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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


UM GOSTO A CINZAS / Elizabeth Georg
UM GOSTO A CINZAS / Elizabeth Georg

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

No termo da série de jogos de críquete disputados entre a Inglaterra e a Austrália, diz-se que a equipa vitoriosa conquista ”as Cinzas. A origem desta expressão tem uma explicação histórica.

Em Agosto de 1882, a selecção nacional australiana derrotou a selecção inglesa. Foi a primeira vez que a Inglaterra perdeu um jogo disputado em casa. Na sequência desta derrota, o Sporting Times publicou um obituário fictício, anunciando a morte do críquete inglês ”no Oval, em Londres, a 29 de Agosto de 1882”. Seguia-se uma nota informando os leitores que ”o corpo seria cremado e as cinzas transportadas para a Austrália”.

Depois desse jogo fatal, a selecção inglesa partiu para a Austrália, a fim de disputar nova série de jogos. Liderada pelo capitão Ivo Bligh, era voz corrente que a equipa se preparava para dar início a uma peregrinação destinada a reaver as Cinzas. Após a segunda derrota infligida à selecção da Austrália, um grupo de mulheres de Melburne apoderou-se de uma das barreias (paus de madeira colocados sobre três estacas verticais que, em conjunto, delimitam a passagem estreita que o batedor deve defender dos arremessos do lançador), queimaram-na e entregaram as respectivas cinzas a Bligh. Estas encontram-se hoje em Londres, no Lord’s Cricket Ground, a Meca do críquete inglês.

Embora no final dos jogos que opõem a Inglaterra à Austrália não ocorra qualquer troca de trofeus, sempre que as duas selecções se defrontam para disputar os cinco jogos que constituem o campeonato, diz-se que jogam para reaver as Cinzas.

 

 

 

 

Chris saiu com os cães para um passeio ao longo do canal. Consigo vê-los, pois ainda não alcançaram a ponte de Warwick Avenue. Beans caminha, saltitante, à direita, fingindo querer atirar-se à água. Toast segue pela esquerda. A cada dez passos, esquece-se de que tem apenas três patas e começa a deixar descair o ombro.

Chris disse que não iria demorar-se, porque sabe como me custa escrever tudo isto. Mas ele gosta do exercício, e uma vez completado o aquecimento, o sol e a brisa fazendo-o esquecer tudo o resto, acabará por correr até ao jardim zoológico. Vou fazer um esforço para não deixar que tudo isto me afecte. Preciso de Chris mais do que nunca, por isso terei de me convencer a mim mesma de que as intenções dele são as melhores.

Quando eu trabalhava no jardim zoológico, vinham os três buscar-me a meio da tarde e íamos tomar um café ao bufete; ficávamos na esplanada se fizesse bom tempo, sentados num banco de onde podíamos contemplar a fachada de Cumberland Terrace. Estudávamos os contornos das estátuas que se perfilhavam ao longo do frontão e inventávamos histórias acerca da sua identidade. Sir Boffing Bigtoff, alvitrava Chris, ficara com o traseiro estilhaçado na Batalha de Waterloo. Dame Tartsie Twit, retorquia eu, posava como um prodígio de imbecilidade, mas era, um verdadeiro Morrião Escarlate de saias. Makus Sictus, uma das figuras togadas, perdera a coragem e o pequeno-almoço nos Idos de Março. Ríamos à gargalhada dos nossos disparates e observávamos os cães, que se divertiam fingindo perseguir os pássaros e os turistas.

Aposto que não conseguem imaginar-me assim, sentada num banco, o queixo apoiado nos joelhos, inventando historietas estúpidas na companhia de uma chávena de café e de Chris Faraday. Na época, eu nem sequer andava vestida de preto como agora, usava umas calças de caqui e uma camisa verde-azeitona, o uniforme do jardim zoológico.

Eu julgava saber quem era, nesses tempos. Assunto encerrado, pensava. As aparências não contam para nada, decidira eu uma dezena de anos antes, e se as pessoas não conseguem aceitar o meu cabelo cortado rente, se as minhas raízes escuras as incomodam, se a argola que uso no nariz as deixa nervosas e se uma série de brincos alinhados como armas medievais lhes provoca náuseas, então para o diabo com elas. São incapazes de ver o que está para além das aparências, não são? Não querem ver-me como eu realmente sou.

E quem sou eu, realmente? O que sou eu? Há oito dias atrás, teria podido responder a esta pergunta, pois nessa altura sabia. Tinha uma filosofia convenientemente forjada a partir de princípios tomados de empréstimo a Chris. Combinara-a com o que conseguira sacar aos meus colegas durante os dois anos que passara na universidade e misturara-a bem com o que aprendera ao fim de cinco anos rastejando para fora de camas cobertas de lençóis peganhentos, a cabeça prestes a explodir, a boca a saber a serradura e nem sequer reminiscência da noite que passara ou do nome do tipo que ressonava ao meu lado. Conhecia a mulher que passara por tudo aquilo. Dura, rancorosa, implacável.

Ainda sou assim, e tenho boas razões para isso. Mas sou algo mais. Não consigo identificar o quê, mas sinto-o sempre que pego num jornal, leio as histórias e tomo consciência de que a hora do julgamento se aproxima.

No início, disse a mim mesma que estava farta de manchetes. Estava cansada de ler sobre aquele maldito crime. Saturada de ver os rostos dos protagonistas eternamente reproduzidos nas páginas do Daily Mail e do Evening Standard. Julgava que conseguiria escapar a toda aquela trapalhada horrível se lesse apenas The Times, pois sabia que a única coisa com que podia contar era com a dedicação deste jornal aos factos e com a sua recusa em deixar-se envolver em mexericos. No entanto, até The Times pegara na história e eu própria sinto que já não consigo evitá-la por mais tempo. Nem sequer posso dizer para mim mesma: E depois, que interesse é que isso tem? Porque eu sei que me interesso, de facto. Chris sabe-o também, e é essa a verdadeira razão por que saiu com os cães e me deixou sozinha. ”Sabes, acho que esta manhã vamos dar um passeio mais longo, Livie”, disse ele, antes de vestir o fato de treino. Abraçou-me daquela forma assexuada tão típica dele, um abraço de esguelha que não possibilita praticamente qualquer contacto físico e saiu. Estou na coberta da chalupa, um bloco pautado amarelo sobre os joelhos, um maço de Marlboro no bolso e, aos pés, uma lata cheia de lápis. Cada um dos lápis foi meticulosamente afiado. Chris encarregou-se disso antes de sair.

Olho para Browning’s Island, na margem oposta do lago. Os salgueiros inclinam-se sobre o minúsculo embarcadouro. As árvores floriram, finalmente, sinal de que o Verão está próximo. O Verão sempre foi uma época propícia ao esquecimento, pois o sol faz derreter os problemas. Por isso digo para comigo que se conseguir aguentar durante mais algumas semanas e esperar pela chegada do Verão, tudo isto passará a fazer parte do passado. Não terei de pensar nisso. Não terei de tomar medidas. Digo para mim mesma que o problema não é meu. Mas essa não é, de facto, a verdade e eu sei-o.

Quando já não consigo evitar olhar para os jornais, começo por observar as fotografias. Sobretudo a dele. Observo o modo como mantém a cabeça direita e sei que ele pensa ter partido para um lugar onde ninguém poderá magoá-lo.

Compreendo. Em tempos, eu própria julguei ter finalmente chegado a um lugar semelhante. A verdade, porém, é que quando começamos a acreditar em alguém, quando nos deixamos tocar pela bondade intrínseca de outrem e ela existe, sabem, essa bondade elementar com que algumas pessoas são abençoadas tudo acaba. Não só se abriu uma brecha na muralha, como também a armadura se fendeu. E nós sangramos como uma peça de fruta madura, cuja pele tenha sido rasgada por uma faca deixando exposta a carne, pronta a apodrecer. Ele ainda não o sabe. Mas virá a saber, um dia.

Se escrevo é por causa dele, suponho. E porque, no âmago deste terrível labirinto de vidas e amores, sei que sou eu a responsável por tudo.

A história começa com o meu pai, para dizer a verdade, pois fui eu a causadora da sua morte. Não foi o meu primeiro crime, como terão oportunidade de verificar, mas foi aquele que a minha mãe nunca conseguiu perdoar. E porque ela não conseguiu perdoar-me por tê-lo morto, as nossas vidas tornaram-se complicadas. E algumas pessoas saíram magoadas.

Escrever sobre a minha mãe não é tarefa fácil. É provável que se pense que se trata de um exercício de maledicência da minha parte, que estou a agarrar-me com unhas e dentes a uma oportunidade soberana para exercer a minha vingança. Há, no entanto, uma característica da minha mãe que têm de ficar a conhecer desde já, se decidirem continuar a ler-me. Ela é uma mulher que gosta de guardar segredos. Ainda que fosse capaz, se lhe fosse dada oportunidade para tal, de explicar com alguma delicadeza que tínhamos tido um desentendimento há cerca de dez anos atrás devido ao meu ”infeliz envolvimento com um músico de meia-idade chamado Richie Brewster”, ela jamais adiantaria pormenores sobre o caso. Não quereria que se soubesse que durante algum tempo eu fui ”a outra” na vida de um tipo casado, que me engravidou e depois desapareceu de cena, que eu o aceitei de volta e deixei que ele me pegasse herpes, que acabei por enveredar pela profissão em Earl’s Court, fazendo engates rápidos dentro de carros em troca de quinze libras por cliente quando me sentia desesperada por uma dose de coca e não podia desperdiçar o meu tempo levando os tipos para um quarto. A minha mãe jamais vos contaria isto. Ocultaria os factos, persuadida de que o fazia para me proteger. No entanto, a verdade é que a mãe sempre escondeu os factos para se proteger a ela própria.

De quê?, perguntarão.

Da verdade, respondo eu. Da verdade sobre a vida dela, a sua insatisfação e, sobretudo, o seu casamento. E foi isso, acredito eu, que excepção feita ao meu comportamento nada recomendável colocou a minha mãe no caminho que, finalmente, a levou a acreditar que estava possuída por uma espécie de direito divino de se intrometer nos assuntos dos outros.

Longe de a considerarem como uma insuportável metediça, a maioria das pessoas empenhadas em dissecar a vida da minha mãe olhariam para ela como uma mulher dotada de uma admirável consciência social. Não há dúvida que ela tem o perfil certo: antiga professora de Inglês numa secundária malcheirosa da Isle of Dogs l, outrora leitora voluntária para invisuais, aos fins-de-semana, co-directora de actividades recreativas para crianças com dificuldades de aprendizagem durante as férias escolares e excelente angariadora de fundos em benefício da doença mais mediática do momento. Após um exame superficial, a mãe faz lembrar alguém que tem uma mão enfiada no frasco das vitaminas e um pé no primeiro degrau da escadaria para a santidade.

Há outras coisas na vida para além das nossas pequenas preocupações costumava ela dizer-me, antes de me perguntar, tristemente, ”Vais tornar a criar problemas hoje, Olivia?”

A minha mãe, no entanto, não é apenas a mulher que durante trinta anos calcorreou Londres, qual Dr. Barnardo 2 do século xx. Existe uma explicação para isso. E é aqui que entra a sua necessidade de autoprotecção.

Vivendo sob o mesmo tecto que ela, tive muito tempo para tentar compreender a paixão da minha mãe pelas boas obras. Acabei por perceber que ao servir os outros ela estava ao mesmo tempo a prestar um serviço a si própria. Enquanto percorresse, incansavelmente, o mundo miserável dos infelizes de Londres, jamais se veria obrigada a reflectir muito sobre o seu próprio mundo. Sobretudo, não teria de pensar no meu pai.

Sei que é de bom-tom analisar a relação conjugal dos pais quando se é criança. Haverá melhor desculpa do que esta para os excessos, carências e fraquezas do nosso carácter? Mas sejam pacientes comigo, peço-vos, e acompanhem-me nesta viagem através da história da minha família. Ela explica por que razão a mãe é quem é. E a mãe é a pessoa que têm de perceber.

Ainda que ela jamais fosse capaz de admiti-lo, julgo que a minha mãe aceitou casar com o meu pai, não porque o amasse mas porque ele era o pretendente adequado. Não tinha combatido na guerra, o que, socialmente falando, era algo embaraçoso. No entanto, não obstante um sopro cardíaco, uma rótula esfacelada e uma surdez congénita do ouvido direito, o pai tivera a decência de se culpabilizar por ter escapado ao serviço militar. Mitigou a culpa em 1952, ao tornar-se membro de uma das sociedades empenhadas na reconstrução de Londres. Foi aí que conheceu a minha mãe. Ela partiu do princípio que a presença dele denunciava uma consciência social em sintonia

 

1 Bairro popular de Londres, situado no East End. [N. da T.]

2 Dr. Barnardo (1845-1905): médico que se ocupava das crianças órfãs ou deficientes de Londres. [N. da T.)

 

com a dela e não um desejo de esquecer a fortuna que tanto ele como o pai tinham amealhado imprimindo propaganda para o governo, na empresa que possuíam em Stepney, desde 1939 até ao final da guerra.

Casaram em 1958. Ainda hoje, tantos anos passados sobre a morte do meu pai, continuo a perguntar a mim mesma como teriam sido os primeiros anos de casados dos meus pais. Pergunto a mim mesma quanto tempo terá a mãe demorado a descobrir que o reportório do pai, em termos de paixão, era de facto reduzido, pouco variando entre o silêncio e um sorriso doce e distante. Costumava pensar que o tempo que ambos teriam passado na cama se assemelharia a uma sequência do género embraiagem, apalpadelas, suor, cotoveladas, gemidos, com um ”muito agradável, minha querida” para rematar. Era assim, aliás, que eu justificava para mim própria o facto de ser filha única. Nasci em 1962, um embrulhozinho de bonomia, gerado, tenho a certeza, durante uma série de encontros bimensais na posição do missionário.

Honra lhe seja feita, a mãe representou o papel de esposa submissa durante três anos. Arranjara um marido, alcançando assim uma das metas estabelecidas para todas as mulheres do pós-guerra, e tentou dar o melhor de si ao lado dele. Todavia, à medida que ia conhecendo melhor este Gordon Whitelaw, ia percebendo que ele a ludibriara. Não era o homem apaixonado com quem ela esperara casar. Não era um rebelde. Não tinha uma causa. No fundo, não passava de um simples tipógrafo de Stepney, um homem bom, é certo, mas cujo universo se circunscrevia a fábricas de papel e tiragens, um homem sobretudo preocupado com o bom funcionamento das máquinas de impressão e que se esforçava por impedir que os sindicatos o explorassem. Dirigia a empresa, regressava a casa, lia o jornal, jantava, via televisão e deitava-se. Tinha um leque de interesses reduzido. E quase nada para dizer. Era sólido, fiel, digno de confiança e previsível. Maçador, numa palavra.

E foi assim que a mãe procurou algo que emprestasse um pouco de cor ao seu mundo. Poderia ter escolhido o adultério, ou o álcool. Em vez disso, optou pelas boas obras.

Ela jamais admitiria isto. Aceitar que sempre esperara mais da vida do que aquilo que o pai lhe proporcionava seria o mesmo que admitir que o seu casamento não correspondera de todo às suas expectativas. Mesmo agora, se fossem até Kensington e lho perguntassem, não tenho quaisquer dúvidas de que descreveria a sua vida com Gordon Whitelaw como um idílio perfeito desde o primeiro dia. Uma vez que essa não era a realidade, ela consagrou-se às suas responsabilidades sociais. Para a mãe, fazer o bem tomou o lugar de sentir-se bem. A nobreza do esforço substituiu a paixão física e o amor.

Em contrapartida, a mãe tinha algo em que se concentrar quando se sentia deprimida. Um sentimento de realização, de mérito, recolhendo por isso a gratidão sincera e genuína de todos aqueles a cujas necessidades ela atendia diariamente. Da sala de aula ao auditório de conferências, passando pela enfermaria, um coro de elogios elevava-se à sua passagem. Apertavam-lhe as mãos. Beijavam-lhe as faces. Milhares de vozes diferentes, clamavam com emoção: ”Abençoada seja, Mrs. Whitelaw. O Senhor ama-a, Mrs. Whitelaw.” Conseguiu manter-se entretida até ao dia em que o pai morreu. Obtivera tudo aquilo de que de facto necessitara colocando as necessidades da sociedade antes das suas. E, no fim, depois de o meu pai ter morrido, conseguiu ter Kenneth Fleming.

Com efeito. Passaram já tantos anos. O famoso Kenneth Fleming.

 

                              CAPÍTULO 1

Menos de um quarto de hora antes de ter descoberto o local do crime, Martin Snell fazia a habitual distribuição de leite. Completara já as suas rondas em Greater Springburn e em Middle Springburn, e estava a caminho de Lesser Springburn, subindo Water Street na sua camioneta azul e branca. Saboreava esta parte do trajecto, a sua preferida.

Water Street era um carreiro estreito que separava as aldeias de Middle Springburn e Lesser Springburn de Greater Springburn, a cidade onde funcionava o mercado. O caminho serpenteava por entre muros de pedra de cor amarelo-acastanhada, ladeando pomares de macieiras e campos de colza. Obedecendo aos caprichos do terreno, subia para depois tornar a descer à sombra dos freixos, das tílias e dos amieiros, cuja folhagem começava, finalmente, a abrir-se numa abóbada de verdura primaveril.

O dia estava magnífico. Não chovera, nem havia o mais pequeno vestígio de nuvens. Apenas uma brisa suave, que soprava de leste, um céu azul leitoso e o reflexo trémulo do sol na moldura oval, presa por um fio de prata, pendurada no espelho retrovisor da camioneta.

Belo dia, este, Majestade disse Martin, dirigindo-se à fotografia. Uma bela manhã, não achais? Ouvis este som? É o cuco, novamente. E além... uma das cotovias prepara-se para abalar... Um som maravilhoso, não achais? O som da Primavera, é o que é.

Há muito que Martin adquirira o hábito de tagarelar prazenteiramente com a fotografia da Rainha. Aos seus olhos, nada havia de estranho nisso. Ela era a soberana do país e, tanto quanto lhe era dado ver, ninguém melhor para apreciar as belezas de Inglaterra do que a mulher que ocupava o seu trono.

As conversas diárias entre ambos não se limitavam, no entanto, a considerações sobre a flora e a fauna. A Rainha era a grande amiga e confidente de Martin, o destinatário privilegiado dos seus pensamentos mais íntimos e profundos. O que mais lhe agradava nela era que, apesar da sua origem nobre, ela era incontestavelmente uma mulher afável. Ao contrário da mulher dele, renascida para a vida espiritual cinco anos antes, imbuída de um sentimento de vingança piedosa, pela mão de um fabricante de cimento, grande manejador de bíblias, a Rainha nunca caía de joelhos quando Martin tentava dirigir-lhe a palavra. Ao contrário do filho, muito dado aos misteriosos silêncios próprios dos adolescentes de dezassete anos, os fantasmas copulatórios e os problemas de pele pesando-lhe no espírito, ela nunca repelia nenhuma das tentativas de aproximação de Martin. Muito pelo contrário, com os lábios entreabertos num sorriso encorajador e a mão erguida para saudar a multidão do alto da carruagem onde era eternamente conduzida ao local da sua coroação, inclinava-se para ele para melhor o escutar.

É claro que Martin não contava tudo à Rainha. Ela estava ao corrente da conversão de Lee. Ele descrevera com grande minúcia, e mais do que uma vez, a perturbação que a religião introduzira às horas das refeições, outrora tão joviais. Ela sabia também do emprego que Danny arranjara na Tescos, onde era responsável por manter as prateleiras sempre bem guarnecidas com todo o tipo de artigos, desde ervilhas a feijões, e da rapariga que trabalhava no salão de chá, por quem o rapaz andava de cabeça virada do avesso. Tomado de um rubor que lhe incendiava as faces, Martin chegara mesmo a confidenciar à Rainha que, ainda na semana anterior, tentara um pouco tardiamente, talvez explicar ao filho os factos da vida. Como ela rira com gosto como Martin se vira forçado a rir também ao imaginá-lo folheando uma série de livros em segunda mão, em Greater Springburn, procurando algum que tivesse informações sobre biologia e acabando por trazer um diagrama com rãs. Dera-o ao filho, juntamente com uma embalagem de preservativos que tinha guardados na cómoda desde 1972. Hão-de servir para começo de conversa, pensara ela ”Para que são as rãs, pai?”, a pergunta haveria de desencadear, inevitavelmente, a revelação daquilo a que o seu próprio pai chamara, em tom misterioso, ”o acto conjugal”.

Não que ele e a Rainha se envolvessem em discussões sobre actos conjugais, no sentido literal do termo. Martin sentia demasiado respeito por Sua Majestade para se atrever a ir mais além do que aflorar o assunto e depois mudar rapidamente de conversa.

Ao longo das últimas quatro semanas, porém, as conversas de ambos esmoreciam no cimo de Water Street, no sítio onde a paisagem campestre se estendia para leste numa sucessão de campos de lúpulo e descia para oeste, formando um declive coberto de erva que culminava numa nascente onde crescia agrião. Aqui, Martin ganhara o hábito de encostar a camioneta do leite, junto à estreita faixa de erva-formigueira que compunha a berma do caminho, para se entregar a alguns minutos de silenciosa contemplação da paisagem.

Naquela manhã procedeu da mesma forma. Desligou o motor e admirou os campos de lúpulo.

Os postes tinham sido colocados havia já mais de um mês. Fileira atrás de fileira de esbeltos castanheiros com cerca de sete metros de altura, do cimo dos quais um emaranhado de fios descia até ao nível do chão. Os fios entrelaçavam-se para formar uma treliça, ao longo da qual o lúpulo haveria de trepar. Enquanto admirava os campos, Martin percebeu que os trabalhadores agrícolas tinham, finalmente, começado a tratar do lúpulo. Desde a manhã do dia anterior que trabalhavam os campos, enrolando as plantas juvenis ao longo dos fios. O lúpulo encarregar-se-ia de fazer o resto nos meses mais próximos, criando um labirinto de verdura, à medida que se fosse esticando em direcção ao sol.

Martin suspirou de prazer. A vista iria tornar-se cada vez mais bela, de dia para dia. Nos campos de lúpulo, estaria fresco entre os carreiros de plantas, à medida que estas se fossem tornando adultas. Ele e o seu amor passeariam por ali, os dois sozinhos, de mãos dadas. No início do ano ontem, mais precisamente ele ter-lhe-ia ensinado a enrolar os caules tenros da planta ao longo do fio. Ela estaria ajoelhada na terra, a saia azul transparente espalhada em volta dela como água derramada, as nádegas jovens e firmes apoiadas nos tornozelos nus. Inexperiente na tarefa e ansiosa por ganhar dinheiro para... para auxiliar a sua pobre mãe, viúva de um pescador de Whitstable, com oito crianças pequenas para alimentar, ela tentaria desenvencilhar-se sozinha, receando pedir ajuda a alguém, não fosse assim trair a sua ignorância e perder a única fonte de rendimento dos irmãos esfomeados, à excepção do dinheiro que a mãe consegue tirar das rendas que faz para adornar golas e chapéus para senhoras finas, dinheiro que o pai torra rudemente no pub, embebedando-se e passando a noite inteira fora de casa quando não se está a afogar no mar, no meio de uma tempestade enquanto tenta apanhar bacalhau suficiente para pagar a operação que irá salvar a vida do filho mais novo. Ela veste uma blusa branca, de mangas curtas tufadas e um decote pronunciado, de maneira que quando ele se inclina para ajudá-la consegue ver as gotículas de transpiração, tão diminutas como cabeças de alfinete, reluzindo entre os seios dela, que sobem e descem demasiado depressa por causa da proximidade dele, o corpulento capataz, tão próximo, tão viril. Segurando as mãos dela entre as suas, ele ensina-a a enrolar o lúpulo no fio, de forma que os rebentos não se quebrem. E a respiração dela torna-se mais rápida quando ele a toca e os seios dela sobem ainda mais e ele consegue sentir o cabelo dela, tão macio e tão louro, na sua face. ”É assim que se faz, menina.” Os dedos dela tremem. Não consegue olhá-lo nos olhos. Nunca foi tocada por um homem, antes. Não quer que ele se afaste. Não quer que ele pare. As mãos dele sobre as dela fazem-na sentir fraca. Então, ela desmaia. Desmaia, sim, e ele carrega-a até ao extremo do campo, a saia comprida roçando nas pernas dele à medida que ele avança com passadas viris por entre os carreiros de lúpulo, a cabeça dela balançando expondo um pescoço, tão alvo, tão puro. Deita-a no chão. Leva-lhe um pouco de água aos lábios, aceitando a pequena chávena de lata que lhe estende a velha desdentada que segue os jornaleiros na sua carroça puxada por cavalos, vendendo-lhes água a dois pence a chávena. As pálpebras dela abrem-se, trémulas. Ela vê-o. Sorri. Ele segura a mão dela e aproxima-a dos seus lábios. Beija...

Uma buzina soou atrás dele. Martin sobressaltou-se. A condutora de um enorme Mercedes vermelho estava, aparentemente, pouco disposta a pôr em risco o guarda-lamas do seu carro, afrouxando ao passar entre a sebe e a camioneta. Martin fez um aceno e engatou a primeira. Lançou um olhar envergonhado à Rainha, tentando perceber se ela adivinhara as fantasias que lhe povoavam o espírito, mas ela não deu quaisquer mostras de reprovação. Limitou-se a sorrir e, a mão ainda erguida num gesto de saudação e a tiara cintilando, continuou o seu interminável percurso até à abadia.

Virou a camioneta e começou a descer a colina, na direcção de Celandine Cottage, a oficina e domicílio de um tecelão do século xiv que se escondia atrás de um muro de pedra, num terreno ligeiramente elevado onde Water Street guinava para nordeste e um atalho pedestre seguia para oeste, indo dar a Lesser Springburn. Lançou um novo olhar de soslaio à Rainha, e apesar de o seu rosto doce lhe dizer que não fazia mau juízo dele, sentiu necessidade de se desculpar.

Ela não sabe, Majestade disse ele, dirigindo-se à sua soberana. Eu nunca disse nada. Nunca fiz... Bem, não o faria, pois não? Sabeis isso.

Sua Majestade sorriu. Martin podia ver que ela não acreditava realmente nele.

Estacionou a camioneta ao fundo da alameda, para que o Mercedes que interrompera os seus devaneios pudesse passar sem dificuldade. A mulher que o conduzia gritou-lhe uma imprecação e fez-lhe um gesto obsceno. Londrina, pensou ele, resignado. O Kent começara a ficar arruinado no dia em que inauguraram a M20, destinada a facilitar as deslocações dos londrinos que viviam no campo e trabalhavam na cidade.

Esperava que Sua Majestade não tivesse reparado no gesto obsceno da automobilista. Ou naquele que ele fizera em resposta, depois de o Mercedes ter feito a curva, desaparecendo na direcção de Maidstone.

Martin ajustou o espelho retrovisor a fim de estudar a sua imagem reflectida nele. Certificou-se de que estava bem barbeado e alisou o cabelo com um toque ligeiro da mão. Penteava-o e aspergia-o cuidadosamente todas as manhãs, depois de passar dez minutos a massajar o couro-cabeludo com uma colher de sopa de bálsamo capilar. No último mês empenhara-se activamente em melhorar a sua imagem pessoal, desde aquela primeira manhã em que Gabriella Patten atravessara o portão de Celandine Cottage para vir buscar o leite.

Gabriella Patten. Só o facto de a imaginar fazia-o suspirar. Gabriella. Vestida com um robe de seda preta, que sussurrava quando ela andava. O olhar azul ainda velado pelo sono e os cabelos desalinhados reluzindo como trigo, à luz do Sol.

Quando recebera ordens para recomeçar as entregas de leite em Celandine Cottage, Martin armazenara a informação naquela parte do seu cérebro que habitualmente lhe permitia cumprir o percurso de distribuição de leite em piloto automático. Nem se preocupara em tentar saber por que motivo o habitual pedido de duas garrafas fora alterado para uma. Limitara-se a estacionar no fundo da alameda, uma manhã, procurara dentro da camioneta a garrafa de vidro fresco, limpara as gotas de humidade que a cobriam com um pano que costumava trazer consigo para o efeito e empurrara o portão de madeira pintada de branco, que separava a alameda da casa de Water Street.

No momento em que colocava o leite na caixa aninhada aos pés de um feto prateado, no cimo da álea, ouviu passos ao longo do caminho curvo que ligava a alameda à porta da cozinha. Levantou a cabeça, pronto para dizer um ”Muito bom dia para si”; mas as palavras ficaram presas algures entre a garganta e a língua no momento em que viu Gabriella Patten pela primeira vez.

Ela bocejava, tropeçando ligeiramente nos tijolos irregulares. O robe flutuava à sua volta, à medida que caminhava. Estava nua por baixo dele.

Sabia que devia ter desviado o olhar, mas deu por si como que hipnotizado pelo contraste formado pelo robe sobre a pele pálida. E que pele aquela, branca como a neve e delicadamente tingida de rosa. Este rosa queimava-lhe os olhos, a garganta e as entranhas. Olhou-a fixamente e murmurou: ”Meu Deus.” O desabafo era, simultaneamente, um sinal de acção de graças.

Ela susteve a respiração e ajustou o robe em torno do corpo.

Santo Deus, não fazia ideia... levou três dedos ao lábio superior e sorriu. Peço imensa desculpa, mas não estava à espera de ninguém. E muito menos de si. Sempre pensei que o leite fosse entregue de madrugada.

Ele começara imediatamente a recuar, dizendo:

Bem... quer dizer... não. É mais ou menos a esta hora. Por volta das dez da manhã, é a hora do costume.

Estendeu a mão para o boné pontiagudo, decidido a puxá-lo para a frente para cobrir um pouco mais o rosto. Tinha a sensação que ele estava em brasa. Só que naquela manhã não levava boné. A partir do primeiro de Abril, fizesse o tempo que fizesse, passava a andar de cabeça descoberta. Acabara, por isso, por ajeitar o cabelo como um qualquer simplório num daqueles folhetins televisivos cheio de roupas finas.

Bom, tenho muito que aprender sobre o campo, não é verdade, senhor...?

Martin disse ele. Isto é, Snell. Martin.

Ah! Mr. Martin Snell Martin.

Ela atravessou o portão que separava a alameda do relvado. Inclinou-se ele desviou os olhos e abriu a tampa da caixa do leite.

Isto é uma delícia. Obrigada.

E quando ele se virou, viu que ela pegara na garrafa de leite e a segurava entre os seios, no V formado pela abertura do robe.

Está frio disse ela.

A meteorologia dá sol para hoje respondeu ele, firmemente. Deve aparecer lá pelo meio-dia, ou por aí.

Ela tornou a sorrir. Os seus olhos ficavam infinitamente doces quando sorria.

Referia-me ao leite. Como é que consegue mantê-lo tão frio?

Oh! A camioneta. Tenho alguns suportes que têm um isolamento especial.

Promete-me que vou ter sempre o leite assim?

Rodou a garrafa, que pareceu alojar-se ainda mais fundo entre os seios dela.

Frio, quero eu dizer.

Oh, sim. Claro. Frio assentiu ele.

Obrigada tornou ela, Mr. Martin Snell Martin.

Viu-a várias vezes por semana depois disso, mas nunca mais em robe. Não que precisasse que lhe avivassem a memória para recordar a visão que ela lhe proporcionara naquele dia.

Gabriella. Gabriella. Gostava do som daquele nome dentro da sua cabeça. Tinha uma sonoridade trémula, como as notas de um violino.

Martin reajustou o espelho retrovisor, satisfeito por ver reflectida nele a sua melhor imagem. Ainda que o seu cabelo não fosse agora mais espesso do que fora antes de ter iniciado os tratamentos, estava muito menos quebradiço. Procurou no fundo da camioneta a garrafa de leite que mantinha sempre mais fresca. Limpou as gotas de humidade e poliu a tampa de papel de alumínio roçando-a na parte da frente da camisa.

Empurrou o portão da entrada. Reparou que este não estava fechado e disse, ”Portão, portão, portão”, num tom que era pouco mais que um sussurro, a fim de não se esquecer de lhe falar no assunto. O portão não tinha fechadura, é certo, mas não havia necessidade de facilitar a vida a todo aquele que quisesse violar a privacidade dela.

O cuco que ele mostrara a Sua Majestade cantava de novo, algures do outro lado do prado, que ficava na fachada norte da casa. Ao canto da cotovia haviam-se juntado o chilrear dos pintarroxos, empoleirados nas coníferas que bordejavam a alameda. Um cavalo relinchou baixinho e um galo cacarejou. Era um dia glorioso, pensou Martin.

Levantou a tampa da caixa do leite, para aí depositar a garrafa daquele dia. Deteve-se. Franziu o sobrolho. Havia algo que não batia certo.

Ninguém viera recolher o leite da véspera. A garrafa estava tépida. A condensação que tivesse eventualmente coberto o vidro da garrafa, escorrendo para a base da mesma, há muito que se tinha evaporado.

Bom, pensou ele de início, sempre me saiu uma cabeça no ar, esta Miss Gabriella. Foi-se embora para qualquer lado sem deixar um aviso que fosse em relação ao leite. Pegou na garrafa da véspera e enfiou-a debaixo do braço. Deixaria de fazer entregas até voltar a ter notícias dela.

Começava a dirigir-se para o portão, quando se lembrou de um pormenor. O portão, o portão. Destrancado, pensou ele, e sentiu o corpo agitado por um arrepio.

Lentamente, refez o percurso até à caixa do leite. Deixou-se ficar de pé, junto do portão. Os jornais tão-pouco tinham sido recolhidos, reparou. Nem os de ontem, nem os de hoje um exemplar do Daily Mail e outro do The Times continuavam nos respectivos suportes. E quando semicerrou os olhos para ver melhor a porta da casa, com a sua fenda de ferro destinada ao correio, viu um pequeno triângulo branco sobre o carvalho desgastado e pensou, ”também não veio buscar o correio; deve ter-se ausentado”. Mas as cortinas não estavam corridas, o que não parecia nem prático nem sensato, caso ela tivesse de facto saído. Não que Gabriella Patten parecesse ser dotada de uma natureza prática ou sensata, mas decerto não cometeria a imprudência de dar a conhecer a toda a gente que a casa estava desabitada. Ou cometeria?

Não tinha a certeza. Olhou por cima do ombro, para a garagem, uma estrutura em tijolo e madeira, situada no cimo da alameda. O melhor era verificar, decidiu. Não precisaria de entrar, nem sequer de escancarar a porta. Bastava apenas que espreitasse para se certificar de que ela partira. Depois levaria o leite de volta, deitaria os jornais no lixo e retomaria o seu caminho. Uma espreitadela, apenas.

A garagem, cujas portas abriam ao centro, era grande o suficiente para dois carros. Habitualmente estava fechada a cadeado, mas Martin conseguia ver sem grande esforço que este não estava a ser usado naquele momento. Uma das portas estava entreaberta. Martin aproximou-se e depois de respirar fundo e de lançar um olhar de soslaio na direcção da casa, abriu-a um pouco mais e encostou o rosto à fresta.

Distinguiu o brilho de um cromado quando a luz incidiu sobre o pára-choques do Aston Martin prateado, ao volante do qual a vira atravessar velozmente as ruas, uma dúzia de vezes ou mais. Ao vê-lo, Martin sentiu um zumbido estranho dentro da cabeça. Tornou a olhar para a casa.

Se o carro estava ali e ela também, então porque é que não viera recolher o leite?

Talvez tivesse estado fora durante todo o dia anterior, tendo saído bem cedo, respondeu para si próprio. Talvez tivesse chegado a casa tarde e se tivesse esquecido por completo do leite.

Mas, e os jornais? Ao contrário do leite eram bem visíveis no respectivo suporte. Ela era obrigada a passar por eles para entrar em casa. Por que razão não os teria recolhido, ao entrar em casa?

Porque fora às compras a Londres e tinha os braços cheios de embrulhos e, mais tarde, depois de ter pousado os pacotes, pura e simplesmente, esquecera-se de ir buscar os jornais.

E o correio? Espalhado no chão, do lado de dentro da porta de entrada. Por que motivo o teria ela deixado ali?

Porque era tarde, estava cansada, queria deitar-se e de qualquer modo não entrara pela porta da frente. Entrara pela cozinha, por isso não vira o correio. Passara por ele e subira para o quarto, onde ainda dormia.

Adormecida, adormecida. Doce Gabriella. Envolta numa camisa de noite de seda preta, o rosto emoldurado pelos cabelos encaracolados, pestanas como filamentos de rainúnculo.

Não perdes nada em verificar, pensou Martin. Não senhor, não perdes mesmo nada. Ela não se ofenderia com isso. Não era próprio dela. Sentir-se-ia sensibilizada pelo facto de ele se lembrar dela, uma mulher sozinha, no meio do campo, sem um homem que velasse pelo seu bem-estar. Convidá-lo-ia a entrar, de bom grado.

Endireitou os ombros, pegou nos jornais e empurrou o portão. Percorreu o caminho de acesso à casa. O sol ainda não iluminava aquela zona do jardim, pelo que o orvalho ainda cobria os tijolos e o relvado como um xaile feito de contas. Nos dois lados da velha porta de entrada cresciam alfazema e goivos-amarelos. A alfazema exalava um perfume intenso, enquanto as flores dos goiveiros tombavam sob o peso da humidade matinal.

Martin premiu a campainha e ouviu-a retinir no interior da casa. Ficou à espera de ouvir o som dos passos dela ou a sua voz perguntando quem era, ou o rodar da chave na fechadura. Nada disso aconteceu, porém.

Talvez estivesse no banho, ou na cozinha onde, provavelmente, não conseguiria ouvir a campainha. Seria bom certificar-se disso.

Foi o que fez. Contornou a casa a fim de ir bater à porta das traseiras, perguntando a si mesmo como é que os habitantes da casa faziam para não baterem com a cabeça no lintel, a escassos metros do chão. O que, em seguida, o levou a pensar... Será que teria saído ou entrado à pressa? Seria possível que aquele corpinho delicioso estivesse caído, algures, sem sentidos? Dentro de casa, nem o mais pequeno movimento. Estaria ela, naquele preciso momento, deitada sobre o chão frio da cozinha, à espera que alguém a encontrasse e viesse socorrê-la?

À direita da porta, por baixo de um caramanchão, uma janela com caixilho de madeira deixava ver o interior da cozinha. E Martin espreitou através da vidraça. Mas não conseguiu ver nada, para além de uma mesa pequena coberta por uma toalha de linho, da bancada da cozinha, do fogão, do lava-loiças e da porta fechada, que dava para a sala de jantar. Teria de descobrir outra janela. E, de preferência, deste lado da casa, porque o facto de ter de espreitar
pelas janelas, como se fosse um abelhudo qualquer, estava decididamente a fazê-lo sentir-se embaraçado. Não convinha que fosse visto da estrada. Só Deus sabia o que representaria para o negócio se alguém por ali passasse de carro e visse Martin Snell, leiteiro e monárquico, espreitando para onde não devia.

Teve de passar por cima de um canteiro para alcançar a janela da sala de jantar, que abria para aquele mesmo lado da casa. Esforçou-se o mais possível para não pisar as violetas. Enfiou-se atrás de um lilás e aproximou-se do vidro.

Estranho, pensou. Não conseguia ver nada através dele. Distinguia os contornos dos cortinados junto à vidraça, abertos como os outros, mas nada mais. Parecia estar suja, imunda de facto, o que era ainda mais estranho porque os vidros da janela da cozinha estavam tão transparentes como as águas de um ribeiro, e a casa em si mesma era de uma brancura irrepreensível. Esfregou os dedos no vidro. E isso era o mais estranho de tudo. O vidro não estava sujo. Pelo menos, no exterior.

Alguma coisa disparou na sua mente, uma espécie de sirene de alarme que ele era incapaz de identificar. Fazia lembrar um bando de verdelhões brancos como a neve em pleno voo, primeiro suavemente e depois com movimentos cada vez mais enérgicos. O barulho no interior da sua cabeça enfraquecia-lhe os braços.

Saltou por cima do canteiro e deu meia volta. Tentou a porta das traseiras. Trancada. Dirigiu-se, apressadamente, para a porta da frente. Trancada. Contornou o lado sul da casa, onde as glicínias cresciam ao longo das traves de madeira preta. Depois da esquina, avançou pela vereda em laje, que acompanhava a parede oeste do edifício. No extremo mais recuado encontrou a outra janela da sala de jantar.

Esta não estava suja, nem por dentro nem por fora. Agarrou-se ao parapeito. Respirou fundo. Olhou.

Tudo parecia normal à primeira vista. A mesa de jantar com o tampo em madeira de nogueira, as cadeiras, a lareira com a sua chapa em ferro fundido e os aquecedores em cobre, suspensos sobre o pano da chaminé. Tudo parecia estar em ordem. O louceiro em pinho estava cheio de pratos e um lavatório antigo fora transformado em bar. Num dos lados da lareira estava uma pesada poltrona e no outro lado da sala, ao fundo das escadas, uma segunda poltrona igual...

Os dedos de Martin crisparam-se sobre o parapeito da janela. Sentiu uma farpa enterrar-se na palma da mão.

Oh, Majestade, Majestade Gabriella Miss Miss disse ele e enfiou, freneticamente, uma mão no bolso, procurando em vão algo com que pudesse forçar a janela. Os seus olhos nunca se afastaram daquela poltrona.

Na posição em que se encontrava, a poltrona formava um ângulo com a base das escadas, ficando de frente para a sala de jantar. Um dos cantos da poltrona estava encostado à parede por baixo da janela com os vidros embaciados. Foi só naquele momento, em que se encontrava do outro lado da casa, que Martin reparou que a janela não estava suja, no sentido convencional do termo. Estava, sim, enegrecida pelo fumo, o fumo que se elevara da poltrona, numa nuvem densa e sinistra, um tornado que escurecera a janela, os cortinados, a parede, o fumo que deixara as suas marcas nas escadas à medida que ia sendo aspirado para cima, na direcção do quarto, onde naquele momento Miss Gabriella, a doce Miss Gabriella ainda...

Martin afastou-se da janela. Atravessou o relvado a correr. Galgou o muro. Precipitou-se pelo trilho abaixo, na direcção da nascente.

Pouco passava do meio-dia quando a inspectora Isabelle Ardery viu Celandine Cottage pela primeira vez. O sol já ia alto, projectando pequenos focos de sombra na base dos fetos que se alinhavam ao longo da alameda. A fita amarela da polícia interditava o acesso a estranhos. Um carro da polícia, um Ford Sierra vermelho, e uma camioneta azul e branca estavam paradas ao longo do trilho.

Estacionou o carro atrás da camioneta do leite e inspeccionou a área com uma careta, apesar do prazer inicial que sentira por ter sido nomeada para um novo caso tão depressa. No tocante a recolha de informação, o local não parecia nada promissor. Havia várias casas espalhadas pelas redondezas, estruturas de madeira com telhados de ardósia iguais à moradia onde ocorrera o incêndio. Todas elas, no entanto, estavam rodeadas por uma extensão de terreno suficientemente ampla para garantir tranquilidade e privacidade aos seus habitantes. Se viesse a provar-se que o incêndio em questão era de origem criminosa como sugeriram as palavras combustão suspeita, rabiscadas no bilhete que Ardery recebera das mãos do seu superior hierárquico havia menos de uma hora seria pouco provável que algum dos vizinhos tivesse ouvido ou visto alguém ou algo de suspeito.

Armada com o seu estojo de trabalho, baixou-se para passar por baixo da fita amarela e empurrou o portão que se encontrava ao fundo da alameda. Para leste, do outro lado de um cercado onde pastava uma égua baia, meia dúzia de mirones estavam encostados a uma vedação partida, feita de madeira de nogueira. Conseguia ouvir os seus murmúrios especulativos, enquanto subia a alameda. Sim, de facto, retorquia-lhes ela, mentalmente, ao entrar no jardim por um portão mais pequeno, o investigador é uma mulher, e ainda por cima num caso de incêndio. Bem-vindos aos derradeiros anos deste século.

Inspectora Ardery?

Era uma voz feminina. Isabelle virou-se e viu uma outra mulher, que a esperava no passeio de tijoleira que seguia em duas direcções: para a porta de entrada e, contornando a casa, em direcção às traseiras. Era daqui que viera a mulher, aparentemente.

Sargento Coffman anunciou ela, jovial. Departamento Criminal de Greater Springburn.

Isabelle aproximou-se da outra mulher e estendeu a mão para a cumprimentar.

O chefe não está aqui de momento disse Coffman. Seguiu com o corpo para o Hospital de Pembury.

Isabelle franziu o sobrolho, estranhando o facto. Fora o próprio superintendente-chefe de Greater Springburn que a convocara. Era uma quebra de etiqueta policial abandonar o local antes da chegada dela.

O hospital? perguntou. Não têm um médico-legista que acompanhe o corpo?

Coffman ergueu os olhos para o céu num movimento rápido.

Oh, ele também cá esteve, garantindo-nos amavelmente que estávamos de facto na presença de um cadáver. Mas está prevista a realização de uma conferência de imprensa depois de a vítima ter sido identificada, e o chefe adora essas coisas. Dêem-lhe um microfone, cinco minutos do nosso tempo e ele fica imparável.

E quem é que ainda cá está, então?

Dois agentes estagiários, que têm aqui a sua primeira experiência no terreno. E o tipo que descobriu toda esta confusão. Snell, é assim que ele se chama.

E os bombeiros?

Já cá estiveram e já foram embora. Snell telefonou para as Emergências de uma casa vizinha, do lado oposto à nascente, que enviaram para cá os bombeiros.

E? Coffman sorriu.

Está com sorte. Mal entraram viram que o incêndio estava extinto há horas. Não tocaram em nada. Limitaram-se a telefonar para o Departamento Criminal e esperaram até que nós chegássemos.

Graças a Deus por isso. Uma das maiores dificuldades nas investigações de incêndios de origem criminosa era a presença necessária do corpo de bombeiros, treinados para desempenhar duas tarefas: salvar vidas humanas e apagar incêndios. Empenhados em ambas, era frequente derrubarem portas a golpe de machado, inundarem quartos, destruírem tectos, obliterando indícios preciosos.

Isabelle inspeccionou o edifício.

Muito bem disse ela, vou dar uma olhadela por aqui, primeiro.

Quer que...

Sozinha, por favor.

Certo. Vou deixá-la à vontade, então disse Coffman, e encaminhou-se para as traseiras da casa. Parou ao chegar à esquina nordeste da casa, virou-se e afastou do rosto uma madeixa de cabelo castanho-escuro.

Quando quiser, o acesso ao local do crime é por aqui.

Isabelle deixou o caminho de tijoleira e atravessou o relvado, caminhando até ao extremo mais afastado da propriedade. Aí voltou-se para trás e contemplou primeiro a casa e depois os terrenos que a circundavam.

Se este fosse um caso de fogo posto, não iria ser fácil encontrar provas no exterior do edifício. Seriam necessárias horas para passar os terrenos a pente fino, já que Celandine Cottage era o paraíso de qualquer jardineiro amador: a sul, floresciam glicínias, rodeadas por canteiros onde cresciam lado a lado miosótis, urze, violetas brancas, alfazema, amores-perfeitos e túlipas. Nos sítios onde não havia canteiros havia relva, espessa e luxuriante. Onde não havia relva, floresciam arbustos. Onde estes escasseavam eram substituídos por árvores. Estas resguardavam parcialmente a propriedade de olhares indiscretos, isolando-a tanto do caminho como da casa do vizinho mais próximo. Se existissem peugadas ou marcas de pneus, ferramentas abandonadas, recipientes para líquidos inflamáveis ou carteiras de fósforos, não iria ser fácil descobri-los.

Isabelle circundou a casa cuidadosamente, movendo-se de leste para noroeste. Examinou as janelas. Escrutinou o solo. Observou com atenção o telhado e as portas. Finalmente dirigiu-se às traseiras da casa, onde encontrou a porta da cozinha aberta e à sombra de uma latada em frente da qual começava a despontar a folhagem de uma videira, um homem de meia-idade estava sentado diante de uma mesa de verga, a cabeça afundada no peito e as mãos apertadas entre os joelhos. À sua frente, um copo de água, intacto.

Mr. Snell?

O homem levantou a cabeça.

Levaram o corpo disse. Estava tapada da cabeça aos pés. Embrulhada e amarrada. Parecia que a tinham colocado dentro de uma espécie de saco. Não está certo, pois não? Não é lá muito decente. Nem sequer é sinal de respeito.

Isabelle juntou-se-lhe, puxou uma cadeira e pousou a maleta de trabalho no chão de cimento. Sentiu-se imediatamente na obrigação de o reconfortar, mas o esforço para lhe demonstrar alguma compaixão parecia-lhe inútil. A morte era a morte, não obstante o que dissesse ou fizesse. Nada alteraria esse facto aos olhos dos vivos.

Mr. Snell, as portas estavam trancadas ou abertas quando chegou?

Tentei entrar, quando ela não respondeu. Mas não consegui. Por isso espreitei pela janela apertou as mãos uma na outra e inspirou, hesitante. Ela não sofreu, pois não? Ouvi um deles dizer que o corpo nem sequer tinha marcas de queimaduras e que tinha sido por essa razão que tinham conseguido ver imediatamente quem era. Foi o fumo que a matou, não foi?

Só poderemos ter a certeza de alguma coisa depois da autópsia disse a sargento Coffman, que aparecera à porta da cozinha. A resposta dela soou profissionalmente cautelosa.

O homem pareceu aceitá-la.

E os gatinhes? perguntou.

Gatinhos? perguntou Isabelle.

Os gatinhos de Miss Gabriella. Onde é que eles estão? Ninguém os trouxe cá para fora.

Devem estar algures por aí. Não os encontrámos dentro de casa.

Mas ela arranjou dois bichanos, a semana passada. Dois gatinhos. Encontrou-os ao pé da nascente. Alguém os abandonou dentro de uma caixa de cartão, perto da vereda. Ela trouxe-os para casa. Estava a tomar conta deles. Dormiam na cozinha, dentro de um cestinho, e... Snell limpou os olhos com o punho. Tenho que ir tratar da distribuição do leite. Antes que ele azede.

Registou o depoimento dele? Isabelle perguntou a Coffman, baixando-se para transpor o lintel e juntando-se ao sargento, no interior da cozinha.

Sim, mas ele vale o que vale. Pensei que gostasse de trocar algumas impressões com ele. Mando-o embora?

Desde que tenhamos a morada dele.

Certo. Vou tratar disso. A entrada é por aqui.

Coffman gesticulou na direcção de uma porta interior. Para além dela, Isabelle distinguiu a curva de uma mesa de jantar e a extremidade de uma lareira que ocupava uma parede inteira.

Quem esteve cá dentro?

Três tipos dos bombeiros. A malta do Departamento.

A Brigada anticrime?

Só o fotógrafo e o médico-legista. Julguei que seria melhor manter os outros fora daqui até ter tido tempo de inspeccionar o local.

Guiou Isabelle até à sala de jantar. Dois agentes estagiários ladeavam o que restava da poltrona, posicionada num canto ao fundo das escadas. Contemplavam-na com o sobrolho franzido, qual deles o mais absorto. Um deles tinha uma expressão séria. O outro parecia incomodado com o cheiro acre do tecido queimado. Nenhum deles teria mais de vinte e três anos de idade.

Inspectora Ardery disse Coffman, apresentando Isabelle. A especialista em situações complicadas da esquadra de Maidstone. Vocês dois, afastem-se e dêem-lhe espaço. E tentem tirar algumas notas, já agora.

Isabelle cumprimentou os dois jovens com um aceno de cabeça e concentrou a sua atenção naquele que era, obviamente, o foco do incêndio. Pousou a maleta em cima da mesa, enfiou o metro no bolso do casaco, juntamente com as pinças e os alicates, tirou o bloco-notas e fez um esboço preliminar da sala, inquirindo:

Nada foi mudado?

Nem um fio de cabelo replicou Coffman. Foi por isso que telefonei ao chefe depois de ter inspeccionado o local. O problema é aquela poltrona junto às escadas. Veja, há qualquer coisa que não está bem.

Isabelle não concordou imediatamente com a sargento. Sabia que a outra mulher se preparava para colocar uma questão lógica: Por que razão é que a poltrona se encontrava naquela posição específica, ao fundo das escadas? Seria necessário contorná-la para subir ao primeiro andar. A sua posição sugeria que alguém a teria deslocado para ali.

Por outro lado, a sala estava atafulhada de móveis, nenhum dos quais apresentava quaisquer indícios de incêndio. Todos, no entanto, estavam ou descorados em consequência do fumo ou cobertos de fuligem. Para além da mesa de jantar e das respectivas quatro cadeiras, havia um velho banco e um segundo cadeirão, colocados em ambos os lados da lareira. Encostado a uma das paredes estava um louceiro cheio de porcelanas, a outra uma mesa com garrafas e, junto a uma terceira parede, uma cómoda onde luziam mais porcelanas. Todas as paredes estavam decoradas com quadros e fotografias. As paredes pareciam ter sido brancas. Uma delas estava agora tingida de negro, enquanto as outras exibiam diversas tonalidades de cinzento. À semelhança do que acontecia com os cortinados de renda, que pendiam, moles, dos respectivos varões, incrustados de sujidade.

Examinaram o tapete? Isabelle perguntou à sargento. Se a poltrona foi deslocada, havemos de descobrir as marcas algures. Talvez noutra divisão.

Aí é que está disse Coffman. Chegue aqui.

Um momento retorquiu Isabelle, e completou o esboço, escurecendo a zona da parede que ficara queimada. Desenhou, em seguida, um rápido plano do piso e identificou os seus componentes mobiliário, lareira, janelas, ombreiras e escadas. Só então se aproximou do foco de incêndio. Aí passou a desenhar a poltrona, registando as marcas de incêndio bem visíveis no estofamento. Era um procedimento rotineiro.

Um incêndio localizado como este espalhava-se em V, estando a origem do sinistro no vértice do V. Este fogo propagara-se segundo o padrão normal. Os estragos eram mais visíveis no lado direito da poltrona, que formava um ângulo recto com a escada. O cadeirão começara por arder a fogo lento provavelmente durante várias horas e, em seguida, as labaredas tinham devorado quer o tecido quer o estofo, abrindo caminho pelo lado direito da poltrona antes de se extinguirem. Aqui, com efeito, as marcas do fogo elevavam-se em dois ângulos, a partir do ponto de origem da chama, formando um V grosseiro. À primeira vista, Isabelle nada vira que pudesse indicar incêndio de origem criminosa.

Parece tratar-se de uma ponta de cigarro, quanto a mim disse um dos jovens agentes. Parecia inquieto. Já passava do meio-dia. Estava com fome.

Isabelle viu o olhar fulminante que a sargento Coffman lançou ao rapaz, um olhar onde podia ler-se claramente: ”Mas ninguém te está a perguntar nada, pois não, meu menino?” Ele mudou rapidamente de atitude, dizendo:

O que eu não percebo é por que razão a casa não ardeu até à última tábua.

As janelas estavam todas fechadas? perguntou Isabelle à sargento.

Estavam, sim.

Isabelle falou por cima do ombro, explicando ao agente:

O incêndio que começou na poltrona consumiu todo o oxigénio que havia dentro de casa. Depois, extinguiu-se por si próprio.

A sargento Coffman agachou-se junto da poltrona calcinada. Isabelle imitou-a. A carpete fora em tempos de um bege vivo. Debaixo da poltrona via-se uma espessa camada de fuligem negra. Coffman indicou três depressões pouco profundas, cada uma delas não muito distantes da perna da cadeira que lhe correspondia.

Era a isto que eu estava a referir-me disse ela. Isabelle tirou um pincel de dentro da maleta, dizendo:

É uma possibilidade e, com gestos suaves, limpou a fuligem que enchia a cavidade mais próxima, fazendo depois o mesmo com a outra. Quando terminou, viu que ambas estavam perfeitamente alinhadas entre si; eram as marcas formadas pela poltrona quando colocada na sua posição original.

Vê. Foi deslocada. Rodada num só pé.

Isabelle endireitou-se e apoiou-se nos tornozelos, estudando a posição da poltrona em relação ao resto da sala.

Alguém poderia ter ido de encontro a ela e tê-la deslocado sem querer.

Mas não acha...

Precisamos de mais elementos.

Aproximou-se mais da poltrona. Observou o ponto de origem do fogo, uma brecha irregular de tecido queimado, da qual jorravam fios de estofamento calcinados. Como acontecia em muitos casos de incêndio de origem criminosa, a poltrona ardera lentamente, libertando uma nuvem de fumo regular e intoxicante à medida que uma forma cintilante da ignição inicial uma espécie de acha ia consumindo o tecido, atravessando-o até alcançar o estofamento. Todavia, cumprindo o padrão tradicional dos fogos deste tipo, a poltrona ficara apenas parcialmente destruída, pois uma vez consumida a totalidade do oxigénio disponível, o incêndio extingue-se por si só.

Deste modo, Isabelle pôde inspeccionar a brecha aberta pela chama, afastando delicadamente o tecido queimado a fim de seguir a progressão da brasa à medida que esta se afundava no lado direito da cadeira. Era um trabalho minucioso, um escrutínio silencioso de cada centímetro à luz de uma lanterna, que Coffman segurava firmemente sobre o ombro dela. Mais de um quarto de hora passou até que Isabelle descobrisse aquilo que procurava.

Usou as pinças para extrair o trofeu. Examinou-o com uma expressão satisfeita antes de o mostrar à colega.

Um cigarro, afinal Coffman parecia desiludida.

Não.

Ao contrário da sargento, Isabelle sentia-se genuinamente satisfeita.

É um dispositivo de incêndio.

Olhou para os agentes, cujas expressões ganharam vida ao som das palavras dela.

Vamos precisar de começar lá fora com uma busca pelo perímetro disse-lhes. Avancem em espiral. Procurem pegadas, marcas de pneus, uma caixa de fósforos, ferramentas, todo o tipo de recipientes, tudo o que vos pareça fora do comum. Desenhem primeiro o objecto que descobrirem. Depois fotografem-no e recolham as provas. Entendido?

”Sim, senhora”, disse um deles, enquanto o outro respondia, ”Certo”. Encaminharam-se para a cozinha e daí para o exterior do edifício.

Coffman observava, com o sobrolho franzido, a beata de cigarro que Isabelle ainda segurava.

Não percebo.

Isabelle indicou o aspecto recortado do revestimento do cigarro.

E? perguntou Coffman. Continua a parecer-me um cigarro.

E é feito para parecer um cigarro. Aproxime a lanterna. Afaste-se o mais possível da poltrona. Aí mesmo. Agora, veja.

Quer dizer que isto não é um cigarro? perguntou Coffman, enquanto Isabelle prosseguia a sua avaliação. Não é um cigarro verdadeiro?

É e não é.

Não percebo.

Essa é, obviamente, a esperança do incendiário.

Mas...

Se não estou enganada, e sabê-lo-emos dentro de alguns minutos, porque esta poltrona vai dizer-nos se assim é, o que aqui temos é um dispositivo com retardador de fabrico primitivo, destinado a proporcionar ao incendiário uma margem de quatro a sete minutos para desaparecer antes que as chamas surjam de facto.

Coffman, que se preparava para replicar, agitou a lanterna. Recompondo-se, tornou a apontá-la na direcção inicial.

Peço desculpa. Se assim é continuou, porque é que a poltrona não ardeu por completo quando as chamas realmente rebentaram? Não seria essa a vontade do incendiário? Bem sei que as janelas estavam fechadas, mas com certeza que o fogo teve tempo suficiente para passar da poltrona para os cortinados e subir, depois, pela parede antes que o oxigénio se esgotasse. Então, porque é que isso não aconteceu? Porque é que as vidraças não se partiram sob o efeito do calor, deixando assim entrar mais ar? Porque é que a casa não ardeu toda, da cave ao sótão?

Isabelle continuou o seu trabalho minucioso. Era uma operação semelhante à de pegar numa cadeira e desmanchá-la peça a peça.

Estamos a falar da velocidade de propagação do fogo disse ela. Essa velocidade depende do tecido que reveste a poltrona, do tipo de estofamento e do volume de corrente de ar que existe dentro de uma divisão. Depende da forma como o tecido foi urdido. E da idade do estofamento, do tratamento químico que este sofreu. Apalpou o rebordo do tecido chamuscado.

Vamos ter de fazer alguns testes para obter respostas. Mas estou pronta a apostar numa coisa...

Fogo posto? perguntou Coffman. Feito para parecer outra coisa qualquer?

Essa seria a minha opinião.

Coffman olhou para as escadas, do outro lado da poltrona.

Isso vem complicar bastante as coisas. As palavras dela soavam hesitantes.

Eu diria que sim. Os fogos de origem criminosa normalmente têm esse efeito.

Isabelle extraiu das entranhas da poltrona a primeira farpa de madeira que procurara activamente. Depositou-a num frasco com um sorriso de satisfação.

Excelente murmurou. A mais bela das visões.

Haveria, estava certa disso, pelo menos mais cinco farpas de madeira enterradas nas ruínas calcinadas da poltrona. Retomou a sua inspecção, separando e examinando minuciosamente as provas.

Quem era ela, a propósito?

Quem era quem?

A vítima. A mulher que tinha os gatos.

Aí é que está o problema replicou Coffman. Por isso é que o chefe acompanhou o corpo até Pembury. É por isso que vai haver uma conferência de imprensa mais tarde. E é por isso que tudo se complicou.

Porquê, então?

A casa é habitada por uma mulher, percebe?

Uma estrela de cinema, ou algo parecido? Alguém importante?

Não é isso. Nem sequer se trata de uma mulher, aliás. Isabelle ergueu a cabeça.

O que é que se passa aqui?

Snell não sabe. Ninguém sabe senão nós.

Ninguém sabe o quê?

O corpo que encontrámos lá em cima era o de um homem.

 

                                       Capítulo 2

A polícia chegou a Billingsgate Market a meio da tarde. Jeannie já nem sequer devia lá estar, pois a essa hora o mercado de peixe de Lon dres estava tão animado como uma estação de metro às três da manhã. Mas ali estava ela, aguardando a chegada de um técnico que vinha a caminho do Crissys Café, a fim de reparar o fogão. O electrodoméstico avariara no pior dos momentos, justamente no período de maior azáfama, por volta das nove e meia, depois de os vendedores de peixe terem terminado os seus negócios com os compradores dos restaurantes elegantes da cidade e de a brigada de recolha de lixo ter removido do imenso parque de estacionamento todas as caixas de polistireno e outros recipientes de crustáceos.

As raparigas no Crissys eram sempre tratadas por as raparigas, embora a mais velha delas tivesse cinquenta e oito anos e a mais nova fosse a própria Jeannie, que tinha trinta e dois tinham conseguido persuadir o fogão a trabalhar a meio gás durante o resto da manhã, permitindo-lhes assim continuar a servir doses de bacon frito com pão, ovos, linguiça, coelho galês e sanduíches de salsichas grelhadas como se nada de anormal se tivesse passado. No entanto, se quisessem evitar um motim entre a clientela pior, se não quisessem perder clientes para o Catons, que ficava no andar de cima teriam de mandar consertar o fogão imediatamente.

As raparigas tentaram apurar responsabilidades tirando sortes, como sempre tinham feito desde que Jeannie trabalhava com elas havia já quinze anos. Acendiam fósforos todas ao mesmo tempo e ficavam a vê-los arder até ao fim. A primeira a deixar cair o seu perdia.

Jeannie conseguia aguentar-se firme até que a chama lhe roçasse os dedos tanto como qualquer uma das outras mulheres, mas hoje quisera perder. A vitória significaria que teria de ir para casa. Se ficasse à espera do técnico, só Deus sabe quanto tempo conseguiria evitar ter de pensar em Jimmy. Todos, desde os vizinhos mais próximos até às autoridades escolares, usavam a palavra menor quando se referiam ao filho. E isso não agradava de forma alguma a Jeannie. Diziam-no da mesma maneira que diriam vadio, ou maldito sacaninha, ou rufião, e nenhum destes qualificativos se aplicava a Jimmy. Mas eles não poderiam sabê-lo, pois não, porque apenas viam o lado superficial do rapaz e nem se davam ao trabalho de pensar no que poderia estar escondido sob as aparências.

E sob a sua carapaça, Jimmy sofria. Havia já quatro anos que sofria. Como ela.

Jeannie estava sentada a uma das mesas junto da janela, bebendo uma chávena de chá e mastigando ruidosamente uns aperitivos de cenoura que trazia sempre de casa, quando, por fim, ouviu o baque surdo da porta de um carro. Supôs que era o técnico que chegava. Lançou um olhar rápido ao relógio de parede. Passava das três. Fechou o exemplar da Woman’s Own na página onde surgia um artigo que dava pelo título, ”Como saber se é boa na cama?”, enrolou a revista, que enfiou no bolso da farda, e empurrou a cadeira para trás. Foi então que viu que se tratava de um carro de polícia, ocupado por um homem e uma mulher. E porque um dos ocupantes era uma mulher, que tinha uma expressão grave e percorria com um olhar sombrio o comprido edifício de tijolos enquanto endireitava os ombros e ajustava as extremidades triangulares do colarinho da blusa, Jeannie sentiu um arrepio de apreensão percorrer-lhe o corpo.

Com um gesto maquinal, olhou para o relógio uma segunda vez e pensou em Jimmy. Rezou para que, apesar da desilusão causada pelo cancelamento das férias por ocasião do seu décimo sexto aniversário, o seu filho mais velho tivesse ido à escola. Se assim não fora, se tivesse armado mais outra confusão, se tivesse sido apanhado onde não devia estar, se esta mulher e este homem e por que razão seriam dois? tivessem vindo informar a mãe dele sobre mais outra das suas tropelias... Nem queria pensar no que poderia ter acontecido desde que saíra de casa às quatro menos dez dessa manhã.

Dirigiu-se ao balcão e procurou um maço de cigarros no sítio onde uma das outras raparigas costumava guardá-lo. Acendeu o cigarro, sentiu o fumo queimar-lhe a garganta, encher-lhe os pulmões e uma imediata sensação de leveza na cabeça.

Foi ter com o homem e a mulher à porta do café. A mulher era precisamente da mesma altura que Jeannie e, tal como ela, tinha uma pele macia com rugas em torno dos olhos, e um cabelo claro que hesitava entre o louro e o castanho. Apresentou-se e exibiu um distintivo para o qual Jeannie nem olhou, quando ouviu o nome e a categoria dela. Coffman, disse ela. Sargento. Agnes, acrescentou, como se o facto de ter um nome próprio pudesse de alguma maneira atenuar o efeito da sua presença. Depois de informar que pertencia ao Departamento Criminal de Greater Springburn, apresentou o jovem que a acompanhava. Agente Dick Payne ou Nick Dane, ou uma variante de ambos. Jeannie não percebeu o nome, porque deixou de ouvir fosse o que fosse depois de a mulher ter mencionado Greater Springburn.

Jean Fleming? perguntou a sargento Coffman.

Fui disse Jeannie. Durante onze anos. Agora é Cooper. Jean Cooper. Porquê? Quem quer saber?

A sargento passou um dedo entre as sobrancelhas, como se o gesto a ajudasse a pensar.

Segundo julgo saber... A senhora é a mulher de Kenneth Fleming?

Ainda não tenho os papéis oficiais, se é nisso que está a pensar. Por isso, suponho que ainda somos casados replicou Jeannie. Mas ser casada com alguém não é exactamente o mesmo que ser mulher de alguém, pois não?

Não, suponho que não.

No entanto, havia algo no modo como a sargento proferiu aquelas quatro palavras e, ainda mais, na forma como olhou para Jeannie enquanto as pronunciava que a incitou a inalar o fumo do cigarro com redobrado vigor.

Mrs. Fleming... Miss Cooper... Mis!... continuou o sargento Agnes Coffman. O jovem agente que a acompanhava baixou a cabeça.

Foi então que Jeannie compreendeu. A mensagem, a verdadeira mensagem, estava contida naquele amontoar de apelidos. Jeannie nem precisou que ela o dissesse em voz alta. Kenny estava morto. Despistara-se na auto-estrada ou jazia, apunhalado, na plataforma da Estação de Kensington High Street, ou fora projectado a uma distância de sessenta metros de uma passadeira de peões, ou atropelado por um autocarro, ou... Que importância tinha isso? Independentemente da forma como tudo tivesse acontecido, acabara finalmente. De agora em diante, ele não podia voltar a sentar-se à frente dela, à mesa da cozinha, conversando e sorrindo. Não podia suscitar nela o desejo de esticar o braço para tocar os pêlos louro-avermelhados, nas costas da mão dele.

Ao longo dos últimos quatro anos, pensara mais do que uma vez em quão feliz se sentiria num momento como aquele. ”Se ao menos alguma coisa pudesse apagar a presença dele da face da terra e libertar-me do amor que sinto por aquele canalha, mesmo agora que ele se foi embora e que toda a gente sabe que eu não era boa o suficiente, que nós não éramos bons o suficiente, que nós não formávamos uma família suficientemente unida...”, pensara ela... ”Eu queria que ele morresse. Que morresse e morresse um milhar de vezes, queria que ele desaparecesse, queria-o desfeito em mil pedacinhos, queria que ele sofresse.”

Apercebeu-se de que nem sequer tremia, e de como isso era estranho.

Kenny está morto, não está, sargento? perguntou.

Precisamos de uma identificação oficial. Precisamos que venha reconhecer o corpo. Lamento muito.

Queria dizer: ”Porque é que não lhe pedem a ela? Era suficientemente boa para lhe examinar o corpo quando ele estava vivo.”

 

1 Fórmula de tratamento utilizada para evitar a distinção entre Mrs., Senhora, e Miss, Menina. [N. da T.]

 

Em vez disso, replicou:

Se me dão licença, preciso de fazer um telefonema primeiro.

O sargento respondeu que podia fazê-lo, claro, e em seguida afastou-se com o agente para o canto oposto do café, onde espreitaram pelas janelas, para o outro lado do porto, para as torres de vidro com telhados piramidais de Canary Wharf, outra das promessas goradas de esperança, empregos e renovação que os respeitáveis da City lançavam periodicamente sobre o East End.

Jeannie telefonou aos pais, esperando que fosse a mãe a atender o telefone mas deparando com Derrick, em vez dela. Tentou controlar a voz e não deixar transparecer nada. Ao ouvir o simples pedido de um favor, a mãe ter-se-ia dirigido de imediato a casa de Jeannie e teria esperado por ela, na companhia das crianças, sem fazer perguntas. Com Derrick, porém, Jeannie teria de ser cuidadosa. O irmão queria sempre interferir nos assuntos dela.

Por isso mentiu, dizendo a Derrick que o técnico de quem estava à espera na cafetaria iria demorar horas, pelo que queria saber se ele podia ir até casa dela e tomar conta dos miúdos. Dar-lhes o lanche. Tentar impedir Jimmy de fazer algum disparate aquela noite. Certificar-se de que Stan lavava bem os dentes. Ajudar Sharon com os deveres da escola.

O pedido foi ao encontro da necessidade que Derrick sentia de substituir as famílias que já perdera na sequência de dois divórcios. Ir até casa de Jeannie significava perder a habitual sessão nocturna de musculação estava empenhado em esculpir cada músculo do seu corpo até atingir um monstruoso estádio de perfeição, mas no lugar desta teria a oportunidade de interpretar o papel de pai-de-família sem ter de assumir as correspondentes responsabilidades vitalícias.

Jeannie virou-se para a polícia e disse:

Estou pronta.

E seguiu-os até ao carro onde tinham vindo.

O trajecto demorou uma eternidade, porque por uma qualquer razão que Jeannie não compreendia, eles não usaram nem a sirene nem as luzes giratórias. A hora de ponta começara. Atravessaram o rio e arrastaram-se através dos subúrbios, passando por infindáveis edifícios do pós-guerra, construídos em tijolo fuliginoso. Quando, finalmente, alcançaram a auto-estrada, a circulação melhorara um pouco.

Mudaram de auto-estrada uma vez e saíram da segunda quando as tabuletas começaram a anunciar Tonbridge. Serpentearam por duas aldeias, deslizaram por entre sebes em campo aberto e abrandaram quando, por fim, avistaram uma cidadezinha. Acabaram por parar junto à entrada de serviço de um hospital onde, por detrás de uma barreira improvisada formada por caixotes de lixo, meia dúzia de fotógrafos e de câmaras começaram a ligar e a disparar os respectivos aparelhos no preciso momento em que o agente Payne-Dane abriu a porta a Jeannie.

Jeannie hesitou, apertando com força a sua mala de mão.

Não podem fazer com que eles... disse.

Ao que a sargento Coffman respondeu, falando por cima das costas do assento onde estava instalada:

Tenho muita pena. Andamos a mantê-los à distância desde o meio-dia.

Mas como podem eles saber? Disseram-lhes alguma coisa? Contaram-lhes alguma coisa?

Não.

Então, como...?

Coffman apeou-se e aproximou-se da porta de Jeannie.

É simples. Há jornalistas encarregues de seguir os casos do dia. Outros escutam as transmissões de rádio com o auxílio de um scanner. E, dentro das esquadras, infelizmente, há quem não tenha tento na língua. Em resumo, as notícias correm, a imprensa somou dois mais dois. Mas fique tranquila, eles ainda não têm a certeza de nada e você não tem que lhes dizer seja o que for. Está bem?

Jeannie assentiu com a cabeça.

Óptimo. Por aqui. Vamos, depressa. Deixe-me segurar-lhe o braço. Jeannie passou a mão pelo uniforme e sentiu o tecido áspero roçar a palma da sua mão. Saiu do carro. Algumas vozes começaram a gritar: ”Mrs. Fleming, será que nos pode dizer...”, à medida que as câmaras zumbiam. Ladeada pelo jovem agente e pela sargento, ela atravessou rapidamente as portas envidraçadas que se abriram, automaticamente, quando eles se aproximaram.

Entraram no hospital pelo serviço de urgências, onde o ar saturado de desinfectante lhes picou os olhos e onde alguém gritava: ”É o meu peito, raios!” De início, Jeannie pouco mais viu para além de uma predominância de branco. Corpos deslocando-se dentro de batas de laboratório e de uniformes, lençóis sobre macas, folhas de papel, igualmente brancas, coladas às paredes, prateleiras que pareciam estar cobertas de gaze e de algodão. Depois começou a ouvir ruídos. Pés caminhando sobre o chão forrado a linóleo, o ranger de uma porta fechando-se, o chiar das rodas de um carrinho. E vozes, um verdadeiro arco-íris sonoro.

É o coração. Tenho a certeza.

Será que nenhum dos senhores pode ver...

Há dois dias que não come nada...

Vamos precisar de um electrocardiograma.

Uma solução de córtex. Depressa!

Uma silhueta passou, gritando: ”Afastem-se!”, empurrando um carrinho sobre o qual estava uma máquina repleta de botões, fios e monitores.

Durante todo este tempo, Jeannie sentia a mão da sargento Coffman, quente e firme, segurando-lhe o braço, mesmo por baixo do cotovelo.

O agente não lhe tocava, mas mantinha-se muito perto dela. Percorreram um primeiro corredor, depois outro. Finalmente, chegaram a um sítio onde a preponderância do branco era ainda maior e uma nova sensação de frio, numa zona tranquila onde havia uma porta metálica. Jeannie sabia que tinham chegado.

A sargento Coffman sugeriu:

Posso oferecer-lhe alguma coisa, primeiro? Um chá? Café? Coca-cola? Água?

Jeannie recusou com um movimento de cabeça.

Estou bem disse ela.

Sente-se fraca? Sente-se bem? Está muito pálida. Venha comigo. Sente-se aqui.

Eu estou bem. Prefiro ficar de pé.

A sargento Coffman perscrutou o rosto dela por instantes, como se duvidasse da veracidade das suas palavras. Depois fez sinal ao agente, que bateu à porta e desapareceu atrás dela. A sargento Coffman informou:

Não vai demorar muito tempo.

Jeannie disse para si mesma que tudo aquilo durara bastante tempo, anos para ser mais exacta. No entanto, respondeu simplesmente:

Óptimo.

O agente esteve ausente menos de um minuto. Quando espreitou à porta e disse, ”Eles estão prontos”, a sargento Coffman tornou a amparar o braço de Jeannie e, juntas, entraram na sala.

Esperara ver-se confrontada com o corpo dele imediatamente, estendido e lavado, como nos filmes antigos, com cadeiras dispostas em torno dele para que as pessoas pudessem instalar-se e observar. Em vez disso, porém, entraram num gabinete, onde uma secretária olhava fixamente para uma impressora que cuspia papel. Dos dois lados da sua mesa de trabalho, duas portas fechadas. Um homem vestido com uma bata verde de cirurgião e umas calças da mesma cor estava junto de uma delas, a mão pousada sobre a maçaneta.

Por aqui disse ele, em voz baixa.

Abriu a porta, e à medida que se aproximava, Jeannie ouviu a sargento Coffman murmurar: ”Tem o frasco dos sais?” e sentiu que o homem de verde a segurava pelo outro braço ao mesmo tempo que respondia: ”Tenho, sim.”

Fazia um frio glacial no interior da sala, imaculada e ofuscantemente iluminada. Parecia haver aço inoxidável por todo o lado. Armários, intermináveis mesas de trabalho, armários ao longo das paredes e um carrinho por baixo de um deles. Um lençol verde cobria o carrinho; de um verde semelhante ao da indumentária do homem de verde. Aproximaram-se como se caminhassem na direcção de um altar. E tal como na igreja, quando se detiveram, deixaram-se ficar em silêncio, presos de um terror sagrado. Jeannie percebeu que os outros esperavam que ela lhes transmitisse um sinal de que estava preparada. Por isso disse: ”Vamos lá vê-lo, então”, e o homem de verde inclinou-se para a frente e afastou o lençol para descobrir o rosto.

Porque é que ele está tão vermelho? perguntou. O homem de verde inquiriu:

É o seu marido?

A sargento Coffman explicou:

É o monóxido de carbono. Torna a pele rosada quando penetra no fluxo sanguíneo.

É o seu marido, Mrs Fleming? tornou a perguntar o homem de verde. Era tão fácil dizer que sim, pôr um ponto final em tudo aquilo e sair dali.

Seria tão fácil dar meia volta, percorrer novamente todos aqueles corredores, enfrentar as câmaras e as perguntas dos jornalistas sem lhes dar resposta, porque na verdade não havia nenhuma nunca houvera. Tão fácil deslizar para dentro do carro, deixar-se conduzir e pedir que ligassem a sirene para que o trajecto fosse mais rápido. Mas Jeannie não conseguia articular a palavra certa. Sim. Parecia tão simples. Mas não conseguia proferi-la. Em vez disso, pediu:

Tirem o lençol.

O homem de verde hesitou. A sargento Coffman disse: ”Mrs... Miss...” num tom contrito.

Tirem o lençol.

Não podiam compreender, mas isso não tinha qualquer importância porque dentro de algumas horas todos eles estariam fora da sua vida. Kenny, em contrapartida, estaria sempre presente: nos rostos dos filhos, no deslizar inesperado de passos pela escada, no eterno ruído seco de uma bola de couro embatendo num bastão de críquete.

Via a sargento e o homem de verde entreolhando-se, interrogando-se sobre o que deveriam fazer. Mas a decisão pertencia-lhe, não era? Nada tinha que ver com eles.

O homem de verde dobrou o lençol com as duas mãos, a partir dos ombros. Fê-lo com um cuidado extremo, cada dobra escrupulosamente formada, e com suficiente lentidão para que pudesse deter-se no momento em que ela lhe dissesse que já tinha visto de mais.

Só que ela nunca veria de mais. Jeannie soube-o no preciso momento em que percebeu que jamais se esqueceria da visão de Kenny Fleming morto.

Faz-lhes perguntas, disse para si própria. Faz-lhes as perguntas que qualquer pessoa faria? Tens de o fazer. É preciso.

Quem o encontrou? Onde estava ele? Estava nu, como agora? Porque é que tem um ar tão tranquilo? Como é que morreu? Quando? Ela estava com ele? O corpo dela está ali, ao lado do dele?

Em vez disso, porém, aproximou-se do carrinho e pensou no amor que sentira pelos ângulos correctos da clavícula dele e pelos músculos dos seus ombros e dos seus braços. Lembrou-se de como o estômago dele era duro, da penugem espessa em torno do pénis, das suas coxas sinuosas de corredor, das suas pernas esbeltas. Pensou no rapazinho de doze anos que ele fora, tentando enfiar pela primeira vez a mão nas cuecas dela, atrás das caixas em Invicta Wharf. Lembrou-se do homem em que ele se tornara e da mulher que ela própria era e de como, mesmo na tarde em que ele viera até Cubitt Town no seu carro desportivo, se sentara na cozinha partilhando uma chávena de chá com ela e pronunciara a palavra divórcio, a palavra que ela estava à espera que ele mencionasse havia agora quatro anos, os dedos deles acabaram finalmente por se encontrar e entrelaçar como coisas cegas dotadas de vontade própria.

Pensou nos anos que tinham vivido juntos Kennyejean e que a perseguiriam com a tenacidade de cães esfomeados durante o resto da sua existência. Pensou nos anos sem ele, que se desdobravam perante os seus olhos como uma fita de penas. Queria agarrar o corpo dele, atirá-lo ao chão e enterrar o salto do sapato no rosto dele. Queria arranhar-lhe o peito e agredi-lo com os punhos. O ódio latejava dentro do seu crânio, transformava-lhe o peito num torno e dizia-lhe o quanto ainda o amava. O que fazia com que o odiasse ainda mais. O que fazia com que desejasse que ele morresse uma e outra vez, até ao fim dos tempos.

Sim disse, recuando.

É Kenneth Fleming? perguntou a sargento Coffman.

- É ele.

Jeannie desviou-se. Libertou-se da pressão da mão da sargento no seu braço. Ajustou a mala, de forma que a pega se encaixasse na curva do cotovelo.

Queria comprar cigarros disse. Suponho que não deve haver uma tabacaria aqui perto, pois não?

A sargento Coffman respondeu que se encarregaria dos cigarros logo que possível. Havia papéis a assinar. Se Mrs. Fleming...

Cooper corrigiu Jeannie.

Se Mis Cooper quisesse fazer o favor de a acompanhar...

O homem de verde ficou para trás, na sala, com o cadáver. Jeannie ouviu-o soltar uma espécie de assobio baixo entredentes enquanto empurrava o carrinho na direcção de uma abóbada de luz suspensa, no centro da sala. Jeannie julgou tê-lo ouvido sussurrar Santo Deus, mas nesse momento já a porta se tinha fechado atrás delas e ela era conduzida até uma secretária por baixo do cartaz de um cachorro dachshund, de pêlo comprido, usando um minúsculo chapéu de palha.

A sargento Coffman disse qualquer coisa ao agente em voz baixa e ao ouvir a palavra cigarro, Jeannie pediu: ”Embassy, por favor”. Em seguida começou a assinar os formulários, nos sítios assinalados pela secretária com uma cruz vermelha e bem desenhada. Ignorava que formulários eram aqueles e desconhecia a razão por que tinha de os assinar ou a quê, exactamente, estaria a dar o seu nome e o seu consentimento. Limitava-se a assinar e quando terminou, um maço de Embassy encontrava-se sobre a mesa, juntamente com uma caixa de fósforos. Acendeu um. A secretária e a agente tossiram discretamente. Jeannie inalou com satisfação.

É tudo por agora declarou a sargento Coffman. Se quiser fazer o favor de me seguir, vamos fazê-la sair daqui sem demora e levá-la a casa.

Muito bem respondeu Jeannie.

Pôs-se de pé. Enfiou os cigarros e os fósforos dentro da mala e seguiu a agente ao longo do corredor.

As perguntas surgiram em catadupa e os flashes cintilaram no instante em que eles saíram para o ar nocturno.

E então, sempre é Fleming?

Foi suicídio?

Ou acidente?

Pode dizer-nos o que se passou, Mrs. Fleming? Qualquer coisa. É Cooper, corrigiu Jeannie, mentalmente. Jean Stella Cooper.

O inspector Thomas Lynley subiu os degraus da entrada do edifício de Onslow Square onde morava Lady Helen Clyde. Trauteava as mesmas dez notas casuais que lhe martelavam o cérebro como mosquitos enlouquecidos desde que saíra do escritório. Tentara afastá-los recitando sem descanso o monólogo de abertura de Ricardo III, mas sempre que ordenava aos seus pensamentos que mergulhassem no mais recôndito da sua alma e aí reunissem a coragem necessária para anunciar a entrada de George, o mais astucioso dos duques de Clarence, as malditas notas voltavam a assaltar-lhe a mente.

Foi só depois de ter entrado no edifício de Helen e de ter galgado apressadamente os degraus das escadas que conduziam ao apartamento dela que a origem do seu tormento musical se lhe revelou. E, nesse momento, não conseguiu impedir-se de sorrir perante a capacidade do inconsciente para veicular uma mensagem através de um género musical que há muito julgava arredado do seu mundo. Gostava de se considerar como um amador de música clássica, e de música clássica russa em particular. Tonight’s the Night de Rod Stewart não era propriamente a melodia que ele teria escolhido para sublinhar a importância daquela noite. Ainda que aquela escolha se revelasse bastante adequada à situação. Tal como o solilóquio de Ricardo, no fundo, já que tal como este, também ele conspirara e ainda que as suas maquinações não representassem qualquer perigo tendiam para um único objectivo. O concerto, seguido de ceia e de um pequeno passeio até àquele bar tranquilo, em King’s Road, onde uma harpista tocava em surdina, impedida pelo instrumento de deambular de mesa em mesa, interrompendo conversas de importância capital para o futuro... Talvez Rod Stewart conviesse melhor à ocasião, afinal, do que Ricardo III, com todas as suas intrigas. Porque aquela era, de facto, a grande noite.

Helen? chamou, fechando a porta. Estás pronta, querida? Silêncio. Franziu as sobrancelhas. Falara com ela por telefone pelas nove da manhã. Dissera-lhe que estaria em casa dela por volta das sete e um quarto. Embora isso lhes deixasse quarenta e cinco minutos para fazer um trajecto que não levava mais do que dez, ele conhecia Helen o suficiente para saber que devia conceder-lhe uma razoável margem de erro e indecisão quando se tratava de se arranjar para sair. Todavia, ela costumava responder-lhe, gritando, ”No quarto, Tommy”. E era lá que ele, invariavelmente, a encontrava, na maioria das vezes tentando decidir-se entre seis ou oito pares de brincos diferentes.

Foi à procura dela e descobriu-a na sala, estendida no sofá e rodeada por uma montanha de sacos de compras verdes e dourados, cujo logotipo lhe era demasiado familiar. Sofrendo as mil agonias de uma mulher que recusa sistematicamente deixar-se guiar pelo bom senso ao escolher os sapatos que calça, ela era o testemunho eloquente dos sofrimentos a que se sujeitava para fazer compras sem renunciar a seguir os ditames da moda. Tinha um braço sobre a cabeça. Gemeu quando ele pronunciou o nome dela uma segunda vez.

Parecia um campo de batalha murmurou ela, o rosto escondido debaixo do braço. Nunca vi tanta gente no Harrod’s. E que capacidade! E esta palavra nem por sombras faz justiça às hordas de mulheres contra quem tive de lutar só para alcançar a secção de lingerie. A lingerie, santo Deus. Parecia que estavam a disputar entre si porções limitadas de um elixir da juventude.

Não me disseste que devias trabalhar com Simon, hoje?

Lynley aproximou-se do sofá, levantou o braço atrás do qual Helen escondia o rosto, beijou-a e tornou a colocá-lo na posição inicial.

Ele não devia estar ocupadíssimo, preparando-se para testemunhar... de que é que se tratava, exactamente, Helen?

Devia testemunhar, sim. É um caso de explosivos. Qualquer coisa com aminas, aminoácidos, placas de celulose, eu sei lá. Em resumo, à força de ouvir tanto calão, tinha a cabeça a andar à roda às duas e meia. E aquele homem horrível estava de tal modo apressado que insistiu em que saltássemos o almoço. O almoço, Tommy. Sabes o que isso é?

Um inferno, de facto disse Lynley.

Levantou as pernas dela, sentou-se e descansou os pés dela sobre os seus joelhos.

Dispus-me a colaborar até às três e meia, fazendo processamento de texto até ficar quase cega. Mas a essa hora por pouco não desmaiei de fome, vê lá tu, e decidi vir embora.

E foste para o Harrods. Mesmo com o estômago colado às costas. Ela ergueu o braço, franziu o sobrolho e tornou a baixar o braço.

Nunca deixei de pensar em ti.

Ah, bom. Como?

Ela fez um gesto cansado na direcção dos embrulhos que a rodeavam.

Vê. Ali.

Ali, o quê?

As compras.

Ele contemplou os sacos com uma expressão ausente, dizendo:

Compraste coisas para mim?

Perguntava a si próprio como deveria interpretar tal comportamento. Não que Helen nunca o tivesse surpreendido com alguma coisa divertida que tivesse conseguido desencantar em Portobello Road ou no mercado de Berwick Street, mas tanta generosidade... Observou-a dissimuladamente e perguntou a si mesmo se, adivinhando as suas intenções secretas, ela própria não teria decidido conspirar contra ele.

Com um suspiro, ela pousou os pés no chão. Começou a remexer dentro dos sacos. Afastou um deles, que parecia estar cheio de papel de seda e de tecidos sedosos, e depois outro contendo produtos de beleza. Procurou dentro de um terceiro e de um quarto até exclamar, finalmente:

Ah, aqui está ele.

Estendeu-lhe o saco e continuou as suas buscas, dizendo:

Eu também tenho um.

Um quê?

Abre e vê.

Ele retirou de dentro do saco um monte de papel de seda, interrogando-se sobre a dimensão exacta do contributo do Harrods para a inevitável destruição das superfícies arborizadas do planeta. Começou a desfazer o embrulho. Sentou-se, contemplando o fato de treino azul-marinho, procurando decifrar a mensagem que ele encerrava.

Bonito, não é? comentou Helen.

Muito disse ele. Obrigado, querida. É precisamente aquilo que eu...

Dá-te jeito, não dá?

Ela endireitou-se, pondo fim às suas incursões ao interior dos sacos de compras e, triunfante, brandiu um outro fato de treino, igualmente azul-marinho, mas suavizado com um galão branco.

Tenho-os visto em todo o lado.

Fatos de treino?

Joggers. Zelando pela sua boa forma. Em Hyde Park. Em Kensington Gardens. Ao longo do Embankment. É tempo de nos juntarmos a eles. Vai ser divertido, não achas?

Fazes jogging?

Claro. Jogging. É exactamente aquilo de que precisamos. Uma boa lufada de ar fresco depois de um dia inteiro enfiados no escritório.

Estás a sugerir que façamos isto depois do trabalho? À noite?

Ou antes de ir para o escritório.

Estás a sugerir que façamos isto de madrugada?

Ou à hora de almoço ou à hora do lanche. Em vez de almoçar ou de tomar chá. Estamos a ficar mais velhos e está na hora de fazer qualquer coisa para iludir a meia-idade.

Tens trinta e três anos, Helen.

E estou condenada a ficar completamente flácida, se não reagir de forma positiva agora.

Tornou a concentrar a sua atenção nos sacos de compras.

Também comprei sapatos. Estão algures por aqui. Não tinha a certeza do número que calças, mas podes sempre trocá-los. Vejamos, então, onde poderão eles estar... Ah, ei-los. Tirou-os de dentro do saco com uma expressão de triunfo. Ainda é cedo, não é? Podíamos perfeitamente mudar de roupa e dar umas voltinhas à praça. Exactamente aquilo que precisamos para nos ajudar a...

Ergueu o rosto, com uma expressão subitamente pensativa. Pareceu examinar as roupas dele pela primeira vez. Smoking, laço, sapatos impecavelmente engraxados.

Meu Deus. Esta noite. Devíamos... Esta noite as faces dela tingiram-se de um rubor intenso e ela prosseguiu, apressadamente: Tommy, querido. Temos um compromisso, não é?

Esqueceste-te?

Não, de maneira nenhuma. Garanto-te que não. É só o facto de não ter comido. Não comi absolutamente nada.

Nada? Não tentaste trincar nada entre o laboratório de Simon, o Harrods e Onslow Square? Porque será que tenho alguma dificuldade em acreditar no que estás a dizer?

Bebi apenas uma chávena de chá.

Quando ele ergueu uma sobrancelha céptica, Helen acrescentou:

Bem, de acordo. Talvez tenha comido um ou dois pastéis no Harrods. Mas eram uns eclairs minúsculos e sabes como é que eles são por dentro. Completamente ocos.

Se bem me lembro, eram recheados de... que nome é que se dá àquilo? Creme de manteiga? Chantilly?

Uma lágrima afirmou ela. Uma patética colher de chá. Isso não conta e certamente que não pode ser considerado como uma refeição. Para falar com franqueza, posso considerar-me uma felizarda por ainda estar viva, tendo em conta o pouco que comi desde esta manhã.

Teremos de remediar isso, então.

O rosto dela iluminou-se.

Estás a convidar-me para jantar, não estás? Óptimo. Foi o que eu pensei. E num sítio soberbo, já que puseste esse laço horrível, que tu detestas.

Levantou-se, reencontrando a energia perdida.

Ainda bem que não comi nada, então? Vou apreciar ainda mais a minha refeição.

Exacto. Depois.

Dep...?

Ele exibiu o relógio de bolso e abriu-o.

São sete e vinte e cinco. Temos de sair agora.

Para onde?

Para o Albert Hall. Helen pestanejou.

A Filarmónica, Helen. Os bilhetes em troca dos quais quase vendi a minha alma ao diabo. Strauss. E mais Strauss. Isso não te faz lembrar nada?

O rosto dela tornou-se radiante.

Tommy! Strauss? Vais mesmo levar-me a ouvir Strauss? Isto não é um truque? Nada de Stravinsky depois do intervalo? A Sagração da Primavera, ou outra coisa igualmente odiosa?

Strauss disse Lynley. Antes e depois do intervalo. Seguida de jantar.

Cozinha tailandesa? perguntou, num tom vivo.

Cozinha tailandesa confirmou ele.

Meu Deus, mas é uma noite idílica declarou ela. Apanhou os sapatos e uma série de sacos de compras.

Não demoro dez minutos.

Ele sorriu e reuniu os restantes embrulhos. Tudo estava a correr como previsto. Saiu da sala atrás dela e seguiu-a ao longo do corredor, passando pela cozinha à qual lançou um olhar rápido que lhe disse que Helen estava a retomar a sua habitual indiferença pelas lides domésticas. A loiça do pequeno-almoço estava espalhada sobre a bancada da cozinha, a cafeteira eléctrica continuava ligada. O café há muito que se havia evaporado, deixando uma película negra no fundo do recipiente de vidro e o ar saturado de um odor a grãos de café demasiado moídos.

Por amor de Deus, Helen disse ele. Não te apercebes deste cheiro? Deixaste a cafeteira ligada o dia todo.

Ela hesitou à porta do quarto.

Deixei? Que maçada. Essas máquinas deviam desligar-se automaticamente.

E os pratos deviam encaminhar-se automaticamente para a máquina de lavar loiça, suponho eu?

Seria, sem dúvida, um sinal de boa educação, se o fizessem.

Ela desapareceu dentro do quarto, onde ele a ouviu deixar cair os embrulhos no chão. Pousou os seus sobre a mesa, despiu o casaco, desligou a cafeteira e dirigiu-se à bancada. Água, detergente e dez minutos foram o suficiente para deixar a cozinha em ordem, embora o recipiente de vidro da máquina de café necessitasse de uma boa esfregadela até ficar em condições. Deixou-o no lava-loiças.

Encontrou Helen, de pé, ao lado da cama, vestida com um penteador cor de cerceta, lábios franzidos numa expressão pensativa enquanto estudava três conjuntos que pousara lado a lado sobre a cama.

Qual deles preferes para uma noite de Danúbio Azul seguida de uma magnífica refeição de cozinha tailandesa?

O preto.

Humm. Recuou um pouco.

Não sei, querido. Parece-me...

O preto é perfeito, Helen. Veste-o. Penteia-te. Vamos embora. Está bem? Ela deu uma palmadinha numa das faces.

Não sei, Tommy. Uma pessoa deseja sempre vestir-se com elegância para ir assistir a um concerto, mas ao mesmo tempo não queremos estar demasiado bem vestidas para o jantar. Não achas que é demasiado discreto para o primeiro e um pouco excessivo para o segundo?

Ele pegou no vestido, correu o fecho éclair e estendeu-lho. Aproximou-se do toucador. Aí, ao contrário da cozinha, tudo estava impecavelmente arrumado, como se se tratasse de instrumentos cirúrgicos numa sala de operações. Abriu a caixa de jóias e tirou um colar, brincos e duas pulseiras. Dirigiu-se, em seguida, ao armário e escolheu um par de sapatos. Voltou para junto da cama, pousou as jóias e os sapatos, virou-a para ele e desfez o nó do cinto do penteador.

Estás a portar-te muito mal, esta noite disse ele. Ela sorriu.

Pois estou, mas repara no que ganho com isso. Estás a despir-me. Ele fez deslizar o penteador ao longo dos ombros dela, deixando-o cair ao chão.

Não tens de te dar a todo este trabalho para me convenceres a despir-te. Mas não estou a dar-te nenhuma novidade, pois não?

Beijou-a, deslizando as mãos por entre os cabelos dela. Escorriam-lhe por entre os dedos como água fresca. Beijou-a novamente. Apesar de todas as frustrações que lhe causava o amor que sentia por Helen, continuava a gostar de tocá-la, gostava do cheiro dela e do gosto da sua boca.

Sentiu os dedos dela lutando com a camisa dele. Desapertou-lhe o laço. As suas mãos deslizaram ao longo do peito dele. Sem descolar a sua boca da dela, ele disse:

Helen, julgava que quisesses jantar esta noite.

E eu julgava que tu quisesses que eu me vestisse.

Absolutamente. Mas cada coisa a seu tempo.

Ele afastou as roupas para o chão e arrastou-a para a cama. A sua mão deslizou ao longo da coxa dela.

O telefone tocou. Raios! desabafou ele.

Não te mexas. Não estou à espera de ninguém. A mensagem fica gravada no atendedor.

Estou de serviço este fim-de-semana.

Não estás, não.

Estou. Lamento muito.

Olharam ambos para o telefone, que continuou a tocar.

Bom disse Helen. O som da campainha do telefone continuou a soar. A Yard sabe que estás aqui?

Denton sabe onde estou. Deve ter-lhes dito.

Podíamos já ter saído, a esta hora.

Têm o número de telefone do carro e os números dos nossos lugares no concerto.

Bom, talvez não seja nada. Talvez seja a minha mãe.

Talvez devêssemos descobrir do que se trata.

Talvez.

Levou os dedos ao rosto dele, fazendo-os deslizar desde a face até aos lábios. Entreabriu os dela.

Ele respirou fundo. Uma espécie de calor invadiu-lhe os pulmões. Abandonando o rosto dele, os dedos de Helen enterraram-se nos seus cabelos. O telefone parou de tocar e, instantes depois, na outra divisão soou uma voz desencarnada que falava para o atendedor de chamadas de Helen. Lynley conhecia bem aquela voz. Pertencia a Dorothea Harriman, a secretária do seu superintendente. Quando ela se dava ao trabalho de descobrir o seu paradeiro, era sempre mau prenúncio. Lynley suspirou. As mãos de Helen caíram sobre os joelhos.

Lamento muito, querida disse ele, esticando o braço na direcção do telefone colocado sobre a mesa-de-cabeceira e interrompendo a mensagem que Harriman deixava com um: ”Sim. Boa noite, Dee. Estou aqui.”

Inspector Lynley?

Em pessoa. O que é que se passa?

Enquanto falava, estendeu novamente a mão para Helen. Ela, porém, começara já a libertar-se dele, deslizando para fora da cama e baixando-se para apanhar o penteador, caído no chão.

 

                                       CAPÍTULO 3

Três semanas depois de ter deixado Acton e de se ter mudado para o pequeno estúdio onde morava agora, a sargento Barbara Havers concluiu que aquilo que mais lhe agradava na sua vida solitária em Chalk Farm era a variedade de meios de transporte cada um mais cansativo que o outro que tinha agora à sua disposição. Sempre que desejasse evitar ponderar sobre as implicações subjacentes ao facto de em vinte e um dias não ter dirigido a palavra a uma única alma do seu bairro, à excepção de uma jovem oriunda do Sri Lanka chamada Bhimani que trabalhava na caixa da mercearia local, bastava-lhe concentrar-se nas loucas alegrias que lhe proporcionavam as viagens diárias entre o seu novo domicílio e a Scotland Yard.

 

Antes mesmo de o adquirir, Barbara já considerava o seu minúsculo estúdio como um símbolo. Para ela, significava a libertação de uma vida inteira consagrada ao dever e aos pais doentes. E embora a decisão de se mudar lhe tivesse proporcionado a oportunidade de se libertar das suas responsabilidades, algo por que ansiava há muito, essa mesma liberdade fazia-se acompanhar de um sentimento de solidão que se abatia sobre ela nos momentos em que se sentia menos preparada para o enfrentar. Assim, fora com uma alegria quase sardónica que Barbara descobrira que tinha à sua disposição duas maneiras de chegar ao emprego todas as manhãs duas soluções ricas em distracções não só susceptíveis de provocar um ranger de dentes e úlceras de estômago, mas também, e sobretudo, de fazer com que se esquecesse da sua solidão.

 

Podia enfrentar o trânsito no seu velho Mini, abrindo caminho arduamente ao longo de Camden High Street até Mornington Crescent onde lhe era dada a possibilidade de escolher entre três itinerários, os quais a obrigavam a embrenhar-se num trânsito de tal modo congestionado que fazia lembrar o bulício de uma cidade medieval, de dia para dia cada vez mais irremediável. Ou, então, podia apanhar o metropolitano, mergulhar nas entranhas da estação de Chalk Farm e aguardar a chegada do comboio, um verdadeiro teste à sua paciência, na companhia dos fiéis mas forçosamente irascíveis utilizadores da caprichosa Northern Line. Além disso, não eram todos os comboios que lhe serviam, já que tinha de apanhar um que passasse pela estação de Embankment, onde devia fazer transbordo e apanhar a ligação para St. James’s Park.

 

Em resumo, e retomando o velho lugar-comum, Barbara via-se forçada a passar de Caríbdis para Cila. Naquele dia, tendo em conta os ruídos cada vez mais inquietantes que o seu carro produzia, escolhera Cila, abrindo caminho por entre os seus companheiros de viagem suburbanos através de escadas rolantes, ao longo de túneis e plataformas, comprimida contra um corrimão de aço inoxidável enquanto o comboio penetrava na escuridão e sacudia os passageiros, que pisavam os pés uns dos outros.

 

Suportava estas situações enervantes com resignação. Mais um trajecto. Mais uma oportunidade para concluir, de forma conveniente, que a sua solidão não tinha realmente qualquer importância, já que ao fim de um dia de trabalho ela não tinha nem tempo nem energia para qualquer tipo de convívio social.

 

Eram sete e meia da tarde quando iniciou a penosa subida de Chalk Farm Road. Parou na Jaffri’s Fine Groceries, uma loja de tal modo recheada de inúmeras ”delícias destinadas a tentar o paladar de qualquer gastronomo” que o espaço deixado livre para circulação dos clientes era quase tão reduzido como o de um compartimento de um comboio vitoriano e quase tão lúgubre. Conseguiu passar sem incidentes por uma pirâmide de latas de sopa Mr. Jaffri fazia muita questão nas ”saborosas sopas provenientes dos sete mares” e debateu-se com a porta envidraçada do congelador, decorada por um painel que assegurava que os gelados Haagen-Daz existiam ”em todos os sabores à face da terra”. Não eram os gelados que lhe interessavam, ainda que a ideia de completar uma refeição de batatas fritas com sal e vinagre com um gelado de baunilha e amêndoa não soasse assim tão mal. Não, o que ela queria era o artigo que o puro e genuíno espírito mercantil de Mr. Jaffri o levara a ter em armazém, tão seguro estava de que o lento aburguesamento do bairro e as inevitáveis festas e noitadas que se lhe seguiriam fariam nascer uma forte procura do produto em questão. Barbara queria gelo. Mr. Jaffri vendia-o em sacos, e desde que se mudara para a casa nova, ela usava-o dentro de um balde colocado por baixo da pia da cozinha como dispositivo artesanal para conservação de géneros perecíveis.

 

Tirou um saco de dentro do congelador e transportou-o até ao balcão onde estava empoleirada Bhimani, esperando mais uma oportunidade para premir as teclas da nova caixa registadora que não só soava tão alto como o Big Ben quando anunciava os totais, como indicava em algarismos azul-vivo a quantia exacta que cada cliente devia receber como demasia. Como era hábito, a transacção efectuou-se em silêncio, Bhimani inserindo os preços dos artigos com um sorriso de lábios fechados e saudando com um vivo movimento de cabeça o aparecimento do total no visor digital.

Nunca falava. De início, Barbara pensara que ela era muda. Uma noite, porém, surpreendera a rapariga no meio de um bocejo e entreviu o ouro que cobria a maior parte dos seus dentes. Desde essa ocasião perguntava a si própria se Bhimani não sorria por desejar ocultar o valor da sua dentadura ou se, depois de ter chegado a Inglaterra e de ter observado o homem comum, tivesse compreendido a bizarria de tanto ouro, preferindo, por isso, não o exibir.

 

Barbara disse:

 

Obrigada. Até à próxima.

 

Pegou no saco de gelo depois de Bhimani lhe ter entregue setenta e cinco pence de troco. Ajustou a alça da mala, apoiou o gelo sobre a anca e saiu.

 

Continuou a subir a rua. Passou pelo pub local, que ficava no passeio oposto, e, por uma fracção de segundo, pensou em juntar-se aos inúmeros clientes, com gelo e tudo. Todos eles pareciam ser uns bons dez anos mais jovens do que ela, o que era bastante deprimente; mas ela ainda não bebera a sua caneca de Bass semanal e o seu chamamento sedutor levou-a a especular sobre a dose de energia de que necessitaria para abrir caminho até ao bar, pedir a cerveja, acender um cigarro e adoptar uma atitude sociável. O gelo daria um excelente tema de conversa. E que quantidade exacta de gelo derreteria se ela abdicasse de um quarto de hora para se relacionar com a malta do bairro, numa sexta-feira à noite, depois de um dia de trabalho? Quem sabe onde isso poderia levá-la? Poderia travar conhecimento com alguém. Fazer um amigo. E mesmo que isso não acontecesse, tinha a boca tão seca como se acabasse de atravessar o deserto. Precisava de beber qualquer coisa. Um copo não lhe faria mal nenhum. Sentia-se cansada, a caminhada fizera-lhe sede e a viagem de metro deixara-a completamente suada. Uma bebida fresca vinha mesmo a calhar, não?

 

Detendo-se por momentos, olhou para o outro lado da rua. Três homens rodeavam uma rapariga de pernas longas. Riam e bebiam todos quatro. A rapariga, ancas apoiadas contra o parapeito da janela do pub, esvaziou o copo. Dois dos homens precipitaram-se para o agarrar. A rapariga desatou a rir e abanou a cabeça. A sua espessa cabeleira ondulou como a crina de um cavalo e os homens aproximaram-se mais dela.

 

Fica para outro dia, talvez, decidiu Barbara.

 

Continuou a avançar penosamente, mantendo a cabeça baixa, olhos fixos no passeio. Põe o pé no buraco, a tua mãe parte o caco... Não. Não era um tema sobre o qual desejasse reflectir naquele momento. Para iludir o estribilho popular começou a assobiar. Escolheu o primeiro tema que lhe veio ao espírito. ”Leva-me à igreja a tempo e horas.” Não era o que se adequava melhor à sua situação, mas o resultado foi o esperado. E enquanto assobiava deu-se conta de que se se tinha lembrado daquilo era sem dúvida por causa do inspector Lynley e pelo facto de ele ter escolhido precisamente aquela noite para colocar a fatídica pergunta a Helen. Riu interiormente ao recordar a expressão de surpresa estampada no rosto dele e no seu temor, evidentemente, pois não lhe agradava nada que todos estivessem ao corrente dos seus planos quando ela se detivera à porta do gabinete dele para lhe desejar, ”Boa sorte. Espero que desta vez ela diga que sim”, antes de sair da Yard. Num primeiro momento, fingira perplexidade perante o comentário dela, mas ela ouvira-o telefonar toda a semana à procura de bilhetes para um concerto e vira-o interrogar os colegas na esperança de descobrir o melhor restaurante tailandês de Londres, e como sabia que Strauss e cozinha tailandesa constituíam a combinação perfeita para agradar a Lady Helen Clyde, deduzira o resto. ”Elementar”, dissera ela perante o silêncio estupefacto dele. ”Eu sei que detesta Strauss.” Agitara os dedos na direcção dele em sinal de despedida. ”Ora, ora, inspector, o que nós não faríamos por amor!”

 

Virou para Steele’s Road e passou sob as frondosas tílias. Os pássaros instalavam-se nos seus ramos para aí passarem a noite, tal como as famílias, no interior das casas de tijolos claros que se alinhavam ao longo da rua. Quando chegou a Eton Villas, tornou a virar. Ajeitou melhor o saco de gelo sobre a anca e, para se reconfortar, disse a si própria que, circunstâncias sociais à parte, seria a última vez que teria de o carregar até casa desde a mercearia de Jaffri.

 

Durante três semanas vivera sem os confortos da refrigeração moderna, guardando o leite, a manteiga, os ovos e o queijo dentro de uma selha de metal. Passara aquelas últimas três semanas as noites, os fins-de-semana e, por vezes, a sua hora de almoço à procura de um frigorífico que estivesse dentro das suas possibilidades financeiras. Acabara por encontrar um, finalmente, na tarde do último domingo, o electrodoméstico perfeito que se adequava, quer ao tamanho do seu estúdio, quer ao tamanho da sua bolsa. Não era exactamente aquilo que ela procurava: tinha apenas um metro de altura e estava decorado com umas flores decalcadas hediondas. No entanto, depois de o ter pago e de se ter tornado a legítima proprietária do electrodoméstico, que para além das detestáveis rosas, malmequeres e fúcsias que o decoravam, também soltava uns portentosos e inquietantes estalidos de cada vez que se fechava a porta, Barbara reflectira, filosoficamente, sobre aqueles que tinham a possibilidade de escolher e os outros, a quem não restava senão a hipótese de mendigar. A mudança de Acton para Chalk Farm custara-lhe mais do que o previsto, precisava de economizar e o frigorífico serviria por agora. E como o filho do anterior proprietário tinha ele próprio um filho que possuía uma camioneta de caixa aberta para os seus trabalhos de jardinagem e estava disposto a passar por casa da sua querida avozinha durante o fim-de-semana, apanhar o frigorífico e transportá-lo desde Fulham até Chalk Farm em troca da módica quantia de dez libras, Barbara preferira fechar os olhos, não só ao facto de o tempo de vida do aparelho ser já, provavelmente, muito limitado mas também à certeza de que teria de passar umas boas seis horas até conseguir descolar os decalques da querida avozinha. Uma pechincha justifica tudo.

 

Usou o joelho para empurrar o portão da casa eduardiana de Eton Villas, atrás da qual ficava o seu pequeno estúdio. A casa era amarela, com uma porta cor de canela, recuada, debaixo de um alpendre branco. Este quase desaparecia sob a glicínia que crescia num pequeno canteiro de terra quadrado, ao lado das portas envidraçadas do apartamento do rés-do-chão. Através das vidraças, Barbara entreviu a figura de uma garota morena que punha a mesa para o jantar. Usava um uniforme escolar e os cabelos que lhe chegavam à cintura tinham sido cuidadosamente entrançados e presos por pequenos laços. Conversava animadamente com alguém que se encontrava atrás dela e, enquanto Barbara observava a cena, desapareceu alegremente do seu campo de visão. Um jantar de família, pensou Barbara. Em seguida, endireitou a cabeça e os ombros e avançou ao longo do carreiro de cimento que corria paralelo à casa e dava acesso ao jardim.

 

O estúdio ficava junto ao muro do fundo do jardim, à sombra de uma acácia falsa. Quatro janelas davam para o relvado. Era uma construção pequena, em tijolo, com caixilharia de madeira pintada da mesma cor amarela que fora usada no edifício principal e um telhado novo em ardósia que terminava numa chaminé em terracota. Originalmente quadrangular, a casa formava agora um rectângulo depois de lhe ter sido acrescentada uma cozinha minúscula e uma casa de banho ainda mais diminuta.

 

Barbara abriu a porta e acendeu o candeeiro do tecto. A luz era fraca. Nunca se lembrava de comprar uma lâmpada mais forte.

 

Pousou o saco a tiracolo sobre a mesa e o gelo sobre a bancada da cozinha. Soltou um protesto ao tirar a selha que estava debaixo do lava-loiças e dirigiu-se, desajeitadamente, para a porta, soltando uma imprecação ao derramar um pouco de água fria sobre o sapato. Esvaziou-o, tornou a levá-lo para a cozinha e recomeçou a enchê-lo pensando no que iria fazer para o jantar.

 

Preparou uma refeição rápida salada de presunto, um pãozinho com dois dias e os restos de uma beterraba enlatada e dirigiu-se às prateleiras que ladeavam a minúscula chaminé. Deixara aí o livro que estava a ler antes de apagar a luz na noite anterior. Se a memória não a traía, o viril Flint Southern estava prestes a tomar a delicada Star Flaxen nos braços, onde ela iria sentir não só as suas coxas musculadas protegidas por um par de jeans coleantes, mas também o seu membro viril intumescido que palpitava, e sempre palpitara, de desejo por ela. Ao longo das páginas que se seguiriam, ambos se encarregariam de dar vazão a todas aquelas enlouquecedoras palpitações, acompanhadas pelos inevitáveis mamilos endurecidos e pássaros esvoaçantes, após o que se deixariam ficar deitados nos braços um do outro, interrogando-se sobre o porquê de terem demorado cento e oitenta páginas para conhecerem aquele momento de êxtase prodigioso. Nada como a grande literatura para acompanhar uma boa refeição.

 

Barbara agarrou no romance e preparava-se para voltar para a mesa quando reparou na luz intermitente do atendedor de chamadas. Uma piscadela, uma chamada. Contemplou-a durante alguns instantes.

 

Estava de serviço este fim-de-semana, mas custava-lhe acreditar que estava a ser chamada de volta ao escritório menos de duas horas depois de ter saído da Yard. Assim sendo, e dado que o seu número não constava da lista telefónica, a única pessoa susceptível de lhe telefonar seria Florence Magentry, Mrs. Flo, em casa de quem vivia a sua mãe.

 

Barbara interrogou-se sobre o que aconteceria se optasse por premir o botão e ouvir a mensagem. Se fosse a Yard, teria de regressar ao trabalho sem sequer ter tido tempo de descansar ou de jantar. Se fosse Mrs. Flo, era o embarque certo para mais uma viagem ao país da culpabilidade. Barbara não fora visitar a mãe a Greenford, no fim-de-semana anterior, como estava previsto. Tão-pouco lá fora no fim-de-semana anterior ao último. Sabia que tinha de ir neste, se quisesse continuar a viver em paz consigo mesma. Mas não queria, nem queria pensar nas razões por que não queria. Falar com Florence Magentry ouvir a sua voz no atendedor de chamadas forçá-la-ia a reflectir sobre a verdadeira natureza da sua atitude reticente e a classificá-la com as etiquetas adequadas: egoísmo, indiferença e tudo mais.

 

A mãe vivia em Hawthorne Lodge havia quase seis meses. Barbara conseguira ir visitá-la de duas em duas semanas. A mudança para Chalk Farm proporcionara-lhe, finalmente, uma desculpa para não se deslocar a Greenford e agarrara-se a ela, de bom grado, substituindo a sua presença por telefonemas ao longo dos quais enumerava a Mrs. Flo o inventário de motivos que a impediam, uma vez mais, de ir visitar a mãe. E esses motivos eram bons motivos, assegurava Mrs. Flo durante uma ou outra das suas habituais conversas telefónicas das segundas ou quintas-feiras. Barbie não deveria culpabilizar-se por não conseguir visitar a mãe com a assiduidade desejada. Barbie também tinha a sua vida, querida, e ninguém lhe pedia que se sacrificasse.

 

Começa por te instalares na tua nova casa dissera Mrs. Flo. A tua mãe ficará bem, entretanto, Barbie. Verás como fica.

 

Barbara premiu o botão do atendedor e voltou para junto da mesa onde a aguardava a salada de presunto.

 

Olá, Barbie saudou Mrs. Flo, na sua voz melíflua e tranquilizante. Queria prevenir-te que a tua mãe está com uma pontinha de febre, minha querida. Pensei que o melhor seria telefonar-te e avisar-te de imediato.

 

Barbara precipitou-se para o telefone, pronta a discar o número de Mrs. Flo. Como se já esperasse esta reacção da parte dela, Mrs. Flo continuou:

 

Acho que não é caso para chamar o médico, Barbie, mas a tua mãe teve um pouco de temperatura nos últimos dois dias e eu ouvi-a tossir...

 

Seguiu-se uma pausa durante a qual Barbara podia ouvir uma das outras pensionárias de Mrs. Flo, cantando em uníssono com Deborah Kerr, que convidava Yul Brynner para dançar. Devia ser Mrs. Salkild. O Rei e Eu era o seu filme preferido, e ela insistia em vê-lo pelo menos uma vez por semana.

 

Para falar com franqueza, minha querida prosseguiu Mrs. Flo, cautelosa, a tua mãe tem perguntado por ti. Logo a seguir ao almoço. Não quero que te ponhas em cuidados por causa disto, mas como é raro ela mencionar o nome seja de quem for, pensei que talvez lhe fizesse bem ouvir o som da tua voz. Sabes como é quando não nos sentimos totalmente bem, não sabes, querida? Telefona, se puderes. Até logo, Barbie.

 

Barbara estendeu a mão para o telefone.

 

Que bom teres telefonado, querida disse Mrs. Flo quando ouviu a voz de Barbara, como se ela própria não tivesse telefonado antes para a encorajar a fazê-lo.

 

Como é que ela está? inquiriu Barbara.

 

Acabei agora mesmo de dar uma espreitadela no quarto dela, e ela está a dormir como um bebé.

 

Barbara aproximou o pulso da luz fraca do estúdio para consultar o relógio. Ainda não eram oito horas.

 

A dormir? Mas porque é que ela está deitada? Ela nunca se deita tão cedo. Tem a certeza...

 

Ela não tinha muito apetite ao jantar, minha querida, por isso decidimos que uma pequena sesta ao som de música seria o remédio ideal para acalmar-lhe o estômago. E ela escutou um pouco de música e depois adormeceu serenamente. Sabes como ela gosta da caixa de música.

 

Oiça disse Barbara. Posso estar aí por volta das oito e meia. Ou das nove menos um quarto. O trânsito não parece estar tão mau quanto isso, esta noite. Levo o carro.

 

Depois de um longo dia de trabalho? Não sejas tola, Barbie. A tua mãe está tão bem quanto pode estar e uma vez que está a dormir nem se vai aperceber que estás aqui. Mas eu digo-lhe que telefonaste.

 

Ela não saberá a quem se estará a referir protestou Barbara.

 

A menos que tivesse o estímulo visual de uma fotografia ou o estímulo auditivo de uma voz ao telefone, o nome Barbara não significava virtualmente nada para Mrs. Havers, nesta fase da sua vida. Mesmo com um suporte visual ou auditivo, reconhecer a própria filha era sempre obra do acaso.

 

Barbie disse Mrs. Flo, num tom gentil mas firme, eu própria me encarregarei de fazer com que ela saiba a quem me refiro. Ela falou em ti várias vezes esta tarde, por isso há-de saber quem é a Barbara quando eu lhe disser que telefonaste.

 

Mas não era por saber quem era Barbara na sexta-feira à tarde que Mrs. Havers teria a mais pálida ideia de quem era Barbara no sábado de manhã, enquanto comia os ovos escalfados e a torrada do pequeno-almoço.

 

Passo por aí amanhã disse Barbara. De manhã. Juntei uma série de brochuras sobre a Nova Zelândia para lhe entregar. Diz-lhe isso? Diga-lhe que havemos de planear mais uma viagem de férias para o álbum dela.

 

Com certeza, minha querida.

 

E ligue-me, se ela perguntar novamente por mim. Seja a que horas for. Promete-me que telefona, Mrs. Flo?

 

Claro que telefonaria, disse Mrs. Flo. Barbie devia era comer uma boa refeição, esticar os pés debaixo da mesa, passar um serão calmo de maneira a estar fresca que nem uma alface para fazer a viagem até Greenford no dia seguinte de manhã.

 

A tua mãe vai ficar ansiosamente à tua espera acrescentou Mrs. Flo. Tenho a certeza de que isso será o suficiente para que fique melhor do estômago.

 

Desligaram. Barbara regressou para junto da mesa. A fatia de presunto tinha um aspecto ainda menos apetitoso do que quando ela a colocara no prato. À luz fraca da sala, a beterraba, agora fora da lata, parecia adquirir uma vaga coloração esverdeada. E as folhas de alface, dispostas como palmas abertas para servir de suporte ao presunto e à beterraba estavam moles da água e enegrecidas nos bordos por terem estado em contacto directo com o gelo, dentro da selha. Rico jantar, este, pensou Barbara. Afastou o prato e ponderou a hipótese de voltar a Chalk Farm Road e ir à taberna onde serviam falafel. Ou, então, em oferecer a si própria um jantar de comida chinesa, sentada à mesa como uma pessoa digna desse nome. Ou, ainda, em ir até ao pub e comer umas salsichas ou uma tarte...

 

Recompôs-se bruscamente. Onde diabo tinha ela a cabeça? A mãe não estava bem. Apesar do que dissera Mrs. Flo, a mãe precisava de vê-la. Imediatamente. Por isso, ia meter-se no Mini e dar um salto a Greenford. E se a mãe ainda estivesse a dormir, sentar-se-ia junto da cama dela até ela acordar. Nem que tivesse de esperar até amanhecer. Porque era assim que as filhas deviam proceder com as mães, sobretudo quando não as viam há mais de três semanas.

 

Enquanto Barbara esticava o braço para apanhar o saco a tiracolo e as chaves, o telefone soou novamente. Ficou petrificada, durante alguns instantes. E pensou, estupidamente, meu Deus, não, ela não pode, não tão depressa... Aterrorizada, aproximou-se do aparelho e apressou-se a responder.

 

Temos que fazer anunciou Lynley do outro lado do fio, mal ouviu a voz dela.

 

Merda!

 

Nem mais. Espero não ter interrompido nada de particularmente interessante.

 

Não. Ia sair para ir ver a minha mãe. E estava a contar em comer qualquer coisa, também.

 

No que diz respeito à sua mãe, não posso ajudá-la. Serviço é serviço. Quanto ao jantar, posso tentar encontrar qualquer coisa no refeitório da Yard.

 

Ora aí está algo capaz de estimular o meu apetite.

 

Essa é sempre a minha maneira de encarar as coisas. Quanto tempo demora a chegar cá?

 

Uns bons trinta minutos, se o trânsito estiver mau para os lados de Tottenham Court Road.

 

E se não estiver? perguntou ele, em tom de brincadeira. Vou tentar manter os feijões quentes.

 

Genial. Adoro trabalhar com um verdadeiro cavalheiro. Ele desatou a rir e desligou.

 

Barbara fez o mesmo. Amanhã, pensou, amanhã logo de manhã. Amanhã iria até Greenford.

 

Deixou o Mini no parque de estacionamento subterrâneo da New Scotland Yard depois de ter exibido o cartão de identificação ao agente uniformizado, que ergueu os olhos da revista que tinha entre mãos o tempo suficiente para soltar um bocejo e certificar-se de que não estava a autorizar a entrada a nenhum visitante indesejado. Estacionou ao lado do Bentley cinzento metalizado de Lynley. Conseguiu encaixar-se o mais próximo possível do carro dele: ele estremeceria de horror perante a ideia de que a porta do Mini pudesse beliscar a pintura do seu precioso carro.

 

Premiu o botão do elevador e sacou um cigarro. Inalou o fumo tão furiosamente quanto lhe era possível, a fim de armazenar uma boa dose de nicotina antes de entrar nos domínios de Lynley, virgens de fumo. Havia já mais de um ano que tentava persuadi-lo a retomar o hábito de fumar, acreditando que a parceria entre ambos seria muito mais descontraída se partilhassem ao menos um vício odioso. Todavia, da parte dele, nada mais conseguira senão um ou dois gemidos angustiados quando lhe atirara o fumo à cara, literalmente, durante os seis primeiros meses de abstinência. Passavam agora dezasseis meses desde que ele deixara de fumar, e começava a comportar-se como um recém-convertido.

 

Encontrou-o no gabinete, elegantemente vestido para o abortado encontro romântico com Helen Clyde. Estava sentado atrás da secretária, bebendo café. Não estava só, porém. E ao ver quem o acompanhava, Barbara franziu as sobrancelhas e deteve-se na ombreira da porta.

 

Duas cadeiras tinham sido colocadas em frente à secretária dele, e uma delas era ocupada por uma mulher. Tinha um aspecto jovem e longas pernas que mantinha descruzadas. Usava calças castanho-claras e um casaco em tweed, um camiseiro cor de marfim e sapatos de saltos rasos, irrepreensivelmente engraxados. Bebericava algo de um copo de plástico e observava Lynley com uma expressão grave, enquanto este percorria um maço de papéis. Enquanto Barbara a examinava e perguntava a si própria quem diabo seria ela e que raio estaria a fazer na New Scotland Yard, numa sexta-feira à noite, a mulher parou de beber para, com um movimento de cabeça, afastar uma madeixa âmbar que lhe tombara sobre uma das faces. Foi um gesto sensual que deixou Barbara com os cabelos em pé. Com um movimento automático dirigiu o olhar para os arquivadores que se alinhavam contra a parede do fundo, para se assegurar de que Lynley não fizera desaparecer discretamente a fotografia de Helen antes de fazer entrar no seu gabinete esta Boneca de Luxo. A fotografia continuava no seu lugar. Então, que diabo se estava a passar, ao certo?

 

Boa noite cumprimentou Barbara.

 

Lynley levantou a cabeça. A desconhecida virou-se na cadeira onde estava sentada. O seu rosto não traía qualquer emoção. Barbara apercebeu-se que a Boneca de Luxo nem sequer se preocupou em examinar a aparência dela, como qualquer outra mulher faria. Até mesmo os ténis vermelhos que Barbara trazia calçados a deixaram imperturbável.

 

Ah, óptimo disse Lynley. Pousou a papelada e tirou os óculos. Ei-la, Havers.

 

Viu uma sanduíche embrulhada em papel de celofane, um pacote de batatas fritas e uma chávena tapada sobre a secretária em frente à cadeira vazia. Aproximou-se dela, pegou na sanduíche, que desembrulhou e cheirou com uma expressão desconfiada. Levantou a fatia de pão que estava por cima. A mistura alojada no interior fazia lembrar uma espécie de pasta de fígado misturada com espinafres. Cheirava a peixe. Estremeceu.

 

Foi o melhor que consegui encontrar explicou Lynley.

 

Cogumelos venenosos em pão branco murmurou Barbara.

 

Com um antídoto Bovril para empurrar.

 

Estraga-me com mimos, senhor.

 

Barbara cumprimentou a desconhecida com um breve aceno de cabeça, comunicando-lhe assim que não só tomava nota da presença dela ali, como também a desaprovava. Cumpridas as formalidades, deixou-se cair na cadeira que lhe estava destinada. Pelo menos, as batatas eram salgadas e avinagradas. Abriu o pacote e começou a mastigar.

 

O que é que se passa, então? indagou.

 

A sua voz soava perfeitamente neutra, mas o olhar significativo que lançou à outra mulher era suficientemente eloquente. Quem diabo é esta rainha da beleza e que raio faz ela aqui e que é feito de Helen? E porque raio precisa o senhor de companhia na noite em que devia pedir Helen em casamento? Será que, por acaso, ela tornou a dizer que não? E significa isto que já conseguiu encontrar consolo para a desilusão, seu sacana?

 

Lynley recebeu a mensagem, empurrou a cadeira para trás e contemplou Havers tranquilamente. Instantes depois, anunciou:

 

Sargento, apresento-lhe a inspectora Isabelle Ardery, do Departamento Criminal de Maidstone. Ela fez questão em trazer-nos os primeiros elementos. Será que é capaz de libertar o espírito de especulações espúrias e prestar atenção aos factos?

 

Subjacente à pergunta dele, Barbara conseguiu ler a resposta silenciosa às suas mudas alegações: tenha um mínimo de confiança em mim, por favor. Barbara fez uma careta e disse:

 

Peço desculpa, senhor.

 

Limpou a mão às calças e estendeu-a na direcção da inspectora Ardery.

 

Ardery apertou-lha. O seu olhar passeou entre Lynley e Havers, mas não esboçou qualquer tentativa para tentar compreender o significado da troca de palavras entre ambos. Para dizer a verdade, nem sequer parecia interessada nela. Os lábios curvaram-se-lhe ligeiramente na direcção de Barbara, mas aquilo que pretendia passar por um sorriso mais não era do que uma mímica fria e profissional. Talvez não fosse o tipo de Lynley, afinal, decidiu Barbara.

 

O que é que temos, então? destapou o copo de Bovril e bebeu um pouco do líquido.

 

Incêndio de origem criminosa informou Lynley. E um corpo. Inspectora, se não se importar de pôr a sargento ao corrente...

 

Num tom oficial, a inspectora Ardery passou a enumerar os pormenores: uma casa de campo restaurada, datada do século xv, não muito distante de uma pequena cidade chamada Greater Springburn, em Kent, onde residia uma mulher; o leiteiro, que fazia a sua ronda matinal; os jornais e o correio que não tinham sido recolhidos; a espreitadela através da janela; uma poltrona calcinada; um rasto de fumo negro ao longo dos vidros e das paredes; uma escadaria que servira como acontece com todas as escadarias, em caso de incêndio de chaminé; um corpo no andar superior e, finalmente, o foco de incêndio.

 

Abriu a mala que pousara no chão, junto aos pés. De dentro dela tirou um maço de cigarros, uma caixa de fósforos e um elástico. Por momentos, Barbara pensou, deliciada, que a inspectora fosse acender um, o que lhe proporcionaria uma oportunidade para fazer o mesmo. Em vez disso, porém, Ardery espalhou seis fósforos sobre a secretária, por cima dos quais colocou um cigarro.

 

O autor do incêndio usou um dispositivo de incêndio disse Ardery. Primitivo, mas bastante eficaz.

 

A cerca de dois centímetros da extremidade onde se via o tabaco do cigarro sem filtro, ela compôs um feixe de fósforos, cabeças viradas para cima. Prendeu-os com o elástico e colocou o dispositivo sobre a palma da mão.

 

Funciona como um retardador. Qualquer pessoa pode fabricar um. Barbara pegou no cigarro que Ardery tinha na palma da mão e examinou-o. A inspectora prosseguiu.

 

O incendiário acende o cigarro e coloca-o no sítio onde quer que o fogo pegue, neste caso encaixado entre a almofada e o braço da poltrona. Sai. Ao fim de quatro a sete minutos, o cigarro consome-se e os fósforos acendem-se, desencadeando o incêndio.

 

Porquê um lapso de tempo tão preciso? perguntou Barbara.

 

Cada marca de cigarros queima a velocidades diferentes.

 

E conhecemos a marca?

 

Lynley tornara a colocar os óculos e analisava novamente o relatório.

 

De momento, não. Está tudo no laboratório o cigarro, os fósforos e o elástico que os prendia. Vamos...

 

Vão fazer testes de saliva e procurar possíveis impressões digitais, suponho?

 

Ela tornou a esboçar um sorriso quase imperceptível.

 

Como deve calcular, inspector, temos um excelente laboratório no Kent e sabemos utilizá-lo. No entanto, no que diz respeito a impressões digitais, as hipóteses de encontrarmos outra coisa que não sejam impressões parciais são escassas. Duvido que isso vos ajude muito.

 

Lynley, notou Barbara, ignorou a censura implícita nas palavras dela.

 

E a marca? perguntou ele.

 

Quanto à marca, havemos de descobri-la. Quanto a isso não tenho dúvidas. O filtro fornecer-nos-á as indicações necessárias.

 

Lynley entregou a Barbara um conjunto de fotografias, enquanto Ardery acrescentava:

 

Tudo foi feito para parecer um acidente. O que o incendiário desconhecia é que o cigarro, os fósforos e o elástico não arderiam por completo. Cometeu um erro, mas é um erro muito compreensível. E o benefício é nosso, que ficamos assim a saber que estamos a lidar com um amador.

 

E porque é que não arderam totalmente? perguntou Barbara. Começou a percorrer as fotografias. Correspondiam exactamente à descrição fornecida pela inspectora Ardery: a poltrona, os vestígios de fumo na parede. Pô-las de lado e ergueu a cabeça, à espera de uma resposta, antes de passar às fotografias do corpo.

 

Porque é que não arderam? repetiu ela.

 

Porque os cigarros e os fósforos ficam, geralmente, por cima das cinzas e dos detritos.

 

Barbara abanou a cabeça, pensativa. Tirou a última batata frita de dentro do pacote, comeu-a e amarfanhou a embalagem vazia, que atirou para o caixote do lixo.

 

Então, porque é que estamos a analisar isto? perguntou ela a Lynley. Pode ser um caso de suicídio, não? Um suicídio disfarçado de acidente para enganar o seguro?

 

É uma hipótese a considerar disse Ardery. A poltrona libertou tanto monóxido de carbono como o tubo de escape de um carro.

 

Nesse caso, será que a vítima não poderia ter preparado a poltrona, acendido o cigarro, engolido seis ou oito comprimidos, tomado uns copos e adeusinho, que se faz tarde?

 

Ninguém diz que não disse Lynley, embora vistas bem as coisas pareça pouco provável.

 

As coisas? Que coisas?

 

A autópsia ainda não foi efectuada. O corpo foi levado directamente para esse efeito. Segundo a inspectora Ardery, o médico-legista deixou de lado outros três cadáveres para dar prioridade a este. Teremos os dados preliminares sobre a quantidade de monóxido de carbono presentes no sangue rapidamente. Mas vai ser preciso mais tempo para completar os relatórios toxicológicos.

 

O olhar de Barbara oscilou entre Lynley e Ardery.

 

Muito bem disse, lentamente. Estou a perceber. Efectivamente, se os relatórios toxicológicos vão demorar semanas até estarem concluídos, porque é que estamos a ser contactados agora?

 

Por causa do cadáver.

 

O cadáver?

 

Barbara pegou nas outras fotografias. Tinham sido tiradas num quarto de tecto baixo. O corpo de um homem jazia, na diagonal, sobre uma cama de latão. Estava deitado de barriga para baixo, parcialmente vestido com umas calças cinzentas, peúgas pretas e uma camisa azul-clara, cujas mangas tinham sido enroladas até um pouco acima dos cotovelos. O braço esquerdo amparava a cabeça sobre a almofada e o direito estava estendido na direcção da mesa-de-cabeceira, sobre a qual se encontrava um copo vazio e uma garrafa de Bushmills. Fora fotografado de todos os ângulos possíveis, tanto de perto como de longe. Barbara estudou os grandes planos.

 

Os olhos estavam quase totalmente fechados, com uma mancha branca apenas visível. A pele tinha uma coloração rosada, não uniforme. Quase vermelha na zona dos lábios e das faces, mais perto do rosa-pálido na têmpora que estava visível, na testa e no queixo. Uma fina linha de espuma aparecia na comissura do lábio. A boca estava igualmente tingida de rosa. Barbara examinou o rosto da vítima. Parecia-lhe vagamente familiar, mas não conseguia identificá-lo. Um político?, interrogou-se. Um actor de televisão?

 

Quem é ele? perguntou.

 

Kenneth Fleming.

 

Ergueu os olhos da fotografia, fitou Lynley e depois Ardery.

 

Não...?

 

Sim.

 

Tornou a segurar as fotografias e examinou o rosto mais de perto.

 

A comunicação social está ao corrente?

 

O superintendente da Criminal local estava à espera que o corpo fosse formalmente identificado respondeu a inspectora Ardery.

 

Virou o pulso e consultou um belo relógio em ouro.

 

Suponho que a identificação já tenha terminado há muito. Mas trata-se de uma mera formalidade, pois já tínhamos encontrado o bilhete de identidade de Mr. Fleming, no quarto. Dentro do bolso do seu casaco.

 

Mesmo assim disse Barbara, podia tratar-se de um erro, caso este tipo fosse suficientemente parecido com ele e alguém quisesse que as pessoas pensassem...

 

Lynley interrompeu-a, erguendo uma das mãos.

 

Pouco provável, Havers. A própria polícia local reconheceu-o.

 

Ah.

 

Tinha de admitir que qualquer pessoa que se interessasse por críquete não teria dificuldades em reconhecer Kenneth Fleming. Ele era o melhor jogador do país, uma espécie de lenda viva nos dois últimos anos. Fora escolhido para defender as cores da Inglaterra, pela primeira vez, aos trinta anos apenas. A sua ascensão não seguira o curso tradicional: nem através dos estabelecimentos de ensino secundário ou universitário, nem pela experiência acumulada por uma passagem pelos juniores ou pelos reservistas. Em vez disso, começara por pertencer a uma equipa fabril do East End, onde fora descoberto por um treinador já reformado do condado de Kent, que se oferecera para tomá-lo à sua guarda. Um longo período de treinos particulares. Um ponto em desfavor dele. Alguns iam ao ponto de falar de uma variante da síndroma da colher de prata.

 

A sua primeira aparição em campo, pela equipa de Inglaterra, terminara com um humilhante resultado nulo, no relvado do Lords, perante as tribunas praticamente cheias, quando um dos jogadores neozelandeses conseguira apanhar a sua primeira e única bola. O que constituiu um segundo ponto em seu desfavor.

 

Fleming abandonara o campo debaixo das vaias dos seus compatriotas, sofrendo a ignomínia de ter de passar em frente dos implacáveis e inesquecíveis membros do Marylebone Cricket Club que, como era hábito, se tinham instalado no pavilhão de tijolos dourados. E à sua passagem, ao ser assobiado, respondera com um gesto muito pouco digno de um desportista. O que, evidentemente, constituíra um terceiro ponto em seu desfavor.

 

Todas estas desvantagens não passaram despercebidas aos jornalistas e fizeram as delícias da imprensa sensacionalista. No espaço de uma semana, todos os adeptos de críquete do país se dividiram entre os que defendiam

 

1 Situado na zona norte de Londres, o campo tem o nome de quem o comprou- Thomas Lord. [N da T.}

 

que o pobre rapaz merecia uma segunda oportunidade e os que estavam dispostos a cortar-lhe os pés. Pouco inclinados a ceder às pressões da opinião pública sempre que estava em jogo um test-match,! os seleccionadores nacionais tinham optado pela primeira alternativa. Kenneth Fleming fora, então, convocado uma segunda vez, para um jogo disputado em Old Trafford. Ocupara a sua posição debaixo de um pesado silêncio de dúvida e apreensão. Quando terminou, tinha marcado cem pontos. Quando o lançador finalmente conseguiu eliminá-lo, tinha totalizado cento e vinte e cinco pontos para a Inglaterra. Nem uma só vez olhara para trás.

 

Greater Springburn chamou a divisão de Maidstone dizia Lynley. Maidstone indicou a inspectora Ardery com um movimento de cabeça decidiu entregar-nos o caso.

 

Ardery apressou-se a desmentir.

 

A decisão não foi minha, inspector, mas sim do meu superior hierárquico.

 

Não parecia nada satisfeita.

 

Só porque se trata de Fleming? perguntou Barbara. Imagino que estariam ansiosos por tomarem conta do caso sozinhos.

 

Eu preferiria que assim fosse, com efeito retorquiu Ardery. Infelizmente, os protagonistas desta história estão espalhados pelos quatro cantos de Londres.

 

Percebo. Política.

 

Exactamente.

 

Os três sabiam como funcionava o sistema. Em matéria de manutenção da ordem pública, Londres estava dividida em sectores policiais individuais. As regras de protocolo teriam exigido que a polícia do condado de Kent solicitasse autorização a cada comissário responsável por cada um dos sectores para conduzir um interrogatório ou uma entrevista dentro dos limites da sua jurisdição. A burocracia, os telefonemas e as grandes manobras políticas poderiam absorver tanto tempo como a investigação em si mesma. Era muito mais simples confiar o caso aos escalões superiores, isto é, à New Scotland Yard.

 

A inspectora Ardery chefiará a investigação no Kent disse Lynley.

 

Já começámos a trabalhar há algum tempo, inspector rectificou Ardery. A nossa equipa está no local desde a uma desta tarde.

 

Enquanto nós faremos a nossa parte do trabalho em Londres concluiu Lynley.

 

Barbara franziu o sobrolho perante a irregularidade da situação. No entanto, formulou a sua objecção com cuidado, consciente do desejo compreensível da inspectora Ardery em proteger o seu território.

 

1 Competição internacional que opõe a Inglaterra a um país da antiga Commonwealth, e que pode durar até cinco dias. [N. da T.]

 

Será que isso não vai baralhar um pouco as coisas, senhor? A mão esquerda que não sabe o que a direita está a fazer, os cegos guiando os surdos, se é que percebe onde quero chegar.

 

Não haverá problemas. A inspectora Ardery e eu coordenaremos a investigação.

 

A inspectora Ardery e eu. Ele formulara a declaração de forma descontraída e generosa, mas Barbara percebeu as implicações subjacentes tão claramente como se ele as tivesse pronunciado em voz alta. A própria Ardery quisera ocupar-se pessoalmente do caso. Os seus superiores, porém, haviam-lho retirado. Lynley e Havers deveriam, por isso, agir com prudência e passar-lhe a mão pelo pêlo, se quisessem contar com a máxima cooperação possível da equipa técnica sob o seu comando.

 

Oh! exclamou Barbara. Certo. Certo. Por onde começamos, então? Ardery levantou-se com um movimento suave. Barbara reparou que ela era muito alta. Quando Lynley se levantou, por sua vez, viu que ele era apenas dois centímetros mais alto do que ela.

 

Devem ter pormenores a discutir entre ambos, inspector disse Ardery. Duvido que precisem de mim. Escrevi o meu número no cabeçalho do relatório.

 

Com efeito.

 

Lynley procurou dentro da gaveta da sua secretária, de onde tirou um cartão que entregou a Ardery.

 

Ela enfiou-o na mala sem sequer o examinar.

 

Telefono-lhe amanhã de manhã. Nessa altura já devo ter informações do laboratório.

 

Óptimo.

 

Ele pegou no relatório que ela trouxera. Arrumou novamente as fotografias, sob os documentos. Colocou o relatório no centro do mata-borrão que, por sua vez, estava no meio do tampo da sua secretária. Era evidente que ele esperava que ela se despedisse e que ela aguardava que ele fizesse qualquer comentário antes que ela saísse. Encantado por poder trabalhar consigo teria encaixado na perfeição, mas isso teria estado igualmente longe da verdade.

 

Boa noite, então disse, por fim, a inspectora Ardery.

 

E acrescentou, com um sorriso deliberadamente divertido ao contemplar a forma como Lynley estava vestido:

 

Lamento ter estragado os seus planos para o fim-de-semana. Despediu-se de Barbara com um aceno de cabeça e com um simples

 

”Sargento” deixou-os a sós.

 

Os seus passos ressoaram vivamente enquanto abandonava o gabinete de Lynley e se dirigia para o elevador.

 

Acha que eles a embrulham em papel de seda, em Maidstone, e só a desembrulham em ocasiões especiais.

 

Acho que ela tem um trabalho duro numa profissão que é ainda mais dura.

 

Voltou para junto da sua cadeira e começou a examinar alguns papéis. Barbara lançou-lhe um olhar penetrante.

 

Meu Deus, ela agradou-lhe? É bem bonita e confesso que quando a vi, sentada à sua frente, disse para comigo que... Bom, adivinhou o que eu pensei, não foi? Mas gostou mesmo dela?

 

Ninguém me pede que goste dela disse Lynley. Tudo o que me pedem é que trabalhe com ela. E consigo também. Vamos a isso, então?

 

Estava a puxar dos galões, algo que raramente fazia. Barbara teve vontade de protestar, mas sabia que o facto de ele ter a mesma categoria de Ardery o levaria a apoiar esta última, caso isso viesse a revelar-se necessário. Era, pois, escusado discutir.

 

Vamos lá, então.

 

Fazendo alusão ao relatório, ele disse:

 

Temos vários factos interessantes. De acordo com o relatório preliminar, Fleming morreu na noite de quarta-feira ou ao princípio da manhã de quinta-feira. Neste momento, estima-se que terá sido entre a meia-noite e as três da manhã.

 

Leu uma passagem, sublinhando qualquer coisa a lápis.

 

Encontraram-no esta manhã... às onze menos um quarto, a hora a que a polícia de Greater Springburn chegou ao local e conseguiu entrar na casa.

 

E isso é interessante porquê?

 

Porque primeiro facto interessante entre quarta e sexta-feira ninguém participou o desaparecimento de Kenneth Fleming.

 

Talvez tivesse ido para fora durante alguns dias, sozinho.

 

Isso leva-nos ao segundo facto interessante. Ao escolher esta casa específica em Springburn, ele não procurava isolar-se. Havia uma mulher a morar na casa: Gabriella Patten.

 

E ela é importante?

 

É a mulher de Hugh Patten.

 

Quem é...?

 

O director de uma companhia chamada Powersource. É ela que está a patrocinar os jogos contra a Austrália, este Verão. E ela, Gabriella, a mulher dele, desapareceu. O carro dela, porém, continua na garagem da casa de campo. O que é que isso lhe sugere?

 

Temos um suspeito?

 

Muito possivelmente, diria eu.

 

Ou um rapto.

 

Ele agitou a mão para trás e para a frente, num gesto que significava, ”Tenho sérias dúvidas quanto a isso”. Continuou.

 

Terceiro facto interessante. Embora Fleming tivesse sido encontrado no quarto, o seu corpo, como viu, estava completamente vestido à excepção do casaco. E não havia sacos de viagem, nem no quarto nem no resto da casa.

 

Não fazia tenções de ficar? Pode ter sido atingido por um golpe que o deixou inconsciente e arrastado até ao quarto, a fim de dar a entender que decidira dormir uma pequena sesta.

 

E quarto facto interessante. A mulher e a família vivem na Isle of Dogs, mas o próprio Fleming vive em Kensington desde há dois anos.

 

Estão separados, certo? Nesse caso, porque é que este é o quarto facto interessante.

 

Porque ele vive, em Kensington, com a mulher que é a dona da casa do Kent.

 

Essa tal Gabriella Patten?

 

Não. Uma terceira mulher, chamada Lynley percorreu a página com o dedo Miriam Whitelaw.

 

Barbara apoiou o tornozelo sobre o joelho e entreteve-se com o atacador da sapatilha vermelha.

 

Um tipo ocupado, este Fleming, quando não joga críquete. Uma mulher na Isle of Dogs, uma quê... uma amante, em Kensington?

 

Parece que sim.

 

E a que estava em Kent, era o quê?

 

Justamente, essa é que é a questão disse Lynley. Levantou-se Vamos começar por aí.

 

                                           CAPÍTULO 4

A casa de Staffordshire Terrace alinhavam-se ao longo de Camden Hill, reflectindo o apogeu da arquitectura vitoriana na zona norte de Kensington. De estilo italianizante clássico, ornadas com balaustradas, janelas salientes, cornijas rendilhadas e outros ornamentos em estuque branco decorando o que, de outra forma, não passariam de estruturas sólidas e banais em tijolo cor de pimenta. Por trás das grades em ferro forjado preto, conferiam à rua estreita uma espécie de dignidade monótona, as fachadas distinguindo-se umas das outras apenas pela escolha das flores que enchiam os canteiros e floreiras.

 

No número 18, a escolha recaíra sobre um jasmineiro, que crescia, denso e indisciplinado, nas três floreiras da janela saliente. Ao contrário da maior parte das casas vizinhas, o número 18 não fora convertido em apartamentos. Em vez de uma bateria de campainhas havia apenas um único botão, que Lynley e Havers premiram cerca de vinte e cinco minutos depois de a inspectora Ardery os ter deixado.

 

Podre de chique, isto aqui. Com um movimento de cabeça, Havers indicou a rua. Contei três BMW, dois Range Rovers, um Jaguar e um Coupe de Ville.

 

Coupe de Ville? repetiu Lynley, examinando a rua que os candeeiros vitorianos tingiam de uma luz amarelada. Será que Chuck Berry mora na vizinhança?

 

E eu que julgava que nunca ouvia rockan roll observou Havers, sarcástica.

 

Há coisas que se sabem por osmose, sargento, pela exposição a uma experiência cultural comum que, insidiosamente, se torna parte do nosso conhecimento acumulado. É aquilo a que eu chamo assimilação subliminar.

 

Olhou para a vidraça que se abria por cima da porta de entrada. Atrás dela brilhava uma luz.

 

Chegou a telefonar-lhe?

 

Mesmo antes de sairmos da Yard.

 

E o que é que lhe disse?

 

Que queríamos falar com ela sobre a casa e o incêndio.

 

Nesse caso, onde...

 

Atrás da porta, uma voz firme perguntou:

 

Quem é?

 

Lynley identificou-se a si próprio e à sargento. Ouviram o som de um fecho de porta sendo corrido. A porta abriu-se, colocando-os frente a frente com uma mulher de cabelo grisalho, elegantemente vestida com um vestido azul-escuro e um casaco que chegava quase à bainha do vestido. Usava uns óculos, de armação grande, muito elegantes, que brilhavam sob a luz enquanto o seu olhar passeava, alternadamente, entre Lynley e Havers.

 

Viemos para falar com Miriam Whitelaw disse Lynley, exibindo o seu distintivo à desconhecida.

 

Sim disse ela. Bem sei. Sou eu. Entrem, por favor.

 

Lynley sentiu, mais do que viu, o olhar que a sargento Havers lhe lançou. Ele sabia que ela estava a fazer exactamente o mesmo que ele: tentando decidir se deviam, ambos, rever as suas conclusões prévias sobre a natureza das relações que uniam Kenneth Fleming à mulher com quem vivia. Miriam Whitelaw, ainda que sumptuosamente vestida e aprumada, parecia não estar longe dos setenta anos de idade, ou seja, era trinta anos mais velha do que o homem encontrado morto no Kent. Nestes tempos modernos, o termo viver com alguém tinha uma conotação inconfundível. Tanto Lynley como Havers se tinham deixado iludir por ela, sem pensar duas vezes. O que, reflectiu Lynley contrafeito, não era um início de investigação muito encorajador.

 

Miriam Whitelaw recuou e fez-lhes sinal para que entrassem para o vestíbulo.

 

Não querem subir até à sala de estar? E conduziu-os ao longo de um corredor até um lanço de escadas. Tenho a lareira acesa.

 

Uma lareira não seria de dispensar, pensou Lynley. Apesar do mês do ano, a atmosfera que reinava dentro da casa era quase glacial.

 

Lendo, aparentemente, os pensamentos dele, Miriam Whitelaw disse por cima dos ombros:

 

O meu falecido marido e eu mandámos instalar o aquecimento central depois de o meu pai ter sofrido uma trombose, no final dos anos sessenta, mas eu não recorro muito a ele. Suponho que sou mais parecida com o meu pai do que pensava. À excepção da electricidade, que ele finalmente acabou por aceitar pouco depois da Segunda Guerra Mundial, ele desejava que a casa permanecesse exactamente como os seus pais a haviam construído em mil oitocentos e setenta. Sentimentalismo, talvez. Mas são assim as coisas.

 

Lynley comprovou que os desejos do pai de Mrs. Whitelaw tinham sido amplamente respeitados. Entrar no vestíbulo do número 18 de Staffordshire Terrace era como penetrar num mundo petrificado forrado a papel de parede com desenhos de William Morris, inumeráveis gravuras penduradas na parede, tapetes persas, antigos candeeiros a gás cobertos por um globo azul, que tinham sido transformados em apliques, e um fogão de sala coberto por um tecido aveludado, no centro do qual pendia um gongo em bronze. Tudo aquilo era francamente bizarro.

 

A sensação de anacronismo crescia ainda mais à medida que subiam as escadas e passavam por paredes decoradas com gravuras desportivas já amarelecidas, e em seguida, depois de passarem pelo mezanino, por uma parede inteiramente preenchida por caricaturas emolduradas extraídas do Punch. Estas estavam organizadas por anos. As primeiras datavam de 1858.

 

Lynley ouviu Havers suspirar, ”Santo Deus”, enquanto olhava em volta. Viu-a estremecer e percebeu que esta reacção nada tinha que ver com o frio.

 

A divisão para onde Miriam Whitelaw os conduziu poderia ter sido o cenário perfeito para um drama de época televisivo ou a réplica de uma sala de visitas vitoriana saída de um museu. Havia duas lareiras em mármore, sobre as quais pendiam espelhos venezianos com molduras douradas. Em frente destes erguiam-se relógios em ouro falso, vasos etruscos e pequenas esculturas em bronze representando Mercúrio, Diana e lutadores nus, de músculos sinuosos. O lume ardia na mais distante das duas lareiras e foi para junto desta que Miriam Whitelaw se dirigiu. Ao passar diante de um piano de meia-cauda, a franja do xaile de seda que o cobria prendeu-se num dos anéis que ela usava. Parou para libertar-se, endireitou o xaile bem como uma das doze fotografias que, em molduras de prata, estavam alinhadas sobre o piano. Mais do que uma divisão, era a pista de uma corrida de obstáculos, semeada de pompons, veludos, arranjos de flores secas e banquetas baixas e minúsculas que colocavam os mais incautos em risco de queda iminente. Lynley interrogou-se, por instantes, se não haveria uma Miss visham escondida algures por ali.

 

Mais uma vez, Mrs. Whitelaw pareceu ler-lhe os pensamentos.

 

Uma pessoa acaba por se habituar a tudo isto, inspector. Era um lugar mágico quando eu era criança. Tantas bugigangas para ver, admirar e a propósito das quais eu podia inventar histórias. Quando herdei a casa, não consegui decidir-me a mudar fosse o que fosse. Sentem-se, por favor.

 

Ela própria escolheu uma banqueta forrada a veludo verde. Com um gesto convidou-os a sentarem-se nos cadeirões mais próximos dos carvões incandescentes da lareira, que libertavam um calor intenso. Os cadeirões eram fundos e forrados à medida dos desejos dos proprietários. Mais do que sentar-se, uma pessoa afundava-se neles. Perto da banqueta havia uma mesa em tripé sobre a qual havia uma garrafa e pequenos copos de pé alto. Um deles estava meio cheio. Miriam Whitelaw bebeu um gole e disse:

 

Tenho o hábito de beber um xerez depois do jantar. Um hábito pouco adequado, bem sei. Brandy ou conhaque seriam mais apropriados. Mas nunca gostei nem de um nem de outro. Posso oferecer-vos um xerez?

 

1 Velha solteirona amargurada, personagem de Grandes Esperanças, de Charles Dickens. (N. da T.)

 

Lynley recusou. Havers, que de bom grado teria aproveitado para tomar um Glenlivet, se lho tivessem oferecido, disse que não com a cabeça e mergulhou a mão no saco a tiracolo, tirando o seu bloco-notas.

 

Lynley explicou a Mrs. Whitelaw o modo como o caso iria ser tratado, sob a coordenação da polícia de Kent e de Londres. Informou-a do nome da inspectora Ardery e estendeu-lhe um dos cartões dela. Ela segurou-o, leu-o e virou-o, antes de o colocar ao lado do copo.

 

Desculpem-me disse ela. Não compreendo. O que é que entende por ”sob a coordenação”?

 

Não falou com a polícia de Kent? perguntou Lynley. Ou com os bombeiros?

 

Falei com os bombeiros, sim. Depois de almoço. Não consigo lembrar-me do nome da pessoa com quem falei. Ele telefonou-me para o escritório.

 

Onde é que trabalha?

 

Lynley viu que Havers começava a tomar notas.

 

Na fábrica. Em Stepney.

 

Ao ouvir estas palavras, Havers levantou a cabeça. Miriam Whitelaw não tinha propriamente ar, nem de operária fabril nem de frequentadora do bairro popular de Stepney.

 

Tipografia Whitelaw explicou ela. Sou a dona.

 

Levou a mão ao bolso de onde tirou um lenço, que guardou na palma da mão, crispando os dedos sobre o tecido.

 

Podem dizer-me o que se está a passar exactamente?

 

O que é que lhe disseram até agora? perguntou Lynley.

 

A pessoa que me telefonou, da parte dos bombeiros, disse-me que tinha havido um incêndio na casa de campo. Disse-me que se tinham visto forçados a arrombar a porta para entrar. Que tinham descoberto que o fogo estava extinto e que não havia muitos estragos, para além do fumo e da fuligem. Eu quis ir até lá e inspeccionar a casa pessoalmente, mas ele disse-me que a casa tinha sido selada e que eu não poderia entrar até que a investigação fosse dada por encerrada. Perguntei-lhe a que investigação se estava ele a referir. Por que razão era necessária uma investigação, se o fogo tinha sido extinto. Ele quis, então, saber quem estava a ficar na casa e eu disse-lhe quem era. Ele agradeceu e desligou.

 

Apertou ainda mais o lenço preso na palma da mão.

 

Telefonei-lhes por duas vezes durante a tarde. Ninguém me quis dizer nada. Tomaram nota do meu nome e número de telefone das duas vezes e depois de muitos agradecimentos disseram que me contactariam directamente quando tivessem mais novidades. É tudo. E agora, os senhores estão aqui e... Por favor, digam-me o que é que se passa.

 

Disse-lhes que uma mulher chamada Gabriella Patten estava a ficar na casa disse Lynley.

 

É verdade. A pessoa que me telefonou pediu-me que soletrasse o nome dela. Perguntou-me se mais alguém estava a morar na casa com ela. Respondi-lhes que não, tanto quanto sabia. Gabriella foi para lá em busca de isolamento e tranquilidade e nunca me ocorreu que pudesse convidar amigos para lá ficarem. Perguntei ao senhor com quem falei se Gabriella estava bem e ele respondeu que me contactaria logo que soubesse.

 

Ergueu a mão que segurava o lenço e tocou o colar que usava ao pescoço. Era em ouro, formado por pesadas cadeias. Usava uns brincos iguais ao colar.

 

Logo que soubesse disse ela, pensativa. Como poderia não saber? Ela ficou ferida, inspector? É por isso que estão aqui? Gabriella está hospitalizada?

 

O fogo começou na sala de jantar disse Lynley.

 

Isso, eu sei. Foi o tapete. Gabriella gosta de lareiras e se, por acaso, uma fagulha saltou da lareira enquanto ela estava noutra divisão...

 

Na verdade, aquilo que desencadeou o sinistro foi um cigarro escondido numa poltrona. Há algumas noites atrás.

 

Um cigarro?

 

Miriam Whitelaw baixou os olhos. A expressão do seu rosto alterou-se. Já não parecia tão compreensiva como parecera ao considerar a hipótese de a causa do incêndio ter sido uma infeliz fagulha que saltara da lareira.

 

Lynley inclinou-se para a frente.

 

Mrs. Whitelaw, estamos aqui para conversar consigo sobre Kenneth Fleming.

 

Sobre Ken? Porquê?

 

Porque, infelizmente, ocorreu uma morte na sua casa de campo. E nós temos de reunir informações que nos ajudem a descobrir o que se passou.

 

Ela ficou imóvel, inicialmente. Depois, apenas os seus dedos se moveram quando apertou ainda mais a bainha do lenço.

 

Uma morte? Mas os bombeiros não disseram nada. Perguntaram-me como se soletrava o nome dela. Disseram que me informariam logo que descobrissem alguma coisa... E agora, está a dizer-me que eles sabiam desde o início... respirou fundo. Mas porque é que não me disseram nada? Falaram comigo ao telefone e nem sequer se deram ao trabalho de me informar que alguém tinha morrido. Morrido. Na minha casa. E Gabriella... Oh, meu Deus, tenho de avisar Ken.

 

Nas palavras dela, Lynley ouviu ecos fugidios da esposa demente do barão de Inverness:! O quê, em nossa casa?

 

Houve uma vítima, mas não foi Gabriella Patten, Mrs. Whitelaw.

 

Não foi...?

 

1 Alusão a MacBeth, de William Shakespeare. [N da T.]

 

O seu olhar oscilou entre Lynley e Havers. Ficou hirta na cadeira, como se subitamente se apercebesse de que estava prestes a ser atingida por um golpe terrível.

 

Nesse caso, por que razão é que o senhor com quem falei queria saber se mais alguém vivia na casa com ela? Engoliu em seco. Quem? Digam-me, por favor.

 

Kenneth Fleming, infelizmente.

 

O seu rosto ficou petrificado. Em seguida assumiu uma expressão de perplexidade.

 

Ken? É impossível.

 

Temo que não seja. O corpo já foi formalmente identificado.

 

Por quem?

 

Pela...

 

Não disse ela. As cores abandonaram rapidamente o rosto dela. Houve um engano. Ken nem sequer está em Inglaterra.

 

A mulher dele identificou o corpo ao fim da tarde de hoje.

 

Não pode ser. Não pode ser. Porque é que não me perguntaram a mim...

 

Estendeu o braço na direcção de Lynley.

 

Ken não está aqui. Partiu em viagem com Jimmy. Estão a velejar. Foram velejar. Tiraram umas pequenas férias e... Estão a velejar e não me recordo. Onde é que ele...? Onde?

 

Fez um esforço para se pôr de pé, como se o facto de se levantar lhe permitisse reflectir. Olhou para a direita e para a esquerda. Os seus olhos rolaram perigosamente nas órbitas. Sucumbiu, derrubando a mesa de tripé e o copo que se encontrava sobre ela.

 

Santo Deus! exclamou Havers.

 

A garrafa de cristal e os copos espalharam-se em várias direcções. O álcool derramou-se sobre o tapete persa. O xerez exalava um odor adocicado a mel.

 

Lynley pusera-se de pé enquanto Mrs. Whitelaw se levantava, mas não fora suficientemente rápido para impedir que ela caísse. Precipitou-se, com prontidão, para o corpo estendido no chão. Tomou-lhe o pulso, tirou-lhe os óculos e levantou-lhe as pálpebras. Segurou-lhe na mão. A pele estava húmida e gelada.

 

Tente descobrir um cobertor por aí pediu Lynley. Os quartos de dormir devem ficar no andar de cima.

 

Ouviu Havers sair, apressadamente, da sala e subir as escadas. Libertou Mrs. Whitelaw dos sapatos e puxou um dos minúsculos tamboretes onde apoiou os pés dela. Tomou-lhe o pulso, novamente. Sentiu-o forte. A respiração estava normal. Despiu o smoking e cobriu-a com ele. Friccionou-lhe as mãos. No momento em que a sargento Havers entrou na sala, trazendo uma colcha verde-pálido, as pálpebras de Mrs. Whitelaw agitaram-se. A testa franziu-se, acentuando a ruga profunda que se abria entre as sobrancelhas.

 

Não foi nada tranquilizou-a Lynley. Teve um desmaio. Deixe-se ficar deitada.

 

Substituiu o casaco pela colcha, que Havers retirara de cima de uma cama. Endireitou a mesa enquanto a sargento levantava os copos e a garrafa e, com a ajuda de um pacote de lenços de papel, tentava ensopar pelo menos uma parte do xerez que desenhara sobre o tapete uma espécie de rochedo de Gibraltar.

 

Mrs. Whitelaw tremia debaixo da colcha. Os dedos de uma das mãos espreitaram por baixo da coberta e prenderam a bainha do tecido.

 

E se eu fosse buscar-lhe alguma coisa para beber? sugeriu Havers. Um pouco de água? Um uísque?

 

Os lábios de Mrs. Whitelaw crisparam-se com o esforço que fez para falar. Fixou o olhar em Lynley. Ele colocou uma mão sobre a dela e dirigiu-se a Havers:

 

Ela está bem, julgo eu.

 

E, dirigindo-se a Mrs. Whitelaw:

 

Deixe-se ficar deitada.

 

Ela fechou os olhos. A sua respiração tornou-se irregular e o seu ritmo traía mais uma batalha em prol do controlo emocional do que o indício de uma indisposição de ordem física.

 

Havers atirou mais carvão para a lareira. Mrs. Whitelaw levou uma das mãos à têmpora.

 

A minha cabeça murmurou ela. Oh, meu Deus, que latejar terrível.

 

Quer que chamemos o seu médico? Pode ter-se magoado seriamente ao cair.

 

Ela recusou com um fraco movimento de cabeça.

 

Vai e volta. São enxaquecas.

 

Abriu ainda mais os olhos marejados de lágrimas, num esforço aparente para impedir que estas lhe rolassem ao longo das faces.

 

Ken... ele sabia.

 

Sabia?

 

O que fazer.

 

Os lábios dela pareciam ressequidos. A pele tinha um aspecto gretado, como uma porcelana antiga que perdeu o verniz.

 

A minha cabeça. Ele sabia o que fazer. Conseguia sempre fazer desaparecer a dor.

 

Mas não esta, pensou Lynley.

 

Está sozinha aqui em casa, Mrs. Whitelaw? Ela assentiu com um movimento de cabeça.

 

Quer que telefonemos a alguém?

 

Os lábios dela moveram-se para formar a palavra não.

 

A sargento Havers pode ficar consigo, esta noite, se assim o desejar. A mão dela agitou a colcha num gesto de recusa.

 

Eu... já me sentirei... pestanejou vigorosamente, daqui a pouco... já me sentirei melhor disse ela com voz fraca. Peço desculpa. Lamento muito tudo isto. Foi o choque.

 

Não tem por que pedir desculpa. Nós compreendemos.

 

Aguardaram, envoltos num silêncio apenas quebrado pelo silvo do carvão que ardia na lareira e pelo tiquetaque dos vários relógios que havia na sala. Lynley sentia-se oprimido. Queria abrir de par em par as janelas de vidraças coloridas. Em vez disso, deixou-se ficar onde estava, uma mão pousada sobre o ombro de Mrs. Whitelaw.

 

Ela soergueu-se. A sargento Havers aproximou-se. Ajudou Lynley a sentar Mrs. Whitelaw e, depois, a pô-la de pé. Ela vacilou. Segurando-lhe os cotovelos, conduziram-na até uma das poltronas estofadas. Havers estendeu-lhe os óculos. Lynley apanhou o lenço que estava debaixo do banco da lareira e devolveu-lho. Aconchegou-lhe a colcha em torno dos ombros.

 

Ela aclarou a garganta e agradeceu com dignidade. Colocou os óculos e ajeitou a roupa.

 

Num tom hesitante, acrescentou:

 

Se não se importam... gostaria de recuperar também os meus sapatos.

 

Esperou até estar novamente calçada, antes de falar. Pressionou a têmpora com os dedos trémulos da mão direita, numa tentativa para fazer cessar o latejar que lhe fazia reverberar o crânio. Numa voz calma, perguntou:

 

Têm a certeza?

 

De que se trata de Fleming?

 

Se houve um incêndio, é possível que o corpo tenha ficado... Apertou os lábios com tanta força que os dentes ficaram marcados na pele. Pode ter havido um erro, não?

 

Está a esquecer-se de um pormenor. Não se tratou de um incêndio desse género disse Lynley. Ele não ficou queimado. O corpo encontrava-se apenas descolorido.

 

Vendo-a estremecer, apressou-se a acrescentar para a tranquilizar:

 

Efeitos do monóxido de carbono. E do fumo. A pele dele deve estar fortemente tingida de rosa. Mas não terá sido isso que terá impedido a mulher de o reconhecer.

 

Ninguém me informou disse ela, com uma voz apagada. Ninguém telefonou, sequer.

 

Em geral, a polícia começa por avisar primeiro a família. Depois, esta encarrega-se do resto.

 

A família repetiu ela. Sim, claro.

 

Lynley sentou-se no banco de lareira que ela ocupara antes, enquanto a sargento Havers retomava a poltrona inicial e abria o bloco-notas. Mrs. Whitelaw continuava muito pálida e Lynley perguntou a si mesmo se poderia continuar a interrogá-la por muito mais tempo.

 

Ela contemplava fixamente o desenho do tapete persa. Falava com voz lenta, como se rememorasse, cuidadosamente, cada facto antes de o enunciar.

 

Ken disse-me que iam... para a Grécia. Ia velejar para a Grécia durante alguns dias. Com o filho.

 

Referiu-se a Jimmy há pouco.

 

Sim, o filho. Jimmy. Iam festejar o aniversário dele. Era por isso que Ken ia faltar a algumas sessões de treino. Ele tinha... eles tinham voo marcado, com partida de Gatwick.

 

Quando?

 

Quarta-feira à noite. Há meses que preparava esta viagem. Era a prenda de aniversário de Jimmy. Iam viajar os dois sozinhos.

 

Tem a certeza no que diz respeito à viagem? Tem a certeza que ele fazia tenções de partir na quarta-feira à noite.

 

Ajudei-o a levar as bagagens até ao carro.

 

Um táxi?

 

Não, o carro dele. Ofereci-me para levá-lo ao aeroporto, mas ele tinha o carro há pouco tempo. E todos os pretextos eram bons para conduzi-lo. Iria buscar Jimmy e depois partiriam. Só os dois. Num veleiro. Iam fazer o circuito das ilhas. Seriam apenas alguns dias, pois o primeiro jogo já está muito próximo.

 

Os olhos encheram-se-lhe de lágrimas. Passou os lenços sob os olhos e aclarou a garganta.

 

Perdoem-me.

 

Não tem importância.

 

Lynley esperou alguns instantes até que ela recuperasse o sangue-frio.

 

Que tipo de carro tinha ele?

 

Um Lotus.

 

De que modelo?

 

Não sei. Antigo. Recuperado. Baixo, faróis redondos.

 

Um Lotus-7?

 

Verde.

 

Não foi encontrado nenhum Lotus na garagem da casa de campo. Somente um Aston Martin.

 

Deve ser o de Gabriella disse ela.

 

Pressionou o lenço sobre o lábio superior e falou sem descobrir a boca. E, mais uma vez, as lágrimas lhe turvaram os olhos.

 

Não consigo acreditar que ele esteja morto. Ele estava aqui na quarta-feira. Jantámos juntos, cedo. Conversámos sobre a fábrica. Sobre os jogos deste Verão. Sobre o lançador australiano, que iria dar muito que fazer a qualquer jogador inglês. Ken estava preocupado com a possibilidade de vir a ser, ou não, seleccionado para jogar pela selecção de Inglaterra. Sente-se sempre inquieto quando os seleccionadores começam a escolher os jogadores. Eu nunca me canso de lhe dizer que os receios dele são ridículos. É um excelente jogador. Sempre em forma. Que motivos teria para recear não ser seleccionado? Ele é tão... o Presente. Céus, estou a falar no Presente. É porque ele foi... era... Perdoem-me, peço-vos. Por favor. Tenho de me recompor. Não posso deixar-me abater. Não posso. Mais tarde. Posso ceder mais tarde. Tenho de tratar de certas coisas, agora.

 

Lynley deitou o pouco xerez que restava na garrafa de cristal num copo e ofereceu-lho, segurando-lhe na mão firmemente. Ela engoliu o líquido como se se tratasse de um medicamento.

 

Jimmy não estava na casa de campo? perguntou ela.

 

Fleming estava sozinho.

 

Ken estava sozinho.

 

Desviou o olhar para o lume que ardia na lareira. Lynley viu-a engolir em seco. Os dedos dela descontraíram-se em torno do copo.

 

O que é que se passa? perguntou ele.

 

Nada. Nada de importante.

 

Permita-me que seja eu a avaliar isso, Mrs. Whitelaw. Passou a língua pelos lábios.

 

Jimmy deveria estar à espera que o pai passasse para o apanhar, na quarta-feira. Se Ken não apareceu, ele teria telefonado para cá.

 

E não o fez?

 

Não.

 

Ficou em casa depois de Fleming ter saído, na quarta-feira à noite? Não se ausentou? Nem sequer por alguns instantes? Será possível que não tenha atendido o telefonema dele?

 

Eu estava cá. Ninguém telefonou os olhos dela dilataram-se ligeiramente quando ela pronunciou esta última palavra. Não, não é verdade.

 

Alguém telefonou, então?

 

Mais cedo. Mesmo antes do jantar. Era para Ken, não para mim.

 

Sabe quem telefonou?

 

Guy Mollison.

 

Capitão da equipa da Inglaterra, pensou Lynley. Não havia nada de estranho no facto de ele telefonar a Fleming. O sentido de oportunidade, no entanto, era interessante.

 

Ouviu o que disse Fleming?

 

Atendi o telefone na cozinha. Ken falou na extensão da saleta.

 

Acompanhou a conversa?

 

Ela desviou os olhos da lareira para olhar para ele. Parecia demasiado exausta para se sentir ofendida com a pergunta. Apesar de tudo, foi num tom de voz prudente que respondeu:

 

Claro que não.

 

Nem sequer o tempo suficiente para se certificar de que Fleming tinha atendido a chamada? Seria normal que o fizesse.

 

Ouvi a voz de Ken. E depois a de Guy. É tudo.

 

E de que é que falaram, lembra-se?

 

Não tenho a certeza. Qualquer coisa como... Ken cumprimentou Guy, e este fez referência a uma discussão.

 

Um desentendimento entre eles?

 

Ele disse algo sobre querer recuperar as Cinzas. Algo do género, ”Queremos recuperar as malditas Cinzas, não queremos? Nesse caso, porque é que não esquecemos toda esta confusão e metemos mãos à obra?” Referia-se ao jogo contra a Austrália. Nada mais.

 

E a discussão?

 

Ignoro o que se terá passado. Ken não me contou nada. Parti do princípio que estava relacionado com o críquete, talvez até com a influência de Guy junto dos seleccionadores.

 

Quanto tempo durou a conversa?

 

Ele entrou na cozinha cinco, talvez dez minutos, mais tarde.

 

E não se referiu ao assunto, nessa altura? Ou durante o jantar?

 

Nada.

 

Achou-o diferente depois da conversa com Mollison? Mais abatido, talvez? Mais agitado, mais pensativo?

 

De modo nenhum.

 

E nestes últimos dias? Na semana passada? Pareceu-lhe diferente?

 

Diferente? Não. Estava exactamente como sempre fora. Levantou a cabeça.

 

Porquê? Onde quer chegar, inspector?

 

Lynley reflectiu sobre qual seria a melhor resposta para esta pergunta. A polícia estava em vantagem naquele momento, já que possuía informações que só o incendiário conhecia.

 

Existem algumas irregularidades no que diz respeito ao incêndio na sua casa de campo disse ele, cauteloso.

 

Mencionou um cigarro? Numa das poltronas?

 

Ele andava deprimido nas últimas semanas?

 

Deprimido? Claro que não. Preocupado, sim, com a selecção para a equipa nacional. Talvez um pouco contrariado, também, por ir deixar a Inglaterra na companhia do filho em pleno período de treinos. Mas nada mais do que isso. Que razões teria ele para se sentir deprimido?

 

Ele tinha problemas pessoais? Familiares? Sabemos que a mulher e os filhos já não vivem com ele. Havia problemas entre eles?

 

Os habituais, nada mais. Jimmy, o filho mais velho, era uma fonte de preocupações para Ken; mas qual é o adolescente de dezasseis anos que o não é?

 

Acha que Fleming lhe teria deixado um bilhete?

 

Um bilhete? Porquê? Que tipo de bilhete? Lynley inclinou-se para a frente.

 

Mrs. Whitelaw, temos de eliminar a possibilidade de suicídio, antes de orientar a nossa investigação noutra direcção.

 

Ela olhou-o fixamente. Era evidente que tentava encontrar uma saída para o marasmo emocional provocado, primeiro, pela notícia da morte e, agora, pela eventualidade do seu suicídio.

 

Podemos ver o quarto dele?

 

Ela engoliu em seco, mas não respondeu.

 

Considere o meu pedido como uma formalidade necessária, Mrs. Whitelaw.

 

Com movimentos vacilantes, ela levantou-se, apoiando uma das mãos no braço da cadeira.

 

Sigam-me, então, por favor.

 

E conduziu-os para fora da sala, na direcção das escadas.

 

O quarto de Kenneth Fleming ficava no segundo andar e dava para o jardim das traseiras. Era ocupado, em grande parte, por uma enorme cama de latão. Em frente à cama, um imenso leque oriental escondia quase por completo a lareira. Enquanto Mrs. Whitelaw se sentava na única cadeira que havia no quarto um cadeirão de orelhas Lynley aproximou-se de uma cómoda colocada sob a janela e Havers abriu um armário com portas espelhadas.

 

São os filhos dele? perguntou Lynley.

 

Pegou nas fotografias que estavam sobre a cómoda. Eram nove ao todo, instantâneos representando bebés e crianças, emoldurados ao acaso.

 

Ele tem três filhos retorquiu Mrs. Whitelaw. Cresceram muito desde que essas fotografias foram tiradas.

 

Não há fotografias recentes?

 

Ken queria tirar algumas, mas Jimmy não se mostrava muito disposto a isso sempre que Ken aparecia de máquina em punho. E quando Jimmy se recusa a fazer qualquer coisa, o irmão e a irmã imitam-no.

 

Existia algum motivo de fricção entre Fleming e o filho mais velho?

 

Jimmy tem dezasseis anos repetiu ela. É uma idade difícil. Lynley sentiu-se incapaz de discordar. No seu caso pessoal, o ano do seu décimo sexto aniversário marcara o início de uma série de graves problemas relacionais com os seus pais, que apenas tinham tido fim quando ele fizera trinta e dois anos.

 

Para além das fotografias, nada mais havia sobre a cómoda. Nada, a não ser sabonete e uma toalha dobrada sobre o lavatório. Nem um único objecto colocado sobre as almofadas. E sobre a mesa-de-cabeceira, um exemplar já antigo de Waterland, áe Graham Swift. Lynley folheou o romance. Nem um pedaço de papel se escapou das suas páginas.

 

Começou a examinar o conteúdo da cómoda. Apercebeu-se de que Fleming era um verdadeiro maníaco da organização. Todas as suas camisolas estavam dobradas de forma idêntica. As peúgas estavam arrumadas por cores. No extremo oposto do quarto, a sargento Havers parecia chegar às mesmas conclusões depois de inspeccionar as camisas cuidadosamente penduradas nos respectivos cabides, seguidas pelas calças, casacos e sapatos, alinhados por baixo das roupas.

 

Macacos me mordam murmurou, nem um cabelo fora do lugar. Eles fazem isso, às vezes, não fazem, senhor?

 

Fazem o quê? perguntou Miriam Whitelaw. Havers parecia estar arrependida de ter falado.

 

Os suicidas explicou Lynley. Geralmente, começam por deixar tudo em ordem.

 

Geralmente deixam também um bilhete, não é verdade? perguntou Mrs. Whitelaw.

 

Nem sempre. Sobretudo quando querem que o suicídio pareça um acidente.

 

Mas foi um acidente disse Mrs. Whitelaw. Só pode ter sido um acidente. Ken não fumava. Se queria matar-se e fazer com que a sua morte parecesse um acidente, por que razão usaria um cigarro?

 

Para lançar as suspeitas sobre outra pessoa, pensou Lynley. Para fazer com que parecesse um homicídio. Respondeu à pergunta dela com outra pergunta.

 

Que pode dizer-nos sobre Gabriella Patten?

 

Mrs. Whitelaw não respondeu imediatamente. Parecia estar a meditar nas razões que teriam levado Lynley a fazer-lhe esta pergunta logo depois de ela ter colocado a sua.

 

O que é que quer saber?

 

Se ela é fumadora, por exemplo.

 

Mrs. Whitelaw olhou para a janela, nas vidraças da qual se reflectiam as três silhuetas. Parecia estar a tentar imaginar Gabriella Patten com e sem cigarro.

 

Ela nunca fumou cá em casa disse, por fim. Porque eu não fumo e Ken também não. Fora isso, não sei. É provável que fume.

 

Que tipo de relação mantinha ela com Fleming?

 

Eram amantes.

 

E quando Lynley ergueu as sobrancelhas, acrescentou:

 

Não era público, mas eu sabia. Conversávamos sobre o assunto todas as noites, Ken e eu, como sempre fizéramos desde que o problema começara.

 

O problema?

 

Ele estava apaixonado e queria casar com ela.

- E ela?

 

Por vezes dizia que também queria casar com ele.

 

Por vezes?

 

Era a sua maneira de ser. Gostava de o manter em suspenso. Saíam juntos desde... Levou a mão ao colar, enquanto reflectia. A ligação entre ambos começou no Outono passado. Ele soube logo que queria casar com ela. Ela não estava tão certa.

 

Ela é casada, segundo creio.

 

Separada.

 

Já o era quando eles começaram a sair juntos?

 

Não, nessa altura, não.

 

E agora?

 

Oficialmente? perguntou ela.

 

E legalmente.

 

Tanto quanto sei, ela tinha contactado os seus advogados, no sentido de dar início ao processo de divórcio. E o marido tinha feito o mesmo. Segundo Ken, tinham-se encontrado cinco ou seis vezes, mas não tinham chegado a acordo sobre fosse o que fosse.

 

Mas o divórcio iria acabar por acontecer?

 

Provavelmente, mas não posso garanti-lo.

 

Qual era a opinião de Fleming?

 

Ken tinha, por vezes, a impressão de que ela estava a tentar ganhar tempo. Mas ele era assim... sempre impaciente para resolver a sua vida o mais depressa possível. Era sempre assim quando se decidia por alguma coisa.

 

E a vida dele? Estava resolvida?

 

Finalmente, tinha falado com Jean sobre o divórcio, se é a isso que se refere.

 

Quando?

 

Mais ou menos na mesma altura em que Gabriella deixou o marido. No início do mês passado.

 

E a mulher estava de acordo com o divórcio?

 

Viviam separados há quatro anos, inspector. O consentimento dela não iria alterar nada, pois não?

 

Seja como for, ela estava de acordo?

 

Mrs. Whitelaw hesitou e agitou-se no cadeirão. Uma mola rangeu.

 

Jean amava Ken. Queria-o de volta. Este sentimento nunca se alterou, mesmo depois de ele ter saído de casa há anos. Não seria, por isso, a palavra divórcio que a teria feito mudar de ideias.

 

E Mr. Patten? O que é que nos pode dizer sobre ele? Qual era a posição dele em tudo isto? Ele estava a par da relação que a mulher mantinha com Fleming?

 

Duvido. Eles esforçavam-se por ser discretos.

 

Mas o facto de ela estar a morar na sua casa interveio a sargento Havers, afastando-se do armário que examinava metodicamente, era uma forma de tornar pública a situação, não acha?

 

Tanto quanto sei, Gabriella não revelou a ninguém o sítio onde se encontrava. Ela precisava de um sítio para viver depois de ter deixado Hugh. Ken perguntou-me se ela podia utilizar a casa do Kent. Eu concordei.

 

Foi a sua forma de dar o seu consentimento tácito à relação de ambos? perguntou Lynley.

 

Ken não pediu o meu consentimento.

 

E se o tivesse feito?

 

Ele tem sido como um filho para mim, ao longo de todos estes anos. Queria vê-lo feliz. Se ele acreditava que o casamento com Gabriella Patten era a fonte da sua felicidade, eu nada tinha a opor.

 

Uma resposta interessante, pensou Lynley. A palavra acreditava escondia uma infinidade de significados.

 

Mrs. Patten desapareceu disse ele. Tem ideia de onde ela possa estar?

 

Nenhuma, a não ser que tenha voltado para Hugh. Ameaçava fazê-lo sempre que ela e Ken discutiam. Pode ser que, por uma vez, tenha sido fiel às suas palavras.

 

Eles tinham discutido?

 

Duvido. Quando isso acontecia, Ken e eu geralmente conversávamos sobre o assunto.

 

Eles discutiam com frequência?

 

Gabriella não gosta de ser contrariada. Ken também não. Por vezes, tinham dificuldade em chegar a um consenso. É tudo.

 

Pareceu dar-se conta do rumo que as perguntas estavam a tomar, pois acrescentou:

 

Francamente, não estão a pensar que Gabriella... Isso é altamente improvável, inspector.

 

Quem é que sabia que ela estava a morar na casa de campo, para além de si e de Fleming?

 

Os vizinhos, naturalmente. O carteiro. O leiteiro. Os habitantes de Lesser Springburn, se ela frequentasse a aldeia.

 

Não, quero dizer aqui, em Londres.

 

Ninguém respondeu ela.

 

Para além de si.

 

O rosto dela era grave, mas a observação de Lynley não pareceu ofendê-la.

 

Exacto confirmou ela, ninguém, para além de mim. E de Ken. O seu olhar cruzou-se com o de Lynley, como se estivesse à espera que ele a acusasse de alguma coisa. Lynley ficou calado. Ela afirmara que Kenneth Fleming era como um filho para ela. Interrogou-se sobre a exactidão dessas palavras.

 

Encontrei qualquer coisa disse a sargento Havers.

 

Abriu uma pequena carteira que descobrira dentro do bolso de um dos casacos.

 

Bilhetes de avião disse ela e ergueu os olhos. Para a Grécia.

 

Têm data?

 

Havers virou-os para a luz, franzindo a testa para melhor decifrar a caligrafia.

 

Aqui. Sim. São para... fez um rápido cálculo mental, quarta-feira passada.

 

Ele deve ter-se esquecido deles disse Mrs. Whitelaw.

 

Ou então, nunca fez tenções de os levar.

 

Mas as malas, inspector notou Mrs. Whitelaw. Ele tinha as malas com ele. Vi-o arrumá-las. Ajudei-o a carregar as coisas até ao carro. Quarta-feira. Quarta-feira à noite.

 

Pensativa, Havers batia suavemente com os bilhetes na palma da mão.

 

Pode ter mudado de ideias. Adiado a viagem. Atrasado a partida. Isso explicaria por que motivo o filho não telefonou quando Fleming não apareceu para ir buscá-lo.

 

Mas não explica por que razão fez as malas como se fizesse tenções de partir insistiu Mrs. Whitelaw. Nem por que motivo me disse, ”Escrevo-te um postal de Mykonos”, antes de se ir embora.

 

Isso é fácil disse Havers. Por razões que eu desconheço, ele queria que pensasse que ia, de facto, para a Grécia.

 

Ou talvez não quisesse que pensasse que passaria primeiro pelo Kent acrescentou Lynley.

 

Esperou enquanto Mrs. Whitelaw fazia um esforço para assimilar estes dados. A prova de que se tratava, de facto, de um esforço para ela era ainda mais visível na tristeza que obrigou o seu olhar a vacilar. Tentou, sem sucesso, adoptar uma expressão que lhes comunicasse que não estava de modo nenhum surpreendida por saber que Kenneth Fleming lhe mentira.

 

Como um filho, pensou Lynley. Perguntou a si próprio que impacto esta mentira poderia ter sobre Mrs. Whitelaw.

 

Quando os barcos passam, sinto a nossa lancha oscilar ligeiramente. Chris diz-me que é um efeito da minha imaginação, que aqueles barcos não deixam praticamente esteira nenhuma e que a nossa lancha, que é praticamente tão grande como uma chata, não se mexe nem um bocadinho. No entanto, juro que sou capaz de sentir a oscilação da água. E quando estou deitada no meu quarto, cortinas corridas, tenho a impressão de estar no interior de um ventre.

 

Mais abaixo, na direcção de Regent’s Park, os barcos são todos de pequeno porte. Estão pintados com cores vivas e alinhados, como se fossem carruagens, em ambos os lados do canal. Os turistas que se dirigem para Regent’s Park ou Camden Lock fotografam-nos. Provavelmente, tentam imaginar como é viver numa lancha em plena cidade. Provavelmente, pensam que nos esquecemos por completo de que estamos numa cidade.

 

A nossa lancha não é muito fotografada. Chris construiu-a de forma que fosse funcional, não decorativa, pelo que, do ponto de vista estético, não é nada de extraordinário; mas é uma boa casa. Passo a maior parte do meu tempo na cabina, observando Chris enquanto ele desenha os esboços para os seus moldes, e tomo conta dos cães.

 

Chris ainda não voltou do passeio. Eu sabia que ele ficaria fora muito tempo. Se por acaso tiver ido até ao parque com os cães, é provável que só regresse daqui a muito tempo. Nesse caso, porém, é provável que traga o jantar. Infelizmente, será tandori. Há-de esquecer-se de que não gosto de comida indiana. Não o censuro por isso. As suas preocupações são outras.

 

E as minhas também.

 

Não posso evitar recordar o seu rosto. Em tempos, isso ter-me-ia deixado furiosa a ideia de que um tipo que eu não conhecia nem mais gordo nem mais magro tivesse o desplante de exigir que eu tivesse princípios, santo Deus. Curiosamente, porém, este pedido nunca explicitado proporcionou-me uma estranha sensação de paz. Chris diria que isso se deve ao facto de eu ter, finalmente, tomado uma decisão e de estar a manter-me fiel a ela. Talvez tenha razão. Sobretudo, não julguem que este lavar de roupa suja em público é algo que não me repugna. Mas já vi o rosto dele tantas vezes ele continua a perseguir-me de tal maneira! que acabei por reconhecer as minhas responsabilidades. É por isso que tenho de explicar o como e o porquê.

 

É que, eu fui uma enorme desilusão para os meus pais, embora a pessoa que fui e aquilo que fiz tivesse afectado muito mais a minha mãe do que o meu pai. Digamos que a minha mãe ocultava menos as suas reacções. Baptizou-me de Uma Enorme Desilusão e decidiu lavar as suas mãos no que a mim dizia respeito. E lidou com as contrariedades que eu lhe causava da forma habitual: distraindo-se.

 

Perceberam o meu azedume, não foi? Provavelmente, não acreditarão em mim, se vos disser que já pouco resta dele agora. Mas não era assim, naquela época. Toda eu era azedume. Passara a minha infância vendo-a correr de uma reunião de beneficência para outra, ouvindo-a tecer rasgados elogios aos méritos dos seus alunos do nono ano, pobres mas dotados, tentando aumentar o seu interesse por mim de várias maneiras, todas elas incluídas na categoria, ”Olivia tornou a fazer das suas”. O que era, de facto, verdade. Aos vinte anos, era tão hostil como um porco-espinho e quase tão atraente. Richie Brewster foi a estratégia que descobri para comunicar à minha mãe o meu descontentamento em relação a ela. Na época, porém, não me apercebi disso. O que vi foi amor.

 

Conheci Richie numa sexta-feira à noite, no Soho. Ele tocava saxofone num clube chamado Julip’s. Está fechado, hoje, mas tenho a certeza de que se lembram dele. Noventa metros quadrados de fumo e corpos reluzentes de suor numa cave de Greek Street. Naqueles tempos, as luzes eram azuis, algo que estava muito em voga apesar de toda a gente ficar com ar de um viciado em heroína desesperado por uma dose. De tempos a tempos, um dos membros menos importantes da família real abrilhantava o espaço com a sua presença, perseguido pelos inevitáveis paparazzi. Actores, pintores e escritores frequentavam igualmente o local. Era o sítio ideal para quem quisesse ver e ser visto.

 

Eu não estava interessada em nenhuma destas hipóteses. Estava com algumas amigas. Tínhamos vindo da universidade para assistir a um concerto em Earl’s Court. Éramos quatro, tínhamos vinte anos e queríamos descomprimir um pouco antes dos exames.

 

Fomos parar ao Julip’s por acaso. Uma multidão enchia o passeio, à espera de entrar e nós juntámo-nos a ela para ver o que se passava no interior. Não demorámos muito tempo a descobrir que meia dúzia de charros passavam de boca em boca. E aproveitámo-los.

 

Hoje em dia, para mim, fumar canabis é como ingerir veneno. Quando o futuro me parece negro, fumo e deixo-me descolar. Naquela época, porém, era apenas o passaporte para uma noite bem passada. Adorava fumar. Ao fim de algumas baforadas, tinha a impressão de ser uma pessoa completamente diferente, Liv Whitelaw, a fora-da-lei, destemida e capaz de chocar toda a gente. Fui eu, portanto, quem descobriu a proveniência da erva: três tipos de Gales, estudantes de medicina, que tinham vindo ouvir música, beber uns copos, fumar uns charros e conhecer umas miúdas. A música, o álcool e a droga já eles tinham conseguido. Quando nos conheceram, tiveram acesso ao resto. Havia, porém, um homem a menos. E a não ser que um dos tipos estivesse disposto a acumular, uma das raparigas ver-se-ia forçada a abdicar da sobremesa. Eu nunca tivera muito jeito para o jogo da sedução. Assim, parti do princípio que seria eu a perdedora.

 

De qualquer maneira, nenhum dos rapazes me atraía. Dois deles eram demasiado baixos. E o terceiro tinha um hálito pestilento. As minhas amigas bem podiam ficar com eles.

 

Depois de termos entrado no clube, eles começaram a acariciar-se seriamente na pista de dança. Uma vez que esse era o comportamento habitual no Julip’s, ninguém lhes prestou muita atenção. Quanto a mim, prestava atenção à banda.

 

Duas das minhas amigas já tinham deixado o clube, dizendo, ”Vemo-nos na faculdade, Liv”. Uma forma de me dar a entender que não valia a pena esperar por elas. Foi, então, que a banda fez uma pausa. Recostei-me na cadeira e dispus-me a acender um cigarro. Richie Brewster ofereceu-me lume.

 

Como tudo me parece lastimável, hoje, o instante em que o isqueiro cuspiu a sua chama a escassos centímetros do meu rosto, iluminando as feições dele. Mas Richie tinha visto todos os velhos filmes a preto e branco e via-se a si mesmo como uma combinação de Humphrey Bogart com David Niven.

 

Importa-se que lhe faça companhia? perguntou ele. Liv Whitelaw, a fora-da-lei respondeu:

 

Como queira.

 

E tratei imediatamente de adoptar uma expressão facial que traduzisse o mais insondável dos tédios. Tanto quanto me era dado ver, Richie era velho, um homem que há muito passara dos quarenta, talvez estivesse até perto dos cinquenta. Tinha a pele flácida à altura do maxilar e papos debaixo dos olhos. Em resumo, não me interessava.

 

Por que razão, então, saí com ele naquela noite depois de a banda ter acabado de tocar e de o Julip’s ter encerrado as suas portas? Podia dizer-vos que o último comboio para Cambridge já tinha partido e que eu não tinha onde ficar, mas a verdade é que poderia ter ido para casa, em Kensington. Em vez disso, quando Richie guardou o saxofone, acendeu dois cigarros, oferecendo-me um e convidando-me para ir tomar um copo com ele, disse para mim própria que estava perante uma boa oportunidade para me divertir e instruir.

 

Está bem, porque não?

 

Liv Whitelaw, the Outlaw, no original. [N. da T.]

 

Uma réplica que mudou o rumo da minha existência.

 

Fomos para Bayswater, de táxi. Richie disse ao motorista:

 

Para o Commodore, em Queensway.

 

Em seguida, pôs a mão na minha coxa e apertou-a ligeiramente.

 

Toda esta actuação parecia tão ilícita e digna de um adulto. Uma troca de dinheiro na recepção do hotel, duas garrafas na mão, uma viagem de elevador até ao quarto, chave na fechadura. Durante todo o tempo, Richie não parava de olhar na minha direcção e eu respondia-lhe com sorrisos conspira tórios. Eu era Liv Whitelaw, a fora-da-lei, um animal sexual, uma mulher que tinha um homem à sua mercê, pálpebras semicerradas e seios sugestivamente espetados. Que imbecil, meu Deus!

 

Richie retirou o plástico que envolvia os copos colocados sobre uma cómoda pouco firme. Ingeriu, rapidamente, três doses pequenas de vodka. Serviu-se de um quarto, mais generoso, e bebeu-o de um trago antes de me preparar um gin. Prendeu as garrafas entre os dedos de uma mão e levou-as, juntamente com o vodka que estava a beber, até uma mesa redonda colocada entre as duas cadeiras que havia no quarto. Estas eram em vinil verde-ervilha, e o quebra-luz rosa em forma de lanterna chinesa, que cobria a lâmpada do tecto, emprestava-lhes uma tonalidade que fazia lembrar a cor de folhas de roseira apodrecidas. Richie sentou-se, acendeu um cigarro e começou a falar.

 

Música, arte, teatro, viagens, livros e cinema. Ainda consigo recordar os temas escolhidos. Eu escutava-o, siderada pela sua erudição. Mal conseguia dizer uma palavra. Mais tarde viria a descobrir que silêncio e uma expressão atenta era tudo o que ele esperava de mim. Naquele momento, porém, achava que era fantástico estar na companhia de um homem que, de facto, sabia como Abrir o Seu Coração a Uma Mulher.

 

O que eu não sabia é que, para Richie Brewster, o falatório era o equivalente aos preliminares. Acariciar o corpo de uma mulher era algo que não lhe interessava. O que o excitava era acariciar o ar com as suas palavras. Naquela noite, uma vez alcançado o ponto de rebuçado, ergueu-se da cadeira, arrancou-me àquela onde eu estava sentada, enterrou a língua na minha boca, baixou o fecho das calças e expôs a sua masculinidade. Colocou a minha mão em volta do pénis enquanto baixava os meus jeans e enfiava dois dedos para ver se eu estava pronta. Fez-me recuar até à cama. Sorriu e disse ”Oh, sim”, com uma expressão compenetrada, e despiu as calças. Não tinha cuecas. Mais tarde explicou-me que nunca usava roupa interior, só atrapalhava. Libertou-me dos jeans e das cuecas, fazendo-os deslizar ao longo de uma das minhas pernas. ”Assim está bem, amorzinho”, disse ele, completamente a despropósito. Agarrou-me as nádegas com as duas mãos, ergueu-me as ancas e penetrou-me.

 

Movia-se com uma energia enorme. Puxou as minhas pernas e enrolou-as à volta da cintura. Prendeu-me os cabelos entre os dedos. Arfou, gemeu e suspirou ao meu ouvido. Disse Jesus e Meu Deus uma boa centena de vezes. E, ao ejacular, começou a gritar, ”Liv, Liv, Liv”.

 

Em seguida, foi para a casa de banho. Ouvi água a correr durante alguns momentos. Ele tornou a aparecer, vacilando ligeiramente, com uma toalha que atirou na minha direcção, acrescentando com um sorriso: ”Ficas sempre assim tão molhada?” Tomei a observação como um elogio. Dirigiu-se à cómoda e serviu uma bebida a cada um.

 

Santo Deus, como me sinto bem.

 

Saltou novamente para a cama, onde me acariciou o pescoço, murmurando:

 

És uma tipa e tanto. Uma tipa e tanto. Há anos que não gozava desta maneira.

 

Que sensação de poder me invadiu naquele momento! As experiências sexuais que tivera até aí pareceram-me totalmente insignificantes. Até àquela noite, no Commodore, os meus encontros não tinham passado de suadas apalpadelas com rapazes, crianças que ignoravam tudo sobre a arte do Amor.

 

Richie tocou-me no cabelo. Era castanho-escuro nessa época, não louro como agora, e longo e liso como as baquetas de uma bateria. Segurou uma madeixa entre os dedos, sussurrando: ”Umm. É macio.” Aproximou o copo de gin dos meus lábios. Bocejou. Coçou a cabeça. Depois, disse:

 

Merda, tenho a impressão que te conheço há anos.

 

E foi nesse momento que eu decidi que estava apaixonada por ele.

 

Fiquei em Londres. Percebi que sempre me sentira deslocada em Cambridge, rodeada de todas aquelas criaturas idiotas, imbecis e presunçosas. Quem é que estava interessado numa carreira na área das ciências sociais esse era um projecto da minha mãe, que puxara o máximo de cordelinhos que conseguira para que eu fosse admitida em Girton quando podia ter um quarto de hotel em Bayswater e um homem, um verdadeiro homem, que não só me pagava o quarto como também me fazia subir ao cume do prazer todos os dias, num colchão cheio de altos e baixos?

 

Girton fez soar o alarme ao fim de uma semana. A essa altura, as minhas amigas tinham decidido que encobrir a minha ausência durante mais tempo só iria prejudicar a sua posição dentro da faculdade. O sénior tutor telefonou aos meus pais. Os meus pais telefonaram à polícia. A única pista que podiam fornecer aos chuis era o Julip’s, no Soho. Todavia, como eu era maior de idade, e uma vez que nenhum cadáver feminino correspondendo à minha descrição fora lançado ao Tamisa ultimamente, e que, além disso, o IRA revelava uma funesta inclinação para colocar bombas dentro de carros, lojas e estações de metropolitano, a polícia não se afligiu muito com o caso. Assim, três semanas se passaram antes que a minha mãe aparecesse à minha porta, com o meu pai ao lado.

 

Eu estava completamente ébria quando eles chegaram. Passava pouco das oito horas da noite e eu começara a beber às quatro da tarde. Quando ouvi baterem à porta, julguei que fosse o tipo da recepção que vinha reclamar o dinheiro da renda. Já subira até ao quarto por duas vezes. Eu dissera-lhe que assuntos de dinheiros eram para serem tratados com Richie. Dissera-lhe que ia ter de esperar. Mas este era um daqueles jamaicanos persistentes meio-aduladores, meio fanfarrões e não havia meio de desistir.

 

Raios partam este cretino, que não me deixa em paz, pensei. Abri a porta, pronta para o confronto, e dei de caras com eles. Ainda hoje consigo vê-los: a minha mãe, vestida com um daqueles fatos que passara a usar desde que Jackie Kennedy os popularizara, o meu pai de fato e gravata, como se tivesse vindo fazer uma visita a casa de alguém. Tenho a certeza que a minha mãe se recorda de mim com a mesma nitidez: vestida apenas com uma das T-shirts encolhidas de Richie. Não sei o que é que ela esperava encontrar no Commodore, quando lá foi naquela noite, mas de certeza que não estava à espera que fosse Liv Whitelaw, a fora-da-lei a abrir-lhe a porta.

 

Olivia. Meu Deus disse ela.

 

O meu pai fitou-me, baixou os olhos e tornou a erguê-los. Pareceu encarquilhar-se dentro do fato.

 

Eu fiquei à porta, uma mão pousada na maçaneta e a outra na ombreira.

 

Qual é o problema? perguntei, e a minha voz soou como a de um paciente vítima de tédio em estado terminal.

 

Vi claramente o que iria seguir-se culpa, lágrimas e um exercício de manipulação, sem esquecer uma tentativa para me arrastar para fora do Commodore e sabia também que toda a situação iria ser de uma chateza monumental.

 

O que é que te aconteceu? perguntou ela.

 

Conheci um gajo. Estamos juntos. Fim da história.

 

Telefonaram da faculdade continuou ela. Os teus professores estão desesperados. Os teus amigos estão loucos de preocupação.

 

Cambridge já não faz parte do filme.

 

A tua educação, o teu futuro, a tua vida disse ela. Falava com cautela. Em que é que estás a pensar, afinal?

 

Mordi o lábio.

 

A pensar? Umm... em ir para a cama com Richie Brewster mal ele chegue. A minha mãe pareceu crescer alguns centímetros. O meu pai baixou os olhos. Os seus lábios moveram-se, formulando uma resposta que eu não consegui perceber.

 

O que é que se passa, papá? perguntei.

 

Encostei-me à ombreira da porta. A minha mão continuava pousada sobre a maçaneta. Eu não era completamente parva. Se permitisse que a minha mãe entrasse no quarto, a minha vida com Richie estava condenada.

 

Ela, porém, parecia querer enveredar por outro caminho, escolhendo como objectivo o número ”Chamar a Filha à Razão”.

 

Falámos com o reitor e com o sénior tutor. Ambos estão dispostos a aceitarem-te de volta, à experiência. O melhor será que arrumes as tuas coisas.

 

Nem pensar.

 

Olivia...

 

Não queres perceber, pois não? Eu amo-o. Ele ama-me. Decidimos construir uma vida juntos. Aqui.

 

Isto não é vida.

 

Olhou para a esquerda e para a direita, como se tentasse avaliar o modo como aquele corredor poderia contribuir para a minha educação e para o meu futuro. Continuou num tom de voz controlado.

 

Não tens qualquer tipo de experiência. Foste seduzida. Compreendo que penses que estás apaixonada por este homem, que penses que ele te ama. Mas isto... o que aqui tens, Olivia...

 

Esforçava-se por manter o controlo de si mesma. Tentava representar o papel da boa mãe. Mas era tarde de mais. Ao olhar para ela, ali à minha frente, senti-me irritada.

 

Sim? retorqui. E o que é que eu tenho aqui?

 

Nada mais, para além de gin barato em troca de sexo. Percebes isso, não é verdade?

 

O que eu percebo disse eu, semicerrando os olhos porque a luminosidade do corredor começava a queimar-me os olhos, é que tenho muito mais do que qualquer um de vocês pode imaginar. Mas ninguém pode esperar que compreendas isso, pois não? Já que a paixão não é propriamente a tua especialidade.

 

Livie interveio o meu pai, levantando a cabeça.

 

Bebeste de mais disse a minha mãe. E isso distorceu-te completamente as ideias.

 

Passou os dedos por uma das têmporas. Fechou os olhos por instantes. Eu conhecia os sintomas. Lutava contra uma enxaqueca. Mais alguns minutos e eu teria ganho o combate.

 

Vamos telefonar para a faculdade e dizer que regressas amanhã, ou no dia a seguir. Agora, precisamos de levar-te para casa.

 

Não. Precisamos apenas de nos despedirmos. Cambridge acabou para mim. Quem diabo consegue pisar aqueles relvados, quem é que consegue usar aquelas vestimentas. Quem é que vai entregar ensaios este período. Aquilo não é vida. Nunca foi. Isto, sim, é viver.

 

Com um homem casado?

 

O meu pai segurou-a pelo braço. Aquele era, claramente, o trunfo que tinham guardado na manga.

 

À espera dos momentos em que ele se decida a separar-se temporariamente da mulher para vir ter contigo?

 

E, em seguida, pois ela era uma daquelas pessoas que possuíam o talento de saber escolher o momento certo, estendeu a mão na minha direcção e acrescentou: Olivia, minha querida. Eu, porém, repeli-a.

 

Não sabia de nada, percebem? E a minha mãe sabia disso. A pequena imbecil de vinte anos, cheia de si mesma, um animal sexual, Liv Whitelaw, afora-da-lei, com um homem de meia-idade a seus pés, e não sabia de nada. Deveria ter desconfiado, mas se assim não fora era porque tudo o que se passava entre nós era tão diferente, tão novo, tão deliciosa e devassamente excitante. No entanto, quando os factos desfilaram à minha frente à velocidade de um relâmpago, percebi que a minha mãe estava a dizer-me a verdade. Ele nem sempre passava a noite no hotel. Dizia que tinha um compromisso noutra cidade. E, de certa maneira, era verdade: em Brighton, com a mulher e os filhos, em casa.

 

Não sabias, minha querida? inquiriu a minha mãe. A comiseração no seu tom de voz fez-me perder a cabeça.

 

E que interesse tem isso, afinal? e acrescentei de imediato: É claro que sabia. Não sou propriamente uma cretina, sabes?

 

Mas era, sim, uma cretina. Porque em vez de abandonar Richie Brewster naquele preciso momento, decidi ficar.

 

Porquê? Perguntar-me-ão. É muito simples: não tinha escolha. Para onde iria eu? Para Cambridge, onde continuaria a interpretar o papel da estudante-modelo, permanentemente observada por todos aqueles que apenas esperavam o momento em que eu desse um passo em falso? Para a casa dos meus pais, em Kensington, onde a minha mãe, com o seu nobre coração, teria sarado as minhas feridas emocionais? Para a rua? Não. Nenhuma destas era uma opção válida. Não iria para lado nenhum. Eu tinha a minha vida bem controlada e iria prová-lo de forma irrefutável.

 

Ele vai deixar a mulher, já que querem saber e fechei a porta, certificando-me de que ficava bem trancada.

 

Continuaram a bater à porta durante algum tempo. A minha mãe, pelo menos. Eu ouvia o meu pai, que dizia, ”Já chega, Míriam”, numa voz tão baixa que soava bem longínqua. Revirei as gavetas da cómoda à procura de um maço de tabaco. Acendi um cigarro, servi-me de mais uma bebida e esperei que eles desistissem e se fossem embora. E durante todo aquele tempo, não parei de pensar no que iria dizer e no que iria fazer quando Richie aparecesse e eu o forçasse a pôr-se de joelhos à minha frente.

 

Imaginei uma centena de cenários possíveis. Todos eles acabavam com Richie implorando-me que fosse misericordiosa para com ele. Mas ele não apareceu no Commodore durante duas semanas. Alguém lhe falara da visita dos meus pais. E quando por fim apareceu, eu já sabia há três dias que estava grávida.

 

O céu está límpido, hoje não se vê uma única nuvem mas não está azul. Não sei porquê. Fazendo lembrar um escudo de aço rofo, serve de pano de fundo à torre de apartamentos que se ergue, lúgubre e monolítica, no mesmo local onde outrora viveu Robert Browning. Sentada no convés, observo-a atentamente, tentando identificar as razões que a terão levado a perder a sua cor original. Não consigo lembrar-me da última vez que contemplei um céu verdadeiramente azul e isso preocupa-me. Talvez o azul esteja a ser devorado pelo sol, que vai queimando a orla do céu, tal como uma chama vai consumindo um pedaço de papel, avançando cada vez mais depressa para o interior até que, por fim, sobre as nossas cabeças nada mais resta do que uma rodopiante bola de fogo branco precipitando-se na direcção daquilo que já não passa de uma brasa incandescente.

 

Ninguém, para além de mim, parece reparar neste fenómeno. Quando converso com Chris sobre isto, ele olha para cima protegendo os olhos com as mãos.

 

Realmente diz ele, segundo os meus cálculos, restam-nos apenas mais duas horas de ar respirável. Ficamos aqui ou fugimos para os Alpes?

 

Em seguida passa as mãos pelos meus cabelos, despenteando-os, e desce à cabina onde o oiço assobiar e retirar das estantes todos os seus livros de arquitectura.

 

Está a trabalhar na reprodução de um fragmento de cornija proveniente de uma casa em Queen’s Park. É um trabalho relativamente fácil, porque a cornija é em madeira, material que ele prefere ao estuque. O estuque deixa-o nervoso, diz ele. ”Meu Deus, Livie, quem sou eu para me atirar a um tecto Adam?” No início julguei que se tratava apenas de falsa modéstia da parte dele. Sobretudo, se pensarmos na quantidade de pessoas que lhe encomendam trabalhos em suas casas, agora que o bairro começa a aburguesar-se. Mas isso foi antes de eu o conhecer bem. Parti do princípio que ele era um tipo que conseguira limpar as teias de aranha de todos os cantos da sua vida. Com o tempo, aprendi que isso era uma máscara que ele adoptava nos momentos que exigiam espírito de liderança. O verdadeiro Chris é igual a todos nós, cheio de dúvidas e incertezas. Ele possui uma máscara nocturna, que pode colocar quando a situação assim o exige. Durante o dia, todavia, em que, segundo ele, o poder não conta, é ele próprio. Desde o primeiro momento que desejei poder ser mais parecida com Chris. Mesmo quando me sentia mais furiosa com ele nos primeiros tempos, em que trazia outros tipos até à lancha, os lábios abertos naquele meu sorriso abominável e perverso, e os excitava até eles gritarem de prazer e eu ter a certeza de que Chris sabia o que eu estava a fazer e com quem, nunca deixei de querer ser como ele. Ansiava por uma união de corpo e alma com ele. Queria sentir-me livre para me expor e dizer: ”Pronto, é assim que eu sou verdadeiramente. Tudo o resto não passa de fanfarronice”, exactamente como Chris. Mas porque não era capaz de o fazer, porque não era capaz de ser como ele, tentava magoá-lo, empurrá-lo até à beira do abismo e, uma vez aí, empurrá-lo para o vazio. Queria destruí-lo, porque destruindo-o provaria que toda a sua maneira de viver era uma mentira. E eu precisava que assim fosse.

 

Sinto vergonha da pessoa que fui outrora. Chris diz que não há razão para sentir vergonha.

 

Eras aquilo que tinhas de ser, Livie diz ele. Não penses mais nisso.

 

Mas eu sou incapaz de esquecer. Sempre que penso que estou quase a abrir a mão, a esticar os dedos e a deixar que as recordações escorram para a água como areia, algo se agita dentro de mim e impede-me de o fazer. Por vezes, é um trecho musical ou uma gargalhada feminina, aguda e falsa. Outras vezes é o odor acre de roupa há muito por lavar. Ou, então, é a visão de um rosto endurecido por uma fúria súbita ou uma troca de olhares com um estranho cujos olhos parecem opacos de tão desesperados. Nesses momentos, transformo-me numa viajante involuntária, sugada pelas dobras do tempo e abandonada aos pés daquela que fui, em tempos.

 

Não consigo esquecer digo a Chris, sobretudo naquelas ocasiões em que o acordo porque as cãibras me devoram as pernas e ele vem até ao meu quarto, seguido de perto por Beans e Toast, trazendo-me um copo de leite morno e insistindo para que eu o beba.

 

Ninguém te pede que esqueças diz ele, enquanto os cães se instalam a seus pés. Esquecer significa que tens medo de aprender com o passado. Mas tens de perdoar.

 

E eu bebo o leite, ainda que não me apeteça, erguendo o copo até à boca com as duas mãos, esforçando-me por sufocar um gemido de dor. Chris apercebe-se disso e começa a massajar-me. Os músculos distendem-se novamente.

 

Quando isso acontece, peço-lhe desculpa, ao que ele responde: ”Desculpa porquê, Livie?”

 

E esta é, de facto, a pergunta. Quando o oiço formulá-la, é como a música, a gargalhada, a roupa suja, a visão de um rosto, a troca de olhares casual. Transformo-me de novo numa viajante, sugada pelo passado, forçada a enfrentar a pessoa que fui.

 

Vinte anos e grávida. Eu chamava-lhe o coiso. Não o via como um bebé em crescimento dentro de mim, era um contratempo. Para Richie foi uma desculpa para desaparecer de circulação. Teve a elegância de acertar contas com o recepcionista antes de ir embora, mas foi suficientemente indelicado para informar o mesmo recepcionista de que, a partir daquele momento, eu estava oficialmente ”por minha conta”. Eu tivera algumas desavenças com o pessoal do Commodore, pelo que eles se sentiam mais do que satisfeitos por terem um pretexto para me expulsar do hotel.

 

Uma vez posta na rua, fui tomar um café e comer um crepe de salsicha numa cafetaria em frente de Bayswater Station. Reflecti sobre as minhas hipóteses. Fitei a placa vermelha, branca e azul do metropolitano, até que o remédio para os meus males se impôs ao meu espírito. Lá estava ela, a entrada para a Circle Line e para a District Line, a uns escassos três metros do botequim onde me encontrava sentada. Duas estações depois de Bayswater, e estaria em High Street Kensington. Merda, pensei. Naquele preciso momento, decidi que o mínimo que podia fazer nesta vida era proporcionar à minha mãe uma oportunidade para deixar cair o papel de Elizabeth Fry e trocá-lo pelo de Florence Nightingale. Dirigi-me para casa.

 

Por que motivos me terão eles aceite de volta?, perguntarão. Suponho que façam parte daquele grupo de pessoas que nunca causaram um único desgosto aos vossos pais e, por isso, não fazem a mais pequena ideia das razões por que uma rapariga como eu seria bem recebida. Estão a esquecer-se da definição básica de lar: um local onde vamos, batemos à porta, adoptamos um semblante arrependido e nos deixam entrar. Depois de termos entrado, e uma vez desfeitas as malas, revelamos as más notícias que estão na origem desse regresso a casa.

 

Deixei passar dois dias antes de falar à minha mãe na gravidez, dando-lhe a novidade quando ela estava ocupada a classificar testes de inglês. Instalara-se na sala de jantar, na parte da frente da casa, três pilhas de dissertações sobre a mesa e um bule de darjeeling fumegando próximo do cotovelo. Peguei no teste que estava no topo de um dos montículos de papel e, maquinalmente, li a primeira frase. Ainda consigo recordá-la: ”Ao estudar a personagem de Maggie Tulliver,: o leitor é levado a ponderar a distinção entre destino e maldição.” Profético, na verdade.

 

Pousei as folhas de papel. A minha mãe olhou-me, erguendo os olhos por cima da armação dos óculos sem, no entanto, levantar a cabeça.

 

Estou grávida anunciei.

 

Ela pousou o lápis. Tirou os óculos. Serviu-se de mais uma chávena de chá. Sem leite, nem açúcar. Mesmo assim, mexeu-o.

 

Personagem de The Mill on the Floss, de George Eliot [N da T,]

 

E ele está ao corrente?

 

Evidentemente que sim.

 

Porquê, evidentemente?

 

Ora, ele pôs-se a andar, não foi? Bebeu um gole de chá.

 

Entendo.

 

Tornou a pegar no lápis e, com ele, começou a tamborilar o dedo mínimo. Sorriu. Abanou a cabeça. Tinha colocado uns brincos de ouro em forma de cordas enroladas e usava um colar igual. Lembro-me de como tudo aquilo cintilava à luz da sala.

 

O que é? perguntei.

 

Nada disse ela. Mais um gole de chá.

 

Pensei que tivesses caído em ti e o tivesses abandonado. Pensei que tinhas voltado por essa razão.

 

E que diferença faz? Está tudo acabado. Regressei ao lar. Não te chega?

 

E o que é que pretendes fazer agora?

 

Em relação à criança?

 

Em relação à tua vida, Olivia. Odiava aquela entoação professoral.

 

É um problema meu, não achas? Talvez decida ter a criança. Talvez não. Sabia exactamente o que tencionava fazer, mas queria que fosse ela a sugeri-lo. Há anos que interpretava o papel de mulher dotada de uma Grande Consciência Social, e eu queria arrancar-lhe a máscara.

 

Preciso de reflectir sobre tudo isto disse ela, tornando a embrenhar-se nos testes que tinha para corrigir.

 

Como queiras retorqui eu, dirigindo-me para a porta. Quando passei pela cadeira onde ela estava sentada, esticou o braço e por instantes pousou a mão sem intenção premeditada, creio eu sobre o meu estômago, onde crescia agora o neto.

 

Não vamos contar nada ao teu pai disse ela.

 

E, nesse momento, compreendi o que ela tencionava fazer. Encolhi os ombros.

 

Duvido que ele entendesse. Será que o pai saberá sequer de onde vêm os bebés?

 

Não faças troça do teu pai, Olivia. Ele, sim, é um homem. Ao contrário daquele indivíduo que te abandonou.

 

Com o indicador e o polegar, agarrei na mão dela, que descansava ainda sobre a minha barriga, e libertei-me. Saí da sala.

 

Ouvi-a levantar-se e dirigir-se para o aparador; abriu uma gaveta e remexeu no seu interior durante alguns instantes. Em seguida dirigiu-se para a saleta, marcou um número de telefone e começou a falar.

 

Marcou uma consulta para daí a três semanas. Muito astucioso da parte dela. Queria deixar-me arder em fogo lento. Entretanto, as nossas relações alternaram entre fingir que éramos uma família normal e uma trégua numa luta armada. A minha mãe tentou, por diversas vezes, fazer-me falar sobre o passado amplamente dominado por Richie Brewster e o futuro um regresso a Girton College. Todavia, nem uma única vez se referiu ao bebé.

 

Fiz o aborto quase um mês depois de Richie me ter abandonado no Commodore. A minha mãe levou-me de carro, as mãos crispadas sobre o volante e o pé carregando no acelerador em movimentos bruscos. Tinha escolhido uma clínica bem nos confins de Middlesex, e enquanto nos conduzia até lá, numa manhã sinistra e chuvosa, não pude deixar de me perguntar se teria escolhido aquele estabelecimento em particular apenas para se certificar de que não nos cruzaríamos com nenhum dos seus amigos. Seria mesmo dela, pensei, absolutamente conforme ao seu carácter hipócrita. Enterrei-me no assento. Enfiei as mãos nas mangas do meu casaco. Senti a boca comprimir-se.

 

Preciso de um cigarro disse eu.

 

Dentro do carro, não retorquiu ela.

 

Quero um cigarro.

 

Isso não é possível.

 

Mas quero um!

 

Encostou o carro à berma da estrada.

 

Olivia, tu muito simplesmente não podes... começou ela.

 

Não posso o quê? Não posso fumar, porque isso vai fazer mal ao bebé? Grande treta.

 

Falava sem olhar para ela. Olhava pela janela, observando dois homens que descarregavam roupa do interior de uma carrinha amarela. Sentia a cólera da minha mãe e os esforços dela para a dominar. Agradava-me saber que não só ainda era capaz de a provocar, mas também que ela tinha de lutar com ela própria para se manter fiel à sua personagem, sempre que estávamos as duas sozinhas.

 

O que eu ia dizer disse ela com muito cuidado, era que não podes continuar assim, Olivia.

 

Genial. Mais um sermão. Relaxei o corpo e revirei os olhos.

 

Vamos despachar o assunto, está bem? repliquei, indicando a estrada com um gesto. Vamos, Miriam, arranca.

 

Nunca a tratara pelo nome próprio antes, e ao passar de Mãe para Míriam senti-me em vantagem.

 

Essa crueldade mesquinha diverte-te, não é?

 

Oh, por favor, não vamos recomeçar.

 

Não entendo esse tipo de atitude disse ela, no seu tom de voz mais comedido. Tento, mas não consigo compreender. Explica-me. De onde te vem toda essa maldade? De que forma devo reagir a ela?

 

Escuta, contenta-te em guiar. Leva-me à clínica e vamos resolver este assunto de uma vez por todas.

 

Não antes que tenhamos tido uma conversa.

 

Oh, meu Deus. Que diabo queres tu de mim? Se estás à espera que eu te beije as mãos como todos aqueles cretinos que andam sempre à tua volta, estás muito enganada.

 

Todos aqueles cretinos... disse ela, pensativa. Olivia, minha querida.

 

Mexeu-se no assento e eu percebi que se virara de frente para mim. Era fácil imaginar a expressão do rosto dela, pois conseguia ouvi-la na entoação que emprestava à sua voz e na sua escolha de palavras. Minha querida significava que eu lhe proporcionara uma oportunidade para uma demonstração de compreensão e compaixão. Minha querida fez-me ranger os dentes e, habilmente, permitiu-lhe tornar a assumir o controlo da situação.

 

Olivia continuou ela, foi por minha causa que fizeste tudo isto?

 

Não sejas convencida!

 

Por causa das minhas actividades, da minha carreira, da minha... tocou-me no ombro. Será que pensaste que eu não te amava? Querida, estavas a tentar...

 

Cristo! Queres fazer o favor de te calares e guiares o maldito carro! Ou será que é pedir muito? Será que és capaz de guiar a porcaria do carro, com os olhos colados na estrada, e tirares essas patas sujas de cima de mim?

 

Ao fim de alguns instantes, o tempo suficiente para que as minhas palavras surtissem o máximo efeito, ela disse:

 

Sim, claro.

 

E eu percebi, então, que, uma vez mais, alinhara no jogo dela. Deixara que ela se comportasse como se sentisse a parte lesada.

 

Era sempre assim com a minha mãe. Quando eu pensava que iria levar a melhor, ela apressava-se a provar-me exactamente o contrário.

 

Uma vez chegadas à clínica e depois de preenchidos os formulários, a operação decorreu sem demoras. Uma pequena raspadela, uma ligeira sucção e o incómodo que viera perturbar as nossas vidas esfumava-se. Mais tarde, levaram-me para um pequeno quarto branco e deitaram-me numa cama branca e estreita, onde fiquei a pensar naquilo que a minha mãe esperava de mim. Lágrimas e ranger de dentes, sem dúvida. Arrependimento. Culpa. Em resumo, a prova cabal de que eu Aprendera Bem a Minha Lição. Projectos para o futuro. Fosse o que fosse, eu não estava disposta a fazer a vontade àquela cabra.

 

Fiquei dois dias na clínica, para tratar de umas pequenas hemorragias e de uma infecção que não agradou aos médicos. Queriam manter-me internada durante uma semana, mas eu não estava para isso. Deixei a clínica, apanhei um táxi e fui para casa. A mãe veio abrir-me a porta. Segurava uma caneta de tinta permanente numa das mãos, um envelope bege na outra e tinha os óculos encavalitados na ponta do nariz.

 

Olivia, mas o que é que... O médico disse-me que...

 

Preciso de dinheiro para pagar o táxi.

 

Deixei-a à porta, a braços com o assunto, e dirigi-me à sala de jantar, onde me servi de uma bebida. Em pé, apoiada no aparador, reflecti seriamente sobre o que iria fazer a seguir. Não com a minha vida, mas nessa noite.

 

Bebi um gin de um só trago. Servi-me de mais um. Ouvi a porta da entrada fechar-se. Os passos da minha mãe soaram ao longo do corredor e pararam à entrada da sala de jantar. Começou a falar nas minhas costas:

 

O médico disse-me que tinhas tido uma hemorragia. E uma infecção.

 

Está tudo sob controlo.

 

Fiz girar o gin dentro do copo.

 

Olivia, gostaria que soubesses que não fui visitar-te porque tu deixaste bem claro que não querias ver-me.

 

Exactamente, Miriam.

 

Tamborilei as paredes do copo com a unha, notando que o som se ia tornando mais grave à medida que o meu dedo descia do rebordo para o fundo. Precisamente o contrário do que seria de esperar.

 

Uma vez que não pude trazer-te para casa no mesmo dia, tive de inventar uma história para contar ao teu pai...

 

Porque ele é incapaz de suportar a verdade?

 

Expliquei-lhe que tinhas ido a Cambridge, ver se havia alguma possibilidade de seres readmitida.

 

Desatei a rir à gargalhada.

 

E é isso, aliás, o que eu quero que faças.

 

Estou a perceber.

 

Esvaziei o copo. Considerei a possibilidade de tomar uma terceira bebida, mas as duas primeiras estavam a fazer efeito muito mais rapidamente do que eu esperava.

 

E se eu não estiver disposta a regressar a Cambridge?

 

Nesse caso, suponho que não te será difícil adivinhares as consequências.

 

E isso significa o quê?

 

Que o teu pai e eu estamos dispostos a sustentar-te, desde que retomes os estudos na universidade. Fora isso, mais nada. Nenhum de nós pretende ficar a assistir enquanto tu deitas a tua vida a perder.

 

Obrigada, já percebi tudo.

 

Pousei o copo no aparador, atravessei a sala e saí.

 

Tens até amanhã para pensar no assunto disse ela. Espero a tua decisão amanhã de manhã.

 

Muito bem respondi-lhe, pensando: Pobre imbecil.

 

Subi até ao meu quarto. Este ficava no último andar da casa e quando cheguei ao fim das escadas sentia as pernas trémulas e a nuca encharcada em suor. Deixei-me ficar, durante alguns instantes, com a testa apoiada na porta, pensando: Que se lixe, que se lixem todos. Precisava de sair. Só isso me deixaria em forma, novamente. Encaminhei-me para a casa de banho, onde havia melhor luz para me maquilhar. Foi então que Richie Brewster telefonou.

 

Tenho saudades tuas, querida. Acabei tudo com a minha mulher. Deixei-a. Quero voltar a tomar conta de ti.

 

Ele estava a telefonar do Julip’s. A banda acabara de assinar um contrato de seis meses, depois de uma tournée pela Holanda. Tinham comprado bom haxixe em Amesterdão, que tinham trazido às escondidas para Inglaterra. Richie guardara uma parte para mim.

 

Lembras-te como tínhamos uma boa vida, no Commodore? Desta vez vai ser ainda melhor. Fui um cretino quando me pus a andar, Liv. Foste a melhor coisa que me aconteceu em muitos anos. Preciso de ti, querida. Quando estás comigo, toco que nem um doido.

 

Livrei-me da criança disse-lhe eu. Há três dias atrás. Por isso não estou lá muito bem-disposta, percebes?

 

Richie não era músico por acaso. Mudou imediatamente de tom.

 

Oh, querida. Querida. Oh, merda.

 

Conseguia ouvir a sua respiração ofegante. A voz dele soou entrecortada.

 

Que queres que te diga? Fiquei em pânico, Liv. Fugi. Estávamos demasiado perto um do outro. Tu fizeste-me sentir coisas que eu não estava à espera de sentir. Ouve, o que senti foi demasiado para mim. Era uma coisa que nunca tinha sentido antes. E isso assustou-me. Mas agora já tenho as ideias de novo no lugar. Deixa-me compensar-te. Dá-me outra oportunidade. Eu amo-te, querida.

 

Não tenho tempo para estas merdas.

 

Prometo-te que não vai acabar como da outra vez. Desta vez vai dar tudo certo.

 

Certo.

 

Dá-me uma oportunidade, Liv. Se sair furado, perco-te, eu sei disso. Mas dá-me uma oportunidade.

 

E dito isto, ficou à espera, ofegante.

 

Deixei-o esperar e arquejar. Agradava-me ter Richie Brewster na palma da minha mão.

 

Vá lá, Liv. Lembras-te de como era? Vai ser ainda melhor.

 

Pesei as alternativas que se me apresentavam. Eram três, aparentemente. Podia regressar a Cambridge e à vida insípida da faculdade, podia tentar desenvencilhar-me sozinha, nas ruas, e podia fazer outra tentativa com Richie. Richie que tinha um emprego, dinheiro, droga e que nesse momento me dizia que tinha um lugar onde viver, um rés-do-chão em Sheperd’s Bush. E mais, dizia ele. Mas não valia a pena que ele entrasse em pormenores. Eu sabia perfeitamente do que se tratava, conhecia-o: festas, amigos, música, acção. Como poderia eu escolher Cambridge ou a rua quando me bastava ir até ao Soho para reencontrar a vida, a verdadeira vida?

 

Acabei de me maquilhar. Agarrei no saco e num casaco. Disse à minha mãe que ia sair. Ela estava na saleta, sentada à secretária da avó, escrevendo moradas num monte de sobrescritos. Tirou os óculos e empurrou a cadeira para trás. Depois perguntou-me onde é que eu ia.

 

Contentei-me em repetir:

 

Vou sair.

 

Ela compreendeu de imediato. Era mãe, e as mães compreendem sempre este género de coisas.

 

Tiveste notícias dele, não foi? Foi ele que telefonou. Não respondi.

 

Olivia, não faças isto continuou ela. Podes fazer algo de bom com a tua vida. Atravessaste um mau período, querida, mas isso não significa que tenhas de renunciar aos teus sonhos. Eu ajudo-te. O teu pai ajuda-te. Mas para isso é preciso que te empenhes um bocadinho.

 

Percebi que ela se preparava para me pregar um bom sermão, daqueles que só ela sabia fazer. Bastava ver o brilho intenso que se apoderava do seu olhar.

 

Poupa-me, Miriam. Vou-me pirar. Volto mais tarde.

 

Esta última frase era mentira, mas eu queria ver-me livre dela. Mudou rapidamente de rumo.

 

Olivia, tu não estás bem. Tiveste uma hemorragia e uma infecção. Foste...

 

Seria imaginação minha, ou ela estava com dificuldade em articular a palavra?

 

... operada há três dias, apenas.

 

O que fiz foi um aborto disse eu, deliciada por ver que o seu corpo se agitava num espasmo de aversão.

 

Creio que o melhor seria esquecermos o que se passou e continuar com a nossa vida.

 

Exactamente. De acordo. Regressa aos teus sobrescritos, porque eu vou sair.

 

O teu pai... Olivia. Não faças isto.

 

O pai há-de safar-se. E tu também. Virei-me.

 

A voz dela abandonou a entoação comedida e ela passou à ameaça velada.

 

Olivia, se deixares esta casa, esta noite, depois de tudo aquilo por que passaste, depois de todas as nossas tentativas para te ajudar...

 

Deteve-se, incapaz de continuar. Eu fiz meia volta. Ela segurava a caneta de tinta permanente como se esta fosse um punhal, ainda que o seu rosto estivesse impassível.

 

Sim?

 

Lavarei as minhas mãos em relação ao que te possa suceder.

 

Não te incomodes.

 

Deixei que o seu rosto assumisse a expressão da mãe abandonada e chorosa e saí para a noite.

 

No Julip’s, de pé junto ao bar, observava a multidão enquanto ouvia Richie tocar. No final do primeiro set, ele furou a profusão de corpos, ignorando todos os que lhe dirigiam a palavra, os olhos fixos em mim como chumbo em íman. Agarrou-me pela mão e conduziu-me até aos bastidores

 

Liv. Oh, querida.

 

E, segurando-me como se eu fosse um cristal, começou a brincar com os meus cabelos.

 

Passei o resto da noite nos bastidores. Fumámos haxixe no intervalo dos sets. Ele sentava-me no colo dele. Beijava-me o pescoço e as palmas das mãos. Ordenava aos outros tipos da banda que desaparecessem, sempre que eles se aproximavam de nós. Disse-me que, sem mim, não era nada.

 

Fomos até uma cafetaria tomar um café depois do Julip’s ter fechado. As luzes eram muito brilhantes, o que me permitiu reparar que o aspecto de Richie não era dos melhores. Os seus olhos assemelhavam-se mais do que nunca aos olhos de um basset. A pele estava flácida. Perguntei-lhe se tinha estado doente. Respondeu-me que a separação da mulher fora mais dura do que ele julgara.

 

A Loretta ainda me ama, querida. Preciso que saibas isso, porque quero que, de hoje em diante, não haja mais mentiras entre nós. Ela não queria que eu me viesse embora. Ainda agora me quer de volta. Mas eu não sou capaz de viver assim. Não sou capaz de viver sem ti.

 

A primeira semana que passara sem mim permitira-lhe ver claro, dizia ele. Passara o resto do tempo tentando reunir coragem suficiente para tomar uma atitude.

 

Sou fraco, querida disse ele, mas tu dás-me força. Beijou as pontas dos meus dedos.

 

Vamos para casa, Liv. Desta vez, vou fazer tudo como deve ser As coisas eram, efectivamente, diferentes desta vez. Já não dormíamos numa espelunca imunda e malcheirosa, o chão coberto por pedaços de carpete e ratos passeando nas paredes. Tínhamos um apartamento de rés-do-chão, renovado, com uma janela abaulada e um alpendre ladeado por duas elegantes colunas coríntias. Tínhamos uma lareira decorada com ferro forjado e azulejos. Tínhamos um quarto de dormir, uma cozinha e uma banheira presa por ganchos, íamos ao Julip’s todas as noites. Quando este fechava, saíamos.

 

Éramos convidados para festas, bebíamos. Cheirávamos coca sempre que podíamos. Chegámos até a tomar LSD. Dançávamos, fazíamos amor no assento traseiro dos táxis e nunca chegávamos a casa antes das três da madrugada. Encomendávamos comida chinesa e comíamos na cama. Comprámos aguarelas e pintámos os corpos um do outro. Uma noite, em que estávamos embriagados, ele furou-me o nariz. Todos os fins de tarde, Richie improvisava com a banda e quando se sentia cansado vinha sempre ter comigo.

 

Desta vez, tudo corria bem. Eu não era estúpida. Sabia quando estava perante algo de bom e verdadeiro. No entanto, para me certificar, esperei duas semanas para ver se Richie seria capaz de dar cabo de tudo. Como isso não aconteceu, fui buscar as minhas coisas a Kensington.

 

A minha mãe não estava em casa quando eu cheguei. Era uma terça-feira à tarde, o vento soprava em rajadas fortes, como se, no céu, alguém estivesse a agitar um enorme lençol. Toquei à campainha, primeiro. Esperei, cabeça enterrada nos ombros para me proteger do vento, e tornei a tocar. Depois lembrei-me que as terças-feiras eram os dias em que a minha mãe acabava as aulas mais tarde, na Isle of Dogs, depois de se ter ocupado dos ”crânios” do 9.° ano, esforçando-se por abrir-lhes os espíritos e revelar-lhes a Verdade. Como tinha as minhas chaves de casa, abri a porta.

 

Subi os degraus quatro a quatro, sentindo a cada passo que me desembaraçava de mais uma camada daquela vida de família burguesa, opressiva e tristonha. Que necessidade tinha eu de me sujeitar ao tédio sufocante que acabrunhara gerações de mulheres inglesas já para não falar da minha mãe impondo-lhes o estrito respeito pelas convenções? Eu tinha Richie Brewster e uma vida bem real, não tinha nada que me enclausurar neste mausoléu em Kensington.

 

Pira-te, pensei, pira-te, pira-te... daqui...

 

A minha mãe antecipara-se. Fora a Cambridge e trouxera as minhas coisas. Embalara-as, juntamente com tudo o que me pertencia, em caixas de cartão que me esperavam no chão do meu quarto, cuidadosamente seladas.

 

Obrigada, Mir, pensei. Velha cretina, muito obrigada por te ocupares de tudo com a tua habitual competência.

 

Remexi dentro das caixas, escolhi o que queria e abandonei o resto sobre a cama ou no chão. Depois passei cerca de meia hora vagueando pela casa. Richie tinha-me dito que estávamos a ficar sem dinheiro, por isso tirei o que podia para o ajudar: peças de prata, potes em estanho, uma ou duas porcelanas, três ou quatro anéis, algumas miniaturas dispostas sobre uma das mesas da sala de estar. De qualquer maneira, tudo aquilo fazia parte da minha herança. Não fiz mais do que antecipar-me.

 

O dinheiro continuou a escassear durante meses a fio. O apartamento e as nossas despesas somavam mais do que o dinheiro que Richie ganhava. Para o ajudar, arranjei um trabalho numa cafetaria em Charing Cross, onde preparava doses de batatas fritas. Mas o dinheiro escapava-se-nos por entre os dedos. Por isso, Richie decidiu que a única solução seria arranjar alguns concertos na província.

 

Não quero que trabalhes mais do que já trabalhas disse-me ele. Deixa-me aceitar este espectáculo em Bristol, ou em Exeter, York ou Chichester, para equilibrar as coisas, Liv.

 

Olhando para trás, percebo que devia ter desconfiado do que se estava a passar: a escassez de dinheiro e todos aqueles compromissos fora de Londres. Mas de início não percebi. Não porque não quisesse, mas porque não me podia permitir abrir os olhos dessa maneira. Investira em Richie muito mais do que dinheiro, mas isso era algo que eu não estava disposta a admitir Por isso mentia e fingia que não percebia. Disse a mim mesma que precisávamos muito de dinheiro e que era normal que ele tivesse de viajar para ir arranjá-lo noutros sítios. Todavia, quando o dinheiro continuou a faltar ainda mais e as viagens começaram a não contribuir em nada para o equilíbrio do nosso orçamento, vi-me obrigada a olhar as coisas de frente. O dinheiro não entrava, porque ele andava a gastá-lo.

 

Acusei-o. Ele confessou. Estava atolado em dívidas. Tinha a mulher em Brighton, a mim em Londres e uma puta chamada Sandy em Southend-on-Sea.

 

Não me falou logo de Sandy. Não era parvo. Continuou a dirigir a minha atenção para a mulher. Loretta, a mártir, que ainda o amava, que não conseguia viver sem ele, que era a mãe dos filhos dele, etc. Habituara-se a ir até Brighton visitar os miúdos de vez em quando, como faria qualquer pai extremoso. E, após três, quatro ou teriam sido cinco, Richie? visitas voltara a dormir com Loretta. Ela estava grávida.

 

Chorava enquanto me contava tudo isto. Que podia ele fazer? Estavam casados há anos, ela era a mãe dos filhos dele, ele não podia simplesmente virar costas ao amor que ela sentia por ele, quando ela lho oferecia, quando ela não conseguia viver sem ele, quando ela jamais conseguiria viver sem ele... Não significava nada, ela não significava nada, juntos não significavam nada.

 

Tu és a única para mim, Liv. Só quando estou contigo é que consigo tocar como deve ser. Tudo o resto é merda.

 

À excepção de Sandy, como em breve viria a descobrir. Soube da existência de Sandy numa quarta-feira de manhã, logo depois de o médico me ter explicado que aquilo que eu julgara ser uma simples e inofensiva infecção era, de facto, herpes. Terminei tudo com Richie, na quinta-feira à noite. Tive apenas as forças suficientes para atirar as coisas dele porta fora e tomar as disposições necessárias para mandar mudar a fechadura da porta. Na sexta-feira à noite, julguei que ia morrer. No sábado, o médico declarou, ao falar da minha doença, que se tratava de uma ”interessante e prodigiosa infecção”, outra maneira de dizer que nunca vira nada de semelhante.

 

E querem saber como eu me sentia? Ardia em febre, tinha vontade de gritar de cada vez que ia à casa de banho, era como se a minha passarinha estivesse a ser devorada por ratazanas. Tive seis semanas para pensar em Sandy, em Richie, em Southend-on-Sea, enquanto me deslocava do médico para a casa de banho e desta para a minha cama concluindo que a gangrena não podia ser pior do que o que estava a dilacerar-me por dentro.

 

Depressa fiquei sem nada para comer no apartamento, com pilhas de roupa suja acumuladas nas ombreiras e louça partida contra as paredes e as portas. Depressa, também, fiquei sem dinheiro. A segurança social encarregou-se do médico, mas mais ninguém se encarregou de mais nada.

 

Lembro-me de estar sentada, ao lado do telefone, e pensar: ”Raios partam esta merda, desta vez o meu caso vai interessá-la.” Lembro-me de ter desatado a rir. Passara a manhã a beber o que restava de gin, e foi necessário misturá-lo com uma boa dose de desespero para me decidir a fazer a chamada. Era domingo, hora de almoço.

 

Foi o meu pai quem atendeu.

 

Preciso de ajuda disse eu.

 

Livie? perguntou ele. Onde estás tu, Santo Deus? O que é que aconteceu, minha querida?

 

Quando teria sido a última vez em que tinha falado com ele? Não conseguia lembrar-me. Será que ele sempre tivera uma voz tão doce? Doce e baixa?

 

Não estás bem, pois não? continuou ele. Tiveste algum acidente? Estás ferida? Estás no hospital?

 

Senti, de súbito, uma sensação bizarra. As palavras dele actuaram como um anestésico e um escalpelo. Abri-lhe o meu coração sem esforço. Contei-lhe tudo. Quando terminei, disse-lhe:

 

Papá, ajuda-me. Por favor, ajuda-me a sair disto.

 

Deixa-me ver o que posso fazer. A tua mãe...

 

Não aguento mais disse-lhe eu.

 

Comecei a chorar. Odiei-me por isso, porque ele iria dizer-lhe que eu estava a chorar e ela falar-lhe-ia nas crianças que manipulam os pais e nos pais que se mantêm firmes e fiéis à sua palavra, à lei e à crença miserável de que a sua é a única forma de vida correcta.

 

Papá! devo ter choramingado, porque conseguia ouvir a palavra suspensa no apartamento muito depois de a ter dito ao telefone.

 

Dá-me o teu número de telefone, Livie pediu ele, gentilmente. Dá-me a tua morada. Vou falar com a tua mãe. Depois telefono-te.

 

Mas eu...

 

Tens de confiar em mim.

 

Prometes-me...

 

Farei o que puder. Não vai ser tarefa fácil.

 

Suponho que ele deve ter defendido a minha causa o melhor que pôde. No entanto, em matéria de Problemas Familiares, a especialista era a minha mãe. Ela manteve-se fiel à linha de actuação que tinha definido. Dois dias mais tarde enviou-me cinquenta libras dentro de um envelope. Uma folha de papel branco envolvia as notas. Nessa folha escrevera: ”Um lar deve ser um local onde as crianças aprendam a viver no respeito pelas regras ditadas pelos pais. Quando estiveres disposta a submeter-te a elas, diz-nos. Lágrimas e pedidos de socorro são, pura e simplesmente, insuficientes neste momento. Gostamos muito de ti, minha querida. E gostaremos sempre.” E era tudo.

 

Miriam, pensei. Minha boa Miriam. Não tinha qualquer dificuldade em ler nas entrelinhas da sua irrepreensível caligrafia. Lavar as mãos no que dizia respeito aos filhos era isto mesmo. Na opinião da minha mãe, eu tinha aquilo que merecia.

 

Pois bem, para o diabo com ela. Desejei-lhe todos os males da terra. Todas as doenças, todos os infortúnios, toda a infelicidade do mundo. Já que a minha situação a fazia sentir-se feliz, eu própria haveria de me regozijar quando chegasse a minha vez.

 

Curiosas, as voltas que o mundo dá.

 

O sol aquece-me as faces. Sorrio, reclino-me na minha cadeira e fecho os olhos. Conto um minuto, como me ensinaram: mil e um, mil e dois e assim por diante. Normalmente, deveria continuar até aos mil e trezentos, mas sessenta é o meu limite por agora. Mesmo assim, quando chego aos mil e quarenta tenho tendência a apressar-me para chegar ao fim mais depressa. Este é o meu minuto de repouso, algo que devo fazer várias vezes por dia. Não sei porquê. Repouso é aquilo que os médicos nos prescrevem quando não têm nada de mais eficaz a propor-nos. Pedem-nos que fechemos os olhos e que, lentamente, relaxemos. Sou contra isso. É o mesmo que pedir a alguém que se habitue ao inevitável antes que a pessoa esteja preparada para o aceitar.

 

Só que o inevitável é negro, frio e infinito, enquanto aqui, na minha lancha, sentada na minha cadeira de lona, consigo distinguir os pequenos pontos vermelhos formados pelo sol ao penetrar através das minhas pálpebras fechadas, e sinto o seu calor, como se fossem dedos roçando o meu rosto. A minha camisola absorve o calor. As minhas calças de malha distribuem-no ao longo das minhas pernas. E tudo o mundo, sobretudo parece-me tão...

 

Desculpem-me. Deixei-me dormir. O meu problema é que luto contra o sono durante toda a noite, e há momentos, durante o dia, em que ele me apanha desprevenida. É melhor assim, aliás, é como se a maré nos arrastasse, suavemente, para longe da margem. E os sonhos que acompanham as horas de sono diurnas e que nos afastam da consciência... são os melhores.

 

No meu sonho estava com Chris. Sabia que era ele, porque tinha a certeza de que ele não me deixaria cair. Agarrei-me às costas dele e, juntos, sobrevoámos uma costa de rochas verdes e pretas, semelhante às Falésias de Moher, onde o oceano projecta a sua espuma até mil metros acima da água. Os seus cabelos, que eram compridos por razões que desconheço, não se pareciam em nada com os cabelos de Chris. Eram longos, negros e lisos como a haste de uma lança. Cobriam-me enquanto voávamos. Eu podia sentir os ombros dele, a força das suas pernas e o vento no meu rosto. O sítio onde pousámos era descarnado, como os Burren. Ele disse-me: ”É aqui que tudo se vai passar, Livie.” ”O quê?, perguntei eu.” Ele respondeu: ”As crianças nascem das pedras.” E quando sorriu, percebi que já não era ele mas sim o meu pai. Eu matei o meu pai. Vivo com essa certeza, tal como vivo com tudo o resto. Chris insiste em dizer que a minha responsabilidade em toda esta história não é tão grande como eu imagino. Mas Chris não me conhecia nessa época. Ainda não me tinha tirado da valeta, nem me desafiara, com aquele seu ar perfeitamente comedido, a portar-me como uma pessoa adulta, em vez de passar o tempo com fanfarronices. Quando lhe pergunto por que razão me acolheu, ele limita-se a encolher os ombros e a responder: ”Instinto, Livie. Vi logo que tipo de pessoa tu eras. Lia-se nos teus olhos.” Pergunto-lhe: ”Foi porque te fiz pensar neles.” ”Eles? Quem?” Mas ele sabe a quem me refiro e ambos sabemos que é verdade. ”A tua especialidade são os salvamentos, não é?”, ao que ele replica: ”Precisavas de algo em que acreditar, Como todos nós, aliás.” A verdade é que Chris sempre me considerou melhor do que eu na realidade sou. Está convencido de que tenho bom coração. Eu, pelo contrário, considero-me desprovida de quaisquer sentimentos.

 

E a prova disso foi o que sucedeu da última vez que me encontrei com o meu pai.

 

Avistei a minha mãe e o meu pai diante da estação de metro de Convent Garden, numa sexta-feira à noite. Vinham a sair da ópera. Mesmo no estado em que me encontrava, consegui perceber isso porque a minha mãe estava vestida de negro dos pés à cabeça e usava um colar de pérolas de quatro voltas. Género gargantilha. Eu sempre lhe dissera que aquilo não a favorecia em nada, encurtava-lhe o pescoço e tornava-a parecida com um Winston Churchill de saias. O pai vestia smoking e cheirava a lavanda. Cortara o cabelo recentemente. Demasiado curto. As suas orelhas faziam lembrar duas conchas coladas ao crânio e emprestavam às suas feições uma expressão de surpresa e de inocência. Conseguira desenterrar um par de sapatos de verniz e engraxara-os até que eles brilhassem como um espelho.

 

Não os vira, nem contactara com nenhum deles desde que falara ao telefone com o meu pai, no dia em que lhe pedira ajuda. Tinham passado quase dois anos. Estivera em seis empregos distintos, partilhara o meu apartamento com cinco pessoas diferentes e vivia como me apetecia, sem prestar contas a ninguém e sentindo-me muito bem com isso.

 

Estava com dois tipos que conhecera em King Street, num pub chamado o Carneiro ou o Boi, não me lembro já. íamos a caminho de uma festa, algo de gigantesco segundo se dizia, em Brixton. Em todo o caso, era para lá que eu ia. Os tipos vinham atrás de mim. Tínhamos cheirado um pouco de coca na casa de banho dos homens e depois disso gozando que nem uns perdidos tínhamos decidido fazer um ménage à trois. Estavam doidos para me saltarem em cima, jurando que eu ia adorar a experiência porque eles eram deuses, uns garanhões de primeira água. Agarravam-me, apalpavam-me e colocavam-se em posição, enquanto eu ansiava por uma dose de coca. Sabia que devia agir com muita cautela, não era parva, e sabia que mal me deitasse e abrisse as pernas estaria tramada.

 

Estas linhas causam-vos arrepios, não é? Pousem o vosso livro. Olhem pela janela, procurem algo de belo que possam contemplar e vos faça ganhar coragem para retomar a leitura.

 

É, sem dúvida, porque a vossa vida não se parece em nada com a minha, não é verdade? Suponho que nunca se terão drogado, por isso não fazem ideia do tipo de lixo humano em que nos podemos tornar quando precisamos de uma dose. Não conseguem imaginar-vos, penso eu, de joelhos sobre os ladrilhos rachados das retretes dos homens, enquanto um tipo qualquer, que durante o dia é banqueiro na City, luta com o fecho éclair das calças de cabedal o uniforme que veste para atravessar a noite incógnito e graceja, enquanto nos segura a cabeça: ”Vá lá, ao trabalho.” Não conseguem imaginar isto, pois não? Nem sequer são capazes de conceber a ideia na vossa cabeça, porque não conseguem imaginar como aqueles escassos minutos obsequiosos, ainda que algo desagradáveis, na casa de banho dos homens, joelhos no chão, cabeça enfiada na braguilha de um desconhecido, nos compram poder, inteligência, energia, brilhantismo, e a certeza de que se é a mais superior das criaturas que Deus jamais colocou sobre a terra.

 

Porque é isso que se sente quando o pó nos sobe pelo nariz acima e nos incendeia os olhos. Contudo, a minha carência não era ainda tão forte que me fizesse esquecer as regras do jogo. Continuei então a rir-me com eles, ajoelhada sobre um ladrilho rachado, chupando ora um ora outro apenas o tempo suficiente para lhes proporcionar uma antevisão das delícias que os esperavam. Quando já estavam bem excitados, sentava-me apoiada nos tornozelos. Bocejava e baixava as pálpebras. ”Preciso de outra dose”, porque nenhum deles obteria fosse o que fosse de mim enquanto não me tivessem dado a porção de coca que me cabia.

 

Eram tipos simples, apesar do sotaque característico de escola privada e dos empregos chiques que tinham na City. Persuadidos de que eu estava à mercê deles, decidiram que era altura de serem parcimoniosos com a droga. Suponho que terão pensado que um pouco de avareza ajudaria a manter aceso o meu interesse.

 

Enganavam-se. ”Pirem-se, seus maricas”, disse eu. Isso bastou para que eles compreendessem que teriam de se mostrar mais generosos, se quisessem que os seus pequenos sonhos nojentos se tornassem realidade. Parámos o tempo suficiente para cheirar algumas linhas sobre o tejadilho de um carro. Em seguida, de braço dado, encaminhámo-nos para a estação do metropolitano. Ignoro o que eles sentiam, mas eu tinha a sensação de ter dois metros de altura.

 

Clark cantava Satisfaction com uma letra obscena da sua autoria, claramente indicadora do género de expectativas sexuais que ele acalentava para aquela noite. Barry passava o tempo a enfiar o dedo médio na minha boca e a apalpar-se entrepernas, numa tentativa para se manter em forma. Como uma faca quente cortando gelado fendemos a multidão de peões que vagueia constantemente em redor de Convent Garden. Um olhar na nossa direcção bastava para que as pessoas se afastassem para nos deixar passar. Até ao momento em que nos cruzámos com os meus pais.

 

Ainda hoje não compreendo o que eles estavam a fazer na estação, naquela noite. Sempre que não podia conduzir o seu carro, a minha mãe deslocava-se de táxi. É uma daquelas mulheres que prefeririam que lhes arrancassem as unhas, uma a uma, a ter de descer às entranhas dos transportes londrinos. O pai nunca se incomodava por ter de viajar de metropolitano. Para ele, uma viagem de metro era uma viagem, eficiente, económica e relativamente simples. De segunda a sábado, utilizava a District Line tanto para ir trabalhar como para regressar a casa, e duvido que alguma vez tenha parado para pensar na pessoa que estava sentada a seu lado, ou nas eventuais implicações de chegar à fábrica noutra coisa que não fosse um Ferrari.

 

Talvez ele tivesse conseguido persuadi-la a optar pelo seu meio de transporte habitual, naquela noite. Talvez não houvesse táxis na estação de metropolitano, à saída da ópera. Ou, então, o meu pai terá sugerido que economizassem algumas libras, dada a proximidade das férias de Verão em Jersey. Fosse como fosse, ali estavam eles, onde eu menos os esperava.

 

A minha mãe ficou calada. O meu pai não me reconheceu imediatamente, o que era bastante compreensível. Cortara o cabelo bastante curto e pintara-o de vermelho-cereja com as pontas violeta. Usava umas roupas que ele nunca vira antes à excepção dos jeans e mudara de brincos. Eram em muito maior número, além disso.

 

Eu estava tensa o suficiente para fazer uma cena. Erguendo os braços para o céu, exclamei:

 

Jesus! Vejam, meninos, as entranhas donde eu saí.

 

Quais entranhas? perguntou Barry. Pendurou o queixo no meu ombro, esticou o braço e fechou a mão sobre o meu pelvis. As miúdas têm entranhas? O que é que achas, Clark?

 

Clark não estava em estado de pensar. Oscilava à minha esquerda. Desatei a rir e a bambolear-me contra a mão que me aprisionava o sexo. Encostei-me mais a Barry.

 

É melhor parares com isso, Barry. A mamã vai ficar verde de inveja.

 

Porquê? Achas que ela também quer? Afastando-me para o lado, cambaleou na direcção dela.

 

Está com falta? perguntou Barry, pousando uma mão sobre o ombro dela. Ele não cumpre o seu dever, como um menino bem-comportado?

 

Ele é um menino bem-comportado disse eu. Ele sabe fazê-las. Estendi a mão e fiz uma festa na lapela do casaco do meu pai. Ele estremeceu.

 

A minha mãe retirou a mão de Barry de cima do seu ombro. Olhou para mim.

 

Até onde tencionas descer? perguntou.

 

E foi então que o meu pai pareceu compreender que não estava perante três vagabundos empenhados em importuná-lo e em humilhar a mulher. Estava frente a frente com a sua própria filha.

 

Meu Deus. És tu, Livie? inquiriu ele. A minha mãe segurou-o pelo braço.

 

Gordon disse ela.

 

Não, chega. Tu vais voltar para casa, Livie disse ele. Pisquei-lhe o olho.

 

Impossível disse eu. Esta noite não posso, tenho que fazer uns broches.

 

Clark colocou-se atrás de mim e apalpou-me toda.

 

Ohhh disse eu, é bom. Mas não tão bom como uma queca. Gostas de dar quecas, pai?

 

Os lábios da minha mãe mal se entreabriram, quando ela disse:

 

Gordon, vamos embora.

 

Libertei-me de Clark. Aproximei-me do meu pai, acariciei-lhe o peito e apoiei a minha testa nele. Estava duro como madeira. Virando a cabeça, contemplei a minha mãe.

 

E então, ele gosta? perguntei-lhe.

 

Gordon repetiu ela.

 

Ele não respondeu. Porque é que ele não responde?

 

Abracei-o pela cintura e atirei a cabeça um pouco para trás, para poder olhá-lo de frente.

 

Gostas de dar umas quecas, papá?

 

Gordon, é inútil falar com ela quando está neste estado.

 

Eu? perguntei. E que estado é esse? insisti. Aproximei-me um pouco mais e comecei a bambolear as ancas e a roçar-me no meu pai.

 

Muito bem, vamos alterar ligeiramente a pergunta. Queres dar uma queca comigo? Barry e Clark querem. Se pudessem, faziam-no aqui mesmo na rua. E tu? Se eu concordasse? Porque eu seria capaz de dizer que sim, sabes.

 

Lindo.

 

Clark tornou a aproximar-se de mim, por detrás, e começámos os três a bambolear-nos no passeio, formando uma espécie de sanduíche erótica. Barry começou a rir.

 

Vá lá. Façam.

 

Eu comecei a cantarolar:

 

O papá tem vontade de o fazer, de fazer, de fazer. A multidão à nossa volta dispersou.

 

Tinha a sensação que era um fragmento de vidro colorido no fundo de um caleidoscópio. Fazia parte de uma massa rodopiante que mudava quando eu mexia a cabeça. Ora estava sozinha, ora estava no centro da acção. Ora era uma dominadora, ora uma escrava.

 

Vinda de outro planeta, a voz da minha mãe soou:

 

Gordon, por amor de Deus...

 

Vamos lá a isso disse uma voz.

 

Uau! alguém gritou.

 

Monta-a incitou outra voz.

 

Foi então que dois ferros em brasa se fecharam sobre os meus pulsos.

 

Ignorava que o meu pai fosse tão forte. Quando ele me prendeu os braços e se libertou do meu abraço com um gesto brusco, senti uma dor penetrar-me até aos ombros.

 

Ei! gritei.

 

Ele recuou, tirou um lenço da algibeira e levou-o à boca.

 

Posso ajudá-lo, senhor? alguém perguntou.

 

Pelo canto do olho, entrevi um reflexo prateado. O capacete de um chui. Comecei a fazer troça dele.

 

Salvo pela polícia. Tens sorte, papá.

 

Obrigada a minha mãe agradeceu ao agente, estes três...

 

Não foi nada interrompeu o meu pai.

 

Gordon.

 

A voz da minha mãe soou em jeito de admoestação. Aquele era o momento perfeito para darem uma boa lição ao demónio que ambos tinham gerado.

 

Foi um mal-entendido disse o meu pai. Obrigado, senhor guarda. Nós vamos já embora.

 

Colocou a mão debaixo do cotovelo da minha mãe.

 

Vamos, Míriam.

 

A minha mãe tremia. Percebia-se, porque as suas pérolas tremeluziam à luz da estação.

 

És um monstro disse-me ela.

 

E ele? retorqui eu.

 

E enquanto se afastavam, desatei a gritar:

 

Porque nós sabemos, papá, não sabemos? Mas não te preocupes. Vai ser o nosso segredo. Não vou contar nada a ninguém.

 

É que eu tinha conseguido excitá-lo, percebem. Ficara duro como um ferro em brasa. E eu adorava a tremenda sensação de poder que me invadira. Só de imaginar os olhares dos passageiros do metropolitano cravados na saliência das calças dele os olhos de Miriam igualmente fixos nessa mesma saliência ficava morta de riso. Conseguira a proeza de arrancar uma reacção ao taciturno e impassível Gordon Whitelaw. Se tinha conseguido fazê-lo, num sítio público, na presença de só Deus sabe quantas testemunhas, conseguiria fazer qualquer coisa. Era a personificação da omnipotência.

 

Vocês, mexam-se. Desapareçam daqui ordenou o chui, e para os outros espectadores: Acabou o espectáculo.

 

Barry, Clark e eu nunca chegámos a descobrir a tal festa em Brixton. Também não nos esforçámos muito, é preciso que se diga. Em vez disso, fizemos nós a nossa própria festa, no apartamento de Shepherd’s Bush. Depois de termos alinhado a três duas vezes, a dois uma vez, acabámos por bater uma sozinhos, encorajando-nos mutuamente. Tínhamos pó em quantidade suficiente para durar a noite inteira, ao fim da qual Clark e Barry decidiram que o ambiente lhes agradava o suficiente para se decidirem a vir viver comigo. Por mim, não via qualquer inconveniente nisso. Eu partilharia a droga deles. Eles partilhavam-me a mim. Era uma combinação que nos satisfazia a todos.

 

Ao fim da nossa primeira semana juntos, decidimos dar uma pequena festa para comemorar o aniversário do sétimo dia. Estávamos estendidos no chão, acompanhados por três gramas de coca e meio litro de óleo de eucalipto, quando o telegrama chegou. Ela arranjara forma de mo fazer entregar, em vez de o enviar por telefone. Não havia dúvidas de que queria que o efeito fosse inesquecível.

 

Não o li imediatamente. Observava Barry que separava e partia a coca com uma lâmina de barbear e só conseguia pensar numa coisa: quanto tempo terei de esperar ainda?

 

Clark foi abrir a porta. Trouxe o telegrama para a sala de estar.

 

É para ti, Liv disse, deixando-o cair no meu colo.

 

Ligou a música e destapou o frasco de óleo. Eu despi a camisola e as calças.

 

Não vais lê-lo? perguntou ele.

 

Mais tarde disse eu.

 

Derramou um pouco de óleo sobre o meu corpo e começou a massajar-me. Fechei os olhos e senti o frémito do prazer invadir primeiro os meus ombros, depois os meus seios e as minhas coxas. Sorrindo, escutava o clique, dique, clique da lâmina de barbear de Barry, preparando o pó mágico. Quando ficou pronto, ele soltou uma risada e disse:

 

A festa vai começar.

 

Esqueci-me completamente do telegrama e só voltei a pensar nele na manhã seguinte, quando acordei envolta num nevoeiro denso, um gosto a aspirina na boca. Clark, que era sempre o primeiro a recompor-se, estava a fazer a barba, preparando-se para mais um dia de proezas financeiras na City. Barry permanecia no mesmo sítio onde o tínhamos deixado, meio estendido no sofá.

 

Estava de barriga para baixo, exibindo o traseiro pequeno e rechonchudo, os dedos agitados por espasmos, como se estivesse a tentar agarrar um objecto qualquer em sonhos.

 

Arrastando os pés, entrei na sala de estar e dei-lhe uma palmada no rabo. Ele não se mexeu.

 

Ele não vai conseguir ir trabalhar hoje. Achas que consegues acordá-lo a tempo de fazer um telefonema para o emprego?

 

Empurrei Barry com o pé. Ele grunhiu. Tornei a empurrar. Ele enterrou a cabeça no sofá.

 

Não respondi a Clark.

 

Será que podias fazer-te passar por irmã dele? Ao telefone, quero dizer.

 

Porquê? Ele vive com a irmã, normalmente?

 

Até agora, sim. E seria mais simples se tu...

 

Merda. Está bem.

 

Fiz o telefonema. Gripe, disse-lhes eu. Barry passou a noite na casa de banho, a vomitar. Acabou agora de adormecer.

 

Está feito disse eu ao desligar.

 

Clark assentiu com um gesto de cabeça. Compôs a gravata. Pareceu hesitar e fitou-me com insistência.

 

Liv disse ele, sobre a noite passada...

 

Puxara os cabelos para trás de uma forma que não me agradava. Estendi o braço para o despentear. Ele desviou a cabeça e continuou:

 

Sobre a noite passada...

 

O que é que tem? Não estás contente? Queres mais? Agora?

 

Preferia que Barry não soubesse de nada. Franzi o sobrolho.

 

Não soubesse o quê?

 

Não lhe contes nada. Conversamos depois.

 

Olhou para o relógio. Era um Rolex, um presente da sua orgulhosa mãezinha, quando ele terminara o curso na London School of Economics.

 

Tenho de sair. Tenho uma reunião às nove e meia.

 

Barrei-lhe a passagem. Não gostava de Clark quando estava sóbrio, com o seu uniforme de yuppie chique e o seu sotaque afectado. E esta manhã estava a gostar ainda menos dele.

 

Não sem que primeiro me expliques o que queres dizer, exactamente. Não conto nada a Barry sobre o quê? E porquê?

 

Ele suspirou.

 

Que estávamos só nós os dois. A noite passada. Liv, sabes muito bem ao que me refiro.

 

E depois, que importância tem isso? Ele estava completamente pedrado. Não podia ter feito nada, mesmo que quisesse.

 

Eu sei disso, mas o problema não está aí. Apoiava-se ora num pé, ora noutro.

 

Não lhe digas nada, está bem? Tínhamos um acordo, eu e ele. Não quero histórias com ele.

 

Que tipo de acordo?

 

Não tem importância. Agora não posso explicar-te. Eu continuava a barrar-lhe a passagem.

 

É melhor que me expliques, se queres chegar a horas à tua reunião. Ele suspirou e soltou uma imprecação entredentes.

 

Que acordo, Clark? Acerca da noite passada.

 

Muito bem. Antes de nos mudarmos para tua casa, combinámos que nunca aclarou a garganta, combinámos que nunca faríamos nada sem que o outro... passou a mão pelos cabelos e despenteou-o ele próprio. Estaríamos sempre os dois presentes, percebes? Contigo. Era esse o acordo.

 

Estou a ver. Quer dizer que saltariam os dois para cima de mim. A festa a três só poderia tornar-se uma festa a dois, se um de nós estivesse a assistir.

 

Se queres ver as coisas dessa maneira.

 

E há outra maneira de ver as coisas?

 

Suponho que não.

 

Óptimo. Desde que saibamos de que estamos a falar. Ele humedeceu os lábios.

 

Perfeito disse ele. Até logo.

 

Entendido.

 

Desviei-me e vi-o dirigir-se para a porta.

- Oh, Clark? Ele virou-se.

 

Caso não te tenhas apercebido, tens o nariz a pingar. Seria lamentável que fizesses má figura na tua reunião.

 

Agitei os dedos na direcção dele, num aceno de despedida e quando a porta se fechou atrás dele fui ter com Barry, íamos ver quem é que me saltava para cima e quando.

 

Dei-lhe uma palmada no traseiro. Ele resmungou. Fiz-lhe cócegas nos testículos. Sorriu.

 

Vá lá, meu valentão. Temos um assunto entre mãos.

 

Baixei-me para o virar. Foi nessa altura que tornei a reparar no telegrama, no chão, sob os dedos adormecidos de Barry.

 

Afastei-o com um pontapé e, de joelhos sobre a alcatifa, empenhei-me em reavivar a chama da paixão. No entanto, ao tomar consciência de que nada do que eu fizesse conseguiria arrancá-lo ao torpor que se apoderara dele, e muito menos lhe permitiria passar à acção, disse ”Merda” e estendi a mão para apanhar o telegrama.

 

Era desajeitada. Por isso, quando abri o envelope rasguei também a mensagem em duas metades. Li crematório e terça-feira, e de início pensei que tinha nas mãos um daqueles sinistros desdobráveis sobre como nos havemos de preparar para a vida depois da morte. Foi então que vi pai escrito no cimo da página. E, próximo desta, a palavra metropolitano. Juntei as duas metades do papel e decifrei a mensagem.

 

Ela limitou-se a dizer-me o mínimo possível. Ele morrera no metro, entre as estações de Knighstbridge e South Kensington, ao regressar a casa da ópera, na noite em que nos encontráramos. Tinha sido cremado três dias depois. O serviço fúnebre tivera lugar no quarto dia.

 

Mais tarde muito mais tarde, quando as coisas já estavam diferentes entre nós ela contou-me o resto. Ele estava de pé, ao lado dela, no meio da massa de gente que se acumula sempre no espaço minúsculo em frente às portas da carruagem, não chegara a cair, antes se inclinara com um suspiro profundo sobre uma jovem que, julgando que ele estava a atirar-se a ela, o repelira. Caíra de joelhos e depois tombara para um dos lados, no momento em que as portas da carruagem se abriram e os corpos se deslocaram para a plataforma da estação de South Kensington.

 

Os restantes passageiros, e isso só abona em favor deles, ajudaram a minha mãe a tirá-lo da carruagem, enquanto alguém corria em busca de ajuda. Mais de vinte minutos se passaram, porém, antes que ele chegasse ao hospital mais próximo, e se algo houvera que tivesse podido salvá-lo, nesse momento era já demasiado tarde.

 

Os médicos disseram que a morte dele tinha sido rápida. Uma crise cardíaca. Era muito provável que tivesse morrido antes de tocar o chão.

 

Contudo, como acabei de dizer, só muito mais tarde vim a conhecer os pormenores. Naquele momento, eu dispunha apenas da lacónica mas explícita informação contida nas linhas daquele telegrama.

 

Lembro-me de ter pensado: Minha puta! Miserável cretina! Sentia-me oprimida e afogueada. Tinha a impressão de que uma barra incandescente me perfurava o crânio. Não podia ficar de braços cruzados. E tinha de agir imediatamente. Amarfanhei o telegrama e enfiei-o com força na boca de Barry. Arrepanhei-lhe os cabelos e puxei-lhe a cabeça para trás.

 

Ria e gritava:

 

Acorda, parvalhão. Acorda. Acorda, raios te partam. Acorda.

 

Ele soltou um gemido. Deixei cair a cabeça dele no sofá. Fui até a cozinha e enchi um jarro com água. O líquido respingava-me os pés enquanto voltava para junto do sofá, sem parar de gritar: ”Levanta-te, levanta-te! Puxei violentamente um dos braços de Barry. O corpo dele veio atrás, ficando exactamente onde eu o queria: no chão. Virei-o e aspergi-o com água. Ele bateu as pálpebras e abriu os olhos.

 

Ei, o que é? disse ele.

 

E foi isso que precipitou tudo o resto.

 

Lancei-me sobre ele. Bati-lhe. Arranhei e esmurrei. Os braços dele agitavam-se como as pás de um moinho de vento.

 

Mas o que é que se passa, raios! exclamou ele, tentando segurar-me, sem o conseguir, pois estava ainda demasiado atordoado para reagir eficazmente.

 

Ri e depois tornei a gritar.

 

Sacanas nojentos.

 

Ei! Liv! protestou ele, virando-se de barriga para baixo. Sentei-me em cima dele, batendo-lhe, mordendo-lhe o ombro, sem parar de gritar.

 

Vocês dois! Não passam de dois sacanas! Queres? Queres?

 

Mas o que é que se passa? perguntou ele. Que rai... Agarrei na garrafa de óleo de eucalipto, que estava caída no chão ao lado da loiça do jantar. Bati-lhe na cabeça com ela. Não se partiu. Agredi-o no pescoço e nos ombros. Nunca parei de gritar. E ria, ria. Ele conseguiu pôr-se de joelhos. Desferi-lhe mais um golpe poderoso antes que ele conseguisse atirar-me violentamente para trás. Aterrei perto da lareira. Agarrei no atiçador e comecei a agitá-lo no ar.

 

Odeio-te! Não! Odeio-vos aos dois! Vocês não passam de uns bandalhos! Lixo!

 

E à medida que proferia cada palavra continuava a agitar o atiçador.

 

Santo Deus! gritou Barry, dirigindo-se para o quarto de dormir. Atirou com a porta. Comecei a bater na porta com o atiçador. À minha volta voavam farpas de madeira. Quando senti os ombros doridos e os meus braços se tornaram incapazes de continuar a brandir o atiçador, atirei-o para o corredor e deixei-me deslizar ao longo da parede até ficar sentada no chão. E foi nesse momento que acabei por começar a chorar, dizendo:

 

Vais fazê-lo, Barry. Comigo. E como deve ser. Agora.

 

A porta entreabriu-se ao fim de um ou dois minutos. Tinha a cabeça apoiada sobre os joelhos e não me mexi. Ouvi Barry murmurar ”Está doida”, quando passou por mim. Em seguida, ouvi-o falar com pessoas que se tinham juntado no corredor diante do nosso apartamento. Ouvi desentendimento e mau génio e coisas de mulheres e mal-entendido, na sua voz com sotaque BBC. Encostei a cabeça à parede e comecei a bater com a cabeça contra ela.

 

Garanto-te que vais solucei. Comigo. Agora mesmo. Vais, vais. Consegui pôr-me de joelhos. Obcecada pela imagem dos dois Barry e Clark comecei a destruir o apartamento. Tudo o que se podia quebrar, eu quebrei. Desfiz pratos, atirando-os contra as bancadas da cozinha, e copos, arremessando-os às paredes, e candeeiros, lançando-os ao chão. O que era feito de tecido ou estava coberto por tecido, retalhei com uma faca. O pouco mobiliário que tínhamos, virei e pisei da melhor forma que pude. No final, deixei-me cair sobre o colchão esfarrapado e manchado da nossa cama e enrodilhei-me em posição fetal.

 

Fazê-lo, porém, obrigou-me a pensar nele. E na estação de Convent Garden... Não podia permitir-me pensar nele. Tinha de sair. Tinha de me colocar acima de tudo aquilo. Tinha de voar. Precisava de poder. Precisava de alguma coisa, de alguém, não interessava o quê ou quem, desde que o resultado final fosse fazer-me sair dali, arrancar-me àquelas quatro paredes que se desligavam na minha direcção, fugir da desordem que eu tinha causado, do cheiro; que estupidez a minha ter pensado que Shepherd’s Bush tinha alguma coisa para oferecer quando havia um mundo lá fora, à espera que eu o conquistasse. Quem é que precisava desta merda, quem é que a queria, aliás, quem é que queria que aquilo fizesse parte da sua vida?

 

Abandonei o apartamento e nunca mais voltei. Aquele sítio significava pensar em Clark e em Barry. E, tanto um como outro, significavam pensar no meu pai. Era preferível arranjar droga. Enfiar comprimidos. Descobrir um tipo qualquer, cabelo cheio de brilhantina, que me pagasse os gins na esperança de se deitar comigo no assento traseiro do carro dele. Qualquer coisa era preferível àquilo. Era preferível estar em segurança.

 

Saí em Shepherd’s Bush. Encontrei o caminho para Netting Hill, onde deambulei em torno de Ladbroke Road durante algum tempo. Tinha apenas vinte libras no bolso uma soma manifestamente insuficiente para o tipo de estragos que eu queria fazer por isso não estava tão bêbeda como gostaria de ter estado quando, finalmente, cheguei a Kensington. Estava, no entanto, suficientemente embriagada.

 

Não parara para reflectir no que iria fazer. Queria apenas olhar para a cara dela uma vez mais, para que pudesse cuspir-lhe em cima.

 

Cambaleando, desci aquela rua ladeada por decentes casas brancas, com as suas colunas dóricas e as suas janelas salientes ornadas por cortinados de renda branca. Serpenteei pelo meio dos carros estacionados, murmurando, ”Espera só mais um pouco, Miriam, minha vaca estúpida. Vais ver como elas te mordem”. Parei, titubeante, na direcção da reluzente porta negra, do outro lado da rua. Apoiei-me num Dois-Cavalos antigo e fitei os degraus. Contei-os. Sete. Pareciam estar a mover-se. Ou talvez fosse eu. Só que a rua inteira parecia oscilar de uma forma muito estranha. E, então, uma neblina desceu entre mim e o meu destino. Dissipou-se para, em seguida, tornar a descer. Comecei a transpirar e a tremer, ao mesmo tempo. O meu estômago rugiu uma vez. E depois vieram as náuseas.

Vomitei para cima do tejadilho do Dois-Cavalos. E depois no passeio e na sarjeta.

 

És tu disse eu, dirigindo-me à mulher que estava na casa que ficava do outro lado da rua. Isto és tu.

 

Não para ti. Não por tua causa. Mas tu. Em que estaria eu a pensar? Ainda hoje penso nisso. Talvez julgasse que um elo indissolúvel podia ser destruído por meio de um processo tão simples como o acto de vomitar na rua.

 

Hoje sei que isso não é possível. Há formas mais profundas e duradouras de quebrar os laços que unem uma mãe a um filho.

 

Quando consegui pôr-me de pé, tornei a percorrer com passos hesitantes o caminho por onde viera. Limpei a boca, esfregando-a na camisola. Cabra, bruxa, megera, pensei. Ela culpava-me pela morte dele, e eu sabia-o. Castigara-me recorrendo ao método mais eficaz que fora capaz de imaginar. Pois muito bem, também eu podia culpabilizar e castigar. Veríamos, pensava eu, quem era a especialista.

 

Atirei-me, pois, ao projecto e passei os cinco anos seguintes a aperfeiçoá-lo.

 

Chris está de volta. Trouxe comida, como eu previa. Não é comida indiana, no entanto. É tailandesa, que ele comprou no Bangkok Hideaway. Agitou o saco debaixo do meu nariz, dizendo: ”Cheira-me isto, Livie. Ainda não provámos este, pois não? Eles cozinham amendoins e rebentos de soja e misturam-nos com as massas.” Em seguida desceu, atravessou a oficina e dirigiu-se para a cozinha, onde eu o ouço mexer nos tachos. Canta enquanto trabalha. Adora música country americana e, neste momento, interpreta Crazy, ainda que ligeiramente menos bem do que Patsy Cline. Canta a plenos pulmões e esforça-se por prolongar as sílabas quando entoa a palavra crazy. Estou tão habituada à forma como Chris canta esta canção que quando ele põe a tocar um disco de Patsj Cline, não consigo habituar-me à maneira como ela interpreta a canção.

 

No convés da lancha, onde estou sentada, vi Chris caminhar ao longo de Blomfield Road, acompanhado pelos cães. Estes já não corriam e pelo andar de Chris percebi que dividia os seus esforços entre as trelas dos cães, um saco, e algo mais, que trazia enfiado debaixo do braço. Os cães pareciam interessados neste último embrulho. Beans tentava saltar para espreitar e Toast repuxava o braço de Chris, na esperança, talvez, de que ele deixasse cair o volume. Assim não aconteceu, porém, e quando os três subiram a bordo os cães, primeiro, arrastando as trelas atrás deles vi que era um coelho. Tremia tanto que parecia um borrão cinzento e castanho com orelhas descaídas e olhos que pareciam chocolate visto através de um vidro. Olhei para Chris.

 

Foi no parque disse ele. Beans farejou-o debaixo de uma hidranja. As pessoas metem-me nojo às vezes.

 

Eu sabia ao que ele se referia. Alguém se cansara da maçada que era ter um animal de estimação e decidira que este seria muito mais feliz se fosse livre. O facto de o animal não ter nascido num ambiente selvagem pouco ou nada interessava. Acabaria por se habituar e adoraria a experiência, desde que nenhum cão ou gato o descobrisse primeiro.

 

É um amor disse eu. Como é que lhe vamos chamar?

 

Felix.

 

Mas isso não é nome de gato?

 

Significa também feliz em latim. E é assim que eu espero que ele se sinta, agora que o tirámos do parque.

 

E desceu.

 

Chris acaba de subir ao convés com os cães. Traz as tigelas deles e vai dar-lhes de comer. Habitualmente fá-lo dentro da lancha, mas eu sei que ele quer proporcionar-me alguma companhia. Coloca as tigelas perto da minha cadeira de lona e observa os cães que enfiam as cabeças na respectiva ração. Estica-se, depois levanta os braços. À luz do sol de fim de tarde, a cabeça dele parece coberta por uma película cor de ferrugem. Contempla Browning’s Island, do outro lado da bacia. Sorri.

 

O que é que se passa? pergunto eu, fazendo alusão àquele sorriso.

 

Não sei. Há qualquer coisa nos salgueiros em flor. Vê como a brisa faz oscilar os ramos. Parecem bailarinos. Fazem-me lembrar Yeats.

 

E isso faz-te sorrir? Yeats faz-te sorrir?

 

Como podemos nós distinguir o bailarino do bailado? pergunta ele.

 

O quê?

 

É Yeats. ”Como podemos nós distinguir o bailarino do bailado.” Bem-visto, não achas?

 

Baixa-se junto da minha cadeira. Repara no número de páginas que já enchi. Pega na lata onde guardo uma série de lápis grossos e conta quantos já gastei até ao momento.

 

Queres que te afie estes? É a sua maneira de perguntar como me sinto e se tenho vontade de continuar.

 

A minha maneira de responder afirmativamente às duas perguntas é, ”Onde puseste o Felix?”

 

Na mesa da cozinha, por agora. Está a lanchar. Talvez seja melhor ir verificar como ele está. Queres descer?

 

Ainda não.

 

Responde-me com um gesto de cabeça. Endireita-se e, quando o faz, a lata com os meus lápis ergue-se juntamente com ele.

 

Vocês, aí, fiquem a bordo. Beans. Toast diz ele aos cães. Estão a ouvir. Nada de caça. Tomem conta de Livie.

 

As caudas agitam-se. Chris desce. Oiço o som do afiador. Recosto-me na cadeira e sorrio. Tomem conta de Livie. Como se eu pudesse sair para ir a algum lado.

 

A pouco e pouco fomos desenvolvendo esta estranha comunicação ”estenográfica”, Chris e eu. É reconfortante saber que podemos confessar o que nos vai na alma, sem ter de abordar o assunto directamente. O único problema é que, por vezes, faltam-me as palavras e a mensagem resulta algo confusa. Por exemplo, ainda não descobri a maneira de dizer a Chris que o amo. Não que isso fosse alterar a nossa situação. Chris não me ama não no sentido que, habitualmente, atribuímos ao amor e nunca me amou. Também não me deseja. Nunca me desejou. Costumava acusá-lo de ser homossexual. Pico, era como lhe chamava, e maricas, roto. Nessas ocasiões, ele inclinava-se para a frente, na cadeira onde estava sentado, cotovelos apoiados nos joelhos e mãos enlaçadas sob o queixo e dizia, muito sério: ”Tens consciência do tipo de linguagem que usas? Tens consciência do que significa? Será que não percebes que essa tua estreiteza de vistas é apenas um sintoma de um mal mais profundo, Livie? E o que é extraordinário é que a culpa não é, de facto, tua. É da sociedade, pois é no seu seio, e não noutro lado qualquer, que desenvolvemos e modelamos os nossos comportamentos e atitudes.” Eu ficava a olhar para ele, de boca aberta. Sentia vontade de fazer troça dele. Mas como é que se luta contra um homem que nem armas usa?

 

Chris volta com a lata onde guardo os meus lápis. Traz também uma chávena de chá.

 

Felix já começou a morder a lista telefónica diz ele.

 

Ainda bem que não tenho ninguém a quem telefonar. Passa-me a mão pela face.

 

Estás a ficar gelada. Vou buscar-te um cobertor.

 

Deixa estar. Daqui a pouco desço.

 

Mas até lá...

 

E desaparece. Acabará por me vir trazer um cobertor. Aconchegar-me-á, apertar-me-á o ombro num gesto de carinho, talvez me dê um beijo no alto da cabeça. Ordenará aos cães que se deitem dos dois lados da minha cadeira e, depois, irá ocupar-se do jantar. E quando este estiver pronto virá buscar-me. ”A Menina permite que a acompanhe até à sua mesa...?”, dirá ele. Acompanhar é uma das palavras que fazem parte da nossa estenografia.

 

A luz vai esmorecendo à medida que o sol desaparece, e ao longo do canal vejo reflectidos na água os contornos dos candeeiros que iluminam outras lanchas. São formas oblongas e cintilantes da cor de sultanas, contra a qual se move uma silhueta ocasional.

 

Tudo está calmo. Sempre achei isto estranho, porque o mais provável seria que conseguíssemos ouvir os ecos de Warwick Avenue, Harrow Road, ou das duas pontes. No entanto, parece que há um fenómeno especial que faz com que, quando se está debaixo das grandes avenidas, o som faça ricochete e seja enviado noutra direcção. Chris será capaz de mo explicar. Não me posso esquecer de lhe perguntar. Mesmo que ache a pergunta estranha, não fará qualquer comentário a esse respeito. Limitar-se-á a ficar pensativo, a alisar com um dedo a farripa de cabelo encaracolado presa atrás da orelha direita e a dizer: ”Isso tem a ver com as ondas sonoras, com os edifícios em volta e com o efeito produzido pelas árvores”, e, se me vir interessada, sacará de um lápis e de um papel ou tirará um dos meus e prosseguirá, dizendo: ”Deixa-me mostrar-te o que quero dizer”, e começará a desenhar. Costumava pensar que ele inventava todas as explicações que parece ter para tudo Quem é ele, afinal? Um magrizelas com as faces cobertas por cicatrizes deixadas pela varíola, que abandonou a universidade para ”agitar as coisas, Livie. Só há uma maneira de fazer isso, sabes. E não tem nada a ver com fazer, ou não, parte da estrutura ou da infra-estrutura que mantém viva a besta”. Eu pensava que alguém que baralhava metáforas daquela maneira, e de forma tão inconsciente, dificilmente poderia ter instrução suficiente para saber fosse o que fosse, e muito menos tomar parte nalguma futura mudança social importante. Com uma expressão bastante entediada, dizia-lhe: ”Acho que o que queres dizer é ”que mantêm firmes as fundações do edifício””, tentando envolvê-lo. Essa era, porém, para além de uma indesmentível necessidade de o rebaixar, a filha da minha mãe a falar. A minha mãe, a professora de Inglês, a iluminadora de espíritos.

 

Esse foi o papel que Miriam Whitelaw desempenhou inicialmente na vida de Kenneth Fleming. Mas nada disto será novidade para vocês, provavelmente, pois faz parte da lenda Fleming.

 

Kenneth e eu temos a mesma idade, embora eu pareça ser uns anos mais velha. E, no entanto, nascemos com uma semana de intervalo, um dos muitos factos sobre Kenneth que fiquei a saber em casa, durante o jantar, algures entre a sopa e a sobremesa. A primeira vez que ouvi falar nele tínhamos ambos quinze anos. Ele era aluno da minha mãe, na Isle of Dogs. Naquela época, vivia em Cubitt Town com os pais, e fossem quais fossem as suas proezas atléticas, estas eram sobretudo exibidas nos campos de jogos ribeirinhos de Millwall Park. Não sei se a escola possuía uma equipa de críquete. É possível que sim, e Kenneth pode muito bem ter sido um dos onze jogadores da equipa. Se assim foi, no entanto, essa é uma parte da lenda Fleming que eu nunca ouvi contar. E eu ouvi a maior parte dela, noite após noite, acompanhada por rosbife, frango, solha ou lombo de porco.

 

Nunca fui professora, por isso não sei o que significa ter um aluno sobredotado. E uma vez que nunca fui disciplinada o suficiente ou interessada o bastante nos estudos, ignoro de todo o que é ser um aluno sobredotado e encontrar um mentor entre os educadores que desfilam interminavelmente em frente à turma. Isso, no entanto, foi o que Kenneth Fleming e a minha mãe foram um para o outro desde o primeiro dia.

 

Julgo que ele foi aquilo que ela sempre acreditara poder vir a encontrar, a educar e a ajudar a crescer e a libertar-se da vida embrutecedora e dos sinistros bairros sociais que constituíam a vida na Isle of Dogs. Passara a vida tentando provar qualquer coisa e, graças a ele, estava prestes a consegui-lo. Ele era a personificação de um mundo de possibilidades que se abria diante dela.

 

Uma semana depois do início das aulas, começou a falar num ”jovem inteligente que tenho numa das minhas turmas”. Foi assim que ela o apresentou ao meu pai e a mim, introduzindo-o como um dos temas de conversa favoritos das nossas horas de jantar. Ele sabia exprimir-se com desenvoltura, dizia ela. Era divertido. Fazia troça de si mesmo de uma forma enternecedora. Sentia-se perfeitamente à vontade com os colegas e com os adultos. Durante as aulas, demonstrava uma perspicácia espantosa ao dissecar os temas, as motivações e as personagens de autores como Dickens, Austen, Shakespeare, ou Brontê. Lia Sartre e Beckett nos seus tempos livres. Ao almoço debatia os méritos de Pinter. E escrevia ”Gordon, Olivia, é isto que é fantástico neste rapaz”, escrevia como um verdadeiro erudito. Possuía um espírito curioso e uma inteligência viva. Gostava de debater ideias, não se limitava a repetir conceitos que ele sabia que o professor queria ouvir. Em suma, era um sonho tornado realidade. E durante todo o ano lectivo, nunca faltou a uma única aula.

 

Eu odiava-o. Quem não teria sentido o mesmo no meu lugar? Ele era tudo aquilo que eu não era e conseguira-o sem beneficiar de uma só Vantagem Social ou Económica.

 

O pai dele é estivador disse-nos a minha mãe.

 

Parecia excitada com o facto do filho de um estivador poder vir a ser o que ela sempre clamara que o filho de um estivador podia ser: bem sucedido

 

A mãe é doméstica. Ele é o mais velho de cinco irmãos. Levanta-se às quatro e meia para preparar as aulas, porque à noite ajuda a mãe a tratar dos irmãos. Fez uma apresentação extraordinária na aula de hoje. Aquele trabalho sobre o eu que lhes pedi para fazerem. Ele pratica judo ou karaté, não sei bem, e então começou a passear na sala vestido com um daqueles fatos que parecem pijamas. Falou sobre arte e disciplina de espírito e depois... Gordon, Olivia, partiu um tijolo com a mão!

 

O meu pai meneou a cabeça, sorriu e disse:

 

Santo Deus. Um tijolo. Imaginem só.

 

Bocejei. Como tudo aquilo era entediante, como ela era aborrecida, e ele também. Só faltava que me dissessem que o querido Kenneth era capaz de caminhar sobre o Tamisa sem ter de pisar uma ponte.

 

Não havia dúvidas de que ele passaria os exames sem nenhuma espécie de dificuldade. Ou que o seu nome ficaria na história. Seria, sem dúvida, motivo de orgulho para os pais, para a minha mãe e para toda a escola secundária. E tudo isto com uma mão atrás das costas. Em seguida, prosseguiria os estudos, distinguindo-se em todas as áreas possíveis. Seguir-se-ia Oxford e novos sucessos num tema suficientemente impenetrável e, por fim, a ascensão ao cargo de primeiro-ministro. E durante todo o processo, o nome que com maior frequência afloraria aos seus lábios, no momento de revelar o segredo do seu sucesso, seria o de Miriam Whitelaw, professora bem-amada. Porque Kenneth adorava, de facto, a minha mãe. Ele tornou-a a guardiã dos seus sonhos, partilhando com ela os recantos mais íntimos da sua alma.

 

Foi por isso que ela foi a primeira a tomar conhecimento da existência de Jean Cooper. E nós - o meu pai e eu - ficámos a conhecer Jean ao mesmo tempo que ficámos a conhecer Kenneth.

 

Jean era a namorada dele. Era-o desde que ambos tinham doze anos altura em que ter uma namorada pouco mais significa do que saber com quem se vai passear no pátio da escola. Jean possuía uma beleza escandinava com os seus cabelos louros e os seus olhos azuis. Era magra como um ramo de salgueiro e ágil como um potro. Olhava para o mundo com um rosto de adolescente, mas com um olhar adulto. Ia à escola apenas quando lhe apetecia. Quando não estava com disposição para assistir às aulas, eclipsava-se com um grupo de amigos e atravessava o túnel pedonal que ia dar a Greenwich. Outras vezes, surripiava os exemplares de Just 17 que pertenciam à irmã e passava o dia a ler artigos sobre música e moda. Maquilhava-se, encurtava as saias e arranjava o cabelo.

 

Eu escutava as histórias que a minha mãe contava sobre Jean Cooper com um interesse considerável. Sabia que se havia alguém capaz de opor obstáculos à imparável ascensão de Kenneth Fleming, esse alguém seria Jean.

 

A avaliar por aquilo que eu ouvia à mesa de jantar, Jean sabia o que queria e o que ela queria não tinha nada que ver com exames, estudos, provas de admissão e universidades. Estava, no entanto, relacionado com Kenneth Fleming. Pelo menos, era assim que a minha mãe colocava a questão.

 

Tanto Kenneth como Jean fizeram os exames de nono ano. Kenneth passou os dele com louvor e distinção. Jean falhou redondamente. Ninguém ficou surpreendido com os resultados. A minha mãe, no entanto, sentiu-se gratificada, pois tenho a certeza de que ela acreditava que o desequilíbrio intelectual que existia na relação entre Kenneth e a namorada acabaria por se tornar uma evidência para o rapaz. E quando isso sucedesse, Kenneth trataria de afastar Jean da sua vida, a fim de prosseguir com os estudos. Uma ideia bastante divertida, esta, não acham? Não tenho a certeza de como é que a minha mãe terá chegado à conclusão de que o cerne das relações entre adolescentes consiste numa identificação intelectual.

 

Depois de deixar a escola, Jean arranjou um emprego em Billingsgate Market. Kenneth obteve uma bolsa de estudos que lhe permitiu entrar numa modesta escola privada, em West Sussex. Aí fez, de facto, parte da equipa de críquete, distinguindo-se de forma tão extraordinária que, em diversas ocasiões, treinadores de diferentes condados vieram vê-lo jogar e executar um número infindável de proezas sem esforço aparente. Vinha a casa durante os fins-de-semana. O meu pai e eu estávamos também ao corrente deste pormenor, porque Kenneth nunca deixava de passar pela escola para pôr a minha mãe ao corrente dos seus progressos escolares.

 

Aparentemente, praticava todos os desportos, pertencia a todos os clubes, distinguia-se em todas as cadeiras escolhidas, conquistara a amizade do reitor, dos professores, dos condiscípulos, do responsável pela sua casa, da enfermeira e da mais insignificante das lâminas de erva que pisava. Quando não estava ocupado tentando alcançar resultados cada vez mais brilhantes em West Sussex, passava os fins-de-semana em casa, ajudando a mãe a cuidar dos irmãos e das irmãs. E quando não estava a tomar conta deles, estava na escola secundária conversando com a minha mãe e servindo de exemplo vivo para todas as turmas de nono ano, mostrando-lhes o que um aluno era capaz de alcançar com um empenho e uma motivação inabaláveis. As metas de Kenneth eram Oxford, um lugar na equipa de críquete, quinze anos a jogar pela Inglaterra, se conseguisse ser escolhido, e todos os benefícios decorrentes do facto de se ser jogador da selecção inglesa: viagens, fama, contratos de publicidade, dinheiro.

 

Com um programa tão preenchido, a minha mãe concluiu, satisfeita, que ele deixaria possivelmente de ter tempo para ”aquela garota”, que era como ela se referia a Jean, franzindo os lábios num trejeito de desprezo. Não podia estar mais enganada.

 

Kenneth continuou a encontrar-se com Jean com a mesma frequência com que o fizera nos últimos anos. Apenas transferiram os encontros para os fins-de-semana, aos sábados à noite. Faziam aquilo que sempre tinham feito desde que ambos tinham catorze anos: iam ao cinema, a festas, ficavam a ouvir música com os amigos, saíam para dar longos passeios, jantavam com a família de um ou de outro, ou iam de autocarro até Trafalgar Square, onde se misturavam com a multidão e contemplavam a água que jorrava das fontes. O prelúdio nunca alterava o que se seguia, porque o que se seguia era sempre o mesmo. Faziam amor.

 

Quando Kenneth, então aluno do décimo ano, foi encontrar-se com a minha mãe naquela sexta-feira de Maio, o erro dela foi não ter dado a si própria tempo suficiente para pensar na situação depois de ele lhe ter dito que Jean estava grávida. Vendo o desespero e a vergonha espelhados no rosto dele, disse a primeira coisa que lhe ocorreu: ”Não!” Depois, continuou: ”Não é possível. Não agora. Ela não pode estar...”

 

Ele disse-lhe que sim, que era possível. Era muito mais do que possível, era um facto. Depois pediu desculpa.

 

Ela sabia o que iria seguir-se ao pedido de desculpas e procurou desviar a conversa.

 

Ken, eu sei que estás perturbado, mas tens de me ouvir. Tens a certeza de que ela está grávida?

 

1 Os alunos são divididos em vários grupos. Cada grupo é alojado numa casa, que está sob a responsabilidade de um professor. {N. da T.}

 

Ele disse-lhe que fora a própria Jean quem lhe dera a notícia.

 

Mas já falaste com o médico dela? Ela já foi ao médico? Ou a uma clínica Já fez o teste?

 

Ele não respondeu. Tinha um ar tão infeliz que a minha mãe tinha a certeza que ele se escapuliria da sala antes que ela tivesse oportunidade de clarificar a situação.

 

Continuou, sem perder mais tempo:

 

Ela pode estar enganada. Pode ter contado mal os dias.

 

Ele disse que não, que não havia erro nenhum. Ela não tinha contado mal os dias. Duas semanas antes, ela dissera-lhe que era uma possibilidade. Agora, a possibilidade tinha-se tornado uma certeza.

 

A minha mãe tornou a insistir, cautelosa:

 

Haverá alguma possibilidade de ela estar a tentar prender-te pelo facto de teres ido estudar para longe e de ela sentir a tua falta, Ken? Que esteja a inventar uma gravidez neste preciso momento só para te obrigar a deixar a escola. E que dentro de um ou dois meses, depois de vocês se casarem, ela torne a inventar um falso aborto.

 

Ele disse que não, que não era nada disso, que Jean não agia dessa maneira.

 

Como é que sabes? perguntou a minha mãe. Se não falaste com o médico dela, se ainda não viste os resultados do teste dela com os teus próprios olhos, como podes saber se ela está ou não a dizer-te a verdade?

 

Ele respondeu que ela tinha ido ao médico. Ele vira os resultados do teste. Tinha muita pena. Desiludira toda a gente. Os pais. Mrs. Whitelaw e a escola secundária. O concelho que lhe atribuíra a bolsa de estudos...

 

Oh, meu Deus, estás a pensar casar-te com ela, não estás? perguntou a minha mãe. Estás a pensar em deixar a escola, em renunciar a tudo para te casares com ela. Mas não deves fazer isso.

 

Não havia outra saída, disse ele. Ele era igualmente responsável pelo que sucedera.

 

Como podes dizer uma coisa dessas?

 

Porque Jean tinha ficado sem pílulas. Ela dissera-lhe isso. Não queria... E fora ele e não Jean quem dissera que ela não iria engravidar logo na primeira vez que eles fizessem amor depois de ela deixar de tomar a pílula. Não vai haver problema, dissera ele. Mas houve. E agora... Ergueu as mãos e deixou-as cair logo de seguida, aquelas mãos talentosas que seguravam o bastão que batia a bola com tanta destreza, as mesmas mãos que seguravam a caneta que escrevia ensaios maravilhosos, as mãos que atravessavam um tijolo de um só golpe, enquanto ele dissertava tranquilamente sobre uma definição do eu.

 

Ken a minha mãe tentou manter a calma, o que não era fácil tendo em conta os temas de conversa, ouve-me, querido. Tens um belo futuro à tua frente. Os teus estudos. Uma carreira.

 

Agora já não, ripostara ele.

 

Sim! Ela continua a existir. E não deves sequer pensar em atirá-lo borda fora por uma imbecil que seria incapaz de reconhecer as tuas potencialidades mesmo que lhas explicassem uma a uma.

 

Jean era mais do que isso, disse ele. Era boa pessoa. Conheciam-se desde sempre. Ele haveria de arranjar uma solução. Tinha imensa pena. Desiludira toda a gente. Em especial Mrs. Whitelaw, que fora tão boa para ele.

 

Era evidente que, para ele, a conversa terminara. A minha mãe jogou o seu trunfo com cautela.

 

Bom, deves agir como achares melhor, mas... Não quero magoar-te No entanto, há coisas que têm de ser ditas. Por favor, pensa bem. Tens a certeza de que o bebé é teu, Ken?

 

Ele parecia tão abatido que a minha mãe viu nisso ensejo para continuar.

 

Tu não sabes tudo, meu querido. Não podes saber tudo. E, sobretudo, não podes saber o que se passa aqui quando estás em West Sussex, pois não? Juntou as coisas dela e guardou-as dentro da pasta, com gestos suaves Por vezes, meu querido Ken, uma jovem que dorme com um rapaz está mais do que disposta... Sabes o que quero dizer.

 

O que ela queria dizer era, ”Há anos que aquela galderiazinha anda a dormir com este e com aquele. Só Deus sabe quem foi o primeiro. Pode ter sido qualquer um. Pode ter sido toda a gente”.

 

Numa voz muito baixa, ele disse que o bebé era dele. Jeannie não dormia com o primeiro que lhe aparecia e não mentia.

 

Talvez nunca a tenhas apanhado em flagrante disse a minha mãe. Em nenhuma das circunstâncias.

 

Prosseguiu no tom de voz mais carinhoso de que foi capaz.

 

Tu continuaste a estudar. Ultrapassaste-a. É compreensível que ela queira atrair-te novamente para o mundo dela. Ninguém lhe pode querer mal por isso. E concluiu, dizendo: Pensa bem, Ken. Não tomes nenhuma decisão precipitada. Promete-me que não o farás. Promete-me que vais esperar pelo menos mais uma semana antes de fazer seja o que for, ou de contar tudo isto a alguém.

 

Nessa mesma noite, ao jantar, o meu pai e eu tivemos direito a um relato minucioso do encontro entre ela e Kenneth Bem como às reflexões dela sobre esta nova Queda do Homem. A reacção do meu pai foi:

 

Meu Deus. Que aborrecido para todos. A minha foi um sorriso sarcástico.

 

E assim termina o reinado de mais um deus de lata disse eu, olhando para o tecto.

 

A minha mãe lançou-me um olhar fulminante e disse que haveríamos de ver quem era de lata e quem não era.

 

Foi visitar Jean na segunda-feira seguinte, faltando para isso à escola. Não queria encontrar-se com ela em casa, pretendia antes beneficiar da vantagem do elemento surpresa. Dirigiu-se, assim, até Billingsgate Market, onde Jean trabalhava numa espécie de cafetaria.

 

A minha mãe não tinha quaisquer dúvidas em relação à forma como o seu encontro com Jean Cooper iria decorrer. Tivera já muitos encontros do género com outras mães solteiras, e era especialista na matéria. A maioria das raparigas que tinham caído sob a protecção da minha mãe tinham acabado por ser chamadas à razão. A minha mãe era perita na arte da persuasão, sabendo colocar a ênfase no futuro do bebé, no futuro da mãe e no equilíbrio entre ambos. Não tinha por isso razões para pensar que Jean fosse opor-lhe algum obstáculo, ela que lhe era apesar de tudo inferior, tanto mentalmente como emocional e socialmente.

 

Descobriu Jean, não na cafetaria, mas na casa de banho das senhoras onde fazia uma pausa, fumando um cigarro e atirando a cinza para o lavatório Usava uma blusa branca manchada de nódoas de gordura. Apanhara os cabelos casualmente e escondera-os debaixo da touca. A meia da perna direita exibia uma malha puxada, que desaparecia dentro do sapato. Do simples ponto de vista das aparências, a minha mãe estava incontestavelmente em vantagem.

 

Jean não fora aluna dela. Os quadros de honra estavam muito em voga naquela época, e Jean passara os seus anos escolares convivendo com o peixe menos graúdo. A minha mãe, porém, sabia quem ela era. Ninguém conhecia Kenneth Fleming sem conhecer Jean Cooper. E Jean também sabia quem era a minha mãe. Kenneth falara-lhe, sem dúvida, na sua professora até ela ficar farta de Mrs. Whitelaw muito antes de a conhecer pessoalmente em Billingsgate Market.

 

Kenny estava desfeito quando estive com ele, na sexta-feira à noite foi a primeira coisa que Jean disse. Não consegui arrancar-lhe uma palavra. Voltou para a escola no sábado e não no domingo à noite, como de costume. Suponho que a senhora teve alguma coisa a ver com o assunto, não foi?

 

A minha mãe atacou com a frase clássica:

 

Gostaria de conversar contigo sobre o futuro.

 

O futuro de quem? O meu? O do bebé? Ou o de Kenny?

 

Dos três.

 

Jean abanou a cabeça.

 

Aposto que o meu futuro anda a deixá-la bastante desorientada, Mrs Whitelaw. Aposto que anda a perder horas de sono por causa do meu futuro Sou até capaz de apostar que já tem o meu futuro todo planeado e que tudo o que eu tenho a fazer é ouvir o que me vai dizer.

 

Deixou cair o cigarro sobre o linóleo coberto de rachas, esmagou-o com o dedo do pé e acendeu outro, de imediato.

 

Isso não faz nada bem ao bebé, Jean disse a minha mãe.

 

Eu decido o que é bom para o bebé, muito obrigada. Eu e Kenny vamos decidir. Sozinhos.

 

Será que algum de vocês dois está em posição de decidir? Sozinhos, quero eu dizer.

 

Havemos de nos arranjar.

 

Ken é um simples estudante, Jean. Não tem qualquer tipo de experiência profissional. Se ele deixar os estudos agora, vocês ficarão presos a uma vida sem futuro nem perspectivas. Percebes isso, com certeza.

 

Percebo muita coisa. Percebo que o amo e que ele me ama e que queremos ter uma vida juntos, e que vamos fazer por isso.

 

Tu vais fazer por isso disse a minha mãe. Tu, Jean. Ken não faz parte desse quadro. Nenhum rapaz tem desejos desse tipo aos dezasseis anos de idade. E Ken acabou de fazer dezassete. É quase uma criança. Tal como tu própria... Jean, queres mesmo dar um passo destes casamento e filhos, uns atrás dos outros quando vocês são ainda tão novos? Quando têm tão poucos recursos? Quando vão ter de recorrer à ajuda das vossas famílias, que mal têm com que sobreviver. Achas que esse é o melhor futuro para os três? Para Ken, para a criança, para ti própria?

 

Percebo muita coisa disse Jeanie. Que estamos juntos há muitos anos e que o que temos é bom, sempre foi, e o facto de ele ir para uma escola fina não vai mudar nada. Por mais que a senhora queira o contrário.

 

Eu só quero o que for melhor para vocês dois.

 

Jean riu-se e continuou a fumar o seu cigarro, observando a minha mãe através do fumo.

 

Percebo muita coisa repetiu ela. Percebo que falou com Kenny e que lhe deu a volta à cabeça e o deixou desorientado.

 

Ele já estava desorientado. Céus, deves estar ciente de que ele não iria propriamente receber esta notícia fez um gesto na direcção do estômago de Jean de braços abertos. Isso vai destruir a vida dele.

 

Vejo que a senhora fez com que ele começasse a olhar para mim com a cabeça cheia de dúvidas. Vejo as perguntas que a senhora o obrigou a fazer. Vejo-o a pensar, ”E se a Jeannie andar por aí a divertir-se com mais três ou quatro para além de mim”, e vejo onde ele foi buscar essa ideia, porque a resposta está aqui mesmo, debaixo do meu nariz.

 

Jean atirou o cigarro para o chão e apagou-o.

 

Tenho de voltar ao trabalho. Se me dá licença... e passou pela minha mãe de cabeça baixa e limpando as faces.

 

Estás perturbada disse a minha mãe. É compreensível. Mas as perguntas de Ken são legítimas. Se lhe vais pedir que abdique do seu futuro, tens de aceitar que ele queira certificar-se primeiro de...

 

Ela virou-se tão rapidamente que a minha mãe vacilou.

 

Eu não peço nada. O bebé é dele e eu disse-lhe isso, porque pensei que ele tinha o direito de saber. Se ele decidir que quer deixar os estudos e ficar comigo, óptimo. Se não, haveremos de sobreviver sem ele.

 

Mas há outras opções disse a minha mãe. Nem sequer precisas de ter o bebé. Mas se o tiveres, não tens de ficar com ele. Há milhares de homens e de mulheres ansiosos por adoptar uma criança. Não há razão para trazer ao mundo uma criança indesejada.

 

Jeannie agarrou o braço da minha mãe com tanta força que, mais tarde -nessa noite, ao jantar, quando ela no-lo mostrou havia nódoas negras nos sítios onde ela enterrara os dedos.

 

- Proíbo-a de o chamar indesejado, sua cabra mal-intencionada. Não se atreva.

 

Foi aí que ela viu a verdadeira Jean Cooper, contou a minha mãe com uma voz trémula. Uma rapariga que faria tudo para obter o que desejava. Uma rapariga capaz de qualquer acto, de violência até. E ela tinha intenção de ser violenta, quanto a isso não havia dúvidas. Ela tinha intenção de agredir a minha mãe e tê-lo-ia feito, se uma das secretárias do mercado não tivesse aparecido naquele momento, equilibrando-se em cima de uns saltos altos, que ficaram presos numa das rachas do linóleo.

 

- Raios partam exclamou ela. Oh, desculpem. Estou a interromper alguma coisa?

 

Não disse Jean, libertando o braço da minha mãe e saindo da casa de banho.

 

A minha mãe seguiu-a.

 

- Não vai resultar. Vocês dois. Jean, não lhe faças isto. Ou, pelo menos, espera até...

 

... até a senhora ter tido uma oportunidade de ficar com ele só para si? concluiu Jean.

 

A minha mãe estacou a alguns metros de distância, certificando-se de que estava fora do alcance de Jean.

 

Não sejas ridícula. Não sejas absurda.

 

Jean Cooper, no entanto, não era nem uma coisa nem outra. Tinha dezasseis anos e conseguia prever o futuro, embora nessa época desconhecesse que tinha esse talento. Nessa época, deve ter apenas pensado, ”Ganhei”, porque Kenneth abandonou de facto os estudos no final do período. Não casaram imediatamente. Surpreenderam toda a gente esperando, trabalhando, poupando antes de finalmente se decidirem a casar, seis meses depois do nascimento de Jimmy, o primeiro filho de ambos.

 

Depois disso, as nossas refeições em Kensington passaram a decorrer com tranquilidade. Deixámos de ter notícias de Kenneth Fleming. Não sei o que o meu pai pensava sobre a súbita ausência de tema de conversa à mesa de jantar. Quanto a mim, passei muitas horas felizes comemorando o facto de o ”pequeno deus” da Isle of Dogs se ter revelado mais um mortal com pés de barro. A minha mãe, porém, não o abandonou totalmente. Não era o estilo dela. Em vez disso, persuadiu o meu pai a arranjar-lhe uma posição na fábrica, para que ele tivesse um emprego estável e pudesse tomar conta da família. Kenneth Fleming, no entanto, não era já o exemplo glorioso de uma promessa de juventude cumprida, como em tempos ela esperara que ele fosse. Por isso, não havia razão para que ela desfiasse, noite após noite, as suas proezas e habilidades para nosso grande júbilo e admiração.

 

A minha mãe lavou as suas mãos do destino de Kenneth Fleming, tal como faria em relação a mim cerca de três anos mais tarde. A única diferença foi que na primeira oportunidade que se lhe apresentou, pouco depois da morte do meu pai, ela pegou numa toalha e secou as mãos.

 

Kenneth tinha vinte e seis anos nessa época. A minha mãe tinha sessenta

 

                                     CAPÍTULO 5

Kenneth Fleming», concluiu o jornalista do canal informativo ITN, adoptando o tom solene

que julgava adequado à ocasião, ”morre aos trinta e dois anos de idade. O mundo do críquete está de luto esta noite.

A câmara abriu-se num plano panorâmico para mostrar os muros afestonados e o ornamentado portão em ferro forjado de Lord’s Cricket Ground, que servia de tela de fundo à reportagem. ”Dentro de momentos, teremos as reacções dos seus colegas de equipa e de Guy Mollison, capitão da selecção inglesa.”

 

Jeannie Cooper afastou-se da janela da sala de estar e premiu o botão que desligava a televisão. A imagem tornou-se imprecisa nos cantos antes de desaparecer completamente, deixando uma espécie de resíduo no ecrã.

 

Preciso de comprar uma televisão nova, pensou. Quanto é que poderá custar uma, hoje em dia?

 

Era uma boa desculpa para divagar e evitar certas preocupações: que género de televisor iria comprar? Qual o tamanho do ecrã? Colunas estéreo, ou não? Com ou sem vídeo? Encastoado num móvel como o que tinha agora, um autêntico monstro do tamanho de um frigorífico, comprado na altura em que Jimmy nascera. Quando o nome do filho lhe atravessou o espírito, Jeannie mordeu violentamente o interior do lábio, esforçando-se por fazê-lo sangrar. A dor física provocada por uma ferida num lábio era algo que ela conseguia suportar. Insuportável era tentar imaginar por onde Jimmy teria andado durante todo o dia. Jimmy ainda não chegou? perguntara ao irmão, quando a polícia a deixara em casa depois da terrível experiência vivida no Kent. Também não foi à escola, pelo que me disse Shar. Desta vez baldou-se mesmo

 

Derrick pegou em dois dos seus aparelhos de musculação que estavam sobre a mesa baixa da sala. Pareciam pinças, que ele apertava ora com uma mão, ora com a outra, murmurando, ”Adutor, flexor, pronador, isso mesmo”.

 

E tu não foste procurá-lo, Der? Não foste até ao parque?

 

Derrick observava os volumosos músculos dos seus braços, que se contraíam e relaxavam.

 

Vou-te contar uma coisinha sobre aquele patifezinho. No parque é que ele não está de certeza.

 

Jeannie tivera esta conversa com o irmão pelas seis e meia da tarde, pouco antes de ele se ir embora. Passava agora das dez horas. Os dois filhos mais novos estavam na cama havia mais de uma hora. E desde o momento em que fechara as portas dos quartos de ambos e descera novamente ao rés-do-chão, Jeannie permanecia à janela, escutando o rumorejar das vozes na televisão e escrutinando a noite, em busca de um sinal de Jimmy.

 

Aproximou-se da mesa baixa, onde estavam os cigarros, e enfiou a mão no bolso à procura da caixa de fósforos. Ainda não despira o uniforme de trabalho que vestira às três e meia da madrugada. Tinha a impressão que tanto a bata como os sapatos se tinham colado a ela como uma segunda pele. A única peça de vestuário que tirara durante o dia fora o boné, que deixara perto da caixa registadora, no Crissy’s, antes de partir para o Kent. Tudo isso acontecera numa outra vida, aparentemente, num período que ela classificaria de hoje em diante como Antes do Aparecimento da Polícia em Billingsgate

 

Jeannie inalou o fumo do cigarro. Voltou para o seu posto junto da janela e afastou o cortinado.

 

Apercebeu-se de um movimento no passeio, três portas abaixo da sua. Ignorando o que lhe dizia a razão e a experiência, desejou que a silhueta que caminhava na sua direcção fosse o seu filho mais velho. Era uma figura alta e magra, que caminhava com o mesmo passo enérgico, delgado como o pai. Concedeu a si própria alguns instantes para sentir a libertação de tensão que costuma acompanhar as sensações de alívio. Depois viu que não se tratava, de facto, de Jimmy, mas sim de Mr. Newton, que saía com a sua cadela corgi para o habitual passeio nocturno até à estação de metro de Crossharbour

 

Jeannie pensou em sair para ir à procura de Jimmy. Rejeitou a ideia, no entanto. Havia um certo número de coisas que ela tinha de descobrir sobre o filho, e a única maneira de lhas arrancar era ficar onde estava, nesta sala, para que pudesse ser o primeiro membro da família que Jimmy veria quando, finalmente, entrasse em casa. Até esse momento, disse para consigo, tinha de manter-se calma. Tinha de esperar. Tinha de rezar.

 

Só que ela sabia que as suas orações em nada alterariam o que já tinha acontecido.

 

O telejornal das dez horas fornecera-lhe os pormenores que ela não procurara obter junto da polícia: a data da morte de Kenny, a causa não oficial da sua morte, dependente dos resultados da autópsia, o local onde o corpo fora encontrado, o facto de estar sozinho. ”As autoridades policiais apuraram até ao momento que o incêndio na casa de campo foi provocado por um cigarro aceso esquecido numa poltrona”, anunciara o locutor. Fitara, depois, a câmara e com um pesaroso menear de cabeça, acrescentara: ”O tabaco mata realmente de inúmeras maneiras.”

 

Jeannie afastou-se da janela para apagar o cigarro num cinzeiro de metal em forma de concha onde, impresso a caracteres dourados, se podia ler a inscrição Weston-Super-Mare. Acendeu outro, pegou no cinzeiro e regressou ao seu posto de observação.

 

Como gostaria de poder dizer que fora a motorizada que desencadeara tudo, que todos os seus problemas com Jimmy tinham começado no dia em que ele trouxera aquela malfadada moto para casa. Mas a verdade era bem mais complicada do que todas as disputas entre mãe e filho acerca da propriedade deste tipo de meio de transporte. A verdade estava algures, na infinidade de temas de conversa que ambos vinham evitando há anos.

 

Deixou cair o cortinado e arranjou-o cuidadosamente. Quanto tempo da sua vida teria ela passado em pé, à janela, espreitando a chegada de alguém que acabava por nunca aparecer?

 

Atravessando a sala de estar, aproximou-se do velho sofá cinzento, que fazia parte do sinistro conjunto de três peças que ela e Kenny tinham herdado dos pais dela quando se tinham casado. Pegou num exemplar já amarelecido da Woman’s Own e sentou-se na beira de uma das almofadas. Esta estava tão gasta que o forro há muito se transformara num monte de pequenas bolas. Era quase tão confortável como estar sentada sobre areia molhada. Kenny tinha querido substituir os velhos móveis por algo mais elegante quando começara a jogar na selecção. Nessa altura, no entanto, tinham já passado dois anos desde que ele a deixara, e Jeannie recusara a oferta.

 

Abriu a revista que tinha sobre os joelhos. Debruçou-se sobre as páginas, tentando ler. Começou um artigo intitulado ”O Diário de Um Vestido de Noiva”, mas depois de quatro tentativas sem sair do mesmo parágrafo, onde se narravam as fantásticas aventuras de um vestido de noiva alugado, tornou a colocar a revista sobre a mesa da sala, passou os punhos pela testa e, fechando os olhos com força, tentou rezar.

 

Meu Deus murmurou. Meu Deus, permite que... O quê, perguntou a si própria. Que deveria Deus fazer? Alterar a realidade? Mudar os factos?

 

Contra a sua vontade, viu-o de novo: deitado, inerte, naquela sala gelada forrada a armários fechados e a aço inoxidável, a pele da cor do salmão, imóvel como mármore, ele que fora um ser transbordante de energia, de vida, de ímpeto...

 

Com um movimento rápido, levantou-se do sofá e começou a passear pela sala. Batia com as falanges da mão direita na palma da mão esquerda. Onde estará ele, onde estará ele, onde estará ele, pensou.

 

O ruído da motorizada fê-la estacar. O motor estrondeou ao longo do carreiro que separava as casas de Cardale Street das que ficavam nas traseiras da casa deles. Continuou a trabalhar junto do portão das traseiras, como se o condutor estivesse a tentar decidir o que haveria de fazer. Em seguida, o portão abriu e fechou-se com um rangido, o estrondo surdo e prolongado do motor tornou-se mais próximo e a motorizada cuspiu uma vez antes de se calar definitivamente do outro lado da porta da cozinha. Jeannie tornou a sentar-se no sofá. Ouviu a porta da cozinha abrir e fechar-se logo em seguida. O som de passos soou sobre o linóleo e ele apareceu, Doc Martens com biqueiras de metal e atacadores mal apertados, calças de ganga sem cinto, descaídas sobre as ancas, uma T-shirt suja crivada de buracos na gola. Com a mão afastou uma longa madeixa de cabelos, que prendeu atrás da orelha, e apoiou o peso do corpo sobre um dos pés, fazendo sobressair uma anca magrizela. À parte as roupas e o facto de estar imundo como um vagabundo, parecia-se de tal maneira com o pai quando este tinha dezasseis anos que Jeannie teve a impressão que um véu de bruma se erguia entre ela e o filho. Era como se alguém lhe enterrasse uma lança debaixo do seio esquerdo, e ela susteve a respiração tentando fazer com que a dor desaparecesse. ondestiveste, Jimmy?

- sAÍ.

- Manteve a cabeça inclinada para um lado, como sempre fazia^numa tentativa para disfarçar a sua altura.

Não gosto que guies aquela moto sem os óculos. É perigoso.

 

Com um gesto brusco, ele afastou os cabelos que teimavam em cair-lhe sobre a testa. Encolheu os ombros com uma expressão de indiferença. Foste à escola hoje?

Lançou um olhar rápido na direcção das escadas e remexeu na fivela do cinto. Já sabes o que aconteceu ao pai?

 

A sua maçã-de-adão subiu e desceu. Os seus olhos deslizaram até ela e, em seguida, tornaram a fitar as escadas.

Foi desta para melhor.

Como é que soubeste?

- Transferiu o peso do seu corpo para a outra perna, fazendo sobressair a outra anca. Era tão magro que Jeannie sentia uma dor nas palmas das mãos sempre que olhava para ele.

Enfiou o punho num dos bolsos e tirou um maço amarfanhado de jPS Mergulhou o indicador imundo no interior e sacou um cigarro que prendeu entre os lábios. Olhou para a mesa e daí para o móvel da televisão. Os dedos de Jeannie fecharam-se em torno da caixa de fósforos, que tinha dentro do bolso. Sentiu a extremidade de um deles enterrar-se no polegar.

 

Como é que descobriste, Jim? repetiu ela.

 

Pela televisão.

 

Onde? Pela televisão de quem? Em casa de um tipo qualquer, em Deptford.

 

Como é que ele se chama?

 

Jimmy rodou o cigarro entre os lábios, como se estivesse a atarraxar um parafuso. Não o conheces. Nunca o trouxe cá a casa.

- Como é que ele se chama?Brian ele olhou-a firmemente nos olhos, como sempre fazia quando estava a mentir, Brian Jones. Foi lá que estiveste hoje? Em Deptford? Com esse tal Brian Jones? Voltou a enfiar as mãos nos bolsos. Franziu as sobrancelhas.

 

Jeannie pôs a caixa de fósforos sobre a mesa e designou-a com um movimento do queixo. Jimmy hesitou, como se suspeitasse de que ela estava a montar-lhe uma armadilha. Depois inclinou-se para a frente, agarrou nos fósforos rapidamente e acendeu um deles friccionando-o na unha do polegar. Enquanto aproximava o fósforo do cigarro, observou a mãe. O teu pai morreu num incêndio disse Jeannie. Na casa de campo. Jimmy inalou profundamente o fumo do cigarro e ergueu a cabeça para o tecto, como se isso contribuísse para que o fumo penetrasse mais profundamente nos pulmões e aí permanecesse mais tempo. Os seus cabelos pendiam, tesos, em madeixas oleosas que faziam lembrar rabos de ratazanas. Era louro como o do pai, mas não era lavado há tanto tempo que a sua cor se assemelhava agora à palha ensopada em urina que costuma cobrir o chão das cavalariças.

 

Estás a ouvir o que te estou a dizer, Jim? Jeannie tentava manter uma voz tão calma e firme como a do locutor do telejornal. O teu pai morreu num incêndio. Na casa de campo. Quarta-feira à noite. Tornou a inalar. Recusava-se a olhar para ela. A sua maçã-de-adão, todavia, continuava a subir e a descer como um ioiô.

 

Jim. O que é? O incêndio foi causado por um cigarro. Um cigarro esquecido numa cadeira. O teu pai estava no andar de cima, a dormir. Respirou o fumo,

 

E depois? A quem é que isso interessa? A ti, espero. A Stan, a Sharon, a mim.

 

Oh, claro. Como se a ele lhe interessasse muito saber que um de nós tinha morrido. Grande piada. Ele nem ao funeral teria vindo.

 

- Não digas essas coisas.

 

Que coisas?

 

Sabes muito bem que coisas. Não finjas que não sabes.

 

Queres que diga bordel e merda. Ou preferes que eu diga a verdade? Ela não respondeu. Ele passou os dedos pelos cabelos, foi até à janela, voltou para trás, parou. Ela tentou adivinhar os pensamentos dele e perguntou a si mesma em que momento, exactamente, perdera o dom de adivinhar imediatamente o que se passava na cabeça dele.

 

Não digas palavrões dentro desta casa pediu ela, em voz baixa. Deves dar o exemplo. Tens um irmão e uma irmã que olham para ti como um modelo de comportamento.

 

E que ricas peças que eles são, soltou uma risada trocista. Stan é um bebé que ainda precisa de chucha e Shar...

 

Não te atrevas a falar mal deles.

 

Shar é dura como uma pedra, só tem serradura dentro daquela cabeça. Tens a certeza que somos todos da mesma família? Tens a certeza de que mais ninguém, sem ser o pai, te pôs no choco?

 

Jeannie pôs-se de pé. Fez menção de dar um passo na direcção do filho, mas as palavras dele mantiveram-na à distância.

 

Podias muito bem ter andado com outros tipos, não podias? No mercado, por exemplo? Rolando pelo chão, no meio da porcaria, depois das horas de serviço? Deixou cair a cinza do cigarro sobre as calças. Limpou-a com o dedo. Em seguida fez uma careta, riu e deu uma sonora palmada na testa. Pois é! Como é que não percebi isso antes?

 

Não percebeste? O quê?

 

Que tivemos pais diferentes. O meu é o famoso jogador de críquete, o que me dá algumas vantagens em aspecto e inteligência...

 

Tem cuidado com o que dizes, Jimmy.

 

Shar é filha do carteiro, e é por isso que a cara dela parece ter sido carimbada.

 

Chega.

 

E o pai de Stan é o tipo das Fens. Aquele que pesca enguias. Como é que conseguiste ir para a cama com um pescador de enguias, mãe? É claro que o pirilau dele é tão bom como outro qualquer, desde que os olhos estejam fechados e que ninguém se importe com o cheiro.

 

Jeannie deu a volta à mesa da sala.

 

Onde é que foste inventar esses disparates, Jim?

 

Parece que estou a ver. Aqueles tipos todos. Aquele peixe todo. O cheiro deve fazer-lhes água na boca, o rosto dele iluminou-se e a voz começou a subir de tom, por isso se encontrarem uma galdéria que não seja muito esquisita em relação aos gajos com quem anda, ao sítio e à altura...

 

Se continuas assim, eu já te digo como elas te mordem, meu menino ... eles não se fazem rogados para abrir a braguilha e fazer saltar o Coiso.

 

Pára com isso. Já!

 

Ela vê que o tipo está teso que nem um pau. Mas que bela ponta tens tu, diz ela com uma risadinha. Dito isto, baixa as cuecas e ele monta-a por trás dentro de uma daquelas câmaras frigoríficas. Lá dentro está um frio de rachar, mas ela não se importa, porque tem um gorila em cima dela que ... a fode até ela ficar tonta, até ao dia em que a criança salta cá para fora que nem uma batata com pernas.

 

Inalou com força. As mãos tremiam-lhe.

 

Jeannie sentiu os olhos a arder. Pestanejou. Compreendeu.

 

Oh, Jimmy murmurou. O teu pai nunca te quis fazer sofrer. Tens de saber isso.

 

Com gestos rígidos, ele tapou as mãos com os ouvidos. A voz dele soou mais estridente.

 

E, no dia seguinte, ela vai com outro gajo, percebes? Todos ficam a olhar e ela gosta disso. Forma-se uma roda à volta deles, aplaudindo-os e incitando-os.

 

O teu pai morreu, Jim. Foi embora. O rosto dele fechou-se.

 

Primeiro vai um. Depois outro. Ela geme. Guincha. Vá lá, dá-me tudo o que aí tens, eu aguento, é assim que eu gosto.

 

Jeannie aproximou-se do filho e pôs as suas mãos sobre as dele. Tentou baixá-las e fazer com que ele descobrisse as orelhas, mas tudo o que conseguiu foi afastar o cigarro, que caiu sobre o tapete. Levantou-o e apagou-o no cinzeiro.

 

E depois eles montam-na, estás a ver, todos eles. Fartam-se de saltar em cima dela, e ela nunca se dá por satisfeita. A voz dele soava trémula. As mãos passaram das orelhas para os olhos. Os dedos beliscaram-lhe a pele.

 

Jeannie tocou-lhe no braço. Ele soltou um grito e afastou-se.

 

O teu pai amava-te disse ela. Ele amava-te. Sempre te amou. Ele continuava escondido pelas mãos, dizendo:

 

E eles fazem tudo aquilo com ela. Fazem. Fazem, sim. E depois de acabarem, depois de estarem fartos dela e de a deixarem estendida sobre as bancadas do peixe com um sorriso imbecil estampado na cara de estúpida, ela pensa que teve o que queria, o que... queria, porque tem estes tipos todos, estás a ver, mesmo que não tenha conseguido segurá-lo, e pensa, pensa, ela nem sequer consegue pensar, que é assim que as coisas deviam ser.

 

Começa a chorar.

 

Jeannie abraça-o. Ele repele-a e corre escadas acima.

 

Oh. Porque é que não te divorciaste dele? pergunta ele, entre soluços. Porquê? Porquê? Meu Deus, mãe. Podias ter-te divorciado dele.

 

Jeannie viu-o subir as escadas. Queria segui-lo. Faltavam-lhe as forças para isso. Foi até à cozinha, onde os tachos e os pratos de um jantar intacto feito de costeletas, batatas fritas e couves estavam espalhados sobre a mesa e a bancada. Juntou-os e limpou a comida. Empilhou-os dentro do lava-loiças. Espalhou um pouco de detergente sobre eles, abriu a água quente e ficou a ver formarem-se bolhas de sabão, como uma renda num vestido de noiva.

 

Eram quase onze horas quando Lynley telefonou ao marido de Gabriella Patten, a partir do telefone instalado no Bentley, enquanto ele e Havers subiam Campden Hill, seguindo na direcção de Hampstead. Hugh Patten não pareceu nada surpreendido por receber um telefonema da polícia. Não procurou saber os motivos que justificariam um encontro, nem tentou desembaraçar-se de Lynley sugerindo que a entrevista fosse adiada para a manhã seguinte. Limitou-se a fornecer-lhes as instruções necessárias, recomendando-lhes que ao chegarem tocassem três vezes à campainha.

 

Já tive a minha conta de jornalistas por hoje explicou ele.

 

Quem é este tipo? perguntou Havers, quando viraram para Holland Park Avenue. Sei tanto como você, neste momento disse Lynley. O marido cornudo.

Assim parece.

- Presumível assassino.

Isso é o que temos de descobrir.

 

É o patrocinador dos jogos contra a Austrália.

 

O trajecto até Hampstead era longo. Concluíram-no em silêncio. Seguiram ao longo da High Street e dos seus cafés apinhados de gente, depois subiram Holly Hill até chegarem ao local onde as casas davam lugar a mansões. A casa de Patten erguia-se por detrás de um muro de pedra coberto de uma clematite com flores rosa pálido estriadas de vermelho.

 

Bela cabana comentou Havers, com um movimento de queixo na direcção da casa, enquanto saía do carro. No que diz respeito a massa, não me parece que esteja em apertos.

 

Dois outros carros estavam estacionados na alameda. Um Range Rover, último modelo, e um pequeno Renault, com o farolim traseiro do lado esquerdo partido. Enquanto Havers seguia pela alameda semicircular, Lynley encaminhou-se para uma segunda álea que partia do caminho de acesso principal. Cerca de trinta metros mais adiante havia uma ampla garagem. Tinha um aspecto recente, mas era construída em estilo jorgiano, tal como a casa; e como esta, estava iluminada por lâmpadas cravadas no chão que, dispostas a intervalos regulares, projectavam uma luz coada sobre o exterior do edifício de tijolo. A garagem fora concebida para albergar três carros. Lynley fez deslizar uma das portas e viu o resplandecente Jaguar branco que luzia no interior. O veículo parecia ter acabado de sair da lavagem automática. Não tinha, um único risco, nem uma só amolgadela. Quando se baixou para os inspeccionar, Lynley verificou que até os pneus tinham um aspecto impecável.

 

Encontrou alguma coisa? perguntou Havers, quando ele tornou a juntar-se a ela. Um Jaguar. Acabado de lavar. Há vestígios de lama no Rover. E o farolim traseiro do Renault...

 

- Também reparei nisso. Tome nota.

Já tomei... Dirigiram-se para a porta de entrada, emoldurada por dois vasos em terracota cobertos de hera dourada. Lynley tocou à campainha, esperou, e depois tornou a tocar outras duas vezes.

 

Uma voz masculina ressoou, suavemente, do outro lado da porta, dirigindo-se não a Lynley mas a uma pessoa cuja resposta lhes chegou em surdina. O homem tornou a falar e, ao fim de alguns instantes, a porta abriu-se.

 

Ele examinou-os. O seu olhar deteve-se no smoking de Lynley. Os seus olhos fixaram, em seguida, a sargento Havers e percorreram-na de alto a baixo, desde a cabeleira hirsuta aos ténis vermelhos.

 

Suponho que sejam da polícia disse com um esgar. Uma vez que não estamos no Carnaval.

- Mr. Patten? perguntou Lynley.

Por aqui.. Conduziu-os através de um soalho de madeira bem encerado sob um lustre de cobre aceso. Era um homem de uma altura considerável, dotado de um físico bastante aceitável enfiado num par de calças de ganga e numa camisa axadrezada em tons suaves, cujas mangas enrolara à altura dos cotovelos. Uma camisola azul em caxemira, aparentemente estava presa casualmente em volta do pescoço. Estava descalço. E os seus pés, tal como o resto da sua pessoa, exibiam aquele bronzeado típico de umas férias mediterrânicas. Não o adquirira, com certeza, trabalhando de sol a sol.

 

Como a maioria das casas jorgianas, a de Patten obedecia a um plano de construção muito simples. O amplo vestíbulo dava acesso a um salão comprido, onde se viam várias portas fechadas, à direita e à esquerda, e um conjunto de portas francesas que abriam para um terraço. Hugh Patten atravessou estas últimas e guiou-os até um canapé, dois cadeirões e uma mesa que formavam um recanto descontraído sobre o chão de pedra, meio envolto na penumbra, meio iluminado pela luz da casa. A cerca de dez metros deste recanto, o jardim descia numa curva suave até um pequeno lago, para além do qual as luzes de Londres se espalhavam num vasto e infinito oceano cintilante.

 

Sobre a mesa estavam quatro copos, um tabuleiro e três garrafas de MacAllan. Uma datava de 1965, outra de 67 e uma terceira de 73. A primeira estava meio cheia, enquanto a última ainda não tinha sido aberta.

 

Patten serviu-se de um pouco da de 67 e, com o seu copo, indicou as garrafas.

 

Querem beber alguma coisa? Ou não é permitido? Estão de serviço, suponho.

 

Uma gota não fará mal nenhum disse Lynley. Provarei o de sessenta e cinco.

 

Havers escolheu a garrafa de 67. Servidas as bebidas, Patten dirigiu-se para o canapé e sentou-se, o braço direito atrás da cabeça, os olhos perdidos na paisagem.

 

Adoro este sítio. Sentem-se. Descontraiam um pouco.

 

A luz que provinha de um dos extremos do salão entrava pelas portas francesas, desenhando paralelogramos sobre as lajes. Enquanto se instalavam, no entanto, Lynley verificou que Patten dispusera os móveis de maneira que apenas o alto da sua cabeça ficasse iluminado. Esta circunstância permitia-lhes reunir um primeiro facto, potencialmente inútil, acerca do homem a partir da sua aparência: o seu cabelo escuro tinha aquele singular reflexo metálico que, por vezes, acompanha uma sub-reptícia coloração feita fora de um salão de cabeleireiro.

 

Já sei o que aconteceu a Fleming. Patten ergueu o copo sem desviar o olhar da paisagem. Soube hoje, por volta das três da tarde. Guy Mollison telefonou-me. Fez questão de me informar, sendo eu o patrocinador. Apenas o patrocinador, disse ele, pedindo-me por favor que não tecesse quaisquer comentários antes do anúncio oficial.

 

Patten abanou a cabeça com uma expressão sarcástica e fez rodar o uísque dentro do copo.

 

Sempre a pensar nos interesses da Inglaterra.

 

Mollison?

 

Vai ser capitão de equipa novamente, apesar de tudo.

 

Tem a certeza quanto à hora?

 

Tinha acabado de chegar do almoço.

 

Estranho que ele soubesse que se tratava de Fleming. Já que telefonou antes de o corpo ter sido identificado disse Lynley.

 

Antes que a mulher o tivesse identificado. A polícia já sabia de quem se tratava. Patten desviou os olhos da paisagem. Mas imagino que os senhores estejam ao corrente disso, não é verdade?

 

Parece estar muito bem informado sobre este caso.

 

É o meu dinheiro que está em jogo.

 

Não se trata apenas do seu dinheiro, se não estou enganado. Patten abandonou o canapé. Aproximou-se da extremidade do terraço, onde as lajes davam lugar a um relvado suavemente ondulado. Ficou parado, admirando a vista.

 

Milhões e milhões fez um gesto com o copo que tinha na mão. Vivendo o dia-a-dia, mecanicamente, sem fazer a mais pequena ideia do que é a vida. E quando chegam à conclusão de que a vida pode realmente ser mais do que ganhar um ordenado, comer, eliminar e copular no escuro, é já demasiado tarde para a maior parte deles.

 

No que se refere a Fleming, não há dúvidas de que já é demasiado tarde.

 

Patten manteve o olhar fixo nas cintilantes luzes de Londres.

 

Ele era diferente, o nosso Ken. Sabia que a existência não se resumia àquilo que ele tinha. E estava decidido a deitar-lhe a mão.

 

Está a referir-se à sua mulher, por exemplo.

 

Patten não respondeu. Engoliu o resto do uísque e voltou para junto da mesa. Pegou na garrafa de 73, retirou-lhe o selo e abriu-a.

 

O que é que sabia, exactamente, sobre a sua mulher e Kenneth Fleming? perguntou Lynley.

 

Patten tornou a ocupar o canapé, mas desta vez sentou-se na beira do assento. Observou, divertido, a sargento Havers procurar febrilmente uma página em branco no seu bloco-notas.

 

Vão dar-me voz de prisão antes de procederem ao interrogatório regulamentar?

 

Isso é muito prematuro disse Lynley. Mas se quiser que o seu advogado esteja presente...

 

Patten riu-se.

 

Francis já ouviu falar de mim o suficiente o mês passado. Creio que sou capaz de resolver isto sozinho.

 

Tem problemas jurídicos?

 

Problemas de divórcio, sim.

 

Sabia que a sua mulher tinha uma ligação?

 

Não fazia a mais pequena ideia até ela me comunicar a sua intenção de se separar de mim. E mesmo nessa altura, ignorava que era a existência de um amante que estava na base dessa intenção. Pensei apenas que não lhe tinha dedicado atenção suficiente. Uma questão de ego, se quiserem.

 

A boca curvou-se num sorriso desencantado.

 

Tivemos uma discussão monstruosa quando ela me anunciou que ia deixar-me. Abalei-a um bocadinho. ”Quem é que achas que vai querer pegar numa tonta como tu, Gabriella? Onde diabos pensas tu que vais descobrir outro tipo disposto a aturar uma galdéria com a cabeça cheia de ar? Acreditas realmente que podes deixar-me sem tornares a ser o que eras quando eu te descobri? Uma empregada de escritório temporária, ganhando seis libras à hora, sem nada mais a seu favor a não ser uma caligrafia vacilante?” Em resumo, uma daquelas desagradáveis cenas conjugais durante um jantar no Capital Hotel, em Knightsbridge.

Estranho que ela tenha escolhido um local público para esse tipo de conversa.

 

Não é assim tão estranho quando se conhece Gabriella. Ela tem uma apetência especial pelo melodrama, embora me atreva a dizer que deve ter-me imaginado soluçando para dentro da sopa e não com um acesso de fúria.

 

Quando é que tudo isso aconteceu?

 

Esta conversa? Não sei. No início do mês passado.

 

E ela disse-lhe que ia deixá-lo por causa de Fleming?

 

Nunca faria uma coisa dessas. Não é parva. Tinha planos para me extorquir uma soma considerável e era astuta o suficiente para compreender que dificilmente conseguiria alcançar os seus fins se eu ficasse a saber que ela andava a dormir com outro em segredo. De início contentou-se em defender-se. Podem imaginar de que maneira: ”Fazes-me rir, Hugh. Eu posso muito bem encontrar outro tipo, posso sair daqui mais facilmente do que pensas. Nem toda a gente me vê como uma cretina desmiolada, querido.

Patten pousou o copo sobre as lajes e colocou as pernas sobre o canapé. Retomou a posição inicial, o braço direito amparando a cabeça.

 

Mas nunca mencionou Fleming?

 

Gabriella não é nenhuma simplória, ainda que de vez em quando se comporte como tal. E também não é parva, quando se trata de salvaguardar os seus interesses financeiros. A última coisa que teria feito seria incompatibilizar-se comigo antes de estar certa de que haveria uma solução alternativa.

 

Passou a mão pelos cabelos, os dedos afastados, num gesto que parecia sublinhar a espessura da sua cabeleira.

 

Eu sabia que ela andava a namoriscar Fleming. Vira-o, com os meus próprios olhos. Mas não dei importância ao caso, porque a arte da sedução é algo que Gabriella pratica com assiduidade. Quando se trata do sexo oposto, Gabriella não consegue controlar-se. É mais forte do que ela.

 

Isso não o incomoda?

 

Foi a sargento Havers quem formulou a pergunta. Terminara o seu uísque e empurrava o copo para junto daquele que Patten colocara sobre a mesa. Patten limitou-se a responder:

 

Oiçam.

 

E, erguendo os dedos, fez-lhes sinal para que se calassem. Ao fundo do jardim, à direita, onde uma fileira de choupos formava uma sebe, um pássaro começara a cantar. O seu canto era límpido e melodioso, subindo num crescendo. Patten sorriu.

 

Um rouxinol. Magnífico, não é? Quase nos faz acreditar em Deus. E, dirigindo-se a Havers, acrescentou. Agradava-me saber que os outros homens achavam a minha mulher desejável No início, confesso até que me excitava.

 

E agora?

 

Todas as coisas perdem o seu interesse, sargento. Ao fim de algum tempo. Há quanto tempo estão casados?

Dentro de dois meses, sensivelmente, fará cinco anos. E antes?

Antes, o quê? - É a sua primeira mulher?

E que relação poderá existir entre uma coisa e outra?

 

Não sei. É a sua primeira mulher?

 

Abruptamente, Patten tornou a contemplar a paisagem. Os seus olhos estreitaram-se, como se o brilho das luzes fosse demasiado intenso.

 

A segunda precisou.

E a primeira?

O que é que tem a primeira?

 

O que é que lhe aconteceu?

 

Divorciámo-nos.

 

Quando?

Fará cinco anos, dentro de dois meses.

- Ah

 

A sargento Havers escreveu rapidamente

 

Será que posso perguntar o que significa esse ah, sargento? interveio Patten

 

Divorciou-se da sua primeira mulher para casar com Gabriella.

 

Gabriella insistia em que eu me divorciasse. E eu queria Gabriella. Nunca desejei tanto uma pessoa, aliás.

 

E agora? questionou Lynley.

 

Não a aceitaria de volta, se é isso que pretende saber. Perdi todo o interesse por ela E mesmo que ainda estivesse interessado, as coisas foram longe de mais. Em que sentido?

- Tornou-se do domínio público.

Que ela o tinha deixado para ir viver com Fleming?

 

Há que impor certos limites. No que me diz respeito é a infidelidade.

 

A sua? perguntou Havers. Ou a da sua mulher?

 

A cabeça de Patten, ainda reclinada no encosto do canapé, virou-se na direcção de Havers. Ele sorriu lentamente.

 

Dois pesos, duas medidas. Não é muito bonito, eu sei. Mas sou como sou, um hipócrita quando se trata das mulheres que amo.

 

Como é que descobriu que o outro homem era Fleming? perguntou Lynley.

 

Contratei alguém para segui-la.

 

Até ao Kent?

 

Ela tentou mentir, no início. Disse-me que ia apenas viver para a casa de campo de Miriam Whitelaw e reflectir sobre o rumo que haveria de dar à vida dela. Fleming era apenas um amigo, que estava a tentar ajudá-la. Não havia nada entre ambos. Se por acaso tivesse uma ligação com ele, se me tivesse deixado para ficar com ele, não seria lógico que fosse viver com ele, abertamente? Mas não era isso que estava a acontecer, pois não? E essa era a prova de que não se tratava de um caso de adultério. Fora uma esposa fiel Por isso, o melhor que eu tinha a fazer era comunicar ao meu advogado que deveria ter isso em mente quando se reunisse com o representante legal dela para fixar o montante da pensão alimentar.

 

Patten passou o polegar ao longo do maxilar. Uma barba de dois dias ensombrava-lhe o rosto.

 

Foi então que lhe mostrei as fotografias. E nessa altura ela ficou assustada.

 

Eram fotografias dela e de Fleming, continuou ele sem o mínimo embaraço, tiradas na casa de campo, em Kent. Recepções ternurentas diante da porta de entrada, ao cair da noite, despedidas apaixonadas na alameda, de manhã, abraços ardentes num pomar próximo da casa e acasalamentos apaixonados sobre a relva.

 

Quando viu as fotografias, compreendeu que, financeiramente falando, o futuro se lhe revelava incerto, disse ele. Atirara-se a ele como uma gata assanhada, atirara as fotografias para a lareira da sala de jantar, sabendo que a partida estava praticamente perdida.

 

Esteve, então, na casa de campo? quis saber Lynley.

 

Claro que estivera. Uma primeira vez, quando lhe mostrara as fotografias. A segunda, quando Gabriella lhe telefonara pedindo que fosse até lá, a fim de conversarem e tentarem encontrar uma maneira razoável e civilizada de pôr termo ao casamento de ambos.

 

Quando digo conversar, é um eufemismo acrescentou. Usar a boca para conversar nunca foi um dos atributos de Gabriella.

 

A sua mulher desapareceu disse Havers.

 

Lynley lançou um rápido olhar na direcção dela, ao ouvir o tom inequivocamente neutro e de uma delicadeza glacial com que ela fizera a observação

 

Ah, sim? contrapôs Patten. Fiquei surpreendido por não ver o nome dela mencionado nas notícias. Primeiro pensei que teria conseguido persuadir todos os jornalistas a deixá-la fora desta história. À sua maneira, claro. Essa, no entanto, seria uma empresa monumental, mesmo para alguém com o poder de sucção de Gabriella.

 

Onde estava na noite de quarta-feira, Mr. Patten?

 

Havers enterrava o lápis no papel enquanto escrevia. Lynley perguntou a si próprio se, mais tarde, ela conseguiria ler alguma coisa.

 

E na manhã de quinta-feira?

 

Porquê? pareceu interessado.

 

Responda à pergunta, apenas.

 

É o que farei, quando souber o que é que ela tem que ver com tudo o resto?

 

Havers irritou-se. Lynley interveio.

 

Kenneth Fleming pode ter sido assassinado.

 

Patten pousou o copo sobre a mesa, mantendo os dedos suspensos no rebordo. Parecia estar a tentar perceber se Lynley estaria, ou não, a falar a sério.

 

Assassinado.

 

Compreende agora o nosso interesse em conhecer o seu paradeiro disse Lynley.

 

O canto do rouxinol tornou a fazer-se ouvir, por entre as árvores. Nas proximidades, um grilo respondeu-lhe.

 

Na noite de quarta-feira e na manhã de quinta murmurou Patten, mais para si mesmo do que para os seus dois interlocutores. Estava no Cherbourg Club.

 

Em Berkeley Square? inquiriu Lynley. E durante quanto tempo permaneceu lá?

 

Duas ou três horas, creio. Tenho uma paixão pelo bacará e, por uma vez, estava a ganhar.

 

Estava sozinho?

 

Ninguém joga bacará sozinho, inspector.

 

Estava acompanhado por alguém, em particular precisou Havers, secamente.

 

Durante uma parte da noite, sim.

 

Que parte?

 

No início. Meti-a num táxi por volta das... Não me recordo. Uma e meia? Duas da madrugada?

 

E depois?

 

Continuei a jogar. Vim para casa e deitei-me.

 

Patten desviou os olhos de Lynley e pousou-os em Havers. Parecia aguardar que lhe fizessem mais perguntas. Por fim, continuou:

 

É pouco provável que tenha sido eu a matar Fleming, sabem, se é aí que pretendem chegar.

 

Quem é que seguiu a sua mulher?

 

Quem o quê?

 

Quem é que tirou as fotografias? Vamos precisar de um nome.

 

Muito bem. Hão-de tê-lo. Oiçam, Fleming podia andar a dormir com a minha mulher, mas era um jogador de críquete fantástico, o melhor batedor dos últimos cinquenta anos. Se eu tivesse querido pôr fim ao romance entre ele e Gabriella, tê-la-ia morto a ela e não a ele. Dessa forma, pelo menos, nenhum dos jogos teria sido prejudicado. Além disso, eu nem sequer sabia que ele estava em Kent, na quarta-feira. Como poderia sabê-lo?

 

Podia ter mandado segui-lo.

 

E com que finalidade?

 

Vingança.

 

Partindo do princípio que eu queria vê-lo morto. Esse, porém, não era o caso.

 

E Gabriella?

 

O que é que tem?

 

Desejava a sua morte?

 

Claro que sim. Seria muito menos dispendioso do que um divórcio. Mas eu gosto de pensar que sou mais civilizado do que o comum dos maridos que é traído pela mulher. Não teve notícias dela, então? perguntou Lynley. De Gabriella? Nem uma palavra. Ela não está cá em casa? Patten ergueu as sobrancelhas, manifestamente surpreendido. Aqui? Não. Em seguida, pareceu compreender a razão por que lhe faziam aquela pergunta. Oh... essa não era Gabriella. Se não se importa, gostaríamos que nos fornecesse uma prova do que está a dizer. Se acham que é necessário? Obrigado. Patten entrou em casa. Havers afundou-se na poltrona, seguindo-o com os olhos semicerrados. Sacana murmurou. Anotou o que ele disse sobre o Cherbourg Club. Ainda estou viva, inspector. Peço desculpa Lynley disse-lhe o número da matrícula do jaguar que estava guardado na garagem. Vamos pedir aos nossos colegas do Kent que nos informem se algum Jaguar ou Range Rover foi avistado nas proximidades de Springburn. O Renault também. O que está estacionado na alameda. Ela soltou um protesto. Acha que ele desceria tão baixo, ao ponto de se sujeitar a deslocar-se numa coisa daquelas? No caso de ter ido ao ponto de matar porque não?

 

Uma das portas francesas situadas na extremidade oposta do terraço abriu-se. Patten regressou, acompanhado por uma jovem que não devia ter mais de vinte anos. Usava uma camisola bastante larga sobre umas calças de malha justas. O seu corpo movia-se sinuosamente sobre as lajes, que ela pisava com os pés descalços. Patten colocou a sua mão sobre a nuca dela, mesmo por baixo dos cabelos, muito negros e cortados curtos de forma geométrica, fazendo com que os seus olhos parecessem ainda maiores do que eram. Puxou-a para si durante breves momentos, aparentemente respirando o perfume que exalava o couro-cabeludo da rapariga.

 

Jessica disse ele, apresentando-a.

 

Sua filha? perguntou Havers, candidamente.

 

Sargento! advertiu Lynley.

 

A rapariga percebeu as intenções subjacentes à troca de palavras entre eles. Enfiou o indicador num dos ilhós das calças de ganga de Patten e disse:

 

Ainda demoras muito, Hugh? Está a fazer-se tarde.

 

Ele acariciou-lhe as costas, como se estivesse a amaciar o dorso de um cavalo de corrida.

 

Alguns minutos, apenas respondeu ele e, virando-se para Lynley: Inspector?

 

Lynley ergueu a mão, indicando que não tinha quaisquer perguntas a fazer à jovem. Esperou até que ela tivesse entrado dentro de casa antes de perguntar:

 

Onde poderá estar a sua mulher, Mr. Patten? Desapareceu. Tal como o carro de Fleming. Faz ideia do sítio para onde ela possa ter-se dirigido?

 

Patten começou a fechar as garrafas de uísque. Colocou-as num carrinho, juntamente com os copos.

 

Nenhuma. Ainda que, onde quer que ela esteja, duvido que esteja sozinha.

 

Como o senhor, aliás disse Havers, fechando o bloco-notas. Patten fitou-a com uma expressão impassível.

 

Sim. Nesse aspecto, sempre fomos muito parecidos, Gabriella e eu.

 

                                  CAPÍTULO 6

Lynley pegou na pasta do Kent e começou a passar em revista as fotografias tiradas no local do crime, sobrancelhas franzidas por cima dos óculos. Barbara observava-o, perplexa perante a capacidade que ele demonstrava para se manter tão desperto. Sentia-se exausta. Era quase uma da madrugada. Bebera três chávenas de café desde que tinham regressado à New Scotland Yard e apesar da cafeína ou talvez por causa dela sentia o cérebro em ebulição, mas o corpo decidira sucumbir. Queria pousar a cabeça sobre a secretária de Lynley e ressonar.! Em vez disso, porém, levantou-se, espreguiçou-se e aproximou-se da janela. Não havia ninguém na rua, lá em baixo. Por cima deles, o céu cor de chumbo. Nunca ficava verdadeiramente negro, por causa das luzes da megalopolis. I Enquanto estudava a vista, mordiscava pensativamente o lábio inferior.!

 

Vamos supor que Patten é culpado disse. Lynley não respondeu. Pôs as fotografias de lado. Leu parte do relatório da inspectora Ardery e levantou a cabeça. Assumiu um ar pensativo. Tem um móbil continuou Barbara. Apagando Fleming, vinga-se do tipo que andava a divertir-se com Gabriella. Lynley assinalou um parágrafo, colocando-o entre parêntesis. Depois,! outro. Uma da manhã, pensou Barbara desesperada, e ele continua inabalável. E então? perguntou-lhe. Posso ver as suas notas? Ela voltou para junto da cadeira, tirou o bloco-notas de dentro do saco e entregou-lho. Enquanto ela se dirigia novamente para junto da janela, Lynley percorreu com o dedo a primeira e a segunda páginas de notas relativas ao encontro com Mrs. Whitelaw. Leu algumas linhas da terceira página e mais qualquer coisa na quarta. Virou outra página e tamborilou com o lápis sobre o papel. Ele disse-nos que havia limites disse Barbara e que no caso dele era a infidelidade. Mas é possível que seja o homicídio. Lynley olhou na direcção dela. Não se deixe iludir pela antipatia, sargento. Não dispomos de factos suficientes.

 

Ainda assim, inspector...

 

Ele fez um gesto com o lápis, interrompendo-a.

 

Quando estivermos na posse de factos concretos, suspeito que eles nos permitirão estabelecer a presença dele no Cherbourg Club, na noite de quarta-feira.

 

Não é pelo facto de ter estado no Cherbourg Club que devemos eliminá-lo da lista de suspeitos. Ele poderia muito bem ter contratado alguém para incendiar a casa de campo. Já admitiu que tinha contratado uma pessoa para seguir Gabriella. E não foi certamente ele quem se foi esconder atrás dos arbustos para tirar aquelas fotografias dela e de Fleming. Também para isso deve ter contratado alguém.

 

Nada disso é ilegal. Questionável, talvez. De gosto duvidoso, certamente. Mas não ilegal.

 

Barbara desatou a rir e tornou a sentar-se.

 

Desculpe-me, inspector, mas será que o nosso bravo Hugh lhe deu a impressão de que seria incapaz de descer tão baixo ao ponto de praticar algo de gosto tão duvidoso como um homicídio? Em que momento? Antes de ele se referir aos espantosos poderes de sucção da mulher, ou depois de ter ido buscar a miúda e de, ostensivamente, lhe ter apalpado o traseiro caso não fosse dar-se o caso de nós sermos demasiado duros de cabeça para perceber a relação que havia entre ambos?

 

Não estou a eliminá-lo da lista de suspeitos disse Lynley.

 

Louvado seja Deus.

 

Todavia, para que Patten seja aceite como o assassino é preciso partir do pressuposto de que ele conhecia o paradeiro de Fleming na quarta-feira à noite. Ora, ele declarou que não o conhecia. Não estou certo de que possamos provar o contrário.

 

Lynley tornou a arrumar as fotografias e relatórios dentro da pasta. Tirou os óculos e passou os dedos pela cana do nariz.

 

Se Fleming telefonou a Gabriella, prevenindo-o da sua chegada sublinhou Barbara, ela poderia ter telefonado a Patten e ter deixado cair a novidade. Não intencionalmente. Não com o intuito de levar Patten a precipitar-se para lá, pronto a transformar Fleming em picado. Apenas o suficiente para poder dizer-lhe, ”Ora, toma lá esta, Hugh”. Isto está de acordo com o que ele nos contou sobre ela. Havia outros tipos que a cobiçavam e ali estava a prova.

 

Lynley pareceu reflectir sobre as palavras do seu sargento.

 

O telefone disse, pensativo.

 

O que é que tem?

 

A conversa entre Fleming e Mollison. Ele pode ter mencionado a sua intenção de ir até ao Kent.

 

Se está a pensar que a chave do mistério está num telefonema, então a família dele também deve ter tido conhecimento do sítio para onde Fleming se dirigia. Ele teve de cancelar a viagem à Grécia, não teve? Ou adiá-la, pelo menos. Ter-lhes-ia dito qualquer coisa. Tinha de o ter feito, já que o filho.., como é que ele se chama?...

 

Lynley procurou entre as notas dela, folheando mais uma série de páginas.

 

Jimmy.

 

Isso mesmo. Já que Jimmy não telefonou a Mrs. Whitelaw, na quarta-feira, quando o pai não apareceu. E se Jimmy sabia a razão por que a viagem tinha sido cancelada, pode muito bem tê-lo dito à mãe. Nada mais natural. Ela estava à espera que o rapaz partisse em viagem. Não partiu. Ela teria forçosamente perguntado porquê. Ele terá dado uma explicação. E até onde é que isso nos leva?

 

Lynley tirou um bloco pautado de dentro da primeira gaveta da sua secretária.

 

Mollison disse, enquanto escrevia. A mulher de Fleming. O filho.

 

Patten acrescentou Barbara.

 

Gabriella concluiu Lynley.

 

Sublinhou o nome uma vez e depois uma segunda. Observou-o, pensativo. Tornou a sublinhá-lo.

 

Barbara fitou-o por instantes, antes de dizer:

 

Quanto a Gabriella, não sei, inspector. Não faz muito sentido. Matar o amante e depois fugir no carro dele? É demasiado fácil. Demasiado óbvio. Que tipo de miolos terá ela, caso tenha feito uma coisa dessas? Algodão?

 

A avaliar pelo que diz Patten.

 

E lá está ele, novamente. Está a ver? É a direcção natural, não há maneira de o evitar.

 

Ele tem um móbil. Quanto ao resto Lynley indicou o processo e as fotografias, teremos de ver que provas é que vamos conseguir reunir. A equipa de Maidstone deverá ter concluído as buscas à casa de campo a meio da manhã. Se houver algo a encontrar, suponho que não há-de escapar-lhes.

 

Pelo menos sabemos que não foi suicídio disse Barbara.

 

Não foi, não. Mas pode perfeitamente não ter sido homicídio.

 

Não se pode dizer que tenha sido um acidente. Tendo em conta o cigarro e os fósforos que Ardery descobriu na poltrona.

 

Não estou a dizer que se tratou de um acidente.

 

Lynley bocejou, apoiou o queixo sobre a palma da mão e fez uma careta ao sentir a pele áspera, que lhe dava uma indicação da hora tardia.

 

Vamos precisar da matrícula do carro de Fleming continuou. E de pôr a circular uma descrição do veículo. Verde, disse Mrs. Whitelaw. Um Lotus. Possivelmente, um Lotus-7. A papelada do carro deve estar algures. Na casa de Kensington, suponho.

 

Muito bem.

 

Barbara pegou no bloco-notas e rabiscou um apontamento.

 

Por acaso, reparou na segunda porta do quarto de Fleming? Em casa de Mrs. Whitelaw?

 

Segunda porta?

 

Próximo do guarda-vestidos. Viu-a? Havia um roupão pendurado num gancho.

 

Lynley olhou fixamente a porta do seu gabinete como se tentasse lembrar-se do que vira.

 

Veludo castanho disse, com listas verdes, verticais. Sim, o que é que tem?

 

A porta, não o roupão. Faz ligação com o quarto dela. Foi aí que encontrei a coberta.

 

No quarto de Mrs. Whitelaw?

 

Interessante, não acha? Quartos de dormir adjacentes. Isso fá-lo pensar em quê?

 

Lynley pôs-se de pé.

 

Em dormir respondeu. Que é o que ambos deveríamos estar a fazer neste momento.

 

Pegou no conjunto de relatórios e fotografias e enfiou-os cuidadosamente debaixo do braço.

 

Vamos embora, sargento. Amanhã temos que nos levantar bem cedo.

 

Compreendendo que não podia continuar a adiar a questão por mais tempo, Jeannie subiu as escadas. Tinha lavado a loiça do jantar, no qual ninguém tocara. Dobrara cuidadosamente o pano da loiça, que colocara no suporte fixo num dos lados do frigorífico, exactamente por baixo de um conjunto de trabalhos escolares de Stan e do desenho de um pássaro feito por Sharon. Limpara o fogão e, em seguida, o velho oleado vermelho que cobria a mesa da cozinha. Depois dera um passo atrás e, sem que pudesse reprimi-la, viera-lhe à memória a imagem dele brincando com um dos cantos esboroados do oleado, enquanto dizia: ”Não tem nada a ver contigo. Sou eu. É ela. É o facto de eu querer ter alguma coisa com ela e não saber o quê, exactamente. Entristece-me pensar em ti e nos miúdos aqui, à espera que eu tome uma decisão. Estou a atravessar um mau momento, Jeannie. Não percebes isso? Não sei o que quero. Raios, Jean, não chores. Por favor. Detesto ver-te chorar.” Recordou-se, sem querer, dos dedos de Ken secando-lhe as lágrimas que lhe humedeciam as faces, da mão dele fechando-se sobre o pulso dela, do braço dele rodeando-lhe os ombros, da boca dele roçando-lhe os cabelos: ”Peço-te, por favor. Não tornes as coisas ainda mais difíceis para nós, Jean.” Um pedido que ela se sentia incapaz de satisfazer.

 

Apagou aquela imagem da memória, varrendo o chão. Em seguida, resolveu esfregar o lava-loiças e limpar o interior do forno. Chegou mesmo ao ponto de tirar os cortinados estampados com malmequeres para os lavar. No entanto, como era demasiado tarde para lavar roupa, dobrou-os e colocou-os sobre uma cadeira. Era tempo de subir e ver como estavam os filhos.

 

Subiu os degraus lentamente, esforçando-se por afastar o cansaço que lhe deixava as pernas trémulas. Parou na casa de banho para aspergir um pouco de água fria no rosto. Despiu a bata e enfiou o robe verde, tocou ao de leve os botões de rosa entrelaçados que compunham o padrão do tecido e soltou o cabelo. Tinha-o preso há demasiado tempo, mantendo-o afastado do rosto enquanto trabalhava no Crissy’s, e não chegara a desprendê-lo desde que a polícia viera buscá-la para a levar ao Kent. Agora, ao libertá-lo do enorme travessão em forma de girassol que o prendia, sentia o couro-cabeludo dorido. Fazendo uma pequena careta, sentiu um ardor nos olhos enquanto puxava os cabelos para o rosto e os deixava cair sobre as orelhas. Sentou-se na sanita, não com intenção de urinar mas para ganhar tempo. Que mais poderia dizer-lhes? Ao longo dos últimos quatro anos, tentara tudo para devolver o pai aos seus filhos. Que poderia dizer-lhes agora?

 

Há muito tempo que estamos separados, Jean dissera ele. Podemos obter um divórcio em termos amigáveis. Eu fui-te fiel, Kenny fora a resposta dela. Deixara-se ficar no extremo oposto da cozinha, o mais longe dele possível, costas apoiadas no rebordo do lava-loiça. Era a primeira vez que ele pronunciava a palavra que ela tanto temia ouvir desde que ele os deixara.

 

Nunca estive com outro homem a não ser contigo. Nunca. Nem uma única vez.

 

Nunca te pedi que me fosses fiel, depois de ter saído de casa.

 

Eu fiz votos quando me casei contigo, Kenny. Eu disse até que a morte nos separe. Disse que, fosse o que fosse que quisesses de mim, eu to daria de coração aberto. E tu não podes dizer que eu te tenha negado fosse o que fosse.

 

Não posso, de facto.

 

Então, porque é que me vens falar de divórcio? E não me venhas com aldrabices, Kenny. Estou farta dessa história que estares mal contigo próprio e de quereres encontrar o teu verdadeiro eu. Vamos chamar as coisas pelos seus nomes. Quem é a tipa com quem andas a dormir às escondidas e que queres agora transformar numa mulher honesta?

 

Então, Jean. Não se trata de quem anda a dormir com quem.

 

Ai não? Então porque é que ficaste vermelho até às orelhas? Com quem andas tu metido, agora? Com Mrs. Whitelaw? É o motor dela que andas a olear duas vezes por semana?

 

Não sejas parva, está bem?

 

Nós entrámos numa igreja, tu e eu. E dissemos, ”até que a morte nos separe”.

 

Tínhamos dezassete anos. As pessoas mudam. É inevitável.

 

Eu não mudo.

 

Respirou fundo. O pior, pensou, era não saber, não ter um nome, um rosto contra quem dirigir o ódio.

 

Eu fui honesta contigo, Kenny. Por isso, tu deves-me a verdade, em troca. Com quem é que andas a dar umas quecas, já que comigo não é de certeza?

 

Jean...

 

Só que esta não é a melhor maneira de dizer as coisas, pois não?

 

O que vai mal entre nós não é o sexo. Nunca foi e tu sabes isso.

 

Temos três filhos. Temos uma vida. Pelo menos tínhamos uma, até Mrs. Whitelaw ter tomado conta de tudo.

 

Não se trata de Miriam.

 

Ah, agora é Míriam? Desde quando? E ela é Miriam quando a luz está acesa ou só no escuro, para não teres de ver o pedaço de carne mole que estás a comer?

 

Que merda, Jean. Usa a cabeça. Não ando a dormir com Miriam Whitelaw. Ela é uma velhota.

 

Então, é com quem? Diz-me. Quem?

 

Não estás a ouvir o que eu estou a dizer. Não tem nada a ver com sexo.

 

Oh, claro. O que é, então? Deste em monge, agora? Encontraste alguém com quem podes cantar hinos religiosos, aos domingos de manhã?

 

Sempre houve um fosso entre nós.

 

Um fosso? Que fosso?

 

Tu não o vês, pois não? Esse é que é o problema.

 

Ela riu-se. Uma gargalhada que até aos ouvidos dela soou falsa e estridente.

 

Estás a delirar, Kenny Fleming. Aponta-me só outro casal que se dê tão bem como nós desde os doze anos.

 

Ele abanou a cabeça. Parecia cansado e resignado.

 

Eu já não tenho doze anos. Preciso de algo mais. Preciso de uma mulher com quem possa partilhar coisas. Tu e eu... Nós entendemo-nos muito bem em certos aspectos e noutros não. E a cama não é a única coisa que conta.

 

Jeannie sentiu o rebordo do lava-loiças morder-lhe a carne e os ossos. Endireitou-se.

 

Há homens que seriam capazes de caminhar sobre brasas só para ter uma mulher como eu.

 

Eu sei.

 

Então, porque é que não sou suficientemente boa para ti?

 

Eu não disse isso.

 

Disseste que tu e eu nos entendíamos bem em certos aspectos e noutros não. Como? Explica-me.

 

Os nossos interesses. O que fazemos. Os nossos interesses e preocupações. Os nossos temas de conversa. Os nossos projectos. O que queremos fazer com as nossas vidas.

 

Sempre tivemos isso. Tu sabes que sim.

 

No início, sim. Mas depois fomo-nos afastando cada vez mais. Sabes isso. Apenas te recusas a admiti-lo.

 

Quem é que anda a tentar convencer-te de que não nos dávamos bem? É ela? É Mrs. Whitelaw que anda a encher-te a cabeça com esses disparates? Ela odeia-me, sabes, Kenny? Sempre me odiou.

 

Já te disse que Míriam não tem nada a ver com isto.

 

Ela culpa-me por teres deixado a escola. Veio ter comigo a Billingsgate quando eu estava grávida de Jimmy.

 

Nada disto tem a ver com essa história.

 

Ela disse-me que eu ia dar cabo da tua vida, se nos casássemos.

 

Isso pertence ao passado. Esquece o assunto.

 

Ela disse que nunca serias nada, se eu deixasse que tu desistisses de estudar.

 

Ela é nossa amiga. Estava preocupada connosco, nada mais.

 

Nossa amiga, dizes tu? Ela queria que eu desistisse do meu bebé. Queria que eu o matasse. Queria que eu morresse. Ela sempre me detestou, Kenny. Sempre...

 

Cala a boca! exclamou, batendo com a mão na mesa.

 

O saleiro em cerâmica em forma de urso-polar para fazer conjunto com o pimenteiro em forma de pantera caiu no chão, embatendo num dos pés da mesa. Rachou-se e o sal espalhou-se sobre o linóleo verde, formando uma silenciosa esteira branca. Kenny apanhou-o. Partiu-se em dois bocados na palma da sua mão derramando ainda mais sal, que se escapou por entre os dedos dele como areia fina. Fitando o sal e não Jeannie, ele disse:

 

Estás completamente enganada em relação a Miriam. Ela tem sido boa para mim. Tem sido boa para nós. Para ti. Para os miúdos.

 

Então, diz-me quem é melhor para ti do que eu?

 

Começou a fazer desenhos sobre o monte de sal. Apagou-os, passando a mão sobre o sal. Recomeçou a desenhar.

 

Ouve, rapariga. Não é uma questão de ir para a cama com alguém enquanto falava olhava para o sal e não para ela. O tom da voz dele dizia-lhe que ele se decidira a contar-lhe a verdade. A posição da cabeça e dos ombros comunicavam-lhe que a verdade iria revelar-se muito pior do que imaginara

 

Não se trata de sexo repetiu. Entendes?

 

Oh retorquiu ela, com uma ligeireza que estava longe de sentir. Não se trata de sexo, então. És algum padre agora, Kenny?

 

Está bem. Dormi com ela, sim. Fomos para a cama. Mas não é uma questão de sexo. É mais do que isso. É uma questão...

 

Enterrou a mão no sal e passeou-a de cá para lá. Roçou-a contra o rebordo quebrado do copo misturador.

 

É uma questão de desejo concluiu.

 

E isso não tem nada a ver com sexo? Ora, Kenny.

 

Ele olhou-a fixamente e ela sentiu os dedos gelados. Nunca vira uma expressão tão torturada ensombrar-lhe o rosto.

 

Nunca me senti assim antes disse ele. Quero conhecê-la de todas as formas que puder. Quero possuí-la. Quero ser ela. É assim que as coisas são.

 

Isso é uma parvoíce Jeannie tentou fazer com que as suas palavras soassem desdenhosas, mas tudo o que conseguiu foi dar a entender que estava assustada.

 

Fui reduzido, Jean. É como se tivesse estado dentro de um tacho ao lume e todo eu tivesse sido cozido. O que ficou foi este caroço. E o caroço é o desejo. Por ela. Desejo por ela. Nem sequer consigo pensar em mais nada.

 

Estás a dizer disparates, Kenny. Ele virou a cabeça.

 

Sabia que não irias compreender.

 

Mas suponho que ela compreende. Seja ela quem for.

 

Compreende, sim.

 

Quem é ela? Quem é esta pessoa que tanto desejas?

 

Que diferença tem isso?

 

Para mim tem. E tu deves-me esse nome. Se é que está tudo terminado entre nós, como tu queres que esteja.

 

E ele disse-lhe, pronunciando apenas ”Gabriella”, em voz baixa, repetindo o nome num murmúrio, a cabeça enterrada nos punhos e os pulsos salpicados de sal, fazendo lembrar minúsculas sardas brancas.

 

Jeannie não precisou de ouvir mais nada. Não era necessário qualquer apelido. Era como se ele lhe tivesse trespassado a carne com um golpe de machado. Aproximou-se da mesa, ainda sob o efeito do choque.

 

Gabriella Patten é a mulher que tu queres conhecer de todas as formas possíveis? Quem tu queres possuir? Ser? deixou-se cair na cadeira. Não vou deixar que faças isso.

 

Tu não percebes... não sabes... não sou capaz de explicar o que sinto. Bateu levemente na testa com o punho fechado, como se desejasse que ela pudesse espreitar directamente para dentro do seu cérebro.

 

Oh, eu sei o que isso é. Mas antes prefiro morrer, Kenny, a ver-te com ela.

 

Só que não fora isso que acontecera. Tinha havido uma morte, de facto. A polícia, porém, encontrara o cadáver errado. Jeannie fechou os olhos com força até começar a ver pontos de luz iluminando-lhe o interior das pálpebras. Quando teve a certeza de que seria capaz de falar num tom de voz normal, se fosse necessário esperava ardentemente que não tivesse de o fazer, saiu da casa de banho. Sharon não estava a dormir. Jeannie entreabriu a porta do quarto dela e viu-a sentada na cama, junto à janela. Estava a tricotar no escuro. De costas curvadas, como se tivesse uma corcunda, manejava as agulhas e puxava os fios de lã, sussurrando, ”Uma malha do avesso. Uma malha do direito.” Estendido sobre a colcha estava o cachecol que começara a tricotar há um mês atrás. Era para o pai, um presente de aniversário fora de estação, que Kenny teria usado só para dar prazer à filha a partir do momento em que o desembrulhasse no final do mês de Junho.

 

Quando Jeannie empurrou a porta, Sharon não se virou para olhar para ela. O seu pequeno rosto estava crispado pelo esforço que fazia para se concentrar no que estava a fazer. Todavia, uma vez que não tinha os óculos postos, o resultado do seu trabalho não era dos melhores.

 

Os óculos estavam sobre a mesa-de-cabeceira, ao lado dos binóculos que Sharon usava para observar pássaros. Jeannie pegou neles, passou os dedos pela armação e perguntou a si própria quanto tempo teria a filha de esperar ainda até que ela a autorizasse a usar lentes de contacto. Fizera tenções de consultar Kenny sobre o assunto quando descobrira que, na escola, havia três rufias que não se cansavam de perseguir Sharon chamando-lhe ”caixa de óculos”. Não que o facto de pedir a opinião dele tivesse feito grande diferença, pois Jeannie sabia qual teria sido a sua resposta. Kenny teria mandado Sharon comprar umas lentes imediatamente, tê-la-ia ajudado a utilizá-las, fazendo-a rir com gosto da casmurrice de rapazes que só se sentem uns valentões quando fazem troça de garotas de catorze anos.

 

Avesso, avesso, avesso murmurava Sharon. Direito, avesso, avesso, avesso.

 

Jeannie estendeu-lhe os óculos.

 

Não precisas disto, Shar? Queres que acenda a luz? Não vais conseguir ver o que estás a fazer se continuares às escuras, não achas?

 

Sharon abanou a cabeça furiosamente.

 

Direito disse, avesso, avesso, avesso.

 

As agulhas ressoavam como o piar estridente de pássaros.

 

Jeannie sentou-se na beira da cama da filha. Acariciou o cachecol. Formava uma protuberância no meio e os lados estavam desiguais. Estava ainda pior junto das agulhas, onde o trabalho daquela noite ia formando uma sequência de nós.

 

O papá teria gostado disto, minha querida disse Jeannie. Teria sentido muito orgulho em ti.

 

Ergueu uma das mãos para tocar o cabelo da filha, mas, interrompendo o gesto, acabou por endireitar os cobertores.

 

É melhor tentares dormir um pouco. Queres dormir comigo?

 

Sharon abanou a cabeça.

 

Direito murmurou. Avesso, avesso, direito.

 

Queres que eu fique aqui contigo? Se te chegares um pouco para lá, posso fazer-te companhia durante um bocadinho.

 

Queria dizer: ”A primeira noite vai ser a mais difícil, julgo eu. A dor que sentimos é tão grande que só temos vontade de dar um murro nos vidros da janela.”

 

Em vez disso, porém, disse:

 

Talvez pudéssemos ir até à beira-rio, amanhã. O que é que achas? Podemos tentar descobrir um daqueles pássaros de que tens andado à procura. Como é que se chamam mesmo, Shar?

 

Direito sussurrou Sharon. Direito, direito, avesso.

 

Um nome esquisito, não era?

 

Sharon puxou mais lã. Torceu-a em volta da mão. Não olhava para os fios de lã, nem sequer para o que estava a tricotar. Tinha as costas curvadas sobre o trabalho, mas os olhos estavam fixos na parede onde pendurara dezenas de esboços de pássaros.

 

Queres ir até ao rio, querida? Tentar descobrir mais pássaros. Levas o teu bloco de desenho contigo. Podíamos levar também almoço, que dizes?

 

Sharon não respondeu. Virando costas à mãe continuou a tricotar. Jeannie fitou-a durante alguns momentos, a mão suspensa sobre ela, seguindo a curva do ombro da filha sem no entanto lhe tocar.

 

Bem, parece-me uma boa ideia disse. Tenta dormir um pouco, querida.

 

E dirigiu-se para o quarto dos rapazes, que ficava do outro lado do corredor.

 

O quarto cheirava a tabaco, a corpos mal lavados e a roupa suja. Numa das camas, Stan estava deitado tranquilamente, protegido por todos os lados por uma fileira de animais em pelúcia, que pareciam montar guarda em torno dele. Aninhado no meio deles, dormia, os cobertores sobre os tornozelos e a mão dentro das calças do pijama.

 

Bate pívias todas as noites, o nosso pequeno Stan. Não precisa de amigos. Tem o seu pirilau.

 

As palavras de Jimmy vinham do canto mais escuro do quarto, onde o odor era mais intenso e um ponto de luz vermelha iluminava fugazmente o fragmento de um lábio e a falange de um dedo indicador. Deixou a mão de Stan onde estava e puxou os cobertores para tapá-lo.

 

Quantas vezes já te pedi para não fumares na cama, Jim? perguntou em voz baixa.

 

Não me lembro.

 

Só te vais sentir satisfeito quando conseguires pegar fogo à casa? Um grunhido foi a única resposta dele.

 

Afastou as cortinas e entreabriu a janela de guilhotina para deixar entrar um pouco de ar fresco. O reflexo da lua iluminou a carpete castanha, formando um trilho prateado que terminava nos destroços de um veleiro tombado para um dos lados, os três mastros arrancados e um buraco de trinta centímetros na proa.

 

O que é que se passou?

 

Inclinou-se para olhar o modelo de perto. Eram os restos da réplica da Cutty Sark, feita em balsa pelo próprio Jimmy, e que ele tanto adorava. Esta maqueta, que levara meses a completar, era motivo de orgulho para pai e filho, que tinham passado dias e horas infindáveis na mesa da cozinha, concebendo, desenhando, cortando, pintando, colando.

 

Oh, não! exclamou, baixinho. Jim, lamento muito. Foi Stan quem...

 

Jimmy soltou uma risada trocista. Ela levantou os olhos para ele. A extremidade do cigarro acendia-se e apagava-se alternadamente. Ouvia o fumo sair pelas narinas dele.

 

Stan não teve nada a ver com isso disse ele. Stan está demasiado ocupado a bater pívias para pensar em arrumar a casa. Isso é coisa de miúdos, além do mais. Quem é que precisa disso para alguma coisa?

 

Jeannie olhou para a estante por baixo da janela. No chão jaziam os destroços do Golden Hind. Ao lado deles, os do Gipsy Moth IV e, mais à frente, o Victory estava feito em mil pedaços, misturado com os bocados de um navio de guerra viquingue e de uma galera romana.

 

Mas tu e o pai começou Jeannie, em vão. Jimmy, tu e o pai...

 

O quê, mãe? Eu e o pai, o quê?

 

Curioso, pensou ela, como aquelas farpas de madeira, aqueles pedaços de fio e de pano lhe davam vontade de chorar. A morte de Kenny, a visão do seu corpo nu, as luzes intensas, as perguntas dos jornalistas, nada disso a fizera ter vontade de chorar. Fora com uma voz desprovida de emoção que comunicara a Stan e a Sharon que o pai de ambos tinha morrido. Agora, porém, o olhar preso nas ruínas daqueles navios, sentia-se tão despedaçada como aqueles fragmentos espalhados sobre a carpete.

 

Era uma recordação dele disse ela. Estes barcos. Tu e o pai. Estes barcos.

 

O gajo já cá não está, pois não? Não há razão para guardar lembranças dele. Devias começar por pôr ordem neste chiqueiro, mãe. Fotografias, roupas, livros. Bastões antigos. A bicicleta dele. Deitar todo esse lixo fora. Quem é que precisa disso?

 

Não fales assim.

 

Achas que ele guardava recordações nossas?

 

Jimmy inclinou-se para a frente, ficando sob a claridade da lua. Colocou as mãos em volta dos joelhos ossudos, deixando cair a cinza do cigarro sobre a colcha da cama.

 

Não estás a pensar que o nosso querido pai ia querer ter recordações da mulher e dos filhotes num momento tão crucial da vida dele, pois não? Uma fotografia com as nossas carantonhas em cima da mesa-de-cabeceira era bem capaz de lhe estragar a vida amorosa. Uma madeixa dos nossos cabelos num medalhão preso ao equipamento de críquete podia dar-lhe cabo do jogo. Ou um dos desenhos de Sharon. Um dos ursos de pelúcia de Stan. A ponta flamejante do cigarro brilhou tremulamente no escuro. Ou então uma das tuas bugigangas holandesas de que ele tanto gozava. Porque não aquele jarro de leite ridículo, em forma de vaca? Podia perfeitamente usá-lo todas as manhãs, juntamente com os cornflakes, não achas? Só que ao servir-se do leite, pensando em ti, levantaria os olhos e daria de caras com outra pessoa. Não.

 

Apoiando-se num cotovelo, esmagou o cigarro numa caveira que reluzia na obscuridade.

 

Ele não ia querer pedaços da sua antiga vida misturados com a nova. Não. O nosso pai nunca ia querer isso. Nem pensar.

 

No canto oposto do quarto, Jeannie sentia o cheiro que ele exalava. Perguntou a si própria quando teria ele tomado banho pela última vez. Conseguia até sentir-lhe o hálito, fétido, fortemente impregnado de tabaco.

 

Ele tinha fotografias vossas disse ela. Veio buscá-las, lembras-te? Emoldurou-as, mas nunca conseguia acertar com o tamanho certo das molduras. Ou eram demasiado grandes ou demasiado pequenas. Quase sempre eram grandes de mais, por isso Shar teve de cortar um pedaço de papel para encher as partes vazias. Tu até a ajudaste. Escolheste as fotografias que querias que ele levasse.

 

Ah, sim? É preciso não esquecer que nessa altura eu era um palerma, não era? Nariz a pingar e um engraxador de primeira. Tinha esperança que o pai voltasse se eu lhe lambesse bem as botas. Grande piada. Sacana. Ainda bem...

 

Não acredito nisso, Jim.

 

Porquê? Não acreditas porquê, mãe?

 

A pergunta soou tensa. Repetiu-a, acrescentando:

 

Tens pena que ele tenha morrido?

 

Ele estava a passar por uma fase má. Estava a tentar encontrar uma solução.

 

Como todos nós, não? Só que nós não tentamos encontrar soluções para a nossa vida enquanto saltamos para cima de uma puta qualquer, pois não?

 

Abençoou a obscuridade que a protegia. As sombras, porém, não deixavam de ter inconvenientes. Pois, da mesma forma que ele não podia vê-la claramente e, assim, ter consciência de que as suas palavras eram como pequenos ferretes enterrando-se na sua carne, também ela não podia distingui-lo.

 

Pelo menos, não da maneira como uma mãe precisa de distinguir o filho quando tem de lhe fazer uma pergunta crucial, de cuja resposta depende toda a sua vida. Não podendo fazer essa pergunta, fez-lhe uma outra. O que é que estás a tentar dizer-me? Eu sabia. Sobre o pai. Sobre a falsa loura. Sobre a grande e profunda reflexão que ele supostamente andava a fazer, enquanto saltava para cima dela como um louco. À procura de si mesmo. Um grande fingido, era o que ele era. O que ele fazia com... Jeannie não era capaz de pronunciar o nome. Não diante do filho. Era um esforço demasiado grande para ela, naquele momento. Tentou acalmar-se enfiando as mãos nos bolsos do robe. A mão direita encontrou um lenço de papel já amarrotado, a esquerda um pente ao qual faltava alguns dentes. Isso não tinha nada a ver contigo, Jimmy. Era entre mim e o teu pai. ] Ele amava-te, como sempre te amou. E a Shar e a Stan, também. E foi por isso que fomos passear pelo rio, como ele tinha prometido, não foi, mãe? Alugámos o barco, como ele se fartava de dizer que íamos fazer, e subimos o Tamisa. Vimos as eclusas. Os cisnes. Parámos em Hampton Court e passeámos no labirinto. Até acenámos à Rainha, que estava na ponte, em Windsor, à espera que nós passássemos e agitássemos os chapéus na direcção dela. Ele queria levar-vos a passear no Tamisa. Não deves pensar que ele se esqueceu disso. E a regata em Henley. Também assistimos a ela, não foi? Todos aperaltados, com as nossas roupas de domingo. Um cesto de piquenique atestado com as nossas comidas preferidas. Batatas fritas para Stan. Cocoa Pops para Shar. Um McDonald’s para mim. E depois disso, uma grande prenda de aniversário: uma viagem de barco às Ilhas Gregas. Eu e o pai, sozinhos.

 

Jim, ele precisava de assentar ideias. Nós estávamos juntos desde crianças, o teu pai e eu. Ele precisava de algum tempo para decidir se queria continuar a viver comigo. Comigo, não com vocês. Nada tinha mudado entre vocês e o vosso pai.

 

Oh, claro, mãe. Nada. Falas como se ela fosse ficar nas nuvens por nos ter em casa dela. Stan batendo pívias durante o fim-de-semana inteiro,! no quarto de hóspedes dela. E Shar, espetando os seus esboços de pássaros nas paredes forradas a papel de parede. E eu manchando os tapetes com óleo de motor. Ela deve ter dado pulos de alegria com a ideia de nos ter como enteados. Aliás, tenho a certeza que ela deve ter mantido o pai à distância enquanto ele não lhe prometeu que nós não íamos fazer parte do pacote.

 

Descalçou os Doc Martens, que bateram no chão com um ruído surdo. Ajeitou a almofada e encostou-se à cabeceira da cama, escondendo o rosto nas sombras.

 

Ela deve estar em muito mau estado agora, a falsa loura. Não achas, mãe? O pai bateu a bota e isso não é nada bom para ela, não é, pois agora já não pode gozar sempre que lhe apetece. Mas o pior de tudo é que, agora, ela já não nos pode ter a nós como enteados. E aposto que ela está de rastos por causa disso.

 

Riu baixinho.

 

Ao ouvi-lo rir daquela maneira, Jeannie estremeceu. Os dedos da mão esquerda procuraram o pente que tinha dentro do bolso e afundaram-se nos espaços onde estes faltavam.

 

Jimmy, tenho uma pergunta para te fazer.

 

Pergunta à vontade, mãe. Pergunta-me o que quiseres. Eu não lhe pus a mão em cima, se é isso que queres saber. O pai não era homem para dividir o que era dele com outros.

 

Tu sabias quem ela era.

 

Talvez.

 

A sua mão direita crispou-se sobre o lenço de papel, que começou a desfazer dentro do bolso. Não queria ouvir a resposta, pois já a conhecia. Mesmo assim, perguntou:

 

Quando ele cancelou a viagem à Grécia, o que é que ele te disse, Jim? O que é que ele te disse?

 

A mão de Jimmy saiu das sombras e apanhou um objecto que estava próximo da caveira. Um clarão seguiu-se a um estalido e ela viu que ele segurava um fósforo aceso junto do seu rosto pálido. Manteve os olhos fixos nela enquanto a chama consumia o fósforo. Quando alcançou os dedos dele, nem sequer pestanejou. E não lhe respondeu.

 

Lynley encontrou, finalmente, um lugar vago em Summer Place. Sortudo, teria dito a sargento Havers. Não estava tão certo disso. Na verdade, passara dez minutos subindo e descendo Fulham Road, dando a volta à estação de South Kensington e familiarizando-se, mais do que teria desejado, com o edifício Michelin de Brompton Cross, recentemente renovado. Estava prestes a desistir e a ir para casa quando decidiu fazer uma última tentativa em Sumner Place, mesmo a tempo de ver um Morgan antigo libertar um espaço de estacionamento a alguns metros de distância do seu destino: Onslow Square.

 

Àquela hora matinal, o silêncio fresco do orvalho era apenas perturbado pelo ruído ocasional de um veículo circulando na Old Brompton Road. Desceu Sumner Place, atravessou a praça perto de uma pequena capela e dirigiu-se para Onslow Square.

 

Todas as luzes estavam apagadas no apartamento de Helen. Excepto uma. Ela deixara um candeeiro aceso na sala de estar, junto da pequena varanda que dava para a praça. Sorriu ao ver a luz. Helen conhecia-o melhor do que ele se conhecia a si próprio.

 

Entrou, subiu as escadas e entrou no apartamento. Concluiu que ela estivera a ler antes de adormecer, já que sobre a cama havia um livro aberto, com as páginas viradas para baixo. Pegou nele e tentou, sem conseguir, ler o título no ambiente semiobscuro que reinava no quarto. Colocou-o depois sobre a mesa-de-cabeceira, usando a pulseira de ouro de Helen para marcar a página onde ela interrompera a leitura. Contemplou-a.

 

Estava deitada de lado, a mão direita debaixo da face, as pestanas escuras roçando-lhe a pele. Tinha os lábios franzidos, como se os seus sonhos exigissem grande concentração. Uma madeixa de cabelo descrevia uma curva, desde a orelha até à comissura dos lábios, e quando ele a afastou do rosto, ela mexeu-se sem acordar. Sorriu. Era a pessoa com o sono mais pesado que ele jamais conhecera.

 

Podiam arrombar-te a casa, roubar todos os teus pertences, que tu não darias por nada dissera-lhe ele, exasperado. Por amor de Deus, Helen, há qualquer coisa de profundamente inquietante nesse teu sono de chumbo. Tu não adormeces, perdes a consciência. Acho que devias consultar um especialista sobre esse problema.

 

Ela riu-se e fez-lhe uma festa na face.

 

São os benefícios de ter uma consciência absolutamente tranquila, Tommy.

 

Grande consolo retirarás disso no dia em que o prédio for destruído por um incêndio. Aposto em como nem o alarme ouvirias.

 

Provavelmente, não. Que ideia sinistra o seu rosto assumiu por instantes uma expressão sombria, para logo depois se iluminar novamente Ah, mas tu ouvi-lo-ias, não é verdade? O que é um sinal de que devo considerar seriamente a hipótese de te manter perto de mim.

 

E pretendes fazê-lo?

 

O quê?

 

Considerar essa hipótese?

 

Mais do que julgas.

 

E então?

 

Então, devíamos jantar. Tenho um frango fantástico. Batatas novas Feijão-verde. E uma garrafa de Pinot.

 

Preparaste o jantar?

 

Ora ali estava uma verdadeira novidade. Doce visão da vida doméstica pensou ele.

 

Eu? retorquiu Helen, desatando a rir. Meu Deus, Tommy, nada disto está cozinhado. Ora, fartei-me de folhear um livro em casa de Simon.

 

Deborah chegou até a aconselhar-me uma ou duas receitas que se enquadravam perfeitamente no leque limitado dos meus talentos culinários. Mas tudo me pareceu tão complicado.

 

É apenas um frango, nada mais.

 

Eu sei, mas a receita dizia que eu devia dragá-lo. Dragá-lo, se isso cabe na cabeça de alguém. Não é o que fazem nos pântanos? Não andam sempre a dragar canais ou coisa parecida? Como é que uma pessoa faz o mesmo a um frango, és capaz de me explicar?

 

A tua imaginação não te sugeriu nada?

 

Nem tenho coragem para repetir o que a minha imaginação me sugeriu no que diz respeito ao termo dragar. Garanto-te que terias perdido o teu apetite para sempre.

 

O que talvez não fosse má ideia, caso tenha esperanças de vir a comer seja o que for dentro de pouco tempo.

 

Estás desiludido. Desiludi-te. Perdoa-me, querido. Sou uma perfeita inútil. Sou incapaz de cozinhar. De coser. Não sei tocar piano. Não possuo o mínimo talento para desenhar. Não consigo entoar uma nota que seja.

 

Não se trata de uma audição para um papel num romance de Jane Austen.

 

Adormeço no meio dos concertos. Não tenho nenhuma observação inteligente a fazer a propósito de Shakespeare, Pinter, ou Shaw. Estava convencida que Simone de Beauvoir era o nome de uma bebida qualquer. Como é que consegues aturar-me?

 

Aquela era a questão, de facto. Não tinha resposta para ela.

 

Formamos um casal, Helen disse ele, docemente, enquanto ela dormia. Somos o alfa e o ómega. O positivo e o negativo. Somos perfeitos um para o outro.

 

Tirou o pequeno estojo de joalheiro de dentro do bolso do casaco e pousou-o sobre o romance, que estava na mesa-de-cabeceira. Aquela era a grande noite, afinal. Faz desse momento algo de memorável, dissera para si próprio. Imprime-lhe um toque romântico inconfundível. Oferece-lhe flores, velas, caviar, champanhe. Coloca uma música suave. E, para coroar a ocasião, beija-a.

 

O beijo era tudo o que tinha para lhe oferecer, naquele momento. Sentou-se na beira da cama e aflorou uma das faces dela com os lábios. Ela mexeu-se, franzindo o sobrolho. Virou-se de costas. Beijou-a nos lábios.

 

Vens deitar-te? murmurou ela, os olhos ainda fechados.

 

Como é que sabes que sou eu? Ou será que isso é um convite que estenderias a todos quantos te entrassem pelo quarto dentro às duas da madrugada?

 

Ela sorriu.

 

Só àqueles que me parecem interessantes.

 

Estou a perceber. Ela abriu os olhos. Negros como os seus cabelos, contrastando com a pele, tornavam-na semelhante à noite. Era a sombra e o luar. E o caso? Como foi? perguntou docemente. Complicado respondeu ele. Um jogador de críquete, da selecção inglesa. Críquete murmurou ela. Que jogo abominável, esse. Quem é que consegue entender seja o que for desse jogo?

 

Felizmente, esse não é um dos requisitos para resolver o caso. Os olhos dela tornaram a fechar-se.

 

Vem deitar-te, então. Tenho saudades de te ouvir ressonar no meu ouvido.

 

Eu ressono?

 

Nunca ninguém se queixou disso, antes?

 

Não, e acho até... percebeu a armadilha, quando viu os lábios dela curvarem-se lentamente num sorriso. Deverias estar a dormir profundamente, Helen. E estou. Juro que estou. E tu deverias estar a fazer o mesmo. Vem para a cama, meu querido, e aquece-me.

 

Não está frio.

 

Fingimos que está.

 

Ergueu uma das mãos dela, beijou-a na palma e entrelaçou os seus dedos nos dela. Estavam moles. Estava prestes a adormecer, novamente.

 

Não posso disse ele. Tenho de me levantar muito cedo, amanhã

 

Ora murmurou ela, podes pôr o despertador.

 

Não me apetece ouvi-lo tocar tornou ele. Distrais-me demasiado.

 

Então, é sinal que o nosso futuro não nos reserva nada de bom.

 

Porque nós temos um futuro juntos, é isso?

 

Tu sabes que sim.

 

Beijou-lhe os dedos e tornou a enfiar a mão dela debaixo dos cobertores Num movimento reflexo, ela tornou a virar-se de lado.

 

Dorme bem disse ele.

 

Hmm... sim...

 

Beijou-a na têmpora, ergueu-se e dirigiu-se para a porta.

 

Tommy? tartamudeou ela.

 

Sim?

 

Porque é que passaste por cá?

 

Vim trazer-te uma coisa.

 

Para o pequeno-almoço? Ele sorriu.

 

Não. Quanto a isso estás por tua conta e risco.

 

O quê, então?

 

- Verás.

 

Para que é que serve?

 

Boa pergunta. Ele respondeu da maneira mais razoável que conseguiu lembrar-se.

 

Prova de amor, suponho.

 

E de vida, pensou, e de todas as complicações que a ela estão associadas.

 

Que querido disse ela. Muito simpático da tua parte.

 

Mexeu-se debaixo dos cobertores, procurando a posição ideal. Ele permaneceu de pé, na ombreira da porta, esperando até ouvir o ritmo regular da respiração dela. Ouviu-a suspirar.

 

Helen sussurrou.

 

A respiração de Helen soava regular.

 

Amo-te disse ele.

 

A respiração de Helen continuava regular.

 

Casa comigo continuou.

 

A respiração de Helen não se alterou, continuando tão regular como antes. Tendo cumprido a missão que se tinha proposto completar até ao final da semana, fechou a porta e deixou-a entregue aos seus sonhos.

 

                                   CAPÍTULO 7

Miriam Whitelaw esperou até que tivessem atravessado o rio, passado por Elephant and Castle e virado, depois, para New Kent Road até se decidir a abrir a boca. Nessa altura, arrancando-se ao torpor que a envolvia, declarou numa voz fraca:

 

Nunca é fácil chegar ao Kent a partir de Kensington, pois não? Como se assim pretendesse desculpar-se pelo incómodo que estava a causar-lhes.

 

Lynley olhou-a através do espelho retrovisor mas não respondeu. Ao lado dele, a sargento Havers estava inclinada para a frente murmurando qualquer coisa no telefone do carro, enquanto transmitia ao agente Winston Nkata, que se encontrava na New Scotland Yard, o número de matrícula e a descrição do Lotus-7 de Kenneth Fleming.

 

Faz uma busca na base de dados do computador central dizia ela, e envia estes dados por fax para as várias esquadras de distrito... O quê?... Espera um instante, deixa-me confirmar.

 

Ergueu a cabeça e perguntou a Lynley:

 

Informamos a comunicação social também?

 

Quando ele disse que sim com um movimento de cabeça, ela retomou a conversa com Nkata.

 

Afirmativo. Mas nada mais do que isso, por agora. Anotaste tudo?... Óptimo.

 

Colocou o telefone no descanso e recostou-se no assento. Examinando a rua congestionada pelo trânsito, soltou um suspiro.

 

Mas para onde é que vai toda esta gente?

 

De fim-de-semana respondeu Lynley. Além disso, o tempo está bom.

 

Presos no êxodo da massa compacta de citadinos que se escapuliam para o campo, ora rolavam a uma velocidade normal, ora se viam obrigados a abrandar e a avançar a um ritmo irregular. Havia já quarenta minutos que tinham iniciado viagem, abrindo penosamente caminho primeiro até ao Embankment, depois até Westminster Bridge e daí até à multidão urbana em constante ebulição que constituía o Sul de Londres. Muito provavelmente, iriam precisar de muito mais do que uns adicionais quarenta minutos até conseguirem alcançar as Springburns, no Kent.

 

A primeira hora do dia, tinham-na passado a examinar os papéis de Kenneth Fleming. Alguns estavam misturados com os de Mrs. Whitelaw, enfiados nas gavetas de uma secretária da saleta do rés-do-chão da casa de Kensington. Outros estavam cuidadosamente dobrados sobre a mesa-de-cabeceira dele. Outros, ainda, tinham sido colocados num porta-cartas que se encontrava sobre a bancada da cozinha. No meio destes, encontraram o contrato que o vinculava actualmente ao condado de Middlesex, os contratos anteriores que permitiam traçar a sua carreira como jogador de críquete no Kent, alguns documentos relativos à fábrica, uma brochura sobre as viagens à Grécia em barco à vela, uma carta expedida três semanas antes confirmando uma reunião com um advogado em Maida Vale que Havers enfiou no bolso e, finalmente, os dados relativos ao carro dele.

 

Mrs. Whitelaw tentara ajudá-los nas suas buscas, mas era evidente que não estava em condições de o fazer. Usava o mesmo vestido, o mesmo casaco e as mesmas jóias que na noite anterior. As faces e os lábios estavam pálidos. Os olhos e o nariz vermelhos. Os cabelos em desalinho. Se por acaso se tivesse deitado ao longo das últimas doze horas, não parecia ter retirado quaisquer benefícios da experiência.

 

Lynley examinou-a uma segunda vez através do retrovisor. Perguntou a si mesmo quanto tempo mais ela seria capaz de se aguentar sem a intervenção de um médico. Com um lenço a cobrir-lhe a boca que, tal como as roupas, parecia ser o mesmo lenço da véspera e o cotovelo apoiado no braço, mantinha-se de olhos fechados durante longos períodos. Concordara em fazer a viagem até ao Kent logo que Lynley sugerira que ela os acompanhasse até lá. Ao olhá-la agora, no entanto, ele começava a pensar se aquela não teria sido uma das suas ideias menos inspiradas.

 

Todavia, era algo inevitável. Era preciso que ela examinasse a casa de campo. Que lhes dissesse o que faltava, o que lhe parecia bizarro ou francamente anormal. Para isso, era necessário que o seu poder de observação estivesse nas melhores condições possíveis. E a acuidade visual dependia da lucidez de espírito.

 

Não sei se isto vai resultar, inspector murmurara a sargento Havers, sobre o tejadilho do Bentley, em Staffordshire Terrace, depois de terem ajudado Mrs. Witelaw a instalar-se no assento traseiro do carro.

 

Ele também não. E muito menos agora, enquanto distinguia, através do espelho retrovisor, os tendões salientes no pescoço dela e as lágrimas que rolavam livremente ao longo das suas faces.

 

Queria reconfortar aquela mulher. Mas não conseguia encontrar as palavras certas para o fazer, nem sabia por onde começar, pois não compreendia verdadeiramente a natureza da sua dor. A sua relação com Fleming era a grande incógnita que teria de ser discutida, ainda que de forma delicada, entre eles.

 

Ela abriu os olhos e surpreendeu-o observando-a. Virou a cabeça para a janela e fez de conta que estava a admirar a paisagem.

 

Depois de terem passado Lewisham e de o trânsito se ter tornado menos congestionado, Lynley interrompeu, finalmente, o fio dos pensamentos dela.

 

Sente-se bem, Mrs. Whitelaw? perguntou. Gostaria de parar para um café?

 

Sem desviar o olhar da janela, ela recusou a oferta com um movimento de cabeça. Ele dirigiu o Bentley para a faixa da direita, a fim de ultrapassar um velho Morris, conduzido por um hippie de meia-idade.

 

Prosseguiram viagem em silêncio. O telefone do carro soou uma vez. Havers atendeu. Manteve uma conversa breve com alguém. Breve e lacónica. ”Sim?... O quê?... E quem diabo quer saber?... Não. Diga-lhe que deste lado ninguém confirma nada. Ele vai ter de desencantar uma outra fonte noutro lado qualquer.” Desligou e disse:

 

Os jornais. Estão a começar a somar dois mais dois.

 

Que jornal? perguntou Lynley.

 

Por agora, o Daily Mirror.

 

Santo Deus e indicando o telefone com um movimento de cabeça: Quem era?

 

Dee Harriman.

 

Uma bênção, pensou Lynley. Ninguém melhor para empatar jornalistas do que a secretária do superintendente, que conseguia sempre desviar as atenções dos repórteres, inundando-os de todo o tipo de perguntas sumarentas sobre os casamentos e divórcios da família real.

 

O que é que eles querem saber?

 

Se a polícia estaria preparada para confirmar se Kenneth Fleming, morto na sequência de um incêndio provocado por uma beata de cigarro, era, ou não, fumador. E na eventualidade de ele não ser fumador, saber se seria legítimo concluir que o cigarro encontrado no cadeirão teria sido deixado por outra pessoa? E, em caso afirmativo, por quem?... etc., etc. Sabe muito bem como é que eles funcionam, senhor.

 

Ultrapassaram um camião de mudanças, um carro funerário e um camião do exército cheio de soldados, sentados em bancos na parte traseira do veículo. Passaram ainda por um furgão de cavalos e por três caravanas que se arrastavam, estrada fora, como caracóis. Quando abrandaram ao aproximarem-se de um semáforo, Mrs. Whitelaw decidiu-se a falar.

 

Também me telefonaram.

 

Os jornais? Lynley lançou uma olhadela rápida através do espelho retrovisor. Ela desviara o olhar da janela e colocara uns óculos de sol. Quando?

 

Esta manhã. Recebi duas chamadas antes da vossa. E três depois.

 

Queriam saber se Fleming era fumador, ou não?

 

Não só. Pareciam interessados em saber tudo o que eu estivesse disposta a revelar-lhes. Verdade ou mentira, não sei se isso terá alguma importância para eles. Desde que seja qualquer coisa relacionada com Ken.

 

Não é obrigada a falar com eles.

 

Não falei com ninguém tornou a olhar através da janela, dizendo, mais para si mesma do que para eles: De que serviria isso? Quem poderia compreender?

 

Compreender? Lynley fez a pergunta casualmente, concentrando todas as suas atenções na condução.

 

Mrs. Whitelaw não respondeu imediatamente. Quando o fez, a sua voz soou calma.

 

Quem teria podido imaginar algo semelhante disse. Um jovem de trinta e dois anos, saudável, viril, porte atlético, transbordante de energia, preferindo viver, não com uma jovem de corpo firme e pele macia e sedosa, mas com uma criatura velha e ressequida. Uma mulher trinta e quatro anos mais velha do que ele. Com idade suficiente para ser sua mãe. Dez anos mais velha, aliás, do que a sua mãe verdadeira. Obsceno, não é?

 

Curioso, diria eu. É uma situação fora do comum. Tem consciência disso, não tem?

 

Ouvi os sussurros e as zombarias. Li os mexericos. Relação edipiana. Incapacidade de romper com laços anteriores, evidenciado na escolha do seu modo de vida e na sua recusa em divorciar-se. Incapacidade de resolver problemas com a sua própria mãe, que remontam ao tempo da infância, e, em consequência, desse falhanço, desejo de encontrar uma mãe de substituição. Ou no que a mim me dizia respeito: Relutância em aceitar a realidade do envelhecimento. Desejo de obter uma notoriedade que me teria sido negada durante a minha juventude. Desejo de afirmação exercendo o controlo sobre um homem mais jovem. Todos têm uma opinião sobre o assunto. Ninguém aceita a verdade.

 

A sargento Havers virou-se, de forma que pudesse ficar de frente para Mrs. Whitelaw.

 

Nós gostaríamos de ouvir a verdade disse ela. Precisamos de a ouvir, aliás.

 

E    o que é que a minha relação com Kenneth Fleming tem que ver com a sua morte?

 

O tipo de relações que Fleming mantinha com as mulheres, em geral, pode estar intimamente relacionado com a sua morte respondeu Lynley.

 

Ela pegou no lenço e olhou para as mãos, que o dobraram sucessivamente até o transformarem numa tira estreita e comprida.

 

Conheço-o desde que ele tinha quinze anos. Era um dos meus alunos.

 

É professora?

 

Agora já não. Mas era-o, naquela época. Na Isle of Dogs. Era meu aluno na disciplina de Inglês. Fiquei a conhecê-lo bem, porque ele era... aclarou a garganta. Era extraordinariamente inteligente. Um craque, como os colegas lhe chamavam. E eles gostavam dele, porque não era nada pretensioso. Desde o primeiro dia em que o conheci que ele sempre se revelou alguém que sabia quem era e não sentia necessidade de fingir que era outra pessoa que não aquilo que era. Jamais tentou superiorizar-se perante os colegas. Eu apreciava-o imenso por isso. E por outras razões também. Ele tinha sonhos, uma característica que eu admirava. Era uma qualidade rara nos adolescentes daquela época, que viviam no East End. Tornámo-nos amigos. Eu incentivava-o, tentava orientá-lo na direcção certa.

 

Que era?

 

A universidade, depois do exame de conclusão dos estudos secundários.

 

E ele chegou a frequentá-la?

 

Fez apenas o décimo primeiro ano, em Sussex, como bolseiro. Depois voltou para casa e foi trabalhar para o meu marido, na fábrica. Pouco tempo depois, casou.

 

Casou jovem.

 

Pois foi desdobrou o lenço, abriu-o sobre os joelhos e alisou-o. Sim, Ken era jovem.

 

Conhecia a rapariga com quem ele casou?

 

Não fiquei de todo surpreendida quando ele, finalmente, tomou a decisão de se separar. Jean é boa rapariga, no fundo, mas não era com ela que Ken deveria ter casado.

 

E Gabriella Patten?

 

Só o tempo nos teria dado a resposta a essa pergunta.

 

O olhar de Lynley cruzou-se com os óculos escuros através do espelho retrovisor.

 

Mas conhecia-a, não é verdade? E a ele, também. Qual é a sua opinião?

 

Acho que Gabriella e Jean são a mesma coisa respondeu, tranquilamente. A única diferença é que Gabriella tem muito mais dinheiro e um guarda-roupa elegante. Ela não está... não estava à altura de Ken. Mas isso nada tem de estranho, pois não? Não acha que, no fundo, a maioria dos homens raramente deseja casar com alguém que esteja à sua altura? É algo que causa alguma tensão no seu ego.

 

O homem que esteve a descrever-nos não parecia debater-se com problemas de ego.

 

É um facto. O problema dele era sobretudo uma tendência para reconhecer o familiar e repetir os mesmos erros do passado.

 

E que erros do passado eram esses?

 

Casar com uma mulher impelido pela intensidade da paixão física que sentia por ela. Acreditar, honesta e ingenuamente, que a paixão física e o arrebatamento emocional gerado por essa paixão eram ambos estados duradouros.

 

Revelou-lhe as suas reservas?

 

Nós conversávamos sobre tudo, inspector. Apesar do que os tablóides insinuaram a nosso respeito, em determinadas ocasiões, Ken era como um filho para mim. Ele era, de facto, um filho em todos os sentidos, excepto no que se refere às formalidades de nascimento e de adopção.

 

Não tem filhos?

 

Ela observou um Porsche, que os ultrapassava, seguido por um motociclista de longos cabelos ruivos esvoaçando como flâmulas, sob um capacete cuja forma fazia lembrar os antigos capacetes dos soldados das SS.

 

Tenho uma filha disse ela.

 

E ela vive em Londres?

 

Novamente, uma longa pausa, como se o trânsito que os rodeava estivesse a fornecer-lhe indicações sobre o tipo e a quantidade de palavras que deveria usar.

 

Tanto quanto sei, sim. Não nos vemos há muitos anos.

 

O que deve ter tornado Fleming duplamente importante para si notou a sargento Havers.

 

Por ter tomado o lugar de Olivia? Quem dera que fosse assim tão fácil, sargento. Uma criança não pode, pura e simplesmente, ser substituída por outra. Não é o mesmo que ter um cão.

 

Mas será que uma relação não pode ser substituída por outra?

 

Uma nova relação pode, de facto, desenvolver-se. Mas a cicatriz da antiga permanece. E não há nada que cresça sobre uma cicatriz. Não há nada que possa crescer através dela.

 

Mas pode tornar-se tão importante como uma relação que a tenha antecedido observou Lynley. Não concorda?

 

Pode tornar-se mais importante respondeu Mrs. Whitelaw. Entraram na M20 e seguiram para sudeste. Lynley esperou até terem passado para a faixa da direita para continuar o seu raciocínio.

 

Possui muitos bens, não é verdade, Mrs. Whitelaw? perguntou. A fábrica em Stepney, a casa em Kensington, a casa de campo no Kent. Suponho que terá ainda outros investimentos, sobretudo se a empresa estiver de boa saúde.

 

Não sou uma mulher rica.

 

Mas também não se pode considerar uma mulher em dificuldades financeiras.

 

O lucro da fábrica é reinvestido na fábrica, inspector.

 

O que a torna um bem muito valioso. É uma empresa de família, não é verdade?

 

Foi criada pelo meu sogro. O meu marido herdou-a. Quando Gordon faleceu, passei a geri-la.

 

E quando morrer, qual será o seu destino? Já tomou alguma providência nesse sentido?

 

A sargento Havers, percebendo onde Lynley pretendia chegar, virou-se para trás, a fim de conseguir observar bem Mrs. Whitelaw.

 

Em que sentido está redigido o seu testamento, Mrs. Whitelaw? Quem fica com o quê?

 

Ela tirou os óculos de sol e guardou-os dentro de um estojo de pele, que retirara da mala. Tornou a colocar os óculos de vista.

 

O meu está feito a favor de Ken.

 

Compreendo disse Lynley, pensativo.

 

Viu a sargento Havers meter a mão dentro do saco a tiracolo e tirar o bloco-notas.

 

E Fleming estava ao corrente dessa disposição?

 

Receio não estar a perceber a razão de ser da sua pergunta.

 

Será que ele poderia ter comentado o assunto com alguém? Ou a senhora mesma, Mrs. Whitelaw, falou neste assunto com alguém?

 

Que interesse pode ter isso, agora que ele está morto?

 

Pode interessar muito. Se for essa a razão por que morreu. Pousou uma das mãos sobre o pesado colar, num gesto que fazia lembrar estranhamente os seus gestos da noite anterior.

 

Está a sugerir...

 

Que alguém poderia não ter apreciado o facto de Fleming ser o seu beneficiário. Que alguém poderia ter sentido que ele tinha recorrido... Lynley procurou um eufemismo, a meios pouco ortodoxos para conquistar o seu afecto e a sua confiança.

 

Esse tipo de coisas acontece com frequência interveio Havers.

 

Não neste caso, asseguro-lhe.

 

A entoação que Mrs. Whitelaw imprimiu a estas palavras estava a meio caminho entre a calma educada e uma raiva cortante.

 

Como vos disse, conheço... conhecia Ken Fleming desde que ele tinha quinze anos de idade. Começou por ser meu aluno. Com o passar do tempo, tornou-se meu filho e meu amigo. Mas não era... não era... a voz dela soou trémula e ela ficou calada até conseguir controlá-la. Não era meu amante. Apesar de eu me sentir ainda suficientemente mulher para ter desejado ser uma rapariga de vinte e cinco anos com a vida inteira pela frente. Um desejo que, imagino que concordará comigo, não é completamente desprovido de lógica. As mulheres nunca deixam de ser mulheres e os homens nunca deixam de ser homens, tenham a idade que tenham.

 

E supondo que as suas idades não tenham qualquer importância? Para nenhum deles?

 

Ken não era feliz no casamento. Precisava de tempo para arrumar as ideias. Eu senti-me feliz por poder proporcionar-lhe isso. Primeiro, nas Springburns, quando ele jogava pelo Kent. Depois, em minha casa, quando a equipa de Middlesex lhe ofereceu um contrato. Se as pessoas gostam de imaginá-lo como o meu gigolô, ou de pensar que eu estava a tentar cravar as minhas garras num homem mais jovem, não posso fazer nada contra.

 

A vossa relação alimentou muitos mexericos.

 

Algo a que não atribuíamos a mínima importância. Nós conhecíamos a verdade. Tal como os senhores agora também a conhecem.

 

Lynley perguntou a si próprio se assim seria, de facto. Há muito que descobrira que a verdade raramente era tão simples quanto as explicações verbais tentavam fazer crer.

 

Depois de saírem da auto-estrada, iniciaram o percurso serpenteante que os conduzia às Springburns. Em Greater Springburn, ao sábado de manhã, era dia de feira. O largo ficava cheio de barracas e as ruas pejadas de carros em busca de um espaço para estacionar. Avançaram, penosamente, através do trânsito infernal e seguiram para leste, tomando Swan Street, ao longo da qual se sucediam as cerejeiras que iam juncando o solo com as suas flores cor de rebuçado.

 

À saída de Greater Springburn, Mrs. Whitelaw guiou-os através de um emaranhado de veredas e atalhos bordejadas por elevadas sebes de teixo e amoreiras. Finalmente entraram num caminho estreito chamado Water Street.

 

Estamos a chegar anunciou ela, enquanto passavam por uma fieira de casas à beira de um pinhal. Depois de terem atravessado o campo, iniciaram uma descida sinuosa na direcção de uma casa situada sobre uma colina suave, rodeada por coníferas e por um muro, e cuja álea fora selada pela polícia. Junto do muro viam-se duas viaturas. Um carro de polícia pintado a duas cores e um Rover azul metalizado. Lynley estacionou em frente ao Rover.

 

Examinou a área circundante o campo de lúpulo no extremo oposto, o aglomerado de casas antigas ao fundo do caminho, as chaminés em forma de chapéus bicudos, características dos fornos destinados à secagem do lúpulo, o cercado coberto de erva, adjacente à casa. Virou-se para Mrs. Whitelaw.

 

Quer esperar um pouco antes de entrar?

 

Estou pronta.

 

O interior da casa está danificado.

 

Compreendo.

 

Ele fez um aceno com a cabeça. A sargento Havers saiu do carro e abriu a porta do Bentley a Mrs. Whitelaw. Esta deixou-se ficar imóvel durante alguns instantes, inspirando o odor intenso e medicinal da colza que tingia de amarelo um campo situado mais adiante. O canto de um cuco perdia-se na distância. Alguns gaivões cruzavam o céu, subindo cada vez mais alto, com as suas asas em forma de cimitarras.

 

Lynley baixou-se para passar por baixo da fita de sinalização da polícia, levantando-a depois para deixar passar Mrs. Whitelaw. A sargento Havers seguiu-a, bloco-notas na mão.

 

Ao cimo da álea, Lynley abriu a porta da garagem e Mrs. Whitelaw entrou para verificar se o Aston Martin que aí se encontrava se assemelhava ao de Gabriella Patten. Não estava absolutamente certa, disse-lhes, pois ignorava o número de matrícula do carro de Gabriella. Sabia, no entanto, que esta conduzia um Aston Martin. Vira-o quando ela viera visitar Ken a Kensington. Mas daí a jurar que se tratava do mesmo carro...

 

Muito bem disse Lynley, enquanto Havers anotava a matrícula do carro que se encontrava na garagem.

 

Pediu a Mrs. Whitelaw que desse uma vista de olhos pela garagem, a fim de verificar se havia algo de anormal.

 

O interior da garagem estava pouco cheio: havia três bicicletas, duas das quais tinham os pneus vazios, uma bomba, uma velha forquilha com três dentes, vários cestos pendurados em ganchos, um canapé, coxins de jardim.

 

É a primeira vez que vejo isto aqui disse Mrs. Whitelaw, referindo-se a um enorme saco de palha. Não tenho gatos.

 

Tudo o resto, segundo ela, parecia estar em ordem.

 

Voltaram à álea e transpuseram o portão de ferro que dava para o jardim fronteiro à casa. Lynley observou a vegetação luxuriante e colorida e, mais uma vez, interrogou-se sobre a necessidade quase obsessiva que impelia os seus conterrâneos e conterrâneas a cultivarem flores. Sempre pensara que era uma reacção directa ao clima. Os meses infindáveis de tempo húmido e cinzento incitava-os a criar uma orgia de cor aos primeiros sinais de Primavera.

 

A inspectora Ardery estava no terraço atrás da casa. Sentada a uma mesa de verga, debaixo de um caramanchão, falava para um telemóvel e, com a ajuda de uma esferográfica, escrevinhava casualmente nas folhas de um bloco-notas.

 

Ouve-me, Bobby dizia, num tom de voz agradável, os teus planos com Sally não me interessam nem um pouco. Tenho um caso entre mãos. Não posso ficar com os miúdos este fim-de-semana e ponto final... Sim. Cadela, é precisamente o epíteto que eu escolheria... Não te atrevas a fazer uma coisa dessas... Bob, eu não vou estar em casa e tu sabes isso. Bob! desligou o telemóvel. Sacana murmurou.

 

Pousou o telefone na mesa, entre uma pasta e um bloco-notas. Ergueu os olhos e, ao vê-los, disse sem o mínimo embaraço:

 

Ex-maridos. Uma espécie à parte. Homo infuriatus.

 

Pôs-se de pé, tirou um travessão de marfim do bolso das calças e usou-o para prender os cabelos junto da nuca.

 

Mrs. Whitelaw disse, apresentando-se.

 

Tirou vários pares de luvas de borracha de dentro da pasta e estendeu-as a todos os presentes.

 

Os rapazes das impressões digitais já aqui estiveram, mas a prudência nunca é de mais.

 

Esperou até que eles acabassem de enfiar as luvas antes de passar debaixo do lintel da porta e de os conduzir até ao interior da casa. Em pé, no limiar, Mrs. Whitelaw hesitou, passando os dedos pela fechadura que os bombeiros tinham arrombado a fim de poderem entrar na casa.

 

O que é que devo...?

 

Esteja à vontade disse-lhe Lynley. Examine os quartos cuidadosamente. Compare aquilo que vir com aquilo que sabe sobre a casa. A sargento Havers vai acompanhá-la. Diga-lhe o que for observando, tudo aquilo que lhe ocorrer ao espírito.

 

E, virando-se para Havers:

 

Comecem pelo piso de cima.

 

Certo replicou ela, atravessando a cozinha com Mrs. Whitelaw. As escadas ficam nesta direcção, não é?

 

Ouviram Mrs. Whitelaw murmurar: ”Oh, meu Deus!”, no momento em que viu o estado em que ficara a sala de jantar.

 

Que cheiro! acrescentou.

 

É da fuligem. Do fumo. Receio que grande parte do recheio tenha ficado danificado declarou Havers.

 

As vozes de ambas tornaram-se mais esmorecidas, à medida que subiam as escadas. Lynley examinou a cozinha. O edifício tinha mais de quatrocentos anos, mas a cozinha fora remodelada e modernizada: ladrilhos novos no chão, azulejos novos na bancada, fogão verde-musgo, maçanetas cromadas no lava-loiças. Alguns armários envidraçados albergavam pratos e enlatados. Nos parapeitos das janelas cresciam fetos plantados em vasos.

 

Tirámos o que estava dentro do lava-loiças informou a inspectora Ardery, quando Lynley se baixou para examinar mais de perto uma tigela de plástico, obviamente destinada a servir de recipiente de comida para animais. Aparentemente, eram os utensílios de um jantar para uma pessoa: prato, copo de vinho, copo de água, um talher. Carne de porco assada fria e uma salada no frigorífico. Com chutney.

 

Encontrou o gato? Lynley começou a abrir e a fechar as gavetas da cozinha.

 

Gatinhos precisou ela. Havia dois, segundo o leiteiro. Gabriella Patten encontrou-os abandonados perto da fonte. Conseguimos localizá-los na casa de um dos vizinhos. Deambulavam pela álea, na quinta-feira de manhã. Refiro-me aos gatinhos, não aos vizinhos. Obtivemos alguns elementos interessantes, a propósito. Alguns dos nossos agentes estagiários estão a interrogar a vizinhança, desde a tarde de ontem.

 

Lynley não descobriu nada de relevante nas gavetas dos talheres, dos utensílios de cozinha e dos atoalhados. Passou aos armários. E o que é que os vossos agentes conseguiram descobrir? Segundo os vizinhos... disse ela, esperando pacientemente que ele interrompesse o escrutínio de um dos armários, houve uma discussão, Uma verdadeira gritaria, de acordo com as palavras de John Freestone. Ele tem uma quinta do outro lado do cercado. Isso fica a uns bons quarenta metros daqui, pelo menos. Ele deve ter um ouvido excepcional. Passeava junto à casa. Por volta das onze horas, na quarta-feira à noite.

 

Estranha hora para dar um passeio.

 

Tem de fazer exercício físico, pois tem problemas cárdio-vasculares. É o que ele diz. A verdade é que Freestone poderia muito simplesmente ter esperanças de vislumbrar Gabriella e surpreendê-la durante as suas abluções nocturnas. Segundo alguns relatos, ela não era nada de se deitar fora e não se preocupava muito em correr os cortinados enquanto se despia.

 

E conseguiu? Vê-la, quero eu dizer.

 

Ouviu uma discussão. Um homem e uma mulher. Mas sobretudo a voz da mulher. Ela utilizava uma linguagem grosseira, carregada de termos particularmente interessantes e esclarecedores acerca da actividade sexual e dos órgãos genitais masculinos. Esse género de coisa, está a perceber?

 

Ele reconheceu a voz dela? Ou a do homem?

 

Segundo ele, os gritos das mulheres são todos iguais. Não tem a certeza de quem se tratava. Todavia, não conseguiu deixar de se mostrar surpreendido ao descobrir que ”uma mulher tão simpática como ela utilizasse aquele tipo de vocabulário” esboçou um sorriso divertido. Deve ser alguém que não costuma sair à rua muitas vezes.

 

Lynley riu e abriu o primeiro armário, no interior do qual estavam arrumados pratos, copos chávenas e pires. Abriu o segundo. Um maço de Sul Cut estava pousado na prateleira, em frente às latas de conservas variadas. Examinou o maço, ainda envolto no papel de celofane de origem.

 

Fósforos de cozinha murmurou, mais para ele próprio do que para Ardery.

 

Não encontrámos nenhuns disse ela. Em contrapartida, na sala de estar havia carteiras de fósforos. E uma caixa daqueles fósforos de lareira, mais compridos, numa estante encostada à parede esquerda da lareira que está na sala de jantar.

 

Seria possível que alguém os pudesse ter cortado e depois os tivesse disposto em feixe em volta de um cigarro?

 

São demasiado grossos.

 

Lynley fazia passar o maço de Silk Cut de uma mão para a outra com uma expressão ausente. Encostada ao lava-loiças, Ardery observava-o.

 

Recolhemos dezenas de vestígios. Tirámos também as impressões digitais do Aston Martin, na esperança de, pelo menos, isolar as de Mrs. Patten. Temos as de Fleming, obviamente, pelo que podemos eliminar as dele.

 

Mas isso deixa-nos a braços com todas as impressões digitais de todos aqueles que ela possa ter convidado para vir até aqui visitá-la. O marido dela esteve aqui, a propósito.

 

Estamos a tentar fazer uma lista das pessoas da região que possam ter vindo visitar Mrs. Patten. E os nossos estagiários continuam à procura de outras pessoas que possam ter ouvido a discussão.

 

Lynley colocou o maço de cigarros sobre a bancada da cozinha e encaminhou-se para a porta que dava para a sala de jantar. Esta era exactamente como Ardery a descrevera, excepto no que dizia respeito à poltrona onde o incêndio deflagrara, que desaparecera entretanto. Enviara-a para o laboratório, disse ela, para ser analisada. Depois começou a falar de fibras, de índices de incêndio e de potenciais aceleradores de combustão, enquanto Lynley baixava a cabeça para se desviar de uma trave, atravessava um corredor, que tinha a profundidade de duas lareiras, e entrava na sala de estar. Tal como a sala de jantar, estava recheada de antiguidades, todas elas cobertas por uma camada de fuligem. Enquanto o seu olhar vagueava entre tamboretes e canapés, e depois entre armários de canto e cómodas, concluiu que Celandine Cottage funcionava como armazém para tudo aquilo que já não cabia na casa de Mrs. Whitelaw, em Staffordshire Terrace. Pelo menos, o seu gosto era coerente, pensou. Nada de mobiliário dinamarquês moderno, na casa de campo, para contrastar com os móveis do século xix inglês que possuía na sua residência citadina.

 

Sobre uma mesa de tripé estava uma revista aberta numa página onde se via a fotografia de uma mulher de lábios carnudos e brilhantes e uma farta cabeleira negra. Lynley pegou na revista e examinou a capa. Vogue.

 

Isabelle Ardery observava-o, à entrada da sala, braços cruzados sobre o peito. A expressão do seu rosto era imperscrutável. Ele, no entanto, percebia que ela não deveria estar nada satisfeita com esta sua invasão num território que, conforme ambos tinham decidido, ficaria sob a jurisdição dela.

 

Peço desculpa disse ele. É mais forte do que eu.

 

Não o levo a mal, inspector retorquiu ela, num tom de voz tranquilo. No seu lugar, eu faria o mesmo.

 

Suponho que preferiria investigar o caso sozinha, não é verdade?

 

Oh, há muitas coisas que me agradariam bastante e que jamais conseguirei ter.

 

É muito mais resignada do que eu.

 

Lynley aproximou-se da estreita prateleira cheia de livros e começou a abrir e a fechar cada um deles.

 

Recebi um relatório interessante da sargento que acompanhou Mrs. Fleming até ao hospital para identificar o corpo disse a inspectora Ardery.

 

Num tom de voz paciente, enquanto Lynley abria uma pequena escrivaninha e começava a examinar as cartas, brochuras e documentos que se encontravam no seu interior, acrescentou:

 

Inspector, nós fizemos um inventário do conteúdo da casa e dos edifícios anexos. Terei todo o gosto em fornecer-lhe essa lista.

 

Quando Lynley ergueu a cabeça, ela declarou, com um sangue-frio e um profissionalismo que ele não pôde deixar de admirar:

 

Poderia fazê-lo ganhar tempo. Os nossos técnicos têm fama de fazer um trabalho bastante sério e exaustivo.

 

Lynley apreciou o autocontrole que ela demonstrava. Com a sua mania de meter o nariz em tudo, estava com certeza a deixá-la muito enervada Sobretudo porque os seus peritos já tinham investigado minuciosamente o local do crime.

 

É um reflexo automático da minha parte. O mais provável é eu começar a arrancar a carpete em seguida.

 

Lançou um último olhar à sala, reparando nas fotografias, enfiadas em austeras molduras douradas, e numa lareira, quase tão grande como a que se encontrava na sala de jantar. Aproximou-se dela. O registo de tubo da chaminé estava fechado.

 

O da sala de jantar também disse a inspectora Ardery.

 

O quê?

 

O registo. O da lareira da sala de jantar estava fechado. Era isso que queria verificar, não era?

 

Procuro provas que indiquem que se trata de um homicídio respondeu Lynley.

 

Não eliminou a hipótese de suicídio, pois não?

 

Nada há que indique ter-se tratado de suicídio. E Fleming não fumava Abandonou a sala de estar, evitando as traves baixas de carvalho que serviam de lintéis. A inspectora Ardery seguiu-o até ao terraço.

 

Que dizia o relatório da sua sargento? perguntou Lynley.

 

Ela não fez uma única pergunta pertinente.

 

Mrs. Fleming?

 

Insistiu em ser tratada pelo apelido Cooper e não Fleming, aliás Viu o corpo e apenas quis saber por que razão estava tão rosado. Quando lhe disseram que eram os efeitos do dióxido de carbono, não fez uma única pergunta. Ora, a maioria das pessoas, quando ouve falar em envenenamento por dióxido de carbono, conclui de imediato que se trata dos gases libertados pelo tubo de escape de um carro, não é verdade? Um suicídio dentro de uma garagem, com o motor do carro ligado. No entanto, mesmo quando fazem este tipo de suposições, não deixam de fazer perguntas. Onde? Como? Porquê? Quando? Deixou algum bilhete? Ela não perguntou rigorosamente nada. Limitou-se a olhar para o corpo, a confirmar que se tratava de facto de Fleming e a pedir ao sargento que lhe comprasse um maço de Embassy. E ponto final.

 

Lynley contemplou o jardim das traseiras. Para além dele estendia-se outro cercado e, para além deste, o campo de colza cintilava ao sol como um espelho.

 

Estavam separados há alguns anos, se não me engano. Ela pode ter chegado a uma fase de total desinteresse por ele. E, se assim for, por que motivo se daria ao trabalho de fazer perguntas?

 

As mulheres têm tendência a não se tornarem assim tão indiferentes aos seus ex-maridos, inspector. Pelo menos quando existem filhos.

 

Ele fitou-a. Pequenas manchas de cor tingiam-lhe as faces.

 

Ponto aceite disse. Mas ela podia estar em estado de choque.

 

Ponto aceite retorquiu ela. Mas essa não foi a impressão com que ficou a sargento Coffman. E ela já acompanhou muitas mulheres em situações idênticas. Coffman achou que havia algo que não estava bem.

 

As generalizações são inúteis sublinhou Lynley. Pior do que isso, são perigosas.

 

Estou perfeitamente ciente disso, obrigada. Mas quando as generalizações são acompanhadas por factos e provas, creio que não pode deixar de concordar que devem ser objecto de uma investigação mais completa.

 

Lynley reparou que ela continuava de braços cruzados. Apercebeu-se também do tom firme da voz dela e do seu olhar franco e directo. Deu-se conta de que estava a questionar as teorias dela pela mesma razão que se sentira impelido a examinar a casa centímetro a centímetro, a fim de se assegurar de que nada passara despercebido no primeiro exame. Não gostava do que estava subjacente à reacção instintiva que o levava a não confiar nela. Era chauvinista. Se Helen viesse a saber que ele tinha dificuldade em aceitar trabalhar com uma mulher com a mesma categoria profissional que a sua, dar-lhe-ia a repreensão que ele merecia.

 

Encontrou alguma coisa? perguntou.

 

Sinto-me muito feliz por ter sido capaz de chegar a essa conclusão, parecia dizer a expressão do rosto dela.

 

Por aqui replicou.

 

Contrariado, seguiu-a até ao fundo do jardim. O jardim estava dividido em duas secções, separadas por uma sebe. Dois terços eram ocupados por um relvado, canteiros de flores, um mirante rodeado de corrimãos feitos com ramos de aveleira, um abrigo para pássaros e um pequeno lago. O outro terço era constituído por uma faixa de relva interrompida por pereiras e parcialmente coberta por um montículo de detritos para compostagem. Foi para este canto do jardim que a inspectora Ardery se dirigiu, conduzindo-o para o extremo nordeste, onde uma sebe de buxo separava o jardim do cercado que ficava do outro lado. O próprio cercado era delimitado por um conjunto de estacas de madeira ligadas entre si por arame grosso.

 

A inspectora Ardery tirou um lápis de dentro do bolso para designar a estaca de madeira que ficava imediatamente atrás da sebe de buxo.

 

Encontrámos sete fibras aqui, em cima da estaca. E outra presa no arame. Eram azuis. Possivelmente ganga. E aqui, ainda é possível distingui-la, embora já esteja um pouco apagada, está uma pegada, mesmo por baixo da sebe.

Que tipo de sapatos? Ainda não sabemos. Biqueira redonda, tacões bem pronunciados, sola grossa, com um padrão em forma de dente de cão. Um pé esquerdo. Era uma pegada funda, como se alguém tivesse pulado a sebe para entrar no jardim, apoiando-se mais no pé esquerdo do que no direito. Tirámos o molde.

 

Encontraram outros vestígios?

 

Nada de relevante neste local. Tenho dois agentes no terreno em busca de outras pegadas iguais à que encontrámos, mas não vai ser tarefa fácil tendo em conta o tempo que passou desde a hora da morte de Fleming. Além disso, nem sequer temos a certeza de que esta pegada tenha sido feita na noite de quarta-feira.

 

Seja como for, é um começo.

 

Essa é precisamente a minha opinião.

Apontou para sudoeste, explicando que havia uma nascente a” cerca de cem metros de distância da casa. Transformava-se num riacho ao longo do qual serpenteava um caminho público. Este era muito utilizado pelos habitantes da região, já que ia dar a Lesser Springburn, que ficava a dez minutos a pé do local onde se encontravam. Apesar de o caminho se encontrar ainda coberto pela folhagem outonal e por outra vegetação recente, havia aqui e ali sobretudo próximo das sebes bocados de terra batida. Se houvesse outras pegadas, essa seria a localização mais provável para as mesmas No entanto, uma vez que mais de um dia transcorrera já desde a hora exacta da morte e o momento em que o corpo fora descoberto, se por acaso a pegada que tinham encontrado junto à sebe tivesse sido repetida noutro sítio, teria certamente sido coberta por outras, entretanto.

 

Acha que alguém poderia ter vindo a pé desde Lesser Springburn?

 

É uma possibilidade respondeu ela.

 

Alguém da região?

 

Não necessariamente, explicou ela. Apenas alguém que conhecesse a localização exacta do carreiro e soubesse onde o mesmo conduzia. A passagem não estava particularmente sinalizada em Lesser Springburn. Tinha início nas traseiras de uma urbanização e desaparecia rapidamente no interior de um pomar, pelo que era necessário conhecer a sua existência para a utilizar. Admitiu que não podia estar certa de que aquele fora o percurso seguido pelo assassino, mas colocara outro agente na aldeia, encarregue de descobrir se alguém se teria apercebido de quaisquer movimentações anormais ou vislumbrado a luz de uma lanterna alumiando o carreiro na quarta-feira à noite, ou reparado nalgum veículo estranho estacionado nas imediações.

Também encontrámos algumas beatas perto daqui. Indicou com um gesto a base da sebe.

Havia seis, a dois ou três centímetros de distância umas das outras. Não estavam esmagadas. Alguém as deixou arder até ao fim. Havia fósforos também. Dezoito. Uma carteira de fósforos, não fósforos de cozinha. A noite estava ventosa? especulou Lynley. Um fumador nervoso com mãos trémulas contrapôs ela. Apontou para a fachada da casa, na direcção de Water Street.

 

De momento, estamos mais inclinados a pensar que quem quer que tenha pulado a sebe neste sítio terá começado por saltar o muro caminhando depois ao longo do cercado, proveniente de Water Street. Só há ervas e trevos no cercado e, por isso, não havia nenhuma pegada. Mas esta hipótese é mais plausível do que pressupor que alguém se terá esgueirado ao longo da álea que vai dar à casa, tenha transposto o portão, atravessado rapidamente o relvado e se tenha escondido aqui, ficando à espreita durante um bocado. E a quantidade de cigarros encontrada sugere de facto a presença de alguém que tenha ficado de vigia, não concorda? Mas não necessariamente um assassino, pois não?

 

É muito provável que tenha sido um assassino. Ganhando coragem.

 

Poderia ter sido uma mulher.

Claro que sim. Naturalmente. Podia ter sido uma mulher.

 

Olhou na direcção da casa quando Havers e Mrs. Whitelaw saíam da cozinha.

Está tudo no laboratório: fibras, fósforos, beatas, o molde da pegada. Os primeiros resultados devem estar disponíveis esta tarde.

 

O movimento de cabeça quase imperceptível na direcção de Lynley, indicava que não iria fornecer-lhe mais nenhuma informação. Dando meia volta, apressou-se a regressar à casa...

 

Inspectora Ardery chamou Lynley.

Detendo-se, ela olhou para trás. Uma madeixa de cabelo soltou-se e, com um gesto irritado, ela tornou a prendê-la.

Sim?

 

Se puder esperar mais um pouco, queria que escutasse o relatório da sargento. Gostaria de ouvir a sua opinião.

Ela favoreceu-o com mais um dos seus olhares firmes e desconcertantes. Tinha consciência de que as conclusões do escrutínio dela não deveriam abonar muito em favor dele. Inclinou a cabeça na direcção da casa e perguntou:

 

Se eu fosse um homem, teria procedido da mesma forma?

 

Julgo que sim admitiu ele. Mas é provável que tivesse dado mostras de mais subtileza. Peço desculpa, inspectora. O meu comportamento foi inqualificável.

 

Os olhos dela não se moveram.

 

Foi, de facto retorquiu ela, num tom de voz calmo. Também penso que sim.

 

Esperou que Lynley se juntasse a ela e, juntos, atravessaram o relvado para irem ao encontro da sargento Havers. Mrs. Whitelaw permanecia junto da mesa de verga, onde se sentou, colocou os óculos escuros e fixou a sua atenção na garagem.

 

Aparentemente, não falta nada resumiu Havers, calmamente. Para além da poltrona da sala de jantar, tudo está exactamente como estava na última vez que ela cá esteve.

 

Que foi quando? Consultou as suas notas.

 

No dia vinte e oito de Março. Menos de uma semana antes de Gabriella se ter mudado para cá. Segundo ela, as roupas que estão no piso de cima pertencem todas a Gabriella. Bem como um conjunto de malas de viagem, que estão no segundo quarto de dormir. Não há nada de Fleming em lado nenhum.

 

Parece que ele não fazia tenções de passar a noite aqui disse a inspectora Ardery.

 

Lynley pensou nas tigelas dos gatos, no maço de Silk Cut, nas roupas.

 

Parece que ela não fazia tenções de partir. Por muito tempo, em todo o caso.

 

Estudou a casa desde o sítio onde se encontravam, prosseguindo num tom pensativo:

 

Eles têm ambos uma violenta discussão. Mrs. Patten agarra na mala e sai de casa. Junto à sebe, o nosso observador sente que é o momento de passar à acção...

 

Ou observadora disse Ardery.

 

Lynley meneou a cabeça, em sinal de assentimento.

 

E corre em direcção à casa. Entra. Vem preparado, pelo que não demora muito tempo. Acende o dispositivo de incêndio, enfia-o na poltrona e sai.

 

Trancando a porta atrás de si acrescenta Ardery. O que implica que tinha uma chave da casa. É uma fechadura encastoada.

 

A sargento Havers abanou energicamente a cabeça.

 

Será que me escapou alguma coisa? perguntou. Um observador? Que observador?

 

Lynley pô-la a par das novidades enquanto atravessavam o relvado para irem juntar-se a Mrs. Whitelaw, que os esperava à sombra do caramanchão.

 

Tal como eles, ainda não descalçara as luvas de borracha. As suas mãos alvas, pousadas sobre os joelhos, faziam lembrar uma caricatura estranha. Ele perguntou-lhe quem tinha as chaves da casa.

 

Ken respondeu ela, após alguns instantes de reflexão. Gabriella.

 

E a senhora?

 

Gabriella tinha as minhas chaves.

 

E existem outras para além dessas?

 

Mrs. Whitelaw levantou a cabeça e olhou directamente para Lynley. Ele, porém, não conseguiu decifrar a expressão dos olhos dela, oculta por detrás dos óculos de sol.

 

Porquê? questionou ela.

 

Porque tudo parece indicar que Kenneth Fleming pode ter sido assassinado.

 

Mas os senhores falaram de um cigarro. Na poltrona.

 

Pois falámos. Existem outras chaves?

 

As pessoas gostavam deste homem. Gostavam dele, inspector.

 

Nem todas, talvez. Existem outras chaves, Mrs. Whitelaw?

 

Ela passou os dedos pela testa e pareceu meditar sobre a questão. E Lynley concluiu que só podia haver duas explicações para esta atitude. Ou ela acreditava que ao responder à pergunta que ele lhe colocara estaria a aceitar o raciocínio deles, isto é, que alguém odiara Kenneth Fleming ao ponto de o assassinar; ou estava a tentar ganhar tempo enquanto se esforçava por adivinhar o que a sua resposta poderia revelar-lhes.

 

Existem outras chaves? insistiu Lynley.

 

Não exactamente a resposta dela soou quase indistinta.

 

Não exactamente? Das duas, uma: ou há, ou não há.

 

Não estão na posse de ninguém em particular disse ela.

 

Mas elas existem. Onde estão?

 

Ergueu o queixo e apontou-o na direcção da garagem.

 

Sempre guardámos uma chave da porta da cozinha na cabana do jardim. Por baixo de um vaso de cerâmica.

 

Lynley, Havers e Ardery olharam na direcção que ela lhes indicava. Não havia nenhuma cabana de jardim à vista. Apenas uma sebe alta de teixo, com uma abertura que dava acesso a uma passagem em tijoleira.

 

Quem é que sabe da existência dessa chave? perguntou Lynley. Mrs. Whitelaw mordeu o lábio inferior, como se se apercebesse de quão estranha soaria a resposta que se preparava para dar.

 

Não sei dizer-vos exactamente. Lamento.

 

Não sabe? repetiu a sargento Havers, lentamente.

 

Há mais de vinte anos que a guardamos naquele sítio explicou Mrs. Whitelaw. Quando era preciso realizar algum trabalho na casa enquanto estávamos em Londres, os operários serviam-se dela para entrar.

 

Quando vínhamos para cá aos fins-de-semana, tínhamos sempre uma chave para entrar em casa, caso nos esquecêssemos de trazer a nossa.

 

Nós? inquiriu Lynley. A senhora e Fleming?

 

Vendo que ela hesitava em responder, percebeu que se tinha enganado

 

A senhora e a sua família estendeu-lhe a mão. Mostre-nos o sítio, por favor.

 

A cabana do jardim era contígua às traseiras da garagem. Não era mais do que uma estrutura simples em madeira coberta por um telhado e com paredes feitas de fibra de polietileno. O interior estava forrado a prateleiras, presas às traves verticais que constituíam o esqueleto da cabana. Mrs. Whitelaw passou por uma escada, agitando a poeira que cobria um guarda-sol de jardim, fechado e encostado a uma das traves. Afastou um par de sapatos de homem já muito deteriorados e apontou para uma das prateleiras atravancadas de objectos, onde se encontrava um pato em cerâmica amarela, cujo dorso, oco, servia de vaso para plantas.

 

Debaixo dele disse ela.

 

Havers adiantou-se e levantou o pato com cautela, segurando-o pelo bico e pela cauda, com a ponta dos dedos enluvados.

 

Nada de nada informou.

 

Tornou a colocar o pato no mesmo sítio e espreitou por debaixo do vaso de barro que estava ao lado, inspeccionando em seguida uma lata de insecticida e os restantes objectos que se encontravam sobre a prateleira.

 

A chave tem de estar aí disse Mrs. Whitelaw, enquanto a sargento Havers prosseguia as buscas.

 

A entoação da sua voz, no entanto, deixava entrever que o seu protesto ficava sobretudo a dever-se ao facto de essa ser a reacção que se esperava dela.

 

Suponho que a sua filha está ao corrente da existência desta chave sobresselente observou Lynley.

 

Os ombros de Mrs. Whitelaw ficaram rígidos.

 

Garanto-lhe, inspector, que a minha filha nada tem que ver com esta história.

 

Ela estava a par da sua relação com Fleming? Disse-me antes que não se vêem há muitos anos. É por causa dele?

 

Claro que não. Há anos que não nos falamos. E isso nada tem que ver

 

Ele era como um filho para si, segundo me disse. Ao ponto de a senhora ter modificado o seu testamento em favor dele. Quando fez essa alteração deserdou a sua filha?

 

Ela não viu o meu testamento.

 

Ela conhece o seu advogado? Será possível que tenha sido advertida por ele?

 

Essa ideia é absurda.

 

O que é que é absurdo, concretamente? inquiriu Lynley, num tom de voz calmo. Que ela conheça o conteúdo do testamento ou que possa ter morto Fleming? As faces pálidas de Mrs. Whitelaw foram invadidas por um rubor súbito.

 

Acha mesmo que eu vou responder a essa pergunta?

 

O que eu quero é chegar à verdade replicou ele.Ela tirou os óculos de sol. Como não tinha os outros óculos com ela, ficou diante dele com o rosto totalmente descoberto. Este gesto, ao qual estava amplamente subjacente uma atitude do género, ”escute-bem-o-que-lhe-vou-dizer-meu rapaz”, levou Lynley a recordar-se de que em tempos ela tinha sido professora.

 

Gabriella também conhecia a existência desta chave. Fui eu mesma quem lhe falou nela. Ela pode perfeitamente ter mencionado o facto a alguém. Na verdade, pode tê-lo dito a qualquer pessoa. Pode até ter mostrado a alguém o sítio onde a chave costumava estar. E acha que isso faria algum sentido? Não me disse ontem que ela tinha vindo para cá com a intenção de se isolar.

 

Ignoro o que se passava na cabeça de Gabriella. Ela gosta de homens. E adora o melodrama. E se soubesse que revelando o seu paradeiro a alguém, bem como o local onde a chave estava guardada, poderia provocar um drama do qual fosse a protagonista, tê-lo-ia feito. Seria mesmo capaz de difundir um comunicado.

Mas não o comunicaria à sua filha, pois não? disse Lynley, arrastando-a de novo para o tema central da discussão, enquanto registava mentalmente que o retrato que ela acabava de fazer de Gabriella coincidia na íntegra com a descrição que Patten lhes fornecera na noite anterior.

 

Mrs. Whitelaw recusou-se a seguir esta linha de raciocínio. Com uma calma deliberada, explicou:

 

Ken viveu aqui durante dois anos, inspector, enquanto jogava pelo condado de Kent. A família continuou a morar em Londres e vinha visitá-lo aos fins-de-semana. Jean, a mulher, e os filhos, Jimmy, Stan e Sharon. Todos eles devem saber da existência desta chave.

 

Lynley, no entanto, recusou-se a permitir que ela se esquivasse.

 

Quando é que viu a sua filha pela última vez, Mrs. Whitelaw?

 

Olivia não conhecia Ken.

 

Mas sabia certamente da sua existência?

 

Eles nunca se encontraram, sequer.

 

Seja como for. Quando é que a viu pela última vez?

 

E mesmo que ela o tivesse encontrado pessoalmente, mesmo que soubesse de tudo, não teria feito qualquer diferença. Ela sempre sentiu desprezo pelo dinheiro e pelas coisas materiais. Estar-se-ia nas tintas para quem herdasse o quê.

 

- Ficaria espantada se soubesse o quanto as pessoas passam a interessar-se por bens e dinheiro, a partir do momento em que os herdam. Quando é que a viu pela última vez?

 

- Ela não...

 

- Quando, Mrs. Whitelaw?

 

A sua interlocutora esperou uns bons quinze segundos antes de responder.

 

- Há dez anos atrás - disse. - Numa sexta-feira à noite, no dia dezanove de Abril, na estação de metropolitano de Convent Garden.

 

- Tem uma memória espantosa, Mrs. Whitelaw.

 

- Foi uma data que me marcou.

 

- Porquê?

 

- Porque o pai de Olivia morreu nessa noite.

 

- E isso é importante?

 

- Para mim, é. Ele morreu logo após o nosso encontro. E agora, se não se importa, inspector, gostaria de apanhar um pouco de ar fresco. Está muito abafado aqui dentro, e eu não gostaria de maçá-lo uma segunda vez, desmaiando na sua presença.

 

Ele afastou-se para deixá-la passar. Ouviu-a descalçar as luvas de borracha.

 

Havers entregou o vaso de cerâmica à inspectora Ardery, que observava a cabana atafulhada de sacos de terra e dezenas de vasos e utensílios.

 

- Que confusão - resmungou ela. - Se existirem provas aqui dentro, estão misturadas com cinquenta anos de velharias.

 

Suspirou e perguntou a Lynley:

 

- O que é que acha?

 

- Que chegou o momento de ir à procura de Olivia Whitelaw - respondeu.

 

Chris e eu acabámos de jantar e, como sempre, eu encarreguei-me de lavar a loiça. Chris tem uma paciência infinita comigo, já que demoro três quartos de hora a executar uma tarefa que ele completaria nuns escassos dez minutos. Nunca me diz, «Deixa que eu faço isso, Livie», e nunca me empurra para o lado. Quando parto um prato ou um copo, ou quando um tacho me escorrega das mãos, deixa que seja eu a limpar os cacos e faz de conta que não me ouve chorar e soltar imprecações porque a vassoura e a esfregona não me obedecem. Às vezes, quando julga que já estou a dormir, acaba de varrer algum pedaço de vidro ou de louça que me tenha escapado. Noutras ocasiões, lava o chão com detergente, esfregando vigorosamente o sítio onde o conteúdo do tacho se entornou. Nunca lhe falo no assunto, embora o oiça andar de um lado para o outro, atarefado.

 

Antes de se deitar, entreabre a porta do meu quarto para verificar se estou bem. Finge que vem confirmar se a gata tem vontade de sair e eu faço de conta que acredito nele. Se me encontra ainda acordada, diz, «Última chamada para os felinos que desejem cumprir os últimos rituais antes do recolher. Algum candidato? Tu, Panda, estás interessada?» E eu respondo, «Já está deitada, julgo eu», ao que ele replica, «Precisas de alguma coisa, Livie?»

 

Preciso, sim. E como preciso. Sou um poço de necessidades. Preciso que ele dispa as suas roupas à luz do corredor. Preciso que se enfie na minha cama. Preciso que ele me abrace. Tenho milhares de necessidades que nunca serão satisfeitas e me arrancam, tira a tira, a carne que cobre os ossos do meu corpo. O orgulho será a primeira coisa a desaparecer, disseram-me. Esvair-se-á tão naturalmente como o suor que me escorre dos poros. O processo terá início no momento em que eu me aperceber da minha total dependência dos outros. Esta, porém, é uma ideia contra a qual não me canso de lutar. Agarro-me com unhas e dentes àquilo que sou. Tento conjurar a imagem cada vez mais ténue de Liv, a fora-da-lei. Digo a Chris: «Não, não preciso de nada. Estou óptima.» E sinto que a minha voz soa convincente. Às vezes, já muito tarde, ele diz casualmente:

 

- Vou sair durante uma hora ou duas. Consegues desenvencilhar-te sozinha? Queres que peça a Max que passe por cá?

 

Não sejas parvo. Estou bem. Quando o que mais desejo é perguntar-lhe:

 

Quem é ela, Chris? Onde é que vocês se conheceram? Não fica aborrecida por não poderes passar a noite com ela, porque tens de voltar para casa e tomar conta de mim?

 

E quando ele regressa a casa, depois dessas escapadelas nocturnas, e entreabre a porta do meu quarto antes de se deitar, consigo sentir o odor a sexo impregnado nele. Acre e pesado. Mantenho os olhos fechados e esforço-me por respirar normalmente. Digo a mim própria que não tenho quaisquer direitos sobre ele. A vida dele pertence-lhe, e a minha vida pertence-me. Sei, desde o primeiro momento, que entre nós jamais haverá qualquer relação íntima, ele deixou-o bem claro, não foi? Oh, sim, inequivocamente claro. E eu tratei de esclarecer, de forma não menos clara, que esse era também o meu desejo. Sim, por mim estava tudo bem. Por isso, os sítios que frequenta e as pessoas com quem está não têm qualquer importância, pois não? Magoa-me, é tudo. Repito tudo isto para mim mesma enquanto oiço a água a correr e os bocejos de Chris, sabendo perfeitamente o modo como ela o fez sentir-se esta noite. Seja ela quem for. Onde quer que se tenham encontrado.

 

Rio-me enquanto escrevo tudo isto. A ironia da minha situação não me escapa. Quem diria que, um dia, eu seria capaz de desejar um homem a este ponto, e ainda por cima um homem que desde o início fez todo o possível para me demonstrar que não era o meu tipo.

 

É que o meu tipo de homem pagava para obter de mim o que queria. Ocasionalmente, o meu tipo e eu fazíamos um acordo prévio em que o prémio era uma dose de gin ou de droga; na maior parte das vezes, porém, era dinheiro vivo. Não ficarão surpreendidos por me ouvirem dizer isto, pois de certeza que compreenderão que, apesar de tudo, é muito mais fácil descer do que subir na vida. Trabalhei nas ruas porque a vida à beira do abismo era feia e sórdida. E quanto mais velho fosse o tipo que eu engatava, mais me agradava, porque eram esses os mais patéticos. Enfiados nos seus fatos completos, passeavam por Earl’s Court, fazendo de conta que estavam perdidos e precisavam de quem lhes indicasse o caminho a seguir. ”Desculpe, menina, será que podia indicar-me o caminho mais curto para Hammersmith? Parsons Green? Putney Bridge? Para um restaurante chamado... oh, que maçada, esqueci-me do nome.” E ficavam à espera, lábios curvados num trejeito esperançoso, testas reluzentes, sob a luz de presença dos respectivos carros. Esperavam um sinal, um ”Procuras companhia, querido?”, ou aguardavam que eu me inclinasse junto do vidro aberto e lhes acariciasse o rosto ao de leve, passeando o meu dedo desde a orelha até ao maxilar. ”Faço o que tu quiseres. Tudo o que tu quiseres. E o que é que um homem encantador como tu gosta? Diz à Liv. Tudo o que ela deseja é fazer com que te sintas bem?” Começavam a gaguejar e a transpirar. Depois perguntavam, hesitantes, ”Quanto?” O meu dedo descia, então, ao longo do corpo deles. ”Depende do que tu quiseres. Diz-me. Diz-me todas as coisas feias que queres que faça contigo esta noite.”

 

Era tudo tão fácil. Uma vez libertos das roupas, expondo as ancas, que pendiam em torno da cintura como sacos vazios, davam mostras de uma imaginação limitada. Eu sorria e dizia-lhes: ”Vá lá, querido. Vem à Liv. Gostas disto? Ha? É bom?” E eles respondiam: ”Oh, meu Deus. Oh, sim.” E no espaço de cinco horas eu ganhava o suficiente para pagar uma semana de renda do estúdio que descobrira em Barkston Gardens, restando-me ainda o suficiente para comprar meio grama de coca ou uma caixa de anfetaminas. A vida era tão fácil que não conseguia compreender por que razão todas as mulheres de Londres não faziam o mesmo; De tempos a tempos aparecia um tipo mais novo. Mas eu mantinha-me fiel aos mais velhos, àqueles cujas mulheres suspiravam e se decidiam a cooperar seis a oito vezes por ano, àqueles que ficavam com os olhos marejados de lágrimas de gratidão quando eu gemia e lhes dizia: ”Que grande maroto me saíste. Ninguém diria, ao olhar para ti!”

 

É claro que tudo isto estava relacionado com a morte do meu pai. Não precisava de me deitar no divã do Dr. Freud, durante nove ou dez sessões, para percebê-lo. Dois dias depois de ter recebido o telegrama anunciando-me a morte do meu pai, engatei o meu primeiro tipo com mais de cinquenta anos. Gostei de o seduzir. Deliciei-me ao dizer-lhe: ”Tens filhos? Queres que te trate por papá? Como é que gostarias de me tratar?” E, em certo sentido, experimentava um sentimento de triunfo e de redenção, sempre que os ouvia arquejar, enquanto esperava que eles pronunciassem, entre gemidos, nomes como Célia ou Jenny ou Emily. Ao ouvir estes nomes, ficava a conhecer todos os seus podres, o que de alguma maneira me permitia justificar o que havia de pior e de mais escabroso em mim própria.

 

Foi assim que vivi até à tarde em que conheci Chris Faraday, cerca de cinco anos mais tarde. Estava pespegada à entrada da estação de metro de Earl’s Court, aguardando a chegada de um dos meus clientes habituais, um agente imobiliário com cara de basset e nariz ornado com pêlos tão espetados que faziam lembrar fios eléctricos. Tinha uma predilecção especial pela dor e pelo sofrimento e, dentro da mala do carro, trazia sempre uma panóplia de acessórios para o efeito. Todas as quintas à tarde e domingos de manhã, dizia-me com uma expressão pesarosa, enquanto eu entrava no carro: ”Archie portou-se mal novamente, minha querida. Como é que vamos castigá-lo hoje?” Depois, passava-me o dinheiro, eu contava as notas e, mediante a soma, decidia-me pelas algemas, o piercing nos mamilos, o chicote, ou uma sessão de terror em torno dos órgãos genitais dele. Não era nada parcimonioso em termos de dinheiro, mas o grau de diversão começava a declinar. Adquirira o hábito de me chamar Maria Imaculada e de me pedir que o tratasse por Jesus. Desatava a berrar disparates do género, ”Este é o meu corpo, que ofereço ao Todo-Poderoso em remissão dos teus pecados” enquanto eu intensificava a dor. E quanto mais eu batia, torcia ou apertava, quanto mais massacrava o corpo dele com esta ou aquela pinça, mais ele gostava e mais queria. Todavia, embora pagasse sempre adiantado e regressasse, satisfeito, para junto da mulher em Battersea, eu tinha cada vez mais receio que ele sofresse um ataque cardíaco, e não me apetecia mesmo nada acabar com um cadáver sorridente nos braços. Por isso, quando Archie não apareceu às cinco e meia daquela quinta-feira, conforme combinado, senti um misto de decepção e de alívio.

 

Estava a pensar no dinheiro que tinha desperdiçado quando Chris atravessou a rua, caminhando na minha direcção. Por uma vez, Archie comunicara-me os seus desejos antecipadamente, e juntando o tempo que perdera com a escolha das roupas e dos acessórios àquele que gastaria a vestir-me, a despi-lo, a empurrá-lo, a amarrá-lo, a algemá-lo e a manusear o clister, estava a perder numa única tarde o suficiente para manter as minhas provisões de coca durante alguns dias. Estava, portanto, de muito mau humor quando deparei com aquele tipo magrizela, calças de ganga rasgadas no joelho, atravessando obedientemente a passagem para peões, como se temesse que a polícia fosse arrastá-lo para a choça caso ele se atrevesse a atravessar a rua noutro sítio.

 

Preso por uma trela, trazia um cão de uma raça tão indeterminada que até a palavra cão pareceria pouco mais do que um eufemismo quando aplicada para designar a criatura. E ele parecia caminhar de forma a fazer coincidir os seus passos com o andar cambaleante do animal.

 

Quando passou por mim, disse-lhe:

 

Isso é a coisa mais feia que já vi na minha vida. Porque é que não fazes um favor ao mundo e o manténs fora da vista de toda a gente?

 

Ele parou. Olhou para o cão e depois para mim, lentamente, para que eu percebesse que a comparação não me beneficiava em nada.

 

Onde é que o desencantaste, afinal? perguntei.

 

Fanei-o.

 

Fanaste. Essa coisa? Bem, tens uns gostos bastante esquisitos, não tens?

 

Com efeito, para além de ter apenas três patas, o cão tinha metade da cabeça rapada. No sítio onde outrora houvera pêlo, viam-se chagas avermelhadas que começavam a cicatrizar.

 

Não é uma visão agradável retorquiu Chris, observando o cão com uma expressão pensativa. Mas a escolha não foi dele, e é isso que me custa. Os animais não têm a possibilidade de escolher. Por isso, alguém tem de se importar o suficiente para fazer as escolhas certas por eles.

 

Nesse caso, alguém devia era decidir abater essa coisa horrível. Estraga a paisagem.

 

Meti a mão na mala e tirei os cigarros. Acendi um e apontei para o cão.

 

E porque é que o fanaste? Para que ele participe num concurso de monstros?

 

Fanei-o, porque esse é o meu trabalho respondeu ele.

 

O teu trabalho.

 

Exactamente.

 

Baixou os olhos e fitou os sacos de compras que se acumulavam aos meus pés. Lá dentro estavam as roupas que eu comprara para Archie, juntamente com outra mercadoria nova.

 

E tu, o que é que fazes?

 

Eu fodo por dinheiro.

 

Com tantos embrulhos?

 

O quê?

 

Indicou os embrulhos com um gesto.

 

Ou estás a fazer uma pausa depois de uma ida às compras?

 

Pois, é isso mesmo. Parece-te que estou vestida para uma ida às compras, não?

 

Não. Pareces vestida para o engate, mas é que eu nunca vi uma puta a passear-se com tantos embrulhos atrás. Não tens medo que isso espante a clientela?

 

Estou à espera de uma pessoa.

 

Que te deu uma tampa.

 

Tu não sabes isso, pois não?

 

É muito simples. Há oito beatas espalhadas aos teus pés. Todas elas estão manchadas com o teu baton. Que cor horrível, aliás. Esse tom coral não te fica nada bem.

 

E tu, és perito na matéria, é?

 

Não em matéria de mulheres.

 

Em matéria de imbecis como esse, então?

 

Ele baixou os olhos para o cão, que entretanto se deitara sobre o pavimento, cabeça pousada sobre a sua única pata dianteira e olhos quase fechados. Agachando-se perto dele, afagou a cabeça do animal com um gesto carinhoso.

 

Sim disse ele. Nessa área sou um especialista. O melhor que há. Sou como a neblina à meia-noite. Invisível. Silenciosa.

 

Deixa-te de merdas exclamei, não porque esse fosse de facto o meu desejo, mas sim porque senti subitamente que havia nele algo de glacial, algo que eu não conseguia perceber. Cretinóide, pensei, aposto em como nem sequer consegue levantá-lo, nem por amor nem por dinheiro. E a ideia ainda não me saíra do espírito, já eu estava desesperada por saber a resposta.

 

Queres companhia, então? Por mais cinco libras, o teu compincha pode ficar a assistir.

 

Ele inclinou a cabeça.

 

Onde? Bingo, pensei eu.

 

No Southerly, em Gloucester Road. Quarto sessenta e nove.

 

Muito apropriado.

 

E então perguntei, sorrindo. Ele pôs-se de pé. O cão imitou-o.

 

Já comia qualquer coisa. Era isso precisamente que Toast e eu íamos fazer. Ele acabou de sair do Exhibition Centre e está exausto e esfomeado. E um bocado rabugento também.

 

Ah, então ele sempre participou no concurso do cão mais horroroso. Aposto que ganhou.

 

De certa maneira, sim.

 

Ficou a olhar para mim enquanto eu pegava nos meus embrulhos e esperou, calado, que eu acabasse de os encaixar debaixo do braço.

 

Muito bem. Vamos lá, então. Vou contar-te a história do meu cão feioso.

 

Devíamos formar um trio bastante bizarro: um cão com três patas e a cabeça rapada, um jovem revolucionário magro como um pau de virar tripas, vestido com umas calças de ganga rasgadas e um lenço atado à cabeça, e uma puta enfiada num fato de licra vermelho, saltos pretos de oito centímetros e uma argola de prata presa a uma das narinas.

 

Naquele momento, estava convencida de que me preparava para fazer um engate interessante. Ele não parecia ansioso por ir para a cama comigo enquanto esperávamos, encostados ao balcão de tijolo de um restaurante chinês de comida rápida. Disse para mim própria, no entanto, que se agisse com cabeça, ele acabaria por ceder. Como sempre. Comemos crepes e bebemos duas chávenas de chá verde cada um. Depois demos chop suey ao cão. Conversámos como as pessoas que ainda não se conhecem o suficiente para terem confiança uma na outra. Fizemos as perguntas habituais. De onde és? De onde são os teus pais? Onde é que estudaste? Também desististe da universidade? Ridículo, todo aquele disparate, não era? Não ouvia tudo o que ele me dizia, porque estava à espera que ele me comunicasse o que pretendia e quanto é que estava disposto a pagar por isso. Sacara de um maço de notas de dentro do bolso, para pagar a comida, por isso deduzi que deveria estar pronto para largar umas boas quarenta libras. Ao fim de mais de uma hora continuávamos na fase da conversa.

 

Então, decides-te, ou não? O que é que queres? perguntei, por fim

 

Desculpa?

 

Pus a minha mão sobre a coxa dele.

 

Faço-te uma pívia? Um broche? Fazemos sexo? Pela frente ou por trás? O que é que queres, afinal?

 

Nada respondeu ele.

- Nada.

 

Desculpa.

 

Senti o rosto em fogo, enquanto a coluna se tornava rígida como ferro.

 

Estás a querer dizer que passei os últimos noventa minutos à espera que tu...

 

Estivemos a comer. Eu disse-te que vínhamos comer uma refeição.

 

Ai isso é que não disseste! Perguntaste onde e eu respondi no Southerly, em Gloucester Road. Quarto sessenta e nove, respondi eu. E tu disseste...

 

Que precisava de comer qualquer coisa. Que estava com fome. Tal como o Toast.

 

Que se lixe o Toast! Estoirei trinta libras, foi o que foi.

 

Trinta libras? Ele só te paga isso? O que é que fazes por esse preço? E como é que te sentes quando acabas o serviço?

 

E o que é que tu tens a ver com o assunto? Imbecil. Passa para cá a massa, ou armo um escândalo aqui mesmo.

 

Ele observou os transeuntes e pareceu reflectir sobre as alternativas que se lhe apresentavam.

 

Está bem. Mas vais ter que trabalhar para a ganhar.

 

Eu já te disse que era precisamente isso que eu queria, não disse? Ele assentiu com um movimento de cabeça.

 

Pois disseste. Vamos embora, então. Enquanto o seguia, fui anunciando:

 

À mão é mais barato. Os broches dependem do tempo que levarem. Sexo, só com preservativo. Mais do que uma posição implica mais dinheiro. Fui clara?

 

Como água.

 

Então, para onde é que vamos?

 

Para minha casa. Parei.

 

Nem pensar. Ou é no Southerly, ou nada feito.

 

Queres o teu dinheiro?

 

Queres curtir?

 

Estávamos num impasse. Em West Cromwell Road, ao cair da noite, rodeados por uma massa de carros que circulava sem descanso e por um mar de gente que se acotovelava, tentando abrir caminho ao longo do passeio. O cheiro dos gases libertados pelos tubos de escape estava a dar-me a volta ao estômago. Sobretudo porque o crepe que eu comera estava ensopado em gordura.

 

Ouve começou ele, eu tenho animais à minha espera, em Little Venice, que precisam de ser alimentados.

 

Iguais a este? perguntei, esticando o dedo na direcção do cão.

 

Não tens nada a temer. Não te vou magoar.

 

Como se fosses capaz de o fazer.

 

Essa é uma questão que pode ficar em aberto, não achas? Recomeçou a andar, dizendo por cima do ombro:

 

Se queres o dinheiro, ou vens comigo ou tentas arrancá-lo à força, aqui em plena rua. A escolha é tua.

 

Então não sou um animal? Tenho direito a escolher? Ele lançou-me um sorriso radiante.

 

És mais esperta do que pareces.

 

E eu segui-o. Que se lixe, pensei. Archie dificilmente se decidiria a aparecer àquela hora e, além disso, eu só conhecia Little Venice de passagem. Não tinha nada a perder se fosse dar uma espreitadela ao bairro.

 

Chris caminhava à minha frente. Nem uma vez se virou para ver se eu o seguia. Conversava com o cão, que lhe dava pela coxa. Fazia-lhe festas e encorajava-o a avançar.

 

Então, Toast? Estás a apanhar o jeito, não estás? Mais um mês e estarás um verdadeiro cão de caça. Mal podes esperar por esse dia, não é?

 

Este tipo é completamente idiota, pensei eu. E tentei imaginar o modo como aquele homem faria amor com uma mulher, e se fazia tenções de me montar como um cão, já que parecia simpatizar tanto com a raça canina

 

Já estava escuro quando chegámos ao canal. Atravessámos a ponte e descemos os degraus até ao cais.

 

Moras numa lancha, então?

 

Sim respondeu ele. Ainda não está acabada, mas estamos a trabalhar para isso.

 

Hesitei durante alguns momentos.

 

Estamos?

 

Deixara de fazer grupos no ano anterior. Não compensavam.

 

Não faço mais do que um de cada vez esclareci.

 

Mais do que... repetiu ele. Oh, desculpa. Estava a falar dos animais.

 

Dos animais.

 

Sim. Nós, os animais e eu.

 

Este tipo é decididamente imbecil, pensei.

 

E eles dão-te uma mão com as obras, é?

 

O trabalho avança mais depressa quando se está em boa companhia Deves ter a prova disso na tua profissão.

 

Olhei para ele com os olhos semicerrados. Estava a divertir-se à minha custa. O senhor julgava-se superior. Bom, em breve veríamos quem era quem

 

Qual delas é a tua? perguntei.

 

A última, lá ao fundo respondeu, conduzindo-me na direcção da lancha.

 

Naquela época, era muito diferente do que é hoje. Estava longe de estar acabada. O exterior estava pronto, claro, razão por que Chris obtivera a licença de amarração. No interior, contudo, havia apenas tábuas, cepos de madeira, rolos de linóleo e de alcatifa e caixas sobre caixas cheias de livros, roupas, miniaturas de aviões, pratos, tachos, panelas e outras tralhas. Parecia estar à espera que o ferro-velho chegasse a todo o momento. O único espaço livre, a proa da lancha, era ocupada pelos animais que Chris mencionara antes. Três cães, dois gatos, meia dúzia de coelhos e quatro criaturas de longas caudas a que Chris chamava ratos encapuçados. Olhos, orelhas, pele, pêlo, todos eles sofriam de uma deficiência qualquer.

 

És veterinário, ou quê? perguntei.

 

Ou quê.

 

Larguei os embrulhos e olhei em volta. Não se via nenhuma cama. E no chão, não havia muito espaço livre.

 

Onde é que estás a pensar meter-nos?

 

Ele soltou a trela que prendia Toast. O cão foi ao encontro dos seus congéneres, que se ergueram desajeitadamente sobre os cobertores onde estavam deitados. Chris entrou por aquilo que, mais tarde, viria a ser uma porta e remexeu numa mesa de trabalho atravancada, procurando vários sacos com comida para animais: patês para os cães, bolinhas para os ratos, cenouras para os coelhos e latas de comida para os gatos.

 

Podemos começar por ali e inclinou a cabeça na direcção dos degraus que tínhamos acabado de descer para entrar na lancha.

 

Começar? Em que é que estás a pensar, afinal?

 

Deixei o martelo em cima daquela trave, por cima da janela. Estás a vê-lo?

 

Martelo?

 

Devemos conseguir dar um bom avanço às coisas, hoje. Tu vais-me passando a madeira, as tábuas e os pregos.

 

Fiquei a olhar para ele. Estava a dar de comer aos animais, mas eu era capaz de jurar que estava a sorrir.

 

Não, não estás a pensar que...

 

Trinta libras. E quero um trabalho bem feito, por esse preço. Um trabalho bem feito, sabes o que é isso?

 

Um trabalho bem feito. Já vais ver o que é um trabalho bem feito. E foi assim que tudo começou entre Chris e eu, com as obras na lancha.

 

Ao longo daquela noite fiquei à espera que ele se atirasse a mim. Continuei à espera nas noites e nos dias que se seguiram. Nada aconteceu, porém. E quando decidi tomar a iniciativa, excitá-lo até aos limites do intolerável e depois desatar a rir às gargalhadas, dizendo, ”Estás a ver como és exactamente igual a todos os outros”, antes de deixar que me saltasse em cima, ele pôs as mãos sobre os meus ombros e, mantendo-me à distância, disse: ”Não há nada disso entre nós, Livie. Lamento. Não tenho intenção de te magoar. Mas está fora de questão.”

Hoje em dia, quando a noite já vai adiantada, digo a mim mesma que ele sabia. Que sentia. Sentia-o no ar, percebia-o na minha forma de respirar. Sim, de alguma maneira, ele sabia e decidiu, desde o primeiro momento, manter as distâncias. Era menos perigoso assim, porque não seria obrigado a sofrer, porque não queria amar-me, tinha medo de me amar, pressentia que seria demasiado duro, que eu era um desafio demasiado exigente...

 

Agarro-me a estes pensamentos quando ele sai à noite. Quando sai com ela. Teve medo, digo para mim mesma. É por isso que nunca aconteceu nada entre nós. Amamos e perdemos. Ele não queria isso.

 

No entanto, nos momentos em que estou lúcida, tenho consciência de que estou a dar a mim mesma uma importância que jamais tive aos olhos de Chris. Sei também que há algo de profundamente incongruente na minha vida. Ainda que tenha passado a minha existência a escarnecer dos sonhos que a minha mãe acalentava para mim, decidida a enfrentar o mundo nos meus termos e não nos dela, acabei por me apaixonar por um homem a quem ela de bom grado teria concedido a minha mão. Porque Chris Faraday luta por uma causa E esse é precisamente o género de homem que mais teria agradado à minha mãe, já que, em tempos, antes de tudo isto se ter tornado uma amálgama de nomes, rostos, desejos e emoções, também ela se bateu por uma causa.

 

E essa causa era Kenneth Fleming.

 

Nunca o esquecera, desde que ele abandonara os estudos para assumir as suas responsabilidades para com Jean Cooper. Como já vos contei, ela conseguira arranjar-lhe um emprego como compositor-tipógrafo, na fábrica do meu pai. E no dia em que ele conseguiu pôr de pé uma equipa de críquete, formada por operários da fábrica, para jogar contra outras formações de Stepney, ela incitou o meu pai a encorajar ”os rapazes”, como lhes chamava, a criarem um motivo de diversão conjunta. ”Só irá reforçar a coesão do grupo, Gordon”, disse ela, quando ele nos informou que o jovem K. Fleming o meu pai referia-se sempre aos seus funcionários, mencionando apenas a inicial dos seus nomes próprios viera propor-lhe a ideia. ”Um grupo coeso trabalha, de facto, de uma forma mais eficaz, não é verdade?”

 

O meu pai reflectiu sobre o assunto enquanto mastigava pensativamente o frango assado e as batatas novas. ”A ideia não é necessariamente má. A não ser, claro, que algum deles saia magoado. E nesse caso ficará incapacitado de trabalhar. E então teremos de pagar uma indemnização. Há esse aspecto a considerar.”

 

A minha mãe, no entanto, conseguiu impor a sua causa. ”É verdade, Gordon, mas o exercício físico é uma actividade saudável. E o ar livre faz imenso bem. Tal como o espírito de camaradagem entre os funcionários” Depois de a equipa estar constituída, ela nunca assistiu a um único jogo de Kenneth. Todavia, imagino que terá ficado convencida de que tinha contribuído para incutir algum prazer na vida monótona e rotineira que ele devia levar na companhia de Jean Cooper. Tinham tido um segundo filho logo depois do nascimento do primeiro, e, inicialmente, tudo o que o futuro parecia reservar-lhes era a perspectiva de um bebé por ano e um envelhecimento precoce. Assim, depois de ter feito tudo o que estava ao seu alcance, a minha mãe tentou esquecer o futuro brilhante que, outrora, o passado de Kenneth Fleming tinha pressagiado.

 

Foi então que o meu pai morreu. E tudo começou. De início, a minha mãe confiou a direcção da fábrica a um administrador contratado por ela. O que não alterou em nada a forma como o meu pai tinha dirigido a empresa. Ele nunca fora do género de conviver de perto com os ”rapazes das máquinas”, como lhes chamava, retomando o termo utilizado pelo seu próprio pai muito antes da Segunda Guerra Mundial. Deste modo, geria a fábrica a partir do reduto silencioso e anti-séptico que era o seu gabinete situado no terceiro andar, confiando a manutenção diária das impressoras e da maquinaria, bem como a distribuição das horas extraordinárias do pessoal a um encarregado que conseguira singrar dentro da empresa.

 

Quatro anos depois da morte do meu pai, a minha mãe reformou-se do ensino. Poderia ter preenchido todos os dias da semana com as obras de beneficência que lhe restavam, mas decidiu canalizar as suas energias para algo mais estimulante. Sentia-se só, julgo eu, e surpreendida por se sentir dessa maneira. O ensino, a preparação das aulas e a correcção de testes tinham conferido uma orientação diária à sua vida, e sem essa rotina via-se finalmente forçada a enfrentar o vazio. Ela e o meu pai nunca tinham sido almas gémeas, mas pelo menos ele estivera lá, fora uma presença dentro de casa. Agora deixara de estar, e nada havia que pudesse impedi-la de ignorar a solidão e o vazio que se instalavam na sua vida. Ela e eu estávamos tão distantes uma da outra como a terra do céu cada uma ferozmente empenhada em nunca perdoar a outra pelos pecados cometidos e as injúrias infligidas. Os netos estavam completamente fora de questão. Restavam-lhe apenas as inúmeras tarefas domésticas e as infindáveis reuniões filantrópicas. Insignificâncias.

 

A fábrica surgiu-lhe como a solução lógica. A minha mãe tomou a direcção a seu cargo com uma facilidade que desconcertou toda a gente. Todavia, ao contrário do meu pai, ela acreditava na importância daquilo a que chamava a experiência no terreno. Aprendeu as artes do ofício como um aprendiz, e ao fazê-lo, não só conquistou o respeito dos operários como reatou as suas relações com Kenneth Fleming.

 

Muitas vezes me diverti tentando imaginar como deve ter sido o primeiro encontro entre ambos, nove anos depois de ele ter caído em desgraça.

 

Imaginava-o no meio do ruído ensurdecedor das máquinas, do cheiro a tinta e a óleo e de uma nuvem formada por toda a espécie de folhas e páginas esvoaçando ao longo da linha de montagem que as conduzia até ao empacotamento. Via a minha mãe passar de uma máquina para outra, por baixo daquelas janelas embaciadas pela sujidade, acompanhada pelo encarregado. Ele grita para conseguir fazer-se ouvir e ela abana a cabeça, colocando questões pertinentes. Param junto de uma das impressoras. Um homem ergue a cabeça, fato de trabalho coberto de gordura, um fio de óleo manchando-lhe os cabelos, as unhas enegrecidas pela fuligem, uma chave de fendas na mão. Deixa escapar qualquer coisa como, ”Porcaria de máquina, foi-se abaixo mais uma vez. Ou modernizamos isto ou fechamos a loja”, antes de se aperceber da presença da minha mãe. Segue-se um momento de pausa, preenchido por uma melodia melodramática. E ei-los frente a frente. A mentora e o seu pupilo. Passados tantos anos. ”Ken”, diz ela. Ele não sabe o que dizer, mas roda a aliança de casamento em torno do dedo sujo e, de certo modo, esse gesto simples diz tudo: Tem sido um inferno; lamento muito; tinha razão; perdoe-me; aceite-me de volta; ajude-me; ajude-me a mudar a minha vida.

 

É claro que o mais provável é que nada se tenha passado desta forma. Em todo o caso, o encontro entre ambos aconteceu, de facto. E no espaço de sete meses, as capacidades e a inteligência de Kenneth Fleming foram mais notadas do que tinham sido ao longo de todos os anos que passara trabalhando naquilo a que os ”rapazes das máquinas” chamam o poço.

 

A primeira coisa que a minha mãe quis saber foi o que Kenneth entendia por ”modernizar a casa”. A segunda foi como poderia fazer renascer nele o desejo de transformar a sua vida em algo de extraordinário.

 

À primeira pergunta, ele respondeu com processamento de texto, computadores e impressão a laser. À segunda, sugeriu que ela se coibisse de meter o nariz na vida dele. Não restavam dúvidas de que Jean tivera influência sobre esta última. Ela não deve ter rejubilado ao saber que Mrs. Whitelaw reaparecera inesperadamente na vida deles.

 

A minha mãe, no entanto, não era mulher para desistir facilmente dos seus intentos. Começou por tirar Kenneth do poço e por lhe confiar algumas responsabilidades administrativas, a fim de lhe proporcionar uma antevisão do que o futuro poderia reservar-lhe. Quando o seu sucesso se tornou evidente o que era inevitável, dada a sua inteligência e o maldito carisma e afabilidade de que o meu pai e eu tanto tínhamos ouvido falar, à mesa do jantar, durante meses a fio, na época em que ele era apenas um adolescente ela começou a cultivar o vasto campo dos seus sonhos, que há muito estava em pousio. E durante este ou aquele almoço, ao longo de um ou outro lanche, depois de uma saudável e produtiva discussão acerca da melhor maneira de lidar com uma reivindicação salarial ou com as queixas de um funcionário, ela foi descobrindo que os sonhos continuavam vivos, intactos, ao fim de nove anos, três filhos e infindáveis horas de trabalho no ambiente sujo e ensurdecedor do poço.

 

Não acredito que Kenneth tenha confessado prontamente à minha mãe que ainda acalentava a esperança de ver a bola cor de cereja elevar-se para além do terreno do Lord’s ou de escutar os bramidos de aprovação da multidão, enquanto ele marcava seis novos pontos. Ali estava ele. Vinte e seis anos, pai de três filhos, uma esposa, privado de qualquer possibilidade de retomar os estudos, e tudo porque uma noite conseguira convencer Jean Cooper de que nada lhes aconteceria na primeira vez que fizessem amor sem que ela tivesse tomado a pílula. Não creio que tenha dito: ”O meu sonho é jogar pela equipa da Inglaterra, Mrs. Whitelaw. O meu sonho é atravessar a grande galeria, pá na mão, sob o olhar atento do MCC. O meu sonho é descer os degraus do Pavilhão e caminhar na direcção do wicket, sob um resplandecente céu de Junho, observar a multidão pintalgada de cores alegres, enfrentar o lançador, colocar-me em posição, sentir a descarga eléctrica percorrer-me o braço no momento em que a pá embate na bola.” Duvido que Kenneth Fleming tenha dito tudo isso. Em vez disso, terá sorrido, dizendo: ”Os sonhos são coisas de miúdos, Mrs. Whitelaw. O meu Jimmy tem sonhos. E Stan também terá, dentro de um ou dois anos, quando for mais crescido.” No que dizia respeito a ele próprio, renunciara aos sonhos. Não eram para pessoas como ele, teria dito. Agora, já não.

 

A minha mãe, porém, terá acabado por convencê-lo. Para começar ter-lhe-á dito: ”Mas de certeza que tens uma meta na tua vida, Ken, algo que esteja para além dos limites desta fábrica.” Ao que ele terá replicado: ”Sinto-me bem aqui. A fábrica tem sido boa para mim, para a minha família. Estou bem como estou.” Nesta altura, ela ter-lhe-á talvez confessado um dos seus sonhos nunca realizados. Talvez tivessem ficado a conversar uma noite, em torno de uma chávena de café. Ela terá dito: ”Sabes, é idiota... confessar isto a um dos meus antigos alunos, a um homem, e a um homem mais jovem ainda por cima...” E em seguida terá revelado uma pequena insignificância sobre si própria, que ninguém conhecia, uma insignificância que teria, talvez, inventado na ocasião, com a única finalidade de incitar Kenneth a abrir-lhe o seu coração, tal como fizera quando era criança.

 

Quem sabe ao certo como terá alcançado os seus fins. Ela nunca me contou os pormenores. Tudo o que sei é que, ainda que tenha necessitado de quase um ano para ganhar a confiança dele, conseguiu-o.

 

O casamento era relativamente feliz, ter-lhe-á ele dito, no silêncio tumular da fábrica, numa noite em que tinham ficado a fazer serão. Nem sequer se deteriorara, como muitos temiam, tendo em conta a maneira como começara. Simplesmente... Não, não seria justo para Jean. Tinha a impressão

 

Marylebone Cricket Club. [N da T.]

 

que a traía ao falar dela nas suas costas. Ela fazia o melhor que podia. Amava-o, amava as crianças. Era uma boa mãe. E uma boa esposa.

 

Mas falta-te qualquer coisa terá retorquido a minha mãe. É isso, Ken?

 

Ele terá pegado num pesa-papéis, curvando inconscientemente os dedos em torno dele, como se fosse uma bola de críquete. Talvez, terá respondido.

 

Suponho que esperava mais da vida terá admitido com um sorriso triste, acrescentando, em seguida: Mas tenho aquilo que escolhi, não é verdade?

 

O que é que esperavas da vida? ter-lhe-á perguntado a minha mãe Ele terá aparentado algum embaraço.

 

Nada. É uma estupidez.

 

Terá arrumado as suas coisas, apressando-se a sair e a embrenhar-se na noite. E, antes de partir, parando junto à porta, o rosto oculto pelas sombras, terá dito:

 

Jogar críquete. Teria gostado disso. Sou um imbecil, bem sei, mas não consigo deixar de tentar imaginar qual teria sido a sensação de jogar.

 

Forçando ainda mais o assunto, a minha mãe terá dito:

 

Mas tu jogas, Ken.

 

Não da forma como poderia ter jogado terá ele respondido. Não da forma que eu queria. Ambos sabemos isso, não sabemos?

 

Estas breves frases, com toda a nostalgia que continham, e sobretudo o emprego do nós, esse pronome mágico, forneceram à minha mãe a brecha de que ela precisava. Para transformar a vida dele, para transformar as vidas da mulher dele e dos filhos de ambos, para transformar a sua própria vida e, assim, desencadear uma catástrofe que acabaria por nos engolir a todos.

 

 

                                                                CONTINUA

 

                                           CAPÍTULO 8

A tarde ia já a meio quando Lynley deixou a sargento Havers na New Scotland Yard. De pé, junto do logotipo rotativo da entrada, conversavam em voz baixa como se Mrs. Whitelaw pudesse ouvi-los no interior do Bentley.

Ela dissera-lhes que desconhecia o actual paradeiro da filha. Um telefonema para a Yard e duas horas de espera tinham resolvido a questão. Enquanto engoliam um almoço tardio num pub chamado Plough and Whistle, em Greater Springburn, o agente Winston Nkata consultava o computador da polícia em Londres. Examinou ainda uma série de ficheiros, interrogou os colegas de oito divisões diferentes e contactou os gabinetes de outros agentes, encorajando-os a vasculharem os respectivos arquivos em busca de algum sinal de Olivia Whitelaw. Comunicou o resultado das suas diligências a Lynley, através do telefone do carro, no momento em que o Bentley atravessava a Westminster Bridge em marcha lenta. Existia, de facto, uma Olivia Whitelaw, informou Nkata, que vivia em Little Venice, numa lancha ancorada em Browning’s Pool.

 

 

 

 

A senhora em questão costumava andar ao ataque na zona de Earl Court, há alguns anos atrás. No entanto, segundo informações fornecidas pelo inspector Favorworth, era demasiado esperta para se deixar fisgar, e nunca conseguiram apanhá-la em flagrante. Favorworth, nome catita este, não acha? Parece nome de puta. Bom, adiante. Sempre que um agente da divisão de costumes aparecia no sector, ela dava por ele mal lhe punha a vista em cima. Para a abalar um bocado, os rapazes dos costumes levavam-na de vez em quando até à esquadra para dois dedos de conversa, mas nunca conseguiram inculpá-la fosse do que fosse.

Presentemente vivia com um tipo chamado Chris Faraday, acrescentou Nkata. Não tinha cadastro. Nem sequer uma multa de estacionamento.

Lynley esperou que a sargento Havers acendesse o cigarro, desse duas longas fumaças e, finalmente, expelisse uma fina coluna de fumo cinzento que impregnou o ar fresco da tarde. Consultou o relógio de bolso. Eram quase três da tarde. Havers deveria avisar Nkata da sua chegada, depois levantaria uma viatura e rumaria para a Isle of Dogs, onde morava a família de Fleming. Considerando o tempo que necessitaria para redigir o seu relatório...

 

 

 

                                                                                Elizabeth George  

 

                      

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