece molhado, mas não é.
– Você nunca vai escalar isso – disse Ebliz Tod, tocando-o.
– Quer apostar? – ela retrucou, com o brilho do desafio nos olhos.
– Cem pratas.
Calixte ridicularizou-o.
– Prata. Que chatice.
– Sabe como resolvemos as disputas em Thanagost? – indagou Soulzeren. – Roleta de veneno. Distribua uma rodada de tragos e misture veneno de serpaise em um deles. Você descobrirá que perdeu quando morrer sufocado.
– Você é louca – disse Calixte, admirada. Ela olhou para Tod. – Acho que Eril-Fane pode querê-lo vivo.
– Pode? – Tod indignou-se. – Você que é a pessoa descartável aqui.
– Você é desagradável, não? – ela retrucou. – Pois lhe digo, se eu ganhar, você terá que construir uma torre para mim.
Ele riu alto.
– Construo torres para reis, não para garotinhas.
– Você constrói torres para os cadáveres dos reis – ela respondeu. – E se tem tanta certeza de que não consigo escalar, onde está o risco? Não estou pedindo por uma Espiral de Nuvem. Pode ser uma torre pequena. Não vou precisar de um túmulo mesmo. Por mais que eu mereça a veneração eterna, pretendo nunca morrer.
– Boa sorte com isso – disse Tod. – E se eu ganhar?
– Hummm... – ela ponderou, batendo o dedo no queixo. – O que diz de uma esmeralda?
Ele a observou, impassivo.
– Você não escapou com nenhuma esmeralda.
– Ah, talvez você esteja certo – ela sorriu. – O que eu saberia sobre isso?
– Me mostre, então.
– Se eu perder, mostrarei. Mas se eu ganhar, você só terá que se perguntar se tenho mesmo ou não.
Tod considerou por um momento, seu rosto carrancudo e calculista.
– Sem corda – ele estipulou.
– Sem corda – ela concordou.
Ele tocou o metal novamente, avaliando quão liso era. Ele deve ter reforçado sua certeza de que era impossível escalar, porque aceitou os termos de Calixte. Uma torre contra uma esmeralda. Aposta justa.
Lazlo foi até onde o muro estava livre e passou a mão pela superfície. Como Calixte havia dito, era liso, não meramente polido. E duro e frio, como é de se esperar de um metal à sombra, e sua pele deslizou sem nenhum tipo de fricção. Ele esfregou as pontas dos dedos e continuou pela extensão da âncora. Mesarthium, Mesarthim. Metal mágico, deuses mágicos. De onde eles teriam vindo?
Do mesmo lugar que os serafins? “Eles vieram dos céus”, dizia o mito – ou a história, se de fato tudo fosse verdade. E de onde antes disso? O que havia além do céu?
Será que vieram do grande todo negro cheio de estrelas que era o universo?
Os “mistérios de Lamento” não eram mistérios de Lamento, Lazlo pensou. Eles eram bem maiores do que este lugar. Maiores do que o mundo.
Chegando à esquina da âncora, ele espiou do outro lado e viu uma viela que se dissolvia em pedregulhos. Aventurou-se por ela, ainda esfregando a mão no mesarthium. Olhando para a ponta de seus dedos, percebeu que estavam de um cinza pálido. Ele os esfregou na camisa, mas a cor não saiu.
Do lado oposto ao muro de metal havia uma fileira de casas destruídas, ainda de pé como estavam antes da âncora, mas com as paredes laterais retiradas, como casas de boneca, abertas de um lado. Eram casas de bonecas decrépitas. Ele pôde ver dentro de antigas salas e cozinhas, e imaginar as pessoas que tinham vivido lá no dia em que seu mundo mudou.
Lazlo se perguntou o que estava debaixo dessa âncora. A biblioteca, o palácio ou a guarnição? Os ossos esmagados de reis, guerreiros ou guardiães do conhecimento? Era possível que algum livro tenha sobrevivido intacto?
Seus olhos notaram um trecho de cor à frente. Estava em um muro abandonado de pedra diante do muro de mesarthium, e a viela era estreita demais para Lazlo vê-lo a distância. Só quando se aproximou pôde decifrar que era uma pintura, e só quando estava de frente para o quadro conseguiu ver o que ela retratava.
Ele olhou para ela. E olhou. O choque geralmente chega como um golpe, repentino e inesperado. Mas, nesse caso, tomou conta dele lentamente, à medida que compreendeu a imagem e lembrou-se do que havia, até aquele momento, esquecido.
Só podia ser uma imagem dos Mesarthim. Havia seis deles: três mulheres de um lado, três homens do outro. Todos estavam mortos ou morrendo – espetados, retalhados ou esquartejados. E entre eles, inequivocamente, grandioso, e com seis braços para segurar seis armas, estava o Matador de Deuses. A imagem era grosseira. Quem quer que tivesse feito a pintura não era um artista treinado, mas havia uma intensidade bruta nela que era muito poderosa. Essa era uma pintura de vitória. Era brutal, sangrenta e triunfante.
O motivo do choque de Lazlo não era a violência dela – o sangue espirrando ou a quantidade de tinta vermelha usada para ilustrá-lo. Não havia sido o vermelho que chamou a sua atenção, mas o azul.
Em todas as conversas sobre os Mesarthim até então, ninguém pareceu achar importante mencionar que – se esse mural estivesse correto – eles tinham sido azuis. Assim como seu metal.
E da mesma forma que a garota no sonho de Lazlo.
Como ele podia tê-la esquecido? Foi como se ela tivesse entrado atrás de uma cortina em sua mente e, quando viu o mural, a cortina caiu e ela estava lá: a garota com a pele da cor do céu, que tinha ficado tão perto dele, estudando-o como se ele fosse uma pintura. Até as clavículas eram dela – a coceirinha em sua memória, de onde ele olhou para baixo no sonho e corou ao ver mais da anatomia feminina do que já vira na vida real. O que o fato de ter sonhado com uma garota com roupas de baixo dizia sobre ele?
Mas ela não estava aqui nem lá. Ali estava ela, no mural. Grosseiro como era, sem capturar o que havia de adorável nela, era uma semelhança inequívoca, desde o cabelo – o rico vermelho-escuro do mel de flores silvestres – até a severa faixa pintada sobre os olhos como uma máscara. Diferente da garota em seu sonho, contudo, esta estava usando um vestido.
Além disso... sua garganta estava aberta e esguichando sangue.
Ele deu um passo para trás, sentindo-se nauseado, como se estivesse observando um corpo real e não a retratação de uma garota assassinada que ele viu em um sonho.
– Tudo bem aí?
Lazlo olhou em volta. Era Eril-Fane na entrada da viela. Dois braços, não seis. Duas espadas, e não um arsenal pessoal de lanças e alabardas. Essa pintura, grosseira e ensanguentada, acrescentava ainda outra dimensão à ideia que Lazlo fazia dele. O Matador de Deuses havia matado deuses. Bem, é claro. Mas Lazlo nunca tinha, de fato, formado uma imagem para corresponder à ideia antes, ou se tinha, era uma imagem vaga, e as vítimas eram monstruosas. Não de olhos arregalados e descalças, como a garota em seu sonho.
– Era assim que eles eram? – ele indagou.
Eril-Fane veio olhar. Seus passos desaceleraram quando percebeu o que o mural retratava. Ele apenas assentiu, sem desviar o olhar dele.
– Eles eram azuis – disse Lazlo.
Mais uma vez, Eril-Fane assentiu.
Lazlo olhou para a deusa com a máscara preta pintada, e imaginou, interposta sobre os traços grosseiramente desenhados, os traços delicados que vira na noite anterior.
– Quem é ela?
Eril-Fane levou um momento para responder, e sua voz, quando respondeu, era rouca e quase baixa demais para ouvir.
– Essa é Isagol. Deusa do desespero.
Então esta era ela, o monstro que o havia mantido por três anos na cidadela. Havia tanto sentimento na forma como ele pronunciara seu nome, e era difícil entender porque não era... puro. Era ódio, mas havia tristeza e vergonha misturados também. Lazlo tentou olhar para seu rosto, mas o homem já estava se afastando. Ele observou-o partir e analisou uma última vez a pintura assustadora antes de segui-lo. Observou as manchas, linhas e riachos de vermelho, e este mais novo mistério não era um caminho de linhas iluminadas em sua mente. Era mais como pegadas sangrentas levando para a escuridão.
Como era possível, perguntou-se, que ele tivesse sonhado com a deusa assassinada antes de saber qual era sua aparência?
31
AMORES E VÍBORAS
Do coração da cidadela, Sarai retornou ao seu quarto. Os “soldados” de Minya estavam por toda parte armados com facas, cutelos, picadores de gelo. Eles até tiraram os ganchos de metal da sala da chuva. Em algum lugar havia um arsenal de verdade, mas ele estava fechado atrás de uma sucessão de portas de mesarthium seladas e, de qualquer forma, Minya achava que as facas eram armas apropriadas para uma carnificina. Afinal, eram elas que os humanos haviam usado no berçário.
Não tinha como escapar do exército, principalmente para Sarai, uma vez que seu quarto era voltado para a palma azul-prateada do serafim, iluminada pelo sol. Os fantasmas estavam lá em grande número, e isso fazia sentido, pois o terraço era o lugar perfeito para um veículo pousar, muito melhor do que o jardim com suas árvores e vinhas. Quando o Matador de Deuses viesse, ele chegaria por ali e Sarai seria a primeira a morrer.
Será que ela deveria então agradecer a Minya por sua proteção?
– Vocês não veem? – Minya havia dito, revelando-lhes seu exército. – Estamos seguros!
Entretanto, Sarai nunca se sentira tão desprotegida. Seu quarto fora violado por fantasmas prisioneiros e ela temia que, ao cair no sono, o que a esperava fosse ainda pior. Sua bandeja estava aos pés da cama: lull e ameixas, como em todas as manhãs, embora normalmente nesse horário já estivesse dormindo profundamente e perdida no esquecimento de Letha. Será que o lull funcionaria hoje? Havia meia dose extra, como Grande Ellen havia prometido. Será que tinha sido apenas um acaso no dia anterior?, Sarai se perguntou. Por favor, desejou, desesperada pelo veludo triste do seu vazio. Terrores se agitavam dentro de si e imaginou que podia ouvir um ruído de gritos impotentes nas cabeças de todos os fantasmas. Ela também queria gritar. Não havia sensação de segurança, pensou, abraçando um travesseiro contra o peito.
Sua mente lhe ofereceu uma exceção improvável.
O sonho do faranji. Ela tinha se sentido segura lá.
A memória despertou um silvo desesperado de... pânico? Excitação? Seja lá o que fosse, ela contradizia a própria sensação de segurança que tinha conjurado o pensamento nele para começo de conversa. Sim, o sonho tinha sido doce, mas... ele a havia visto.
O olhar em seu rosto! A admiração, o encantamento. Seus corações aceleraram com o pensamento e suas mãos ficaram úmidas. Não era algo pequeno viver uma vida de não existência e, de repente, ser vista.
Quem era ele, afinal? De todos os sonhos dos faranji, apenas o dele não dera nenhuma pista do motivo pelo qual Eril-Fane o havia levado para lá.
Exausta, amedrontada, Sarai bebeu seu lull e deitou-se na cama. Por favor, pediu, fervorosa – uma espécie de oração para a bebida amarga. Por favor, funcione.
Por favor, afaste os pesadelos.
Lá fora, em seu jardim, Pardal estava com os olhos baixos. Desde que se concentrasse nas folhas e botões, caules e sementes, podia fingir que era um dia normal e que não havia fantasmas fazendo a guarda sob a arcada.
Ela estava fazendo um presente de aniversário para Rubi, que faria dezesseis anos em alguns meses... caso ainda estivessem vivos.
Considerando o exército de Minya, Pardal achou que as chances deles eram boas, mas ela não queria ter de considerar o exército de Minya. Ele a fazia se sentir segura e infeliz ao mesmo tempo, então ela mantinha os olhos baixos e cantarolava, tentando esquecer que eles estavam lá.
Outro aniversário para celebrar sem bolo. As opções para presentes também eram poucas. Normalmente, as garotas desfaziam algum dos horríveis vestidos de seus guarda-roupas e o transformavam em outra coisa. Talvez um cachecol. Um ano, Pardal havia feito uma boneca com rubis de verdade no lugar dos olhos. Seu quarto tinha sido de Korako, então ela tinha todos os vestidos e joias dela para usar, enquanto Rubi tinha os de Letha. As deusas não eram suas mães, como Isagol era de Sarai. As duas eram filhas de Ikirok, deus da folia, que também servira como carrasco em seu tempo livre. Então, elas eram meias-irmãs e as únicas dos cinco que eram parentes de sangue. Feral era filho de Vanth, deus das tempestades – cujo dom ele tinha mais ou menos herdado – e Minya era filha de Skathis. Sarai era a única cujo sangue dos Mesarthim vinha do lado materno. Era raro as deusas darem à luz, de acordo com a Grande Ellen. Uma mulher só podia ter um bebê por vez, ocasionalmente dois. Mas os homens eram capazes de fecundar quantas mulheres quisessem, contanto que houvesse mulheres.
De longe, a maioria dos bebês do berçário tinha sido fecundada em garotas humanas pela trindade de deuses.
O que significava que, em algum lugar de Lamento, Pardal tinha uma mãe.
Quando ela era pequena, demorou para entender ou acreditar que sua mãe não a queria.
– Eu poderia ajudá-la no jardim – ela disse a Grande Ellen. – Eu poderia ser de grande ajuda, sei que poderia.
– Também sei que você poderia, querida – respondeu Grande Ellen –, mas precisamos de você aqui. Como poderíamos viver sem você?
Ela tentou ser gentil, mas Minya não sofria de tal compunção.
– Se a encontrassem no jardim deles, lhe dariam um golpe na cabeça com a enxada e a jogariam fora junto com o lixo. Você é cria de deuses, Pardal. Eles nunca irão querê-la.
– Mas também sou humana – a garota insistiu. – Será que eles podem ter esquecido disso? De que somos seus filhos também?
– Você não entende? Eles nos odeiam mais porque somos deles.
E Pardal não entendia, não na época, mas enfim aprendeu – a partir de uma grosseira e inacreditável afirmação de Minya, seguida de uma explicação gentil e esclarecedora de Grande Ellen – a... mecânica da procriação, e isso mudou tudo. Ela sabia agora qual deveria ter sido a natureza de sua própria concepção e embora o conhecimento fosse uma coisa obscura e vaga, sentiu o horror disso como o peso de um corpo indesejado, o que lhe deu um nó na garganta. É claro que nenhuma mãe iria querê-la, não depois de um começo como esse.
Ela se perguntou quantos dos fantasmas do exército de Minya tinham sido usados assim pelos deuses. Havia muitas mulheres e a maioria era mais velha. Quantas teriam parido bebês dos quais não se lembravam nem desejavam se lembrar?
Pardal manteve os olhos em suas mãos e trabalhou no seu presente, cantarolando baixinho para si mesma. Tentou não pensar se todos ainda estariam vivos no aniversário de Rubi ou que tipo de vida teriam caso estivessem. Ela focou em suas mãos e na sensação calmante de crescimento fluindo delas. Ela estava fazendo um bolo de flores. Ah, não era nada que pudessem comer, mas era bonito e a lembrava do passado, quando ainda havia açúcar na cidadela e alguma medida de inocência também, antes de ela entender sua própria atrocidade.
O bolo tinha até botões de bastão-do-imperador no lugar de velas: dezesseis deles. Ela o daria a Rubi no jantar, pensou. Ela poderia acendê-los com o próprio fogo, fazer um pedido e soprá-los.
Feral estava em seu quarto, olhando para o seu livro. Ele virou as páginas de metal e traçou os símbolos angulares e ásperos com a ponta do dedo.
Se fosse necessário, era capaz de replicar o livro inteiro de cor – de tão bem que o conhecia. Mas isso não adiantava muito, uma vez que não conseguia extrair nenhum significado daquilo. Às vezes, quando se concentrava demais nos símbolos, seus olhos perdiam o foco e então tinha a sensação de que podia ver dentro do metal e sentir um potencial pulsante e dormente. Como um cata-vento esperando por uma rajada para girá-lo. Esperando e desejando que ela viesse.
O livro queria ser lido, Feral pensava. Mas qual era a natureza da rajada capaz de mover esses símbolos? Ele não sabia. Só sabia – ou, pelo menos, suspeitava fortemente – que, se pudesse ler esse alfabeto críptico, poderia descobrir os segredos da cidadela. Poderia proteger as garotas, em vez de meramente... bem, mantê-las hidratadas.
Ele sabia que a água não era uma questão irrelevante e que todos teriam morrido sem seu dom, então ele não tendia a se remoer muito por não ter o poder de Skathis. Esse remorso, em particular, era de Minya, mas às vezes ele também caía vítima desse anseio. É claro, se pudessem controlar o mesarthium, estariam livres e salvos, sem mencionar que seriam indestrutíveis. Mas ninguém o controlava e era inútil perder tempo desejando-o.
Contudo, Feral tinha certeza que se pudesse desvendar o livro, poderia fazer... alguma coisa.
– O que você está fazendo aí? – a voz de Rubi veio da porta.
Ele olhou para cima e fez uma carranca quando viu que ela tinha colocado a cabeça para dentro.
– Respeite a cortina – ele disse, e voltou os olhos ao seu livro.
Mas Rubi não respeitou a cortina. Ela simplesmente rodopiou em seus pés descalços azuis, arqueados e expressivos. Suas unhas dos pés estavam pintadas de vermelho e ela estava vestindo vermelho, estava também com uma expressão determinada que o teria alarmado caso o garoto a tivesse olhado – o que ele não fez. Ele se retesou um pouco. Isso foi tudo.
Ela fez uma carranca por cima de sua cabeça baixa, como ele tinha feito para ela na porta. Era um começo nada promissor. Livro estúpido, ela pensou. Livro estúpido.
Mas ele era o único garoto. Tinha lábios mais quentes do que os fantasmas. Tudo mais quente, ela supunha. Mais importante, Feral não tinha medo dela, o que devia ser mais divertido do que se encostar em um fantasma meio paralisado e dizer-lhe o que fazer a cada poucos segundos. Coloque suas mãos aqui. Agora aqui.
Tão chato.
– O que você quer, Rubi? – perguntou Feral.
Ela estava perto dele agora.
– O lance dos experimentos – explicou ela – é que eles precisam ser repetidos ou então não valem nada.
– O quê? Que experimento? – Ele se virou para ela. Sua testa estava franzida: meio pela confusão, meio pela irritação.
– Beijar – a garota respondeu. Ela tinha dito antes: “esse é um experimento que não vou repetir”. Pois bem. À luz de sua aceleração em direção à ruína, ela tinha reconsiderado.
Ele não.
– Não – ele disse, seco, e virou-se novamente.
– É possível que eu estivesse errada – a garota explicou, com um ar de grande generosidade. – Decidi lhe dar uma nova chance.
Cheio de sarcasmo:
– Obrigado pela generosidade, mas eu dispenso.
A mão de Rubi desceu sobre o livro.
– Escute. – Ela empurrou o livro e sentou-se na beirada da mesa. Sua camisola subiu nas coxas, a pele tão lisa e sem atrito quanto o mesarthium, ou quase.
Contudo, muito mais macia.
Ela apoiou os pés na beirada da cadeira.
– Provavelmente nós vamos morrer – ela disse, em um tom prático. – E, de qualquer forma, mesmo que não morramos, estamos aqui. Estamos vivos. Temos corpos. Bocas. – Ela fez uma pausa e acrescentou, provocativa, passando-a entre os dentes: – Línguas.
Feral corou.
– Rubi... – ele começou a dizer em um tom de rejeição.
Ela o interrompeu.
– Não tem muita coisa para fazer aqui em cima. Não há nada para ler. – Ela apontou para o livro dele. – A comida é ruim. Não tem música. Nós inventamos oito mil jogos e já enjoamos de todos eles. Por que não inventar outra coisa? – sua voz estava ficando rouca. – Não somos mais crianças e temos lábios. Não é motivo suficiente?
Uma voz na cabeça de Feral garantiu-lhe que aquilo não era motivo suficiente. Que ele não queria mais experimentar a saliva de Rubi. Que ele não queria, na verdade, passar mais tempo com ela do que já passava. Podia até mesmo ter uma voz lá em algum lugar ressaltando que se ele tivesse de... passar mais tempo... com uma das garotas, não seria com ela. Quando ele brincou com Sarai sobre casar-se com todas elas, fingiu que não era algo sobre o qual pensasse muito, mas ele pensava. Como não? Ele era um garoto preso com garotas, elas podiam ter sido como irmãs, mas não eram irmãs, e elas eram... bem, elas eram bem bonitas. Sarai primeiro, depois Pardal, se ele tivesse de escolher. Rubi seria a última.
Mas aquela voz parecia vir de muito longe e Sarai e Pardal não estavam lá naquele momento, enquanto Rubi estava muito perto e cheirava tão bem.
E, como ela disse, provavelmente todos iriam morrer.
A bainha de sua camisola era fascinante. Seda vermelha e pele azul contrastavam, as cores pareciam vibrar. E a forma como os joelhos dela estavam unidos, um por cima do outro só um pouquinho e a sensação do pé dela roçando debaixo do seu joelho. Ele não podia deixar de achar os argumentos dela... atraentes.
A garota inclinou-se para a frente, só um pouquinho. Todos os pensamentos sobre Sarai e Pardal desapareceram.
Ele se inclinou para trás o mesmo tanto.
– Você disse que eu era terrível – ele a lembrou, sua própria voz tão rouca quanto a dela.
– E você disse que eu te afoguei – ela respondeu, aproximando-se um pouco mais.
– Tinha mesmo muita saliva – ele observou. Talvez imprudentemente.
– E você foi tão sensual quanto um peixe morto – ela retrucou, sua expressão se fechando.
A situação ficou delicada por um momento. “Meus amores, minhas víboras”, Grande Ellen os havia chamado. Bem, eles eram todos amores e víboras, todos eles. Ou, talvez Minya fosse toda víbora e Pardal fosse toda amor, mas o resto deles era apenas... Era apenas corpo e espírito, juventude e magia, desejo e sim, saliva, tudo isso sufocado, sem lugar para sair. Massacre atrás deles, massacre à frente, e fantasmas por toda parte.
Mas ali, de repente, havia uma distração, fuga, novidade, sensação. O movimento dos joelhos de Rubi era uma espécie de poesia azul e, quando se está tão perto assim de alguém, não vê seus movimentos tanto quanto sente a compressão do ar entre vocês. O roçar da pele, o deslizar. Rubi se moveu e com um simples serpentear furtivo sentou-se no colo de Feral. Seus lábios encontraram os dele. Ela não era nada sutil com a língua. Suas mãos entraram para a festa, pareciam dezenas delas em vez de quatro, e também havia palavras, porque Rubi e Feral ainda não haviam aprendido que não é realmente possível conversar e beijar ao mesmo tempo.
Então levou um momento para acertar isso.
– Acho que vou te dar uma outra chance – admitiu Feral, sem fôlego.
– Sou eu que estou te dando outra chance – Rubi corrigiu, um fio da saliva mencionada brilhando entre seus lábios quando ela se afastou para falar.
– Como vou saber se você não vai me queimar? – Feral perguntou, enquanto deslizava sua mão pelo quadril dela.
– Ah – disse Rubi, despreocupada –, isso só aconteceria se eu perdesse completamente o controle. – Línguas movendo-se com ímpeto, colidindo. – Você teria que ser muito bom. – Dentes batendo. Narizes também. – Não estou preocupada.
Feral quase se ofendeu, mas havia muitas coisas agradáveis acontecendo, então ele aprendeu a segurar a língua, ou melhor, a empregá-la em um propósito mais interessante do que discutir.
Você pode pensar que lábios e línguas ficam sem coisas para experimentar, mas isso não acontece.
– Coloque sua mão aqui – sussurrou Rubi, e ele obedeceu. – Agora aqui – ela ordenou, e ele não colocou. Para satisfação dela, as mãos de Feral tinham uma centena de ideias próprias, e nenhuma delas era entediante.
O coração da cidadela estava vazio de fantasmas. Pela primeira vez em uma década, Minya o tinha para si. Ela se sentou na passagem que dava a volta na circunferência da grande sala esférica, com as pernas penduradas para fora – pernas magras e curtas. Elas não estavam balançando. Não havia nada infantil ou despreocupado na pose. Havia uma escassez de vida na pose, exceto por um sutil movimento para frente e para trás. A garotinha estava rígida, com olhos abertos e expressão impassível. As costas estavam eretas e as mão sujas estavam tão cerradas que os nós dos dedos pareciam prestes a rachar.
Seus lábios estavam se movendo. Muito pouco. Ela sussurrava alguma coisa, repetidamente. Ela havia voltado no tempo quinze anos, vendo essa sala de uma forma diferente.
O dia. O dia em que foi eternamente espetada, como uma mariposa presa pelo tórax com um longo e brilhante alfinete.
Naquele dia, ela havia pegado dois bebês e os segurado apenas com um braço. Ela não tinha gostado disso, tampouco seu braço, mas precisava do outro para arrastar as crianças pequenas: as duas mãozinhas delas presas à sua, molhadas e escorregadias de suor. Dois bebês em um braço, duas crianças tropeçando atrás dela.
Ela os tinha levado para lá, enfiado-os pelo vão da porta quase fechada e virado para correr e resgatar mais. Mas não havia mais crianças. Ela estava no meio do caminho para o berçário quando os gritos começaram.
Às vezes, sentia como se tivesse congelado por dentro no momento em que parou ao som daqueles gritos.
Na época, ela era a criança mais velha do berçário. Kiska, que podia ler mentes, tinha sido a última levada por Korako, para nunca mais voltar. Antes dela havia Werran, cujo grito semeava o pânico nas mentes de quem ouvia. Quanto a Minya, ela sabia qual era seu dom, pois o conhecia havia meses, mas não o estava demonstrando. Uma vez que descobrissem, levariam-na para longe, então ela guardou o segredo da deusa dos segredos e ficou no berçário pelo maior tempo possível. E, assim, ela ainda estava lá no dia em que os humanos se levantaram e mataram seus mestres. Isso não teria problema para ela – que não tinha amor pelos deuses –, caso tivessem parado por aí.
Ela ainda estava no corredor, ouvindo os gritos e seu terrível minguar sangrento. Ela sempre estaria lá e seus braços sempre seriam pequenos demais, assim como tinham sido naquele dia.
Contudo, de forma crucial, ela era diferente. Nunca permitiria a fraqueza ou a delicadeza novamente, ou que o medo ou a incapacidade a mantivesse congelada. Ela ainda não sabia do que era capaz. Seu dom não havia sido testado. É claro. Se ela o testasse, Korako a teria encontrado e levado-a embora. E, então, ela não conheceria a força de seu poder.
Ela poderia ter salvado a todos, se soubesse.
Houve tanta morte na cidadela naquele dia. Ela poderia ter se ligado àqueles fantasmas – até aos fantasmas dos deuses. Imagine.
Imagine.
Ela podia ter se ligado aos próprios deuses e colocado-os a seu serviço, Skathis também. Se ela soubesse o que fazer. Então, podia ter construído um exército e aniquilado o Matador de Deuses e todos os outros antes que chegassem ao berçário.
Em vez disso, ela salvou quatro crianças e, assim, ficou para sempre presa naquele corredor, ouvindo aqueles gritos serem silenciados um a um.
Sem fazer nada.
Seus lábios ainda estavam se movendo, sussurrando as mesmas palavras sem parar.
– Elas foram tudo o que consegui carregar. Elas foram tudo o que consegui carregar.
Não havia eco, nenhuma reverberação. A sala engolia os sons. Engoliu sua voz, suas palavras e suas desculpas eternas e inadequadas. Mas não suas memórias.
Ela nunca se livraria delas.
– Elas foram tudo o que consegui carregar.
– Elas foram tudo o que consegui carregar...
32
O ESPAÇO ENTRE OS PESADELOS
Sarai acordou engasgando com a sensação de uma centena de mariposas úmidas se espremendo em sua garganta. Foi tão real, tão real. Ela, de fato, acreditou que eram suas mariposas, que as havia engolido, nauseantes e vivas. Havia um gosto de sal e de fuligem – sal das lágrimas dos sonhadores, fuligem das chaminés de Lamento – e mesmo depois que recuperou o fôlego e percebeu que era um pesadelo, ainda podia sentir o gosto.
Obrigada, Minya, por esse horror novo em folha.
Não fora o primeiro horror do dia. Nem perto disso. Sua oração para o lull não fora atendida. A garota mal havia dormido por uma hora e o pouco sono que teve foi longe de ser revigorante. Sonhara com a própria morte de meia dúzia de maneiras diferentes, como se sua mente estivesse fazendo uma lista de alternativas. Um menu, por assim dizer, de formas de morrer.
Envenenamento.
Afogamento.
Queda.
Esfaqueamento.
Espancamento.
A garota havia até mesmo sido queimada viva pelos cidadãos de Lamento. E entre as mortes, ela era... o quê? Era uma garota em uma floresta escura que tinha ouvido um galho quebrar. O espaço entre os pesadelos era como o silêncio após a quebra, quando você sabe que seja lá quem tenha feito o ruído, está parado e o observando no escuro. Não havia mais o nada cinzento. A névoa do lull se dissolvera.
Todos os seus terrores estavam livres.
Ela se deitou de costas, seus lençóis chutados para longe, e olhou para o teto. O corpo estava exausto, a mente adormecida. Como o lull podia ter simplesmente parado de funcionar? No seu pulso havia uma cadência de pânico.
O que deveria fazer agora?
A sede e a vontade de ir ao banheiro a levaram a se levantar, mas a perspectiva de deixar a cama era desencorajadora. Sabia o que encontraria logo ali, mesmo dentro de seu próprio quarto:
Fantasmas com facas nas mãos.
Igual às velhas senhoras que a cercaram na cama, desesperadas com a incapacidade de matá-la.
Enfim levantou-se. Vestiu um robe e o que esperava que se passasse por dignidade e emergiu. Lá estavam eles, enfileirados entre a porta para a passagem e a porta que dava para o terraço: oito deles lá dentro; ela não podia ter certeza de quantos estavam fora na mão do serafim. Ela se endureceu e atravessou seu quarto.
Minya, ao que parecia, estava prendendo seu exército com tal controle que eles não podiam formar expressões faciais como a aversão ou o medo, que Sarai conhecia tão bem, mas os olhos permaneciam deles e era incrível ver o quanto podiam transmitir apenas com isso. Havia aversão e medo, sim, enquanto Sarai passou por eles, mas o que mais viu ali foram pedidos de socorro.
Ajude-nos.
Liberte-nos.
Não posso ajudar vocês, ela queria dizer, mas o nó na garganta era maior do que apenas uma falsa sensação de mariposas, era o conflito que a dividia ao meio. Esses fantasmas a matariam em um minuto se estivessem livres. Ela não deveria querer ajudá-los. O que havia de errado com ela?
Sarai evitou os olhares e passou rápido, sentindo que ainda estava presa em um pesadelo. Quem, ela se perguntava, quem vai me ajudar?
Não havia ninguém na galeria, exceto Minya. Bem, Minya e os fantasmas que agora preenchiam a arcada, esmagando as vinhas de Pardal debaixo de seus pés mortos. Ari-Eil estava parado em alerta atrás da cadeira de Minya, parecendo um belo serviçal, exceto por suas feições. Minya tinha deixado o rosto dele livre para refletir seus sentimentos e ele não desapontava. Sarai quase empalideceu com a aspereza do homem.
– Olá – disse Minya. Havia farpas de rancor em sua voz viva e infantil quando perguntou: – Dormiu bem?
– Como um bebê! – Sarai respondeu, animada. O que ela, de fato, queria dizer era que tinha acordado frequentemente gritando, mas não sentiu necessidade de esclarecer a questão.
– Nenhum pesadelo? – indagou Minya.
Sarai cerrou os dentes. Ela não podia suportar mostrar fraqueza, não agora.
– Você sabe que não sonho – retrucou, desejando desesperadamente que isso ainda fosse verdade.
– É mesmo? – disse Minya, levantando as sobrancelhas com ceticismo e, de repente, Sarai se perguntou por que ela estava questionando. Ela não contou a ninguém, exceto a Grande Ellen, sobre seu pesadelo no dia anterior, mas naquele momento, teve certeza de que Minya sabia.
Um choque tomou conta da garota. Era a expressão nos olhos de Minya: frios, indagadores, maldosos. E, assim, Sarai entendeu: Minya não só sabia dos pesadelos como era a causa deles.
Seu lull. Grande Ellen o preparava. Grande Ellen era um fantasma e, assim, estava sujeita ao controle de Minya. Sarai se sentiu nauseada – não só com a ideia de que Minya podia estar sabotando seu lull, mas em pensar que ela manipularia Grande Ellen, que era quase uma mãe para eles. Era horrível demais.
Ela engoliu em seco. Minya a estava observando com atenção, talvez se perguntando se Sarai havia descoberto. Sarai pensou que Minya queria que descobrisse, para que pudesse entender sua posição claramente: se ela quisesse sua névoa cinza de volta, teria de fazer por merecer.
Sarai ficou aliviada, então, quando Pardal chegou. Foi capaz de produzir um sorriso crível e fingir – ela esperava – que estava bem, enquanto por dentro seu espírito sibilava de indignação e de choque pelo fato de Minya ter ido tão longe.
Pardal lhe beijou a bochecha. Seu próprio sorriso era trêmulo e corajoso. Rubi e Feral chegaram logo depois. Estavam discutindo sobre alguma coisa, o que tornou mais fácil fingir que tudo estava normal.
O jantar foi servido. Uma pomba havia sido capturada na armadilha, e Grande Ellen a preparou em um cozido. Parecia tão errado, assim como comer geleia de borboleta ou bifes de espectral. Algumas criaturas eram adoráveis demais para devorar – não que essa opinião fosse compartilhada por toda a mesa de jantar. Feral e Rubi comeram com gosto, não demonstravam nenhuma preocupação com a fonte da carne, e se Minya nunca fora de comer muito, certamente isso não tinha nada a ver com a delicadeza de sentimentos. Ela não terminou seu cozido, mas pegou um ossinho para palitar os pequenos dentes brancos.
Apenas Pardal compartilhava da mesma hesitação de Sarai, embora as duas tenham comido, porque carne era rara e seus corpos tinham necessidade daquilo. Não importava que não tivessem apetite. Elas viviam com porções básicas e estavam sempre com fome.
Assim que Kem retirou os pratos, Pardal se levantou da mesa.
– Eu já volto – disse. – Não saiam daqui.
Eles olharam uns para os outros. Rubi levantou as sobrancelhas. Pardal correu para o jardim e voltou pouco tempo depois segurando...
– Um bolo! – gritou Rubi, levantando-se. – Como é que você...?
Era um sonho de bolo e eles o observaram maravilhados: três camadas altas de branco cremoso decorado com botões, como neve caindo.
– Não fiquem entusiasmados demais – ela alertou. – Não é para comer.
Perceberam que a “cobertura” branca cremosa era de pétalas de orquídea espalhadas com botões de anadne e tudo era feito com flores, até os botões de bastão-do-imperador no topo que pareciam, para todo mundo, dezesseis velas acesas.
Rubi ficou intrigada.
– Então para que serve?
– Para fazer um pedido – Pardal disse. – É um bolo de aniversário adiantado. – Ela o colocou na frente de Rubi. – No caso de...
Todos entenderam o que ela queria dizer, no caso de que não houvesse mais aniversários.
– Bom, isso é horrível – disse Rubi.
– Vá em frente, faça um pedido.
Rubi fez. E embora os bastões-do-imperador já se parecessem com pequenas chamas, ela as acendeu com a ponta dos dedos e assoprou direitinho, todas de uma só vez.
– O que você pediu? – Sarai perguntou.
– Que fosse um bolo de verdade, é claro – disse Rubi. – Será que deu certo? – Ela enfiou os dedos, mas é claro que não havia bolo, apenas mais flores, mas fingiu que estava comendo sem dividir com ninguém.
A noite caiu. Sarai se levantou para ir.
– Sarai – chamou Minya, e ela parou, mas não se virou. Ela sabia o que viria. Minya não tinha desistido. Nunca desistiria. De alguma forma, por simples força de vontade, a garota tinha se congelado no tempo, não só seu corpo, mas tudo. Sua fúria, sua vingança, nada havia diminuído em todos aqueles anos. Era impossível vencer contra tamanha força de vontade. Sua voz elevou-se com o lembrete: – Alguns minutos de asco para salvar nós todos.
Sarai continuou andando. Para salvar nós todos. As palavras pareciam se embrulhar em seu estômago – não mariposas, mas cobras. Ela queria deixá-las para trás na galeria, mas quando atravessou o corredor de soldados-fantasmas que se alinhavam no caminho até seu quarto, seus lábios se abriram e murmuraram todos juntos: “para salvar nós todos, para salvar nós todos” e, depois disso, as palavras que eles só tinham dito com os olhos até então: ajude-nos, salve-nos. Os fantasmas falaram em voz alta, implorando enquanto a garota passava. “Ajude-nos, salve-nos”. E era tudo Minya, brincando com a fraqueza de Sarai.
Brincando com sua misericórdia.
Na porta, ela teve de passar por uma criança. Uma criança. Bahar, nove anos, que tinha morrido no Uzumark, três anos antes, e ainda usava as roupas molhadas de seu afogamento. Era inaceitável, até mesmo para Minya, manter uma criança morta como bicho de estimação. A pequena fantasma ficou parada no caminho de Sarai e as palavras de Minya saíram de seus lábios.
– Se você não o matar, Sarai – ela disse, chorosa –, eu terei que fazê-lo.
Sarai pressionou as palmas das mãos contra os ouvidos e passou rápido por ela. Mas mesmo em seu quarto, onde os fantasmas não a viam, ela ainda os podia ouvir sussurrando: “salve-nos, ajude-nos”, até achar que enlouqueceria.
Ela gritou suas mariposas e encolheu-se em um canto, com os olhos bem fechados, desejando mais do que nunca poder ir junto com elas. Naquele momento, se pudesse derramar toda sua alma nas mariposas e deixar seu corpo vazio – mesmo que não pudesse nunca mais retornar a ele –, ela o teria feito, apenas para ficar livre dos pedidos sussurrados dos homens, mulheres e crianças – mortos de Lamento.
Os homens, mulheres e crianças vivos de Lamento estavam a salvo de seus pesadelos novamente esta noite. Ela retornou aos faranji na câmara, e para os Tizerkane em seu quartel, e para Azareen, sozinha em seu quarto, em Quedavento.
A garota não sabia o que faria se encontrasse Eril-Fane. As cobras que se enrodilhavam em seu estômago tinham migrado para seus corações. Havia escuridão dentro dela, e traição, disso sabia. Mas tudo estava tão emaranhado que ela não sabia se era misericórdia não o matar ou apenas covardia.
Mas ela não o encontrou. O alívio foi tremendo, mas rapidamente transformou-se em outra coisa: uma consciência aumentada do estranho que estava na cama dele. Sarai pousou no travesseiro ao lado de seu rosto adormecido por um longo tempo, repleta de medo e de saudade. Saudade da beleza de seu sonho. Medo de ser vista novamente – e não com surpresa dessa vez, mas pelo pesadelo que ela era.
No fim, ela se decidiu. Pousou em sua testa e entrou em seu sonho. Era Lamento novamente, sua própria Lamento iluminada que não merecia o nome, mas quando ela o viu a distância, não o seguiu. Ela apenas encontrou um pequeno lugar para se encolher – assim como seu corpo estava encolhido em seu quarto – para respirar o ar doce, observar as crianças com seus casacos de penas, e sentir-se segura, pelo menos por algum tempo.
33
TODOS SOMOS CRIANÇAS NO ESCURO
Os primeiros dias de Lazlo em Lamento passaram-se em uma correria de atividade e assombro. Havia a cidade para descobrir, é claro, e tudo o que era doce e amargo nela.
Não era o lugar perfeito que imaginara quando menino. É claro que não era. Se um dia tivesse sido, tinha passado por coisas demais para permanecer daquele jeito. Não havia corda bamba nem crianças com casacos de penas; pelo que conseguiu descobrir, nunca houvera. As mulheres não usavam os cabelos longos como mantos atrás de si, e por um bom motivo: as ruas eram sujas como as de qualquer outra cidade. Tampouco havia bolos nos parapeitos das janelas, mas Lazlo não esperava por isso. Havia lixo e insetos. Não muito, mas o suficiente para impedir que um sonhador idealizasse o objeto de sua antiga fascinação. Os jardins ressecados eram uma frustração e mendigos dormiam como se estivessem mortos, coletando moelas no oco de seus olhos fechados e, no geral, havia muitas ruínas.
E mesmo assim havia tanta cor e som, havia vida: homens-canários com seus pássaros engaiolados, homens sonhadores soprando poeira colorida, crianças com sapatos-harpa fazendo música ao correr. Havia luz e havia escuridão: os templos aos serafins eram mais requintados do que as igrejas em Zosma, Syriza e Maialen juntas, e ver o ritual neles – a dança extática de Thakra – foi a experiência mais mística da vida de Lazlo. Mas havia os padres açougueiros também, fazendo adivinhações nas entranhas de animais, e os profetas em suas pernas de pau, gritando o fim do mundo detrás de suas máscaras de esqueleto.
Tudo isso estava em um horizonte de pedra cor de mel esculpida e domos dourados, as ruas que saíam de um antigo anfiteatro cheio de barracas de mercado coloridas.
Naquela tarde, ele tinha almoçado lá com alguns dos Tizerkane, incluindo Ruza, que o havia ensinado a frase: “Você arruinou minha língua para todos os outros sabores”. Ruza lhe garantiu que era o maior elogio possível ao chefe, mas a jovialidade nos olhos dos outros sugeriam um significado mais... lascivo. No mercado, Lazlo comprou uma camisa e um casaco no estilo local, nenhum deles cinza. O casaco era do verde das florestas distantes e precisava de abotoaduras para segurar as mangas entre os bíceps e os deltoides. Essas vinham em todo material imaginável. As de Eril-Fane eram de ouro. Lazlo escolheu o couro, mais barato e discreto.
Ele comprou meias também. Estava começando a entender o encanto do dinheiro. Comprou quatro pares – uma quantidade extravagante de meias – e não só elas não eram cinza, como os dois pares não eram da mesma cor, um era rosa e outro listrado.
E falando em rosa, ele experimentou bala de sangue em uma pequena loja sob uma ponte. Era real e era horrível. Depois de superar a vontade de cuspir, ele disse à confeiteira, em voz baixa: “Você arruinou minha língua para todos os outros sabores”, e viu os olhos dela arregalarem-se. Ela ficou chocada e, na sequência, vermelha, confirmando suas suspeitas em relação à decência do elogio.
– Obrigado por isso – Lazlo disse a Ruza quando se afastaram. – O marido dela provavelmente vai me chamar para um duelo.
– Provavelmente – concordou Ruza –, mas todo mundo deve duelar pelo menos uma vez.
– Uma vez parece correto para mim.
– Porque você vai morrer – Ruza esclareceu, desnecessariamente. – E não estará vivo para outro duelo.
– Sim – respondeu Lazlo. – Foi isso o que eu quis dizer.
Ruza bateu no ombro dele.
– Não se preocupe. Nós vamos transformá-lo num guerreiro. Você sabe... – Ele olhou para a bolsa de brocado que tinha pertencido à avó de Calixte. – Para começo de conversa, você pode comprar uma carteira enquanto estamos aqui.
– O quê? Você desaprova a minha bolsa? – perguntou Lazlo, segurando-a para mostrar bem o broche espalhafatoso.
– Sim, desaprovo.
– Mas é tão útil! – exclamou Lazlo. – Veja, posso usá-la assim. – Ele demonstrou, com a bolsa pendurada no pulso pelos cordões e girando-a em círculos, como criança.
Ruza simplesmente balançou a cabeça e murmurou:
– Faranji.
Mas mais importante, havia trabalho a ser feito.
Durante aqueles primeiros dias, Lazlo havia providenciado que todos os delegados do Matador de Deuses estivessem instalados em espaços de trabalho para acomodar suas necessidades, bem como materiais e, em alguns casos, assistentes. E como a maioria não tinha se preocupado em aprender nada da língua de seu anfitrião durante a jornada, todos precisavam de intérpretes. Alguns dos Tizerkane entendiam um pouco, mas tinham seus compromissos. Calixte estava quase fluente, mas ela não tinha intenção de passar o tempo ajudando “velhos de mente pequena”. Então Lazlo viu-se muito ocupado.
Alguns dos delegados eram mais fáceis do que outros. Belabra, o matemático, requisitou um escritório com paredes altas, onde pudesse escrever suas fórmulas e lavá-las quando achasse apropriado. Kether, artista e projetista de catapultas, precisava apenas de uma mesa para desenho, que foi levada ao seu quarto na câmara.
Lazlo duvidava que os engenheiros precisassem de muito mais do que isso, mas Ebliz Tod parecia ver isso como uma questão de distinção – de que os convidados mais “importantes” deveriam pedir e receber o máximo. Então, ele ditava demandas elaboradas e específicas que eram dever de Lazlo satisfazer, com a ajuda de vários moradores locais que Suheyla organizou para ajudá-lo. O resultado foi que a oficina de Tod, em Lamento, ultrapassou o seu escritório de Syriza em grandiosidade, embora ele passasse a maior parte do tempo na mesa de desenho no canto.
Calixte não pediu nada, embora Lazlo soubesse que ela estava procurando, com a assistência de Tzara, uma variedade de resinas para preparar pastas grudentas a fim de ajudá-la em sua escalada. Se ela seria chamada por Eril-Fane para fazer isso, era uma dúvida – ela própria suspeitava que ele a tinha convidado mais para resgatá-la da prisão do que por uma necessidade real de sua presença –, mas, de qualquer forma, ela estava determinada a ganhar sua aposta com Tod.
– Alguma sorte? – Lazlo perguntou a ela quando a viu voltando de um teste na âncora.
– Sorte não tem nada a ver com isso – ela respondeu. – É tudo força e inteligência. – Ela piscou, flexionando as mãos como aranhas de cinco patas. – E cola.
Quando ela deixou as mãos caírem, ocorreu a Lazlo que elas não tinham nenhuma descoloração cinza. Ele tinha descoberto, depois de seu próprio contato com a âncora, que as leves manchas sujas não saíam com água, mesmo usando sabão. Mas elas saíram aos poucos e, agora, tinham desaparecido. O mesarthium, pensou, deve reagir com a pele da mesma forma que outros metais, como o cobre. Entretanto, não com a pele de Calixte, que havia acabado de tocar na âncora e não apresentava traços dele.
Os Fellering, Mouzaive, o magnetista, e Thyon Nero precisavam de espaço no laboratório para descarregar o equipamento que trouxeram do oeste. Os Fellering e Mouzaive estavam contentes com os estábulos próximos à câmara, mas Thyon os recusou, buscando outros lugares. Lazlo teve de ir junto, como intérprete e, em um primeiro momento, não entendeu o que o alquimista estava procurando. Thyon recusou algumas salas dizendo que eram muito grandes e outras por serem muito pequenas, antes de decidir pelo sótão de um crematório – um espaço cavernoso maior do que os que rejeitara por serem muito grandes. Também não tinha janelas, com uma única grande porta pesada. Quando ele pediu não menos do que três fechaduras para ela, Lazlo entendeu: ele escolheu o lugar pela privacidade.
O homem desejava guardar o segredo do azoth, ao que parecia, mesmo nessa cidade de onde, há muito tempo, o segredo tinha vindo.
Drave pediu um depósito para guardar sua pólvora e produtos químicos, e Lazlo providenciou um – fora da cidade, no caso de um incidente com fogo. E se a distância significasse ver menos Drave no dia a dia, isso era um bônus.
– É um maldito inconveniente – o explosionista queixou-se, embora o inconveniente fosse mínimo, considerando que, após supervisionar e descarregar os suprimentos, não retornou ao depósito.
– Basta me dizer o que vocês querem explodir que estarei pronto – explicou, e então passou a gastar seu tempo percorrendo a cidade em busca de prazeres e deixando as mulheres incomodadas com seus olhares.
Ozwin, o agricultor-botânico, precisava de uma estufa e de campos para plantar, então também teve de sair da cidade e da sombra da cidadela, para onde suas sementes e mudas veriam a luz do sol.
“Plantas que sonhavam que eram pássaros”, esse era seu trabalho. Aquelas palavras eram do mito dos serafins, descrevendo o mundo como os seres o encontraram quando desceram dos céus: “Encontraram solos ricos, e mares doces, e plantas que sonhavam que eram pássaros e subiam até as nuvens com folhas como asas”. Lazlo conhecia aquela passagem havia anos, e acreditava que era fantasia – mas descobriu em Thanagost que era real.
A planta era chamada de ulola, e era conhecida por duas coisas. Uma: seus arbustos comuns eram o lugar preferido de descanso para as serpaises no calor do dia, o que lhe conferia o apelido de “sombra de cobra”. E outra: suas flores podiam voar.
Ou flutuar, mais precisamente. Eram botões em forma de saco, do tamanho da cabeça de um bebê e, quando morriam, seus restos produziam um gás poderoso que os levantava e os carregava para o céu e para onde quer que o vento soprasse, para soltar sementes em novos solos e começar o ciclo novamente. Elas eram uma peculiaridade dos terrenos erodidos – balões rosa flutuantes que tinham uma forma de aterrissar no meio dos lobos selvagens – e teriam, mais provavelmente, continuado assim se um botânico da Universidade de Isquith – Ozwin – não tivesse se aventurado nos perigos da fronteira em busca de amostras e apaixonado-se pela terra sem lei e, mais especificamente, pela mecânica sem lei – Soulzeren –, preferida pelos generais por seus desenhos extravagantes de armas de fogo. Era uma história de amor e tanto, que envolvia até um duelo (disputado por Soulzeren). Só a combinação única dos dois podia ter produzido o trenó de seda: um veículo superleve, que flutuava com o gás de ulola.
Soulzeren estava montando os veículos em um dos pavilhões da câmara. Quanto à questão de quando voariam, o assunto foi discutido na quinta-feira à tarde, em uma reunião dos líderes da cidade à qual Lazlo compareceu com Eril-Fane. A reunião não transcorreu como Lazlo esperava, de forma alguma.
– Nossos convidados estão trabalhando no problema da cidadela – Eril-Fane reportou aos cinco Zeyyadin, que se traduziam como “primeiras vozes”. As duas mulheres e os três homens constituíam o corpo executivo que havia sido estabelecido depois da queda dos deuses. – Quando estiverem prontos, farão propostas para uma solução.
– Para... movê-la – disse uma mulher. Seu nome era Maldagha, e sua voz estava pesada de apreensão.
– Mas como eles esperam fazer tal coisa? – perguntou um homem corcunda, com longos cabelos brancos e a voz trêmula.
– Se eu pudesse responder isso – explicou Eril-Fane, com um sorriso dos mais sutis –, teria feito eu mesmo e evitado uma longa jornada. Nossos convidados possuem as mentes práticas mais brilhantes em metade do mundo...
– Mas o que é a praticidade contra a magia dos deuses? – o velho interrompeu.
– É a esperança que temos – disse Eril-Fane. – Não será o trabalho de alguns momentos, como era para Skathis, mas o que mais podemos fazer? Podemos estar diante de anos de esforços. Pode ser que o máximo que consigamos é uma torre para poder alcançá-la e destruí-la pouco a pouco até que desapareça. Os netos de nossos netos poderão ter de carregar raspas de mesarthium para fora da cidade à medida que a monstruosidade se encolhe lentamente até o nada. Mesmo assim, mesmo que seja a única forma e nós aqui nessa sala não vivamos para ver acontecer, chegará o dia em que o último pedaço desaparecerá e o céu estará livre.
Eram palavras poderosas, embora ditas suavemente, e pareceram acender a esperança nos outros. Hesitante, Maldagha disse:
– Destruir o metal, você diz. Eles podem cortá-lo? Já o fizeram?
– Ainda não – Eril-Fane admitiu. De fato, a confiança dos Fellering se mostrara equivocada. Como todos os demais, falharam em produzir um risco sequer. Sua arrogância fora substituída por uma determinação descontente. – Mas eles apenas começaram, e temos um alquimista também. O mais bem-sucedido do mundo.
Quanto ao dito alquimista, se ele estava tendo alguma sorte com seu alkahest, estava mantendo em segredo tanto quanto seu ingrediente principal. Suas portas no porão do crematório estavam trancadas, e ele apenas as abria para receber refeições. Ele até pediu para colocarem uma cama para dormir no local – o que não significava, contudo, que estava sempre lá. Tzara ficava de guarda e o tinha visto andando em direção à âncora norte na calada da noite.
Para fazer experimentos com o mesarthium em segredo, Lazlo supôs. Quando Tzara lhe mencionou isso de manhã, ele foi examinar a superfície a fim de buscar qualquer pista de que Thyon tivesse obtido sucesso. Era uma superfície grande, por isso, era possível ter sofrido alguma alteração, embora não achasse isso. Toda a extensão estava tão lisa e artificialmente perfeita quanto da primeira vez que a vira.
Não havia, de fato, nenhuma notícia encorajadora para relatar aos Zeyyadin, não ainda. A reunião tinha outro propósito.
– Amanhã – Eril-Fane lhes disse, e sua voz pareceu pesar no ar – lançaremos um dos trenós de seda.
O efeito de suas palavras foi imediato e... absolutamente inesperado. Em qualquer cidade do mundo, veículos aéreos – veículos aéreos reais e funcionais –, seriam vistos com fascínio. Essa deveria ser uma notícia sensacional. Mas os homens e as mulheres da sala ficaram pálidos. Cinco rostos uniformemente drenados de cor e com uma espécie de pavor atordoado. O velho começou a balançar a cabeça. Maldagha pressionou os lábios para impedir que tremessem e, em um gesto que Lazlo não soube interpretar, levou a mão à barriga. Suheyla fez um movimento similar, e ele pensou que sabia o que significava. Todos esforçaram-se para manter a compostura, mas seus rostos os traíram. Lazlo não tinha visto ninguém parecer tão afetado desde que os meninos do monastério eram levados à cripta para serem punidos.
Ele nunca vira adultos com essa expressão.
– Será apenas um voo de teste – Eril-Fane continuou. – Precisamos estabelecer um meio real de ir e vir entre a cidade e a cidadela. E... – Ele hesitou. Engoliu em seco. E não olhou para ninguém quando disse: – Preciso vê-la.
– Você? – perguntou um dos homens – Você vai subir lá?
Parecia uma pergunta estranha. Nunca havia ocorrido a Lazlo que ele não fosse.
Solenemente, Eril-Fane fitou o homem.
– Eu esperava que você também viesse, Shajan. Você quem esteve lá no fim. – O fim. O dia em que os deuses foram mortos? A mente de Lazlo voltou ao mural da viela, e o herói retratado nele, de seis braços, triunfante. – Ela está morta há todos esses anos, e alguns de nós sabem melhor do que outros o... estado... em que a deixamos.
Ninguém se entreolhou. Era muito estranho. Isso lembrou a Lazlo da forma como evitavam olhar para a cidadela. Ocorreu-lhe que os corpos dos deuses talvez continuassem lá em cima, onde morreram, mas ele não entendia por que isso causava tanto tremor e contração.
– Eu não poderia – respondeu Shajan, olhando para as suas próprias mãos trêmulas. – Você não pode esperar por isso. Veja como estou agora.
Lazlo achou aquilo desproporcional. Um homem adulto reduzido a tremores com a ideia de entrar em uma construção vazia – mesmo aquela construção vazia – porque poderia haver esqueletos lá? E a desproporção apenas aumentava.
– Nós ainda poderíamos mover. – Maldagha deixou escapar, parecendo tão atormentada quanto Shajan. – Vocês não precisam voltar lá. Não precisamos fazer nada disso. – Havia um tom de desespero em sua voz. – Podemos reconstruir a cidade em Enet-Sarra, como já discutimos. As inspeções foram feitas. Só precisamos começar.
Eril-Fane balançou a cabeça:
– Se fizéssemos isso, significaria que eles venceram, mesmo mortos. Eles não venceram. Esta é a nossa cidade, que nossos ancestrais construíram nas terras consagradas por Thakra. Não vamos abandoná-la. Este é o nosso céu e nós o teremos de volta. – Eram palavras do tipo que poderiam ter sido gritadas antes da batalha. Um menino brincando de Tizerkane em um pomar adoraria a sensação delas passando pela língua. Mas Eril-Fane não as gritou. Sua voz soava distante, como o último eco antes que o silêncio se reinstalasse.
– O que foi isso? – Lazlo perguntou depois que saíram.
– Aquilo foi medo – Eril-Fane disse, simplesmente.
– Mas... medo do quê? – Lazlo não conseguia compreender. – A cidadela está vazia. O que pode haver lá para machucá-los?
Eril-Fane expirou lentamente.
– Você tinha medo do escuro quando era criança?
Um arrepio subiu pela coluna de Lazlo. Recordou-se da cripta do mosteiro e das noites trancado com monges mortos.
– Sim.
– Mesmo quando você sabia, racionalmente, que não havia nada que pudesse lhe fazer mal?
– Sim.
– Pois bem. Todos somos crianças no escuro, aqui em Lamento.
34
ESPÍRITO DE BIBLIOTECÁRIO
Outro dia chegava ao fim, outro dia de trabalho e maravilhas, e Lazlo estava retornando à casa de Suheyla para passar a noite. Quando cruzou a avenida, aquela solitária faixa de sol, viu o garoto de entregas da câmara vindo em sua direção com uma bandeja. Percebeu que o menino devia estar voltando do crematório logo à frente trazendo pratos vazios. Ele tinha levado o jantar para Thyon e o trocou pela bandeja vazia do almoço. Lazlo o cumprimentou, e perguntou-se ao passar como Thyon estava indo, pois não o vira desde que ele havia se escondido e não tinha tido notícias para dar a Eril-Fane quando solicitado. Com um momento de hesitação, ele mudou o rumo e foi na direção do crematório. Passando pela âncora no caminho, tocou-a por toda a extensão, tentando imaginá-la ondulando-se e moldando-se como aparentemente fazia para o sombrio deus Skathis.
Quando bateu na porta pesada com três trincos de Thyon, o alquimista atendeu, o que só podia significar que ele achava que o garoto estivesse de volta com mais provisões – ou ele estava esperando outra pessoa, porque assim que viu Lazlo, começou a fechá-la de novo.
– Espere – disse Lazlo, colocando o pé no vão da porta. Por sorte usava botas. Nos tempos antigos de seus chinelos de bibliotecário, seus dedos teriam sido esmagados. Mesmo assim, recuou. Nero não estava de brincadeira. – Venho em nome de Eril-Fane – explicou, irritado.
– Não tenho nada a relatar – disse Thyon. – Pode lhe dizer isso.
O pé de Lazlo ainda estava na porta, segurando-a aberta uns oito centímetros. Não era muito, mas a glave na antecâmara era brilhante, o que lhe permitiu ver Thyon – pelo menos uma faixa de oito centímetros de largura dele – bem claramente.
– Nero, você não está bem?
– Estou bem – o afilhado dourado disse, com condescendência. – Agora, se você pudesse retirar seu pé...
– Não vou – afirmou Lazlo, verdadeiramente alarmado. – Deixe-me vê-lo. Você está um trapo.
Era uma transformação drástica, em apenas poucos dias. Sua pele estava amarela. Até o branco dos seus olhos estava ictérico.
Thyon afastou-se da vista de Lazlo.
– Retire o pé – pediu, em um tom baixo e casual – ou vou testar minha produção de alkahest nele. – Até sua voz parecia ictérica, se isso fosse possível.
Alkahest no pé era uma perspectiva desagradável de considerar. Lazlo perguntou-se quão rápido ele corroeria sua bota de couro.
– Não duvido que você faria isso – respondeu, tão casualmente quanto Thyon. – Aposto que você não o tem em mãos e teria que ir buscá-lo. Durante esse tempo, eu abriria a porta e olharia bem para você. Vamos lá, Nero. Você está doente.
– Não estou doente.
– Você não está bem.
– Não é da sua conta, Estranho.
– Eu não sei mesmo se é ou não, mas você está aqui por um motivo, e você pode muito bem ser a esperança de Lamento, então me convença de que não está doente ou vou direto a Eril-Fane.
Houve um suspiro irritado e Thyon afastou-se da porta. Lazlo abriu-a com o pé e percebeu que não estava errado. Thyon estava com uma aparência péssima – embora, ele admitisse, sua aparência “péssima” fosse melhor do que a aparência da maioria das pessoas. Ainda assim, ele parecia ter envelhecido. Não era só a sua cor. A pele ao redor dos olhos estava flácida e escura.
– Deuses, Nero – exclamou, dando um passo à frente –, o que aconteceu com você?
– Apenas estou trabalhando muito – respondeu o alquimista, com um sorriso severo.
– Isso é ridículo. Ninguém fica assim fatigado por trabalhar duro alguns dias.
Ao dizer isso, os olhos de Lazlo pousaram sobre a mesa de trabalho de Thyon. Era uma versão bagunçada de sua mesa no Chrysopoesium, com vidros e cobre espalhados e pilhas de livros. A fumaça pairava no ar com um aroma sulfúrico que queimava as narinas, e em plena vista estava uma longa seringa. Era de vidro e cobre, e descansava sobre um pano branco com manchas vermelhas. Lazlo a observou e virou-se para Thyon, que devolveu um olhar duro como pedra. O que Lazlo tinha acabado de dizer, que ninguém fica tão fatigado por trabalhar duro por alguns dias?
Mas e se o “trabalho” dependesse de um suprimento constante de espírito, e sua única fonte fosse o próprio corpo? Lazlo soltou ar entre os dentes.
– Seu idiota – praguejou, e viu os olhos de Thyon arregalarem-se de incredulidade. Ninguém chamava o afilhado dourado de idiota. Ele era, contudo, nesse caso. – Quanto você tirou? – Lazlo perguntou.
– Não sei do que está falando.
Lazlo meneou a cabeça. Ele estava começando a perder a paciência.
– Você pode mentir se quiser, mas já sei seu segredo. Se você está tão determinado a guardá-lo, Nero, eu sou a única pessoa no mundo que pode ajudá-lo.
Thyon riu como se isso fosse uma piada.
– E por que você me ajudaria?
Não foi da mesma forma que ele disse no Chrysopoesium quando eram mais jovens. “Você, me ajudar?” Aquilo havia sido a incredulidade de que Lazlo ousasse acreditar que era digno de ajudá-lo. Dessa vez, era mais incredulidade pelo fato de ele querer ajudá-lo.
– Pelo mesmo motivo que lhe ajudei antes – disse Lazlo.
– E qual é? – Nero perguntou. – Por que você me ajudou, Estranho?
Lazlo olhou para ele por um momento. A resposta não podia ser mais simples, mas ele achou que Thyon não tinha as qualidades necessárias para acreditar.
– Porque você precisava – respondeu, e suas palavras geraram um silêncio entre ambos. Ali estava uma noção radical de que você deve ajudar os outros simplesmente porque eles precisam.
Mesmo se eles o odiassem por isso depois? E o punissem? E roubassem você? E mentissem e zombassem de você? Mesmo assim? Lazlo esperava que, de todos os delegados, Thyon não fosse o salvador de Lamento, o libertador da sombra. Mas muito maior do que essa esperança era a de que Lamento fosse libertada por alguém, mesmo que fosse por Nero.
– Você precisa de ajuda agora? – ele perguntou em voz baixa. – Não pode continuar extraindo seu próprio espírito. Isso pode não te matar – ele disse, porque o espírito não era como o sangue e, de certa forma, as pessoas continuavam vivendo sem ele, se é que podia se chamar isso de viver –, mas o tornará feio – explicou – e acho que isso será muito difícil para você.
Thyon enrugou a testa analisando Lazlo para ver se ele não estava zombando. Ele estava, é claro, mas da mesma forma que zombaria de Ruza, ou que Calixte zombaria dele. Era uma decisão de Thyon se sentir ofendido ou não, e talvez ele estivesse apenas muito cansado.
– O que você está propondo? – indagou ressabiado.
Lazlo expirou e passou para o modo de resolução de problemas. Thyon precisava de espírito para produzir o azoth. Em casa, ele devia ter um sistema, embora Lazlo não pudesse imaginar qual era. Como alguém mantinha um fornecimento constante de algo como espírito sem ninguém descobrir? Qualquer que fosse, aqui, sem sair e pedir – e revelar seu ingrediente secreto –, ele tinha apenas o seu próprio, e já havia extraído muito.
Lazlo argumentou brevemente sobre se era a hora de abrir mão do segredo, mas Thyon não ouviu e, finalmente, Lazlo, com um suspiro frustrado, tirou a jaqueta e enrolou a manga da camisa.
– Tire um pouco do meu, certo? Até que possamos pensar em outra solução.
Em todo aquele tempo, Thyon o viu com desconfiança, como se ele estivesse esperando por algum motivo secreto para se revelar. Mas quando Lazlo estendeu o braço, ele só pôde piscar, derrotado. Teria sido mais fácil se pudesse acreditar que havia algum motivo, algum tipo de vingança ou outro tipo de armação. Mas Lazlo ofereceu suas veias. Seu próprio fluido vital. Que motivo poderia haver nisso? Ele estremeceu quando Thyon lhe furou com a agulha, e estremeceu novamente, porque o alquimista errou a veia do espírito e acertou uma veia de sangue. Thyon não era um flebotomista muito habilidoso, mas não pediu desculpas e Lazlo não reclamou. Enfim havia um frasco de fluido claro sobre a mesa, rotulado, com um floreio desdenhoso: ESPÍRITO DE BIBLIOTECÁRIO.
Thyon não agradeceu, mas falou, soltando o braço de Lazlo:
– Você podia experimentar lavar as mãos de vez em quando, Estranho.
Lazlo apenas sorriu, como se a condescendência marcasse um retorno ao território familiar. Ele olhou para a mão em questão, que parecia suja mesmo. Ele a tinha passado pela âncora no caminho para lá, lembrou-se.
– Isso é o mesarthium – explicou, e perguntou, curioso: – Você percebeu que ele é reativo à pele?
– Dificilmente. Não é reativo a nada.
– Bem, você percebeu a pele reagindo a ele? – Lazlo persistiu, desenrolando a manga da camisa.
Thyon apenas levantou a palma das mãos. Elas estavam limpas, e aquela foi sua resposta. Lazlo deu de ombros e vestiu seu casaco. A resposta de Thyon não foi um bom presságio – sobre o mesarthium não ser reativo a nada. Na porta, Lazlo parou.
– Eril-Fane vai querer saber. Existe algum motivo para ter esperança? O alkahest sequer afeta o mesarthium?
Ele achou que o alquimista não ia responder. Sua mão estava na porta, pronta para fechá-la com força. Mas ele pausou por meio segundo, como se Lazlo tivesse ganhado aquela única sílaba relutante, e disse, severo:
– Não.
35
TINTA BORRADA
Sarai se sentia... pequena. Estar tão cansada era como evaporar. Água para vapor. Carne para fantasma. Pouco a pouco, de fora para dentro, ela se sentia começando a desaparecer, ou pelo menos parecia estar em outro estado – de tangível, sangue e espírito, para uma espécie de névoa perdida e flutuante.
Quantos dias haviam se passado dessa forma, vivendo de pesadelo em pesadelo? Parecia que tinham sido dezenas, mas eram provavelmente apenas cinco ou seis.
Esta é minha vida agora, refletiu, olhando para seu reflexo no mesarthium polido do closet. Ela tocou a pele em volta dos olhos com as pontas dos dedos. Era quase roxa, como as ameixas das árvores, e seus olhos pareciam grandes demais – como se, assim como Pequena Ellen, ela os tivesse reimaginado de tal maneira.
Se eu fosse um fantasma, ponderou, analisando-se como uma estranha, o que eu mudaria em mim mesma? A resposta era óbvia demais para admitir, e patética demais. Ela traçou uma linha em volta de seu umbigo, onde sua elilith estaria se fosse uma garota humana. O que as tatuagens tinham que tanto a encantavam? Elas eram bonitas, mas não era só isso. Talvez fosse o ritual: o círculo de mulheres se reunindo para celebrar estarem vivas – e ser uma mulher, que por si só já é mágico. Ou talvez fosse o futuro que a marca pressagiava. Casamento, filhos, família, continuidade.
Ser uma pessoa. Com uma vida. E todas as expectativas de futuro. Todas as coisas com as quais Sarai não ousava sonhar.
Ou... coisas com as quais ela não deveria ousar sonhar. Como os pesadelos, os sonhos eram traiçoeiros e não gostavam de ficar trancados.
Se ela tivesse uma elilith não ia querer uma serpente engolindo o próprio rabo como a de Tzara e a de muitas meninas que haviam chegado à adolescência após a libertação. Ela já sentia que possuía criaturas dentro de si – mariposas, cobras e terrores – e não as queria sobre a pele também. Azareen, dura e estoica como era, tinha uma das tatuagens mais bonitas que Sarai vira – feita por Guldan, é claro, que hoje era recruta do exército infeliz de Minya. Era um padrão delicado de botões de macieira, que eram um símbolo de fertilidade.
Sarai sabia que Azareen odiava a visão da tatuagem e tudo do que ela zombava.
A questão das eliliths. Eram tatuadas nas barrigas das garotas, que tendiam a ser lisas ou apenas ligeiramente curvas. E quando sua promessa de fertilidade fosse cumprida, suas barrigas inchariam, e as tatuagens se esticariam junto, e jamais voltariam a se parecer como antes. Era possível ver as linhas finas borradas onde a pele tinha esticado e depois encolhido novamente.
As garotas que Skathis roubou, suas eliliths eram puras quando ele as tomou, mas não mais quando as devolveu. Mas como Letha engoliu suas memórias, isso era tudo o que sabiam sobre seu tempo na cidadela – o vago borrão da tinta em suas barrigas, e tudo o que ele implicava.
Exceto, quer dizer, pelas garotas que estavam na cidadela no dia em que Eril-Fane matou os deuses. Elas tiveram a pior experiência. Tiveram de descer daquele jeito, suas barrigas ainda cheias com os filhos dos deuses e suas mentes com memórias.
Azareen tinha sido uma delas. E embora tivesse sido uma noiva – e antes disso uma garota apertando as mãos de um círculo de mulheres enquanto botões de macieira eram gravados em volta de seu umbigo com tinta –, a única vez que sua barriga inchou foi com a semente do deus, e ela se lembrava de cada segundo desse processo, dos estupros que deram início até as dores lancinantes que deram fim a isso.
Ela nunca olhou para o bebê, apertando os olhos até que o levassem embora. Contudo, ouviu seu choro frágil, e ainda o ouvia.
Sarai também podia ouvi-lo. Ela estava acordada, mas os terrores eram persistentes. Ela balançou a cabeça na tentativa de sacudi-los para longe.
As coisas que tinham sido feitas. Pelos deuses, pelos humanos. Nada podia sacudi-las para longe.
Ela pegou uma camisola limpa. Verde-clara, não que tenha percebido, apenas estendendo a mão sem olhar e pegando a primeira. Vestiu-a e colocou um robe por cima, com o cinto apertado, e considerou seu rosto no espelho: os imensos olhos assombrados e a história que contavam sobre pesadelos e dias sem dormir. Bastaria olhar para ela e Minya sorriria. “Dormiu bem?”, ela perguntaria. Ela sempre perguntava agora, e Sarai sempre respondia: “como um bebê”, e fingia que tudo estava bem.
Mas não havia como fingir que não tinha roxos sob os olhos. Por um momento considerou pintá-los de preto com a tinta de sua mãe, mas o esforço parecia grande demais, e não enganaria ninguém.
Ela saiu do closet. Com os olhos fixos à frente, passou pelos fantasmas que faziam a guarda. Eles ainda sussurravam as palavras de Minya, mas agora se acostumara a isso. Até com Bahar, nove anos e pele encharcada, que a seguiu pelo corredor, sussurrando “Salve-nos”, e deixando pegadas molhadas que não estavam realmente lá.
Tudo bem, ela nunca poderia se acostumar com Bahar.
– Dormiu bem? – Minya perguntou assim que ela entrou na galeria.
Sarai respondeu com um sorriso pálido:
– Por que não dormiria? – ela perguntou, para mudar um pouco.
– Ah, não sei, Sarai. Teimosia?
Sarai entendeu-a perfeitamente – que ela precisava apenas pedir que seu lull lhe fosse devolvido e Minya faria com que isso acontecesse.
Assim que Sarai fizesse o que ela lhe ordenava.
Ambas não reconheceram a situação abertamente – de que Minya estava sabotando o lull de Sarai –, mas isso estava presente em todos os olhares que compartilhavam.
Alguns minutos de asco para salvar nós todos.
Se Sarai matasse Eril-Fane, Minya a deixaria voltar a dormir. E aí? Será que seu pai perderia um minuto de sono para salvá-la?
Não importava o que ele faria ou não. Sarai não mataria ninguém. Ela era teimosa, muito, e não estava disposta a abrir mão de sua decência ou misericórdia por um dia de sono profundo. Não imploraria pelo lull para Minya. O que quer que acontecesse, ela nunca mais atenderia à vontade perversa de Minya.
Além disso, ela ainda não tinha conseguido encontrá-lo. Então havia isso.
Não que Minya acreditasse nisso, mas era verdade, e ela tinha procurado. Sabia que o homem estava de volta a Lamento, em parte porque Azareen nunca teria voltado sem ele, em parte porque ele apareceu nos sonhos de todos os outros como um fio brilhante os conectando. Mas onde quer que ele estivesse dormindo, onde quer que ele tivesse passado a noite, a garota não o tinha conseguido encontrar.
Sarai riu.
– Eu, teimosa – ela disse, levantando as sobrancelhas. – Você já se olhou no espelho?
Minya não negou.
– Suponho que a pergunta seja: quem é mais teimosa?
Soou como um desafio.
– Acho que vamos descobrir – Sarai respondeu.
O jantar foi servido e os outros chegaram – Pardal e Rubi vieram do jardim; Feral, bocejando, da direção de seu quarto.
– Cochilando? – Sarai perguntou.
Tudo havia ruído nos últimos dias. Ele costumava pelo menos tentar supervisionar as meninas durante o dia e evitar que elas causassem um caos ou quebrassem a Regra. Não que isso importasse mais.
Ele apenas deu de ombros.
– Alguma coisa interessante? – ele perguntou.
Ele queria notícias da noite anterior. Essa era sua rotina agora. Isso a lembrava do tempo em que era mais nova, quando ela ainda lhes contava tudo sobre suas visitas à cidade e todos gostariam de saber coisas diferentes: Pardal, os vislumbres da vida cotidiana; Rubi, as partes impróprias; Minya, os gritos. Feral não tinha um foco na época, mas agora tinha, gostaria de saber tudo sobre os faranji e suas oficinas – os diagramas em suas mesas de desenho, os químicos em seus frascos, os sonhos em suas cabeças. Sarai contava o que podia e juntos tentavam interpretar o nível de ameaça que eles representavam. O garoto dizia que seu interesse era defensivo, mas ela via uma fome em seus olhos – pelos livros e papéis que ela descrevia, os instrumentos e béqueres borbulhantes, as paredes cobertas de números e símbolos que não conseguia entender.
Era a janela da confeitaria para ele, da vida que não tinha, e ela fazia o que podia para torná-la vívida para o garoto. Ao menos isso podia lhe dar. Esta noite, contudo, ela tinha más notícias:
– As máquinas voadoras – respondeu. Estivera observando os equipamentos em um pavilhão da câmara à medida que tomavam forma em estágios, dia a dia, até enfim se tornarem os veículos que vira nos sonhos do casal faranji. Todo o seu pavor finalmente a alcançara. – Elas parecem estar prontas.
Isso fez com que Rubi e Pardal respirassem ruidosamente, assustadas.
– Quando elas vão voar? – Minya perguntou friamente.
– Não sei. Em breve.
– Bem, espero que seja em breve. Estou ficando entediada. Pra quê ter um exército se não posso usá-lo?
Sarai não caiu na de Minya. Ela vinha pensando no que diria, e como diria.
– Não precisaria chegar a isso – retrucou, e virou-se para Feral. – A mulher, ela se preocupa com o tempo. Vi em seus sonhos. O vento é um problema. E também não voará nas nuvens. Acho que as aeronaves não devem ser muito estáveis – ela tentou soar calma, racional, não defensiva nem ofensiva. Estava simplesmente fazendo uma sugestão razoável para evitar o derramamento de sangue. – Se você evocar uma tempestade, podemos evitar que cheguem perto de nós.
Feral absorveu isso, olhando para Minya sem virar o rosto. Ela estava com os cotovelos sobre a mesa, o queixo apoiado em uma das mãos, a outra pegando pedacinhos de seu biscoito de kimril.
– Ah, Sarai – ela disse. – Que ideia!
– É uma boa ideia – afirmou Pardal. – Por que lutar se podemos evitar?
– Evitar? – Minya soltou. – Você acha que se soubessem que estamos aqui, eles estariam preocupados em evitar uma briga? – Então virou-se para Ari-Eil, parado atrás de sua cadeira: – Bom, o que você acha?
Quer ela tenha lhe dado liberdade para responder ou produzido ela mesma a resposta, Sarai não duvidou da verdade dita:
– Eles matariam todos vocês – o fantasma sussurrou, e Minya lançou a Pardal um olhar de eu te disse.
– Não posso acreditar que estamos tendo essa conversa – Minya falou. – Quando seu inimigo está vindo, você não junta nuvens. Você junta facas.
Sarai olhou para Feral, que não correspondeu ao olhar dela. Não havia muito mais a ser dito depois disso. Ela estava relutante em voltar ao seu quartinho, onde estava abarrotado com todos os pesadelos que tinha tido ultimamente, então foi ao jardim com Pardal e Rubi. Havia fantasmas por toda parte, mas as vinhas e as flores formavam recantos onde era possível quase se esconder. De fato, Pardal, enfiando sua mão no solo e concentrando-se por um momento, fez crescer cachos de liríope roxa altos o bastante para escondê-las de vista.
– O que faremos? – Pardal perguntou em voz baixa.
– O que podemos fazer? – Rubi perguntou, resignada.
– Você podia dar um belo abraço caloroso em Minya – sugeriu Pardal, com uma rispidez pouco familiar em sua voz. – Quais foram as palavras dela? Você pode fazer mais com o seu dom do que aquecer água da banheira e queimar suas roupas?
Rubi e Sarai levaram um momento para compreendê-la. Elas estavam perplexas.
– Pardal! – Rubi gritou. – Você está sugerindo que eu... – ela se interrompeu, olhou para os fantasmas e terminou em um sussurro – queime Minya?
– Claro que não – esclareceu Pardal, embora fosse exatamente isso que ela queria dizer. – Eu não sou ela, sou? Não quero que ninguém morra. Além disso – ela disse, provando que estava pensando sobre o assunto –, se Minya morresse, perderíamos as Ellens também, e todos os outros fantasmas.
– E teríamos que fazer todas as tarefas de casa – disse Rubi.
Pardal bateu no ombro dela.
– É com isso que você está preocupada?
– Não – respondeu Rubi, defensiva. – É claro que eu sentiria falta deles também. Mas, sabe, quem é que iria cozinhar?
Pardal balançou a cabeça e esfregou o rosto, dizendo:
– Eu nem tenho certeza se Minya está errada. Talvez seja o único jeito. Mas ela precisa estar tão contente com isso? É horrível.
– Ela é horrível – completou Rubi –, mas é horrível por nós. Você ia querer se opor a ela?
Rubi estivera muito preocupada ultimamente e não tinha percebido a mudança em Sarai, muito menos adivinhado sua causa. Pardal era uma alma mais empática. Ela olhou para Sarai, observando seu rosto cansado e seus olhos roxos.
– Não – respondeu suavemente. – Eu não ia querer isso.
– Então deixamos ela fazer o que bem entender em tudo? – Sarai perguntou. – Vocês não conseguem ver aonde isso leva? Ela fará com que sejamos como nossos pais.
Rubi franziu a testa.
– Nós jamais poderíamos ser como eles.
– Não? – replicou Sarai. – E quantos humanos podemos matar antes de nos tornarmos iguais a eles? Há um número? Cinco? Cinquenta? Uma vez que começarmos, não teremos como parar. Mate um, fira um, e não há esperança para nenhum tipo de vida. Vocês não veem isso?
Sarai sabia que Rubi não queria machucar ninguém, tampouco. Mas ela abriu os cachos de liríope com as mãos, revelando os fantasmas que estavam no jardim.
– Que escolha nós temos, Sarai?
Uma a uma as estrelas apareceram no céu. Rubi disse que estava cansada, embora não parecesse, e foi cedo para a cama. Pardal encontrou uma pena que só podia ser da Aparição e colocou-a atrás da orelha de Sarai.
Ela arrumou o cabelo de Sarai, penteando-o suavemente com os dedos e usando seu dom para torná-lo lustroso. Sarai podia senti-lo crescer, e até ganhar brilho, como se Pardal o estivesse infundindo de luz. Ela acrescentou centímetros; fez com que ficasse armado. Colocou uma coroa de tranças, deixando a maior parte solta, e teceu vinhas e ramos de orquídeas, brotos de samambaia, e aquela pena branca.
E quando Sarai viu-se no espelho de novo antes de enviar suas mariposas, pensou que se parecia mais com um espírito da floresta do que com a deusa do desespero.
36
PROCURANDO UMA LUA
Lamento dormia. Sonhadores sonhavam. Uma grande lua pairava acima e as asas da cidadela cortavam o céu em dois: luz acima e escuridão abaixo.
Na palma da mão estendida do serafim colossal, fantasmas faziam a guarda com cutelos e ganchos de carne em correntes. A lua brilhava forte na ponta de suas lâminas, nítida na ponta de seus terríveis ganchos e luminosa em seus olhos, que estavam arregalados de horror. Eles estavam banhados pela luz, enquanto a cidade afundava-se na escuridão.
Sarai despachou suas mariposas para a câmara, onde a maioria dos delegados estava dormindo pesadamente, para as casas dos líderes da cidade, e algumas para os Tizerkane também. A amante de Tzara estava com ela, mas ambas não estavam... dormindo, então, Sarai afastou sua mariposa imediatamente. Em Quedavento, Azareen estava sozinha. Sarai viu-a destrançar os cabelos, colocar sua aliança e deitar-se para dormir. Contudo, ela não ficou para ver seus sonhos. Os sonhos de Azareen eram... difíceis. Sarai não podia deixar de pensar que tinha um papel em roubar a vida que Azareen deveria ter tido – como se ela existisse em vez de uma criança amada que o casal deveria ter concebido. Podia não ser culpa sua, mas ela não conseguia se sentir inocente.
Ela viu o faranji dourado, que parecia doente, ainda acordado e trabalhando. E viu o feioso, cuja pele devastada pelo sol estava se curando na sombra da cidadela, embora ele não ficasse mais bonito com isso. Ele também estava acordado, cambaleando com uma garrafa na mão. Ela não podia suportar sua mente. Todas as mulheres com quem ele sonhava tinham machucados, e ela não tinha ficado tempo suficiente para descobrir como elas ficaram daquela forma. Ela não o visitou desde a segunda noite.
Cada mariposa, cada batida de asa carregava o fardo opressor do exército de fantasmas, de vingança e o peso de outro massacre. Com a ocupação no terraço, ela ficou do lado de dentro, virando cinco vezes mais em sua caminhada do que fazia lá fora. Sentia falta da luz da lua e do vento. Queria sentir a profundidade infinita do espaço acima e ao redor, não essa jaula de metal. Ela se lembrou do que Pardal disse, sonhar era como o jardim: você podia fugir da prisão por um tempo e sentir o céu ao seu redor.
E Sarai argumentou que a cidadela era uma prisão, mas também um santuário. Essa conversa tinha sido há apenas uma semana e também havia o lull, e olhe para ela agora.
Ela estava tão cansada.
Lazlo estava cansado também. Tinha sido um longo dia, e doar seu espírito também não ajudava. Ele comeu com Suheyla e cumprimentou-a pela comida sem mencionar línguas arruinadas. Tomou outro banho e, embora tenha ficado imerso até a água começar a esfriar, a cor cinzenta não desapareceu de suas mãos. Em seu estado de fadiga, os pensamentos pingavam como beija-flores disso para aquilo, sempre voltando ao medo – o medo da cidadela e de tudo o que acontecera nela. Como todos eles eram assombrados pelo passado, Eril-Fane tanto quanto o resto.
Com isso, dois rostos encontraram espaço na mente de Lazlo. Um de uma pintura da deusa morta e o outro de um sonho: ambos azuis, com cabelos castanho-avermelhados e uma listra de tinta preta atravessando os olhos. Azul, preto e canela, ele viu, e perguntou-se de novo como havia acontecido de sonhar antes de ver a aparência dela.
E por que, se ele, de certa forma, tinha vislumbrado Isagol, a Terrível, ela tinha sido... nada terrível?
Ele saiu da banheira e secou-se, vestiu calças limpas de linho, e estava cansado demais para amarrar o cordão. De volta ao seu quarto, tropeçou e caiu na cama, deitado sobre as colchas, e dormiu no meio da segunda respiração.
E foi assim que Sarai o encontrou: dormindo de bruços com a cabeça apoiada nos braços.
O longo e liso triângulo de suas costas subia e descia com a respiração profunda enquanto a mariposa dela pairou sobre ele, procurando um lugar para pousar. Da forma como ele estava deitado, a testa não era uma opção. Havia a extremidade áspera de seu rosto, mas enquanto o observava, ele afundou mais a cabeça entre os braços, e aquele local de pouso diminuiu e desapareceu. Mas havia suas costas.
Ele havia dormido com a glave descoberta e o ângulo baixo da luz lançava pequenas sombras abaixo de cada músculo, e sombras mais profundas nos ombros e descendo pelo canal de sua coluna. Era uma paisagem lunar para a mariposa. Sarai flutuou suavemente no vale escuro de seus ombros e assim que tocou a pele, entrou em seu sonho.
Ela foi cautelosa, como sempre. Já fazia várias noites que ela o visitava desde a primeira vez, e cada vez ela entrava no sonho silenciosamente, como um ladrão. Um ladrão do quê? Ela não estava roubando seus sonhos, nem mesmo os alterando de alguma forma. Ela estava apenas... desfrutando deles, como alguém que desfruta de música tocada gratuitamente.
Uma sonata pairando sobre o jardim.
Inevitavelmente, contudo, depois de ouvir boa música noite após noite, fica-se curioso sobre quem a toca. Ah, ela sabia quem ele era. Afinal, ela estava pousada em sua testa todo esse tempo – até esta noite, e essa nova experiência de suas costas – e havia uma estranha intimidade nisso. Ela conhecia seus cílios de cor, e seu perfume masculino, sândalo e almíscar. Ela até foi se acostumando ao seu nariz torto. Mas dentro dos sonhos, ela mantinha distância.
E se ele a visse de novo? E se não a visse? Será que havia sido uma falha? Ela queria saber, mas tinha medo. No entanto, essa noite algo havia mudado. Ela estava cansada de se esconder. Ela descobriria se ele podia vê-la, e talvez até o porquê. Ela estava preparada para isso, pronta para qualquer coisa. Pelo menos achava que estava.
Na verdade, nada podia tê-la preparado para entrar no sonho e se encontrar já nele.
De novo, as ruas da cidade mágica – Lamento, mas não era Lamento. Era noite, e a cidadela estava no céu desta vez, mas a lua brilhava apesar disso, como se o sonhador quisesse ter o melhor de dois mundos. E, novamente, havia aquela cor inacreditável, e asas leves, frutas e criaturas de contos de fadas. Havia o centauro com sua mulher. Ela andava a seu lado esta noite, e Sarai sentiu-se quase inquieta até que os viu se beijando. Eles eram permanentes ali; ela teria gostado de conversar com eles e ouvir sua história.
Sarai teve a ideia de que cada pessoa e criatura que ela viu ali era o início de outra história fantástica, e queria seguir todas. Mas principalmente, ela estava curiosa com o sonhador.
Ela o viu à frente, cavalgando um espectral. E foi ali que as coisas se tornaram completamente surreais, porque cavalgando ao lado dele, montada em uma criatura com o corpo de um ravide e a cabeça e asas da Aparição, a águia branca, estava... Sarai.
Para esclarecer, a própria Sarai – a Sarai de verdade – estava a distância, onde ela tinha entrado no sonho em um cruzamento de ruas. Ela os viu.
Viu a si mesma.
Viu a si mesma montada em uma criatura mítica no sonho do faranji.
Ela os observou. Sua boca abriu-se e fechou-se. Como? Ela olhou mais de perto. Desejou estar mais próxima para ver melhor, embora fosse cuidadosa para se manter fora de vista.
A outra Sarai, de onde podia ver, parecia-se exatamente como ela na noite em que ele a havia visto: com os cabelos soltos e a máscara pintada de Isagol. Em outras circunstâncias, ela teria pensado que estava vendo sua mãe, porque a semelhança entre as duas era surpreendente, e os humanos sonhavam com Isagol, enquanto, é claro, que nunca sonhavam com ela. Mas aquela não era Isagol. Sua mãe, apesar de todas as similaridades, possuía uma majestade que ela não tinha, e uma crueldade também. Isagol não sorria. Essa garota, sim. Essa garota azul tinha o rosto de Sarai, e não estava usando um vestido de asas de besouro e adagas, mas sim a mesma camisola com bainha de renda que usou na primeira noite.
Ela era parte do sonho.
O faranji estava sonhando com Sarai. Ele estava sonhando com ela... e não era um pesadelo.
Lá na cidadela, seus passos interromperam-se. Entre os ombros nus do sonhador, a mariposa pousada estremeceu. Uma dor subiu pela garganta de Sarai, como um soluço sem a tristeza. Ela olhou para si mesma do outro lado da rua – tal como era vista e lembrada pelo sonhador – e não viu obscenidade, ou calamidade, ou filhos dos deuses.
Ela viu uma garota sorridente e orgulhosa com uma bonita pele azul. Porque foi isso que ele viu, e esta era sua mente.
É claro, ele também achava que ela era Isagol.
– Perdoe-me por perguntar – ele estava dizendo a ela –, mas por que o desespero, entre todas as coisas das quais poderia ser deusa?
– Não conte a ninguém. – Isagol respondeu. – Eu era deusa da lua – ela sussurrou o resto como um segredo. – Mas então eu a perdi.
– Você perdeu a lua? – o sonhador perguntou, e espiou para o céu, onde a lua estava bastante presente.
– Não aquela – ela respondeu. – A outra.
– Havia outra lua?
– Ah, sim. Há sempre uma reserva, para garantir.
– Eu não sabia disso. Mas... como você perde uma lua?
– Não foi minha culpa – a garota explicou. – Ela foi roubada.
A voz não era de Sarai nem de Isagol, mas apenas uma voz imaginada pelo faranji. A estranheza de tudo aquilo confundiu Sarai. Lá estava seu rosto, seu corpo, com uma voz estranha saindo dele, dizendo palavras extravagantes que não tinham nada a ver com ela. Era como olhar para um espelho e ver outra pessoa ali refletida.
– Podemos ir até a lua procurar uma outra para comprar – o sonhador ofereceu. – Se você quiser.
– Existe uma loja de luas? Tudo bem.
E, então, o sonhador e a deusa foram comprar uma lua. Parecia algo saído de uma história. Bem, era como algo saído de um sonho. Sarai os seguiu em um estado de fascinação, e ambos entraram em uma loja minúscula sob uma ponte, deixando suas criaturas na porta. Ela ficou parada diante da vitrine, passou a mão na cabeça cheia de penas do grifo, e sentiu uma pontada de inveja atormentadora. Ela desejou que realmente fosse ela montada no grifo e olhando as bandejas de joias em busca da lua certa. Havia crescentes e quartos de lua, luas cheias e quase cheias, e não eram amuletos, eram luas – luas reais em miniatura, luminosas e com crateras, como se fossem iluminadas pelos raios de alguma estrela distante.
Sarai/Isagol – a impostora, como Sarai estava começando a pensar nela – não conseguia se decidir entre os astros, e levou todas. O sonhador pagou-as com uma espécie engraçada de bolsa de brocado verde, e no instante seguinte elas estavam brilhando no pulso dela, como um bracelete de amuletos. O par deixou a loja e montou em suas criaturas, Isagol levantando seu bracelete de forma que as luas faziam barulho, como sinos.
– Será que eles a deixarão ser uma deusa da lua novamente? – o sonhador perguntou.
Que história absurda é essa de deusa da lua?, Sarai perguntou-se com uma faísca de ira. Isagol não tinha sido nada tão benigno.
– Ah, não – explicou a deusa. – Estou morta.
– Sim, sei. Sinto muito.
– Não devia sentir. Eu era terrível.
– Você não parece terrível – disse o sonhador, e Sarai teve de morder o lábio. Porque essa não é Isagol, ela queria dizer. Sou eu. Mas tampouco era ela. Podia ter seu rosto, mas era um fantasma – apenas um fragmento de memória dançando em uma corda – e tudo o que ela dizia e fazia vinha da mente do sonhador.
Sua mente, onde a deusa do desespero sacudia luas em um bracelete e “não parecia terrível”.
Sarai podia ter lhe mostrado o que era terrível. Ela ainda era a Musa dos Pesadelos, afinal de contas, e havia visões de Isagol em seu arsenal que o teriam acordado gritando. Mas acordá-lo gritando era a última coisa que ela queria, então ela fez algo diferente.
Ela dissolveu o fantasma como uma mariposa ao nascer do sol, e entrou no seu lugar.
37
UM TOM DE AZUL ENCANTADOR
Lazlo piscou. Em um momento a pintura preta de Isagol atravessava seus olhos e no momento seguinte, não. Em um momento seus cabelos estavam soltos em volta dela como um xale e no momento seguinte estavam brilhando em suas costas como bronze fundido. Ela estava coroada com tranças e vinhas e o que ele primeiro achou que eram borboletas, logo viu que eram orquídeas, com uma única longa pena branca em um ângulo vistoso. Em vez da camisola, a garota usava um robe de seda cor de cereja bordado com botões brancos e açafrão.
Havia uma nova fragrância também, alecrim e néctar, e havia outras diferenças, mais sutis: uma mudança em seu tom de azul, um ajuste na inclinação de seus olhos. Uma espécie de... nitidez em suas linhas, como se um véu diáfano tivesse sido levantado. Ela parecia mais real do que um momento atrás.
Além disso, ela não estava mais sorrindo.
– Quem é você? – a moça indagou, e a sua voz havia mudado. Era mais rica, mais complexa – um acorde em oposição a uma nota. Era mais sombria também, e com ela, a extravagância do momento dissipou-se. Não havia mais luas em seu pulso – e tampouco uma lua visível no céu. O mundo pareceu se apagar, e Lazlo, olhando para cima, percebeu a luz da lua apenas como uma auréola em torno das extremidades da cidadela.
– Lazlo Estranho – ele respondeu, ficando sério. – A seu serviço.
– Lazlo Estranho – ela repetiu, e as sílabas eram exóticas em sua língua. Seu olhar era penetrante, sem piscar. Os olhos eram de um azul mais pálido que sua pele, ele sentiu que ela estava tentando sondá-lo. – Mas quem é você?
Era a menor e a maior pergunta de todas, e Lazlo não sabia o que dizer. No nível mais fundamental, ele não sabia quem era. Ele era um Estranho, com tudo o que isso acarretava – embora o significado de seu nome não faria sentido para ela e, de qualquer forma, ele não achava que ela estivesse perguntando sobre seu pedigree. Então, quem era ele?
Naquele momento, quando ela mudou, também mudaram os arredores. A loja de luas desapareceu, e toda Lamento junto com ela. Desapareceu também a cidadela e a sua sombra. Lazlo e a deusa, ainda montados em suas criaturas, foram transportados bem para o centro do Pavilhão do Pensamento. Doze metros de altura, as prateleiras de livros. As lombadas com seus tons de pedras preciosas, o brilho da folha de ouro. Bibliotecários em escadas como espectros em cinza, e acadêmicos em escarlate inclinados sobre suas mesas. Era tudo o que Lazlo tinha visto naquele dia, sete anos atrás, quando a sorte o havia levado a uma nova vida.
E assim pareceu que aquela era sua resposta, ou ao menos sua primeira resposta. A camada mais externa de seu eu, mesmo depois de seis meses longe dela.
– Sou um bibliotecário – respondeu. – Ou eu era, até recentemente. Na Grande Biblioteca de Zosma.
Sarai olhou em volta, absorvendo tudo aquilo e, momentaneamente, esqueceu sua linha dura de interrogatório. O que Feral faria em um lugar como este?
– São tantos livros – ela observou, intimidada. – Eu nunca imaginei que houvesse tantos livros no mundo inteiro.
Sua admiração ganhou a afeição de Lazlo. Ela podia ser Isagol, a Terrível, mas é impossível alguém que mostre reverência por livros ser irredimível.
– Foi assim que me senti da primeira vez que vi.
– O que há em todos eles? – ela perguntou.
– Nesta sala, são todos de filosofia.
– Esta sala? – E virando-se para ele: – Há mais salas?
Ele deu um sorriso largo.
– Muitas mais.
– Todas cheias de livros?
Ele assentiu, orgulhoso, como se tivesse escrito todos.
– Gostaria de ver meus favoritos?
– Tudo bem – a garota concordou.
Lazlo fez Lixxa andar em frente, e a deusa o seguiu com seu grifo. Lado a lado, tão majestosos quanto um par de estátuas, mas muito mais fantásticos, eles cavalgaram pelo Pavilhão do Pensamento. As asas do grifo roçaram nos ombros dos acadêmicos. Os chifres de Lixxa quase derrubaram uma escada. E Lazlo podia ser um sonhador experiente – nos vários sentidos da palavra –, mas nesse momento ele era como qualquer um. Não estava consciente de que era um sonho. Estava simplesmente dentro dele. A lógica que pertencia ao mundo real tinha ficado para trás, como bagagem em um porto. Este mundo tinha uma lógica própria, era fluido, generoso e profundo. As escadas secretas para seu subsolo empoeirado eram estreitas demais para acomodar grandes animais como esses, mas passaram por elas facilmente. E há muito ele havia limpado os livros com infinito amor e carinho, mas a poeira estava lá da mesma forma que quando os encontrou pela primeira vez: um cobertor suave de anos, guardando todos os melhores segredos.
– Ninguém além de mim leu nenhum desses livros em pelo menos uma vida – ele contou.
A garota tirou um livro e soprou a poeira, que pairou em volta como flocos de neve enquanto ela virava as páginas, mas as palavras estavam em um estranho alfabeto que não conseguia ler.
– O que tem neste aqui? – ela indagou a Lazlo, mostrando-lhe.
– Esse é um dos meus favoritos – ele respondeu. – É o épico da mahalath, uma névoa mágica que vem a cada cinquenta anos e cobre um vilarejo por três dias e três noites. Tudo que é vivo se transforma, para melhor ou para pior. As pessoas sabem quando ela está chegando e a maioria foge de sua passagem. Mas há sempre algumas que ficam e assumem o risco.
– E o que acontece com elas?
– Algumas viram monstros, outras, deuses.
– Então é daí que vêm os deuses – ela disse, secamente.
– Você saberia isso melhor do que eu, minha senhora.
Não mesmo, Sarai pensou, porque ela não sabia mais do que os humanos de onde vieram os Mesarthim. Ela, é claro, estava consciente de que aquilo era um sonho. Estava muito acostumada à lógica dos sonhos para se surpreender por qualquer armadilha, mas não tão cansada para achá-las bonitas. Depois de a poeira pairar, flocos de neve continuaram a cair no recinto. Eles brilhavam no chão como açúcar derramado, e quando ela desmontou do grifo, estava frio debaixo de seus pés descalços. A coisa que a surpreendeu, na qual não conseguia parar de pensar mesmo agora, era que ela estava tendo uma conversa com um estranho. Não importa por quantos sonhos já tivesse navegado, quaisquer devaneios quiméricos que tivesse testemunhado, ela nunca havia interagido. Mas aqui estava ela, conversando – batendo papo. Quase como uma pessoa real.
– E este aqui? – quis saber, pegando outro livro.
Ele leu a lombada:
– Folclore de Vaire. Esse é o pequeno reino ao sul de Zosma. – Ele folheou e sorriu. – Você gostaria deste aqui. É sobre um jovem que se apaixona pela lua e tenta roubá-la. Talvez ele seja o seu culpado.
– E ele consegue?
– Não, ele tem que fazer as pazes com o impossível.
Sarai fez uma careta.
– Você quer dizer que ele tem que desistir.
– Bem, é a lua. – Na história, o jovem Sathaz ficou tão encantado pelo reflexo da lua no poço profundo e imóvel perto de sua casa na floresta que olhava para ela, extasiado, mas sempre que tentava alcançá-la, ela se partia em mil pedaços e o deixava molhado, com os braços vazios. – Mas então – Lazlo acrescentou –, se alguém conseguiu roubá-la de você... –Ele olhou para o pulso nu onde não havia mais lua pendurada.
– Talvez tenha sido ele – ela disse – e a história está errada.
– Talvez – consentiu Lazlo. – E Sathaz e a lua estão vivendo felizes juntos numa caverna em algum lugar.
– E tiveram milhares de filhos juntos, e é daí que vêm as glaves. A união do homem com a lua. – Sarai ouviu-se e se perguntou o que havia de errado com ela. Momentos atrás estava irritada com aquele absurdo sobre a lua que estava saindo da boca de seu fantasma, e agora ela estava fazendo a mesma coisa. Era Lazlo, pensou. Era a mente dele. As regras eram diferentes aqui. A verdade era diferente. Era... mais agradável.
Ele deu um sorriso largo, e vê-lo deu um frio na barriga da Sarai.
– E aquele ali? – ela perguntou, virando-se rapidamente para apontar para um livro grande em uma prateleira mais alta.
– Ah, olá – disse ele, estendendo a mão para pegá-lo. Ele o trouxe para baixo: um tomo imenso, encadernado em veludo verde-claro com uma camada decorativa de prata. – Este – ele disse, passando-o para ela – é o vilão que quebrou meu nariz.
Quando ele o soltou em suas mãos, seu peso quase a fez derrubá-lo na neve.
– Isso? – ela perguntou.
– Meu primeiro dia como aprendiz – ele explicou pesaroso. – Foi sangue para todo lado. Não vou enojá-la apontando para a mancha na lombada.
– Um livro de contos de fadas quebrou seu nariz! – Sarai exclamou, sem conseguir evitar um sorriso ao constatar como estivera errada sua primeira impressão. – Imaginei que você tivesse brigado.
– Foi mais uma emboscada, na verdade. Eu estava na ponta dos pés, tentando pegá-lo – falou, tocando o nariz –, mas ele me pegou.
– Você tem sorte que ele não o decepou – disse Sarai, devolvendo-lhe o livro.
– Muita sorte. Eu tenho tristeza suficiente para um nariz quebrado. Nunca ouvi falar no fim de uma cabeça perdida.
Sarai deixou escapar um risinho.
– Acho que não dá para ouvir muita coisa se você perder a cabeça.
Solenemente, ele disse:
– Espero nunca descobrir.
Sarai observou seu rosto, como ela havia feito da primeira vez que o vira. Além de pensar nele como uma espécie de bruto, ela também o tinha achado feio. Entretanto, olhando agora, achou que a beleza não vinha ao caso. Ele era notável, como o perfil de um conquistador em uma moeda de bronze. E isso era melhor.
Lazlo, sentindo a análise, corou. Sua hipótese sobre a opinião dela quanto à sua aparência era bem menos favorável do que os pensamentos dela sobre o assunto. Sua opinião sobre a aparência dela era simples. Ela era simplesmente adorável, com bochechas redondas e um queixinho, e a boca era suculenta como uma ameixa, o lábio inferior como uma fruta madura com uma prega no meio, e macio como a pele de um damasco. Os cantos de seu sorriso, voltados para cima com satisfação, eram tão nítidos quanto as pontas da lua crescente, e suas sobrancelhas brilhavam contra o azul de sua pele, tão cor de canela quanto seus cabelos. Ele continuava esquecendo que ela estava morta e então se lembrava, e ficava triste toda vez que isso acontecia. Quanto ao fato de ela estar morta e ali, a lógica dos sonhos não se perturbava com enigmas.
– Deus do céu, Estranho – surgiu uma voz, e Lazlo viu mestre Hyrrokkin se aproximar, empurrando um carrinho de biblioteca. – Estive te procurando por toda parte.
Era tão bom vê-lo. Lazlo envolveu-o em um abraço que, evidentemente, constituía um excesso de afeição, porque o velho o empurrou, enfurecido.
– O que deu em você? – ele perguntou, ajeitando suas vestes. – Imagino que em Lamento eles saiam por aí maltratando uns aos outros como ursos lutadores.
– Exatamente como ursos lutadores – respondeu Lazlo. – Sem os ursos. Ou a luta.
Mas Mestre Hyrrokkin tinha visto a companhia de Lazlo. Seus olhos arregalaram-se.
– Mas quem é esta? – ele perguntou, sua voz uma oitava mais alta.
Lazlo os apresentou.
– Mestre Hyrrokkin, esta é Isagol. Isagol, Mestre Hyrrokkin.
Em um sussurro, o velho perguntou:
– Por que ela é azul?
– Ela é a deusa do desespero – Lazlo respondeu, como se isso explicasse tudo.
– Não, ela não é – disse Mestre Hyrrokkin, imediatamente. – Você entendeu errado, garoto. Olhe para ela.
Lazlo olhou, mais para oferecer um olhar de desculpas do que para considerar a afirmação do Mestre Hyrrokkin. Ele sabia quem ela era. Tinha visto a pintura, e Eril-Fane confirmara.
É claro, ela se parecia menos com ela mesma agora, sem a pintura preta nos olhos.
– Você fez como sugeri, então? – perguntou Mestre Hyrrokkin. – Você lhe deu flores?
Lazlo lembrou-se de seu conselho: “colha flores e encontre uma garota para presentear”. Ele se lembrou do resto do conselho também: “olhos meigos e quadris largos”. E corou com a lembrança. A garota era muito magra, e Lazlo não esperava que a deusa do desespero tivesse olhos meigos. Contudo, ela tinha, ele percebeu.
– Flores, não – respondeu, encabulado, querendo afastar qualquer exploração posterior do assunto. Ele sabia das tendências lascivas do velho e estava ansioso para vê-lo partir antes que ele dissesse alguma coisa infeliz. – Não é assim...
Mas Isagol o surpreendeu levantando o pulso, no qual o bracelete havia reaparecido.
– Mas ele me deu a lua – ela disse.
Não havia vários amuletos nele agora, apenas um: uma lua crescente, branca e dourada, pálida e radiante, parecendo ter sido arrancada do céu.
– Muito bem, garoto – afirmou Mestre Hyrrokkin, aprovando o gesto. De novo, o sussurro: – Ela podia ser mais voluptuosa, mas suponho que seja macia o bastante nos lugares certos. Você não vai querer ser cutuca-do por ossos quando...
– Por favor, Mestre Hyrrokkin – disse Lazlo, apressando-se em interrompê-lo. Seu rosto ficou vermelho.
O bibliotecário riu.
– Qual é a vantagem de ser velho se você não pode constranger os mais jovens? Bem, vou deixá-los em paz. Bom dia, minha jovem. Foi um prazer. – Ele beijou a mão dela, então virou-se, cutucando Lazlo com o cotovelo e sussurrando alto enquanto saía: – Que tom de azul encantador!
Lazlo virou-se para a deusa.
– Meu mentor – ele explicou. – Ele tem maus modos, mas bom coração.
– Nem percebi – respondeu Sarai, que não tinha visto nenhum problema com os modos do velho homem, e teve de lembrar-se, em todo caso, que aquela era apenas outra invenção da mente do sonhador. “Você errou, garoto”, o bibliotecário tinha dito. “Olhe para ela”. Será que isso significava que em algum nível Lazlo a via para além do disfarce, e não acreditava que ela fosse Isagol? Ela ficou contente com a ideia, e repreendeu-se por se preocupar com isso. Voltando-se para as estantes, percorreu com o dedo as lombadas de uma fileira de livros.
– Todos estes livros – ela quis saber – são sobre magia? –, refletindo se ele era algum especialista. Se era por isso que o Matador de Deuses o havia trazido consigo.
– São mitos e folclore, principalmente – respondeu Lazlo. – Qualquer coisa considerada muito divertida pelos acadêmicos para ser importante. Eles os colocaram aqui e esqueceram. Superstições, músicas, feitiços. Serafins, presságios, demônios, fadas. – Apontou para uma estante. – Aqueles são todos sobre Lamento.
– Lamento é divertida demais para ser importante? – ela indagou. – Acho que os cidadãos de lá vão discordar de você.
– Não é minha avaliação, acredite. Se eu fosse um acadêmico, poderia defender a cidade, mas você entende, também não sou importante.
– Não? E por que isso?
Lazlo olhou para seus pés, relutante em explicar a própria insignificância.
– Sou um órfão – explicou, fitando-a. – Não tenho família, não tenho nome.
– Mas você me disse seu nome.
– Tudo bem. Tenho um nome que diz ao mundo que não tenho nome. É como uma placa em volta do meu pescoço dizendo “Ninguém”.
– É tão importante ter um nome? – Sarai perguntou.
– Acho que os cidadãos de Lamento diriam que sim.
Sarai não teve resposta para isso.
– Eles nunca o recuperarão, não é? – Lazlo perguntou. – O verdadeiro nome da cidade? Você se lembra?
Sarai não se lembrava. Ela duvidava que o tivesse conhecido.
– Quando Letha roubava uma memória, ela não a guardava numa gaveta como um brinquedo confiscado. Ela a comia e a memória desaparecia para sempre. Esse era o seu dom. Erradicação.
– E o seu dom? – Lazlo perguntou.
Sarai congelou. A ideia de explicar-lhe seu dom trouxe uma sensação imediata de vergonha. Mariposas voam da minha boca, imaginou-se dizendo. Para que eu possa invadir as mentes humanas como estou fazendo com você agora mesmo. Mas, é claro, ele não estava perguntando sobre o dom dela. Por um momento ela esqueceu de quem era – ou não era. Ela não era Sarai aqui, mas esse absurdo fantasma domado de sua mãe.
– Bom, ela não era nenhuma deusa da lua – a garota falou. – Isso é tudo muito absurdo.
– Ela? – Lazlo perguntou, confuso.
– Eu – Sarai respondeu, embora a resposta tenha ficado presa em sua garganta. Isso a afetou com uma pontada de profundo ressentimento, de que essa coisa extraordinária e inexplicável acontecesse: um humano pudesse vê-la – e ele estava falando com ela sem ódio, com algo mais parecido com fascínio e até mesmo encantamento – e ela não tivesse de esconder sua presença. Se ela fosse Isagol, mostraria seu dom. Como um gatinho maléfico com um novelo, ela enrolaria suas emoções até que ele perdesse toda distinção entre amor e ódio, alegria e tristeza. Sarai não queria fazer esse papel, jamais. Ela voltou as perguntas para ele.
– Por que você não tem família? – ela indagou.
– Houve uma guerra. Eu era bebê. Acabei num carrinho de órfãos. É tudo o que sei.
– Então você poderia ser qualquer pessoa. Até mesmo um príncipe.
– Num conto de fadas, talvez – ele sorriu. – Não acredito que houvesse algum príncipe desaparecido. Mas e quanto a você? Deuses têm famílias?
Sarai pensou primeiro em Rubi e Pardal, Feral e Minya, Grande e Pequena Ellens, e nos outros: sua família, mesmo que não fossem de sangue. Então pensou em seu pai, e seus corações endureceram. Mas o sonhador estava fazendo de novo, voltando as questões para ela.
– Somos feitos de névoa – respondeu. – Lembra? A cada cinquenta anos.
– A mahalath. É claro. Então você foi uma das que assumiu o risco.
– Você não faria o mesmo? – ela perguntou. – Se a névoa estivesse chegando, você ficaria e seria transformado, sem saber qual seria o resultado?
– Eu ficaria – ele disse imediatamente.
– Essa foi rápida. Você abandonaria sua verdadeira natureza com tão pouca consideração?
Ele riu disso.
– Você não faz ideia de quanto já considerei isso. Vivi sete anos dentro desses livros. Meu corpo podia estar cumprindo os deveres na biblioteca, mas minha mente estava aqui. Você sabe como me chamavam? Estranho, o sonhador. Eu mal percebia o que estava ao meu arredor na metade do tempo. – Ele ficou surpreso consigo mesmo, falando assim, e com ninguém menos que a deusa do desespero. Mas os olhos dela estavam brilhando de curiosidade, um espelho de sua própria curiosidade sobre ela, e sentiu-se totalmente à vontade. Certamente o desespero era a última coisa na qual pensou ao fitá-la. – Eu andava por aí me perguntando que tipo de asas eu compraria se os fabricantes de asas viessem para a cidade, e se eu preferia montar em dragões ou caçá-los, e se eu ficaria quando a névoa chegasse, e mais do que qualquer outra coisa, como eu chegaria até a Cidade Perdida.
Sarai levantou a cabeça.
– A Cidade Perdida?
– Lamento. Sempre odiei esse nome, então inventei o meu.
Sarai estava sorrindo e querendo perguntar em que livro estavam os fabricantes de asas, e se os dragões eram malvados ou não, mas ao se lembrar de Lamento, seu sorriso lentamente derreteu-se em melancolia, e isso não foi a única coisa que derreteu. Para seu arrependimento, a biblioteca também derreteu, e então estavam em Lamento novamente. Mas dessa vez não era a Lamento dele, mas a dela, e podia estar mais perto da cidade de verdade do que a versão dele, mas tampouco era correta. Com certeza, ainda era bela, mas havia as nuances da proibição também. Todas as portas e janelas estavam fechadas – e os peitoris, desnecessário dizer, não tinham bolos – e era um lugar desolado com jardins mortos e a correria corcunda de uma população que temia o céu.
Havia tantas coisas que ela queria perguntar a Lazlo, que era chamado de “sonhador” mesmo antes de ela tê-lo apelidado assim. Por que você pode me ver? O que você faria se soubesse que sou real? Que asas você escolheria se os fabricantes de asas chegassem? Podemos voltar para a biblioteca, por favor, e ficar um tempo lá? Mas ela não podia dizer nada disso.
– Por que você está aqui? – ela perguntou.
Ele ficou espantado com a mudança repentina no clima.
– É meu sonho desde que eu era criança.
– Mas por que o Matador de Deuses te trouxe? Qual é a sua parte nisso? Os outros são cientistas, construtores. Por que o Matador de Deuses precisa de um bibliotecário?
– Ah, não, não sou um deles. Parte da delegação, quero dizer. Tive que implorar por um lugar na comitiva. Sou o secretário dele.
– Você é o secretário de Eril-Fane.
– Sim.
– Então você deve conhecer os planos. – O pulso de Sarai acelerou. Outra das mariposas estava voando em frente ao pavilhão onde os trenós de seda estavam. – Quando ele virá para a cidadela? – indagou, sem pensar.
Era a pergunta errada. Ela soube disso assim que a proferiu. Talvez fosse o fato de ser direta, ou a sensação de urgência, ou talvez tenha sido o escorregão de ter usado virá em vez de irá, mas algo mudou em seu jeito, como se ele estivesse olhando-a com novos olhos.
E ele estava. Sonhos têm seus ritmos, seus pontos rasos e profundos, e ele estava subindo para um estágio de maior lucidez. A lógica deixada para trás do mundo real veio descendo como raios de sol através da superfície do oceano, e ele começou a entender que nada disso era real. É claro que ele não tinha cavalgado Lixxa pelo Pavilhão do Pensamento. Era tudo fugaz, instável: um sonho.
Exceto por ela.
Ela não era fugaz nem instável. Sua presença tinha um peso, uma profundidade e uma clareza que nada mais tinha – nem mesmo Lixxa, e havia poucas coisas que Lazlo conhecia melhor ultimamente do que a realidade física de Lixxa. Depois de seis meses cavalgando o dia inteiro, ela era quase uma extensão dele. Mas o espectral pareceu de repente insubstancial, e logo que esse pensamento lhe ocorreu, ele se dissolveu. O grifo também. Havia apenas ele e a deusa com seu olhar penetrante e perfume de néctar e... gravidade.
Não gravidade no sentido de solenidade – embora isso, também –, mas gravidade no sentido de uma força. Ele sentiu como se ela estivesse no centro dessa pequena e surreal galáxia – na verdade, que era ela que estava sonhando com ele, e não o contrário.
Lazlo não sabia o que o estava levando a fazer aquilo. Não era de seu feitio. Ele pegou a mão dela e a segurou gentilmente. Era pequena, macia e muito real.
Na cidadela, Sarai levou um susto ao sentir o calor da pele de Lazlo. Uma chama de conexão – ou colisão, como se estivessem há tempos perambulando no mesmo labirinto e, finalmente, dobraram a esquina que os deixaria face a face. Era uma sensação de estar perdida e sozinha e, de repente, nenhuma dessas coisas. Sarai sabia que deveria puxar sua mão, mas não fez isso.
– Você precisa me dizer – ela disse.
Ela podia sentir o sonho ficando mais raso, como um navio encalhando em um banco de areia. Logo ele acordaria.
– As máquinas de voar. Quando vão lançá-las?
Lazlo sabia que era um sonho, e sabia que não era um sonho, e as duas noções andando em círculos em sua mente, deixando-o confuso.
– O quê? – ele indagou. A mão dela parecia o pulsar dos corações dentro da sua.
– As máquinas voadoras – ela repetiu. – Quando?
– Amanhã – ele respondeu, sem pensar.
A palavra, como uma foice, cortou as cordas que a estavam mantendo em pé. Lazlo achou que sua mão ao redor da dela era tudo que a mantinha ereta.
– O que foi? – ele perguntou. – Você está bem?
Ela se afastou, puxou sua mão.
– Me escute – a garota falou, e seu rosto ficou severo. A faixa preta retornou como um golpe cortante e seus olhos arderam ainda mais brilhantes para dar contraste.
– Eles não devem vir – ela disse, com uma voz tão inflexível quanto o mesarthium. As vinhas e orquídeas desapareceram de seus cabelos, e então havia sangue fluindo dele, riachos descendo de sua fronte e se acumulando nos olhos para enchê-los até que não houvesse nada além de poças vermelhas, e ainda assim o sangue fluía, descendo para os lábios e para dentro da boca, encharcando-a enquanto falava.
– Você entende? – ela reforçou. – Se fizerem isso, todos morrerão.
38
TODOS MORRERÃO
Todos morrerão.
Lazlo acordou de supetão e ficou surpreso ao encontrar-se sozinho no quarto. As palavras ecoavam em sua cabeça e uma visão da deusa ficou impressa em sua mente: sangue empoçando-se em seus olhos e pingando até sua boca carnuda. Havia sido tão real que quase não pôde acreditar que era um sonho. Mas é claro que havia sido. Apenas um sonho, o que mais? Sua mente estava transbordando com novas imagens desde sua chegada em Lamento. Os sonhos eram uma forma do cérebro processar tudo aquilo, e agora ele estava com dificuldade de fazer a correlação da garota do sonho com aquela no mural. Vibrante e triste versus... sangrenta e raivosa.
Ele sempre fora um sonhador vívido, mas isso era algo completamente novo. Ainda podia sentir o formato e o peso da mão dela na sua, seu calor e maciez. Tentou afastar a lembrança à medida que começou os afazeres da manhã, mas a imagem daquele rosto continuava invadindo sua mente e o eco assustador de suas palavras: todos morrerão.
Especialmente quando Eril-Fane o convidou para subir para a cidadela.
– Eu? – ele perguntou, assombrado. Eles estavam no pavilhão, ao lado dos trenós de seda. Ozwin preparava os dois; para economizar o gás de ulola, apenas um subiria hoje. Uma vez que chegassem à cidadela, deveriam restaurar seu extinto sistema de roldanas para que as futuras idas e vindas não dependessem de voar.
Era assim que os produtos eram levados da cidade na época dos Mesarthim, com uma cesta grande o suficiente para carregar uma ou duas pessoas – descobriram depois da libertação, quando os libertos a usaram para descer, uma viagem por vez. Mas nas horas de choque e de celebração em que receberam a notícia da morte dos deuses, devem ter se esquecido de amarrar as cordas apropriadamente, pois as cestas se soltaram das roldanas e caíram, deixando a cidadela para sempre – até então – inacessível. Hoje eles restabeleceriam a ligação.
Soulzeren havia dito que podia levar três passageiros além de si mesma. Eril-Fane e Azareen eram dois, e Lazlo recebeu a oferta do último lugar.
– Você tem certeza? – ele perguntou a Eril-Fane – Mas... um dos Tizerkane...?
– Como você sem dúvida observou – disse Eril-Fane –, a cidadela é difícil para nós.
Somos todos filhos da sombra, Lazlo lembrou-se.
– Qualquer um deles viria se eu pedisse, mas ficarão felizes de serem poupados. Você não precisa vir se não quiser. – Um brilho leve tomou conta de seu semblante. – Sempre posso pedir a Thyon Nero.
– Isso é desnecessário – informou Lazlo. – E, de qualquer forma, ele não está aqui.
Eril-Fane olhou em volta.
– Não, ele não está, não é? – Thyon era, na verdade, o único delegado que não tinha aparecido para ver o lançamento. – Devo mandar buscá-lo?
– Não – respondeu Lazlo. – É claro que quero ir.
Na verdade, ele não estava tão certo depois de seu sonho macabro. Apenas um sonho, falou a si mesmo, olhando para a cidadela. O ângulo do sol que nascia deixava escapar alguns raios sob as extremidades das asas, produzindo um brilho recortado ao longo das pontas das imensas penas de metal.
Todos morrerão.
– Você tem certeza de que ela está vazia? – ele soltou, tentando sem sucesso parecer casual.
– Tenho certeza – afirmou Eril-Fane, com um tom austero e decisivo. Ele amoleceu um pouco. – Se você está com medo, saiba que está em boa companhia. Tudo bem se preferir ficar.
– Não, estou bem – Lazlo insistiu.
E foi assim que ele se viu entrando a bordo de um trenó de seda menos de uma hora depois. Apesar do calafrio que não o deixava, ele foi capaz de se maravilhar com esse novo desdobramento de sua vida. Ele, Estranho, o sonhador, ia voar. Voaria na primeira aeronave do mundo, junto a dois guerreiros Tizerkane e uma mecânica que costumava fazer armas de fogo para generais, para uma cidadela de estranho metal azul flutuando sobre a cidade de seus sonhos.
Além dos faranji, cidadãos estavam reunidos para ver a decolagem, Suheyla inclusive, e todos estavam marcados pela mesma apreensão que os Zeyyadin na noite anterior. Ninguém olhava para cima. Lazlo achou o medo deles mais perturbador do que nunca e ficou contente de se distrair com Calixte.
Ela veio e sussurrou:
– Traga-me um souvenir. – E piscou. – Você me deve.
– Não vou furtar a cidadela para você – ele disse, com ar afetado. E então: – Que tipo de souvenir? – Sua mente foi imediatamente para os corpos dos deuses que eles esperavam encontrar, incluindo o de Isagol. Ele estremeceu. Quanto tempo levava para um corpo se tornar um esqueleto? Menos de quinze anos, certamente. Mas ele não quebraria nenhum osso do mindinho para Calixte. Além disso, Eril-Fane explicara que Lazlo e Soulzeren esperariam do lado de fora enquanto ele e Azareen faziam uma busca para garantir que o lugar estava seguro.
– Eu achava que você tinha certeza de que estava vazio – Lazlo observou.
– Vazio dos vivos – foi a resposta para reconfortá-lo.
E então subiram a bordo. Soulzeren colocou óculos que a faziam parecer uma libélula. Ozwin deu-lhe um beijo e soltou as cordas que prendiam os grandes pontões de seda firmemente ao chão. Eles tinham de soltá-las todas de uma vez se quisessem subir reto e não “ziguezaguear como camelos bêbados”, como disse Ozwin. Havia cordas de segurança que se prendiam a equipamentos que Soulzeren deu-lhes para usar – todos menos Eril-Fane, cujos ombros eram largos demais para eles.
– Prenda no seu cinto, então – disse Soulzeren, franzindo a testa. Ela olhou para cima, espremendo os olhos em direção às grandes asas de metal, às solas dos pés do grande anjo e ao céu que podia ver em torno das extremidades. – Não há vento, de qualquer forma. Deve correr bem.
Então fizeram uma contagem regressiva e lançaram-se.
E simples assim... estavam voando.
Os cinco na cidadela reuniram-se no terraço de Sarai, observando, observando, observando a cidade. Se olhassem bastante, ela tornava-se um padrão abstrato: o círculo do anfiteatro na oval formada pelos muros externos, que eram quebrados pelos quatro monólitos das âncoras. As ruas eram labirínticas. Elas os tentavam a traçar caminhos com os olhos, encontrar rotas entre este e aquele lugar. Todos os filhos dos deuses faziam isso, exceto Minya, que havia desejado vê-la de perto.
– Talvez não estejam vindo – afirmou Feral, esperançoso. Desde que Sarai lhe contou sobre a vulnerabilidade dos trenós de seda, ele vinha pensando sobre o assunto, perguntando-se o que faria quando chegasse a hora. Será que ele desafiaria Minya ou desapontaria Sarai? Qual era o caminho mais seguro? Mesmo agora ele estava incerto. Se não viessem, ele não teria de escolher.
Escolher não era o ponto forte de Feral.
– Lá – Pardal apontou, com a mão tremendo. Ela ainda segurava as flores que estivera tramando nos cabelos de Sarai, bastões-do-imperador vermelhos, como as que havia colocado no bolo “para fazer um pedido” de Rubi, exceto pelo fato de estas não serem botões. Eram flores abertas, tão lindas quanto fogos de artifício. Ela já tinha feito o cabelo de Rubi e Rubi o dela. Todas as três usavam desejos no cabelo hoje.
Então os corações de Sarai balançaram, parecendo bater juntos. Ela inclinou-se para frente, apoiando-se na mão do anjo para espiar e seguir a linha do dedo de Pardal até os telhados da cidade. Não, não, não, repetia em sua cabeça, mas viu: uma luz vermelha, erguendo-se do pavilhão da câmara.
Eles estavam vindo. Soltando-se da cidade, deixando telhados, espirais e domos para trás. A forma cresceu, ficando mais distinta, e logo Sarai pôde ver quatro figuras. Seus corações continuaram batendo forte.
Seu pai. É claro que ele era um dos quatro. Era fácil discerni-lo a distância por causa do tamanho. Sarai engoliu em seco. Ela nunca o tinha visto com os próprios olhos. Uma onda de emoção tomou conta da garota, não era fúria, não era ódio. Era anseio. De ser filha de alguém. Um nó formou-se em sua garganta. Ela mordeu o lábio.
E não demorou para que eles se erguessem perto o bastante para que ela pudesse distinguir os outros passageiros. Ela reconheceu Azareen, e não teria esperado menos da mulher que amou Eril-Fane por tanto tempo. A piloto era a mulher faranji mais velha, e o quarto passageiro...
O quarto passageiro era Lazlo.
Seu rosto estava voltado para cima. Ele ainda estava distante demais para ser visto com clareza, mas ela sabia que era ele.
Por que ele não a tinha ouvido? Por que ele não tinha acreditado nela? Bem, ele acreditaria em pouco tempo. Ondas de calor e frio tomaram seu corpo, seguidas de desespero. O exército de Minya estava do lado de dentro do quarto de Sarai, pronto para emboscar os humanos quando pousassem. Formariam um enxame em volta deles com suas facas, cutelos e ganchos de carne. Os humanos não teriam nenhuma chance. Minya ficou parada lá como a pequena general que era, atenta e pronta.
– Tudo bem – ela disse, olhando para Sarai e Feral, Rubi e Pardal com um olhar frio e brilhante. – Todos saiam de vista – ordenou, e Sarai observou enquanto os outros obedeciam.
– Minya – ela começou.
– Agora – gritou Minya.
Sarai não sabia o que fazer. Os humanos estavam vindo. Um massacre estava prestes a acontecer. Entorpecidamente, ela seguiu os outros, desejando que fosse um pesadelo do qual pudesse acordar.
Não era como voar. Não havia nada de pássaro nessa ascensão constante. Eles flutuaram para cima como um botão de ulola muito grande, com um pouco mais de controle do que as flores levadas pelo vento.
Fora os pontões, que eram de seda vermelha especialmente tratada e continham gás de ulola, havia outra bexiga, esta sob a aeronave, que se enchia de ar por meio de pedais na parte de baixo. Não era para flutuar, mas para impulsionar. Por meio de várias válvulas, Soulzeren podia controlar o impulso em diferentes direções – para frente, para trás, para os lados. Havia um mastro e uma vela, também, que funcionavam exatamente como em um barco a vela se os ventos fossem favoráveis. Lazlo tinha visto os voos de teste em Thanagost, e a visão dos trenós movendo-se pelo céu de vento em popa tinha sido mágica.
Olhando para baixo, notou as pessoas nas ruas e nos terraços ficando cada vez menores até que o trenó flutuou tão alto que a cidade se espalhou como um mapa, chegando à altura da parte mais baixa da cidadela, os pés. Subindo e subindo, passando os joelhos, as longas e lisas coxas até o torso, que parecia enrolado em tecido leve – tudo mesarthium e sólido, mas tão astuciosamente moldado que era possível ver os ossos do quadril como se através de um tecido translúcido.
Seja lá o que Skathis tivesse sido, também fora um artista.
Para lançar a maior sombra, as asas eram abertas em leque em um imenso círculo, com as penas escapulares se tocando na parte de trás, as secundárias formando o meio do anel e as longas primárias alcançando toda a circunferência até ficarem paralelas com os braços estendidos do serafim. O trenó de seda subiu pelo espaço entre os braços, alinhando-se com o peito. Ao olhar para cima abaixo do queixo, uma cor chamou a atenção dos olhos de Lazlo. Verde. Fileiras de verde sob as clavículas, estendendo-se de um ombro até o outro.
Eram as árvores que deixavam cair as ameixas no distrito chamado Quedavento, Lazlo pensou. Ocorreu-lhe se perguntar como, com tão pouca chuva, elas ainda estavam vivas.
– Feral – Sarai implorou –, por favor.
Feral cerrou os dentes. Ele não a olhou. Se ela estivesse pedindo para não fazer alguma coisa, ele se perguntou se seria mais fácil do que fazer alguma coisa. Ele olhou para Minya.
– Isso não precisa acontecer – Sarai continuou. – Se você invocar as nuvens agora mesmo, ainda pode forçá-los a voltar.
– Feche sua boca – Minya ordenou, com a voz fria como gelo, e Sarai viu que a enfurecia o fato de não conseguir fazer com que os vivos a obedecessem tão facilmente quanto os mortos.
– Minya – ela implorou –, se ninguém morrer, há esperança de encontrar outra forma.
– Se ninguém morrer! – repetiu Minya. Ela deu uma risada alta. – Então eu diria que é tarde demais para a esperança, quinze anos.
Sarai fechou os olhos e abriu-os novamente.
– Quero dizer agora. Se ninguém morrer agora.
– Se não for hoje, então será amanhã ou no dia seguinte. Quando há um trabalho desagradável para fazer, é melhor fazer logo. Postergar não vai ajudar.
– Pode ser que ajude – disse Sarai.
– Como?
– Eu não sei!
– Fale baixo – Minya sussurrou. – Você entende que uma condição necessária para essa emboscada é a surpresa?
Sarai a observou, o rosto tão duro e intransigente, e novamente viu Skathis em seus traços, até na forma dele. Se Minya tivesse herdado o poder de Skathis, refletiu, será que seria diferente dele, ou subjugaria toda uma população e justificaria tudo dentro dos rígidos parâmetros de justiça. Como essa criança pequena e traumatizada havia mandado neles por tanto tempo? De repente, isso lhe pareceu ridículo. Será que não teria havido outra forma, desde o início? E se Sarai nunca tivesse produzido nenhum pesadelo? E se, desde o começo, ela tivesse acalmado os medos de Lamento em vez de os alimentado? Será que ela teria acabado com todo esse ódio?
Não. Mesmo ela não podia acreditar nisso. Por duzentos anos ele veio crescendo. O que ela poderia ter esperado alcançar em quinze?
Nunca saberia. Ela nunca tivera uma escolha e agora era tarde demais. Esses humanos morreriam.
E depois?
Quando o trenó de seda e seus passageiros não retornassem? Será que eles mandariam o próximo em seguida, para que mais morressem?
E depois?
Quem sabe quanto tempo isso lhes garantiria, quantos meses ou anos eles teriam essa existência de purgatório antes de um ataque maior e mais ousado – mais aeronaves, Tizerkane saltando de navios como piratas abordando uma embarcação. Ou os estrangeiros inteligentes elaborariam algum plano grandioso para afundar a cidadela.
Ou suponha que os humanos simplesmente se dessem por vencidos e abandonassem Lamento, deixando uma cidade fantasma para eles dominarem. Sarai imaginou-a vazia, todas aquelas ruas labirínticas e camas desarrumadas desertas e sentiu, por um momento de choque, como se estivesse se afogando no vazio. Ela imaginou suas mariposas se afogando no silêncio e aquilo pareceu o fim do mundo.
Apenas uma coisa era certa, o que quer que acontecesse: desse momento em diante, os cinco seriam como fantasmas fingindo que ainda estavam vivos.
Sarai queria dizer tudo isso, mas as palavras enroscaram-se dentro de si. Ela tinha segurado a língua por muito tempo. Era tarde demais. Percebeu um flash de vermelho através da porta aberta e sabia que era o trenó de seda, embora seu primeiro pensamento tenha sido sangue.
Todos morrerão.
A expressão de Minya era predatória, ávida. Sua mãozinha estava pronta para dar o sinal, e...
– Não – Sarai gritou, empurrando-a para o lado e passando correndo. Ela empurrou a multidão de fantasmas, que eram tão sólidos quanto corpos vivos, mas sem o calor. Ela chocou-se com uma faca segurada pela mão de um fantasma. A lâmina deslizou por seu antebraço enquanto ela abria caminho para passar. Era tão afiada que a garota a sentiu apenas como uma linha de calor. O sangue correu rápido e, quando um fantasma agarrou seu pulso, foi difícil segurá-la por estar molhada. Ela se libertou e correu para a porta.
O trenó de seda estava lá, manobrando para pousar. Eles já tinham se virado para sua direção e levaram um susto quando ela apareceu. A piloto estava ocupada com as alavancas, mas os outros três a viram.
As mãos de Eril-Fane e Azareen tocaram na bainha de suas hreshteks.
Lazlo, surpreso, disse:
– Você.
E Sarai, com um soluço, gritou:
– Fujam!
39
INIMIGOS PERIGOSOS
Árvores que deveriam estar mortas. Movimento onde deveria haver quietude. Uma figura na porta da cidadela há muito abandonada.
Onde deveria haver nada além de abandono e antigas mortes, lá estava... ela.
O primeiro instinto de Lazlo foi duvidar de que estivesse acordado. A deusa do desespero estava morta e ele estava sonhando. Mas ele sabia que isso, pelo menos, não era verdade. Ele sentiu o silêncio repentino de Eril-Fane, e percebeu a mão grande congelar no cabo da hreshtek meio desembainhada. A de Azareen não, e libertou a arma com um ruído letal.
Lazlo notou tudo isso em sua visão periférica, pois não conseguia se virar para olhar. Não conseguia tirar os olhos dela.
Ela tinha flores vermelhas nos cabelos. Seus olhos estavam arregalados e desesperados. Sua voz cavou um túnel pelo ar. Era rouca e profunda, como uma velha corrente de âncora passando pelo escovém. A garota estava lutando. Mãos a puxaram de lá de dentro. Mãos de quem? Ela segurou-se no batente da porta, mas o mesarthium era liso, não havia nada para lhe dar apoio e havia muitas mãos, agarrando seus braços, cabelos e ombros. Ela não tinha onde se segurar.
Lazlo quis sair em sua defesa. Seus olhos encontraram-se. O olhar era como a luz de um raio. O grito dela ainda ecoava – Fujam! – e então ela desapareceu dentro da cidadela.
Enquanto outros começaram a sair.
Soulzeren tinha, no instante do grito, revertido o movimento do trenó, fazendo-o mover-se suavemente para trás. “Suavemente” era sua única velocidade, exceto com velas e uma boa brisa. Lazlo ficou em pé, experimentando o significado completo de inutilidade enquanto uma onda de inimigos arremessou-se contra eles, movendo-se com uma fluidez esquisita, voando na direção deles como se tivessem sido lançados. Ele não tinha espada para pegar e nada a fazer a não ser ficar parado, observando. Eril-Fane e Azareen ficaram justamente à frente dele e de Soulzeren, protegendo-os desse impossível ataque. Eram muitos e muito rápidos. Eles saíam como abelhas de uma colmeia. Lazlo não conseguiu entender o que estava vendo. Eles estavam vindo. E vinham com tudo.
Eles estavam ali.
Aço contra aço. O som foi direto para seus corações. Ele não podia ficar parado de mãos vazias – inútil – em uma tempestade de aço. Não havia armas extras. Não havia nada além da vara almofadada que Soulzeren tinha para empurrar o trenó para longe de obstáculos quando manobrava para pousar. Ele agarrou-a e enfrentou o motim.
Os inimigos tinham facas, não espadas – facas de cozinha – e seu curto alcance os deixava bem na zona de ataque dos guerreiros. Se fossem inimigos comuns, teria sido possível defender-se com amplos golpes que cortariam dois ou três de uma vez. Mas não eram inimigos comuns. Eram homens e mulheres de todas as idades, alguns de cabelos brancos, alguns ainda crianças.
Eril-Fane e Azareen estavam desviando dos golpes, lançando as facas de cozinha para longe, deslizando sobre a superfície de metal do terraço que ainda estava debaixo do trenó. Azareen assustou-se ao ver uma velha senhora, e Lazlo viu o braço que segurava a espada hesitar.
– Vovó? – ela disse, atordoada, e ele observou, sem piscar, horrorizado, enquanto a mulher levantava um malho, o metal cravejado para bater carne, e o deixou cair bem na cabeça de Azareen.
Não houve um pensamento consciente. Foram os braços de Lazlo que agiram, levantando a vara a tempo. O malho o acertou, e a vara acertou Azareen. Foi inevitável, a força do golpe – imensa para uma idosa! – era grande demais. Mas a vara era acolchoada com algodão e tecido e impediu que o crânio de Azareen fosse partido. O braço da espada de Azareen voltou à vida. Ela afastou a vara e balançou a cabeça para livrar-se dela, e Lazlo viu...
Ele viu a lâmina cortar o braço da velha, atravessá-lo e... nada aconteceu. O braço, sua substância, simplesmente... rearranjou-se em torno da arma e tornou-se inteiro novamente depois de ter sido atravessado. Não havia nem mesmo sangue.
Tudo ficou claro. Esses inimigos não eram mortais e não podiam ser feridos.
A constatação chocou a todos, justamente quando o trenó enfim se afastou do terraço de volta para o céu aberto, ampliando a distância em relação à mão de metal e ao exército de mortos que ela continha.
Foi uma sensação de alívio, um momento para voltar a respirar.
Mas era falsa. Os inimigos continuavam vindo, saltando do terraço e ignorando a distância. Eles saltaram para o céu aberto e... não caíram.
Não havia escapatória. Os fantasmas bateram contra o trenó ao saírem da imensa mão de metal do anjo, sacando facas e ganchos de carne, e os Tizerkane combateram golpe a golpe. Lazlo ficou entre os guerreiros e Soulzeren, segurando a vara. Um inimigo escapou pelo lado, um homem de bigode, e Lazlo cortou-o na metade, apenas para ver as duas metades recomporem-se como em um pesadelo. O truque eram as armas, ele pensou, lembrando-se do malho. Ele atacou de novo, mirando na mão do homem e arrancando-lhe a faca, que caiu no piso do trenó.
Esse exército anormal não tinha nenhum treinamento, mas o que isso importava? Não havia como combatê-los, eles não morriam. De que vale habilidade diante de uma luta como esta?
O fantasma de bigode, sem arma, lançou-se contra Soulzeren, e Lazlo colocou-se entre eles. O fantasma agarrou a vara. Lazlo continuou segurando-a. Eles lutaram. Logo atrás desse homem era possível ver o restante – o enxame de rostos impassíveis e olhos atormentados – e ele não conseguia soltar a vara. A força do fantasma não era natural. Ele não se cansava. Lazlo ficou sem ação quando o próximo inimigo passou pela guarda dos Tizerkane. Uma jovem com olhos assombrados. Um gancho de carne em suas mãos.
Ela o levantou. E abaixou...
... no pontão de estibordo, furando-o. O trenó balançou. Soulzeren gritou. O gás saiu assoviando pelo furo e o trenó começou a girar.
Foi exatamente neste momento, quando ocorreu a Lazlo que ele morreria – exatamente como havia sido alertado, impossivelmente, em um sonho –, que o fantasma com quem ele estava lutando... perdeu a solidez. Lazlo viu suas mãos, em um momento tão duras e reais na madeira da vara, dissolverem-se através dela. A mesma coisa aconteceu com a mulher. O gancho de carne caiu dentro do trenó, embora ela não o tivesse soltado. E então a coisa mais estranha: um olhar doce de alívio passou pelo seu rosto, mesmo quando ela começou a desaparecer de vista. Lazlo pôde ver através da mulher, que fechou os olhos e sorriu, desaparecendo. O homem de bigode foi o próximo. Um instante e seu rosto havia perdido a impassividade, inundado pelo delírio da liberdade, e então também desapareceu. Os fantasmas estavam se dissolvendo. Haviam ultrapassado alguma fronteira e tinham sido libertados.
Nem todos tiveram sorte. A maioria foi sugada para trás como pipas presas a linhas, fisgada de volta para a mão de metal para observar o trenó, girando devagar, mover-se cada vez mais para longe do seu alcance.
Não havia tempo para divagar. O pontão de estibordo vazava o gás e a quilha estava virando para cima.
– Lazlo! – gritou Soulzeren, empurrando seus óculos para a testa. – Passe o seu peso para bombordo e se segure.
Ele fez como ordenado, seu peso equilibrando a inclinação da aeronave enquanto ela colocava um remendo no furo sibilante que o gancho de carne havia feito. A arma ainda estava no chão, imóvel e letal, assim como a faca que caíra também. Azareen e Eril-Fane estavam respirando pesado, suas hreshteks ainda em punho, ombros erguidos. Eles checa-ram um ao outro em busca de ferimentos. Ambos sangravam com cortes nas mãos e nos braços, mas tudo estava bem. Incrivelmente, ninguém tinha um ferimento sério.
Respirando fundo, Azareen virou-se para Lazlo:
– Você salvou minha vida, faranji.
Lazlo quase disse “de nada”, mas ela não tinha agradecido de fato, então ele segurou-se e apenas assentiu. Ele esperava que fosse um gesto digno, talvez até mesmo um pouco duro. Mas duvidava disso. Suas mãos estavam tremendo.
Tudo nele estava tremendo.
O trenó parou de girar, mas ainda estava inclinado. Havia gás suficiente para uma descida lenta. Soulzeren levantou a vela e a mareou, fazendo a proa virar e apontar em direção à campina fora dos muros da cidade.
Isso foi bom. Teriam tempo para recuperar o fôlego antes que os outros chegassem até eles. A ideia dos outros, e todas as perguntas que fariam, tirou Lazlo de sua euforia de sobrevivência e o levou de volta à realidade. Perguntas. Perguntas requeriam respostas. Quais eram as respostas? Ele olhou para Eril-Fane, indagando:
– O que acabou de acontecer?
O Matador de Deuses ficou um bom tempo com as mãos na grade, apoiando-se pesadamente, olhando para longe. Lazlo não conseguia ver o seu rosto, mas podia interpretar seus ombros. Algo muito pesado os estava pressionando. Muito pesado mesmo. Ele se lembrou da garota no terraço, a garota do sonho, e perguntou:
– Aquela era Isagol?
– Não – respondeu Eril-Fane, abrupto. – Isagol está morta.
Então... quem? Lazlo poderia ter perguntado mais, mas Azareen o fitou e o reprovou com um olhar. Ela estava muito abalada.
Eles ficaram em silêncio pelo resto da descida. O pouso foi suave como um sussurro, a aeronave deslizando pela grama alta até que Soulzeren baixou a vela e enfim pararam. Lazlo a ajudou a prendê-la e puderam colocar os pés novamente na superfície do mundo. O grupo estava fora da sombra da cidadela ali. O sol brilhava e a linha nítida da sombra, morro abaixo, formava uma fronteira visível.
Em contraste com a linha dura onde a escuridão começava, Lazlo vislumbrou o pássaro branco, circulando e inclinando-se. Ele sempre estava lá, ponderou. Sempre observando.
– Eles chegarão logo aqui, imagino – afirmou Soulzeren, tirando os óculos e limpando a testa com o braço: – Ozwin não demora.
O Matador de Deuses concordou. Permaneceu em silêncio mais um momento, recompondo-se antes de pegar a faca e o gancho de carne caídos no chão do trenó e jogá-los longe. Ele respirou fundo e falou:
– Não vou lhes ordenar que mintam – disse devagar –, mas vou pedir-lhes isso. Peço que guardemos isso entre nós. Até que eu possa pensar no que fazer a respeito.
Isso? Os fantasmas? A garota? Essa destruição total de que os cidadãos de Lamento acreditavam sobre a cidadela que já temiam com um pavor frio e debilitante? Que tipo de pavor essa nova verdade inspiraria? Lazlo arrepiou-se só de pensar.
– Não podemos... Não podemos simplesmente não fazer nada – falou Azareen.
– Eu sei – disse Eril-Fane, devastado –, mas se contarmos, haverá pânico. E se tentarmos atacar... – Ele engoliu em seco. – Azareen, você viu?
– É claro que vi – ela sussurrou. Suas palavras eram tão cruas. Ela abraçou-se. Lazlo pensou que deveriam ser os braços de Eril-Fane no lugar. Até ele podia ver isso. Mas Eril-Fane estava preso em seu próprio choque e angústia e guardou os braços grandes para si.
– Quem eram eles? – Soulzeren questionou. – O que eles eram?
Lentamente, como uma dançarina fazendo uma reverência até o chão, Azareen abaixou-se sobre a grama dizendo:
– Todos os nossos mortos voltados contra nós. – Seus olhos eram duros e brilhantes.
Lazlo virou-se para Eril-Fane e perguntou:
– Você sabia? Quando estávamos decolando, perguntei se você tinha certeza de que a cidadela estava vazia, e você disse “vazia dos vivos”.
Eril-Fane fechou os olhos, esfregando-os.
– Eu não quis dizer... fantasmas – respondeu, tropeçando na palavra.
– Eu quis dizer corpos. – Ele parecia quase esconder o rosto nas mãos e Lazlo soube que ainda havia segredos.
– Mas a garota... – Lazlo falou, hesitante. – Ela não era nenhum dos dois.
Eril-Fane afastou as mãos dos olhos.
– Não. – Com angústia e um brilho severo de... algo... talvez redenção, ele sussurrou: – Ela está viva.
PARTE IV
sathaz (SAH.thahz) substantivo
O desejo de possuir o que nunca pode ser seu.
Arcaico; do Conto de Sathaz, que se apaixonou pela lua.
40
MISERICÓRDIA
O que Sarai havia acabado de fazer?
Depois que tudo terminara e os cinco viram, por sobre a beirada do terraço, o trenó de seda escapar para baixo para uma campina verde distante, Minya voltou-se para ela, sem falar nada – incapaz de falar – e o silêncio foi pior do que um grito teria sido. A menina tremia com a fúria mal contida e, quando o silêncio se estendeu, Sarai forçou-se a realmente olhar para Minya. O que ela viu não foi apenas fúria. Foi um deserto de descrença e traição.
– Aquele homem nos matou, Sarai – ela sussurrou, quando finalmente encontrou sua voz. – Você pode esquecer isso, mas jamais esquecerei.
– Nós não estamos mortos. – Naquele momento, Sarai não tinha certeza de que Minya sabia disso. Talvez tudo o que ela conhecesse fossem fantasmas, e não fizesse distinção. – Minya, nós ainda estamos vivos.
– Porque eu nos salvei dele! – ela estava gritando. Seu peito erguia-se. Ela era tão magra, dentro de suas roupas esfarrapadas. – Para que você pudesse salvá-lo de mim? É assim que você me agradece?
– Não! – Sarai explodiu. – Eu te agradeci fazendo tudo o que me dizia para fazer! Eu te agradeci sendo uma vingança para você, toda noite, durante anos, a despeito do que isso fazia a mim. Mas nunca era suficiente. E nunca será suficiente!
Minya parecia incrédula.
– Você está brava por nos manter seguros? Sinto muito que tenha sido difícil para você. Talvez nós devêssemos ter esperado você, e nunca tê-la feito usar seu dom horrível.
– Não é isso que estou dizendo. Você distorce tudo. – Sarai estava tremendo. – Devia ter um outro jeito. Você fez a escolha. Você escolheu os pesadelos. Eu era muito nova para saber. Você me usou como a um de seus fantasmas. – Ela estava se afogando em suas próprias palavras, surpresa consigo mesma por conseguir falar, e percebeu Feral emudecido e boquiaberto.
– Então em troca você me traiu. Você traiu a todos nós. Eu posso ter escolhido por você um dia, Sarai, mas hoje a escolha foi sua. – Seu peito levantava e descia com uma respiração animal. Seus ombros eram frágeis como ossos de pássaro. – E você escolheu. Escolheu a eles! – ela berrou na última parte. Seu rosto ficou vermelho, lágrimas escorriam. Sarai nunca a tinha visto chorar antes. Nunca. Até suas lágrimas eram ferozes e raivosas. Nada dos traços suaves e trágicos que pintavam os rostos de Rubi e Pardal. As lágrimas de Minya tinham raiva, praticamente saltando dos olhos em gotas cheias e gordas, como chuva.
Todos estavam paralisados. Pardal, Rubi, Feral, atordoados. Olhavam de Sarai para Minya, de Minya para Sarai, e pareciam prender a respiração. E quando Minya se virou para eles, apontou para a porta e ordenou:
– Vocês três. Fora daqui! – Eles hesitaram, divididos, mas não por muito tempo. Era Minya que lhes causava medo, seus ataques de raiva, seu desapontamento escaldante, e era a ela que costumavam obedecer. Se Sarai tivesse apresentado-lhes uma escolha naquele momento, se tivesse se mantido firme e defendido suas ações, poderia tê-los conquistado para o seu lado. Mas ela não fez isso. A incerteza estava descrita em seu rosto: os olhos arregalados demais, o lábio tremendo e a forma como mantinha o braço sangrando junto ao corpo.
Rubi segurou em Feral e virou-se junto a ele. Pardal foi a última a sair, olhando temerosa da porta e disse as palavras sinto muito. Sarai viu-a sair. Minya permaneceu parada por mais um momento, fitando Sarai como se ela fosse uma estranha. Quando ela falou novamente, sua voz tinha perdido a estridência, a fúria. Estava monótona e velha:
– O que quer que aconteça agora, Sarai, terá sido culpa sua.
E ela girou nos calcanhares e passou pela porta, deixando Sarai sozinha com os fantasmas.
Toda a raiva foi sugada no seu rastro e deixou um vazio. O que mais havia, quando se tirava a raiva, o ódio? Os fantasmas ficaram paralisados – aqueles que restavam, os que Minya havia puxado de volta, da iminência da liberdade, enquanto os outros saíam de seu alcance e fugiam dela – e eles não podiam virar seus rostos para olhar para Sarai, mas seus olhos concentravam-se nela, e ela pensou ter visto perdão neles, e gratidão.
Pela sua misericórdia.
Misericórdia.
Havia sido misericórdia ou traição? Salvação ou condenação? Talvez fossem todas essas coisas alternando-se como em uma moeda jogada para cima, girando de face em face – misericórdia, traição, salvação, condenação. E como ela cairia? Como tudo aquilo terminaria? Cara, os humanos viveriam. Coroa, os filhos dos deuses morreriam. O resultado fora roubado desde o dia em que nasceram.
Uma frieza tomou conta dos corações de Sarai. O exército de Minya a intimidava, mas o que teria acontecido hoje se ele não estivesse lá? E se Eril-Fane tivesse vindo, esperando encontrar esqueletos, e os encontrasse?
Ela ficou com a certeza desolada de que seu pai teria feito de novo o que fizera há quinze anos. Seu rosto estava fixo em sua mente: assombrado para começar, apenas por retornar a esse lugar de tanto tormento. Então surpreso. Afetado pela visão dela. Ela testemunhara o momento exato em que ele entendeu. Foi muito rápido: o primeiro empalidecer de choque, quando pensou que ela era Isagol, e o segundo, quando percebeu que não era.
Quando entendeu quem ela era.
Horror. Foi isso que ela viu em seu rosto, e nada menos que isso. Ela acreditava que tinha se endurecido para qualquer dor que ele pudesse lhe causar, mas estava errada. Esta foi a primeira vez na vida que o tinha visto com os próprios olhos – não filtrado por meio dos sentidos das mariposas ou conjurado no inconsciente dele, ou de Suheyla, ou de Azareen, mas ele, o homem cujo sangue era metade dela, seu pai – e seu horror ao vê-la havia aberto nela um novo botão de vergonha.
Obscenidade, calamidade. Cria dos deuses.
E no rosto do sonhador? Choque, alarme? Sarai não sabia dizer. Tudo acontecera num piscar de olhos, e o tempo todo os fantasmas estavam puxando-a pela porta, arrastando-a para dentro. Seu braço doía. Havia sangue coagulado do antebraço até os dedos e ainda saindo brilhante da longa linha do corte.
Havia marcas florescendo também, onde os fantasmas tinham-na agarrado. A dor pulsante a fazia sentir que as mãos deles ainda estavam lá. Ela queria Grande Ellen – seu toque suave para limpar e cobrir o ferimento, e sua compaixão. Com determinação, ela fez menção de sair, mas os fantasmas bloquearam o caminho. Por um momento, ela não entendeu o que estava acontecendo. Havia acostumado-se à presença deles, sempre endurecendo-se quando tinha de passar por um grupo, mas nunca tinham interferido a passagem dela. Agora, logo que se dirigiu à porta, eles juntaram-se e a impediram de passar. Ela parou. Seus rostos estavam impassíveis como nunca. Ela sabia que não adiantava falar com eles, como se estivessem sob seu próprio controle, mas as palavras saíram de qualquer maneira.
– O quê? Não tenho permissão para sair?
É claro que eles não responderam, apenas obedecendo ordens, e Sarai não iria a lugar algum.
O dia todo, ninguém veio. Isolada e mais cansada do que nunca, ela lavou o braço com a água que restava no jarro e amarrou-o com uma lingerie que rasgou em tiras. Permaneceu no quarto de dormir, como se estivesse se escondendo dos guardas-fantasmas. Ondas quentes de pânico passavam por ela quando se lembrava, mais uma vez, o caos da manhã e a escolha que fizera.
O que quer que aconteça agora, será culpa sua.
Ela não tivera a intenção de escolher. Em seus corações, nunca havia feito e nunca poderia fazer aquela escolha – humanos no lugar dos seus. Não foi isso que ela fizera. Não era uma traidora, mas tampouco era uma assassina. Andando pra lá e pra cá, ela sentiu como se a vida a tivesse guiado até um beco sem saída e a prendido apenas para lhe ensinar uma lição.
Presa presa presa.
Talvez ela sempre tivesse sido prisioneira, mas não dessa forma. As paredes fecharam-se em torno dela. A garota queria saber o que estava acontecendo lá embaixo em Lamento e qual tipo de alvoroço tinha causado a notícia de sua existência. Eril-Fane já devia ter-lhes contado. Eles estariam reunindo armas e falando em estratégia. Será que voltariam em grande número? Será que conseguiriam? Quantos trenós de seda eles tinham? Havia visto apenas dois, mas parecia fácil construí-los. Ela supôs que era apenas uma questão de tempo até que eles pudessem criar uma força de invasão.
Será que Minya achou que seu exército podia segurá-los para sempre? Sarai imaginou uma vida na qual os cinco continuariam como antes, mas agora sitiados, alertas a ataques em todas as horas do dia ou da noite, repelindo guerreiros, empurrando corpos terraço afora para mergulharem na cidade embaixo como as ameixas de Quedavento. Feral chamaria chuvas para lavar o sangue, e todos sentariam-se para jantar enquanto Minya prendia a nova leva de mortos do dia e os colocaria a seu serviço.
Sarai estremeceu, sentindo-se tão impotente. O dia estava claro e continuou assim. Sua necessidade de lull era forte, mas não havia mais névoa cinzenta esperando por ela, não importava quanto lull bebesse. Ela estava tão cansada que se sentia... surrada, como as solas de sapatos velhos, mas não ousava fechar os olhos. O terror do que a esperava além do limiar da consciência era ainda mais poderoso. Ela não estava bem. Fantasmas fora, horrores dentro e nenhum lugar para onde ir. As paredes azuis brilhantes a cercavam. Ela chorou, esperando o anoitecer, que enfim veio. Seu grito silencioso nunca havia sido uma libertação tão grande. Ela gritou tudo e sentiu como se seu próprio ser se partisse no suave dispersar de asas.
Traduzida em mariposas, Sarai lançou-se para as janelas e espremeu-se para sair. O céu era imenso e havia liberdade nele. As estrelas a chamavam como faróis acesos em um vasto oceano escuro enquanto ela se arremessava dividida em uma centena, no ar vertiginoso. Escapar, escapar. Ela voou para longe dos pesadelos, da privação e das costas viradas de seus iguais. Ela voou para longe do beco sem saída onde sua vida a prendia e insultava. Ela voou para longe de si mesma. Um desejo selvagem a tomou para voar o mais longe que podia de Lamento – uma centena de mariposas, uma centena de direções –, voar e voar até que o nascer do sol chegasse e a transformasse em fumaça e todo seu sofrimento também.
– Mate-se, garota – A velha havia dito. – Tenha piedade de nós todos.
Piedade.
Piedade.
Será que seria piedade, colocar um fim em si mesma? Sarai sabia que aquelas palavras cruéis não tinham vindo das velhas-fantasmas, mas de seu eu mais íntimo, envenenado pela culpa de quatro mil noites de sonhos sombrios. Ela também sabia que em toda a cidade e no monstruoso anjo de metal que havia roubado o céu, ela era a única que conhecia o sofrimento dos humanos e dos filhos dos deuses, e pensou que sua piedade era singular e preciosa. Hoje ela havia evitado um massacre, pelo menos por algum tempo. O futuro era cego, mas ela não podia sentir, verdadeiramente, que seria melhor sem ela. Ela se recompôs de sua dispersão. Desistiu do céu com suas estrelas tais quais alarmes de incêndio e voou para Lamento para descobrir o que sua piedade havia desencadeado.
41
ENCANTAMENTO
A deusa era real e estava viva.
Lazlo havia sonhado com ela antes de saber que os Mesarthim eram azuis e isso parecia esquisito o bastante. Muito mais agora que a tinha visto viva, seu rosto adorável exatamente igual ao que conhecera em seus sonhos. Não era coincidência.
Só podia ser magia.
Quando as carroças chegaram para recolher o trenó de seda e os passageiros, os quatro sustentaram uma história simples, de falha mecânica, que não foi questionada por ninguém. Eles minimizaram o evento a tal ponto que o dia continuou dentro da normalidade, embora Lazlo sentisse que a “normalidade” fora deixada para trás para sempre. Ele assimilou tudo tão bem quanto se podia esperar – considerando que esse “tudo” compreendia a quase morte nas mãos de fantasmas selvagens – e encontrou dentro de si, crescendo em meio à consternação e o medo, uma estranha bolha de contentamento. A garota de seus sonhos não era uma invenção e ela não era a deusa do desespero, e não estava morta. O dia inteiro ele passou virando a cabeça para cima para olhar para a cidadela com novos olhos, sabendo que ela estava lá. Como era possível?
Como tudo aquilo era possível? Quem era ela e como tinha entrado em seus sonhos? Naquela noite, ele estava inquieto quando se deitou para dormir, esperando que ela retornasse. Diferentemente da noite anterior, quando se esparramou com o rosto para baixo na cama, sem camisa e inconsciente, sem nem mesmo amarrar o cordão de suas calças, esta noite ele foi vítima de uma formalidade peculiar: vestiu uma camisa, amarrou o cordão da calça e prendeu os cabelos. Até se olhou no espelho – e sentiu-se um tolo por estar preocupado com a aparência, como se ela fosse de alguma forma vê-lo, embora não tivesse ideia de como funcionava tal magia. Ela estava lá em cima e ele ali embaixo, mas ele não conseguia se livrar da sensação de que estava esperando uma visitante – o que teria sido uma experiência nova para ele em qualquer lugar, mas era particularmente provocativa neste local. Estar deitado na cama, esperando a visita de uma deusa...
Ele corou. É claro que não era assim. Olhou para o teto, uma tensão em seus membros, e sentiu como se estivesse interpretando o papel de alguém adormecido em uma peça. Isso não adiantaria. Era preciso dormir de verdade para sonhar, mas o sono não estava chegando fácil, visto que a mente estava agitada por causa do dia. Havia uma espécie de euforia em quase morrer e não morrer. Acrescente a isso sua ansiedade por saber se ela viria. Ele era todo nervosismo, fascinação, timidez e uma esperança profunda.
Lembrou-se maravilhado de como pegara a mão da garota na noite anterior e segurado-a na sua, sentindo a realidade dela, e a conexão que tinha inflamado entre eles quando ele a pegou. Na realidade, ele jamais teria ousado fazer algo tão corajoso. Mas ele não conseguia se convencer que aquilo não era realidade, à sua maneira. Não havia ocorrido no reino físico, isso era verdade. Sua mão não tinha tocado a mão dela. Mas... sua mente havia tocado a mente dela e isso lhe parecia uma realidade mais profunda, uma intimidade ainda maior. A garota havia se surpreendido quando ele a tocara, seus olhos haviam se arregalado. Fora real para ela também, ele pensou. Seus cílios, lembrou-se, eram de um vermelho-dourado, os olhos de um azul translúcido. E se recordava da maneira com a qual ela o fitara pela primeira vez, como se estivesse paralisada, noites atrás, e novamente na noite passada. Ninguém jamais o olhara daquele jeito. Isso fez com que Lazlo quisesse checar o espelho novamente para ver o que ela teria visto – se talvez seu rosto tivesse melhorado sem que ele soubesse – e o impulso foi tão vaidoso, e nada de seu feitio, que ele cobriu os olhos com o braço e riu de si mesmo.
Sua risada diminuiu ao lembrar-se também do sangue brotando e do aviso dela – “todos morrerão” – e do jeito furioso com que ela tinha lutado à porta da cidadela para alertá-lo mais uma vez.
Ele estaria morto se não fosse por ela.
“Fujam!”, a garota havia gritado enquanto mãos a pegavam, arrastando-a para dentro. Como ela parecia determinada e desesperada! Será que estava bem? Será que se machucara? Em que condições ela existia? Como era sua vida? Havia tanta coisa que ele queria saber. Tudo. Lazlo queria saber tudo e queria ajudar. Em Zosma, quando Eril-Fane falara aos acadêmicos com um semblante sombrio sobre o “problema” de Lamento, o rapaz fora tomado pelo mesmo desejo profundo: de ajudar, como se alguém como ele tivesse alguma chance de resolver um problema como esse.
Ocorreu-lhe, enquanto estava deitado com o braço cobrindo os olhos, que a garota estava presa ao problema de Lamento de formas que ele ainda não conseguia entender. Entretanto, uma coisa estava clara: ela não estava a salvo e não era livre, e o problema de Lamento tinha ficado muito mais complicado.
Quem ela havia desafiado com aquele grito, indagou-se, e qual preço que tivera de pagar por isso? Preocupar-se com a garota dobrou sua ansiedade e afastou ainda mais o sono, então ele temeu que o sono nunca chegasse. O rapaz estava ansioso, com medo de perder sua visita, como se seus sonhos fossem uma porta na qual ela estivesse batendo sem encontrar alguém em casa. Espere, pensou. Por favor, espere por mim. E enfim acalmou-se com a ideia, zombando de si mesmo, de “preocupações caseiras”. Ele nunca recebera um convidado antes, então não sabia como se comportar. Como recebê-la se ela viesse, e onde. Se havia orientações de etiqueta para receber deusas nos sonhos, ele nunca tinha encontrado esse livro na Grande Biblioteca.
Não era apenas uma questão de salas de visita e bandejas de chá – embora houvesse isso também. Se ela viesse na realidade, ele ficaria limitado pela realidade. Mas os sonhos eram algo diferente. Ele era Estranho, o sonhador. Esse era seu domínio, e não havia limites nele.
Sarai observou o sonhador lançar o braço sobre os olhos, ouviu-o dar risada. Ela notou sua estranha imobilidade, reconhecendo-a como uma inquietação contida e esperou impacientemente até que se atenuasse e ele dormisse. Sua mariposa estava pousada em um canto sombreado do batente da janela, onde esperou por um longo tempo antes que ele parasse de se mexer, tentando determinar quando havia mesmo cruzado a fronteira. Seu braço ainda estava apoiado sobre o rosto, não podendo ver os olhos, ela não sabia dizer se ele estava fingindo. Uma emboscada estava em sua mente, por motivos óbvios, e ela não conseguia reconciliar a violência da manhã com o silêncio desta noite.
Sarai não tinha encontrado nada do pânico ou a preparação que esperava. O trenó de seda avariado fora levado de volta ao seu pavilhão e lá ele estava abandonado, com um pontão vazio. A mecânica e piloto estava dormindo em sua cama, com a cabeça encostada no ombro do marido, e embora o caos da manhã tivesse entrado em seus sonhos – e nos dele, em menor medida – os demais forasteiros estavam despreocupados. A conclusão de Sarai, a partir das informações de suas mariposas da primeira safra de sonhos da noite, era que Soulzeren tinha contado ao marido e a ninguém mais sobre o... encontro... na cidadela.
Os Zeyyadin estavam da mesma forma no escuro. Nada de pânico. Nenhuma consciência que Sarai pudesse perceber, da ameaça que pairava sobre suas cabeças.
Será que Eril-Fane mantivera segredo? Por que faria isso?
Se ela pudesse perguntar-lhe...
Na verdade, ao mesmo tempo em que sua mariposa estava empoleirada na janela observando o sono chamar Lazlo Estranho, Sarai estava vendo-o não chamar o Matador de Deuses.
Ela o tinha encontrado, embora não estivesse o procurando, pois acreditara que ele estaria desaparecido como em todas aquelas noites em que Sarai visitou Azareen e a encontrou sozinha.
Na verdade, ela ainda estava sozinha. Ela estava na cama, enrolada em uma bola com as mãos sobre o rosto, acordada, enquanto Eril-Fane também estava acordado na pequena sala de estar, cadeiras empurradas para o lado e um colchonete estendido no chão. No entanto, ele não estava deitado nele. Suas costas estavam encostadas na parede e seu rosto estava apoiado nas mãos. Dois cômodos, a porta fechada entre eles. Dois guerreiros com o rosto nas mãos. Sarai, observando-os, imaginou que tudo seria melhor se os rostos e as mãos simplesmente... mudassem de lugar. Ou seja, se Azareen segurasse o rosto de Eril-Fane enquanto ele segurava o dela.
Os dois estavam angustiados e imóveis, quietos e determinados a sofrerem sozinhos! Do ponto de vista de Sarai, ela observava duas poças privadas de sofrimento tão próximas que eram quase adjacentes – como os cômodos conectados com a porta fechada entre eles. Por que não abrir a porta, abrir os braços e fechá-los em torno um do outro? Será que eles não entendiam como, na estranha química das emoções humanas, os sofrimentos dele e dela, misturados, poderiam... compensar um ao outro?
Pelo menos por um tempo.
Sarai queria sentir desprezo por ambos serem tão tolos, mas sabia demais para desdenhá-los. Por anos vira o amor de Azareen por Eril--Fane arruinado ainda no botão, como as orquídeas de Pardal por uma das tempestades de Feral. E por quê? Porque o Matador de Deuses era incapaz de amar.
Por causa do que Isagol lhe causara.
E como Sarai tinha passado a compreender – ou melhor, por anos tinha se recusado a entender até que enfim não houvesse como negar –, por causa do que ele tinha feito. O que ele tinha se forçado a fazer para garantir a liberdade futura de seu povo: matar crianças e, com elas, sua própria alma.
Isso foi o que enfim atravessou sua cegueira. Seu pai salvara o próprio povo e destruído a si mesmo. Por mais forte que parecesse, dentro dele era uma ruína, ou talvez uma pira funeral, como a Cúspide – só que em vez de ossos derretidos dos ijji, ele era feito dos esqueletos de bebês e crianças, incluindo, como ele sempre tinha acreditado, sua própria filha: ela. Esse era o seu remorso. Isso o sufocava como ervas daninhas e podridão, e colônias de insetos, sujando-o e manchando-o, estagnado e fétido, de forma que nada tão nobre quanto o amor, ou o perdão, jamais pudesse ter espaço dentro dele.
A ele era até mesmo negado o alívio das lágrimas. Eis outra coisa que Sarai sabia melhor do que qualquer um: o Matador de Deuses era incapaz de chorar. O nome da cidade era uma provocação. Em todos esses anos, ele fora incapaz de produzir lágrimas. Quando Sarai era jovem e cruel, ela tinha tentado fazê-lo chorar, sem sucesso.
Pobre Azareen. Vê-la encolhida daquele jeito e desnuda de toda sua armadura era como ver um coração retirado do corpo, posto em carne viva em uma tábua, e rotulado de Aflição.
E Eril-Fane, salvador de Lamento, por três anos um brinquedo da deusa do desespero? Qual seria seu rótulo, exceto Vergonha?
Então, a Aflição e a Vergonha moravam em quartos contíguos, com a porta fechada entre eles, segurando a dor em seus braços em vez de juntos. Sarai observou-os, esperando que seu pai adormecesse para poder lhe enviar uma sentinela – se ela ousasse – e saber o que ele estava escondendo em seus corações enquanto escondia o rosto em suas grandes mãos. Ela não podia esquecer o olhar de horror quando a avistara na porta da cidadela, mas tampouco podia entender por que ele tinha guardado o segredo sobre ela.
Agora que ele sabia que ela estava viva, o que planejava fazer a respeito?
E então lá estavam os quatro que tinham voado até a cidadela e vivido para contar a história – embora eles aparentemente não tivessem feito isso. Sarai observou todos eles, os que dormiam e os que estavam acordados. Ela também estava em vários outros lugares, mas a maior parte de sua atenção estava dividida entre seu pai e o sonhador.
Quando teve certeza de que Lazlo enfim caíra no sono – e movido o braço de forma que ela pudesse ver seu rosto –, direcionou a mariposa do batente da janela até ele. Mas ela não conseguiu tocá-lo, e pairou no ar acima dele. Dessa vez seria diferente, sabia. Na cidadela, andando de um lado para o outro, sentia-se tão apreensiva como se estivesse mesmo no quarto com ele, pronta para se assustar com o mínimo movimento.
Com os sentidos de sua mariposa ela sentiu o cheiro de sândalo dele e o aroma puro de almíscar. Sua respiração era profunda e compassada. Tinha ciência de que ele sonhava. Seus olhos movimentavam-se sob as pálpebras, e seus cílios, fechados – tão densos e brilhantes quanto o pelo de gato-selvagem – moviam-se suavemente. E então, ela não podia esperar nenhum instante a mais. Com uma sensação de expectativa e apreensão, cruzou a pequena distância até sua fronte, pousou na pele morna e entrou em seu mundo.
Ele a esperava.
Ele estava bem ali, parado em pé e esperando como se soubesse que ela viria.
Sua respiração parou. Não, ela pensou. Não como se ele soubesse. Mas como se desejasse.
A mariposa assustou-se e rompeu o contato. Ele estava perto demais; ela não estava preparada. Mas aquele piscar de olhos capturou o momento em que a preocupação dele se transformou em alívio.
Alívio. Ao vê-la.
Quando pairou acima dele, com seus corações batendo distantemente em um ritmo selvagem, Sarai percebeu como aguardava pelo pior, certa de que hoje enfim ele devia ter aprendido a sentir aversão a ela – o sentimento que era apropriado. Contudo, não notara nada disso naquele vislumbre. Então encheu-se de coragem e retornou à sua fronte.
Lá ainda estava ele, e ela viu novamente a transformação de preocupação em alívio.
– Sinto muito – ele pediu, com sua voz rouca.
Ele estava mais longe agora. Não tinha se movido, exatamente, mas mudado a concepção de espaço no sonho para não a pressionar no limiar. Ambos estavam parados à margem de um rio, e não era o tumultuoso Uzumark, mas sim um riacho mais tranquilo. Nem Lamento, nem a Cúspide, nem a cidadela estavam visíveis, mas um bom tanto de céu rosa pálido e, sob ele, esse trecho amplo de água verde e sem ondulações, navegada por pássaros com longos pescoços curvos. Ao longo das margens, estendendo-se como se para pegar seus reflexos, havia fileiras de casas rústicas de pedra com as janelas pintadas de azul.
– Eu te assustei – disse Lazlo. – Por favor, fique.
Era engraçada a ideia de que ele podia assustá-la. A Musa dos Pesadelos que atormenta Lamento, assustada em um sonho por um meigo bibliotecário?
– Foi só um sobressalto – ela respondeu, envergonhada. – Não estou acostumada a ser cumprimentada. – Ela não explicou que não estava acostumada a ser vista, que tudo isso lhe era novo ou que as batidas de seus corações estavam se emaranhando, entrando no ritmo e saindo como crianças aprendendo a dançar.
– Eu não queria perdê-la, se você viesse – disse Lazlo. – Esperava que você viesse.
Lá estava, a magia em seus olhos, brilhando como o sol na água. Isso provoca algo em uma pessoa, ser olhada dessa forma – especialmente em alguém acostumada à aversão. Sarai tinha uma nova consciência desconcertante de si mesma, como se nunca tivesse percebido quantas partes móveis tinha, todas para serem coordenadas com alguma graça. Isso funcionava por si só desde que ela não pensasse a respeito. Contudo, bastava começar a se preocupar que tudo dava errado. Como tinha passado a vida inteira sem perceber a estranheza dos braços, a forma como eles simplesmente ficam pendurados nos ombros como carne na janela de um açougue? Ela cruzou-os – sem elegância, ela achou, como uma amadora, escolhendo a saída mais fácil.
– Por quê? – ela perguntou. – O que você quer?
– Eu... Eu não quero nada – ele apressou-se em dizer. É claro, era uma pergunta injusta. Afinal, ela estava invadindo seu sonho, não o contrário. Ele tinha mais direito de perguntar o que ela queria lá. Em vez disso, falou: – Bem, quero saber se você está bem. O que aconteceu com você lá em cima? Você se machucou?
Sarai piscou. Se ela tinha se machucado? Depois do que ele tinha visto e sobrevivido, estava perguntando se ela estava bem?
– Estou bem – respondeu, um pouco rouca devido à dor inexplicável na garganta. Em seu quarto, ela segurou o braço machucado. Ninguém na cidadela tinha ligado para o fato de ela ter se machucado. – Você devia ter me ouvido. Tentei avisá-lo.
– Sim, bem. Achei que você era um sonho. Mas aparentemente não é. – Ele fez uma pausa, incerto. – Você não é, né? Embora, é claro que, se você fosse, e me dissesse que não era, como eu saberia?
– Não sou um sonho – afirmou Sarai. Havia amargura em sua voz. – Sou um pesadelo.
Lazlo soltou uma risadinha incrédula.
– Você não é minha ideia de pesadelo – falou, corando um pouco. – Estou feliz que seja real – ele acrescentou, corando muito. E ambos ficaram parados frente à frente, embora não estivessem olhando um para o outro, mas sim para as pedrinhas do leito do rio entre seus pés.
Lazlo viu que a garota estava descalça e fechava os dedos dos pés em volta das pedrinhas e da lama debaixo deles. Ele estivera pensando nela o dia todo e tinha pouco para continuar, mas ela claramente tinha sido uma surpresa para Eril-Fane e Azareen, o que o levou a supor que sua vida inteira tinha sido vivida na cidadela. Será que ela já tinha colocado os pés no mundo? Com isso em mente, ver seus dedos dos pés azuis curvando-se na lama do rio afetaram-no com pungência.
Depois disso, ver seus tornozelos azuis nus e suas panturrilhas finas lhe causaram grande encantamento, tanto que ele corou e desviou o olhar. Pensou enfim, no meio de tudo, que poderia ser ridículo oferecer algo para beber, mas não sabia o que mais fazer, então arriscou:
– Você aceitaria... aceitaria um chá?
Chá?
Sarai percebeu, pela primeira vez, a mesa à margem do rio. Estava na parte rasa, os pés perdidos em pequenos redemoinhos espumantes que se encaracolavam contra a margem. Havia uma toalha branca e alguns pratos cobertos, junto com uma chaleira e duas xícaras. Um pouco de vapor escapou do bico da chaleira, e ela percebeu que podia sentir o aroma, picante e floral, em meio aos odores terrosos do rio. O que eles chamavam de chá na cidadela era apenas água com ervas, como hortelã e erva-cidreira. Ela tinha uma memória distante do sabor de chá de verdade, enterrada entre suas memórias de açúcar e bolo de aniversário. Fantasiara sobre isso algumas vezes – a bebida propriamente dita, mas isso também. O ritual, de sentar e beber, que parecia para ela, de fora, o coração da cultura. Compartilhar o chá e a conversa (e, era de se esperar, bolo). Ela olhou para a arrumação incongruente com a paisagem ao redor e depois para Lazlo, que prendeu uma parte do lábio inferior entre os dentes e a observava, ansioso.
E Sarai percebeu que fora do sonho seu lábio real estava da mesma forma, preso entre os dentes. O nervosismo era palpável e a desarmou. Ela viu que o rapaz gostaria de agradá-la.
– Isso é para mim? – ela perguntou a meia-voz.
–Desculpe-mesefizalgumacoisadeerrado–explicou-se,embaraçado. – Nunca tive um convidado antes, e não tenho certeza de como fazer.
– Um convidado – Sarai repetiu com voz fraca. Aquela palavra. Quando ela entrava nos sonhos, era uma invasora, uma saqueadora. Nunca havia sido convidada antes. Nunca havia sido bem-vinda. A sensação que se abateu sobre ela era nova – e extravagantemente agradável.
– E eu nunca fui convidada antes – ela confessou. – Então não sei mais do que você.
– Isso é um alívio. Podemos inventar e fazer como quisermos.
Ele puxou a cadeira para ela, que moveu-se para sentar. Nenhum dos dois tinha feito essa simples manobra em terra, muito menos na água, e deram-se conta ao mesmo tempo que havia espaço para errar. Bastava empurrar a cadeira rápido demais ou devagar demais, ou sentar-se cedo demais ou com muito peso, que desventuras poderiam acontecer, talvez até um batismo não intencional do traseiro. Mas saíram-se bem, Lazlo sentou-se na cadeira oposta e, simples assim, eles eram duas pessoas sentadas a uma mesa, mirando-se timidamente através do vapor da chaleira.
Dentro de um sonho.
Dentro de uma cidade perdida.
À sombra de um anjo.
À beira da calamidade.
Mas tudo isso – cidade, anjo e calamidade – parecia a mundos de distância naquele momento. Cisnes passaram como navios elegantes, e o vilarejo era todo pastel, com trechos de sombra azul. O céu era da cor dos pêssegos corados e a linguagem dos insetos sussurrava na grama da campina.
Lazlo considerou a chaleira. Parecia muito pedir que suas mãos derramassem, firmes, o chá nas xícaras delicadas que havia conjurado, então ele fez com que a chaleira virasse sozinha, tarefa que foi cumprida admiravelmente, como se feita por um mordomo invisível. Apenas uma gota pingou fora, manchando a toalha branca, que imediatamente tornou-se limpa de novo.
Imagine, ele pensou, ter esse poder fora do sonho. E então achou engraçado que a limpeza da toalha de mesa tivesse dado origem a esse pensamento, e não a criação de um vilarejo inteiro e um rio com pássaros e as montanhas a distância, ou a surpresa que eles mantinham guardada.
Ele já tivera outros sonhos lúcidos, mas nunca tão lúcidos quanto este. Desde que chegara a Lamento, seus sonhos tinham sido excepcionalmente vívidos. Perguntou-se se seria a influência dela que tornava essa clareza possível. Ou sua própria atenção e expectativa o deixavam nesse estado de consciência elevada?
Eles pegaram as xícaras. Era um alívio para ambos ter algo a fazer com as mãos. Sarai experimentou o primeiro gole, não soube dizer se o sabor – defumado e floral – era sua própria memória de chá, ou se Lazlo estava moldando a experiência sensorial dentro do seu sonho. Será que funcionava assim?
– Não sei seu nome – ele lhe disse.
Sarai nunca, em toda sua vida, tinha ouvido essa pergunta ou dado a resposta a esse questionamento pois nunca havia conhecido alguém. Todos a quem conhecia, conhecera desde sempre – exceto pelos fantasmas capturados, que não eram exatamente afeitos a apresentações.
– É Sarai – respondeu.
– Sarai – ele repetiu, como se o estivesse saboreando. Sarai. O gosto, ele pensou, mas não disse, era de chá – complexo, delicado e não doce demais. Lazlo a fitou, verdadeiramente. Jamais, no mundo, olharia para uma mulher jovem de um jeito tão direto e intenso, mas, de certa forma, isso era aceitável aqui, como se tivessem se encontrado com a intenção tácita de se conhecerem.
– Você irá me falar? – ele indagou. – Sobre você?
Sarai segurou a xícara com ambas as mãos. Respirou o vapor quente enquanto a água fria fazia redemoinhos em volta de seus pés.
– O que Eril-Fane te contou? – ela quis saber, cautelosa.
Através dos olhos de outra mariposa, observou que seu pai não estava mais sentado encostado na parede, agora se movera para a janela aberta da sala de Azareen e estava inclinado para fora, olhando para a cidadela. Será que ele a estava imaginando lá em cima? E, se sim, o que estaria pensando? Se ele dormisse, ela poderia descobrir. Ela não conseguia descobrir a partir de seu rosto, que era como uma máscara mortuária: severo e sem vida, com buracos no lugar dos olhos.
– Ele apenas disse que você não é Isagol – Lazlo respondeu. E fez uma pausa. – Você é... filha dela?
Sarai levantou o olhar para ele.
– Ele disse isso?
Lazlo balançou a cabeça.
– Eu imaginei... Seus cabelos. – Ele havia imaginado outra coisa também. Hesitante, falou: – Suheyla me disse que Eril-Fane era o companheiro de Isagol.
Sarai não disse nada, mas a verdade estava no seu silêncio e em seu esforço orgulhoso para não demonstrar nenhuma dor.
– Ele sabia de você? – Lazlo perguntou, inclinando-se para a frente. – Se ele sabia que era pai...
– Ele sabia. – Sarai falou logo. A meio quilômetro dali, o homem em questão esfregou os olhos com um cansaço infinito, mas não os fechou. – E agora ele sabe que ainda estou viva. Ele disse o que pretende fazer?
Lazlo balançou a cabeça.
– Ele não disse muita coisa. Pediu para não contarmos a ninguém o que aconteceu lá em cima. Sobre você ou qualquer outra coisa.
Sarai imaginou isso. O que ela queria saber era o porquê, e o que vinha depois, mas Lazlo não sabia lhe responder e Eril-Fane ainda estava acordado. Azareen por fim dormira, e Sarai pousou uma sentinela na curva de sua bochecha manchada de lágrimas.
Entretanto, não encontrou respostas. Em vez disso, ela estava mergulhada na violência da manhã. Ela ouviu seu próprio grito de “fujam!” e sentiu o terror ameaçando, cutelos e ganchos de carne e a face de sua própria avó – a avó de Azareen – contorcida em um ódio pouco familiar. A cena repetiu-se inúmeras vezes, impiedosa, com uma diferença terrível: no sonho, as espadas de Azareen eram pesadas como âncoras, pesando em seus braços enquanto ela lutava para defender-se do ataque que vinha da mão do anjo. Ela estava lenta demais. Era um pânico furioso e lento, e inimigos invencíveis, e o resultado não era tão feliz quanto havia sido naquela manhã.
No sonho de Azareen, todos eles morriam, como Sarai tinha dito a Lazlo que aconteceria.
Ela ficou em silêncio na beira do rio, sua atenção atraída para longe. Lazlo, observando que o tom azul de seu rosto tinha se apagado um pouco, perguntou:
– Você está bem?
Ela assentiu, rápido demais. Acabei de ver você morrendo, não falou, mas teve dificuldade de afastar a imagem da mente. O calor de sua testa debaixo da mariposa a confortou, assim como vê-lo do outro lado da mesa. O Lazlo real, o Lazlo do sonho, vivo por causa dela. Ela entendeu que estava tendo uma visão dos assassinatos que evitou e qualquer vergonha que tivesse sentido com o sermão de Minya mais cedo, a partir daquele momento, deixou de sentir.
Com destreza, ela assumiu o controle do pesadelo de Azareen: tornou as armas da guerreira mais leves e retardou o ataque enquanto o trenó de seda flutuava para fora do alcance. Finalmente, ela evanesceu os fantasmas, começando pela avó de Azareen, infundindo o sonho com os suspiros de alívio deles. Os mortos estavam livres e os vivos estavam a salvo e aquele era um fim para o sonho.
Sarai terminou o chá. A chaleira encheu a xícara mais uma vez. Ela agradeceu como se o bule estivesse vivo e então seu olhar demorou-se sobre os pratos cobertos.
– Então – ela perguntou, lançando um olhar para Lazlo. – O que tem aí?
42
DEUS OU MONSTRO, MONSTRO OU DEUS
Lazlo tinha pouca experiência a mais com bolos do que Sarai, então esta foi uma das coisas que inventaram juntos, “da forma que queriam”. Era uma espécie de jogo. Um imaginava os conteúdos do prato e o outro o descobria com um pequeno floreio dramático. Descobriram que podiam conjurar doces de aparência esplêndida, mas não tinham tanto sucesso no que dizia respeito ao sabor. Ah, os bolos não eram ruins. Eles eram doces, pelo menos – essa parte era fácil. Mas era uma doçura insossa, sonhada por órfãos que ficavam com os rostos colados nas janelas das docerias (metaforicamente, pelo menos), e nunca provaram nada.
– Eles são todos parecidos – lamentou Sarai, depois de experimentar uma garfada de sua última criação. Era uma maravilha de se ver: três camadas altas cobertas de cor-de-rosa com pétalas de açúcar, alto demais para caber debaixo da cobertura que o tampava.
– Um truque mágico – Lazlo falou quando o bolo pareceu crescer ao levantar a tampa.
– Tudo aqui é um truque mágico – Sarai completou.
Mas suas receitas podiam ter menos magia e mais realidade. A imaginação, como Lazlo observara anteriormente, está presa, de algum modo, ao conhecido, e ambos eram tristemente ignorantes quanto aos bolos.
– Esses devem ser bons – sugeriu Lazlo, experimentando de novo. – Suheyla fez para mim e acho que me lembro muito bem do sabor.
E era melhor: uma massa de mel cheia de nozes verde-claras e geleia de pétalas de rosa. Não era tão bom quanto o bolo de verdade, mas pelo menos tinha uma especificidade que faltava aos outros, e embora pudessem facilmente desejar que seus dedos ficassem limpos, parecia um triste desperdício de mel imaginário, por isso ambos estavam inclinados a lambê-los.
– Acho que não devemos mais tentar nenhum banquete de sonho – disse Lazlo, quando a tentativa seguinte se provou pouco inspiradora mais uma vez.
– Se fizermos isso, posso fornecer sopa de kimril – afirmou Sarai.
– Kimril? O que é isso?
– Uma raiz muito honrada – ela explicou. – Não tem nenhum sabor para motivar a gula, mas o mantém vivo.
Houve uma pequena pausa enquanto Lazlo considerava as questões práticas da vida na cidadela. Ele estava relutante em abandonar a diversão doce e a leveza que ela tinha levado à sua convidada, mas não podia sentar ali com essa visão dela e não se perguntar sobre a pessoa real, a quem ele tinha visto tão brevemente e sob circunstâncias tão terríveis.
– Ela a manteve viva? – ele perguntou.
– Sim. Pode-se dizer que é um item básico. A horta da cidadela não tem muita variedade.
– Vi árvores frutíferas – falou Lazlo.
– Sim. Nós temos ameixas, graças ao jardineiro. – Sarai sorriu. Na cidadela, no que dizia respeito à comida, agradeciam ao “jardineiro” enquanto outros agradecem a deus. Eles tinham uma dívida ainda maior com a Aparição por aquele monte de tubérculos de kimril que tinham feito toda a diferença. Tais eram as divindades na cidadela dos deuses mortos: um obscuro jardineiro humano e um pássaro antissocial. E, é claro, nada disso importaria sem os dons de Pardal e Feral para nutrir e regar o pouco que tinham. Quão inatingível a cidadela parecia vista debaixo, ela pensou, e mesmo assim como era tênue a vida deles nela.
Lazlo prestara atenção no pronome, no plural.
– Nós? – perguntou casualmente, como se não fosse uma dúvida monumental. Você está sozinha lá em cima? Existem outros como você?
Evasiva, Sarai voltou sua atenção ao rio. Bem onde ela olhou, um peixe saltou, com uma iridescência em suas escamas. Ele mergulhou novamente, saindo de vista. Será que faria alguma diferença, se perguntou, se Lazlo e Eril-Fane descobrissem que havia mais filhos dos deuses vivos na cidadela? A Regra havia sido quebrada. Havia “evidência de vida”. Será que importava saber quanta vida? Pareceu a ela que sim e, de qualquer forma, ela sentia como se fosse uma traição entregar os outros, então falou:
– Os fantasmas.
– Fantasmas comem ameixa?
Tendo se decidido a mentir, ela fez isso descaradamente.
– Vorazmente.
Lazlo deixou passar. Ele queria saber sobre os fantasmas, é claro, e por que estavam armados com utensílios de cozinha, atacando ferozmente seus próprios familiares, mas começou com uma questão um pouco mais fácil, perguntando como foram para lá.
– Imagino que todo mundo precisa estar em algum lugar – respondeu Sarai, esquivando-se.
Lazlo concordou, pensativo.
– Embora alguns tenham mais controle sobre o onde do que outros.
Ele não se referiu aos fantasmas. Inclinou a cabeça um pouco e olhou fixamente para Sarai, que sentiu a pergunta se formando. Ela não sabia que palavras usaria, mas a essência se resumia a por quê. Por que você está lá em cima? Por que você está presa? Por que é esta sua vida? Por que tudo em relação a você? E ela queria lhe contar, mas sentiu que ela mesma tinha uma pergunta brotando dentro de si. Parecia um pouco com o brotar das mariposas ao cair da tarde, mas era algo mais perigoso do que mariposas. Era esperança. Era: você pode me ajudar? Pode me salvar? Pode salvar a nós?
Quando ela descia a Lamento para “encontrar” os convidados do Matador de Deuses, não tinha parâmetros para imaginá-lo. Um... amigo? Um aliado? Um sonhador em cuja mente a melhor versão do mundo crescia como um estoque de sementes. Se ao menos aquilo pudesse ser transplantado para a realidade, a garota desejou, mas não podia. Quem sabia melhor como o solo de Lamento era venenoso do que ela que o havia envenenado por dez longos anos?
Então interrompeu a quase pergunta dele e indagou:
– Falando sobre onde, o que é este lugar?
Lazlo não insistiu. Ele tinha paciência para mistérios. Contudo, todos estes anos os mistérios de Lamento nunca tiveram a urgência deste. Isso era vida ou morte. Quase tinha sido a sua morte. Mas era preciso conquistar a confiança dela. Ele não sabia como fazer isso, então mais uma vez buscou refúgio nas histórias.
– Ah, bem. Estou feliz que tenha perguntado. Esse é um vilarejo chamado Zeltzin. Ou pelo menos é assim que imagino que um vilarejo chamado Zeltzin se pareça. É um lugar comum. Bonito, mas não excepcional, embora haja uma distinção.
Seus olhos brilharam. Sarai descobriu-se curiosa analisando ao redor perguntando-se qual seria essa distinção.
Mais cedo, enquanto estava tentando dormir, a primeira ideia de Lazlo foi criar um tipo elegante de sala de estar para recebê-la, caso ela viesse. Parecia o jeito mais apropriado de fazer as coisas, mesmo que um pouco enfadonho. Por algum motivo, a voz de Calixte apareceu em sua mente.
“Bela e cheia de monstros”, ela dissera. “Todas as melhores histórias são assim”.
E ela estava certa.
– Alguma ideia? – ele perguntou a Sarai.
Ela balançou negativamente a cabeça. Seus olhos também brilhavam.
– Bem, eu também posso te contar – disse Lazlo, divertindo-se. – Ali há uma entrada de mina que leva ao mundo subterrâneo.
– O mundo subterrâneo? – Sarai repetiu, esticando o pescoço na direção que ele apontou.
– Sim, mas essa não é a distinção.
Ela estreitou os olhos.
– Então qual é?
– Também posso te contar que as crianças aqui nascem com dentes e roem ossos de pássaro nos berços.
Ela estremeceu.
– Isso é horrível.
– Mas essa tampouco é a distinção.
– Você não vai me contar? – ela perguntou, ficando impaciente.
Lazlo balançou negativamente a cabeça. Ele estava sorrindo. Isso era divertido.
– Está um silêncio aqui, você não acha? – ele perguntou, provocando-a. – Pergunto-me aonde foi todo mundo.
Estava silencioso. Os insetos tinham parado de zumbir. Havia apenas o som do rio agora. Atrás do vilarejo, campinas estendiam-se até uma cadeia de montanhas que, de longe, pareciam cobertas de uma pelagem escura. Montanhas que pareciam prender a respiração, Sarai pensou. Ela sentiu uma quietude sobrenatural e segurou sua respiração também. E então... as montanhas exalaram, e ela também.
– Ohhh! – ela soltou, espantada. – Isso é...?
– A mahalath – explicou Lazlo.
A névoa de cinquenta anos que produzia deuses ou monstros. Ela estava chegando. Era a neblina – línguas de vapor branco deslocando-se entre as montanhas de pele escura –, mas movia-se como uma coisa viva, com uma inteligência curiosa de caça. Ao mesmo tempo leve e densa, havia certa agilidade nela, quase serpentina. Diferente da neblina, ela não meramente se espalhava e parava, caindo, mais pesada que o ar. Aqui e ali, cachos brancos pareciam erguer-se e espiar em volta antes de baixar novamente no fluxo da maré, como cristas de ondas sugadas de volta à rebentação. Ela estava derramando-se – derramando a si mesma –, deslizando gloriosa e inexoravelmente sobre os declives da campina em um trajeto direto até o vilarejo.
– Você já brincou de imaginar? – Lazlo perguntou a Sarai.
Ela deu risada.
– Não assim. – Ela estava alegre e assustada.
– Devemos fugir? Ou ficamos e nos arriscamos?
A mesa de chá havia desaparecido, as cadeiras e os pratos também. Sem perceber a transição, os dois estavam em pé, molhados até os joelhos no rio, observando a mahalath engolir as casas mais longínquas do vilarejo. Sarai teve de se lembrar de que nada daquilo era real. Era um jogo dentro de um sonho. Mas quais eram as regras?
– Será que ela nos mudará? – ela quis saber. – Ou nós nos mudaremos?
– Não sei – respondeu Lazlo, para quem isso também era novo. – Acho que podemos escolher o que nos tornaremos, ou podemos deixar o sonho escolher, se é que isso faz sentido.
E fazia. Eles podiam exercer controle, ou ceder às suas mentes inconscientes. De qualquer forma, não era uma névoa lhes refazendo, mas eles mesmos. Deus ou monstro, monstro ou deus. Sarai teve um pensamento ruim.
– E se você já é um monstro? – ela perguntou em um sussurro.
Lazlo a fitou e o encanto em seus olhos dizia que ela não era nada disso.
– Qualquer coisa pode acontecer – ele afirmou. – É esse o ponto.
A névoa espalhou-se mais. Ela engoliu os cisnes um a um.
– Ficar ou partir? – Lazlo perguntou.
Sarai ficou de frente para a mahalath. Ela deixou-a vir. E à medida que os primeiros cachos se enrolaram em torno dela como braços, ela procurou a mão de Lazlo e a segurou firme.
43
UM DEMÔNIO SINGULARMENTE FORMIDÁVEL
Dentro da névoa, dentro do sonho, um homem e uma mulher jovens foram refeitos. Mas, primeiro, foram desfeitos, seus contornos desaparecendo como o pássaro branco evanescente, a Aparição, à medida que ele sumia na pele do céu. Qualquer noção de realidade física escapara – exceto por uma: suas mãos, unidas, permanecendo tão reais quanto osso e nervo. Não havia mais mundo, margem de rio ou água, nada sob seus pés – e nada de pés. Havia apenas aquele ponto de contato e, mesmo quando se soltaram de si mesmos, Lazlo e Sarai seguraram-se um no outro.
Assim que a névoa passou em seu caminho e os cisnes refeitos desfilaram sua magnificência no humilde rio verde, ambos viraram-se a fim de se encarar, com os dedos entrelaçados e vislumbraram, vislumbraram, vislumbraram.
Olhos abertos e brilhantes, olhos que não mudaram. Os dele continuavam azul-acinzentados, os dela, azuis. E os cílios dela ainda eram acastanhados cor de mel, e os dele de um preto tão reluzente quanto a pele de um gato-selvagem. Seus cabelos ainda eram escuros, e os dela ainda eram cor de canela, o nariz dele era vítima de contos de fadas e a boca de Sarai era suculenta como uma ameixa.
Ambos estavam iguais de todas as formas, exceto uma.
A pele de Sarai era marrom, e a de Lazlo, azul.
O casal se vislumbrou, vislumbrou e vislumbrou, e estudaram suas mãos unidas, o padrão marrom e azul de seus dedos invertidos, e olharam para a superfície da água, que antes não era um espelho, mas agora sim, porque assim quiseram. E vislumbraram seus reflexos ali, lado a lado, de mãos dadas e não viram nem deuses nem monstros. Os dois tinham mudado tão pouco e aquela única coisa – a cor de suas peles –, mudaria tudo no mundo real.
Sarai olhou para a cor terrosa rica de seus braços e soube, embora estivesse escondida, que ela tinha uma elilith em sua barriga como uma garota humana. Perguntou-se qual era o padrão e desejou dar uma espiada. A outra mão, a que estava unida a de Lazlo, retirou-se suavemente. Não parecia haver mais pretexto para segurá-la, embora tivesse sido agradável enquanto durou.
Ela o fitou. Azul.
– Você escolheu isso? – a garota quis saber.
Lazlo balançou negativamente a cabeça.
– Deixei a cargo da mahalath.
– E ela fez isso. – Ela explicou-se o porquê. Sua própria mudança era fácil de compreender. Ali estava sua humanidade externalizada e todo seu desejo – por liberdade do confinamento de sua jaula de metal. Mas por que ele ficara assim? Talvez, ela pensou, não fosse desejo, mas medo, e essa era a ideia dele de um monstro.
– Bem, me pergunto qual dom ela te deu – ela disse.
– Dom? Você quer dizer magia? Acha que tenho um dom?
– Todas as crias dos deuses têm dons.
– Crias dos deuses?
– É assim que nos chamam.
Nos. Outro pronome no plural, que pairou entre os dois brevemente, mas Lazlo não chamou a atenção dela desta vez.
– Mas, crias... – o garoto repetiu, fazendo uma careta. – Isso não combina. Crias são de cães ou de demônios.
– O significado, creio eu, seja o segundo.
– Bem, você é um demônio singularmente formidável, se me permite.
– Obrigada – a garota agradeceu com sinceridade, pousando uma mão modesta sobre o peito. – Essa é a coisa mais gentil que alguém já me disse.
– Bem, tenho pelo menos uma centena de coisas muito mais gentis para dizer e só não consigo por constrangimento.
A menção ao constrangimento magicamente incentivou o constrangimento. Em seu reflexo, Sarai viu suas bochechas marrons ficarem vermelhas em vez de lavanda, enquanto Lazlo viu o contrário em seu próprio reflexo.
– Então, dons – ele falou, recuperando-se, embora Sarai não se incomodasse se ele demorasse um pouco na centena de coisas mais gentis. – E o seu é... entrar nos sonhos?
Ela assentiu. Não viu necessidade de explicar a mecânica da coisa. O comentário impiedoso de Rubi de um tempo atrás passou por sua mente. “Quem ia querer beijar uma garota que come mariposas?” A ideia de beijar provocou um alvoroço em seu estômago, que era como sentir que suas mariposas moravam dentro dela. Asas, delicadas e fazendo cócegas.
– Então, como sei qual é, esse dom? – Lazlo quis saber. – Como alguém descobre isso?
– É sempre diferente. Às vezes, é espontâneo e óbvio, outras vezes ele precisa ser provocado. Quando os Mesarthim eram vivos, era Korako, a deusa dos segredos, que os revelava. Ou assim me disseram. Devo tê-la conhecido, mas não consigo me lembrar.
A pergunta “quem disse?” era tão palpável que, embora Lazlo não a tenha feito – exceto, talvez, com suas sobrancelhas –, Sarai respondeu assim mesmo.
– Os fantasmas – ela disse. O que, nesse caso, era verdade.
– Korako – repetiu Lazlo. Pensou de novo no mural, mas estivera tão fixado em Isagol que as outras deusas eram um borrão. Suheyla havia mencionado Letha, mas não a outra. – Não ouvi nada sobre ela.
– Não. Você não ouviria. Ela era a deusa dos segredos e o maior segredo que guardava era sobre si mesma. Ninguém nem mesmo sabia qual era seu dom.
– Outro mistério – falou Lazlo, e então conversaram sobre deuses e dons, andando pelo rio. Sarai chutou a superfície e observou as gotas que voavam e formavam arco-íris efêmeros. Eles apontaram para os cisnes, que antes eram idênticos e agora eram estranhos – um com presas e feito de ágata e musgo, outro parecendo folheado a ouro. Um tinha até mesmo se transformado em um svytagor. Ele submergiu e desapareceu sob a água verde opaca. Sarai contou a Lazlo alguns dos melhores dons que aprendeu com Grande Ellen, e citou, entre eles, uma garota que podia fazer as plantas crescerem e um garoto que podia trazer a chuva. Seu próprio dom, se a mahalath tinha lhe dado um, continuava um mistério.
– Mas e quanto a você? – ele quis saber, pausando para colher uma flor que havia acabado de desejar que crescesse. Era uma flor exótica que vira na vitrine de uma floricultura e ele teria ficado constrangido de saber que ela era chamada de flor da paixão. Ele a ofereceu a Sarai. – Se você fosse humana, teria que abandonar seu dom, não?
Lazlo não tinha como saber a maldição que era o dom dela, ou o que o uso do dom havia causado à garota e a Lamento.
– Imagino que sim – respondeu, cheirando a flor, que tinha aroma de chuva.
– Mas então você não poderia estar aqui comigo.
Era verdade. Se fosse humana, Sarai não poderia estar no sonho de Lazlo com ele. Mas... poderia estar no quarto com ele. Um calor explodiu dentro de si, e não era de vergonha nem de constrangimento. Era uma espécie de desejo, mas não do coração. Era um desejo da pele. De ser tocada. Era o desejo dos membros. De se entrelaçarem. Estava centrado em seu abdômen, no lugar de sua nova elilith, e ela passou os dedos sobre a tatuagem novamente e estremeceu. Na cidadela, andando de um lado para o outro, seu corpo verdadeiro estremeceu também.
– É um sacrifício que eu estaria disposta a fazer – explicou.
Lazlo não podia imaginar isso, que uma deusa estivesse disposta a abrir mão de sua magia. Contudo, não era apenas a magia. Ele achava que ela seria bela em qualquer cor, mas percebeu que sentia falta do tom raro de sua pele.
– Você não gostaria de mudar de verdade, não é? – ele persistiu. – Se isso fosse real e você tivesse escolha.
Será que não? Por que outro motivo seu inconsciente – sua mahalath interna – havia escolhido essa transformação?
– Se isso significasse ter uma vida? Sim, eu gostaria.
Ele ficou intrigado.
– Mas você já está viva. – Ele sentiu uma pontada súbita de medo. – Você está, não? Você não é um fantasma como os outros...
– Não sou um fantasma – afirmou Sarai, para alívio dele –, mas sou filha dos deuses e você deve saber que existe uma diferença entre estar viva e ter uma vida.
Lazlo entendia isso. Pelo menos, achou que entendia. Refletiu sobre de alguma forma ser comparável a um órfão no Mosteiro de Zemonan: vivo, mas não vivendo a vida. E como havia encontrado seu caminho de um estado para outro e tinha até mesmo visto seu sonho tornar-se realidade, sentiu ter uma certa qualificação no assunto. Mas não entendia uma peça crucial do quebra-cabeça. Uma peça crucial e sangrenta do quebra-cabeça. Sensato e cordial, ele simpatizou com ela.
– Não deve ser uma vida ficar presa lá em cima. Mas agora que sabemos de você, podemos tirá-la de lá.
– Tirar-me de lá? O quê, para Lamento? – Houve uma mudança repentina de uma surpresa incrédula na voz de Sarai e, enquanto ela falava, reverteu-se à sua cor normal, a pele ficou azul novamente. Lá se foi ser humana, ela pensou. A dura verdade não tolera a imaginação. Como se a sua reversão tivesse dado um fim à fantasia, Lazlo também reverteu-se e era ele mesmo de novo. Sarai ficou quase chateada. Enquanto o garoto tinha a aparência azul, ela quase podia acreditar que havia uma conexão entre os dois. Ela não havia se perguntado, ansiosamente, um pouco antes, se esse sonhador poderia ajudá-la? Poderia salvá-la? Ele não fazia ideia.
– Você entende – explicou, com uma severidade inadequada – que eles me matariam assim que me vissem?
– Quem mataria?
– Qualquer um.
– Não – ele balançou a cabeça, sem querer acreditar. – Eles são pessoas boas. Será uma surpresa, sim, mas não poderiam odiá-la apenas por causa do que seus pais eram.
Sarai parou de andar.
– Você acha que pessoas boas não podem odiar? Você acha que pessoas boas não matam? – Sua respiração acelerou, e ela percebeu que havia esmagado a flor de Lazlo na mão. Ela derrubou as pétalas na água. – Pessoas boas fazem todas as coisas que pessoas más fazem, Lazlo. Só que quando elas fazem, chamam de justiça. – Pausou. Sua voz ficou mais pesada. – Quando eles mataram trinta bebês em seus berços, chamaram isso de necessário.
Lazlo a encarou. Balançou a cabeça, descrente.
– Sabe aquele choque que você viu no rosto de Eril-Fane? – ela continuou. – Não foi porque ele não sabia que tinha uma filha. – Ela inspirou. – Foi porque ele achava que tinha me matado quinze anos atrás. – Sua voz embargou no fim. Engoliu em seco e sentiu, de repente, como se sua cabeça inteira estivesse repleta de lágrimas e se não derramasse algumas, ela explodiria. – Quando ele matou todos os filhos dos deuses, Lazlo – ela acrescentou, e chorou.
Não no sonho, não onde Lazlo pudesse ver, mas em seu quarto, escondida. Lágrimas cobriram suas bochechas da mesma forma que as chuvas de monções cobriam os contornos da cidadela no verão, entrando por todas as portas abertas, um dilúvio de chuva pelo chão liso e não havia nada a fazer a não ser esperar que ela parasse.
Eril-Fane sabia que um dos bebês no berçário era dele, mas não sabia qual. Ele tinha visto a barriga de Isagol crescer com seu filho, é claro, mas depois que a mulher dera à luz, nunca mais o mencionara. Ele perguntou e ela deu de ombros. Ela tinha cumprido o seu dever; depois disso, era problema do berçário. Isagol não sabia nem mesmo se era um menino ou uma menina; não lhe significava nada. E quando ele entrou, ensopado de sangue, no berçário e olhou em volta para os bebês e crianças azuis em comoção, teve medo de ver e saber: ali. Aquele é meu.
Se ele tivesse visto Sarai, com cabelos cor de canela como os da mãe, teria sabido em um instante, mas não a vira porque ela não estava lá, embora não soubesse. Achava que o cabelo dela era escuro como o seu, como o do resto dos bebês. Eles eram um borrão de azul, sangue e gritos.
Todos inocentes. Todos amaldiçoados.
Todos mortos.
Os olhos de Lazlo estavam secos, mas abertos e sem piscar. Bebês. Sua mente rejeitou isso, muito embora, sob a superfície, peças de quebra-cabeça estivessem se juntando. Todo o pavor e a vergonha que ele tinha visto em Eril-Fane. Tudo na reunião com os Zeyyadin, e... e a forma com que Maldagha pôs as mãos na barriga. Suheyla também. Era um gesto maternal. Como ele tinha sido estúpido em não entender, mas como ele poderia, quando passou a vida inteira com homens velhos? Todas as coisas que não faziam sentido tinham mudado o suficiente de posição, e era como inclinar o ângulo do sol de forma que, em vez de olhar por uma janela e cegar-se, ele passava por ela para iluminar tudo o que estava dentro.
Ele sabia que Sarai estava falando a verdade.
Um grande homem e também um homem bom. Era isso que tinha pensado? Mas o homem que matou deuses também matara bebês, e Lazlo entendia agora o que ele temia encontrar na cidadela. “Alguns de nós sabemos melhor do que os outros o... estado... em que a deixamos”, ele dissera. Não os esqueletos de deuses, mas de crianças. Lazlo encurvou-se, sentindo-se mal. Pressionou a palma da mão com firmeza na testa. O vilarejo e os cisnes monstruosos desapareceram. O rio não estava mais lá. Tudo sumiu em um piscar de olhos e Lazlo e Sarai encontraram-se em seu quarto – o quarto do Matador de Deuses. O corpo adormecido de Lazlo não estava esticado na cama. Essa era mais uma paisagem do sonho, pois dormia no quarto e, no sonho, estava em pé no cômodo. Na realidade, uma mariposa estava pousada em sua testa no quarto e, no sonho, a Musa dos Pesadelos estava a seu lado.
A Musa dos Pesadelos, Sarai pensou. Mais do que nunca. Ela tinha, afinal, levado o pesadelo para esse sonhador em quem vinha procurando refúgio. Em seu sono, ele murmurou: “não”, com olhos e punhos bem fechados. A respiração era rápida, assim como a pulsação. Todos os indícios de pesadelo, que Sarai bem conhecia. Tudo o que ela fez foi dizer a verdade, não havia sequer lhe mostrado a verdade. Brilho de faca e sangue espalhado, e todos os corpinhos azuis. Nada a induziria a arrastar aquela memória repulsiva à bela mente dele.
– Sinto muito – ela disse.
Na cidadela, ela soluçou. Ela jamais poderia estar livre da ferida. Sua própria mente seria sempre um túmulo aberto.
– Por que você se desculpa? – Lazlo indagou. Havia doçura em sua voz, mas a vivacidade a tinha deixado. Ela tinha ficado sem brilho, como uma velha moeda. – Você é a última pessoa que devia se sentir culpada. Ele deveria ser um herói! Ele me deixou acreditar nisso. Mas que tipo de herói poderia fazer... isso?
Em Quedavento, o “herói” em questão estava deitado no chão, imóvel como se dormisse, mas seus olhos estavam abertos no escuro, e Sarai pensou novamente que ele era uma ruína tanto quanto era homem. Eril-Fane era, ela pensou, como um templo amaldiçoado: ainda belo de se olhar – a carapaça de algo sagrado –, mas incivilizado por dentro e ninguém, exceto fantasmas, podia cruzar seu limiar.
“Que tipo de herói?”, Lazlo perguntara. Que tipo, de fato. Sarai nunca tinha se deixado erguer em sua defesa. Era impensável, como se os corpos fossem uma barreira entre ela e o perdão. Entretanto, e sem muito saber o que ia dizer, contou a Lazlo, em voz suave:
– Por três anos, Isagol fez com que ele a amasse. Quer dizer... ela não inspirava amor, nem sequer se esforçava para ser digna dele. Ela apenas alcançou sua mente... ou seus corações, ou sua alma... e tocou a nota que o faria amá-la contra tudo o que havia nele. Ela era uma coisa muito sombria. – A garota estremeceu ao pensar que havia saído do corpo dessa coisa tão sombria. – Ela não tirou as emoções conflitantes de Eril-Fane, embora pudesse ter feito isso. Isagol não fez com que ele não a odiasse e deixou o ódio lá, ao lado do amor, pois achava engraçado. E não era... Não era aversão ao lado de luxúria, ou algumas versões triviais de ódio e amor. Veja, era ódio. – Ela colocou tudo o que conhecia de ódio em sua voz, e não seu próprio ódio, mas o de Eril-Fane e do restante das vítimas dos Mesarthim.
– Foi o ódio dos usados e atormentados, que são os filhos dos usados e atormentados, e cujos filhos seriam usados e atormentados. E isso era amor – ela continuou, e colocou tudo aquilo em sua voz também, da forma que foi capaz. Amor que acende a alma como a primavera e a torna madura como o verão. Amor como raramente existe na realidade, como se um mestre alquimista o tivesse pegado e destilado de todas as impurezas, de cada desencanto mesquinho, de cada pensamento vil, em um elixir perfeito, doce, profundo e que tudo consome. – Ele a amava tanto – ela sussurrou. – Era tudo uma mentira. Era uma violação. Mas não importava, porque quando Isagol fazia você sentir alguma coisa, isso se tornava real. Ele a odiava. E a amava. E a matou.
A garota sentou-se na beirada da cama de Lazlo e deixou seu olhar vagar pelas paredes familiares. Memórias que podem ser presas dentro de um quarto, e esse quarto ainda tinha todos os anos em que havia chegado a essa janela, cheia de maldade justificada. Lazlo sentou-se ao lado dela.
– O ódio venceu – ela falou. – Isagol deixou-o lá para se divertir, e por três anos ele lutou uma guerra dentro de si. A única forma de vencer era seu ódio superar aquele amor perfeito, falso e vil. E isso aconteceu. – Ela cerrou os dentes e lançou um olhar para Lazlo. A história não era dela para contar, mas achava que ele precisava saber. – Depois Skathis levou Azareen para a cidadela.
Lazlo já conhecia um pouco da história. “Eles a pegaram depois”, Suheyla havia dito. Sarai sabia de tudo. Só ela sabia da aliança fosca de prata que Azareen colocava no dedo toda noite e tirava logo de manhã. A história de amor deles não foi a única terminada pelos deuses, mas era a única que terminara com os deuses.
Eril-Fane tinha sido levado havia mais de dois anos na época em que Skathis levou Azareen, e talvez ela tenha sido a primeira garota em Lamento que estava feliz em montar no monstro Rasalas e voar até a sua própria escravidão. Pelo menos ela saberia se seu marido ainda estava vivo.
Ele estava. E Azareen aprendeu como era possível estar feliz e devastada ao mesmo tempo. Ela ouviu sua risada antes de ver seu rosto – a risada de Eril-Fane, naquele lugar, tão viva quanto já ouvira – e fugiu do guarda para correr em sua direção, derrapando em uma esquina do corredor liso de metal até avistá-lo, olhando para Isagol, a Terrível, com amor.
Ela sabia o que era aquilo, pois ele a olhara daquele jeito também. Não era fingido, era verdadeiro e, então, depois de mais de dois anos perguntando-se o que acontecera com ele, Azareen descobriu. Além do sofrimento de servir ao “propósito” dos deuses, era seu destino ver o próprio marido amar a deusa do desespero.
E quanto a Eril-Fane, era seu destino ver sua noiva levada pelo sinistro corredor – porta após porta de quartos pequenos com nada dentro, exceto camas. E, por fim, o cálculo de Isagol falhou. O amor não era comparável ao que ardeu em Eril-Fane quando ele ouviu os primeiros gritos de Azareen.
– O ódio foi o triunfo dele – Sarai disse a Lazlo. – Foi quem ele se tornou para salvar sua esposa e todo o seu povo. Tanto sangue em suas mãos, tanto ódio em seus corações. Os deuses tinham criado seu próprio fim. – Ela permaneceu sentada, muda por um momento, e sentiu um vazio onde durante anos seu próprio ódio estivera. Havia apenas uma tristeza terrível agora. – E depois que foram assassinados e todos os escravos foram libertados – explicou, com peso na voz – ainda havia o berçário e um futuro cheio de magia terrível e imponderável.
As lágrimas que até então tinham fluido apenas no rosto real de Sarai deslizaram pelo rosto do sonho também. Lazlo pegou as mãos dela e segurou-as nas suas.
– É uma violência que nunca poderá ser perdoada – suspirou com a voz rouca de emoção. – Algumas coisas são terríveis demais para perdoar. Mas eu acho... Acho que posso entender o que sentiram aquele dia, e o que enfrentaram. O que deviam fazer com crianças que cresceriam para se tornar uma nova geração de torturadores?
Lazlo vacilou com o horror de tudo aquilo e com a sensação inacreditável de que, afinal, sua própria infância tinha sido misericordiosa.
– Mas... se eles tivessem sido acolhidos e criados com amor, não se tornariam torturadores – ele disse.
Soava tão simples, tão claro. Mas o que os humanos sabiam dos poderes dos Mesarthim exceto que podiam ser usados para punir e oprimir, aterrorizar e controlar? Como podiam ter imaginado uma Pardal ou um Feral quando tudo o que conheciam eram Skathis e Isagol e seus iguais? Será que alguém poderia voltar no tempo e esperar que eles fossem tão misericordiosos quanto era possível quinze anos depois com uma mente e um corpo não violados pelos deuses?
A empatia de Sarai deixou-a nauseada. Ela disse que jamais perdoaria, mas parecia que já havia perdoado, e corou com um assombro confuso. Uma coisa era não odiar, e outra perdoar. Ela disse a Lazlo:
– Eu me sinto um pouco como ele às vezes, amando e odiando ao mesmo tempo. Não é fácil ter um paradoxo no cerne de nós mesmos.
– O que você quer dizer? Que paradoxo? Ser humana e cria... – Lazlo não conseguiu dizer cria de deuses, mesmo que ela se chamasse assim. – Humana e Mesarthim?
– Tem isso também, mas não. Quero dizer a maldição do conhecimento. Era fácil quando nós éramos as únicas vítimas. – Nós. Ela fitava suas mãos, ainda unidas, as dela fechadas dentro das dele, mas levantou o olhar e não voltou atrás quanto ao pronome. – Somos em cinco – admitiu. – E para os outros há apenas uma verdade: o Massacre. Mas por causa do meu dom, ou maldição, aprendi como tudo isso foi para os humanos, antes e depois. Conheço o íntimo de suas mentes, por que eles fizeram isso e como isso os mudou. E então quando vejo uma memória daqueles bebês sendo... – As palavras sufocaram-se em um soluço. – Sei que aquele era o meu destino também, sinto a mesma raiva que sempre senti, mas agora há... Há indignação também, por aqueles jovens, homens e mulheres, que foram retirados de seus lares para servir ao propósito dos deuses, e desolação pelo que isso fez a eles, e culpa... pelo que eu fiz a eles.
Ela chorou, e Lazlo puxou-a para um abraço, como se fosse a coisa mais natural do mundo que ele puxasse uma deusa triste para seu ombro, enlaçasse-a nos braços, respirasse o perfume das flores em seus cabelos e até acariciasse levemente sua têmpora com a ponta do polegar. E embora houvesse uma camada de sua mente que soubesse que aquilo era um sonho, ela foi momentaneamente encoberta por outras camadas, mais atrativas, e ele vivenciou o momento como se fosse absolutamente real. Toda a emoção, toda a sensação. A textura da pele, o perfume dos cabelos, o calor da respiração contra sua camisa branca e até a umidade das lágrimas passando por ela. Mas bem mais intenso era o carinho absoluto e inefável que ele sentia, e a solenidade. Como se ele tivesse sido encarregado de algo infinitamente precioso. Como se tivesse feito um juramento e sua própria vida fosse a garantia. Lazlo reconheceria esse instante mais tarde como o momento em que seu centro de gravidade mudou: de ser apenas um – um pilar sozinho, separado – para se tornar metade de alguma coisa que cairia se qualquer um dos lados fosse cortado.
Três medos o atormentavam em sua antiga vida. O primeiro: que ele nunca visse prova da magia. O segundo: que ele nunca descobrisse o que tinha acontecido em Lamento. Esses medos tinham desaparecido; prova e respostas descortinavam-se minuto a minuto. E o terceiro? Que ele sempre seria sozinho?
Ele não entendia ainda – pelo menos não conscientemente –, mas não estava mais sozinho, e tinha um novo conjunto de temores a descobrir: aqueles que vinham com o fato de gostar de alguém que provavelmente se pode perder.
– Sarai – Sarai. O nome dela era como caligrafia e mel. – O que você quer dizer? – ele perguntou, gentilmente. – O que você fez a eles?
E Sarai, permanecendo como estava, com o rosto enfiado no ombro de Lazlo, a testa descansando contra o queixo dele, contou-lhe quem era e o que havia feito e até... Embora sua voz tenha ficado fina como papel... Como ela fazia as coisas, mariposas e tudo mais. E quando ela terminou de contar e estava tensa dentro de seus braços, esperou para ver o que ele ia dizer. Diferentemente dele, ela não conseguia esquecer que aquilo era um sonho. Estava fora e dentro dele ao mesmo tempo. E embora não ousasse fitá-lo enquanto contava-lhe a verdade, sua mariposa observava o rosto adormecido em busca de qualquer expressão que pudesse indicar aversão.
Não houve nenhuma.
Lazlo não estava pensando sobre as mariposas – embora tenha se lembrado daquela que havia caído morta de sua fronte na primeira manhã que acordou em Lamento. O que de fato o capturou foi a implicação dos pesadelos. Isso explicava tanto. Parecia como se o medo fosse uma coisa viva ali, porque era. Sarai o mantinha vivo. Ela cuidava dele como de uma fogueira e certificava-se de que ele nunca se apagasse.
Se houvesse uma deusa assim em um livro de velhas histórias, ela seria a vilã, atormentando os inocentes de seu alto castelo. As pessoas de Lamento eram inocentes – a maioria delas – e ela as atormentava, mas... que escolha ela tinha? A garota herdara uma história que estava repleta de cadáveres e coagulada de inimizade, e estava apenas tentando permanecer viva dentro dela. Lazlo sentiu muitas coisas por ela naquele momento, sentindo a tensão de Sarai enquanto a segurava, e nenhuma delas era aversão.
Ele estava enfeitiçado e ao seu lado. Quando se tratava de Sarai, até os pesadelos pareciam magia.
– A Musa dos Pesadelos – ele disse. – Soa como um poema.
Um poema? Sarai não detectou nenhum escárnio na voz de Lazlo, mas teve de analisá-lo para confirmar, então se sentou ereta e desfez o abraço. Com pesar, ela o fez. Não viu nenhuma zombaria, apenas... Encantamento, ainda encantamento, e ela quis viver nele para sempre.
Sarai perguntou com um sussurro hesitante:
– Você ainda acha que sou um... demônio singularmente formidável?
– Não – respondeu, sorrindo. – Acho que você é um conto de fadas.
Acho que você é mágica, e corajosa, e única. E... – sua voz ficou acanhada. Apenas em um sonho ele poderia ser tão destemido e dizer aquelas palavras. – Espero que você me deixe participar da sua história.
44
UMA SUGESTÃO EXTRAORDINÁRIA
Um poema? Um conto de fadas? Era mesmo assim que ele a via? Agitada, Sarai levantou-se e foi à janela. Não era só sua barriga que sentia um alvoroço como o de asas leves e selvagens, mas seu peito, onde estavam seus corações, e até sua cabeça. Sim, ela queria responder com um prazer tímido. Por favor, faça parte da minha história.
Mas não falou. Observou a noite, a cidadela no céu, e perguntou:
– Será que haverá uma história? Como pode haver?
Lazlo juntou-se a ela na janela.
– Nós encontraremos um jeito. Vou falar com Eril-Fane amanhã. O que quer que ele tenha feito na época, deve querer reparar isso. Não posso acreditar que ele queira machucá-la. Afinal, não contou a ninguém o que aconteceu. Você não viu como ele ficou depois, como ele estava...
– Devastado? – completou Sarai. – Eu o vi depois. Estou observando-o agora. Ele está no chão da sala de estar de Azareen.
– Oh – soltou Lazlo. Era algo que ele não conseguia entender, como ela podia ter tantos olhos no mundo de uma vez só. E Eril-Fane no chão de Azareen, isso também exigia que ele se acostumasse. Eles viviam juntos? Suheyla havia dito que não era mais um casamento, o que quer que existisse entre os dois. Até onde ele sabia, Eril-Fane ainda morava ali.
– Ele deve voltar para casa – disse ele. – Eu posso dormir no chão. Este é o seu quarto, afinal.
– Não é um lugar bom para ele – ela explicou, olhando para o nada pela janela. Seus dentes cerraram-se. Lazlo viu o músculo da face dela se mexer. – Ele teve muitos pesadelos neste quarto. Muitos foram dele mesmo, mas... fui responsável por vários.
Lazlo balançou a cabeça, maravilhado.
– Sabe, achei que fosse tolice, que ele estava se escondendo de seus pesadelos. Mas ele estava certo.
– Eril-Fane estava se escondendo de mim, mesmo que não soubesse. – Uma grande onda de cansaço tomou conta de Sarai. Com um suspiro, fechou os olhos e encostou-se na janela. Estava com a cabeça tão leve quanto estava com os membros pesados. O que faria assim que o sol se levantasse e não pudesse mais ficar ali, na segurança do sonho de Lazlo?
Ela abriu os olhos e o observou.
No quarto de verdade, sua mariposa avaliou o Lazlo real, o relaxamento em seu rosto e os longos membros, soltos no sono. O que ela não daria por um sono descansado assim, sem mencionar o grau de controle que ele tinha dentro dos sonhos. Ela considerou isso.
– Como você fez isso tudo? – ela perguntou. – A mahalath, o chá, tudo isso? Como você molda seus sonhos com tanta intenção?
– Não sei – respondeu. – É novo para mim. Quer dizer, eu tinha alguma lucidez nos sonhos antes, mas não essa previsibilidade, e nunca desse jeito. Só desde que você apareceu.
– Sério? – Sarai ficou surpresa. – Me pergunto por quê.
– Não é assim com os outros sonhadores?
Ela deixou escapar uma risada suave.
– Lazlo, não é nada parecido com os outros sonhadores. Para começar, eles não conseguem nem me ver.
– O que você quer dizer, eles não podem te ver?
– Apenas isso. É por isso que apareci e o encarei daquela primeira vez, sem nenhum pudor. – Ela franziu o nariz, constrangida. – Porque nunca imaginei que você seria capaz de me ver. Com os outros sonhadores, posso gritar bem na frente de seus rostos e eles nunca perceberão. Acredite, eu já tentei. Posso fazer qualquer coisa num sonho, exceto existir.
– Mas... por que isso é assim? Que condição bizarra para o seu dom.
– Uma condição bizarra para um dom bizarro, então. Grande Ellen, a nossa babá fantasma, nunca viu um dom como o meu em todos os seus anos de berçário.
A ruga entre as sobrancelhas de Lazlo – aquela nova que o sol do Elmuthaleth tinha feito nele – aprofundou-se. Quando Sarai falou do berçário, e dos bebês, e dos dons – anos deles – perguntas fizeram fila em sua mente. Mais mistérios de Lamento; quão infindáveis eles eram? Mas havia um mistério mais pessoal que o confrontava.
– Mas por que eu sou capaz de vê-la se ninguém mais consegue?
Sarai deu de ombros, tão perplexa quanto ele.
– Você diz que o chamam de Estranho, o sonhador. Claramente você é melhor em sonhos do que as outras pessoas.
– Oh, claramente – concordou, zombando de si mesmo e um tanto satisfeito. Bastante satisfeito, enquanto assimilava a ideia. Todo esse tempo, desde o momento em que Sarai apareceu à margem do rio e enfiou seus dedos do pé na lama, a noite inteira tinha sido tão extraordinária que ele se sentia... efervescente. Mas quão mais extraordinária ela era, agora que ele sabia como tudo era recíproco.
Contudo, a garota não parecia efervescente, para ser honesto. Ela parecia... cansada.
– Você está acordada agora? – ele quis saber, ainda tentando entender como aquilo funcionava. – Lá na cidadela, quero dizer.
Ela assentiu. Seu corpo estava no quarto. Mesmo naquele espaço confinado, caminhava de um lado para o outro – como um ravide enjaulado, pensou – com apenas um sussurro de sua atenção para guiá-la. Ela sentiu uma pontada de simpatia, abandonada não só por seus iguais, mas por si mesma, deixada vazia e sozinha enquanto ela estava lá, derramando suas lágrimas no peito de um estranho.
Não, não um estranho. O único que a via.
– Então, quando acordo – ele continuou – e a cidade acorda, você vai dormir?
Sarai sentiu um acorde de medo ao pensar em cair no sono.
– É a prática habitual, mas o “habitual” está morto e enterrado.
Ela respirou fundo e soltou o ar. Contou-lhe sobre o lull, como a bebida não funcionava mais e, consequentemente, assim que sua consciência relaxava, era como se as portas para as jaulas de seus medos cativos se abrissem.
E, enquanto a maioria das pessoas pode ter poucos terrores matraqueando em suas jaulas, ela tinha... todos eles.
– Fiz isso comigo mesma. Eu era tão nova quando comecei, e ninguém nunca me falou para considerar as consequências. É claro, parece tão óbvio agora.
– Mas você não consegue simplesmente bani-los? – ele quis saber. – Ou transformá-los?
Ela balançou a cabeça.
– Nos sonhos dos outros tenho o controle, mas, quando durmo, sou impotente, como qualquer sonhador – explicou e observou-o calmamente. – Exceto você. Você não é como qualquer sonhador.
– Sarai – disse Lazlo. Ele viu como ela abandonou seu peso contra a janela, e estendeu o braço para apoiá-la. – Faz quanto tempo que você não dorme?
Ela mal sabia.
– Quatro dias? Não tenho certeza. – Ao ver o olhar assustado dele, ela forçou um sorriso. – Durmo um pouco – completou – entre os pesadelos.
– Mas isso é loucura. Você sabe que pode morrer por privação de sono?
A risada que ela deu em resposta foi austera.
– Eu não sabia disso, não. Você por acaso não sabe quanto tempo leva, sabe? Para que eu possa planejar meu dia? – Ela quis fazer uma piada, mas havia um quê de desespero na pergunta.
– Não – falou Lazlo, sentindo-se impotente. Que situação impossível. Ela estava lá em cima sozinha, ele estava lá embaixo sozinho e, ainda assim, de certa forma, estavam juntos. Ela estava dentro de seu sonho, compartilhando-o. Se ele tivesse aquele dom, pensou, poderia entrar nos seus sonhos e ajudá-la a suportá-los? O que isso significaria? Que terrores ela enfrentava? Lutar com ravides, testemunhar o Massacre o tempo todo? O que quer que fosse, a ideia de ela enfrentá-los sozinha o devastava.
Uma ideia lhe ocorreu. Ela pareceu pousar tão de leve quanto uma mariposa.
– Sarai – ele perguntou, especulativo. – O que aconteceria se você dormisse agora mesmo?
Seus olhos arregalaram-se um pouco.
– O que, você quer dizer aqui? – Ela olhou para a cama.
– Não – respondeu rapidamente, com o rosto esquentando. Em sua cabeça estava claro: ele queria lhe dar um refúgio dos pesadelos, queria ser um refúgio deles. – Quero dizer, se você mantivesse sua mariposa onde ela está, em mim, mas caísse no sono lá, você poderia... você acha que talvez pudesse ficar aqui? Comigo?
Quando Sarai ficou em silêncio, ele ficou com medo de ter ido muito longe com a sugestão. Ele não estava, de certa forma, convidando-a para... passar a noite com ele?
– Só quero dizer – ele apressou-se a explicar – que se você tem medo dos seus próprios sonhos, é bem-vinda aqui no meu.
Um leve frisson de arrepios desceu pelos braços de Sarai. Ela não estava em silêncio porque estivesse ofendida ou desanimada. Ao contrário. Ela estava desarmada. Ela era desejada. Lazlo não sabia sobre as noites que ela tinha invadido sem seu convite, enfiando um pedacinho de sua mente em um canto da dele, para que o encantamento e prazer disso pudesse ajudá-la a suportar... todo o resto. Ela precisava de descanso, muito, e embora tivesse brincado com ele sobre morrer de privação de sono, ela estava, de fato, com medo.
A ideia de que pudesse ficar ali, ficar em segurança ali – com ele – era como uma janela se abrindo, luz e ar entrando. Mas medo, também. Medo da esperança, porque no instante que ela entendeu o que ele estava propondo, Sarai quis tanto que isso funcionasse. E quando foi que ela conseguiu o que desejava?
– Nunca tentei antes – respondeu, esforçando-se para manter a voz neutra. Ela estava com medo de deixar transparecer o seu desejo, no caso de que isso não desse em nada. – Cair no sono pode cortar a ligação e soltar a mariposa.
– Você quer tentar? – perguntou Lazlo, tentando fingir que não estava esperançoso.
– Não deve haver muito tempo antes do nascer do sol.
– Não muito – ele concordou –, mas um pouco.
Ela teve outro pensamento. Estava procurando pontos fracos na ideia, e com medo de encontrá-los.
– E se funcionar, mas meus terrores vierem junto?
Lazlo deu de ombros.
– Nós os afastaremos, ou os transformaremos em vaga-lumes e os prenderemos em potes de vidro. – Ele não estava com medo. Quer dizer. Ele estava apenas com medo de que não funcionasse. Eles podiam enfrentar qualquer outra coisa, juntos. – O que você me diz?
Por um momento, Sarai não confiou na própria voz. Por mais casuais que eles se esforçassem para ser, ambos sentiam algo significativo tomar forma entre eles, e – embora ela não tivesse questionado as intenções dele nem por um minuto – algo íntimo, também. Dormir dentro do sonho dele, quando ela não tinha nem mesmo certeza de que saberia que era um sonho. Onde ela talvez não tivesse controle...
– E se funcionar – ela sussurrou – e eu ficar impotente?
Ela hesitou, mas ele compreendeu.
– Você confia em mim? – ele perguntou.
Isso não era nem uma questão. Ela sentia-se mais segura ali do que em qualquer outro lugar. E, de qualquer forma, perguntou a si mesma, qual risco real havia nisso? É apenas um sonho, ela respondeu, embora, é claro, fosse muito mais.
Ela olhou para Lazlo, mordeu o lábio e rendeu-se, e disse:
– Tudo bem.
45
ESTRANHO AZOTH
No laboratório alquímico improvisado no sótão sem janelas do crematório, uma pequena chama azul tocava a base de vidro curva de um frasco suspenso. O líquido aqueceu-se e mudou de estado, subindo como vapor por meio da coluna de destilação para ir parar no condensador e derramar-se em gotas no frasco de coleta.
O afilhado dourado recuperou-o e segurou-o em frente a uma glave para examiná-lo.
Fluido claro. Poderia ser água, mas não era. Era azoth, uma substância ainda mais preciosa do que o ouro que produzia, porque, diferentemente do ouro, ela tinha múltiplas e maravilhosas aplicações e uma única fonte em todo o mundo: ele mesmo – pelo menos enquanto seu componente fundamental permanecesse secreto.
Um frasco pousava vazio sobre a mesa de trabalho. O rótulo dizia ESPÍRITO DE BIBLIOTECÁRIO, e Thyon sentiu uma fisgada de... repugnância? Ali estava a essência vital do camponês órfão sem nome que tinha o hábito imperdoável de ajudá-lo sem motivo, enquanto permanecia sem malícia, como se fosse uma coisa normal de se fazer.
Talvez fosse repugnância. Thyon empurrou o frasco vazio para o lado abrindo espaço para o próximo procedimento. Ou talvez fosse desconforto. O mundo todo o via da forma que ele queria ser visto: como uma força incontestável, completo e em total comando dos mistérios do universo.
Exceto por Estranho, que sabia quem, de fato, ele era. Ele cerrou os dentes. Se ao menos, pensou, Lazlo tivesse a cortesia de... deixar de existir... então talvez pudesse lhe ser grato. Mas não enquanto estava lá, sempre lá, uma presença benigna rindo com os guerreiros ou fazendo, alegremente, o que precisava ser feito. Ele até criou o hábito de ajudar o cozinheiro da caravana a esfregar a grande panela de sopa com areia. O que ele estava tentando provar?
Thyon balançou a cabeça. Ele sabia a resposta, só não a entendia. Lazlo não estava tentando provar nada. Nada era estratégico com ele. Nada era fingimento. Estranho era apenas Estranho e oferecia seu espírito sem querer nada em troca. Thyon era grato, mesmo que fosse ressentido em igual – ou maior – medida. Ele tinha retirado demais de seu próprio espírito, e aquele era um jogo perigoso. A brincadeira de Lazlo de que aquilo lhe deixaria feio não tinha errado o alvo, mas aquela não era sua única preocupação. Ele vira os mortos de espírito. A maioria não durava muito, ou tirava sua própria vida ou desperdiçava-a pela falta de vontade até mesmo para comer. A vontade de viver, ao que parece, existia naquele fluido claro e misterioso que Estranho tinha lhe dado sem pensar duas vezes.
E Thyon estava bastante restaurado, graças à pausa. Fazia uma nova tentativa com o alkahest, usando o azoth de Estranho dessa vez. Normalmente, sentia uma onda de vivacidade nessa parte de um procedimento químico – a emoção de criar algo que ninguém mais podia, e alterar a própria estrutura da natureza. O alkahest era um solvente universal, que fazia jus ao nome, e nunca o tinha deixado na mão antes. Ele o testou incansavelmente quando estava no Chrysopoesium, e tinha dissolvido todas as substâncias com as quais entrava em contato, até mesmo o diamante.
Mas não o mesarthium. O metal abominável o assustava por sua natureza e já sentia a ignomínia da derrota. Mas o método científico era a religião de Thyon e ditava a repetição dos experimentos – até dos fracassos. Então preparou uma nova leva de químicos e levou o alkahest para a âncora norte para testar mais uma vez. Não estava em sua preparação final, é claro, ou dissolveria seu próprio vasilhame. Ele faria a mistura final no último minuto para ativá-lo.
E, então, quando nada acontecesse – como nada aconteceria –, ele aplicaria o componente neutralizador para desativar o solvente para que não escorresse pelo metal impenetrável e corroesse o chão.
Ele tiraria uma soneca depois. Era nisso que ele estava pensando – sono de beleza, seu bastardo Estranho – quando caminhava pela cidade de Lamento, sem lua, com uma mochila de frascos pendurada no ombro. Ele repetiria o experimento e registraria seu fracasso e então iria para a cama.
Não havia nenhum momento, nem mesmo um segundo, em que Thyon Nero considerasse que o experimento pudesse não fracassar.
46
APENAS UM SONHO
Sarai chamou o resto de suas mariposas para casa mais cedo, deixando apenas uma na testa de Lazlo. Ela hesitou apenas em chamar de volta a que cuidava de seu pai.
Enquanto o observava, corrigiu-se. Não cuidava dele. Não era isso que ela estava fazendo.
Ali ela, finalmente, tinha-o encontrado, e não podia nem mesmo olhar dentro de sua mente.
Era um alívio, admitiu por fim desistindo e retirando a mariposa da parede, fazendo-a sair pela janela de volta ao ar. Estava com medo de saber o que encontraria em seus sonhos agora que ele sabia que a filha estava viva. Será que depois de tudo ainda havia alguma capacidade para a esperança nela – de que ele pudesse estar contente por não estar morta?
Ela afastou a ideia. É claro que ele não estaria contente, mas esta noite não precisava saber. Ela deixou-o com seus pensamentos, quaisquer que fossem eles.
A jornada dos telhados até o terraço era longa para os pedacinhos esvoaçantes, as mariposas, e nunca estivera tão impaciente naqueles minutos enquanto os insetos subiam pelas alturas do ar. Quando por fim chegaram e atravessaram a porta do terraço, viu os fantasmas fazendo guarda e lembrou, com um susto, que era uma prisioneira. Quase havia esquecido e não se demorou pensando nisso. A maior parte de sua atenção estava com Lazlo. Ela ainda estava no quarto junto com ele quando, lá em cima em seu quarto, entreabriu os lábios para receber suas mariposas de volta.
Ela virou-se de costas para ele, no sonho, muito embora soubesse que ele não podia ver sua boca real, ou as mariposas desaparecendo dentro dela. As asas roçaram em seus lábios, suaves como o beijo de um fantasma, e tudo o que podia pensar era como a visão disso o teria enojado.
Quem é que gostaria de beijar uma garota que come mariposas?
Eu não as “como”, ela argumentou consigo mesma.
Seus lábios ainda têm gosto de sal e fuligem.
Pare de pensar em beijar.
E então: a experiência incomum de deitar na cama na escuridão – seu corpo real em sua cama real – na quietude de saber que tanto a cidadela quanto a cidade estavam dormindo e com um fio de sua consciência ainda esticado até Lamento. Fazia anos que não se deitava antes de o sol nascer. Assim como Lazlo tinha deitado rígido, enquanto sua ansiedade para dormir mantinha o sono distante, o mesmo aconteceu com Sarai, uma consciência aguçada de seus membros levantando dúvidas breves sobre como ela os arranjava quando não estava pensando neles. Ela alcançou algo como sua posição natural de dormir – deitada de lado, com as mãos sob a face. Seu corpo cansado e mente mais cansada ainda, que tinham parecido, em sua exaustão, afastar-se um do outro como barcos à deriva, fizeram as pazes com as ondas. Contudo, seus corações estavam batendo rápido demais para dormir. Não de pavor, mas de agitação caso aquilo não funcionasse e... de entusiasmo – tão selvagem e suave quanto um caos de asas de mariposa – caso aquilo funcionasse.
No quarto, lá embaixo na cidade, ela ficou em pé diante da janela por um tempo e falou com Lazlo de um jeito novo e tímido, e aquela sensação de iminência não passou. Sarai pensou nos lamentos invejosos de Rubi sobre como ela “podia viver”. Ela nunca havia sentido que aquilo era verdade, mas agora sim.
Era viver, se era um sonho?
Apenas um sonho, lembrou-se, mas as palavras tinham pouco sentido quando os nós do tapete feito à mão sob seus pés imaginários eram mais vívidos do que o travesseiro macio de seda sob sua face real. Quando a companhia desse sonhador a fez sentir-se acordada pela primeira vez, mesmo enquanto tentava dormir. Ela estava ansiosa, parada lá com ele. Sua mente estava inquieta.
– Eu me pergunto se será mais fácil cair no sono se eu não estiver falando.
– É claro – ele respondeu. – Você quer se deitar? – Ele corou com a própria sugestão. Ela também. – Por favor, fique à vontade. Posso te trazer alguma coisa?
– Não, obrigada – respondeu Sarai. E com uma sensação engraçada de repetir a si mesma, deitou-se na cama, da mesma forma que fizera lá em cima. Ficou perto da beirada. Não era uma cama larga. Ela não achou que ele fosse se deitar também, mas deixou espaço suficiente caso ele o fizesse.
Ele ficou perto da janela, e ela o viu fazendo um gesto de colocar as mãos nos bolsos, apenas para descobrir que suas calças não tinham bolsos, e ficando constrangido por um momento antes de se lembrar que aquilo era um sonho. Então os bolsos apareceram, e suas mãos entraram.
Sarai dobrou as mãos mais uma vez sob a face. Essa cama era mais confortável do que a sua. O quarto inteiro era. Ela gostava das paredes de pedra e vigas de madeira que tinham sido construídas por mãos humanas e ferramentas em vez de pela mente de Skathis. Era confortável e agradável também. Era aconchegante. Nada na cidadela era aconchegante, nem mesmo sua alcova atrás do closet, embora chegasse perto. Surpreendeu-a com uma força renovada o fato de ser a cama de seu pai, da mesma forma que a cama na alcova havia sido dele antes de ser dela. Quantas vezes ela o tinha imaginado deitado acordado ali, planejando assassinatos e vingança? Agora, enquanto ela estava deitada ali, pensou nele como um garoto, temendo ser roubado e levado para a cidadela. Se ele tivesse sonhado em ser um herói, ela pensou, como imaginou que seria? Nada do que era, ela tinha certeza. Nada como um templo arruinado onde apenas fantasmas podem entrar.
E então, bem... não foi repentino, exatamente. Em vez disso, Sarai tornou-se consciente de que algo estava levemente diferente, e ela entendeu o que era: ela não estava mais em múltiplos lugares, mas apenas em um. Ela tinha deslocado sua concentração do seu corpo real deitado em sua cama real, e da mariposa na testa de Lazlo. Ela estava apenas ali, e sentiu que era ainda mais real por isso.
Oh. Ela sentou-se, dando-se conta de onde estava. Ela estava ali. Tinha funcionado. O fio que a ligava à mariposa não tinha se rompido. Ela estava dormindo – ah, o descanso abençoado – e em vez de seu inconsciente repleto de terrores à espreita, ela estava a salvo no inconsciente de Lazlo. Ela riu – um pouco incrédula, um pouco nervosa, um pouco contente. Tudo bem, muito contente. Bem, muito nervosa também. Muito tudo. Ela estava dormindo no sonho de Lazlo.
Ele observou-a, com expectativa. Vê-la ali – suas pernas azuis desnudas até os joelhos, enroscadas em seus cobertores amarrotados, e seus cabelos desgrenhados sobre o travesseiro – era uma visão que doía de tão doce. Ele estava bastante consciente de suas mãos, e não era por causa do constrangimento de não saber o que fazer com elas, mas sim por saber o que desejava fazer com elas. Suas palmas formigavam: a necessidade doída de tocá-la. Suas mãos pareciam bem despertas.
– Então? – ele perguntou, ansioso. – Funcionou?
Ela assentiu, abrindo um sorriso largo e maravilhado que ele não pôde deixar de retribuir. Que noite longa e extraordinária tinha sido. Quantas horas tinham se passado desde que ele fechara os olhos, esperando que ela viesse. E agora... de certa forma, ele não conseguia entender, ela estava... bem... era isso, não? Sua mente só pensava nela.
Ele guardava uma deusa em sua mente da mesma forma que alguém pega uma borboleta nas mãos. Mantendo-a segura tempo suficiente para libertá-la.
Livre. Era possível? Ela podia ficar livre um dia?
Sim.
Sim. De certa forma.
– Bem, então – ele disse, sentindo uma amplidão de possibilidades tão imensa quanto os oceanos. – Agora que você está aqui, o que fazemos?
Era uma boa pergunta. Com as infinitas possibilidades do sonho, não era fácil reduzi-las.
– Podemos ir para qualquer lugar – disse Lazlo. – O mar? Podíamos navegar um leviatã, e libertá-lo. Os campos de Thanagost? Generais e lobos soltos e botões de ulola pairando como bolhas vivas. Ou a Espiral de Nuvem. Podíamos subir nela e roubar esmeraldas dos olhos do sarcófago, como Calixte. Você gostaria de se tornar uma ladra de joias, senhorita?
Os olhos de Sarai brilharam.
– Isso parece divertido – disse ela. Tudo soava maravilhoso. – Mas você só mencionou lugares e coisas reais até agora. Sabe do que eu gostaria?
Ela estava sentada sobre os joelhos na cama, com os ombros eretos e as mãos unidas sobre as pernas. Seu sorriso era um espécime brilhante e ela usava a lua no pulso. Lazlo ficou deslumbrado ao vê-la.
– O quê? – ele perguntou. Qualquer coisa, pensou.
– Eu gostaria que os fabricantes de asas viessem para a cidade.
– Os fabricantes de asas – ele repetiu, e em algum lugar dentro dele, como se um zumbido de engrenagens e um ruído de cadeados, um cofre antes insuspeito de satisfação tivesse sido aberto.
– Como você mencionou outro dia... – disse Sarai, delicada em sua postura acanhada e excitação infantil. – Eu gostaria de comprar asas e testá-las e depois disso talvez nós possamos tentar montar em dragões e ver o que é mais divertido.
Lazlo teve de rir. Ficou cheio de satisfação. Ele achou que nunca tivesse rido desse jeito antes, desse novo lugar dentro dele onde tanta satisfação estava esperando em reserva.
– Você acabou de descrever meu dia perfeito – disse ele, e estendeu a mão, e ela pegou-a.
Ela levantou-se e saiu pelo lado da cama, mas quando seus pés tocaram o chão, um grande abalo fez um tum na rua. Um tremor sacudiu o quarto. Gesso choveu do teto, e toda a excitação desapareceu do rosto de Sarai.
– Ó, deuses – ela disse, em um sussurro. – Está acontecendo.
– O que é? O que está acontecendo?
– Os terrores, meus pesadelos. Eles estão aqui.
47
OS TERRORES
– Mostre-me – pediu Lazlo, que não estava com medo. Como dissera antes, se o terror dela se derramasse, eles lidariam com isso juntos.
Mas Sarai balançou a cabeça, selvagem.
– Não. Isso não. Feche as janelas. Corra!
– Mas o que é? – ele perguntou. Ele moveu-se na direção da janela, não para fechá-la, mas para olhar para fora. Mas antes que fizesse isso, a janela fechou-se à sua frente com um ruído forte e o trinco caiu firmemente no lugar. Com as sobrancelhas erguidas, ele voltou-se para Sarai.
– Bem, parece que você não é impotente aqui afinal de contas.
Quando ela o observou confusa, Lazlo apontou para a janela e falou:
– Você fez isso, não eu.
– Eu fiz? – ela perguntou. Ele assentiu. Ela levantou-se, mas não tinha tempo para reunir sua coragem, porque lá de fora o tum veio de novo, mais baixo agora e com tremores mais sutis, e então de novo e de novo, em uma repetição rítmica.
Tum. Tum. Tum.
Sarai afastou-se da janela.
– Ele está vindo – ela disse, tremendo.
Lazlo seguiu-a. Ele pegou em seus ombros, com delicadeza.
– Está tudo bem – respondeu. – Lembre-se, Sarai, é apenas um sonho.
Ela não conseguia sentir a verdade de suas palavras. Tudo o que sentia era a aproximação, o pavor, o pavor que era tão puro como uma destilação do medo quanto qualquer emoção que Isagol tivesse feito. Os corações de Sarai estavam desvairados de medo, e de angústia também. Como ela podia ter empregado isto, inúmeras vezes, nos sonhos dos sonhadores de Lamento? Que tipo de monstro ela era?
Havia sido sua arma mais poderosa, porque era o medo mais potente deles. E agora estava perseguindo-a.
Tum. Tum. Tum.
Grandes passos incansáveis, mais próximos, mais altos.
– Quem é? – perguntou Lazlo, ainda segurando os ombros de Sarai. Seu pânico, ele descobriu, era contagioso. Parecia passar da pele dela para a dele, subindo pelas as mãos e braços em vibrações de medo. – Quem está vindo?
– Shhh! – ela pediu, com os olhos tão arregalados que mostravam um anel completo de branco, e quando ela sussurrou foi como uma respiração moldada em palavras, e não fez nenhum som. – Ele vai te ouvir.
Tum.
Sarai congelou. Não parecia possível que seus olhos se arregalassem ainda mais, mas foi o que aconteceu e, naquele breve momento de silêncio, os passos cessaram – a pausa terrível que todos os lares de Lamento tinham temido por duzentos anos –, o pânico de Sarai suplantou a racionalidade de Lazlo, de forma que os dois estavam nele, vivendo-o, quando as janelas, sem aviso, foram arrancadas das dobradiças em uma confusão de madeira partindo-se e vidro estilhaçando-se. E lá, do lado de fora, estava a criatura cujos passos sacudiam os ossos de Lamento. Não era uma coisa viva, mas movia-se como se fosse, sinuosa como um ravide e brilhante como mercúrio derramado. Era todo de mesarthium, músculo liso esculpido para poder agachar e saltar. O flanco de um grande felino, o pescoço e a corcunda de um touro, asas tão afiadas e terríveis quanto as asas do grande serafim, embora em escala menor. E uma cabeça... uma cabeça que era feita para os pesadelos.
A cabeça era de cadáver.
Era metal, é claro, mas como o relevo nas paredes do quarto de Sarai – os pássaros e lírios tão reais que zombavam dos mestres entalhadores de Lamento –, era praticamente vivo. Ou melhor, praticamente morto. Era uma coisa morta, uma coisa podre, um crânio com a carne se soltando, revelando dentes até a raiz em uma careta de presas, e no lugar dos olhos não havia nada, apenas uma terrível luz que tudo via. Ele tinha chifres grossos como braços, que afinavam até pontas afiadas; e bateu a pata no chão, atirando a cabeça para frente, com um rugido raspando sua garganta de metal.
Era Rasalas, a besta da âncora norte, e não era o verdadeiro monstro. O verdadeiro monstro estava montado nele: Skathis, deus das bestas, mestre do metal, ladrão de filhos e filhas, atormentador de Lamento.
Lazlo tinha apenas o mural grosseiramente desenhado para se orientar, mas viu o deus que havia roubado tanto – não só filhos e filhas, embora esse fosse o cerne sombrio disso. Skathis havia roubado o céu da cidade, e a cidade do mundo. Que poder tremendo e insidioso isso exigiu, e ali estava o deus em pessoa.
Podia-se esperar uma presença para rivalizar a do Matador de Deuses – uma contrapartida sombria à sua luz, como dois reis se afrontando em um tabuleiro.
Mas não. Ele não era nada perto do Matador de Deuses. Mas ali não havia majestade sombria, não havia nenhuma magnificência. Ele era de estatura mediana e o rosto era apenas um rosto. Ele não era o deus-demônio do mito. Exceto pela cor – aquele azul extraordinário – não havia nada de extraordinário nele, a não ser a crueldade em seu semblante. Ele não era nem bonito nem feio, distinguia-se somente pela malícia que ardia nos olhos cinzentos, e aquele sorriso de serpente, traiçoeiro e venenoso.
Mas ele montava em Rasalas, e aquilo mais do que compensava por qualquer falta de grandiosidade divina. A besta como uma extensão de sua própria psique, cada passo e movimento da cabeça eram dele. Cada rugido que ecoava pela garganta de metal era dele tão certamente como se emitido de sua própria garganta. Seus cabelos eram de um castanho-escuro e ele usava uma coroa de mesarthium com formato de uma grinalda de serpentes engolindo o rabo umas das outras. Elas moviam-se em sua fronte em ondas sinuosas e devoradoras, em círculos, incansáveis. Ele vestia um casaco de veludo e pó de diamantes com longas abas esvoaçantes no formato de lâminas de faca, e as botas eram de couro branco de espectral com fivelas de lys.
Era uma coisa amaldiçoada esfolar um espectral e usar sua pele. Aquelas botas podiam quase ser de couro humano, de tão erradas que eram.
Mas nenhum dos detalhes terríveis podiam responder pela pureza do pavor que tomou conta do quarto – por meio do sonho, embora tanto Lazlo quanto Sarai tivessem perdido a noção desse fato, e estivessem à mercê das torrentes do inconsciente. Aquele pavor puro, como Lazlo havia testemunhado inúmeras vezes desde que chegara a Lamento, era um horror coletivo que havia sido construído por dois séculos. Quantos jovens, homens e mulheres, haviam sido levados em todo aquele tempo, e retornado sem memória depois desse momento – esse momento à sua porta ou janela quando o deus chegou chamando. Lazlo pensou em Suheyla, Azareen e Eril-Fane e tantos outros, levados assim, sem mais nem menos, não importava o que suas famílias fizessem para mantê-los em segurança.
Mais uma vez a pergunta surgiu em sua mente: por quê? Todos os meninos e meninas roubados, suas memórias levadas e muito mais do que isso.
O berçário, os bebês. Por quê?
Por um lado, era óbvio, e certamente nada novo. Se houve um dia um conquistador que não extorquiu esse dízimo devastador de seus súditos, ele é desconhecido na história. Os jovens são espólio de guerra. Posses, mão de obra. Ninguém está seguro. Tiranos sempre levaram quem eles quiseram, e tiranos sempre o farão. O rei de Syriza tinha um harém até hoje.
Mas isso era diferente. Havia alguma coisa sistemática nos sequestros, algo escondido. Era essa ideia que incomodava a mente de Lazlo – mas brevemente, apenas para ser encoberta pelo pavor esmagador. Há poucos minutos ele tinha pensado, indiferente, que podia capturar os terrores de Sarai como vaga-lumes em um pote de vidro. Agora a enormidade desses terrores estava pronta para capturá-lo.
– Estranho, o sonhador – afirmou Skathis, estendendo uma mão despótica. – Venha comigo.
– Não! – gritou Sarai. Ela agarrou o braço de Lazlo e apertou-o contra si.
Skathis sorriu com malícia.
– Venha agora. Você sabe que não há segurança e não há salvação. Há apenas rendição.
Apenas rendição. Apenas rendição.
O que inundava Sarai era o sofrimento de qualquer um que tivesse ficado para trás, cada familiar ou noivo, namorado de infância ou melhor amigo que não podia fazer nada a não ser se render enquanto seu ente querido era levado para cima. Rasalas apoiou-se em suas patas traseiras, com as garras imensas descendo com força sobre o parapeito da janela e destruindo-a. Sarai e Lazlo recuaram aos tropeços, mas mantiveram-se unidos.
– Você não pode levá-lo – disse Sarai, com a voz sufocada.
– Não se preocupe, criança – respondeu Skathis, olhando-a fixamente com seus olhos frios. – Estou levando-o para você.
Ela balançou a cabeça, em um ímpeto, diante da ideia de que isso fosse feito em seu nome – como Isagol havia levado Eril-Fane para si, Skathis levaria Lazlo para ela. Mas então... a ideia – o paradoxo dela, de Skathis tirar Lazlo dela para levá-lo até ela – dividiu Sarai em duas pessoas, aquela na cidadela e a outra em seu quarto, e descobriu a fronteira entre o sonho e a realidade, que tinha se perdido no medo. Isso era apenas um sonho e, desde que ela soubesse disso, não seria impotente dentro dele.
Todo o medo foi varrido como poeira em uma tempestade. Vocêéa Musa dos Pesadelos, Sarai disse a si mesma. Você é a mestra, não escrava deles.
E ela levantou uma mão, sem formar em sua mente um ataque preciso, mas – assim como com a mahalath – deixou uma voz profunda dentro dela decidir.
E, aparentemente, a voz decidira que Skathis estava morto.
Diante dos olhos de Sarai e de Lazlo, o deus sacudiu-se, com os olhos se arregalando em choque enquanto uma hreshtek lhe atravessava o peito. Seu sangue era vermelho – tão vermelho quanto a pintura no mural, na qual, ocorreu a Lazlo, Skathis estava representado exatamente assim: atingido pelas costas, a espada cortando bem entre os seus corações. Uma bolha vermelha apareceu em seus lábios e rapidamente ele estava morto. Muito rapidamente. Essa não era uma representação natural de sua morte, mas um claro lembrete disso. Você está morto, fique morto, deixe-nos em paz. Rasalas, a besta, congelou no lugar – todo mesarthium morrendo com seu mestre –, enquanto, nas suas costas, o lorde dos Mesarthim caía, secando, desinflando, até que nada restasse a não ser uma casca de carne azul, sem sangue e sem espírito a ser carregado dali com um grito terrível, em um flash de branco derretido, pelo grande pássaro, a Aparição, que surgiu do nada e sumiu da mesma forma.
O quarto estava silencioso, exceto pela respiração rápida. O pesadelo havia acabado, e Lazlo e Sarai ainda estavam unidos, olhando para a face de Rasalas, congelado enquanto rosnava. Seus pés enormes ainda estavam em cima do parapeito da janela, garras enfiadas na pedra. Lazlo estendeu um braço trêmulo, fechando a cortina. O outro braço estava na posse de Sarai. Ela ainda o agarrava, com seus dois braços enlaçados nele como se quisesse lutar com Skathis por ele. Mas a garota havia feito melhor do que isso, pois vencera o deus das bestas. Lazlo tinha certeza de que ele não havia feito nada daquilo.
– Obrigado – ele agradeceu, virando-se para ela. Os dois estavam tão perto um do outro, o corpo dela pressionado contra o braço dele. Ao virar-se, ficaram ainda mais próximos, face a face, o rosto dele virado para baixo, o dela para cima, de forma que o espaço entre os dois era pouco maior do que o vapor de chá que, mais cedo naquela noite, havia pairado entre eles na mesa à margem do rio.
Aquilo era novo para ambos – aquela proximidade que misturava respiração e calor – e compartilharam a sensação de que estavam absorvendo um ao outro, derretendo-se juntos em um recipiente único. Era uma intimidade que ambos haviam imaginado, mas nunca com sucesso – agora sabiam. A verdade era muito melhor do que a fantasia. As asas selvagens e suaves estavam em um frenesi. Sarai não conseguia pensar, queria apenas continuar derretendo.
Mas havia algo no caminho. A garota ainda piscava para se livrar da imagem dos dentes brilhantes de Rasalas e do pensamento de que tudo aquilo era culpa sua.
– Não me agradeça – ela disse, soltando o braço de Lazlo e fitando o chão, desviando do olhar dele. – Eu trouxe isso aqui. Você deveria me expulsar. Você não me quer na sua mente, Lazlo. Eu vou simplesmente arruiná-la.
– Você não arruína nada – o garoto respondeu, e sua voz rouca nunca foi tão doce. – Eu posso estar dormindo, mas esta foi a melhor noite da minha vida. – Maravilhado, ele a encarou, suas sobrancelhas cor de canela, a perfeita curva de suas bochechas azuis e aqueles lábios sedutores com a prega no meio, doces como uma fatia de fruta madura. Ele arrastou seu olhar de volta aos olhos dela. – Sarai – ele falou e, se os ravides ronronassem, teriam um som parecido com o jeito como ele pronunciou o nome dela –, você precisa entender. Eu quero você na minha mente.
E ele a queria em seus braços. Ele a queria em sua vida. Ele não a queria presa no céu, não caçada pelos humanos, não sem esperança e não importunada por pesadelos sempre que fechasse os olhos. Ele queria levá-la a uma margem de rio real e deixá-la afundar os dedos dos pés na lama. Ele queria abraçá-la em uma biblioteca real e sentir o cheiro dos livros, abri-los e lê-los um para o outro. Ele queria comprar asas dos fabricantes de asas para que pudessem voar para longe, com um estoque de bala de sangue em um pequeno baú de tesouro, para que pudessem viver para sempre. Lazlo soube, quando vislumbrou o que havia além da Cúspide, que o reino do incompreensível era muito maior do que imaginara e desejava descobrir o quanto maior. Com ela.
Mas primeiro... Primeiro ele desejava muito, muito beijá-la.
Ele procurou consentimento em seus olhos e encontrou. Ela lhe deu gratuitamente. Era como um fio de luz passando de um para o outro, e era mais do que consentimento. Era cumplicidade, desejo. A respiração de Sarai ficou mais rasa e a garota deu um passo à frente, fechando aquele pequeno espaço. Havia um limite àquele derretimento e ambos o encontraram, e desafiaram-no. Seu peito era duro contra o da garota, que era macia contra o dele. Suas mãos fecharam-se em torno da cintura dela. Os braços dela em volta do pescoço dele. As paredes soltaram um brilho como de sol nascente na água revolta. Inúmeras estrelinhas acenderam-se e nem Sarai nem Lazlo sabiam quem estava fazendo aquilo. Talvez ambos estivessem, e havia tanto brilho naqueles diamantes de luz intermináveis, mas havia consciência também, e urgência. Sob a pele do sonho, ambos sabiam que a aurora estava próxima e que seu abraço não poderia sobreviver.
Então Sarai ficou na ponta dos pés, apagando o último espacinho entre seus rostos corados. Seus cílios fecharam-se, acastanhado cor de mel e gato-selvagem, e suas bocas, macias e desejosas, encontraram-se e tiveram apenas tempo para se tocarem e pressionar, e abrirem-se docemente antes que o primeiro raio de luz da manhã entrasse pela janela, tocasse a asa parda da mariposa sobre a testa de Lazlo e, em um sopro de fumaça índigo, a aniquilasse.
48
SEM LUGAR NO MUNDO
Sarai desapareceu dos braços de Lazlo e Lazlo desapareceu dos de Sarai. O sonho compartilhado desfez-se bem no meio e derramou os dois para fora. Sarai acordou em sua cama na cidadela com o calor dos lábios de Lazlo ainda nos seus, e Lazlo acordou na cidade, um sopro de fumaça na forma de mariposa dissipando-se em sua testa. Os dois levantaram-se ao mesmo tempo e para ambos, a repentina ausência era a poderosa inversão da presença que haviam sentido apenas um instante antes. Não a mera presença física – o calor de um corpo contra o seu (embora isso também) –, mas algo mais profundo.
Essa não era a frustração que alguém sente ao acordar de um sonho bom. Era a desolação de ter encontrado o lugar que encaixa, o único lugar verdadeiro, e experienciar o primeiro suspiro inebriante de estar certo antes de ser jogado para longe e atirado em uma solitária e aleatória dispersão.
O lugar era o outro e a ironia era severa, já que não poderiam estar no mesmo lugar fisicamente, e o mais perto que haviam chegado um do outro foi quando Sarai gritou para ele no terraço enquanto os fantasmas a puxavam para dentro.
Entretanto, mesmo sabendo que isso era verdade – que eles não estiveram no mesmo lugar durante essa longa noite, mas praticamente em diferentes planos de existência, ele no solo, ela no céu – Sarai não podia aceitar que eles não estiveram juntos. Ela derrubou-se novamente na cama e seus dedos estenderam-se curiosos para traçar os próprios lábios, em que um momento antes os dele haviam estado.
Não realmente, talvez, mas verdadeiramente. Quer dizer, talvez eles não tivessem se beijado na realidade, mas haviam se beijado de verdade. Tudo sobre essa noite era verdade de uma forma que transcendia seus corpos.
Mas isso não significa que seus corpos quisessem ser transcendidos.
O desejo.
Lazlo também caiu de volta em seus travesseiros, ergueu os punhos até os olhos e pressionou-os. A respiração sibilou entre os dentes cerrados. Ter sido agraciado com a minúscula prova do néctar de sua boca, e o tão breve roçar do veludo de seus lábios, era uma crueldade indizível. Ele se sentiu incendiado. Teve de se convencer que liberar um trenó de seda e voar imediatamente para a cidadela não era uma opção viável. Isso seria como o príncipe subindo à torre da donzela, tão louco de desejo que esquece sua espada e é morto pelo dragão antes mesmo de chegar perto dela.
Exceto pelo fato de que o dragão, neste caso, era um batalhão de fantasmas a quem nenhuma espada podia ferir e, de toda forma, ele não tinha uma espada. Na melhor das hipóteses, tinha um mastro acolchoado, a verdadeira arma de um herói.
Esse problema – não o beijo interrompido, mas todo o impasse da cidade e da cidadela – não seria resolvido com mortes. Isso já havia acontecido demais. Como isso seria resolvido ele não sabia, entretanto, sabia disto: os riscos eram maiores do que qualquer um imaginasse. E os riscos, para ele, agora, eram pessoais.
Desde o dia em que o Matador de Deuses entrou pelos portões de Zosma e fez seu convite extraordinário, passando pelo recrutamento dos especialistas e toda sua especulação interminável até enfim pousar os olhos em Lamento, Lazlo sentira certa liberdade da expectativa. Ah, ele queria ajudar. Muito. Sonhara acordado com isso, embora ninguém pensasse nele em busca de soluções, e ele não estivesse em busca delas pensando em si mesmo também. Ele estava meramente reflexivo. “O que eu poderia fazer?”, era seu pensamento, afinal, não era alquimista, construtor, especialista em metais ou ímãs.
Mas agora a natureza do problema havia mudado. Não eram apenas metais e ímãs, mas fantasmas e deuses, magia e vingança e mesmo que não pudesse ser chamado de especialista em nenhuma dessas coisas, tinha mais recursos para recomendar a si mesmo do que os outros, a começar por uma mente aberta.
E corações abertos.
Sarai estava lá em cima. Sua vida estava em perigo. Então, naquela manhã, Lazlo não se perguntou “o que posso fazer?” enquanto o segundo Sabá da décima segunda lua acordava a cidade de Lamento, mas sim “o que vou fazer?”.
Era uma pergunta nobre e, se o destino tivesse achado conveniente revelar sua resposta surpreendente naquele momento, ele não teria acreditado.
Eril-Fane e Azareen vieram para o café da manhã e Lazlo viu-os sob a lente de tudo o que tivera ciência na noite anterior, e seus corações se ressentiram pelo casal. Suheyla colocou na mesa pãezinhos no vapor, ovos cozidos e chá. Os quatro sentaram-se sobre as almofadas em torno da mesa de pedra baixa no jardim. Suheyla não sabia de nada ainda, além do óbvio: alguma coisa acontecera, alguma coisa mudara.
– Então – ela quis saber –, o que vocês encontraram lá em cima, de verdade? Imagino que a história do pontão era uma mentira.
– Não exatamente uma mentira – respondeu Lazlo. – O pontão teve um vazamento. – Ele tomou um gole de chá. – Com a ajuda de um gancho de carne.
A xícara de Suheyla tilintou no pires.
– Um gancho de carne? – ela repetiu, com os olhos arregalados, depois estreitos. – Como aconteceu de o pontão encontrar um gancho de carne?
A pergunta foi dirigida a Lazlo, uma vez que ele parecia mais inclinado a falar do que os outros dois. Ele virou-se para Eril-Fane e Azareen, pois parecia trabalho dos dois contar, não dele.
Eles começaram pelos fantasmas. Na verdade, nomearam uma grande quantidade deles, a começar pela avó de Azareen. Havia mais do que Lazlo percebera. Tios, vizinhos, conhecidos. Suheyla chorou em silêncio. Até um primo que morrera alguns dias atrás, um jovem chamado Ari-Eil, fora visto. Todos estavam pálidos e doentes com as implicações. Os cidadãos de Lamento, ao que parece, eram cativos até na morte.
– Ou todos fomos condenados e a cidadela é o nosso inferno – disse Suheyla, tremendo – ou há outra explicação. – Encarando o filho. Ela não era do tipo que acreditava em inferno e estava pronta para a verdade.
Eril-Fane limpou a garganta e falou, com enorme dificuldade:
– Há uma... sobrevivente... lá em cima.
Suheyla ficou pálida.
– Uma sobrevivente? – ela engoliu em seco. – Cria dos deuses?
– Uma garota – disse Eril-Fane. Ele teve de limpar a garganta de novo. Cada sílaba parecia lutar contra ele: – com cabelos ruivos. – Cinco palavras simples, uma garota com cabelos ruivos, que desencadearam uma torrente de emoções. Se o silêncio pudesse causar um estrondo, ele o fez. Se pudesse se quebrar como uma onda e inundar um cômodo com toda a força do oceano, ele o fez. Azareen parecia esculpida na pedra. Suheyla segurou na beirada da mesa. Lazlo estendeu uma mão para estabilizá-la.
– Viva? – ela sussurrou, ainda encarando o filho. Lazlo pode ver o sentimento ricochetear nela, a onda hesitante de esperança recuando no solo firme do pavor. Sua neta estava viva. Sua neta era cria dos deuses. Sua neta estava viva. – Conte-me – ela pediu, desesperada para ouvir mais.
– Não tenho mais nada a dizer – respondeu Eril-Fane. – Eu a vi apenas por um instante.
– Ela o atacou? – perguntou Suheyla.
Ele balançou a cabeça, parecendo confuso. Foi Azareen quem respondeu:
– Ela nos alertou – disse ela. Seu cenho estava franzido, seus olhos, atormentados. – Não sei por quê. Mas todos nós estaríamos mortos se não fosse por ela.
Um silêncio frágil instalou-se. Todos trocaram olhares em volta da mesa, tão atordoados e cheios de perguntas que Lazlo finalmente falou.
– Seu nome é Sarai – ele disse, e as três cabeças viraram-se para ele. Ele estivera em silêncio, apartado da violência da emoção deles. Aquelas cinco palavras, “uma garota com cabelos ruivos”, criaram um efeito oposto nele. Carinho, prazer, desejo. Sua voz carregava tudo isso quando pronunciou aquele nome, em um eco do ronronar de ravide com o qual falara a ela.
– Como você pode saber disso? – perguntou Azareen, a primeira a recuperar-se da surpresa. Seu tom era direto e cético.
– Ela me disse – Lazlo explicou. – Ela pode entrar nos sonhos. É o seu dom. Ela entrou no meu.
Eles contemplaram a informação.
– Como você sabe que era real? – Eril-Fane perguntou.
– Não é como os sonhos que eu tinha antes – disse Lazlo. Como ele podia colocar em palavras como foi estar com Sarai? – Sei que isso parece estranho, mas sonhei com ela mesmo antes de vê-la. Antes mesmo de ver o mural e saber que os Mesarthim eram azuis. Foi por isso que lhe perguntei aquele dia. Eu achava que ela era Isagol, porque eu não sabia sobre os... – ele hesitou. Essa era a vergonha secreta deles, e tinha sido escondida dele. As crias dos deuses. A palavra era tão terrível quanto o nome Lamento. – Sobre as crianças – ele soltou. – Mas agora eu sei. Eu... eu sei de tudo.
Eril-Fane o observou, mas era o olhar cego e sem piscar de alguém pensando no passado.
– Então você sabe o que fiz.
Lazlo assentiu. Quando olhava para Eril-Fane agora, o que via? Um herói? Um assassino? Essas coisas anulavam-se mutuamente, ou o assassino sempre sobrepujaria o herói? Será que eles podiam existir lado a lado, tais opostos, como o amor e o ódio que ele carregou por três longos anos?
– Tive de fazer aquilo – disse o Matador de Deuses. – Não podíamos sofrer com eles vivos, não com a magia que os deixaria acima de nós, para novamente nos dominar quando crescessem. O risco era grande demais. – Tudo tinha o tom de algo que fora repetido com frequência e seu olhar apelava para a compreensão de Lazlo. Quando Sarai lhe contou o que Eril-Fane fizera, ele imaginava que o Matador de Deuses se arrependesse disso hoje. Mas lá estava ele, defendendo o massacre.
– Eles eram inocentes – Lazlo falou.
O Matador de Deuses pareceu encolher.
– Eu sei. Você acha que eu queria isso? Não havia outra maneira. Não havia lugar para eles neste mundo.
– E agora? – Lazlo perguntou. Ele sentia-se frio. Essa não era a conversa que ele esperava ter. Eles deviam estar fazendo um plano. Em vez disso, sua pergunta foi respondida com o silêncio, a única interpretação possível disso era: ainda não havia lugar para eles neste mundo. – Ela é sua filha. Ela não é um monstro. Ela está com medo. Ela é gentil.
Eril-Fane encolheu-se ainda mais. As duas mulheres colocaram-se ao lado dele. Azareen lançou um olhar de alerta para Lazlo e Suheyla segurou a mão do filho.
– E quanto aos nossos mortos, presos lá em cima? Isso é gentil?
– Isso não foi ela quem fez – respondeu Lazlo, não para descartar a ameaça, mas pelo menos para exonerar Sarai. – Deve ter sido um dos outros.
Eril-Fane ficou perplexo.
– Outros?
Como eram profundas e emaranhadas as raízes do ódio, refletiu Lazlo, vendo como até mesmo agora, com o remorso e autorrepugnância o corroendo por dentro como um câncer de quinze anos, o Matador de Deuses não sabia dizer se desejava as crias dos deuses vivos ou se os temia assim.
Quanto a Lazlo, ele ficou inquieto com a informação. Sentiu-se nauseado por temer que não pudesse confiar em Eril-Fane.
– Há outros sobreviventes – limitou-se a responder.
Sobreviventes. Havia tanto significado naquela palavra: força, resiliência, sorte, junto à sombra de qualquer crime ou crueldade que tivesse sobrevivido. Nesse caso, Eril-Fane era o crime, a crueldade. Os outros haviam sobrevivido a ele, e a sombra caiu muito escura sobre aquele homem.
– Sarai nos salvou – Lazlo falou em voz baixa. – Agora temos de sal-vá-la, e aos outros também. Você é Eril-Fane. Cabe a você. As pessoas seguirão a sua liderança.
– Não é tão simples assim, Lazlo – disse Suheyla. – Não há como você entender o ódio. É como uma doença.
Ele estava começando a entender. Como Sarai havia dito? “O ódio dos usados e atormentados, que são filhos dos usados e atormentados, e cujos filhos serão usados e atormentados”.
– Então, o que você está dizendo? O que você quer fazer? – Ele encheu-se de coragem e perguntou: – Matá-los?
– Não! – exclamou Eril-Fane. – Não. – Era uma resposta à pergunta, mas veio como se ele estivesse se defendendo de um pesadelo ou de um golpe, como se mesmo a ideia fosse um ataque e ele não pudesse supor-tá-la. Ele colocou o rosto nas mãos, de cabeça baixa. Azareen estava afastada, observando-o, seus olhos castanhos e marejados e tão cheios de dor que ela poderia ser feita disso. Suheyla, com os olhos cheios de lágrimas, pousou sua mão sobre o ombro do filho.
– Vou pegar o segundo trenó de seda – falou levantando a cabeça e, enquanto os olhos das mulheres estavam úmidos, os dele estavam secos. – Vou subir e me encontrar com eles.
Azareen e Suheyla imediatamente opuseram-se à ideia.
– E oferecer-se como sacrifício? – perguntou Azareen. – O que isso vai resolver?
– Me parece que vocês mal conseguiram escapar com vida – Suheyla observou, com mais suavidade.
Eril-Fane olhou para Lazlo, e havia uma impotência no olhar dele, como se quisesse que Lazlo lhe dissesse o que fazer.
– Vou falar com Sarai hoje à noite – ele ofereceu-se. – Vou perguntar se ela pode persuadir os outros a aceitarem uma trégua.
– Como você sabe que ela virá de novo?
Lazlo corou, temendo que vissem o que estava escrito em seu rosto.
– Ela disse que viria – mentiu. Eles ficaram sem tempo para fazer planos, mas ela não precisava dizer. A noite não poderia demorar mais, e ele tinha certeza de que ela sentia o mesmo. E da próxima vez ele não teria de esperar até o chegar preciso da alvorada para puxá-la para perto. Ele limpou a garganta. – Se ela disser que é seguro, podemos subir amanhã.
– Nós? – disse Eril-Fane. – Não. Você não vai. Não arriscarei a vida de ninguém além da minha.
Azareen virou o rosto ao ouvir isso e, na desolação de seus olhos, Lazlo viu uma sombra de angústia de amar alguém que não ama a si mesmo.
– Ah, vou com você – afirmou Lazlo, não com força, mas com simples determinação. Ele estava imaginando desembarcar do trenó de seda na palma do serafim, e Sarai à sua frente, tão real quanto ele, de carne e osso. Ele precisava estar lá. Fosse qual fosse a aparência que esses devaneios produziram em seu rosto, Eril-Fane não tentou argumentar com ele. Quanto a Azareen, ela tampouco seria deixada para trás. Mas, primeiro, os cinco lá na cidadela tinham de concordar, o que só poderia acontecer no dia seguinte.
Enquanto isso, eles tinham de lidar com o dia de hoje. Lazlo tinha de ir à Câmara dos Mercadores de manhã e pedir a Soulzeren e a Ozwin, em particular, para inventarem alguma desculpa plausível para atrasar o lançamento do segundo trenó de seda. Todos estariam esperando que à ascensão fracassada se seguisse um sucesso, o que, é claro, não podiam obter, pelo menos não ainda.
Quanto ao segredo, seria guardado dos cidadãos. Eril-Fane considerou não contar para os Tizerkane, também, por medo de que isso causasse muito tumulto e fosse difícil de esconder. Mas Azareen foi firme em sua defesa e argumentou que precisavam estar preparados para qualquer coisa que acontecesse.
– Eles podem aguentar – disse ela, acrescentando suavemente: – Apenas não precisam saber de tudo ainda.
Ela se referia a Sarai e de quem ela era filha, Lazlo entendeu.
– Há algo que não compreendo – ele disse, enquanto se preparava para sair. Parecia-lhe que o mistério no centro de tudo tinha a ver com as crias dos deuses. – Sarai falou que havia trinta deles no berçário naquele dia.
Eril-Fane olhou diretamente para suas mãos. Os músculos em sua face enrijeceram-se. Lazlo ficou desconfortável em pressionar nessa linha de perguntas e estava longe de ter certeza de que queria mesmo uma resposta, mas pareceu importante demais para não se aprofundar.
– E embora isso... não seja um número pequeno, deve ser apenas uma fração. – Ele estava imaginando o berçário como uma fileira de berços idênticos. Como não tinha entrado na cidadela e visto como tudo era de mesarthium, imaginou berços rústicos de madeira, pouco mais do que caixas de madeira abertas, como as que os monges usavam para os órfãos no mosteiro.
Ali estava a coisa que perturbava Lazlo como um dente faltando. Ele próprio tinha sido um bebê em uma fileira de berços idênticos e compartilhava um nome com incontáveis órfãos para provar isso. Existiam muitos deles, muitos Estranhos, e... ainda havia muitos deles.
– E quanto a todos os outros? – ele indagou, olhando de Eril-Fane para Azareen, e por último para Suheyla, que, ele suspeitava, tinha dado à luz um deles. – Os que não eram mais bebês? Se os Mesarthim vinham fazendo isso todo o tempo... – Isso? Ele estremeceu com sua própria perífrase, usando uma palavra tão sem sentido para obscurecer uma verdade tão medonha. Reprodução. Era isso que eles faziam. Não era?
Por quê?
– Durante dois séculos – ele insistiu –, devia haver milhares de crianças.
Os rostos dos três estavam com o mesmo olhar desolado e percebeu que o compreendiam. Eles podiam tê-lo interrompido e o poupado de dizer, mas não o fizeram, então ele perguntou diretamente:
– O que aconteceu com todo o resto?
Suheyla respondeu. Sua voz estava sem vida:
– Nós não sabemos. Não sabemos o que os deuses fizeram com eles.
49
VÉU DE DEVANEIO
Não houve sono de beleza para Thyon Nero. Bem o oposto.
“Isso pode não te matar”, Estranho tinha dito, “mas o tornará feio.” Thyon lembrou-se da zombaria, o tom fácil de provocação disso, enquanto retirava outra seringa de espírito de suas próprias veias surradas. Não havia outro jeito, ele precisava produzir mais azoth de uma vez. Um lote de controle, depois dos... inexplicáveis... resultados do teste da noite anterior.
Ele lavara todos os vidros e instrumentos com cuidado. Embora pudesse ter requisitado um assistente para fazer essas tarefas servis, tinha ciúmes demais de seu segredo para deixar qualquer um entrar em seu laboratório. De qualquer forma, mesmo que tivesse um assistente, ele mesmo teria lavado os frascos. Era a única forma de se certificar de que não havia impurezas na equação e nenhum fator desconhecido que pudesse afetar os resultados.
Nero sempre tinha evitado o lado místico da alquimia e concentrado-se na ciência pura. Essa era a base de seu sucesso. Realidade empírica. Resultados, repetidos, verificáveis. A solidez da verdade que podia segurar nas mãos. Mesmo enquanto lia as histórias do Milagres para o café da manhã, procurava por pistas. Era da ciência que ele estava atrás, traços de ciência, como a poeira sacudida de uma tapeçaria de milagres.
E quando relia as histórias, ainda era pesquisa.
Quando as lia para cair no sono, um hábito que era tão secreto quanto a receita do azoth, era possível que sua mente divagasse em uma espécie de devaneio que parecia mais místico do que material, mas eram contos de fadas, afinal, e era apenas nesses momentos que sua mente se desligava de seu rigor. O que quer que fosse, desaparecia pela manhã.
Mas a manhã havia chegado. Ele podia não ter janelas para constatar, mas havia um relógio tiquetaqueando regularmente. O sol se levantara e Thyon Nero não estava lendo contos de fadas agora. Ele destilava o azoth como havia feito centenas de vezes antes. Então por que aquele véu tremeluzente de devaneio havia se estendido sobre si agora?
Ele afastou a ideia. O que quer que respondesse pelos resultados de seus experimentos, não era místico e nem era o mesarthium, tampouco o espírito. Havia uma explicação científica para tudo.
Até mesmo “deuses”.
C O N T I N U A
26
PESSOAS DESTRUÍDAS
Sarai tinha vindo inúmeras vezes até essa janela. Mais do que a qualquer outra em Lamento. Era a janela de seu pai e raramente passava uma noite sem visitá-lo.
Uma visita para atormentá-lo – e atormentar a si também, enquanto tentava imaginar ser o tipo de criança que um pai poderia amar em vez de matar.
A janela estava aberta. Não havia obstáculo para entrar, mas ela hesitou e pousou as mariposas no parapeito para espiar lá dentro. Não havia muita coisa no quarto estreito: um armário de roupas, algumas prateleiras, e uma cama com um colchão de penas coberto por uma colcha bordada à mão. Havia apenas luz suficiente entrando pela janela para dar profundidade à escuridão, então ela viu, nos tons de cinza, o contorno de uma forma. Um ombro, voltado para baixo. Ele dormia de lado, com as costas para a janela.
Lá em cima, no seu próprio corpo, os corações de Sarai balbuciaram. Ela estava nervosa, agitada, como se fosse uma espécie de reencontro. Um reencontro unilateral. Fazia dois anos que ele partira e havia sido um alívio tão grande quando ele foi – ficaria livre da perturbação constante de Minya. Todos os dias – todos os dias – a garotinha pedia para saber sobre o que ele tinha sonhado, e o que Sarai tinha soltado sobre seu pai. Qualquer que fosse a resposta, ela nunca estava satisfeita. Minya queria que Sarai o visitasse com um cataclisma de pesadelos, que destruiria sua mente e o deixaria na escuridão para sempre. Ela queria que Sarai o deixasse louco.
O Matador de Deuses sempre foi uma ameaça para o grupo – a maior ameaça. Ele era o coração pulsante de Lamento, o libertador de seu povo e seu maior herói. Ninguém era mais amado ou possuía mais autoridade, e assim ninguém era mais perigoso que ele. Depois da revolta e da libertação, os humanos haviam se mantido muito ocupados. Afinal, tinham dois séculos de tirania para superar. Tiveram de criar um governo do nada, com leis e um sistema de justiça. Também foi preciso restaurar as defesas, a vida civil, a indústria, e pelo menos a esperança do comércio. Um exército, templos, guildas, escolas – foi preciso reconstruir tudo. Foi um trabalho de anos e, durante todo esse tempo, a cidadela esteve sobre suas cabeças, fora de alcance. As pessoas de Lamento não tiveram escolha a não ser trabalhar naquilo que podiam mudar e tolerar o que não podiam – ou seja, nunca sentir o sol no rosto, ensinar as constelações para seus filhos ou colher frutas de suas próprias árvores. Houve discussões sobre mudar a cidade para fora da sombra, começar de novo em outro lugar. Um local foi até mesmo escolhido rio abaixo, mas havia uma história tão profunda ali que era difícil apenas desistir. Essa terra havia sido conquistada para eles por anjos. Com sombra ou não, era sagrada.
Faltavam-lhes os recursos, então, para tomar a cidadela, mas nunca iriam tolerá-la para sempre. Eventualmente, sua determinação iria se concentrar lá em cima. O Matador de Deuses não desistiria.
“Se você não for o fim dele”, Minya dizia, “ele será o nosso”.
E Sarai havia sido a arma de Minya. Com o Massacre vermelho e sangrento em seus corações, ela tinha tentado seu melhor e feito seu pior. Por diversas noites havia coberto Eril-Fane de mariposas e soltado cada terror de seu arsenal. Ondas de horrores, fileiras de monstros. O corpo dele ficava rígido como uma tábua. Ela ouviu dentes quebrando com a força de sua mandíbula cerrada. Nunca havia visto olhos tão espremidos, parecendo que iam se romper. Mas ela não conseguia destruí-lo; não conseguia nem o fazer chorar. Eril-Fane tinha seu próprio arsenal de horrores; ele dificilmente precisava do dela. O medo era o menor deles. Sarai não tinha entendido antes que o medo podia ser um tormento menor. Era a vergonha que o dilacerava, o desespero. Não havia escuridão para a qual pudesse mandá-lo que rivalizasse com o que ele já passava. Ele tinha vivido três anos com Isagol, a Terrível, e sobrevivido a muita coisa para enlouquecer por causa de pesadelos.
Era estranho. Toda noite Sarai dividia sua mente em cem formas, suas mariposas carregando pedaços de sua consciência pela cidade, e quando voltavam para ela, ficava inteira novamente. Era fácil. Mas alguma coisa começou a acontecer na medida em que ela atormentava mais o seu pai – um tipo diferente de divisão dentro dela, e não era tão fácil de reconciliar com o fim da noite.
Para Minya, só existiria para sempre o Massacre. Mas, na verdade, havia muito mais. Havia o antes. Garotas roubadas, anos perdidos, pessoas destruídas. E sempre havia os deuses selvagens e impiedosos.
Isagol, alcançando sua alma e tocando suas emoções como a uma harpa.
Letha, varrendo sua mente, retirando memórias e as engolindo inteiras.
Skathis à porta, vindo buscar sua filha.
Skathis à porta, trazendo-a de volta.
A função do ódio, como Sarai entendia, era erradicar a compaixão – fechar uma porta no íntimo de alguém e esquecer que ela estava lá. Se você tivesse ódio, então podia ver o sofrimento – e causá-lo – e não sentir nada exceto, talvez, uma sórdida justificativa.
Mas em algum ponto... ali naquele quarto, Sarai pensou... ela tinha perdido essa capacidade. O ódio lhe faltara e era como perder um escudo em batalha. Uma vez que ele se foi, todo o sofrimento se levantou para esmagá-la. Era demais.
Foi quando seus pesadelos se voltaram contra ela que começou a precisar do lull.
Com uma respiração profunda, Sarai retirou uma mariposa do parapeito e esporeou-a para a frente, um único fragmento de escuridão despachado para o escuro. Naquela sentinela ela focou sua atenção, e era como se estivesse lá, flutuando a centímetros do ombro do Matador de Deuses.
Exceto...
Ela mal podia dizer qual sentido vibrou primeiro com um pequeno choque de diferença, mas logo entendeu:
Aquele não era o Matador de Deuses.
O tamanho não era o mesmo, nem o cheiro. Quem quer que fosse, era mais magro que Eril-Fane e não se afundava tão profundamente nas penas. À medida que ela se ajustou à escassa luz ambiente, foi capaz de ver os cabelos pretos derramados no travesseiro, mas pouco mais que isso.
Quem era esse, dormindo na cama do Matador de Deuses? Onde estava Eril-Fane? A curiosidade tomou conta de si, e ela fez algo que jamais consideraria em tempos normais. Quer dizer: em tempos de uma ruína menos iminente.
Havia uma glave no criado-mudo, com uma cobertura preta de tricô sobre ela. Sarai direcionou um grupo de mariposas para agarrar o tecido com suas minúsculas patas e afastá-lo o suficiente para descobrir um raio de luz. Se alguém testemunhasse as mariposas comportando-se de uma forma assim tão coordenada, ficaria desconfiado de que não fossem criaturas naturais. Mas esse medo parecia estranho para Sarai agora, comparado às suas outras preocupações. Com aquela pequena tarefa concluída, ela examinou o rosto que estava iluminado pela luz prateada da glave.
Viu um jovem com um nariz torto. As sobrancelhas eram pretas e pesadas e os olhos profundos. Suas maçãs do rosto eram altas e planas, e terminavam retas no maxilar, como um corte de machado. Nada de fineza, nada de elegância. E o nariz. Ele claramente tinha encontrado alguma violência, e emprestava um aspecto de violência ao todo. Seus cabelos eram grossos e escuros, e onde brilhava à luz da glave os reflexos eram de um vermelho quente, não de azul frio. Ele estava sem camisa, e embora quase todo coberto pela colcha, o braço que descansava sobre ela era magro e musculoso. Ele estava limpo, e devia ter se barbeado pela primeira vez em semanas, pois o maxilar e o queixo estavam mais pálidos do que o restante do rosto e quase lisos – daquele jeito que o rosto de um homem nunca é totalmente liso, mesmo depois de um encontro com uma lâmina perfeitamente afiada. Isso Sarai sabia após anos de pousar em rostos adormecidos, e não a partir de Feral que, embora tivesse começado a se barbear, podia passar dias sem que alguém percebesse. Mas não esse homem. Ele não tinha, como Feral, quase ultrapassado a linha para a vida adulta, mas sim a cruzado por completo: um homem em termos absolutos.
Ele não era bonito. Certamente não era uma peça de museu. Havia algo de bruto nele com aquele nariz quebrado, mas Sarai percebeu demorando-se mais na apreciação dele do que tinha se demorado nos outros, exceto pelo rapaz dourado. Porque ambos eram jovens, e ela não era tão imaculada a ponto de ser livre dos desejos que Rubi expressava tão abertamente, nem tão desapegada a ponto de a presença física de homens jovens não ter efeito sobre si. Ela era apenas discreta, como era discreta com muitas outras coisas.
Olhando para os cílios cerrados, ela se perguntou que cor eram seus olhos, e experienciou uma pontada de alienação, pelo fato de ser sua sina ver e nunca ser vista, passar em segredo pelas mentes dos outros e não deixar rastro de si, exceto o medo.
Ela olhou rapidamente para o céu, era melhor correr. Ela não teria tempo de ter uma impressão consistente desse rapaz, mas até mesmo uma pista de quem ele era poderia ser útil. Um estranho na casa de Eril-Fane. O que isso significava?
Ela conduziu uma mariposa para sua testa.
E, imediatamente, caiu em outro mundo.
27
OUTRO MUNDO
Cada mente é um mundo à parte. A maioria ocupa o vasto terreno intermediário daquilo que é comum, enquanto outras são mais distintas: agradáveis, até mesmo belas, ou, às vezes, escorregadias e inexplicavelmente erradas nos sentimentos. Sarai nem se lembrava de como era a sua antes de tê-la transformado no zoológico de terrores que era agora – sua própria mente era um lugar em que ela tinha medo de ficar depois de escurecer, por assim dizer, e tinha de se proteger dela tomando uma bebida que a amortecia com seu nada cinzento. Os sonhos do Matador de Deuses também eram um domínio de horrores, unicamente seus, enquanto os de Suheyla eram tão macios quanto um xale que protege uma criança do frio. Sarai havia invadido milhares de mentes – dezenas de milhares – e passara seus dedos invisíveis por incontáveis sonhos.
Mas ela nunca conhecera nada assim.
Ela piscou e olhou novamente.
Ali estava uma rua pavimentada de lápis-lazúli, as fachadas esculpidas de prédios erguendo-se de ambos os lados. E havia domos dourados, e o brilho da Cúspide a distância. Nos sonhos, a noite inteira Sarai havia residido em paisagens que lhe eram estranhas. Esta não era, e ainda assim era. Ela virou lentamente, absorvendo a curiosa familiaridade e a estranheza que era mais estranha a seu modo do que o completamente estrangeiro tinha sido. Sem dúvidas aquela era Lamento, mas não a Lamento que ela conhecia. O lápis-lazúli era mais azul, o ouro mais brilhante, as esculturas não eram familiares. Os domos – dos quais havia centenas em vez de meramente dezenas – não tinham o formato certo. Tampouco eram feitos com a folha dourada lisa que eram na realidade, mas tinham o padrão de escama de peixe de ouro mais escuro e mais brilhante, de forma que o sol não refletia meramente neles. Ele brincava. E dançava.
O sol.
O sol em Lamento.
Não havia cidadela, nem âncoras. Nada de mesarthium em nenhum lugar, e nenhum traço de melancolia persistente ou sugestão de amargura. Ela estava diante de uma versão de Lamento que existia apenas na mente desse sonhador.
Sarai não tinha como saber que aquela cidadela havia nascido de histórias contadas anos atrás por um monge senil, ou que havia sido alimentada desde então por toda fonte que Lazlo conseguia encontrar. Que ele sabia tudo o que era possível um estrangeiro saber sobre Lamento, e esta era a visão que ele construíra a partir de pedaços.
Sarai tinha entrado em uma ideia da cidade, e era a coisa mais maravilhosa que já vira. Ela dançava por seus sentidos da forma que o sol do sonho dançava sobre os domos. Cada cor era mais profunda, mais rica do que a real, e havia tantas cores. Se a tecedora do mundo tivesse guardado as pontas de cada fio que usara, sua cesta iria se parecer com isso. Havia toldos sobre as barracas do mercado, e fileiras de especiarias em forma de cones. Rosa e vermelho, escarlate e siena. Velhos sopravam fumaça colorida através de longas flautas pintadas, gravando o ar com música sem som. Açafrão e vermelho-alaranjado, púrpura e coral. De cada domo erguia-se uma espiral parecida com uma agulha, todas elas crepitando com bandeiras e interconectadas por fitas por meio das quais crianças corriam dando risada, vestidas com mantos de penas coloridas. Amora e amarelo-limão, verde-acinzentado e chocolate. Suas sombras acompanhavam seus passos lá embaixo de uma forma que nunca poderia acontecer na verdadeira Lamento, envolvida por uma única grande sombra. Os cidadãos imaginários vestiam trajes simples e adoráveis, as mulheres tinham cabelos longos que se arrastavam atrás delas, ou eram sustentados no ar por passarinhos que tinham seu próprio brilho colorido. Dente-de-leão e castanheira, tangerina e amarelo-dourado.
Nos muros cresciam trepadeiras, como devia ter sido antigamente, antes da sombra. Frutas brotavam, suculentas e brilhantes. Pôr do sol e cardo, verdete e violeta. O ar era fragrante com seu perfume de mel e com outro aroma, um que transportou Sarai de volta à infância.
Quando ela era pequena, antes que as despensas da cidadela fossem esvaziadas de provisões insubstituíveis como açúcar e farinha branca, Grande Ellen costumava fazer um bolo de aniversário todo ano: para compartilhar e fazer o açúcar e a farinha durarem pelo máximo possível. Sarai tinha oito anos quando ela fez o último. Os cinco o degustaram, fizeram uma brincadeira para comê-lo com uma lentidão excruciante, sabendo que era o último bolo que comeriam.
E aqui, nessa estranha e adorável Lamento, em que bolos descansavam no parapeito das janelas, com a cobertura brilhando com açúcar cristal e pétalas de flores, pessoas paravam para se servir de uma fatia deste ou daquele, e os moradores das casas entregavam xícaras pelas janelas, para que elas pudessem ter algo para ajudar a descer o bolo.
Sarai bebeu tudo aquilo até se embriagar. Esta era a segunda vez na noite que havia se surpreendido por uma completa dissonância entre um rosto e uma mente. A primeira fora com o faranji dourado. Por mais que seu rosto fosse fino, seus sonhos não eram. Eles eram tão apertados e sem ar quanto caixões. Ele mal podia respirar ou se mover neles, e ela tampouco. E agora isso, esse faranji com feições grosseiras com um ar de violência pôde dar-lhe entrada para tal reino de maravilhas.
Ela viu espectrais passando livres, lado a lado como casais saindo para passear, e outras criaturas que ela reconhecia ou não. Um ravide, com suas presas do tamanho de braços, decorado com colares de contas e borlas, levantou-se nas patas traseiras para lamber um bolo com sua língua longa e áspera. Ela viu um elegante centauro levando uma princesa sentada de lado na sela, e tal era a atmosfera de magia que o casal não estava deslocado ali. Ele virou sua cabeça e beijou a moça demoradamente, deixando as bochechas de Sarai vermelhas. E havia homenzinhos com pés de galinha, andando de costas para que suas pegadas apontassem para o caminho errado, e velhinhas andando por aí em gatos com selas, e garotos com chifres de bode tocando campainhas, e o farfalhar de asas delicadas, e mais coisas adoráveis para onde quer que ela olhasse. Ela estava dentro do sonho a menos de um minuto – indo e vindo duas meras vezes na mão do grande serafim – quando percebeu que tinha um sorriso no rosto.
Um sorriso.
Sorrisos eram raros, dada a natureza de seu trabalho, mas em uma noite como esta, com tantas descobertas, era impensável. Ela o desfez com a mão, envergonhada, e continuou andando. Então esse faranji era bom em sonhos? Grande coisa. Nada disso era útil para ela. Quem era esse sonhador? O que ele estava fazendo ali? Endurecendo-se diante do encantamento, analisou ao redor novamente e viu, à frente, a figura de um homem com longos cabelos pretos.
Era ele.
Isso era normal. As pessoas manifestam-se em seus próprios sonhos com frequência. Ele estava andando para longe dela, e ela se aproximou pela força de vontade – bastou desejar que logo estava bem atrás dele. Esse sonho podia ser especial, mas ainda assim era um sonho e, como tal, ela podia controlá-lo. Sarai podia, se assim quisesse, destruir toda a cor. Transformar tudo em sangue, destruir os domos, enviar as crianças vestidas com penas direto para a morte. Ela podia fazer o ravide domesticado com seus colares de contas e borlas destroçar as adoráveis mulheres de cabelos pretos e longos. Ela podia transformar tudo aquilo em um pesadelo. Esse era o seu dom perverso, muito perverso.
Entretanto, não fez nada disso. Não foi para isso que ela tinha vindo, mas mesmo que fosse, era impensável que destroçasse esse sonho. Não eram apenas as cores e as criaturas de contos de fadas, mas a magia. Não eram nem os bolos. Havia uma sensação ali... de doçura, e segurança, e Sarai desejou...
Ela desejou que fosse real e que pudesse viver ali. Se ravides pudessem andar lado a lado com homens e mulheres e até dividir os bolos, então, talvez, os filhos dos deuses também pudessem.
Real. Pensamento tolo, muito tolo. Aquela era a mente de um estrangeiro. Reais eram os outros quatro esperando por ela, agoniados e apreensivos. Real era a verdade que ela teria de lhes contar, e real era o brilho da aurora subindo no horizonte. Era hora de ir embora. Sarai reuniu suas mariposas. Aquelas empoleiradas na capa preta da glave a soltaram e deixaram que ela descesse novamente, engolindo a fatia de luz e devolvendo o sonhador à escuridão. Elas voaram até a janela e esperaram, mas a que estava na testa do jovem permaneceu. Sarai estava parada, pronta para retirá-la, mas hesitou. Ela estava em tantos lugares ao mesmo tempo; estava na parte plana da palma do serafim, descalça, estava flutuando na janela do quarto do Matador de Deuses, e estava pousada, leve como uma pétala, na testa do sonhador.
E ela estava dentro de seu sonho, parada bem atrás dele. Teve uma vontade inexplicável de ver o rosto do jovem, aqui no lugar que ele criara, com os olhos abertos.
Ele estendeu a mão para pegar uma fruta de uma das trepadeiras.
A mão de Sarai contraiu-se, também querendo uma. Querendo cinco, uma para cada um deles. Ela pensou na filha de deuses que podia trazer coisas dos sonhos e desejou que pudesse retornar com seus braços cheios de frutas. Um bolo equilibrado na cabeça. E montando no ravide domesticado que agora tinha glacê nos bigodes. Como se, com presentes e extravagâncias, ela pudesse amenizar o golpe das notícias.
Algumas crianças escalavam uma grade, e pararam para jogar mais frutas para o sonhador. Ele pegou as esferas amarelas e gritou “obrigado”.
O timbre de sua voz fez Sarai vibrar por dentro. Era profunda, grave e rouca – uma voz como fumaça de madeira, lâminas serrilhadas e botas pisando na neve. Apesar de toda a aspereza, havia também o mais terno tom de timidez na voz. “Eu acreditava quando era menino”, ele disse a um homem em pé ali perto. “Nas frutas de graça para pegar. Mas depois achei que era uma fantasia sonhada para crianças famintas”.
Com atraso, Sarai percebeu que ele estava falando a língua de Lamento. A noite inteira, em todos os sonhos dos estrangeiros, ela raramente tinha ouvido uma palavra que pudesse entender, mas este falava a língua sem nem mesmo um sotaque. Ela se movimentou para o lado, dando a volta para enfim encará-lo.
Ela se aproximou, estudando-o de perfil sem nem disfarçar, assim como alguém estuda uma estátua – ou como um fantasma pode estudar os vivos. No início da noite, ela havia feito a mesma coisa com o faranji dourado, parado bem ao lado do rapaz enquanto ele trabalhava furioso em um laboratório de chamas altas e vidro estilhaçado. Tudo era espinhoso, quente e cheio de perigo, e não importava quão belo ele fosse, ela estivera ansiosa para sair de lá.
Não havia perigo aqui, nem desejo de escapar. Ao contrário, ela fora atraída para mais perto. Uma década de invisibilidade tinha acabado com qualquer hesitação que ela pudesse sentir com uma observação tão flagrante. Notou que os olhos dele eram cinza e o sorriso tinha o mesmo sinal de timidez que a voz. E sim, havia a linha quebrada no nariz. E sim, o corte de suas bochechas até o queixo era abrupto. Mas, para sua surpresa, o rosto, acordado e animado, não transmitia nada da brutalidade que tivera na primeira impressão. Ao invés disso, era doce como o ar em seu sonho.
Ele virou a cabeça na direção dela, e Sarai estava tão acostumada ao seu próprio e intenso não-ser que nem se assustou, ela apenas encarou como uma oportunidade para vê-lo melhor. A menina tinha visto tantos olhos fechados e pálpebras tremendo com sonhos, e cílios agitando-se nas bochechas, que ficou paralisada com aqueles olhos abertos e tão próximos. Ela podia ver, nessa abundância de luz solar, os padrões da íris, que não eram de um cinza sólido, mas tinham filamentos de uma centena de tons de cinza, azul e pérola, e pareciam reflexos de luz oscilando na água, com o mais suave padrão de âmbar circundando as pupilas.
E... com o mesmo interesse que ela o fitava, ele olhava para... Não, não era para ela, pois só podia observar através dela. Ele tinha um ar de fascinação. Havia uma luz em seus olhos de absoluto encantamento. Um encantamento, pensou, e sofreu uma profunda fisgada de inveja de quem ou o quê estava atrás dela que o cativou tão completamente. Por apenas um momento, permitiu-se fingir que era ela. Que ele olhava para ela daquele jeito absorto.
Era apenas fingimento. Um instante de indulgência – como um fantasma que se coloca entre amantes para sentir como é estar vivo. Tudo isso aconteceu em segundos, três no máximo. Ela ficou quieta dentro daquele sonho extraordinário e fingiu que o sonhador estava cativado por ela. Sarai acompanhou o movimento das pupilas do rapaz, que pareciam acompanhar as linhas de seu rosto e a faixa preta que havia pintado nele. Elas desceram, para subir novamente de uma vez depois de ver sua forma vestida com uma camisola e sua pele azul chamativa. Ele corou e, em algum momento daqueles três segundos, deixou de ser um fingimento. Sarai também corou, dando um passo para trás ao perceber o olhar do sonhador a seguir.
Seus olhos a seguiram.
Não havia ninguém atrás dela. Não havia mais ninguém ali. O sonho inteiro se encolheu em uma esfera ao redor dos dois, e não podia haver dúvida de que o encantamento era por ela, ou que foi para ela que ele sussurrou, com vívido e gentil interesse: “Quem é você?”.
A realidade veio como um baque. Ela fora vista. Ela fora vista. Lá em cima na cidadela, Sarai deu um salto para trás e cortou a corda de sua consciência, soltando a mariposa e perdendo o sonho em um instante. Toda a atenção que havia derramado naquela única sentinela foi transferida para seu corpo físico, o que a fez tropeçar e cair de joelhos, sem fôlego.
Era impossível. Nos sonhos, ela era um fantasma. Ele não podia tê-la visto.
Mesmo assim não restava dúvida em sua mente que ele a vira.
Lá embaixo em Lamento, Lazlo acordou com um sobressalto e sentou-se na cama a tempo de testemunhar noventa e nove pedacinhos de escuridão saírem do parapeito da janela e explodirem no ar, onde, com um redemoinho frenético, foram sugadas para fora de vista.
Ele piscou. Tudo estava silencioso e parado. Escuro, também. Ele podia ter duvidado que tivesse visto qualquer coisa se, naquele momento, a centésima mariposa não tivesse saído de sua testa para cair morta em seu colo. Suavemente, ele a pegou na palma da mão. Era uma coisa delicada, com asas peludas da cor do entardecer.
Meio enroscado nos vestígios de seu sonho, Lazlo ainda via os grandes olhos azuis da bela garota azul, e ficou frustrado por ter acordado e a perdido tão abruptamente. Se pudesse voltar para o sonho, pensou, podia encontrá-la de novo? Ele colocou a mariposa morta no criado-mudo e adormeceu novamente.
E encontrou o sonho, mas não a garota. Ela havia desaparecido. Nos momentos seguintes o sol nasceu. Uma luz pálida penetrou na escuridão da cidadela e transformou a mariposa em fumaça sobre o criado-mudo.
Quando Lazlo acordou de novo, algumas horas mais tarde, havia esquecido ambas.
28
NÃO É JEITO DE VIVER
Sarai caiu de joelhos. Tudo o que via era a genuína atenção dos olhos do sonhador – sobre ela – enquanto Feral, Rubi e Pardal corriam pela porta do quarto, onde estavam observando e esperando.
– Sarai! Você está bem?
– O que houve? O que há de errado?
– Sarai!
Minya veio atrás deles, mas não correu para o lado de Sarai e ficou para trás, observando com interesse enquanto eles pegavam-na pelos cotovelos e a ajudavam a se levantar.
Sarai viu a aflição do grupo e controlou a sua, afastando o sonhador de sua mente – por ora. Ele a havia visto. O que isso queria dizer? Os outros estavam enchendo-a de perguntas – perguntas que ela não podia responder, porque suas mariposas ainda não haviam voltado. Os insetos estavam no céu agora, correndo contra o sol que se levantava. Se não chegassem a tempo, Sarai ficaria sem voz até escurecer e cem novas mariposas nascessem dentro dela. Ela não sabia por que aquilo era assim, mas era. Ela levou as mãos à garganta para que os outros entendessem, e fez um gesto para que saíssem e não vissem o que aconteceria a seguir. A garota odiava que alguém visse suas mariposas saindo ou chegando.
Mas o grupo apenas deu um passo atrás, demonstrando apreensão nos rostos, e tudo o que ela pôde fazer quando as mariposas apareceram na beirada do terraço foi virar-se para esconder o rosto enquanto abria a boca para deixá-las entrar.
Noventa e nove.
Em seu choque, ela havia cortado a conexão e deixado a mariposa na testa do sonhador. Seus corações ficaram desamparados. Ela procurou-a com a mente, tateando em busca do fio cortado, como se pudesse reviver a mariposa e atraí-la de volta para casa, entretanto, aquela sentinela estava para sempre perdida. Primeiro, Sarai fora vista por um humano e, então, havia deixado uma mariposa para trás como um cartão de visita. Será que ela estava acabada?
Como ele a havia visto?
Agora andava de cá para lá novamente, por força do hábito. Os outros chegaram ao seu lado, perguntando o que acontecera. Minya ainda ficou para trás, observando. Sarai chegou ao fim da palma do serafim, virou-se e parou. Não havia parapeito nesse terraço para prevenir que alguém caísse. Havia a curva sutil da mão em forma de concha – a carne de metal levantava-se sutilmente para formar uma espécie de grande tigela rasa impedindo andar além da beira. Mesmo quando estava mais distraída, os pés de Sarai registravam a elevação e sabiam ficar no centro plano da palma.
Agora o pânico dos outros a fez voltar a si mesma.
– Conte-nos, Sarai – disse Feral, com a voz firme para mostrar que ele podia aguentar. Rubi estava de um lado e Pardal do outro. Sarai absorveu a visão de suas faces. Ela tivera tão pouco tempo nos últimos anos para simplesmente estar com eles, uma vez que o grupo vivia durante o dia e ela, à noite, e compartilhavam uma refeição no meio disso. Não era jeito de viver. Mas... era a vida, e era tudo o que tinham.
Com um sussurro frágil, falou:
– Eles têm máquinas voadoras. – E observou, desolada, como a compreensão daquilo mudou os três rostos, afastando o último trapo desafiador de esperança, deixando nada além do desespero.
Ela se sentiu como filha de sua mãe.
As mãos de Pardal voaram para sua boca.
– Então acabou – falou Rubi. Eles nem mesmo questionaram. De alguma forma, durante a noite, haviam passado do pânico para a derrota.
Não Minya.
– Olhem para vocês – Minya disse, severa. – Eu juro, vocês parecem prontos para cair de joelhos e mostrar suas gargantas a eles.
Sarai virou-se para ela. O entusiasmo de Minya tinha se acendido. Isso a horrorizava.
– Como você pode estar feliz com isso?
– Tinha que acontecer, cedo ou tarde – foi sua resposta. – Melhor acabar logo com isso.
– Acabar logo? Com o quê, com as nossas vidas?
Minya riu, com escárnio.
– Só se vocês preferirem morrer a se defenderem. Não posso impedi-los caso estejam tão determinados a morrer, mas não é isso que eu vou fazer.
Um silêncio cresceu. Ocorreu a Sarai, e talvez aos outros três ao mesmo tempo que, no dia anterior, quando Minya havia zombado dos vários níveis de inutilidade de cada um em uma luta, ela não mencionou qual seria sua parte na batalha. Agora, diante do desespero, ela irradiava vivacidade. Entusiasmo. Era tão absolutamente errado que Sarai não conseguia entender.
– O que há de errado com você? – ela perguntou. – Por que está tão satisfeita?
– Achei que você nunca perguntaria – disse Minya, com um sorriso que mostrava todos os seus dentinhos. – Venham comigo, quero mostrar algo a vocês.
A casa do Matador de Deuses era um exemplo modesto do tradicional yeldez de Lamento, ou casa com pátio. De fora, apresentava uma fachada de pedra esculpida com um padrão de lagartos e romãs. A porta era sólida, pintada de verde e dava acesso a uma passagem direto para um pátio, que era aberto, cômodo central da casa, usado para cozinhar, comer e se reunir. O clima agradável de Lamento significava que a maior parte das atividades eram feitas ao ar livre. Também significava que, antigamente, o céu tinha sido seu teto, e agora era a cidadela. Apenas os quartos, banheiro e salão de inverno eram fechados. Tais cômodos cercavam o pátio em um U e abriam-se para ele com quatro portas verdes. A cozinha ficava abrigada em um caramanchão coberto, e uma pérgola em volta da área de jantar antes era coberta com vinhas que davam sombra. O local havia tido árvores e uma horta de temperos também, mas nada disso existia mais. Uma moita de arbustos desbotados havia sobrevivido, e havia alguns vasos de flores delicadas da floresta, que podiam crescer sem muito sol, mas que não eram condizentes com a imagem verdejante na mente de Lazlo.
Quando ele saiu do quarto pela manhã, encontrou Suheyla puxando uma armadilha para peixes do poço. Isso era menos estranho do que podia parecer e, na verdade, não era um poço, mas uma abertura até o rio que fluía por baixo da cidade.
O Uzumark não era um único grande canal subterrâneo, mas sim uma rede intrincada de cursos d’água que escavaram a rocha do vale. Quando a cidade fora construída, os brilhantes engenheiros adaptaram os canais para um sistema de encanamento natural. Alguns córregos eram para água fresca, outros para o descarte do lixo. Outros, mais largos, eram canais subterrâneos navegáveis por barcos longos e estreitos iluminados por glaves. De leste a oeste, não havia forma mais rápida de atravessar a longa oval da cidade do que pelos barcos subterrâneos. Havia até mesmo o rumor de um grande lago enterrado, mais profundo do que tudo, no qual um svytagor pré-histórico estava preso por conta de seu tamanho imenso e vivia como um peixe dourado em um aquário, alimentando-se de enguias que procriavam na água fria. Eles o chamavam de kalisma, que significava “deus das enguias”, uma vez que as enguias certamente o veriam dessa forma.
– Bom dia – anunciou Lazlo, saindo no pátio.
– Ah, você está acordado – respondeu Suheyla, alegre. Ela abriu a armadilha e os pequenos peixes brilharam, verdes e dourados, quando ela os jogou em um balde. – Dormiu bem, espero...
– Bem demais, e até muito tarde. Odeio ser um preguiçoso. Sinto muito.
– Bobagem. Se existe um dia para dormir demais, eu diria que é a manhã seguinte à travessia do Elmuthaleth. E meu filho ainda não apareceu, então você não perdeu nada.
Lazlo viu o café da manhã que estava posto na baixa mesa de pedra. Era quase igual ao jantar da noite anterior, o que fazia sentido, já que era a primeira oportunidade de Suheyla de alimentar Eril-Fane em mais de dois anos.
– Posso ajudá-la? – ele perguntou.
– Você coloca a tampa de volta no poço?
Ele fez o que ela pediu, então a seguiu até o fogo, onde observou enquanto ela limpava os peixes com movimentos certeiros de faca, submergia-os no óleo, cobria-os de temperos, e os colocava na grelha. Ele mal podia imaginar como ela poderia ser mais hábil com duas mãos do que já era com uma.
Ela o viu observando. Mais precisamente, viu ele desviar o olhar quando foi pego olhando. Levantando o toco liso e afilado do pulso, disse:
– Não ligo. Pode olhar.
Ele corou, envergonhado.
– Me desculpe.
– Vou estabelecer uma multa por pedidos de desculpa – ela disse. – Eu não quis mencionar na noite passada, mas hoje é o seu novo começo. Dez pratas toda vez que você se desculpar.
Lazlo riu e teve de morder a língua antes de se desculpar por pedir desculpas.
– Fui educado assim – explicou. – Não posso fazer nada.
– Aceito o desafio de reeducá-lo. Daqui em diante você só pode pedir desculpas se pisar no pé de alguém quando estiver dançando.
– Só assim? Eu nem danço.
– O quê? Bem, vamos cuidar disso também.
Ela virou o peixe na grelha. A fumaça tinha aroma de temperos.
– Passei toda a minha vida na companhia de homens velhos – Lazlo contou-lhe. – Se você espera me preparar para a sociedade, terá bastante trabalho em mãos...
As palavras saíram antes que ele pudesse considerá-las. Seu rosto corou e, se ela não levantasse o dedo, ele teria se desculpado novamente.
– Não diga! – a mulher ordenou. Seu ar era severo, mas seus olhos dançavam. – Você não deve ter medo de me ofender, meu jovem. Sou bastante resistente. Quanto a isso... – Ela levantou o punho. – Eu quase acho que eles me fizeram um favor. Dez parece um número muito grande de dedos. E muitas unhas para cortar!
Seu sorriso contagiou Lazlo, que sorriu também.
– Nunca pensei nisso. Sabe, há uma deusa com seis braços na mitologia Maialen. Pense nela.
– Pobre coitada. Mas essa deusa provavelmente tem sacerdotisas para cuidar dela.
– Isso é verdade.
Suheyla colocou o peixe cozido em um prato e lhe entregou, fazendo um gesto em direção à mesa. Ele o levou e encontrou um lugar para o prato. As palavras dela ficaram em sua mente: “quase acho que eles me fizeram um favor”. Quem eram eles?
– Desculpe, mas...
– Dez pratas.
– O quê?
– Você pediu desculpas de novo. Eu te alertei.
– Eu não pedi – Lazlo argumentou, rindo. – “Desculpe” é um imperativo. Eu ordeno que me desculpe. Não é, de forma alguma, um pedido de desculpas.
– Está bem – admitiu Suheyla –, mas da próxima vez, nada disso. Apenas pergunte.
– Está bem. Mas... deixa para lá. Não é da minha conta.
– Apenas pergunte.
– Você disse que eles lhe fizeram um favor. Eu estava apenas pensando a quem você se referiu.
– Ah. Bem, aos deuses.
Apesar da cidadela flutuando acima de suas cabeças, Lazlo ainda não tinha uma clara ideia de como fora a vida sob o domínio dos deuses.
– Eles... cortaram sua mão?
– Eu imagino que sim – disse ela. – Não me lembro. Eles podem ter feito com que eu mesma a cortasse. Tudo o que sei é que eu tinha duas mãos antes de eles me levarem, e apenas uma depois.
Tudo isso foi dito como uma conversa matutina trivial.
– Te levaram? – Lazlo repetiu. – Lá para cima?
Suheyla franziu a testa, como se estivesse perplexa com sua ignorância.
– Ele não te contou nada?
Lazlo entendeu que ela se referia a Eril-Fane.
– Até chegarmos ao topo da Cúspide ontem não sabíamos nem por que tínhamos vindo.
Ela ficou surpresa.
– Bom, vocês são criaturas crédulas, por virem até aqui por um mistério.
– Nada poderia ter me impedido de vir – Lazlo confessou. – Fui obcecado com o mistério de Lamento minha vida inteira.
– Verdade? Eu não fazia ideia de que o mundo se lembrava de nós.
A boca de Lazlo torceu-se para um lado.
– Na verdade, o mundo não se lembra. Apenas eu.
– Bom, isso demonstra caráter – afirmou Suheyla. – E o que você acha, agora que está aqui? – Enquanto falava, ela cortava frutas, e fez um gesto amplo com sua faca. – Está satisfeito com a resolução de seu mistério?
– Resolução? – ele repetiu, com uma risada impotente, e olhou para a cidadela. – Tenho cem vezes mais perguntas do que tinha ontem.
Suheyla seguiu seu olhar, mas assim que levantou os olhos, baixou-os novamente e estremeceu. Como os Tizerkane na Cúspide, ela não aguentava olhar para a cidadela.
– Isso é de se esperar, se meu filho não o preparou. – Ela pousou a faca e colocou as frutas cortadas em uma tigela, que passou para Lazlo. – Ele nunca conseguiu falar sobre isso. – Lazlo começou a levar a tigela à mesa quando ela acrescentou, em voz baixa: – Eles o levaram por mais tempo do que qualquer outra pessoa, sabe.
Ele virou-se para a mulher. Não, realmente ele não sabia. Também não tinha certeza de como expressar seus pensamentos em uma pergunta e, antes que pudesse, Suheyla, ocupando-se em limpar a tábua de cortar, continuou a falar baixinho:
– Eles levavam garotas, principalmente – explicou. – Criar uma garota em Lamento, e, bem, ser uma filha em Lamento era... muito difícil naquele tempo. Toda vez que o chão tremia, sabíamos que era Skathis chegando à porta. – Skathis. Ruza tinha falado esse nome. – Mas, às vezes, levavam nossos filhos também. – Ela passou o chá no coador.
– Eles levavam crianças?
– Os filhos são sempre crianças... mas, tecnicamente, ou fisicamente, pelo menos, Skathis esperava até que eles fossem... maiores.
Maiores.
Aquelas palavras. Lazlo engoliu uma sensação crescente de náusea. Aquelas palavras eram como... Como ver uma faca ensanguentada. Você não precisava ter testemunhado o esfaqueamento para entender o que ela significava.
– Eu me preocupava mais com Azareen do que com Eril-Fane. Para ela, era apenas uma questão de tempo. E os dois sabiam disso, é claro. Foi por isso que se casaram tão jovens. Ela... ela disse que queria ser dele antes de ser deles. E ela foi. Por cinco dias. Mas não foi ela que levaram. Foi ele. Bem. Eles a levaram depois.
Isso era... era terrível, tudo isso. Azareen. Eril-Fane. A natureza rotineira da atrocidade. Mas...
– Eles são casados? – foi o que Lazlo conseguiu perguntar.
– Oh! – Suheyla pareceu arrependida. – Você não sabia. Bem, nenhum segredo está a salvo comigo, não é?
– Mas por que deveria ser um segredo?
– Não é que seja um segredo – explicou, cuidadosamente. – É mais que... não é mais um casamento. Não depois... – Ela virou a cabeça para cima, mas sem olhar para a cidadela.
Lazlo não fez mais perguntas. Tudo o que perguntara sobre Eril-Fane e Azareen, assim como sobre os mistérios de Lamento, havia tomado um ar muito mais sombrio do que jamais poderia imaginar.
– Nós éramos levados para “servir” – Suheyla continuou, sua mudança de pronome lembrando-lhe de que ela própria fora uma das garotas raptadas. – Era como Skathis chamava. Ele chegava à porta ou à janela. – Sua mão tremeu, e ela apertou firme o coto. – Não haviam trazido nenhum criado com eles, então tinha isso. Servir à mesa ou nas cozinhas. E havia camareiras, jardineiros, lavadeiras.
Nessa ladainha havia ficado muito claro que esses trabalhos eram as exceções, e que o “serviço” era de outro tipo.
– É claro, nós não sabíamos de nada até que fosse tarde. Quando nos traziam de volta, cerca de um ano depois, não nos lembrávamos de nada. Mas nem sempre nos traziam. E então um ano era roubado de nós. – Ela baixou o coto, e sua mão moveu-se brevemente para a barriga. – Era como se o tempo não tivesse passado. Letha devorava nossas memórias, entende. – Ela olhou para Lazlo. – Ela era a deusa do oblívio.
Fazia sentido agora – um sentido horrível – o motivo pelo qual Suheyla não sabia o que acontecera com sua mão.
– E... Eril-Fane? – ele indagou, endurecendo-se.
Suheyla olhou para o bule de chá que estava enchendo com água quente da chaleira.
– O esquecimento era uma misericórdia, no fim das contas. Ele só se lembra de tudo porque os matou, e não havia ninguém para levar embora suas memórias.
Lazlo entendeu o que a mulher lhe contava, o que ela estava dizendo sem dizer, mas não parecia possível. Não Eril-Fane, que era o poder encarnado. Ele era um libertador, não um escravo.
– Três anos – disse Suheyla. – Foi esse o tempo que ela ficou com ele. Isagol. A deusa do desespero. – Seus olhos perderam o foco. Ela parecia ter entrado em um grande buraco dentro de si e sua voz transformou-se em um sussurro. – Contudo, se nunca o tivessem levado, ainda seríamos escravos.
Por aquele breve momento, Lazlo sentiu um tremor de pesar dentro da mulher: de que ela não havia sido capaz de manter seu filho em segurança. Aquele era um pesar simples e profundo, mas, debaixo dele, havia um sentimento mais profundo e estranho: de que precisava ficar feliz por aquilo, porque se ela tivesse mantido Eril-Fane em segurança, ele não teria salvado seu povo. Misturavam-se felicidade, pesar e culpa em uma fusão intolerável.
– Sinto muito – disse Lazlo, do fundo de seus dois corações.
Suheyla saiu do lugar longínquo e oco em que estava perdida. Seus olhos aguçaram-se com um sorriso.
– Rá! – disse ela. – Dez pratas, por favor. – E ela estendeu a palma da mão para ele colocar uma moeda nela.
29
OS OUTROS BEBÊS
Minya levou Sarai e os outros para dentro, através do quarto de Sarai, e de volta pelo corredor. Todos os quartos ficavam do lado direito da cidadela. A suíte de Sarai era na extremidade do braço direito do serafim, e as outras ficavam ao longo da mesma passagem, exceto a de Minya. O que antes era o palácio de Skathis ocupava o ombro direito inteiro, o qual atravessaram e, na entrada da galeria, Sarai e Feral trocaram um olhar.
As portas que levavam para cima ou para baixo, à cabeça ou ao corpo da cidadela, estavam fechadas, tal como estavam quando Skathis morreu. Não era possível discernir nem o lugar delas.
O braço sinistro – como era chamado – era acessível, embora o grupo raramente fosse lá. Ele abrigava o berçário, e nenhum deles podia aguentar a visão de berços vazios, mesmo que o sangue tivesse sido lavado há muito tempo. Havia um monte de quartinhos como celas, com nada além de camas. Sarai sabia o que eles eram. Ela os tinha visto em sonhos, mas só nos sonhos das garotas que os ocuparam por último – como Azareen –, cujas memórias haviam sobrevivido a Letha. Sarai não podia pensar em um motivo para Minya levá-los lá.
– Onde estamos indo? – Feral perguntou.
Minya não respondeu, mas eles tiveram a resposta no momento seguinte, quando ela virou em direção ao braço sinistro, mas para um lugar ao qual eles nunca iam – mesmo que por um motivo diferente.
– O coração – afirmou Rubi.
– Mas... – disse Pardal, então interrompeu-se com um olhar de entendimento.
Sarai podia adivinhar o que ela quase dissera e o que a havia impedido, porque a ideia lhe ocorreu no mesmo momento que ocorreu a Pardal. Mas nós não cabemos mais. Aquele foi o pensamento. Mas Minya cabe. Aquele era o entendimento. E Sarai soube então onde Minya vinha passando o tempo quando não a encontravam. Se eles quisessem mesmo saber, teriam descoberto facilmente, mas a verdade é que ficavam felizes quando a garotinha estava longe, então nunca se preocuparam em procurá-la.
Eles viraram uma esquina e chegaram à porta.
Ela não podia mais ser chamada de porta. Tinha menos de trinta centímetros de largura: uma abertura esguia e estreita no metal onde uma porta não havia se fechado completamente quando Skathis morreu. Pela sua altura, que era de cerca de seis metros, estava claro que não tinha sido uma porta comum, embora não houvesse forma de estimar qual era sua largura quando aberta.
Minya mal conseguia atravessar, tendo de passar um ombro primeiro, depois o rosto. Por um momento, pareceu que ela ficaria presa pelas orelhas, mas ela pressionou o rosto e as orelhas ficaram achatadas, e ela teve de mexer a cabeça de um lado para outro para passá-la, então exalar completamente para estreitar o peito o suficiente para o resto do corpo passar. Foi por pouco. Se fosse um pouquinho maior, não teria conseguido.
– Minya, você sabe que nós não conseguimos entrar – Pardal falou enquanto a garotinha desaparecia no corredor do outro lado.
– Esperem aí – ela respondeu, e sumiu.
Eles olharam uns para os outros.
– O que ela quer nos mostrar aqui? – Sarai indagou.
– Será que ela encontrou alguma coisa no coração? – Feral se perguntou.
– Se houvesse algo para encontrar, teríamos encontrado anos atrás.
Antigamente, todos haviam sido pequenos o bastante para entrar.
– Quanto tempo faz? – Feral perguntou, deslizando a mão pela beirada lisa da abertura.
– Mais tempo para você do que para nós – disse Pardal.
– Essa sua cabeça grande – acrescentou Rubi, empurrando-o de leve.
Feral tinha crescido primeiro, depois Sarai, e as garotas um ano ou mais depois. Minya, obviamente, nunca cresceu. Quando eram pequenos, aquele era seu lugar favorito para brincar, em parte porque a abertura estreita o fazia parecer proibido, e em parte porque era muito estranho.
Era uma câmara enorme, perfeitamente esférica, de metal liso e curvo, com uma passagem estreita em volta da circunferência. Em diâmetro devia ter cerca de trinta metros, e suspensa no centro havia uma esfera menor de talvez seis metros de diâmetro, que também era perfeitamente lisa e, como a cidadela inteira, ela flutuava, sustentada no lugar não por cordas ou correntes, mas por uma força insondável. A câmara ocupava o lugar onde os corações ficariam em um corpo de verdade, então era assim que eles a chamavam, mas aquele era apenas o termo que usavam. Eles não tinham ideia de qual tinha sido seu nome ou propósito. Mesmo Grande Ellen não sabia. Era apenas uma grande bola de metal flutuando em uma sala maior de metal.
Ah, e havia monstros empoleirados nas paredes. Dois deles.
Sarai sabia das bestas das âncoras, Rasalas e as outras, pois as tinha visto com seus olhos de mariposa, inertes como eram agora, mas também as tinha visto como eram antes, através dos sonhos das pessoas de Lamento. Em seu arsenal havia um número aparentemente infinito de visões de Skathis montado em Rasalas, carregando mulheres e homens, não mais velhos do que ela era agora. Aquele era seu horror mais frequente, a pior memória coletiva de Lamento. A garota estremeceu em pensar quão displicentemente havia sofrido aquilo, não compreendendo, quando criança, o que ele significava. As bestas das âncoras eram grandes, mas os monstros empoleirados como estátuas nas paredes do coração da cidadela eram maiores.
Eram parecidos com vespas, tórax e abdômen unidos por cinturas finas, asas como lâminas, e ferrões mais longos do que um braço de criança. Sarai e os outros haviam cavalgado neles quando crianças, fingindo que eram reais, mas, se no reino dos deuses os monstros haviam sido algo além de estátuas, Sarai não tinha visões para comprovar. Tinha certeza que as criaturas nunca deixaram a cidadela. Pelo seu tamanho, era difícil imaginá-los saindo daquela sala.
– Lá vem ela – disse Rubi, que estivera espiando o corredor escuro através da abertura. Ela saiu da frente, mas a figura que emergiu de lá não era Minya. Ele não teve de parar e cuidadosamente espremer seu corpo pela abertura, apenas fluiu para fora com a facilidade de um fantasma, o que ele era.
Era Ari-Eil. Ele planou sem olhar o grupo e foi seguido por outro fantasma. Sarai piscou. Esse era familiar, mas ela não sabia de onde, e então ele passou por ela, que não teve tempo de procurar em sua memória porque outro já estava vindo atrás dele.
E mais outro.
E mais outro.
... tantos!
Fantasmas derramaram-se do coração da cidadela, um após o outro, passando pelos quatro sem manifestar-se, e indo reto pelo longo corredor sem portas que levava à galeria e ao terraço do jardim e seus quartos. Sarai se viu prensada contra a parede, tentando compreender esse fluxo de rostos, e eram todos familiares, mas não tão familiares quanto seriam se ela os houvesse visto recentemente.
O que ela não tinha.
Ela fitou um rosto, depois outro. Eram homens, mulheres e crianças, embora a maioria fossem velhos. Nomes começaram a lhe ocorrer. Thann, sacerdotisa de Thakra. Mazli, morta no parto de gêmeos, que também morreram. Guldan, a mestra das tatuagens, a velha que era famosa na cidade por desenhar a elilith mais bela. Todas as garotas queriam que ela fizesse a sua. Sarai não se lembrava exatamente quando ela havia morrido, mas fora com certeza antes de sua primeira menstruação, porque sua reação ao descobrir sobre a morte da velha havia sido muito tola. Fora de desapontamento, por Guldan não poder desenhar a sua elilith quando chegasse o momento. Como se tal coisa fosse acontecer. Que idade ela tinha, doze? Treze? Atrás de suas pálpebras fechadas, ela imaginou a pele de sua barriga parda em vez de azul, decorada com os floreios delicados da velha. E, sim, o corar de vergonha que acompanhava aquela imagem. De ter esquecido, mesmo por um instante, quem ela era.
Como se um humano fosse tocá-la um dia por qualquer motivo que não para matá-la.
Pelo menos quatro anos tinham se passado desde então. Quatro anos. Então como Guldan podia estar ali naquele momento? Era o mesmo com os outros. E havia tantos deles. Todos olhavam para a frente, inexpressivos, mas Sarai viu o apelo desesperado em mais de um par de olhos à medida que passavam. Eles se moviam com a facilidade de fantasmas, mas também com uma intenção severa, marcial, como soldados.
A compreensão veio lentamente e depois de uma só vez. As mãos de Sarai cobriram sua boca. Ambas as mãos, como se segurasse um gemido. Todo esse tempo. Como isso era possível? Lágrimas brotaram em seus olhos. Tantos deles. Tantos!
Tudo, ela pensou. Cada homem, mulher e criança que tinham morrido em Lamento desde... desde quando...? E passado perto o bastante da cidadela em sua jornada evanescente para Minya capturá-los. Fazia dez anos que Pardal e Rubi cresceram demais para entrar no coração. Foi então que ela começou esta... coleção?
– Oh, Minya – Sarai se exasperou, com a profundidade de seu horror.
Sua mente buscou outra explicação, mas não havia nenhuma. Havia apenas esta: por anos, sem que o restante deles soubesse, Minya vinha capturando fantasmas e... guardando-os. Armazenando-os. O coração da cidadela, aquela grande câmara esférica onde apenas Minya podia entrar, havia servido, todo esse tempo como um... cofre. Um armário. Uma caixa-forte.
Para um exército de mortos.
Por fim, Minya saiu, espremendo-se lentamente pela passagem e olhando desafiadoramente para Sarai e Feral, Pardal e Rubi, todos atordoados e sem palavras. A procissão de fantasmas desapareceu virando a esquina.
– Oh, Minya – falou Sarai. – O que você fez?
– O que você quer dizer com o que eu fiz? Você não vê? Nós estamos seguros. Deixe que o Matador de Deuses venha, e todos os seus novos amigos também. Eu os ensinarei o significado de massacre.
Sarai sentiu o sangue deixar seu rosto. Será que ela achava que eles ainda não sabiam?
– Você, entre todas as pessoas, já deve ter tido massacre suficiente na vida.
Minya eterna, Minya imutável. De igual para igual, ela olhou para Sarai:
– Você está errada. Eu terei o bastante quando der o troco.
Um tremor passou por Sarai. Será que isso era um pesadelo? Um pesadelo acordado, talvez. Sua mente havia enfim se partido e todos os terrores estavam derramando-se dela.
Mas não. Isso era real. Minya forçaria uma década de mortos da cidade a lutar contra e matar seus próprios amigos e parentes. Ela se deu conta com uma onda de náusea que errara, todos esses anos, em esconder sua empatia pelos humanos e tudo o que eles passaram. A princípio, ela ficara envergonhada e com medo de que fosse uma fraqueza sua ser incapaz de odiá-los como deveria. Ela imaginava palavras saindo de sua boca, como eles não são monstros, sabe, e imaginava qual seria a resposta de Minya: diga isso aos outros bebês.
Os outros bebês.
Isso era tudo o que ela tinha a dizer. Nada podia superar o Massacre. Argumentar a favor de qualquer qualidade redentora nas pessoas que o tinham cometido era uma espécie de traição. Mas agora Sarai pensou que deveria ter tentado. Em sua covardia, havia deixado os outros com uma simples convicção: eles tinham um inimigo. Eles eram um inimigo. O mundo era um massacre. Ou você o sofria ou o infligia. Se ela tivesse contado o que viu nas memórias tortas de Lamento, e o que ela sentiu e ouviu – o choro convulsivo de pais que não podiam proteger suas filhas, o horror das garotas que voltavam sem memória e corpos violados –, talvez eles tivessem visto que os humanos também eram sobreviventes.
– Deve haver alguma outra forma – Sarai afirmou.
– E se houvesse? – desafiou Minya, fria. – E se houvesse outra forma, mas você fosse patética demais para fazer?
Sarai arrepiou-se com o insulto, depois encolheu-se. Patética demais para fazer o quê? Ela não queria saber, mas tinha de perguntar.
– Do que você está falando?
Minya a considerou, então balançou a cabeça.
– Não, tenho certeza. Você é patética demais. Você nos deixaria morrer primeiro.
– O quê, Minya? – Sarai insistiu.
– Bem, você é a única de nós que pode ir para a cidade – disse a menina. Ela era, de fato, uma criança bonita, mas era difícil fitá-la, não tanto porque fosse desleixada, mas por causa do vazio estranho e frio de seus olhos. Será que ela sempre fora assim? Sarai se lembrava de rir com ela, há muito tempo, quando todos eram crianças. Quando foi que ela mudou e se tornou... isso? – Você não conseguiu enlouquecer o Matador de Deuses – ela estava dizendo.
– Ele é muito forte – Sarai protestou. Mesmo agora ela não conseguia sugerir, nem mesmo para si mesma, que talvez ele não merecesse a loucura.
– Ah, ele é forte – concordou Minya –, mas suponho que nem o grande Matador de Deuses poderia suportar respirar se uma centena de mariposas voassem para dentro de sua garganta.
Se uma centena de mariposas voassem para dentro...
Sarai apenas a encarou. Minya riu com o choque dela. Será que ela entendia o que estava dizendo? Claro que sim, apenas não se importava. As mariposas não eram... Não eram trapos de pano. Também não eram nem mesmo insetos treinados. Elas eram Sarai. Eram sua própria consciência prolongada por meio de longos cordões invisíveis. O que elas experienciavam, ela experienciava, fosse o calor da testa de um sonhador ou a obstrução vermelha e úmida da garganta de um homem sufocando.
– E de manhã – Minya continuou –, quando ele fosse encontrado morto em sua cama, as mariposas voltariam a ser fumaça, e ninguém saberia o que o matou.
Ela estava triunfante – uma criança satisfeita com um plano brilhante.
– Você só poderia matar uma pessoa por noite, eu imagino. Talvez duas. Eu me pergunto quantas mariposas seriam necessárias para sufocar alguém. – Ela deu de ombros. – De qualquer forma, depois que alguns faranji morressem sem explicação, acho que os outros perderiam a coragem. – Ela sorriu, levantando a cabeça. – Bem, eu estava certa? Você é patética demais? Ou pode suportar alguns minutos de asco para salvar nós todos?
Sarai abriu a boca e a fechou. Alguns minutos de asco? Quão trivial ela fazia isso soar.
– Não é o asco – ela disse. – Deus me livre que um estômago forte seja a única coisa que separe matar de não matar. Há a decência, Minya. Misericórdia.
– Decência – a garota cuspiu. – Misericórdia.
A forma como ela disse aquilo. A palavra não tinha lugar na cidadela dos Mesarthim. Seus olhos escureceram como se suas pupilas tivessem engolido suas íris, e Sarai sentiu ela chegar, a resposta que não tolerava argumentação: Diga isso aos outros bebês.
Mas não foi isso que Minya disse.
– Você me dá náusea, Sarai. Você é tão gentil. – E então ela disse palavras que nunca havia dito, não em todos aqueles quinze anos. Em um sussurro baixo e mortal, soltou: – Eu devia ter salvado outro bebê. – Então virou-se e foi atrás de seu terrível exército sofrido.
Sarai sentiu-se estapeada. Rubi, Pardal e Feral a cercaram.
– Estou contente que ela a tenha salvado – falou Pardal, acariciando seus braços e cabelos.
– Eu também – ecoou Rubi.
Mas Sarai estava imaginando um berçário cheio de filhos de deuses – meninas e meninos com pele azul e magia ainda não descoberta – e humanos no meio deles com facas de cozinha. De certa forma, Minya havia livrado os quatro disso. Sarai sempre sentiu o estreito golpe de sorte – como um machado passando perto o bastante para cortar as pontas de suas bochechas – por Minya tê-la salvado. De que ela tinha sobrevivido em vez de um dos outros.
E, antigamente, sobreviver se parecia com um fim. Mas agora... começava a parecer uma vantagem sem objetivo.
Sobreviver para quê?
30
NOME ROUBADO, CÉU ROUBADO
Lazlo não ficou na casa de Suheyla para o café da manhã. Ele achou que mãe e filho gostariam de um tempo sozinhos depois de dois anos de separação. Ele esperou para encontrar Eril-Fane – e tentou guardar seu novo conhecimento em silêncio em seus olhos quando o encontrou. Era difícil; o horror parecia gritar dentro de si. Tudo sobre o herói parecia diferente agora que sabia dessa pequena lasca de informação sobre o que o homem havia passado.
Ele colocou a sela em Lixxa e cavalgou por Lamento, perdendo-se agradavelmente.
– Você parece bem descansada – disse a Calixte, que estava comendo na sala de jantar da câmara quando ele finalmente a encontrou.
– Você não – ela respondeu. – Esqueceu de dormir?
– Como ousa? – provocou, suavemente, sentando-se à mesa. – Você está sugerindo que não estou com perfeito frescor?
– Eu nunca seria tão mal-educada a ponto de sugerir um frescor imperfeito. – Ela deu uma mordida grande em um doce. – Contudo – disse com a boca cheia –, você está cultivando manchas azuis debaixo dos olhos. Então, a menos que tenha recebido socos muito simétricos, aposto que não dormiu o suficiente. Além disso, com o estado de deslumbramento extático em que você estava ontem, não esperava que você fosse capaz de sentar quieto, quanto menos dormir.
– Em primeiro lugar: quem iria me dar um soco? Em segundo lugar: deslumbramento extático. Falou bem.
– Em primeiro lugar: Thyon Nero adoraria socar você. Em segundo lugar: obrigada.
– Ah, ele – disse Lazlo. Podia ter sido uma brincadeira, mas a animosidade do afilhado dourado era palpável. Os outros a sentiam, mesmo que não tivessem ideia do que estava por trás dela. – Entretanto, acho que ele é o único.
Calixte suspirou.
– Você é tão ingênuo, Estranho. Se eles não queriam antes, agora todos eles querem socá-lo por causa da bolsa das teorias. Drave especialmente. Você devia ouvi-lo falando. Ele colocou muitas pratas lá dentro, o tolo. Acho que ele pensou que era uma loteria e, se fizesse mais apostas, seria mais provável ganhar. Enquanto você fez uma só – uma aposta ridícula – e ganhou. Estou abismada de ele não o ter socado ainda.
– Thakra me salvou da bolsa das teorias – disse Lazlo, displicentemente invocando a divindade local, Thakra. Ela era a comandante dos seis serafins, de acordo com a lenda e com o livro sagrado, e seu templo ficava atravessando uma ampla avenida na frente da câmara.
– Salvá-lo de quinhentas pratas? – perguntou Calixte. – Acho que posso ajudá-lo com isso.
– Obrigado, acho que eu me viro – disse Lazlo, que, na verdade, não tinha ideia de onde começar com tanto dinheiro. – Mas como me salvará de explosionistas rancorosos e alquimistas com má vontade?
– Eu vou. Não se preocupe. É culpa minha e assumo total responsabilidade por você.
Lazlo riu. Calixte era magra como um hreshtek, mas bem menos perigosa do que um. Ainda assim, ele não a via como inofensiva, mas sabia que ele era, apesar das aulas de Ruza quanto a atirar lanças.
– Obrigado. Se eu for atacado, vou gritar histericamente e você pode ir me salvar.
– Vou enviar Tzara – disse Calixte. – Ela é magnífica quando luta. – Então acrescentou, com um sorriso secreto: – Embora ela seja ainda mais magnífica fazendo outras coisas.
Calixte não estava errada em chamar Lazlo de ingênuo, mas, mesmo que coisas como amantes fossem remotas para ele, o rapaz entendeu o sorriso e o tom afetuoso em sua voz. Suas bochechas coraram, para o prazer dela.
– Estranho, você está ruborizando.
– Claro que estou – ele admitiu. – Sou um perfeito inocente. Eu ficaria vermelho ao ver a clavícula de uma mulher.
Enquanto ele disse aquilo, uma quase memória cutucou sua mente. As clavículas de uma mulher, e o maravilhoso espaço entre elas. Mas onde ele teria visto isso...? E, então, Calixte puxou sua blusa para o lado a fim de revelar a própria clavícula, e Lazlo riu, perdendo a memória.
– Bom trabalho desnudando o rosto, a propósito – ela disse, balançando os dedos sob o queixo para indicar a barba de Lazlo. – Eu me esqueci de como era aí debaixo.
Ele sorriu.
– Ah. Bem, desculpe lembrá-la, mas estava coçando.
– O que você quer dizer com essas desculpas? Você tem um rosto excelente! – a moça respondeu, examinando-o. – Não é bonito, mas há outras formas de um rosto ser excelente.
Ele tocou no ângulo pronunciado de seu nariz.
– Eu tenho um rosto – era o máximo que ele estava disposto a dizer.
– Lazlo – chamou Eril-Fane do outro lado da sala –, reúna todos, está bem?
Lazlo assentiu e levantou-se.
– Considere-se reunida – ele informou Calixte, antes de ir procurar o resto da equipe.
– Grite se precisar que eu o salve – a moça respondeu.
– Sempre.
Havia chegado a hora de discutir o “problema” de Lamento pra valer. Lazlo já sabia um pouco por meio de Ruza e Suheyla, mas os outros estavam ouvindo pela primeira vez.
– Nossa esperança ao trazê-los aqui – explicou Eril-Fane, dirigindo-se a eles no belo salão da câmara – é de que vocês encontrem uma forma de nos libertar daquela coisa no nosso céu. – Ele olhou de um rosto para o outro, e Lazlo se lembrou daquele dia no teatro da Grande Biblioteca, quando o olhar do Matador de Deuses recaíra sobre ele, e seu sonho havia assumido uma nova clareza: não só ver a Cidade Perdida, mas ajudá-la.
– Um dia já fomos uma cidade de conhecimento – continuou Eril-Fane. – Nossos ancestrais nunca tiveram que buscar forasteiros para pedir ajuda – falou com um tom de vergonha. – Mas isso está no passado. Os Mesarthim, eles eram... notáveis. Deuses ou outra coisa, eles poderiam ter cuidado do nosso medo e o transformado em reverência, conquistando uma verdadeira idolatria. Mas cuidar não era o jeito deles. Eles não vieram para oferecer-se como uma escolha ou ganhar nossos corações. Eles vieram para dominar, total e brutalmente, e a primeira coisa que fizeram foi nos quebrar.
– Antes mesmo de se apresentarem, soltaram as âncoras. Vocês as viram. Eles não as derrubaram. O impacto teria levado abaixo todas as estruturas da cidade e arruinado os canais subterrâneos, represando o Uzumark que corre sob nossos pés e inundando todo o vale. Eles queriam nos governar, não nos destruir, e nos escravizar, não nos massacrar, então deliberadamente colocaram as âncoras e esmagaram apenas o que estava debaixo delas, incluindo a universidade e a biblioteca, a guarnição dos Tizerkane e o palácio real.
Eril-Fane havia mencionado a biblioteca antes. Lazlo se perguntou sobre ela, e que textos preciosos se perderam junto. Será que havia histórias sobre a época dos ijji e dos serafins?
– Foi tudo terrivelmente organizado. Exército, guardiães da sabedoria e família real obliterados em minutos. Qualquer um que tenha escapado foi encontrado nos dias seguintes. Os Mesarthim sabiam tudo. Nenhum segredo podia ser escondido deles. E isso era tudo. Eles não precisavam de soldados, quando tinham sua mágica para... – Ele fez uma pausa, cerrando os dentes. – Para nos controlar. E, então, nosso conhecimento se perdeu, junto com nossa liderança e muitas outras coisas. Uma cadeia de conhecimento passado ao longo de séculos, e uma biblioteca para fazer inveja até mesmo a sua grande Zosma. – Aqui ele sorriu levemente para Lazlo. – Desaparecidos em um instante. Acabados. Nos anos que se seguiram, a busca do conhecimento foi punida. Toda ciência e investigação morreram. O que nos traz a vocês – ele disse aos delegados. – Espero ter escolhido bem.
Agora, finalmente, suas variadas áreas de expertise faziam sentido. Mouzaive, o filósofo natural: para o mistério da suspensão da cidadela. Como ela flutuava? Soulzeren e Ozwin para chegar a ela em seus trenós de seda. Os engenheiros para projetar quaisquer estruturas que fossem necessárias. Belabra para os cálculos. Os gêmeos Fellering e Thyon por causa do metal.
Mesarthium. Eril-Fane explicou-lhes suas propriedades – sua impenetrabilidade a tudo, ao calor, a todas as ferramentas. Tudo, quer dizer, exceto por Skathis, que o manipulava com a mente.
– Skathis controlava o mesarthium – explicou – e assim controlava... tudo.
Metal mágico telepaticamente moldado por um deus e impenetrável a tudo. Lazlo observou as reações dos delegados e podia entender sua incredulidade, certamente, mas havia uma grande instigação ali para acreditar no inacreditável. Ele acreditara que aquele ceticismo automático havia cedido com a visão do enorme serafim flutuando no céu.
– Certamente ele pode ser cortado – afirmou um dos Fellerings. – Com os instrumentos certos e o conhecimento.
– Ou fundido, com calor suficiente – acrescentou o outro, com uma confiança que esbarrava na arrogância. – As temperaturas que podemos atingir com nossas caldeiras são facilmente o dobro do que os seus ferreiros podem alcançar.
Thyon, por sua vez, não disse nada, e havia mais arrogância em seu silêncio do que na fanfarrice dos Fellerings. Seu convite para a delegação estava claro agora. O azoth não era apenas um meio de fazer ouro, na verdade. Ele também produzia o alkahest, o solvente universal – um agente capaz de dissolver qualquer substância no mundo: vidro, pedra, metal e até diamante. Será que o mesarthium também se dissolveria?
Se sim, então ele bem podia ser o segundo libertador de Lamento. Que honra para sua fama, Lazlo pensou, com uma pontada de mágoa: Thyon Nero, o libertador da sombra.
– Por que não vamos até lá? – sugeriu Eril-Fane, diante da incredulidade de seus convidados. – Eu os apresentarei ao mesarthium. É um bom ponto de partida.
A âncora do norte era a mais próxima, perto o suficiente para ir andando até ela – e a caminhada os levou pela faixa de luz chamada de Avenida, embora não fosse uma avenida. Era o único lugar em que a luz do sol incidia sobre a cidade, passando pelo vão onde as asas do serafim uniam-se na frente e não se encontravam direito.
Era ampla como uma avenida e atravessá-la quase fazia parecer que alguém havia passado do crepúsculo para o dia e de volta à escuridão em alguns passos. Ela percorria metade da extensão da cidade e se tornara terreno mais cobiçado, muito embora a maior parte da luz incidisse sobre bairros mais humildes. Havia luz, e aquilo era tudo. Nessa única faixa banhada de sol, Lamento era tão verde quanto Lazlo sempre tinha imaginado e, em contraste, o restante da cidade parecia mais morto.
As asas nem sempre haviam sido estendidas como estavam agora, Eril-Fane explicou a Lazlo.
– Foi o ato de morte de Skathis: roubar o céu, como se já não tivesse roubado o bastante. – Ele olhou para a cidadela lá em cima, mas não por muito tempo.
E não só o céu fora roubado naquele dia, Lazlo ficou sabendo, descobrindo, enfim, a resposta para a pergunta que o tinha assombrado desde que era criança.
Que poder é capaz de aniquilar um nome?
– Foi Letha – Eril-Fane contou. Lazlo já conhecia o nome: deusa do oblívio, mestra do esquecimento. – Ela o comeu. Engoliu-o enquanto morria, e ele morreu com ela.
– Vocês não podiam renomeá-la? – Lazlo perguntou.
– Você acha que não tentamos? A maldição é muito poderosa. Todo nome que damos sofre o mesmo destino que o primeiro. Apenas Lamento permanece.
Nome roubado. Céu roubado. Filhos roubados. Anos roubados. O que os Mesarthim foram, Lazlo pensou, foram ladrões em uma escala épica.
A âncora dominava a paisagem, uma grande massa desajeitada atrás das silhuetas dos domos. Ela fazia todo o resto parecer pequeno, como um pequeno vilarejo de brinquedo construído para crianças. E no topo estava uma das estátuas que Lazlo não conseguia distinguir claramente, fora o fato de parecer bestial – com chifres e asas. Viu Eril-Fane olhando-a também, estremecer e desviar o olhar.
Os dois se aproximaram do muro proibitivo de metal azul, e seus reflexos deram um passo à frente para encontrá-los. Havia algo no metal, de perto – o volume, o brilho, a cor, uma estranheza indefinível –, que provocou um silêncio à medida que estenderam as mãos com vários graus de cautela para tocá-lo.
Os Fellerings haviam trazido uma maleta de instrumentos e começaram a trabalhar imediatamente. Thyon distanciou-se dos outros para examinar à sua própria maneira, com Drave o seguindo, oferecendo-se para segurar sua mochila.
– É liso – atestou Calixte, correndo as mãos pela superfície. – Parece molhado, mas não é.
– Você nunca vai escalar isso – disse Ebliz Tod, tocando-o.
– Quer apostar? – ela retrucou, com o brilho do desafio nos olhos.
– Cem pratas.
Calixte ridicularizou-o.
– Prata. Que chatice.
– Sabe como resolvemos as disputas em Thanagost? – indagou Soulzeren. – Roleta de veneno. Distribua uma rodada de tragos e misture veneno de serpaise em um deles. Você descobrirá que perdeu quando morrer sufocado.
– Você é louca – disse Calixte, admirada. Ela olhou para Tod. – Acho que Eril-Fane pode querê-lo vivo.
– Pode? – Tod indignou-se. – Você que é a pessoa descartável aqui.
– Você é desagradável, não? – ela retrucou. – Pois lhe digo, se eu ganhar, você terá que construir uma torre para mim.
Ele riu alto.
– Construo torres para reis, não para garotinhas.
– Você constrói torres para os cadáveres dos reis – ela respondeu. – E se tem tanta certeza de que não consigo escalar, onde está o risco? Não estou pedindo por uma Espiral de Nuvem. Pode ser uma torre pequena. Não vou precisar de um túmulo mesmo. Por mais que eu mereça a veneração eterna, pretendo nunca morrer.
– Boa sorte com isso – disse Tod. – E se eu ganhar?
– Hummm... – ela ponderou, batendo o dedo no queixo. – O que diz de uma esmeralda?
Ele a observou, impassivo.
– Você não escapou com nenhuma esmeralda.
– Ah, talvez você esteja certo – ela sorriu. – O que eu saberia sobre isso?
– Me mostre, então.
– Se eu perder, mostrarei. Mas se eu ganhar, você só terá que se perguntar se tenho mesmo ou não.
Tod considerou por um momento, seu rosto carrancudo e calculista.
– Sem corda – ele estipulou.
– Sem corda – ela concordou.
Ele tocou o metal novamente, avaliando quão liso era. Ele deve ter reforçado sua certeza de que era impossível escalar, porque aceitou os termos de Calixte. Uma torre contra uma esmeralda. Aposta justa.
Lazlo foi até onde o muro estava livre e passou a mão pela superfície. Como Calixte havia dito, era liso, não meramente polido. E duro e frio, como é de se esperar de um metal à sombra, e sua pele deslizou sem nenhum tipo de fricção. Ele esfregou as pontas dos dedos e continuou pela extensão da âncora. Mesarthium, Mesarthim. Metal mágico, deuses mágicos. De onde eles teriam vindo?
Do mesmo lugar que os serafins? “Eles vieram dos céus”, dizia o mito – ou a história, se de fato tudo fosse verdade. E de onde antes disso? O que havia além do céu?
Será que vieram do grande todo negro cheio de estrelas que era o universo?
Os “mistérios de Lamento” não eram mistérios de Lamento, Lazlo pensou. Eles eram bem maiores do que este lugar. Maiores do que o mundo.
Chegando à esquina da âncora, ele espiou do outro lado e viu uma viela que se dissolvia em pedregulhos. Aventurou-se por ela, ainda esfregando a mão no mesarthium. Olhando para a ponta de seus dedos, percebeu que estavam de um cinza pálido. Ele os esfregou na camisa, mas a cor não saiu.
Do lado oposto ao muro de metal havia uma fileira de casas destruídas, ainda de pé como estavam antes da âncora, mas com as paredes laterais retiradas, como casas de boneca, abertas de um lado. Eram casas de bonecas decrépitas. Ele pôde ver dentro de antigas salas e cozinhas, e imaginar as pessoas que tinham vivido lá no dia em que seu mundo mudou.
Lazlo se perguntou o que estava debaixo dessa âncora. A biblioteca, o palácio ou a guarnição? Os ossos esmagados de reis, guerreiros ou guardiães do conhecimento? Era possível que algum livro tenha sobrevivido intacto?
Seus olhos notaram um trecho de cor à frente. Estava em um muro abandonado de pedra diante do muro de mesarthium, e a viela era estreita demais para Lazlo vê-lo a distância. Só quando se aproximou pôde decifrar que era uma pintura, e só quando estava de frente para o quadro conseguiu ver o que ela retratava.
Ele olhou para ela. E olhou. O choque geralmente chega como um golpe, repentino e inesperado. Mas, nesse caso, tomou conta dele lentamente, à medida que compreendeu a imagem e lembrou-se do que havia, até aquele momento, esquecido.
Só podia ser uma imagem dos Mesarthim. Havia seis deles: três mulheres de um lado, três homens do outro. Todos estavam mortos ou morrendo – espetados, retalhados ou esquartejados. E entre eles, inequivocamente, grandioso, e com seis braços para segurar seis armas, estava o Matador de Deuses. A imagem era grosseira. Quem quer que tivesse feito a pintura não era um artista treinado, mas havia uma intensidade bruta nela que era muito poderosa. Essa era uma pintura de vitória. Era brutal, sangrenta e triunfante.
O motivo do choque de Lazlo não era a violência dela – o sangue espirrando ou a quantidade de tinta vermelha usada para ilustrá-lo. Não havia sido o vermelho que chamou a sua atenção, mas o azul.
Em todas as conversas sobre os Mesarthim até então, ninguém pareceu achar importante mencionar que – se esse mural estivesse correto – eles tinham sido azuis. Assim como seu metal.
E da mesma forma que a garota no sonho de Lazlo.
Como ele podia tê-la esquecido? Foi como se ela tivesse entrado atrás de uma cortina em sua mente e, quando viu o mural, a cortina caiu e ela estava lá: a garota com a pele da cor do céu, que tinha ficado tão perto dele, estudando-o como se ele fosse uma pintura. Até as clavículas eram dela – a coceirinha em sua memória, de onde ele olhou para baixo no sonho e corou ao ver mais da anatomia feminina do que já vira na vida real. O que o fato de ter sonhado com uma garota com roupas de baixo dizia sobre ele?
Mas ela não estava aqui nem lá. Ali estava ela, no mural. Grosseiro como era, sem capturar o que havia de adorável nela, era uma semelhança inequívoca, desde o cabelo – o rico vermelho-escuro do mel de flores silvestres – até a severa faixa pintada sobre os olhos como uma máscara. Diferente da garota em seu sonho, contudo, esta estava usando um vestido.
Além disso... sua garganta estava aberta e esguichando sangue.
Ele deu um passo para trás, sentindo-se nauseado, como se estivesse observando um corpo real e não a retratação de uma garota assassinada que ele viu em um sonho.
– Tudo bem aí?
Lazlo olhou em volta. Era Eril-Fane na entrada da viela. Dois braços, não seis. Duas espadas, e não um arsenal pessoal de lanças e alabardas. Essa pintura, grosseira e ensanguentada, acrescentava ainda outra dimensão à ideia que Lazlo fazia dele. O Matador de Deuses havia matado deuses. Bem, é claro. Mas Lazlo nunca tinha, de fato, formado uma imagem para corresponder à ideia antes, ou se tinha, era uma imagem vaga, e as vítimas eram monstruosas. Não de olhos arregalados e descalças, como a garota em seu sonho.
– Era assim que eles eram? – ele indagou.
Eril-Fane veio olhar. Seus passos desaceleraram quando percebeu o que o mural retratava. Ele apenas assentiu, sem desviar o olhar dele.
– Eles eram azuis – disse Lazlo.
Mais uma vez, Eril-Fane assentiu.
Lazlo olhou para a deusa com a máscara preta pintada, e imaginou, interposta sobre os traços grosseiramente desenhados, os traços delicados que vira na noite anterior.
– Quem é ela?
Eril-Fane levou um momento para responder, e sua voz, quando respondeu, era rouca e quase baixa demais para ouvir.
– Essa é Isagol. Deusa do desespero.
Então esta era ela, o monstro que o havia mantido por três anos na cidadela. Havia tanto sentimento na forma como ele pronunciara seu nome, e era difícil entender porque não era... puro. Era ódio, mas havia tristeza e vergonha misturados também. Lazlo tentou olhar para seu rosto, mas o homem já estava se afastando. Ele observou-o partir e analisou uma última vez a pintura assustadora antes de segui-lo. Observou as manchas, linhas e riachos de vermelho, e este mais novo mistério não era um caminho de linhas iluminadas em sua mente. Era mais como pegadas sangrentas levando para a escuridão.
Como era possível, perguntou-se, que ele tivesse sonhado com a deusa assassinada antes de saber qual era sua aparência?
31
AMORES E VÍBORAS
Do coração da cidadela, Sarai retornou ao seu quarto. Os “soldados” de Minya estavam por toda parte armados com facas, cutelos, picadores de gelo. Eles até tiraram os ganchos de metal da sala da chuva. Em algum lugar havia um arsenal de verdade, mas ele estava fechado atrás de uma sucessão de portas de mesarthium seladas e, de qualquer forma, Minya achava que as facas eram armas apropriadas para uma carnificina. Afinal, eram elas que os humanos haviam usado no berçário.
Não tinha como escapar do exército, principalmente para Sarai, uma vez que seu quarto era voltado para a palma azul-prateada do serafim, iluminada pelo sol. Os fantasmas estavam lá em grande número, e isso fazia sentido, pois o terraço era o lugar perfeito para um veículo pousar, muito melhor do que o jardim com suas árvores e vinhas. Quando o Matador de Deuses viesse, ele chegaria por ali e Sarai seria a primeira a morrer.
Será que ela deveria então agradecer a Minya por sua proteção?
– Vocês não veem? – Minya havia dito, revelando-lhes seu exército. – Estamos seguros!
Entretanto, Sarai nunca se sentira tão desprotegida. Seu quarto fora violado por fantasmas prisioneiros e ela temia que, ao cair no sono, o que a esperava fosse ainda pior. Sua bandeja estava aos pés da cama: lull e ameixas, como em todas as manhãs, embora normalmente nesse horário já estivesse dormindo profundamente e perdida no esquecimento de Letha. Será que o lull funcionaria hoje? Havia meia dose extra, como Grande Ellen havia prometido. Será que tinha sido apenas um acaso no dia anterior?, Sarai se perguntou. Por favor, desejou, desesperada pelo veludo triste do seu vazio. Terrores se agitavam dentro de si e imaginou que podia ouvir um ruído de gritos impotentes nas cabeças de todos os fantasmas. Ela também queria gritar. Não havia sensação de segurança, pensou, abraçando um travesseiro contra o peito.
Sua mente lhe ofereceu uma exceção improvável.
O sonho do faranji. Ela tinha se sentido segura lá.
A memória despertou um silvo desesperado de... pânico? Excitação? Seja lá o que fosse, ela contradizia a própria sensação de segurança que tinha conjurado o pensamento nele para começo de conversa. Sim, o sonho tinha sido doce, mas... ele a havia visto.
O olhar em seu rosto! A admiração, o encantamento. Seus corações aceleraram com o pensamento e suas mãos ficaram úmidas. Não era algo pequeno viver uma vida de não existência e, de repente, ser vista.
Quem era ele, afinal? De todos os sonhos dos faranji, apenas o dele não dera nenhuma pista do motivo pelo qual Eril-Fane o havia levado para lá.
Exausta, amedrontada, Sarai bebeu seu lull e deitou-se na cama. Por favor, pediu, fervorosa – uma espécie de oração para a bebida amarga. Por favor, funcione.
Por favor, afaste os pesadelos.
Lá fora, em seu jardim, Pardal estava com os olhos baixos. Desde que se concentrasse nas folhas e botões, caules e sementes, podia fingir que era um dia normal e que não havia fantasmas fazendo a guarda sob a arcada.
Ela estava fazendo um presente de aniversário para Rubi, que faria dezesseis anos em alguns meses... caso ainda estivessem vivos.
Considerando o exército de Minya, Pardal achou que as chances deles eram boas, mas ela não queria ter de considerar o exército de Minya. Ele a fazia se sentir segura e infeliz ao mesmo tempo, então ela mantinha os olhos baixos e cantarolava, tentando esquecer que eles estavam lá.
Outro aniversário para celebrar sem bolo. As opções para presentes também eram poucas. Normalmente, as garotas desfaziam algum dos horríveis vestidos de seus guarda-roupas e o transformavam em outra coisa. Talvez um cachecol. Um ano, Pardal havia feito uma boneca com rubis de verdade no lugar dos olhos. Seu quarto tinha sido de Korako, então ela tinha todos os vestidos e joias dela para usar, enquanto Rubi tinha os de Letha. As deusas não eram suas mães, como Isagol era de Sarai. As duas eram filhas de Ikirok, deus da folia, que também servira como carrasco em seu tempo livre. Então, elas eram meias-irmãs e as únicas dos cinco que eram parentes de sangue. Feral era filho de Vanth, deus das tempestades – cujo dom ele tinha mais ou menos herdado – e Minya era filha de Skathis. Sarai era a única cujo sangue dos Mesarthim vinha do lado materno. Era raro as deusas darem à luz, de acordo com a Grande Ellen. Uma mulher só podia ter um bebê por vez, ocasionalmente dois. Mas os homens eram capazes de fecundar quantas mulheres quisessem, contanto que houvesse mulheres.
De longe, a maioria dos bebês do berçário tinha sido fecundada em garotas humanas pela trindade de deuses.
O que significava que, em algum lugar de Lamento, Pardal tinha uma mãe.
Quando ela era pequena, demorou para entender ou acreditar que sua mãe não a queria.
– Eu poderia ajudá-la no jardim – ela disse a Grande Ellen. – Eu poderia ser de grande ajuda, sei que poderia.
– Também sei que você poderia, querida – respondeu Grande Ellen –, mas precisamos de você aqui. Como poderíamos viver sem você?
Ela tentou ser gentil, mas Minya não sofria de tal compunção.
– Se a encontrassem no jardim deles, lhe dariam um golpe na cabeça com a enxada e a jogariam fora junto com o lixo. Você é cria de deuses, Pardal. Eles nunca irão querê-la.
– Mas também sou humana – a garota insistiu. – Será que eles podem ter esquecido disso? De que somos seus filhos também?
– Você não entende? Eles nos odeiam mais porque somos deles.
E Pardal não entendia, não na época, mas enfim aprendeu – a partir de uma grosseira e inacreditável afirmação de Minya, seguida de uma explicação gentil e esclarecedora de Grande Ellen – a... mecânica da procriação, e isso mudou tudo. Ela sabia agora qual deveria ter sido a natureza de sua própria concepção e embora o conhecimento fosse uma coisa obscura e vaga, sentiu o horror disso como o peso de um corpo indesejado, o que lhe deu um nó na garganta. É claro que nenhuma mãe iria querê-la, não depois de um começo como esse.
Ela se perguntou quantos dos fantasmas do exército de Minya tinham sido usados assim pelos deuses. Havia muitas mulheres e a maioria era mais velha. Quantas teriam parido bebês dos quais não se lembravam nem desejavam se lembrar?
Pardal manteve os olhos em suas mãos e trabalhou no seu presente, cantarolando baixinho para si mesma. Tentou não pensar se todos ainda estariam vivos no aniversário de Rubi ou que tipo de vida teriam caso estivessem. Ela focou em suas mãos e na sensação calmante de crescimento fluindo delas. Ela estava fazendo um bolo de flores. Ah, não era nada que pudessem comer, mas era bonito e a lembrava do passado, quando ainda havia açúcar na cidadela e alguma medida de inocência também, antes de ela entender sua própria atrocidade.
O bolo tinha até botões de bastão-do-imperador no lugar de velas: dezesseis deles. Ela o daria a Rubi no jantar, pensou. Ela poderia acendê-los com o próprio fogo, fazer um pedido e soprá-los.
Feral estava em seu quarto, olhando para o seu livro. Ele virou as páginas de metal e traçou os símbolos angulares e ásperos com a ponta do dedo.
Se fosse necessário, era capaz de replicar o livro inteiro de cor – de tão bem que o conhecia. Mas isso não adiantava muito, uma vez que não conseguia extrair nenhum significado daquilo. Às vezes, quando se concentrava demais nos símbolos, seus olhos perdiam o foco e então tinha a sensação de que podia ver dentro do metal e sentir um potencial pulsante e dormente. Como um cata-vento esperando por uma rajada para girá-lo. Esperando e desejando que ela viesse.
O livro queria ser lido, Feral pensava. Mas qual era a natureza da rajada capaz de mover esses símbolos? Ele não sabia. Só sabia – ou, pelo menos, suspeitava fortemente – que, se pudesse ler esse alfabeto críptico, poderia descobrir os segredos da cidadela. Poderia proteger as garotas, em vez de meramente... bem, mantê-las hidratadas.
Ele sabia que a água não era uma questão irrelevante e que todos teriam morrido sem seu dom, então ele não tendia a se remoer muito por não ter o poder de Skathis. Esse remorso, em particular, era de Minya, mas às vezes ele também caía vítima desse anseio. É claro, se pudessem controlar o mesarthium, estariam livres e salvos, sem mencionar que seriam indestrutíveis. Mas ninguém o controlava e era inútil perder tempo desejando-o.
Contudo, Feral tinha certeza que se pudesse desvendar o livro, poderia fazer... alguma coisa.
– O que você está fazendo aí? – a voz de Rubi veio da porta.
Ele olhou para cima e fez uma carranca quando viu que ela tinha colocado a cabeça para dentro.
– Respeite a cortina – ele disse, e voltou os olhos ao seu livro.
Mas Rubi não respeitou a cortina. Ela simplesmente rodopiou em seus pés descalços azuis, arqueados e expressivos. Suas unhas dos pés estavam pintadas de vermelho e ela estava vestindo vermelho, estava também com uma expressão determinada que o teria alarmado caso o garoto a tivesse olhado – o que ele não fez. Ele se retesou um pouco. Isso foi tudo.
Ela fez uma carranca por cima de sua cabeça baixa, como ele tinha feito para ela na porta. Era um começo nada promissor. Livro estúpido, ela pensou. Livro estúpido.
Mas ele era o único garoto. Tinha lábios mais quentes do que os fantasmas. Tudo mais quente, ela supunha. Mais importante, Feral não tinha medo dela, o que devia ser mais divertido do que se encostar em um fantasma meio paralisado e dizer-lhe o que fazer a cada poucos segundos. Coloque suas mãos aqui. Agora aqui.
Tão chato.
– O que você quer, Rubi? – perguntou Feral.
Ela estava perto dele agora.
– O lance dos experimentos – explicou ela – é que eles precisam ser repetidos ou então não valem nada.
– O quê? Que experimento? – Ele se virou para ela. Sua testa estava franzida: meio pela confusão, meio pela irritação.
– Beijar – a garota respondeu. Ela tinha dito antes: “esse é um experimento que não vou repetir”. Pois bem. À luz de sua aceleração em direção à ruína, ela tinha reconsiderado.
Ele não.
– Não – ele disse, seco, e virou-se novamente.
– É possível que eu estivesse errada – a garota explicou, com um ar de grande generosidade. – Decidi lhe dar uma nova chance.
Cheio de sarcasmo:
– Obrigado pela generosidade, mas eu dispenso.
A mão de Rubi desceu sobre o livro.
– Escute. – Ela empurrou o livro e sentou-se na beirada da mesa. Sua camisola subiu nas coxas, a pele tão lisa e sem atrito quanto o mesarthium, ou quase.
Contudo, muito mais macia.
Ela apoiou os pés na beirada da cadeira.
– Provavelmente nós vamos morrer – ela disse, em um tom prático. – E, de qualquer forma, mesmo que não morramos, estamos aqui. Estamos vivos. Temos corpos. Bocas. – Ela fez uma pausa e acrescentou, provocativa, passando-a entre os dentes: – Línguas.
Feral corou.
– Rubi... – ele começou a dizer em um tom de rejeição.
Ela o interrompeu.
– Não tem muita coisa para fazer aqui em cima. Não há nada para ler. – Ela apontou para o livro dele. – A comida é ruim. Não tem música. Nós inventamos oito mil jogos e já enjoamos de todos eles. Por que não inventar outra coisa? – sua voz estava ficando rouca. – Não somos mais crianças e temos lábios. Não é motivo suficiente?
Uma voz na cabeça de Feral garantiu-lhe que aquilo não era motivo suficiente. Que ele não queria mais experimentar a saliva de Rubi. Que ele não queria, na verdade, passar mais tempo com ela do que já passava. Podia até mesmo ter uma voz lá em algum lugar ressaltando que se ele tivesse de... passar mais tempo... com uma das garotas, não seria com ela. Quando ele brincou com Sarai sobre casar-se com todas elas, fingiu que não era algo sobre o qual pensasse muito, mas ele pensava. Como não? Ele era um garoto preso com garotas, elas podiam ter sido como irmãs, mas não eram irmãs, e elas eram... bem, elas eram bem bonitas. Sarai primeiro, depois Pardal, se ele tivesse de escolher. Rubi seria a última.
Mas aquela voz parecia vir de muito longe e Sarai e Pardal não estavam lá naquele momento, enquanto Rubi estava muito perto e cheirava tão bem.
E, como ela disse, provavelmente todos iriam morrer.
A bainha de sua camisola era fascinante. Seda vermelha e pele azul contrastavam, as cores pareciam vibrar. E a forma como os joelhos dela estavam unidos, um por cima do outro só um pouquinho e a sensação do pé dela roçando debaixo do seu joelho. Ele não podia deixar de achar os argumentos dela... atraentes.
A garota inclinou-se para a frente, só um pouquinho. Todos os pensamentos sobre Sarai e Pardal desapareceram.
Ele se inclinou para trás o mesmo tanto.
– Você disse que eu era terrível – ele a lembrou, sua própria voz tão rouca quanto a dela.
– E você disse que eu te afoguei – ela respondeu, aproximando-se um pouco mais.
– Tinha mesmo muita saliva – ele observou. Talvez imprudentemente.
– E você foi tão sensual quanto um peixe morto – ela retrucou, sua expressão se fechando.
A situação ficou delicada por um momento. “Meus amores, minhas víboras”, Grande Ellen os havia chamado. Bem, eles eram todos amores e víboras, todos eles. Ou, talvez Minya fosse toda víbora e Pardal fosse toda amor, mas o resto deles era apenas... Era apenas corpo e espírito, juventude e magia, desejo e sim, saliva, tudo isso sufocado, sem lugar para sair. Massacre atrás deles, massacre à frente, e fantasmas por toda parte.
Mas ali, de repente, havia uma distração, fuga, novidade, sensação. O movimento dos joelhos de Rubi era uma espécie de poesia azul e, quando se está tão perto assim de alguém, não vê seus movimentos tanto quanto sente a compressão do ar entre vocês. O roçar da pele, o deslizar. Rubi se moveu e com um simples serpentear furtivo sentou-se no colo de Feral. Seus lábios encontraram os dele. Ela não era nada sutil com a língua. Suas mãos entraram para a festa, pareciam dezenas delas em vez de quatro, e também havia palavras, porque Rubi e Feral ainda não haviam aprendido que não é realmente possível conversar e beijar ao mesmo tempo.
Então levou um momento para acertar isso.
– Acho que vou te dar uma outra chance – admitiu Feral, sem fôlego.
– Sou eu que estou te dando outra chance – Rubi corrigiu, um fio da saliva mencionada brilhando entre seus lábios quando ela se afastou para falar.
– Como vou saber se você não vai me queimar? – Feral perguntou, enquanto deslizava sua mão pelo quadril dela.
– Ah – disse Rubi, despreocupada –, isso só aconteceria se eu perdesse completamente o controle. – Línguas movendo-se com ímpeto, colidindo. – Você teria que ser muito bom. – Dentes batendo. Narizes também. – Não estou preocupada.
Feral quase se ofendeu, mas havia muitas coisas agradáveis acontecendo, então ele aprendeu a segurar a língua, ou melhor, a empregá-la em um propósito mais interessante do que discutir.
Você pode pensar que lábios e línguas ficam sem coisas para experimentar, mas isso não acontece.
– Coloque sua mão aqui – sussurrou Rubi, e ele obedeceu. – Agora aqui – ela ordenou, e ele não colocou. Para satisfação dela, as mãos de Feral tinham uma centena de ideias próprias, e nenhuma delas era entediante.
O coração da cidadela estava vazio de fantasmas. Pela primeira vez em uma década, Minya o tinha para si. Ela se sentou na passagem que dava a volta na circunferência da grande sala esférica, com as pernas penduradas para fora – pernas magras e curtas. Elas não estavam balançando. Não havia nada infantil ou despreocupado na pose. Havia uma escassez de vida na pose, exceto por um sutil movimento para frente e para trás. A garotinha estava rígida, com olhos abertos e expressão impassível. As costas estavam eretas e as mão sujas estavam tão cerradas que os nós dos dedos pareciam prestes a rachar.
Seus lábios estavam se movendo. Muito pouco. Ela sussurrava alguma coisa, repetidamente. Ela havia voltado no tempo quinze anos, vendo essa sala de uma forma diferente.
O dia. O dia em que foi eternamente espetada, como uma mariposa presa pelo tórax com um longo e brilhante alfinete.
Naquele dia, ela havia pegado dois bebês e os segurado apenas com um braço. Ela não tinha gostado disso, tampouco seu braço, mas precisava do outro para arrastar as crianças pequenas: as duas mãozinhas delas presas à sua, molhadas e escorregadias de suor. Dois bebês em um braço, duas crianças tropeçando atrás dela.
Ela os tinha levado para lá, enfiado-os pelo vão da porta quase fechada e virado para correr e resgatar mais. Mas não havia mais crianças. Ela estava no meio do caminho para o berçário quando os gritos começaram.
Às vezes, sentia como se tivesse congelado por dentro no momento em que parou ao som daqueles gritos.
Na época, ela era a criança mais velha do berçário. Kiska, que podia ler mentes, tinha sido a última levada por Korako, para nunca mais voltar. Antes dela havia Werran, cujo grito semeava o pânico nas mentes de quem ouvia. Quanto a Minya, ela sabia qual era seu dom, pois o conhecia havia meses, mas não o estava demonstrando. Uma vez que descobrissem, levariam-na para longe, então ela guardou o segredo da deusa dos segredos e ficou no berçário pelo maior tempo possível. E, assim, ela ainda estava lá no dia em que os humanos se levantaram e mataram seus mestres. Isso não teria problema para ela – que não tinha amor pelos deuses –, caso tivessem parado por aí.
Ela ainda estava no corredor, ouvindo os gritos e seu terrível minguar sangrento. Ela sempre estaria lá e seus braços sempre seriam pequenos demais, assim como tinham sido naquele dia.
Contudo, de forma crucial, ela era diferente. Nunca permitiria a fraqueza ou a delicadeza novamente, ou que o medo ou a incapacidade a mantivesse congelada. Ela ainda não sabia do que era capaz. Seu dom não havia sido testado. É claro. Se ela o testasse, Korako a teria encontrado e levado-a embora. E, então, ela não conheceria a força de seu poder.
Ela poderia ter salvado a todos, se soubesse.
Houve tanta morte na cidadela naquele dia. Ela poderia ter se ligado àqueles fantasmas – até aos fantasmas dos deuses. Imagine.
Imagine.
Ela podia ter se ligado aos próprios deuses e colocado-os a seu serviço, Skathis também. Se ela soubesse o que fazer. Então, podia ter construído um exército e aniquilado o Matador de Deuses e todos os outros antes que chegassem ao berçário.
Em vez disso, ela salvou quatro crianças e, assim, ficou para sempre presa naquele corredor, ouvindo aqueles gritos serem silenciados um a um.
Sem fazer nada.
Seus lábios ainda estavam se movendo, sussurrando as mesmas palavras sem parar.
– Elas foram tudo o que consegui carregar. Elas foram tudo o que consegui carregar.
Não havia eco, nenhuma reverberação. A sala engolia os sons. Engoliu sua voz, suas palavras e suas desculpas eternas e inadequadas. Mas não suas memórias.
Ela nunca se livraria delas.
– Elas foram tudo o que consegui carregar.
– Elas foram tudo o que consegui carregar...
32
O ESPAÇO ENTRE OS PESADELOS
Sarai acordou engasgando com a sensação de uma centena de mariposas úmidas se espremendo em sua garganta. Foi tão real, tão real. Ela, de fato, acreditou que eram suas mariposas, que as havia engolido, nauseantes e vivas. Havia um gosto de sal e de fuligem – sal das lágrimas dos sonhadores, fuligem das chaminés de Lamento – e mesmo depois que recuperou o fôlego e percebeu que era um pesadelo, ainda podia sentir o gosto.
Obrigada, Minya, por esse horror novo em folha.
Não fora o primeiro horror do dia. Nem perto disso. Sua oração para o lull não fora atendida. A garota mal havia dormido por uma hora e o pouco sono que teve foi longe de ser revigorante. Sonhara com a própria morte de meia dúzia de maneiras diferentes, como se sua mente estivesse fazendo uma lista de alternativas. Um menu, por assim dizer, de formas de morrer.
Envenenamento.
Afogamento.
Queda.
Esfaqueamento.
Espancamento.
A garota havia até mesmo sido queimada viva pelos cidadãos de Lamento. E entre as mortes, ela era... o quê? Era uma garota em uma floresta escura que tinha ouvido um galho quebrar. O espaço entre os pesadelos era como o silêncio após a quebra, quando você sabe que seja lá quem tenha feito o ruído, está parado e o observando no escuro. Não havia mais o nada cinzento. A névoa do lull se dissolvera.
Todos os seus terrores estavam livres.
Ela se deitou de costas, seus lençóis chutados para longe, e olhou para o teto. O corpo estava exausto, a mente adormecida. Como o lull podia ter simplesmente parado de funcionar? No seu pulso havia uma cadência de pânico.
O que deveria fazer agora?
A sede e a vontade de ir ao banheiro a levaram a se levantar, mas a perspectiva de deixar a cama era desencorajadora. Sabia o que encontraria logo ali, mesmo dentro de seu próprio quarto:
Fantasmas com facas nas mãos.
Igual às velhas senhoras que a cercaram na cama, desesperadas com a incapacidade de matá-la.
Enfim levantou-se. Vestiu um robe e o que esperava que se passasse por dignidade e emergiu. Lá estavam eles, enfileirados entre a porta para a passagem e a porta que dava para o terraço: oito deles lá dentro; ela não podia ter certeza de quantos estavam fora na mão do serafim. Ela se endureceu e atravessou seu quarto.
Minya, ao que parecia, estava prendendo seu exército com tal controle que eles não podiam formar expressões faciais como a aversão ou o medo, que Sarai conhecia tão bem, mas os olhos permaneciam deles e era incrível ver o quanto podiam transmitir apenas com isso. Havia aversão e medo, sim, enquanto Sarai passou por eles, mas o que mais viu ali foram pedidos de socorro.
Ajude-nos.
Liberte-nos.
Não posso ajudar vocês, ela queria dizer, mas o nó na garganta era maior do que apenas uma falsa sensação de mariposas, era o conflito que a dividia ao meio. Esses fantasmas a matariam em um minuto se estivessem livres. Ela não deveria querer ajudá-los. O que havia de errado com ela?
Sarai evitou os olhares e passou rápido, sentindo que ainda estava presa em um pesadelo. Quem, ela se perguntava, quem vai me ajudar?
Não havia ninguém na galeria, exceto Minya. Bem, Minya e os fantasmas que agora preenchiam a arcada, esmagando as vinhas de Pardal debaixo de seus pés mortos. Ari-Eil estava parado em alerta atrás da cadeira de Minya, parecendo um belo serviçal, exceto por suas feições. Minya tinha deixado o rosto dele livre para refletir seus sentimentos e ele não desapontava. Sarai quase empalideceu com a aspereza do homem.
– Olá – disse Minya. Havia farpas de rancor em sua voz viva e infantil quando perguntou: – Dormiu bem?
– Como um bebê! – Sarai respondeu, animada. O que ela, de fato, queria dizer era que tinha acordado frequentemente gritando, mas não sentiu necessidade de esclarecer a questão.
– Nenhum pesadelo? – indagou Minya.
Sarai cerrou os dentes. Ela não podia suportar mostrar fraqueza, não agora.
– Você sabe que não sonho – retrucou, desejando desesperadamente que isso ainda fosse verdade.
– É mesmo? – disse Minya, levantando as sobrancelhas com ceticismo e, de repente, Sarai se perguntou por que ela estava questionando. Ela não contou a ninguém, exceto a Grande Ellen, sobre seu pesadelo no dia anterior, mas naquele momento, teve certeza de que Minya sabia.
Um choque tomou conta da garota. Era a expressão nos olhos de Minya: frios, indagadores, maldosos. E, assim, Sarai entendeu: Minya não só sabia dos pesadelos como era a causa deles.
Seu lull. Grande Ellen o preparava. Grande Ellen era um fantasma e, assim, estava sujeita ao controle de Minya. Sarai se sentiu nauseada – não só com a ideia de que Minya podia estar sabotando seu lull, mas em pensar que ela manipularia Grande Ellen, que era quase uma mãe para eles. Era horrível demais.
Ela engoliu em seco. Minya a estava observando com atenção, talvez se perguntando se Sarai havia descoberto. Sarai pensou que Minya queria que descobrisse, para que pudesse entender sua posição claramente: se ela quisesse sua névoa cinza de volta, teria de fazer por merecer.
Sarai ficou aliviada, então, quando Pardal chegou. Foi capaz de produzir um sorriso crível e fingir – ela esperava – que estava bem, enquanto por dentro seu espírito sibilava de indignação e de choque pelo fato de Minya ter ido tão longe.
Pardal lhe beijou a bochecha. Seu próprio sorriso era trêmulo e corajoso. Rubi e Feral chegaram logo depois. Estavam discutindo sobre alguma coisa, o que tornou mais fácil fingir que tudo estava normal.
O jantar foi servido. Uma pomba havia sido capturada na armadilha, e Grande Ellen a preparou em um cozido. Parecia tão errado, assim como comer geleia de borboleta ou bifes de espectral. Algumas criaturas eram adoráveis demais para devorar – não que essa opinião fosse compartilhada por toda a mesa de jantar. Feral e Rubi comeram com gosto, não demonstravam nenhuma preocupação com a fonte da carne, e se Minya nunca fora de comer muito, certamente isso não tinha nada a ver com a delicadeza de sentimentos. Ela não terminou seu cozido, mas pegou um ossinho para palitar os pequenos dentes brancos.
Apenas Pardal compartilhava da mesma hesitação de Sarai, embora as duas tenham comido, porque carne era rara e seus corpos tinham necessidade daquilo. Não importava que não tivessem apetite. Elas viviam com porções básicas e estavam sempre com fome.
Assim que Kem retirou os pratos, Pardal se levantou da mesa.
– Eu já volto – disse. – Não saiam daqui.
Eles olharam uns para os outros. Rubi levantou as sobrancelhas. Pardal correu para o jardim e voltou pouco tempo depois segurando...
– Um bolo! – gritou Rubi, levantando-se. – Como é que você...?
Era um sonho de bolo e eles o observaram maravilhados: três camadas altas de branco cremoso decorado com botões, como neve caindo.
– Não fiquem entusiasmados demais – ela alertou. – Não é para comer.
Perceberam que a “cobertura” branca cremosa era de pétalas de orquídea espalhadas com botões de anadne e tudo era feito com flores, até os botões de bastão-do-imperador no topo que pareciam, para todo mundo, dezesseis velas acesas.
Rubi ficou intrigada.
– Então para que serve?
– Para fazer um pedido – Pardal disse. – É um bolo de aniversário adiantado. – Ela o colocou na frente de Rubi. – No caso de...
Todos entenderam o que ela queria dizer, no caso de que não houvesse mais aniversários.
– Bom, isso é horrível – disse Rubi.
– Vá em frente, faça um pedido.
Rubi fez. E embora os bastões-do-imperador já se parecessem com pequenas chamas, ela as acendeu com a ponta dos dedos e assoprou direitinho, todas de uma só vez.
– O que você pediu? – Sarai perguntou.
– Que fosse um bolo de verdade, é claro – disse Rubi. – Será que deu certo? – Ela enfiou os dedos, mas é claro que não havia bolo, apenas mais flores, mas fingiu que estava comendo sem dividir com ninguém.
A noite caiu. Sarai se levantou para ir.
– Sarai – chamou Minya, e ela parou, mas não se virou. Ela sabia o que viria. Minya não tinha desistido. Nunca desistiria. De alguma forma, por simples força de vontade, a garota tinha se congelado no tempo, não só seu corpo, mas tudo. Sua fúria, sua vingança, nada havia diminuído em todos aqueles anos. Era impossível vencer contra tamanha força de vontade. Sua voz elevou-se com o lembrete: – Alguns minutos de asco para salvar nós todos.
Sarai continuou andando. Para salvar nós todos. As palavras pareciam se embrulhar em seu estômago – não mariposas, mas cobras. Ela queria deixá-las para trás na galeria, mas quando atravessou o corredor de soldados-fantasmas que se alinhavam no caminho até seu quarto, seus lábios se abriram e murmuraram todos juntos: “para salvar nós todos, para salvar nós todos” e, depois disso, as palavras que eles só tinham dito com os olhos até então: ajude-nos, salve-nos. Os fantasmas falaram em voz alta, implorando enquanto a garota passava. “Ajude-nos, salve-nos”. E era tudo Minya, brincando com a fraqueza de Sarai.
Brincando com sua misericórdia.
Na porta, ela teve de passar por uma criança. Uma criança. Bahar, nove anos, que tinha morrido no Uzumark, três anos antes, e ainda usava as roupas molhadas de seu afogamento. Era inaceitável, até mesmo para Minya, manter uma criança morta como bicho de estimação. A pequena fantasma ficou parada no caminho de Sarai e as palavras de Minya saíram de seus lábios.
– Se você não o matar, Sarai – ela disse, chorosa –, eu terei que fazê-lo.
Sarai pressionou as palmas das mãos contra os ouvidos e passou rápido por ela. Mas mesmo em seu quarto, onde os fantasmas não a viam, ela ainda os podia ouvir sussurrando: “salve-nos, ajude-nos”, até achar que enlouqueceria.
Ela gritou suas mariposas e encolheu-se em um canto, com os olhos bem fechados, desejando mais do que nunca poder ir junto com elas. Naquele momento, se pudesse derramar toda sua alma nas mariposas e deixar seu corpo vazio – mesmo que não pudesse nunca mais retornar a ele –, ela o teria feito, apenas para ficar livre dos pedidos sussurrados dos homens, mulheres e crianças – mortos de Lamento.
Os homens, mulheres e crianças vivos de Lamento estavam a salvo de seus pesadelos novamente esta noite. Ela retornou aos faranji na câmara, e para os Tizerkane em seu quartel, e para Azareen, sozinha em seu quarto, em Quedavento.
A garota não sabia o que faria se encontrasse Eril-Fane. As cobras que se enrodilhavam em seu estômago tinham migrado para seus corações. Havia escuridão dentro dela, e traição, disso sabia. Mas tudo estava tão emaranhado que ela não sabia se era misericórdia não o matar ou apenas covardia.
Mas ela não o encontrou. O alívio foi tremendo, mas rapidamente transformou-se em outra coisa: uma consciência aumentada do estranho que estava na cama dele. Sarai pousou no travesseiro ao lado de seu rosto adormecido por um longo tempo, repleta de medo e de saudade. Saudade da beleza de seu sonho. Medo de ser vista novamente – e não com surpresa dessa vez, mas pelo pesadelo que ela era.
No fim, ela se decidiu. Pousou em sua testa e entrou em seu sonho. Era Lamento novamente, sua própria Lamento iluminada que não merecia o nome, mas quando ela o viu a distância, não o seguiu. Ela apenas encontrou um pequeno lugar para se encolher – assim como seu corpo estava encolhido em seu quarto – para respirar o ar doce, observar as crianças com seus casacos de penas, e sentir-se segura, pelo menos por algum tempo.
33
TODOS SOMOS CRIANÇAS NO ESCURO
Os primeiros dias de Lazlo em Lamento passaram-se em uma correria de atividade e assombro. Havia a cidade para descobrir, é claro, e tudo o que era doce e amargo nela.
Não era o lugar perfeito que imaginara quando menino. É claro que não era. Se um dia tivesse sido, tinha passado por coisas demais para permanecer daquele jeito. Não havia corda bamba nem crianças com casacos de penas; pelo que conseguiu descobrir, nunca houvera. As mulheres não usavam os cabelos longos como mantos atrás de si, e por um bom motivo: as ruas eram sujas como as de qualquer outra cidade. Tampouco havia bolos nos parapeitos das janelas, mas Lazlo não esperava por isso. Havia lixo e insetos. Não muito, mas o suficiente para impedir que um sonhador idealizasse o objeto de sua antiga fascinação. Os jardins ressecados eram uma frustração e mendigos dormiam como se estivessem mortos, coletando moelas no oco de seus olhos fechados e, no geral, havia muitas ruínas.
E mesmo assim havia tanta cor e som, havia vida: homens-canários com seus pássaros engaiolados, homens sonhadores soprando poeira colorida, crianças com sapatos-harpa fazendo música ao correr. Havia luz e havia escuridão: os templos aos serafins eram mais requintados do que as igrejas em Zosma, Syriza e Maialen juntas, e ver o ritual neles – a dança extática de Thakra – foi a experiência mais mística da vida de Lazlo. Mas havia os padres açougueiros também, fazendo adivinhações nas entranhas de animais, e os profetas em suas pernas de pau, gritando o fim do mundo detrás de suas máscaras de esqueleto.
Tudo isso estava em um horizonte de pedra cor de mel esculpida e domos dourados, as ruas que saíam de um antigo anfiteatro cheio de barracas de mercado coloridas.
Naquela tarde, ele tinha almoçado lá com alguns dos Tizerkane, incluindo Ruza, que o havia ensinado a frase: “Você arruinou minha língua para todos os outros sabores”. Ruza lhe garantiu que era o maior elogio possível ao chefe, mas a jovialidade nos olhos dos outros sugeriam um significado mais... lascivo. No mercado, Lazlo comprou uma camisa e um casaco no estilo local, nenhum deles cinza. O casaco era do verde das florestas distantes e precisava de abotoaduras para segurar as mangas entre os bíceps e os deltoides. Essas vinham em todo material imaginável. As de Eril-Fane eram de ouro. Lazlo escolheu o couro, mais barato e discreto.
Ele comprou meias também. Estava começando a entender o encanto do dinheiro. Comprou quatro pares – uma quantidade extravagante de meias – e não só elas não eram cinza, como os dois pares não eram da mesma cor, um era rosa e outro listrado.
E falando em rosa, ele experimentou bala de sangue em uma pequena loja sob uma ponte. Era real e era horrível. Depois de superar a vontade de cuspir, ele disse à confeiteira, em voz baixa: “Você arruinou minha língua para todos os outros sabores”, e viu os olhos dela arregalarem-se. Ela ficou chocada e, na sequência, vermelha, confirmando suas suspeitas em relação à decência do elogio.
– Obrigado por isso – Lazlo disse a Ruza quando se afastaram. – O marido dela provavelmente vai me chamar para um duelo.
– Provavelmente – concordou Ruza –, mas todo mundo deve duelar pelo menos uma vez.
– Uma vez parece correto para mim.
– Porque você vai morrer – Ruza esclareceu, desnecessariamente. – E não estará vivo para outro duelo.
– Sim – respondeu Lazlo. – Foi isso o que eu quis dizer.
Ruza bateu no ombro dele.
– Não se preocupe. Nós vamos transformá-lo num guerreiro. Você sabe... – Ele olhou para a bolsa de brocado que tinha pertencido à avó de Calixte. – Para começo de conversa, você pode comprar uma carteira enquanto estamos aqui.
– O quê? Você desaprova a minha bolsa? – perguntou Lazlo, segurando-a para mostrar bem o broche espalhafatoso.
– Sim, desaprovo.
– Mas é tão útil! – exclamou Lazlo. – Veja, posso usá-la assim. – Ele demonstrou, com a bolsa pendurada no pulso pelos cordões e girando-a em círculos, como criança.
Ruza simplesmente balançou a cabeça e murmurou:
– Faranji.
Mas mais importante, havia trabalho a ser feito.
Durante aqueles primeiros dias, Lazlo havia providenciado que todos os delegados do Matador de Deuses estivessem instalados em espaços de trabalho para acomodar suas necessidades, bem como materiais e, em alguns casos, assistentes. E como a maioria não tinha se preocupado em aprender nada da língua de seu anfitrião durante a jornada, todos precisavam de intérpretes. Alguns dos Tizerkane entendiam um pouco, mas tinham seus compromissos. Calixte estava quase fluente, mas ela não tinha intenção de passar o tempo ajudando “velhos de mente pequena”. Então Lazlo viu-se muito ocupado.
Alguns dos delegados eram mais fáceis do que outros. Belabra, o matemático, requisitou um escritório com paredes altas, onde pudesse escrever suas fórmulas e lavá-las quando achasse apropriado. Kether, artista e projetista de catapultas, precisava apenas de uma mesa para desenho, que foi levada ao seu quarto na câmara.
Lazlo duvidava que os engenheiros precisassem de muito mais do que isso, mas Ebliz Tod parecia ver isso como uma questão de distinção – de que os convidados mais “importantes” deveriam pedir e receber o máximo. Então, ele ditava demandas elaboradas e específicas que eram dever de Lazlo satisfazer, com a ajuda de vários moradores locais que Suheyla organizou para ajudá-lo. O resultado foi que a oficina de Tod, em Lamento, ultrapassou o seu escritório de Syriza em grandiosidade, embora ele passasse a maior parte do tempo na mesa de desenho no canto.
Calixte não pediu nada, embora Lazlo soubesse que ela estava procurando, com a assistência de Tzara, uma variedade de resinas para preparar pastas grudentas a fim de ajudá-la em sua escalada. Se ela seria chamada por Eril-Fane para fazer isso, era uma dúvida – ela própria suspeitava que ele a tinha convidado mais para resgatá-la da prisão do que por uma necessidade real de sua presença –, mas, de qualquer forma, ela estava determinada a ganhar sua aposta com Tod.
– Alguma sorte? – Lazlo perguntou a ela quando a viu voltando de um teste na âncora.
– Sorte não tem nada a ver com isso – ela respondeu. – É tudo força e inteligência. – Ela piscou, flexionando as mãos como aranhas de cinco patas. – E cola.
Quando ela deixou as mãos caírem, ocorreu a Lazlo que elas não tinham nenhuma descoloração cinza. Ele tinha descoberto, depois de seu próprio contato com a âncora, que as leves manchas sujas não saíam com água, mesmo usando sabão. Mas elas saíram aos poucos e, agora, tinham desaparecido. O mesarthium, pensou, deve reagir com a pele da mesma forma que outros metais, como o cobre. Entretanto, não com a pele de Calixte, que havia acabado de tocar na âncora e não apresentava traços dele.
Os Fellering, Mouzaive, o magnetista, e Thyon Nero precisavam de espaço no laboratório para descarregar o equipamento que trouxeram do oeste. Os Fellering e Mouzaive estavam contentes com os estábulos próximos à câmara, mas Thyon os recusou, buscando outros lugares. Lazlo teve de ir junto, como intérprete e, em um primeiro momento, não entendeu o que o alquimista estava procurando. Thyon recusou algumas salas dizendo que eram muito grandes e outras por serem muito pequenas, antes de decidir pelo sótão de um crematório – um espaço cavernoso maior do que os que rejeitara por serem muito grandes. Também não tinha janelas, com uma única grande porta pesada. Quando ele pediu não menos do que três fechaduras para ela, Lazlo entendeu: ele escolheu o lugar pela privacidade.
O homem desejava guardar o segredo do azoth, ao que parecia, mesmo nessa cidade de onde, há muito tempo, o segredo tinha vindo.
Drave pediu um depósito para guardar sua pólvora e produtos químicos, e Lazlo providenciou um – fora da cidade, no caso de um incidente com fogo. E se a distância significasse ver menos Drave no dia a dia, isso era um bônus.
– É um maldito inconveniente – o explosionista queixou-se, embora o inconveniente fosse mínimo, considerando que, após supervisionar e descarregar os suprimentos, não retornou ao depósito.
– Basta me dizer o que vocês querem explodir que estarei pronto – explicou, e então passou a gastar seu tempo percorrendo a cidade em busca de prazeres e deixando as mulheres incomodadas com seus olhares.
Ozwin, o agricultor-botânico, precisava de uma estufa e de campos para plantar, então também teve de sair da cidade e da sombra da cidadela, para onde suas sementes e mudas veriam a luz do sol.
“Plantas que sonhavam que eram pássaros”, esse era seu trabalho. Aquelas palavras eram do mito dos serafins, descrevendo o mundo como os seres o encontraram quando desceram dos céus: “Encontraram solos ricos, e mares doces, e plantas que sonhavam que eram pássaros e subiam até as nuvens com folhas como asas”. Lazlo conhecia aquela passagem havia anos, e acreditava que era fantasia – mas descobriu em Thanagost que era real.
A planta era chamada de ulola, e era conhecida por duas coisas. Uma: seus arbustos comuns eram o lugar preferido de descanso para as serpaises no calor do dia, o que lhe conferia o apelido de “sombra de cobra”. E outra: suas flores podiam voar.
Ou flutuar, mais precisamente. Eram botões em forma de saco, do tamanho da cabeça de um bebê e, quando morriam, seus restos produziam um gás poderoso que os levantava e os carregava para o céu e para onde quer que o vento soprasse, para soltar sementes em novos solos e começar o ciclo novamente. Elas eram uma peculiaridade dos terrenos erodidos – balões rosa flutuantes que tinham uma forma de aterrissar no meio dos lobos selvagens – e teriam, mais provavelmente, continuado assim se um botânico da Universidade de Isquith – Ozwin – não tivesse se aventurado nos perigos da fronteira em busca de amostras e apaixonado-se pela terra sem lei e, mais especificamente, pela mecânica sem lei – Soulzeren –, preferida pelos generais por seus desenhos extravagantes de armas de fogo. Era uma história de amor e tanto, que envolvia até um duelo (disputado por Soulzeren). Só a combinação única dos dois podia ter produzido o trenó de seda: um veículo superleve, que flutuava com o gás de ulola.
Soulzeren estava montando os veículos em um dos pavilhões da câmara. Quanto à questão de quando voariam, o assunto foi discutido na quinta-feira à tarde, em uma reunião dos líderes da cidade à qual Lazlo compareceu com Eril-Fane. A reunião não transcorreu como Lazlo esperava, de forma alguma.
– Nossos convidados estão trabalhando no problema da cidadela – Eril-Fane reportou aos cinco Zeyyadin, que se traduziam como “primeiras vozes”. As duas mulheres e os três homens constituíam o corpo executivo que havia sido estabelecido depois da queda dos deuses. – Quando estiverem prontos, farão propostas para uma solução.
– Para... movê-la – disse uma mulher. Seu nome era Maldagha, e sua voz estava pesada de apreensão.
– Mas como eles esperam fazer tal coisa? – perguntou um homem corcunda, com longos cabelos brancos e a voz trêmula.
– Se eu pudesse responder isso – explicou Eril-Fane, com um sorriso dos mais sutis –, teria feito eu mesmo e evitado uma longa jornada. Nossos convidados possuem as mentes práticas mais brilhantes em metade do mundo...
– Mas o que é a praticidade contra a magia dos deuses? – o velho interrompeu.
– É a esperança que temos – disse Eril-Fane. – Não será o trabalho de alguns momentos, como era para Skathis, mas o que mais podemos fazer? Podemos estar diante de anos de esforços. Pode ser que o máximo que consigamos é uma torre para poder alcançá-la e destruí-la pouco a pouco até que desapareça. Os netos de nossos netos poderão ter de carregar raspas de mesarthium para fora da cidade à medida que a monstruosidade se encolhe lentamente até o nada. Mesmo assim, mesmo que seja a única forma e nós aqui nessa sala não vivamos para ver acontecer, chegará o dia em que o último pedaço desaparecerá e o céu estará livre.
Eram palavras poderosas, embora ditas suavemente, e pareceram acender a esperança nos outros. Hesitante, Maldagha disse:
– Destruir o metal, você diz. Eles podem cortá-lo? Já o fizeram?
– Ainda não – Eril-Fane admitiu. De fato, a confiança dos Fellering se mostrara equivocada. Como todos os demais, falharam em produzir um risco sequer. Sua arrogância fora substituída por uma determinação descontente. – Mas eles apenas começaram, e temos um alquimista também. O mais bem-sucedido do mundo.
Quanto ao dito alquimista, se ele estava tendo alguma sorte com seu alkahest, estava mantendo em segredo tanto quanto seu ingrediente principal. Suas portas no porão do crematório estavam trancadas, e ele apenas as abria para receber refeições. Ele até pediu para colocarem uma cama para dormir no local – o que não significava, contudo, que estava sempre lá. Tzara ficava de guarda e o tinha visto andando em direção à âncora norte na calada da noite.
Para fazer experimentos com o mesarthium em segredo, Lazlo supôs. Quando Tzara lhe mencionou isso de manhã, ele foi examinar a superfície a fim de buscar qualquer pista de que Thyon tivesse obtido sucesso. Era uma superfície grande, por isso, era possível ter sofrido alguma alteração, embora não achasse isso. Toda a extensão estava tão lisa e artificialmente perfeita quanto da primeira vez que a vira.
Não havia, de fato, nenhuma notícia encorajadora para relatar aos Zeyyadin, não ainda. A reunião tinha outro propósito.
– Amanhã – Eril-Fane lhes disse, e sua voz pareceu pesar no ar – lançaremos um dos trenós de seda.
O efeito de suas palavras foi imediato e... absolutamente inesperado. Em qualquer cidade do mundo, veículos aéreos – veículos aéreos reais e funcionais –, seriam vistos com fascínio. Essa deveria ser uma notícia sensacional. Mas os homens e as mulheres da sala ficaram pálidos. Cinco rostos uniformemente drenados de cor e com uma espécie de pavor atordoado. O velho começou a balançar a cabeça. Maldagha pressionou os lábios para impedir que tremessem e, em um gesto que Lazlo não soube interpretar, levou a mão à barriga. Suheyla fez um movimento similar, e ele pensou que sabia o que significava. Todos esforçaram-se para manter a compostura, mas seus rostos os traíram. Lazlo não tinha visto ninguém parecer tão afetado desde que os meninos do monastério eram levados à cripta para serem punidos.
Ele nunca vira adultos com essa expressão.
– Será apenas um voo de teste – Eril-Fane continuou. – Precisamos estabelecer um meio real de ir e vir entre a cidade e a cidadela. E... – Ele hesitou. Engoliu em seco. E não olhou para ninguém quando disse: – Preciso vê-la.
– Você? – perguntou um dos homens – Você vai subir lá?
Parecia uma pergunta estranha. Nunca havia ocorrido a Lazlo que ele não fosse.
Solenemente, Eril-Fane fitou o homem.
– Eu esperava que você também viesse, Shajan. Você quem esteve lá no fim. – O fim. O dia em que os deuses foram mortos? A mente de Lazlo voltou ao mural da viela, e o herói retratado nele, de seis braços, triunfante. – Ela está morta há todos esses anos, e alguns de nós sabem melhor do que outros o... estado... em que a deixamos.
Ninguém se entreolhou. Era muito estranho. Isso lembrou a Lazlo da forma como evitavam olhar para a cidadela. Ocorreu-lhe que os corpos dos deuses talvez continuassem lá em cima, onde morreram, mas ele não entendia por que isso causava tanto tremor e contração.
– Eu não poderia – respondeu Shajan, olhando para as suas próprias mãos trêmulas. – Você não pode esperar por isso. Veja como estou agora.
Lazlo achou aquilo desproporcional. Um homem adulto reduzido a tremores com a ideia de entrar em uma construção vazia – mesmo aquela construção vazia – porque poderia haver esqueletos lá? E a desproporção apenas aumentava.
– Nós ainda poderíamos mover. – Maldagha deixou escapar, parecendo tão atormentada quanto Shajan. – Vocês não precisam voltar lá. Não precisamos fazer nada disso. – Havia um tom de desespero em sua voz. – Podemos reconstruir a cidade em Enet-Sarra, como já discutimos. As inspeções foram feitas. Só precisamos começar.
Eril-Fane balançou a cabeça:
– Se fizéssemos isso, significaria que eles venceram, mesmo mortos. Eles não venceram. Esta é a nossa cidade, que nossos ancestrais construíram nas terras consagradas por Thakra. Não vamos abandoná-la. Este é o nosso céu e nós o teremos de volta. – Eram palavras do tipo que poderiam ter sido gritadas antes da batalha. Um menino brincando de Tizerkane em um pomar adoraria a sensação delas passando pela língua. Mas Eril-Fane não as gritou. Sua voz soava distante, como o último eco antes que o silêncio se reinstalasse.
– O que foi isso? – Lazlo perguntou depois que saíram.
– Aquilo foi medo – Eril-Fane disse, simplesmente.
– Mas... medo do quê? – Lazlo não conseguia compreender. – A cidadela está vazia. O que pode haver lá para machucá-los?
Eril-Fane expirou lentamente.
– Você tinha medo do escuro quando era criança?
Um arrepio subiu pela coluna de Lazlo. Recordou-se da cripta do mosteiro e das noites trancado com monges mortos.
– Sim.
– Mesmo quando você sabia, racionalmente, que não havia nada que pudesse lhe fazer mal?
– Sim.
– Pois bem. Todos somos crianças no escuro, aqui em Lamento.
34
ESPÍRITO DE BIBLIOTECÁRIO
Outro dia chegava ao fim, outro dia de trabalho e maravilhas, e Lazlo estava retornando à casa de Suheyla para passar a noite. Quando cruzou a avenida, aquela solitária faixa de sol, viu o garoto de entregas da câmara vindo em sua direção com uma bandeja. Percebeu que o menino devia estar voltando do crematório logo à frente trazendo pratos vazios. Ele tinha levado o jantar para Thyon e o trocou pela bandeja vazia do almoço. Lazlo o cumprimentou, e perguntou-se ao passar como Thyon estava indo, pois não o vira desde que ele havia se escondido e não tinha tido notícias para dar a Eril-Fane quando solicitado. Com um momento de hesitação, ele mudou o rumo e foi na direção do crematório. Passando pela âncora no caminho, tocou-a por toda a extensão, tentando imaginá-la ondulando-se e moldando-se como aparentemente fazia para o sombrio deus Skathis.
Quando bateu na porta pesada com três trincos de Thyon, o alquimista atendeu, o que só podia significar que ele achava que o garoto estivesse de volta com mais provisões – ou ele estava esperando outra pessoa, porque assim que viu Lazlo, começou a fechá-la de novo.
– Espere – disse Lazlo, colocando o pé no vão da porta. Por sorte usava botas. Nos tempos antigos de seus chinelos de bibliotecário, seus dedos teriam sido esmagados. Mesmo assim, recuou. Nero não estava de brincadeira. – Venho em nome de Eril-Fane – explicou, irritado.
– Não tenho nada a relatar – disse Thyon. – Pode lhe dizer isso.
O pé de Lazlo ainda estava na porta, segurando-a aberta uns oito centímetros. Não era muito, mas a glave na antecâmara era brilhante, o que lhe permitiu ver Thyon – pelo menos uma faixa de oito centímetros de largura dele – bem claramente.
– Nero, você não está bem?
– Estou bem – o afilhado dourado disse, com condescendência. – Agora, se você pudesse retirar seu pé...
– Não vou – afirmou Lazlo, verdadeiramente alarmado. – Deixe-me vê-lo. Você está um trapo.
Era uma transformação drástica, em apenas poucos dias. Sua pele estava amarela. Até o branco dos seus olhos estava ictérico.
Thyon afastou-se da vista de Lazlo.
– Retire o pé – pediu, em um tom baixo e casual – ou vou testar minha produção de alkahest nele. – Até sua voz parecia ictérica, se isso fosse possível.
Alkahest no pé era uma perspectiva desagradável de considerar. Lazlo perguntou-se quão rápido ele corroeria sua bota de couro.
– Não duvido que você faria isso – respondeu, tão casualmente quanto Thyon. – Aposto que você não o tem em mãos e teria que ir buscá-lo. Durante esse tempo, eu abriria a porta e olharia bem para você. Vamos lá, Nero. Você está doente.
– Não estou doente.
– Você não está bem.
– Não é da sua conta, Estranho.
– Eu não sei mesmo se é ou não, mas você está aqui por um motivo, e você pode muito bem ser a esperança de Lamento, então me convença de que não está doente ou vou direto a Eril-Fane.
Houve um suspiro irritado e Thyon afastou-se da porta. Lazlo abriu-a com o pé e percebeu que não estava errado. Thyon estava com uma aparência péssima – embora, ele admitisse, sua aparência “péssima” fosse melhor do que a aparência da maioria das pessoas. Ainda assim, ele parecia ter envelhecido. Não era só a sua cor. A pele ao redor dos olhos estava flácida e escura.
– Deuses, Nero – exclamou, dando um passo à frente –, o que aconteceu com você?
– Apenas estou trabalhando muito – respondeu o alquimista, com um sorriso severo.
– Isso é ridículo. Ninguém fica assim fatigado por trabalhar duro alguns dias.
Ao dizer isso, os olhos de Lazlo pousaram sobre a mesa de trabalho de Thyon. Era uma versão bagunçada de sua mesa no Chrysopoesium, com vidros e cobre espalhados e pilhas de livros. A fumaça pairava no ar com um aroma sulfúrico que queimava as narinas, e em plena vista estava uma longa seringa. Era de vidro e cobre, e descansava sobre um pano branco com manchas vermelhas. Lazlo a observou e virou-se para Thyon, que devolveu um olhar duro como pedra. O que Lazlo tinha acabado de dizer, que ninguém fica tão fatigado por trabalhar duro por alguns dias?
Mas e se o “trabalho” dependesse de um suprimento constante de espírito, e sua única fonte fosse o próprio corpo? Lazlo soltou ar entre os dentes.
– Seu idiota – praguejou, e viu os olhos de Thyon arregalarem-se de incredulidade. Ninguém chamava o afilhado dourado de idiota. Ele era, contudo, nesse caso. – Quanto você tirou? – Lazlo perguntou.
– Não sei do que está falando.
Lazlo meneou a cabeça. Ele estava começando a perder a paciência.
– Você pode mentir se quiser, mas já sei seu segredo. Se você está tão determinado a guardá-lo, Nero, eu sou a única pessoa no mundo que pode ajudá-lo.
Thyon riu como se isso fosse uma piada.
– E por que você me ajudaria?
Não foi da mesma forma que ele disse no Chrysopoesium quando eram mais jovens. “Você, me ajudar?” Aquilo havia sido a incredulidade de que Lazlo ousasse acreditar que era digno de ajudá-lo. Dessa vez, era mais incredulidade pelo fato de ele querer ajudá-lo.
– Pelo mesmo motivo que lhe ajudei antes – disse Lazlo.
– E qual é? – Nero perguntou. – Por que você me ajudou, Estranho?
Lazlo olhou para ele por um momento. A resposta não podia ser mais simples, mas ele achou que Thyon não tinha as qualidades necessárias para acreditar.
– Porque você precisava – respondeu, e suas palavras geraram um silêncio entre ambos. Ali estava uma noção radical de que você deve ajudar os outros simplesmente porque eles precisam.
Mesmo se eles o odiassem por isso depois? E o punissem? E roubassem você? E mentissem e zombassem de você? Mesmo assim? Lazlo esperava que, de todos os delegados, Thyon não fosse o salvador de Lamento, o libertador da sombra. Mas muito maior do que essa esperança era a de que Lamento fosse libertada por alguém, mesmo que fosse por Nero.
– Você precisa de ajuda agora? – ele perguntou em voz baixa. – Não pode continuar extraindo seu próprio espírito. Isso pode não te matar – ele disse, porque o espírito não era como o sangue e, de certa forma, as pessoas continuavam vivendo sem ele, se é que podia se chamar isso de viver –, mas o tornará feio – explicou – e acho que isso será muito difícil para você.
Thyon enrugou a testa analisando Lazlo para ver se ele não estava zombando. Ele estava, é claro, mas da mesma forma que zombaria de Ruza, ou que Calixte zombaria dele. Era uma decisão de Thyon se sentir ofendido ou não, e talvez ele estivesse apenas muito cansado.
– O que você está propondo? – indagou ressabiado.
Lazlo expirou e passou para o modo de resolução de problemas. Thyon precisava de espírito para produzir o azoth. Em casa, ele devia ter um sistema, embora Lazlo não pudesse imaginar qual era. Como alguém mantinha um fornecimento constante de algo como espírito sem ninguém descobrir? Qualquer que fosse, aqui, sem sair e pedir – e revelar seu ingrediente secreto –, ele tinha apenas o seu próprio, e já havia extraído muito.
Lazlo argumentou brevemente sobre se era a hora de abrir mão do segredo, mas Thyon não ouviu e, finalmente, Lazlo, com um suspiro frustrado, tirou a jaqueta e enrolou a manga da camisa.
– Tire um pouco do meu, certo? Até que possamos pensar em outra solução.
Em todo aquele tempo, Thyon o viu com desconfiança, como se ele estivesse esperando por algum motivo secreto para se revelar. Mas quando Lazlo estendeu o braço, ele só pôde piscar, derrotado. Teria sido mais fácil se pudesse acreditar que havia algum motivo, algum tipo de vingança ou outro tipo de armação. Mas Lazlo ofereceu suas veias. Seu próprio fluido vital. Que motivo poderia haver nisso? Ele estremeceu quando Thyon lhe furou com a agulha, e estremeceu novamente, porque o alquimista errou a veia do espírito e acertou uma veia de sangue. Thyon não era um flebotomista muito habilidoso, mas não pediu desculpas e Lazlo não reclamou. Enfim havia um frasco de fluido claro sobre a mesa, rotulado, com um floreio desdenhoso: ESPÍRITO DE BIBLIOTECÁRIO.
Thyon não agradeceu, mas falou, soltando o braço de Lazlo:
– Você podia experimentar lavar as mãos de vez em quando, Estranho.
Lazlo apenas sorriu, como se a condescendência marcasse um retorno ao território familiar. Ele olhou para a mão em questão, que parecia suja mesmo. Ele a tinha passado pela âncora no caminho para lá, lembrou-se.
– Isso é o mesarthium – explicou, e perguntou, curioso: – Você percebeu que ele é reativo à pele?
– Dificilmente. Não é reativo a nada.
– Bem, você percebeu a pele reagindo a ele? – Lazlo persistiu, desenrolando a manga da camisa.
Thyon apenas levantou a palma das mãos. Elas estavam limpas, e aquela foi sua resposta. Lazlo deu de ombros e vestiu seu casaco. A resposta de Thyon não foi um bom presságio – sobre o mesarthium não ser reativo a nada. Na porta, Lazlo parou.
– Eril-Fane vai querer saber. Existe algum motivo para ter esperança? O alkahest sequer afeta o mesarthium?
Ele achou que o alquimista não ia responder. Sua mão estava na porta, pronta para fechá-la com força. Mas ele pausou por meio segundo, como se Lazlo tivesse ganhado aquela única sílaba relutante, e disse, severo:
– Não.
35
TINTA BORRADA
Sarai se sentia... pequena. Estar tão cansada era como evaporar. Água para vapor. Carne para fantasma. Pouco a pouco, de fora para dentro, ela se sentia começando a desaparecer, ou pelo menos parecia estar em outro estado – de tangível, sangue e espírito, para uma espécie de névoa perdida e flutuante.
Quantos dias haviam se passado dessa forma, vivendo de pesadelo em pesadelo? Parecia que tinham sido dezenas, mas eram provavelmente apenas cinco ou seis.
Esta é minha vida agora, refletiu, olhando para seu reflexo no mesarthium polido do closet. Ela tocou a pele em volta dos olhos com as pontas dos dedos. Era quase roxa, como as ameixas das árvores, e seus olhos pareciam grandes demais – como se, assim como Pequena Ellen, ela os tivesse reimaginado de tal maneira.
Se eu fosse um fantasma, ponderou, analisando-se como uma estranha, o que eu mudaria em mim mesma? A resposta era óbvia demais para admitir, e patética demais. Ela traçou uma linha em volta de seu umbigo, onde sua elilith estaria se fosse uma garota humana. O que as tatuagens tinham que tanto a encantavam? Elas eram bonitas, mas não era só isso. Talvez fosse o ritual: o círculo de mulheres se reunindo para celebrar estarem vivas – e ser uma mulher, que por si só já é mágico. Ou talvez fosse o futuro que a marca pressagiava. Casamento, filhos, família, continuidade.
Ser uma pessoa. Com uma vida. E todas as expectativas de futuro. Todas as coisas com as quais Sarai não ousava sonhar.
Ou... coisas com as quais ela não deveria ousar sonhar. Como os pesadelos, os sonhos eram traiçoeiros e não gostavam de ficar trancados.
Se ela tivesse uma elilith não ia querer uma serpente engolindo o próprio rabo como a de Tzara e a de muitas meninas que haviam chegado à adolescência após a libertação. Ela já sentia que possuía criaturas dentro de si – mariposas, cobras e terrores – e não as queria sobre a pele também. Azareen, dura e estoica como era, tinha uma das tatuagens mais bonitas que Sarai vira – feita por Guldan, é claro, que hoje era recruta do exército infeliz de Minya. Era um padrão delicado de botões de macieira, que eram um símbolo de fertilidade.
Sarai sabia que Azareen odiava a visão da tatuagem e tudo do que ela zombava.
A questão das eliliths. Eram tatuadas nas barrigas das garotas, que tendiam a ser lisas ou apenas ligeiramente curvas. E quando sua promessa de fertilidade fosse cumprida, suas barrigas inchariam, e as tatuagens se esticariam junto, e jamais voltariam a se parecer como antes. Era possível ver as linhas finas borradas onde a pele tinha esticado e depois encolhido novamente.
As garotas que Skathis roubou, suas eliliths eram puras quando ele as tomou, mas não mais quando as devolveu. Mas como Letha engoliu suas memórias, isso era tudo o que sabiam sobre seu tempo na cidadela – o vago borrão da tinta em suas barrigas, e tudo o que ele implicava.
Exceto, quer dizer, pelas garotas que estavam na cidadela no dia em que Eril-Fane matou os deuses. Elas tiveram a pior experiência. Tiveram de descer daquele jeito, suas barrigas ainda cheias com os filhos dos deuses e suas mentes com memórias.
Azareen tinha sido uma delas. E embora tivesse sido uma noiva – e antes disso uma garota apertando as mãos de um círculo de mulheres enquanto botões de macieira eram gravados em volta de seu umbigo com tinta –, a única vez que sua barriga inchou foi com a semente do deus, e ela se lembrava de cada segundo desse processo, dos estupros que deram início até as dores lancinantes que deram fim a isso.
Ela nunca olhou para o bebê, apertando os olhos até que o levassem embora. Contudo, ouviu seu choro frágil, e ainda o ouvia.
Sarai também podia ouvi-lo. Ela estava acordada, mas os terrores eram persistentes. Ela balançou a cabeça na tentativa de sacudi-los para longe.
As coisas que tinham sido feitas. Pelos deuses, pelos humanos. Nada podia sacudi-las para longe.
Ela pegou uma camisola limpa. Verde-clara, não que tenha percebido, apenas estendendo a mão sem olhar e pegando a primeira. Vestiu-a e colocou um robe por cima, com o cinto apertado, e considerou seu rosto no espelho: os imensos olhos assombrados e a história que contavam sobre pesadelos e dias sem dormir. Bastaria olhar para ela e Minya sorriria. “Dormiu bem?”, ela perguntaria. Ela sempre perguntava agora, e Sarai sempre respondia: “como um bebê”, e fingia que tudo estava bem.
Mas não havia como fingir que não tinha roxos sob os olhos. Por um momento considerou pintá-los de preto com a tinta de sua mãe, mas o esforço parecia grande demais, e não enganaria ninguém.
Ela saiu do closet. Com os olhos fixos à frente, passou pelos fantasmas que faziam a guarda. Eles ainda sussurravam as palavras de Minya, mas agora se acostumara a isso. Até com Bahar, nove anos e pele encharcada, que a seguiu pelo corredor, sussurrando “Salve-nos”, e deixando pegadas molhadas que não estavam realmente lá.
Tudo bem, ela nunca poderia se acostumar com Bahar.
– Dormiu bem? – Minya perguntou assim que ela entrou na galeria.
Sarai respondeu com um sorriso pálido:
– Por que não dormiria? – ela perguntou, para mudar um pouco.
– Ah, não sei, Sarai. Teimosia?
Sarai entendeu-a perfeitamente – que ela precisava apenas pedir que seu lull lhe fosse devolvido e Minya faria com que isso acontecesse.
Assim que Sarai fizesse o que ela lhe ordenava.
Ambas não reconheceram a situação abertamente – de que Minya estava sabotando o lull de Sarai –, mas isso estava presente em todos os olhares que compartilhavam.
Alguns minutos de asco para salvar nós todos.
Se Sarai matasse Eril-Fane, Minya a deixaria voltar a dormir. E aí? Será que seu pai perderia um minuto de sono para salvá-la?
Não importava o que ele faria ou não. Sarai não mataria ninguém. Ela era teimosa, muito, e não estava disposta a abrir mão de sua decência ou misericórdia por um dia de sono profundo. Não imploraria pelo lull para Minya. O que quer que acontecesse, ela nunca mais atenderia à vontade perversa de Minya.
Além disso, ela ainda não tinha conseguido encontrá-lo. Então havia isso.
Não que Minya acreditasse nisso, mas era verdade, e ela tinha procurado. Sabia que o homem estava de volta a Lamento, em parte porque Azareen nunca teria voltado sem ele, em parte porque ele apareceu nos sonhos de todos os outros como um fio brilhante os conectando. Mas onde quer que ele estivesse dormindo, onde quer que ele tivesse passado a noite, a garota não o tinha conseguido encontrar.
Sarai riu.
– Eu, teimosa – ela disse, levantando as sobrancelhas. – Você já se olhou no espelho?
Minya não negou.
– Suponho que a pergunta seja: quem é mais teimosa?
Soou como um desafio.
– Acho que vamos descobrir – Sarai respondeu.
O jantar foi servido e os outros chegaram – Pardal e Rubi vieram do jardim; Feral, bocejando, da direção de seu quarto.
– Cochilando? – Sarai perguntou.
Tudo havia ruído nos últimos dias. Ele costumava pelo menos tentar supervisionar as meninas durante o dia e evitar que elas causassem um caos ou quebrassem a Regra. Não que isso importasse mais.
Ele apenas deu de ombros.
– Alguma coisa interessante? – ele perguntou.
Ele queria notícias da noite anterior. Essa era sua rotina agora. Isso a lembrava do tempo em que era mais nova, quando ela ainda lhes contava tudo sobre suas visitas à cidade e todos gostariam de saber coisas diferentes: Pardal, os vislumbres da vida cotidiana; Rubi, as partes impróprias; Minya, os gritos. Feral não tinha um foco na época, mas agora tinha, gostaria de saber tudo sobre os faranji e suas oficinas – os diagramas em suas mesas de desenho, os químicos em seus frascos, os sonhos em suas cabeças. Sarai contava o que podia e juntos tentavam interpretar o nível de ameaça que eles representavam. O garoto dizia que seu interesse era defensivo, mas ela via uma fome em seus olhos – pelos livros e papéis que ela descrevia, os instrumentos e béqueres borbulhantes, as paredes cobertas de números e símbolos que não conseguia entender.
Era a janela da confeitaria para ele, da vida que não tinha, e ela fazia o que podia para torná-la vívida para o garoto. Ao menos isso podia lhe dar. Esta noite, contudo, ela tinha más notícias:
– As máquinas voadoras – respondeu. Estivera observando os equipamentos em um pavilhão da câmara à medida que tomavam forma em estágios, dia a dia, até enfim se tornarem os veículos que vira nos sonhos do casal faranji. Todo o seu pavor finalmente a alcançara. – Elas parecem estar prontas.
Isso fez com que Rubi e Pardal respirassem ruidosamente, assustadas.
– Quando elas vão voar? – Minya perguntou friamente.
– Não sei. Em breve.
– Bem, espero que seja em breve. Estou ficando entediada. Pra quê ter um exército se não posso usá-lo?
Sarai não caiu na de Minya. Ela vinha pensando no que diria, e como diria.
– Não precisaria chegar a isso – retrucou, e virou-se para Feral. – A mulher, ela se preocupa com o tempo. Vi em seus sonhos. O vento é um problema. E também não voará nas nuvens. Acho que as aeronaves não devem ser muito estáveis – ela tentou soar calma, racional, não defensiva nem ofensiva. Estava simplesmente fazendo uma sugestão razoável para evitar o derramamento de sangue. – Se você evocar uma tempestade, podemos evitar que cheguem perto de nós.
Feral absorveu isso, olhando para Minya sem virar o rosto. Ela estava com os cotovelos sobre a mesa, o queixo apoiado em uma das mãos, a outra pegando pedacinhos de seu biscoito de kimril.
– Ah, Sarai – ela disse. – Que ideia!
– É uma boa ideia – afirmou Pardal. – Por que lutar se podemos evitar?
– Evitar? – Minya soltou. – Você acha que se soubessem que estamos aqui, eles estariam preocupados em evitar uma briga? – Então virou-se para Ari-Eil, parado atrás de sua cadeira: – Bom, o que você acha?
Quer ela tenha lhe dado liberdade para responder ou produzido ela mesma a resposta, Sarai não duvidou da verdade dita:
– Eles matariam todos vocês – o fantasma sussurrou, e Minya lançou a Pardal um olhar de eu te disse.
– Não posso acreditar que estamos tendo essa conversa – Minya falou. – Quando seu inimigo está vindo, você não junta nuvens. Você junta facas.
Sarai olhou para Feral, que não correspondeu ao olhar dela. Não havia muito mais a ser dito depois disso. Ela estava relutante em voltar ao seu quartinho, onde estava abarrotado com todos os pesadelos que tinha tido ultimamente, então foi ao jardim com Pardal e Rubi. Havia fantasmas por toda parte, mas as vinhas e as flores formavam recantos onde era possível quase se esconder. De fato, Pardal, enfiando sua mão no solo e concentrando-se por um momento, fez crescer cachos de liríope roxa altos o bastante para escondê-las de vista.
– O que faremos? – Pardal perguntou em voz baixa.
– O que podemos fazer? – Rubi perguntou, resignada.
– Você podia dar um belo abraço caloroso em Minya – sugeriu Pardal, com uma rispidez pouco familiar em sua voz. – Quais foram as palavras dela? Você pode fazer mais com o seu dom do que aquecer água da banheira e queimar suas roupas?
Rubi e Sarai levaram um momento para compreendê-la. Elas estavam perplexas.
– Pardal! – Rubi gritou. – Você está sugerindo que eu... – ela se interrompeu, olhou para os fantasmas e terminou em um sussurro – queime Minya?
– Claro que não – esclareceu Pardal, embora fosse exatamente isso que ela queria dizer. – Eu não sou ela, sou? Não quero que ninguém morra. Além disso – ela disse, provando que estava pensando sobre o assunto –, se Minya morresse, perderíamos as Ellens também, e todos os outros fantasmas.
– E teríamos que fazer todas as tarefas de casa – disse Rubi.
Pardal bateu no ombro dela.
– É com isso que você está preocupada?
– Não – respondeu Rubi, defensiva. – É claro que eu sentiria falta deles também. Mas, sabe, quem é que iria cozinhar?
Pardal balançou a cabeça e esfregou o rosto, dizendo:
– Eu nem tenho certeza se Minya está errada. Talvez seja o único jeito. Mas ela precisa estar tão contente com isso? É horrível.
– Ela é horrível – completou Rubi –, mas é horrível por nós. Você ia querer se opor a ela?
Rubi estivera muito preocupada ultimamente e não tinha percebido a mudança em Sarai, muito menos adivinhado sua causa. Pardal era uma alma mais empática. Ela olhou para Sarai, observando seu rosto cansado e seus olhos roxos.
– Não – respondeu suavemente. – Eu não ia querer isso.
– Então deixamos ela fazer o que bem entender em tudo? – Sarai perguntou. – Vocês não conseguem ver aonde isso leva? Ela fará com que sejamos como nossos pais.
Rubi franziu a testa.
– Nós jamais poderíamos ser como eles.
– Não? – replicou Sarai. – E quantos humanos podemos matar antes de nos tornarmos iguais a eles? Há um número? Cinco? Cinquenta? Uma vez que começarmos, não teremos como parar. Mate um, fira um, e não há esperança para nenhum tipo de vida. Vocês não veem isso?
Sarai sabia que Rubi não queria machucar ninguém, tampouco. Mas ela abriu os cachos de liríope com as mãos, revelando os fantasmas que estavam no jardim.
– Que escolha nós temos, Sarai?
Uma a uma as estrelas apareceram no céu. Rubi disse que estava cansada, embora não parecesse, e foi cedo para a cama. Pardal encontrou uma pena que só podia ser da Aparição e colocou-a atrás da orelha de Sarai.
Ela arrumou o cabelo de Sarai, penteando-o suavemente com os dedos e usando seu dom para torná-lo lustroso. Sarai podia senti-lo crescer, e até ganhar brilho, como se Pardal o estivesse infundindo de luz. Ela acrescentou centímetros; fez com que ficasse armado. Colocou uma coroa de tranças, deixando a maior parte solta, e teceu vinhas e ramos de orquídeas, brotos de samambaia, e aquela pena branca.
E quando Sarai viu-se no espelho de novo antes de enviar suas mariposas, pensou que se parecia mais com um espírito da floresta do que com a deusa do desespero.
36
PROCURANDO UMA LUA
Lamento dormia. Sonhadores sonhavam. Uma grande lua pairava acima e as asas da cidadela cortavam o céu em dois: luz acima e escuridão abaixo.
Na palma da mão estendida do serafim colossal, fantasmas faziam a guarda com cutelos e ganchos de carne em correntes. A lua brilhava forte na ponta de suas lâminas, nítida na ponta de seus terríveis ganchos e luminosa em seus olhos, que estavam arregalados de horror. Eles estavam banhados pela luz, enquanto a cidade afundava-se na escuridão.
Sarai despachou suas mariposas para a câmara, onde a maioria dos delegados estava dormindo pesadamente, para as casas dos líderes da cidade, e algumas para os Tizerkane também. A amante de Tzara estava com ela, mas ambas não estavam... dormindo, então, Sarai afastou sua mariposa imediatamente. Em Quedavento, Azareen estava sozinha. Sarai viu-a destrançar os cabelos, colocar sua aliança e deitar-se para dormir. Contudo, ela não ficou para ver seus sonhos. Os sonhos de Azareen eram... difíceis. Sarai não podia deixar de pensar que tinha um papel em roubar a vida que Azareen deveria ter tido – como se ela existisse em vez de uma criança amada que o casal deveria ter concebido. Podia não ser culpa sua, mas ela não conseguia se sentir inocente.
Ela viu o faranji dourado, que parecia doente, ainda acordado e trabalhando. E viu o feioso, cuja pele devastada pelo sol estava se curando na sombra da cidadela, embora ele não ficasse mais bonito com isso. Ele também estava acordado, cambaleando com uma garrafa na mão. Ela não podia suportar sua mente. Todas as mulheres com quem ele sonhava tinham machucados, e ela não tinha ficado tempo suficiente para descobrir como elas ficaram daquela forma. Ela não o visitou desde a segunda noite.
Cada mariposa, cada batida de asa carregava o fardo opressor do exército de fantasmas, de vingança e o peso de outro massacre. Com a ocupação no terraço, ela ficou do lado de dentro, virando cinco vezes mais em sua caminhada do que fazia lá fora. Sentia falta da luz da lua e do vento. Queria sentir a profundidade infinita do espaço acima e ao redor, não essa jaula de metal. Ela se lembrou do que Pardal disse, sonhar era como o jardim: você podia fugir da prisão por um tempo e sentir o céu ao seu redor.
E Sarai argumentou que a cidadela era uma prisão, mas também um santuário. Essa conversa tinha sido há apenas uma semana e também havia o lull, e olhe para ela agora.
Ela estava tão cansada.
Lazlo estava cansado também. Tinha sido um longo dia, e doar seu espírito também não ajudava. Ele comeu com Suheyla e cumprimentou-a pela comida sem mencionar línguas arruinadas. Tomou outro banho e, embora tenha ficado imerso até a água começar a esfriar, a cor cinzenta não desapareceu de suas mãos. Em seu estado de fadiga, os pensamentos pingavam como beija-flores disso para aquilo, sempre voltando ao medo – o medo da cidadela e de tudo o que acontecera nela. Como todos eles eram assombrados pelo passado, Eril-Fane tanto quanto o resto.
Com isso, dois rostos encontraram espaço na mente de Lazlo. Um de uma pintura da deusa morta e o outro de um sonho: ambos azuis, com cabelos castanho-avermelhados e uma listra de tinta preta atravessando os olhos. Azul, preto e canela, ele viu, e perguntou-se de novo como havia acontecido de sonhar antes de ver a aparência dela.
E por que, se ele, de certa forma, tinha vislumbrado Isagol, a Terrível, ela tinha sido... nada terrível?
Ele saiu da banheira e secou-se, vestiu calças limpas de linho, e estava cansado demais para amarrar o cordão. De volta ao seu quarto, tropeçou e caiu na cama, deitado sobre as colchas, e dormiu no meio da segunda respiração.
E foi assim que Sarai o encontrou: dormindo de bruços com a cabeça apoiada nos braços.
O longo e liso triângulo de suas costas subia e descia com a respiração profunda enquanto a mariposa dela pairou sobre ele, procurando um lugar para pousar. Da forma como ele estava deitado, a testa não era uma opção. Havia a extremidade áspera de seu rosto, mas enquanto o observava, ele afundou mais a cabeça entre os braços, e aquele local de pouso diminuiu e desapareceu. Mas havia suas costas.
Ele havia dormido com a glave descoberta e o ângulo baixo da luz lançava pequenas sombras abaixo de cada músculo, e sombras mais profundas nos ombros e descendo pelo canal de sua coluna. Era uma paisagem lunar para a mariposa. Sarai flutuou suavemente no vale escuro de seus ombros e assim que tocou a pele, entrou em seu sonho.
Ela foi cautelosa, como sempre. Já fazia várias noites que ela o visitava desde a primeira vez, e cada vez ela entrava no sonho silenciosamente, como um ladrão. Um ladrão do quê? Ela não estava roubando seus sonhos, nem mesmo os alterando de alguma forma. Ela estava apenas... desfrutando deles, como alguém que desfruta de música tocada gratuitamente.
Uma sonata pairando sobre o jardim.
Inevitavelmente, contudo, depois de ouvir boa música noite após noite, fica-se curioso sobre quem a toca. Ah, ela sabia quem ele era. Afinal, ela estava pousada em sua testa todo esse tempo – até esta noite, e essa nova experiência de suas costas – e havia uma estranha intimidade nisso. Ela conhecia seus cílios de cor, e seu perfume masculino, sândalo e almíscar. Ela até foi se acostumando ao seu nariz torto. Mas dentro dos sonhos, ela mantinha distância.
E se ele a visse de novo? E se não a visse? Será que havia sido uma falha? Ela queria saber, mas tinha medo. No entanto, essa noite algo havia mudado. Ela estava cansada de se esconder. Ela descobriria se ele podia vê-la, e talvez até o porquê. Ela estava preparada para isso, pronta para qualquer coisa. Pelo menos achava que estava.
Na verdade, nada podia tê-la preparado para entrar no sonho e se encontrar já nele.
De novo, as ruas da cidade mágica – Lamento, mas não era Lamento. Era noite, e a cidadela estava no céu desta vez, mas a lua brilhava apesar disso, como se o sonhador quisesse ter o melhor de dois mundos. E, novamente, havia aquela cor inacreditável, e asas leves, frutas e criaturas de contos de fadas. Havia o centauro com sua mulher. Ela andava a seu lado esta noite, e Sarai sentiu-se quase inquieta até que os viu se beijando. Eles eram permanentes ali; ela teria gostado de conversar com eles e ouvir sua história.
Sarai teve a ideia de que cada pessoa e criatura que ela viu ali era o início de outra história fantástica, e queria seguir todas. Mas principalmente, ela estava curiosa com o sonhador.
Ela o viu à frente, cavalgando um espectral. E foi ali que as coisas se tornaram completamente surreais, porque cavalgando ao lado dele, montada em uma criatura com o corpo de um ravide e a cabeça e asas da Aparição, a águia branca, estava... Sarai.
Para esclarecer, a própria Sarai – a Sarai de verdade – estava a distância, onde ela tinha entrado no sonho em um cruzamento de ruas. Ela os viu.
Viu a si mesma.
Viu a si mesma montada em uma criatura mítica no sonho do faranji.
Ela os observou. Sua boca abriu-se e fechou-se. Como? Ela olhou mais de perto. Desejou estar mais próxima para ver melhor, embora fosse cuidadosa para se manter fora de vista.
A outra Sarai, de onde podia ver, parecia-se exatamente como ela na noite em que ele a havia visto: com os cabelos soltos e a máscara pintada de Isagol. Em outras circunstâncias, ela teria pensado que estava vendo sua mãe, porque a semelhança entre as duas era surpreendente, e os humanos sonhavam com Isagol, enquanto, é claro, que nunca sonhavam com ela. Mas aquela não era Isagol. Sua mãe, apesar de todas as similaridades, possuía uma majestade que ela não tinha, e uma crueldade também. Isagol não sorria. Essa garota, sim. Essa garota azul tinha o rosto de Sarai, e não estava usando um vestido de asas de besouro e adagas, mas sim a mesma camisola com bainha de renda que usou na primeira noite.
Ela era parte do sonho.
O faranji estava sonhando com Sarai. Ele estava sonhando com ela... e não era um pesadelo.
Lá na cidadela, seus passos interromperam-se. Entre os ombros nus do sonhador, a mariposa pousada estremeceu. Uma dor subiu pela garganta de Sarai, como um soluço sem a tristeza. Ela olhou para si mesma do outro lado da rua – tal como era vista e lembrada pelo sonhador – e não viu obscenidade, ou calamidade, ou filhos dos deuses.
Ela viu uma garota sorridente e orgulhosa com uma bonita pele azul. Porque foi isso que ele viu, e esta era sua mente.
É claro, ele também achava que ela era Isagol.
– Perdoe-me por perguntar – ele estava dizendo a ela –, mas por que o desespero, entre todas as coisas das quais poderia ser deusa?
– Não conte a ninguém. – Isagol respondeu. – Eu era deusa da lua – ela sussurrou o resto como um segredo. – Mas então eu a perdi.
– Você perdeu a lua? – o sonhador perguntou, e espiou para o céu, onde a lua estava bastante presente.
– Não aquela – ela respondeu. – A outra.
– Havia outra lua?
– Ah, sim. Há sempre uma reserva, para garantir.
– Eu não sabia disso. Mas... como você perde uma lua?
– Não foi minha culpa – a garota explicou. – Ela foi roubada.
A voz não era de Sarai nem de Isagol, mas apenas uma voz imaginada pelo faranji. A estranheza de tudo aquilo confundiu Sarai. Lá estava seu rosto, seu corpo, com uma voz estranha saindo dele, dizendo palavras extravagantes que não tinham nada a ver com ela. Era como olhar para um espelho e ver outra pessoa ali refletida.
– Podemos ir até a lua procurar uma outra para comprar – o sonhador ofereceu. – Se você quiser.
– Existe uma loja de luas? Tudo bem.
E, então, o sonhador e a deusa foram comprar uma lua. Parecia algo saído de uma história. Bem, era como algo saído de um sonho. Sarai os seguiu em um estado de fascinação, e ambos entraram em uma loja minúscula sob uma ponte, deixando suas criaturas na porta. Ela ficou parada diante da vitrine, passou a mão na cabeça cheia de penas do grifo, e sentiu uma pontada de inveja atormentadora. Ela desejou que realmente fosse ela montada no grifo e olhando as bandejas de joias em busca da lua certa. Havia crescentes e quartos de lua, luas cheias e quase cheias, e não eram amuletos, eram luas – luas reais em miniatura, luminosas e com crateras, como se fossem iluminadas pelos raios de alguma estrela distante.
Sarai/Isagol – a impostora, como Sarai estava começando a pensar nela – não conseguia se decidir entre os astros, e levou todas. O sonhador pagou-as com uma espécie engraçada de bolsa de brocado verde, e no instante seguinte elas estavam brilhando no pulso dela, como um bracelete de amuletos. O par deixou a loja e montou em suas criaturas, Isagol levantando seu bracelete de forma que as luas faziam barulho, como sinos.
– Será que eles a deixarão ser uma deusa da lua novamente? – o sonhador perguntou.
Que história absurda é essa de deusa da lua?, Sarai perguntou-se com uma faísca de ira. Isagol não tinha sido nada tão benigno.
– Ah, não – explicou a deusa. – Estou morta.
– Sim, sei. Sinto muito.
– Não devia sentir. Eu era terrível.
– Você não parece terrível – disse o sonhador, e Sarai teve de morder o lábio. Porque essa não é Isagol, ela queria dizer. Sou eu. Mas tampouco era ela. Podia ter seu rosto, mas era um fantasma – apenas um fragmento de memória dançando em uma corda – e tudo o que ela dizia e fazia vinha da mente do sonhador.
Sua mente, onde a deusa do desespero sacudia luas em um bracelete e “não parecia terrível”.
Sarai podia ter lhe mostrado o que era terrível. Ela ainda era a Musa dos Pesadelos, afinal de contas, e havia visões de Isagol em seu arsenal que o teriam acordado gritando. Mas acordá-lo gritando era a última coisa que ela queria, então ela fez algo diferente.
Ela dissolveu o fantasma como uma mariposa ao nascer do sol, e entrou no seu lugar.
37
UM TOM DE AZUL ENCANTADOR
Lazlo piscou. Em um momento a pintura preta de Isagol atravessava seus olhos e no momento seguinte, não. Em um momento seus cabelos estavam soltos em volta dela como um xale e no momento seguinte estavam brilhando em suas costas como bronze fundido. Ela estava coroada com tranças e vinhas e o que ele primeiro achou que eram borboletas, logo viu que eram orquídeas, com uma única longa pena branca em um ângulo vistoso. Em vez da camisola, a garota usava um robe de seda cor de cereja bordado com botões brancos e açafrão.
Havia uma nova fragrância também, alecrim e néctar, e havia outras diferenças, mais sutis: uma mudança em seu tom de azul, um ajuste na inclinação de seus olhos. Uma espécie de... nitidez em suas linhas, como se um véu diáfano tivesse sido levantado. Ela parecia mais real do que um momento atrás.
Além disso, ela não estava mais sorrindo.
– Quem é você? – a moça indagou, e a sua voz havia mudado. Era mais rica, mais complexa – um acorde em oposição a uma nota. Era mais sombria também, e com ela, a extravagância do momento dissipou-se. Não havia mais luas em seu pulso – e tampouco uma lua visível no céu. O mundo pareceu se apagar, e Lazlo, olhando para cima, percebeu a luz da lua apenas como uma auréola em torno das extremidades da cidadela.
– Lazlo Estranho – ele respondeu, ficando sério. – A seu serviço.
– Lazlo Estranho – ela repetiu, e as sílabas eram exóticas em sua língua. Seu olhar era penetrante, sem piscar. Os olhos eram de um azul mais pálido que sua pele, ele sentiu que ela estava tentando sondá-lo. – Mas quem é você?
Era a menor e a maior pergunta de todas, e Lazlo não sabia o que dizer. No nível mais fundamental, ele não sabia quem era. Ele era um Estranho, com tudo o que isso acarretava – embora o significado de seu nome não faria sentido para ela e, de qualquer forma, ele não achava que ela estivesse perguntando sobre seu pedigree. Então, quem era ele?
Naquele momento, quando ela mudou, também mudaram os arredores. A loja de luas desapareceu, e toda Lamento junto com ela. Desapareceu também a cidadela e a sua sombra. Lazlo e a deusa, ainda montados em suas criaturas, foram transportados bem para o centro do Pavilhão do Pensamento. Doze metros de altura, as prateleiras de livros. As lombadas com seus tons de pedras preciosas, o brilho da folha de ouro. Bibliotecários em escadas como espectros em cinza, e acadêmicos em escarlate inclinados sobre suas mesas. Era tudo o que Lazlo tinha visto naquele dia, sete anos atrás, quando a sorte o havia levado a uma nova vida.
E assim pareceu que aquela era sua resposta, ou ao menos sua primeira resposta. A camada mais externa de seu eu, mesmo depois de seis meses longe dela.
– Sou um bibliotecário – respondeu. – Ou eu era, até recentemente. Na Grande Biblioteca de Zosma.
Sarai olhou em volta, absorvendo tudo aquilo e, momentaneamente, esqueceu sua linha dura de interrogatório. O que Feral faria em um lugar como este?
– São tantos livros – ela observou, intimidada. – Eu nunca imaginei que houvesse tantos livros no mundo inteiro.
Sua admiração ganhou a afeição de Lazlo. Ela podia ser Isagol, a Terrível, mas é impossível alguém que mostre reverência por livros ser irredimível.
– Foi assim que me senti da primeira vez que vi.
– O que há em todos eles? – ela perguntou.
– Nesta sala, são todos de filosofia.
– Esta sala? – E virando-se para ele: – Há mais salas?
Ele deu um sorriso largo.
– Muitas mais.
– Todas cheias de livros?
Ele assentiu, orgulhoso, como se tivesse escrito todos.
– Gostaria de ver meus favoritos?
– Tudo bem – a garota concordou.
Lazlo fez Lixxa andar em frente, e a deusa o seguiu com seu grifo. Lado a lado, tão majestosos quanto um par de estátuas, mas muito mais fantásticos, eles cavalgaram pelo Pavilhão do Pensamento. As asas do grifo roçaram nos ombros dos acadêmicos. Os chifres de Lixxa quase derrubaram uma escada. E Lazlo podia ser um sonhador experiente – nos vários sentidos da palavra –, mas nesse momento ele era como qualquer um. Não estava consciente de que era um sonho. Estava simplesmente dentro dele. A lógica que pertencia ao mundo real tinha ficado para trás, como bagagem em um porto. Este mundo tinha uma lógica própria, era fluido, generoso e profundo. As escadas secretas para seu subsolo empoeirado eram estreitas demais para acomodar grandes animais como esses, mas passaram por elas facilmente. E há muito ele havia limpado os livros com infinito amor e carinho, mas a poeira estava lá da mesma forma que quando os encontrou pela primeira vez: um cobertor suave de anos, guardando todos os melhores segredos.
– Ninguém além de mim leu nenhum desses livros em pelo menos uma vida – ele contou.
A garota tirou um livro e soprou a poeira, que pairou em volta como flocos de neve enquanto ela virava as páginas, mas as palavras estavam em um estranho alfabeto que não conseguia ler.
– O que tem neste aqui? – ela indagou a Lazlo, mostrando-lhe.
– Esse é um dos meus favoritos – ele respondeu. – É o épico da mahalath, uma névoa mágica que vem a cada cinquenta anos e cobre um vilarejo por três dias e três noites. Tudo que é vivo se transforma, para melhor ou para pior. As pessoas sabem quando ela está chegando e a maioria foge de sua passagem. Mas há sempre algumas que ficam e assumem o risco.
– E o que acontece com elas?
– Algumas viram monstros, outras, deuses.
– Então é daí que vêm os deuses – ela disse, secamente.
– Você saberia isso melhor do que eu, minha senhora.
Não mesmo, Sarai pensou, porque ela não sabia mais do que os humanos de onde vieram os Mesarthim. Ela, é claro, estava consciente de que aquilo era um sonho. Estava muito acostumada à lógica dos sonhos para se surpreender por qualquer armadilha, mas não tão cansada para achá-las bonitas. Depois de a poeira pairar, flocos de neve continuaram a cair no recinto. Eles brilhavam no chão como açúcar derramado, e quando ela desmontou do grifo, estava frio debaixo de seus pés descalços. A coisa que a surpreendeu, na qual não conseguia parar de pensar mesmo agora, era que ela estava tendo uma conversa com um estranho. Não importa por quantos sonhos já tivesse navegado, quaisquer devaneios quiméricos que tivesse testemunhado, ela nunca havia interagido. Mas aqui estava ela, conversando – batendo papo. Quase como uma pessoa real.
– E este aqui? – quis saber, pegando outro livro.
Ele leu a lombada:
– Folclore de Vaire. Esse é o pequeno reino ao sul de Zosma. – Ele folheou e sorriu. – Você gostaria deste aqui. É sobre um jovem que se apaixona pela lua e tenta roubá-la. Talvez ele seja o seu culpado.
– E ele consegue?
– Não, ele tem que fazer as pazes com o impossível.
Sarai fez uma careta.
– Você quer dizer que ele tem que desistir.
– Bem, é a lua. – Na história, o jovem Sathaz ficou tão encantado pelo reflexo da lua no poço profundo e imóvel perto de sua casa na floresta que olhava para ela, extasiado, mas sempre que tentava alcançá-la, ela se partia em mil pedaços e o deixava molhado, com os braços vazios. – Mas então – Lazlo acrescentou –, se alguém conseguiu roubá-la de você... –Ele olhou para o pulso nu onde não havia mais lua pendurada.
– Talvez tenha sido ele – ela disse – e a história está errada.
– Talvez – consentiu Lazlo. – E Sathaz e a lua estão vivendo felizes juntos numa caverna em algum lugar.
– E tiveram milhares de filhos juntos, e é daí que vêm as glaves. A união do homem com a lua. – Sarai ouviu-se e se perguntou o que havia de errado com ela. Momentos atrás estava irritada com aquele absurdo sobre a lua que estava saindo da boca de seu fantasma, e agora ela estava fazendo a mesma coisa. Era Lazlo, pensou. Era a mente dele. As regras eram diferentes aqui. A verdade era diferente. Era... mais agradável.
Ele deu um sorriso largo, e vê-lo deu um frio na barriga da Sarai.
– E aquele ali? – ela perguntou, virando-se rapidamente para apontar para um livro grande em uma prateleira mais alta.
– Ah, olá – disse ele, estendendo a mão para pegá-lo. Ele o trouxe para baixo: um tomo imenso, encadernado em veludo verde-claro com uma camada decorativa de prata. – Este – ele disse, passando-o para ela – é o vilão que quebrou meu nariz.
Quando ele o soltou em suas mãos, seu peso quase a fez derrubá-lo na neve.
– Isso? – ela perguntou.
– Meu primeiro dia como aprendiz – ele explicou pesaroso. – Foi sangue para todo lado. Não vou enojá-la apontando para a mancha na lombada.
– Um livro de contos de fadas quebrou seu nariz! – Sarai exclamou, sem conseguir evitar um sorriso ao constatar como estivera errada sua primeira impressão. – Imaginei que você tivesse brigado.
– Foi mais uma emboscada, na verdade. Eu estava na ponta dos pés, tentando pegá-lo – falou, tocando o nariz –, mas ele me pegou.
– Você tem sorte que ele não o decepou – disse Sarai, devolvendo-lhe o livro.
– Muita sorte. Eu tenho tristeza suficiente para um nariz quebrado. Nunca ouvi falar no fim de uma cabeça perdida.
Sarai deixou escapar um risinho.
– Acho que não dá para ouvir muita coisa se você perder a cabeça.
Solenemente, ele disse:
– Espero nunca descobrir.
Sarai observou seu rosto, como ela havia feito da primeira vez que o vira. Além de pensar nele como uma espécie de bruto, ela também o tinha achado feio. Entretanto, olhando agora, achou que a beleza não vinha ao caso. Ele era notável, como o perfil de um conquistador em uma moeda de bronze. E isso era melhor.
Lazlo, sentindo a análise, corou. Sua hipótese sobre a opinião dela quanto à sua aparência era bem menos favorável do que os pensamentos dela sobre o assunto. Sua opinião sobre a aparência dela era simples. Ela era simplesmente adorável, com bochechas redondas e um queixinho, e a boca era suculenta como uma ameixa, o lábio inferior como uma fruta madura com uma prega no meio, e macio como a pele de um damasco. Os cantos de seu sorriso, voltados para cima com satisfação, eram tão nítidos quanto as pontas da lua crescente, e suas sobrancelhas brilhavam contra o azul de sua pele, tão cor de canela quanto seus cabelos. Ele continuava esquecendo que ela estava morta e então se lembrava, e ficava triste toda vez que isso acontecia. Quanto ao fato de ela estar morta e ali, a lógica dos sonhos não se perturbava com enigmas.
– Deus do céu, Estranho – surgiu uma voz, e Lazlo viu mestre Hyrrokkin se aproximar, empurrando um carrinho de biblioteca. – Estive te procurando por toda parte.
Era tão bom vê-lo. Lazlo envolveu-o em um abraço que, evidentemente, constituía um excesso de afeição, porque o velho o empurrou, enfurecido.
– O que deu em você? – ele perguntou, ajeitando suas vestes. – Imagino que em Lamento eles saiam por aí maltratando uns aos outros como ursos lutadores.
– Exatamente como ursos lutadores – respondeu Lazlo. – Sem os ursos. Ou a luta.
Mas Mestre Hyrrokkin tinha visto a companhia de Lazlo. Seus olhos arregalaram-se.
– Mas quem é esta? – ele perguntou, sua voz uma oitava mais alta.
Lazlo os apresentou.
– Mestre Hyrrokkin, esta é Isagol. Isagol, Mestre Hyrrokkin.
Em um sussurro, o velho perguntou:
– Por que ela é azul?
– Ela é a deusa do desespero – Lazlo respondeu, como se isso explicasse tudo.
– Não, ela não é – disse Mestre Hyrrokkin, imediatamente. – Você entendeu errado, garoto. Olhe para ela.
Lazlo olhou, mais para oferecer um olhar de desculpas do que para considerar a afirmação do Mestre Hyrrokkin. Ele sabia quem ela era. Tinha visto a pintura, e Eril-Fane confirmara.
É claro, ela se parecia menos com ela mesma agora, sem a pintura preta nos olhos.
– Você fez como sugeri, então? – perguntou Mestre Hyrrokkin. – Você lhe deu flores?
Lazlo lembrou-se de seu conselho: “colha flores e encontre uma garota para presentear”. Ele se lembrou do resto do conselho também: “olhos meigos e quadris largos”. E corou com a lembrança. A garota era muito magra, e Lazlo não esperava que a deusa do desespero tivesse olhos meigos. Contudo, ela tinha, ele percebeu.
– Flores, não – respondeu, encabulado, querendo afastar qualquer exploração posterior do assunto. Ele sabia das tendências lascivas do velho e estava ansioso para vê-lo partir antes que ele dissesse alguma coisa infeliz. – Não é assim...
Mas Isagol o surpreendeu levantando o pulso, no qual o bracelete havia reaparecido.
– Mas ele me deu a lua – ela disse.
Não havia vários amuletos nele agora, apenas um: uma lua crescente, branca e dourada, pálida e radiante, parecendo ter sido arrancada do céu.
– Muito bem, garoto – afirmou Mestre Hyrrokkin, aprovando o gesto. De novo, o sussurro: – Ela podia ser mais voluptuosa, mas suponho que seja macia o bastante nos lugares certos. Você não vai querer ser cutuca-do por ossos quando...
– Por favor, Mestre Hyrrokkin – disse Lazlo, apressando-se em interrompê-lo. Seu rosto ficou vermelho.
O bibliotecário riu.
– Qual é a vantagem de ser velho se você não pode constranger os mais jovens? Bem, vou deixá-los em paz. Bom dia, minha jovem. Foi um prazer. – Ele beijou a mão dela, então virou-se, cutucando Lazlo com o cotovelo e sussurrando alto enquanto saía: – Que tom de azul encantador!
Lazlo virou-se para a deusa.
– Meu mentor – ele explicou. – Ele tem maus modos, mas bom coração.
– Nem percebi – respondeu Sarai, que não tinha visto nenhum problema com os modos do velho homem, e teve de lembrar-se, em todo caso, que aquela era apenas outra invenção da mente do sonhador. “Você errou, garoto”, o bibliotecário tinha dito. “Olhe para ela”. Será que isso significava que em algum nível Lazlo a via para além do disfarce, e não acreditava que ela fosse Isagol? Ela ficou contente com a ideia, e repreendeu-se por se preocupar com isso. Voltando-se para as estantes, percorreu com o dedo as lombadas de uma fileira de livros.
– Todos estes livros – ela quis saber – são sobre magia? –, refletindo se ele era algum especialista. Se era por isso que o Matador de Deuses o havia trazido consigo.
– São mitos e folclore, principalmente – respondeu Lazlo. – Qualquer coisa considerada muito divertida pelos acadêmicos para ser importante. Eles os colocaram aqui e esqueceram. Superstições, músicas, feitiços. Serafins, presságios, demônios, fadas. – Apontou para uma estante. – Aqueles são todos sobre Lamento.
– Lamento é divertida demais para ser importante? – ela indagou. – Acho que os cidadãos de lá vão discordar de você.
– Não é minha avaliação, acredite. Se eu fosse um acadêmico, poderia defender a cidade, mas você entende, também não sou importante.
– Não? E por que isso?
Lazlo olhou para seus pés, relutante em explicar a própria insignificância.
– Sou um órfão – explicou, fitando-a. – Não tenho família, não tenho nome.
– Mas você me disse seu nome.
– Tudo bem. Tenho um nome que diz ao mundo que não tenho nome. É como uma placa em volta do meu pescoço dizendo “Ninguém”.
– É tão importante ter um nome? – Sarai perguntou.
– Acho que os cidadãos de Lamento diriam que sim.
Sarai não teve resposta para isso.
– Eles nunca o recuperarão, não é? – Lazlo perguntou. – O verdadeiro nome da cidade? Você se lembra?
Sarai não se lembrava. Ela duvidava que o tivesse conhecido.
– Quando Letha roubava uma memória, ela não a guardava numa gaveta como um brinquedo confiscado. Ela a comia e a memória desaparecia para sempre. Esse era o seu dom. Erradicação.
– E o seu dom? – Lazlo perguntou.
Sarai congelou. A ideia de explicar-lhe seu dom trouxe uma sensação imediata de vergonha. Mariposas voam da minha boca, imaginou-se dizendo. Para que eu possa invadir as mentes humanas como estou fazendo com você agora mesmo. Mas, é claro, ele não estava perguntando sobre o dom dela. Por um momento ela esqueceu de quem era – ou não era. Ela não era Sarai aqui, mas esse absurdo fantasma domado de sua mãe.
– Bom, ela não era nenhuma deusa da lua – a garota falou. – Isso é tudo muito absurdo.
– Ela? – Lazlo perguntou, confuso.
– Eu – Sarai respondeu, embora a resposta tenha ficado presa em sua garganta. Isso a afetou com uma pontada de profundo ressentimento, de que essa coisa extraordinária e inexplicável acontecesse: um humano pudesse vê-la – e ele estava falando com ela sem ódio, com algo mais parecido com fascínio e até mesmo encantamento – e ela não tivesse de esconder sua presença. Se ela fosse Isagol, mostraria seu dom. Como um gatinho maléfico com um novelo, ela enrolaria suas emoções até que ele perdesse toda distinção entre amor e ódio, alegria e tristeza. Sarai não queria fazer esse papel, jamais. Ela voltou as perguntas para ele.
– Por que você não tem família? – ela indagou.
– Houve uma guerra. Eu era bebê. Acabei num carrinho de órfãos. É tudo o que sei.
– Então você poderia ser qualquer pessoa. Até mesmo um príncipe.
– Num conto de fadas, talvez – ele sorriu. – Não acredito que houvesse algum príncipe desaparecido. Mas e quanto a você? Deuses têm famílias?
Sarai pensou primeiro em Rubi e Pardal, Feral e Minya, Grande e Pequena Ellens, e nos outros: sua família, mesmo que não fossem de sangue. Então pensou em seu pai, e seus corações endureceram. Mas o sonhador estava fazendo de novo, voltando as questões para ela.
– Somos feitos de névoa – respondeu. – Lembra? A cada cinquenta anos.
– A mahalath. É claro. Então você foi uma das que assumiu o risco.
– Você não faria o mesmo? – ela perguntou. – Se a névoa estivesse chegando, você ficaria e seria transformado, sem saber qual seria o resultado?
– Eu ficaria – ele disse imediatamente.
– Essa foi rápida. Você abandonaria sua verdadeira natureza com tão pouca consideração?
Ele riu disso.
– Você não faz ideia de quanto já considerei isso. Vivi sete anos dentro desses livros. Meu corpo podia estar cumprindo os deveres na biblioteca, mas minha mente estava aqui. Você sabe como me chamavam? Estranho, o sonhador. Eu mal percebia o que estava ao meu arredor na metade do tempo. – Ele ficou surpreso consigo mesmo, falando assim, e com ninguém menos que a deusa do desespero. Mas os olhos dela estavam brilhando de curiosidade, um espelho de sua própria curiosidade sobre ela, e sentiu-se totalmente à vontade. Certamente o desespero era a última coisa na qual pensou ao fitá-la. – Eu andava por aí me perguntando que tipo de asas eu compraria se os fabricantes de asas viessem para a cidade, e se eu preferia montar em dragões ou caçá-los, e se eu ficaria quando a névoa chegasse, e mais do que qualquer outra coisa, como eu chegaria até a Cidade Perdida.
Sarai levantou a cabeça.
– A Cidade Perdida?
– Lamento. Sempre odiei esse nome, então inventei o meu.
Sarai estava sorrindo e querendo perguntar em que livro estavam os fabricantes de asas, e se os dragões eram malvados ou não, mas ao se lembrar de Lamento, seu sorriso lentamente derreteu-se em melancolia, e isso não foi a única coisa que derreteu. Para seu arrependimento, a biblioteca também derreteu, e então estavam em Lamento novamente. Mas dessa vez não era a Lamento dele, mas a dela, e podia estar mais perto da cidade de verdade do que a versão dele, mas tampouco era correta. Com certeza, ainda era bela, mas havia as nuances da proibição também. Todas as portas e janelas estavam fechadas – e os peitoris, desnecessário dizer, não tinham bolos – e era um lugar desolado com jardins mortos e a correria corcunda de uma população que temia o céu.
Havia tantas coisas que ela queria perguntar a Lazlo, que era chamado de “sonhador” mesmo antes de ela tê-lo apelidado assim. Por que você pode me ver? O que você faria se soubesse que sou real? Que asas você escolheria se os fabricantes de asas chegassem? Podemos voltar para a biblioteca, por favor, e ficar um tempo lá? Mas ela não podia dizer nada disso.
– Por que você está aqui? – ela perguntou.
Ele ficou espantado com a mudança repentina no clima.
– É meu sonho desde que eu era criança.
– Mas por que o Matador de Deuses te trouxe? Qual é a sua parte nisso? Os outros são cientistas, construtores. Por que o Matador de Deuses precisa de um bibliotecário?
– Ah, não, não sou um deles. Parte da delegação, quero dizer. Tive que implorar por um lugar na comitiva. Sou o secretário dele.
– Você é o secretário de Eril-Fane.
– Sim.
– Então você deve conhecer os planos. – O pulso de Sarai acelerou. Outra das mariposas estava voando em frente ao pavilhão onde os trenós de seda estavam. – Quando ele virá para a cidadela? – indagou, sem pensar.
Era a pergunta errada. Ela soube disso assim que a proferiu. Talvez fosse o fato de ser direta, ou a sensação de urgência, ou talvez tenha sido o escorregão de ter usado virá em vez de irá, mas algo mudou em seu jeito, como se ele estivesse olhando-a com novos olhos.
E ele estava. Sonhos têm seus ritmos, seus pontos rasos e profundos, e ele estava subindo para um estágio de maior lucidez. A lógica deixada para trás do mundo real veio descendo como raios de sol através da superfície do oceano, e ele começou a entender que nada disso era real. É claro que ele não tinha cavalgado Lixxa pelo Pavilhão do Pensamento. Era tudo fugaz, instável: um sonho.
Exceto por ela.
Ela não era fugaz nem instável. Sua presença tinha um peso, uma profundidade e uma clareza que nada mais tinha – nem mesmo Lixxa, e havia poucas coisas que Lazlo conhecia melhor ultimamente do que a realidade física de Lixxa. Depois de seis meses cavalgando o dia inteiro, ela era quase uma extensão dele. Mas o espectral pareceu de repente insubstancial, e logo que esse pensamento lhe ocorreu, ele se dissolveu. O grifo também. Havia apenas ele e a deusa com seu olhar penetrante e perfume de néctar e... gravidade.
Não gravidade no sentido de solenidade – embora isso, também –, mas gravidade no sentido de uma força. Ele sentiu como se ela estivesse no centro dessa pequena e surreal galáxia – na verdade, que era ela que estava sonhando com ele, e não o contrário.
Lazlo não sabia o que o estava levando a fazer aquilo. Não era de seu feitio. Ele pegou a mão dela e a segurou gentilmente. Era pequena, macia e muito real.
Na cidadela, Sarai levou um susto ao sentir o calor da pele de Lazlo. Uma chama de conexão – ou colisão, como se estivessem há tempos perambulando no mesmo labirinto e, finalmente, dobraram a esquina que os deixaria face a face. Era uma sensação de estar perdida e sozinha e, de repente, nenhuma dessas coisas. Sarai sabia que deveria puxar sua mão, mas não fez isso.
– Você precisa me dizer – ela disse.
Ela podia sentir o sonho ficando mais raso, como um navio encalhando em um banco de areia. Logo ele acordaria.
– As máquinas de voar. Quando vão lançá-las?
Lazlo sabia que era um sonho, e sabia que não era um sonho, e as duas noções andando em círculos em sua mente, deixando-o confuso.
– O quê? – ele indagou. A mão dela parecia o pulsar dos corações dentro da sua.
– As máquinas voadoras – ela repetiu. – Quando?
– Amanhã – ele respondeu, sem pensar.
A palavra, como uma foice, cortou as cordas que a estavam mantendo em pé. Lazlo achou que sua mão ao redor da dela era tudo que a mantinha ereta.
– O que foi? – ele perguntou. – Você está bem?
Ela se afastou, puxou sua mão.
– Me escute – a garota falou, e seu rosto ficou severo. A faixa preta retornou como um golpe cortante e seus olhos arderam ainda mais brilhantes para dar contraste.
– Eles não devem vir – ela disse, com uma voz tão inflexível quanto o mesarthium. As vinhas e orquídeas desapareceram de seus cabelos, e então havia sangue fluindo dele, riachos descendo de sua fronte e se acumulando nos olhos para enchê-los até que não houvesse nada além de poças vermelhas, e ainda assim o sangue fluía, descendo para os lábios e para dentro da boca, encharcando-a enquanto falava.
– Você entende? – ela reforçou. – Se fizerem isso, todos morrerão.
38
TODOS MORRERÃO
Todos morrerão.
Lazlo acordou de supetão e ficou surpreso ao encontrar-se sozinho no quarto. As palavras ecoavam em sua cabeça e uma visão da deusa ficou impressa em sua mente: sangue empoçando-se em seus olhos e pingando até sua boca carnuda. Havia sido tão real que quase não pôde acreditar que era um sonho. Mas é claro que havia sido. Apenas um sonho, o que mais? Sua mente estava transbordando com novas imagens desde sua chegada em Lamento. Os sonhos eram uma forma do cérebro processar tudo aquilo, e agora ele estava com dificuldade de fazer a correlação da garota do sonho com aquela no mural. Vibrante e triste versus... sangrenta e raivosa.
Ele sempre fora um sonhador vívido, mas isso era algo completamente novo. Ainda podia sentir o formato e o peso da mão dela na sua, seu calor e maciez. Tentou afastar a lembrança à medida que começou os afazeres da manhã, mas a imagem daquele rosto continuava invadindo sua mente e o eco assustador de suas palavras: todos morrerão.
Especialmente quando Eril-Fane o convidou para subir para a cidadela.
– Eu? – ele perguntou, assombrado. Eles estavam no pavilhão, ao lado dos trenós de seda. Ozwin preparava os dois; para economizar o gás de ulola, apenas um subiria hoje. Uma vez que chegassem à cidadela, deveriam restaurar seu extinto sistema de roldanas para que as futuras idas e vindas não dependessem de voar.
Era assim que os produtos eram levados da cidade na época dos Mesarthim, com uma cesta grande o suficiente para carregar uma ou duas pessoas – descobriram depois da libertação, quando os libertos a usaram para descer, uma viagem por vez. Mas nas horas de choque e de celebração em que receberam a notícia da morte dos deuses, devem ter se esquecido de amarrar as cordas apropriadamente, pois as cestas se soltaram das roldanas e caíram, deixando a cidadela para sempre – até então – inacessível. Hoje eles restabeleceriam a ligação.
Soulzeren havia dito que podia levar três passageiros além de si mesma. Eril-Fane e Azareen eram dois, e Lazlo recebeu a oferta do último lugar.
– Você tem certeza? – ele perguntou a Eril-Fane – Mas... um dos Tizerkane...?
– Como você sem dúvida observou – disse Eril-Fane –, a cidadela é difícil para nós.
Somos todos filhos da sombra, Lazlo lembrou-se.
– Qualquer um deles viria se eu pedisse, mas ficarão felizes de serem poupados. Você não precisa vir se não quiser. – Um brilho leve tomou conta de seu semblante. – Sempre posso pedir a Thyon Nero.
– Isso é desnecessário – informou Lazlo. – E, de qualquer forma, ele não está aqui.
Eril-Fane olhou em volta.
– Não, ele não está, não é? – Thyon era, na verdade, o único delegado que não tinha aparecido para ver o lançamento. – Devo mandar buscá-lo?
– Não – respondeu Lazlo. – É claro que quero ir.
Na verdade, ele não estava tão certo depois de seu sonho macabro. Apenas um sonho, falou a si mesmo, olhando para a cidadela. O ângulo do sol que nascia deixava escapar alguns raios sob as extremidades das asas, produzindo um brilho recortado ao longo das pontas das imensas penas de metal.
Todos morrerão.
– Você tem certeza de que ela está vazia? – ele soltou, tentando sem sucesso parecer casual.
– Tenho certeza – afirmou Eril-Fane, com um tom austero e decisivo. Ele amoleceu um pouco. – Se você está com medo, saiba que está em boa companhia. Tudo bem se preferir ficar.
– Não, estou bem – Lazlo insistiu.
E foi assim que ele se viu entrando a bordo de um trenó de seda menos de uma hora depois. Apesar do calafrio que não o deixava, ele foi capaz de se maravilhar com esse novo desdobramento de sua vida. Ele, Estranho, o sonhador, ia voar. Voaria na primeira aeronave do mundo, junto a dois guerreiros Tizerkane e uma mecânica que costumava fazer armas de fogo para generais, para uma cidadela de estranho metal azul flutuando sobre a cidade de seus sonhos.
Além dos faranji, cidadãos estavam reunidos para ver a decolagem, Suheyla inclusive, e todos estavam marcados pela mesma apreensão que os Zeyyadin na noite anterior. Ninguém olhava para cima. Lazlo achou o medo deles mais perturbador do que nunca e ficou contente de se distrair com Calixte.
Ela veio e sussurrou:
– Traga-me um souvenir. – E piscou. – Você me deve.
– Não vou furtar a cidadela para você – ele disse, com ar afetado. E então: – Que tipo de souvenir? – Sua mente foi imediatamente para os corpos dos deuses que eles esperavam encontrar, incluindo o de Isagol. Ele estremeceu. Quanto tempo levava para um corpo se tornar um esqueleto? Menos de quinze anos, certamente. Mas ele não quebraria nenhum osso do mindinho para Calixte. Além disso, Eril-Fane explicara que Lazlo e Soulzeren esperariam do lado de fora enquanto ele e Azareen faziam uma busca para garantir que o lugar estava seguro.
– Eu achava que você tinha certeza de que estava vazio – Lazlo observou.
– Vazio dos vivos – foi a resposta para reconfortá-lo.
E então subiram a bordo. Soulzeren colocou óculos que a faziam parecer uma libélula. Ozwin deu-lhe um beijo e soltou as cordas que prendiam os grandes pontões de seda firmemente ao chão. Eles tinham de soltá-las todas de uma vez se quisessem subir reto e não “ziguezaguear como camelos bêbados”, como disse Ozwin. Havia cordas de segurança que se prendiam a equipamentos que Soulzeren deu-lhes para usar – todos menos Eril-Fane, cujos ombros eram largos demais para eles.
– Prenda no seu cinto, então – disse Soulzeren, franzindo a testa. Ela olhou para cima, espremendo os olhos em direção às grandes asas de metal, às solas dos pés do grande anjo e ao céu que podia ver em torno das extremidades. – Não há vento, de qualquer forma. Deve correr bem.
Então fizeram uma contagem regressiva e lançaram-se.
E simples assim... estavam voando.
Os cinco na cidadela reuniram-se no terraço de Sarai, observando, observando, observando a cidade. Se olhassem bastante, ela tornava-se um padrão abstrato: o círculo do anfiteatro na oval formada pelos muros externos, que eram quebrados pelos quatro monólitos das âncoras. As ruas eram labirínticas. Elas os tentavam a traçar caminhos com os olhos, encontrar rotas entre este e aquele lugar. Todos os filhos dos deuses faziam isso, exceto Minya, que havia desejado vê-la de perto.
– Talvez não estejam vindo – afirmou Feral, esperançoso. Desde que Sarai lhe contou sobre a vulnerabilidade dos trenós de seda, ele vinha pensando sobre o assunto, perguntando-se o que faria quando chegasse a hora. Será que ele desafiaria Minya ou desapontaria Sarai? Qual era o caminho mais seguro? Mesmo agora ele estava incerto. Se não viessem, ele não teria de escolher.
Escolher não era o ponto forte de Feral.
– Lá – Pardal apontou, com a mão tremendo. Ela ainda segurava as flores que estivera tramando nos cabelos de Sarai, bastões-do-imperador vermelhos, como as que havia colocado no bolo “para fazer um pedido” de Rubi, exceto pelo fato de estas não serem botões. Eram flores abertas, tão lindas quanto fogos de artifício. Ela já tinha feito o cabelo de Rubi e Rubi o dela. Todas as três usavam desejos no cabelo hoje.
Então os corações de Sarai balançaram, parecendo bater juntos. Ela inclinou-se para frente, apoiando-se na mão do anjo para espiar e seguir a linha do dedo de Pardal até os telhados da cidade. Não, não, não, repetia em sua cabeça, mas viu: uma luz vermelha, erguendo-se do pavilhão da câmara.
Eles estavam vindo. Soltando-se da cidade, deixando telhados, espirais e domos para trás. A forma cresceu, ficando mais distinta, e logo Sarai pôde ver quatro figuras. Seus corações continuaram batendo forte.
Seu pai. É claro que ele era um dos quatro. Era fácil discerni-lo a distância por causa do tamanho. Sarai engoliu em seco. Ela nunca o tinha visto com os próprios olhos. Uma onda de emoção tomou conta da garota, não era fúria, não era ódio. Era anseio. De ser filha de alguém. Um nó formou-se em sua garganta. Ela mordeu o lábio.
E não demorou para que eles se erguessem perto o bastante para que ela pudesse distinguir os outros passageiros. Ela reconheceu Azareen, e não teria esperado menos da mulher que amou Eril-Fane por tanto tempo. A piloto era a mulher faranji mais velha, e o quarto passageiro...
O quarto passageiro era Lazlo.
Seu rosto estava voltado para cima. Ele ainda estava distante demais para ser visto com clareza, mas ela sabia que era ele.
Por que ele não a tinha ouvido? Por que ele não tinha acreditado nela? Bem, ele acreditaria em pouco tempo. Ondas de calor e frio tomaram seu corpo, seguidas de desespero. O exército de Minya estava do lado de dentro do quarto de Sarai, pronto para emboscar os humanos quando pousassem. Formariam um enxame em volta deles com suas facas, cutelos e ganchos de carne. Os humanos não teriam nenhuma chance. Minya ficou parada lá como a pequena general que era, atenta e pronta.
– Tudo bem – ela disse, olhando para Sarai e Feral, Rubi e Pardal com um olhar frio e brilhante. – Todos saiam de vista – ordenou, e Sarai observou enquanto os outros obedeciam.
– Minya – ela começou.
– Agora – gritou Minya.
Sarai não sabia o que fazer. Os humanos estavam vindo. Um massacre estava prestes a acontecer. Entorpecidamente, ela seguiu os outros, desejando que fosse um pesadelo do qual pudesse acordar.
Não era como voar. Não havia nada de pássaro nessa ascensão constante. Eles flutuaram para cima como um botão de ulola muito grande, com um pouco mais de controle do que as flores levadas pelo vento.
Fora os pontões, que eram de seda vermelha especialmente tratada e continham gás de ulola, havia outra bexiga, esta sob a aeronave, que se enchia de ar por meio de pedais na parte de baixo. Não era para flutuar, mas para impulsionar. Por meio de várias válvulas, Soulzeren podia controlar o impulso em diferentes direções – para frente, para trás, para os lados. Havia um mastro e uma vela, também, que funcionavam exatamente como em um barco a vela se os ventos fossem favoráveis. Lazlo tinha visto os voos de teste em Thanagost, e a visão dos trenós movendo-se pelo céu de vento em popa tinha sido mágica.
Olhando para baixo, notou as pessoas nas ruas e nos terraços ficando cada vez menores até que o trenó flutuou tão alto que a cidade se espalhou como um mapa, chegando à altura da parte mais baixa da cidadela, os pés. Subindo e subindo, passando os joelhos, as longas e lisas coxas até o torso, que parecia enrolado em tecido leve – tudo mesarthium e sólido, mas tão astuciosamente moldado que era possível ver os ossos do quadril como se através de um tecido translúcido.
Seja lá o que Skathis tivesse sido, também fora um artista.
Para lançar a maior sombra, as asas eram abertas em leque em um imenso círculo, com as penas escapulares se tocando na parte de trás, as secundárias formando o meio do anel e as longas primárias alcançando toda a circunferência até ficarem paralelas com os braços estendidos do serafim. O trenó de seda subiu pelo espaço entre os braços, alinhando-se com o peito. Ao olhar para cima abaixo do queixo, uma cor chamou a atenção dos olhos de Lazlo. Verde. Fileiras de verde sob as clavículas, estendendo-se de um ombro até o outro.
Eram as árvores que deixavam cair as ameixas no distrito chamado Quedavento, Lazlo pensou. Ocorreu-lhe se perguntar como, com tão pouca chuva, elas ainda estavam vivas.
– Feral – Sarai implorou –, por favor.
Feral cerrou os dentes. Ele não a olhou. Se ela estivesse pedindo para não fazer alguma coisa, ele se perguntou se seria mais fácil do que fazer alguma coisa. Ele olhou para Minya.
– Isso não precisa acontecer – Sarai continuou. – Se você invocar as nuvens agora mesmo, ainda pode forçá-los a voltar.
– Feche sua boca – Minya ordenou, com a voz fria como gelo, e Sarai viu que a enfurecia o fato de não conseguir fazer com que os vivos a obedecessem tão facilmente quanto os mortos.
– Minya – ela implorou –, se ninguém morrer, há esperança de encontrar outra forma.
– Se ninguém morrer! – repetiu Minya. Ela deu uma risada alta. – Então eu diria que é tarde demais para a esperança, quinze anos.
Sarai fechou os olhos e abriu-os novamente.
– Quero dizer agora. Se ninguém morrer agora.
– Se não for hoje, então será amanhã ou no dia seguinte. Quando há um trabalho desagradável para fazer, é melhor fazer logo. Postergar não vai ajudar.
– Pode ser que ajude – disse Sarai.
– Como?
– Eu não sei!
– Fale baixo – Minya sussurrou. – Você entende que uma condição necessária para essa emboscada é a surpresa?
Sarai a observou, o rosto tão duro e intransigente, e novamente viu Skathis em seus traços, até na forma dele. Se Minya tivesse herdado o poder de Skathis, refletiu, será que seria diferente dele, ou subjugaria toda uma população e justificaria tudo dentro dos rígidos parâmetros de justiça. Como essa criança pequena e traumatizada havia mandado neles por tanto tempo? De repente, isso lhe pareceu ridículo. Será que não teria havido outra forma, desde o início? E se Sarai nunca tivesse produzido nenhum pesadelo? E se, desde o começo, ela tivesse acalmado os medos de Lamento em vez de os alimentado? Será que ela teria acabado com todo esse ódio?
Não. Mesmo ela não podia acreditar nisso. Por duzentos anos ele veio crescendo. O que ela poderia ter esperado alcançar em quinze?
Nunca saberia. Ela nunca tivera uma escolha e agora era tarde demais. Esses humanos morreriam.
E depois?
Quando o trenó de seda e seus passageiros não retornassem? Será que eles mandariam o próximo em seguida, para que mais morressem?
E depois?
Quem sabe quanto tempo isso lhes garantiria, quantos meses ou anos eles teriam essa existência de purgatório antes de um ataque maior e mais ousado – mais aeronaves, Tizerkane saltando de navios como piratas abordando uma embarcação. Ou os estrangeiros inteligentes elaborariam algum plano grandioso para afundar a cidadela.
Ou suponha que os humanos simplesmente se dessem por vencidos e abandonassem Lamento, deixando uma cidade fantasma para eles dominarem. Sarai imaginou-a vazia, todas aquelas ruas labirínticas e camas desarrumadas desertas e sentiu, por um momento de choque, como se estivesse se afogando no vazio. Ela imaginou suas mariposas se afogando no silêncio e aquilo pareceu o fim do mundo.
Apenas uma coisa era certa, o que quer que acontecesse: desse momento em diante, os cinco seriam como fantasmas fingindo que ainda estavam vivos.
Sarai queria dizer tudo isso, mas as palavras enroscaram-se dentro de si. Ela tinha segurado a língua por muito tempo. Era tarde demais. Percebeu um flash de vermelho através da porta aberta e sabia que era o trenó de seda, embora seu primeiro pensamento tenha sido sangue.
Todos morrerão.
A expressão de Minya era predatória, ávida. Sua mãozinha estava pronta para dar o sinal, e...
– Não – Sarai gritou, empurrando-a para o lado e passando correndo. Ela empurrou a multidão de fantasmas, que eram tão sólidos quanto corpos vivos, mas sem o calor. Ela chocou-se com uma faca segurada pela mão de um fantasma. A lâmina deslizou por seu antebraço enquanto ela abria caminho para passar. Era tão afiada que a garota a sentiu apenas como uma linha de calor. O sangue correu rápido e, quando um fantasma agarrou seu pulso, foi difícil segurá-la por estar molhada. Ela se libertou e correu para a porta.
O trenó de seda estava lá, manobrando para pousar. Eles já tinham se virado para sua direção e levaram um susto quando ela apareceu. A piloto estava ocupada com as alavancas, mas os outros três a viram.
As mãos de Eril-Fane e Azareen tocaram na bainha de suas hreshteks.
Lazlo, surpreso, disse:
– Você.
E Sarai, com um soluço, gritou:
– Fujam!
39
INIMIGOS PERIGOSOS
Árvores que deveriam estar mortas. Movimento onde deveria haver quietude. Uma figura na porta da cidadela há muito abandonada.
Onde deveria haver nada além de abandono e antigas mortes, lá estava... ela.
O primeiro instinto de Lazlo foi duvidar de que estivesse acordado. A deusa do desespero estava morta e ele estava sonhando. Mas ele sabia que isso, pelo menos, não era verdade. Ele sentiu o silêncio repentino de Eril-Fane, e percebeu a mão grande congelar no cabo da hreshtek meio desembainhada. A de Azareen não, e libertou a arma com um ruído letal.
Lazlo notou tudo isso em sua visão periférica, pois não conseguia se virar para olhar. Não conseguia tirar os olhos dela.
Ela tinha flores vermelhas nos cabelos. Seus olhos estavam arregalados e desesperados. Sua voz cavou um túnel pelo ar. Era rouca e profunda, como uma velha corrente de âncora passando pelo escovém. A garota estava lutando. Mãos a puxaram de lá de dentro. Mãos de quem? Ela segurou-se no batente da porta, mas o mesarthium era liso, não havia nada para lhe dar apoio e havia muitas mãos, agarrando seus braços, cabelos e ombros. Ela não tinha onde se segurar.
Lazlo quis sair em sua defesa. Seus olhos encontraram-se. O olhar era como a luz de um raio. O grito dela ainda ecoava – Fujam! – e então ela desapareceu dentro da cidadela.
Enquanto outros começaram a sair.
Soulzeren tinha, no instante do grito, revertido o movimento do trenó, fazendo-o mover-se suavemente para trás. “Suavemente” era sua única velocidade, exceto com velas e uma boa brisa. Lazlo ficou em pé, experimentando o significado completo de inutilidade enquanto uma onda de inimigos arremessou-se contra eles, movendo-se com uma fluidez esquisita, voando na direção deles como se tivessem sido lançados. Ele não tinha espada para pegar e nada a fazer a não ser ficar parado, observando. Eril-Fane e Azareen ficaram justamente à frente dele e de Soulzeren, protegendo-os desse impossível ataque. Eram muitos e muito rápidos. Eles saíam como abelhas de uma colmeia. Lazlo não conseguiu entender o que estava vendo. Eles estavam vindo. E vinham com tudo.
Eles estavam ali.
Aço contra aço. O som foi direto para seus corações. Ele não podia ficar parado de mãos vazias – inútil – em uma tempestade de aço. Não havia armas extras. Não havia nada além da vara almofadada que Soulzeren tinha para empurrar o trenó para longe de obstáculos quando manobrava para pousar. Ele agarrou-a e enfrentou o motim.
Os inimigos tinham facas, não espadas – facas de cozinha – e seu curto alcance os deixava bem na zona de ataque dos guerreiros. Se fossem inimigos comuns, teria sido possível defender-se com amplos golpes que cortariam dois ou três de uma vez. Mas não eram inimigos comuns. Eram homens e mulheres de todas as idades, alguns de cabelos brancos, alguns ainda crianças.
Eril-Fane e Azareen estavam desviando dos golpes, lançando as facas de cozinha para longe, deslizando sobre a superfície de metal do terraço que ainda estava debaixo do trenó. Azareen assustou-se ao ver uma velha senhora, e Lazlo viu o braço que segurava a espada hesitar.
– Vovó? – ela disse, atordoada, e ele observou, sem piscar, horrorizado, enquanto a mulher levantava um malho, o metal cravejado para bater carne, e o deixou cair bem na cabeça de Azareen.
Não houve um pensamento consciente. Foram os braços de Lazlo que agiram, levantando a vara a tempo. O malho o acertou, e a vara acertou Azareen. Foi inevitável, a força do golpe – imensa para uma idosa! – era grande demais. Mas a vara era acolchoada com algodão e tecido e impediu que o crânio de Azareen fosse partido. O braço da espada de Azareen voltou à vida. Ela afastou a vara e balançou a cabeça para livrar-se dela, e Lazlo viu...
Ele viu a lâmina cortar o braço da velha, atravessá-lo e... nada aconteceu. O braço, sua substância, simplesmente... rearranjou-se em torno da arma e tornou-se inteiro novamente depois de ter sido atravessado. Não havia nem mesmo sangue.
Tudo ficou claro. Esses inimigos não eram mortais e não podiam ser feridos.
A constatação chocou a todos, justamente quando o trenó enfim se afastou do terraço de volta para o céu aberto, ampliando a distância em relação à mão de metal e ao exército de mortos que ela continha.
Foi uma sensação de alívio, um momento para voltar a respirar.
Mas era falsa. Os inimigos continuavam vindo, saltando do terraço e ignorando a distância. Eles saltaram para o céu aberto e... não caíram.
Não havia escapatória. Os fantasmas bateram contra o trenó ao saírem da imensa mão de metal do anjo, sacando facas e ganchos de carne, e os Tizerkane combateram golpe a golpe. Lazlo ficou entre os guerreiros e Soulzeren, segurando a vara. Um inimigo escapou pelo lado, um homem de bigode, e Lazlo cortou-o na metade, apenas para ver as duas metades recomporem-se como em um pesadelo. O truque eram as armas, ele pensou, lembrando-se do malho. Ele atacou de novo, mirando na mão do homem e arrancando-lhe a faca, que caiu no piso do trenó.
Esse exército anormal não tinha nenhum treinamento, mas o que isso importava? Não havia como combatê-los, eles não morriam. De que vale habilidade diante de uma luta como esta?
O fantasma de bigode, sem arma, lançou-se contra Soulzeren, e Lazlo colocou-se entre eles. O fantasma agarrou a vara. Lazlo continuou segurando-a. Eles lutaram. Logo atrás desse homem era possível ver o restante – o enxame de rostos impassíveis e olhos atormentados – e ele não conseguia soltar a vara. A força do fantasma não era natural. Ele não se cansava. Lazlo ficou sem ação quando o próximo inimigo passou pela guarda dos Tizerkane. Uma jovem com olhos assombrados. Um gancho de carne em suas mãos.
Ela o levantou. E abaixou...
... no pontão de estibordo, furando-o. O trenó balançou. Soulzeren gritou. O gás saiu assoviando pelo furo e o trenó começou a girar.
Foi exatamente neste momento, quando ocorreu a Lazlo que ele morreria – exatamente como havia sido alertado, impossivelmente, em um sonho –, que o fantasma com quem ele estava lutando... perdeu a solidez. Lazlo viu suas mãos, em um momento tão duras e reais na madeira da vara, dissolverem-se através dela. A mesma coisa aconteceu com a mulher. O gancho de carne caiu dentro do trenó, embora ela não o tivesse soltado. E então a coisa mais estranha: um olhar doce de alívio passou pelo seu rosto, mesmo quando ela começou a desaparecer de vista. Lazlo pôde ver através da mulher, que fechou os olhos e sorriu, desaparecendo. O homem de bigode foi o próximo. Um instante e seu rosto havia perdido a impassividade, inundado pelo delírio da liberdade, e então também desapareceu. Os fantasmas estavam se dissolvendo. Haviam ultrapassado alguma fronteira e tinham sido libertados.
Nem todos tiveram sorte. A maioria foi sugada para trás como pipas presas a linhas, fisgada de volta para a mão de metal para observar o trenó, girando devagar, mover-se cada vez mais para longe do seu alcance.
Não havia tempo para divagar. O pontão de estibordo vazava o gás e a quilha estava virando para cima.
– Lazlo! – gritou Soulzeren, empurrando seus óculos para a testa. – Passe o seu peso para bombordo e se segure.
Ele fez como ordenado, seu peso equilibrando a inclinação da aeronave enquanto ela colocava um remendo no furo sibilante que o gancho de carne havia feito. A arma ainda estava no chão, imóvel e letal, assim como a faca que caíra também. Azareen e Eril-Fane estavam respirando pesado, suas hreshteks ainda em punho, ombros erguidos. Eles checa-ram um ao outro em busca de ferimentos. Ambos sangravam com cortes nas mãos e nos braços, mas tudo estava bem. Incrivelmente, ninguém tinha um ferimento sério.
Respirando fundo, Azareen virou-se para Lazlo:
– Você salvou minha vida, faranji.
Lazlo quase disse “de nada”, mas ela não tinha agradecido de fato, então ele segurou-se e apenas assentiu. Ele esperava que fosse um gesto digno, talvez até mesmo um pouco duro. Mas duvidava disso. Suas mãos estavam tremendo.
Tudo nele estava tremendo.
O trenó parou de girar, mas ainda estava inclinado. Havia gás suficiente para uma descida lenta. Soulzeren levantou a vela e a mareou, fazendo a proa virar e apontar em direção à campina fora dos muros da cidade.
Isso foi bom. Teriam tempo para recuperar o fôlego antes que os outros chegassem até eles. A ideia dos outros, e todas as perguntas que fariam, tirou Lazlo de sua euforia de sobrevivência e o levou de volta à realidade. Perguntas. Perguntas requeriam respostas. Quais eram as respostas? Ele olhou para Eril-Fane, indagando:
– O que acabou de acontecer?
O Matador de Deuses ficou um bom tempo com as mãos na grade, apoiando-se pesadamente, olhando para longe. Lazlo não conseguia ver o seu rosto, mas podia interpretar seus ombros. Algo muito pesado os estava pressionando. Muito pesado mesmo. Ele se lembrou da garota no terraço, a garota do sonho, e perguntou:
– Aquela era Isagol?
– Não – respondeu Eril-Fane, abrupto. – Isagol está morta.
Então... quem? Lazlo poderia ter perguntado mais, mas Azareen o fitou e o reprovou com um olhar. Ela estava muito abalada.
Eles ficaram em silêncio pelo resto da descida. O pouso foi suave como um sussurro, a aeronave deslizando pela grama alta até que Soulzeren baixou a vela e enfim pararam. Lazlo a ajudou a prendê-la e puderam colocar os pés novamente na superfície do mundo. O grupo estava fora da sombra da cidadela ali. O sol brilhava e a linha nítida da sombra, morro abaixo, formava uma fronteira visível.
Em contraste com a linha dura onde a escuridão começava, Lazlo vislumbrou o pássaro branco, circulando e inclinando-se. Ele sempre estava lá, ponderou. Sempre observando.
– Eles chegarão logo aqui, imagino – afirmou Soulzeren, tirando os óculos e limpando a testa com o braço: – Ozwin não demora.
O Matador de Deuses concordou. Permaneceu em silêncio mais um momento, recompondo-se antes de pegar a faca e o gancho de carne caídos no chão do trenó e jogá-los longe. Ele respirou fundo e falou:
– Não vou lhes ordenar que mintam – disse devagar –, mas vou pedir-lhes isso. Peço que guardemos isso entre nós. Até que eu possa pensar no que fazer a respeito.
Isso? Os fantasmas? A garota? Essa destruição total de que os cidadãos de Lamento acreditavam sobre a cidadela que já temiam com um pavor frio e debilitante? Que tipo de pavor essa nova verdade inspiraria? Lazlo arrepiou-se só de pensar.
– Não podemos... Não podemos simplesmente não fazer nada – falou Azareen.
– Eu sei – disse Eril-Fane, devastado –, mas se contarmos, haverá pânico. E se tentarmos atacar... – Ele engoliu em seco. – Azareen, você viu?
– É claro que vi – ela sussurrou. Suas palavras eram tão cruas. Ela abraçou-se. Lazlo pensou que deveriam ser os braços de Eril-Fane no lugar. Até ele podia ver isso. Mas Eril-Fane estava preso em seu próprio choque e angústia e guardou os braços grandes para si.
– Quem eram eles? – Soulzeren questionou. – O que eles eram?
Lentamente, como uma dançarina fazendo uma reverência até o chão, Azareen abaixou-se sobre a grama dizendo:
– Todos os nossos mortos voltados contra nós. – Seus olhos eram duros e brilhantes.
Lazlo virou-se para Eril-Fane e perguntou:
– Você sabia? Quando estávamos decolando, perguntei se você tinha certeza de que a cidadela estava vazia, e você disse “vazia dos vivos”.
Eril-Fane fechou os olhos, esfregando-os.
– Eu não quis dizer... fantasmas – respondeu, tropeçando na palavra.
– Eu quis dizer corpos. – Ele parecia quase esconder o rosto nas mãos e Lazlo soube que ainda havia segredos.
– Mas a garota... – Lazlo falou, hesitante. – Ela não era nenhum dos dois.
Eril-Fane afastou as mãos dos olhos.
– Não. – Com angústia e um brilho severo de... algo... talvez redenção, ele sussurrou: – Ela está viva.
PARTE IV
sathaz (SAH.thahz) substantivo
O desejo de possuir o que nunca pode ser seu.
Arcaico; do Conto de Sathaz, que se apaixonou pela lua.
40
MISERICÓRDIA
O que Sarai havia acabado de fazer?
Depois que tudo terminara e os cinco viram, por sobre a beirada do terraço, o trenó de seda escapar para baixo para uma campina verde distante, Minya voltou-se para ela, sem falar nada – incapaz de falar – e o silêncio foi pior do que um grito teria sido. A menina tremia com a fúria mal contida e, quando o silêncio se estendeu, Sarai forçou-se a realmente olhar para Minya. O que ela viu não foi apenas fúria. Foi um deserto de descrença e traição.
– Aquele homem nos matou, Sarai – ela sussurrou, quando finalmente encontrou sua voz. – Você pode esquecer isso, mas jamais esquecerei.
– Nós não estamos mortos. – Naquele momento, Sarai não tinha certeza de que Minya sabia disso. Talvez tudo o que ela conhecesse fossem fantasmas, e não fizesse distinção. – Minya, nós ainda estamos vivos.
– Porque eu nos salvei dele! – ela estava gritando. Seu peito erguia-se. Ela era tão magra, dentro de suas roupas esfarrapadas. – Para que você pudesse salvá-lo de mim? É assim que você me agradece?
– Não! – Sarai explodiu. – Eu te agradeci fazendo tudo o que me dizia para fazer! Eu te agradeci sendo uma vingança para você, toda noite, durante anos, a despeito do que isso fazia a mim. Mas nunca era suficiente. E nunca será suficiente!
Minya parecia incrédula.
– Você está brava por nos manter seguros? Sinto muito que tenha sido difícil para você. Talvez nós devêssemos ter esperado você, e nunca tê-la feito usar seu dom horrível.
– Não é isso que estou dizendo. Você distorce tudo. – Sarai estava tremendo. – Devia ter um outro jeito. Você fez a escolha. Você escolheu os pesadelos. Eu era muito nova para saber. Você me usou como a um de seus fantasmas. – Ela estava se afogando em suas próprias palavras, surpresa consigo mesma por conseguir falar, e percebeu Feral emudecido e boquiaberto.
– Então em troca você me traiu. Você traiu a todos nós. Eu posso ter escolhido por você um dia, Sarai, mas hoje a escolha foi sua. – Seu peito levantava e descia com uma respiração animal. Seus ombros eram frágeis como ossos de pássaro. – E você escolheu. Escolheu a eles! – ela berrou na última parte. Seu rosto ficou vermelho, lágrimas escorriam. Sarai nunca a tinha visto chorar antes. Nunca. Até suas lágrimas eram ferozes e raivosas. Nada dos traços suaves e trágicos que pintavam os rostos de Rubi e Pardal. As lágrimas de Minya tinham raiva, praticamente saltando dos olhos em gotas cheias e gordas, como chuva.
Todos estavam paralisados. Pardal, Rubi, Feral, atordoados. Olhavam de Sarai para Minya, de Minya para Sarai, e pareciam prender a respiração. E quando Minya se virou para eles, apontou para a porta e ordenou:
– Vocês três. Fora daqui! – Eles hesitaram, divididos, mas não por muito tempo. Era Minya que lhes causava medo, seus ataques de raiva, seu desapontamento escaldante, e era a ela que costumavam obedecer. Se Sarai tivesse apresentado-lhes uma escolha naquele momento, se tivesse se mantido firme e defendido suas ações, poderia tê-los conquistado para o seu lado. Mas ela não fez isso. A incerteza estava descrita em seu rosto: os olhos arregalados demais, o lábio tremendo e a forma como mantinha o braço sangrando junto ao corpo.
Rubi segurou em Feral e virou-se junto a ele. Pardal foi a última a sair, olhando temerosa da porta e disse as palavras sinto muito. Sarai viu-a sair. Minya permaneceu parada por mais um momento, fitando Sarai como se ela fosse uma estranha. Quando ela falou novamente, sua voz tinha perdido a estridência, a fúria. Estava monótona e velha:
– O que quer que aconteça agora, Sarai, terá sido culpa sua.
E ela girou nos calcanhares e passou pela porta, deixando Sarai sozinha com os fantasmas.
Toda a raiva foi sugada no seu rastro e deixou um vazio. O que mais havia, quando se tirava a raiva, o ódio? Os fantasmas ficaram paralisados – aqueles que restavam, os que Minya havia puxado de volta, da iminência da liberdade, enquanto os outros saíam de seu alcance e fugiam dela – e eles não podiam virar seus rostos para olhar para Sarai, mas seus olhos concentravam-se nela, e ela pensou ter visto perdão neles, e gratidão.
Pela sua misericórdia.
Misericórdia.
Havia sido misericórdia ou traição? Salvação ou condenação? Talvez fossem todas essas coisas alternando-se como em uma moeda jogada para cima, girando de face em face – misericórdia, traição, salvação, condenação. E como ela cairia? Como tudo aquilo terminaria? Cara, os humanos viveriam. Coroa, os filhos dos deuses morreriam. O resultado fora roubado desde o dia em que nasceram.
Uma frieza tomou conta dos corações de Sarai. O exército de Minya a intimidava, mas o que teria acontecido hoje se ele não estivesse lá? E se Eril-Fane tivesse vindo, esperando encontrar esqueletos, e os encontrasse?
Ela ficou com a certeza desolada de que seu pai teria feito de novo o que fizera há quinze anos. Seu rosto estava fixo em sua mente: assombrado para começar, apenas por retornar a esse lugar de tanto tormento. Então surpreso. Afetado pela visão dela. Ela testemunhara o momento exato em que ele entendeu. Foi muito rápido: o primeiro empalidecer de choque, quando pensou que ela era Isagol, e o segundo, quando percebeu que não era.
Quando entendeu quem ela era.
Horror. Foi isso que ela viu em seu rosto, e nada menos que isso. Ela acreditava que tinha se endurecido para qualquer dor que ele pudesse lhe causar, mas estava errada. Esta foi a primeira vez na vida que o tinha visto com os próprios olhos – não filtrado por meio dos sentidos das mariposas ou conjurado no inconsciente dele, ou de Suheyla, ou de Azareen, mas ele, o homem cujo sangue era metade dela, seu pai – e seu horror ao vê-la havia aberto nela um novo botão de vergonha.
Obscenidade, calamidade. Cria dos deuses.
E no rosto do sonhador? Choque, alarme? Sarai não sabia dizer. Tudo acontecera num piscar de olhos, e o tempo todo os fantasmas estavam puxando-a pela porta, arrastando-a para dentro. Seu braço doía. Havia sangue coagulado do antebraço até os dedos e ainda saindo brilhante da longa linha do corte.
Havia marcas florescendo também, onde os fantasmas tinham-na agarrado. A dor pulsante a fazia sentir que as mãos deles ainda estavam lá. Ela queria Grande Ellen – seu toque suave para limpar e cobrir o ferimento, e sua compaixão. Com determinação, ela fez menção de sair, mas os fantasmas bloquearam o caminho. Por um momento, ela não entendeu o que estava acontecendo. Havia acostumado-se à presença deles, sempre endurecendo-se quando tinha de passar por um grupo, mas nunca tinham interferido a passagem dela. Agora, logo que se dirigiu à porta, eles juntaram-se e a impediram de passar. Ela parou. Seus rostos estavam impassíveis como nunca. Ela sabia que não adiantava falar com eles, como se estivessem sob seu próprio controle, mas as palavras saíram de qualquer maneira.
– O quê? Não tenho permissão para sair?
É claro que eles não responderam, apenas obedecendo ordens, e Sarai não iria a lugar algum.
O dia todo, ninguém veio. Isolada e mais cansada do que nunca, ela lavou o braço com a água que restava no jarro e amarrou-o com uma lingerie que rasgou em tiras. Permaneceu no quarto de dormir, como se estivesse se escondendo dos guardas-fantasmas. Ondas quentes de pânico passavam por ela quando se lembrava, mais uma vez, o caos da manhã e a escolha que fizera.
O que quer que aconteça agora, será culpa sua.
Ela não tivera a intenção de escolher. Em seus corações, nunca havia feito e nunca poderia fazer aquela escolha – humanos no lugar dos seus. Não foi isso que ela fizera. Não era uma traidora, mas tampouco era uma assassina. Andando pra lá e pra cá, ela sentiu como se a vida a tivesse guiado até um beco sem saída e a prendido apenas para lhe ensinar uma lição.
Presa presa presa.
Talvez ela sempre tivesse sido prisioneira, mas não dessa forma. As paredes fecharam-se em torno dela. A garota queria saber o que estava acontecendo lá embaixo em Lamento e qual tipo de alvoroço tinha causado a notícia de sua existência. Eril-Fane já devia ter-lhes contado. Eles estariam reunindo armas e falando em estratégia. Será que voltariam em grande número? Será que conseguiriam? Quantos trenós de seda eles tinham? Havia visto apenas dois, mas parecia fácil construí-los. Ela supôs que era apenas uma questão de tempo até que eles pudessem criar uma força de invasão.
Será que Minya achou que seu exército podia segurá-los para sempre? Sarai imaginou uma vida na qual os cinco continuariam como antes, mas agora sitiados, alertas a ataques em todas as horas do dia ou da noite, repelindo guerreiros, empurrando corpos terraço afora para mergulharem na cidade embaixo como as ameixas de Quedavento. Feral chamaria chuvas para lavar o sangue, e todos sentariam-se para jantar enquanto Minya prendia a nova leva de mortos do dia e os colocaria a seu serviço.
Sarai estremeceu, sentindo-se tão impotente. O dia estava claro e continuou assim. Sua necessidade de lull era forte, mas não havia mais névoa cinzenta esperando por ela, não importava quanto lull bebesse. Ela estava tão cansada que se sentia... surrada, como as solas de sapatos velhos, mas não ousava fechar os olhos. O terror do que a esperava além do limiar da consciência era ainda mais poderoso. Ela não estava bem. Fantasmas fora, horrores dentro e nenhum lugar para onde ir. As paredes azuis brilhantes a cercavam. Ela chorou, esperando o anoitecer, que enfim veio. Seu grito silencioso nunca havia sido uma libertação tão grande. Ela gritou tudo e sentiu como se seu próprio ser se partisse no suave dispersar de asas.
Traduzida em mariposas, Sarai lançou-se para as janelas e espremeu-se para sair. O céu era imenso e havia liberdade nele. As estrelas a chamavam como faróis acesos em um vasto oceano escuro enquanto ela se arremessava dividida em uma centena, no ar vertiginoso. Escapar, escapar. Ela voou para longe dos pesadelos, da privação e das costas viradas de seus iguais. Ela voou para longe do beco sem saída onde sua vida a prendia e insultava. Ela voou para longe de si mesma. Um desejo selvagem a tomou para voar o mais longe que podia de Lamento – uma centena de mariposas, uma centena de direções –, voar e voar até que o nascer do sol chegasse e a transformasse em fumaça e todo seu sofrimento também.
– Mate-se, garota – A velha havia dito. – Tenha piedade de nós todos.
Piedade.
Piedade.
Será que seria piedade, colocar um fim em si mesma? Sarai sabia que aquelas palavras cruéis não tinham vindo das velhas-fantasmas, mas de seu eu mais íntimo, envenenado pela culpa de quatro mil noites de sonhos sombrios. Ela também sabia que em toda a cidade e no monstruoso anjo de metal que havia roubado o céu, ela era a única que conhecia o sofrimento dos humanos e dos filhos dos deuses, e pensou que sua piedade era singular e preciosa. Hoje ela havia evitado um massacre, pelo menos por algum tempo. O futuro era cego, mas ela não podia sentir, verdadeiramente, que seria melhor sem ela. Ela se recompôs de sua dispersão. Desistiu do céu com suas estrelas tais quais alarmes de incêndio e voou para Lamento para descobrir o que sua piedade havia desencadeado.
41
ENCANTAMENTO
A deusa era real e estava viva.
Lazlo havia sonhado com ela antes de saber que os Mesarthim eram azuis e isso parecia esquisito o bastante. Muito mais agora que a tinha visto viva, seu rosto adorável exatamente igual ao que conhecera em seus sonhos. Não era coincidência.
Só podia ser magia.
Quando as carroças chegaram para recolher o trenó de seda e os passageiros, os quatro sustentaram uma história simples, de falha mecânica, que não foi questionada por ninguém. Eles minimizaram o evento a tal ponto que o dia continuou dentro da normalidade, embora Lazlo sentisse que a “normalidade” fora deixada para trás para sempre. Ele assimilou tudo tão bem quanto se podia esperar – considerando que esse “tudo” compreendia a quase morte nas mãos de fantasmas selvagens – e encontrou dentro de si, crescendo em meio à consternação e o medo, uma estranha bolha de contentamento. A garota de seus sonhos não era uma invenção e ela não era a deusa do desespero, e não estava morta. O dia inteiro ele passou virando a cabeça para cima para olhar para a cidadela com novos olhos, sabendo que ela estava lá. Como era possível?
Como tudo aquilo era possível? Quem era ela e como tinha entrado em seus sonhos? Naquela noite, ele estava inquieto quando se deitou para dormir, esperando que ela retornasse. Diferentemente da noite anterior, quando se esparramou com o rosto para baixo na cama, sem camisa e inconsciente, sem nem mesmo amarrar o cordão de suas calças, esta noite ele foi vítima de uma formalidade peculiar: vestiu uma camisa, amarrou o cordão da calça e prendeu os cabelos. Até se olhou no espelho – e sentiu-se um tolo por estar preocupado com a aparência, como se ela fosse de alguma forma vê-lo, embora não tivesse ideia de como funcionava tal magia. Ela estava lá em cima e ele ali embaixo, mas ele não conseguia se livrar da sensação de que estava esperando uma visitante – o que teria sido uma experiência nova para ele em qualquer lugar, mas era particularmente provocativa neste local. Estar deitado na cama, esperando a visita de uma deusa...
Ele corou. É claro que não era assim. Olhou para o teto, uma tensão em seus membros, e sentiu como se estivesse interpretando o papel de alguém adormecido em uma peça. Isso não adiantaria. Era preciso dormir de verdade para sonhar, mas o sono não estava chegando fácil, visto que a mente estava agitada por causa do dia. Havia uma espécie de euforia em quase morrer e não morrer. Acrescente a isso sua ansiedade por saber se ela viria. Ele era todo nervosismo, fascinação, timidez e uma esperança profunda.
Lembrou-se maravilhado de como pegara a mão da garota na noite anterior e segurado-a na sua, sentindo a realidade dela, e a conexão que tinha inflamado entre eles quando ele a pegou. Na realidade, ele jamais teria ousado fazer algo tão corajoso. Mas ele não conseguia se convencer que aquilo não era realidade, à sua maneira. Não havia ocorrido no reino físico, isso era verdade. Sua mão não tinha tocado a mão dela. Mas... sua mente havia tocado a mente dela e isso lhe parecia uma realidade mais profunda, uma intimidade ainda maior. A garota havia se surpreendido quando ele a tocara, seus olhos haviam se arregalado. Fora real para ela também, ele pensou. Seus cílios, lembrou-se, eram de um vermelho-dourado, os olhos de um azul translúcido. E se recordava da maneira com a qual ela o fitara pela primeira vez, como se estivesse paralisada, noites atrás, e novamente na noite passada. Ninguém jamais o olhara daquele jeito. Isso fez com que Lazlo quisesse checar o espelho novamente para ver o que ela teria visto – se talvez seu rosto tivesse melhorado sem que ele soubesse – e o impulso foi tão vaidoso, e nada de seu feitio, que ele cobriu os olhos com o braço e riu de si mesmo.
Sua risada diminuiu ao lembrar-se também do sangue brotando e do aviso dela – “todos morrerão” – e do jeito furioso com que ela tinha lutado à porta da cidadela para alertá-lo mais uma vez.
Ele estaria morto se não fosse por ela.
“Fujam!”, a garota havia gritado enquanto mãos a pegavam, arrastando-a para dentro. Como ela parecia determinada e desesperada! Será que estava bem? Será que se machucara? Em que condições ela existia? Como era sua vida? Havia tanta coisa que ele queria saber. Tudo. Lazlo queria saber tudo e queria ajudar. Em Zosma, quando Eril-Fane falara aos acadêmicos com um semblante sombrio sobre o “problema” de Lamento, o rapaz fora tomado pelo mesmo desejo profundo: de ajudar, como se alguém como ele tivesse alguma chance de resolver um problema como esse.
Ocorreu-lhe, enquanto estava deitado com o braço cobrindo os olhos, que a garota estava presa ao problema de Lamento de formas que ele ainda não conseguia entender. Entretanto, uma coisa estava clara: ela não estava a salvo e não era livre, e o problema de Lamento tinha ficado muito mais complicado.
Quem ela havia desafiado com aquele grito, indagou-se, e qual preço que tivera de pagar por isso? Preocupar-se com a garota dobrou sua ansiedade e afastou ainda mais o sono, então ele temeu que o sono nunca chegasse. O rapaz estava ansioso, com medo de perder sua visita, como se seus sonhos fossem uma porta na qual ela estivesse batendo sem encontrar alguém em casa. Espere, pensou. Por favor, espere por mim. E enfim acalmou-se com a ideia, zombando de si mesmo, de “preocupações caseiras”. Ele nunca recebera um convidado antes, então não sabia como se comportar. Como recebê-la se ela viesse, e onde. Se havia orientações de etiqueta para receber deusas nos sonhos, ele nunca tinha encontrado esse livro na Grande Biblioteca.
Não era apenas uma questão de salas de visita e bandejas de chá – embora houvesse isso também. Se ela viesse na realidade, ele ficaria limitado pela realidade. Mas os sonhos eram algo diferente. Ele era Estranho, o sonhador. Esse era seu domínio, e não havia limites nele.
Sarai observou o sonhador lançar o braço sobre os olhos, ouviu-o dar risada. Ela notou sua estranha imobilidade, reconhecendo-a como uma inquietação contida e esperou impacientemente até que se atenuasse e ele dormisse. Sua mariposa estava pousada em um canto sombreado do batente da janela, onde esperou por um longo tempo antes que ele parasse de se mexer, tentando determinar quando havia mesmo cruzado a fronteira. Seu braço ainda estava apoiado sobre o rosto, não podendo ver os olhos, ela não sabia dizer se ele estava fingindo. Uma emboscada estava em sua mente, por motivos óbvios, e ela não conseguia reconciliar a violência da manhã com o silêncio desta noite.
Sarai não tinha encontrado nada do pânico ou a preparação que esperava. O trenó de seda avariado fora levado de volta ao seu pavilhão e lá ele estava abandonado, com um pontão vazio. A mecânica e piloto estava dormindo em sua cama, com a cabeça encostada no ombro do marido, e embora o caos da manhã tivesse entrado em seus sonhos – e nos dele, em menor medida – os demais forasteiros estavam despreocupados. A conclusão de Sarai, a partir das informações de suas mariposas da primeira safra de sonhos da noite, era que Soulzeren tinha contado ao marido e a ninguém mais sobre o... encontro... na cidadela.
Os Zeyyadin estavam da mesma forma no escuro. Nada de pânico. Nenhuma consciência que Sarai pudesse perceber, da ameaça que pairava sobre suas cabeças.
Será que Eril-Fane mantivera segredo? Por que faria isso?
Se ela pudesse perguntar-lhe...
Na verdade, ao mesmo tempo em que sua mariposa estava empoleirada na janela observando o sono chamar Lazlo Estranho, Sarai estava vendo-o não chamar o Matador de Deuses.
Ela o tinha encontrado, embora não estivesse o procurando, pois acreditara que ele estaria desaparecido como em todas aquelas noites em que Sarai visitou Azareen e a encontrou sozinha.
Na verdade, ela ainda estava sozinha. Ela estava na cama, enrolada em uma bola com as mãos sobre o rosto, acordada, enquanto Eril-Fane também estava acordado na pequena sala de estar, cadeiras empurradas para o lado e um colchonete estendido no chão. No entanto, ele não estava deitado nele. Suas costas estavam encostadas na parede e seu rosto estava apoiado nas mãos. Dois cômodos, a porta fechada entre eles. Dois guerreiros com o rosto nas mãos. Sarai, observando-os, imaginou que tudo seria melhor se os rostos e as mãos simplesmente... mudassem de lugar. Ou seja, se Azareen segurasse o rosto de Eril-Fane enquanto ele segurava o dela.
Os dois estavam angustiados e imóveis, quietos e determinados a sofrerem sozinhos! Do ponto de vista de Sarai, ela observava duas poças privadas de sofrimento tão próximas que eram quase adjacentes – como os cômodos conectados com a porta fechada entre eles. Por que não abrir a porta, abrir os braços e fechá-los em torno um do outro? Será que eles não entendiam como, na estranha química das emoções humanas, os sofrimentos dele e dela, misturados, poderiam... compensar um ao outro?
Pelo menos por um tempo.
Sarai queria sentir desprezo por ambos serem tão tolos, mas sabia demais para desdenhá-los. Por anos vira o amor de Azareen por Eril--Fane arruinado ainda no botão, como as orquídeas de Pardal por uma das tempestades de Feral. E por quê? Porque o Matador de Deuses era incapaz de amar.
Por causa do que Isagol lhe causara.
E como Sarai tinha passado a compreender – ou melhor, por anos tinha se recusado a entender até que enfim não houvesse como negar –, por causa do que ele tinha feito. O que ele tinha se forçado a fazer para garantir a liberdade futura de seu povo: matar crianças e, com elas, sua própria alma.
Isso foi o que enfim atravessou sua cegueira. Seu pai salvara o próprio povo e destruído a si mesmo. Por mais forte que parecesse, dentro dele era uma ruína, ou talvez uma pira funeral, como a Cúspide – só que em vez de ossos derretidos dos ijji, ele era feito dos esqueletos de bebês e crianças, incluindo, como ele sempre tinha acreditado, sua própria filha: ela. Esse era o seu remorso. Isso o sufocava como ervas daninhas e podridão, e colônias de insetos, sujando-o e manchando-o, estagnado e fétido, de forma que nada tão nobre quanto o amor, ou o perdão, jamais pudesse ter espaço dentro dele.
A ele era até mesmo negado o alívio das lágrimas. Eis outra coisa que Sarai sabia melhor do que qualquer um: o Matador de Deuses era incapaz de chorar. O nome da cidade era uma provocação. Em todos esses anos, ele fora incapaz de produzir lágrimas. Quando Sarai era jovem e cruel, ela tinha tentado fazê-lo chorar, sem sucesso.
Pobre Azareen. Vê-la encolhida daquele jeito e desnuda de toda sua armadura era como ver um coração retirado do corpo, posto em carne viva em uma tábua, e rotulado de Aflição.
E Eril-Fane, salvador de Lamento, por três anos um brinquedo da deusa do desespero? Qual seria seu rótulo, exceto Vergonha?
Então, a Aflição e a Vergonha moravam em quartos contíguos, com a porta fechada entre eles, segurando a dor em seus braços em vez de juntos. Sarai observou-os, esperando que seu pai adormecesse para poder lhe enviar uma sentinela – se ela ousasse – e saber o que ele estava escondendo em seus corações enquanto escondia o rosto em suas grandes mãos. Ela não podia esquecer o olhar de horror quando a avistara na porta da cidadela, mas tampouco podia entender por que ele tinha guardado o segredo sobre ela.
Agora que ele sabia que ela estava viva, o que planejava fazer a respeito?
E então lá estavam os quatro que tinham voado até a cidadela e vivido para contar a história – embora eles aparentemente não tivessem feito isso. Sarai observou todos eles, os que dormiam e os que estavam acordados. Ela também estava em vários outros lugares, mas a maior parte de sua atenção estava dividida entre seu pai e o sonhador.
Quando teve certeza de que Lazlo enfim caíra no sono – e movido o braço de forma que ela pudesse ver seu rosto –, direcionou a mariposa do batente da janela até ele. Mas ela não conseguiu tocá-lo, e pairou no ar acima dele. Dessa vez seria diferente, sabia. Na cidadela, andando de um lado para o outro, sentia-se tão apreensiva como se estivesse mesmo no quarto com ele, pronta para se assustar com o mínimo movimento.
Com os sentidos de sua mariposa ela sentiu o cheiro de sândalo dele e o aroma puro de almíscar. Sua respiração era profunda e compassada. Tinha ciência de que ele sonhava. Seus olhos movimentavam-se sob as pálpebras, e seus cílios, fechados – tão densos e brilhantes quanto o pelo de gato-selvagem – moviam-se suavemente. E então, ela não podia esperar nenhum instante a mais. Com uma sensação de expectativa e apreensão, cruzou a pequena distância até sua fronte, pousou na pele morna e entrou em seu mundo.
Ele a esperava.
Ele estava bem ali, parado em pé e esperando como se soubesse que ela viria.
Sua respiração parou. Não, ela pensou. Não como se ele soubesse. Mas como se desejasse.
A mariposa assustou-se e rompeu o contato. Ele estava perto demais; ela não estava preparada. Mas aquele piscar de olhos capturou o momento em que a preocupação dele se transformou em alívio.
Alívio. Ao vê-la.
Quando pairou acima dele, com seus corações batendo distantemente em um ritmo selvagem, Sarai percebeu como aguardava pelo pior, certa de que hoje enfim ele devia ter aprendido a sentir aversão a ela – o sentimento que era apropriado. Contudo, não notara nada disso naquele vislumbre. Então encheu-se de coragem e retornou à sua fronte.
Lá ainda estava ele, e ela viu novamente a transformação de preocupação em alívio.
– Sinto muito – ele pediu, com sua voz rouca.
Ele estava mais longe agora. Não tinha se movido, exatamente, mas mudado a concepção de espaço no sonho para não a pressionar no limiar. Ambos estavam parados à margem de um rio, e não era o tumultuoso Uzumark, mas sim um riacho mais tranquilo. Nem Lamento, nem a Cúspide, nem a cidadela estavam visíveis, mas um bom tanto de céu rosa pálido e, sob ele, esse trecho amplo de água verde e sem ondulações, navegada por pássaros com longos pescoços curvos. Ao longo das margens, estendendo-se como se para pegar seus reflexos, havia fileiras de casas rústicas de pedra com as janelas pintadas de azul.
– Eu te assustei – disse Lazlo. – Por favor, fique.
Era engraçada a ideia de que ele podia assustá-la. A Musa dos Pesadelos que atormenta Lamento, assustada em um sonho por um meigo bibliotecário?
– Foi só um sobressalto – ela respondeu, envergonhada. – Não estou acostumada a ser cumprimentada. – Ela não explicou que não estava acostumada a ser vista, que tudo isso lhe era novo ou que as batidas de seus corações estavam se emaranhando, entrando no ritmo e saindo como crianças aprendendo a dançar.
– Eu não queria perdê-la, se você viesse – disse Lazlo. – Esperava que você viesse.
Lá estava, a magia em seus olhos, brilhando como o sol na água. Isso provoca algo em uma pessoa, ser olhada dessa forma – especialmente em alguém acostumada à aversão. Sarai tinha uma nova consciência desconcertante de si mesma, como se nunca tivesse percebido quantas partes móveis tinha, todas para serem coordenadas com alguma graça. Isso funcionava por si só desde que ela não pensasse a respeito. Contudo, bastava começar a se preocupar que tudo dava errado. Como tinha passado a vida inteira sem perceber a estranheza dos braços, a forma como eles simplesmente ficam pendurados nos ombros como carne na janela de um açougue? Ela cruzou-os – sem elegância, ela achou, como uma amadora, escolhendo a saída mais fácil.
– Por quê? – ela perguntou. – O que você quer?
– Eu... Eu não quero nada – ele apressou-se em dizer. É claro, era uma pergunta injusta. Afinal, ela estava invadindo seu sonho, não o contrário. Ele tinha mais direito de perguntar o que ela queria lá. Em vez disso, falou: – Bem, quero saber se você está bem. O que aconteceu com você lá em cima? Você se machucou?
Sarai piscou. Se ela tinha se machucado? Depois do que ele tinha visto e sobrevivido, estava perguntando se ela estava bem?
– Estou bem – respondeu, um pouco rouca devido à dor inexplicável na garganta. Em seu quarto, ela segurou o braço machucado. Ninguém na cidadela tinha ligado para o fato de ela ter se machucado. – Você devia ter me ouvido. Tentei avisá-lo.
– Sim, bem. Achei que você era um sonho. Mas aparentemente não é. – Ele fez uma pausa, incerto. – Você não é, né? Embora, é claro que, se você fosse, e me dissesse que não era, como eu saberia?
– Não sou um sonho – afirmou Sarai. Havia amargura em sua voz. – Sou um pesadelo.
Lazlo soltou uma risadinha incrédula.
– Você não é minha ideia de pesadelo – falou, corando um pouco. – Estou feliz que seja real – ele acrescentou, corando muito. E ambos ficaram parados frente à frente, embora não estivessem olhando um para o outro, mas sim para as pedrinhas do leito do rio entre seus pés.
Lazlo viu que a garota estava descalça e fechava os dedos dos pés em volta das pedrinhas e da lama debaixo deles. Ele estivera pensando nela o dia todo e tinha pouco para continuar, mas ela claramente tinha sido uma surpresa para Eril-Fane e Azareen, o que o levou a supor que sua vida inteira tinha sido vivida na cidadela. Será que ela já tinha colocado os pés no mundo? Com isso em mente, ver seus dedos dos pés azuis curvando-se na lama do rio afetaram-no com pungência.
Depois disso, ver seus tornozelos azuis nus e suas panturrilhas finas lhe causaram grande encantamento, tanto que ele corou e desviou o olhar. Pensou enfim, no meio de tudo, que poderia ser ridículo oferecer algo para beber, mas não sabia o que mais fazer, então arriscou:
– Você aceitaria... aceitaria um chá?
Chá?
Sarai percebeu, pela primeira vez, a mesa à margem do rio. Estava na parte rasa, os pés perdidos em pequenos redemoinhos espumantes que se encaracolavam contra a margem. Havia uma toalha branca e alguns pratos cobertos, junto com uma chaleira e duas xícaras. Um pouco de vapor escapou do bico da chaleira, e ela percebeu que podia sentir o aroma, picante e floral, em meio aos odores terrosos do rio. O que eles chamavam de chá na cidadela era apenas água com ervas, como hortelã e erva-cidreira. Ela tinha uma memória distante do sabor de chá de verdade, enterrada entre suas memórias de açúcar e bolo de aniversário. Fantasiara sobre isso algumas vezes – a bebida propriamente dita, mas isso também. O ritual, de sentar e beber, que parecia para ela, de fora, o coração da cultura. Compartilhar o chá e a conversa (e, era de se esperar, bolo). Ela olhou para a arrumação incongruente com a paisagem ao redor e depois para Lazlo, que prendeu uma parte do lábio inferior entre os dentes e a observava, ansioso.
E Sarai percebeu que fora do sonho seu lábio real estava da mesma forma, preso entre os dentes. O nervosismo era palpável e a desarmou. Ela viu que o rapaz gostaria de agradá-la.
– Isso é para mim? – ela perguntou a meia-voz.
–Desculpe-mesefizalgumacoisadeerrado–explicou-se,embaraçado. – Nunca tive um convidado antes, e não tenho certeza de como fazer.
– Um convidado – Sarai repetiu com voz fraca. Aquela palavra. Quando ela entrava nos sonhos, era uma invasora, uma saqueadora. Nunca havia sido convidada antes. Nunca havia sido bem-vinda. A sensação que se abateu sobre ela era nova – e extravagantemente agradável.
– E eu nunca fui convidada antes – ela confessou. – Então não sei mais do que você.
– Isso é um alívio. Podemos inventar e fazer como quisermos.
Ele puxou a cadeira para ela, que moveu-se para sentar. Nenhum dos dois tinha feito essa simples manobra em terra, muito menos na água, e deram-se conta ao mesmo tempo que havia espaço para errar. Bastava empurrar a cadeira rápido demais ou devagar demais, ou sentar-se cedo demais ou com muito peso, que desventuras poderiam acontecer, talvez até um batismo não intencional do traseiro. Mas saíram-se bem, Lazlo sentou-se na cadeira oposta e, simples assim, eles eram duas pessoas sentadas a uma mesa, mirando-se timidamente através do vapor da chaleira.
Dentro de um sonho.
Dentro de uma cidade perdida.
À sombra de um anjo.
À beira da calamidade.
Mas tudo isso – cidade, anjo e calamidade – parecia a mundos de distância naquele momento. Cisnes passaram como navios elegantes, e o vilarejo era todo pastel, com trechos de sombra azul. O céu era da cor dos pêssegos corados e a linguagem dos insetos sussurrava na grama da campina.
Lazlo considerou a chaleira. Parecia muito pedir que suas mãos derramassem, firmes, o chá nas xícaras delicadas que havia conjurado, então ele fez com que a chaleira virasse sozinha, tarefa que foi cumprida admiravelmente, como se feita por um mordomo invisível. Apenas uma gota pingou fora, manchando a toalha branca, que imediatamente tornou-se limpa de novo.
Imagine, ele pensou, ter esse poder fora do sonho. E então achou engraçado que a limpeza da toalha de mesa tivesse dado origem a esse pensamento, e não a criação de um vilarejo inteiro e um rio com pássaros e as montanhas a distância, ou a surpresa que eles mantinham guardada.
Ele já tivera outros sonhos lúcidos, mas nunca tão lúcidos quanto este. Desde que chegara a Lamento, seus sonhos tinham sido excepcionalmente vívidos. Perguntou-se se seria a influência dela que tornava essa clareza possível. Ou sua própria atenção e expectativa o deixavam nesse estado de consciência elevada?
Eles pegaram as xícaras. Era um alívio para ambos ter algo a fazer com as mãos. Sarai experimentou o primeiro gole, não soube dizer se o sabor – defumado e floral – era sua própria memória de chá, ou se Lazlo estava moldando a experiência sensorial dentro do seu sonho. Será que funcionava assim?
– Não sei seu nome – ele lhe disse.
Sarai nunca, em toda sua vida, tinha ouvido essa pergunta ou dado a resposta a esse questionamento pois nunca havia conhecido alguém. Todos a quem conhecia, conhecera desde sempre – exceto pelos fantasmas capturados, que não eram exatamente afeitos a apresentações.
– É Sarai – respondeu.
– Sarai – ele repetiu, como se o estivesse saboreando. Sarai. O gosto, ele pensou, mas não disse, era de chá – complexo, delicado e não doce demais. Lazlo a fitou, verdadeiramente. Jamais, no mundo, olharia para uma mulher jovem de um jeito tão direto e intenso, mas, de certa forma, isso era aceitável aqui, como se tivessem se encontrado com a intenção tácita de se conhecerem.
– Você irá me falar? – ele indagou. – Sobre você?
Sarai segurou a xícara com ambas as mãos. Respirou o vapor quente enquanto a água fria fazia redemoinhos em volta de seus pés.
– O que Eril-Fane te contou? – ela quis saber, cautelosa.
Através dos olhos de outra mariposa, observou que seu pai não estava mais sentado encostado na parede, agora se movera para a janela aberta da sala de Azareen e estava inclinado para fora, olhando para a cidadela. Será que ele a estava imaginando lá em cima? E, se sim, o que estaria pensando? Se ele dormisse, ela poderia descobrir. Ela não conseguia descobrir a partir de seu rosto, que era como uma máscara mortuária: severo e sem vida, com buracos no lugar dos olhos.
– Ele apenas disse que você não é Isagol – Lazlo respondeu. E fez uma pausa. – Você é... filha dela?
Sarai levantou o olhar para ele.
– Ele disse isso?
Lazlo balançou a cabeça.
– Eu imaginei... Seus cabelos. – Ele havia imaginado outra coisa também. Hesitante, falou: – Suheyla me disse que Eril-Fane era o companheiro de Isagol.
Sarai não disse nada, mas a verdade estava no seu silêncio e em seu esforço orgulhoso para não demonstrar nenhuma dor.
– Ele sabia de você? – Lazlo perguntou, inclinando-se para a frente. – Se ele sabia que era pai...
– Ele sabia. – Sarai falou logo. A meio quilômetro dali, o homem em questão esfregou os olhos com um cansaço infinito, mas não os fechou. – E agora ele sabe que ainda estou viva. Ele disse o que pretende fazer?
Lazlo balançou a cabeça.
– Ele não disse muita coisa. Pediu para não contarmos a ninguém o que aconteceu lá em cima. Sobre você ou qualquer outra coisa.
Sarai imaginou isso. O que ela queria saber era o porquê, e o que vinha depois, mas Lazlo não sabia lhe responder e Eril-Fane ainda estava acordado. Azareen por fim dormira, e Sarai pousou uma sentinela na curva de sua bochecha manchada de lágrimas.
Entretanto, não encontrou respostas. Em vez disso, ela estava mergulhada na violência da manhã. Ela ouviu seu próprio grito de “fujam!” e sentiu o terror ameaçando, cutelos e ganchos de carne e a face de sua própria avó – a avó de Azareen – contorcida em um ódio pouco familiar. A cena repetiu-se inúmeras vezes, impiedosa, com uma diferença terrível: no sonho, as espadas de Azareen eram pesadas como âncoras, pesando em seus braços enquanto ela lutava para defender-se do ataque que vinha da mão do anjo. Ela estava lenta demais. Era um pânico furioso e lento, e inimigos invencíveis, e o resultado não era tão feliz quanto havia sido naquela manhã.
No sonho de Azareen, todos eles morriam, como Sarai tinha dito a Lazlo que aconteceria.
Ela ficou em silêncio na beira do rio, sua atenção atraída para longe. Lazlo, observando que o tom azul de seu rosto tinha se apagado um pouco, perguntou:
– Você está bem?
Ela assentiu, rápido demais. Acabei de ver você morrendo, não falou, mas teve dificuldade de afastar a imagem da mente. O calor de sua testa debaixo da mariposa a confortou, assim como vê-lo do outro lado da mesa. O Lazlo real, o Lazlo do sonho, vivo por causa dela. Ela entendeu que estava tendo uma visão dos assassinatos que evitou e qualquer vergonha que tivesse sentido com o sermão de Minya mais cedo, a partir daquele momento, deixou de sentir.
Com destreza, ela assumiu o controle do pesadelo de Azareen: tornou as armas da guerreira mais leves e retardou o ataque enquanto o trenó de seda flutuava para fora do alcance. Finalmente, ela evanesceu os fantasmas, começando pela avó de Azareen, infundindo o sonho com os suspiros de alívio deles. Os mortos estavam livres e os vivos estavam a salvo e aquele era um fim para o sonho.
Sarai terminou o chá. A chaleira encheu a xícara mais uma vez. Ela agradeceu como se o bule estivesse vivo e então seu olhar demorou-se sobre os pratos cobertos.
– Então – ela perguntou, lançando um olhar para Lazlo. – O que tem aí?
42
DEUS OU MONSTRO, MONSTRO OU DEUS
Lazlo tinha pouca experiência a mais com bolos do que Sarai, então esta foi uma das coisas que inventaram juntos, “da forma que queriam”. Era uma espécie de jogo. Um imaginava os conteúdos do prato e o outro o descobria com um pequeno floreio dramático. Descobriram que podiam conjurar doces de aparência esplêndida, mas não tinham tanto sucesso no que dizia respeito ao sabor. Ah, os bolos não eram ruins. Eles eram doces, pelo menos – essa parte era fácil. Mas era uma doçura insossa, sonhada por órfãos que ficavam com os rostos colados nas janelas das docerias (metaforicamente, pelo menos), e nunca provaram nada.
– Eles são todos parecidos – lamentou Sarai, depois de experimentar uma garfada de sua última criação. Era uma maravilha de se ver: três camadas altas cobertas de cor-de-rosa com pétalas de açúcar, alto demais para caber debaixo da cobertura que o tampava.
– Um truque mágico – Lazlo falou quando o bolo pareceu crescer ao levantar a tampa.
– Tudo aqui é um truque mágico – Sarai completou.
Mas suas receitas podiam ter menos magia e mais realidade. A imaginação, como Lazlo observara anteriormente, está presa, de algum modo, ao conhecido, e ambos eram tristemente ignorantes quanto aos bolos.
– Esses devem ser bons – sugeriu Lazlo, experimentando de novo. – Suheyla fez para mim e acho que me lembro muito bem do sabor.
E era melhor: uma massa de mel cheia de nozes verde-claras e geleia de pétalas de rosa. Não era tão bom quanto o bolo de verdade, mas pelo menos tinha uma especificidade que faltava aos outros, e embora pudessem facilmente desejar que seus dedos ficassem limpos, parecia um triste desperdício de mel imaginário, por isso ambos estavam inclinados a lambê-los.
– Acho que não devemos mais tentar nenhum banquete de sonho – disse Lazlo, quando a tentativa seguinte se provou pouco inspiradora mais uma vez.
– Se fizermos isso, posso fornecer sopa de kimril – afirmou Sarai.
– Kimril? O que é isso?
– Uma raiz muito honrada – ela explicou. – Não tem nenhum sabor para motivar a gula, mas o mantém vivo.
Houve uma pequena pausa enquanto Lazlo considerava as questões práticas da vida na cidadela. Ele estava relutante em abandonar a diversão doce e a leveza que ela tinha levado à sua convidada, mas não podia sentar ali com essa visão dela e não se perguntar sobre a pessoa real, a quem ele tinha visto tão brevemente e sob circunstâncias tão terríveis.
– Ela a manteve viva? – ele perguntou.
– Sim. Pode-se dizer que é um item básico. A horta da cidadela não tem muita variedade.
– Vi árvores frutíferas – falou Lazlo.
– Sim. Nós temos ameixas, graças ao jardineiro. – Sarai sorriu. Na cidadela, no que dizia respeito à comida, agradeciam ao “jardineiro” enquanto outros agradecem a deus. Eles tinham uma dívida ainda maior com a Aparição por aquele monte de tubérculos de kimril que tinham feito toda a diferença. Tais eram as divindades na cidadela dos deuses mortos: um obscuro jardineiro humano e um pássaro antissocial. E, é claro, nada disso importaria sem os dons de Pardal e Feral para nutrir e regar o pouco que tinham. Quão inatingível a cidadela parecia vista debaixo, ela pensou, e mesmo assim como era tênue a vida deles nela.
Lazlo prestara atenção no pronome, no plural.
– Nós? – perguntou casualmente, como se não fosse uma dúvida monumental. Você está sozinha lá em cima? Existem outros como você?
Evasiva, Sarai voltou sua atenção ao rio. Bem onde ela olhou, um peixe saltou, com uma iridescência em suas escamas. Ele mergulhou novamente, saindo de vista. Será que faria alguma diferença, se perguntou, se Lazlo e Eril-Fane descobrissem que havia mais filhos dos deuses vivos na cidadela? A Regra havia sido quebrada. Havia “evidência de vida”. Será que importava saber quanta vida? Pareceu a ela que sim e, de qualquer forma, ela sentia como se fosse uma traição entregar os outros, então falou:
– Os fantasmas.
– Fantasmas comem ameixa?
Tendo se decidido a mentir, ela fez isso descaradamente.
– Vorazmente.
Lazlo deixou passar. Ele queria saber sobre os fantasmas, é claro, e por que estavam armados com utensílios de cozinha, atacando ferozmente seus próprios familiares, mas começou com uma questão um pouco mais fácil, perguntando como foram para lá.
– Imagino que todo mundo precisa estar em algum lugar – respondeu Sarai, esquivando-se.
Lazlo concordou, pensativo.
– Embora alguns tenham mais controle sobre o onde do que outros.
Ele não se referiu aos fantasmas. Inclinou a cabeça um pouco e olhou fixamente para Sarai, que sentiu a pergunta se formando. Ela não sabia que palavras usaria, mas a essência se resumia a por quê. Por que você está lá em cima? Por que você está presa? Por que é esta sua vida? Por que tudo em relação a você? E ela queria lhe contar, mas sentiu que ela mesma tinha uma pergunta brotando dentro de si. Parecia um pouco com o brotar das mariposas ao cair da tarde, mas era algo mais perigoso do que mariposas. Era esperança. Era: você pode me ajudar? Pode me salvar? Pode salvar a nós?
Quando ela descia a Lamento para “encontrar” os convidados do Matador de Deuses, não tinha parâmetros para imaginá-lo. Um... amigo? Um aliado? Um sonhador em cuja mente a melhor versão do mundo crescia como um estoque de sementes. Se ao menos aquilo pudesse ser transplantado para a realidade, a garota desejou, mas não podia. Quem sabia melhor como o solo de Lamento era venenoso do que ela que o havia envenenado por dez longos anos?
Então interrompeu a quase pergunta dele e indagou:
– Falando sobre onde, o que é este lugar?
Lazlo não insistiu. Ele tinha paciência para mistérios. Contudo, todos estes anos os mistérios de Lamento nunca tiveram a urgência deste. Isso era vida ou morte. Quase tinha sido a sua morte. Mas era preciso conquistar a confiança dela. Ele não sabia como fazer isso, então mais uma vez buscou refúgio nas histórias.
– Ah, bem. Estou feliz que tenha perguntado. Esse é um vilarejo chamado Zeltzin. Ou pelo menos é assim que imagino que um vilarejo chamado Zeltzin se pareça. É um lugar comum. Bonito, mas não excepcional, embora haja uma distinção.
Seus olhos brilharam. Sarai descobriu-se curiosa analisando ao redor perguntando-se qual seria essa distinção.
Mais cedo, enquanto estava tentando dormir, a primeira ideia de Lazlo foi criar um tipo elegante de sala de estar para recebê-la, caso ela viesse. Parecia o jeito mais apropriado de fazer as coisas, mesmo que um pouco enfadonho. Por algum motivo, a voz de Calixte apareceu em sua mente.
“Bela e cheia de monstros”, ela dissera. “Todas as melhores histórias são assim”.
E ela estava certa.
– Alguma ideia? – ele perguntou a Sarai.
Ela balançou negativamente a cabeça. Seus olhos também brilhavam.
– Bem, eu também posso te contar – disse Lazlo, divertindo-se. – Ali há uma entrada de mina que leva ao mundo subterrâneo.
– O mundo subterrâneo? – Sarai repetiu, esticando o pescoço na direção que ele apontou.
– Sim, mas essa não é a distinção.
Ela estreitou os olhos.
– Então qual é?
– Também posso te contar que as crianças aqui nascem com dentes e roem ossos de pássaro nos berços.
Ela estremeceu.
– Isso é horrível.
– Mas essa tampouco é a distinção.
– Você não vai me contar? – ela perguntou, ficando impaciente.
Lazlo balançou negativamente a cabeça. Ele estava sorrindo. Isso era divertido.
– Está um silêncio aqui, você não acha? – ele perguntou, provocando-a. – Pergunto-me aonde foi todo mundo.
Estava silencioso. Os insetos tinham parado de zumbir. Havia apenas o som do rio agora. Atrás do vilarejo, campinas estendiam-se até uma cadeia de montanhas que, de longe, pareciam cobertas de uma pelagem escura. Montanhas que pareciam prender a respiração, Sarai pensou. Ela sentiu uma quietude sobrenatural e segurou sua respiração também. E então... as montanhas exalaram, e ela também.
– Ohhh! – ela soltou, espantada. – Isso é...?
– A mahalath – explicou Lazlo.
A névoa de cinquenta anos que produzia deuses ou monstros. Ela estava chegando. Era a neblina – línguas de vapor branco deslocando-se entre as montanhas de pele escura –, mas movia-se como uma coisa viva, com uma inteligência curiosa de caça. Ao mesmo tempo leve e densa, havia certa agilidade nela, quase serpentina. Diferente da neblina, ela não meramente se espalhava e parava, caindo, mais pesada que o ar. Aqui e ali, cachos brancos pareciam erguer-se e espiar em volta antes de baixar novamente no fluxo da maré, como cristas de ondas sugadas de volta à rebentação. Ela estava derramando-se – derramando a si mesma –, deslizando gloriosa e inexoravelmente sobre os declives da campina em um trajeto direto até o vilarejo.
– Você já brincou de imaginar? – Lazlo perguntou a Sarai.
Ela deu risada.
– Não assim. – Ela estava alegre e assustada.
– Devemos fugir? Ou ficamos e nos arriscamos?
A mesa de chá havia desaparecido, as cadeiras e os pratos também. Sem perceber a transição, os dois estavam em pé, molhados até os joelhos no rio, observando a mahalath engolir as casas mais longínquas do vilarejo. Sarai teve de se lembrar de que nada daquilo era real. Era um jogo dentro de um sonho. Mas quais eram as regras?
– Será que ela nos mudará? – ela quis saber. – Ou nós nos mudaremos?
– Não sei – respondeu Lazlo, para quem isso também era novo. – Acho que podemos escolher o que nos tornaremos, ou podemos deixar o sonho escolher, se é que isso faz sentido.
E fazia. Eles podiam exercer controle, ou ceder às suas mentes inconscientes. De qualquer forma, não era uma névoa lhes refazendo, mas eles mesmos. Deus ou monstro, monstro ou deus. Sarai teve um pensamento ruim.
– E se você já é um monstro? – ela perguntou em um sussurro.
Lazlo a fitou e o encanto em seus olhos dizia que ela não era nada disso.
– Qualquer coisa pode acontecer – ele afirmou. – É esse o ponto.
A névoa espalhou-se mais. Ela engoliu os cisnes um a um.
– Ficar ou partir? – Lazlo perguntou.
Sarai ficou de frente para a mahalath. Ela deixou-a vir. E à medida que os primeiros cachos se enrolaram em torno dela como braços, ela procurou a mão de Lazlo e a segurou firme.
43
UM DEMÔNIO SINGULARMENTE FORMIDÁVEL
Dentro da névoa, dentro do sonho, um homem e uma mulher jovens foram refeitos. Mas, primeiro, foram desfeitos, seus contornos desaparecendo como o pássaro branco evanescente, a Aparição, à medida que ele sumia na pele do céu. Qualquer noção de realidade física escapara – exceto por uma: suas mãos, unidas, permanecendo tão reais quanto osso e nervo. Não havia mais mundo, margem de rio ou água, nada sob seus pés – e nada de pés. Havia apenas aquele ponto de contato e, mesmo quando se soltaram de si mesmos, Lazlo e Sarai seguraram-se um no outro.
Assim que a névoa passou em seu caminho e os cisnes refeitos desfilaram sua magnificência no humilde rio verde, ambos viraram-se a fim de se encarar, com os dedos entrelaçados e vislumbraram, vislumbraram, vislumbraram.
Olhos abertos e brilhantes, olhos que não mudaram. Os dele continuavam azul-acinzentados, os dela, azuis. E os cílios dela ainda eram acastanhados cor de mel, e os dele de um preto tão reluzente quanto a pele de um gato-selvagem. Seus cabelos ainda eram escuros, e os dela ainda eram cor de canela, o nariz dele era vítima de contos de fadas e a boca de Sarai era suculenta como uma ameixa.
Ambos estavam iguais de todas as formas, exceto uma.
A pele de Sarai era marrom, e a de Lazlo, azul.
O casal se vislumbrou, vislumbrou e vislumbrou, e estudaram suas mãos unidas, o padrão marrom e azul de seus dedos invertidos, e olharam para a superfície da água, que antes não era um espelho, mas agora sim, porque assim quiseram. E vislumbraram seus reflexos ali, lado a lado, de mãos dadas e não viram nem deuses nem monstros. Os dois tinham mudado tão pouco e aquela única coisa – a cor de suas peles –, mudaria tudo no mundo real.
Sarai olhou para a cor terrosa rica de seus braços e soube, embora estivesse escondida, que ela tinha uma elilith em sua barriga como uma garota humana. Perguntou-se qual era o padrão e desejou dar uma espiada. A outra mão, a que estava unida a de Lazlo, retirou-se suavemente. Não parecia haver mais pretexto para segurá-la, embora tivesse sido agradável enquanto durou.
Ela o fitou. Azul.
– Você escolheu isso? – a garota quis saber.
Lazlo balançou negativamente a cabeça.
– Deixei a cargo da mahalath.
– E ela fez isso. – Ela explicou-se o porquê. Sua própria mudança era fácil de compreender. Ali estava sua humanidade externalizada e todo seu desejo – por liberdade do confinamento de sua jaula de metal. Mas por que ele ficara assim? Talvez, ela pensou, não fosse desejo, mas medo, e essa era a ideia dele de um monstro.
– Bem, me pergunto qual dom ela te deu – ela disse.
– Dom? Você quer dizer magia? Acha que tenho um dom?
– Todas as crias dos deuses têm dons.
– Crias dos deuses?
– É assim que nos chamam.
Nos. Outro pronome no plural, que pairou entre os dois brevemente, mas Lazlo não chamou a atenção dela desta vez.
– Mas, crias... – o garoto repetiu, fazendo uma careta. – Isso não combina. Crias são de cães ou de demônios.
– O significado, creio eu, seja o segundo.
– Bem, você é um demônio singularmente formidável, se me permite.
– Obrigada – a garota agradeceu com sinceridade, pousando uma mão modesta sobre o peito. – Essa é a coisa mais gentil que alguém já me disse.
– Bem, tenho pelo menos uma centena de coisas muito mais gentis para dizer e só não consigo por constrangimento.
A menção ao constrangimento magicamente incentivou o constrangimento. Em seu reflexo, Sarai viu suas bochechas marrons ficarem vermelhas em vez de lavanda, enquanto Lazlo viu o contrário em seu próprio reflexo.
– Então, dons – ele falou, recuperando-se, embora Sarai não se incomodasse se ele demorasse um pouco na centena de coisas mais gentis. – E o seu é... entrar nos sonhos?
Ela assentiu. Não viu necessidade de explicar a mecânica da coisa. O comentário impiedoso de Rubi de um tempo atrás passou por sua mente. “Quem ia querer beijar uma garota que come mariposas?” A ideia de beijar provocou um alvoroço em seu estômago, que era como sentir que suas mariposas moravam dentro dela. Asas, delicadas e fazendo cócegas.
– Então, como sei qual é, esse dom? – Lazlo quis saber. – Como alguém descobre isso?
– É sempre diferente. Às vezes, é espontâneo e óbvio, outras vezes ele precisa ser provocado. Quando os Mesarthim eram vivos, era Korako, a deusa dos segredos, que os revelava. Ou assim me disseram. Devo tê-la conhecido, mas não consigo me lembrar.
A pergunta “quem disse?” era tão palpável que, embora Lazlo não a tenha feito – exceto, talvez, com suas sobrancelhas –, Sarai respondeu assim mesmo.
– Os fantasmas – ela disse. O que, nesse caso, era verdade.
– Korako – repetiu Lazlo. Pensou de novo no mural, mas estivera tão fixado em Isagol que as outras deusas eram um borrão. Suheyla havia mencionado Letha, mas não a outra. – Não ouvi nada sobre ela.
– Não. Você não ouviria. Ela era a deusa dos segredos e o maior segredo que guardava era sobre si mesma. Ninguém nem mesmo sabia qual era seu dom.
– Outro mistério – falou Lazlo, e então conversaram sobre deuses e dons, andando pelo rio. Sarai chutou a superfície e observou as gotas que voavam e formavam arco-íris efêmeros. Eles apontaram para os cisnes, que antes eram idênticos e agora eram estranhos – um com presas e feito de ágata e musgo, outro parecendo folheado a ouro. Um tinha até mesmo se transformado em um svytagor. Ele submergiu e desapareceu sob a água verde opaca. Sarai contou a Lazlo alguns dos melhores dons que aprendeu com Grande Ellen, e citou, entre eles, uma garota que podia fazer as plantas crescerem e um garoto que podia trazer a chuva. Seu próprio dom, se a mahalath tinha lhe dado um, continuava um mistério.
– Mas e quanto a você? – ele quis saber, pausando para colher uma flor que havia acabado de desejar que crescesse. Era uma flor exótica que vira na vitrine de uma floricultura e ele teria ficado constrangido de saber que ela era chamada de flor da paixão. Ele a ofereceu a Sarai. – Se você fosse humana, teria que abandonar seu dom, não?
Lazlo não tinha como saber a maldição que era o dom dela, ou o que o uso do dom havia causado à garota e a Lamento.
– Imagino que sim – respondeu, cheirando a flor, que tinha aroma de chuva.
– Mas então você não poderia estar aqui comigo.
Era verdade. Se fosse humana, Sarai não poderia estar no sonho de Lazlo com ele. Mas... poderia estar no quarto com ele. Um calor explodiu dentro de si, e não era de vergonha nem de constrangimento. Era uma espécie de desejo, mas não do coração. Era um desejo da pele. De ser tocada. Era o desejo dos membros. De se entrelaçarem. Estava centrado em seu abdômen, no lugar de sua nova elilith, e ela passou os dedos sobre a tatuagem novamente e estremeceu. Na cidadela, andando de um lado para o outro, seu corpo verdadeiro estremeceu também.
– É um sacrifício que eu estaria disposta a fazer – explicou.
Lazlo não podia imaginar isso, que uma deusa estivesse disposta a abrir mão de sua magia. Contudo, não era apenas a magia. Ele achava que ela seria bela em qualquer cor, mas percebeu que sentia falta do tom raro de sua pele.
– Você não gostaria de mudar de verdade, não é? – ele persistiu. – Se isso fosse real e você tivesse escolha.
Será que não? Por que outro motivo seu inconsciente – sua mahalath interna – havia escolhido essa transformação?
– Se isso significasse ter uma vida? Sim, eu gostaria.
Ele ficou intrigado.
– Mas você já está viva. – Ele sentiu uma pontada súbita de medo. – Você está, não? Você não é um fantasma como os outros...
– Não sou um fantasma – afirmou Sarai, para alívio dele –, mas sou filha dos deuses e você deve saber que existe uma diferença entre estar viva e ter uma vida.
Lazlo entendia isso. Pelo menos, achou que entendia. Refletiu sobre de alguma forma ser comparável a um órfão no Mosteiro de Zemonan: vivo, mas não vivendo a vida. E como havia encontrado seu caminho de um estado para outro e tinha até mesmo visto seu sonho tornar-se realidade, sentiu ter uma certa qualificação no assunto. Mas não entendia uma peça crucial do quebra-cabeça. Uma peça crucial e sangrenta do quebra-cabeça. Sensato e cordial, ele simpatizou com ela.
– Não deve ser uma vida ficar presa lá em cima. Mas agora que sabemos de você, podemos tirá-la de lá.
– Tirar-me de lá? O quê, para Lamento? – Houve uma mudança repentina de uma surpresa incrédula na voz de Sarai e, enquanto ela falava, reverteu-se à sua cor normal, a pele ficou azul novamente. Lá se foi ser humana, ela pensou. A dura verdade não tolera a imaginação. Como se a sua reversão tivesse dado um fim à fantasia, Lazlo também reverteu-se e era ele mesmo de novo. Sarai ficou quase chateada. Enquanto o garoto tinha a aparência azul, ela quase podia acreditar que havia uma conexão entre os dois. Ela não havia se perguntado, ansiosamente, um pouco antes, se esse sonhador poderia ajudá-la? Poderia salvá-la? Ele não fazia ideia.
– Você entende – explicou, com uma severidade inadequada – que eles me matariam assim que me vissem?
– Quem mataria?
– Qualquer um.
– Não – ele balançou a cabeça, sem querer acreditar. – Eles são pessoas boas. Será uma surpresa, sim, mas não poderiam odiá-la apenas por causa do que seus pais eram.
Sarai parou de andar.
– Você acha que pessoas boas não podem odiar? Você acha que pessoas boas não matam? – Sua respiração acelerou, e ela percebeu que havia esmagado a flor de Lazlo na mão. Ela derrubou as pétalas na água. – Pessoas boas fazem todas as coisas que pessoas más fazem, Lazlo. Só que quando elas fazem, chamam de justiça. – Pausou. Sua voz ficou mais pesada. – Quando eles mataram trinta bebês em seus berços, chamaram isso de necessário.
Lazlo a encarou. Balançou a cabeça, descrente.
– Sabe aquele choque que você viu no rosto de Eril-Fane? – ela continuou. – Não foi porque ele não sabia que tinha uma filha. – Ela inspirou. – Foi porque ele achava que tinha me matado quinze anos atrás. – Sua voz embargou no fim. Engoliu em seco e sentiu, de repente, como se sua cabeça inteira estivesse repleta de lágrimas e se não derramasse algumas, ela explodiria. – Quando ele matou todos os filhos dos deuses, Lazlo – ela acrescentou, e chorou.
Não no sonho, não onde Lazlo pudesse ver, mas em seu quarto, escondida. Lágrimas cobriram suas bochechas da mesma forma que as chuvas de monções cobriam os contornos da cidadela no verão, entrando por todas as portas abertas, um dilúvio de chuva pelo chão liso e não havia nada a fazer a não ser esperar que ela parasse.
Eril-Fane sabia que um dos bebês no berçário era dele, mas não sabia qual. Ele tinha visto a barriga de Isagol crescer com seu filho, é claro, mas depois que a mulher dera à luz, nunca mais o mencionara. Ele perguntou e ela deu de ombros. Ela tinha cumprido o seu dever; depois disso, era problema do berçário. Isagol não sabia nem mesmo se era um menino ou uma menina; não lhe significava nada. E quando ele entrou, ensopado de sangue, no berçário e olhou em volta para os bebês e crianças azuis em comoção, teve medo de ver e saber: ali. Aquele é meu.
Se ele tivesse visto Sarai, com cabelos cor de canela como os da mãe, teria sabido em um instante, mas não a vira porque ela não estava lá, embora não soubesse. Achava que o cabelo dela era escuro como o seu, como o do resto dos bebês. Eles eram um borrão de azul, sangue e gritos.
Todos inocentes. Todos amaldiçoados.
Todos mortos.
Os olhos de Lazlo estavam secos, mas abertos e sem piscar. Bebês. Sua mente rejeitou isso, muito embora, sob a superfície, peças de quebra-cabeça estivessem se juntando. Todo o pavor e a vergonha que ele tinha visto em Eril-Fane. Tudo na reunião com os Zeyyadin, e... e a forma com que Maldagha pôs as mãos na barriga. Suheyla também. Era um gesto maternal. Como ele tinha sido estúpido em não entender, mas como ele poderia, quando passou a vida inteira com homens velhos? Todas as coisas que não faziam sentido tinham mudado o suficiente de posição, e era como inclinar o ângulo do sol de forma que, em vez de olhar por uma janela e cegar-se, ele passava por ela para iluminar tudo o que estava dentro.
Ele sabia que Sarai estava falando a verdade.
Um grande homem e também um homem bom. Era isso que tinha pensado? Mas o homem que matou deuses também matara bebês, e Lazlo entendia agora o que ele temia encontrar na cidadela. “Alguns de nós sabemos melhor do que os outros o... estado... em que a deixamos”, ele dissera. Não os esqueletos de deuses, mas de crianças. Lazlo encurvou-se, sentindo-se mal. Pressionou a palma da mão com firmeza na testa. O vilarejo e os cisnes monstruosos desapareceram. O rio não estava mais lá. Tudo sumiu em um piscar de olhos e Lazlo e Sarai encontraram-se em seu quarto – o quarto do Matador de Deuses. O corpo adormecido de Lazlo não estava esticado na cama. Essa era mais uma paisagem do sonho, pois dormia no quarto e, no sonho, estava em pé no cômodo. Na realidade, uma mariposa estava pousada em sua testa no quarto e, no sonho, a Musa dos Pesadelos estava a seu lado.
A Musa dos Pesadelos, Sarai pensou. Mais do que nunca. Ela tinha, afinal, levado o pesadelo para esse sonhador em quem vinha procurando refúgio. Em seu sono, ele murmurou: “não”, com olhos e punhos bem fechados. A respiração era rápida, assim como a pulsação. Todos os indícios de pesadelo, que Sarai bem conhecia. Tudo o que ela fez foi dizer a verdade, não havia sequer lhe mostrado a verdade. Brilho de faca e sangue espalhado, e todos os corpinhos azuis. Nada a induziria a arrastar aquela memória repulsiva à bela mente dele.
– Sinto muito – ela disse.
Na cidadela, ela soluçou. Ela jamais poderia estar livre da ferida. Sua própria mente seria sempre um túmulo aberto.
– Por que você se desculpa? – Lazlo indagou. Havia doçura em sua voz, mas a vivacidade a tinha deixado. Ela tinha ficado sem brilho, como uma velha moeda. – Você é a última pessoa que devia se sentir culpada. Ele deveria ser um herói! Ele me deixou acreditar nisso. Mas que tipo de herói poderia fazer... isso?
Em Quedavento, o “herói” em questão estava deitado no chão, imóvel como se dormisse, mas seus olhos estavam abertos no escuro, e Sarai pensou novamente que ele era uma ruína tanto quanto era homem. Eril-Fane era, ela pensou, como um templo amaldiçoado: ainda belo de se olhar – a carapaça de algo sagrado –, mas incivilizado por dentro e ninguém, exceto fantasmas, podia cruzar seu limiar.
“Que tipo de herói?”, Lazlo perguntara. Que tipo, de fato. Sarai nunca tinha se deixado erguer em sua defesa. Era impensável, como se os corpos fossem uma barreira entre ela e o perdão. Entretanto, e sem muito saber o que ia dizer, contou a Lazlo, em voz suave:
– Por três anos, Isagol fez com que ele a amasse. Quer dizer... ela não inspirava amor, nem sequer se esforçava para ser digna dele. Ela apenas alcançou sua mente... ou seus corações, ou sua alma... e tocou a nota que o faria amá-la contra tudo o que havia nele. Ela era uma coisa muito sombria. – A garota estremeceu ao pensar que havia saído do corpo dessa coisa tão sombria. – Ela não tirou as emoções conflitantes de Eril-Fane, embora pudesse ter feito isso. Isagol não fez com que ele não a odiasse e deixou o ódio lá, ao lado do amor, pois achava engraçado. E não era... Não era aversão ao lado de luxúria, ou algumas versões triviais de ódio e amor. Veja, era ódio. – Ela colocou tudo o que conhecia de ódio em sua voz, e não seu próprio ódio, mas o de Eril-Fane e do restante das vítimas dos Mesarthim.
– Foi o ódio dos usados e atormentados, que são os filhos dos usados e atormentados, e cujos filhos seriam usados e atormentados. E isso era amor – ela continuou, e colocou tudo aquilo em sua voz também, da forma que foi capaz. Amor que acende a alma como a primavera e a torna madura como o verão. Amor como raramente existe na realidade, como se um mestre alquimista o tivesse pegado e destilado de todas as impurezas, de cada desencanto mesquinho, de cada pensamento vil, em um elixir perfeito, doce, profundo e que tudo consome. – Ele a amava tanto – ela sussurrou. – Era tudo uma mentira. Era uma violação. Mas não importava, porque quando Isagol fazia você sentir alguma coisa, isso se tornava real. Ele a odiava. E a amava. E a matou.
A garota sentou-se na beirada da cama de Lazlo e deixou seu olhar vagar pelas paredes familiares. Memórias que podem ser presas dentro de um quarto, e esse quarto ainda tinha todos os anos em que havia chegado a essa janela, cheia de maldade justificada. Lazlo sentou-se ao lado dela.
– O ódio venceu – ela falou. – Isagol deixou-o lá para se divertir, e por três anos ele lutou uma guerra dentro de si. A única forma de vencer era seu ódio superar aquele amor perfeito, falso e vil. E isso aconteceu. – Ela cerrou os dentes e lançou um olhar para Lazlo. A história não era dela para contar, mas achava que ele precisava saber. – Depois Skathis levou Azareen para a cidadela.
Lazlo já conhecia um pouco da história. “Eles a pegaram depois”, Suheyla havia dito. Sarai sabia de tudo. Só ela sabia da aliança fosca de prata que Azareen colocava no dedo toda noite e tirava logo de manhã. A história de amor deles não foi a única terminada pelos deuses, mas era a única que terminara com os deuses.
Eril-Fane tinha sido levado havia mais de dois anos na época em que Skathis levou Azareen, e talvez ela tenha sido a primeira garota em Lamento que estava feliz em montar no monstro Rasalas e voar até a sua própria escravidão. Pelo menos ela saberia se seu marido ainda estava vivo.
Ele estava. E Azareen aprendeu como era possível estar feliz e devastada ao mesmo tempo. Ela ouviu sua risada antes de ver seu rosto – a risada de Eril-Fane, naquele lugar, tão viva quanto já ouvira – e fugiu do guarda para correr em sua direção, derrapando em uma esquina do corredor liso de metal até avistá-lo, olhando para Isagol, a Terrível, com amor.
Ela sabia o que era aquilo, pois ele a olhara daquele jeito também. Não era fingido, era verdadeiro e, então, depois de mais de dois anos perguntando-se o que acontecera com ele, Azareen descobriu. Além do sofrimento de servir ao “propósito” dos deuses, era seu destino ver o próprio marido amar a deusa do desespero.
E quanto a Eril-Fane, era seu destino ver sua noiva levada pelo sinistro corredor – porta após porta de quartos pequenos com nada dentro, exceto camas. E, por fim, o cálculo de Isagol falhou. O amor não era comparável ao que ardeu em Eril-Fane quando ele ouviu os primeiros gritos de Azareen.
– O ódio foi o triunfo dele – Sarai disse a Lazlo. – Foi quem ele se tornou para salvar sua esposa e todo o seu povo. Tanto sangue em suas mãos, tanto ódio em seus corações. Os deuses tinham criado seu próprio fim. – Ela permaneceu sentada, muda por um momento, e sentiu um vazio onde durante anos seu próprio ódio estivera. Havia apenas uma tristeza terrível agora. – E depois que foram assassinados e todos os escravos foram libertados – explicou, com peso na voz – ainda havia o berçário e um futuro cheio de magia terrível e imponderável.
As lágrimas que até então tinham fluido apenas no rosto real de Sarai deslizaram pelo rosto do sonho também. Lazlo pegou as mãos dela e segurou-as nas suas.
– É uma violência que nunca poderá ser perdoada – suspirou com a voz rouca de emoção. – Algumas coisas são terríveis demais para perdoar. Mas eu acho... Acho que posso entender o que sentiram aquele dia, e o que enfrentaram. O que deviam fazer com crianças que cresceriam para se tornar uma nova geração de torturadores?
Lazlo vacilou com o horror de tudo aquilo e com a sensação inacreditável de que, afinal, sua própria infância tinha sido misericordiosa.
– Mas... se eles tivessem sido acolhidos e criados com amor, não se tornariam torturadores – ele disse.
Soava tão simples, tão claro. Mas o que os humanos sabiam dos poderes dos Mesarthim exceto que podiam ser usados para punir e oprimir, aterrorizar e controlar? Como podiam ter imaginado uma Pardal ou um Feral quando tudo o que conheciam eram Skathis e Isagol e seus iguais? Será que alguém poderia voltar no tempo e esperar que eles fossem tão misericordiosos quanto era possível quinze anos depois com uma mente e um corpo não violados pelos deuses?
A empatia de Sarai deixou-a nauseada. Ela disse que jamais perdoaria, mas parecia que já havia perdoado, e corou com um assombro confuso. Uma coisa era não odiar, e outra perdoar. Ela disse a Lazlo:
– Eu me sinto um pouco como ele às vezes, amando e odiando ao mesmo tempo. Não é fácil ter um paradoxo no cerne de nós mesmos.
– O que você quer dizer? Que paradoxo? Ser humana e cria... – Lazlo não conseguiu dizer cria de deuses, mesmo que ela se chamasse assim. – Humana e Mesarthim?
– Tem isso também, mas não. Quero dizer a maldição do conhecimento. Era fácil quando nós éramos as únicas vítimas. – Nós. Ela fitava suas mãos, ainda unidas, as dela fechadas dentro das dele, mas levantou o olhar e não voltou atrás quanto ao pronome. – Somos em cinco – admitiu. – E para os outros há apenas uma verdade: o Massacre. Mas por causa do meu dom, ou maldição, aprendi como tudo isso foi para os humanos, antes e depois. Conheço o íntimo de suas mentes, por que eles fizeram isso e como isso os mudou. E então quando vejo uma memória daqueles bebês sendo... – As palavras sufocaram-se em um soluço. – Sei que aquele era o meu destino também, sinto a mesma raiva que sempre senti, mas agora há... Há indignação também, por aqueles jovens, homens e mulheres, que foram retirados de seus lares para servir ao propósito dos deuses, e desolação pelo que isso fez a eles, e culpa... pelo que eu fiz a eles.
Ela chorou, e Lazlo puxou-a para um abraço, como se fosse a coisa mais natural do mundo que ele puxasse uma deusa triste para seu ombro, enlaçasse-a nos braços, respirasse o perfume das flores em seus cabelos e até acariciasse levemente sua têmpora com a ponta do polegar. E embora houvesse uma camada de sua mente que soubesse que aquilo era um sonho, ela foi momentaneamente encoberta por outras camadas, mais atrativas, e ele vivenciou o momento como se fosse absolutamente real. Toda a emoção, toda a sensação. A textura da pele, o perfume dos cabelos, o calor da respiração contra sua camisa branca e até a umidade das lágrimas passando por ela. Mas bem mais intenso era o carinho absoluto e inefável que ele sentia, e a solenidade. Como se ele tivesse sido encarregado de algo infinitamente precioso. Como se tivesse feito um juramento e sua própria vida fosse a garantia. Lazlo reconheceria esse instante mais tarde como o momento em que seu centro de gravidade mudou: de ser apenas um – um pilar sozinho, separado – para se tornar metade de alguma coisa que cairia se qualquer um dos lados fosse cortado.
Três medos o atormentavam em sua antiga vida. O primeiro: que ele nunca visse prova da magia. O segundo: que ele nunca descobrisse o que tinha acontecido em Lamento. Esses medos tinham desaparecido; prova e respostas descortinavam-se minuto a minuto. E o terceiro? Que ele sempre seria sozinho?
Ele não entendia ainda – pelo menos não conscientemente –, mas não estava mais sozinho, e tinha um novo conjunto de temores a descobrir: aqueles que vinham com o fato de gostar de alguém que provavelmente se pode perder.
– Sarai – Sarai. O nome dela era como caligrafia e mel. – O que você quer dizer? – ele perguntou, gentilmente. – O que você fez a eles?
E Sarai, permanecendo como estava, com o rosto enfiado no ombro de Lazlo, a testa descansando contra o queixo dele, contou-lhe quem era e o que havia feito e até... Embora sua voz tenha ficado fina como papel... Como ela fazia as coisas, mariposas e tudo mais. E quando ela terminou de contar e estava tensa dentro de seus braços, esperou para ver o que ele ia dizer. Diferentemente dele, ela não conseguia esquecer que aquilo era um sonho. Estava fora e dentro dele ao mesmo tempo. E embora não ousasse fitá-lo enquanto contava-lhe a verdade, sua mariposa observava o rosto adormecido em busca de qualquer expressão que pudesse indicar aversão.
Não houve nenhuma.
Lazlo não estava pensando sobre as mariposas – embora tenha se lembrado daquela que havia caído morta de sua fronte na primeira manhã que acordou em Lamento. O que de fato o capturou foi a implicação dos pesadelos. Isso explicava tanto. Parecia como se o medo fosse uma coisa viva ali, porque era. Sarai o mantinha vivo. Ela cuidava dele como de uma fogueira e certificava-se de que ele nunca se apagasse.
Se houvesse uma deusa assim em um livro de velhas histórias, ela seria a vilã, atormentando os inocentes de seu alto castelo. As pessoas de Lamento eram inocentes – a maioria delas – e ela as atormentava, mas... que escolha ela tinha? A garota herdara uma história que estava repleta de cadáveres e coagulada de inimizade, e estava apenas tentando permanecer viva dentro dela. Lazlo sentiu muitas coisas por ela naquele momento, sentindo a tensão de Sarai enquanto a segurava, e nenhuma delas era aversão.
Ele estava enfeitiçado e ao seu lado. Quando se tratava de Sarai, até os pesadelos pareciam magia.
– A Musa dos Pesadelos – ele disse. – Soa como um poema.
Um poema? Sarai não detectou nenhum escárnio na voz de Lazlo, mas teve de analisá-lo para confirmar, então se sentou ereta e desfez o abraço. Com pesar, ela o fez. Não viu nenhuma zombaria, apenas... Encantamento, ainda encantamento, e ela quis viver nele para sempre.
Sarai perguntou com um sussurro hesitante:
– Você ainda acha que sou um... demônio singularmente formidável?
– Não – respondeu, sorrindo. – Acho que você é um conto de fadas.
Acho que você é mágica, e corajosa, e única. E... – sua voz ficou acanhada. Apenas em um sonho ele poderia ser tão destemido e dizer aquelas palavras. – Espero que você me deixe participar da sua história.
44
UMA SUGESTÃO EXTRAORDINÁRIA
Um poema? Um conto de fadas? Era mesmo assim que ele a via? Agitada, Sarai levantou-se e foi à janela. Não era só sua barriga que sentia um alvoroço como o de asas leves e selvagens, mas seu peito, onde estavam seus corações, e até sua cabeça. Sim, ela queria responder com um prazer tímido. Por favor, faça parte da minha história.
Mas não falou. Observou a noite, a cidadela no céu, e perguntou:
– Será que haverá uma história? Como pode haver?
Lazlo juntou-se a ela na janela.
– Nós encontraremos um jeito. Vou falar com Eril-Fane amanhã. O que quer que ele tenha feito na época, deve querer reparar isso. Não posso acreditar que ele queira machucá-la. Afinal, não contou a ninguém o que aconteceu. Você não viu como ele ficou depois, como ele estava...
– Devastado? – completou Sarai. – Eu o vi depois. Estou observando-o agora. Ele está no chão da sala de estar de Azareen.
– Oh – soltou Lazlo. Era algo que ele não conseguia entender, como ela podia ter tantos olhos no mundo de uma vez só. E Eril-Fane no chão de Azareen, isso também exigia que ele se acostumasse. Eles viviam juntos? Suheyla havia dito que não era mais um casamento, o que quer que existisse entre os dois. Até onde ele sabia, Eril-Fane ainda morava ali.
– Ele deve voltar para casa – disse ele. – Eu posso dormir no chão. Este é o seu quarto, afinal.
– Não é um lugar bom para ele – ela explicou, olhando para o nada pela janela. Seus dentes cerraram-se. Lazlo viu o músculo da face dela se mexer. – Ele teve muitos pesadelos neste quarto. Muitos foram dele mesmo, mas... fui responsável por vários.
Lazlo balançou a cabeça, maravilhado.
– Sabe, achei que fosse tolice, que ele estava se escondendo de seus pesadelos. Mas ele estava certo.
– Eril-Fane estava se escondendo de mim, mesmo que não soubesse. – Uma grande onda de cansaço tomou conta de Sarai. Com um suspiro, fechou os olhos e encostou-se na janela. Estava com a cabeça tão leve quanto estava com os membros pesados. O que faria assim que o sol se levantasse e não pudesse mais ficar ali, na segurança do sonho de Lazlo?
Ela abriu os olhos e o observou.
No quarto de verdade, sua mariposa avaliou o Lazlo real, o relaxamento em seu rosto e os longos membros, soltos no sono. O que ela não daria por um sono descansado assim, sem mencionar o grau de controle que ele tinha dentro dos sonhos. Ela considerou isso.
– Como você fez isso tudo? – ela perguntou. – A mahalath, o chá, tudo isso? Como você molda seus sonhos com tanta intenção?
– Não sei – respondeu. – É novo para mim. Quer dizer, eu tinha alguma lucidez nos sonhos antes, mas não essa previsibilidade, e nunca desse jeito. Só desde que você apareceu.
– Sério? – Sarai ficou surpresa. – Me pergunto por quê.
– Não é assim com os outros sonhadores?
Ela deixou escapar uma risada suave.
– Lazlo, não é nada parecido com os outros sonhadores. Para começar, eles não conseguem nem me ver.
– O que você quer dizer, eles não podem te ver?
– Apenas isso. É por isso que apareci e o encarei daquela primeira vez, sem nenhum pudor. – Ela franziu o nariz, constrangida. – Porque nunca imaginei que você seria capaz de me ver. Com os outros sonhadores, posso gritar bem na frente de seus rostos e eles nunca perceberão. Acredite, eu já tentei. Posso fazer qualquer coisa num sonho, exceto existir.
– Mas... por que isso é assim? Que condição bizarra para o seu dom.
– Uma condição bizarra para um dom bizarro, então. Grande Ellen, a nossa babá fantasma, nunca viu um dom como o meu em todos os seus anos de berçário.
A ruga entre as sobrancelhas de Lazlo – aquela nova que o sol do Elmuthaleth tinha feito nele – aprofundou-se. Quando Sarai falou do berçário, e dos bebês, e dos dons – anos deles – perguntas fizeram fila em sua mente. Mais mistérios de Lamento; quão infindáveis eles eram? Mas havia um mistério mais pessoal que o confrontava.
– Mas por que eu sou capaz de vê-la se ninguém mais consegue?
Sarai deu de ombros, tão perplexa quanto ele.
– Você diz que o chamam de Estranho, o sonhador. Claramente você é melhor em sonhos do que as outras pessoas.
– Oh, claramente – concordou, zombando de si mesmo e um tanto satisfeito. Bastante satisfeito, enquanto assimilava a ideia. Todo esse tempo, desde o momento em que Sarai apareceu à margem do rio e enfiou seus dedos do pé na lama, a noite inteira tinha sido tão extraordinária que ele se sentia... efervescente. Mas quão mais extraordinária ela era, agora que ele sabia como tudo era recíproco.
Contudo, a garota não parecia efervescente, para ser honesto. Ela parecia... cansada.
– Você está acordada agora? – ele quis saber, ainda tentando entender como aquilo funcionava. – Lá na cidadela, quero dizer.
Ela assentiu. Seu corpo estava no quarto. Mesmo naquele espaço confinado, caminhava de um lado para o outro – como um ravide enjaulado, pensou – com apenas um sussurro de sua atenção para guiá-la. Ela sentiu uma pontada de simpatia, abandonada não só por seus iguais, mas por si mesma, deixada vazia e sozinha enquanto ela estava lá, derramando suas lágrimas no peito de um estranho.
Não, não um estranho. O único que a via.
– Então, quando acordo – ele continuou – e a cidade acorda, você vai dormir?
Sarai sentiu um acorde de medo ao pensar em cair no sono.
– É a prática habitual, mas o “habitual” está morto e enterrado.
Ela respirou fundo e soltou o ar. Contou-lhe sobre o lull, como a bebida não funcionava mais e, consequentemente, assim que sua consciência relaxava, era como se as portas para as jaulas de seus medos cativos se abrissem.
E, enquanto a maioria das pessoas pode ter poucos terrores matraqueando em suas jaulas, ela tinha... todos eles.
– Fiz isso comigo mesma. Eu era tão nova quando comecei, e ninguém nunca me falou para considerar as consequências. É claro, parece tão óbvio agora.
– Mas você não consegue simplesmente bani-los? – ele quis saber. – Ou transformá-los?
Ela balançou a cabeça.
– Nos sonhos dos outros tenho o controle, mas, quando durmo, sou impotente, como qualquer sonhador – explicou e observou-o calmamente. – Exceto você. Você não é como qualquer sonhador.
– Sarai – disse Lazlo. Ele viu como ela abandonou seu peso contra a janela, e estendeu o braço para apoiá-la. – Faz quanto tempo que você não dorme?
Ela mal sabia.
– Quatro dias? Não tenho certeza. – Ao ver o olhar assustado dele, ela forçou um sorriso. – Durmo um pouco – completou – entre os pesadelos.
– Mas isso é loucura. Você sabe que pode morrer por privação de sono?
A risada que ela deu em resposta foi austera.
– Eu não sabia disso, não. Você por acaso não sabe quanto tempo leva, sabe? Para que eu possa planejar meu dia? – Ela quis fazer uma piada, mas havia um quê de desespero na pergunta.
– Não – falou Lazlo, sentindo-se impotente. Que situação impossível. Ela estava lá em cima sozinha, ele estava lá embaixo sozinho e, ainda assim, de certa forma, estavam juntos. Ela estava dentro de seu sonho, compartilhando-o. Se ele tivesse aquele dom, pensou, poderia entrar nos seus sonhos e ajudá-la a suportá-los? O que isso significaria? Que terrores ela enfrentava? Lutar com ravides, testemunhar o Massacre o tempo todo? O que quer que fosse, a ideia de ela enfrentá-los sozinha o devastava.
Uma ideia lhe ocorreu. Ela pareceu pousar tão de leve quanto uma mariposa.
– Sarai – ele perguntou, especulativo. – O que aconteceria se você dormisse agora mesmo?
Seus olhos arregalaram-se um pouco.
– O que, você quer dizer aqui? – Ela olhou para a cama.
– Não – respondeu rapidamente, com o rosto esquentando. Em sua cabeça estava claro: ele queria lhe dar um refúgio dos pesadelos, queria ser um refúgio deles. – Quero dizer, se você mantivesse sua mariposa onde ela está, em mim, mas caísse no sono lá, você poderia... você acha que talvez pudesse ficar aqui? Comigo?
Quando Sarai ficou em silêncio, ele ficou com medo de ter ido muito longe com a sugestão. Ele não estava, de certa forma, convidando-a para... passar a noite com ele?
– Só quero dizer – ele apressou-se a explicar – que se você tem medo dos seus próprios sonhos, é bem-vinda aqui no meu.
Um leve frisson de arrepios desceu pelos braços de Sarai. Ela não estava em silêncio porque estivesse ofendida ou desanimada. Ao contrário. Ela estava desarmada. Ela era desejada. Lazlo não sabia sobre as noites que ela tinha invadido sem seu convite, enfiando um pedacinho de sua mente em um canto da dele, para que o encantamento e prazer disso pudesse ajudá-la a suportar... todo o resto. Ela precisava de descanso, muito, e embora tivesse brincado com ele sobre morrer de privação de sono, ela estava, de fato, com medo.
A ideia de que pudesse ficar ali, ficar em segurança ali – com ele – era como uma janela se abrindo, luz e ar entrando. Mas medo, também. Medo da esperança, porque no instante que ela entendeu o que ele estava propondo, Sarai quis tanto que isso funcionasse. E quando foi que ela conseguiu o que desejava?
– Nunca tentei antes – respondeu, esforçando-se para manter a voz neutra. Ela estava com medo de deixar transparecer o seu desejo, no caso de que isso não desse em nada. – Cair no sono pode cortar a ligação e soltar a mariposa.
– Você quer tentar? – perguntou Lazlo, tentando fingir que não estava esperançoso.
– Não deve haver muito tempo antes do nascer do sol.
– Não muito – ele concordou –, mas um pouco.
Ela teve outro pensamento. Estava procurando pontos fracos na ideia, e com medo de encontrá-los.
– E se funcionar, mas meus terrores vierem junto?
Lazlo deu de ombros.
– Nós os afastaremos, ou os transformaremos em vaga-lumes e os prenderemos em potes de vidro. – Ele não estava com medo. Quer dizer. Ele estava apenas com medo de que não funcionasse. Eles podiam enfrentar qualquer outra coisa, juntos. – O que você me diz?
Por um momento, Sarai não confiou na própria voz. Por mais casuais que eles se esforçassem para ser, ambos sentiam algo significativo tomar forma entre eles, e – embora ela não tivesse questionado as intenções dele nem por um minuto – algo íntimo, também. Dormir dentro do sonho dele, quando ela não tinha nem mesmo certeza de que saberia que era um sonho. Onde ela talvez não tivesse controle...
– E se funcionar – ela sussurrou – e eu ficar impotente?
Ela hesitou, mas ele compreendeu.
– Você confia em mim? – ele perguntou.
Isso não era nem uma questão. Ela sentia-se mais segura ali do que em qualquer outro lugar. E, de qualquer forma, perguntou a si mesma, qual risco real havia nisso? É apenas um sonho, ela respondeu, embora, é claro, fosse muito mais.
Ela olhou para Lazlo, mordeu o lábio e rendeu-se, e disse:
– Tudo bem.
45
ESTRANHO AZOTH
No laboratório alquímico improvisado no sótão sem janelas do crematório, uma pequena chama azul tocava a base de vidro curva de um frasco suspenso. O líquido aqueceu-se e mudou de estado, subindo como vapor por meio da coluna de destilação para ir parar no condensador e derramar-se em gotas no frasco de coleta.
O afilhado dourado recuperou-o e segurou-o em frente a uma glave para examiná-lo.
Fluido claro. Poderia ser água, mas não era. Era azoth, uma substância ainda mais preciosa do que o ouro que produzia, porque, diferentemente do ouro, ela tinha múltiplas e maravilhosas aplicações e uma única fonte em todo o mundo: ele mesmo – pelo menos enquanto seu componente fundamental permanecesse secreto.
Um frasco pousava vazio sobre a mesa de trabalho. O rótulo dizia ESPÍRITO DE BIBLIOTECÁRIO, e Thyon sentiu uma fisgada de... repugnância? Ali estava a essência vital do camponês órfão sem nome que tinha o hábito imperdoável de ajudá-lo sem motivo, enquanto permanecia sem malícia, como se fosse uma coisa normal de se fazer.
Talvez fosse repugnância. Thyon empurrou o frasco vazio para o lado abrindo espaço para o próximo procedimento. Ou talvez fosse desconforto. O mundo todo o via da forma que ele queria ser visto: como uma força incontestável, completo e em total comando dos mistérios do universo.
Exceto por Estranho, que sabia quem, de fato, ele era. Ele cerrou os dentes. Se ao menos, pensou, Lazlo tivesse a cortesia de... deixar de existir... então talvez pudesse lhe ser grato. Mas não enquanto estava lá, sempre lá, uma presença benigna rindo com os guerreiros ou fazendo, alegremente, o que precisava ser feito. Ele até criou o hábito de ajudar o cozinheiro da caravana a esfregar a grande panela de sopa com areia. O que ele estava tentando provar?
Thyon balançou a cabeça. Ele sabia a resposta, só não a entendia. Lazlo não estava tentando provar nada. Nada era estratégico com ele. Nada era fingimento. Estranho era apenas Estranho e oferecia seu espírito sem querer nada em troca. Thyon era grato, mesmo que fosse ressentido em igual – ou maior – medida. Ele tinha retirado demais de seu próprio espírito, e aquele era um jogo perigoso. A brincadeira de Lazlo de que aquilo lhe deixaria feio não tinha errado o alvo, mas aquela não era sua única preocupação. Ele vira os mortos de espírito. A maioria não durava muito, ou tirava sua própria vida ou desperdiçava-a pela falta de vontade até mesmo para comer. A vontade de viver, ao que parece, existia naquele fluido claro e misterioso que Estranho tinha lhe dado sem pensar duas vezes.
E Thyon estava bastante restaurado, graças à pausa. Fazia uma nova tentativa com o alkahest, usando o azoth de Estranho dessa vez. Normalmente, sentia uma onda de vivacidade nessa parte de um procedimento químico – a emoção de criar algo que ninguém mais podia, e alterar a própria estrutura da natureza. O alkahest era um solvente universal, que fazia jus ao nome, e nunca o tinha deixado na mão antes. Ele o testou incansavelmente quando estava no Chrysopoesium, e tinha dissolvido todas as substâncias com as quais entrava em contato, até mesmo o diamante.
Mas não o mesarthium. O metal abominável o assustava por sua natureza e já sentia a ignomínia da derrota. Mas o método científico era a religião de Thyon e ditava a repetição dos experimentos – até dos fracassos. Então preparou uma nova leva de químicos e levou o alkahest para a âncora norte para testar mais uma vez. Não estava em sua preparação final, é claro, ou dissolveria seu próprio vasilhame. Ele faria a mistura final no último minuto para ativá-lo.
E, então, quando nada acontecesse – como nada aconteceria –, ele aplicaria o componente neutralizador para desativar o solvente para que não escorresse pelo metal impenetrável e corroesse o chão.
Ele tiraria uma soneca depois. Era nisso que ele estava pensando – sono de beleza, seu bastardo Estranho – quando caminhava pela cidade de Lamento, sem lua, com uma mochila de frascos pendurada no ombro. Ele repetiria o experimento e registraria seu fracasso e então iria para a cama.
Não havia nenhum momento, nem mesmo um segundo, em que Thyon Nero considerasse que o experimento pudesse não fracassar.
46
APENAS UM SONHO
Sarai chamou o resto de suas mariposas para casa mais cedo, deixando apenas uma na testa de Lazlo. Ela hesitou apenas em chamar de volta a que cuidava de seu pai.
Enquanto o observava, corrigiu-se. Não cuidava dele. Não era isso que ela estava fazendo.
Ali ela, finalmente, tinha-o encontrado, e não podia nem mesmo olhar dentro de sua mente.
Era um alívio, admitiu por fim desistindo e retirando a mariposa da parede, fazendo-a sair pela janela de volta ao ar. Estava com medo de saber o que encontraria em seus sonhos agora que ele sabia que a filha estava viva. Será que depois de tudo ainda havia alguma capacidade para a esperança nela – de que ele pudesse estar contente por não estar morta?
Ela afastou a ideia. É claro que ele não estaria contente, mas esta noite não precisava saber. Ela deixou-o com seus pensamentos, quaisquer que fossem eles.
A jornada dos telhados até o terraço era longa para os pedacinhos esvoaçantes, as mariposas, e nunca estivera tão impaciente naqueles minutos enquanto os insetos subiam pelas alturas do ar. Quando por fim chegaram e atravessaram a porta do terraço, viu os fantasmas fazendo guarda e lembrou, com um susto, que era uma prisioneira. Quase havia esquecido e não se demorou pensando nisso. A maior parte de sua atenção estava com Lazlo. Ela ainda estava no quarto junto com ele quando, lá em cima em seu quarto, entreabriu os lábios para receber suas mariposas de volta.
Ela virou-se de costas para ele, no sonho, muito embora soubesse que ele não podia ver sua boca real, ou as mariposas desaparecendo dentro dela. As asas roçaram em seus lábios, suaves como o beijo de um fantasma, e tudo o que podia pensar era como a visão disso o teria enojado.
Quem é que gostaria de beijar uma garota que come mariposas?
Eu não as “como”, ela argumentou consigo mesma.
Seus lábios ainda têm gosto de sal e fuligem.
Pare de pensar em beijar.
E então: a experiência incomum de deitar na cama na escuridão – seu corpo real em sua cama real – na quietude de saber que tanto a cidadela quanto a cidade estavam dormindo e com um fio de sua consciência ainda esticado até Lamento. Fazia anos que não se deitava antes de o sol nascer. Assim como Lazlo tinha deitado rígido, enquanto sua ansiedade para dormir mantinha o sono distante, o mesmo aconteceu com Sarai, uma consciência aguçada de seus membros levantando dúvidas breves sobre como ela os arranjava quando não estava pensando neles. Ela alcançou algo como sua posição natural de dormir – deitada de lado, com as mãos sob a face. Seu corpo cansado e mente mais cansada ainda, que tinham parecido, em sua exaustão, afastar-se um do outro como barcos à deriva, fizeram as pazes com as ondas. Contudo, seus corações estavam batendo rápido demais para dormir. Não de pavor, mas de agitação caso aquilo não funcionasse e... de entusiasmo – tão selvagem e suave quanto um caos de asas de mariposa – caso aquilo funcionasse.
No quarto, lá embaixo na cidade, ela ficou em pé diante da janela por um tempo e falou com Lazlo de um jeito novo e tímido, e aquela sensação de iminência não passou. Sarai pensou nos lamentos invejosos de Rubi sobre como ela “podia viver”. Ela nunca havia sentido que aquilo era verdade, mas agora sim.
Era viver, se era um sonho?
Apenas um sonho, lembrou-se, mas as palavras tinham pouco sentido quando os nós do tapete feito à mão sob seus pés imaginários eram mais vívidos do que o travesseiro macio de seda sob sua face real. Quando a companhia desse sonhador a fez sentir-se acordada pela primeira vez, mesmo enquanto tentava dormir. Ela estava ansiosa, parada lá com ele. Sua mente estava inquieta.
– Eu me pergunto se será mais fácil cair no sono se eu não estiver falando.
– É claro – ele respondeu. – Você quer se deitar? – Ele corou com a própria sugestão. Ela também. – Por favor, fique à vontade. Posso te trazer alguma coisa?
– Não, obrigada – respondeu Sarai. E com uma sensação engraçada de repetir a si mesma, deitou-se na cama, da mesma forma que fizera lá em cima. Ficou perto da beirada. Não era uma cama larga. Ela não achou que ele fosse se deitar também, mas deixou espaço suficiente caso ele o fizesse.
Ele ficou perto da janela, e ela o viu fazendo um gesto de colocar as mãos nos bolsos, apenas para descobrir que suas calças não tinham bolsos, e ficando constrangido por um momento antes de se lembrar que aquilo era um sonho. Então os bolsos apareceram, e suas mãos entraram.
Sarai dobrou as mãos mais uma vez sob a face. Essa cama era mais confortável do que a sua. O quarto inteiro era. Ela gostava das paredes de pedra e vigas de madeira que tinham sido construídas por mãos humanas e ferramentas em vez de pela mente de Skathis. Era confortável e agradável também. Era aconchegante. Nada na cidadela era aconchegante, nem mesmo sua alcova atrás do closet, embora chegasse perto. Surpreendeu-a com uma força renovada o fato de ser a cama de seu pai, da mesma forma que a cama na alcova havia sido dele antes de ser dela. Quantas vezes ela o tinha imaginado deitado acordado ali, planejando assassinatos e vingança? Agora, enquanto ela estava deitada ali, pensou nele como um garoto, temendo ser roubado e levado para a cidadela. Se ele tivesse sonhado em ser um herói, ela pensou, como imaginou que seria? Nada do que era, ela tinha certeza. Nada como um templo arruinado onde apenas fantasmas podem entrar.
E então, bem... não foi repentino, exatamente. Em vez disso, Sarai tornou-se consciente de que algo estava levemente diferente, e ela entendeu o que era: ela não estava mais em múltiplos lugares, mas apenas em um. Ela tinha deslocado sua concentração do seu corpo real deitado em sua cama real, e da mariposa na testa de Lazlo. Ela estava apenas ali, e sentiu que era ainda mais real por isso.
Oh. Ela sentou-se, dando-se conta de onde estava. Ela estava ali. Tinha funcionado. O fio que a ligava à mariposa não tinha se rompido. Ela estava dormindo – ah, o descanso abençoado – e em vez de seu inconsciente repleto de terrores à espreita, ela estava a salvo no inconsciente de Lazlo. Ela riu – um pouco incrédula, um pouco nervosa, um pouco contente. Tudo bem, muito contente. Bem, muito nervosa também. Muito tudo. Ela estava dormindo no sonho de Lazlo.
Ele observou-a, com expectativa. Vê-la ali – suas pernas azuis desnudas até os joelhos, enroscadas em seus cobertores amarrotados, e seus cabelos desgrenhados sobre o travesseiro – era uma visão que doía de tão doce. Ele estava bastante consciente de suas mãos, e não era por causa do constrangimento de não saber o que fazer com elas, mas sim por saber o que desejava fazer com elas. Suas palmas formigavam: a necessidade doída de tocá-la. Suas mãos pareciam bem despertas.
– Então? – ele perguntou, ansioso. – Funcionou?
Ela assentiu, abrindo um sorriso largo e maravilhado que ele não pôde deixar de retribuir. Que noite longa e extraordinária tinha sido. Quantas horas tinham se passado desde que ele fechara os olhos, esperando que ela viesse. E agora... de certa forma, ele não conseguia entender, ela estava... bem... era isso, não? Sua mente só pensava nela.
Ele guardava uma deusa em sua mente da mesma forma que alguém pega uma borboleta nas mãos. Mantendo-a segura tempo suficiente para libertá-la.
Livre. Era possível? Ela podia ficar livre um dia?
Sim.
Sim. De certa forma.
– Bem, então – ele disse, sentindo uma amplidão de possibilidades tão imensa quanto os oceanos. – Agora que você está aqui, o que fazemos?
Era uma boa pergunta. Com as infinitas possibilidades do sonho, não era fácil reduzi-las.
– Podemos ir para qualquer lugar – disse Lazlo. – O mar? Podíamos navegar um leviatã, e libertá-lo. Os campos de Thanagost? Generais e lobos soltos e botões de ulola pairando como bolhas vivas. Ou a Espiral de Nuvem. Podíamos subir nela e roubar esmeraldas dos olhos do sarcófago, como Calixte. Você gostaria de se tornar uma ladra de joias, senhorita?
Os olhos de Sarai brilharam.
– Isso parece divertido – disse ela. Tudo soava maravilhoso. – Mas você só mencionou lugares e coisas reais até agora. Sabe do que eu gostaria?
Ela estava sentada sobre os joelhos na cama, com os ombros eretos e as mãos unidas sobre as pernas. Seu sorriso era um espécime brilhante e ela usava a lua no pulso. Lazlo ficou deslumbrado ao vê-la.
– O quê? – ele perguntou. Qualquer coisa, pensou.
– Eu gostaria que os fabricantes de asas viessem para a cidade.
– Os fabricantes de asas – ele repetiu, e em algum lugar dentro dele, como se um zumbido de engrenagens e um ruído de cadeados, um cofre antes insuspeito de satisfação tivesse sido aberto.
– Como você mencionou outro dia... – disse Sarai, delicada em sua postura acanhada e excitação infantil. – Eu gostaria de comprar asas e testá-las e depois disso talvez nós possamos tentar montar em dragões e ver o que é mais divertido.
Lazlo teve de rir. Ficou cheio de satisfação. Ele achou que nunca tivesse rido desse jeito antes, desse novo lugar dentro dele onde tanta satisfação estava esperando em reserva.
– Você acabou de descrever meu dia perfeito – disse ele, e estendeu a mão, e ela pegou-a.
Ela levantou-se e saiu pelo lado da cama, mas quando seus pés tocaram o chão, um grande abalo fez um tum na rua. Um tremor sacudiu o quarto. Gesso choveu do teto, e toda a excitação desapareceu do rosto de Sarai.
– Ó, deuses – ela disse, em um sussurro. – Está acontecendo.
– O que é? O que está acontecendo?
– Os terrores, meus pesadelos. Eles estão aqui.
47
OS TERRORES
– Mostre-me – pediu Lazlo, que não estava com medo. Como dissera antes, se o terror dela se derramasse, eles lidariam com isso juntos.
Mas Sarai balançou a cabeça, selvagem.
– Não. Isso não. Feche as janelas. Corra!
– Mas o que é? – ele perguntou. Ele moveu-se na direção da janela, não para fechá-la, mas para olhar para fora. Mas antes que fizesse isso, a janela fechou-se à sua frente com um ruído forte e o trinco caiu firmemente no lugar. Com as sobrancelhas erguidas, ele voltou-se para Sarai.
– Bem, parece que você não é impotente aqui afinal de contas.
Quando ela o observou confusa, Lazlo apontou para a janela e falou:
– Você fez isso, não eu.
– Eu fiz? – ela perguntou. Ele assentiu. Ela levantou-se, mas não tinha tempo para reunir sua coragem, porque lá de fora o tum veio de novo, mais baixo agora e com tremores mais sutis, e então de novo e de novo, em uma repetição rítmica.
Tum. Tum. Tum.
Sarai afastou-se da janela.
– Ele está vindo – ela disse, tremendo.
Lazlo seguiu-a. Ele pegou em seus ombros, com delicadeza.
– Está tudo bem – respondeu. – Lembre-se, Sarai, é apenas um sonho.
Ela não conseguia sentir a verdade de suas palavras. Tudo o que sentia era a aproximação, o pavor, o pavor que era tão puro como uma destilação do medo quanto qualquer emoção que Isagol tivesse feito. Os corações de Sarai estavam desvairados de medo, e de angústia também. Como ela podia ter empregado isto, inúmeras vezes, nos sonhos dos sonhadores de Lamento? Que tipo de monstro ela era?
Havia sido sua arma mais poderosa, porque era o medo mais potente deles. E agora estava perseguindo-a.
Tum. Tum. Tum.
Grandes passos incansáveis, mais próximos, mais altos.
– Quem é? – perguntou Lazlo, ainda segurando os ombros de Sarai. Seu pânico, ele descobriu, era contagioso. Parecia passar da pele dela para a dele, subindo pelas as mãos e braços em vibrações de medo. – Quem está vindo?
– Shhh! – ela pediu, com os olhos tão arregalados que mostravam um anel completo de branco, e quando ela sussurrou foi como uma respiração moldada em palavras, e não fez nenhum som. – Ele vai te ouvir.
Tum.
Sarai congelou. Não parecia possível que seus olhos se arregalassem ainda mais, mas foi o que aconteceu e, naquele breve momento de silêncio, os passos cessaram – a pausa terrível que todos os lares de Lamento tinham temido por duzentos anos –, o pânico de Sarai suplantou a racionalidade de Lazlo, de forma que os dois estavam nele, vivendo-o, quando as janelas, sem aviso, foram arrancadas das dobradiças em uma confusão de madeira partindo-se e vidro estilhaçando-se. E lá, do lado de fora, estava a criatura cujos passos sacudiam os ossos de Lamento. Não era uma coisa viva, mas movia-se como se fosse, sinuosa como um ravide e brilhante como mercúrio derramado. Era todo de mesarthium, músculo liso esculpido para poder agachar e saltar. O flanco de um grande felino, o pescoço e a corcunda de um touro, asas tão afiadas e terríveis quanto as asas do grande serafim, embora em escala menor. E uma cabeça... uma cabeça que era feita para os pesadelos.
A cabeça era de cadáver.
Era metal, é claro, mas como o relevo nas paredes do quarto de Sarai – os pássaros e lírios tão reais que zombavam dos mestres entalhadores de Lamento –, era praticamente vivo. Ou melhor, praticamente morto. Era uma coisa morta, uma coisa podre, um crânio com a carne se soltando, revelando dentes até a raiz em uma careta de presas, e no lugar dos olhos não havia nada, apenas uma terrível luz que tudo via. Ele tinha chifres grossos como braços, que afinavam até pontas afiadas; e bateu a pata no chão, atirando a cabeça para frente, com um rugido raspando sua garganta de metal.
Era Rasalas, a besta da âncora norte, e não era o verdadeiro monstro. O verdadeiro monstro estava montado nele: Skathis, deus das bestas, mestre do metal, ladrão de filhos e filhas, atormentador de Lamento.
Lazlo tinha apenas o mural grosseiramente desenhado para se orientar, mas viu o deus que havia roubado tanto – não só filhos e filhas, embora esse fosse o cerne sombrio disso. Skathis havia roubado o céu da cidade, e a cidade do mundo. Que poder tremendo e insidioso isso exigiu, e ali estava o deus em pessoa.
Podia-se esperar uma presença para rivalizar a do Matador de Deuses – uma contrapartida sombria à sua luz, como dois reis se afrontando em um tabuleiro.
Mas não. Ele não era nada perto do Matador de Deuses. Mas ali não havia majestade sombria, não havia nenhuma magnificência. Ele era de estatura mediana e o rosto era apenas um rosto. Ele não era o deus-demônio do mito. Exceto pela cor – aquele azul extraordinário – não havia nada de extraordinário nele, a não ser a crueldade em seu semblante. Ele não era nem bonito nem feio, distinguia-se somente pela malícia que ardia nos olhos cinzentos, e aquele sorriso de serpente, traiçoeiro e venenoso.
Mas ele montava em Rasalas, e aquilo mais do que compensava por qualquer falta de grandiosidade divina. A besta como uma extensão de sua própria psique, cada passo e movimento da cabeça eram dele. Cada rugido que ecoava pela garganta de metal era dele tão certamente como se emitido de sua própria garganta. Seus cabelos eram de um castanho-escuro e ele usava uma coroa de mesarthium com formato de uma grinalda de serpentes engolindo o rabo umas das outras. Elas moviam-se em sua fronte em ondas sinuosas e devoradoras, em círculos, incansáveis. Ele vestia um casaco de veludo e pó de diamantes com longas abas esvoaçantes no formato de lâminas de faca, e as botas eram de couro branco de espectral com fivelas de lys.
Era uma coisa amaldiçoada esfolar um espectral e usar sua pele. Aquelas botas podiam quase ser de couro humano, de tão erradas que eram.
Mas nenhum dos detalhes terríveis podiam responder pela pureza do pavor que tomou conta do quarto – por meio do sonho, embora tanto Lazlo quanto Sarai tivessem perdido a noção desse fato, e estivessem à mercê das torrentes do inconsciente. Aquele pavor puro, como Lazlo havia testemunhado inúmeras vezes desde que chegara a Lamento, era um horror coletivo que havia sido construído por dois séculos. Quantos jovens, homens e mulheres, haviam sido levados em todo aquele tempo, e retornado sem memória depois desse momento – esse momento à sua porta ou janela quando o deus chegou chamando. Lazlo pensou em Suheyla, Azareen e Eril-Fane e tantos outros, levados assim, sem mais nem menos, não importava o que suas famílias fizessem para mantê-los em segurança.
Mais uma vez a pergunta surgiu em sua mente: por quê? Todos os meninos e meninas roubados, suas memórias levadas e muito mais do que isso.
O berçário, os bebês. Por quê?
Por um lado, era óbvio, e certamente nada novo. Se houve um dia um conquistador que não extorquiu esse dízimo devastador de seus súditos, ele é desconhecido na história. Os jovens são espólio de guerra. Posses, mão de obra. Ninguém está seguro. Tiranos sempre levaram quem eles quiseram, e tiranos sempre o farão. O rei de Syriza tinha um harém até hoje.
Mas isso era diferente. Havia alguma coisa sistemática nos sequestros, algo escondido. Era essa ideia que incomodava a mente de Lazlo – mas brevemente, apenas para ser encoberta pelo pavor esmagador. Há poucos minutos ele tinha pensado, indiferente, que podia capturar os terrores de Sarai como vaga-lumes em um pote de vidro. Agora a enormidade desses terrores estava pronta para capturá-lo.
– Estranho, o sonhador – afirmou Skathis, estendendo uma mão despótica. – Venha comigo.
– Não! – gritou Sarai. Ela agarrou o braço de Lazlo e apertou-o contra si.
Skathis sorriu com malícia.
– Venha agora. Você sabe que não há segurança e não há salvação. Há apenas rendição.
Apenas rendição. Apenas rendição.
O que inundava Sarai era o sofrimento de qualquer um que tivesse ficado para trás, cada familiar ou noivo, namorado de infância ou melhor amigo que não podia fazer nada a não ser se render enquanto seu ente querido era levado para cima. Rasalas apoiou-se em suas patas traseiras, com as garras imensas descendo com força sobre o parapeito da janela e destruindo-a. Sarai e Lazlo recuaram aos tropeços, mas mantiveram-se unidos.
– Você não pode levá-lo – disse Sarai, com a voz sufocada.
– Não se preocupe, criança – respondeu Skathis, olhando-a fixamente com seus olhos frios. – Estou levando-o para você.
Ela balançou a cabeça, em um ímpeto, diante da ideia de que isso fosse feito em seu nome – como Isagol havia levado Eril-Fane para si, Skathis levaria Lazlo para ela. Mas então... a ideia – o paradoxo dela, de Skathis tirar Lazlo dela para levá-lo até ela – dividiu Sarai em duas pessoas, aquela na cidadela e a outra em seu quarto, e descobriu a fronteira entre o sonho e a realidade, que tinha se perdido no medo. Isso era apenas um sonho e, desde que ela soubesse disso, não seria impotente dentro dele.
Todo o medo foi varrido como poeira em uma tempestade. Vocêéa Musa dos Pesadelos, Sarai disse a si mesma. Você é a mestra, não escrava deles.
E ela levantou uma mão, sem formar em sua mente um ataque preciso, mas – assim como com a mahalath – deixou uma voz profunda dentro dela decidir.
E, aparentemente, a voz decidira que Skathis estava morto.
Diante dos olhos de Sarai e de Lazlo, o deus sacudiu-se, com os olhos se arregalando em choque enquanto uma hreshtek lhe atravessava o peito. Seu sangue era vermelho – tão vermelho quanto a pintura no mural, na qual, ocorreu a Lazlo, Skathis estava representado exatamente assim: atingido pelas costas, a espada cortando bem entre os seus corações. Uma bolha vermelha apareceu em seus lábios e rapidamente ele estava morto. Muito rapidamente. Essa não era uma representação natural de sua morte, mas um claro lembrete disso. Você está morto, fique morto, deixe-nos em paz. Rasalas, a besta, congelou no lugar – todo mesarthium morrendo com seu mestre –, enquanto, nas suas costas, o lorde dos Mesarthim caía, secando, desinflando, até que nada restasse a não ser uma casca de carne azul, sem sangue e sem espírito a ser carregado dali com um grito terrível, em um flash de branco derretido, pelo grande pássaro, a Aparição, que surgiu do nada e sumiu da mesma forma.
O quarto estava silencioso, exceto pela respiração rápida. O pesadelo havia acabado, e Lazlo e Sarai ainda estavam unidos, olhando para a face de Rasalas, congelado enquanto rosnava. Seus pés enormes ainda estavam em cima do parapeito da janela, garras enfiadas na pedra. Lazlo estendeu um braço trêmulo, fechando a cortina. O outro braço estava na posse de Sarai. Ela ainda o agarrava, com seus dois braços enlaçados nele como se quisesse lutar com Skathis por ele. Mas a garota havia feito melhor do que isso, pois vencera o deus das bestas. Lazlo tinha certeza de que ele não havia feito nada daquilo.
– Obrigado – ele agradeceu, virando-se para ela. Os dois estavam tão perto um do outro, o corpo dela pressionado contra o braço dele. Ao virar-se, ficaram ainda mais próximos, face a face, o rosto dele virado para baixo, o dela para cima, de forma que o espaço entre os dois era pouco maior do que o vapor de chá que, mais cedo naquela noite, havia pairado entre eles na mesa à margem do rio.
Aquilo era novo para ambos – aquela proximidade que misturava respiração e calor – e compartilharam a sensação de que estavam absorvendo um ao outro, derretendo-se juntos em um recipiente único. Era uma intimidade que ambos haviam imaginado, mas nunca com sucesso – agora sabiam. A verdade era muito melhor do que a fantasia. As asas selvagens e suaves estavam em um frenesi. Sarai não conseguia pensar, queria apenas continuar derretendo.
Mas havia algo no caminho. A garota ainda piscava para se livrar da imagem dos dentes brilhantes de Rasalas e do pensamento de que tudo aquilo era culpa sua.
– Não me agradeça – ela disse, soltando o braço de Lazlo e fitando o chão, desviando do olhar dele. – Eu trouxe isso aqui. Você deveria me expulsar. Você não me quer na sua mente, Lazlo. Eu vou simplesmente arruiná-la.
– Você não arruína nada – o garoto respondeu, e sua voz rouca nunca foi tão doce. – Eu posso estar dormindo, mas esta foi a melhor noite da minha vida. – Maravilhado, ele a encarou, suas sobrancelhas cor de canela, a perfeita curva de suas bochechas azuis e aqueles lábios sedutores com a prega no meio, doces como uma fatia de fruta madura. Ele arrastou seu olhar de volta aos olhos dela. – Sarai – ele falou e, se os ravides ronronassem, teriam um som parecido com o jeito como ele pronunciou o nome dela –, você precisa entender. Eu quero você na minha mente.
E ele a queria em seus braços. Ele a queria em sua vida. Ele não a queria presa no céu, não caçada pelos humanos, não sem esperança e não importunada por pesadelos sempre que fechasse os olhos. Ele queria levá-la a uma margem de rio real e deixá-la afundar os dedos dos pés na lama. Ele queria abraçá-la em uma biblioteca real e sentir o cheiro dos livros, abri-los e lê-los um para o outro. Ele queria comprar asas dos fabricantes de asas para que pudessem voar para longe, com um estoque de bala de sangue em um pequeno baú de tesouro, para que pudessem viver para sempre. Lazlo soube, quando vislumbrou o que havia além da Cúspide, que o reino do incompreensível era muito maior do que imaginara e desejava descobrir o quanto maior. Com ela.
Mas primeiro... Primeiro ele desejava muito, muito beijá-la.
Ele procurou consentimento em seus olhos e encontrou. Ela lhe deu gratuitamente. Era como um fio de luz passando de um para o outro, e era mais do que consentimento. Era cumplicidade, desejo. A respiração de Sarai ficou mais rasa e a garota deu um passo à frente, fechando aquele pequeno espaço. Havia um limite àquele derretimento e ambos o encontraram, e desafiaram-no. Seu peito era duro contra o da garota, que era macia contra o dele. Suas mãos fecharam-se em torno da cintura dela. Os braços dela em volta do pescoço dele. As paredes soltaram um brilho como de sol nascente na água revolta. Inúmeras estrelinhas acenderam-se e nem Sarai nem Lazlo sabiam quem estava fazendo aquilo. Talvez ambos estivessem, e havia tanto brilho naqueles diamantes de luz intermináveis, mas havia consciência também, e urgência. Sob a pele do sonho, ambos sabiam que a aurora estava próxima e que seu abraço não poderia sobreviver.
Então Sarai ficou na ponta dos pés, apagando o último espacinho entre seus rostos corados. Seus cílios fecharam-se, acastanhado cor de mel e gato-selvagem, e suas bocas, macias e desejosas, encontraram-se e tiveram apenas tempo para se tocarem e pressionar, e abrirem-se docemente antes que o primeiro raio de luz da manhã entrasse pela janela, tocasse a asa parda da mariposa sobre a testa de Lazlo e, em um sopro de fumaça índigo, a aniquilasse.
48
SEM LUGAR NO MUNDO
Sarai desapareceu dos braços de Lazlo e Lazlo desapareceu dos de Sarai. O sonho compartilhado desfez-se bem no meio e derramou os dois para fora. Sarai acordou em sua cama na cidadela com o calor dos lábios de Lazlo ainda nos seus, e Lazlo acordou na cidade, um sopro de fumaça na forma de mariposa dissipando-se em sua testa. Os dois levantaram-se ao mesmo tempo e para ambos, a repentina ausência era a poderosa inversão da presença que haviam sentido apenas um instante antes. Não a mera presença física – o calor de um corpo contra o seu (embora isso também) –, mas algo mais profundo.
Essa não era a frustração que alguém sente ao acordar de um sonho bom. Era a desolação de ter encontrado o lugar que encaixa, o único lugar verdadeiro, e experienciar o primeiro suspiro inebriante de estar certo antes de ser jogado para longe e atirado em uma solitária e aleatória dispersão.
O lugar era o outro e a ironia era severa, já que não poderiam estar no mesmo lugar fisicamente, e o mais perto que haviam chegado um do outro foi quando Sarai gritou para ele no terraço enquanto os fantasmas a puxavam para dentro.
Entretanto, mesmo sabendo que isso era verdade – que eles não estiveram no mesmo lugar durante essa longa noite, mas praticamente em diferentes planos de existência, ele no solo, ela no céu – Sarai não podia aceitar que eles não estiveram juntos. Ela derrubou-se novamente na cama e seus dedos estenderam-se curiosos para traçar os próprios lábios, em que um momento antes os dele haviam estado.
Não realmente, talvez, mas verdadeiramente. Quer dizer, talvez eles não tivessem se beijado na realidade, mas haviam se beijado de verdade. Tudo sobre essa noite era verdade de uma forma que transcendia seus corpos.
Mas isso não significa que seus corpos quisessem ser transcendidos.
O desejo.
Lazlo também caiu de volta em seus travesseiros, ergueu os punhos até os olhos e pressionou-os. A respiração sibilou entre os dentes cerrados. Ter sido agraciado com a minúscula prova do néctar de sua boca, e o tão breve roçar do veludo de seus lábios, era uma crueldade indizível. Ele se sentiu incendiado. Teve de se convencer que liberar um trenó de seda e voar imediatamente para a cidadela não era uma opção viável. Isso seria como o príncipe subindo à torre da donzela, tão louco de desejo que esquece sua espada e é morto pelo dragão antes mesmo de chegar perto dela.
Exceto pelo fato de que o dragão, neste caso, era um batalhão de fantasmas a quem nenhuma espada podia ferir e, de toda forma, ele não tinha uma espada. Na melhor das hipóteses, tinha um mastro acolchoado, a verdadeira arma de um herói.
Esse problema – não o beijo interrompido, mas todo o impasse da cidade e da cidadela – não seria resolvido com mortes. Isso já havia acontecido demais. Como isso seria resolvido ele não sabia, entretanto, sabia disto: os riscos eram maiores do que qualquer um imaginasse. E os riscos, para ele, agora, eram pessoais.
Desde o dia em que o Matador de Deuses entrou pelos portões de Zosma e fez seu convite extraordinário, passando pelo recrutamento dos especialistas e toda sua especulação interminável até enfim pousar os olhos em Lamento, Lazlo sentira certa liberdade da expectativa. Ah, ele queria ajudar. Muito. Sonhara acordado com isso, embora ninguém pensasse nele em busca de soluções, e ele não estivesse em busca delas pensando em si mesmo também. Ele estava meramente reflexivo. “O que eu poderia fazer?”, era seu pensamento, afinal, não era alquimista, construtor, especialista em metais ou ímãs.
Mas agora a natureza do problema havia mudado. Não eram apenas metais e ímãs, mas fantasmas e deuses, magia e vingança e mesmo que não pudesse ser chamado de especialista em nenhuma dessas coisas, tinha mais recursos para recomendar a si mesmo do que os outros, a começar por uma mente aberta.
E corações abertos.
Sarai estava lá em cima. Sua vida estava em perigo. Então, naquela manhã, Lazlo não se perguntou “o que posso fazer?” enquanto o segundo Sabá da décima segunda lua acordava a cidade de Lamento, mas sim “o que vou fazer?”.
Era uma pergunta nobre e, se o destino tivesse achado conveniente revelar sua resposta surpreendente naquele momento, ele não teria acreditado.
Eril-Fane e Azareen vieram para o café da manhã e Lazlo viu-os sob a lente de tudo o que tivera ciência na noite anterior, e seus corações se ressentiram pelo casal. Suheyla colocou na mesa pãezinhos no vapor, ovos cozidos e chá. Os quatro sentaram-se sobre as almofadas em torno da mesa de pedra baixa no jardim. Suheyla não sabia de nada ainda, além do óbvio: alguma coisa acontecera, alguma coisa mudara.
– Então – ela quis saber –, o que vocês encontraram lá em cima, de verdade? Imagino que a história do pontão era uma mentira.
– Não exatamente uma mentira – respondeu Lazlo. – O pontão teve um vazamento. – Ele tomou um gole de chá. – Com a ajuda de um gancho de carne.
A xícara de Suheyla tilintou no pires.
– Um gancho de carne? – ela repetiu, com os olhos arregalados, depois estreitos. – Como aconteceu de o pontão encontrar um gancho de carne?
A pergunta foi dirigida a Lazlo, uma vez que ele parecia mais inclinado a falar do que os outros dois. Ele virou-se para Eril-Fane e Azareen, pois parecia trabalho dos dois contar, não dele.
Eles começaram pelos fantasmas. Na verdade, nomearam uma grande quantidade deles, a começar pela avó de Azareen. Havia mais do que Lazlo percebera. Tios, vizinhos, conhecidos. Suheyla chorou em silêncio. Até um primo que morrera alguns dias atrás, um jovem chamado Ari-Eil, fora visto. Todos estavam pálidos e doentes com as implicações. Os cidadãos de Lamento, ao que parece, eram cativos até na morte.
– Ou todos fomos condenados e a cidadela é o nosso inferno – disse Suheyla, tremendo – ou há outra explicação. – Encarando o filho. Ela não era do tipo que acreditava em inferno e estava pronta para a verdade.
Eril-Fane limpou a garganta e falou, com enorme dificuldade:
– Há uma... sobrevivente... lá em cima.
Suheyla ficou pálida.
– Uma sobrevivente? – ela engoliu em seco. – Cria dos deuses?
– Uma garota – disse Eril-Fane. Ele teve de limpar a garganta de novo. Cada sílaba parecia lutar contra ele: – com cabelos ruivos. – Cinco palavras simples, uma garota com cabelos ruivos, que desencadearam uma torrente de emoções. Se o silêncio pudesse causar um estrondo, ele o fez. Se pudesse se quebrar como uma onda e inundar um cômodo com toda a força do oceano, ele o fez. Azareen parecia esculpida na pedra. Suheyla segurou na beirada da mesa. Lazlo estendeu uma mão para estabilizá-la.
– Viva? – ela sussurrou, ainda encarando o filho. Lazlo pode ver o sentimento ricochetear nela, a onda hesitante de esperança recuando no solo firme do pavor. Sua neta estava viva. Sua neta era cria dos deuses. Sua neta estava viva. – Conte-me – ela pediu, desesperada para ouvir mais.
– Não tenho mais nada a dizer – respondeu Eril-Fane. – Eu a vi apenas por um instante.
– Ela o atacou? – perguntou Suheyla.
Ele balançou a cabeça, parecendo confuso. Foi Azareen quem respondeu:
– Ela nos alertou – disse ela. Seu cenho estava franzido, seus olhos, atormentados. – Não sei por quê. Mas todos nós estaríamos mortos se não fosse por ela.
Um silêncio frágil instalou-se. Todos trocaram olhares em volta da mesa, tão atordoados e cheios de perguntas que Lazlo finalmente falou.
– Seu nome é Sarai – ele disse, e as três cabeças viraram-se para ele. Ele estivera em silêncio, apartado da violência da emoção deles. Aquelas cinco palavras, “uma garota com cabelos ruivos”, criaram um efeito oposto nele. Carinho, prazer, desejo. Sua voz carregava tudo isso quando pronunciou aquele nome, em um eco do ronronar de ravide com o qual falara a ela.
– Como você pode saber disso? – perguntou Azareen, a primeira a recuperar-se da surpresa. Seu tom era direto e cético.
– Ela me disse – Lazlo explicou. – Ela pode entrar nos sonhos. É o seu dom. Ela entrou no meu.
Eles contemplaram a informação.
– Como você sabe que era real? – Eril-Fane perguntou.
– Não é como os sonhos que eu tinha antes – disse Lazlo. Como ele podia colocar em palavras como foi estar com Sarai? – Sei que isso parece estranho, mas sonhei com ela mesmo antes de vê-la. Antes mesmo de ver o mural e saber que os Mesarthim eram azuis. Foi por isso que lhe perguntei aquele dia. Eu achava que ela era Isagol, porque eu não sabia sobre os... – ele hesitou. Essa era a vergonha secreta deles, e tinha sido escondida dele. As crias dos deuses. A palavra era tão terrível quanto o nome Lamento. – Sobre as crianças – ele soltou. – Mas agora eu sei. Eu... eu sei de tudo.
Eril-Fane o observou, mas era o olhar cego e sem piscar de alguém pensando no passado.
– Então você sabe o que fiz.
Lazlo assentiu. Quando olhava para Eril-Fane agora, o que via? Um herói? Um assassino? Essas coisas anulavam-se mutuamente, ou o assassino sempre sobrepujaria o herói? Será que eles podiam existir lado a lado, tais opostos, como o amor e o ódio que ele carregou por três longos anos?
– Tive de fazer aquilo – disse o Matador de Deuses. – Não podíamos sofrer com eles vivos, não com a magia que os deixaria acima de nós, para novamente nos dominar quando crescessem. O risco era grande demais. – Tudo tinha o tom de algo que fora repetido com frequência e seu olhar apelava para a compreensão de Lazlo. Quando Sarai lhe contou o que Eril-Fane fizera, ele imaginava que o Matador de Deuses se arrependesse disso hoje. Mas lá estava ele, defendendo o massacre.
– Eles eram inocentes – Lazlo falou.
O Matador de Deuses pareceu encolher.
– Eu sei. Você acha que eu queria isso? Não havia outra maneira. Não havia lugar para eles neste mundo.
– E agora? – Lazlo perguntou. Ele sentia-se frio. Essa não era a conversa que ele esperava ter. Eles deviam estar fazendo um plano. Em vez disso, sua pergunta foi respondida com o silêncio, a única interpretação possível disso era: ainda não havia lugar para eles neste mundo. – Ela é sua filha. Ela não é um monstro. Ela está com medo. Ela é gentil.
Eril-Fane encolheu-se ainda mais. As duas mulheres colocaram-se ao lado dele. Azareen lançou um olhar de alerta para Lazlo e Suheyla segurou a mão do filho.
– E quanto aos nossos mortos, presos lá em cima? Isso é gentil?
– Isso não foi ela quem fez – respondeu Lazlo, não para descartar a ameaça, mas pelo menos para exonerar Sarai. – Deve ter sido um dos outros.
Eril-Fane ficou perplexo.
– Outros?
Como eram profundas e emaranhadas as raízes do ódio, refletiu Lazlo, vendo como até mesmo agora, com o remorso e autorrepugnância o corroendo por dentro como um câncer de quinze anos, o Matador de Deuses não sabia dizer se desejava as crias dos deuses vivos ou se os temia assim.
Quanto a Lazlo, ele ficou inquieto com a informação. Sentiu-se nauseado por temer que não pudesse confiar em Eril-Fane.
– Há outros sobreviventes – limitou-se a responder.
Sobreviventes. Havia tanto significado naquela palavra: força, resiliência, sorte, junto à sombra de qualquer crime ou crueldade que tivesse sobrevivido. Nesse caso, Eril-Fane era o crime, a crueldade. Os outros haviam sobrevivido a ele, e a sombra caiu muito escura sobre aquele homem.
– Sarai nos salvou – Lazlo falou em voz baixa. – Agora temos de sal-vá-la, e aos outros também. Você é Eril-Fane. Cabe a você. As pessoas seguirão a sua liderança.
– Não é tão simples assim, Lazlo – disse Suheyla. – Não há como você entender o ódio. É como uma doença.
Ele estava começando a entender. Como Sarai havia dito? “O ódio dos usados e atormentados, que são filhos dos usados e atormentados, e cujos filhos serão usados e atormentados”.
– Então, o que você está dizendo? O que você quer fazer? – Ele encheu-se de coragem e perguntou: – Matá-los?
– Não! – exclamou Eril-Fane. – Não. – Era uma resposta à pergunta, mas veio como se ele estivesse se defendendo de um pesadelo ou de um golpe, como se mesmo a ideia fosse um ataque e ele não pudesse supor-tá-la. Ele colocou o rosto nas mãos, de cabeça baixa. Azareen estava afastada, observando-o, seus olhos castanhos e marejados e tão cheios de dor que ela poderia ser feita disso. Suheyla, com os olhos cheios de lágrimas, pousou sua mão sobre o ombro do filho.
– Vou pegar o segundo trenó de seda – falou levantando a cabeça e, enquanto os olhos das mulheres estavam úmidos, os dele estavam secos. – Vou subir e me encontrar com eles.
Azareen e Suheyla imediatamente opuseram-se à ideia.
– E oferecer-se como sacrifício? – perguntou Azareen. – O que isso vai resolver?
– Me parece que vocês mal conseguiram escapar com vida – Suheyla observou, com mais suavidade.
Eril-Fane olhou para Lazlo, e havia uma impotência no olhar dele, como se quisesse que Lazlo lhe dissesse o que fazer.
– Vou falar com Sarai hoje à noite – ele ofereceu-se. – Vou perguntar se ela pode persuadir os outros a aceitarem uma trégua.
– Como você sabe que ela virá de novo?
Lazlo corou, temendo que vissem o que estava escrito em seu rosto.
– Ela disse que viria – mentiu. Eles ficaram sem tempo para fazer planos, mas ela não precisava dizer. A noite não poderia demorar mais, e ele tinha certeza de que ela sentia o mesmo. E da próxima vez ele não teria de esperar até o chegar preciso da alvorada para puxá-la para perto. Ele limpou a garganta. – Se ela disser que é seguro, podemos subir amanhã.
– Nós? – disse Eril-Fane. – Não. Você não vai. Não arriscarei a vida de ninguém além da minha.
Azareen virou o rosto ao ouvir isso e, na desolação de seus olhos, Lazlo viu uma sombra de angústia de amar alguém que não ama a si mesmo.
– Ah, vou com você – afirmou Lazlo, não com força, mas com simples determinação. Ele estava imaginando desembarcar do trenó de seda na palma do serafim, e Sarai à sua frente, tão real quanto ele, de carne e osso. Ele precisava estar lá. Fosse qual fosse a aparência que esses devaneios produziram em seu rosto, Eril-Fane não tentou argumentar com ele. Quanto a Azareen, ela tampouco seria deixada para trás. Mas, primeiro, os cinco lá na cidadela tinham de concordar, o que só poderia acontecer no dia seguinte.
Enquanto isso, eles tinham de lidar com o dia de hoje. Lazlo tinha de ir à Câmara dos Mercadores de manhã e pedir a Soulzeren e a Ozwin, em particular, para inventarem alguma desculpa plausível para atrasar o lançamento do segundo trenó de seda. Todos estariam esperando que à ascensão fracassada se seguisse um sucesso, o que, é claro, não podiam obter, pelo menos não ainda.
Quanto ao segredo, seria guardado dos cidadãos. Eril-Fane considerou não contar para os Tizerkane, também, por medo de que isso causasse muito tumulto e fosse difícil de esconder. Mas Azareen foi firme em sua defesa e argumentou que precisavam estar preparados para qualquer coisa que acontecesse.
– Eles podem aguentar – disse ela, acrescentando suavemente: – Apenas não precisam saber de tudo ainda.
Ela se referia a Sarai e de quem ela era filha, Lazlo entendeu.
– Há algo que não compreendo – ele disse, enquanto se preparava para sair. Parecia-lhe que o mistério no centro de tudo tinha a ver com as crias dos deuses. – Sarai falou que havia trinta deles no berçário naquele dia.
Eril-Fane olhou diretamente para suas mãos. Os músculos em sua face enrijeceram-se. Lazlo ficou desconfortável em pressionar nessa linha de perguntas e estava longe de ter certeza de que queria mesmo uma resposta, mas pareceu importante demais para não se aprofundar.
– E embora isso... não seja um número pequeno, deve ser apenas uma fração. – Ele estava imaginando o berçário como uma fileira de berços idênticos. Como não tinha entrado na cidadela e visto como tudo era de mesarthium, imaginou berços rústicos de madeira, pouco mais do que caixas de madeira abertas, como as que os monges usavam para os órfãos no mosteiro.
Ali estava a coisa que perturbava Lazlo como um dente faltando. Ele próprio tinha sido um bebê em uma fileira de berços idênticos e compartilhava um nome com incontáveis órfãos para provar isso. Existiam muitos deles, muitos Estranhos, e... ainda havia muitos deles.
– E quanto a todos os outros? – ele indagou, olhando de Eril-Fane para Azareen, e por último para Suheyla, que, ele suspeitava, tinha dado à luz um deles. – Os que não eram mais bebês? Se os Mesarthim vinham fazendo isso todo o tempo... – Isso? Ele estremeceu com sua própria perífrase, usando uma palavra tão sem sentido para obscurecer uma verdade tão medonha. Reprodução. Era isso que eles faziam. Não era?
Por quê?
– Durante dois séculos – ele insistiu –, devia haver milhares de crianças.
Os rostos dos três estavam com o mesmo olhar desolado e percebeu que o compreendiam. Eles podiam tê-lo interrompido e o poupado de dizer, mas não o fizeram, então ele perguntou diretamente:
– O que aconteceu com todo o resto?
Suheyla respondeu. Sua voz estava sem vida:
– Nós não sabemos. Não sabemos o que os deuses fizeram com eles.
49
VÉU DE DEVANEIO
Não houve sono de beleza para Thyon Nero. Bem o oposto.
“Isso pode não te matar”, Estranho tinha dito, “mas o tornará feio.” Thyon lembrou-se da zombaria, o tom fácil de provocação disso, enquanto retirava outra seringa de espírito de suas próprias veias surradas. Não havia outro jeito, ele precisava produzir mais azoth de uma vez. Um lote de controle, depois dos... inexplicáveis... resultados do teste da noite anterior.
Ele lavara todos os vidros e instrumentos com cuidado. Embora pudesse ter requisitado um assistente para fazer essas tarefas servis, tinha ciúmes demais de seu segredo para deixar qualquer um entrar em seu laboratório. De qualquer forma, mesmo que tivesse um assistente, ele mesmo teria lavado os frascos. Era a única forma de se certificar de que não havia impurezas na equação e nenhum fator desconhecido que pudesse afetar os resultados.
Nero sempre tinha evitado o lado místico da alquimia e concentrado-se na ciência pura. Essa era a base de seu sucesso. Realidade empírica. Resultados, repetidos, verificáveis. A solidez da verdade que podia segurar nas mãos. Mesmo enquanto lia as histórias do Milagres para o café da manhã, procurava por pistas. Era da ciência que ele estava atrás, traços de ciência, como a poeira sacudida de uma tapeçaria de milagres.
E quando relia as histórias, ainda era pesquisa.
Quando as lia para cair no sono, um hábito que era tão secreto quanto a receita do azoth, era possível que sua mente divagasse em uma espécie de devaneio que parecia mais místico do que material, mas eram contos de fadas, afinal, e era apenas nesses momentos que sua mente se desligava de seu rigor. O que quer que fosse, desaparecia pela manhã.
Mas a manhã havia chegado. Ele podia não ter janelas para constatar, mas havia um relógio tiquetaqueando regularmente. O sol se levantara e Thyon Nero não estava lendo contos de fadas agora. Ele destilava o azoth como havia feito centenas de vezes antes. Então por que aquele véu tremeluzente de devaneio havia se estendido sobre si agora?
Ele afastou a ideia. O que quer que respondesse pelos resultados de seus experimentos, não era místico e nem era o mesarthium, tampouco o espírito. Havia uma explicação científica para tudo.
Até mesmo “deuses”.
C O N T I N U A
26
PESSOAS DESTRUÍDAS
Sarai tinha vindo inúmeras vezes até essa janela. Mais do que a qualquer outra em Lamento. Era a janela de seu pai e raramente passava uma noite sem visitá-lo.
Uma visita para atormentá-lo – e atormentar a si também, enquanto tentava imaginar ser o tipo de criança que um pai poderia amar em vez de matar.
A janela estava aberta. Não havia obstáculo para entrar, mas ela hesitou e pousou as mariposas no parapeito para espiar lá dentro. Não havia muita coisa no quarto estreito: um armário de roupas, algumas prateleiras, e uma cama com um colchão de penas coberto por uma colcha bordada à mão. Havia apenas luz suficiente entrando pela janela para dar profundidade à escuridão, então ela viu, nos tons de cinza, o contorno de uma forma. Um ombro, voltado para baixo. Ele dormia de lado, com as costas para a janela.
Lá em cima, no seu próprio corpo, os corações de Sarai balbuciaram. Ela estava nervosa, agitada, como se fosse uma espécie de reencontro. Um reencontro unilateral. Fazia dois anos que ele partira e havia sido um alívio tão grande quando ele foi – ficaria livre da perturbação constante de Minya. Todos os dias – todos os dias – a garotinha pedia para saber sobre o que ele tinha sonhado, e o que Sarai tinha soltado sobre seu pai. Qualquer que fosse a resposta, ela nunca estava satisfeita. Minya queria que Sarai o visitasse com um cataclisma de pesadelos, que destruiria sua mente e o deixaria na escuridão para sempre. Ela queria que Sarai o deixasse louco.
O Matador de Deuses sempre foi uma ameaça para o grupo – a maior ameaça. Ele era o coração pulsante de Lamento, o libertador de seu povo e seu maior herói. Ninguém era mais amado ou possuía mais autoridade, e assim ninguém era mais perigoso que ele. Depois da revolta e da libertação, os humanos haviam se mantido muito ocupados. Afinal, tinham dois séculos de tirania para superar. Tiveram de criar um governo do nada, com leis e um sistema de justiça. Também foi preciso restaurar as defesas, a vida civil, a indústria, e pelo menos a esperança do comércio. Um exército, templos, guildas, escolas – foi preciso reconstruir tudo. Foi um trabalho de anos e, durante todo esse tempo, a cidadela esteve sobre suas cabeças, fora de alcance. As pessoas de Lamento não tiveram escolha a não ser trabalhar naquilo que podiam mudar e tolerar o que não podiam – ou seja, nunca sentir o sol no rosto, ensinar as constelações para seus filhos ou colher frutas de suas próprias árvores. Houve discussões sobre mudar a cidade para fora da sombra, começar de novo em outro lugar. Um local foi até mesmo escolhido rio abaixo, mas havia uma história tão profunda ali que era difícil apenas desistir. Essa terra havia sido conquistada para eles por anjos. Com sombra ou não, era sagrada.
Faltavam-lhes os recursos, então, para tomar a cidadela, mas nunca iriam tolerá-la para sempre. Eventualmente, sua determinação iria se concentrar lá em cima. O Matador de Deuses não desistiria.
“Se você não for o fim dele”, Minya dizia, “ele será o nosso”.
E Sarai havia sido a arma de Minya. Com o Massacre vermelho e sangrento em seus corações, ela tinha tentado seu melhor e feito seu pior. Por diversas noites havia coberto Eril-Fane de mariposas e soltado cada terror de seu arsenal. Ondas de horrores, fileiras de monstros. O corpo dele ficava rígido como uma tábua. Ela ouviu dentes quebrando com a força de sua mandíbula cerrada. Nunca havia visto olhos tão espremidos, parecendo que iam se romper. Mas ela não conseguia destruí-lo; não conseguia nem o fazer chorar. Eril-Fane tinha seu próprio arsenal de horrores; ele dificilmente precisava do dela. O medo era o menor deles. Sarai não tinha entendido antes que o medo podia ser um tormento menor. Era a vergonha que o dilacerava, o desespero. Não havia escuridão para a qual pudesse mandá-lo que rivalizasse com o que ele já passava. Ele tinha vivido três anos com Isagol, a Terrível, e sobrevivido a muita coisa para enlouquecer por causa de pesadelos.
Era estranho. Toda noite Sarai dividia sua mente em cem formas, suas mariposas carregando pedaços de sua consciência pela cidade, e quando voltavam para ela, ficava inteira novamente. Era fácil. Mas alguma coisa começou a acontecer na medida em que ela atormentava mais o seu pai – um tipo diferente de divisão dentro dela, e não era tão fácil de reconciliar com o fim da noite.
Para Minya, só existiria para sempre o Massacre. Mas, na verdade, havia muito mais. Havia o antes. Garotas roubadas, anos perdidos, pessoas destruídas. E sempre havia os deuses selvagens e impiedosos.
Isagol, alcançando sua alma e tocando suas emoções como a uma harpa.
Letha, varrendo sua mente, retirando memórias e as engolindo inteiras.
Skathis à porta, vindo buscar sua filha.
Skathis à porta, trazendo-a de volta.
A função do ódio, como Sarai entendia, era erradicar a compaixão – fechar uma porta no íntimo de alguém e esquecer que ela estava lá. Se você tivesse ódio, então podia ver o sofrimento – e causá-lo – e não sentir nada exceto, talvez, uma sórdida justificativa.
Mas em algum ponto... ali naquele quarto, Sarai pensou... ela tinha perdido essa capacidade. O ódio lhe faltara e era como perder um escudo em batalha. Uma vez que ele se foi, todo o sofrimento se levantou para esmagá-la. Era demais.
Foi quando seus pesadelos se voltaram contra ela que começou a precisar do lull.
Com uma respiração profunda, Sarai retirou uma mariposa do parapeito e esporeou-a para a frente, um único fragmento de escuridão despachado para o escuro. Naquela sentinela ela focou sua atenção, e era como se estivesse lá, flutuando a centímetros do ombro do Matador de Deuses.
Exceto...
Ela mal podia dizer qual sentido vibrou primeiro com um pequeno choque de diferença, mas logo entendeu:
Aquele não era o Matador de Deuses.
O tamanho não era o mesmo, nem o cheiro. Quem quer que fosse, era mais magro que Eril-Fane e não se afundava tão profundamente nas penas. À medida que ela se ajustou à escassa luz ambiente, foi capaz de ver os cabelos pretos derramados no travesseiro, mas pouco mais que isso.
Quem era esse, dormindo na cama do Matador de Deuses? Onde estava Eril-Fane? A curiosidade tomou conta de si, e ela fez algo que jamais consideraria em tempos normais. Quer dizer: em tempos de uma ruína menos iminente.
Havia uma glave no criado-mudo, com uma cobertura preta de tricô sobre ela. Sarai direcionou um grupo de mariposas para agarrar o tecido com suas minúsculas patas e afastá-lo o suficiente para descobrir um raio de luz. Se alguém testemunhasse as mariposas comportando-se de uma forma assim tão coordenada, ficaria desconfiado de que não fossem criaturas naturais. Mas esse medo parecia estranho para Sarai agora, comparado às suas outras preocupações. Com aquela pequena tarefa concluída, ela examinou o rosto que estava iluminado pela luz prateada da glave.
Viu um jovem com um nariz torto. As sobrancelhas eram pretas e pesadas e os olhos profundos. Suas maçãs do rosto eram altas e planas, e terminavam retas no maxilar, como um corte de machado. Nada de fineza, nada de elegância. E o nariz. Ele claramente tinha encontrado alguma violência, e emprestava um aspecto de violência ao todo. Seus cabelos eram grossos e escuros, e onde brilhava à luz da glave os reflexos eram de um vermelho quente, não de azul frio. Ele estava sem camisa, e embora quase todo coberto pela colcha, o braço que descansava sobre ela era magro e musculoso. Ele estava limpo, e devia ter se barbeado pela primeira vez em semanas, pois o maxilar e o queixo estavam mais pálidos do que o restante do rosto e quase lisos – daquele jeito que o rosto de um homem nunca é totalmente liso, mesmo depois de um encontro com uma lâmina perfeitamente afiada. Isso Sarai sabia após anos de pousar em rostos adormecidos, e não a partir de Feral que, embora tivesse começado a se barbear, podia passar dias sem que alguém percebesse. Mas não esse homem. Ele não tinha, como Feral, quase ultrapassado a linha para a vida adulta, mas sim a cruzado por completo: um homem em termos absolutos.
Ele não era bonito. Certamente não era uma peça de museu. Havia algo de bruto nele com aquele nariz quebrado, mas Sarai percebeu demorando-se mais na apreciação dele do que tinha se demorado nos outros, exceto pelo rapaz dourado. Porque ambos eram jovens, e ela não era tão imaculada a ponto de ser livre dos desejos que Rubi expressava tão abertamente, nem tão desapegada a ponto de a presença física de homens jovens não ter efeito sobre si. Ela era apenas discreta, como era discreta com muitas outras coisas.
Olhando para os cílios cerrados, ela se perguntou que cor eram seus olhos, e experienciou uma pontada de alienação, pelo fato de ser sua sina ver e nunca ser vista, passar em segredo pelas mentes dos outros e não deixar rastro de si, exceto o medo.
Ela olhou rapidamente para o céu, era melhor correr. Ela não teria tempo de ter uma impressão consistente desse rapaz, mas até mesmo uma pista de quem ele era poderia ser útil. Um estranho na casa de Eril-Fane. O que isso significava?
Ela conduziu uma mariposa para sua testa.
E, imediatamente, caiu em outro mundo.
27
OUTRO MUNDO
Cada mente é um mundo à parte. A maioria ocupa o vasto terreno intermediário daquilo que é comum, enquanto outras são mais distintas: agradáveis, até mesmo belas, ou, às vezes, escorregadias e inexplicavelmente erradas nos sentimentos. Sarai nem se lembrava de como era a sua antes de tê-la transformado no zoológico de terrores que era agora – sua própria mente era um lugar em que ela tinha medo de ficar depois de escurecer, por assim dizer, e tinha de se proteger dela tomando uma bebida que a amortecia com seu nada cinzento. Os sonhos do Matador de Deuses também eram um domínio de horrores, unicamente seus, enquanto os de Suheyla eram tão macios quanto um xale que protege uma criança do frio. Sarai havia invadido milhares de mentes – dezenas de milhares – e passara seus dedos invisíveis por incontáveis sonhos.
Mas ela nunca conhecera nada assim.
Ela piscou e olhou novamente.
Ali estava uma rua pavimentada de lápis-lazúli, as fachadas esculpidas de prédios erguendo-se de ambos os lados. E havia domos dourados, e o brilho da Cúspide a distância. Nos sonhos, a noite inteira Sarai havia residido em paisagens que lhe eram estranhas. Esta não era, e ainda assim era. Ela virou lentamente, absorvendo a curiosa familiaridade e a estranheza que era mais estranha a seu modo do que o completamente estrangeiro tinha sido. Sem dúvidas aquela era Lamento, mas não a Lamento que ela conhecia. O lápis-lazúli era mais azul, o ouro mais brilhante, as esculturas não eram familiares. Os domos – dos quais havia centenas em vez de meramente dezenas – não tinham o formato certo. Tampouco eram feitos com a folha dourada lisa que eram na realidade, mas tinham o padrão de escama de peixe de ouro mais escuro e mais brilhante, de forma que o sol não refletia meramente neles. Ele brincava. E dançava.
O sol.
O sol em Lamento.
Não havia cidadela, nem âncoras. Nada de mesarthium em nenhum lugar, e nenhum traço de melancolia persistente ou sugestão de amargura. Ela estava diante de uma versão de Lamento que existia apenas na mente desse sonhador.
Sarai não tinha como saber que aquela cidadela havia nascido de histórias contadas anos atrás por um monge senil, ou que havia sido alimentada desde então por toda fonte que Lazlo conseguia encontrar. Que ele sabia tudo o que era possível um estrangeiro saber sobre Lamento, e esta era a visão que ele construíra a partir de pedaços.
Sarai tinha entrado em uma ideia da cidade, e era a coisa mais maravilhosa que já vira. Ela dançava por seus sentidos da forma que o sol do sonho dançava sobre os domos. Cada cor era mais profunda, mais rica do que a real, e havia tantas cores. Se a tecedora do mundo tivesse guardado as pontas de cada fio que usara, sua cesta iria se parecer com isso. Havia toldos sobre as barracas do mercado, e fileiras de especiarias em forma de cones. Rosa e vermelho, escarlate e siena. Velhos sopravam fumaça colorida através de longas flautas pintadas, gravando o ar com música sem som. Açafrão e vermelho-alaranjado, púrpura e coral. De cada domo erguia-se uma espiral parecida com uma agulha, todas elas crepitando com bandeiras e interconectadas por fitas por meio das quais crianças corriam dando risada, vestidas com mantos de penas coloridas. Amora e amarelo-limão, verde-acinzentado e chocolate. Suas sombras acompanhavam seus passos lá embaixo de uma forma que nunca poderia acontecer na verdadeira Lamento, envolvida por uma única grande sombra. Os cidadãos imaginários vestiam trajes simples e adoráveis, as mulheres tinham cabelos longos que se arrastavam atrás delas, ou eram sustentados no ar por passarinhos que tinham seu próprio brilho colorido. Dente-de-leão e castanheira, tangerina e amarelo-dourado.
Nos muros cresciam trepadeiras, como devia ter sido antigamente, antes da sombra. Frutas brotavam, suculentas e brilhantes. Pôr do sol e cardo, verdete e violeta. O ar era fragrante com seu perfume de mel e com outro aroma, um que transportou Sarai de volta à infância.
Quando ela era pequena, antes que as despensas da cidadela fossem esvaziadas de provisões insubstituíveis como açúcar e farinha branca, Grande Ellen costumava fazer um bolo de aniversário todo ano: para compartilhar e fazer o açúcar e a farinha durarem pelo máximo possível. Sarai tinha oito anos quando ela fez o último. Os cinco o degustaram, fizeram uma brincadeira para comê-lo com uma lentidão excruciante, sabendo que era o último bolo que comeriam.
E aqui, nessa estranha e adorável Lamento, em que bolos descansavam no parapeito das janelas, com a cobertura brilhando com açúcar cristal e pétalas de flores, pessoas paravam para se servir de uma fatia deste ou daquele, e os moradores das casas entregavam xícaras pelas janelas, para que elas pudessem ter algo para ajudar a descer o bolo.
Sarai bebeu tudo aquilo até se embriagar. Esta era a segunda vez na noite que havia se surpreendido por uma completa dissonância entre um rosto e uma mente. A primeira fora com o faranji dourado. Por mais que seu rosto fosse fino, seus sonhos não eram. Eles eram tão apertados e sem ar quanto caixões. Ele mal podia respirar ou se mover neles, e ela tampouco. E agora isso, esse faranji com feições grosseiras com um ar de violência pôde dar-lhe entrada para tal reino de maravilhas.
Ela viu espectrais passando livres, lado a lado como casais saindo para passear, e outras criaturas que ela reconhecia ou não. Um ravide, com suas presas do tamanho de braços, decorado com colares de contas e borlas, levantou-se nas patas traseiras para lamber um bolo com sua língua longa e áspera. Ela viu um elegante centauro levando uma princesa sentada de lado na sela, e tal era a atmosfera de magia que o casal não estava deslocado ali. Ele virou sua cabeça e beijou a moça demoradamente, deixando as bochechas de Sarai vermelhas. E havia homenzinhos com pés de galinha, andando de costas para que suas pegadas apontassem para o caminho errado, e velhinhas andando por aí em gatos com selas, e garotos com chifres de bode tocando campainhas, e o farfalhar de asas delicadas, e mais coisas adoráveis para onde quer que ela olhasse. Ela estava dentro do sonho a menos de um minuto – indo e vindo duas meras vezes na mão do grande serafim – quando percebeu que tinha um sorriso no rosto.
Um sorriso.
Sorrisos eram raros, dada a natureza de seu trabalho, mas em uma noite como esta, com tantas descobertas, era impensável. Ela o desfez com a mão, envergonhada, e continuou andando. Então esse faranji era bom em sonhos? Grande coisa. Nada disso era útil para ela. Quem era esse sonhador? O que ele estava fazendo ali? Endurecendo-se diante do encantamento, analisou ao redor novamente e viu, à frente, a figura de um homem com longos cabelos pretos.
Era ele.
Isso era normal. As pessoas manifestam-se em seus próprios sonhos com frequência. Ele estava andando para longe dela, e ela se aproximou pela força de vontade – bastou desejar que logo estava bem atrás dele. Esse sonho podia ser especial, mas ainda assim era um sonho e, como tal, ela podia controlá-lo. Sarai podia, se assim quisesse, destruir toda a cor. Transformar tudo em sangue, destruir os domos, enviar as crianças vestidas com penas direto para a morte. Ela podia fazer o ravide domesticado com seus colares de contas e borlas destroçar as adoráveis mulheres de cabelos pretos e longos. Ela podia transformar tudo aquilo em um pesadelo. Esse era o seu dom perverso, muito perverso.
Entretanto, não fez nada disso. Não foi para isso que ela tinha vindo, mas mesmo que fosse, era impensável que destroçasse esse sonho. Não eram apenas as cores e as criaturas de contos de fadas, mas a magia. Não eram nem os bolos. Havia uma sensação ali... de doçura, e segurança, e Sarai desejou...
Ela desejou que fosse real e que pudesse viver ali. Se ravides pudessem andar lado a lado com homens e mulheres e até dividir os bolos, então, talvez, os filhos dos deuses também pudessem.
Real. Pensamento tolo, muito tolo. Aquela era a mente de um estrangeiro. Reais eram os outros quatro esperando por ela, agoniados e apreensivos. Real era a verdade que ela teria de lhes contar, e real era o brilho da aurora subindo no horizonte. Era hora de ir embora. Sarai reuniu suas mariposas. Aquelas empoleiradas na capa preta da glave a soltaram e deixaram que ela descesse novamente, engolindo a fatia de luz e devolvendo o sonhador à escuridão. Elas voaram até a janela e esperaram, mas a que estava na testa do jovem permaneceu. Sarai estava parada, pronta para retirá-la, mas hesitou. Ela estava em tantos lugares ao mesmo tempo; estava na parte plana da palma do serafim, descalça, estava flutuando na janela do quarto do Matador de Deuses, e estava pousada, leve como uma pétala, na testa do sonhador.
E ela estava dentro de seu sonho, parada bem atrás dele. Teve uma vontade inexplicável de ver o rosto do jovem, aqui no lugar que ele criara, com os olhos abertos.
Ele estendeu a mão para pegar uma fruta de uma das trepadeiras.
A mão de Sarai contraiu-se, também querendo uma. Querendo cinco, uma para cada um deles. Ela pensou na filha de deuses que podia trazer coisas dos sonhos e desejou que pudesse retornar com seus braços cheios de frutas. Um bolo equilibrado na cabeça. E montando no ravide domesticado que agora tinha glacê nos bigodes. Como se, com presentes e extravagâncias, ela pudesse amenizar o golpe das notícias.
Algumas crianças escalavam uma grade, e pararam para jogar mais frutas para o sonhador. Ele pegou as esferas amarelas e gritou “obrigado”.
O timbre de sua voz fez Sarai vibrar por dentro. Era profunda, grave e rouca – uma voz como fumaça de madeira, lâminas serrilhadas e botas pisando na neve. Apesar de toda a aspereza, havia também o mais terno tom de timidez na voz. “Eu acreditava quando era menino”, ele disse a um homem em pé ali perto. “Nas frutas de graça para pegar. Mas depois achei que era uma fantasia sonhada para crianças famintas”.
Com atraso, Sarai percebeu que ele estava falando a língua de Lamento. A noite inteira, em todos os sonhos dos estrangeiros, ela raramente tinha ouvido uma palavra que pudesse entender, mas este falava a língua sem nem mesmo um sotaque. Ela se movimentou para o lado, dando a volta para enfim encará-lo.
Ela se aproximou, estudando-o de perfil sem nem disfarçar, assim como alguém estuda uma estátua – ou como um fantasma pode estudar os vivos. No início da noite, ela havia feito a mesma coisa com o faranji dourado, parado bem ao lado do rapaz enquanto ele trabalhava furioso em um laboratório de chamas altas e vidro estilhaçado. Tudo era espinhoso, quente e cheio de perigo, e não importava quão belo ele fosse, ela estivera ansiosa para sair de lá.
Não havia perigo aqui, nem desejo de escapar. Ao contrário, ela fora atraída para mais perto. Uma década de invisibilidade tinha acabado com qualquer hesitação que ela pudesse sentir com uma observação tão flagrante. Notou que os olhos dele eram cinza e o sorriso tinha o mesmo sinal de timidez que a voz. E sim, havia a linha quebrada no nariz. E sim, o corte de suas bochechas até o queixo era abrupto. Mas, para sua surpresa, o rosto, acordado e animado, não transmitia nada da brutalidade que tivera na primeira impressão. Ao invés disso, era doce como o ar em seu sonho.
Ele virou a cabeça na direção dela, e Sarai estava tão acostumada ao seu próprio e intenso não-ser que nem se assustou, ela apenas encarou como uma oportunidade para vê-lo melhor. A menina tinha visto tantos olhos fechados e pálpebras tremendo com sonhos, e cílios agitando-se nas bochechas, que ficou paralisada com aqueles olhos abertos e tão próximos. Ela podia ver, nessa abundância de luz solar, os padrões da íris, que não eram de um cinza sólido, mas tinham filamentos de uma centena de tons de cinza, azul e pérola, e pareciam reflexos de luz oscilando na água, com o mais suave padrão de âmbar circundando as pupilas.
E... com o mesmo interesse que ela o fitava, ele olhava para... Não, não era para ela, pois só podia observar através dela. Ele tinha um ar de fascinação. Havia uma luz em seus olhos de absoluto encantamento. Um encantamento, pensou, e sofreu uma profunda fisgada de inveja de quem ou o quê estava atrás dela que o cativou tão completamente. Por apenas um momento, permitiu-se fingir que era ela. Que ele olhava para ela daquele jeito absorto.
Era apenas fingimento. Um instante de indulgência – como um fantasma que se coloca entre amantes para sentir como é estar vivo. Tudo isso aconteceu em segundos, três no máximo. Ela ficou quieta dentro daquele sonho extraordinário e fingiu que o sonhador estava cativado por ela. Sarai acompanhou o movimento das pupilas do rapaz, que pareciam acompanhar as linhas de seu rosto e a faixa preta que havia pintado nele. Elas desceram, para subir novamente de uma vez depois de ver sua forma vestida com uma camisola e sua pele azul chamativa. Ele corou e, em algum momento daqueles três segundos, deixou de ser um fingimento. Sarai também corou, dando um passo para trás ao perceber o olhar do sonhador a seguir.
Seus olhos a seguiram.
Não havia ninguém atrás dela. Não havia mais ninguém ali. O sonho inteiro se encolheu em uma esfera ao redor dos dois, e não podia haver dúvida de que o encantamento era por ela, ou que foi para ela que ele sussurrou, com vívido e gentil interesse: “Quem é você?”.
A realidade veio como um baque. Ela fora vista. Ela fora vista. Lá em cima na cidadela, Sarai deu um salto para trás e cortou a corda de sua consciência, soltando a mariposa e perdendo o sonho em um instante. Toda a atenção que havia derramado naquela única sentinela foi transferida para seu corpo físico, o que a fez tropeçar e cair de joelhos, sem fôlego.
Era impossível. Nos sonhos, ela era um fantasma. Ele não podia tê-la visto.
Mesmo assim não restava dúvida em sua mente que ele a vira.
Lá embaixo em Lamento, Lazlo acordou com um sobressalto e sentou-se na cama a tempo de testemunhar noventa e nove pedacinhos de escuridão saírem do parapeito da janela e explodirem no ar, onde, com um redemoinho frenético, foram sugadas para fora de vista.
Ele piscou. Tudo estava silencioso e parado. Escuro, também. Ele podia ter duvidado que tivesse visto qualquer coisa se, naquele momento, a centésima mariposa não tivesse saído de sua testa para cair morta em seu colo. Suavemente, ele a pegou na palma da mão. Era uma coisa delicada, com asas peludas da cor do entardecer.
Meio enroscado nos vestígios de seu sonho, Lazlo ainda via os grandes olhos azuis da bela garota azul, e ficou frustrado por ter acordado e a perdido tão abruptamente. Se pudesse voltar para o sonho, pensou, podia encontrá-la de novo? Ele colocou a mariposa morta no criado-mudo e adormeceu novamente.
E encontrou o sonho, mas não a garota. Ela havia desaparecido. Nos momentos seguintes o sol nasceu. Uma luz pálida penetrou na escuridão da cidadela e transformou a mariposa em fumaça sobre o criado-mudo.
Quando Lazlo acordou de novo, algumas horas mais tarde, havia esquecido ambas.
28
NÃO É JEITO DE VIVER
Sarai caiu de joelhos. Tudo o que via era a genuína atenção dos olhos do sonhador – sobre ela – enquanto Feral, Rubi e Pardal corriam pela porta do quarto, onde estavam observando e esperando.
– Sarai! Você está bem?
– O que houve? O que há de errado?
– Sarai!
Minya veio atrás deles, mas não correu para o lado de Sarai e ficou para trás, observando com interesse enquanto eles pegavam-na pelos cotovelos e a ajudavam a se levantar.
Sarai viu a aflição do grupo e controlou a sua, afastando o sonhador de sua mente – por ora. Ele a havia visto. O que isso queria dizer? Os outros estavam enchendo-a de perguntas – perguntas que ela não podia responder, porque suas mariposas ainda não haviam voltado. Os insetos estavam no céu agora, correndo contra o sol que se levantava. Se não chegassem a tempo, Sarai ficaria sem voz até escurecer e cem novas mariposas nascessem dentro dela. Ela não sabia por que aquilo era assim, mas era. Ela levou as mãos à garganta para que os outros entendessem, e fez um gesto para que saíssem e não vissem o que aconteceria a seguir. A garota odiava que alguém visse suas mariposas saindo ou chegando.
Mas o grupo apenas deu um passo atrás, demonstrando apreensão nos rostos, e tudo o que ela pôde fazer quando as mariposas apareceram na beirada do terraço foi virar-se para esconder o rosto enquanto abria a boca para deixá-las entrar.
Noventa e nove.
Em seu choque, ela havia cortado a conexão e deixado a mariposa na testa do sonhador. Seus corações ficaram desamparados. Ela procurou-a com a mente, tateando em busca do fio cortado, como se pudesse reviver a mariposa e atraí-la de volta para casa, entretanto, aquela sentinela estava para sempre perdida. Primeiro, Sarai fora vista por um humano e, então, havia deixado uma mariposa para trás como um cartão de visita. Será que ela estava acabada?
Como ele a havia visto?
Agora andava de cá para lá novamente, por força do hábito. Os outros chegaram ao seu lado, perguntando o que acontecera. Minya ainda ficou para trás, observando. Sarai chegou ao fim da palma do serafim, virou-se e parou. Não havia parapeito nesse terraço para prevenir que alguém caísse. Havia a curva sutil da mão em forma de concha – a carne de metal levantava-se sutilmente para formar uma espécie de grande tigela rasa impedindo andar além da beira. Mesmo quando estava mais distraída, os pés de Sarai registravam a elevação e sabiam ficar no centro plano da palma.
Agora o pânico dos outros a fez voltar a si mesma.
– Conte-nos, Sarai – disse Feral, com a voz firme para mostrar que ele podia aguentar. Rubi estava de um lado e Pardal do outro. Sarai absorveu a visão de suas faces. Ela tivera tão pouco tempo nos últimos anos para simplesmente estar com eles, uma vez que o grupo vivia durante o dia e ela, à noite, e compartilhavam uma refeição no meio disso. Não era jeito de viver. Mas... era a vida, e era tudo o que tinham.
Com um sussurro frágil, falou:
– Eles têm máquinas voadoras. – E observou, desolada, como a compreensão daquilo mudou os três rostos, afastando o último trapo desafiador de esperança, deixando nada além do desespero.
Ela se sentiu como filha de sua mãe.
As mãos de Pardal voaram para sua boca.
– Então acabou – falou Rubi. Eles nem mesmo questionaram. De alguma forma, durante a noite, haviam passado do pânico para a derrota.
Não Minya.
– Olhem para vocês – Minya disse, severa. – Eu juro, vocês parecem prontos para cair de joelhos e mostrar suas gargantas a eles.
Sarai virou-se para ela. O entusiasmo de Minya tinha se acendido. Isso a horrorizava.
– Como você pode estar feliz com isso?
– Tinha que acontecer, cedo ou tarde – foi sua resposta. – Melhor acabar logo com isso.
– Acabar logo? Com o quê, com as nossas vidas?
Minya riu, com escárnio.
– Só se vocês preferirem morrer a se defenderem. Não posso impedi-los caso estejam tão determinados a morrer, mas não é isso que eu vou fazer.
Um silêncio cresceu. Ocorreu a Sarai, e talvez aos outros três ao mesmo tempo que, no dia anterior, quando Minya havia zombado dos vários níveis de inutilidade de cada um em uma luta, ela não mencionou qual seria sua parte na batalha. Agora, diante do desespero, ela irradiava vivacidade. Entusiasmo. Era tão absolutamente errado que Sarai não conseguia entender.
– O que há de errado com você? – ela perguntou. – Por que está tão satisfeita?
– Achei que você nunca perguntaria – disse Minya, com um sorriso que mostrava todos os seus dentinhos. – Venham comigo, quero mostrar algo a vocês.
A casa do Matador de Deuses era um exemplo modesto do tradicional yeldez de Lamento, ou casa com pátio. De fora, apresentava uma fachada de pedra esculpida com um padrão de lagartos e romãs. A porta era sólida, pintada de verde e dava acesso a uma passagem direto para um pátio, que era aberto, cômodo central da casa, usado para cozinhar, comer e se reunir. O clima agradável de Lamento significava que a maior parte das atividades eram feitas ao ar livre. Também significava que, antigamente, o céu tinha sido seu teto, e agora era a cidadela. Apenas os quartos, banheiro e salão de inverno eram fechados. Tais cômodos cercavam o pátio em um U e abriam-se para ele com quatro portas verdes. A cozinha ficava abrigada em um caramanchão coberto, e uma pérgola em volta da área de jantar antes era coberta com vinhas que davam sombra. O local havia tido árvores e uma horta de temperos também, mas nada disso existia mais. Uma moita de arbustos desbotados havia sobrevivido, e havia alguns vasos de flores delicadas da floresta, que podiam crescer sem muito sol, mas que não eram condizentes com a imagem verdejante na mente de Lazlo.
Quando ele saiu do quarto pela manhã, encontrou Suheyla puxando uma armadilha para peixes do poço. Isso era menos estranho do que podia parecer e, na verdade, não era um poço, mas uma abertura até o rio que fluía por baixo da cidade.
O Uzumark não era um único grande canal subterrâneo, mas sim uma rede intrincada de cursos d’água que escavaram a rocha do vale. Quando a cidade fora construída, os brilhantes engenheiros adaptaram os canais para um sistema de encanamento natural. Alguns córregos eram para água fresca, outros para o descarte do lixo. Outros, mais largos, eram canais subterrâneos navegáveis por barcos longos e estreitos iluminados por glaves. De leste a oeste, não havia forma mais rápida de atravessar a longa oval da cidade do que pelos barcos subterrâneos. Havia até mesmo o rumor de um grande lago enterrado, mais profundo do que tudo, no qual um svytagor pré-histórico estava preso por conta de seu tamanho imenso e vivia como um peixe dourado em um aquário, alimentando-se de enguias que procriavam na água fria. Eles o chamavam de kalisma, que significava “deus das enguias”, uma vez que as enguias certamente o veriam dessa forma.
– Bom dia – anunciou Lazlo, saindo no pátio.
– Ah, você está acordado – respondeu Suheyla, alegre. Ela abriu a armadilha e os pequenos peixes brilharam, verdes e dourados, quando ela os jogou em um balde. – Dormiu bem, espero...
– Bem demais, e até muito tarde. Odeio ser um preguiçoso. Sinto muito.
– Bobagem. Se existe um dia para dormir demais, eu diria que é a manhã seguinte à travessia do Elmuthaleth. E meu filho ainda não apareceu, então você não perdeu nada.
Lazlo viu o café da manhã que estava posto na baixa mesa de pedra. Era quase igual ao jantar da noite anterior, o que fazia sentido, já que era a primeira oportunidade de Suheyla de alimentar Eril-Fane em mais de dois anos.
– Posso ajudá-la? – ele perguntou.
– Você coloca a tampa de volta no poço?
Ele fez o que ela pediu, então a seguiu até o fogo, onde observou enquanto ela limpava os peixes com movimentos certeiros de faca, submergia-os no óleo, cobria-os de temperos, e os colocava na grelha. Ele mal podia imaginar como ela poderia ser mais hábil com duas mãos do que já era com uma.
Ela o viu observando. Mais precisamente, viu ele desviar o olhar quando foi pego olhando. Levantando o toco liso e afilado do pulso, disse:
– Não ligo. Pode olhar.
Ele corou, envergonhado.
– Me desculpe.
– Vou estabelecer uma multa por pedidos de desculpa – ela disse. – Eu não quis mencionar na noite passada, mas hoje é o seu novo começo. Dez pratas toda vez que você se desculpar.
Lazlo riu e teve de morder a língua antes de se desculpar por pedir desculpas.
– Fui educado assim – explicou. – Não posso fazer nada.
– Aceito o desafio de reeducá-lo. Daqui em diante você só pode pedir desculpas se pisar no pé de alguém quando estiver dançando.
– Só assim? Eu nem danço.
– O quê? Bem, vamos cuidar disso também.
Ela virou o peixe na grelha. A fumaça tinha aroma de temperos.
– Passei toda a minha vida na companhia de homens velhos – Lazlo contou-lhe. – Se você espera me preparar para a sociedade, terá bastante trabalho em mãos...
As palavras saíram antes que ele pudesse considerá-las. Seu rosto corou e, se ela não levantasse o dedo, ele teria se desculpado novamente.
– Não diga! – a mulher ordenou. Seu ar era severo, mas seus olhos dançavam. – Você não deve ter medo de me ofender, meu jovem. Sou bastante resistente. Quanto a isso... – Ela levantou o punho. – Eu quase acho que eles me fizeram um favor. Dez parece um número muito grande de dedos. E muitas unhas para cortar!
Seu sorriso contagiou Lazlo, que sorriu também.
– Nunca pensei nisso. Sabe, há uma deusa com seis braços na mitologia Maialen. Pense nela.
– Pobre coitada. Mas essa deusa provavelmente tem sacerdotisas para cuidar dela.
– Isso é verdade.
Suheyla colocou o peixe cozido em um prato e lhe entregou, fazendo um gesto em direção à mesa. Ele o levou e encontrou um lugar para o prato. As palavras dela ficaram em sua mente: “quase acho que eles me fizeram um favor”. Quem eram eles?
– Desculpe, mas...
– Dez pratas.
– O quê?
– Você pediu desculpas de novo. Eu te alertei.
– Eu não pedi – Lazlo argumentou, rindo. – “Desculpe” é um imperativo. Eu ordeno que me desculpe. Não é, de forma alguma, um pedido de desculpas.
– Está bem – admitiu Suheyla –, mas da próxima vez, nada disso. Apenas pergunte.
– Está bem. Mas... deixa para lá. Não é da minha conta.
– Apenas pergunte.
– Você disse que eles lhe fizeram um favor. Eu estava apenas pensando a quem você se referiu.
– Ah. Bem, aos deuses.
Apesar da cidadela flutuando acima de suas cabeças, Lazlo ainda não tinha uma clara ideia de como fora a vida sob o domínio dos deuses.
– Eles... cortaram sua mão?
– Eu imagino que sim – disse ela. – Não me lembro. Eles podem ter feito com que eu mesma a cortasse. Tudo o que sei é que eu tinha duas mãos antes de eles me levarem, e apenas uma depois.
Tudo isso foi dito como uma conversa matutina trivial.
– Te levaram? – Lazlo repetiu. – Lá para cima?
Suheyla franziu a testa, como se estivesse perplexa com sua ignorância.
– Ele não te contou nada?
Lazlo entendeu que ela se referia a Eril-Fane.
– Até chegarmos ao topo da Cúspide ontem não sabíamos nem por que tínhamos vindo.
Ela ficou surpresa.
– Bom, vocês são criaturas crédulas, por virem até aqui por um mistério.
– Nada poderia ter me impedido de vir – Lazlo confessou. – Fui obcecado com o mistério de Lamento minha vida inteira.
– Verdade? Eu não fazia ideia de que o mundo se lembrava de nós.
A boca de Lazlo torceu-se para um lado.
– Na verdade, o mundo não se lembra. Apenas eu.
– Bom, isso demonstra caráter – afirmou Suheyla. – E o que você acha, agora que está aqui? – Enquanto falava, ela cortava frutas, e fez um gesto amplo com sua faca. – Está satisfeito com a resolução de seu mistério?
– Resolução? – ele repetiu, com uma risada impotente, e olhou para a cidadela. – Tenho cem vezes mais perguntas do que tinha ontem.
Suheyla seguiu seu olhar, mas assim que levantou os olhos, baixou-os novamente e estremeceu. Como os Tizerkane na Cúspide, ela não aguentava olhar para a cidadela.
– Isso é de se esperar, se meu filho não o preparou. – Ela pousou a faca e colocou as frutas cortadas em uma tigela, que passou para Lazlo. – Ele nunca conseguiu falar sobre isso. – Lazlo começou a levar a tigela à mesa quando ela acrescentou, em voz baixa: – Eles o levaram por mais tempo do que qualquer outra pessoa, sabe.
Ele virou-se para a mulher. Não, realmente ele não sabia. Também não tinha certeza de como expressar seus pensamentos em uma pergunta e, antes que pudesse, Suheyla, ocupando-se em limpar a tábua de cortar, continuou a falar baixinho:
– Eles levavam garotas, principalmente – explicou. – Criar uma garota em Lamento, e, bem, ser uma filha em Lamento era... muito difícil naquele tempo. Toda vez que o chão tremia, sabíamos que era Skathis chegando à porta. – Skathis. Ruza tinha falado esse nome. – Mas, às vezes, levavam nossos filhos também. – Ela passou o chá no coador.
– Eles levavam crianças?
– Os filhos são sempre crianças... mas, tecnicamente, ou fisicamente, pelo menos, Skathis esperava até que eles fossem... maiores.
Maiores.
Aquelas palavras. Lazlo engoliu uma sensação crescente de náusea. Aquelas palavras eram como... Como ver uma faca ensanguentada. Você não precisava ter testemunhado o esfaqueamento para entender o que ela significava.
– Eu me preocupava mais com Azareen do que com Eril-Fane. Para ela, era apenas uma questão de tempo. E os dois sabiam disso, é claro. Foi por isso que se casaram tão jovens. Ela... ela disse que queria ser dele antes de ser deles. E ela foi. Por cinco dias. Mas não foi ela que levaram. Foi ele. Bem. Eles a levaram depois.
Isso era... era terrível, tudo isso. Azareen. Eril-Fane. A natureza rotineira da atrocidade. Mas...
– Eles são casados? – foi o que Lazlo conseguiu perguntar.
– Oh! – Suheyla pareceu arrependida. – Você não sabia. Bem, nenhum segredo está a salvo comigo, não é?
– Mas por que deveria ser um segredo?
– Não é que seja um segredo – explicou, cuidadosamente. – É mais que... não é mais um casamento. Não depois... – Ela virou a cabeça para cima, mas sem olhar para a cidadela.
Lazlo não fez mais perguntas. Tudo o que perguntara sobre Eril-Fane e Azareen, assim como sobre os mistérios de Lamento, havia tomado um ar muito mais sombrio do que jamais poderia imaginar.
– Nós éramos levados para “servir” – Suheyla continuou, sua mudança de pronome lembrando-lhe de que ela própria fora uma das garotas raptadas. – Era como Skathis chamava. Ele chegava à porta ou à janela. – Sua mão tremeu, e ela apertou firme o coto. – Não haviam trazido nenhum criado com eles, então tinha isso. Servir à mesa ou nas cozinhas. E havia camareiras, jardineiros, lavadeiras.
Nessa ladainha havia ficado muito claro que esses trabalhos eram as exceções, e que o “serviço” era de outro tipo.
– É claro, nós não sabíamos de nada até que fosse tarde. Quando nos traziam de volta, cerca de um ano depois, não nos lembrávamos de nada. Mas nem sempre nos traziam. E então um ano era roubado de nós. – Ela baixou o coto, e sua mão moveu-se brevemente para a barriga. – Era como se o tempo não tivesse passado. Letha devorava nossas memórias, entende. – Ela olhou para Lazlo. – Ela era a deusa do oblívio.
Fazia sentido agora – um sentido horrível – o motivo pelo qual Suheyla não sabia o que acontecera com sua mão.
– E... Eril-Fane? – ele indagou, endurecendo-se.
Suheyla olhou para o bule de chá que estava enchendo com água quente da chaleira.
– O esquecimento era uma misericórdia, no fim das contas. Ele só se lembra de tudo porque os matou, e não havia ninguém para levar embora suas memórias.
Lazlo entendeu o que a mulher lhe contava, o que ela estava dizendo sem dizer, mas não parecia possível. Não Eril-Fane, que era o poder encarnado. Ele era um libertador, não um escravo.
– Três anos – disse Suheyla. – Foi esse o tempo que ela ficou com ele. Isagol. A deusa do desespero. – Seus olhos perderam o foco. Ela parecia ter entrado em um grande buraco dentro de si e sua voz transformou-se em um sussurro. – Contudo, se nunca o tivessem levado, ainda seríamos escravos.
Por aquele breve momento, Lazlo sentiu um tremor de pesar dentro da mulher: de que ela não havia sido capaz de manter seu filho em segurança. Aquele era um pesar simples e profundo, mas, debaixo dele, havia um sentimento mais profundo e estranho: de que precisava ficar feliz por aquilo, porque se ela tivesse mantido Eril-Fane em segurança, ele não teria salvado seu povo. Misturavam-se felicidade, pesar e culpa em uma fusão intolerável.
– Sinto muito – disse Lazlo, do fundo de seus dois corações.
Suheyla saiu do lugar longínquo e oco em que estava perdida. Seus olhos aguçaram-se com um sorriso.
– Rá! – disse ela. – Dez pratas, por favor. – E ela estendeu a palma da mão para ele colocar uma moeda nela.
29
OS OUTROS BEBÊS
Minya levou Sarai e os outros para dentro, através do quarto de Sarai, e de volta pelo corredor. Todos os quartos ficavam do lado direito da cidadela. A suíte de Sarai era na extremidade do braço direito do serafim, e as outras ficavam ao longo da mesma passagem, exceto a de Minya. O que antes era o palácio de Skathis ocupava o ombro direito inteiro, o qual atravessaram e, na entrada da galeria, Sarai e Feral trocaram um olhar.
As portas que levavam para cima ou para baixo, à cabeça ou ao corpo da cidadela, estavam fechadas, tal como estavam quando Skathis morreu. Não era possível discernir nem o lugar delas.
O braço sinistro – como era chamado – era acessível, embora o grupo raramente fosse lá. Ele abrigava o berçário, e nenhum deles podia aguentar a visão de berços vazios, mesmo que o sangue tivesse sido lavado há muito tempo. Havia um monte de quartinhos como celas, com nada além de camas. Sarai sabia o que eles eram. Ela os tinha visto em sonhos, mas só nos sonhos das garotas que os ocuparam por último – como Azareen –, cujas memórias haviam sobrevivido a Letha. Sarai não podia pensar em um motivo para Minya levá-los lá.
– Onde estamos indo? – Feral perguntou.
Minya não respondeu, mas eles tiveram a resposta no momento seguinte, quando ela virou em direção ao braço sinistro, mas para um lugar ao qual eles nunca iam – mesmo que por um motivo diferente.
– O coração – afirmou Rubi.
– Mas... – disse Pardal, então interrompeu-se com um olhar de entendimento.
Sarai podia adivinhar o que ela quase dissera e o que a havia impedido, porque a ideia lhe ocorreu no mesmo momento que ocorreu a Pardal. Mas nós não cabemos mais. Aquele foi o pensamento. Mas Minya cabe. Aquele era o entendimento. E Sarai soube então onde Minya vinha passando o tempo quando não a encontravam. Se eles quisessem mesmo saber, teriam descoberto facilmente, mas a verdade é que ficavam felizes quando a garotinha estava longe, então nunca se preocuparam em procurá-la.
Eles viraram uma esquina e chegaram à porta.
Ela não podia mais ser chamada de porta. Tinha menos de trinta centímetros de largura: uma abertura esguia e estreita no metal onde uma porta não havia se fechado completamente quando Skathis morreu. Pela sua altura, que era de cerca de seis metros, estava claro que não tinha sido uma porta comum, embora não houvesse forma de estimar qual era sua largura quando aberta.
Minya mal conseguia atravessar, tendo de passar um ombro primeiro, depois o rosto. Por um momento, pareceu que ela ficaria presa pelas orelhas, mas ela pressionou o rosto e as orelhas ficaram achatadas, e ela teve de mexer a cabeça de um lado para outro para passá-la, então exalar completamente para estreitar o peito o suficiente para o resto do corpo passar. Foi por pouco. Se fosse um pouquinho maior, não teria conseguido.
– Minya, você sabe que nós não conseguimos entrar – Pardal falou enquanto a garotinha desaparecia no corredor do outro lado.
– Esperem aí – ela respondeu, e sumiu.
Eles olharam uns para os outros.
– O que ela quer nos mostrar aqui? – Sarai indagou.
– Será que ela encontrou alguma coisa no coração? – Feral se perguntou.
– Se houvesse algo para encontrar, teríamos encontrado anos atrás.
Antigamente, todos haviam sido pequenos o bastante para entrar.
– Quanto tempo faz? – Feral perguntou, deslizando a mão pela beirada lisa da abertura.
– Mais tempo para você do que para nós – disse Pardal.
– Essa sua cabeça grande – acrescentou Rubi, empurrando-o de leve.
Feral tinha crescido primeiro, depois Sarai, e as garotas um ano ou mais depois. Minya, obviamente, nunca cresceu. Quando eram pequenos, aquele era seu lugar favorito para brincar, em parte porque a abertura estreita o fazia parecer proibido, e em parte porque era muito estranho.
Era uma câmara enorme, perfeitamente esférica, de metal liso e curvo, com uma passagem estreita em volta da circunferência. Em diâmetro devia ter cerca de trinta metros, e suspensa no centro havia uma esfera menor de talvez seis metros de diâmetro, que também era perfeitamente lisa e, como a cidadela inteira, ela flutuava, sustentada no lugar não por cordas ou correntes, mas por uma força insondável. A câmara ocupava o lugar onde os corações ficariam em um corpo de verdade, então era assim que eles a chamavam, mas aquele era apenas o termo que usavam. Eles não tinham ideia de qual tinha sido seu nome ou propósito. Mesmo Grande Ellen não sabia. Era apenas uma grande bola de metal flutuando em uma sala maior de metal.
Ah, e havia monstros empoleirados nas paredes. Dois deles.
Sarai sabia das bestas das âncoras, Rasalas e as outras, pois as tinha visto com seus olhos de mariposa, inertes como eram agora, mas também as tinha visto como eram antes, através dos sonhos das pessoas de Lamento. Em seu arsenal havia um número aparentemente infinito de visões de Skathis montado em Rasalas, carregando mulheres e homens, não mais velhos do que ela era agora. Aquele era seu horror mais frequente, a pior memória coletiva de Lamento. A garota estremeceu em pensar quão displicentemente havia sofrido aquilo, não compreendendo, quando criança, o que ele significava. As bestas das âncoras eram grandes, mas os monstros empoleirados como estátuas nas paredes do coração da cidadela eram maiores.
Eram parecidos com vespas, tórax e abdômen unidos por cinturas finas, asas como lâminas, e ferrões mais longos do que um braço de criança. Sarai e os outros haviam cavalgado neles quando crianças, fingindo que eram reais, mas, se no reino dos deuses os monstros haviam sido algo além de estátuas, Sarai não tinha visões para comprovar. Tinha certeza que as criaturas nunca deixaram a cidadela. Pelo seu tamanho, era difícil imaginá-los saindo daquela sala.
– Lá vem ela – disse Rubi, que estivera espiando o corredor escuro através da abertura. Ela saiu da frente, mas a figura que emergiu de lá não era Minya. Ele não teve de parar e cuidadosamente espremer seu corpo pela abertura, apenas fluiu para fora com a facilidade de um fantasma, o que ele era.
Era Ari-Eil. Ele planou sem olhar o grupo e foi seguido por outro fantasma. Sarai piscou. Esse era familiar, mas ela não sabia de onde, e então ele passou por ela, que não teve tempo de procurar em sua memória porque outro já estava vindo atrás dele.
E mais outro.
E mais outro.
... tantos!
Fantasmas derramaram-se do coração da cidadela, um após o outro, passando pelos quatro sem manifestar-se, e indo reto pelo longo corredor sem portas que levava à galeria e ao terraço do jardim e seus quartos. Sarai se viu prensada contra a parede, tentando compreender esse fluxo de rostos, e eram todos familiares, mas não tão familiares quanto seriam se ela os houvesse visto recentemente.
O que ela não tinha.
Ela fitou um rosto, depois outro. Eram homens, mulheres e crianças, embora a maioria fossem velhos. Nomes começaram a lhe ocorrer. Thann, sacerdotisa de Thakra. Mazli, morta no parto de gêmeos, que também morreram. Guldan, a mestra das tatuagens, a velha que era famosa na cidade por desenhar a elilith mais bela. Todas as garotas queriam que ela fizesse a sua. Sarai não se lembrava exatamente quando ela havia morrido, mas fora com certeza antes de sua primeira menstruação, porque sua reação ao descobrir sobre a morte da velha havia sido muito tola. Fora de desapontamento, por Guldan não poder desenhar a sua elilith quando chegasse o momento. Como se tal coisa fosse acontecer. Que idade ela tinha, doze? Treze? Atrás de suas pálpebras fechadas, ela imaginou a pele de sua barriga parda em vez de azul, decorada com os floreios delicados da velha. E, sim, o corar de vergonha que acompanhava aquela imagem. De ter esquecido, mesmo por um instante, quem ela era.
Como se um humano fosse tocá-la um dia por qualquer motivo que não para matá-la.
Pelo menos quatro anos tinham se passado desde então. Quatro anos. Então como Guldan podia estar ali naquele momento? Era o mesmo com os outros. E havia tantos deles. Todos olhavam para a frente, inexpressivos, mas Sarai viu o apelo desesperado em mais de um par de olhos à medida que passavam. Eles se moviam com a facilidade de fantasmas, mas também com uma intenção severa, marcial, como soldados.
A compreensão veio lentamente e depois de uma só vez. As mãos de Sarai cobriram sua boca. Ambas as mãos, como se segurasse um gemido. Todo esse tempo. Como isso era possível? Lágrimas brotaram em seus olhos. Tantos deles. Tantos!
Tudo, ela pensou. Cada homem, mulher e criança que tinham morrido em Lamento desde... desde quando...? E passado perto o bastante da cidadela em sua jornada evanescente para Minya capturá-los. Fazia dez anos que Pardal e Rubi cresceram demais para entrar no coração. Foi então que ela começou esta... coleção?
– Oh, Minya – Sarai se exasperou, com a profundidade de seu horror.
Sua mente buscou outra explicação, mas não havia nenhuma. Havia apenas esta: por anos, sem que o restante deles soubesse, Minya vinha capturando fantasmas e... guardando-os. Armazenando-os. O coração da cidadela, aquela grande câmara esférica onde apenas Minya podia entrar, havia servido, todo esse tempo como um... cofre. Um armário. Uma caixa-forte.
Para um exército de mortos.
Por fim, Minya saiu, espremendo-se lentamente pela passagem e olhando desafiadoramente para Sarai e Feral, Pardal e Rubi, todos atordoados e sem palavras. A procissão de fantasmas desapareceu virando a esquina.
– Oh, Minya – falou Sarai. – O que você fez?
– O que você quer dizer com o que eu fiz? Você não vê? Nós estamos seguros. Deixe que o Matador de Deuses venha, e todos os seus novos amigos também. Eu os ensinarei o significado de massacre.
Sarai sentiu o sangue deixar seu rosto. Será que ela achava que eles ainda não sabiam?
– Você, entre todas as pessoas, já deve ter tido massacre suficiente na vida.
Minya eterna, Minya imutável. De igual para igual, ela olhou para Sarai:
– Você está errada. Eu terei o bastante quando der o troco.
Um tremor passou por Sarai. Será que isso era um pesadelo? Um pesadelo acordado, talvez. Sua mente havia enfim se partido e todos os terrores estavam derramando-se dela.
Mas não. Isso era real. Minya forçaria uma década de mortos da cidade a lutar contra e matar seus próprios amigos e parentes. Ela se deu conta com uma onda de náusea que errara, todos esses anos, em esconder sua empatia pelos humanos e tudo o que eles passaram. A princípio, ela ficara envergonhada e com medo de que fosse uma fraqueza sua ser incapaz de odiá-los como deveria. Ela imaginava palavras saindo de sua boca, como eles não são monstros, sabe, e imaginava qual seria a resposta de Minya: diga isso aos outros bebês.
Os outros bebês.
Isso era tudo o que ela tinha a dizer. Nada podia superar o Massacre. Argumentar a favor de qualquer qualidade redentora nas pessoas que o tinham cometido era uma espécie de traição. Mas agora Sarai pensou que deveria ter tentado. Em sua covardia, havia deixado os outros com uma simples convicção: eles tinham um inimigo. Eles eram um inimigo. O mundo era um massacre. Ou você o sofria ou o infligia. Se ela tivesse contado o que viu nas memórias tortas de Lamento, e o que ela sentiu e ouviu – o choro convulsivo de pais que não podiam proteger suas filhas, o horror das garotas que voltavam sem memória e corpos violados –, talvez eles tivessem visto que os humanos também eram sobreviventes.
– Deve haver alguma outra forma – Sarai afirmou.
– E se houvesse? – desafiou Minya, fria. – E se houvesse outra forma, mas você fosse patética demais para fazer?
Sarai arrepiou-se com o insulto, depois encolheu-se. Patética demais para fazer o quê? Ela não queria saber, mas tinha de perguntar.
– Do que você está falando?
Minya a considerou, então balançou a cabeça.
– Não, tenho certeza. Você é patética demais. Você nos deixaria morrer primeiro.
– O quê, Minya? – Sarai insistiu.
– Bem, você é a única de nós que pode ir para a cidade – disse a menina. Ela era, de fato, uma criança bonita, mas era difícil fitá-la, não tanto porque fosse desleixada, mas por causa do vazio estranho e frio de seus olhos. Será que ela sempre fora assim? Sarai se lembrava de rir com ela, há muito tempo, quando todos eram crianças. Quando foi que ela mudou e se tornou... isso? – Você não conseguiu enlouquecer o Matador de Deuses – ela estava dizendo.
– Ele é muito forte – Sarai protestou. Mesmo agora ela não conseguia sugerir, nem mesmo para si mesma, que talvez ele não merecesse a loucura.
– Ah, ele é forte – concordou Minya –, mas suponho que nem o grande Matador de Deuses poderia suportar respirar se uma centena de mariposas voassem para dentro de sua garganta.
Se uma centena de mariposas voassem para dentro...
Sarai apenas a encarou. Minya riu com o choque dela. Será que ela entendia o que estava dizendo? Claro que sim, apenas não se importava. As mariposas não eram... Não eram trapos de pano. Também não eram nem mesmo insetos treinados. Elas eram Sarai. Eram sua própria consciência prolongada por meio de longos cordões invisíveis. O que elas experienciavam, ela experienciava, fosse o calor da testa de um sonhador ou a obstrução vermelha e úmida da garganta de um homem sufocando.
– E de manhã – Minya continuou –, quando ele fosse encontrado morto em sua cama, as mariposas voltariam a ser fumaça, e ninguém saberia o que o matou.
Ela estava triunfante – uma criança satisfeita com um plano brilhante.
– Você só poderia matar uma pessoa por noite, eu imagino. Talvez duas. Eu me pergunto quantas mariposas seriam necessárias para sufocar alguém. – Ela deu de ombros. – De qualquer forma, depois que alguns faranji morressem sem explicação, acho que os outros perderiam a coragem. – Ela sorriu, levantando a cabeça. – Bem, eu estava certa? Você é patética demais? Ou pode suportar alguns minutos de asco para salvar nós todos?
Sarai abriu a boca e a fechou. Alguns minutos de asco? Quão trivial ela fazia isso soar.
– Não é o asco – ela disse. – Deus me livre que um estômago forte seja a única coisa que separe matar de não matar. Há a decência, Minya. Misericórdia.
– Decência – a garota cuspiu. – Misericórdia.
A forma como ela disse aquilo. A palavra não tinha lugar na cidadela dos Mesarthim. Seus olhos escureceram como se suas pupilas tivessem engolido suas íris, e Sarai sentiu ela chegar, a resposta que não tolerava argumentação: Diga isso aos outros bebês.
Mas não foi isso que Minya disse.
– Você me dá náusea, Sarai. Você é tão gentil. – E então ela disse palavras que nunca havia dito, não em todos aqueles quinze anos. Em um sussurro baixo e mortal, soltou: – Eu devia ter salvado outro bebê. – Então virou-se e foi atrás de seu terrível exército sofrido.
Sarai sentiu-se estapeada. Rubi, Pardal e Feral a cercaram.
– Estou contente que ela a tenha salvado – falou Pardal, acariciando seus braços e cabelos.
– Eu também – ecoou Rubi.
Mas Sarai estava imaginando um berçário cheio de filhos de deuses – meninas e meninos com pele azul e magia ainda não descoberta – e humanos no meio deles com facas de cozinha. De certa forma, Minya havia livrado os quatro disso. Sarai sempre sentiu o estreito golpe de sorte – como um machado passando perto o bastante para cortar as pontas de suas bochechas – por Minya tê-la salvado. De que ela tinha sobrevivido em vez de um dos outros.
E, antigamente, sobreviver se parecia com um fim. Mas agora... começava a parecer uma vantagem sem objetivo.
Sobreviver para quê?
30
NOME ROUBADO, CÉU ROUBADO
Lazlo não ficou na casa de Suheyla para o café da manhã. Ele achou que mãe e filho gostariam de um tempo sozinhos depois de dois anos de separação. Ele esperou para encontrar Eril-Fane – e tentou guardar seu novo conhecimento em silêncio em seus olhos quando o encontrou. Era difícil; o horror parecia gritar dentro de si. Tudo sobre o herói parecia diferente agora que sabia dessa pequena lasca de informação sobre o que o homem havia passado.
Ele colocou a sela em Lixxa e cavalgou por Lamento, perdendo-se agradavelmente.
– Você parece bem descansada – disse a Calixte, que estava comendo na sala de jantar da câmara quando ele finalmente a encontrou.
– Você não – ela respondeu. – Esqueceu de dormir?
– Como ousa? – provocou, suavemente, sentando-se à mesa. – Você está sugerindo que não estou com perfeito frescor?
– Eu nunca seria tão mal-educada a ponto de sugerir um frescor imperfeito. – Ela deu uma mordida grande em um doce. – Contudo – disse com a boca cheia –, você está cultivando manchas azuis debaixo dos olhos. Então, a menos que tenha recebido socos muito simétricos, aposto que não dormiu o suficiente. Além disso, com o estado de deslumbramento extático em que você estava ontem, não esperava que você fosse capaz de sentar quieto, quanto menos dormir.
– Em primeiro lugar: quem iria me dar um soco? Em segundo lugar: deslumbramento extático. Falou bem.
– Em primeiro lugar: Thyon Nero adoraria socar você. Em segundo lugar: obrigada.
– Ah, ele – disse Lazlo. Podia ter sido uma brincadeira, mas a animosidade do afilhado dourado era palpável. Os outros a sentiam, mesmo que não tivessem ideia do que estava por trás dela. – Entretanto, acho que ele é o único.
Calixte suspirou.
– Você é tão ingênuo, Estranho. Se eles não queriam antes, agora todos eles querem socá-lo por causa da bolsa das teorias. Drave especialmente. Você devia ouvi-lo falando. Ele colocou muitas pratas lá dentro, o tolo. Acho que ele pensou que era uma loteria e, se fizesse mais apostas, seria mais provável ganhar. Enquanto você fez uma só – uma aposta ridícula – e ganhou. Estou abismada de ele não o ter socado ainda.
– Thakra me salvou da bolsa das teorias – disse Lazlo, displicentemente invocando a divindade local, Thakra. Ela era a comandante dos seis serafins, de acordo com a lenda e com o livro sagrado, e seu templo ficava atravessando uma ampla avenida na frente da câmara.
– Salvá-lo de quinhentas pratas? – perguntou Calixte. – Acho que posso ajudá-lo com isso.
– Obrigado, acho que eu me viro – disse Lazlo, que, na verdade, não tinha ideia de onde começar com tanto dinheiro. – Mas como me salvará de explosionistas rancorosos e alquimistas com má vontade?
– Eu vou. Não se preocupe. É culpa minha e assumo total responsabilidade por você.
Lazlo riu. Calixte era magra como um hreshtek, mas bem menos perigosa do que um. Ainda assim, ele não a via como inofensiva, mas sabia que ele era, apesar das aulas de Ruza quanto a atirar lanças.
– Obrigado. Se eu for atacado, vou gritar histericamente e você pode ir me salvar.
– Vou enviar Tzara – disse Calixte. – Ela é magnífica quando luta. – Então acrescentou, com um sorriso secreto: – Embora ela seja ainda mais magnífica fazendo outras coisas.
Calixte não estava errada em chamar Lazlo de ingênuo, mas, mesmo que coisas como amantes fossem remotas para ele, o rapaz entendeu o sorriso e o tom afetuoso em sua voz. Suas bochechas coraram, para o prazer dela.
– Estranho, você está ruborizando.
– Claro que estou – ele admitiu. – Sou um perfeito inocente. Eu ficaria vermelho ao ver a clavícula de uma mulher.
Enquanto ele disse aquilo, uma quase memória cutucou sua mente. As clavículas de uma mulher, e o maravilhoso espaço entre elas. Mas onde ele teria visto isso...? E, então, Calixte puxou sua blusa para o lado a fim de revelar a própria clavícula, e Lazlo riu, perdendo a memória.
– Bom trabalho desnudando o rosto, a propósito – ela disse, balançando os dedos sob o queixo para indicar a barba de Lazlo. – Eu me esqueci de como era aí debaixo.
Ele sorriu.
– Ah. Bem, desculpe lembrá-la, mas estava coçando.
– O que você quer dizer com essas desculpas? Você tem um rosto excelente! – a moça respondeu, examinando-o. – Não é bonito, mas há outras formas de um rosto ser excelente.
Ele tocou no ângulo pronunciado de seu nariz.
– Eu tenho um rosto – era o máximo que ele estava disposto a dizer.
– Lazlo – chamou Eril-Fane do outro lado da sala –, reúna todos, está bem?
Lazlo assentiu e levantou-se.
– Considere-se reunida – ele informou Calixte, antes de ir procurar o resto da equipe.
– Grite se precisar que eu o salve – a moça respondeu.
– Sempre.
Havia chegado a hora de discutir o “problema” de Lamento pra valer. Lazlo já sabia um pouco por meio de Ruza e Suheyla, mas os outros estavam ouvindo pela primeira vez.
– Nossa esperança ao trazê-los aqui – explicou Eril-Fane, dirigindo-se a eles no belo salão da câmara – é de que vocês encontrem uma forma de nos libertar daquela coisa no nosso céu. – Ele olhou de um rosto para o outro, e Lazlo se lembrou daquele dia no teatro da Grande Biblioteca, quando o olhar do Matador de Deuses recaíra sobre ele, e seu sonho havia assumido uma nova clareza: não só ver a Cidade Perdida, mas ajudá-la.
– Um dia já fomos uma cidade de conhecimento – continuou Eril-Fane. – Nossos ancestrais nunca tiveram que buscar forasteiros para pedir ajuda – falou com um tom de vergonha. – Mas isso está no passado. Os Mesarthim, eles eram... notáveis. Deuses ou outra coisa, eles poderiam ter cuidado do nosso medo e o transformado em reverência, conquistando uma verdadeira idolatria. Mas cuidar não era o jeito deles. Eles não vieram para oferecer-se como uma escolha ou ganhar nossos corações. Eles vieram para dominar, total e brutalmente, e a primeira coisa que fizeram foi nos quebrar.
– Antes mesmo de se apresentarem, soltaram as âncoras. Vocês as viram. Eles não as derrubaram. O impacto teria levado abaixo todas as estruturas da cidade e arruinado os canais subterrâneos, represando o Uzumark que corre sob nossos pés e inundando todo o vale. Eles queriam nos governar, não nos destruir, e nos escravizar, não nos massacrar, então deliberadamente colocaram as âncoras e esmagaram apenas o que estava debaixo delas, incluindo a universidade e a biblioteca, a guarnição dos Tizerkane e o palácio real.
Eril-Fane havia mencionado a biblioteca antes. Lazlo se perguntou sobre ela, e que textos preciosos se perderam junto. Será que havia histórias sobre a época dos ijji e dos serafins?
– Foi tudo terrivelmente organizado. Exército, guardiães da sabedoria e família real obliterados em minutos. Qualquer um que tenha escapado foi encontrado nos dias seguintes. Os Mesarthim sabiam tudo. Nenhum segredo podia ser escondido deles. E isso era tudo. Eles não precisavam de soldados, quando tinham sua mágica para... – Ele fez uma pausa, cerrando os dentes. – Para nos controlar. E, então, nosso conhecimento se perdeu, junto com nossa liderança e muitas outras coisas. Uma cadeia de conhecimento passado ao longo de séculos, e uma biblioteca para fazer inveja até mesmo a sua grande Zosma. – Aqui ele sorriu levemente para Lazlo. – Desaparecidos em um instante. Acabados. Nos anos que se seguiram, a busca do conhecimento foi punida. Toda ciência e investigação morreram. O que nos traz a vocês – ele disse aos delegados. – Espero ter escolhido bem.
Agora, finalmente, suas variadas áreas de expertise faziam sentido. Mouzaive, o filósofo natural: para o mistério da suspensão da cidadela. Como ela flutuava? Soulzeren e Ozwin para chegar a ela em seus trenós de seda. Os engenheiros para projetar quaisquer estruturas que fossem necessárias. Belabra para os cálculos. Os gêmeos Fellering e Thyon por causa do metal.
Mesarthium. Eril-Fane explicou-lhes suas propriedades – sua impenetrabilidade a tudo, ao calor, a todas as ferramentas. Tudo, quer dizer, exceto por Skathis, que o manipulava com a mente.
– Skathis controlava o mesarthium – explicou – e assim controlava... tudo.
Metal mágico telepaticamente moldado por um deus e impenetrável a tudo. Lazlo observou as reações dos delegados e podia entender sua incredulidade, certamente, mas havia uma grande instigação ali para acreditar no inacreditável. Ele acreditara que aquele ceticismo automático havia cedido com a visão do enorme serafim flutuando no céu.
– Certamente ele pode ser cortado – afirmou um dos Fellerings. – Com os instrumentos certos e o conhecimento.
– Ou fundido, com calor suficiente – acrescentou o outro, com uma confiança que esbarrava na arrogância. – As temperaturas que podemos atingir com nossas caldeiras são facilmente o dobro do que os seus ferreiros podem alcançar.
Thyon, por sua vez, não disse nada, e havia mais arrogância em seu silêncio do que na fanfarrice dos Fellerings. Seu convite para a delegação estava claro agora. O azoth não era apenas um meio de fazer ouro, na verdade. Ele também produzia o alkahest, o solvente universal – um agente capaz de dissolver qualquer substância no mundo: vidro, pedra, metal e até diamante. Será que o mesarthium também se dissolveria?
Se sim, então ele bem podia ser o segundo libertador de Lamento. Que honra para sua fama, Lazlo pensou, com uma pontada de mágoa: Thyon Nero, o libertador da sombra.
– Por que não vamos até lá? – sugeriu Eril-Fane, diante da incredulidade de seus convidados. – Eu os apresentarei ao mesarthium. É um bom ponto de partida.
A âncora do norte era a mais próxima, perto o suficiente para ir andando até ela – e a caminhada os levou pela faixa de luz chamada de Avenida, embora não fosse uma avenida. Era o único lugar em que a luz do sol incidia sobre a cidade, passando pelo vão onde as asas do serafim uniam-se na frente e não se encontravam direito.
Era ampla como uma avenida e atravessá-la quase fazia parecer que alguém havia passado do crepúsculo para o dia e de volta à escuridão em alguns passos. Ela percorria metade da extensão da cidade e se tornara terreno mais cobiçado, muito embora a maior parte da luz incidisse sobre bairros mais humildes. Havia luz, e aquilo era tudo. Nessa única faixa banhada de sol, Lamento era tão verde quanto Lazlo sempre tinha imaginado e, em contraste, o restante da cidade parecia mais morto.
As asas nem sempre haviam sido estendidas como estavam agora, Eril-Fane explicou a Lazlo.
– Foi o ato de morte de Skathis: roubar o céu, como se já não tivesse roubado o bastante. – Ele olhou para a cidadela lá em cima, mas não por muito tempo.
E não só o céu fora roubado naquele dia, Lazlo ficou sabendo, descobrindo, enfim, a resposta para a pergunta que o tinha assombrado desde que era criança.
Que poder é capaz de aniquilar um nome?
– Foi Letha – Eril-Fane contou. Lazlo já conhecia o nome: deusa do oblívio, mestra do esquecimento. – Ela o comeu. Engoliu-o enquanto morria, e ele morreu com ela.
– Vocês não podiam renomeá-la? – Lazlo perguntou.
– Você acha que não tentamos? A maldição é muito poderosa. Todo nome que damos sofre o mesmo destino que o primeiro. Apenas Lamento permanece.
Nome roubado. Céu roubado. Filhos roubados. Anos roubados. O que os Mesarthim foram, Lazlo pensou, foram ladrões em uma escala épica.
A âncora dominava a paisagem, uma grande massa desajeitada atrás das silhuetas dos domos. Ela fazia todo o resto parecer pequeno, como um pequeno vilarejo de brinquedo construído para crianças. E no topo estava uma das estátuas que Lazlo não conseguia distinguir claramente, fora o fato de parecer bestial – com chifres e asas. Viu Eril-Fane olhando-a também, estremecer e desviar o olhar.
Os dois se aproximaram do muro proibitivo de metal azul, e seus reflexos deram um passo à frente para encontrá-los. Havia algo no metal, de perto – o volume, o brilho, a cor, uma estranheza indefinível –, que provocou um silêncio à medida que estenderam as mãos com vários graus de cautela para tocá-lo.
Os Fellerings haviam trazido uma maleta de instrumentos e começaram a trabalhar imediatamente. Thyon distanciou-se dos outros para examinar à sua própria maneira, com Drave o seguindo, oferecendo-se para segurar sua mochila.
– É liso – atestou Calixte, correndo as mãos pela superfície. – Parece molhado, mas não é.
– Você nunca vai escalar isso – disse Ebliz Tod, tocando-o.
– Quer apostar? – ela retrucou, com o brilho do desafio nos olhos.
– Cem pratas.
Calixte ridicularizou-o.
– Prata. Que chatice.
– Sabe como resolvemos as disputas em Thanagost? – indagou Soulzeren. – Roleta de veneno. Distribua uma rodada de tragos e misture veneno de serpaise em um deles. Você descobrirá que perdeu quando morrer sufocado.
– Você é louca – disse Calixte, admirada. Ela olhou para Tod. – Acho que Eril-Fane pode querê-lo vivo.
– Pode? – Tod indignou-se. – Você que é a pessoa descartável aqui.
– Você é desagradável, não? – ela retrucou. – Pois lhe digo, se eu ganhar, você terá que construir uma torre para mim.
Ele riu alto.
– Construo torres para reis, não para garotinhas.
– Você constrói torres para os cadáveres dos reis – ela respondeu. – E se tem tanta certeza de que não consigo escalar, onde está o risco? Não estou pedindo por uma Espiral de Nuvem. Pode ser uma torre pequena. Não vou precisar de um túmulo mesmo. Por mais que eu mereça a veneração eterna, pretendo nunca morrer.
– Boa sorte com isso – disse Tod. – E se eu ganhar?
– Hummm... – ela ponderou, batendo o dedo no queixo. – O que diz de uma esmeralda?
Ele a observou, impassivo.
– Você não escapou com nenhuma esmeralda.
– Ah, talvez você esteja certo – ela sorriu. – O que eu saberia sobre isso?
– Me mostre, então.
– Se eu perder, mostrarei. Mas se eu ganhar, você só terá que se perguntar se tenho mesmo ou não.
Tod considerou por um momento, seu rosto carrancudo e calculista.
– Sem corda – ele estipulou.
– Sem corda – ela concordou.
Ele tocou o metal novamente, avaliando quão liso era. Ele deve ter reforçado sua certeza de que era impossível escalar, porque aceitou os termos de Calixte. Uma torre contra uma esmeralda. Aposta justa.
Lazlo foi até onde o muro estava livre e passou a mão pela superfície. Como Calixte havia dito, era liso, não meramente polido. E duro e frio, como é de se esperar de um metal à sombra, e sua pele deslizou sem nenhum tipo de fricção. Ele esfregou as pontas dos dedos e continuou pela extensão da âncora. Mesarthium, Mesarthim. Metal mágico, deuses mágicos. De onde eles teriam vindo?
Do mesmo lugar que os serafins? “Eles vieram dos céus”, dizia o mito – ou a história, se de fato tudo fosse verdade. E de onde antes disso? O que havia além do céu?
Será que vieram do grande todo negro cheio de estrelas que era o universo?
Os “mistérios de Lamento” não eram mistérios de Lamento, Lazlo pensou. Eles eram bem maiores do que este lugar. Maiores do que o mundo.
Chegando à esquina da âncora, ele espiou do outro lado e viu uma viela que se dissolvia em pedregulhos. Aventurou-se por ela, ainda esfregando a mão no mesarthium. Olhando para a ponta de seus dedos, percebeu que estavam de um cinza pálido. Ele os esfregou na camisa, mas a cor não saiu.
Do lado oposto ao muro de metal havia uma fileira de casas destruídas, ainda de pé como estavam antes da âncora, mas com as paredes laterais retiradas, como casas de boneca, abertas de um lado. Eram casas de bonecas decrépitas. Ele pôde ver dentro de antigas salas e cozinhas, e imaginar as pessoas que tinham vivido lá no dia em que seu mundo mudou.
Lazlo se perguntou o que estava debaixo dessa âncora. A biblioteca, o palácio ou a guarnição? Os ossos esmagados de reis, guerreiros ou guardiães do conhecimento? Era possível que algum livro tenha sobrevivido intacto?
Seus olhos notaram um trecho de cor à frente. Estava em um muro abandonado de pedra diante do muro de mesarthium, e a viela era estreita demais para Lazlo vê-lo a distância. Só quando se aproximou pôde decifrar que era uma pintura, e só quando estava de frente para o quadro conseguiu ver o que ela retratava.
Ele olhou para ela. E olhou. O choque geralmente chega como um golpe, repentino e inesperado. Mas, nesse caso, tomou conta dele lentamente, à medida que compreendeu a imagem e lembrou-se do que havia, até aquele momento, esquecido.
Só podia ser uma imagem dos Mesarthim. Havia seis deles: três mulheres de um lado, três homens do outro. Todos estavam mortos ou morrendo – espetados, retalhados ou esquartejados. E entre eles, inequivocamente, grandioso, e com seis braços para segurar seis armas, estava o Matador de Deuses. A imagem era grosseira. Quem quer que tivesse feito a pintura não era um artista treinado, mas havia uma intensidade bruta nela que era muito poderosa. Essa era uma pintura de vitória. Era brutal, sangrenta e triunfante.
O motivo do choque de Lazlo não era a violência dela – o sangue espirrando ou a quantidade de tinta vermelha usada para ilustrá-lo. Não havia sido o vermelho que chamou a sua atenção, mas o azul.
Em todas as conversas sobre os Mesarthim até então, ninguém pareceu achar importante mencionar que – se esse mural estivesse correto – eles tinham sido azuis. Assim como seu metal.
E da mesma forma que a garota no sonho de Lazlo.
Como ele podia tê-la esquecido? Foi como se ela tivesse entrado atrás de uma cortina em sua mente e, quando viu o mural, a cortina caiu e ela estava lá: a garota com a pele da cor do céu, que tinha ficado tão perto dele, estudando-o como se ele fosse uma pintura. Até as clavículas eram dela – a coceirinha em sua memória, de onde ele olhou para baixo no sonho e corou ao ver mais da anatomia feminina do que já vira na vida real. O que o fato de ter sonhado com uma garota com roupas de baixo dizia sobre ele?
Mas ela não estava aqui nem lá. Ali estava ela, no mural. Grosseiro como era, sem capturar o que havia de adorável nela, era uma semelhança inequívoca, desde o cabelo – o rico vermelho-escuro do mel de flores silvestres – até a severa faixa pintada sobre os olhos como uma máscara. Diferente da garota em seu sonho, contudo, esta estava usando um vestido.
Além disso... sua garganta estava aberta e esguichando sangue.
Ele deu um passo para trás, sentindo-se nauseado, como se estivesse observando um corpo real e não a retratação de uma garota assassinada que ele viu em um sonho.
– Tudo bem aí?
Lazlo olhou em volta. Era Eril-Fane na entrada da viela. Dois braços, não seis. Duas espadas, e não um arsenal pessoal de lanças e alabardas. Essa pintura, grosseira e ensanguentada, acrescentava ainda outra dimensão à ideia que Lazlo fazia dele. O Matador de Deuses havia matado deuses. Bem, é claro. Mas Lazlo nunca tinha, de fato, formado uma imagem para corresponder à ideia antes, ou se tinha, era uma imagem vaga, e as vítimas eram monstruosas. Não de olhos arregalados e descalças, como a garota em seu sonho.
– Era assim que eles eram? – ele indagou.
Eril-Fane veio olhar. Seus passos desaceleraram quando percebeu o que o mural retratava. Ele apenas assentiu, sem desviar o olhar dele.
– Eles eram azuis – disse Lazlo.
Mais uma vez, Eril-Fane assentiu.
Lazlo olhou para a deusa com a máscara preta pintada, e imaginou, interposta sobre os traços grosseiramente desenhados, os traços delicados que vira na noite anterior.
– Quem é ela?
Eril-Fane levou um momento para responder, e sua voz, quando respondeu, era rouca e quase baixa demais para ouvir.
– Essa é Isagol. Deusa do desespero.
Então esta era ela, o monstro que o havia mantido por três anos na cidadela. Havia tanto sentimento na forma como ele pronunciara seu nome, e era difícil entender porque não era... puro. Era ódio, mas havia tristeza e vergonha misturados também. Lazlo tentou olhar para seu rosto, mas o homem já estava se afastando. Ele observou-o partir e analisou uma última vez a pintura assustadora antes de segui-lo. Observou as manchas, linhas e riachos de vermelho, e este mais novo mistério não era um caminho de linhas iluminadas em sua mente. Era mais como pegadas sangrentas levando para a escuridão.
Como era possível, perguntou-se, que ele tivesse sonhado com a deusa assassinada antes de saber qual era sua aparência?
31
AMORES E VÍBORAS
Do coração da cidadela, Sarai retornou ao seu quarto. Os “soldados” de Minya estavam por toda parte armados com facas, cutelos, picadores de gelo. Eles até tiraram os ganchos de metal da sala da chuva. Em algum lugar havia um arsenal de verdade, mas ele estava fechado atrás de uma sucessão de portas de mesarthium seladas e, de qualquer forma, Minya achava que as facas eram armas apropriadas para uma carnificina. Afinal, eram elas que os humanos haviam usado no berçário.
Não tinha como escapar do exército, principalmente para Sarai, uma vez que seu quarto era voltado para a palma azul-prateada do serafim, iluminada pelo sol. Os fantasmas estavam lá em grande número, e isso fazia sentido, pois o terraço era o lugar perfeito para um veículo pousar, muito melhor do que o jardim com suas árvores e vinhas. Quando o Matador de Deuses viesse, ele chegaria por ali e Sarai seria a primeira a morrer.
Será que ela deveria então agradecer a Minya por sua proteção?
– Vocês não veem? – Minya havia dito, revelando-lhes seu exército. – Estamos seguros!
Entretanto, Sarai nunca se sentira tão desprotegida. Seu quarto fora violado por fantasmas prisioneiros e ela temia que, ao cair no sono, o que a esperava fosse ainda pior. Sua bandeja estava aos pés da cama: lull e ameixas, como em todas as manhãs, embora normalmente nesse horário já estivesse dormindo profundamente e perdida no esquecimento de Letha. Será que o lull funcionaria hoje? Havia meia dose extra, como Grande Ellen havia prometido. Será que tinha sido apenas um acaso no dia anterior?, Sarai se perguntou. Por favor, desejou, desesperada pelo veludo triste do seu vazio. Terrores se agitavam dentro de si e imaginou que podia ouvir um ruído de gritos impotentes nas cabeças de todos os fantasmas. Ela também queria gritar. Não havia sensação de segurança, pensou, abraçando um travesseiro contra o peito.
Sua mente lhe ofereceu uma exceção improvável.
O sonho do faranji. Ela tinha se sentido segura lá.
A memória despertou um silvo desesperado de... pânico? Excitação? Seja lá o que fosse, ela contradizia a própria sensação de segurança que tinha conjurado o pensamento nele para começo de conversa. Sim, o sonho tinha sido doce, mas... ele a havia visto.
O olhar em seu rosto! A admiração, o encantamento. Seus corações aceleraram com o pensamento e suas mãos ficaram úmidas. Não era algo pequeno viver uma vida de não existência e, de repente, ser vista.
Quem era ele, afinal? De todos os sonhos dos faranji, apenas o dele não dera nenhuma pista do motivo pelo qual Eril-Fane o havia levado para lá.
Exausta, amedrontada, Sarai bebeu seu lull e deitou-se na cama. Por favor, pediu, fervorosa – uma espécie de oração para a bebida amarga. Por favor, funcione.
Por favor, afaste os pesadelos.
Lá fora, em seu jardim, Pardal estava com os olhos baixos. Desde que se concentrasse nas folhas e botões, caules e sementes, podia fingir que era um dia normal e que não havia fantasmas fazendo a guarda sob a arcada.
Ela estava fazendo um presente de aniversário para Rubi, que faria dezesseis anos em alguns meses... caso ainda estivessem vivos.
Considerando o exército de Minya, Pardal achou que as chances deles eram boas, mas ela não queria ter de considerar o exército de Minya. Ele a fazia se sentir segura e infeliz ao mesmo tempo, então ela mantinha os olhos baixos e cantarolava, tentando esquecer que eles estavam lá.
Outro aniversário para celebrar sem bolo. As opções para presentes também eram poucas. Normalmente, as garotas desfaziam algum dos horríveis vestidos de seus guarda-roupas e o transformavam em outra coisa. Talvez um cachecol. Um ano, Pardal havia feito uma boneca com rubis de verdade no lugar dos olhos. Seu quarto tinha sido de Korako, então ela tinha todos os vestidos e joias dela para usar, enquanto Rubi tinha os de Letha. As deusas não eram suas mães, como Isagol era de Sarai. As duas eram filhas de Ikirok, deus da folia, que também servira como carrasco em seu tempo livre. Então, elas eram meias-irmãs e as únicas dos cinco que eram parentes de sangue. Feral era filho de Vanth, deus das tempestades – cujo dom ele tinha mais ou menos herdado – e Minya era filha de Skathis. Sarai era a única cujo sangue dos Mesarthim vinha do lado materno. Era raro as deusas darem à luz, de acordo com a Grande Ellen. Uma mulher só podia ter um bebê por vez, ocasionalmente dois. Mas os homens eram capazes de fecundar quantas mulheres quisessem, contanto que houvesse mulheres.
De longe, a maioria dos bebês do berçário tinha sido fecundada em garotas humanas pela trindade de deuses.
O que significava que, em algum lugar de Lamento, Pardal tinha uma mãe.
Quando ela era pequena, demorou para entender ou acreditar que sua mãe não a queria.
– Eu poderia ajudá-la no jardim – ela disse a Grande Ellen. – Eu poderia ser de grande ajuda, sei que poderia.
– Também sei que você poderia, querida – respondeu Grande Ellen –, mas precisamos de você aqui. Como poderíamos viver sem você?
Ela tentou ser gentil, mas Minya não sofria de tal compunção.
– Se a encontrassem no jardim deles, lhe dariam um golpe na cabeça com a enxada e a jogariam fora junto com o lixo. Você é cria de deuses, Pardal. Eles nunca irão querê-la.
– Mas também sou humana – a garota insistiu. – Será que eles podem ter esquecido disso? De que somos seus filhos também?
– Você não entende? Eles nos odeiam mais porque somos deles.
E Pardal não entendia, não na época, mas enfim aprendeu – a partir de uma grosseira e inacreditável afirmação de Minya, seguida de uma explicação gentil e esclarecedora de Grande Ellen – a... mecânica da procriação, e isso mudou tudo. Ela sabia agora qual deveria ter sido a natureza de sua própria concepção e embora o conhecimento fosse uma coisa obscura e vaga, sentiu o horror disso como o peso de um corpo indesejado, o que lhe deu um nó na garganta. É claro que nenhuma mãe iria querê-la, não depois de um começo como esse.
Ela se perguntou quantos dos fantasmas do exército de Minya tinham sido usados assim pelos deuses. Havia muitas mulheres e a maioria era mais velha. Quantas teriam parido bebês dos quais não se lembravam nem desejavam se lembrar?
Pardal manteve os olhos em suas mãos e trabalhou no seu presente, cantarolando baixinho para si mesma. Tentou não pensar se todos ainda estariam vivos no aniversário de Rubi ou que tipo de vida teriam caso estivessem. Ela focou em suas mãos e na sensação calmante de crescimento fluindo delas. Ela estava fazendo um bolo de flores. Ah, não era nada que pudessem comer, mas era bonito e a lembrava do passado, quando ainda havia açúcar na cidadela e alguma medida de inocência também, antes de ela entender sua própria atrocidade.
O bolo tinha até botões de bastão-do-imperador no lugar de velas: dezesseis deles. Ela o daria a Rubi no jantar, pensou. Ela poderia acendê-los com o próprio fogo, fazer um pedido e soprá-los.
Feral estava em seu quarto, olhando para o seu livro. Ele virou as páginas de metal e traçou os símbolos angulares e ásperos com a ponta do dedo.
Se fosse necessário, era capaz de replicar o livro inteiro de cor – de tão bem que o conhecia. Mas isso não adiantava muito, uma vez que não conseguia extrair nenhum significado daquilo. Às vezes, quando se concentrava demais nos símbolos, seus olhos perdiam o foco e então tinha a sensação de que podia ver dentro do metal e sentir um potencial pulsante e dormente. Como um cata-vento esperando por uma rajada para girá-lo. Esperando e desejando que ela viesse.
O livro queria ser lido, Feral pensava. Mas qual era a natureza da rajada capaz de mover esses símbolos? Ele não sabia. Só sabia – ou, pelo menos, suspeitava fortemente – que, se pudesse ler esse alfabeto críptico, poderia descobrir os segredos da cidadela. Poderia proteger as garotas, em vez de meramente... bem, mantê-las hidratadas.
Ele sabia que a água não era uma questão irrelevante e que todos teriam morrido sem seu dom, então ele não tendia a se remoer muito por não ter o poder de Skathis. Esse remorso, em particular, era de Minya, mas às vezes ele também caía vítima desse anseio. É claro, se pudessem controlar o mesarthium, estariam livres e salvos, sem mencionar que seriam indestrutíveis. Mas ninguém o controlava e era inútil perder tempo desejando-o.
Contudo, Feral tinha certeza que se pudesse desvendar o livro, poderia fazer... alguma coisa.
– O que você está fazendo aí? – a voz de Rubi veio da porta.
Ele olhou para cima e fez uma carranca quando viu que ela tinha colocado a cabeça para dentro.
– Respeite a cortina – ele disse, e voltou os olhos ao seu livro.
Mas Rubi não respeitou a cortina. Ela simplesmente rodopiou em seus pés descalços azuis, arqueados e expressivos. Suas unhas dos pés estavam pintadas de vermelho e ela estava vestindo vermelho, estava também com uma expressão determinada que o teria alarmado caso o garoto a tivesse olhado – o que ele não fez. Ele se retesou um pouco. Isso foi tudo.
Ela fez uma carranca por cima de sua cabeça baixa, como ele tinha feito para ela na porta. Era um começo nada promissor. Livro estúpido, ela pensou. Livro estúpido.
Mas ele era o único garoto. Tinha lábios mais quentes do que os fantasmas. Tudo mais quente, ela supunha. Mais importante, Feral não tinha medo dela, o que devia ser mais divertido do que se encostar em um fantasma meio paralisado e dizer-lhe o que fazer a cada poucos segundos. Coloque suas mãos aqui. Agora aqui.
Tão chato.
– O que você quer, Rubi? – perguntou Feral.
Ela estava perto dele agora.
– O lance dos experimentos – explicou ela – é que eles precisam ser repetidos ou então não valem nada.
– O quê? Que experimento? – Ele se virou para ela. Sua testa estava franzida: meio pela confusão, meio pela irritação.
– Beijar – a garota respondeu. Ela tinha dito antes: “esse é um experimento que não vou repetir”. Pois bem. À luz de sua aceleração em direção à ruína, ela tinha reconsiderado.
Ele não.
– Não – ele disse, seco, e virou-se novamente.
– É possível que eu estivesse errada – a garota explicou, com um ar de grande generosidade. – Decidi lhe dar uma nova chance.
Cheio de sarcasmo:
– Obrigado pela generosidade, mas eu dispenso.
A mão de Rubi desceu sobre o livro.
– Escute. – Ela empurrou o livro e sentou-se na beirada da mesa. Sua camisola subiu nas coxas, a pele tão lisa e sem atrito quanto o mesarthium, ou quase.
Contudo, muito mais macia.
Ela apoiou os pés na beirada da cadeira.
– Provavelmente nós vamos morrer – ela disse, em um tom prático. – E, de qualquer forma, mesmo que não morramos, estamos aqui. Estamos vivos. Temos corpos. Bocas. – Ela fez uma pausa e acrescentou, provocativa, passando-a entre os dentes: – Línguas.
Feral corou.
– Rubi... – ele começou a dizer em um tom de rejeição.
Ela o interrompeu.
– Não tem muita coisa para fazer aqui em cima. Não há nada para ler. – Ela apontou para o livro dele. – A comida é ruim. Não tem música. Nós inventamos oito mil jogos e já enjoamos de todos eles. Por que não inventar outra coisa? – sua voz estava ficando rouca. – Não somos mais crianças e temos lábios. Não é motivo suficiente?
Uma voz na cabeça de Feral garantiu-lhe que aquilo não era motivo suficiente. Que ele não queria mais experimentar a saliva de Rubi. Que ele não queria, na verdade, passar mais tempo com ela do que já passava. Podia até mesmo ter uma voz lá em algum lugar ressaltando que se ele tivesse de... passar mais tempo... com uma das garotas, não seria com ela. Quando ele brincou com Sarai sobre casar-se com todas elas, fingiu que não era algo sobre o qual pensasse muito, mas ele pensava. Como não? Ele era um garoto preso com garotas, elas podiam ter sido como irmãs, mas não eram irmãs, e elas eram... bem, elas eram bem bonitas. Sarai primeiro, depois Pardal, se ele tivesse de escolher. Rubi seria a última.
Mas aquela voz parecia vir de muito longe e Sarai e Pardal não estavam lá naquele momento, enquanto Rubi estava muito perto e cheirava tão bem.
E, como ela disse, provavelmente todos iriam morrer.
A bainha de sua camisola era fascinante. Seda vermelha e pele azul contrastavam, as cores pareciam vibrar. E a forma como os joelhos dela estavam unidos, um por cima do outro só um pouquinho e a sensação do pé dela roçando debaixo do seu joelho. Ele não podia deixar de achar os argumentos dela... atraentes.
A garota inclinou-se para a frente, só um pouquinho. Todos os pensamentos sobre Sarai e Pardal desapareceram.
Ele se inclinou para trás o mesmo tanto.
– Você disse que eu era terrível – ele a lembrou, sua própria voz tão rouca quanto a dela.
– E você disse que eu te afoguei – ela respondeu, aproximando-se um pouco mais.
– Tinha mesmo muita saliva – ele observou. Talvez imprudentemente.
– E você foi tão sensual quanto um peixe morto – ela retrucou, sua expressão se fechando.
A situação ficou delicada por um momento. “Meus amores, minhas víboras”, Grande Ellen os havia chamado. Bem, eles eram todos amores e víboras, todos eles. Ou, talvez Minya fosse toda víbora e Pardal fosse toda amor, mas o resto deles era apenas... Era apenas corpo e espírito, juventude e magia, desejo e sim, saliva, tudo isso sufocado, sem lugar para sair. Massacre atrás deles, massacre à frente, e fantasmas por toda parte.
Mas ali, de repente, havia uma distração, fuga, novidade, sensação. O movimento dos joelhos de Rubi era uma espécie de poesia azul e, quando se está tão perto assim de alguém, não vê seus movimentos tanto quanto sente a compressão do ar entre vocês. O roçar da pele, o deslizar. Rubi se moveu e com um simples serpentear furtivo sentou-se no colo de Feral. Seus lábios encontraram os dele. Ela não era nada sutil com a língua. Suas mãos entraram para a festa, pareciam dezenas delas em vez de quatro, e também havia palavras, porque Rubi e Feral ainda não haviam aprendido que não é realmente possível conversar e beijar ao mesmo tempo.
Então levou um momento para acertar isso.
– Acho que vou te dar uma outra chance – admitiu Feral, sem fôlego.
– Sou eu que estou te dando outra chance – Rubi corrigiu, um fio da saliva mencionada brilhando entre seus lábios quando ela se afastou para falar.
– Como vou saber se você não vai me queimar? – Feral perguntou, enquanto deslizava sua mão pelo quadril dela.
– Ah – disse Rubi, despreocupada –, isso só aconteceria se eu perdesse completamente o controle. – Línguas movendo-se com ímpeto, colidindo. – Você teria que ser muito bom. – Dentes batendo. Narizes também. – Não estou preocupada.
Feral quase se ofendeu, mas havia muitas coisas agradáveis acontecendo, então ele aprendeu a segurar a língua, ou melhor, a empregá-la em um propósito mais interessante do que discutir.
Você pode pensar que lábios e línguas ficam sem coisas para experimentar, mas isso não acontece.
– Coloque sua mão aqui – sussurrou Rubi, e ele obedeceu. – Agora aqui – ela ordenou, e ele não colocou. Para satisfação dela, as mãos de Feral tinham uma centena de ideias próprias, e nenhuma delas era entediante.
O coração da cidadela estava vazio de fantasmas. Pela primeira vez em uma década, Minya o tinha para si. Ela se sentou na passagem que dava a volta na circunferência da grande sala esférica, com as pernas penduradas para fora – pernas magras e curtas. Elas não estavam balançando. Não havia nada infantil ou despreocupado na pose. Havia uma escassez de vida na pose, exceto por um sutil movimento para frente e para trás. A garotinha estava rígida, com olhos abertos e expressão impassível. As costas estavam eretas e as mão sujas estavam tão cerradas que os nós dos dedos pareciam prestes a rachar.
Seus lábios estavam se movendo. Muito pouco. Ela sussurrava alguma coisa, repetidamente. Ela havia voltado no tempo quinze anos, vendo essa sala de uma forma diferente.
O dia. O dia em que foi eternamente espetada, como uma mariposa presa pelo tórax com um longo e brilhante alfinete.
Naquele dia, ela havia pegado dois bebês e os segurado apenas com um braço. Ela não tinha gostado disso, tampouco seu braço, mas precisava do outro para arrastar as crianças pequenas: as duas mãozinhas delas presas à sua, molhadas e escorregadias de suor. Dois bebês em um braço, duas crianças tropeçando atrás dela.
Ela os tinha levado para lá, enfiado-os pelo vão da porta quase fechada e virado para correr e resgatar mais. Mas não havia mais crianças. Ela estava no meio do caminho para o berçário quando os gritos começaram.
Às vezes, sentia como se tivesse congelado por dentro no momento em que parou ao som daqueles gritos.
Na época, ela era a criança mais velha do berçário. Kiska, que podia ler mentes, tinha sido a última levada por Korako, para nunca mais voltar. Antes dela havia Werran, cujo grito semeava o pânico nas mentes de quem ouvia. Quanto a Minya, ela sabia qual era seu dom, pois o conhecia havia meses, mas não o estava demonstrando. Uma vez que descobrissem, levariam-na para longe, então ela guardou o segredo da deusa dos segredos e ficou no berçário pelo maior tempo possível. E, assim, ela ainda estava lá no dia em que os humanos se levantaram e mataram seus mestres. Isso não teria problema para ela – que não tinha amor pelos deuses –, caso tivessem parado por aí.
Ela ainda estava no corredor, ouvindo os gritos e seu terrível minguar sangrento. Ela sempre estaria lá e seus braços sempre seriam pequenos demais, assim como tinham sido naquele dia.
Contudo, de forma crucial, ela era diferente. Nunca permitiria a fraqueza ou a delicadeza novamente, ou que o medo ou a incapacidade a mantivesse congelada. Ela ainda não sabia do que era capaz. Seu dom não havia sido testado. É claro. Se ela o testasse, Korako a teria encontrado e levado-a embora. E, então, ela não conheceria a força de seu poder.
Ela poderia ter salvado a todos, se soubesse.
Houve tanta morte na cidadela naquele dia. Ela poderia ter se ligado àqueles fantasmas – até aos fantasmas dos deuses. Imagine.
Imagine.
Ela podia ter se ligado aos próprios deuses e colocado-os a seu serviço, Skathis também. Se ela soubesse o que fazer. Então, podia ter construído um exército e aniquilado o Matador de Deuses e todos os outros antes que chegassem ao berçário.
Em vez disso, ela salvou quatro crianças e, assim, ficou para sempre presa naquele corredor, ouvindo aqueles gritos serem silenciados um a um.
Sem fazer nada.
Seus lábios ainda estavam se movendo, sussurrando as mesmas palavras sem parar.
– Elas foram tudo o que consegui carregar. Elas foram tudo o que consegui carregar.
Não havia eco, nenhuma reverberação. A sala engolia os sons. Engoliu sua voz, suas palavras e suas desculpas eternas e inadequadas. Mas não suas memórias.
Ela nunca se livraria delas.
– Elas foram tudo o que consegui carregar.
– Elas foram tudo o que consegui carregar...
32
O ESPAÇO ENTRE OS PESADELOS
Sarai acordou engasgando com a sensação de uma centena de mariposas úmidas se espremendo em sua garganta. Foi tão real, tão real. Ela, de fato, acreditou que eram suas mariposas, que as havia engolido, nauseantes e vivas. Havia um gosto de sal e de fuligem – sal das lágrimas dos sonhadores, fuligem das chaminés de Lamento – e mesmo depois que recuperou o fôlego e percebeu que era um pesadelo, ainda podia sentir o gosto.
Obrigada, Minya, por esse horror novo em folha.
Não fora o primeiro horror do dia. Nem perto disso. Sua oração para o lull não fora atendida. A garota mal havia dormido por uma hora e o pouco sono que teve foi longe de ser revigorante. Sonhara com a própria morte de meia dúzia de maneiras diferentes, como se sua mente estivesse fazendo uma lista de alternativas. Um menu, por assim dizer, de formas de morrer.
Envenenamento.
Afogamento.
Queda.
Esfaqueamento.
Espancamento.
A garota havia até mesmo sido queimada viva pelos cidadãos de Lamento. E entre as mortes, ela era... o quê? Era uma garota em uma floresta escura que tinha ouvido um galho quebrar. O espaço entre os pesadelos era como o silêncio após a quebra, quando você sabe que seja lá quem tenha feito o ruído, está parado e o observando no escuro. Não havia mais o nada cinzento. A névoa do lull se dissolvera.
Todos os seus terrores estavam livres.
Ela se deitou de costas, seus lençóis chutados para longe, e olhou para o teto. O corpo estava exausto, a mente adormecida. Como o lull podia ter simplesmente parado de funcionar? No seu pulso havia uma cadência de pânico.
O que deveria fazer agora?
A sede e a vontade de ir ao banheiro a levaram a se levantar, mas a perspectiva de deixar a cama era desencorajadora. Sabia o que encontraria logo ali, mesmo dentro de seu próprio quarto:
Fantasmas com facas nas mãos.
Igual às velhas senhoras que a cercaram na cama, desesperadas com a incapacidade de matá-la.
Enfim levantou-se. Vestiu um robe e o que esperava que se passasse por dignidade e emergiu. Lá estavam eles, enfileirados entre a porta para a passagem e a porta que dava para o terraço: oito deles lá dentro; ela não podia ter certeza de quantos estavam fora na mão do serafim. Ela se endureceu e atravessou seu quarto.
Minya, ao que parecia, estava prendendo seu exército com tal controle que eles não podiam formar expressões faciais como a aversão ou o medo, que Sarai conhecia tão bem, mas os olhos permaneciam deles e era incrível ver o quanto podiam transmitir apenas com isso. Havia aversão e medo, sim, enquanto Sarai passou por eles, mas o que mais viu ali foram pedidos de socorro.
Ajude-nos.
Liberte-nos.
Não posso ajudar vocês, ela queria dizer, mas o nó na garganta era maior do que apenas uma falsa sensação de mariposas, era o conflito que a dividia ao meio. Esses fantasmas a matariam em um minuto se estivessem livres. Ela não deveria querer ajudá-los. O que havia de errado com ela?
Sarai evitou os olhares e passou rápido, sentindo que ainda estava presa em um pesadelo. Quem, ela se perguntava, quem vai me ajudar?
Não havia ninguém na galeria, exceto Minya. Bem, Minya e os fantasmas que agora preenchiam a arcada, esmagando as vinhas de Pardal debaixo de seus pés mortos. Ari-Eil estava parado em alerta atrás da cadeira de Minya, parecendo um belo serviçal, exceto por suas feições. Minya tinha deixado o rosto dele livre para refletir seus sentimentos e ele não desapontava. Sarai quase empalideceu com a aspereza do homem.
– Olá – disse Minya. Havia farpas de rancor em sua voz viva e infantil quando perguntou: – Dormiu bem?
– Como um bebê! – Sarai respondeu, animada. O que ela, de fato, queria dizer era que tinha acordado frequentemente gritando, mas não sentiu necessidade de esclarecer a questão.
– Nenhum pesadelo? – indagou Minya.
Sarai cerrou os dentes. Ela não podia suportar mostrar fraqueza, não agora.
– Você sabe que não sonho – retrucou, desejando desesperadamente que isso ainda fosse verdade.
– É mesmo? – disse Minya, levantando as sobrancelhas com ceticismo e, de repente, Sarai se perguntou por que ela estava questionando. Ela não contou a ninguém, exceto a Grande Ellen, sobre seu pesadelo no dia anterior, mas naquele momento, teve certeza de que Minya sabia.
Um choque tomou conta da garota. Era a expressão nos olhos de Minya: frios, indagadores, maldosos. E, assim, Sarai entendeu: Minya não só sabia dos pesadelos como era a causa deles.
Seu lull. Grande Ellen o preparava. Grande Ellen era um fantasma e, assim, estava sujeita ao controle de Minya. Sarai se sentiu nauseada – não só com a ideia de que Minya podia estar sabotando seu lull, mas em pensar que ela manipularia Grande Ellen, que era quase uma mãe para eles. Era horrível demais.
Ela engoliu em seco. Minya a estava observando com atenção, talvez se perguntando se Sarai havia descoberto. Sarai pensou que Minya queria que descobrisse, para que pudesse entender sua posição claramente: se ela quisesse sua névoa cinza de volta, teria de fazer por merecer.
Sarai ficou aliviada, então, quando Pardal chegou. Foi capaz de produzir um sorriso crível e fingir – ela esperava – que estava bem, enquanto por dentro seu espírito sibilava de indignação e de choque pelo fato de Minya ter ido tão longe.
Pardal lhe beijou a bochecha. Seu próprio sorriso era trêmulo e corajoso. Rubi e Feral chegaram logo depois. Estavam discutindo sobre alguma coisa, o que tornou mais fácil fingir que tudo estava normal.
O jantar foi servido. Uma pomba havia sido capturada na armadilha, e Grande Ellen a preparou em um cozido. Parecia tão errado, assim como comer geleia de borboleta ou bifes de espectral. Algumas criaturas eram adoráveis demais para devorar – não que essa opinião fosse compartilhada por toda a mesa de jantar. Feral e Rubi comeram com gosto, não demonstravam nenhuma preocupação com a fonte da carne, e se Minya nunca fora de comer muito, certamente isso não tinha nada a ver com a delicadeza de sentimentos. Ela não terminou seu cozido, mas pegou um ossinho para palitar os pequenos dentes brancos.
Apenas Pardal compartilhava da mesma hesitação de Sarai, embora as duas tenham comido, porque carne era rara e seus corpos tinham necessidade daquilo. Não importava que não tivessem apetite. Elas viviam com porções básicas e estavam sempre com fome.
Assim que Kem retirou os pratos, Pardal se levantou da mesa.
– Eu já volto – disse. – Não saiam daqui.
Eles olharam uns para os outros. Rubi levantou as sobrancelhas. Pardal correu para o jardim e voltou pouco tempo depois segurando...
– Um bolo! – gritou Rubi, levantando-se. – Como é que você...?
Era um sonho de bolo e eles o observaram maravilhados: três camadas altas de branco cremoso decorado com botões, como neve caindo.
– Não fiquem entusiasmados demais – ela alertou. – Não é para comer.
Perceberam que a “cobertura” branca cremosa era de pétalas de orquídea espalhadas com botões de anadne e tudo era feito com flores, até os botões de bastão-do-imperador no topo que pareciam, para todo mundo, dezesseis velas acesas.
Rubi ficou intrigada.
– Então para que serve?
– Para fazer um pedido – Pardal disse. – É um bolo de aniversário adiantado. – Ela o colocou na frente de Rubi. – No caso de...
Todos entenderam o que ela queria dizer, no caso de que não houvesse mais aniversários.
– Bom, isso é horrível – disse Rubi.
– Vá em frente, faça um pedido.
Rubi fez. E embora os bastões-do-imperador já se parecessem com pequenas chamas, ela as acendeu com a ponta dos dedos e assoprou direitinho, todas de uma só vez.
– O que você pediu? – Sarai perguntou.
– Que fosse um bolo de verdade, é claro – disse Rubi. – Será que deu certo? – Ela enfiou os dedos, mas é claro que não havia bolo, apenas mais flores, mas fingiu que estava comendo sem dividir com ninguém.
A noite caiu. Sarai se levantou para ir.
– Sarai – chamou Minya, e ela parou, mas não se virou. Ela sabia o que viria. Minya não tinha desistido. Nunca desistiria. De alguma forma, por simples força de vontade, a garota tinha se congelado no tempo, não só seu corpo, mas tudo. Sua fúria, sua vingança, nada havia diminuído em todos aqueles anos. Era impossível vencer contra tamanha força de vontade. Sua voz elevou-se com o lembrete: – Alguns minutos de asco para salvar nós todos.
Sarai continuou andando. Para salvar nós todos. As palavras pareciam se embrulhar em seu estômago – não mariposas, mas cobras. Ela queria deixá-las para trás na galeria, mas quando atravessou o corredor de soldados-fantasmas que se alinhavam no caminho até seu quarto, seus lábios se abriram e murmuraram todos juntos: “para salvar nós todos, para salvar nós todos” e, depois disso, as palavras que eles só tinham dito com os olhos até então: ajude-nos, salve-nos. Os fantasmas falaram em voz alta, implorando enquanto a garota passava. “Ajude-nos, salve-nos”. E era tudo Minya, brincando com a fraqueza de Sarai.
Brincando com sua misericórdia.
Na porta, ela teve de passar por uma criança. Uma criança. Bahar, nove anos, que tinha morrido no Uzumark, três anos antes, e ainda usava as roupas molhadas de seu afogamento. Era inaceitável, até mesmo para Minya, manter uma criança morta como bicho de estimação. A pequena fantasma ficou parada no caminho de Sarai e as palavras de Minya saíram de seus lábios.
– Se você não o matar, Sarai – ela disse, chorosa –, eu terei que fazê-lo.
Sarai pressionou as palmas das mãos contra os ouvidos e passou rápido por ela. Mas mesmo em seu quarto, onde os fantasmas não a viam, ela ainda os podia ouvir sussurrando: “salve-nos, ajude-nos”, até achar que enlouqueceria.
Ela gritou suas mariposas e encolheu-se em um canto, com os olhos bem fechados, desejando mais do que nunca poder ir junto com elas. Naquele momento, se pudesse derramar toda sua alma nas mariposas e deixar seu corpo vazio – mesmo que não pudesse nunca mais retornar a ele –, ela o teria feito, apenas para ficar livre dos pedidos sussurrados dos homens, mulheres e crianças – mortos de Lamento.
Os homens, mulheres e crianças vivos de Lamento estavam a salvo de seus pesadelos novamente esta noite. Ela retornou aos faranji na câmara, e para os Tizerkane em seu quartel, e para Azareen, sozinha em seu quarto, em Quedavento.
A garota não sabia o que faria se encontrasse Eril-Fane. As cobras que se enrodilhavam em seu estômago tinham migrado para seus corações. Havia escuridão dentro dela, e traição, disso sabia. Mas tudo estava tão emaranhado que ela não sabia se era misericórdia não o matar ou apenas covardia.
Mas ela não o encontrou. O alívio foi tremendo, mas rapidamente transformou-se em outra coisa: uma consciência aumentada do estranho que estava na cama dele. Sarai pousou no travesseiro ao lado de seu rosto adormecido por um longo tempo, repleta de medo e de saudade. Saudade da beleza de seu sonho. Medo de ser vista novamente – e não com surpresa dessa vez, mas pelo pesadelo que ela era.
No fim, ela se decidiu. Pousou em sua testa e entrou em seu sonho. Era Lamento novamente, sua própria Lamento iluminada que não merecia o nome, mas quando ela o viu a distância, não o seguiu. Ela apenas encontrou um pequeno lugar para se encolher – assim como seu corpo estava encolhido em seu quarto – para respirar o ar doce, observar as crianças com seus casacos de penas, e sentir-se segura, pelo menos por algum tempo.
33
TODOS SOMOS CRIANÇAS NO ESCURO
Os primeiros dias de Lazlo em Lamento passaram-se em uma correria de atividade e assombro. Havia a cidade para descobrir, é claro, e tudo o que era doce e amargo nela.
Não era o lugar perfeito que imaginara quando menino. É claro que não era. Se um dia tivesse sido, tinha passado por coisas demais para permanecer daquele jeito. Não havia corda bamba nem crianças com casacos de penas; pelo que conseguiu descobrir, nunca houvera. As mulheres não usavam os cabelos longos como mantos atrás de si, e por um bom motivo: as ruas eram sujas como as de qualquer outra cidade. Tampouco havia bolos nos parapeitos das janelas, mas Lazlo não esperava por isso. Havia lixo e insetos. Não muito, mas o suficiente para impedir que um sonhador idealizasse o objeto de sua antiga fascinação. Os jardins ressecados eram uma frustração e mendigos dormiam como se estivessem mortos, coletando moelas no oco de seus olhos fechados e, no geral, havia muitas ruínas.
E mesmo assim havia tanta cor e som, havia vida: homens-canários com seus pássaros engaiolados, homens sonhadores soprando poeira colorida, crianças com sapatos-harpa fazendo música ao correr. Havia luz e havia escuridão: os templos aos serafins eram mais requintados do que as igrejas em Zosma, Syriza e Maialen juntas, e ver o ritual neles – a dança extática de Thakra – foi a experiência mais mística da vida de Lazlo. Mas havia os padres açougueiros também, fazendo adivinhações nas entranhas de animais, e os profetas em suas pernas de pau, gritando o fim do mundo detrás de suas máscaras de esqueleto.
Tudo isso estava em um horizonte de pedra cor de mel esculpida e domos dourados, as ruas que saíam de um antigo anfiteatro cheio de barracas de mercado coloridas.
Naquela tarde, ele tinha almoçado lá com alguns dos Tizerkane, incluindo Ruza, que o havia ensinado a frase: “Você arruinou minha língua para todos os outros sabores”. Ruza lhe garantiu que era o maior elogio possível ao chefe, mas a jovialidade nos olhos dos outros sugeriam um significado mais... lascivo. No mercado, Lazlo comprou uma camisa e um casaco no estilo local, nenhum deles cinza. O casaco era do verde das florestas distantes e precisava de abotoaduras para segurar as mangas entre os bíceps e os deltoides. Essas vinham em todo material imaginável. As de Eril-Fane eram de ouro. Lazlo escolheu o couro, mais barato e discreto.
Ele comprou meias também. Estava começando a entender o encanto do dinheiro. Comprou quatro pares – uma quantidade extravagante de meias – e não só elas não eram cinza, como os dois pares não eram da mesma cor, um era rosa e outro listrado.
E falando em rosa, ele experimentou bala de sangue em uma pequena loja sob uma ponte. Era real e era horrível. Depois de superar a vontade de cuspir, ele disse à confeiteira, em voz baixa: “Você arruinou minha língua para todos os outros sabores”, e viu os olhos dela arregalarem-se. Ela ficou chocada e, na sequência, vermelha, confirmando suas suspeitas em relação à decência do elogio.
– Obrigado por isso – Lazlo disse a Ruza quando se afastaram. – O marido dela provavelmente vai me chamar para um duelo.
– Provavelmente – concordou Ruza –, mas todo mundo deve duelar pelo menos uma vez.
– Uma vez parece correto para mim.
– Porque você vai morrer – Ruza esclareceu, desnecessariamente. – E não estará vivo para outro duelo.
– Sim – respondeu Lazlo. – Foi isso o que eu quis dizer.
Ruza bateu no ombro dele.
– Não se preocupe. Nós vamos transformá-lo num guerreiro. Você sabe... – Ele olhou para a bolsa de brocado que tinha pertencido à avó de Calixte. – Para começo de conversa, você pode comprar uma carteira enquanto estamos aqui.
– O quê? Você desaprova a minha bolsa? – perguntou Lazlo, segurando-a para mostrar bem o broche espalhafatoso.
– Sim, desaprovo.
– Mas é tão útil! – exclamou Lazlo. – Veja, posso usá-la assim. – Ele demonstrou, com a bolsa pendurada no pulso pelos cordões e girando-a em círculos, como criança.
Ruza simplesmente balançou a cabeça e murmurou:
– Faranji.
Mas mais importante, havia trabalho a ser feito.
Durante aqueles primeiros dias, Lazlo havia providenciado que todos os delegados do Matador de Deuses estivessem instalados em espaços de trabalho para acomodar suas necessidades, bem como materiais e, em alguns casos, assistentes. E como a maioria não tinha se preocupado em aprender nada da língua de seu anfitrião durante a jornada, todos precisavam de intérpretes. Alguns dos Tizerkane entendiam um pouco, mas tinham seus compromissos. Calixte estava quase fluente, mas ela não tinha intenção de passar o tempo ajudando “velhos de mente pequena”. Então Lazlo viu-se muito ocupado.
Alguns dos delegados eram mais fáceis do que outros. Belabra, o matemático, requisitou um escritório com paredes altas, onde pudesse escrever suas fórmulas e lavá-las quando achasse apropriado. Kether, artista e projetista de catapultas, precisava apenas de uma mesa para desenho, que foi levada ao seu quarto na câmara.
Lazlo duvidava que os engenheiros precisassem de muito mais do que isso, mas Ebliz Tod parecia ver isso como uma questão de distinção – de que os convidados mais “importantes” deveriam pedir e receber o máximo. Então, ele ditava demandas elaboradas e específicas que eram dever de Lazlo satisfazer, com a ajuda de vários moradores locais que Suheyla organizou para ajudá-lo. O resultado foi que a oficina de Tod, em Lamento, ultrapassou o seu escritório de Syriza em grandiosidade, embora ele passasse a maior parte do tempo na mesa de desenho no canto.
Calixte não pediu nada, embora Lazlo soubesse que ela estava procurando, com a assistência de Tzara, uma variedade de resinas para preparar pastas grudentas a fim de ajudá-la em sua escalada. Se ela seria chamada por Eril-Fane para fazer isso, era uma dúvida – ela própria suspeitava que ele a tinha convidado mais para resgatá-la da prisão do que por uma necessidade real de sua presença –, mas, de qualquer forma, ela estava determinada a ganhar sua aposta com Tod.
– Alguma sorte? – Lazlo perguntou a ela quando a viu voltando de um teste na âncora.
– Sorte não tem nada a ver com isso – ela respondeu. – É tudo força e inteligência. – Ela piscou, flexionando as mãos como aranhas de cinco patas. – E cola.
Quando ela deixou as mãos caírem, ocorreu a Lazlo que elas não tinham nenhuma descoloração cinza. Ele tinha descoberto, depois de seu próprio contato com a âncora, que as leves manchas sujas não saíam com água, mesmo usando sabão. Mas elas saíram aos poucos e, agora, tinham desaparecido. O mesarthium, pensou, deve reagir com a pele da mesma forma que outros metais, como o cobre. Entretanto, não com a pele de Calixte, que havia acabado de tocar na âncora e não apresentava traços dele.
Os Fellering, Mouzaive, o magnetista, e Thyon Nero precisavam de espaço no laboratório para descarregar o equipamento que trouxeram do oeste. Os Fellering e Mouzaive estavam contentes com os estábulos próximos à câmara, mas Thyon os recusou, buscando outros lugares. Lazlo teve de ir junto, como intérprete e, em um primeiro momento, não entendeu o que o alquimista estava procurando. Thyon recusou algumas salas dizendo que eram muito grandes e outras por serem muito pequenas, antes de decidir pelo sótão de um crematório – um espaço cavernoso maior do que os que rejeitara por serem muito grandes. Também não tinha janelas, com uma única grande porta pesada. Quando ele pediu não menos do que três fechaduras para ela, Lazlo entendeu: ele escolheu o lugar pela privacidade.
O homem desejava guardar o segredo do azoth, ao que parecia, mesmo nessa cidade de onde, há muito tempo, o segredo tinha vindo.
Drave pediu um depósito para guardar sua pólvora e produtos químicos, e Lazlo providenciou um – fora da cidade, no caso de um incidente com fogo. E se a distância significasse ver menos Drave no dia a dia, isso era um bônus.
– É um maldito inconveniente – o explosionista queixou-se, embora o inconveniente fosse mínimo, considerando que, após supervisionar e descarregar os suprimentos, não retornou ao depósito.
– Basta me dizer o que vocês querem explodir que estarei pronto – explicou, e então passou a gastar seu tempo percorrendo a cidade em busca de prazeres e deixando as mulheres incomodadas com seus olhares.
Ozwin, o agricultor-botânico, precisava de uma estufa e de campos para plantar, então também teve de sair da cidade e da sombra da cidadela, para onde suas sementes e mudas veriam a luz do sol.
“Plantas que sonhavam que eram pássaros”, esse era seu trabalho. Aquelas palavras eram do mito dos serafins, descrevendo o mundo como os seres o encontraram quando desceram dos céus: “Encontraram solos ricos, e mares doces, e plantas que sonhavam que eram pássaros e subiam até as nuvens com folhas como asas”. Lazlo conhecia aquela passagem havia anos, e acreditava que era fantasia – mas descobriu em Thanagost que era real.
A planta era chamada de ulola, e era conhecida por duas coisas. Uma: seus arbustos comuns eram o lugar preferido de descanso para as serpaises no calor do dia, o que lhe conferia o apelido de “sombra de cobra”. E outra: suas flores podiam voar.
Ou flutuar, mais precisamente. Eram botões em forma de saco, do tamanho da cabeça de um bebê e, quando morriam, seus restos produziam um gás poderoso que os levantava e os carregava para o céu e para onde quer que o vento soprasse, para soltar sementes em novos solos e começar o ciclo novamente. Elas eram uma peculiaridade dos terrenos erodidos – balões rosa flutuantes que tinham uma forma de aterrissar no meio dos lobos selvagens – e teriam, mais provavelmente, continuado assim se um botânico da Universidade de Isquith – Ozwin – não tivesse se aventurado nos perigos da fronteira em busca de amostras e apaixonado-se pela terra sem lei e, mais especificamente, pela mecânica sem lei – Soulzeren –, preferida pelos generais por seus desenhos extravagantes de armas de fogo. Era uma história de amor e tanto, que envolvia até um duelo (disputado por Soulzeren). Só a combinação única dos dois podia ter produzido o trenó de seda: um veículo superleve, que flutuava com o gás de ulola.
Soulzeren estava montando os veículos em um dos pavilhões da câmara. Quanto à questão de quando voariam, o assunto foi discutido na quinta-feira à tarde, em uma reunião dos líderes da cidade à qual Lazlo compareceu com Eril-Fane. A reunião não transcorreu como Lazlo esperava, de forma alguma.
– Nossos convidados estão trabalhando no problema da cidadela – Eril-Fane reportou aos cinco Zeyyadin, que se traduziam como “primeiras vozes”. As duas mulheres e os três homens constituíam o corpo executivo que havia sido estabelecido depois da queda dos deuses. – Quando estiverem prontos, farão propostas para uma solução.
– Para... movê-la – disse uma mulher. Seu nome era Maldagha, e sua voz estava pesada de apreensão.
– Mas como eles esperam fazer tal coisa? – perguntou um homem corcunda, com longos cabelos brancos e a voz trêmula.
– Se eu pudesse responder isso – explicou Eril-Fane, com um sorriso dos mais sutis –, teria feito eu mesmo e evitado uma longa jornada. Nossos convidados possuem as mentes práticas mais brilhantes em metade do mundo...
– Mas o que é a praticidade contra a magia dos deuses? – o velho interrompeu.
– É a esperança que temos – disse Eril-Fane. – Não será o trabalho de alguns momentos, como era para Skathis, mas o que mais podemos fazer? Podemos estar diante de anos de esforços. Pode ser que o máximo que consigamos é uma torre para poder alcançá-la e destruí-la pouco a pouco até que desapareça. Os netos de nossos netos poderão ter de carregar raspas de mesarthium para fora da cidade à medida que a monstruosidade se encolhe lentamente até o nada. Mesmo assim, mesmo que seja a única forma e nós aqui nessa sala não vivamos para ver acontecer, chegará o dia em que o último pedaço desaparecerá e o céu estará livre.
Eram palavras poderosas, embora ditas suavemente, e pareceram acender a esperança nos outros. Hesitante, Maldagha disse:
– Destruir o metal, você diz. Eles podem cortá-lo? Já o fizeram?
– Ainda não – Eril-Fane admitiu. De fato, a confiança dos Fellering se mostrara equivocada. Como todos os demais, falharam em produzir um risco sequer. Sua arrogância fora substituída por uma determinação descontente. – Mas eles apenas começaram, e temos um alquimista também. O mais bem-sucedido do mundo.
Quanto ao dito alquimista, se ele estava tendo alguma sorte com seu alkahest, estava mantendo em segredo tanto quanto seu ingrediente principal. Suas portas no porão do crematório estavam trancadas, e ele apenas as abria para receber refeições. Ele até pediu para colocarem uma cama para dormir no local – o que não significava, contudo, que estava sempre lá. Tzara ficava de guarda e o tinha visto andando em direção à âncora norte na calada da noite.
Para fazer experimentos com o mesarthium em segredo, Lazlo supôs. Quando Tzara lhe mencionou isso de manhã, ele foi examinar a superfície a fim de buscar qualquer pista de que Thyon tivesse obtido sucesso. Era uma superfície grande, por isso, era possível ter sofrido alguma alteração, embora não achasse isso. Toda a extensão estava tão lisa e artificialmente perfeita quanto da primeira vez que a vira.
Não havia, de fato, nenhuma notícia encorajadora para relatar aos Zeyyadin, não ainda. A reunião tinha outro propósito.
– Amanhã – Eril-Fane lhes disse, e sua voz pareceu pesar no ar – lançaremos um dos trenós de seda.
O efeito de suas palavras foi imediato e... absolutamente inesperado. Em qualquer cidade do mundo, veículos aéreos – veículos aéreos reais e funcionais –, seriam vistos com fascínio. Essa deveria ser uma notícia sensacional. Mas os homens e as mulheres da sala ficaram pálidos. Cinco rostos uniformemente drenados de cor e com uma espécie de pavor atordoado. O velho começou a balançar a cabeça. Maldagha pressionou os lábios para impedir que tremessem e, em um gesto que Lazlo não soube interpretar, levou a mão à barriga. Suheyla fez um movimento similar, e ele pensou que sabia o que significava. Todos esforçaram-se para manter a compostura, mas seus rostos os traíram. Lazlo não tinha visto ninguém parecer tão afetado desde que os meninos do monastério eram levados à cripta para serem punidos.
Ele nunca vira adultos com essa expressão.
– Será apenas um voo de teste – Eril-Fane continuou. – Precisamos estabelecer um meio real de ir e vir entre a cidade e a cidadela. E... – Ele hesitou. Engoliu em seco. E não olhou para ninguém quando disse: – Preciso vê-la.
– Você? – perguntou um dos homens – Você vai subir lá?
Parecia uma pergunta estranha. Nunca havia ocorrido a Lazlo que ele não fosse.
Solenemente, Eril-Fane fitou o homem.
– Eu esperava que você também viesse, Shajan. Você quem esteve lá no fim. – O fim. O dia em que os deuses foram mortos? A mente de Lazlo voltou ao mural da viela, e o herói retratado nele, de seis braços, triunfante. – Ela está morta há todos esses anos, e alguns de nós sabem melhor do que outros o... estado... em que a deixamos.
Ninguém se entreolhou. Era muito estranho. Isso lembrou a Lazlo da forma como evitavam olhar para a cidadela. Ocorreu-lhe que os corpos dos deuses talvez continuassem lá em cima, onde morreram, mas ele não entendia por que isso causava tanto tremor e contração.
– Eu não poderia – respondeu Shajan, olhando para as suas próprias mãos trêmulas. – Você não pode esperar por isso. Veja como estou agora.
Lazlo achou aquilo desproporcional. Um homem adulto reduzido a tremores com a ideia de entrar em uma construção vazia – mesmo aquela construção vazia – porque poderia haver esqueletos lá? E a desproporção apenas aumentava.
– Nós ainda poderíamos mover. – Maldagha deixou escapar, parecendo tão atormentada quanto Shajan. – Vocês não precisam voltar lá. Não precisamos fazer nada disso. – Havia um tom de desespero em sua voz. – Podemos reconstruir a cidade em Enet-Sarra, como já discutimos. As inspeções foram feitas. Só precisamos começar.
Eril-Fane balançou a cabeça:
– Se fizéssemos isso, significaria que eles venceram, mesmo mortos. Eles não venceram. Esta é a nossa cidade, que nossos ancestrais construíram nas terras consagradas por Thakra. Não vamos abandoná-la. Este é o nosso céu e nós o teremos de volta. – Eram palavras do tipo que poderiam ter sido gritadas antes da batalha. Um menino brincando de Tizerkane em um pomar adoraria a sensação delas passando pela língua. Mas Eril-Fane não as gritou. Sua voz soava distante, como o último eco antes que o silêncio se reinstalasse.
– O que foi isso? – Lazlo perguntou depois que saíram.
– Aquilo foi medo – Eril-Fane disse, simplesmente.
– Mas... medo do quê? – Lazlo não conseguia compreender. – A cidadela está vazia. O que pode haver lá para machucá-los?
Eril-Fane expirou lentamente.
– Você tinha medo do escuro quando era criança?
Um arrepio subiu pela coluna de Lazlo. Recordou-se da cripta do mosteiro e das noites trancado com monges mortos.
– Sim.
– Mesmo quando você sabia, racionalmente, que não havia nada que pudesse lhe fazer mal?
– Sim.
– Pois bem. Todos somos crianças no escuro, aqui em Lamento.
34
ESPÍRITO DE BIBLIOTECÁRIO
Outro dia chegava ao fim, outro dia de trabalho e maravilhas, e Lazlo estava retornando à casa de Suheyla para passar a noite. Quando cruzou a avenida, aquela solitária faixa de sol, viu o garoto de entregas da câmara vindo em sua direção com uma bandeja. Percebeu que o menino devia estar voltando do crematório logo à frente trazendo pratos vazios. Ele tinha levado o jantar para Thyon e o trocou pela bandeja vazia do almoço. Lazlo o cumprimentou, e perguntou-se ao passar como Thyon estava indo, pois não o vira desde que ele havia se escondido e não tinha tido notícias para dar a Eril-Fane quando solicitado. Com um momento de hesitação, ele mudou o rumo e foi na direção do crematório. Passando pela âncora no caminho, tocou-a por toda a extensão, tentando imaginá-la ondulando-se e moldando-se como aparentemente fazia para o sombrio deus Skathis.
Quando bateu na porta pesada com três trincos de Thyon, o alquimista atendeu, o que só podia significar que ele achava que o garoto estivesse de volta com mais provisões – ou ele estava esperando outra pessoa, porque assim que viu Lazlo, começou a fechá-la de novo.
– Espere – disse Lazlo, colocando o pé no vão da porta. Por sorte usava botas. Nos tempos antigos de seus chinelos de bibliotecário, seus dedos teriam sido esmagados. Mesmo assim, recuou. Nero não estava de brincadeira. – Venho em nome de Eril-Fane – explicou, irritado.
– Não tenho nada a relatar – disse Thyon. – Pode lhe dizer isso.
O pé de Lazlo ainda estava na porta, segurando-a aberta uns oito centímetros. Não era muito, mas a glave na antecâmara era brilhante, o que lhe permitiu ver Thyon – pelo menos uma faixa de oito centímetros de largura dele – bem claramente.
– Nero, você não está bem?
– Estou bem – o afilhado dourado disse, com condescendência. – Agora, se você pudesse retirar seu pé...
– Não vou – afirmou Lazlo, verdadeiramente alarmado. – Deixe-me vê-lo. Você está um trapo.
Era uma transformação drástica, em apenas poucos dias. Sua pele estava amarela. Até o branco dos seus olhos estava ictérico.
Thyon afastou-se da vista de Lazlo.
– Retire o pé – pediu, em um tom baixo e casual – ou vou testar minha produção de alkahest nele. – Até sua voz parecia ictérica, se isso fosse possível.
Alkahest no pé era uma perspectiva desagradável de considerar. Lazlo perguntou-se quão rápido ele corroeria sua bota de couro.
– Não duvido que você faria isso – respondeu, tão casualmente quanto Thyon. – Aposto que você não o tem em mãos e teria que ir buscá-lo. Durante esse tempo, eu abriria a porta e olharia bem para você. Vamos lá, Nero. Você está doente.
– Não estou doente.
– Você não está bem.
– Não é da sua conta, Estranho.
– Eu não sei mesmo se é ou não, mas você está aqui por um motivo, e você pode muito bem ser a esperança de Lamento, então me convença de que não está doente ou vou direto a Eril-Fane.
Houve um suspiro irritado e Thyon afastou-se da porta. Lazlo abriu-a com o pé e percebeu que não estava errado. Thyon estava com uma aparência péssima – embora, ele admitisse, sua aparência “péssima” fosse melhor do que a aparência da maioria das pessoas. Ainda assim, ele parecia ter envelhecido. Não era só a sua cor. A pele ao redor dos olhos estava flácida e escura.
– Deuses, Nero – exclamou, dando um passo à frente –, o que aconteceu com você?
– Apenas estou trabalhando muito – respondeu o alquimista, com um sorriso severo.
– Isso é ridículo. Ninguém fica assim fatigado por trabalhar duro alguns dias.
Ao dizer isso, os olhos de Lazlo pousaram sobre a mesa de trabalho de Thyon. Era uma versão bagunçada de sua mesa no Chrysopoesium, com vidros e cobre espalhados e pilhas de livros. A fumaça pairava no ar com um aroma sulfúrico que queimava as narinas, e em plena vista estava uma longa seringa. Era de vidro e cobre, e descansava sobre um pano branco com manchas vermelhas. Lazlo a observou e virou-se para Thyon, que devolveu um olhar duro como pedra. O que Lazlo tinha acabado de dizer, que ninguém fica tão fatigado por trabalhar duro por alguns dias?
Mas e se o “trabalho” dependesse de um suprimento constante de espírito, e sua única fonte fosse o próprio corpo? Lazlo soltou ar entre os dentes.
– Seu idiota – praguejou, e viu os olhos de Thyon arregalarem-se de incredulidade. Ninguém chamava o afilhado dourado de idiota. Ele era, contudo, nesse caso. – Quanto você tirou? – Lazlo perguntou.
– Não sei do que está falando.
Lazlo meneou a cabeça. Ele estava começando a perder a paciência.
– Você pode mentir se quiser, mas já sei seu segredo. Se você está tão determinado a guardá-lo, Nero, eu sou a única pessoa no mundo que pode ajudá-lo.
Thyon riu como se isso fosse uma piada.
– E por que você me ajudaria?
Não foi da mesma forma que ele disse no Chrysopoesium quando eram mais jovens. “Você, me ajudar?” Aquilo havia sido a incredulidade de que Lazlo ousasse acreditar que era digno de ajudá-lo. Dessa vez, era mais incredulidade pelo fato de ele querer ajudá-lo.
– Pelo mesmo motivo que lhe ajudei antes – disse Lazlo.
– E qual é? – Nero perguntou. – Por que você me ajudou, Estranho?
Lazlo olhou para ele por um momento. A resposta não podia ser mais simples, mas ele achou que Thyon não tinha as qualidades necessárias para acreditar.
– Porque você precisava – respondeu, e suas palavras geraram um silêncio entre ambos. Ali estava uma noção radical de que você deve ajudar os outros simplesmente porque eles precisam.
Mesmo se eles o odiassem por isso depois? E o punissem? E roubassem você? E mentissem e zombassem de você? Mesmo assim? Lazlo esperava que, de todos os delegados, Thyon não fosse o salvador de Lamento, o libertador da sombra. Mas muito maior do que essa esperança era a de que Lamento fosse libertada por alguém, mesmo que fosse por Nero.
– Você precisa de ajuda agora? – ele perguntou em voz baixa. – Não pode continuar extraindo seu próprio espírito. Isso pode não te matar – ele disse, porque o espírito não era como o sangue e, de certa forma, as pessoas continuavam vivendo sem ele, se é que podia se chamar isso de viver –, mas o tornará feio – explicou – e acho que isso será muito difícil para você.
Thyon enrugou a testa analisando Lazlo para ver se ele não estava zombando. Ele estava, é claro, mas da mesma forma que zombaria de Ruza, ou que Calixte zombaria dele. Era uma decisão de Thyon se sentir ofendido ou não, e talvez ele estivesse apenas muito cansado.
– O que você está propondo? – indagou ressabiado.
Lazlo expirou e passou para o modo de resolução de problemas. Thyon precisava de espírito para produzir o azoth. Em casa, ele devia ter um sistema, embora Lazlo não pudesse imaginar qual era. Como alguém mantinha um fornecimento constante de algo como espírito sem ninguém descobrir? Qualquer que fosse, aqui, sem sair e pedir – e revelar seu ingrediente secreto –, ele tinha apenas o seu próprio, e já havia extraído muito.
Lazlo argumentou brevemente sobre se era a hora de abrir mão do segredo, mas Thyon não ouviu e, finalmente, Lazlo, com um suspiro frustrado, tirou a jaqueta e enrolou a manga da camisa.
– Tire um pouco do meu, certo? Até que possamos pensar em outra solução.
Em todo aquele tempo, Thyon o viu com desconfiança, como se ele estivesse esperando por algum motivo secreto para se revelar. Mas quando Lazlo estendeu o braço, ele só pôde piscar, derrotado. Teria sido mais fácil se pudesse acreditar que havia algum motivo, algum tipo de vingança ou outro tipo de armação. Mas Lazlo ofereceu suas veias. Seu próprio fluido vital. Que motivo poderia haver nisso? Ele estremeceu quando Thyon lhe furou com a agulha, e estremeceu novamente, porque o alquimista errou a veia do espírito e acertou uma veia de sangue. Thyon não era um flebotomista muito habilidoso, mas não pediu desculpas e Lazlo não reclamou. Enfim havia um frasco de fluido claro sobre a mesa, rotulado, com um floreio desdenhoso: ESPÍRITO DE BIBLIOTECÁRIO.
Thyon não agradeceu, mas falou, soltando o braço de Lazlo:
– Você podia experimentar lavar as mãos de vez em quando, Estranho.
Lazlo apenas sorriu, como se a condescendência marcasse um retorno ao território familiar. Ele olhou para a mão em questão, que parecia suja mesmo. Ele a tinha passado pela âncora no caminho para lá, lembrou-se.
– Isso é o mesarthium – explicou, e perguntou, curioso: – Você percebeu que ele é reativo à pele?
– Dificilmente. Não é reativo a nada.
– Bem, você percebeu a pele reagindo a ele? – Lazlo persistiu, desenrolando a manga da camisa.
Thyon apenas levantou a palma das mãos. Elas estavam limpas, e aquela foi sua resposta. Lazlo deu de ombros e vestiu seu casaco. A resposta de Thyon não foi um bom presságio – sobre o mesarthium não ser reativo a nada. Na porta, Lazlo parou.
– Eril-Fane vai querer saber. Existe algum motivo para ter esperança? O alkahest sequer afeta o mesarthium?
Ele achou que o alquimista não ia responder. Sua mão estava na porta, pronta para fechá-la com força. Mas ele pausou por meio segundo, como se Lazlo tivesse ganhado aquela única sílaba relutante, e disse, severo:
– Não.
35
TINTA BORRADA
Sarai se sentia... pequena. Estar tão cansada era como evaporar. Água para vapor. Carne para fantasma. Pouco a pouco, de fora para dentro, ela se sentia começando a desaparecer, ou pelo menos parecia estar em outro estado – de tangível, sangue e espírito, para uma espécie de névoa perdida e flutuante.
Quantos dias haviam se passado dessa forma, vivendo de pesadelo em pesadelo? Parecia que tinham sido dezenas, mas eram provavelmente apenas cinco ou seis.
Esta é minha vida agora, refletiu, olhando para seu reflexo no mesarthium polido do closet. Ela tocou a pele em volta dos olhos com as pontas dos dedos. Era quase roxa, como as ameixas das árvores, e seus olhos pareciam grandes demais – como se, assim como Pequena Ellen, ela os tivesse reimaginado de tal maneira.
Se eu fosse um fantasma, ponderou, analisando-se como uma estranha, o que eu mudaria em mim mesma? A resposta era óbvia demais para admitir, e patética demais. Ela traçou uma linha em volta de seu umbigo, onde sua elilith estaria se fosse uma garota humana. O que as tatuagens tinham que tanto a encantavam? Elas eram bonitas, mas não era só isso. Talvez fosse o ritual: o círculo de mulheres se reunindo para celebrar estarem vivas – e ser uma mulher, que por si só já é mágico. Ou talvez fosse o futuro que a marca pressagiava. Casamento, filhos, família, continuidade.
Ser uma pessoa. Com uma vida. E todas as expectativas de futuro. Todas as coisas com as quais Sarai não ousava sonhar.
Ou... coisas com as quais ela não deveria ousar sonhar. Como os pesadelos, os sonhos eram traiçoeiros e não gostavam de ficar trancados.
Se ela tivesse uma elilith não ia querer uma serpente engolindo o próprio rabo como a de Tzara e a de muitas meninas que haviam chegado à adolescência após a libertação. Ela já sentia que possuía criaturas dentro de si – mariposas, cobras e terrores – e não as queria sobre a pele também. Azareen, dura e estoica como era, tinha uma das tatuagens mais bonitas que Sarai vira – feita por Guldan, é claro, que hoje era recruta do exército infeliz de Minya. Era um padrão delicado de botões de macieira, que eram um símbolo de fertilidade.
Sarai sabia que Azareen odiava a visão da tatuagem e tudo do que ela zombava.
A questão das eliliths. Eram tatuadas nas barrigas das garotas, que tendiam a ser lisas ou apenas ligeiramente curvas. E quando sua promessa de fertilidade fosse cumprida, suas barrigas inchariam, e as tatuagens se esticariam junto, e jamais voltariam a se parecer como antes. Era possível ver as linhas finas borradas onde a pele tinha esticado e depois encolhido novamente.
As garotas que Skathis roubou, suas eliliths eram puras quando ele as tomou, mas não mais quando as devolveu. Mas como Letha engoliu suas memórias, isso era tudo o que sabiam sobre seu tempo na cidadela – o vago borrão da tinta em suas barrigas, e tudo o que ele implicava.
Exceto, quer dizer, pelas garotas que estavam na cidadela no dia em que Eril-Fane matou os deuses. Elas tiveram a pior experiência. Tiveram de descer daquele jeito, suas barrigas ainda cheias com os filhos dos deuses e suas mentes com memórias.
Azareen tinha sido uma delas. E embora tivesse sido uma noiva – e antes disso uma garota apertando as mãos de um círculo de mulheres enquanto botões de macieira eram gravados em volta de seu umbigo com tinta –, a única vez que sua barriga inchou foi com a semente do deus, e ela se lembrava de cada segundo desse processo, dos estupros que deram início até as dores lancinantes que deram fim a isso.
Ela nunca olhou para o bebê, apertando os olhos até que o levassem embora. Contudo, ouviu seu choro frágil, e ainda o ouvia.
Sarai também podia ouvi-lo. Ela estava acordada, mas os terrores eram persistentes. Ela balançou a cabeça na tentativa de sacudi-los para longe.
As coisas que tinham sido feitas. Pelos deuses, pelos humanos. Nada podia sacudi-las para longe.
Ela pegou uma camisola limpa. Verde-clara, não que tenha percebido, apenas estendendo a mão sem olhar e pegando a primeira. Vestiu-a e colocou um robe por cima, com o cinto apertado, e considerou seu rosto no espelho: os imensos olhos assombrados e a história que contavam sobre pesadelos e dias sem dormir. Bastaria olhar para ela e Minya sorriria. “Dormiu bem?”, ela perguntaria. Ela sempre perguntava agora, e Sarai sempre respondia: “como um bebê”, e fingia que tudo estava bem.
Mas não havia como fingir que não tinha roxos sob os olhos. Por um momento considerou pintá-los de preto com a tinta de sua mãe, mas o esforço parecia grande demais, e não enganaria ninguém.
Ela saiu do closet. Com os olhos fixos à frente, passou pelos fantasmas que faziam a guarda. Eles ainda sussurravam as palavras de Minya, mas agora se acostumara a isso. Até com Bahar, nove anos e pele encharcada, que a seguiu pelo corredor, sussurrando “Salve-nos”, e deixando pegadas molhadas que não estavam realmente lá.
Tudo bem, ela nunca poderia se acostumar com Bahar.
– Dormiu bem? – Minya perguntou assim que ela entrou na galeria.
Sarai respondeu com um sorriso pálido:
– Por que não dormiria? – ela perguntou, para mudar um pouco.
– Ah, não sei, Sarai. Teimosia?
Sarai entendeu-a perfeitamente – que ela precisava apenas pedir que seu lull lhe fosse devolvido e Minya faria com que isso acontecesse.
Assim que Sarai fizesse o que ela lhe ordenava.
Ambas não reconheceram a situação abertamente – de que Minya estava sabotando o lull de Sarai –, mas isso estava presente em todos os olhares que compartilhavam.
Alguns minutos de asco para salvar nós todos.
Se Sarai matasse Eril-Fane, Minya a deixaria voltar a dormir. E aí? Será que seu pai perderia um minuto de sono para salvá-la?
Não importava o que ele faria ou não. Sarai não mataria ninguém. Ela era teimosa, muito, e não estava disposta a abrir mão de sua decência ou misericórdia por um dia de sono profundo. Não imploraria pelo lull para Minya. O que quer que acontecesse, ela nunca mais atenderia à vontade perversa de Minya.
Além disso, ela ainda não tinha conseguido encontrá-lo. Então havia isso.
Não que Minya acreditasse nisso, mas era verdade, e ela tinha procurado. Sabia que o homem estava de volta a Lamento, em parte porque Azareen nunca teria voltado sem ele, em parte porque ele apareceu nos sonhos de todos os outros como um fio brilhante os conectando. Mas onde quer que ele estivesse dormindo, onde quer que ele tivesse passado a noite, a garota não o tinha conseguido encontrar.
Sarai riu.
– Eu, teimosa – ela disse, levantando as sobrancelhas. – Você já se olhou no espelho?
Minya não negou.
– Suponho que a pergunta seja: quem é mais teimosa?
Soou como um desafio.
– Acho que vamos descobrir – Sarai respondeu.
O jantar foi servido e os outros chegaram – Pardal e Rubi vieram do jardim; Feral, bocejando, da direção de seu quarto.
– Cochilando? – Sarai perguntou.
Tudo havia ruído nos últimos dias. Ele costumava pelo menos tentar supervisionar as meninas durante o dia e evitar que elas causassem um caos ou quebrassem a Regra. Não que isso importasse mais.
Ele apenas deu de ombros.
– Alguma coisa interessante? – ele perguntou.
Ele queria notícias da noite anterior. Essa era sua rotina agora. Isso a lembrava do tempo em que era mais nova, quando ela ainda lhes contava tudo sobre suas visitas à cidade e todos gostariam de saber coisas diferentes: Pardal, os vislumbres da vida cotidiana; Rubi, as partes impróprias; Minya, os gritos. Feral não tinha um foco na época, mas agora tinha, gostaria de saber tudo sobre os faranji e suas oficinas – os diagramas em suas mesas de desenho, os químicos em seus frascos, os sonhos em suas cabeças. Sarai contava o que podia e juntos tentavam interpretar o nível de ameaça que eles representavam. O garoto dizia que seu interesse era defensivo, mas ela via uma fome em seus olhos – pelos livros e papéis que ela descrevia, os instrumentos e béqueres borbulhantes, as paredes cobertas de números e símbolos que não conseguia entender.
Era a janela da confeitaria para ele, da vida que não tinha, e ela fazia o que podia para torná-la vívida para o garoto. Ao menos isso podia lhe dar. Esta noite, contudo, ela tinha más notícias:
– As máquinas voadoras – respondeu. Estivera observando os equipamentos em um pavilhão da câmara à medida que tomavam forma em estágios, dia a dia, até enfim se tornarem os veículos que vira nos sonhos do casal faranji. Todo o seu pavor finalmente a alcançara. – Elas parecem estar prontas.
Isso fez com que Rubi e Pardal respirassem ruidosamente, assustadas.
– Quando elas vão voar? – Minya perguntou friamente.
– Não sei. Em breve.
– Bem, espero que seja em breve. Estou ficando entediada. Pra quê ter um exército se não posso usá-lo?
Sarai não caiu na de Minya. Ela vinha pensando no que diria, e como diria.
– Não precisaria chegar a isso – retrucou, e virou-se para Feral. – A mulher, ela se preocupa com o tempo. Vi em seus sonhos. O vento é um problema. E também não voará nas nuvens. Acho que as aeronaves não devem ser muito estáveis – ela tentou soar calma, racional, não defensiva nem ofensiva. Estava simplesmente fazendo uma sugestão razoável para evitar o derramamento de sangue. – Se você evocar uma tempestade, podemos evitar que cheguem perto de nós.
Feral absorveu isso, olhando para Minya sem virar o rosto. Ela estava com os cotovelos sobre a mesa, o queixo apoiado em uma das mãos, a outra pegando pedacinhos de seu biscoito de kimril.
– Ah, Sarai – ela disse. – Que ideia!
– É uma boa ideia – afirmou Pardal. – Por que lutar se podemos evitar?
– Evitar? – Minya soltou. – Você acha que se soubessem que estamos aqui, eles estariam preocupados em evitar uma briga? – Então virou-se para Ari-Eil, parado atrás de sua cadeira: – Bom, o que você acha?
Quer ela tenha lhe dado liberdade para responder ou produzido ela mesma a resposta, Sarai não duvidou da verdade dita:
– Eles matariam todos vocês – o fantasma sussurrou, e Minya lançou a Pardal um olhar de eu te disse.
– Não posso acreditar que estamos tendo essa conversa – Minya falou. – Quando seu inimigo está vindo, você não junta nuvens. Você junta facas.
Sarai olhou para Feral, que não correspondeu ao olhar dela. Não havia muito mais a ser dito depois disso. Ela estava relutante em voltar ao seu quartinho, onde estava abarrotado com todos os pesadelos que tinha tido ultimamente, então foi ao jardim com Pardal e Rubi. Havia fantasmas por toda parte, mas as vinhas e as flores formavam recantos onde era possível quase se esconder. De fato, Pardal, enfiando sua mão no solo e concentrando-se por um momento, fez crescer cachos de liríope roxa altos o bastante para escondê-las de vista.
– O que faremos? – Pardal perguntou em voz baixa.
– O que podemos fazer? – Rubi perguntou, resignada.
– Você podia dar um belo abraço caloroso em Minya – sugeriu Pardal, com uma rispidez pouco familiar em sua voz. – Quais foram as palavras dela? Você pode fazer mais com o seu dom do que aquecer água da banheira e queimar suas roupas?
Rubi e Sarai levaram um momento para compreendê-la. Elas estavam perplexas.
– Pardal! – Rubi gritou. – Você está sugerindo que eu... – ela se interrompeu, olhou para os fantasmas e terminou em um sussurro – queime Minya?
– Claro que não – esclareceu Pardal, embora fosse exatamente isso que ela queria dizer. – Eu não sou ela, sou? Não quero que ninguém morra. Além disso – ela disse, provando que estava pensando sobre o assunto –, se Minya morresse, perderíamos as Ellens também, e todos os outros fantasmas.
– E teríamos que fazer todas as tarefas de casa – disse Rubi.
Pardal bateu no ombro dela.
– É com isso que você está preocupada?
– Não – respondeu Rubi, defensiva. – É claro que eu sentiria falta deles também. Mas, sabe, quem é que iria cozinhar?
Pardal balançou a cabeça e esfregou o rosto, dizendo:
– Eu nem tenho certeza se Minya está errada. Talvez seja o único jeito. Mas ela precisa estar tão contente com isso? É horrível.
– Ela é horrível – completou Rubi –, mas é horrível por nós. Você ia querer se opor a ela?
Rubi estivera muito preocupada ultimamente e não tinha percebido a mudança em Sarai, muito menos adivinhado sua causa. Pardal era uma alma mais empática. Ela olhou para Sarai, observando seu rosto cansado e seus olhos roxos.
– Não – respondeu suavemente. – Eu não ia querer isso.
– Então deixamos ela fazer o que bem entender em tudo? – Sarai perguntou. – Vocês não conseguem ver aonde isso leva? Ela fará com que sejamos como nossos pais.
Rubi franziu a testa.
– Nós jamais poderíamos ser como eles.
– Não? – replicou Sarai. – E quantos humanos podemos matar antes de nos tornarmos iguais a eles? Há um número? Cinco? Cinquenta? Uma vez que começarmos, não teremos como parar. Mate um, fira um, e não há esperança para nenhum tipo de vida. Vocês não veem isso?
Sarai sabia que Rubi não queria machucar ninguém, tampouco. Mas ela abriu os cachos de liríope com as mãos, revelando os fantasmas que estavam no jardim.
– Que escolha nós temos, Sarai?
Uma a uma as estrelas apareceram no céu. Rubi disse que estava cansada, embora não parecesse, e foi cedo para a cama. Pardal encontrou uma pena que só podia ser da Aparição e colocou-a atrás da orelha de Sarai.
Ela arrumou o cabelo de Sarai, penteando-o suavemente com os dedos e usando seu dom para torná-lo lustroso. Sarai podia senti-lo crescer, e até ganhar brilho, como se Pardal o estivesse infundindo de luz. Ela acrescentou centímetros; fez com que ficasse armado. Colocou uma coroa de tranças, deixando a maior parte solta, e teceu vinhas e ramos de orquídeas, brotos de samambaia, e aquela pena branca.
E quando Sarai viu-se no espelho de novo antes de enviar suas mariposas, pensou que se parecia mais com um espírito da floresta do que com a deusa do desespero.
36
PROCURANDO UMA LUA
Lamento dormia. Sonhadores sonhavam. Uma grande lua pairava acima e as asas da cidadela cortavam o céu em dois: luz acima e escuridão abaixo.
Na palma da mão estendida do serafim colossal, fantasmas faziam a guarda com cutelos e ganchos de carne em correntes. A lua brilhava forte na ponta de suas lâminas, nítida na ponta de seus terríveis ganchos e luminosa em seus olhos, que estavam arregalados de horror. Eles estavam banhados pela luz, enquanto a cidade afundava-se na escuridão.
Sarai despachou suas mariposas para a câmara, onde a maioria dos delegados estava dormindo pesadamente, para as casas dos líderes da cidade, e algumas para os Tizerkane também. A amante de Tzara estava com ela, mas ambas não estavam... dormindo, então, Sarai afastou sua mariposa imediatamente. Em Quedavento, Azareen estava sozinha. Sarai viu-a destrançar os cabelos, colocar sua aliança e deitar-se para dormir. Contudo, ela não ficou para ver seus sonhos. Os sonhos de Azareen eram... difíceis. Sarai não podia deixar de pensar que tinha um papel em roubar a vida que Azareen deveria ter tido – como se ela existisse em vez de uma criança amada que o casal deveria ter concebido. Podia não ser culpa sua, mas ela não conseguia se sentir inocente.
Ela viu o faranji dourado, que parecia doente, ainda acordado e trabalhando. E viu o feioso, cuja pele devastada pelo sol estava se curando na sombra da cidadela, embora ele não ficasse mais bonito com isso. Ele também estava acordado, cambaleando com uma garrafa na mão. Ela não podia suportar sua mente. Todas as mulheres com quem ele sonhava tinham machucados, e ela não tinha ficado tempo suficiente para descobrir como elas ficaram daquela forma. Ela não o visitou desde a segunda noite.
Cada mariposa, cada batida de asa carregava o fardo opressor do exército de fantasmas, de vingança e o peso de outro massacre. Com a ocupação no terraço, ela ficou do lado de dentro, virando cinco vezes mais em sua caminhada do que fazia lá fora. Sentia falta da luz da lua e do vento. Queria sentir a profundidade infinita do espaço acima e ao redor, não essa jaula de metal. Ela se lembrou do que Pardal disse, sonhar era como o jardim: você podia fugir da prisão por um tempo e sentir o céu ao seu redor.
E Sarai argumentou que a cidadela era uma prisão, mas também um santuário. Essa conversa tinha sido há apenas uma semana e também havia o lull, e olhe para ela agora.
Ela estava tão cansada.
Lazlo estava cansado também. Tinha sido um longo dia, e doar seu espírito também não ajudava. Ele comeu com Suheyla e cumprimentou-a pela comida sem mencionar línguas arruinadas. Tomou outro banho e, embora tenha ficado imerso até a água começar a esfriar, a cor cinzenta não desapareceu de suas mãos. Em seu estado de fadiga, os pensamentos pingavam como beija-flores disso para aquilo, sempre voltando ao medo – o medo da cidadela e de tudo o que acontecera nela. Como todos eles eram assombrados pelo passado, Eril-Fane tanto quanto o resto.
Com isso, dois rostos encontraram espaço na mente de Lazlo. Um de uma pintura da deusa morta e o outro de um sonho: ambos azuis, com cabelos castanho-avermelhados e uma listra de tinta preta atravessando os olhos. Azul, preto e canela, ele viu, e perguntou-se de novo como havia acontecido de sonhar antes de ver a aparência dela.
E por que, se ele, de certa forma, tinha vislumbrado Isagol, a Terrível, ela tinha sido... nada terrível?
Ele saiu da banheira e secou-se, vestiu calças limpas de linho, e estava cansado demais para amarrar o cordão. De volta ao seu quarto, tropeçou e caiu na cama, deitado sobre as colchas, e dormiu no meio da segunda respiração.
E foi assim que Sarai o encontrou: dormindo de bruços com a cabeça apoiada nos braços.
O longo e liso triângulo de suas costas subia e descia com a respiração profunda enquanto a mariposa dela pairou sobre ele, procurando um lugar para pousar. Da forma como ele estava deitado, a testa não era uma opção. Havia a extremidade áspera de seu rosto, mas enquanto o observava, ele afundou mais a cabeça entre os braços, e aquele local de pouso diminuiu e desapareceu. Mas havia suas costas.
Ele havia dormido com a glave descoberta e o ângulo baixo da luz lançava pequenas sombras abaixo de cada músculo, e sombras mais profundas nos ombros e descendo pelo canal de sua coluna. Era uma paisagem lunar para a mariposa. Sarai flutuou suavemente no vale escuro de seus ombros e assim que tocou a pele, entrou em seu sonho.
Ela foi cautelosa, como sempre. Já fazia várias noites que ela o visitava desde a primeira vez, e cada vez ela entrava no sonho silenciosamente, como um ladrão. Um ladrão do quê? Ela não estava roubando seus sonhos, nem mesmo os alterando de alguma forma. Ela estava apenas... desfrutando deles, como alguém que desfruta de música tocada gratuitamente.
Uma sonata pairando sobre o jardim.
Inevitavelmente, contudo, depois de ouvir boa música noite após noite, fica-se curioso sobre quem a toca. Ah, ela sabia quem ele era. Afinal, ela estava pousada em sua testa todo esse tempo – até esta noite, e essa nova experiência de suas costas – e havia uma estranha intimidade nisso. Ela conhecia seus cílios de cor, e seu perfume masculino, sândalo e almíscar. Ela até foi se acostumando ao seu nariz torto. Mas dentro dos sonhos, ela mantinha distância.
E se ele a visse de novo? E se não a visse? Será que havia sido uma falha? Ela queria saber, mas tinha medo. No entanto, essa noite algo havia mudado. Ela estava cansada de se esconder. Ela descobriria se ele podia vê-la, e talvez até o porquê. Ela estava preparada para isso, pronta para qualquer coisa. Pelo menos achava que estava.
Na verdade, nada podia tê-la preparado para entrar no sonho e se encontrar já nele.
De novo, as ruas da cidade mágica – Lamento, mas não era Lamento. Era noite, e a cidadela estava no céu desta vez, mas a lua brilhava apesar disso, como se o sonhador quisesse ter o melhor de dois mundos. E, novamente, havia aquela cor inacreditável, e asas leves, frutas e criaturas de contos de fadas. Havia o centauro com sua mulher. Ela andava a seu lado esta noite, e Sarai sentiu-se quase inquieta até que os viu se beijando. Eles eram permanentes ali; ela teria gostado de conversar com eles e ouvir sua história.
Sarai teve a ideia de que cada pessoa e criatura que ela viu ali era o início de outra história fantástica, e queria seguir todas. Mas principalmente, ela estava curiosa com o sonhador.
Ela o viu à frente, cavalgando um espectral. E foi ali que as coisas se tornaram completamente surreais, porque cavalgando ao lado dele, montada em uma criatura com o corpo de um ravide e a cabeça e asas da Aparição, a águia branca, estava... Sarai.
Para esclarecer, a própria Sarai – a Sarai de verdade – estava a distância, onde ela tinha entrado no sonho em um cruzamento de ruas. Ela os viu.
Viu a si mesma.
Viu a si mesma montada em uma criatura mítica no sonho do faranji.
Ela os observou. Sua boca abriu-se e fechou-se. Como? Ela olhou mais de perto. Desejou estar mais próxima para ver melhor, embora fosse cuidadosa para se manter fora de vista.
A outra Sarai, de onde podia ver, parecia-se exatamente como ela na noite em que ele a havia visto: com os cabelos soltos e a máscara pintada de Isagol. Em outras circunstâncias, ela teria pensado que estava vendo sua mãe, porque a semelhança entre as duas era surpreendente, e os humanos sonhavam com Isagol, enquanto, é claro, que nunca sonhavam com ela. Mas aquela não era Isagol. Sua mãe, apesar de todas as similaridades, possuía uma majestade que ela não tinha, e uma crueldade também. Isagol não sorria. Essa garota, sim. Essa garota azul tinha o rosto de Sarai, e não estava usando um vestido de asas de besouro e adagas, mas sim a mesma camisola com bainha de renda que usou na primeira noite.
Ela era parte do sonho.
O faranji estava sonhando com Sarai. Ele estava sonhando com ela... e não era um pesadelo.
Lá na cidadela, seus passos interromperam-se. Entre os ombros nus do sonhador, a mariposa pousada estremeceu. Uma dor subiu pela garganta de Sarai, como um soluço sem a tristeza. Ela olhou para si mesma do outro lado da rua – tal como era vista e lembrada pelo sonhador – e não viu obscenidade, ou calamidade, ou filhos dos deuses.
Ela viu uma garota sorridente e orgulhosa com uma bonita pele azul. Porque foi isso que ele viu, e esta era sua mente.
É claro, ele também achava que ela era Isagol.
– Perdoe-me por perguntar – ele estava dizendo a ela –, mas por que o desespero, entre todas as coisas das quais poderia ser deusa?
– Não conte a ninguém. – Isagol respondeu. – Eu era deusa da lua – ela sussurrou o resto como um segredo. – Mas então eu a perdi.
– Você perdeu a lua? – o sonhador perguntou, e espiou para o céu, onde a lua estava bastante presente.
– Não aquela – ela respondeu. – A outra.
– Havia outra lua?
– Ah, sim. Há sempre uma reserva, para garantir.
– Eu não sabia disso. Mas... como você perde uma lua?
– Não foi minha culpa – a garota explicou. – Ela foi roubada.
A voz não era de Sarai nem de Isagol, mas apenas uma voz imaginada pelo faranji. A estranheza de tudo aquilo confundiu Sarai. Lá estava seu rosto, seu corpo, com uma voz estranha saindo dele, dizendo palavras extravagantes que não tinham nada a ver com ela. Era como olhar para um espelho e ver outra pessoa ali refletida.
– Podemos ir até a lua procurar uma outra para comprar – o sonhador ofereceu. – Se você quiser.
– Existe uma loja de luas? Tudo bem.
E, então, o sonhador e a deusa foram comprar uma lua. Parecia algo saído de uma história. Bem, era como algo saído de um sonho. Sarai os seguiu em um estado de fascinação, e ambos entraram em uma loja minúscula sob uma ponte, deixando suas criaturas na porta. Ela ficou parada diante da vitrine, passou a mão na cabeça cheia de penas do grifo, e sentiu uma pontada de inveja atormentadora. Ela desejou que realmente fosse ela montada no grifo e olhando as bandejas de joias em busca da lua certa. Havia crescentes e quartos de lua, luas cheias e quase cheias, e não eram amuletos, eram luas – luas reais em miniatura, luminosas e com crateras, como se fossem iluminadas pelos raios de alguma estrela distante.
Sarai/Isagol – a impostora, como Sarai estava começando a pensar nela – não conseguia se decidir entre os astros, e levou todas. O sonhador pagou-as com uma espécie engraçada de bolsa de brocado verde, e no instante seguinte elas estavam brilhando no pulso dela, como um bracelete de amuletos. O par deixou a loja e montou em suas criaturas, Isagol levantando seu bracelete de forma que as luas faziam barulho, como sinos.
– Será que eles a deixarão ser uma deusa da lua novamente? – o sonhador perguntou.
Que história absurda é essa de deusa da lua?, Sarai perguntou-se com uma faísca de ira. Isagol não tinha sido nada tão benigno.
– Ah, não – explicou a deusa. – Estou morta.
– Sim, sei. Sinto muito.
– Não devia sentir. Eu era terrível.
– Você não parece terrível – disse o sonhador, e Sarai teve de morder o lábio. Porque essa não é Isagol, ela queria dizer. Sou eu. Mas tampouco era ela. Podia ter seu rosto, mas era um fantasma – apenas um fragmento de memória dançando em uma corda – e tudo o que ela dizia e fazia vinha da mente do sonhador.
Sua mente, onde a deusa do desespero sacudia luas em um bracelete e “não parecia terrível”.
Sarai podia ter lhe mostrado o que era terrível. Ela ainda era a Musa dos Pesadelos, afinal de contas, e havia visões de Isagol em seu arsenal que o teriam acordado gritando. Mas acordá-lo gritando era a última coisa que ela queria, então ela fez algo diferente.
Ela dissolveu o fantasma como uma mariposa ao nascer do sol, e entrou no seu lugar.
37
UM TOM DE AZUL ENCANTADOR
Lazlo piscou. Em um momento a pintura preta de Isagol atravessava seus olhos e no momento seguinte, não. Em um momento seus cabelos estavam soltos em volta dela como um xale e no momento seguinte estavam brilhando em suas costas como bronze fundido. Ela estava coroada com tranças e vinhas e o que ele primeiro achou que eram borboletas, logo viu que eram orquídeas, com uma única longa pena branca em um ângulo vistoso. Em vez da camisola, a garota usava um robe de seda cor de cereja bordado com botões brancos e açafrão.
Havia uma nova fragrância também, alecrim e néctar, e havia outras diferenças, mais sutis: uma mudança em seu tom de azul, um ajuste na inclinação de seus olhos. Uma espécie de... nitidez em suas linhas, como se um véu diáfano tivesse sido levantado. Ela parecia mais real do que um momento atrás.
Além disso, ela não estava mais sorrindo.
– Quem é você? – a moça indagou, e a sua voz havia mudado. Era mais rica, mais complexa – um acorde em oposição a uma nota. Era mais sombria também, e com ela, a extravagância do momento dissipou-se. Não havia mais luas em seu pulso – e tampouco uma lua visível no céu. O mundo pareceu se apagar, e Lazlo, olhando para cima, percebeu a luz da lua apenas como uma auréola em torno das extremidades da cidadela.
– Lazlo Estranho – ele respondeu, ficando sério. – A seu serviço.
– Lazlo Estranho – ela repetiu, e as sílabas eram exóticas em sua língua. Seu olhar era penetrante, sem piscar. Os olhos eram de um azul mais pálido que sua pele, ele sentiu que ela estava tentando sondá-lo. – Mas quem é você?
Era a menor e a maior pergunta de todas, e Lazlo não sabia o que dizer. No nível mais fundamental, ele não sabia quem era. Ele era um Estranho, com tudo o que isso acarretava – embora o significado de seu nome não faria sentido para ela e, de qualquer forma, ele não achava que ela estivesse perguntando sobre seu pedigree. Então, quem era ele?
Naquele momento, quando ela mudou, também mudaram os arredores. A loja de luas desapareceu, e toda Lamento junto com ela. Desapareceu também a cidadela e a sua sombra. Lazlo e a deusa, ainda montados em suas criaturas, foram transportados bem para o centro do Pavilhão do Pensamento. Doze metros de altura, as prateleiras de livros. As lombadas com seus tons de pedras preciosas, o brilho da folha de ouro. Bibliotecários em escadas como espectros em cinza, e acadêmicos em escarlate inclinados sobre suas mesas. Era tudo o que Lazlo tinha visto naquele dia, sete anos atrás, quando a sorte o havia levado a uma nova vida.
E assim pareceu que aquela era sua resposta, ou ao menos sua primeira resposta. A camada mais externa de seu eu, mesmo depois de seis meses longe dela.
– Sou um bibliotecário – respondeu. – Ou eu era, até recentemente. Na Grande Biblioteca de Zosma.
Sarai olhou em volta, absorvendo tudo aquilo e, momentaneamente, esqueceu sua linha dura de interrogatório. O que Feral faria em um lugar como este?
– São tantos livros – ela observou, intimidada. – Eu nunca imaginei que houvesse tantos livros no mundo inteiro.
Sua admiração ganhou a afeição de Lazlo. Ela podia ser Isagol, a Terrível, mas é impossível alguém que mostre reverência por livros ser irredimível.
– Foi assim que me senti da primeira vez que vi.
– O que há em todos eles? – ela perguntou.
– Nesta sala, são todos de filosofia.
– Esta sala? – E virando-se para ele: – Há mais salas?
Ele deu um sorriso largo.
– Muitas mais.
– Todas cheias de livros?
Ele assentiu, orgulhoso, como se tivesse escrito todos.
– Gostaria de ver meus favoritos?
– Tudo bem – a garota concordou.
Lazlo fez Lixxa andar em frente, e a deusa o seguiu com seu grifo. Lado a lado, tão majestosos quanto um par de estátuas, mas muito mais fantásticos, eles cavalgaram pelo Pavilhão do Pensamento. As asas do grifo roçaram nos ombros dos acadêmicos. Os chifres de Lixxa quase derrubaram uma escada. E Lazlo podia ser um sonhador experiente – nos vários sentidos da palavra –, mas nesse momento ele era como qualquer um. Não estava consciente de que era um sonho. Estava simplesmente dentro dele. A lógica que pertencia ao mundo real tinha ficado para trás, como bagagem em um porto. Este mundo tinha uma lógica própria, era fluido, generoso e profundo. As escadas secretas para seu subsolo empoeirado eram estreitas demais para acomodar grandes animais como esses, mas passaram por elas facilmente. E há muito ele havia limpado os livros com infinito amor e carinho, mas a poeira estava lá da mesma forma que quando os encontrou pela primeira vez: um cobertor suave de anos, guardando todos os melhores segredos.
– Ninguém além de mim leu nenhum desses livros em pelo menos uma vida – ele contou.
A garota tirou um livro e soprou a poeira, que pairou em volta como flocos de neve enquanto ela virava as páginas, mas as palavras estavam em um estranho alfabeto que não conseguia ler.
– O que tem neste aqui? – ela indagou a Lazlo, mostrando-lhe.
– Esse é um dos meus favoritos – ele respondeu. – É o épico da mahalath, uma névoa mágica que vem a cada cinquenta anos e cobre um vilarejo por três dias e três noites. Tudo que é vivo se transforma, para melhor ou para pior. As pessoas sabem quando ela está chegando e a maioria foge de sua passagem. Mas há sempre algumas que ficam e assumem o risco.
– E o que acontece com elas?
– Algumas viram monstros, outras, deuses.
– Então é daí que vêm os deuses – ela disse, secamente.
– Você saberia isso melhor do que eu, minha senhora.
Não mesmo, Sarai pensou, porque ela não sabia mais do que os humanos de onde vieram os Mesarthim. Ela, é claro, estava consciente de que aquilo era um sonho. Estava muito acostumada à lógica dos sonhos para se surpreender por qualquer armadilha, mas não tão cansada para achá-las bonitas. Depois de a poeira pairar, flocos de neve continuaram a cair no recinto. Eles brilhavam no chão como açúcar derramado, e quando ela desmontou do grifo, estava frio debaixo de seus pés descalços. A coisa que a surpreendeu, na qual não conseguia parar de pensar mesmo agora, era que ela estava tendo uma conversa com um estranho. Não importa por quantos sonhos já tivesse navegado, quaisquer devaneios quiméricos que tivesse testemunhado, ela nunca havia interagido. Mas aqui estava ela, conversando – batendo papo. Quase como uma pessoa real.
– E este aqui? – quis saber, pegando outro livro.
Ele leu a lombada:
– Folclore de Vaire. Esse é o pequeno reino ao sul de Zosma. – Ele folheou e sorriu. – Você gostaria deste aqui. É sobre um jovem que se apaixona pela lua e tenta roubá-la. Talvez ele seja o seu culpado.
– E ele consegue?
– Não, ele tem que fazer as pazes com o impossível.
Sarai fez uma careta.
– Você quer dizer que ele tem que desistir.
– Bem, é a lua. – Na história, o jovem Sathaz ficou tão encantado pelo reflexo da lua no poço profundo e imóvel perto de sua casa na floresta que olhava para ela, extasiado, mas sempre que tentava alcançá-la, ela se partia em mil pedaços e o deixava molhado, com os braços vazios. – Mas então – Lazlo acrescentou –, se alguém conseguiu roubá-la de você... –Ele olhou para o pulso nu onde não havia mais lua pendurada.
– Talvez tenha sido ele – ela disse – e a história está errada.
– Talvez – consentiu Lazlo. – E Sathaz e a lua estão vivendo felizes juntos numa caverna em algum lugar.
– E tiveram milhares de filhos juntos, e é daí que vêm as glaves. A união do homem com a lua. – Sarai ouviu-se e se perguntou o que havia de errado com ela. Momentos atrás estava irritada com aquele absurdo sobre a lua que estava saindo da boca de seu fantasma, e agora ela estava fazendo a mesma coisa. Era Lazlo, pensou. Era a mente dele. As regras eram diferentes aqui. A verdade era diferente. Era... mais agradável.
Ele deu um sorriso largo, e vê-lo deu um frio na barriga da Sarai.
– E aquele ali? – ela perguntou, virando-se rapidamente para apontar para um livro grande em uma prateleira mais alta.
– Ah, olá – disse ele, estendendo a mão para pegá-lo. Ele o trouxe para baixo: um tomo imenso, encadernado em veludo verde-claro com uma camada decorativa de prata. – Este – ele disse, passando-o para ela – é o vilão que quebrou meu nariz.
Quando ele o soltou em suas mãos, seu peso quase a fez derrubá-lo na neve.
– Isso? – ela perguntou.
– Meu primeiro dia como aprendiz – ele explicou pesaroso. – Foi sangue para todo lado. Não vou enojá-la apontando para a mancha na lombada.
– Um livro de contos de fadas quebrou seu nariz! – Sarai exclamou, sem conseguir evitar um sorriso ao constatar como estivera errada sua primeira impressão. – Imaginei que você tivesse brigado.
– Foi mais uma emboscada, na verdade. Eu estava na ponta dos pés, tentando pegá-lo – falou, tocando o nariz –, mas ele me pegou.
– Você tem sorte que ele não o decepou – disse Sarai, devolvendo-lhe o livro.
– Muita sorte. Eu tenho tristeza suficiente para um nariz quebrado. Nunca ouvi falar no fim de uma cabeça perdida.
Sarai deixou escapar um risinho.
– Acho que não dá para ouvir muita coisa se você perder a cabeça.
Solenemente, ele disse:
– Espero nunca descobrir.
Sarai observou seu rosto, como ela havia feito da primeira vez que o vira. Além de pensar nele como uma espécie de bruto, ela também o tinha achado feio. Entretanto, olhando agora, achou que a beleza não vinha ao caso. Ele era notável, como o perfil de um conquistador em uma moeda de bronze. E isso era melhor.
Lazlo, sentindo a análise, corou. Sua hipótese sobre a opinião dela quanto à sua aparência era bem menos favorável do que os pensamentos dela sobre o assunto. Sua opinião sobre a aparência dela era simples. Ela era simplesmente adorável, com bochechas redondas e um queixinho, e a boca era suculenta como uma ameixa, o lábio inferior como uma fruta madura com uma prega no meio, e macio como a pele de um damasco. Os cantos de seu sorriso, voltados para cima com satisfação, eram tão nítidos quanto as pontas da lua crescente, e suas sobrancelhas brilhavam contra o azul de sua pele, tão cor de canela quanto seus cabelos. Ele continuava esquecendo que ela estava morta e então se lembrava, e ficava triste toda vez que isso acontecia. Quanto ao fato de ela estar morta e ali, a lógica dos sonhos não se perturbava com enigmas.
– Deus do céu, Estranho – surgiu uma voz, e Lazlo viu mestre Hyrrokkin se aproximar, empurrando um carrinho de biblioteca. – Estive te procurando por toda parte.
Era tão bom vê-lo. Lazlo envolveu-o em um abraço que, evidentemente, constituía um excesso de afeição, porque o velho o empurrou, enfurecido.
– O que deu em você? – ele perguntou, ajeitando suas vestes. – Imagino que em Lamento eles saiam por aí maltratando uns aos outros como ursos lutadores.
– Exatamente como ursos lutadores – respondeu Lazlo. – Sem os ursos. Ou a luta.
Mas Mestre Hyrrokkin tinha visto a companhia de Lazlo. Seus olhos arregalaram-se.
– Mas quem é esta? – ele perguntou, sua voz uma oitava mais alta.
Lazlo os apresentou.
– Mestre Hyrrokkin, esta é Isagol. Isagol, Mestre Hyrrokkin.
Em um sussurro, o velho perguntou:
– Por que ela é azul?
– Ela é a deusa do desespero – Lazlo respondeu, como se isso explicasse tudo.
– Não, ela não é – disse Mestre Hyrrokkin, imediatamente. – Você entendeu errado, garoto. Olhe para ela.
Lazlo olhou, mais para oferecer um olhar de desculpas do que para considerar a afirmação do Mestre Hyrrokkin. Ele sabia quem ela era. Tinha visto a pintura, e Eril-Fane confirmara.
É claro, ela se parecia menos com ela mesma agora, sem a pintura preta nos olhos.
– Você fez como sugeri, então? – perguntou Mestre Hyrrokkin. – Você lhe deu flores?
Lazlo lembrou-se de seu conselho: “colha flores e encontre uma garota para presentear”. Ele se lembrou do resto do conselho também: “olhos meigos e quadris largos”. E corou com a lembrança. A garota era muito magra, e Lazlo não esperava que a deusa do desespero tivesse olhos meigos. Contudo, ela tinha, ele percebeu.
– Flores, não – respondeu, encabulado, querendo afastar qualquer exploração posterior do assunto. Ele sabia das tendências lascivas do velho e estava ansioso para vê-lo partir antes que ele dissesse alguma coisa infeliz. – Não é assim...
Mas Isagol o surpreendeu levantando o pulso, no qual o bracelete havia reaparecido.
– Mas ele me deu a lua – ela disse.
Não havia vários amuletos nele agora, apenas um: uma lua crescente, branca e dourada, pálida e radiante, parecendo ter sido arrancada do céu.
– Muito bem, garoto – afirmou Mestre Hyrrokkin, aprovando o gesto. De novo, o sussurro: – Ela podia ser mais voluptuosa, mas suponho que seja macia o bastante nos lugares certos. Você não vai querer ser cutuca-do por ossos quando...
– Por favor, Mestre Hyrrokkin – disse Lazlo, apressando-se em interrompê-lo. Seu rosto ficou vermelho.
O bibliotecário riu.
– Qual é a vantagem de ser velho se você não pode constranger os mais jovens? Bem, vou deixá-los em paz. Bom dia, minha jovem. Foi um prazer. – Ele beijou a mão dela, então virou-se, cutucando Lazlo com o cotovelo e sussurrando alto enquanto saía: – Que tom de azul encantador!
Lazlo virou-se para a deusa.
– Meu mentor – ele explicou. – Ele tem maus modos, mas bom coração.
– Nem percebi – respondeu Sarai, que não tinha visto nenhum problema com os modos do velho homem, e teve de lembrar-se, em todo caso, que aquela era apenas outra invenção da mente do sonhador. “Você errou, garoto”, o bibliotecário tinha dito. “Olhe para ela”. Será que isso significava que em algum nível Lazlo a via para além do disfarce, e não acreditava que ela fosse Isagol? Ela ficou contente com a ideia, e repreendeu-se por se preocupar com isso. Voltando-se para as estantes, percorreu com o dedo as lombadas de uma fileira de livros.
– Todos estes livros – ela quis saber – são sobre magia? –, refletindo se ele era algum especialista. Se era por isso que o Matador de Deuses o havia trazido consigo.
– São mitos e folclore, principalmente – respondeu Lazlo. – Qualquer coisa considerada muito divertida pelos acadêmicos para ser importante. Eles os colocaram aqui e esqueceram. Superstições, músicas, feitiços. Serafins, presságios, demônios, fadas. – Apontou para uma estante. – Aqueles são todos sobre Lamento.
– Lamento é divertida demais para ser importante? – ela indagou. – Acho que os cidadãos de lá vão discordar de você.
– Não é minha avaliação, acredite. Se eu fosse um acadêmico, poderia defender a cidade, mas você entende, também não sou importante.
– Não? E por que isso?
Lazlo olhou para seus pés, relutante em explicar a própria insignificância.
– Sou um órfão – explicou, fitando-a. – Não tenho família, não tenho nome.
– Mas você me disse seu nome.
– Tudo bem. Tenho um nome que diz ao mundo que não tenho nome. É como uma placa em volta do meu pescoço dizendo “Ninguém”.
– É tão importante ter um nome? – Sarai perguntou.
– Acho que os cidadãos de Lamento diriam que sim.
Sarai não teve resposta para isso.
– Eles nunca o recuperarão, não é? – Lazlo perguntou. – O verdadeiro nome da cidade? Você se lembra?
Sarai não se lembrava. Ela duvidava que o tivesse conhecido.
– Quando Letha roubava uma memória, ela não a guardava numa gaveta como um brinquedo confiscado. Ela a comia e a memória desaparecia para sempre. Esse era o seu dom. Erradicação.
– E o seu dom? – Lazlo perguntou.
Sarai congelou. A ideia de explicar-lhe seu dom trouxe uma sensação imediata de vergonha. Mariposas voam da minha boca, imaginou-se dizendo. Para que eu possa invadir as mentes humanas como estou fazendo com você agora mesmo. Mas, é claro, ele não estava perguntando sobre o dom dela. Por um momento ela esqueceu de quem era – ou não era. Ela não era Sarai aqui, mas esse absurdo fantasma domado de sua mãe.
– Bom, ela não era nenhuma deusa da lua – a garota falou. – Isso é tudo muito absurdo.
– Ela? – Lazlo perguntou, confuso.
– Eu – Sarai respondeu, embora a resposta tenha ficado presa em sua garganta. Isso a afetou com uma pontada de profundo ressentimento, de que essa coisa extraordinária e inexplicável acontecesse: um humano pudesse vê-la – e ele estava falando com ela sem ódio, com algo mais parecido com fascínio e até mesmo encantamento – e ela não tivesse de esconder sua presença. Se ela fosse Isagol, mostraria seu dom. Como um gatinho maléfico com um novelo, ela enrolaria suas emoções até que ele perdesse toda distinção entre amor e ódio, alegria e tristeza. Sarai não queria fazer esse papel, jamais. Ela voltou as perguntas para ele.
– Por que você não tem família? – ela indagou.
– Houve uma guerra. Eu era bebê. Acabei num carrinho de órfãos. É tudo o que sei.
– Então você poderia ser qualquer pessoa. Até mesmo um príncipe.
– Num conto de fadas, talvez – ele sorriu. – Não acredito que houvesse algum príncipe desaparecido. Mas e quanto a você? Deuses têm famílias?
Sarai pensou primeiro em Rubi e Pardal, Feral e Minya, Grande e Pequena Ellens, e nos outros: sua família, mesmo que não fossem de sangue. Então pensou em seu pai, e seus corações endureceram. Mas o sonhador estava fazendo de novo, voltando as questões para ela.
– Somos feitos de névoa – respondeu. – Lembra? A cada cinquenta anos.
– A mahalath. É claro. Então você foi uma das que assumiu o risco.
– Você não faria o mesmo? – ela perguntou. – Se a névoa estivesse chegando, você ficaria e seria transformado, sem saber qual seria o resultado?
– Eu ficaria – ele disse imediatamente.
– Essa foi rápida. Você abandonaria sua verdadeira natureza com tão pouca consideração?
Ele riu disso.
– Você não faz ideia de quanto já considerei isso. Vivi sete anos dentro desses livros. Meu corpo podia estar cumprindo os deveres na biblioteca, mas minha mente estava aqui. Você sabe como me chamavam? Estranho, o sonhador. Eu mal percebia o que estava ao meu arredor na metade do tempo. – Ele ficou surpreso consigo mesmo, falando assim, e com ninguém menos que a deusa do desespero. Mas os olhos dela estavam brilhando de curiosidade, um espelho de sua própria curiosidade sobre ela, e sentiu-se totalmente à vontade. Certamente o desespero era a última coisa na qual pensou ao fitá-la. – Eu andava por aí me perguntando que tipo de asas eu compraria se os fabricantes de asas viessem para a cidade, e se eu preferia montar em dragões ou caçá-los, e se eu ficaria quando a névoa chegasse, e mais do que qualquer outra coisa, como eu chegaria até a Cidade Perdida.
Sarai levantou a cabeça.
– A Cidade Perdida?
– Lamento. Sempre odiei esse nome, então inventei o meu.
Sarai estava sorrindo e querendo perguntar em que livro estavam os fabricantes de asas, e se os dragões eram malvados ou não, mas ao se lembrar de Lamento, seu sorriso lentamente derreteu-se em melancolia, e isso não foi a única coisa que derreteu. Para seu arrependimento, a biblioteca também derreteu, e então estavam em Lamento novamente. Mas dessa vez não era a Lamento dele, mas a dela, e podia estar mais perto da cidade de verdade do que a versão dele, mas tampouco era correta. Com certeza, ainda era bela, mas havia as nuances da proibição também. Todas as portas e janelas estavam fechadas – e os peitoris, desnecessário dizer, não tinham bolos – e era um lugar desolado com jardins mortos e a correria corcunda de uma população que temia o céu.
Havia tantas coisas que ela queria perguntar a Lazlo, que era chamado de “sonhador” mesmo antes de ela tê-lo apelidado assim. Por que você pode me ver? O que você faria se soubesse que sou real? Que asas você escolheria se os fabricantes de asas chegassem? Podemos voltar para a biblioteca, por favor, e ficar um tempo lá? Mas ela não podia dizer nada disso.
– Por que você está aqui? – ela perguntou.
Ele ficou espantado com a mudança repentina no clima.
– É meu sonho desde que eu era criança.
– Mas por que o Matador de Deuses te trouxe? Qual é a sua parte nisso? Os outros são cientistas, construtores. Por que o Matador de Deuses precisa de um bibliotecário?
– Ah, não, não sou um deles. Parte da delegação, quero dizer. Tive que implorar por um lugar na comitiva. Sou o secretário dele.
– Você é o secretário de Eril-Fane.
– Sim.
– Então você deve conhecer os planos. – O pulso de Sarai acelerou. Outra das mariposas estava voando em frente ao pavilhão onde os trenós de seda estavam. – Quando ele virá para a cidadela? – indagou, sem pensar.
Era a pergunta errada. Ela soube disso assim que a proferiu. Talvez fosse o fato de ser direta, ou a sensação de urgência, ou talvez tenha sido o escorregão de ter usado virá em vez de irá, mas algo mudou em seu jeito, como se ele estivesse olhando-a com novos olhos.
E ele estava. Sonhos têm seus ritmos, seus pontos rasos e profundos, e ele estava subindo para um estágio de maior lucidez. A lógica deixada para trás do mundo real veio descendo como raios de sol através da superfície do oceano, e ele começou a entender que nada disso era real. É claro que ele não tinha cavalgado Lixxa pelo Pavilhão do Pensamento. Era tudo fugaz, instável: um sonho.
Exceto por ela.
Ela não era fugaz nem instável. Sua presença tinha um peso, uma profundidade e uma clareza que nada mais tinha – nem mesmo Lixxa, e havia poucas coisas que Lazlo conhecia melhor ultimamente do que a realidade física de Lixxa. Depois de seis meses cavalgando o dia inteiro, ela era quase uma extensão dele. Mas o espectral pareceu de repente insubstancial, e logo que esse pensamento lhe ocorreu, ele se dissolveu. O grifo também. Havia apenas ele e a deusa com seu olhar penetrante e perfume de néctar e... gravidade.
Não gravidade no sentido de solenidade – embora isso, também –, mas gravidade no sentido de uma força. Ele sentiu como se ela estivesse no centro dessa pequena e surreal galáxia – na verdade, que era ela que estava sonhando com ele, e não o contrário.
Lazlo não sabia o que o estava levando a fazer aquilo. Não era de seu feitio. Ele pegou a mão dela e a segurou gentilmente. Era pequena, macia e muito real.
Na cidadela, Sarai levou um susto ao sentir o calor da pele de Lazlo. Uma chama de conexão – ou colisão, como se estivessem há tempos perambulando no mesmo labirinto e, finalmente, dobraram a esquina que os deixaria face a face. Era uma sensação de estar perdida e sozinha e, de repente, nenhuma dessas coisas. Sarai sabia que deveria puxar sua mão, mas não fez isso.
– Você precisa me dizer – ela disse.
Ela podia sentir o sonho ficando mais raso, como um navio encalhando em um banco de areia. Logo ele acordaria.
– As máquinas de voar. Quando vão lançá-las?
Lazlo sabia que era um sonho, e sabia que não era um sonho, e as duas noções andando em círculos em sua mente, deixando-o confuso.
– O quê? – ele indagou. A mão dela parecia o pulsar dos corações dentro da sua.
– As máquinas voadoras – ela repetiu. – Quando?
– Amanhã – ele respondeu, sem pensar.
A palavra, como uma foice, cortou as cordas que a estavam mantendo em pé. Lazlo achou que sua mão ao redor da dela era tudo que a mantinha ereta.
– O que foi? – ele perguntou. – Você está bem?
Ela se afastou, puxou sua mão.
– Me escute – a garota falou, e seu rosto ficou severo. A faixa preta retornou como um golpe cortante e seus olhos arderam ainda mais brilhantes para dar contraste.
– Eles não devem vir – ela disse, com uma voz tão inflexível quanto o mesarthium. As vinhas e orquídeas desapareceram de seus cabelos, e então havia sangue fluindo dele, riachos descendo de sua fronte e se acumulando nos olhos para enchê-los até que não houvesse nada além de poças vermelhas, e ainda assim o sangue fluía, descendo para os lábios e para dentro da boca, encharcando-a enquanto falava.
– Você entende? – ela reforçou. – Se fizerem isso, todos morrerão.
38
TODOS MORRERÃO
Todos morrerão.
Lazlo acordou de supetão e ficou surpreso ao encontrar-se sozinho no quarto. As palavras ecoavam em sua cabeça e uma visão da deusa ficou impressa em sua mente: sangue empoçando-se em seus olhos e pingando até sua boca carnuda. Havia sido tão real que quase não pôde acreditar que era um sonho. Mas é claro que havia sido. Apenas um sonho, o que mais? Sua mente estava transbordando com novas imagens desde sua chegada em Lamento. Os sonhos eram uma forma do cérebro processar tudo aquilo, e agora ele estava com dificuldade de fazer a correlação da garota do sonho com aquela no mural. Vibrante e triste versus... sangrenta e raivosa.
Ele sempre fora um sonhador vívido, mas isso era algo completamente novo. Ainda podia sentir o formato e o peso da mão dela na sua, seu calor e maciez. Tentou afastar a lembrança à medida que começou os afazeres da manhã, mas a imagem daquele rosto continuava invadindo sua mente e o eco assustador de suas palavras: todos morrerão.
Especialmente quando Eril-Fane o convidou para subir para a cidadela.
– Eu? – ele perguntou, assombrado. Eles estavam no pavilhão, ao lado dos trenós de seda. Ozwin preparava os dois; para economizar o gás de ulola, apenas um subiria hoje. Uma vez que chegassem à cidadela, deveriam restaurar seu extinto sistema de roldanas para que as futuras idas e vindas não dependessem de voar.
Era assim que os produtos eram levados da cidade na época dos Mesarthim, com uma cesta grande o suficiente para carregar uma ou duas pessoas – descobriram depois da libertação, quando os libertos a usaram para descer, uma viagem por vez. Mas nas horas de choque e de celebração em que receberam a notícia da morte dos deuses, devem ter se esquecido de amarrar as cordas apropriadamente, pois as cestas se soltaram das roldanas e caíram, deixando a cidadela para sempre – até então – inacessível. Hoje eles restabeleceriam a ligação.
Soulzeren havia dito que podia levar três passageiros além de si mesma. Eril-Fane e Azareen eram dois, e Lazlo recebeu a oferta do último lugar.
– Você tem certeza? – ele perguntou a Eril-Fane – Mas... um dos Tizerkane...?
– Como você sem dúvida observou – disse Eril-Fane –, a cidadela é difícil para nós.
Somos todos filhos da sombra, Lazlo lembrou-se.
– Qualquer um deles viria se eu pedisse, mas ficarão felizes de serem poupados. Você não precisa vir se não quiser. – Um brilho leve tomou conta de seu semblante. – Sempre posso pedir a Thyon Nero.
– Isso é desnecessário – informou Lazlo. – E, de qualquer forma, ele não está aqui.
Eril-Fane olhou em volta.
– Não, ele não está, não é? – Thyon era, na verdade, o único delegado que não tinha aparecido para ver o lançamento. – Devo mandar buscá-lo?
– Não – respondeu Lazlo. – É claro que quero ir.
Na verdade, ele não estava tão certo depois de seu sonho macabro. Apenas um sonho, falou a si mesmo, olhando para a cidadela. O ângulo do sol que nascia deixava escapar alguns raios sob as extremidades das asas, produzindo um brilho recortado ao longo das pontas das imensas penas de metal.
Todos morrerão.
– Você tem certeza de que ela está vazia? – ele soltou, tentando sem sucesso parecer casual.
– Tenho certeza – afirmou Eril-Fane, com um tom austero e decisivo. Ele amoleceu um pouco. – Se você está com medo, saiba que está em boa companhia. Tudo bem se preferir ficar.
– Não, estou bem – Lazlo insistiu.
E foi assim que ele se viu entrando a bordo de um trenó de seda menos de uma hora depois. Apesar do calafrio que não o deixava, ele foi capaz de se maravilhar com esse novo desdobramento de sua vida. Ele, Estranho, o sonhador, ia voar. Voaria na primeira aeronave do mundo, junto a dois guerreiros Tizerkane e uma mecânica que costumava fazer armas de fogo para generais, para uma cidadela de estranho metal azul flutuando sobre a cidade de seus sonhos.
Além dos faranji, cidadãos estavam reunidos para ver a decolagem, Suheyla inclusive, e todos estavam marcados pela mesma apreensão que os Zeyyadin na noite anterior. Ninguém olhava para cima. Lazlo achou o medo deles mais perturbador do que nunca e ficou contente de se distrair com Calixte.
Ela veio e sussurrou:
– Traga-me um souvenir. – E piscou. – Você me deve.
– Não vou furtar a cidadela para você – ele disse, com ar afetado. E então: – Que tipo de souvenir? – Sua mente foi imediatamente para os corpos dos deuses que eles esperavam encontrar, incluindo o de Isagol. Ele estremeceu. Quanto tempo levava para um corpo se tornar um esqueleto? Menos de quinze anos, certamente. Mas ele não quebraria nenhum osso do mindinho para Calixte. Além disso, Eril-Fane explicara que Lazlo e Soulzeren esperariam do lado de fora enquanto ele e Azareen faziam uma busca para garantir que o lugar estava seguro.
– Eu achava que você tinha certeza de que estava vazio – Lazlo observou.
– Vazio dos vivos – foi a resposta para reconfortá-lo.
E então subiram a bordo. Soulzeren colocou óculos que a faziam parecer uma libélula. Ozwin deu-lhe um beijo e soltou as cordas que prendiam os grandes pontões de seda firmemente ao chão. Eles tinham de soltá-las todas de uma vez se quisessem subir reto e não “ziguezaguear como camelos bêbados”, como disse Ozwin. Havia cordas de segurança que se prendiam a equipamentos que Soulzeren deu-lhes para usar – todos menos Eril-Fane, cujos ombros eram largos demais para eles.
– Prenda no seu cinto, então – disse Soulzeren, franzindo a testa. Ela olhou para cima, espremendo os olhos em direção às grandes asas de metal, às solas dos pés do grande anjo e ao céu que podia ver em torno das extremidades. – Não há vento, de qualquer forma. Deve correr bem.
Então fizeram uma contagem regressiva e lançaram-se.
E simples assim... estavam voando.
Os cinco na cidadela reuniram-se no terraço de Sarai, observando, observando, observando a cidade. Se olhassem bastante, ela tornava-se um padrão abstrato: o círculo do anfiteatro na oval formada pelos muros externos, que eram quebrados pelos quatro monólitos das âncoras. As ruas eram labirínticas. Elas os tentavam a traçar caminhos com os olhos, encontrar rotas entre este e aquele lugar. Todos os filhos dos deuses faziam isso, exceto Minya, que havia desejado vê-la de perto.
– Talvez não estejam vindo – afirmou Feral, esperançoso. Desde que Sarai lhe contou sobre a vulnerabilidade dos trenós de seda, ele vinha pensando sobre o assunto, perguntando-se o que faria quando chegasse a hora. Será que ele desafiaria Minya ou desapontaria Sarai? Qual era o caminho mais seguro? Mesmo agora ele estava incerto. Se não viessem, ele não teria de escolher.
Escolher não era o ponto forte de Feral.
– Lá – Pardal apontou, com a mão tremendo. Ela ainda segurava as flores que estivera tramando nos cabelos de Sarai, bastões-do-imperador vermelhos, como as que havia colocado no bolo “para fazer um pedido” de Rubi, exceto pelo fato de estas não serem botões. Eram flores abertas, tão lindas quanto fogos de artifício. Ela já tinha feito o cabelo de Rubi e Rubi o dela. Todas as três usavam desejos no cabelo hoje.
Então os corações de Sarai balançaram, parecendo bater juntos. Ela inclinou-se para frente, apoiando-se na mão do anjo para espiar e seguir a linha do dedo de Pardal até os telhados da cidade. Não, não, não, repetia em sua cabeça, mas viu: uma luz vermelha, erguendo-se do pavilhão da câmara.
Eles estavam vindo. Soltando-se da cidade, deixando telhados, espirais e domos para trás. A forma cresceu, ficando mais distinta, e logo Sarai pôde ver quatro figuras. Seus corações continuaram batendo forte.
Seu pai. É claro que ele era um dos quatro. Era fácil discerni-lo a distância por causa do tamanho. Sarai engoliu em seco. Ela nunca o tinha visto com os próprios olhos. Uma onda de emoção tomou conta da garota, não era fúria, não era ódio. Era anseio. De ser filha de alguém. Um nó formou-se em sua garganta. Ela mordeu o lábio.
E não demorou para que eles se erguessem perto o bastante para que ela pudesse distinguir os outros passageiros. Ela reconheceu Azareen, e não teria esperado menos da mulher que amou Eril-Fane por tanto tempo. A piloto era a mulher faranji mais velha, e o quarto passageiro...
O quarto passageiro era Lazlo.
Seu rosto estava voltado para cima. Ele ainda estava distante demais para ser visto com clareza, mas ela sabia que era ele.
Por que ele não a tinha ouvido? Por que ele não tinha acreditado nela? Bem, ele acreditaria em pouco tempo. Ondas de calor e frio tomaram seu corpo, seguidas de desespero. O exército de Minya estava do lado de dentro do quarto de Sarai, pronto para emboscar os humanos quando pousassem. Formariam um enxame em volta deles com suas facas, cutelos e ganchos de carne. Os humanos não teriam nenhuma chance. Minya ficou parada lá como a pequena general que era, atenta e pronta.
– Tudo bem – ela disse, olhando para Sarai e Feral, Rubi e Pardal com um olhar frio e brilhante. – Todos saiam de vista – ordenou, e Sarai observou enquanto os outros obedeciam.
– Minya – ela começou.
– Agora – gritou Minya.
Sarai não sabia o que fazer. Os humanos estavam vindo. Um massacre estava prestes a acontecer. Entorpecidamente, ela seguiu os outros, desejando que fosse um pesadelo do qual pudesse acordar.
Não era como voar. Não havia nada de pássaro nessa ascensão constante. Eles flutuaram para cima como um botão de ulola muito grande, com um pouco mais de controle do que as flores levadas pelo vento.
Fora os pontões, que eram de seda vermelha especialmente tratada e continham gás de ulola, havia outra bexiga, esta sob a aeronave, que se enchia de ar por meio de pedais na parte de baixo. Não era para flutuar, mas para impulsionar. Por meio de várias válvulas, Soulzeren podia controlar o impulso em diferentes direções – para frente, para trás, para os lados. Havia um mastro e uma vela, também, que funcionavam exatamente como em um barco a vela se os ventos fossem favoráveis. Lazlo tinha visto os voos de teste em Thanagost, e a visão dos trenós movendo-se pelo céu de vento em popa tinha sido mágica.
Olhando para baixo, notou as pessoas nas ruas e nos terraços ficando cada vez menores até que o trenó flutuou tão alto que a cidade se espalhou como um mapa, chegando à altura da parte mais baixa da cidadela, os pés. Subindo e subindo, passando os joelhos, as longas e lisas coxas até o torso, que parecia enrolado em tecido leve – tudo mesarthium e sólido, mas tão astuciosamente moldado que era possível ver os ossos do quadril como se através de um tecido translúcido.
Seja lá o que Skathis tivesse sido, também fora um artista.
Para lançar a maior sombra, as asas eram abertas em leque em um imenso círculo, com as penas escapulares se tocando na parte de trás, as secundárias formando o meio do anel e as longas primárias alcançando toda a circunferência até ficarem paralelas com os braços estendidos do serafim. O trenó de seda subiu pelo espaço entre os braços, alinhando-se com o peito. Ao olhar para cima abaixo do queixo, uma cor chamou a atenção dos olhos de Lazlo. Verde. Fileiras de verde sob as clavículas, estendendo-se de um ombro até o outro.
Eram as árvores que deixavam cair as ameixas no distrito chamado Quedavento, Lazlo pensou. Ocorreu-lhe se perguntar como, com tão pouca chuva, elas ainda estavam vivas.
– Feral – Sarai implorou –, por favor.
Feral cerrou os dentes. Ele não a olhou. Se ela estivesse pedindo para não fazer alguma coisa, ele se perguntou se seria mais fácil do que fazer alguma coisa. Ele olhou para Minya.
– Isso não precisa acontecer – Sarai continuou. – Se você invocar as nuvens agora mesmo, ainda pode forçá-los a voltar.
– Feche sua boca – Minya ordenou, com a voz fria como gelo, e Sarai viu que a enfurecia o fato de não conseguir fazer com que os vivos a obedecessem tão facilmente quanto os mortos.
– Minya – ela implorou –, se ninguém morrer, há esperança de encontrar outra forma.
– Se ninguém morrer! – repetiu Minya. Ela deu uma risada alta. – Então eu diria que é tarde demais para a esperança, quinze anos.
Sarai fechou os olhos e abriu-os novamente.
– Quero dizer agora. Se ninguém morrer agora.
– Se não for hoje, então será amanhã ou no dia seguinte. Quando há um trabalho desagradável para fazer, é melhor fazer logo. Postergar não vai ajudar.
– Pode ser que ajude – disse Sarai.
– Como?
– Eu não sei!
– Fale baixo – Minya sussurrou. – Você entende que uma condição necessária para essa emboscada é a surpresa?
Sarai a observou, o rosto tão duro e intransigente, e novamente viu Skathis em seus traços, até na forma dele. Se Minya tivesse herdado o poder de Skathis, refletiu, será que seria diferente dele, ou subjugaria toda uma população e justificaria tudo dentro dos rígidos parâmetros de justiça. Como essa criança pequena e traumatizada havia mandado neles por tanto tempo? De repente, isso lhe pareceu ridículo. Será que não teria havido outra forma, desde o início? E se Sarai nunca tivesse produzido nenhum pesadelo? E se, desde o começo, ela tivesse acalmado os medos de Lamento em vez de os alimentado? Será que ela teria acabado com todo esse ódio?
Não. Mesmo ela não podia acreditar nisso. Por duzentos anos ele veio crescendo. O que ela poderia ter esperado alcançar em quinze?
Nunca saberia. Ela nunca tivera uma escolha e agora era tarde demais. Esses humanos morreriam.
E depois?
Quando o trenó de seda e seus passageiros não retornassem? Será que eles mandariam o próximo em seguida, para que mais morressem?
E depois?
Quem sabe quanto tempo isso lhes garantiria, quantos meses ou anos eles teriam essa existência de purgatório antes de um ataque maior e mais ousado – mais aeronaves, Tizerkane saltando de navios como piratas abordando uma embarcação. Ou os estrangeiros inteligentes elaborariam algum plano grandioso para afundar a cidadela.
Ou suponha que os humanos simplesmente se dessem por vencidos e abandonassem Lamento, deixando uma cidade fantasma para eles dominarem. Sarai imaginou-a vazia, todas aquelas ruas labirínticas e camas desarrumadas desertas e sentiu, por um momento de choque, como se estivesse se afogando no vazio. Ela imaginou suas mariposas se afogando no silêncio e aquilo pareceu o fim do mundo.
Apenas uma coisa era certa, o que quer que acontecesse: desse momento em diante, os cinco seriam como fantasmas fingindo que ainda estavam vivos.
Sarai queria dizer tudo isso, mas as palavras enroscaram-se dentro de si. Ela tinha segurado a língua por muito tempo. Era tarde demais. Percebeu um flash de vermelho através da porta aberta e sabia que era o trenó de seda, embora seu primeiro pensamento tenha sido sangue.
Todos morrerão.
A expressão de Minya era predatória, ávida. Sua mãozinha estava pronta para dar o sinal, e...
– Não – Sarai gritou, empurrando-a para o lado e passando correndo. Ela empurrou a multidão de fantasmas, que eram tão sólidos quanto corpos vivos, mas sem o calor. Ela chocou-se com uma faca segurada pela mão de um fantasma. A lâmina deslizou por seu antebraço enquanto ela abria caminho para passar. Era tão afiada que a garota a sentiu apenas como uma linha de calor. O sangue correu rápido e, quando um fantasma agarrou seu pulso, foi difícil segurá-la por estar molhada. Ela se libertou e correu para a porta.
O trenó de seda estava lá, manobrando para pousar. Eles já tinham se virado para sua direção e levaram um susto quando ela apareceu. A piloto estava ocupada com as alavancas, mas os outros três a viram.
As mãos de Eril-Fane e Azareen tocaram na bainha de suas hreshteks.
Lazlo, surpreso, disse:
– Você.
E Sarai, com um soluço, gritou:
– Fujam!
39
INIMIGOS PERIGOSOS
Árvores que deveriam estar mortas. Movimento onde deveria haver quietude. Uma figura na porta da cidadela há muito abandonada.
Onde deveria haver nada além de abandono e antigas mortes, lá estava... ela.
O primeiro instinto de Lazlo foi duvidar de que estivesse acordado. A deusa do desespero estava morta e ele estava sonhando. Mas ele sabia que isso, pelo menos, não era verdade. Ele sentiu o silêncio repentino de Eril-Fane, e percebeu a mão grande congelar no cabo da hreshtek meio desembainhada. A de Azareen não, e libertou a arma com um ruído letal.
Lazlo notou tudo isso em sua visão periférica, pois não conseguia se virar para olhar. Não conseguia tirar os olhos dela.
Ela tinha flores vermelhas nos cabelos. Seus olhos estavam arregalados e desesperados. Sua voz cavou um túnel pelo ar. Era rouca e profunda, como uma velha corrente de âncora passando pelo escovém. A garota estava lutando. Mãos a puxaram de lá de dentro. Mãos de quem? Ela segurou-se no batente da porta, mas o mesarthium era liso, não havia nada para lhe dar apoio e havia muitas mãos, agarrando seus braços, cabelos e ombros. Ela não tinha onde se segurar.
Lazlo quis sair em sua defesa. Seus olhos encontraram-se. O olhar era como a luz de um raio. O grito dela ainda ecoava – Fujam! – e então ela desapareceu dentro da cidadela.
Enquanto outros começaram a sair.
Soulzeren tinha, no instante do grito, revertido o movimento do trenó, fazendo-o mover-se suavemente para trás. “Suavemente” era sua única velocidade, exceto com velas e uma boa brisa. Lazlo ficou em pé, experimentando o significado completo de inutilidade enquanto uma onda de inimigos arremessou-se contra eles, movendo-se com uma fluidez esquisita, voando na direção deles como se tivessem sido lançados. Ele não tinha espada para pegar e nada a fazer a não ser ficar parado, observando. Eril-Fane e Azareen ficaram justamente à frente dele e de Soulzeren, protegendo-os desse impossível ataque. Eram muitos e muito rápidos. Eles saíam como abelhas de uma colmeia. Lazlo não conseguiu entender o que estava vendo. Eles estavam vindo. E vinham com tudo.
Eles estavam ali.
Aço contra aço. O som foi direto para seus corações. Ele não podia ficar parado de mãos vazias – inútil – em uma tempestade de aço. Não havia armas extras. Não havia nada além da vara almofadada que Soulzeren tinha para empurrar o trenó para longe de obstáculos quando manobrava para pousar. Ele agarrou-a e enfrentou o motim.
Os inimigos tinham facas, não espadas – facas de cozinha – e seu curto alcance os deixava bem na zona de ataque dos guerreiros. Se fossem inimigos comuns, teria sido possível defender-se com amplos golpes que cortariam dois ou três de uma vez. Mas não eram inimigos comuns. Eram homens e mulheres de todas as idades, alguns de cabelos brancos, alguns ainda crianças.
Eril-Fane e Azareen estavam desviando dos golpes, lançando as facas de cozinha para longe, deslizando sobre a superfície de metal do terraço que ainda estava debaixo do trenó. Azareen assustou-se ao ver uma velha senhora, e Lazlo viu o braço que segurava a espada hesitar.
– Vovó? – ela disse, atordoada, e ele observou, sem piscar, horrorizado, enquanto a mulher levantava um malho, o metal cravejado para bater carne, e o deixou cair bem na cabeça de Azareen.
Não houve um pensamento consciente. Foram os braços de Lazlo que agiram, levantando a vara a tempo. O malho o acertou, e a vara acertou Azareen. Foi inevitável, a força do golpe – imensa para uma idosa! – era grande demais. Mas a vara era acolchoada com algodão e tecido e impediu que o crânio de Azareen fosse partido. O braço da espada de Azareen voltou à vida. Ela afastou a vara e balançou a cabeça para livrar-se dela, e Lazlo viu...
Ele viu a lâmina cortar o braço da velha, atravessá-lo e... nada aconteceu. O braço, sua substância, simplesmente... rearranjou-se em torno da arma e tornou-se inteiro novamente depois de ter sido atravessado. Não havia nem mesmo sangue.
Tudo ficou claro. Esses inimigos não eram mortais e não podiam ser feridos.
A constatação chocou a todos, justamente quando o trenó enfim se afastou do terraço de volta para o céu aberto, ampliando a distância em relação à mão de metal e ao exército de mortos que ela continha.
Foi uma sensação de alívio, um momento para voltar a respirar.
Mas era falsa. Os inimigos continuavam vindo, saltando do terraço e ignorando a distância. Eles saltaram para o céu aberto e... não caíram.
Não havia escapatória. Os fantasmas bateram contra o trenó ao saírem da imensa mão de metal do anjo, sacando facas e ganchos de carne, e os Tizerkane combateram golpe a golpe. Lazlo ficou entre os guerreiros e Soulzeren, segurando a vara. Um inimigo escapou pelo lado, um homem de bigode, e Lazlo cortou-o na metade, apenas para ver as duas metades recomporem-se como em um pesadelo. O truque eram as armas, ele pensou, lembrando-se do malho. Ele atacou de novo, mirando na mão do homem e arrancando-lhe a faca, que caiu no piso do trenó.
Esse exército anormal não tinha nenhum treinamento, mas o que isso importava? Não havia como combatê-los, eles não morriam. De que vale habilidade diante de uma luta como esta?
O fantasma de bigode, sem arma, lançou-se contra Soulzeren, e Lazlo colocou-se entre eles. O fantasma agarrou a vara. Lazlo continuou segurando-a. Eles lutaram. Logo atrás desse homem era possível ver o restante – o enxame de rostos impassíveis e olhos atormentados – e ele não conseguia soltar a vara. A força do fantasma não era natural. Ele não se cansava. Lazlo ficou sem ação quando o próximo inimigo passou pela guarda dos Tizerkane. Uma jovem com olhos assombrados. Um gancho de carne em suas mãos.
Ela o levantou. E abaixou...
... no pontão de estibordo, furando-o. O trenó balançou. Soulzeren gritou. O gás saiu assoviando pelo furo e o trenó começou a girar.
Foi exatamente neste momento, quando ocorreu a Lazlo que ele morreria – exatamente como havia sido alertado, impossivelmente, em um sonho –, que o fantasma com quem ele estava lutando... perdeu a solidez. Lazlo viu suas mãos, em um momento tão duras e reais na madeira da vara, dissolverem-se através dela. A mesma coisa aconteceu com a mulher. O gancho de carne caiu dentro do trenó, embora ela não o tivesse soltado. E então a coisa mais estranha: um olhar doce de alívio passou pelo seu rosto, mesmo quando ela começou a desaparecer de vista. Lazlo pôde ver através da mulher, que fechou os olhos e sorriu, desaparecendo. O homem de bigode foi o próximo. Um instante e seu rosto havia perdido a impassividade, inundado pelo delírio da liberdade, e então também desapareceu. Os fantasmas estavam se dissolvendo. Haviam ultrapassado alguma fronteira e tinham sido libertados.
Nem todos tiveram sorte. A maioria foi sugada para trás como pipas presas a linhas, fisgada de volta para a mão de metal para observar o trenó, girando devagar, mover-se cada vez mais para longe do seu alcance.
Não havia tempo para divagar. O pontão de estibordo vazava o gás e a quilha estava virando para cima.
– Lazlo! – gritou Soulzeren, empurrando seus óculos para a testa. – Passe o seu peso para bombordo e se segure.
Ele fez como ordenado, seu peso equilibrando a inclinação da aeronave enquanto ela colocava um remendo no furo sibilante que o gancho de carne havia feito. A arma ainda estava no chão, imóvel e letal, assim como a faca que caíra também. Azareen e Eril-Fane estavam respirando pesado, suas hreshteks ainda em punho, ombros erguidos. Eles checa-ram um ao outro em busca de ferimentos. Ambos sangravam com cortes nas mãos e nos braços, mas tudo estava bem. Incrivelmente, ninguém tinha um ferimento sério.
Respirando fundo, Azareen virou-se para Lazlo:
– Você salvou minha vida, faranji.
Lazlo quase disse “de nada”, mas ela não tinha agradecido de fato, então ele segurou-se e apenas assentiu. Ele esperava que fosse um gesto digno, talvez até mesmo um pouco duro. Mas duvidava disso. Suas mãos estavam tremendo.
Tudo nele estava tremendo.
O trenó parou de girar, mas ainda estava inclinado. Havia gás suficiente para uma descida lenta. Soulzeren levantou a vela e a mareou, fazendo a proa virar e apontar em direção à campina fora dos muros da cidade.
Isso foi bom. Teriam tempo para recuperar o fôlego antes que os outros chegassem até eles. A ideia dos outros, e todas as perguntas que fariam, tirou Lazlo de sua euforia de sobrevivência e o levou de volta à realidade. Perguntas. Perguntas requeriam respostas. Quais eram as respostas? Ele olhou para Eril-Fane, indagando:
– O que acabou de acontecer?
O Matador de Deuses ficou um bom tempo com as mãos na grade, apoiando-se pesadamente, olhando para longe. Lazlo não conseguia ver o seu rosto, mas podia interpretar seus ombros. Algo muito pesado os estava pressionando. Muito pesado mesmo. Ele se lembrou da garota no terraço, a garota do sonho, e perguntou:
– Aquela era Isagol?
– Não – respondeu Eril-Fane, abrupto. – Isagol está morta.
Então... quem? Lazlo poderia ter perguntado mais, mas Azareen o fitou e o reprovou com um olhar. Ela estava muito abalada.
Eles ficaram em silêncio pelo resto da descida. O pouso foi suave como um sussurro, a aeronave deslizando pela grama alta até que Soulzeren baixou a vela e enfim pararam. Lazlo a ajudou a prendê-la e puderam colocar os pés novamente na superfície do mundo. O grupo estava fora da sombra da cidadela ali. O sol brilhava e a linha nítida da sombra, morro abaixo, formava uma fronteira visível.
Em contraste com a linha dura onde a escuridão começava, Lazlo vislumbrou o pássaro branco, circulando e inclinando-se. Ele sempre estava lá, ponderou. Sempre observando.
– Eles chegarão logo aqui, imagino – afirmou Soulzeren, tirando os óculos e limpando a testa com o braço: – Ozwin não demora.
O Matador de Deuses concordou. Permaneceu em silêncio mais um momento, recompondo-se antes de pegar a faca e o gancho de carne caídos no chão do trenó e jogá-los longe. Ele respirou fundo e falou:
– Não vou lhes ordenar que mintam – disse devagar –, mas vou pedir-lhes isso. Peço que guardemos isso entre nós. Até que eu possa pensar no que fazer a respeito.
Isso? Os fantasmas? A garota? Essa destruição total de que os cidadãos de Lamento acreditavam sobre a cidadela que já temiam com um pavor frio e debilitante? Que tipo de pavor essa nova verdade inspiraria? Lazlo arrepiou-se só de pensar.
– Não podemos... Não podemos simplesmente não fazer nada – falou Azareen.
– Eu sei – disse Eril-Fane, devastado –, mas se contarmos, haverá pânico. E se tentarmos atacar... – Ele engoliu em seco. – Azareen, você viu?
– É claro que vi – ela sussurrou. Suas palavras eram tão cruas. Ela abraçou-se. Lazlo pensou que deveriam ser os braços de Eril-Fane no lugar. Até ele podia ver isso. Mas Eril-Fane estava preso em seu próprio choque e angústia e guardou os braços grandes para si.
– Quem eram eles? – Soulzeren questionou. – O que eles eram?
Lentamente, como uma dançarina fazendo uma reverência até o chão, Azareen abaixou-se sobre a grama dizendo:
– Todos os nossos mortos voltados contra nós. – Seus olhos eram duros e brilhantes.
Lazlo virou-se para Eril-Fane e perguntou:
– Você sabia? Quando estávamos decolando, perguntei se você tinha certeza de que a cidadela estava vazia, e você disse “vazia dos vivos”.
Eril-Fane fechou os olhos, esfregando-os.
– Eu não quis dizer... fantasmas – respondeu, tropeçando na palavra.
– Eu quis dizer corpos. – Ele parecia quase esconder o rosto nas mãos e Lazlo soube que ainda havia segredos.
– Mas a garota... – Lazlo falou, hesitante. – Ela não era nenhum dos dois.
Eril-Fane afastou as mãos dos olhos.
– Não. – Com angústia e um brilho severo de... algo... talvez redenção, ele sussurrou: – Ela está viva.
PARTE IV
sathaz (SAH.thahz) substantivo
O desejo de possuir o que nunca pode ser seu.
Arcaico; do Conto de Sathaz, que se apaixonou pela lua.
40
MISERICÓRDIA
O que Sarai havia acabado de fazer?
Depois que tudo terminara e os cinco viram, por sobre a beirada do terraço, o trenó de seda escapar para baixo para uma campina verde distante, Minya voltou-se para ela, sem falar nada – incapaz de falar – e o silêncio foi pior do que um grito teria sido. A menina tremia com a fúria mal contida e, quando o silêncio se estendeu, Sarai forçou-se a realmente olhar para Minya. O que ela viu não foi apenas fúria. Foi um deserto de descrença e traição.
– Aquele homem nos matou, Sarai – ela sussurrou, quando finalmente encontrou sua voz. – Você pode esquecer isso, mas jamais esquecerei.
– Nós não estamos mortos. – Naquele momento, Sarai não tinha certeza de que Minya sabia disso. Talvez tudo o que ela conhecesse fossem fantasmas, e não fizesse distinção. – Minya, nós ainda estamos vivos.
– Porque eu nos salvei dele! – ela estava gritando. Seu peito erguia-se. Ela era tão magra, dentro de suas roupas esfarrapadas. – Para que você pudesse salvá-lo de mim? É assim que você me agradece?
– Não! – Sarai explodiu. – Eu te agradeci fazendo tudo o que me dizia para fazer! Eu te agradeci sendo uma vingança para você, toda noite, durante anos, a despeito do que isso fazia a mim. Mas nunca era suficiente. E nunca será suficiente!
Minya parecia incrédula.
– Você está brava por nos manter seguros? Sinto muito que tenha sido difícil para você. Talvez nós devêssemos ter esperado você, e nunca tê-la feito usar seu dom horrível.
– Não é isso que estou dizendo. Você distorce tudo. – Sarai estava tremendo. – Devia ter um outro jeito. Você fez a escolha. Você escolheu os pesadelos. Eu era muito nova para saber. Você me usou como a um de seus fantasmas. – Ela estava se afogando em suas próprias palavras, surpresa consigo mesma por conseguir falar, e percebeu Feral emudecido e boquiaberto.
– Então em troca você me traiu. Você traiu a todos nós. Eu posso ter escolhido por você um dia, Sarai, mas hoje a escolha foi sua. – Seu peito levantava e descia com uma respiração animal. Seus ombros eram frágeis como ossos de pássaro. – E você escolheu. Escolheu a eles! – ela berrou na última parte. Seu rosto ficou vermelho, lágrimas escorriam. Sarai nunca a tinha visto chorar antes. Nunca. Até suas lágrimas eram ferozes e raivosas. Nada dos traços suaves e trágicos que pintavam os rostos de Rubi e Pardal. As lágrimas de Minya tinham raiva, praticamente saltando dos olhos em gotas cheias e gordas, como chuva.
Todos estavam paralisados. Pardal, Rubi, Feral, atordoados. Olhavam de Sarai para Minya, de Minya para Sarai, e pareciam prender a respiração. E quando Minya se virou para eles, apontou para a porta e ordenou:
– Vocês três. Fora daqui! – Eles hesitaram, divididos, mas não por muito tempo. Era Minya que lhes causava medo, seus ataques de raiva, seu desapontamento escaldante, e era a ela que costumavam obedecer. Se Sarai tivesse apresentado-lhes uma escolha naquele momento, se tivesse se mantido firme e defendido suas ações, poderia tê-los conquistado para o seu lado. Mas ela não fez isso. A incerteza estava descrita em seu rosto: os olhos arregalados demais, o lábio tremendo e a forma como mantinha o braço sangrando junto ao corpo.
Rubi segurou em Feral e virou-se junto a ele. Pardal foi a última a sair, olhando temerosa da porta e disse as palavras sinto muito. Sarai viu-a sair. Minya permaneceu parada por mais um momento, fitando Sarai como se ela fosse uma estranha. Quando ela falou novamente, sua voz tinha perdido a estridência, a fúria. Estava monótona e velha:
– O que quer que aconteça agora, Sarai, terá sido culpa sua.
E ela girou nos calcanhares e passou pela porta, deixando Sarai sozinha com os fantasmas.
Toda a raiva foi sugada no seu rastro e deixou um vazio. O que mais havia, quando se tirava a raiva, o ódio? Os fantasmas ficaram paralisados – aqueles que restavam, os que Minya havia puxado de volta, da iminência da liberdade, enquanto os outros saíam de seu alcance e fugiam dela – e eles não podiam virar seus rostos para olhar para Sarai, mas seus olhos concentravam-se nela, e ela pensou ter visto perdão neles, e gratidão.
Pela sua misericórdia.
Misericórdia.
Havia sido misericórdia ou traição? Salvação ou condenação? Talvez fossem todas essas coisas alternando-se como em uma moeda jogada para cima, girando de face em face – misericórdia, traição, salvação, condenação. E como ela cairia? Como tudo aquilo terminaria? Cara, os humanos viveriam. Coroa, os filhos dos deuses morreriam. O resultado fora roubado desde o dia em que nasceram.
Uma frieza tomou conta dos corações de Sarai. O exército de Minya a intimidava, mas o que teria acontecido hoje se ele não estivesse lá? E se Eril-Fane tivesse vindo, esperando encontrar esqueletos, e os encontrasse?
Ela ficou com a certeza desolada de que seu pai teria feito de novo o que fizera há quinze anos. Seu rosto estava fixo em sua mente: assombrado para começar, apenas por retornar a esse lugar de tanto tormento. Então surpreso. Afetado pela visão dela. Ela testemunhara o momento exato em que ele entendeu. Foi muito rápido: o primeiro empalidecer de choque, quando pensou que ela era Isagol, e o segundo, quando percebeu que não era.
Quando entendeu quem ela era.
Horror. Foi isso que ela viu em seu rosto, e nada menos que isso. Ela acreditava que tinha se endurecido para qualquer dor que ele pudesse lhe causar, mas estava errada. Esta foi a primeira vez na vida que o tinha visto com os próprios olhos – não filtrado por meio dos sentidos das mariposas ou conjurado no inconsciente dele, ou de Suheyla, ou de Azareen, mas ele, o homem cujo sangue era metade dela, seu pai – e seu horror ao vê-la havia aberto nela um novo botão de vergonha.
Obscenidade, calamidade. Cria dos deuses.
E no rosto do sonhador? Choque, alarme? Sarai não sabia dizer. Tudo acontecera num piscar de olhos, e o tempo todo os fantasmas estavam puxando-a pela porta, arrastando-a para dentro. Seu braço doía. Havia sangue coagulado do antebraço até os dedos e ainda saindo brilhante da longa linha do corte.
Havia marcas florescendo também, onde os fantasmas tinham-na agarrado. A dor pulsante a fazia sentir que as mãos deles ainda estavam lá. Ela queria Grande Ellen – seu toque suave para limpar e cobrir o ferimento, e sua compaixão. Com determinação, ela fez menção de sair, mas os fantasmas bloquearam o caminho. Por um momento, ela não entendeu o que estava acontecendo. Havia acostumado-se à presença deles, sempre endurecendo-se quando tinha de passar por um grupo, mas nunca tinham interferido a passagem dela. Agora, logo que se dirigiu à porta, eles juntaram-se e a impediram de passar. Ela parou. Seus rostos estavam impassíveis como nunca. Ela sabia que não adiantava falar com eles, como se estivessem sob seu próprio controle, mas as palavras saíram de qualquer maneira.
– O quê? Não tenho permissão para sair?
É claro que eles não responderam, apenas obedecendo ordens, e Sarai não iria a lugar algum.
O dia todo, ninguém veio. Isolada e mais cansada do que nunca, ela lavou o braço com a água que restava no jarro e amarrou-o com uma lingerie que rasgou em tiras. Permaneceu no quarto de dormir, como se estivesse se escondendo dos guardas-fantasmas. Ondas quentes de pânico passavam por ela quando se lembrava, mais uma vez, o caos da manhã e a escolha que fizera.
O que quer que aconteça agora, será culpa sua.
Ela não tivera a intenção de escolher. Em seus corações, nunca havia feito e nunca poderia fazer aquela escolha – humanos no lugar dos seus. Não foi isso que ela fizera. Não era uma traidora, mas tampouco era uma assassina. Andando pra lá e pra cá, ela sentiu como se a vida a tivesse guiado até um beco sem saída e a prendido apenas para lhe ensinar uma lição.
Presa presa presa.
Talvez ela sempre tivesse sido prisioneira, mas não dessa forma. As paredes fecharam-se em torno dela. A garota queria saber o que estava acontecendo lá embaixo em Lamento e qual tipo de alvoroço tinha causado a notícia de sua existência. Eril-Fane já devia ter-lhes contado. Eles estariam reunindo armas e falando em estratégia. Será que voltariam em grande número? Será que conseguiriam? Quantos trenós de seda eles tinham? Havia visto apenas dois, mas parecia fácil construí-los. Ela supôs que era apenas uma questão de tempo até que eles pudessem criar uma força de invasão.
Será que Minya achou que seu exército podia segurá-los para sempre? Sarai imaginou uma vida na qual os cinco continuariam como antes, mas agora sitiados, alertas a ataques em todas as horas do dia ou da noite, repelindo guerreiros, empurrando corpos terraço afora para mergulharem na cidade embaixo como as ameixas de Quedavento. Feral chamaria chuvas para lavar o sangue, e todos sentariam-se para jantar enquanto Minya prendia a nova leva de mortos do dia e os colocaria a seu serviço.
Sarai estremeceu, sentindo-se tão impotente. O dia estava claro e continuou assim. Sua necessidade de lull era forte, mas não havia mais névoa cinzenta esperando por ela, não importava quanto lull bebesse. Ela estava tão cansada que se sentia... surrada, como as solas de sapatos velhos, mas não ousava fechar os olhos. O terror do que a esperava além do limiar da consciência era ainda mais poderoso. Ela não estava bem. Fantasmas fora, horrores dentro e nenhum lugar para onde ir. As paredes azuis brilhantes a cercavam. Ela chorou, esperando o anoitecer, que enfim veio. Seu grito silencioso nunca havia sido uma libertação tão grande. Ela gritou tudo e sentiu como se seu próprio ser se partisse no suave dispersar de asas.
Traduzida em mariposas, Sarai lançou-se para as janelas e espremeu-se para sair. O céu era imenso e havia liberdade nele. As estrelas a chamavam como faróis acesos em um vasto oceano escuro enquanto ela se arremessava dividida em uma centena, no ar vertiginoso. Escapar, escapar. Ela voou para longe dos pesadelos, da privação e das costas viradas de seus iguais. Ela voou para longe do beco sem saída onde sua vida a prendia e insultava. Ela voou para longe de si mesma. Um desejo selvagem a tomou para voar o mais longe que podia de Lamento – uma centena de mariposas, uma centena de direções –, voar e voar até que o nascer do sol chegasse e a transformasse em fumaça e todo seu sofrimento também.
– Mate-se, garota – A velha havia dito. – Tenha piedade de nós todos.
Piedade.
Piedade.
Será que seria piedade, colocar um fim em si mesma? Sarai sabia que aquelas palavras cruéis não tinham vindo das velhas-fantasmas, mas de seu eu mais íntimo, envenenado pela culpa de quatro mil noites de sonhos sombrios. Ela também sabia que em toda a cidade e no monstruoso anjo de metal que havia roubado o céu, ela era a única que conhecia o sofrimento dos humanos e dos filhos dos deuses, e pensou que sua piedade era singular e preciosa. Hoje ela havia evitado um massacre, pelo menos por algum tempo. O futuro era cego, mas ela não podia sentir, verdadeiramente, que seria melhor sem ela. Ela se recompôs de sua dispersão. Desistiu do céu com suas estrelas tais quais alarmes de incêndio e voou para Lamento para descobrir o que sua piedade havia desencadeado.
41
ENCANTAMENTO
A deusa era real e estava viva.
Lazlo havia sonhado com ela antes de saber que os Mesarthim eram azuis e isso parecia esquisito o bastante. Muito mais agora que a tinha visto viva, seu rosto adorável exatamente igual ao que conhecera em seus sonhos. Não era coincidência.
Só podia ser magia.
Quando as carroças chegaram para recolher o trenó de seda e os passageiros, os quatro sustentaram uma história simples, de falha mecânica, que não foi questionada por ninguém. Eles minimizaram o evento a tal ponto que o dia continuou dentro da normalidade, embora Lazlo sentisse que a “normalidade” fora deixada para trás para sempre. Ele assimilou tudo tão bem quanto se podia esperar – considerando que esse “tudo” compreendia a quase morte nas mãos de fantasmas selvagens – e encontrou dentro de si, crescendo em meio à consternação e o medo, uma estranha bolha de contentamento. A garota de seus sonhos não era uma invenção e ela não era a deusa do desespero, e não estava morta. O dia inteiro ele passou virando a cabeça para cima para olhar para a cidadela com novos olhos, sabendo que ela estava lá. Como era possível?
Como tudo aquilo era possível? Quem era ela e como tinha entrado em seus sonhos? Naquela noite, ele estava inquieto quando se deitou para dormir, esperando que ela retornasse. Diferentemente da noite anterior, quando se esparramou com o rosto para baixo na cama, sem camisa e inconsciente, sem nem mesmo amarrar o cordão de suas calças, esta noite ele foi vítima de uma formalidade peculiar: vestiu uma camisa, amarrou o cordão da calça e prendeu os cabelos. Até se olhou no espelho – e sentiu-se um tolo por estar preocupado com a aparência, como se ela fosse de alguma forma vê-lo, embora não tivesse ideia de como funcionava tal magia. Ela estava lá em cima e ele ali embaixo, mas ele não conseguia se livrar da sensação de que estava esperando uma visitante – o que teria sido uma experiência nova para ele em qualquer lugar, mas era particularmente provocativa neste local. Estar deitado na cama, esperando a visita de uma deusa...
Ele corou. É claro que não era assim. Olhou para o teto, uma tensão em seus membros, e sentiu como se estivesse interpretando o papel de alguém adormecido em uma peça. Isso não adiantaria. Era preciso dormir de verdade para sonhar, mas o sono não estava chegando fácil, visto que a mente estava agitada por causa do dia. Havia uma espécie de euforia em quase morrer e não morrer. Acrescente a isso sua ansiedade por saber se ela viria. Ele era todo nervosismo, fascinação, timidez e uma esperança profunda.
Lembrou-se maravilhado de como pegara a mão da garota na noite anterior e segurado-a na sua, sentindo a realidade dela, e a conexão que tinha inflamado entre eles quando ele a pegou. Na realidade, ele jamais teria ousado fazer algo tão corajoso. Mas ele não conseguia se convencer que aquilo não era realidade, à sua maneira. Não havia ocorrido no reino físico, isso era verdade. Sua mão não tinha tocado a mão dela. Mas... sua mente havia tocado a mente dela e isso lhe parecia uma realidade mais profunda, uma intimidade ainda maior. A garota havia se surpreendido quando ele a tocara, seus olhos haviam se arregalado. Fora real para ela também, ele pensou. Seus cílios, lembrou-se, eram de um vermelho-dourado, os olhos de um azul translúcido. E se recordava da maneira com a qual ela o fitara pela primeira vez, como se estivesse paralisada, noites atrás, e novamente na noite passada. Ninguém jamais o olhara daquele jeito. Isso fez com que Lazlo quisesse checar o espelho novamente para ver o que ela teria visto – se talvez seu rosto tivesse melhorado sem que ele soubesse – e o impulso foi tão vaidoso, e nada de seu feitio, que ele cobriu os olhos com o braço e riu de si mesmo.
Sua risada diminuiu ao lembrar-se também do sangue brotando e do aviso dela – “todos morrerão” – e do jeito furioso com que ela tinha lutado à porta da cidadela para alertá-lo mais uma vez.
Ele estaria morto se não fosse por ela.
“Fujam!”, a garota havia gritado enquanto mãos a pegavam, arrastando-a para dentro. Como ela parecia determinada e desesperada! Será que estava bem? Será que se machucara? Em que condições ela existia? Como era sua vida? Havia tanta coisa que ele queria saber. Tudo. Lazlo queria saber tudo e queria ajudar. Em Zosma, quando Eril-Fane falara aos acadêmicos com um semblante sombrio sobre o “problema” de Lamento, o rapaz fora tomado pelo mesmo desejo profundo: de ajudar, como se alguém como ele tivesse alguma chance de resolver um problema como esse.
Ocorreu-lhe, enquanto estava deitado com o braço cobrindo os olhos, que a garota estava presa ao problema de Lamento de formas que ele ainda não conseguia entender. Entretanto, uma coisa estava clara: ela não estava a salvo e não era livre, e o problema de Lamento tinha ficado muito mais complicado.
Quem ela havia desafiado com aquele grito, indagou-se, e qual preço que tivera de pagar por isso? Preocupar-se com a garota dobrou sua ansiedade e afastou ainda mais o sono, então ele temeu que o sono nunca chegasse. O rapaz estava ansioso, com medo de perder sua visita, como se seus sonhos fossem uma porta na qual ela estivesse batendo sem encontrar alguém em casa. Espere, pensou. Por favor, espere por mim. E enfim acalmou-se com a ideia, zombando de si mesmo, de “preocupações caseiras”. Ele nunca recebera um convidado antes, então não sabia como se comportar. Como recebê-la se ela viesse, e onde. Se havia orientações de etiqueta para receber deusas nos sonhos, ele nunca tinha encontrado esse livro na Grande Biblioteca.
Não era apenas uma questão de salas de visita e bandejas de chá – embora houvesse isso também. Se ela viesse na realidade, ele ficaria limitado pela realidade. Mas os sonhos eram algo diferente. Ele era Estranho, o sonhador. Esse era seu domínio, e não havia limites nele.
Sarai observou o sonhador lançar o braço sobre os olhos, ouviu-o dar risada. Ela notou sua estranha imobilidade, reconhecendo-a como uma inquietação contida e esperou impacientemente até que se atenuasse e ele dormisse. Sua mariposa estava pousada em um canto sombreado do batente da janela, onde esperou por um longo tempo antes que ele parasse de se mexer, tentando determinar quando havia mesmo cruzado a fronteira. Seu braço ainda estava apoiado sobre o rosto, não podendo ver os olhos, ela não sabia dizer se ele estava fingindo. Uma emboscada estava em sua mente, por motivos óbvios, e ela não conseguia reconciliar a violência da manhã com o silêncio desta noite.
Sarai não tinha encontrado nada do pânico ou a preparação que esperava. O trenó de seda avariado fora levado de volta ao seu pavilhão e lá ele estava abandonado, com um pontão vazio. A mecânica e piloto estava dormindo em sua cama, com a cabeça encostada no ombro do marido, e embora o caos da manhã tivesse entrado em seus sonhos – e nos dele, em menor medida – os demais forasteiros estavam despreocupados. A conclusão de Sarai, a partir das informações de suas mariposas da primeira safra de sonhos da noite, era que Soulzeren tinha contado ao marido e a ninguém mais sobre o... encontro... na cidadela.
Os Zeyyadin estavam da mesma forma no escuro. Nada de pânico. Nenhuma consciência que Sarai pudesse perceber, da ameaça que pairava sobre suas cabeças.
Será que Eril-Fane mantivera segredo? Por que faria isso?
Se ela pudesse perguntar-lhe...
Na verdade, ao mesmo tempo em que sua mariposa estava empoleirada na janela observando o sono chamar Lazlo Estranho, Sarai estava vendo-o não chamar o Matador de Deuses.
Ela o tinha encontrado, embora não estivesse o procurando, pois acreditara que ele estaria desaparecido como em todas aquelas noites em que Sarai visitou Azareen e a encontrou sozinha.
Na verdade, ela ainda estava sozinha. Ela estava na cama, enrolada em uma bola com as mãos sobre o rosto, acordada, enquanto Eril-Fane também estava acordado na pequena sala de estar, cadeiras empurradas para o lado e um colchonete estendido no chão. No entanto, ele não estava deitado nele. Suas costas estavam encostadas na parede e seu rosto estava apoiado nas mãos. Dois cômodos, a porta fechada entre eles. Dois guerreiros com o rosto nas mãos. Sarai, observando-os, imaginou que tudo seria melhor se os rostos e as mãos simplesmente... mudassem de lugar. Ou seja, se Azareen segurasse o rosto de Eril-Fane enquanto ele segurava o dela.
Os dois estavam angustiados e imóveis, quietos e determinados a sofrerem sozinhos! Do ponto de vista de Sarai, ela observava duas poças privadas de sofrimento tão próximas que eram quase adjacentes – como os cômodos conectados com a porta fechada entre eles. Por que não abrir a porta, abrir os braços e fechá-los em torno um do outro? Será que eles não entendiam como, na estranha química das emoções humanas, os sofrimentos dele e dela, misturados, poderiam... compensar um ao outro?
Pelo menos por um tempo.
Sarai queria sentir desprezo por ambos serem tão tolos, mas sabia demais para desdenhá-los. Por anos vira o amor de Azareen por Eril--Fane arruinado ainda no botão, como as orquídeas de Pardal por uma das tempestades de Feral. E por quê? Porque o Matador de Deuses era incapaz de amar.
Por causa do que Isagol lhe causara.
E como Sarai tinha passado a compreender – ou melhor, por anos tinha se recusado a entender até que enfim não houvesse como negar –, por causa do que ele tinha feito. O que ele tinha se forçado a fazer para garantir a liberdade futura de seu povo: matar crianças e, com elas, sua própria alma.
Isso foi o que enfim atravessou sua cegueira. Seu pai salvara o próprio povo e destruído a si mesmo. Por mais forte que parecesse, dentro dele era uma ruína, ou talvez uma pira funeral, como a Cúspide – só que em vez de ossos derretidos dos ijji, ele era feito dos esqueletos de bebês e crianças, incluindo, como ele sempre tinha acreditado, sua própria filha: ela. Esse era o seu remorso. Isso o sufocava como ervas daninhas e podridão, e colônias de insetos, sujando-o e manchando-o, estagnado e fétido, de forma que nada tão nobre quanto o amor, ou o perdão, jamais pudesse ter espaço dentro dele.
A ele era até mesmo negado o alívio das lágrimas. Eis outra coisa que Sarai sabia melhor do que qualquer um: o Matador de Deuses era incapaz de chorar. O nome da cidade era uma provocação. Em todos esses anos, ele fora incapaz de produzir lágrimas. Quando Sarai era jovem e cruel, ela tinha tentado fazê-lo chorar, sem sucesso.
Pobre Azareen. Vê-la encolhida daquele jeito e desnuda de toda sua armadura era como ver um coração retirado do corpo, posto em carne viva em uma tábua, e rotulado de Aflição.
E Eril-Fane, salvador de Lamento, por três anos um brinquedo da deusa do desespero? Qual seria seu rótulo, exceto Vergonha?
Então, a Aflição e a Vergonha moravam em quartos contíguos, com a porta fechada entre eles, segurando a dor em seus braços em vez de juntos. Sarai observou-os, esperando que seu pai adormecesse para poder lhe enviar uma sentinela – se ela ousasse – e saber o que ele estava escondendo em seus corações enquanto escondia o rosto em suas grandes mãos. Ela não podia esquecer o olhar de horror quando a avistara na porta da cidadela, mas tampouco podia entender por que ele tinha guardado o segredo sobre ela.
Agora que ele sabia que ela estava viva, o que planejava fazer a respeito?
E então lá estavam os quatro que tinham voado até a cidadela e vivido para contar a história – embora eles aparentemente não tivessem feito isso. Sarai observou todos eles, os que dormiam e os que estavam acordados. Ela também estava em vários outros lugares, mas a maior parte de sua atenção estava dividida entre seu pai e o sonhador.
Quando teve certeza de que Lazlo enfim caíra no sono – e movido o braço de forma que ela pudesse ver seu rosto –, direcionou a mariposa do batente da janela até ele. Mas ela não conseguiu tocá-lo, e pairou no ar acima dele. Dessa vez seria diferente, sabia. Na cidadela, andando de um lado para o outro, sentia-se tão apreensiva como se estivesse mesmo no quarto com ele, pronta para se assustar com o mínimo movimento.
Com os sentidos de sua mariposa ela sentiu o cheiro de sândalo dele e o aroma puro de almíscar. Sua respiração era profunda e compassada. Tinha ciência de que ele sonhava. Seus olhos movimentavam-se sob as pálpebras, e seus cílios, fechados – tão densos e brilhantes quanto o pelo de gato-selvagem – moviam-se suavemente. E então, ela não podia esperar nenhum instante a mais. Com uma sensação de expectativa e apreensão, cruzou a pequena distância até sua fronte, pousou na pele morna e entrou em seu mundo.
Ele a esperava.
Ele estava bem ali, parado em pé e esperando como se soubesse que ela viria.
Sua respiração parou. Não, ela pensou. Não como se ele soubesse. Mas como se desejasse.
A mariposa assustou-se e rompeu o contato. Ele estava perto demais; ela não estava preparada. Mas aquele piscar de olhos capturou o momento em que a preocupação dele se transformou em alívio.
Alívio. Ao vê-la.
Quando pairou acima dele, com seus corações batendo distantemente em um ritmo selvagem, Sarai percebeu como aguardava pelo pior, certa de que hoje enfim ele devia ter aprendido a sentir aversão a ela – o sentimento que era apropriado. Contudo, não notara nada disso naquele vislumbre. Então encheu-se de coragem e retornou à sua fronte.
Lá ainda estava ele, e ela viu novamente a transformação de preocupação em alívio.
– Sinto muito – ele pediu, com sua voz rouca.
Ele estava mais longe agora. Não tinha se movido, exatamente, mas mudado a concepção de espaço no sonho para não a pressionar no limiar. Ambos estavam parados à margem de um rio, e não era o tumultuoso Uzumark, mas sim um riacho mais tranquilo. Nem Lamento, nem a Cúspide, nem a cidadela estavam visíveis, mas um bom tanto de céu rosa pálido e, sob ele, esse trecho amplo de água verde e sem ondulações, navegada por pássaros com longos pescoços curvos. Ao longo das margens, estendendo-se como se para pegar seus reflexos, havia fileiras de casas rústicas de pedra com as janelas pintadas de azul.
– Eu te assustei – disse Lazlo. – Por favor, fique.
Era engraçada a ideia de que ele podia assustá-la. A Musa dos Pesadelos que atormenta Lamento, assustada em um sonho por um meigo bibliotecário?
– Foi só um sobressalto – ela respondeu, envergonhada. – Não estou acostumada a ser cumprimentada. – Ela não explicou que não estava acostumada a ser vista, que tudo isso lhe era novo ou que as batidas de seus corações estavam se emaranhando, entrando no ritmo e saindo como crianças aprendendo a dançar.
– Eu não queria perdê-la, se você viesse – disse Lazlo. – Esperava que você viesse.
Lá estava, a magia em seus olhos, brilhando como o sol na água. Isso provoca algo em uma pessoa, ser olhada dessa forma – especialmente em alguém acostumada à aversão. Sarai tinha uma nova consciência desconcertante de si mesma, como se nunca tivesse percebido quantas partes móveis tinha, todas para serem coordenadas com alguma graça. Isso funcionava por si só desde que ela não pensasse a respeito. Contudo, bastava começar a se preocupar que tudo dava errado. Como tinha passado a vida inteira sem perceber a estranheza dos braços, a forma como eles simplesmente ficam pendurados nos ombros como carne na janela de um açougue? Ela cruzou-os – sem elegância, ela achou, como uma amadora, escolhendo a saída mais fácil.
– Por quê? – ela perguntou. – O que você quer?
– Eu... Eu não quero nada – ele apressou-se em dizer. É claro, era uma pergunta injusta. Afinal, ela estava invadindo seu sonho, não o contrário. Ele tinha mais direito de perguntar o que ela queria lá. Em vez disso, falou: – Bem, quero saber se você está bem. O que aconteceu com você lá em cima? Você se machucou?
Sarai piscou. Se ela tinha se machucado? Depois do que ele tinha visto e sobrevivido, estava perguntando se ela estava bem?
– Estou bem – respondeu, um pouco rouca devido à dor inexplicável na garganta. Em seu quarto, ela segurou o braço machucado. Ninguém na cidadela tinha ligado para o fato de ela ter se machucado. – Você devia ter me ouvido. Tentei avisá-lo.
– Sim, bem. Achei que você era um sonho. Mas aparentemente não é. – Ele fez uma pausa, incerto. – Você não é, né? Embora, é claro que, se você fosse, e me dissesse que não era, como eu saberia?
– Não sou um sonho – afirmou Sarai. Havia amargura em sua voz. – Sou um pesadelo.
Lazlo soltou uma risadinha incrédula.
– Você não é minha ideia de pesadelo – falou, corando um pouco. – Estou feliz que seja real – ele acrescentou, corando muito. E ambos ficaram parados frente à frente, embora não estivessem olhando um para o outro, mas sim para as pedrinhas do leito do rio entre seus pés.
Lazlo viu que a garota estava descalça e fechava os dedos dos pés em volta das pedrinhas e da lama debaixo deles. Ele estivera pensando nela o dia todo e tinha pouco para continuar, mas ela claramente tinha sido uma surpresa para Eril-Fane e Azareen, o que o levou a supor que sua vida inteira tinha sido vivida na cidadela. Será que ela já tinha colocado os pés no mundo? Com isso em mente, ver seus dedos dos pés azuis curvando-se na lama do rio afetaram-no com pungência.
Depois disso, ver seus tornozelos azuis nus e suas panturrilhas finas lhe causaram grande encantamento, tanto que ele corou e desviou o olhar. Pensou enfim, no meio de tudo, que poderia ser ridículo oferecer algo para beber, mas não sabia o que mais fazer, então arriscou:
– Você aceitaria... aceitaria um chá?
Chá?
Sarai percebeu, pela primeira vez, a mesa à margem do rio. Estava na parte rasa, os pés perdidos em pequenos redemoinhos espumantes que se encaracolavam contra a margem. Havia uma toalha branca e alguns pratos cobertos, junto com uma chaleira e duas xícaras. Um pouco de vapor escapou do bico da chaleira, e ela percebeu que podia sentir o aroma, picante e floral, em meio aos odores terrosos do rio. O que eles chamavam de chá na cidadela era apenas água com ervas, como hortelã e erva-cidreira. Ela tinha uma memória distante do sabor de chá de verdade, enterrada entre suas memórias de açúcar e bolo de aniversário. Fantasiara sobre isso algumas vezes – a bebida propriamente dita, mas isso também. O ritual, de sentar e beber, que parecia para ela, de fora, o coração da cultura. Compartilhar o chá e a conversa (e, era de se esperar, bolo). Ela olhou para a arrumação incongruente com a paisagem ao redor e depois para Lazlo, que prendeu uma parte do lábio inferior entre os dentes e a observava, ansioso.
E Sarai percebeu que fora do sonho seu lábio real estava da mesma forma, preso entre os dentes. O nervosismo era palpável e a desarmou. Ela viu que o rapaz gostaria de agradá-la.
– Isso é para mim? – ela perguntou a meia-voz.
–Desculpe-mesefizalgumacoisadeerrado–explicou-se,embaraçado. – Nunca tive um convidado antes, e não tenho certeza de como fazer.
– Um convidado – Sarai repetiu com voz fraca. Aquela palavra. Quando ela entrava nos sonhos, era uma invasora, uma saqueadora. Nunca havia sido convidada antes. Nunca havia sido bem-vinda. A sensação que se abateu sobre ela era nova – e extravagantemente agradável.
– E eu nunca fui convidada antes – ela confessou. – Então não sei mais do que você.
– Isso é um alívio. Podemos inventar e fazer como quisermos.
Ele puxou a cadeira para ela, que moveu-se para sentar. Nenhum dos dois tinha feito essa simples manobra em terra, muito menos na água, e deram-se conta ao mesmo tempo que havia espaço para errar. Bastava empurrar a cadeira rápido demais ou devagar demais, ou sentar-se cedo demais ou com muito peso, que desventuras poderiam acontecer, talvez até um batismo não intencional do traseiro. Mas saíram-se bem, Lazlo sentou-se na cadeira oposta e, simples assim, eles eram duas pessoas sentadas a uma mesa, mirando-se timidamente através do vapor da chaleira.
Dentro de um sonho.
Dentro de uma cidade perdida.
À sombra de um anjo.
À beira da calamidade.
Mas tudo isso – cidade, anjo e calamidade – parecia a mundos de distância naquele momento. Cisnes passaram como navios elegantes, e o vilarejo era todo pastel, com trechos de sombra azul. O céu era da cor dos pêssegos corados e a linguagem dos insetos sussurrava na grama da campina.
Lazlo considerou a chaleira. Parecia muito pedir que suas mãos derramassem, firmes, o chá nas xícaras delicadas que havia conjurado, então ele fez com que a chaleira virasse sozinha, tarefa que foi cumprida admiravelmente, como se feita por um mordomo invisível. Apenas uma gota pingou fora, manchando a toalha branca, que imediatamente tornou-se limpa de novo.
Imagine, ele pensou, ter esse poder fora do sonho. E então achou engraçado que a limpeza da toalha de mesa tivesse dado origem a esse pensamento, e não a criação de um vilarejo inteiro e um rio com pássaros e as montanhas a distância, ou a surpresa que eles mantinham guardada.
Ele já tivera outros sonhos lúcidos, mas nunca tão lúcidos quanto este. Desde que chegara a Lamento, seus sonhos tinham sido excepcionalmente vívidos. Perguntou-se se seria a influência dela que tornava essa clareza possível. Ou sua própria atenção e expectativa o deixavam nesse estado de consciência elevada?
Eles pegaram as xícaras. Era um alívio para ambos ter algo a fazer com as mãos. Sarai experimentou o primeiro gole, não soube dizer se o sabor – defumado e floral – era sua própria memória de chá, ou se Lazlo estava moldando a experiência sensorial dentro do seu sonho. Será que funcionava assim?
– Não sei seu nome – ele lhe disse.
Sarai nunca, em toda sua vida, tinha ouvido essa pergunta ou dado a resposta a esse questionamento pois nunca havia conhecido alguém. Todos a quem conhecia, conhecera desde sempre – exceto pelos fantasmas capturados, que não eram exatamente afeitos a apresentações.
– É Sarai – respondeu.
– Sarai – ele repetiu, como se o estivesse saboreando. Sarai. O gosto, ele pensou, mas não disse, era de chá – complexo, delicado e não doce demais. Lazlo a fitou, verdadeiramente. Jamais, no mundo, olharia para uma mulher jovem de um jeito tão direto e intenso, mas, de certa forma, isso era aceitável aqui, como se tivessem se encontrado com a intenção tácita de se conhecerem.
– Você irá me falar? – ele indagou. – Sobre você?
Sarai segurou a xícara com ambas as mãos. Respirou o vapor quente enquanto a água fria fazia redemoinhos em volta de seus pés.
– O que Eril-Fane te contou? – ela quis saber, cautelosa.
Através dos olhos de outra mariposa, observou que seu pai não estava mais sentado encostado na parede, agora se movera para a janela aberta da sala de Azareen e estava inclinado para fora, olhando para a cidadela. Será que ele a estava imaginando lá em cima? E, se sim, o que estaria pensando? Se ele dormisse, ela poderia descobrir. Ela não conseguia descobrir a partir de seu rosto, que era como uma máscara mortuária: severo e sem vida, com buracos no lugar dos olhos.
– Ele apenas disse que você não é Isagol – Lazlo respondeu. E fez uma pausa. – Você é... filha dela?
Sarai levantou o olhar para ele.
– Ele disse isso?
Lazlo balançou a cabeça.
– Eu imaginei... Seus cabelos. – Ele havia imaginado outra coisa também. Hesitante, falou: – Suheyla me disse que Eril-Fane era o companheiro de Isagol.
Sarai não disse nada, mas a verdade estava no seu silêncio e em seu esforço orgulhoso para não demonstrar nenhuma dor.
– Ele sabia de você? – Lazlo perguntou, inclinando-se para a frente. – Se ele sabia que era pai...
– Ele sabia. – Sarai falou logo. A meio quilômetro dali, o homem em questão esfregou os olhos com um cansaço infinito, mas não os fechou. – E agora ele sabe que ainda estou viva. Ele disse o que pretende fazer?
Lazlo balançou a cabeça.
– Ele não disse muita coisa. Pediu para não contarmos a ninguém o que aconteceu lá em cima. Sobre você ou qualquer outra coisa.
Sarai imaginou isso. O que ela queria saber era o porquê, e o que vinha depois, mas Lazlo não sabia lhe responder e Eril-Fane ainda estava acordado. Azareen por fim dormira, e Sarai pousou uma sentinela na curva de sua bochecha manchada de lágrimas.
Entretanto, não encontrou respostas. Em vez disso, ela estava mergulhada na violência da manhã. Ela ouviu seu próprio grito de “fujam!” e sentiu o terror ameaçando, cutelos e ganchos de carne e a face de sua própria avó – a avó de Azareen – contorcida em um ódio pouco familiar. A cena repetiu-se inúmeras vezes, impiedosa, com uma diferença terrível: no sonho, as espadas de Azareen eram pesadas como âncoras, pesando em seus braços enquanto ela lutava para defender-se do ataque que vinha da mão do anjo. Ela estava lenta demais. Era um pânico furioso e lento, e inimigos invencíveis, e o resultado não era tão feliz quanto havia sido naquela manhã.
No sonho de Azareen, todos eles morriam, como Sarai tinha dito a Lazlo que aconteceria.
Ela ficou em silêncio na beira do rio, sua atenção atraída para longe. Lazlo, observando que o tom azul de seu rosto tinha se apagado um pouco, perguntou:
– Você está bem?
Ela assentiu, rápido demais. Acabei de ver você morrendo, não falou, mas teve dificuldade de afastar a imagem da mente. O calor de sua testa debaixo da mariposa a confortou, assim como vê-lo do outro lado da mesa. O Lazlo real, o Lazlo do sonho, vivo por causa dela. Ela entendeu que estava tendo uma visão dos assassinatos que evitou e qualquer vergonha que tivesse sentido com o sermão de Minya mais cedo, a partir daquele momento, deixou de sentir.
Com destreza, ela assumiu o controle do pesadelo de Azareen: tornou as armas da guerreira mais leves e retardou o ataque enquanto o trenó de seda flutuava para fora do alcance. Finalmente, ela evanesceu os fantasmas, começando pela avó de Azareen, infundindo o sonho com os suspiros de alívio deles. Os mortos estavam livres e os vivos estavam a salvo e aquele era um fim para o sonho.
Sarai terminou o chá. A chaleira encheu a xícara mais uma vez. Ela agradeceu como se o bule estivesse vivo e então seu olhar demorou-se sobre os pratos cobertos.
– Então – ela perguntou, lançando um olhar para Lazlo. – O que tem aí?
42
DEUS OU MONSTRO, MONSTRO OU DEUS
Lazlo tinha pouca experiência a mais com bolos do que Sarai, então esta foi uma das coisas que inventaram juntos, “da forma que queriam”. Era uma espécie de jogo. Um imaginava os conteúdos do prato e o outro o descobria com um pequeno floreio dramático. Descobriram que podiam conjurar doces de aparência esplêndida, mas não tinham tanto sucesso no que dizia respeito ao sabor. Ah, os bolos não eram ruins. Eles eram doces, pelo menos – essa parte era fácil. Mas era uma doçura insossa, sonhada por órfãos que ficavam com os rostos colados nas janelas das docerias (metaforicamente, pelo menos), e nunca provaram nada.
– Eles são todos parecidos – lamentou Sarai, depois de experimentar uma garfada de sua última criação. Era uma maravilha de se ver: três camadas altas cobertas de cor-de-rosa com pétalas de açúcar, alto demais para caber debaixo da cobertura que o tampava.
– Um truque mágico – Lazlo falou quando o bolo pareceu crescer ao levantar a tampa.
– Tudo aqui é um truque mágico – Sarai completou.
Mas suas receitas podiam ter menos magia e mais realidade. A imaginação, como Lazlo observara anteriormente, está presa, de algum modo, ao conhecido, e ambos eram tristemente ignorantes quanto aos bolos.
– Esses devem ser bons – sugeriu Lazlo, experimentando de novo. – Suheyla fez para mim e acho que me lembro muito bem do sabor.
E era melhor: uma massa de mel cheia de nozes verde-claras e geleia de pétalas de rosa. Não era tão bom quanto o bolo de verdade, mas pelo menos tinha uma especificidade que faltava aos outros, e embora pudessem facilmente desejar que seus dedos ficassem limpos, parecia um triste desperdício de mel imaginário, por isso ambos estavam inclinados a lambê-los.
– Acho que não devemos mais tentar nenhum banquete de sonho – disse Lazlo, quando a tentativa seguinte se provou pouco inspiradora mais uma vez.
– Se fizermos isso, posso fornecer sopa de kimril – afirmou Sarai.
– Kimril? O que é isso?
– Uma raiz muito honrada – ela explicou. – Não tem nenhum sabor para motivar a gula, mas o mantém vivo.
Houve uma pequena pausa enquanto Lazlo considerava as questões práticas da vida na cidadela. Ele estava relutante em abandonar a diversão doce e a leveza que ela tinha levado à sua convidada, mas não podia sentar ali com essa visão dela e não se perguntar sobre a pessoa real, a quem ele tinha visto tão brevemente e sob circunstâncias tão terríveis.
– Ela a manteve viva? – ele perguntou.
– Sim. Pode-se dizer que é um item básico. A horta da cidadela não tem muita variedade.
– Vi árvores frutíferas – falou Lazlo.
– Sim. Nós temos ameixas, graças ao jardineiro. – Sarai sorriu. Na cidadela, no que dizia respeito à comida, agradeciam ao “jardineiro” enquanto outros agradecem a deus. Eles tinham uma dívida ainda maior com a Aparição por aquele monte de tubérculos de kimril que tinham feito toda a diferença. Tais eram as divindades na cidadela dos deuses mortos: um obscuro jardineiro humano e um pássaro antissocial. E, é claro, nada disso importaria sem os dons de Pardal e Feral para nutrir e regar o pouco que tinham. Quão inatingível a cidadela parecia vista debaixo, ela pensou, e mesmo assim como era tênue a vida deles nela.
Lazlo prestara atenção no pronome, no plural.
– Nós? – perguntou casualmente, como se não fosse uma dúvida monumental. Você está sozinha lá em cima? Existem outros como você?
Evasiva, Sarai voltou sua atenção ao rio. Bem onde ela olhou, um peixe saltou, com uma iridescência em suas escamas. Ele mergulhou novamente, saindo de vista. Será que faria alguma diferença, se perguntou, se Lazlo e Eril-Fane descobrissem que havia mais filhos dos deuses vivos na cidadela? A Regra havia sido quebrada. Havia “evidência de vida”. Será que importava saber quanta vida? Pareceu a ela que sim e, de qualquer forma, ela sentia como se fosse uma traição entregar os outros, então falou:
– Os fantasmas.
– Fantasmas comem ameixa?
Tendo se decidido a mentir, ela fez isso descaradamente.
– Vorazmente.
Lazlo deixou passar. Ele queria saber sobre os fantasmas, é claro, e por que estavam armados com utensílios de cozinha, atacando ferozmente seus próprios familiares, mas começou com uma questão um pouco mais fácil, perguntando como foram para lá.
– Imagino que todo mundo precisa estar em algum lugar – respondeu Sarai, esquivando-se.
Lazlo concordou, pensativo.
– Embora alguns tenham mais controle sobre o onde do que outros.
Ele não se referiu aos fantasmas. Inclinou a cabeça um pouco e olhou fixamente para Sarai, que sentiu a pergunta se formando. Ela não sabia que palavras usaria, mas a essência se resumia a por quê. Por que você está lá em cima? Por que você está presa? Por que é esta sua vida? Por que tudo em relação a você? E ela queria lhe contar, mas sentiu que ela mesma tinha uma pergunta brotando dentro de si. Parecia um pouco com o brotar das mariposas ao cair da tarde, mas era algo mais perigoso do que mariposas. Era esperança. Era: você pode me ajudar? Pode me salvar? Pode salvar a nós?
Quando ela descia a Lamento para “encontrar” os convidados do Matador de Deuses, não tinha parâmetros para imaginá-lo. Um... amigo? Um aliado? Um sonhador em cuja mente a melhor versão do mundo crescia como um estoque de sementes. Se ao menos aquilo pudesse ser transplantado para a realidade, a garota desejou, mas não podia. Quem sabia melhor como o solo de Lamento era venenoso do que ela que o havia envenenado por dez longos anos?
Então interrompeu a quase pergunta dele e indagou:
– Falando sobre onde, o que é este lugar?
Lazlo não insistiu. Ele tinha paciência para mistérios. Contudo, todos estes anos os mistérios de Lamento nunca tiveram a urgência deste. Isso era vida ou morte. Quase tinha sido a sua morte. Mas era preciso conquistar a confiança dela. Ele não sabia como fazer isso, então mais uma vez buscou refúgio nas histórias.
– Ah, bem. Estou feliz que tenha perguntado. Esse é um vilarejo chamado Zeltzin. Ou pelo menos é assim que imagino que um vilarejo chamado Zeltzin se pareça. É um lugar comum. Bonito, mas não excepcional, embora haja uma distinção.
Seus olhos brilharam. Sarai descobriu-se curiosa analisando ao redor perguntando-se qual seria essa distinção.
Mais cedo, enquanto estava tentando dormir, a primeira ideia de Lazlo foi criar um tipo elegante de sala de estar para recebê-la, caso ela viesse. Parecia o jeito mais apropriado de fazer as coisas, mesmo que um pouco enfadonho. Por algum motivo, a voz de Calixte apareceu em sua mente.
“Bela e cheia de monstros”, ela dissera. “Todas as melhores histórias são assim”.
E ela estava certa.
– Alguma ideia? – ele perguntou a Sarai.
Ela balançou negativamente a cabeça. Seus olhos também brilhavam.
– Bem, eu também posso te contar – disse Lazlo, divertindo-se. – Ali há uma entrada de mina que leva ao mundo subterrâneo.
– O mundo subterrâneo? – Sarai repetiu, esticando o pescoço na direção que ele apontou.
– Sim, mas essa não é a distinção.
Ela estreitou os olhos.
– Então qual é?
– Também posso te contar que as crianças aqui nascem com dentes e roem ossos de pássaro nos berços.
Ela estremeceu.
– Isso é horrível.
– Mas essa tampouco é a distinção.
– Você não vai me contar? – ela perguntou, ficando impaciente.
Lazlo balançou negativamente a cabeça. Ele estava sorrindo. Isso era divertido.
– Está um silêncio aqui, você não acha? – ele perguntou, provocando-a. – Pergunto-me aonde foi todo mundo.
Estava silencioso. Os insetos tinham parado de zumbir. Havia apenas o som do rio agora. Atrás do vilarejo, campinas estendiam-se até uma cadeia de montanhas que, de longe, pareciam cobertas de uma pelagem escura. Montanhas que pareciam prender a respiração, Sarai pensou. Ela sentiu uma quietude sobrenatural e segurou sua respiração também. E então... as montanhas exalaram, e ela também.
– Ohhh! – ela soltou, espantada. – Isso é...?
– A mahalath – explicou Lazlo.
A névoa de cinquenta anos que produzia deuses ou monstros. Ela estava chegando. Era a neblina – línguas de vapor branco deslocando-se entre as montanhas de pele escura –, mas movia-se como uma coisa viva, com uma inteligência curiosa de caça. Ao mesmo tempo leve e densa, havia certa agilidade nela, quase serpentina. Diferente da neblina, ela não meramente se espalhava e parava, caindo, mais pesada que o ar. Aqui e ali, cachos brancos pareciam erguer-se e espiar em volta antes de baixar novamente no fluxo da maré, como cristas de ondas sugadas de volta à rebentação. Ela estava derramando-se – derramando a si mesma –, deslizando gloriosa e inexoravelmente sobre os declives da campina em um trajeto direto até o vilarejo.
– Você já brincou de imaginar? – Lazlo perguntou a Sarai.
Ela deu risada.
– Não assim. – Ela estava alegre e assustada.
– Devemos fugir? Ou ficamos e nos arriscamos?
A mesa de chá havia desaparecido, as cadeiras e os pratos também. Sem perceber a transição, os dois estavam em pé, molhados até os joelhos no rio, observando a mahalath engolir as casas mais longínquas do vilarejo. Sarai teve de se lembrar de que nada daquilo era real. Era um jogo dentro de um sonho. Mas quais eram as regras?
– Será que ela nos mudará? – ela quis saber. – Ou nós nos mudaremos?
– Não sei – respondeu Lazlo, para quem isso também era novo. – Acho que podemos escolher o que nos tornaremos, ou podemos deixar o sonho escolher, se é que isso faz sentido.
E fazia. Eles podiam exercer controle, ou ceder às suas mentes inconscientes. De qualquer forma, não era uma névoa lhes refazendo, mas eles mesmos. Deus ou monstro, monstro ou deus. Sarai teve um pensamento ruim.
– E se você já é um monstro? – ela perguntou em um sussurro.
Lazlo a fitou e o encanto em seus olhos dizia que ela não era nada disso.
– Qualquer coisa pode acontecer – ele afirmou. – É esse o ponto.
A névoa espalhou-se mais. Ela engoliu os cisnes um a um.
– Ficar ou partir? – Lazlo perguntou.
Sarai ficou de frente para a mahalath. Ela deixou-a vir. E à medida que os primeiros cachos se enrolaram em torno dela como braços, ela procurou a mão de Lazlo e a segurou firme.
43
UM DEMÔNIO SINGULARMENTE FORMIDÁVEL
Dentro da névoa, dentro do sonho, um homem e uma mulher jovens foram refeitos. Mas, primeiro, foram desfeitos, seus contornos desaparecendo como o pássaro branco evanescente, a Aparição, à medida que ele sumia na pele do céu. Qualquer noção de realidade física escapara – exceto por uma: suas mãos, unidas, permanecendo tão reais quanto osso e nervo. Não havia mais mundo, margem de rio ou água, nada sob seus pés – e nada de pés. Havia apenas aquele ponto de contato e, mesmo quando se soltaram de si mesmos, Lazlo e Sarai seguraram-se um no outro.
Assim que a névoa passou em seu caminho e os cisnes refeitos desfilaram sua magnificência no humilde rio verde, ambos viraram-se a fim de se encarar, com os dedos entrelaçados e vislumbraram, vislumbraram, vislumbraram.
Olhos abertos e brilhantes, olhos que não mudaram. Os dele continuavam azul-acinzentados, os dela, azuis. E os cílios dela ainda eram acastanhados cor de mel, e os dele de um preto tão reluzente quanto a pele de um gato-selvagem. Seus cabelos ainda eram escuros, e os dela ainda eram cor de canela, o nariz dele era vítima de contos de fadas e a boca de Sarai era suculenta como uma ameixa.
Ambos estavam iguais de todas as formas, exceto uma.
A pele de Sarai era marrom, e a de Lazlo, azul.
O casal se vislumbrou, vislumbrou e vislumbrou, e estudaram suas mãos unidas, o padrão marrom e azul de seus dedos invertidos, e olharam para a superfície da água, que antes não era um espelho, mas agora sim, porque assim quiseram. E vislumbraram seus reflexos ali, lado a lado, de mãos dadas e não viram nem deuses nem monstros. Os dois tinham mudado tão pouco e aquela única coisa – a cor de suas peles –, mudaria tudo no mundo real.
Sarai olhou para a cor terrosa rica de seus braços e soube, embora estivesse escondida, que ela tinha uma elilith em sua barriga como uma garota humana. Perguntou-se qual era o padrão e desejou dar uma espiada. A outra mão, a que estava unida a de Lazlo, retirou-se suavemente. Não parecia haver mais pretexto para segurá-la, embora tivesse sido agradável enquanto durou.
Ela o fitou. Azul.
– Você escolheu isso? – a garota quis saber.
Lazlo balançou negativamente a cabeça.
– Deixei a cargo da mahalath.
– E ela fez isso. – Ela explicou-se o porquê. Sua própria mudança era fácil de compreender. Ali estava sua humanidade externalizada e todo seu desejo – por liberdade do confinamento de sua jaula de metal. Mas por que ele ficara assim? Talvez, ela pensou, não fosse desejo, mas medo, e essa era a ideia dele de um monstro.
– Bem, me pergunto qual dom ela te deu – ela disse.
– Dom? Você quer dizer magia? Acha que tenho um dom?
– Todas as crias dos deuses têm dons.
– Crias dos deuses?
– É assim que nos chamam.
Nos. Outro pronome no plural, que pairou entre os dois brevemente, mas Lazlo não chamou a atenção dela desta vez.
– Mas, crias... – o garoto repetiu, fazendo uma careta. – Isso não combina. Crias são de cães ou de demônios.
– O significado, creio eu, seja o segundo.
– Bem, você é um demônio singularmente formidável, se me permite.
– Obrigada – a garota agradeceu com sinceridade, pousando uma mão modesta sobre o peito. – Essa é a coisa mais gentil que alguém já me disse.
– Bem, tenho pelo menos uma centena de coisas muito mais gentis para dizer e só não consigo por constrangimento.
A menção ao constrangimento magicamente incentivou o constrangimento. Em seu reflexo, Sarai viu suas bochechas marrons ficarem vermelhas em vez de lavanda, enquanto Lazlo viu o contrário em seu próprio reflexo.
– Então, dons – ele falou, recuperando-se, embora Sarai não se incomodasse se ele demorasse um pouco na centena de coisas mais gentis. – E o seu é... entrar nos sonhos?
Ela assentiu. Não viu necessidade de explicar a mecânica da coisa. O comentário impiedoso de Rubi de um tempo atrás passou por sua mente. “Quem ia querer beijar uma garota que come mariposas?” A ideia de beijar provocou um alvoroço em seu estômago, que era como sentir que suas mariposas moravam dentro dela. Asas, delicadas e fazendo cócegas.
– Então, como sei qual é, esse dom? – Lazlo quis saber. – Como alguém descobre isso?
– É sempre diferente. Às vezes, é espontâneo e óbvio, outras vezes ele precisa ser provocado. Quando os Mesarthim eram vivos, era Korako, a deusa dos segredos, que os revelava. Ou assim me disseram. Devo tê-la conhecido, mas não consigo me lembrar.
A pergunta “quem disse?” era tão palpável que, embora Lazlo não a tenha feito – exceto, talvez, com suas sobrancelhas –, Sarai respondeu assim mesmo.
– Os fantasmas – ela disse. O que, nesse caso, era verdade.
– Korako – repetiu Lazlo. Pensou de novo no mural, mas estivera tão fixado em Isagol que as outras deusas eram um borrão. Suheyla havia mencionado Letha, mas não a outra. – Não ouvi nada sobre ela.
– Não. Você não ouviria. Ela era a deusa dos segredos e o maior segredo que guardava era sobre si mesma. Ninguém nem mesmo sabia qual era seu dom.
– Outro mistério – falou Lazlo, e então conversaram sobre deuses e dons, andando pelo rio. Sarai chutou a superfície e observou as gotas que voavam e formavam arco-íris efêmeros. Eles apontaram para os cisnes, que antes eram idênticos e agora eram estranhos – um com presas e feito de ágata e musgo, outro parecendo folheado a ouro. Um tinha até mesmo se transformado em um svytagor. Ele submergiu e desapareceu sob a água verde opaca. Sarai contou a Lazlo alguns dos melhores dons que aprendeu com Grande Ellen, e citou, entre eles, uma garota que podia fazer as plantas crescerem e um garoto que podia trazer a chuva. Seu próprio dom, se a mahalath tinha lhe dado um, continuava um mistério.
– Mas e quanto a você? – ele quis saber, pausando para colher uma flor que havia acabado de desejar que crescesse. Era uma flor exótica que vira na vitrine de uma floricultura e ele teria ficado constrangido de saber que ela era chamada de flor da paixão. Ele a ofereceu a Sarai. – Se você fosse humana, teria que abandonar seu dom, não?
Lazlo não tinha como saber a maldição que era o dom dela, ou o que o uso do dom havia causado à garota e a Lamento.
– Imagino que sim – respondeu, cheirando a flor, que tinha aroma de chuva.
– Mas então você não poderia estar aqui comigo.
Era verdade. Se fosse humana, Sarai não poderia estar no sonho de Lazlo com ele. Mas... poderia estar no quarto com ele. Um calor explodiu dentro de si, e não era de vergonha nem de constrangimento. Era uma espécie de desejo, mas não do coração. Era um desejo da pele. De ser tocada. Era o desejo dos membros. De se entrelaçarem. Estava centrado em seu abdômen, no lugar de sua nova elilith, e ela passou os dedos sobre a tatuagem novamente e estremeceu. Na cidadela, andando de um lado para o outro, seu corpo verdadeiro estremeceu também.
– É um sacrifício que eu estaria disposta a fazer – explicou.
Lazlo não podia imaginar isso, que uma deusa estivesse disposta a abrir mão de sua magia. Contudo, não era apenas a magia. Ele achava que ela seria bela em qualquer cor, mas percebeu que sentia falta do tom raro de sua pele.
– Você não gostaria de mudar de verdade, não é? – ele persistiu. – Se isso fosse real e você tivesse escolha.
Será que não? Por que outro motivo seu inconsciente – sua mahalath interna – havia escolhido essa transformação?
– Se isso significasse ter uma vida? Sim, eu gostaria.
Ele ficou intrigado.
– Mas você já está viva. – Ele sentiu uma pontada súbita de medo. – Você está, não? Você não é um fantasma como os outros...
– Não sou um fantasma – afirmou Sarai, para alívio dele –, mas sou filha dos deuses e você deve saber que existe uma diferença entre estar viva e ter uma vida.
Lazlo entendia isso. Pelo menos, achou que entendia. Refletiu sobre de alguma forma ser comparável a um órfão no Mosteiro de Zemonan: vivo, mas não vivendo a vida. E como havia encontrado seu caminho de um estado para outro e tinha até mesmo visto seu sonho tornar-se realidade, sentiu ter uma certa qualificação no assunto. Mas não entendia uma peça crucial do quebra-cabeça. Uma peça crucial e sangrenta do quebra-cabeça. Sensato e cordial, ele simpatizou com ela.
– Não deve ser uma vida ficar presa lá em cima. Mas agora que sabemos de você, podemos tirá-la de lá.
– Tirar-me de lá? O quê, para Lamento? – Houve uma mudança repentina de uma surpresa incrédula na voz de Sarai e, enquanto ela falava, reverteu-se à sua cor normal, a pele ficou azul novamente. Lá se foi ser humana, ela pensou. A dura verdade não tolera a imaginação. Como se a sua reversão tivesse dado um fim à fantasia, Lazlo também reverteu-se e era ele mesmo de novo. Sarai ficou quase chateada. Enquanto o garoto tinha a aparência azul, ela quase podia acreditar que havia uma conexão entre os dois. Ela não havia se perguntado, ansiosamente, um pouco antes, se esse sonhador poderia ajudá-la? Poderia salvá-la? Ele não fazia ideia.
– Você entende – explicou, com uma severidade inadequada – que eles me matariam assim que me vissem?
– Quem mataria?
– Qualquer um.
– Não – ele balançou a cabeça, sem querer acreditar. – Eles são pessoas boas. Será uma surpresa, sim, mas não poderiam odiá-la apenas por causa do que seus pais eram.
Sarai parou de andar.
– Você acha que pessoas boas não podem odiar? Você acha que pessoas boas não matam? – Sua respiração acelerou, e ela percebeu que havia esmagado a flor de Lazlo na mão. Ela derrubou as pétalas na água. – Pessoas boas fazem todas as coisas que pessoas más fazem, Lazlo. Só que quando elas fazem, chamam de justiça. – Pausou. Sua voz ficou mais pesada. – Quando eles mataram trinta bebês em seus berços, chamaram isso de necessário.
Lazlo a encarou. Balançou a cabeça, descrente.
– Sabe aquele choque que você viu no rosto de Eril-Fane? – ela continuou. – Não foi porque ele não sabia que tinha uma filha. – Ela inspirou. – Foi porque ele achava que tinha me matado quinze anos atrás. – Sua voz embargou no fim. Engoliu em seco e sentiu, de repente, como se sua cabeça inteira estivesse repleta de lágrimas e se não derramasse algumas, ela explodiria. – Quando ele matou todos os filhos dos deuses, Lazlo – ela acrescentou, e chorou.
Não no sonho, não onde Lazlo pudesse ver, mas em seu quarto, escondida. Lágrimas cobriram suas bochechas da mesma forma que as chuvas de monções cobriam os contornos da cidadela no verão, entrando por todas as portas abertas, um dilúvio de chuva pelo chão liso e não havia nada a fazer a não ser esperar que ela parasse.
Eril-Fane sabia que um dos bebês no berçário era dele, mas não sabia qual. Ele tinha visto a barriga de Isagol crescer com seu filho, é claro, mas depois que a mulher dera à luz, nunca mais o mencionara. Ele perguntou e ela deu de ombros. Ela tinha cumprido o seu dever; depois disso, era problema do berçário. Isagol não sabia nem mesmo se era um menino ou uma menina; não lhe significava nada. E quando ele entrou, ensopado de sangue, no berçário e olhou em volta para os bebês e crianças azuis em comoção, teve medo de ver e saber: ali. Aquele é meu.
Se ele tivesse visto Sarai, com cabelos cor de canela como os da mãe, teria sabido em um instante, mas não a vira porque ela não estava lá, embora não soubesse. Achava que o cabelo dela era escuro como o seu, como o do resto dos bebês. Eles eram um borrão de azul, sangue e gritos.
Todos inocentes. Todos amaldiçoados.
Todos mortos.
Os olhos de Lazlo estavam secos, mas abertos e sem piscar. Bebês. Sua mente rejeitou isso, muito embora, sob a superfície, peças de quebra-cabeça estivessem se juntando. Todo o pavor e a vergonha que ele tinha visto em Eril-Fane. Tudo na reunião com os Zeyyadin, e... e a forma com que Maldagha pôs as mãos na barriga. Suheyla também. Era um gesto maternal. Como ele tinha sido estúpido em não entender, mas como ele poderia, quando passou a vida inteira com homens velhos? Todas as coisas que não faziam sentido tinham mudado o suficiente de posição, e era como inclinar o ângulo do sol de forma que, em vez de olhar por uma janela e cegar-se, ele passava por ela para iluminar tudo o que estava dentro.
Ele sabia que Sarai estava falando a verdade.
Um grande homem e também um homem bom. Era isso que tinha pensado? Mas o homem que matou deuses também matara bebês, e Lazlo entendia agora o que ele temia encontrar na cidadela. “Alguns de nós sabemos melhor do que os outros o... estado... em que a deixamos”, ele dissera. Não os esqueletos de deuses, mas de crianças. Lazlo encurvou-se, sentindo-se mal. Pressionou a palma da mão com firmeza na testa. O vilarejo e os cisnes monstruosos desapareceram. O rio não estava mais lá. Tudo sumiu em um piscar de olhos e Lazlo e Sarai encontraram-se em seu quarto – o quarto do Matador de Deuses. O corpo adormecido de Lazlo não estava esticado na cama. Essa era mais uma paisagem do sonho, pois dormia no quarto e, no sonho, estava em pé no cômodo. Na realidade, uma mariposa estava pousada em sua testa no quarto e, no sonho, a Musa dos Pesadelos estava a seu lado.
A Musa dos Pesadelos, Sarai pensou. Mais do que nunca. Ela tinha, afinal, levado o pesadelo para esse sonhador em quem vinha procurando refúgio. Em seu sono, ele murmurou: “não”, com olhos e punhos bem fechados. A respiração era rápida, assim como a pulsação. Todos os indícios de pesadelo, que Sarai bem conhecia. Tudo o que ela fez foi dizer a verdade, não havia sequer lhe mostrado a verdade. Brilho de faca e sangue espalhado, e todos os corpinhos azuis. Nada a induziria a arrastar aquela memória repulsiva à bela mente dele.
– Sinto muito – ela disse.
Na cidadela, ela soluçou. Ela jamais poderia estar livre da ferida. Sua própria mente seria sempre um túmulo aberto.
– Por que você se desculpa? – Lazlo indagou. Havia doçura em sua voz, mas a vivacidade a tinha deixado. Ela tinha ficado sem brilho, como uma velha moeda. – Você é a última pessoa que devia se sentir culpada. Ele deveria ser um herói! Ele me deixou acreditar nisso. Mas que tipo de herói poderia fazer... isso?
Em Quedavento, o “herói” em questão estava deitado no chão, imóvel como se dormisse, mas seus olhos estavam abertos no escuro, e Sarai pensou novamente que ele era uma ruína tanto quanto era homem. Eril-Fane era, ela pensou, como um templo amaldiçoado: ainda belo de se olhar – a carapaça de algo sagrado –, mas incivilizado por dentro e ninguém, exceto fantasmas, podia cruzar seu limiar.
“Que tipo de herói?”, Lazlo perguntara. Que tipo, de fato. Sarai nunca tinha se deixado erguer em sua defesa. Era impensável, como se os corpos fossem uma barreira entre ela e o perdão. Entretanto, e sem muito saber o que ia dizer, contou a Lazlo, em voz suave:
– Por três anos, Isagol fez com que ele a amasse. Quer dizer... ela não inspirava amor, nem sequer se esforçava para ser digna dele. Ela apenas alcançou sua mente... ou seus corações, ou sua alma... e tocou a nota que o faria amá-la contra tudo o que havia nele. Ela era uma coisa muito sombria. – A garota estremeceu ao pensar que havia saído do corpo dessa coisa tão sombria. – Ela não tirou as emoções conflitantes de Eril-Fane, embora pudesse ter feito isso. Isagol não fez com que ele não a odiasse e deixou o ódio lá, ao lado do amor, pois achava engraçado. E não era... Não era aversão ao lado de luxúria, ou algumas versões triviais de ódio e amor. Veja, era ódio. – Ela colocou tudo o que conhecia de ódio em sua voz, e não seu próprio ódio, mas o de Eril-Fane e do restante das vítimas dos Mesarthim.
– Foi o ódio dos usados e atormentados, que são os filhos dos usados e atormentados, e cujos filhos seriam usados e atormentados. E isso era amor – ela continuou, e colocou tudo aquilo em sua voz também, da forma que foi capaz. Amor que acende a alma como a primavera e a torna madura como o verão. Amor como raramente existe na realidade, como se um mestre alquimista o tivesse pegado e destilado de todas as impurezas, de cada desencanto mesquinho, de cada pensamento vil, em um elixir perfeito, doce, profundo e que tudo consome. – Ele a amava tanto – ela sussurrou. – Era tudo uma mentira. Era uma violação. Mas não importava, porque quando Isagol fazia você sentir alguma coisa, isso se tornava real. Ele a odiava. E a amava. E a matou.
A garota sentou-se na beirada da cama de Lazlo e deixou seu olhar vagar pelas paredes familiares. Memórias que podem ser presas dentro de um quarto, e esse quarto ainda tinha todos os anos em que havia chegado a essa janela, cheia de maldade justificada. Lazlo sentou-se ao lado dela.
– O ódio venceu – ela falou. – Isagol deixou-o lá para se divertir, e por três anos ele lutou uma guerra dentro de si. A única forma de vencer era seu ódio superar aquele amor perfeito, falso e vil. E isso aconteceu. – Ela cerrou os dentes e lançou um olhar para Lazlo. A história não era dela para contar, mas achava que ele precisava saber. – Depois Skathis levou Azareen para a cidadela.
Lazlo já conhecia um pouco da história. “Eles a pegaram depois”, Suheyla havia dito. Sarai sabia de tudo. Só ela sabia da aliança fosca de prata que Azareen colocava no dedo toda noite e tirava logo de manhã. A história de amor deles não foi a única terminada pelos deuses, mas era a única que terminara com os deuses.
Eril-Fane tinha sido levado havia mais de dois anos na época em que Skathis levou Azareen, e talvez ela tenha sido a primeira garota em Lamento que estava feliz em montar no monstro Rasalas e voar até a sua própria escravidão. Pelo menos ela saberia se seu marido ainda estava vivo.
Ele estava. E Azareen aprendeu como era possível estar feliz e devastada ao mesmo tempo. Ela ouviu sua risada antes de ver seu rosto – a risada de Eril-Fane, naquele lugar, tão viva quanto já ouvira – e fugiu do guarda para correr em sua direção, derrapando em uma esquina do corredor liso de metal até avistá-lo, olhando para Isagol, a Terrível, com amor.
Ela sabia o que era aquilo, pois ele a olhara daquele jeito também. Não era fingido, era verdadeiro e, então, depois de mais de dois anos perguntando-se o que acontecera com ele, Azareen descobriu. Além do sofrimento de servir ao “propósito” dos deuses, era seu destino ver o próprio marido amar a deusa do desespero.
E quanto a Eril-Fane, era seu destino ver sua noiva levada pelo sinistro corredor – porta após porta de quartos pequenos com nada dentro, exceto camas. E, por fim, o cálculo de Isagol falhou. O amor não era comparável ao que ardeu em Eril-Fane quando ele ouviu os primeiros gritos de Azareen.
– O ódio foi o triunfo dele – Sarai disse a Lazlo. – Foi quem ele se tornou para salvar sua esposa e todo o seu povo. Tanto sangue em suas mãos, tanto ódio em seus corações. Os deuses tinham criado seu próprio fim. – Ela permaneceu sentada, muda por um momento, e sentiu um vazio onde durante anos seu próprio ódio estivera. Havia apenas uma tristeza terrível agora. – E depois que foram assassinados e todos os escravos foram libertados – explicou, com peso na voz – ainda havia o berçário e um futuro cheio de magia terrível e imponderável.
As lágrimas que até então tinham fluido apenas no rosto real de Sarai deslizaram pelo rosto do sonho também. Lazlo pegou as mãos dela e segurou-as nas suas.
– É uma violência que nunca poderá ser perdoada – suspirou com a voz rouca de emoção. – Algumas coisas são terríveis demais para perdoar. Mas eu acho... Acho que posso entender o que sentiram aquele dia, e o que enfrentaram. O que deviam fazer com crianças que cresceriam para se tornar uma nova geração de torturadores?
Lazlo vacilou com o horror de tudo aquilo e com a sensação inacreditável de que, afinal, sua própria infância tinha sido misericordiosa.
– Mas... se eles tivessem sido acolhidos e criados com amor, não se tornariam torturadores – ele disse.
Soava tão simples, tão claro. Mas o que os humanos sabiam dos poderes dos Mesarthim exceto que podiam ser usados para punir e oprimir, aterrorizar e controlar? Como podiam ter imaginado uma Pardal ou um Feral quando tudo o que conheciam eram Skathis e Isagol e seus iguais? Será que alguém poderia voltar no tempo e esperar que eles fossem tão misericordiosos quanto era possível quinze anos depois com uma mente e um corpo não violados pelos deuses?
A empatia de Sarai deixou-a nauseada. Ela disse que jamais perdoaria, mas parecia que já havia perdoado, e corou com um assombro confuso. Uma coisa era não odiar, e outra perdoar. Ela disse a Lazlo:
– Eu me sinto um pouco como ele às vezes, amando e odiando ao mesmo tempo. Não é fácil ter um paradoxo no cerne de nós mesmos.
– O que você quer dizer? Que paradoxo? Ser humana e cria... – Lazlo não conseguiu dizer cria de deuses, mesmo que ela se chamasse assim. – Humana e Mesarthim?
– Tem isso também, mas não. Quero dizer a maldição do conhecimento. Era fácil quando nós éramos as únicas vítimas. – Nós. Ela fitava suas mãos, ainda unidas, as dela fechadas dentro das dele, mas levantou o olhar e não voltou atrás quanto ao pronome. – Somos em cinco – admitiu. – E para os outros há apenas uma verdade: o Massacre. Mas por causa do meu dom, ou maldição, aprendi como tudo isso foi para os humanos, antes e depois. Conheço o íntimo de suas mentes, por que eles fizeram isso e como isso os mudou. E então quando vejo uma memória daqueles bebês sendo... – As palavras sufocaram-se em um soluço. – Sei que aquele era o meu destino também, sinto a mesma raiva que sempre senti, mas agora há... Há indignação também, por aqueles jovens, homens e mulheres, que foram retirados de seus lares para servir ao propósito dos deuses, e desolação pelo que isso fez a eles, e culpa... pelo que eu fiz a eles.
Ela chorou, e Lazlo puxou-a para um abraço, como se fosse a coisa mais natural do mundo que ele puxasse uma deusa triste para seu ombro, enlaçasse-a nos braços, respirasse o perfume das flores em seus cabelos e até acariciasse levemente sua têmpora com a ponta do polegar. E embora houvesse uma camada de sua mente que soubesse que aquilo era um sonho, ela foi momentaneamente encoberta por outras camadas, mais atrativas, e ele vivenciou o momento como se fosse absolutamente real. Toda a emoção, toda a sensação. A textura da pele, o perfume dos cabelos, o calor da respiração contra sua camisa branca e até a umidade das lágrimas passando por ela. Mas bem mais intenso era o carinho absoluto e inefável que ele sentia, e a solenidade. Como se ele tivesse sido encarregado de algo infinitamente precioso. Como se tivesse feito um juramento e sua própria vida fosse a garantia. Lazlo reconheceria esse instante mais tarde como o momento em que seu centro de gravidade mudou: de ser apenas um – um pilar sozinho, separado – para se tornar metade de alguma coisa que cairia se qualquer um dos lados fosse cortado.
Três medos o atormentavam em sua antiga vida. O primeiro: que ele nunca visse prova da magia. O segundo: que ele nunca descobrisse o que tinha acontecido em Lamento. Esses medos tinham desaparecido; prova e respostas descortinavam-se minuto a minuto. E o terceiro? Que ele sempre seria sozinho?
Ele não entendia ainda – pelo menos não conscientemente –, mas não estava mais sozinho, e tinha um novo conjunto de temores a descobrir: aqueles que vinham com o fato de gostar de alguém que provavelmente se pode perder.
– Sarai – Sarai. O nome dela era como caligrafia e mel. – O que você quer dizer? – ele perguntou, gentilmente. – O que você fez a eles?
E Sarai, permanecendo como estava, com o rosto enfiado no ombro de Lazlo, a testa descansando contra o queixo dele, contou-lhe quem era e o que havia feito e até... Embora sua voz tenha ficado fina como papel... Como ela fazia as coisas, mariposas e tudo mais. E quando ela terminou de contar e estava tensa dentro de seus braços, esperou para ver o que ele ia dizer. Diferentemente dele, ela não conseguia esquecer que aquilo era um sonho. Estava fora e dentro dele ao mesmo tempo. E embora não ousasse fitá-lo enquanto contava-lhe a verdade, sua mariposa observava o rosto adormecido em busca de qualquer expressão que pudesse indicar aversão.
Não houve nenhuma.
Lazlo não estava pensando sobre as mariposas – embora tenha se lembrado daquela que havia caído morta de sua fronte na primeira manhã que acordou em Lamento. O que de fato o capturou foi a implicação dos pesadelos. Isso explicava tanto. Parecia como se o medo fosse uma coisa viva ali, porque era. Sarai o mantinha vivo. Ela cuidava dele como de uma fogueira e certificava-se de que ele nunca se apagasse.
Se houvesse uma deusa assim em um livro de velhas histórias, ela seria a vilã, atormentando os inocentes de seu alto castelo. As pessoas de Lamento eram inocentes – a maioria delas – e ela as atormentava, mas... que escolha ela tinha? A garota herdara uma história que estava repleta de cadáveres e coagulada de inimizade, e estava apenas tentando permanecer viva dentro dela. Lazlo sentiu muitas coisas por ela naquele momento, sentindo a tensão de Sarai enquanto a segurava, e nenhuma delas era aversão.
Ele estava enfeitiçado e ao seu lado. Quando se tratava de Sarai, até os pesadelos pareciam magia.
– A Musa dos Pesadelos – ele disse. – Soa como um poema.
Um poema? Sarai não detectou nenhum escárnio na voz de Lazlo, mas teve de analisá-lo para confirmar, então se sentou ereta e desfez o abraço. Com pesar, ela o fez. Não viu nenhuma zombaria, apenas... Encantamento, ainda encantamento, e ela quis viver nele para sempre.
Sarai perguntou com um sussurro hesitante:
– Você ainda acha que sou um... demônio singularmente formidável?
– Não – respondeu, sorrindo. – Acho que você é um conto de fadas.
Acho que você é mágica, e corajosa, e única. E... – sua voz ficou acanhada. Apenas em um sonho ele poderia ser tão destemido e dizer aquelas palavras. – Espero que você me deixe participar da sua história.
44
UMA SUGESTÃO EXTRAORDINÁRIA
Um poema? Um conto de fadas? Era mesmo assim que ele a via? Agitada, Sarai levantou-se e foi à janela. Não era só sua barriga que sentia um alvoroço como o de asas leves e selvagens, mas seu peito, onde estavam seus corações, e até sua cabeça. Sim, ela queria responder com um prazer tímido. Por favor, faça parte da minha história.
Mas não falou. Observou a noite, a cidadela no céu, e perguntou:
– Será que haverá uma história? Como pode haver?
Lazlo juntou-se a ela na janela.
– Nós encontraremos um jeito. Vou falar com Eril-Fane amanhã. O que quer que ele tenha feito na época, deve querer reparar isso. Não posso acreditar que ele queira machucá-la. Afinal, não contou a ninguém o que aconteceu. Você não viu como ele ficou depois, como ele estava...
– Devastado? – completou Sarai. – Eu o vi depois. Estou observando-o agora. Ele está no chão da sala de estar de Azareen.
– Oh – soltou Lazlo. Era algo que ele não conseguia entender, como ela podia ter tantos olhos no mundo de uma vez só. E Eril-Fane no chão de Azareen, isso também exigia que ele se acostumasse. Eles viviam juntos? Suheyla havia dito que não era mais um casamento, o que quer que existisse entre os dois. Até onde ele sabia, Eril-Fane ainda morava ali.
– Ele deve voltar para casa – disse ele. – Eu posso dormir no chão. Este é o seu quarto, afinal.
– Não é um lugar bom para ele – ela explicou, olhando para o nada pela janela. Seus dentes cerraram-se. Lazlo viu o músculo da face dela se mexer. – Ele teve muitos pesadelos neste quarto. Muitos foram dele mesmo, mas... fui responsável por vários.
Lazlo balançou a cabeça, maravilhado.
– Sabe, achei que fosse tolice, que ele estava se escondendo de seus pesadelos. Mas ele estava certo.
– Eril-Fane estava se escondendo de mim, mesmo que não soubesse. – Uma grande onda de cansaço tomou conta de Sarai. Com um suspiro, fechou os olhos e encostou-se na janela. Estava com a cabeça tão leve quanto estava com os membros pesados. O que faria assim que o sol se levantasse e não pudesse mais ficar ali, na segurança do sonho de Lazlo?
Ela abriu os olhos e o observou.
No quarto de verdade, sua mariposa avaliou o Lazlo real, o relaxamento em seu rosto e os longos membros, soltos no sono. O que ela não daria por um sono descansado assim, sem mencionar o grau de controle que ele tinha dentro dos sonhos. Ela considerou isso.
– Como você fez isso tudo? – ela perguntou. – A mahalath, o chá, tudo isso? Como você molda seus sonhos com tanta intenção?
– Não sei – respondeu. – É novo para mim. Quer dizer, eu tinha alguma lucidez nos sonhos antes, mas não essa previsibilidade, e nunca desse jeito. Só desde que você apareceu.
– Sério? – Sarai ficou surpresa. – Me pergunto por quê.
– Não é assim com os outros sonhadores?
Ela deixou escapar uma risada suave.
– Lazlo, não é nada parecido com os outros sonhadores. Para começar, eles não conseguem nem me ver.
– O que você quer dizer, eles não podem te ver?
– Apenas isso. É por isso que apareci e o encarei daquela primeira vez, sem nenhum pudor. – Ela franziu o nariz, constrangida. – Porque nunca imaginei que você seria capaz de me ver. Com os outros sonhadores, posso gritar bem na frente de seus rostos e eles nunca perceberão. Acredite, eu já tentei. Posso fazer qualquer coisa num sonho, exceto existir.
– Mas... por que isso é assim? Que condição bizarra para o seu dom.
– Uma condição bizarra para um dom bizarro, então. Grande Ellen, a nossa babá fantasma, nunca viu um dom como o meu em todos os seus anos de berçário.
A ruga entre as sobrancelhas de Lazlo – aquela nova que o sol do Elmuthaleth tinha feito nele – aprofundou-se. Quando Sarai falou do berçário, e dos bebês, e dos dons – anos deles – perguntas fizeram fila em sua mente. Mais mistérios de Lamento; quão infindáveis eles eram? Mas havia um mistério mais pessoal que o confrontava.
– Mas por que eu sou capaz de vê-la se ninguém mais consegue?
Sarai deu de ombros, tão perplexa quanto ele.
– Você diz que o chamam de Estranho, o sonhador. Claramente você é melhor em sonhos do que as outras pessoas.
– Oh, claramente – concordou, zombando de si mesmo e um tanto satisfeito. Bastante satisfeito, enquanto assimilava a ideia. Todo esse tempo, desde o momento em que Sarai apareceu à margem do rio e enfiou seus dedos do pé na lama, a noite inteira tinha sido tão extraordinária que ele se sentia... efervescente. Mas quão mais extraordinária ela era, agora que ele sabia como tudo era recíproco.
Contudo, a garota não parecia efervescente, para ser honesto. Ela parecia... cansada.
– Você está acordada agora? – ele quis saber, ainda tentando entender como aquilo funcionava. – Lá na cidadela, quero dizer.
Ela assentiu. Seu corpo estava no quarto. Mesmo naquele espaço confinado, caminhava de um lado para o outro – como um ravide enjaulado, pensou – com apenas um sussurro de sua atenção para guiá-la. Ela sentiu uma pontada de simpatia, abandonada não só por seus iguais, mas por si mesma, deixada vazia e sozinha enquanto ela estava lá, derramando suas lágrimas no peito de um estranho.
Não, não um estranho. O único que a via.
– Então, quando acordo – ele continuou – e a cidade acorda, você vai dormir?
Sarai sentiu um acorde de medo ao pensar em cair no sono.
– É a prática habitual, mas o “habitual” está morto e enterrado.
Ela respirou fundo e soltou o ar. Contou-lhe sobre o lull, como a bebida não funcionava mais e, consequentemente, assim que sua consciência relaxava, era como se as portas para as jaulas de seus medos cativos se abrissem.
E, enquanto a maioria das pessoas pode ter poucos terrores matraqueando em suas jaulas, ela tinha... todos eles.
– Fiz isso comigo mesma. Eu era tão nova quando comecei, e ninguém nunca me falou para considerar as consequências. É claro, parece tão óbvio agora.
– Mas você não consegue simplesmente bani-los? – ele quis saber. – Ou transformá-los?
Ela balançou a cabeça.
– Nos sonhos dos outros tenho o controle, mas, quando durmo, sou impotente, como qualquer sonhador – explicou e observou-o calmamente. – Exceto você. Você não é como qualquer sonhador.
– Sarai – disse Lazlo. Ele viu como ela abandonou seu peso contra a janela, e estendeu o braço para apoiá-la. – Faz quanto tempo que você não dorme?
Ela mal sabia.
– Quatro dias? Não tenho certeza. – Ao ver o olhar assustado dele, ela forçou um sorriso. – Durmo um pouco – completou – entre os pesadelos.
– Mas isso é loucura. Você sabe que pode morrer por privação de sono?
A risada que ela deu em resposta foi austera.
– Eu não sabia disso, não. Você por acaso não sabe quanto tempo leva, sabe? Para que eu possa planejar meu dia? – Ela quis fazer uma piada, mas havia um quê de desespero na pergunta.
– Não – falou Lazlo, sentindo-se impotente. Que situação impossível. Ela estava lá em cima sozinha, ele estava lá embaixo sozinho e, ainda assim, de certa forma, estavam juntos. Ela estava dentro de seu sonho, compartilhando-o. Se ele tivesse aquele dom, pensou, poderia entrar nos seus sonhos e ajudá-la a suportá-los? O que isso significaria? Que terrores ela enfrentava? Lutar com ravides, testemunhar o Massacre o tempo todo? O que quer que fosse, a ideia de ela enfrentá-los sozinha o devastava.
Uma ideia lhe ocorreu. Ela pareceu pousar tão de leve quanto uma mariposa.
– Sarai – ele perguntou, especulativo. – O que aconteceria se você dormisse agora mesmo?
Seus olhos arregalaram-se um pouco.
– O que, você quer dizer aqui? – Ela olhou para a cama.
– Não – respondeu rapidamente, com o rosto esquentando. Em sua cabeça estava claro: ele queria lhe dar um refúgio dos pesadelos, queria ser um refúgio deles. – Quero dizer, se você mantivesse sua mariposa onde ela está, em mim, mas caísse no sono lá, você poderia... você acha que talvez pudesse ficar aqui? Comigo?
Quando Sarai ficou em silêncio, ele ficou com medo de ter ido muito longe com a sugestão. Ele não estava, de certa forma, convidando-a para... passar a noite com ele?
– Só quero dizer – ele apressou-se a explicar – que se você tem medo dos seus próprios sonhos, é bem-vinda aqui no meu.
Um leve frisson de arrepios desceu pelos braços de Sarai. Ela não estava em silêncio porque estivesse ofendida ou desanimada. Ao contrário. Ela estava desarmada. Ela era desejada. Lazlo não sabia sobre as noites que ela tinha invadido sem seu convite, enfiando um pedacinho de sua mente em um canto da dele, para que o encantamento e prazer disso pudesse ajudá-la a suportar... todo o resto. Ela precisava de descanso, muito, e embora tivesse brincado com ele sobre morrer de privação de sono, ela estava, de fato, com medo.
A ideia de que pudesse ficar ali, ficar em segurança ali – com ele – era como uma janela se abrindo, luz e ar entrando. Mas medo, também. Medo da esperança, porque no instante que ela entendeu o que ele estava propondo, Sarai quis tanto que isso funcionasse. E quando foi que ela conseguiu o que desejava?
– Nunca tentei antes – respondeu, esforçando-se para manter a voz neutra. Ela estava com medo de deixar transparecer o seu desejo, no caso de que isso não desse em nada. – Cair no sono pode cortar a ligação e soltar a mariposa.
– Você quer tentar? – perguntou Lazlo, tentando fingir que não estava esperançoso.
– Não deve haver muito tempo antes do nascer do sol.
– Não muito – ele concordou –, mas um pouco.
Ela teve outro pensamento. Estava procurando pontos fracos na ideia, e com medo de encontrá-los.
– E se funcionar, mas meus terrores vierem junto?
Lazlo deu de ombros.
– Nós os afastaremos, ou os transformaremos em vaga-lumes e os prenderemos em potes de vidro. – Ele não estava com medo. Quer dizer. Ele estava apenas com medo de que não funcionasse. Eles podiam enfrentar qualquer outra coisa, juntos. – O que você me diz?
Por um momento, Sarai não confiou na própria voz. Por mais casuais que eles se esforçassem para ser, ambos sentiam algo significativo tomar forma entre eles, e – embora ela não tivesse questionado as intenções dele nem por um minuto – algo íntimo, também. Dormir dentro do sonho dele, quando ela não tinha nem mesmo certeza de que saberia que era um sonho. Onde ela talvez não tivesse controle...
– E se funcionar – ela sussurrou – e eu ficar impotente?
Ela hesitou, mas ele compreendeu.
– Você confia em mim? – ele perguntou.
Isso não era nem uma questão. Ela sentia-se mais segura ali do que em qualquer outro lugar. E, de qualquer forma, perguntou a si mesma, qual risco real havia nisso? É apenas um sonho, ela respondeu, embora, é claro, fosse muito mais.
Ela olhou para Lazlo, mordeu o lábio e rendeu-se, e disse:
– Tudo bem.
45
ESTRANHO AZOTH
No laboratório alquímico improvisado no sótão sem janelas do crematório, uma pequena chama azul tocava a base de vidro curva de um frasco suspenso. O líquido aqueceu-se e mudou de estado, subindo como vapor por meio da coluna de destilação para ir parar no condensador e derramar-se em gotas no frasco de coleta.
O afilhado dourado recuperou-o e segurou-o em frente a uma glave para examiná-lo.
Fluido claro. Poderia ser água, mas não era. Era azoth, uma substância ainda mais preciosa do que o ouro que produzia, porque, diferentemente do ouro, ela tinha múltiplas e maravilhosas aplicações e uma única fonte em todo o mundo: ele mesmo – pelo menos enquanto seu componente fundamental permanecesse secreto.
Um frasco pousava vazio sobre a mesa de trabalho. O rótulo dizia ESPÍRITO DE BIBLIOTECÁRIO, e Thyon sentiu uma fisgada de... repugnância? Ali estava a essência vital do camponês órfão sem nome que tinha o hábito imperdoável de ajudá-lo sem motivo, enquanto permanecia sem malícia, como se fosse uma coisa normal de se fazer.
Talvez fosse repugnância. Thyon empurrou o frasco vazio para o lado abrindo espaço para o próximo procedimento. Ou talvez fosse desconforto. O mundo todo o via da forma que ele queria ser visto: como uma força incontestável, completo e em total comando dos mistérios do universo.
Exceto por Estranho, que sabia quem, de fato, ele era. Ele cerrou os dentes. Se ao menos, pensou, Lazlo tivesse a cortesia de... deixar de existir... então talvez pudesse lhe ser grato. Mas não enquanto estava lá, sempre lá, uma presença benigna rindo com os guerreiros ou fazendo, alegremente, o que precisava ser feito. Ele até criou o hábito de ajudar o cozinheiro da caravana a esfregar a grande panela de sopa com areia. O que ele estava tentando provar?
Thyon balançou a cabeça. Ele sabia a resposta, só não a entendia. Lazlo não estava tentando provar nada. Nada era estratégico com ele. Nada era fingimento. Estranho era apenas Estranho e oferecia seu espírito sem querer nada em troca. Thyon era grato, mesmo que fosse ressentido em igual – ou maior – medida. Ele tinha retirado demais de seu próprio espírito, e aquele era um jogo perigoso. A brincadeira de Lazlo de que aquilo lhe deixaria feio não tinha errado o alvo, mas aquela não era sua única preocupação. Ele vira os mortos de espírito. A maioria não durava muito, ou tirava sua própria vida ou desperdiçava-a pela falta de vontade até mesmo para comer. A vontade de viver, ao que parece, existia naquele fluido claro e misterioso que Estranho tinha lhe dado sem pensar duas vezes.
E Thyon estava bastante restaurado, graças à pausa. Fazia uma nova tentativa com o alkahest, usando o azoth de Estranho dessa vez. Normalmente, sentia uma onda de vivacidade nessa parte de um procedimento químico – a emoção de criar algo que ninguém mais podia, e alterar a própria estrutura da natureza. O alkahest era um solvente universal, que fazia jus ao nome, e nunca o tinha deixado na mão antes. Ele o testou incansavelmente quando estava no Chrysopoesium, e tinha dissolvido todas as substâncias com as quais entrava em contato, até mesmo o diamante.
Mas não o mesarthium. O metal abominável o assustava por sua natureza e já sentia a ignomínia da derrota. Mas o método científico era a religião de Thyon e ditava a repetição dos experimentos – até dos fracassos. Então preparou uma nova leva de químicos e levou o alkahest para a âncora norte para testar mais uma vez. Não estava em sua preparação final, é claro, ou dissolveria seu próprio vasilhame. Ele faria a mistura final no último minuto para ativá-lo.
E, então, quando nada acontecesse – como nada aconteceria –, ele aplicaria o componente neutralizador para desativar o solvente para que não escorresse pelo metal impenetrável e corroesse o chão.
Ele tiraria uma soneca depois. Era nisso que ele estava pensando – sono de beleza, seu bastardo Estranho – quando caminhava pela cidade de Lamento, sem lua, com uma mochila de frascos pendurada no ombro. Ele repetiria o experimento e registraria seu fracasso e então iria para a cama.
Não havia nenhum momento, nem mesmo um segundo, em que Thyon Nero considerasse que o experimento pudesse não fracassar.
46
APENAS UM SONHO
Sarai chamou o resto de suas mariposas para casa mais cedo, deixando apenas uma na testa de Lazlo. Ela hesitou apenas em chamar de volta a que cuidava de seu pai.
Enquanto o observava, corrigiu-se. Não cuidava dele. Não era isso que ela estava fazendo.
Ali ela, finalmente, tinha-o encontrado, e não podia nem mesmo olhar dentro de sua mente.
Era um alívio, admitiu por fim desistindo e retirando a mariposa da parede, fazendo-a sair pela janela de volta ao ar. Estava com medo de saber o que encontraria em seus sonhos agora que ele sabia que a filha estava viva. Será que depois de tudo ainda havia alguma capacidade para a esperança nela – de que ele pudesse estar contente por não estar morta?
Ela afastou a ideia. É claro que ele não estaria contente, mas esta noite não precisava saber. Ela deixou-o com seus pensamentos, quaisquer que fossem eles.
A jornada dos telhados até o terraço era longa para os pedacinhos esvoaçantes, as mariposas, e nunca estivera tão impaciente naqueles minutos enquanto os insetos subiam pelas alturas do ar. Quando por fim chegaram e atravessaram a porta do terraço, viu os fantasmas fazendo guarda e lembrou, com um susto, que era uma prisioneira. Quase havia esquecido e não se demorou pensando nisso. A maior parte de sua atenção estava com Lazlo. Ela ainda estava no quarto junto com ele quando, lá em cima em seu quarto, entreabriu os lábios para receber suas mariposas de volta.
Ela virou-se de costas para ele, no sonho, muito embora soubesse que ele não podia ver sua boca real, ou as mariposas desaparecendo dentro dela. As asas roçaram em seus lábios, suaves como o beijo de um fantasma, e tudo o que podia pensar era como a visão disso o teria enojado.
Quem é que gostaria de beijar uma garota que come mariposas?
Eu não as “como”, ela argumentou consigo mesma.
Seus lábios ainda têm gosto de sal e fuligem.
Pare de pensar em beijar.
E então: a experiência incomum de deitar na cama na escuridão – seu corpo real em sua cama real – na quietude de saber que tanto a cidadela quanto a cidade estavam dormindo e com um fio de sua consciência ainda esticado até Lamento. Fazia anos que não se deitava antes de o sol nascer. Assim como Lazlo tinha deitado rígido, enquanto sua ansiedade para dormir mantinha o sono distante, o mesmo aconteceu com Sarai, uma consciência aguçada de seus membros levantando dúvidas breves sobre como ela os arranjava quando não estava pensando neles. Ela alcançou algo como sua posição natural de dormir – deitada de lado, com as mãos sob a face. Seu corpo cansado e mente mais cansada ainda, que tinham parecido, em sua exaustão, afastar-se um do outro como barcos à deriva, fizeram as pazes com as ondas. Contudo, seus corações estavam batendo rápido demais para dormir. Não de pavor, mas de agitação caso aquilo não funcionasse e... de entusiasmo – tão selvagem e suave quanto um caos de asas de mariposa – caso aquilo funcionasse.
No quarto, lá embaixo na cidade, ela ficou em pé diante da janela por um tempo e falou com Lazlo de um jeito novo e tímido, e aquela sensação de iminência não passou. Sarai pensou nos lamentos invejosos de Rubi sobre como ela “podia viver”. Ela nunca havia sentido que aquilo era verdade, mas agora sim.
Era viver, se era um sonho?
Apenas um sonho, lembrou-se, mas as palavras tinham pouco sentido quando os nós do tapete feito à mão sob seus pés imaginários eram mais vívidos do que o travesseiro macio de seda sob sua face real. Quando a companhia desse sonhador a fez sentir-se acordada pela primeira vez, mesmo enquanto tentava dormir. Ela estava ansiosa, parada lá com ele. Sua mente estava inquieta.
– Eu me pergunto se será mais fácil cair no sono se eu não estiver falando.
– É claro – ele respondeu. – Você quer se deitar? – Ele corou com a própria sugestão. Ela também. – Por favor, fique à vontade. Posso te trazer alguma coisa?
– Não, obrigada – respondeu Sarai. E com uma sensação engraçada de repetir a si mesma, deitou-se na cama, da mesma forma que fizera lá em cima. Ficou perto da beirada. Não era uma cama larga. Ela não achou que ele fosse se deitar também, mas deixou espaço suficiente caso ele o fizesse.
Ele ficou perto da janela, e ela o viu fazendo um gesto de colocar as mãos nos bolsos, apenas para descobrir que suas calças não tinham bolsos, e ficando constrangido por um momento antes de se lembrar que aquilo era um sonho. Então os bolsos apareceram, e suas mãos entraram.
Sarai dobrou as mãos mais uma vez sob a face. Essa cama era mais confortável do que a sua. O quarto inteiro era. Ela gostava das paredes de pedra e vigas de madeira que tinham sido construídas por mãos humanas e ferramentas em vez de pela mente de Skathis. Era confortável e agradável também. Era aconchegante. Nada na cidadela era aconchegante, nem mesmo sua alcova atrás do closet, embora chegasse perto. Surpreendeu-a com uma força renovada o fato de ser a cama de seu pai, da mesma forma que a cama na alcova havia sido dele antes de ser dela. Quantas vezes ela o tinha imaginado deitado acordado ali, planejando assassinatos e vingança? Agora, enquanto ela estava deitada ali, pensou nele como um garoto, temendo ser roubado e levado para a cidadela. Se ele tivesse sonhado em ser um herói, ela pensou, como imaginou que seria? Nada do que era, ela tinha certeza. Nada como um templo arruinado onde apenas fantasmas podem entrar.
E então, bem... não foi repentino, exatamente. Em vez disso, Sarai tornou-se consciente de que algo estava levemente diferente, e ela entendeu o que era: ela não estava mais em múltiplos lugares, mas apenas em um. Ela tinha deslocado sua concentração do seu corpo real deitado em sua cama real, e da mariposa na testa de Lazlo. Ela estava apenas ali, e sentiu que era ainda mais real por isso.
Oh. Ela sentou-se, dando-se conta de onde estava. Ela estava ali. Tinha funcionado. O fio que a ligava à mariposa não tinha se rompido. Ela estava dormindo – ah, o descanso abençoado – e em vez de seu inconsciente repleto de terrores à espreita, ela estava a salvo no inconsciente de Lazlo. Ela riu – um pouco incrédula, um pouco nervosa, um pouco contente. Tudo bem, muito contente. Bem, muito nervosa também. Muito tudo. Ela estava dormindo no sonho de Lazlo.
Ele observou-a, com expectativa. Vê-la ali – suas pernas azuis desnudas até os joelhos, enroscadas em seus cobertores amarrotados, e seus cabelos desgrenhados sobre o travesseiro – era uma visão que doía de tão doce. Ele estava bastante consciente de suas mãos, e não era por causa do constrangimento de não saber o que fazer com elas, mas sim por saber o que desejava fazer com elas. Suas palmas formigavam: a necessidade doída de tocá-la. Suas mãos pareciam bem despertas.
– Então? – ele perguntou, ansioso. – Funcionou?
Ela assentiu, abrindo um sorriso largo e maravilhado que ele não pôde deixar de retribuir. Que noite longa e extraordinária tinha sido. Quantas horas tinham se passado desde que ele fechara os olhos, esperando que ela viesse. E agora... de certa forma, ele não conseguia entender, ela estava... bem... era isso, não? Sua mente só pensava nela.
Ele guardava uma deusa em sua mente da mesma forma que alguém pega uma borboleta nas mãos. Mantendo-a segura tempo suficiente para libertá-la.
Livre. Era possível? Ela podia ficar livre um dia?
Sim.
Sim. De certa forma.
– Bem, então – ele disse, sentindo uma amplidão de possibilidades tão imensa quanto os oceanos. – Agora que você está aqui, o que fazemos?
Era uma boa pergunta. Com as infinitas possibilidades do sonho, não era fácil reduzi-las.
– Podemos ir para qualquer lugar – disse Lazlo. – O mar? Podíamos navegar um leviatã, e libertá-lo. Os campos de Thanagost? Generais e lobos soltos e botões de ulola pairando como bolhas vivas. Ou a Espiral de Nuvem. Podíamos subir nela e roubar esmeraldas dos olhos do sarcófago, como Calixte. Você gostaria de se tornar uma ladra de joias, senhorita?
Os olhos de Sarai brilharam.
– Isso parece divertido – disse ela. Tudo soava maravilhoso. – Mas você só mencionou lugares e coisas reais até agora. Sabe do que eu gostaria?
Ela estava sentada sobre os joelhos na cama, com os ombros eretos e as mãos unidas sobre as pernas. Seu sorriso era um espécime brilhante e ela usava a lua no pulso. Lazlo ficou deslumbrado ao vê-la.
– O quê? – ele perguntou. Qualquer coisa, pensou.
– Eu gostaria que os fabricantes de asas viessem para a cidade.
– Os fabricantes de asas – ele repetiu, e em algum lugar dentro dele, como se um zumbido de engrenagens e um ruído de cadeados, um cofre antes insuspeito de satisfação tivesse sido aberto.
– Como você mencionou outro dia... – disse Sarai, delicada em sua postura acanhada e excitação infantil. – Eu gostaria de comprar asas e testá-las e depois disso talvez nós possamos tentar montar em dragões e ver o que é mais divertido.
Lazlo teve de rir. Ficou cheio de satisfação. Ele achou que nunca tivesse rido desse jeito antes, desse novo lugar dentro dele onde tanta satisfação estava esperando em reserva.
– Você acabou de descrever meu dia perfeito – disse ele, e estendeu a mão, e ela pegou-a.
Ela levantou-se e saiu pelo lado da cama, mas quando seus pés tocaram o chão, um grande abalo fez um tum na rua. Um tremor sacudiu o quarto. Gesso choveu do teto, e toda a excitação desapareceu do rosto de Sarai.
– Ó, deuses – ela disse, em um sussurro. – Está acontecendo.
– O que é? O que está acontecendo?
– Os terrores, meus pesadelos. Eles estão aqui.
47
OS TERRORES
– Mostre-me – pediu Lazlo, que não estava com medo. Como dissera antes, se o terror dela se derramasse, eles lidariam com isso juntos.
Mas Sarai balançou a cabeça, selvagem.
– Não. Isso não. Feche as janelas. Corra!
– Mas o que é? – ele perguntou. Ele moveu-se na direção da janela, não para fechá-la, mas para olhar para fora. Mas antes que fizesse isso, a janela fechou-se à sua frente com um ruído forte e o trinco caiu firmemente no lugar. Com as sobrancelhas erguidas, ele voltou-se para Sarai.
– Bem, parece que você não é impotente aqui afinal de contas.
Quando ela o observou confusa, Lazlo apontou para a janela e falou:
– Você fez isso, não eu.
– Eu fiz? – ela perguntou. Ele assentiu. Ela levantou-se, mas não tinha tempo para reunir sua coragem, porque lá de fora o tum veio de novo, mais baixo agora e com tremores mais sutis, e então de novo e de novo, em uma repetição rítmica.
Tum. Tum. Tum.
Sarai afastou-se da janela.
– Ele está vindo – ela disse, tremendo.
Lazlo seguiu-a. Ele pegou em seus ombros, com delicadeza.
– Está tudo bem – respondeu. – Lembre-se, Sarai, é apenas um sonho.
Ela não conseguia sentir a verdade de suas palavras. Tudo o que sentia era a aproximação, o pavor, o pavor que era tão puro como uma destilação do medo quanto qualquer emoção que Isagol tivesse feito. Os corações de Sarai estavam desvairados de medo, e de angústia também. Como ela podia ter empregado isto, inúmeras vezes, nos sonhos dos sonhadores de Lamento? Que tipo de monstro ela era?
Havia sido sua arma mais poderosa, porque era o medo mais potente deles. E agora estava perseguindo-a.
Tum. Tum. Tum.
Grandes passos incansáveis, mais próximos, mais altos.
– Quem é? – perguntou Lazlo, ainda segurando os ombros de Sarai. Seu pânico, ele descobriu, era contagioso. Parecia passar da pele dela para a dele, subindo pelas as mãos e braços em vibrações de medo. – Quem está vindo?
– Shhh! – ela pediu, com os olhos tão arregalados que mostravam um anel completo de branco, e quando ela sussurrou foi como uma respiração moldada em palavras, e não fez nenhum som. – Ele vai te ouvir.
Tum.
Sarai congelou. Não parecia possível que seus olhos se arregalassem ainda mais, mas foi o que aconteceu e, naquele breve momento de silêncio, os passos cessaram – a pausa terrível que todos os lares de Lamento tinham temido por duzentos anos –, o pânico de Sarai suplantou a racionalidade de Lazlo, de forma que os dois estavam nele, vivendo-o, quando as janelas, sem aviso, foram arrancadas das dobradiças em uma confusão de madeira partindo-se e vidro estilhaçando-se. E lá, do lado de fora, estava a criatura cujos passos sacudiam os ossos de Lamento. Não era uma coisa viva, mas movia-se como se fosse, sinuosa como um ravide e brilhante como mercúrio derramado. Era todo de mesarthium, músculo liso esculpido para poder agachar e saltar. O flanco de um grande felino, o pescoço e a corcunda de um touro, asas tão afiadas e terríveis quanto as asas do grande serafim, embora em escala menor. E uma cabeça... uma cabeça que era feita para os pesadelos.
A cabeça era de cadáver.
Era metal, é claro, mas como o relevo nas paredes do quarto de Sarai – os pássaros e lírios tão reais que zombavam dos mestres entalhadores de Lamento –, era praticamente vivo. Ou melhor, praticamente morto. Era uma coisa morta, uma coisa podre, um crânio com a carne se soltando, revelando dentes até a raiz em uma careta de presas, e no lugar dos olhos não havia nada, apenas uma terrível luz que tudo via. Ele tinha chifres grossos como braços, que afinavam até pontas afiadas; e bateu a pata no chão, atirando a cabeça para frente, com um rugido raspando sua garganta de metal.
Era Rasalas, a besta da âncora norte, e não era o verdadeiro monstro. O verdadeiro monstro estava montado nele: Skathis, deus das bestas, mestre do metal, ladrão de filhos e filhas, atormentador de Lamento.
Lazlo tinha apenas o mural grosseiramente desenhado para se orientar, mas viu o deus que havia roubado tanto – não só filhos e filhas, embora esse fosse o cerne sombrio disso. Skathis havia roubado o céu da cidade, e a cidade do mundo. Que poder tremendo e insidioso isso exigiu, e ali estava o deus em pessoa.
Podia-se esperar uma presença para rivalizar a do Matador de Deuses – uma contrapartida sombria à sua luz, como dois reis se afrontando em um tabuleiro.
Mas não. Ele não era nada perto do Matador de Deuses. Mas ali não havia majestade sombria, não havia nenhuma magnificência. Ele era de estatura mediana e o rosto era apenas um rosto. Ele não era o deus-demônio do mito. Exceto pela cor – aquele azul extraordinário – não havia nada de extraordinário nele, a não ser a crueldade em seu semblante. Ele não era nem bonito nem feio, distinguia-se somente pela malícia que ardia nos olhos cinzentos, e aquele sorriso de serpente, traiçoeiro e venenoso.
Mas ele montava em Rasalas, e aquilo mais do que compensava por qualquer falta de grandiosidade divina. A besta como uma extensão de sua própria psique, cada passo e movimento da cabeça eram dele. Cada rugido que ecoava pela garganta de metal era dele tão certamente como se emitido de sua própria garganta. Seus cabelos eram de um castanho-escuro e ele usava uma coroa de mesarthium com formato de uma grinalda de serpentes engolindo o rabo umas das outras. Elas moviam-se em sua fronte em ondas sinuosas e devoradoras, em círculos, incansáveis. Ele vestia um casaco de veludo e pó de diamantes com longas abas esvoaçantes no formato de lâminas de faca, e as botas eram de couro branco de espectral com fivelas de lys.
Era uma coisa amaldiçoada esfolar um espectral e usar sua pele. Aquelas botas podiam quase ser de couro humano, de tão erradas que eram.
Mas nenhum dos detalhes terríveis podiam responder pela pureza do pavor que tomou conta do quarto – por meio do sonho, embora tanto Lazlo quanto Sarai tivessem perdido a noção desse fato, e estivessem à mercê das torrentes do inconsciente. Aquele pavor puro, como Lazlo havia testemunhado inúmeras vezes desde que chegara a Lamento, era um horror coletivo que havia sido construído por dois séculos. Quantos jovens, homens e mulheres, haviam sido levados em todo aquele tempo, e retornado sem memória depois desse momento – esse momento à sua porta ou janela quando o deus chegou chamando. Lazlo pensou em Suheyla, Azareen e Eril-Fane e tantos outros, levados assim, sem mais nem menos, não importava o que suas famílias fizessem para mantê-los em segurança.
Mais uma vez a pergunta surgiu em sua mente: por quê? Todos os meninos e meninas roubados, suas memórias levadas e muito mais do que isso.
O berçário, os bebês. Por quê?
Por um lado, era óbvio, e certamente nada novo. Se houve um dia um conquistador que não extorquiu esse dízimo devastador de seus súditos, ele é desconhecido na história. Os jovens são espólio de guerra. Posses, mão de obra. Ninguém está seguro. Tiranos sempre levaram quem eles quiseram, e tiranos sempre o farão. O rei de Syriza tinha um harém até hoje.
Mas isso era diferente. Havia alguma coisa sistemática nos sequestros, algo escondido. Era essa ideia que incomodava a mente de Lazlo – mas brevemente, apenas para ser encoberta pelo pavor esmagador. Há poucos minutos ele tinha pensado, indiferente, que podia capturar os terrores de Sarai como vaga-lumes em um pote de vidro. Agora a enormidade desses terrores estava pronta para capturá-lo.
– Estranho, o sonhador – afirmou Skathis, estendendo uma mão despótica. – Venha comigo.
– Não! – gritou Sarai. Ela agarrou o braço de Lazlo e apertou-o contra si.
Skathis sorriu com malícia.
– Venha agora. Você sabe que não há segurança e não há salvação. Há apenas rendição.
Apenas rendição. Apenas rendição.
O que inundava Sarai era o sofrimento de qualquer um que tivesse ficado para trás, cada familiar ou noivo, namorado de infância ou melhor amigo que não podia fazer nada a não ser se render enquanto seu ente querido era levado para cima. Rasalas apoiou-se em suas patas traseiras, com as garras imensas descendo com força sobre o parapeito da janela e destruindo-a. Sarai e Lazlo recuaram aos tropeços, mas mantiveram-se unidos.
– Você não pode levá-lo – disse Sarai, com a voz sufocada.
– Não se preocupe, criança – respondeu Skathis, olhando-a fixamente com seus olhos frios. – Estou levando-o para você.
Ela balançou a cabeça, em um ímpeto, diante da ideia de que isso fosse feito em seu nome – como Isagol havia levado Eril-Fane para si, Skathis levaria Lazlo para ela. Mas então... a ideia – o paradoxo dela, de Skathis tirar Lazlo dela para levá-lo até ela – dividiu Sarai em duas pessoas, aquela na cidadela e a outra em seu quarto, e descobriu a fronteira entre o sonho e a realidade, que tinha se perdido no medo. Isso era apenas um sonho e, desde que ela soubesse disso, não seria impotente dentro dele.
Todo o medo foi varrido como poeira em uma tempestade. Vocêéa Musa dos Pesadelos, Sarai disse a si mesma. Você é a mestra, não escrava deles.
E ela levantou uma mão, sem formar em sua mente um ataque preciso, mas – assim como com a mahalath – deixou uma voz profunda dentro dela decidir.
E, aparentemente, a voz decidira que Skathis estava morto.
Diante dos olhos de Sarai e de Lazlo, o deus sacudiu-se, com os olhos se arregalando em choque enquanto uma hreshtek lhe atravessava o peito. Seu sangue era vermelho – tão vermelho quanto a pintura no mural, na qual, ocorreu a Lazlo, Skathis estava representado exatamente assim: atingido pelas costas, a espada cortando bem entre os seus corações. Uma bolha vermelha apareceu em seus lábios e rapidamente ele estava morto. Muito rapidamente. Essa não era uma representação natural de sua morte, mas um claro lembrete disso. Você está morto, fique morto, deixe-nos em paz. Rasalas, a besta, congelou no lugar – todo mesarthium morrendo com seu mestre –, enquanto, nas suas costas, o lorde dos Mesarthim caía, secando, desinflando, até que nada restasse a não ser uma casca de carne azul, sem sangue e sem espírito a ser carregado dali com um grito terrível, em um flash de branco derretido, pelo grande pássaro, a Aparição, que surgiu do nada e sumiu da mesma forma.
O quarto estava silencioso, exceto pela respiração rápida. O pesadelo havia acabado, e Lazlo e Sarai ainda estavam unidos, olhando para a face de Rasalas, congelado enquanto rosnava. Seus pés enormes ainda estavam em cima do parapeito da janela, garras enfiadas na pedra. Lazlo estendeu um braço trêmulo, fechando a cortina. O outro braço estava na posse de Sarai. Ela ainda o agarrava, com seus dois braços enlaçados nele como se quisesse lutar com Skathis por ele. Mas a garota havia feito melhor do que isso, pois vencera o deus das bestas. Lazlo tinha certeza de que ele não havia feito nada daquilo.
– Obrigado – ele agradeceu, virando-se para ela. Os dois estavam tão perto um do outro, o corpo dela pressionado contra o braço dele. Ao virar-se, ficaram ainda mais próximos, face a face, o rosto dele virado para baixo, o dela para cima, de forma que o espaço entre os dois era pouco maior do que o vapor de chá que, mais cedo naquela noite, havia pairado entre eles na mesa à margem do rio.
Aquilo era novo para ambos – aquela proximidade que misturava respiração e calor – e compartilharam a sensação de que estavam absorvendo um ao outro, derretendo-se juntos em um recipiente único. Era uma intimidade que ambos haviam imaginado, mas nunca com sucesso – agora sabiam. A verdade era muito melhor do que a fantasia. As asas selvagens e suaves estavam em um frenesi. Sarai não conseguia pensar, queria apenas continuar derretendo.
Mas havia algo no caminho. A garota ainda piscava para se livrar da imagem dos dentes brilhantes de Rasalas e do pensamento de que tudo aquilo era culpa sua.
– Não me agradeça – ela disse, soltando o braço de Lazlo e fitando o chão, desviando do olhar dele. – Eu trouxe isso aqui. Você deveria me expulsar. Você não me quer na sua mente, Lazlo. Eu vou simplesmente arruiná-la.
– Você não arruína nada – o garoto respondeu, e sua voz rouca nunca foi tão doce. – Eu posso estar dormindo, mas esta foi a melhor noite da minha vida. – Maravilhado, ele a encarou, suas sobrancelhas cor de canela, a perfeita curva de suas bochechas azuis e aqueles lábios sedutores com a prega no meio, doces como uma fatia de fruta madura. Ele arrastou seu olhar de volta aos olhos dela. – Sarai – ele falou e, se os ravides ronronassem, teriam um som parecido com o jeito como ele pronunciou o nome dela –, você precisa entender. Eu quero você na minha mente.
E ele a queria em seus braços. Ele a queria em sua vida. Ele não a queria presa no céu, não caçada pelos humanos, não sem esperança e não importunada por pesadelos sempre que fechasse os olhos. Ele queria levá-la a uma margem de rio real e deixá-la afundar os dedos dos pés na lama. Ele queria abraçá-la em uma biblioteca real e sentir o cheiro dos livros, abri-los e lê-los um para o outro. Ele queria comprar asas dos fabricantes de asas para que pudessem voar para longe, com um estoque de bala de sangue em um pequeno baú de tesouro, para que pudessem viver para sempre. Lazlo soube, quando vislumbrou o que havia além da Cúspide, que o reino do incompreensível era muito maior do que imaginara e desejava descobrir o quanto maior. Com ela.
Mas primeiro... Primeiro ele desejava muito, muito beijá-la.
Ele procurou consentimento em seus olhos e encontrou. Ela lhe deu gratuitamente. Era como um fio de luz passando de um para o outro, e era mais do que consentimento. Era cumplicidade, desejo. A respiração de Sarai ficou mais rasa e a garota deu um passo à frente, fechando aquele pequeno espaço. Havia um limite àquele derretimento e ambos o encontraram, e desafiaram-no. Seu peito era duro contra o da garota, que era macia contra o dele. Suas mãos fecharam-se em torno da cintura dela. Os braços dela em volta do pescoço dele. As paredes soltaram um brilho como de sol nascente na água revolta. Inúmeras estrelinhas acenderam-se e nem Sarai nem Lazlo sabiam quem estava fazendo aquilo. Talvez ambos estivessem, e havia tanto brilho naqueles diamantes de luz intermináveis, mas havia consciência também, e urgência. Sob a pele do sonho, ambos sabiam que a aurora estava próxima e que seu abraço não poderia sobreviver.
Então Sarai ficou na ponta dos pés, apagando o último espacinho entre seus rostos corados. Seus cílios fecharam-se, acastanhado cor de mel e gato-selvagem, e suas bocas, macias e desejosas, encontraram-se e tiveram apenas tempo para se tocarem e pressionar, e abrirem-se docemente antes que o primeiro raio de luz da manhã entrasse pela janela, tocasse a asa parda da mariposa sobre a testa de Lazlo e, em um sopro de fumaça índigo, a aniquilasse.
48
SEM LUGAR NO MUNDO
Sarai desapareceu dos braços de Lazlo e Lazlo desapareceu dos de Sarai. O sonho compartilhado desfez-se bem no meio e derramou os dois para fora. Sarai acordou em sua cama na cidadela com o calor dos lábios de Lazlo ainda nos seus, e Lazlo acordou na cidade, um sopro de fumaça na forma de mariposa dissipando-se em sua testa. Os dois levantaram-se ao mesmo tempo e para ambos, a repentina ausência era a poderosa inversão da presença que haviam sentido apenas um instante antes. Não a mera presença física – o calor de um corpo contra o seu (embora isso também) –, mas algo mais profundo.
Essa não era a frustração que alguém sente ao acordar de um sonho bom. Era a desolação de ter encontrado o lugar que encaixa, o único lugar verdadeiro, e experienciar o primeiro suspiro inebriante de estar certo antes de ser jogado para longe e atirado em uma solitária e aleatória dispersão.
O lugar era o outro e a ironia era severa, já que não poderiam estar no mesmo lugar fisicamente, e o mais perto que haviam chegado um do outro foi quando Sarai gritou para ele no terraço enquanto os fantasmas a puxavam para dentro.
Entretanto, mesmo sabendo que isso era verdade – que eles não estiveram no mesmo lugar durante essa longa noite, mas praticamente em diferentes planos de existência, ele no solo, ela no céu – Sarai não podia aceitar que eles não estiveram juntos. Ela derrubou-se novamente na cama e seus dedos estenderam-se curiosos para traçar os próprios lábios, em que um momento antes os dele haviam estado.
Não realmente, talvez, mas verdadeiramente. Quer dizer, talvez eles não tivessem se beijado na realidade, mas haviam se beijado de verdade. Tudo sobre essa noite era verdade de uma forma que transcendia seus corpos.
Mas isso não significa que seus corpos quisessem ser transcendidos.
O desejo.
Lazlo também caiu de volta em seus travesseiros, ergueu os punhos até os olhos e pressionou-os. A respiração sibilou entre os dentes cerrados. Ter sido agraciado com a minúscula prova do néctar de sua boca, e o tão breve roçar do veludo de seus lábios, era uma crueldade indizível. Ele se sentiu incendiado. Teve de se convencer que liberar um trenó de seda e voar imediatamente para a cidadela não era uma opção viável. Isso seria como o príncipe subindo à torre da donzela, tão louco de desejo que esquece sua espada e é morto pelo dragão antes mesmo de chegar perto dela.
Exceto pelo fato de que o dragão, neste caso, era um batalhão de fantasmas a quem nenhuma espada podia ferir e, de toda forma, ele não tinha uma espada. Na melhor das hipóteses, tinha um mastro acolchoado, a verdadeira arma de um herói.
Esse problema – não o beijo interrompido, mas todo o impasse da cidade e da cidadela – não seria resolvido com mortes. Isso já havia acontecido demais. Como isso seria resolvido ele não sabia, entretanto, sabia disto: os riscos eram maiores do que qualquer um imaginasse. E os riscos, para ele, agora, eram pessoais.
Desde o dia em que o Matador de Deuses entrou pelos portões de Zosma e fez seu convite extraordinário, passando pelo recrutamento dos especialistas e toda sua especulação interminável até enfim pousar os olhos em Lamento, Lazlo sentira certa liberdade da expectativa. Ah, ele queria ajudar. Muito. Sonhara acordado com isso, embora ninguém pensasse nele em busca de soluções, e ele não estivesse em busca delas pensando em si mesmo também. Ele estava meramente reflexivo. “O que eu poderia fazer?”, era seu pensamento, afinal, não era alquimista, construtor, especialista em metais ou ímãs.
Mas agora a natureza do problema havia mudado. Não eram apenas metais e ímãs, mas fantasmas e deuses, magia e vingança e mesmo que não pudesse ser chamado de especialista em nenhuma dessas coisas, tinha mais recursos para recomendar a si mesmo do que os outros, a começar por uma mente aberta.
E corações abertos.
Sarai estava lá em cima. Sua vida estava em perigo. Então, naquela manhã, Lazlo não se perguntou “o que posso fazer?” enquanto o segundo Sabá da décima segunda lua acordava a cidade de Lamento, mas sim “o que vou fazer?”.
Era uma pergunta nobre e, se o destino tivesse achado conveniente revelar sua resposta surpreendente naquele momento, ele não teria acreditado.
Eril-Fane e Azareen vieram para o café da manhã e Lazlo viu-os sob a lente de tudo o que tivera ciência na noite anterior, e seus corações se ressentiram pelo casal. Suheyla colocou na mesa pãezinhos no vapor, ovos cozidos e chá. Os quatro sentaram-se sobre as almofadas em torno da mesa de pedra baixa no jardim. Suheyla não sabia de nada ainda, além do óbvio: alguma coisa acontecera, alguma coisa mudara.
– Então – ela quis saber –, o que vocês encontraram lá em cima, de verdade? Imagino que a história do pontão era uma mentira.
– Não exatamente uma mentira – respondeu Lazlo. – O pontão teve um vazamento. – Ele tomou um gole de chá. – Com a ajuda de um gancho de carne.
A xícara de Suheyla tilintou no pires.
– Um gancho de carne? – ela repetiu, com os olhos arregalados, depois estreitos. – Como aconteceu de o pontão encontrar um gancho de carne?
A pergunta foi dirigida a Lazlo, uma vez que ele parecia mais inclinado a falar do que os outros dois. Ele virou-se para Eril-Fane e Azareen, pois parecia trabalho dos dois contar, não dele.
Eles começaram pelos fantasmas. Na verdade, nomearam uma grande quantidade deles, a começar pela avó de Azareen. Havia mais do que Lazlo percebera. Tios, vizinhos, conhecidos. Suheyla chorou em silêncio. Até um primo que morrera alguns dias atrás, um jovem chamado Ari-Eil, fora visto. Todos estavam pálidos e doentes com as implicações. Os cidadãos de Lamento, ao que parece, eram cativos até na morte.
– Ou todos fomos condenados e a cidadela é o nosso inferno – disse Suheyla, tremendo – ou há outra explicação. – Encarando o filho. Ela não era do tipo que acreditava em inferno e estava pronta para a verdade.
Eril-Fane limpou a garganta e falou, com enorme dificuldade:
– Há uma... sobrevivente... lá em cima.
Suheyla ficou pálida.
– Uma sobrevivente? – ela engoliu em seco. – Cria dos deuses?
– Uma garota – disse Eril-Fane. Ele teve de limpar a garganta de novo. Cada sílaba parecia lutar contra ele: – com cabelos ruivos. – Cinco palavras simples, uma garota com cabelos ruivos, que desencadearam uma torrente de emoções. Se o silêncio pudesse causar um estrondo, ele o fez. Se pudesse se quebrar como uma onda e inundar um cômodo com toda a força do oceano, ele o fez. Azareen parecia esculpida na pedra. Suheyla segurou na beirada da mesa. Lazlo estendeu uma mão para estabilizá-la.
– Viva? – ela sussurrou, ainda encarando o filho. Lazlo pode ver o sentimento ricochetear nela, a onda hesitante de esperança recuando no solo firme do pavor. Sua neta estava viva. Sua neta era cria dos deuses. Sua neta estava viva. – Conte-me – ela pediu, desesperada para ouvir mais.
– Não tenho mais nada a dizer – respondeu Eril-Fane. – Eu a vi apenas por um instante.
– Ela o atacou? – perguntou Suheyla.
Ele balançou a cabeça, parecendo confuso. Foi Azareen quem respondeu:
– Ela nos alertou – disse ela. Seu cenho estava franzido, seus olhos, atormentados. – Não sei por quê. Mas todos nós estaríamos mortos se não fosse por ela.
Um silêncio frágil instalou-se. Todos trocaram olhares em volta da mesa, tão atordoados e cheios de perguntas que Lazlo finalmente falou.
– Seu nome é Sarai – ele disse, e as três cabeças viraram-se para ele. Ele estivera em silêncio, apartado da violência da emoção deles. Aquelas cinco palavras, “uma garota com cabelos ruivos”, criaram um efeito oposto nele. Carinho, prazer, desejo. Sua voz carregava tudo isso quando pronunciou aquele nome, em um eco do ronronar de ravide com o qual falara a ela.
– Como você pode saber disso? – perguntou Azareen, a primeira a recuperar-se da surpresa. Seu tom era direto e cético.
– Ela me disse – Lazlo explicou. – Ela pode entrar nos sonhos. É o seu dom. Ela entrou no meu.
Eles contemplaram a informação.
– Como você sabe que era real? – Eril-Fane perguntou.
– Não é como os sonhos que eu tinha antes – disse Lazlo. Como ele podia colocar em palavras como foi estar com Sarai? – Sei que isso parece estranho, mas sonhei com ela mesmo antes de vê-la. Antes mesmo de ver o mural e saber que os Mesarthim eram azuis. Foi por isso que lhe perguntei aquele dia. Eu achava que ela era Isagol, porque eu não sabia sobre os... – ele hesitou. Essa era a vergonha secreta deles, e tinha sido escondida dele. As crias dos deuses. A palavra era tão terrível quanto o nome Lamento. – Sobre as crianças – ele soltou. – Mas agora eu sei. Eu... eu sei de tudo.
Eril-Fane o observou, mas era o olhar cego e sem piscar de alguém pensando no passado.
– Então você sabe o que fiz.
Lazlo assentiu. Quando olhava para Eril-Fane agora, o que via? Um herói? Um assassino? Essas coisas anulavam-se mutuamente, ou o assassino sempre sobrepujaria o herói? Será que eles podiam existir lado a lado, tais opostos, como o amor e o ódio que ele carregou por três longos anos?
– Tive de fazer aquilo – disse o Matador de Deuses. – Não podíamos sofrer com eles vivos, não com a magia que os deixaria acima de nós, para novamente nos dominar quando crescessem. O risco era grande demais. – Tudo tinha o tom de algo que fora repetido com frequência e seu olhar apelava para a compreensão de Lazlo. Quando Sarai lhe contou o que Eril-Fane fizera, ele imaginava que o Matador de Deuses se arrependesse disso hoje. Mas lá estava ele, defendendo o massacre.
– Eles eram inocentes – Lazlo falou.
O Matador de Deuses pareceu encolher.
– Eu sei. Você acha que eu queria isso? Não havia outra maneira. Não havia lugar para eles neste mundo.
– E agora? – Lazlo perguntou. Ele sentia-se frio. Essa não era a conversa que ele esperava ter. Eles deviam estar fazendo um plano. Em vez disso, sua pergunta foi respondida com o silêncio, a única interpretação possível disso era: ainda não havia lugar para eles neste mundo. – Ela é sua filha. Ela não é um monstro. Ela está com medo. Ela é gentil.
Eril-Fane encolheu-se ainda mais. As duas mulheres colocaram-se ao lado dele. Azareen lançou um olhar de alerta para Lazlo e Suheyla segurou a mão do filho.
– E quanto aos nossos mortos, presos lá em cima? Isso é gentil?
– Isso não foi ela quem fez – respondeu Lazlo, não para descartar a ameaça, mas pelo menos para exonerar Sarai. – Deve ter sido um dos outros.
Eril-Fane ficou perplexo.
– Outros?
Como eram profundas e emaranhadas as raízes do ódio, refletiu Lazlo, vendo como até mesmo agora, com o remorso e autorrepugnância o corroendo por dentro como um câncer de quinze anos, o Matador de Deuses não sabia dizer se desejava as crias dos deuses vivos ou se os temia assim.
Quanto a Lazlo, ele ficou inquieto com a informação. Sentiu-se nauseado por temer que não pudesse confiar em Eril-Fane.
– Há outros sobreviventes – limitou-se a responder.
Sobreviventes. Havia tanto significado naquela palavra: força, resiliência, sorte, junto à sombra de qualquer crime ou crueldade que tivesse sobrevivido. Nesse caso, Eril-Fane era o crime, a crueldade. Os outros haviam sobrevivido a ele, e a sombra caiu muito escura sobre aquele homem.
– Sarai nos salvou – Lazlo falou em voz baixa. – Agora temos de sal-vá-la, e aos outros também. Você é Eril-Fane. Cabe a você. As pessoas seguirão a sua liderança.
– Não é tão simples assim, Lazlo – disse Suheyla. – Não há como você entender o ódio. É como uma doença.
Ele estava começando a entender. Como Sarai havia dito? “O ódio dos usados e atormentados, que são filhos dos usados e atormentados, e cujos filhos serão usados e atormentados”.
– Então, o que você está dizendo? O que você quer fazer? – Ele encheu-se de coragem e perguntou: – Matá-los?
– Não! – exclamou Eril-Fane. – Não. – Era uma resposta à pergunta, mas veio como se ele estivesse se defendendo de um pesadelo ou de um golpe, como se mesmo a ideia fosse um ataque e ele não pudesse supor-tá-la. Ele colocou o rosto nas mãos, de cabeça baixa. Azareen estava afastada, observando-o, seus olhos castanhos e marejados e tão cheios de dor que ela poderia ser feita disso. Suheyla, com os olhos cheios de lágrimas, pousou sua mão sobre o ombro do filho.
– Vou pegar o segundo trenó de seda – falou levantando a cabeça e, enquanto os olhos das mulheres estavam úmidos, os dele estavam secos. – Vou subir e me encontrar com eles.
Azareen e Suheyla imediatamente opuseram-se à ideia.
– E oferecer-se como sacrifício? – perguntou Azareen. – O que isso vai resolver?
– Me parece que vocês mal conseguiram escapar com vida – Suheyla observou, com mais suavidade.
Eril-Fane olhou para Lazlo, e havia uma impotência no olhar dele, como se quisesse que Lazlo lhe dissesse o que fazer.
– Vou falar com Sarai hoje à noite – ele ofereceu-se. – Vou perguntar se ela pode persuadir os outros a aceitarem uma trégua.
– Como você sabe que ela virá de novo?
Lazlo corou, temendo que vissem o que estava escrito em seu rosto.
– Ela disse que viria – mentiu. Eles ficaram sem tempo para fazer planos, mas ela não precisava dizer. A noite não poderia demorar mais, e ele tinha certeza de que ela sentia o mesmo. E da próxima vez ele não teria de esperar até o chegar preciso da alvorada para puxá-la para perto. Ele limpou a garganta. – Se ela disser que é seguro, podemos subir amanhã.
– Nós? – disse Eril-Fane. – Não. Você não vai. Não arriscarei a vida de ninguém além da minha.
Azareen virou o rosto ao ouvir isso e, na desolação de seus olhos, Lazlo viu uma sombra de angústia de amar alguém que não ama a si mesmo.
– Ah, vou com você – afirmou Lazlo, não com força, mas com simples determinação. Ele estava imaginando desembarcar do trenó de seda na palma do serafim, e Sarai à sua frente, tão real quanto ele, de carne e osso. Ele precisava estar lá. Fosse qual fosse a aparência que esses devaneios produziram em seu rosto, Eril-Fane não tentou argumentar com ele. Quanto a Azareen, ela tampouco seria deixada para trás. Mas, primeiro, os cinco lá na cidadela tinham de concordar, o que só poderia acontecer no dia seguinte.
Enquanto isso, eles tinham de lidar com o dia de hoje. Lazlo tinha de ir à Câmara dos Mercadores de manhã e pedir a Soulzeren e a Ozwin, em particular, para inventarem alguma desculpa plausível para atrasar o lançamento do segundo trenó de seda. Todos estariam esperando que à ascensão fracassada se seguisse um sucesso, o que, é claro, não podiam obter, pelo menos não ainda.
Quanto ao segredo, seria guardado dos cidadãos. Eril-Fane considerou não contar para os Tizerkane, também, por medo de que isso causasse muito tumulto e fosse difícil de esconder. Mas Azareen foi firme em sua defesa e argumentou que precisavam estar preparados para qualquer coisa que acontecesse.
– Eles podem aguentar – disse ela, acrescentando suavemente: – Apenas não precisam saber de tudo ainda.
Ela se referia a Sarai e de quem ela era filha, Lazlo entendeu.
– Há algo que não compreendo – ele disse, enquanto se preparava para sair. Parecia-lhe que o mistério no centro de tudo tinha a ver com as crias dos deuses. – Sarai falou que havia trinta deles no berçário naquele dia.
Eril-Fane olhou diretamente para suas mãos. Os músculos em sua face enrijeceram-se. Lazlo ficou desconfortável em pressionar nessa linha de perguntas e estava longe de ter certeza de que queria mesmo uma resposta, mas pareceu importante demais para não se aprofundar.
– E embora isso... não seja um número pequeno, deve ser apenas uma fração. – Ele estava imaginando o berçário como uma fileira de berços idênticos. Como não tinha entrado na cidadela e visto como tudo era de mesarthium, imaginou berços rústicos de madeira, pouco mais do que caixas de madeira abertas, como as que os monges usavam para os órfãos no mosteiro.
Ali estava a coisa que perturbava Lazlo como um dente faltando. Ele próprio tinha sido um bebê em uma fileira de berços idênticos e compartilhava um nome com incontáveis órfãos para provar isso. Existiam muitos deles, muitos Estranhos, e... ainda havia muitos deles.
– E quanto a todos os outros? – ele indagou, olhando de Eril-Fane para Azareen, e por último para Suheyla, que, ele suspeitava, tinha dado à luz um deles. – Os que não eram mais bebês? Se os Mesarthim vinham fazendo isso todo o tempo... – Isso? Ele estremeceu com sua própria perífrase, usando uma palavra tão sem sentido para obscurecer uma verdade tão medonha. Reprodução. Era isso que eles faziam. Não era?
Por quê?
– Durante dois séculos – ele insistiu –, devia haver milhares de crianças.
Os rostos dos três estavam com o mesmo olhar desolado e percebeu que o compreendiam. Eles podiam tê-lo interrompido e o poupado de dizer, mas não o fizeram, então ele perguntou diretamente:
– O que aconteceu com todo o resto?
Suheyla respondeu. Sua voz estava sem vida:
– Nós não sabemos. Não sabemos o que os deuses fizeram com eles.
49
VÉU DE DEVANEIO
Não houve sono de beleza para Thyon Nero. Bem o oposto.
“Isso pode não te matar”, Estranho tinha dito, “mas o tornará feio.” Thyon lembrou-se da zombaria, o tom fácil de provocação disso, enquanto retirava outra seringa de espírito de suas próprias veias surradas. Não havia outro jeito, ele precisava produzir mais azoth de uma vez. Um lote de controle, depois dos... inexplicáveis... resultados do teste da noite anterior.
Ele lavara todos os vidros e instrumentos com cuidado. Embora pudesse ter requisitado um assistente para fazer essas tarefas servis, tinha ciúmes demais de seu segredo para deixar qualquer um entrar em seu laboratório. De qualquer forma, mesmo que tivesse um assistente, ele mesmo teria lavado os frascos. Era a única forma de se certificar de que não havia impurezas na equação e nenhum fator desconhecido que pudesse afetar os resultados.
Nero sempre tinha evitado o lado místico da alquimia e concentrado-se na ciência pura. Essa era a base de seu sucesso. Realidade empírica. Resultados, repetidos, verificáveis. A solidez da verdade que podia segurar nas mãos. Mesmo enquanto lia as histórias do Milagres para o café da manhã, procurava por pistas. Era da ciência que ele estava atrás, traços de ciência, como a poeira sacudida de uma tapeçaria de milagres.
E quando relia as histórias, ainda era pesquisa.
Quando as lia para cair no sono, um hábito que era tão secreto quanto a receita do azoth, era possível que sua mente divagasse em uma espécie de devaneio que parecia mais místico do que material, mas eram contos de fadas, afinal, e era apenas nesses momentos que sua mente se desligava de seu rigor. O que quer que fosse, desaparecia pela manhã.
Mas a manhã havia chegado. Ele podia não ter janelas para constatar, mas havia um relógio tiquetaqueando regularmente. O sol se levantara e Thyon Nero não estava lendo contos de fadas agora. Ele destilava o azoth como havia feito centenas de vezes antes. Então por que aquele véu tremeluzente de devaneio havia se estendido sobre si agora?
Ele afastou a ideia. O que quer que respondesse pelos resultados de seus experimentos, não era místico e nem era o mesarthium, tampouco o espírito. Havia uma explicação científica para tudo.
Até mesmo “deuses”.
Laini Taylor
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