Biblio "SEBO"
CAPÍTULO 8
A tarde ia já a meio quando Lynley deixou a sargento Havers na New Scotland Yard. De pé, junto do logotipo rotativo da entrada, conversavam em voz baixa como se Mrs. Whitelaw pudesse ouvi-los no interior do Bentley.
Ela dissera-lhes que desconhecia o actual paradeiro da filha. Um telefonema para a Yard e duas horas de espera tinham resolvido a questão. Enquanto engoliam um almoço tardio num pub chamado Plough and Whistle, em Greater Springburn, o agente Winston Nkata consultava o computador da polícia em Londres. Examinou ainda uma série de ficheiros, interrogou os colegas de oito divisões diferentes e contactou os gabinetes de outros agentes, encorajando-os a vasculharem os respectivos arquivos em busca de algum sinal de Olivia Whitelaw. Comunicou o resultado das suas diligências a Lynley, através do telefone do carro, no momento em que o Bentley atravessava a Westminster Bridge em marcha lenta. Existia, de facto, uma Olivia Whitelaw, informou Nkata, que vivia em Little Venice, numa lancha ancorada em Browning’s Pool.
A senhora em questão costumava andar ao ataque na zona de Earl Court, há alguns anos atrás. No entanto, segundo informações fornecidas pelo inspector Favorworth, era demasiado esperta para se deixar fisgar, e nunca conseguiram apanhá-la em flagrante. Favorworth, nome catita este, não acha? Parece nome de puta. Bom, adiante. Sempre que um agente da divisão de costumes aparecia no sector, ela dava por ele mal lhe punha a vista em cima. Para a abalar um bocado, os rapazes dos costumes levavam-na de vez em quando até à esquadra para dois dedos de conversa, mas nunca conseguiram inculpá-la fosse do que fosse.
Presentemente vivia com um tipo chamado Chris Faraday, acrescentou Nkata. Não tinha cadastro. Nem sequer uma multa de estacionamento.
Lynley esperou que a sargento Havers acendesse o cigarro, desse duas longas fumaças e, finalmente, expelisse uma fina coluna de fumo cinzento que impregnou o ar fresco da tarde. Consultou o relógio de bolso. Eram quase três da tarde. Havers deveria avisar Nkata da sua chegada, depois levantaria uma viatura e rumaria para a Isle of Dogs, onde morava a família de Fleming. Considerando o tempo que necessitaria para redigir o seu relatório, iria precisar de pelo menos duas horas e meia, talvez três, para fazer tudo. O dia estava quase no fim e a noite prometia ser bastante preenchida.
Vamos tentar encontrar-nos no meu gabinete às seis e meia. Mais cedo, se conseguir.
Entendido assentiu Havers.
Acabou de fumar o cigarro e encaminhou-se para as portas giratórias da Yard, desviando-se de um grupo de turistas que, vencidos pelo cansaço, escrutinavam um mapa enquanto falavam em ”apanhar um táxi, da próxima vez. Quando ela desapareceu no interior do edifício, Lynley sentou-se ao volante e pôs o carro a trabalhar.
A sua filha vive em Little Venice, Mrs. Whitelaw disse ele, quando o carro se afastou da berma.
Ela não fez qualquer comentário. Não esboçara um único gesto desde que tinham saído do pub onde, envoltos num silêncio tenso, tinham ingerido um almoço rápido, que ela deixara praticamente intacto. Continuou imóvel.
Nunca a encontrou por acaso? Nunca fez nenhuma tentativa para a localizar ao longo dos anos?
Separámo-nos em muito maus termos disse Mrs. Whitelaw. Eu não tinha qualquer interesse em conhecer o seu paradeiro. Estou certa de que o sentimento era mútuo.
Quando o pai dela morreu...
Por favor, inspector. Sei que está apenas a fazer o seu trabalho... Mas. E os seus protestos morreram por aqui.
Lynley examinou-a rapidamente através do espelho retrovisor. Dezoito horas depois de ter tomado conhecimento da morte de Fleming, Miriam Whitelaw tinha o ar de quem tinha sido espiritualmente esquartejada. Parecia ter envelhecido dez anos desde que Lynley fora buscá-la a casa, na manhã daquele dia. O seu rosto macilento parecia implorar misericórdia.
Aquele era, pensou Lynley, o momento ideal para pressioná-la. A sua capacidade de resistência enfraquecia a cada segundo, e ela tinha cada vez mais dificuldade em iludir as questões que ele lhe colocava. Todos os seus colegas do Departamento Criminal teriam reconhecido esse facto. E a maioria deles teria tirado partido da vantagem, bombardeando-a com perguntas e exigindo respostas até terem obtido todas as que desejavam. Aos olhos de Lynley, porém, existia em geral um momento em que o interrogatório a todos os que tinham mantido relações próximas com uma vítima de homicídio deixava de ser proveitoso. Era o momento em que eles diziam fosse o que fosse só para pôr termo a um interminável rol de perguntas.
Não se deixe amolecer, meu rapaz ter-lhe-ia dito o inspector MacPherson. Um crime é um crime. É atacar sem piedade.
A vítima desse ataque era quase sempre irrelevante, já que, mais cedo ou mais tarde, o alvo pretendido acabava por ser atingido.
Uma vez mais, Lynley perguntou a si próprio se seria suficientemente duro para ser polícia. Havia várias maneiras de conduzir uma investigação. E o método que consistia em investigar sem fazer prisioneiros parecia-lhe uma aberração. Todavia, todas as outras hipóteses colocavam-no perigosamente à mercê de sentimentos de empatia e compaixão para com os vivos em vez de vingar os mortos.
Transpôs da melhor forma que pôde o mar de carros que circulava nas imediações de Buckingham Palace, acabando por ficar encurralado atrás de uma camioneta de turistas que despejava para o passeio um enorme grupo de mulheres de cabelo azulado, em calças de poliéster e sapatos práticos. Serpenteou por entre os táxis em Knightsbridge, socorreu-se de algumas ruas secundárias para evitar um engarrafamento a sul de Kensington Gardens e desembocou, por fim, no frenesi de Kensington High Street, atravancada de peões e de pessoas que andavam às compras naquele fim de tarde. Daí, demorou menos de três minutos a chegar a Staffordshire Terrace, onde, numa atmosfera de perfeita tranquilidade, um rapazinho brincava com um skate, no passeio oposto ao número 18.
Lynley saiu do carro para ajudar Mrs. Whitelaw a sair. Ela apoiou-se na mão que ele lhe estendia. A dela estava fresca e seca. Os seus dedos agarraram os dele com força, fincando-se em seguida no braço de Lynley enquanto ele a conduzia até aos degraus do patamar da entrada. Ela apoiou-se nele. Exalava um vago odor a alfazema, pó-de-talco e poeira.
Diante da porta, ela roçou a chave na fechadura, raspando o metal várias vezes antes de conseguir introduzi-la. Depois de ter aberto a porta, virou-se para ele.
Parecia de tal modo abatida, que Lynley sugeriu:
Quer que eu telefone ao seu médico?
Eu fico bem respondeu ela. Tenho de tentar dormir um pouco. Não consegui pregar olho a noite passada. Talvez esta noite...
Não seria melhor que o seu médico lhe receitasse qualquer coisa? Ela abanou a cabeça.
Não existem medicamentos que me valham neste momento.
Quer que transmita alguma mensagem à sua filha? Vou a Little Venice agora.
O olhar de Mrs. Whitelaw deslizou por cima do ombro dele, como se estivesse a ponderar a sugestão dele. Os cantos dos lábios curvaram-se.
Diga-lhe que nunca deixarei de ser mãe dela. Diga-lhe que Ken não altera... Ken não alterou esse facto.
Lynley assentiu com um movimento de cabeça. Esperou alguns instantes, certificando-se de que ela não desejava acrescentar mais nada. Como ela permanecesse em silêncio, tornou a descer os degraus da entrada. Tinha aberto a porta do carro quando a ouviu chamar:
Inspector Lynley?
Ergueu a cabeça. Ela aproximara-se do primeiro degrau. Uma das mãos agarrava-se firmemente ao gradeamento em ferro forjado, em torno do qual se enrolava um jasmineiro em flor.
Sei que está a tentar fazer o seu trabalho disse ela. Estou-lhe grata por isso.
Esperou que ela entrasse e fechasse a porta. Depois pôs-se novamente a caminho, seguindo para norte tal como no dia anterior, sob os plátanos e sicômoros de Campden Hill Road. O trajecto entre Kensington e Little Venice era muito mais curto do que o percurso entre Kensington e a casa de Hugh Patten, em Hampstead. A viagem até esta última, no entanto, fora realizada depois das onze horas da noite, a uma hora em que o trânsito fluía sem dificuldades. Naquele momento, as ruas estavam apinhadas de veículos. Aproveitou a lenta progressão através de Bayswater para telefonar a Helen. Tudo o que conseguiu, no entanto, foi escutar o som da voz do atendedor de chamadas, informando-o de que Helen tinha saído e convidando-o a deixar uma mensagem. ”Que chatice”, desabafou enquanto esperava pelo infernal sinal sonoro. Odiava atendedores de chamadas. Eram apenas mais uma manifestação da anomia social que estava a envenenar os últimos anos do século. Impessoais e eficientes, aquelas máquinas lembravam-lhe quão fácil era substituir um ser humano por uma engenhoca electrónica. Em tempos, houvera uma Caroline Shepherd em casa de Helen, para atender telefones, cozinhar-lhe as refeições e manter a vida dela organizada. Agora, havia uma cassete, comida chinesa já pronta e uma mulher-a-dias, natural de Country Clare, uma vez por semana.
Olá, querida disse, quando o sinal sonoro soou, finalmente.
E depois pensou: olá, querida e depois... depois o quê? Encontraste o anel no sítio onde o deixei? Gostas da pedra? Queres casar comigo? Hoje? Esta noite? Bolas, como odiava aquelas máquinas!
Receio que vá ficar retido toda a tarde. Que dizes a jantarmos juntos por volta das oito horas?
Tolamente, fez uma pausa como se esperasse uma resposta.
Tiveste um bom dia? Outra pausa imbecil.
Bom, telefono-te quando voltar para a Yard. Reserva a noite para mim. Isto é, se ouvires esta mensagem reserva a noite para mim. Porque, claro, pode acontecer que não chegues a ouvi-la. E, nesse caso, não te posso pedir que fiques aí, à espera que eu telefone, pois não? Helen, tens planos para esta noite? Não consigo lembrar-me. Talvez possamos...
O sinal soou novamente. Uma voz metálica e impessoal recitou: ”Obrigada por ter deixado uma mensagem. São agora quinze horas e vinte e um minutos.”
A comunicação foi cortada.
Lynley soltou uma imprecação e colocou o telefone no descanso. Decididamente, odiava aquelas malditas máquinas.
O dia tinha estado magnífico, e muitas pessoas deambulavam ainda por Little Venice, aproveitando a tarde para explorar alguns dos canais de Londres. Deslizavam sobre a água, comodamente instaladas em barcos de turismo, escutando com atenção os comentários e mexericos dos guias, que pontuavam com murmúrios de aprovação. Passeavam ao longo dos passeios, admirando as cores vivas das flores primaveris que cresciam em vasos colocados nos tejadilhos e tombadilhos das lanchas. Caminhavam, preguiçosos, ao longo do gradeamento da ponte de Warwick Avenue.
A sudoeste da ponte, Browning’s Pool formava um triângulo irregular de água oleaginosa. Um dos lados estava repleto de lanchas, embarcações de grandes dimensões e de fundo chato outrora puxadas por cavalos ao longo dos canais que se entrecruzavam no Sul de Inglaterra. No século xix tinham servido para transportar mercadorias. Hoje, imobilizadas, serviam de domicílio a artistas, escritores, artesãos e a outros pretensiosos do mesmo género.
A lancha de Christopher Faraday estava ancorada precisamente em frente a Browning’s Island, um rectângulo de terra coberto de salgueiros, que ocupava o centro da lagoa. À medida que Lynley se aproximava dela, caminhando ao longo da passagem que bordejava o canal, foi ultrapassado por um jovem em trajes desportivos. Os seus companheiros de corrida eram dois cães transpirados e ofegantes, um dos quais avançava de modo inseguro, apoiado apenas em três patas. Os cães aceleraram e ultrapassaram o corredor, galgaram dois degraus e saltaram para dentro da mesma lancha para onde ele próprio se dirigia.
Quando Lynley se aproximou, o jovem, que estava de pé sobre o tombadilho, limpava o suor que lhe cobria o rosto e o pescoço. Os cães um beagle e o rafeiro de três patas que tinha ar de quem saíra derrotado, mais do que uma vez, de múltiplas batalhas de rua contra congéneres mais possantes sorviam ruidosamente a água que enchia duas pesadas tigelas de cerâmica, colocadas sobre uma pilha de jornais. A tigela que pertencia ao beagle ostentava a inscrição Cão, enquanto na do rafeiro podia ler-se Cão dois.
Mr. Faraday? perguntou Lynley.
O jovem baixou a toalha com que limpava o rosto. Lynley mostrou a sua identificação e apresentou-se.
Christopher Faraday? repetiu.
Faraday atirou a toalha para o tejadilho da cabina, que lhe dava pela cintura, e veio colocar-se entre Lynley e os animais. O beagle levantou a cabeça, exibindo os maxilares escorrendo água. Um rosnido surdo escapou-se-lhe da garganta. ”Está tudo bem”, sossegou Faraday. Era difícil saber se estava a dirigir-se a Lynley ou aos cães, já que, embora os seus olhos estivessem fixos no inspector, a sua mão recuou para afagar a cabeça do animal. Estava cheia de cicatrizes, notou Lynley, com uma incisão profunda, já antiga, que começava na cabeça e terminava entre as sobrancelhas.
Em que posso ajudá-lo? perguntou Faraday.
Procuro Olivia Whitelaw.
Livie?
Ela vive aqui, segundo julgo saber.
O que é que se passa?
Ela está em casa?
Faraday tornou a pegar na toalha e colocou-a em torno do pescoço.
Vão ter com Livie ordenou aos cães.
E enquanto os animais corriam, obedientes, na direcção de uma espécie de mirante em vidro, que cobria a cabina e fazia as vezes de alpendre, virou-se para Lynley e disse:
É só um minuto, está bem? Vou ver se ela já está levantada. Levantada? pensou Lynley, intrigado. Eram três e meia da tarde. Será que ela continuava a exercer o mesmo ofício de outrora durante toda a noite e precisava de recuperar horas de sono durante o dia?
Faraday baixou-se, passando por baixo do mirante, e desceu alguns degraus. Deixou a porta da cabina entreaberta. Lynley ouviu o latido sonoro de um dos cães, seguido por um arranhar de patas sobre uma superfície de linóleo ou madeira. Aproximou-se do mirante e apurou o ouvido. O eco de vozes abafadas chegou até ele. A de Faraday era quase inaudível.
... polícia... a perguntar... não, não posso... tens de...
A de Olivia Whitelaw tornou-se mais nítida e muito mais urgente.
Não posso. Não percebes? Chris. Chris.
... calma... não tenhas medo, Livie...
Seguiu-se o som de passos arrastados. Depois, o de papéis amachucados. A porta de um armário bateu. E depois outra. E uma terceira, por fim. Instantes mais tarde, os passos aproximaram-se da porta.
Cuidado com a cabeça advertiu Chris Faraday.
Vestira as calças de um fato de treino. Vermelhas, em tempos, estavam agora debotadas e tinham adquirido uma tonalidade cor de ferrugem. Uma cor idêntica à dos cabelos do jovem. Cabelos excessivamente ralos para um homem da idade dele, desenhando uma pequena tonsura de monge no alto da cabeça.
Lynley entrou numa divisão comprida, fracamente iluminada e com as paredes forradas a madeira de pinho. Parte do chão estava coberto por alcatifa, enquanto outra parte, por baixo de um enorme banco de carpinteiro onde o rafeiro se instalara, estava forrada a linóleo. Sobre a zona alcatifada, três enormes coxins. Perto deles, cinco velhas poltronas desirmanadas e dispostas ao acaso. Numa delas estava uma mulher, vestida de preto dos pés à cabeça. Lynley não teria reparado nela se não fosse pela cor dos cabelos, que cintilavam como um farol contra as paredes da cabina. Eles eram, efectivamente, de um louro-branco incandescente, com um estranho reflexo amarelo e raízes da cor de óleo de motor sujo. Cortados rente num dos lados, desciam até um pouco abaixo das orelhas no lado oposto.
Olivia Whitelaw? perguntou Lynley.
Faraday aproximou-se do banco de carpinteiro e abriu muito ligeiramente as persianas. Uma claridade difusa iluminou o tecto apainelado e incidiu sobre a mulher sentada no cadeirão. Ela encolheu-se e disse: ”Merda, Chris, tem lá calma.” Depois estendeu lentamente o braço para o chão, perto do cadeirão, e pegou numa lata de tomate pelado vazia, de onde retirou um maço de Marlboro e um isqueiro de plástico.
Quando acendeu o cigarro, os anéis ficaram presos na luz. Eram de prata, um em cada dedo, e condiziam com as argolas em forma de pregos que lhe recobriam a orelha direita como se fossem erupções cromadas, contrastando com o enorme alfinete-de-ama que ornava a orelha esquerda.
Olivia Whitelaw. Exactamente. Quem pergunta e porquê?
O fumo do cigarro reflectiu a luz, formando uma espécie de véu de gaze entre eles. Faraday entreabriu outra janela.
Chega disse Olivia. Porque é que não vais dar uma volta a qualquer lado?
Receio bem que ele tenha de ficar disse Lynley. Gostaria que ele respondesse a algumas perguntas.
Faraday premiu o botão de uma lâmpada fluorescente colocada por cima do banco de carpinteiro. Difundia uma luz branca e brilhante sobre aquela zona restrita da divisão. Ao mesmo tempo contribuía para criar uma distracção fulgente, obrigando Lynley a desviar os olhos do velho cadeirão onde Olivia estava sentada.
Em frente do banco de carpinteiro havia um tamborete, onde Faraday decidiu empoleirar-se. Forçados a fitarem ora um ora outro, os olhos de Lynley teriam de ajustar-se constantemente à alternância entre a claridade e a obscuridade. Muito astuciosa, aquela técnica de iluminação. E a forma como eles se tinham posicionado. Tinham agido tão fácil e rapidamente que Lynley perguntou-se se não teriam ensaiado a cena antes.
Escolheu o cadeirão que estava mais próximo de Olivia.
Trago-lhe uma mensagem da sua mãe.
A ponta do cigarro dela refulgiu como carvão.
Ah, sim? E acha que devo festejar o acontecimento?
Ela pediu-me que lhe dissesse que nunca deixará de ser sua mãe. Olivia observou-o, protegida pela cortina de fumo, pálpebras baixas e uma das mãos mantendo o cigarro suspenso, a cerca de dois centímetros dos lábios.
Pediu-me que lhe dissesse que Kenneth Fleming não alterou esse facto.
Os olhos dela continuaram fixos nele. A menção do nome de Fleming deixou-a impassível.
E isso quer dizer o quê, exactamente? perguntou ela, por fim.
Na verdade, não estou a citá-la correctamente. Ela começou por dizer que Kenneth Fleming não altera esse facto.
Bom, fico felicíssima por saber que a velhota ainda mexe retorquiu Olivia numa entoação que revelava um tédio extremo.
No lado oposto da divisão, Lynley ouviu um ruge-ruge quando Faraday se mexeu. Olivia não olhou na direcção deste.
Ela utilizou o presente esclareceu Lynley. Altera. E depois mudou para o pretérito perfeito. Alterou. Tem hesitado entre os dois desde ontem à noite.
Presente, pretérito. Conheço a gramática. E também sei que Kenneth Fleming morreu, se é aí que quer chegar.
Falou com a sua mãe?
Leio o jornal.
Porquê?
Porquê? Que raio de pergunta é essa? Leio o jornal, porque é isso que eu faço quando Chris o traz para casa. O que é que faz com o seu? Recorta-o em quadrados pequenos e usa-os para limpar o rabo?
Livie disse Faraday, sentado junto ao banco de carpinteiro.
O que quero saber é por que motivo não telefonou à sua mãe?
Há anos que não nos falamos. Que razões teria eu para lhe telefonar?
Não sei. Para saber se podia fazer alguma coisa para ajudá-la neste momento difícil.
Algo do género, ”lamento muito saber que o teu amiguinho arrumou as botas prematuramente”?
Sabia, então, que a sua mãe mantinha uma relação com Kenneth Fleming. Apesar de não lhe dirigir a palavra há anos.
Olivia encaixou o cigarro entre os lábios. A expressão do rosto dela dizia-lhe que reconhecia a facilidade com que ele lhe arrancara aquela confissão. Reparou também que ela estava a tentar avaliar que mais lhe poderia ter revelado inadvertidamente.
Eu disse que lia jornais replicou ela.
Encostada à cadeira, a perna esquerda de Olivia parecia agitada por uma vibração, frio, talvez ainda que no interior da lancha não estivesse frio ou tensão nervosa.
A história foi suficientemente comentada durante os últimos anos
E o que é que sabe sobre ela?
Apenas o que saiu nos jornais. Ele trabalhou para ela em Stepney. Vivem juntos. Ela ajudou-o na carreira dele. É suposto ser uma espécie de fada-madrinha, ou qualquer outra coisa do género.
A expressão amiguinho parece ter implicações mais latas.
Amiguinho?
A expressão que utilizou há pouco. ”O seu amiguinho bateu as botas prematuramente.” Estas palavras sugerem mais do que um mero papel de fada-madrinha em relação a um homem mais jovem, não concorda?
Olivia deixou cair um pouco de cinza para dentro da lata de tomate. Tornou a levar o cigarro aos lábios e murmurou por detrás da mão:
Peço desculpa disse ela, tenho uma mente suja.
Pressupôs, desde o primeiro momento, que eles eram amantes? perguntou Lynley. Ou foi só mais tarde que ficou com essa impressão?
Não pressupus nada. Seria preciso que o assunto me interessasse para que eu fizesse qualquer suposição. Limito-me a tirar as conclusões lógicas que toda a gente tira quando um homem e uma mulher, habitualmente, mas nem sempre, sem quaisquer laços familiares entre si, ocupam o mesmo espaço durante um determinado período de tempo. É a velha história das abelhas e das flores. Pirilau duro e passarinha molhada. Não preciso de lhe explicar, pois não?
Bastante inquietante, não acha?
O quê?
A ideia de que a sua mãe vivia com um homem muito mais jovem do que ela. Mais jovem do que você, Olivia, ou talvez da sua idade.
Cotovelos apoiados nos joelhos, Lynley inclinou-se para a frente numa atitude que indicava que estava decidido a ter uma conversa séria com ela. Este movimento permitiu-lhe observar melhor a perna esquerda dela, que tremia, de facto, como a direita. Ela, porém, pareceu não se aperceber de nada.
Sejamos francos disse ele, arvorando a expressão mais sincera de que era capaz. A sua mãe, que tem sessenta e seis anos, não é uma pessoa particularmente jovem. Nunca se interrogou, Olivia, sobre se ela não estaria a colocar-se de forma cega e imprudente nas mãos de um homem que procuraria algo mais do que o dúbio prazer de se meter na cama dela? Ele era um desportista de renome nacional. Não acha que poderia ter todas as mulheres que quisesse e, ainda por cima, com menos de metade da idade da sua mãe? Nesse caso, quais seriam as intenções dele ao decidir ir viver para casa da sua mãe?
Os olhos de Olivia estreitaram-se. Parecia estar a avaliar o alcance das perguntas dele.
Tinha um complexo de Édipo mal resolvido. Ou então tinha uma obsessão por avozinhas. Gostava delas velhas e enrugadas. Flácidas. Ou se calhar achava que uma queca só valia a pena, se elas tivessem cabelos e pêlos grisalhos. A escolha é sua. Eu não consigo explicar a situação.
E isso não a aborrecia? Se essa fosse, de facto, a natureza da relação entre ambos. A sua mãe nega-o, a propósito.
No que me diz respeito, ela pode dizer e fazer o que lhe apetecer. A vida é dela.
Olivia assobiou baixinho na direcção da porta que parecia dar para uma cozinha.
Beans chamou. Sai daí. O que é que ele está a tramar, Chris? Dobraste a roupa quando a trouxeste para casa? Se te esqueceste, o mais provável é que ele esteja deitado por cima dela.
Faraday desceu do tamborete onde estava sentado. Tocando no ombro dela, ao passar, desapareceu, chamando:
Beans! Vem cá. Vamos! Meu safado. Em seguida, desatou a rir.
Agarrou-se às minhas peúgas, Livie. Esta criatura infernal está a mastigar as minhas peúgas. Larga, larga isso, meu patife. Aqui. Dá cá isso.
Ouviu-se depois o eco de uma luta, acompanhado pelos latidos divertidos do cão. Deitado debaixo do banco de carpinteiro, o outro cão ergueu a cabeça.
Quieto, Toast ordenou Olivia.
Aconchegou os ombros no encosto da cadeira, quando o cão lhe obedeceu. Parecia deliciada por ter criado aquela diversão.
Se retirou uma conclusão acerca da relação entre a sua mãe e Fleming continuou Lynley, não será difícil retirar outra. Ela é uma mulher rica, se considerarmos as propriedades que possui em Kensington, em Stepney e no Kent. E as duas estão de relações cortadas.
E depois?
Sabe que Fleming é o principal beneficiário do testamento de sua mãe?
Deveria ficar surpreendida?
É óbvio que agora, que ele está morto, ela terá de o alterar.
E você está a pensar que eu tenho esperanças que ela me deixe a massa a mim?
É uma possibilidade, na sequência da morte de Fleming, não acha?
O que eu acho é que está a subestimar o grau de animosidade que existe entre nós.
Entre você e a sua mãe? Ou entre você e Fleming?
Fleming repetiu ela. Eu nem sequer conhecia o tipo.
Não era necessário que o conhecesse.
Para quê? ela inalou profundamente o fumo do cigarro. Está a querer sugerir que eu tive alguma coisa a ver com a morte dele? Porque queria ficar com o dinheiro da minha mãe? Que imbecilidade.
Onde estava na noite de quarta-feira, Miss Whitelaw?
Onde estava? Santo Deus!
Olivia riu-se, mas o acesso de riso provocou um espasmo violento. Soltou um soluço sufocado e teve um sobressalto. O seu rosto enrubesceu rapidamente e ela deixou cair o cigarro para dentro da lata, chamando por Chris. Virou depois a cabeça para o lado, para que Lynley não conseguisse ver-lhe o rosto.
Faraday precipitou-se para a divisão onde se encontravam. Colocando as mãos sobre os ombros dela, disse-lhe docemente:
Está tudo bem. Está tudo bem. Respira devagar e descontrai-te. Ajoelhando-se junto dela, começou a massajar-lhe as pernas enquanto o beans vinha juntar-se a eles e cheirava os pés de Olivia.
Uma gatinha preta e branca entrou na sala, vindo da cozinha, miando suavemente. Debaixo do banco de carpinteiro, Toast começou a levantar-se. Sem se virar, e continuando a massajar as pernas de Olivia, Faraday advertiu:
Não! Quieta! Tu também, Beans.
Fez uns estalidos com a língua até a gata ficar ao alcance da sua mão. Levantou-a do chão e colocou-a no colo de Olivia, dizendo:
Segura nela, Livie. Voltou a tentar rasgar a ligadura.
As mãos de Olivia agarraram o animal, mantendo a cabeça encostada às costas do cadeirão, mas ela não olhou para a gata. Olhos fechados, fazia um esforço para respirar inspirando pelo nariz e expirando pela boca, como se os seus pulmões ameaçassem deixar de funcionar a qualquer momento. Faraday continuou a massajar-lhe as pernas.
Sentes-te melhor? perguntou. Mais aliviada?
Mexeu-se, por fim. A respiração assumiu um ritmo mais regular. Baixou a cabeça e olhou para a gata. Num tom de voz cansado, declarou:
Isto nunca vai sarar, se ela não usar uma coleira como deve ser, que a impeça de levar as garras à ferida.
Lynley apercebeu-se, então, de que aquilo que ele inicialmente pensara tratar-se do pêlo da gata era realmente uma ligadura que pendia em torno da orelha esquerda, cobrindo-lhe um dos olhos.
Luta de gatos? perguntou.
Ela perdeu um dos olhos respondeu Faraday.
Estranho grupo, este que aqui têm.
Pois é. Eu tomo conta dos excluídos.
Olivia esboçou um sorriso fraco. Aos seus pés, a cauda do beagk batia alegremente no cadeirão onde ela estava sentada, como se compreendesse que se tratava de uma piada de significado obscuro.
Faraday passou os dedos pelos cabelos.
Merda, Livie...
Não tem importância replicou ela. Não vamos começar a lavar a nossa roupa suja agora, Chris. O inspector não está interessado nela. Ele só quer saber onde eu estava na quarta-feira à noite.
Levantou a cabeça e olhou para Lynley, antes de continuar:
E onde tu estavas também, Chris. Suponho que também deve querer saber isso. Embora a resposta seja fácil e rápida. Eu estava onde sempre estou, inspector. Aqui mesmo.
Há alguém que possa corroborar isso?
Infelizmente, eu não sabia que iria precisar de testemunhas. Beans e Toast não se importariam de lhe fazer a vontade, é claro, mas duvido que o senhor seja fluente na língua dos cães.
E Mr. Faraday?
Faraday pôs-se de pé. Massajou a nuca.
Saí. Fui a uma festa em casa de uns amigos.
Onde? perguntou Lynley.
Clapham. Posso dar-lhe a morada, se quiser.
Quanto tempo esteve fora?
Não sei. Já era tarde quando voltei. Fui levar um dos tipos a casa, primeiro, a Hampstead. Deviam ser quatro horas quando cheguei.
E você estava a dormir? perguntou a Olivia.
Dificilmente estaria a fazer outra coisa a essa hora da madrugada. Olivia retomara a sua antiga posição, cabeça pousada sobre o encosto do cadeirão. Os olhos estavam fechados. Afagava a gata, que a ignorava propositadamente e se esforçava por encontrar a posição mais confortável no colo dela
Existe uma chave sobressalente da casa de campo do Kent. Segundo nos disse a sua mãe, parece que você também sabia da sua existência disse Lynley.
Ah, ela disse isso, foi? murmurou Olivia. Bom, nesse caso já somos duas a sabê-lo, não é verdade?
Essa chave desapareceu.
E suponho que o senhor gostaria de dar uma espreitadela por aqui e ver se a descobria? Compreendo, mas para isso precisa de um mandato de busca. Trouxe algum?
Sabe muito bem que eu não teria qualquer dificuldade em conseguir uma autorização oficial.
Os olhos dela entreabriram-se de forma quase imperceptível. Os seus lábios contorceram-se num sorriso.
Porque será que tenho a impressão de que está a tentar lançar-me poeira para os olhos, inspector?
Vá lá, Livie suspirou Faraday. E depois, virando-se para Lynley. Nós não temos nenhuma chave de nenhuma casa de campo. Não vamos ao Kent desde... Ora, sei lá.
Mas estiveram lá?
No Kent? Claro que sim. Mas não estivemos em nenhuma casa Eu nem sequer sabia que havia uma casa até o senhor ter falado nela.
Não lê os jornais, Mr. Faraday? Aqueles que traz para casa, para Olivia ver.
Leio, sim.
Mas não reparou nas referências à casa quando leu as notícias sobre Fleming?
Eu não li as histórias sobre Fleming. Livie queria os jornais e eu fui comprá-los.
Queria os jornais? Expressamente? Porquê?
Porque quero sempre respondeu Olivia secamente. Esticou o braço e fechou a mão em volta do pulso de Faraday.
Pára de jogar este joguinho disse-lhe ela. Tudo o que ele pretende é armar-nos uma armadilha. Está a tentar provar que nós apagámos Kenneth Fleming. Se conseguir fazê-lo antes do jantar desta noite, provavelmente ainda lhe sobrará tempo para satisfazer a namorada. Se é que a tem puxou Faraday pelo pulso. Vai buscar o meu meio de transporte, Chris.
E como ele não se mexeu de imediato, ela disse:
Vai lá. Não tem importância. Vai buscá-lo.
Faraday saiu pela porta que dava para a cozinha e voltou com um andarilho em alumínio.
Beans, levanta-te e depois de o cão se ter afastado, colocou o aparelho em frente ao cadeirão onde Olivia estava sentada.
Está bem assim? perguntou ele.
Está.
Passou-lhe a gatinha para as mãos, que miou em protesto. Faraday colocou-a sobre a superfície aveludada de outro cadeirão. Virou-se para Olivia, que agarrava as partes laterais do andarilho e começava a içar-se tentando pôr-se de pé. Soltou um resmungo e murmurou, ”Merda, oh merda!”, ao perder ligeiramente o equilíbrio. Repeliu a mão protectora de Faraday. Conseguiu finalmente ficar de pé e lançou um olhar de desafio a Lynley.
Nada mal para uma assassina, não é verdade, inspector?
Chris Faraday aguardava dentro da lancha, ao fundo das escadas. Os cães agitavam-se, impacientes, junto dele. Empurravam-lhe os joelhos com as cabeças, esperando que ele os levasse de novo a passear. Afinal, tinha o fato de treino vestido. Estava de pé na ombreira da porta, uma mão pousada sobre o corrimão. Tanto quanto lhes era dado ver, preparava-se para sair, e eles estavam decididos a acompanhá-lo.
Na verdade, porém, prestava atenção ao ruído dos passos do inspector, que acabara de partir, e esperava que o seu coração deixasse de bater furiosamente dentro do peito. Oito anos de treino, oito anos passados interrogando-se sobre o que fazer quando a ocasião se apresentasse, não tinham sido suficientes para impedir o seu corpo de o trair. Quando vira, pela primeira vez, o cartão de identificação do inspector, fora invadido pelo desejo súbito e intenso de se precipitar para a casa de banho. Naquele instante, teve a certeza de que não só seria incapaz de se conter como lhe seria impossível manter uma atitude despreocupada e descontraída durante o tempo que durasse o interrogatório. Prever, planear, discutir e até ensaiar a cena com um dos membros do núcleo dirigente desempenhando o papel da polícia, era uma coisa. Outra, muito diferente, era viver a situação propriamente dita, apesar de todas as precauções tomadas, e sentir a mente invadida, em escassos segundos, por suspeitas sobre a identidade de quem poderia tê-los traído.
Teve a impressão de que a lancha oscilara quando o polícia saíra. Apurou o ouvido, escutando o barulho dos passos dele decrescendo no caminho ao longo do canal. Certo de que os ouvira distintamente, subiu e abriu a porta, não tanto para confirmar se a costa estava livre mas sobretudo para deixar entrar o ar fresco. Respirou fundo. Sabia vagamente a ozone e aos gazes libertados pelos tubos de escape dos automóveis e era pouco mais fresco do que o ar que se respirava no interior da cabina repleta de fumo. Sentou-se no segundo degrau a contar do topo e reflectiu sobre as medidas a tomar.
Se mencionasse a visita do detective ao núcleo dirigente, todos os membros votariam pela dissolução da unidade. Já o tinham feito antes, e por razões menos fortes, pelo que não lhe restavam quaisquer dúvidas quanto à decisão que tomariam. Transferi-lo-iam por um período de seis meses para um dos sectores menos importantes da organização e colocariam os rapazes e raparigas da sua unidade sob o comando de outros capitães. Era a atitude mais sensata a tomar, sempre que ocorria uma falha no sistema de segurança.
Neste caso, porém, não se tratava de facto de uma questão de segurança, pois não? O detective viera para falar com Livie, não com ele. A visita dele não tinha nada que ver com a organização. Não passava de mera coincidência, o facto de a investigação de um crime e as preocupações do movimento se terem entrecruzado no tempo de forma tão arbitrária. Se ele se mantivesse firme, se continuasse de boca calada e, sobretudo, se se conservasse fiel à sua versão dos acontecimentos, o interesse do detective nas suas actividades acabaria por morrer. Já estava a declinar, não era? O inspector não tinha riscado o nome de Livie da lista de potenciais suspeitos no mesmo instante em que vira o estado em que ela se encontrava? Claro que tinha. Não era parvo.
Chris deu um leve soco na coxa e ordenou a si próprio que parasse de inventar histórias. Tinha de comunicar a visita da New Scotland Yard ao núcleo dirigente. Tinha de deixá-los tomar uma decisão. Tudo o que poderia fazer seria negociar algum tempo e esperar que, antes de votarem, eles levassem em consideração os seus oito anos de envolvimento com a organização e os cinco anos como capitão de unidades de assalto bem sucedido. E se, por acaso, decidissem dissolver a unidade, tanto pior. Haveria de sobreviver. Ele e Amanda haveriam de sobreviver juntos. Talvez fosse melhor assim. Seria o fim dos encontros à socapa, da encenação constante de uma relação estritamente profissional entre capitão e soldado, do temor de ser chamado à presença do núcleo dirigente para explicações inúteis e subsequentes procedimentos disciplinares. Enfim, seriam relativamente livres. Relativamente. Pois havia ainda o problema de Livie.
Achas que ele engoliu a história, Chris? a voz de Livie soou indistinta, como sempre acontecia quando ela consumia energias demasiado depressa e não tinha tempo de recuperar as forças necessárias para voltar a assumir o controlo do cérebro.
O quê?
A festa.
Inspirou uma última lufada de ar poluído e deixou escorregar o corpo ao longo de três degraus. Olivia tornara a instalar-se no seu cadeirão e encostara o andarilho à parede.
A minha história vai pegar respondeu Chris, embora se coibisse de acrescentar que teria de fazer alguns telefonemas e pedir alguns favores, a fim de garantir a veracidade da história.
Ele vai verificar o que lhe contaste.
Sempre soubemos que isto poderia vir a acontecer, um dia.
Estás preocupado?
Não.
Quem é o teu primeiro alibi? Ele fitou-a tranquilamente e revelou:
Um tipo chamado Paul Beckstead. Já te falei sobre ele. Faz parte da unidade. É...
Sim, eu sei.
Não o pressionou para que adiantasse mais pormenores. Tê-lo-ia feito, outrora. Mas desistira de tentar apanhá-lo em falso, na altura em que iniciara o seu périplo pelos consultórios médicos.
Entreolharam-se, cada um no seu canto da sala. Desconfiados, como dois lutadores de boxe avaliando-se mutuamente. No caso deles, porém, os eventuais insultos apenas atingiriam o coração, deixando o corpo intacto.
Chris aproximou-se dos armários colocados em ambos os lados do banco de carpinteiro. Retirou os cartazes e os mapas do esconderijo onde os enfiara depois de os ter descolado da parede, apressadamente. Começou a colocá-los de novo nos seus devidos lugares: Amem os animais, não os comam; Salvem a baleia branca; 125 000 mortes por hora; A sorte dos animais é a sorte dos homens: todas as coisas estão ligadas entre si.
Podias ter-lhe contado a verdade a teu respeito, Livie.
Fez girar um pedaço de fita-cola entre o polegar e o indicador e colou-o nas costas de um mapa da Grã-Bretanha, dividido não em condados, mas em segmentos horizontais e verticais designados por zonas.
Pelo menos ter-te-ia livrado de chatices. Eu tenho a festa, mas tu não tens nada, excepto o facto de teres estado aqui sozinha, o que não é lá muito bom.
Ela não respondeu. Ouviu os dedos dela tamborilando sobre o braço da cadeira e os estalidos que fez com a língua para atrair a atenção de Panda que, como sempre, a ignorou. Como boa felina que era, Panda fazia sempre o que queria, apenas se deixando manipular quando isso servia os seus interesses.
Podias ter-lhe contado a verdade repetiu Chris. Ter-te-ia livrado de chatices. Livie, porque é...
E, ao mesmo tempo, teria corrido o risco de te deixar na merda. Era isso que querias que eu fizesse? Terias feito o mesmo em relação a mim?
Ele pressionou o mapa contra a parede e, vendo que estava torto, endireitou-o.
Não sei.
Ora, vá lá!
E a verdade. Não sei. Se estivesse no teu lugar, não sei o que faria.
Isso não interessa, pois não? Porque eu sei o que tenho a fazer. Ele virou-se para olhá-la de frente. Enterrou as mãos nos bolsos das calças do fato de treino. A confiança cega que ela depositava nele pesava-lhe na alma.
Ouve disse ele, não me transformes em herói. Porque um destes dias corres o risco de apanhar uma grande decepção.
Ora, a vida está cheia de decepções, sabes? Ele engoliu em seco.
Como estão as tuas pernas agora?
São pernas, nada mais.
Não calhou nada bem, pois não? O chui apareceu mesmo na pior altura.
Ela sorriu, sardónica.
Como um polígrafo. Fazer a pergunta. Depois estudar a reacção dela, reparar nas hesitações. Sacar as pulseiras e ler-lhe os direitos.
Chris deixou-se cair no cadeirão que estava em frente ao dela, o mesmo em que o inspector estivera sentado, momentos antes. Esticou as pernas e tocou com a ponta dos ténis na sola grossa das botas pretas de Olivia, um dos dois pares que ela comprara na época em que ainda julgava que tudo o que precisava para solucionar os seus problemas de equilíbrio era de uma base de sustentação adequada e consistente.
Nós os dois formamos um par e tanto disse ele, pressionando-lhe o peito do pé com o dedo.
O que é que queres dizer com isso?
Por pouco não mijei nas calças, quando ele me disse quem era.
Tu? Não acredito.
Garanto-te. Julguei que estava tramado.
Isso nunca vai acontecer. És demasiado esperto para te deixares apanhar.
Nunca me imaginei a ser apanhado com a mão na massa.
Não? Então?
Como o que aconteceu há bocado. A propósito de qualquer coisa que não tenha nada a ver com as minhas actividades. Por acaso.
Reparou que o sapato dela estava desapertado e inclinou-se para a frente para compor o atacador. Em seguida fez o mesmo ao outro sapato, embora não fosse necessário. Puxou-lhe as meias para cima. Ela estendeu a mão e acariciou-lhe a têmpora.
Se alguma vez sentires que tem de ser, conta-lhe tudo disse ele. Sentindo a mão de Olivia cair abruptamente, levantou os olhos.
Aqui, Beans chamou o beagle, que se levantara e apoiara as patas dianteiras na escada. E tu, Toast! Vá lá, meus sacos de pulgas. Eles estão a tentar sair, Chris. Abre-lhes a porta, está bem?
Podes ser obrigada a fazê-lo, Livie. Alguém pode ter-te visto. Se for necessário, conta-lhe a verdade.
A minha verdade não lhe diz respeito replicou ela.
CAPÍTULO 9
já disse tudo o que tinha a dizer à polícia do Kent foram as ”primeiras palavras de Jean Cooper quando abriu a porta da sua casa de Cardale Street e deu de caras com o cartão de identificação da sargento Havers. Disse-lhes que era Kenny. Não tenho mais nada a acrescentar. E quem são aqueles tipos, afinal de contas? Foi você que os trouxe atrás de si? Porque eles não estavam aqui há bocado.
Jornalistas explicou Barbara Havers, referindo-se aos três fotógrafos que, vendo Jean Cooper abrir a porta de casa, tinham accionado de imediato a respectiva maquinaria do outro lado da sebe baixa que separava um pequeno jardim da rua. Este pouco mais era do que um deprimente quadrado de cimento ladeado em três lados por um canteiro de flores vazio, decorado, aqui e ali, com casinhas de gesso, pintadas por uma mão muito pouco talentosa.
Desandem daqui p’ra fora, todos! gritou Jean aos fotógrafos. Não há nada p’ra vocês, aqui.
Imperturbáveis, eles continuaram a sua infatigável sessão de fotografias. Punhos sobre as ancas, ela insistiu:
Estão a ouvir? Eu disse p’ra se porem a andar daqui p’ra fora.
Mrs. Fleming gritou um deles. A polícia do Kent alega que uma beata terá estado na origem do incêndio. O seu marido fumava? Segundo fontes fidedignas, parece que não. Quer confirmar isso? Tem algum comentário a fazer? Ele estava sozinho na casa de campo?
O maxilar de Jean crispou-se e o seu rosto assumiu uma expressão dura.
Não tenho nada a dizer clamou ela em resposta.
Segundo uma das nossas fontes, em Kent, a casa era habitada por uma mulher chamada Gabriella Patten. A mulher de Hugh Patten. Este nome diz-lhe alguma coisa? Tem algum comentário a fazer?
Acabei de dizer que não tenho nada...
Os seus filhos estão ao corrente? Como é que eles estão a reagir a estes acontecimentos?
Deixem os meus filhos em paz! Se algum de vocês se atreve a fazer uma pergunta que seja a algum deles, bem pode dizer adeus aos tintins. Entendido?
Barbara subiu o único degrau do patamar.
Mrs. Fleming... começou ela em voz firme.
Cooper, eu chamo-me Cooper.
Claro. Peço desculpa. Ms. Cooper, deixe-me entrar. Assim, eles não poderão fazer mais perguntas, e as únicas fotografias que conseguirem tirar não interessarão a nenhum editor. Está de acordo? Deixa-me entrar, então?
Eles vieram atrás de si? Porque se vieram, vou telefonar ao meu advogado e...
Eles já cá estavam quando eu cheguei.
Barbara esforçava-se por manter a calma. Ao mesmo tempo, porém, não podia deixar de se sentir desconfortável ao ouvir o ruído insistente das máquinas, e estava longe de se sentir radiante por estar a ser fotografada enquanto tentava entrar à força na casa da viúva.
Estavam instalados em Plevna Street. Atrás de um camião, perto da clínica. Os carros estavam bem escondidos e, maquinalmente, acrescentou: Lamento muito.
Lamenta zombou Jean Cooper. Não me venha com histórias. Nenhum de vocês lamenta coisa nenhuma.
Recuou, todavia, permitindo que Barbara entrasse na sala de estar da pequena casa. Aparentemente, viera interromper uma sessão de limpezas e arrumações. Espalhados pelo chão viam-se vários sacos de lixo pretos, meio cheios. Enquanto os afastava para o lado com o pé, para que Barbara pudesse ter acesso a um sofá de três lugares deformado, um homem extremamente musculado desceu as escadas com três caixas nos braços. Desatando a rir, disse:
Grande cena, ha, Pook. Mas devias ter dito que estávamos muito ocupados a torcer os lenços de assoar e, por isso, não podíamos falar com eles neste momento. ”Oh, peço imensa desculpa, só guarda, de momento não posso conceder-lhe a entrevista que me pede, porque vem aí mais uma choradela.”
Fingiu que assoava o nariz.
Der disse Jean. É a polícia.
O homem baixou ligeiramente as caixas, que lhe tapavam o rosto. Mais do que embaraçado, parecia furioso por ter sido surpreendido enquanto falava inadvertidamente. Examinou Barbara com uma expressão incrédula, que depressa se metamorfoseou num rápido olhar de desprezo. Que vaca, que tipa imbecil. Barbara observou-o por seu turno. Manteve os olhos fixos no desconhecido até ele deixar cair as caixas no chão, próximo da porta da cozinha. Jean Cooper apresentou-o como sendo o seu irmão Derrick e, em seguida, apressou-se a clarificar:
Der, ela está aqui por causa de Kenny.
Ai está?
Encostando-se à parede, fez assentar o peso do corpo sobre um pé enquanto, delicadamente, colocava o outro por cima do primeiro, adoptando uma posição que fazia lembrar um bailarino. Os seus pés eram invulgarmente pequenos para um homem da sua estatura, e parecia ainda mais baixo por causa das amplas calças cor de violeta com elásticos na cintura e nos tornozelos, como os fatos de uma dançarina de harém. As calças tufadas pareciam ter sido expressamente confeccionadas para albergar as suas coxas grossas como troncos de árvores.
O que é que há com Kenny. O cabrão teve o que merecia, não? Apontou o dedo à irmã, polegar erguido como se empunhasse um revólver. Este desempenho, porém, parecia ser sobretudo destinado a Barbara.
Não me canso de te dizer, Pook, tu e os catraios estão muito melhor sem aquele sacana. Se queres saber...
Encontraste todos os livros de Kenny, Der? interrompeu a irmã. Há mais no quarto dos miúdos. Mas não te esqueças de ver se têm o nome dele escrito antes de os meteres nas caixas. Não arrumes nenhum dos livros de Stan.
Ele cruzou os braços sobre o peito, tanto quanto podia, tendo em conta o volume dos seus peitorais e a reduzida liberdade de movimentos que lhe permitiam os desmesurados bicípites. A atitude, com a qual pretendia sem dúvida demonstrar bravura, apenas acentuava a incongruência do seu físico. As intensivas sessões de musculação haviam-lhe permitido desenvolver todas as partes do corpo à excepção daquelas cujas dimensões eram previamente determinadas pela ausência de músculo ou pelas naturais restrições impostas ao crescimento do esqueleto. Por esta razão, as suas mãos, os pés, a cabeça e as orelhas pareciam estranhamente delicados quando comparados com as outras partes do corpo.
Tás a ver se te livras de mim? Tens medo que eu diga a este chui de merda que eras casada com um sacaninha de primeira?
Já chega disse Jean num tom seco. Se quiseres ficar, fica. Mas bico calado. Porque estou a um passo... a um passo, Der... A mão dela tremeu e ela enfiou-a com violência no bolso do vestido. Oh, merda para isto tudo sussurrou, para tudo, merda.
A expressão agressiva e insolente desapareceu imediatamente do rosto do irmão.
Tás de rastos afastou a imensa massa muscular, que estava colada à parede. Precisas de uma boa chávena de chá. Não queres comer, óptimo Não te posso obrigar. Mas vais engolir uma chávena de chá, e eu não te vou largar enquanto não tiveres bebido a última gota. Deixa o caso comigo, Pook
Dirigiu-se à cozinha, pôs a água a correr e desatou a abrir e a fechar armários com estrondo.
Jean levou os sacos de lixo meio cheios para junto da escada.
Sente-se lá, então disse para Barbara. Diga o que tem a dizer e depois deixe-nos em paz.
Barbara deixou-se ficar em pé, junto de um velho televisor, enquanto lean Cooper continuava a mudar os sacos de um sítio para o outro. Enfiou um deles dentro de um armário fundo debaixo da escada, de onde tirou um conjunto de álbuns. Os seus olhos estavam presos às capas poeirentas. Fosse para evitar o olhar de Barbara, fosse para furtar-se ao conteúdo das páginas. Pareciam estar cheias, tanto de fotografias como de recortes de jornal; estes, porém, deviam ter sido mal montados, já que várias fotografias e alguns artigos esvoaçaram até ao chão enquanto Jean transferia cada um dos álbuns, enormes e cobertos de poeira, do armário para o saco de lixo.
Barbara baixou-se. Os títulos de cada artigo incluíam sempre o nome Fleming, sublinhado a cor de laranja. Pareciam reconstituir a carreira do batedor. As fotografias, por seu turno, ilustravam as diferentes etapas da sua vida. Numa, era ainda um rapazinho, noutra um adolescente sorridente, na mão uma garrafa de gin de contrabando erguida num brinde, noutra um jovem pai, rindo, enquanto brincava com um garoto.
Se as circunstâncias que rodeavam a morte deste homem tivessem sido diferentes, Barbara teria dito à viúva:
Espere um pouco, Ms. Cooper. Não deite nada fora. Guarde essas fotografias e esses recortes. Quer livrar-se deles agora, porque o sofrimento é muito grande. Mas um dia mais tarde vai sentir-se muito feliz por poder folheá-los. Então, tenha calma.
Todavia, por maior que fosse o seu desejo de pronunciar estas palavras de consolo que lhe assomavam espontaneamente aos lábios, ele diminuiu quando ponderou as eventuais implicações subjacentes ao facto de uma mulher abandonada ter guardado tantas recordações do homem que a deixara.
Barbara atirou as fotografias e os recortes de jornal para dentro de um dos sacos de lixo.
O seu marido mencionou isto alguma vez, Ms. Cooper? perguntou, mostrando a Jean um dos documentos que descobrira dentro da escrivaninha de Mrs. Whitelaw, nessa manhã.
Era uma carta, enviada por um certo Q. Melvin Abercrombie, Esquire, Randolph Ave., Maida Vale. Barbara conhecia o seu conteúdo de cor: confirmação de uma entrevista que Fleming marcara com o advogado.
Jean leu a carta e devolveu-lha. Em seguida continuou a esvaziar o armário.
Ele tinha um encontro marcado com um tipo de Maida Vale.
Foi o que depreendi, Ms. Cooper. Ele falou-lhe no assunto?
Pergunte-lhe. A esse tipo.
É verdade, posso telefonar a Mr. Abercrombie e pedir-lhe a informação de que preciso disse Barbara. Em geral, os clientes são francos com os seus advogados, quando estes dão início ao processo de divórcio. E regra geral, também, os advogados sentem-se mais do que satisfeitos por poderem ser francos com a polícia quando esse mesmo cliente foi assassinado.
Viu as mãos de Jean crisparem-se sobre os rebordos de um dos álbuns Bingo, pensou.
Há papéis a preencher, outros a enviar, e não tenho dúvidas de que um tipo como este Abercrombie sabe exactamente o ponto em que estavam as diligências efectuadas pelo seu marido. Por isso, eu podia, de facto, telefonar-lhe e pedir-lhe essas informações. Mas quando já as tiver obtido, terei que voltar aqui para que possamos conversar. E os jornalistas vão continuar ali fora, fotografando e filmando, querendo saber o que é que a bófia anda a tramar e porquê. A propósito, onde estão os seus filhos?
Jean lançou-lhe um olhar desafiador.
Eles sabem que o pai deles morreu, presumo?
Eles não são nenhuns atrasados mentais, sargento. O que é que pensa?
E sabem também que o pai deles tinha pedido o divórcio? Porque ele pediu, não foi?
Jean examinou o canto de um dos álbuns, que estava danificado. Com o polegar, alisou o couro artificial já gretado.
Diz-lhe, Pook. Derrick Cooper assomara à porta da cozinha, segurando numa das mãos uma caixa de P.G.Tips e na outra uma caneca decorada com o famoso sorriso trocista de Elvis Presley. Que diferença faz? Conta-lhe. Tu não precisas dele. Nunca precisaste dele.
E até é melhor que ele esteja morto, não é? Jean ergueu o rosto pálido. Sim disse para Barbara. Mas já sabia a resposta, não sabia, porque ele devia ter contado à velha bruxa que me tinha posto um par de patins, e a velha deve ter ido a correr espalhar a novidade duma ponta à outra de Londres, sobretudo se eu não saísse lá muito bem-vista. Há dezasseis anos que ela está à espera disso.
Mrs. Whitelaw?
E quem mais podia ser?
A tentar deixá-la mal-vista? Porquê?
Eu não tinha categoria suficiente para casar com Kenny disse Jean, com uma gargalhada sonora. Como se Gabriella tivesse.
Sabia que ele fazia tenções de casar com Gabriella Patten? Atirou o álbum que tinha na mão para dentro de um dos sacos de plástico.
Olhou em redor à procura de outra ocupação, mas nada parecia estar à mão.
É preciso fechar estes sacos, Der. Onde é que deixaste o cordel? Lá em cima?
E viu-o subir as escadas que davam acesso ao andar superior.
O seu marido falou com os seus filhos sobre o divórcio? perguntou Barbara. Onde estão eles?
Não os meta nesta história disse Jeannie. Deixe-os em paz. Eles sofreram bastante. Quatro anos. É preciso parar com esta história.
Segundo sei, o seu filho devia passar alguns dias de férias com o pai.
Na Grécia. Deviam ter partido na noite da passada quarta-feira. Porque é que nunca chegaram a partir?
Jean dirigiu-se para a janela da sala de estar. Pegou num maço de Embassy, que estava sobre o parapeito, e acendeu um cigarro.
Tens de deixar essa merda disse o irmão, enquanto descia pesadamente as escadas e atirava um rolo de cordel para cima de um dos sacos. Quantas vezes tenho de te dizer a mesma coisa, Pook?
Tá bem. Já sei reagiu ela. Mas esta não é propriamente a hora certa. Não ias fazer chá? Não ouvi a chaleira.
Ele lançou-lhe um olhar furioso e desapareceu dentro da cozinha. Ouviu-se o ruído de água a correr e uma colher tilintar energicamente de encontro às paredes de faiança de uma chávena. Voltou com o chá. Colocou-o no parapeito da janela e deixou-se cair no sofá, cruzando as pernas à altura dos tornozelos sobre a mesa baixa. Dava, assim, a entender que fazia tenções de permanecer junto delas durante o resto da entrevista. Deixá-lo, pensou Barbara, decidida a retomar o fio da conversa com Jean.
O seu marido disse-lhe que queria o divórcio? Disse-lhe que planeava tornar a casar? Com Gabriella Patten? E deu a novidade aos filhos? E você, Jean, contou-lhes alguma coisa?
Ela abanou a cabeça.
Porque não?
As pessoas mudam de ideias. Kenny era uma pessoa. O irmão resmungou.
Aquele monte de merda não era uma pessoa. Era uma vedeta da trampa. Estava a escrever a sua lenda e vocês eram um capítulo acabado. Porque é que não queres ver isso? Porque é que não esqueces?
Jean fuzilou-o com o olhar.
Já podias ter encontrado outra pessoa, a esta altura. Podias ter dado aos teus filhos um pai como deve ser. Podias...
Cala a boca, Der.
Olha lá, tem cuidado com o que dizes.
Não, tu é que tens de ter cuidado com o que dizes. Podes ficar se quiseres, mas não dás um pio. Nem sobre mim, nem sobre Kenny, sobre nada. Entendeste?
Escuta disse ele, esticando o queixo agressivamente na direcção da irmã, sabes qual é o teu problema? O que sempre foi. Tu nunca queres olhar para as coisas de frente. Aquele merdas pensava que era Deus Todo-Poderoso e que toda a gente tinha nascido para lhe lamber as botas, e tu não és capaz de enxergar isso, pois não?
Estás a dizer disparates.
E ainda não consegues ver. Ele abandonou-te, Pook. Encontrou um brinquedo melhor. Soubeste na altura em que começou e mesmo assim ficaste à espera que ele se fartasse dela e voltasse para casa, com o rabo entre as pernas.
Nós éramos casados. E eu queria que continuássemos casados.
Vocês tinham qualquer coisa, lá isso tinham. Os seus olhinhos em forma de bolota fecharam-se quando ele se riu. Tu eras o tapete e ele era as botas. Gostavas que te pusessem as patas em cima?
Jean apagou o cigarro com um cuidado extremo, como se o cinzeiro fosse uma peça de porcelana fina e não um pedaço de lata em forma de concha.
Dá-te gozo dizer essas coisas? perguntou ela em voz baixa. Sentes-te uma pessoa, é? Sentes-te importante?
Só te estou a dizer o que precisas de ouvir.
Só estás a dizer aquilo que te apetece dizer desde que tinhas dezoito anos.
Não digas disparates, merda.
Desde que percebeste que nunca ias conseguir chegar aos calcanhares de Kenny.
Os bicípites de Derrick retesaram-se. Ele deixou cair as pernas no chão.
Pára de dizer disparates. Pára. Merda...
Pronto interveio Barbara. Acho que toda a gente já percebeu o que queria dizer, Mr. Cooper.
Os olhos de Derrick fixaram-se nela.
E o que é que você tem a ver com a história, ha?
Já chega. Já percebemos a mensagem. Agora, gostaria que saísse e me deixasse conversar com a sua irmã.
Ele levantou-se de um salto.
Com quem é que julga que está a falar?
Consigo. Estou a falar consigo. Julguei que tivesse sido clara. Sendo assim, acha que consegue encontrar a porta sozinho, ou precisa que eu o ajude a descobri-la?
Olhem só como ela fala. Estou borrado de medo. Acho que vou sujar as calças e tudo.
Nesse caso, se fosse a si andava com muito cuidado. O rosto dele ficou em brasa. Minha sacana de mer... Eu... Der! interveio Jean. Desapareça, Cooper disse Barbara, num tom de voz baixo e controlado, porque, caso contrário, meto-o na choça tão depressa que você nem terá tempo para pestanejar.
Sua vaca...
Mas aposto o que quiser em como a maior parte dos cadastrados vão adorar a sua musculatura.
Uma veia latejou na testa de Derrick. O seu peito inchou. O braço direito recuou. O cotovelo flectiu-se.
Atreva-se desafiou Barbara, colocando-se em bicos de pés como um galo empertigado. Atreva-se. Vá lá. Peço-lhe, por favor. Tenho dez anos de Kwai Tan e estou morta para poder pô-los em prática.
Derrick! Jean interpôs-se. O irmão respirava de forma tão ruidosa que Barbara não pôde impedir-se de o comparar com um búfalo que vira um dia no jardim zoológico. Derrick insistiu Jean. Tem lá calma. Ela é polícia.
Não tenho nada a perder.
Faz o que ela diz, Derrick! Tás a ouvir? Derrick! agarrou-o pelo braço e abanou-o.
Os olhos dele, vítreos, oscilaram entre Barbara e a irmã.
Sim respondeu, estou a ouvir.
Ergueu a mão como se fosse tocar o ombro da irmã, mas baixou-a antes de o fazer.
Vai p’ra casa, Der disse ela, passando o braço pela testa dele. Eu sei que só queres o melhor para mim, mas a sargento e eu temos de falar as duas sozinhas.
A mãe e o pai estão de rastos por causa desta história replicou ele. Por causa de Kenny.
Não admira.
Sabes, Pook, eles sempre gostaram dele. Mesmo depois de ter dado à sola. Sempre se puseram ao lado dele.
Eu sei, Der.
Achavam que ele se tinha raspado por tua causa. Eu disse-lhes que isso não era justo. Porque eles não sabiam nada de nada. Mas eles nunca ligavam ao que eu lhes dizia. O pai não parava de me dizer: o que é que tu percebes de casamentos, meu imbecil.
O pai estava zangado. Ele não tinha ideia do que dizia.
Quando falavam dele, tratavam-no sempre por filho. Filho, Pook. porque? Eu é que era o filho deles.
Jean fez-lhe uma carícia nos cabelos.
Vai p’ra casa, Der. Vai ficar tudo bem. Vai lá. Tá bem? Mas sai pelas traseiras. Não deixes que aqueles palermas te chateiem. Eles não me metem medo nenhum.
Não há necessidade de lhes darmos sarna para se coçarem. Sai pelas traseiras, está bem?
Bebe o teu chá.
Prometo.
Ela sentou-se no sofá, enquanto o irmão se dirigia para a cozinha. Uma porta abriu e fechou-se logo depois. Instantes mais tarde, o portão do jardim chiou nos gonzos ferrugentos. Jean segurava entre as mãos a caneca com o chá.
Kwai Tan disse ela a Barbara, o que é isso?
Barbara apercebeu-se de que continuava de pé. Mudou de posição e começou a respirar normalmente.
Não faço a mais pequena ideia. Uma maneira de cozinhar frango, acho eu.
Procurou os cigarros dentro da mala. Acendeu um, começou a fumar e tentou lembrar-se da última vez em que um carcinogénio inflamável lhe soubera tão bem. Maldita fosse a CINZA. Ela merecia aquele cigarro. Contornou dois sacos de lixo e encaminhou-se para um dos sofás. Sentou-se. A almofada estava tão velha e gasta que teve a impressão que se sentara sobre um saco cheio de pedras.
Falou com o seu marido na quarta-feira?
Porquê?
Ele devia ter levado o seu filho para uma viagem de barco. Deviam ter partido na quarta-feira à noite. Os planos foram alterados. Ele telefonou-lhe a avisá-la da mudança?
Era a prenda de aniversário de Jimmy. Foi o que ele prometeu, pelo menos. Quem sabe, se calhar era só uma promessa, mais nada.
Não era, não disse Barbara.
Jean levantou a cabeça com um movimento brusco.
Nós encontrámos os bilhetes de avião no bolso de um dos casacos dele, em Kensington. Mrs. Whitelaw disse-nos que o tinha ajudado a fazer as malas e que o tinha visto colocar a bagagem no carro. Só que em determinada altura houve uma alteração de programa. Ele explicou-lhe por que razão tinha mudado de opinião?
Jean Cooper abanou a cabeça negativamente e bebeu um gole de chá. Barbara reparou que o recipiente do chá era uma daquelas canecas em que o desenho vai mudando à medida que o líquido aquece a parede da caneca. Assim, o sorriso trocista de um jovem Elvis transformara-se no Elvis inchado dos últimos anos, vestido de cetim, boca carnuda colada ao microfone.
Ele avisou Jimmy?
As mãos de Jean fecharam-se em torno da caneca. Elvis desapareceu sob os seus dedos. Barbara via o nível do chá subir da direita para a esquerda sempre que Jean inclinava a caneca para trás e para diante.
Sim, ele falou com Jimmy disse, finalmente.
Quando?
Não sei as horas a que falaram.
Não precisa ser exacta. Foi de manhã? À tarde? Mesmo antes da hora a que deviam ter partido? Ele devia passar por aqui para vir buscar o filho, não era? Telefonou pouco antes de chegar?
Ela baixou a cabeça ainda mais, observando o chá mais atentamente.
Tente recordar mentalmente aquele dia pediu Barbara. Levantou-se, vestiu-se, preparou as crianças para irem para a escola, talvez. Que mais? Foi trabalhar. Voltou para casa. Jimmy já tinha as malas feitas. Ainda tinha tudo por arrumar. Estava pronto. Excitado. Desiludido. Como é que as coisas se passaram, exactamente?
O chá continuava a prender a atenção de Jean. Embora continuasse de cabeça baixa, Barbara via, pelo movimento do queixo, que ela mordia o interior do lábio inferior. Jimmy Cooper, pensou com um interesse vivo. O que é que aquele nome diria aos colegas da polícia local.
Onde está Jimmy? quis saber. Se não é capaz de me dizer nada a propósito da viagem à Grécia e do pai dele...
Quarta à tarde ergueu a cabeça, no momento em que Barbara deixava cair a cinza do seu cigarro dentro do cinzeiro de alumínio. Quarta-feira à tarde.
Foi nessa altura que ele telefonou?
Levei Stan e Shar até ao clube de vídeo para que cada um escolhesse um filme para verem depois de Jimmy partir em viagem com o pai deles. Para que não se sentissem magoados por não irem com eles.
Isso aconteceu depois das aulas, então?
Quando chegámos a casa, já não ia haver viagem. Deviam ser quatro e meia, mais ou menos.
Foi Jimmy quem lhe deu a notícia?
Ele não precisou de me dizer nada. Tinha desfeito a mala e espalhado as coisas dele pelo quarto.
O que é que ele disse?
Que não ia para a Grécia.
Porquê?
Não sei.
Mas ele sabia. Jimmy sabia.
Ela levou a caneca de chá aos lábios e bebeu um gole.
Problemas com a equipa de críquete, acho eu, que Kenny teve de resolver. Ele tinha esperanças de ser escolhido para a selecção inglesa mais uma vez.
Mas Jimmy não lhe disse nada, pois não?
Estava aborrecido. Não quis falar.
Mesmo assim, deve ter-se sentido desiludido com o pai, não?
Estava muito excitado com a ideia de ir viajar com o pai. E depois, de repente, deixou de haver viagem. Pois é. Ficou desiludido.
Zangado?
Quando Jean lançou um olhar rápido e incisivo na direcção dela, Barbara explicou rapidamente:
Disse há pouco que ele tinha espalhado as roupas pelo quarto, em vez de desfazer as malas normalmente. Isso parece-me um acesso de mau génio. Estava zangado?
Como outro garoto qualquer, no lugar dele. Nem mais nem menos. Barbara apagou o cigarro e reflectiu sobre se haveria, ou não, de acender outro. Rejeitou a ideia.
Jimmy possui algum meio de locomoção próprio?
Para que é que precisa de saber isso?
Ele ficou em casa na quarta-feira à noite? Stan e Shar tinham os seus vídeos. Ele tentava lidar com a sua desilusão. Ficou em casa convosco, ou saiu à procura de um divertimento que o animasse? Estava zangado, como disse há pouco. Provavelmente apetecia-lhe levantar os ânimos.
Entrou e saiu. Está sempre a entrar e a sair. Gosta de andar por aí com os amigos.
E na quarta-feira à noite? Esteve com os amigos nesse dia? A que horas voltou para casa?
Jean pousou a caneca do chá sobre a mesa da sala. Enfiou a mão esquerda no bolso do vestido e, no seu interior, pareceu encontrar algo a que se agarrar. Vindos da rua, chegaram-lhes os ecos estridentes de uma voz feminina:
Sandy, Paulie, lanche! Venham para dentro antes que arrefeça.
Ele chegou a voltar para casa, nessa noite, Ms. Cooper? perguntou Barbara.
Claro que voltou respondeu ela. Só não me lembro a que horas. Estava a dormir. Ele tem uma chave de casa. Entra e sai quando lhe apetece.
E estava em casa na manhã seguinte, quando se levantou?
E onde é que ele havia de estar? Dentro do caixote de lixo?
E hoje? Onde está ele? Com os amigos outra vez? Quem são eles, a propósito? Vou precisar que me diga os nomes deles. Sobretudo daqueles com quem ele esteve na quarta-feira.
Saiu com Stan e Shar.
Com um movimento de cabeça designou um dos sacos de lixo.
Para que não tivessem que me ver empacotar as coisas do pai deles.
Seja como for, vou precisar de falar com ele disse Barbara. Seria mais fácil se eu pudesse conversar com ele agora. Pode dizer-me onde é que ele foi?
Ela abanou a cabeça.
Ou a que horas volta? O que é que ele pode dizer que eu não possa?
Pode dizer-me onde estava na quarta-feira à noite e a que horas chegou a casa.
E como é que isso a pode ajudar?
Ele também me pode dizer o conteúdo da conversa com o pai.
Já lhe disse. A viagem foi-se.
Mas não me disse porquê.
E que interessa o porquê?
O porquê pode ajudar-nos a descobrir quem é que sabia que Kenneth Fleming fazia tenções de se deslocar ao Kent. Barbara prestou atenção à forma como Jean Cooper reagia às suas palavras. Foi uma reacção muito subtil, um matizar de pele, visível através do decote do vestido florido que deixava ver um triângulo de peito. Acima deste, não havia qualquer vestígio de cor.
Sei que passava os fins-de-semana no Kent quando o seu marido começou a jogar na equipa do condado. Você e os seus filhos.
E depois, que mal é que isso tem?
Como é que iam para lá. Sozinhos, de carro? Ou era o seu marido que vos levava?
íamos sozinhos, de carro.
E se, por acaso, ele não estivesse em casa quando chegassem? Tinham chave para entrar?
Jean endireitou as costas e apagou o cigarro.
Já estou a perceber tudo disse. Já sei onde quer chegar. Onde estava Jimmy na quarta-feira à noite? Será que chegou a voltar para casa? Será que estava furioso por causa das férias que tinham ido por água abaixo? E, já agora, é possível que ele tenha rapinado as chaves da casa de campo, que tenha depois dado um salto ao Kent e aí tenha dado cabo do seu próprio pai?
Não deixa de ser uma pergunta interessante observou Barbara. Gostaria muito de saber a sua opinião sobre ela.
Ele estava em casa, em casa.
Mas não é capaz de se lembrar da hora a que ele entrou em casa, pois não?
Além disso, ninguém poderia ter deitado a mão a nenhuma chave, porque não há nem nunca houve nenhuma chave.
Então, como é que entravam em casa quando o seu marido não estava lá?
Jean puxou, nervosamente, a gola do vestido. O gesto pareceu acalmá-la, pois levantou a cabeça e disse:
Havia uma chave na cabana do jardim, atrás da garagem. Era com ela que entrávamos em casa.
Quem é que sabia da existência dessa chave?
Quem é que sabia? O que é que isso interessa? Sabíamos todos. Satisfeita?
Não exactamente. Acontece que essa chave desapareceu.
E você acha que foi Jimmy quem a tirou?
Não necessariamente. Barbara pegou na mala, que estava pousada no chão, e pô-la a tiracolo. Diga-me, Ms. Cooper continuou, em jeito de conclusão, sabendo de antemão qual seria a resposta de Jean, haverá alguém que possa confirmar o seu paradeiro na quarta-feira à noite?
Jimmy pagou as batatas fritas, as tabletes de Cadbury, o pacote de Hob Nob e os biscoitos de manteiga. Antes disso, ao fundo das escadas onde o vendedor de fruta instalara a sua barraca, a dois passos da estação de Island Gardens, surripiara duas bananas, um pêssego e uma nectarina enquanto uma velha gaiteira de cabelos azulados dispersos pelo couro-cabeludo rosado se queixava do preço das couves-de-bruxelas. Como se alguém com dois dedos de testa fosse capaz de comer aquelas porcarias esverdeadas.
Tinha dinheiro suficiente para pagar a fruta. A mãe entregara-lhe dez libras nessa manhã, pedindo-lhe que saísse com Stan e Shar e lhes comprasse uma guloseima de que eles gostassem. Bananas, pêssegos e nectarinas, no entanto, não se encaixavam na categoria das guloseimas. Mas, ainda que assim fosse, não teria deixado de praticar aquele furto mesquinho e insignificante. Era uma questão de princípio. O vendedor de fruta era um estupor da pior espécie; sempre fora e sempre seria. ”Cambada de vadios”, tartamudeava sempre que algum dos alunos da escola passava demasiado perto dos seus tomates asquerosos. ”Parem de vaguear por aqui. Arranjem mas é um emprego decente, bando de miseráveis malandros.” Irritá-lo era, por isso, uma questão de honra para os tipos da Escola Secundária George Green, que faziam questão em surripiar-lhe o máximo de fruta e legumes que podiam.
Em contrapartida, Jimmy não alimentava quaisquer ressentimentos em relação ao velhote que tomava conta da cafetaria de Island Gardens. Assim, quando se dirigiram para o edifício atarracado situado num dos extremos do largo coberto de relva, quando Shar pediu batatas fritas e uma tablete de chocolate e Stan apontou silenciosamente para as Hob Nob e para os biscoitos de manteiga, Jimmy colocou de bom grado uma nota de cinco libras sobre o balcão, não sabendo como reagir quando o velhote lhe disse: ”Está um lindo dia para passear, minha querida, não está?”, acariciando-lhe a mão efusivamente. De início, Jimmy julgou estar diante de um maricas que tentava seduzi-lo na esperança de poder atraí-lo para a parte de trás do balcão e baixar-lhe as calças quando ninguém estivesse a ver. Olhando o velhote mais de perto, porém, no momento em que ele lhe entregava o troco, percebeu, pela película branca que lhe toldava os olhos, que o pobre diabo estava praticamente cego. Vira os cabelos de Jimmy, mas ouvira a voz de Sharon e julgara que estava a namoriscar uma rapariga.
Já tinham comido duas sanduíches de ovo e um folhado de salsicha, no comboio que os trouxera desde Crossharbour até ao rio. O trajecto não era
longo, duas estações ao todo, mas tinham tido tempo suficiente para engolir as sanduíches e empurrá-las esófago abaixo com duas Colas e uma Tânia laranja. Shar dissera-lhe: ”Acho que não é permitido comer no comboio, Jimmy.” Ao que ele respondera: ”Então, não comas, se tens medo”, e ferrou uma dentada na sua sanduíche, mastigando-a com a boca aberta junto ao ouvido dela. ”Nham, nham, nham”, continuara, com a boca cheia de pão e os dentes forrados com gema de ovo. ”Faz ronha, Shar, e vais acabar num reformatório. Aí vêm os polícias para nos prender. Aí vêm eles, Shar!” Ela desatara a rir e desembrulhara a sanduíche. Comera metade e guardara o resto.
Sentado numa das mesas da cafetaria de Island Gardens, observava-a de soslaio. Depois de ter retirado o ovo, com todo o cuidado, com a ajuda de um guardanapo de papel, esfarelava agora as duas fatias de pão ao longo do cais, a cerca de trinta metros de distância do sítio onde ele se encontrava sentado. Terminada a operação, atravessou o relvado a correr e tirou os binóculos de dentro do estojo de pele onde estavam guardados.
Há pessoas a mais disse Jimmy. Não vais conseguir ver nada, Shar, a não ser pombos.
Há gaivotas sobre o rio. Muitas gaivotas.
E depois? Uma gaivota é uma gaivota.
Estás enganado. Há gaivotas e gaivotas respondeu ela, misteriosa. É preciso ter paciência.
De dentro da mochila tirou um caderno pequeno e bem encadernado. Abriu-o e, com uma caligrafia bem desenhada, escreveu a data no cimo de uma página em branco. Jimmy desviou os olhos. O pai oferecera-lhe o caderninho no Natal, juntamente com três livros sobre pássaros e um par de binóculos, pequenos mas com um grande alcance. ”Estes são binóculos de profissional”, dissera ele. ”Vamos experimentá-los, Shar? Podemos levá-los para Hampstead, um destes dias, e ver o que é que anda a voar por cima da charneca. O que é que dizes?”, ”Oh, sim, papá”, dissera ela, o rosto cintilante. E, serenamente, ficara à espera, à medida que os dias se transformavam em semanas, jamais duvidando que o pai haveria de cumprir a promessa feita.
Todavia, algo acontecera em Outubro último, e ele tornara-se um homem diferente. Um homem, cujas promessas já nada valiam, que estava sempre nervoso quando estava na companhia deles, que fazia estalar os dedos, caminhava até à janela e se precipitava para o telefone sempre que este tocava. Ora se comportava como alguém capaz de perder as estribeiras à mais pequena contrariedade, ora estava absolutamente eufórico, como se tivesse acabado de marcar cem pontos num jogo de críquete sem sequer se dar conta desse feito. Jimmy necessitara de umas boas semanas e de um trabalho de detective bastante meticuloso para descobrir o segredo da espectacular metamorfose do pai. E quando descobriu o que ”sucedera”, compreendeu que nada na sua vida familiar, já de si pouco consentânea com as normas tradicionais, tornaria a ser como dantes.
Fechou os olhos durante alguns instantes. Concentrou-se nos ruídos que o rodeavam. O piar das gaivotas, o eco de passos na vereda atrás da cafetaria frases soltas trocadas entre os passeantes que entravam no funicular para descer até ao túnel pedonal de Greenwich, o raspar de metal contra metal quando alguém tentava abrir um dos imundos guarda-sóis colocados ao lado das mesas da esplanada.
É que existem todo o tipo de gaivotas continuou a irmã. Há as que têm a cabeça negra, as argênteas, as verde-azuladas. Limpou os óculos à bainha das jardineiras. Agora ando à procura de uma gaivota tridáctila.
Ah, sim? E o que é isso? A mim não me soa nada como um pássaro. Jimmy abriu o pacote de Hob Nob que comprara para Stan e enfiou uma
bolacha na boca. Sobre o relvado, no extremo mais distante de um canteiro circular onde refulgiam os vermelhos, os amarelos e os rosas, Stan jogava críquete, esforçando-se por acumular as funções de lançador e de batedor. Atirava a bola ao ar, batia-lhe vigorosamente, falhando quase sempre, e gritando quando conseguia acertar na bola:
São quatro pontos, quatro pontos. Viste aquilo, não viste?
As gaivotas tridáctilas só são visíveis no mar, praticamente Shar explicou a Jimmy, tornando a colocar os óculos sobre o nariz. É raro aparecerem em terra, excepto quando vêm esgravatar os barcos de pesca. Durante o Verão e estamos quase lá, não é? fazem os ninhos nas falésias. Constróem pequenos ninhos com lama, bocados de fio e ervas e depois prendem-nos às rochas.
Ah, é? Então porque é que andas à procura de uma gaivota dessas aqui?
Uma gaivota tridáctila, é como se chama repetiu ela, paciente. Porque seria mesmo muito invulgar conseguir ver uma aqui. Seria uma proeza.
Ergueu os binóculos e escrutinou o muro que bordejava o cais, onde algumas gaivotas indiferentes à presença dos transeuntes e dos ociosos vespertinos que se distribuíam pelos bancos comiam as migalhas que ela lhes deixara.
As gaivotas tridáctilas têm patas preto-acastanhadas informou ela, bicos amarelos e olhos escuros.
Como todas as gaivotas do mundo, Shar.
E quando voam, inclinam as asas vertiginosamente para virar e roçam as ondas com a ponta das asas. É assim que as reconhecemos.
Não há ondas aqui, Shar, caso ainda não tenhas reparado.
É claro que reparei. Por isso é que não vamos vê-las executar uma viragem. Teremos de nos guiar por outros estímulos visuais.
Jimmy comeu outra Hob Nob. Enfiou a mão no bolso do blusão e tirou cigarros. Sem desviar os olhos dos binóculos, Sharon disse:
Não devias fumar. Sabes que faz mal. Faz-te cancro. E se eu quiser ter um cancro?
E por que razão havias de querer ter um cancro?
Maneira mais rápida de desaparecer deste sítio.
Mas provoca cancro nas outras pessoas também. São os chamados fumadores passivos. Sabias isso? Se continuares a fumar, eu e Stan poderemos vir a morrer pelo facto de respirarmos o fumo dos teus cigarros. Se passarmos muito tempo contigo, claro.
Nesse caso, talvez seja bom não andarem sempre à minha volta. Nenhum de nós ficava a perder grande coisa, não achas?
Ela baixou os binóculos e pousou-os sobre a mesa. As lentes dos óculos ampliavam-lhe os olhos.
O pai não haveria de querer que fumasses disse ela. Ele andava sempre atrás da mãe, a pedir-lhe que deixasse de fumar.
Os dedos de Jimmy fecharam-se em torno do maço de JPS, Ouviu o papel estalar quando o amarfanhou.
Achas que se ela tivesse deixado de fumar... Sharon tossiu delicadamente, como se estivesse a aclarar a garganta. Ele pediu-lhe tantas vezes. Dizia: ”Jean, tens de desistir dos cigarros. Estás a dar cabo de ti. Estás a dar cabo de todos nós.” E eu costumava pensar...
Não sejas parva! interrompeu Jimmy secamente. Um gajo não deixa a mulher só porque ela fuma. Santo Deus, Shar. És mesmo idiota.
Sharon concentrou a sua atenção no caderninho aberto sobre a mesa. Com gestos delicados, folheou algumas páginas da frente para trás, recuando até aos primeiros meses do ano. Percorreu com o dedo os contornos do esboço de um pássaro castanho com suaves manchas cor de laranja. Jimmy viu a palavra noitibó, escrita por baixo da figura.
Foi por nossa causa, então? perguntou ela. Porque não nos queria? Achas que foi por causa disso?
Jimmy teve a impressão que um círculo de gelo se erguia em torno dele. Comeu outra Hob Nob. Tirou de dentro do blusão a fruta que tinha roubado e colocou-a sobre a mesa, em frente deles. Era como se tivesse o estômago cheio de pedras. Mesmo assim, pegou na nectarina e mordeu-a com uma espécie de fúria.
Porquê, então? insistiu Sharon. A mãe fez alguma coisa de mal? Conheceu outro homem? Foi o pai que deixou de gost...
Cala a boca! Jimmy pôs-se de pé. Caminhou em direcção ao cais, declarando por cima do ombro: O que é que isso interessa? Ele morreu. Cala a boca.
O rosto dela enrugou-se, mas ele virou-lhe as costas. Ouviu a voz de Shar, dizendo atrás dele:
Devias pôr os óculos, Jimmy. O pai ia querer que usasses os óculos. Ele desferiu um violento pontapé na relva. Stan correu para junto dele?
Arrastava o bastão de críquete atrás de si como se do leme de um barco se tratasse.
Viste-me bater a bola? perguntou Stan. Viste, Jimmy? Jimmy abanou a cabeça sem dizer palavra. Atirou a nectarina para o canteiro de flores e procurou os cigarros. Só então se apercebeu de que os deixara sobre a mesa. Aproximou-se do muro onde os pombos e as gaivotas se acotovelavam no meio das migalhas que Sharon espalhara. Inclinou-se sobre ele e contemplou o rio.
Queres lançar a bola, Jimmy? perguntou Stan, num tom ansioso. Por favor. Não consigo bater na bola como deve ser, sem ter alguém para lançar.
Está bem respondeu Jimmy. Espera um minuto. Certo?
Certo Stan correu para junto do relvado, gritando: Shar, olha para nós. Jimmy vai lançar a bola.
Que era, evidentemente, o que o pai queria que ele fizesse. Que fosse lançador. Tens um braço excepcional, Jim. Vamos até ao campo. Tu lanças. Eu bato.
Jimmy conteve-se para não desatar a gritar. Agarrou-se ao gradeamento de ferro forjado que se erguia ao longo do muro. Encostou a testa às grades e fechou os olhos. O sofrimento era demasiado. Pensar, falar, tentar compreender...
A mãe fez alguma coisa de mal? Conheceu outro homem? O pai deixou de gostar dela?
Jimmy bateu com a testa na balaustrada de ferro forjado. Agarrou-se às grades com tanta força que elas pareciam derreter-se e transformar-se nos seus próprios ossos. Forçou os olhos a abrirem-se e olhou o rio. A maré estava a mudar. A água estava turva. A corrente rápida. Lembrou-se do clube de remo de Saundersness Road, da rampa de lançamento, onde os seixos irregulares que se acumulavam à beira do Tamisa estavam sempre juncados de garrafas de Evian, de invólucros de chocolates Cadbury, de beatas de cigarro, de preservativos usados e de fruta podre. Aí havia acesso directo ao rio. Não era preciso trepar qualquer muro, nem saltar por cima de nenhuma vedação. Perigo! Águas profundas! Proibido nadar! eram os avisos presos ao candeeiro de rua que se erguia à entrada da rampa. Mas era isso, precisamente, que ele queria: perigo e águas profundas.
Na margem oposta do rio, semicerrando bem os olhos, conseguia distinguir as cúpulas do Royal Naval College. E com um pouco de imaginação era capaz de reconstituir o resto: os frontões, as colunatas, a nobre fachada clássica. A oeste destes edifícios encontrava-se o Cutty Sark, em doca seca. Ainda que os seus mastros não fossem suficientemente grandes para que ele conseguisse distingui-los da margem norte do Tamisa, podia visualizar os três orgulhosos mastros do veleiro e as dez milhas de cordame que constituíam os aprestos da embarcação. Jamais fora ultrapassada por outro navio no comércio marítimo de lã com a Austrália. Inicialmente, o Cutty Sark fora construido para transportar o chá proveniente da China, mas com a abertura Ho canal do Suez o veleiro fora forçado a sofrer algumas adaptações.
Adaptação. Era esse o segredo, a chave da vida. O pai passava o tempo a dizer-lhe isso mesmo.
O pai. O pai. Jimmy teve a sensação de que o seu peito estava a ser dilacerado por fragmentos de vidro. Era como se estivesse a ser consumido pelas chamas. Queria desaparecer, partir para muito longe dali, mais do que isso, queria deixar de existir. Deixar de ser Jimmy, deixar de ser o filho de Ken Fleming, deixar de ser um irmão mais velho, incumbido de reconfortar Sharon e Stan. Queria ser um rochedo no meio de um jardim, uma árvore derrubada num campo, um trilho sinuoso no coração de uma floresta. Uma cadeira, um fogão, uma moldura. Tudo, excepto quem era.
Jimmy?
Jimmy baixou os olhos. Stan estava junto dele, puxando a medo a bainha do seu blusão azul-marinho. Jimmy pestanejou ao contemplar o rosto do irmão e a massa de cabelos que lhe tapava a testa, descaindo sobre os olhos. Stan tinha o nariz a pingar e, à falta de melhor, Jimmy utilizou a bainha da sua T-shirt para lhe limpar o lábio superior.
Estás um nojo disse ele a Stan. Não sentes o nariz a pingar? Não admira que todos os miúdos te tomem por um parvo.
Eu não sou nenhum parvo ripostou ele.
Não me digas!
Uma expressão de tristeza toldou o rosto de Stan. No seu queixo formou-se uma covinha, como acontecia sempre que ele se esforçava para conter as lágrimas.
Ouve disse Jimmy com um suspiro, tens de assoar o nariz. Tens de tomar conta de ti. Não podes estar à espera que alguém faça tudo por ti. Nem sempre vais ter quem tome conta de ti.
As pálpebras de Stan estremeceram.
E a mãe? sussurrou ele. E Shar. E tu?
Bem, no teu lugar não contava muito comigo, entendes? Não contes com a mãe. Não contes com ninguém. Toma conta de ti próprio.
Stan abanou a cabeça e respirou debilmente. Em seguida ergueu a cabeça,
olhou o rio, o nariz mal chegando ao cimo do muro.
Nunca chegámos a ir andar de barco. E agora já não vamos, pois não? A mãe não nos vai levar a andar de barco. Porque se levasse, ia lembrar-se dele. Por isso, já não vamos andar de barco, pois não? Pois não, Jimmy?
Sentindo um ardor intenso nos olhos, Jimmy virou as costas à água. pegou na bola de críquete que o irmão segurava numa das mãos. Observou o relvado de Island Gardens e viu que a relva estava demasiado alta para servir de campo de críquete. E ainda que estivesse bem aparada, o próprio terreno era irregular. Dir-se-ia que uma colónia de toupeiras tinha iniciado a construção de uma rede de estradas debaixo das árvores.
O pai teria arranjado maneira de nos levar ao Lord’s prosseguiu Stan, como se lesse os pensamentos de Jimmy. Lembras-te de quando ele nos levou lá naquela vez? Ele disse aos tipos que estavam lá: ”Este aqui há-de ser um grande lançador da selecção inglesa, um dia, e aquele um grande batedor.” Lembras-te? Depois disse-nos: ”Muito bem, rapazes, mostrem lá o que valem.” Colocou-se em posição e gritou: ”Vamos lá. Toca a lançar essa bola. Queremos ver um lançamento como deve ser, Jim.”
Os dedos de Jimmy crisparam-se em torno da bola de couro vermelho. Parecia que ainda conseguia ouvir a voz do pai, gritando: Vá lá. Agora. É com a cabeça que deves lançar, Jimmy. Vamos, Usa a tua cabeça!
Porquê? Perguntava-se ele, agora. Para quê? Ele não podia substituir o pai. Não podia repetir aquilo que o pai fizera. Nem sequer queria fazê-lo. Estar com ele, no entanto, sentir a pressão do braço dele em redor dos ombros e a face dele roçando-lhe o crânio por breves instantes. Sim, só para sentir tudo isso não se importava de jogar críquete. Fintas, efeitos de bola, lançamentos. Rápidos, médios, lentos. Descontrairia os ombros, retesaria os músculos e praticaria a arte de lançar até à exaustão. Se era isso que tinha de fazer para lhe agradar. Se era isso que tinha de fazer para trazê-lo de volta a casa.
Jimmy? Stan puxou-o pelo cotovelo. Queres lançar para mim, agora?
No outro lado do relvado, Shar continuava em frente à cafetaria. Agora estava de pé, os binóculos junto do rosto, seguindo o voo de uma ave argêntea que revoluteava de leste para oeste, ao longo do rio. Perguntou-se se seria a gaivota tridáctila. Esperava sinceramente que fosse, para alegria da irmã.
O terreno não presta dizia Stan. Mas tu podias atirar a bola, mesmo assim. Eu não me importo. Podes atirá-la, Jimmy?
Tá bem acedeu ele.
Passou ao lado da tabuleta que advertia que eram Proibidos os fogos de Bola, em enormes letras negras pintadas sobre um fundo branco. Conduziu o irmão mais novo até à zona mais plana do relvado, uma tira com cerca de vinte metros à sombra de um conjunto de amoreiras.
Stan seguiu-o, em passo rápido, bastão ao ombro.
Espera só até veres dizia. Estou a começar a ficar bom nisto. Um dia, vou ser tão bom como o pai.
Jimmy engoliu em seco e tentou esquecer-se de que o terreno era demasiado mole, a relva demasiado alta e que era já tarde de mais para que pudessem ser tão bons como o pai.
Coloca-te em posição disse ao irmão. E vamos lá ver o que és capaz de fazer.
CAPÍTULO 10
O agente Winston Nkata entrou preguiçosamente no gabinete de Lynley, casaco descuidadamente atirado sobre o ombro. Com uma expressão pensativa, coçava a cicatriz em forma de segadeira que lhe raiava a pele escura desde o olho direito até à comissura dos lábios. Uma recordação da sua juventude atribulada em Brixton, onde fora o líder do conselho de guerra dos Brixton Warriors. A marca fora-lhe infligida por um membro de um bando rival que, presentemente, cumpria uma pena pesada na penitenciária de Scrubs.
Hoje andei na boa vida.
Nkata pousou delicadamente o casaco nas costas de uma das cadeiras que estavam em frente à secretária de Lynley.
Primeiro, Shepherd’s Market, onde mordi uma data de chavalas bem bonitas. Depois, Berkeley Square, para uma geral do Cherbourg Club. Será que vou ter direito a frequentar sítios ainda mais chiques quando for promovido a sargento?
Não sei respondeu Havers, apalpando o tecido do casaco dele. Em matéria de elegância, era claro que Nkata se inspirava cada vez mais
no inspector para quem ambos trabalhavam.
Quanto a mim, passei a tarde na Isle of Dogs.
Sargento dos meus sonhos, ainda não conheceu as pessoas certas.
É óbvio que não.
Lynley falava ao telefone com o superintendente que, na sua casa no Norte de Londres, examinava a escala de serviço do pessoal. Lynley comunicava ao seu superior hierárquico quais eram os agentes que teriam de interromper as respectivas licenças de fim-de-semana, a fim de integrarem a equipa que estava a investigar o homicídio.
E qual é a sua estratégia em relação à comunicação social, Tommy? perguntou o superintendente Webberly.
Estou a fazer o possível para os manobrar da melhor forma. Eles estão a seguir o caso muito de perto.
Seja prudente. Esses velhacos são capazes de tudo em troca de um escândalo bem suculento. Tome cuidado e não lhes atire nenhum osso para roer.
Entendido.
Lynley desligou, afastou ligeiramente a cadeira da secretária.
Muito bem, onde é que nós íamos? perguntou a Nkata e a Haver
Patten está inocente como um bebé informou Nkata. Esteve Cherbourg Club na quarta-feira à noite, onde passou a noite a jogar carta numa sala privada, na companhia de um grupo de tubarões. Só saiu de lá com os primeiros raios de sol.
Não há dúvidas de que isso aconteceu na quarta-feira à noite?
Os membros do clube assinam um livro de registo, que cobre períodos de seis meses. O porteiro só teve de folhear as páginas da semana anterior até dar com o nome dele: quarta-feira à noite, acompanhado por uma convidada. E mesmo que este registo não existisse, acho que se lembrariam de Patten com clareza.
Porquê?
Segundo um dos tipos que costumam dar cartas, com quem conversei, Patten deixa entre mil a duas mil libras nas mesas de jogo, quase todos os meses. Todos o conhecem. Estão a ver o género: ”Sente-se, por favor, Mr. Patten, de que forma é que podemos satisfazê-lo enquanto lhe sugamos todo o sangue que lhe corre nas veias?”
Ele disse que estava a ganhar na quarta-feira à noite.
Precisamente, é o tipo com quem falei confirmou. Regra geral, no entanto, perde mais do que ganha. Além disso, bebe. Tem sempre uma garrafa com ele. Habitualmente, o consumo de álcool nas salas de jogo é interdito, mas o dador de cartas recebeu ordens para fechar os olhos sempre que Patten bebe um gole à socapa.
Quem eram os outros jogadores dessa noite? perguntou Havers. Nkata consultou o caderninho onde costumava registar as suas notas.
Era cor de vinho, minúsculo, e ele costumava servir-se de um lápis igualmente pequeno para rabiscar as suas notas numa caligrafia delicada e microscópica que contrastava bizarramente com a sua estatura imponente. Recitou os nomes inscritos no caderninho. Dois membros da Câmara dos Lordes, um industrial italiano, um famoso conselheiro da Rainha, um homem de negócios, cujo leque de actividades ia desde o cinema a uma cadeia de restaurantes de fast food, e um génio da informática, natural da Califórnia, que estando em Londres de passagem não hesitara em despender as duzentas e cinquenta libras que lhe permitiam ser membro temporário do clube e, assim, poder vangloriar-se de ter sido aceite num círculo privado londrino.
Patten nem sequer parou de jogar à noite prosseguiu Nkata. Desceu uma vez, por volta da uma da manhã, para acompanhar a sua dama até ao táxi. Mas limitou-se a dar-lhe uma palmadinha no traseiro e a confiá-la aos cuidados do porteiro. Depois disso voltou a sentar-se à mesa de jogo e não tornou a afastar-se dela.
- E quanto a Shepherd’s Market? - inquiriu Lynley. - Ele sempre foi até lá depois do jogo? -
Outrora um bairro particularmente vivo, Shepherd’s Market ficava a dois passos de Berkeley Square e do Cherbourg Club. Ainda que nos últimos anos tivesse sofrido uma verdadeira renovação, era ainda possível deambular ao longo de labirínticas e prazenteiras ruas pedonais, ladeadas por bares, floristas, farmácias e tropeçar numa ou noutra solitária, pronta a oferecer os seus préstimos em troca de dinheiro.
- Talvez - replicou Nkata. - Segundo me disse o porteiro, no entanto, Patten trouxe o Jaguar nessa noite e pediu para que o estacionassem à porta do clube pouco antes de sair. Se fizesse tenções de ir a Shepherd’s Market teria ido a pé. É impossível arranjar um lugar para estacionar na zona. É claro que ele poderia muito bem ter percorrido as ruas de carro, ter engatado uma miúda e depois tê-la levado para casa dele. Mas descobri outro pormenor relacionado com Shepherd’s Market.
Saboreando o momento, Nkata recostou-se na cadeira e, uma vez mais, acariciou a cicatriz que lhe sulcava o rosto.
- Abençoados sejam os calços - disse com fervor. - E os aplicadores de calços e as vítimas dos calços. Sobretudo estes, neste caso.
- O que é que isso tem a ver... - começou Havers.
- O carro de Fleming - disse Lynley. - Encontrou o Lotus. Nkata sorriu.
- Você é rápido, homem. Há que reconhecê-lo. Tenho de me convencer que não foi só por causa do seu palminho de cara que chegou a inspector tão depressa.
- Onde está?
- Onde não devia estar, segundo os tipos do reboque que tiveram a esperteza de o imobilizar. Estacionado em local proibido. Em Curzon Street. Paradinho ali, como se estivesse a implorar para ser rebocado.
- Merda - rugiu Havers. - No meio de Mayfair. Ela pode estar em qualquer lado.
- Ninguém telefonou a reclamar o carro? Ninguém pagou a multa? Nkata fez que não com a cabeça.
- O carro nem sequer estava trancado. E a chave foi abandonada no assento do condutor. Um incentivo ao roubo, por assim dizer.
Pareceu descobrir um grão de poeira na gravata, pois franziu o sobrolho e limpou a seda com um toque de dedos.
- Se querem saber a minha opinião, há uma chavala à solta que deve estar furibunda. E aposto que se chama Gabriella Patten.
- Talvez estivesse apenas com imensa pressa - sugeriu Havers.
- Não teria abandonado a chave daquela maneira. Isso não é pressa. É premeditação. Isso chama-se «Agora, cretinóide, vais ver como elas te mordem».
Não há rasto dela em lado nenhum? perguntou Lynley.
Toquei e bati a todas as portas desde Hill Street a Piccadilly. Se está algures na zona, está escondida e ninguém se descoseu. Podíamos colocar o carro sob vigilância, se quiser.
Não disse Lynley. Ela não tem quaisquer intenções de ir buscá-lo por agora. Foi por isso que abandonou a chave. Para que o carro fosse rebocado.
Muito bem volveu Nkata, escrevinhando no seu caderninho numa caligrafia minúscula.
Mayfair.
Havers remexeu dentro dos bolsos das calças e tirou um pacote de bolachas, que abriu com os dentes. Com um pequeno impulso fez deslizar uma para a palma da mão e estendeu o pacote aos companheiros. Mastigou a bolacha com uma expressão pensativa.
Ela pode estar em qualquer lado. Num hotel. Num apartamento. Em casa de alguém. Neste momento, já sabe que ele morreu. Porque é que não se mostra?
Na minha opinião, ela deve estar contente por ele estar fora da jogada disse Nkata. Ele teve o destino que ela própria lhe queria dar.
Apagá-lo? Mas porquê? Ele queria casar com ela e ela queria casar com ele.
Com certeza que já vos aconteceu estarem furibundos o suficiente para desejarem matar alguém que realmente não querem que morra alegou Nkata. Ficamos de cabeça perdida e dizemos: ”Eu mato-te, meu. Só queria que estivesses morto.” E naquele momento o nosso desejo é sincero. Não estamos é à espera que apareça uma fada-madrinha que transforme esse desejo em realidade.
Havers puxava o lóbulo da orelha, como se estivesse a reflectir sobre as palavras de Nkata.
É provável que exista um grupo de boas e más fadas-madrinhas na Isle of Dogs.
E contou-lhes os elementos que conseguira reunir, sublinhando a antipatia de Derrick Cooper pelo cunhado, o alibi pouco convincente de Jean Cooper para a noite do crime ”Deitou-se às nove e meia e adormeceu. Não há ninguém que confirme as palavras dela, senhor” e o desaparecimento de Jimmy após o cancelamento da viagem de barco.
A mãe afirma que ele estava em casa na manhã seguinte, bem aconchegado na cama. Mas a minha intuição diz-me que ele nunca voltou para casa e falei com três tipos da esquadra de Manchester Road, que me disseram que ele é um visitante assíduo do reformatório desde os onze anos.
Jimmy era um desordeiro, dissera-lhe a polícia. Graffiti no clube de remo. Destruição das janelas do velho edifício da Brewis Transport, a escassos quatrocentos metros da esquadra. Furto de tabaco e guloseimas perto de Canary Wharf. Intimidação de todos aqueles que considerava como os queridos do professor. Invasão de propriedade privada, com entrada no novo condomínio yuppie junto ao rio. Além de tudo isto, quando frequentava a quarta classe, declarara-se culpado de ter aberto um buraco na sala de aula e de faltar às aulas duas a três vezes por semana.
- Proezas pouco dignas de nota, de facto - comentou Lynley em tom seco.
- Exactamente. Um delinquente em formação, que ainda poderá ser recuperado se tiver alguém que olhe por ele. Mas fiquei a saber outro dado interessante a respeito dele.
Mordeu outra bolacha enquanto folheava o bloco-notas. Era maior do que o caderninho de Nkata, protegido por uma capa cartonada de cor azul e uma lombada em espiral. A maior parte das páginas estava dobrada nos cantos. Outras manchadas de mostarda.
- Descobri que era pirómano - disse sem parar de mastigar. - Tinha... merda... onde é que eu anotei isso... ah, aqui está. O nosso Jimmy tinha onze anos na época em que pegou fogo ao caixote do lixo da escola que frequentava, em Cubbit Town. Dentro da sala de aula, aliás, à hora de almoço. Queimava manuais de ciências naturais quando foi surpreendido.
- Algum ressentimento contra Darwin, é o mais certo - murmurou Nkata.
Havers riu-se.
- O director da escola chamou a polícia. Um magistrado envolveu-se no caso. Depois disso, Jimmy foi obrigado a encontrar-se regularmente com um assistente social durante... vejamos... dez meses.
- Ele continuou a brincar com o fogo?
- Não, parece que tudo não passou de um caso isolado.
- Possivelmente associado à separação dos pais - observou Lynley.
- Da mesma maneira que outro incêndio poderia estar relacionado com o divórcio - acrescentou Havers.
- Ele sabia que o divórcio estava iminente?
- Jean Cooper diz que não, mas essa é a reacção mais esperada, não é? Afinal de contas, o miúdo tinha obviamente meios e oportunidade. E ela sabe-o. Não estará, por isso, muito disposta a ajudar-nos a descobrir o móbil.
- E qual é o móbil? - perguntou Nkata. - Divorcias-te da minha mãe e eu pego fogo à tua casa? Será que ele sabia que o pai estava no Kent?
Havers não teve dificuldade em inverter a sua argumentação.
- Pode até nem ter nada a ver com o divórcio. Ele podia muito simplesmente estar furioso pelo facto de o pai ter cancelado a viagem. Falou com Fleming ao telefone, mas não sabemos o que disseram um ao outro. Suponhamos que ele tivesse ficado a saber que Fleming ia para o Kent? Jimmy poderia ter arranjado maneira de se deslocar até lá, ter visto o carro do pai estacionado na alameda, ouvido a discussão que aquele tipo como é que ele se chama, inspector, o agricultor que passeava diante da casa?
Freestone.
Isso mesmo. Podia ter ouvido a mesma discussão que Freestone ouviu, ter visto Gabriella Patten abandonar a casa. Podia ter entrado em casa e ter-se vingado, como teria feito um garoto de onze anos.
Conversou com o rapaz? quis saber Lynley.
Ele não estava em casa. Jean não me quis dizer onde tinha ido. Dei uma volta pelas imediações da A1206, mas ainda lá estaria se tivesse decidido passar cada uma das ruas a pente fino.
Colocou outra bolacha na boca e passou a mão pelos cabelos, deixando-os em grande desalinho.
Precisamos de reforços para este caso, inspector. Eu, pelo menos, gostaria de pôr alguém em Cardale Street que nos prevenisse logo que o garoto aparecesse. E ele vai acabar por aparecer. Neste momento está com os irmãos, segundo disse a mãe. Não podem passar a noite inteira fora de casa.
Já fiz alguns telefonemas. Vamos ter ajuda.
Lynley recostou-se na cadeira e foi invadido por um desejo lancinante de fumar um cigarro. Queria ter algo com que entreter as mãos, os lábios, os pulmões... Afastou aquele pensamento escrevendo Kensington, Isle of Dogs e Little Venice ao lado da lista dos agentes que, naquele preciso momento, estariam a ser informados por Dorothea Harriman de que tinham a felicidade de estar de serviço.
Havers lançou uma olhadela rápida às notas dele.
E a filha? perguntou.
Deficiente, respondeu ele. Olivia Whitelaw era incapaz de se deslocar sem a ajuda de terceiros. E descreveu-lhes as contracções musculares que presenciara e as providências tomadas por Faraday para lhe aliviar as dores.
Alguma espécie de paralisia? inquiriu Havers. Aparentemente, tratava-se de algo que lhe afectava apenas as pernas.
Uma doença, talvez, mais do que uma afecção congénita. Ela não entrara em especificações e ele não fizera perguntas. O mal que a afectava, fosse ele qual fosse naquele momento, pelo menos, não parecera ter qualquer ligação com a morte de Kenneth Fleming.
Naquele momento? perguntou Nkata.
Descobriu alguma coisa, inspector disse Havers.
Lynley examinava os nomes dos agentes, tentando decidir como haveria de distribuí-los e quantos haveria de colocar em cada posto.
Qualquer coisa, sim disse. Pode não ser nada, mas seja como for tenho vontade de verificar. Olivia Whitelaw afirma que passou a noite de quarta-feira na lancha. Faraday tinha saído. Ora, se Olivia tivesse saído de Little Venice teria certamente dado nas vistas. Alguém teria tido de carregá-la. Ou então teria sido obrigada a servir-se do andarilho. Em qualquer dos casos, a deslocação teria sido morosa. Assim sendo, se por acaso saiu na quarta-feira à noite, depois de Faraday ter ido embora, alguém pode ter dado conta do facto.
Mas ela não podia ter morto Fleming, pois não? protestou Havers. Como poderia ela ter-se deslocado até à casa de campo do Kent, se está tão mal como diz?
Não podia tê-lo feito sozinha.
Fez um círculo à volta de Little Venice e desenhou uma seta apontando na direcção das duas palavras.
Ela e Faraday têm uma série de jornais empilhados por baixo das tigelas dos cães, no tombadilho da lancha. Dei-lhes uma olhadela rápida antes de sair. Os dois compraram todos os jornais de hoje, incluindo os tablóides.
E então? insistiu Havers, fazendo de advogada do diabo. Ela está praticamente paralítica. Há-de gostar de ler e, por isso, é natural que peça ao namorado que lhe compre jornais.
Todos os jornais estavam abertos nas páginas que relatavam a mesma notícia.
A notícia da morte de Fleming interveio Nkata.
Precisamente. E essa coincidência fez-me pensar naquilo de que ela estaria à procura.
Mas ela não conhecia Fleming pessoalmente, pois não? perguntou Havers.
Ela afirma que não. Mas se eu tivesse alma de apostador, não hesitaria em concluir que ela sabe alguma coisa.
Ou quer saber alguma coisa acrescentou Nkata.
Sim, isso também.
Havia ainda uma peça a encaixar no quebra-cabeças que era aquela investigação, e o facto de serem quase oito horas de uma noite de sábado não era motivo suficiente para os libertar da obrigação de a examinarem. A diligência, no entanto, requeria apenas a colaboração de dois elementos. Assim, depois de o agente Nkata ter enfiado o casaco, ter composto cuidadosamente as respectivas lapelas e ter saído ao encontro dos prazeres nocturnos que fora obrigado a manter em suspenso até àquela hora, Lynley virou-se para a sargento Havers:
E não é tudo.
Ela preparava-se para atirar o pacote de bolachas vazio na direcção do caixote do lixo. Baixou o braço com um suspiro.
Lá se vai o jantar, suponho.
Em Itália, raramente se janta antes das dez da noite, sargento.
Meu Deus! Estou a viver a dolce vita e nem sequer me tinha apercebido disso. Tenho ao menos tempo para ir buscar uma sanduíche?
Desde que seja rápida.
Saiu na direcção do refeitório. Lynley pegou no telefone e marcou o número de Helen. Ao fim de oito toques duplos deu consigo a ouvir, pela segunda vez naquele dia, o atendedor de chamadas dela. Não podia atender naquele momento, agradecia que deixasse mensagem...
Não queria deixar nenhuma mensagem. O que queria era falar com ela. Aguardou, impaciente, o famigerado sinal sonoro.
Apesar dos dentes cerrados, conseguiu explicar num tom bem humorado:
Ainda estou a trabalhar, Helen. Estás em casa?
Esperou. Sem dúvida estaria a filtrar as chamadas, à espera que ele lhe ligasse. Devia estar na sala. Precisaria de alguns instantes para alcançar o atendedor. Via-a pôr-se de pé, deslizar através da cozinha, acender a luz, esticar o braço para agarrar no auscultador, pronta a murmurar: ”Tommy, querido.” Esperou. Nada.
São quase oito horas continuou, enquanto perguntava a si próprio onde ela estaria e travava uma batalha inglória contra a irritação. Por que razão é que não estava em casa, tranquilamente sentada, à espera que ele telefonasse e lhe comunicasse os seus planos para aquela noite? Pensei que iria conseguir despachar-me mais cedo, mas infelizmente não é isso que vai acontecer. Tenho ainda uma visita a fazer e não sei a que horas estarei disponível. Nove e meia? Não tenho a certeza. Prefiro que não fiques presa em casa, à minha espera. Algo que, obviamente, não fizeste.
Deixara escapar o comentário inadvertidamente e fez uma careta. Não devia demonstrar-lhe que estava aborrecido. Apressou-se a acrescentar:
Lamento muito que este fim-de-semana tenha ficado estragado, Helen. Telefono-te logo que saiba...
A voz andróide do atendedor de chamadas agradeceu-lhe, anunciou-lhe as horas que ele já sabia e cortou a ligação.
Maldição desabafou, colocando o telefone no descanso com gestos vivos.
Onde poderia ela estar num sábado, às oito horas da noite, quando deveria estar com ele? Quando tinham planeado passar o fim-de-semana juntos? Considerou as diferentes possibilidades que se lhe apresentavam. Havia os pais dela em Surrey. A irmã em Cambridge. Deborah e Simon St. James em Chelsea. Uma antiga colega de escola que acabara de comprar uma casa num bairro em vias de se tornar muito elegante, em Fulham. E depois, claro, os antigos namorados. Todavia, preferia não pensar que um deles teria ressurgido do passado justamente no fim-de-semana em que o seu futuro com Helen deveria ficar selado.
Merda protestou mais uma vez.
Justamente aquilo que eu penso disse Havers, entrando no gabinete dele com uma sanduíche na mão. Mais uma noite de sábado em que poderia ter enfiado qualquer coisa de licra com lantejoulas e ter ido dançar twist como uma louca. A propósito, haverá alguém que dance twist, hoje em dia? Será que alguém, alguma vez, dançou o twist? E aqui estou eu, a trabalhar que nem uma louca, pronta a ferrar o dente numa coisa que o refeitório chama um croque-monsieur.
Lynley examinou a sanduíche que ela lhe estendia.
Parece presunto grelhado.
Mas se o baptizarem com um nome francês, sempre poderão cobrar mais, meu caro. Espere e verá. Na próxima semana, vão servir-nos pommes frites, uma delícia que nós pagaremos principescamente.
Começou a mastigar como um hamster, bochechas inchadas, enquanto Lynley colocava os óculos no bolso do casaco e pegava na chave do carro.
Vamos, então? disse ela. Qual é o destino?
Wapping enquanto indicava o caminho, foi dizendo: Guy Mollison leu um comunicado à imprensa. Ouvi-o no noticiário do rádio, esta tarde. ”É uma tragédia para a Inglaterra, um batedor genial arrancado à vida na flor da idade, um duro e violento revés para as nossas esperanças de derrotar os Australianos e reaver as cinzas; esta é uma preocupação real para os seleccionadores.”
Havers meteu o último triângulo da primeira metade da sanduíche na boca e comentou:
Um aspecto interessante, esse, inspector. Ainda não me tinha lembrado dele. Fleming era praticamente dado como certo na selecção. Agora vai ser preciso encontrar um substituto, o que dá ao felizardo que for escolhido a grande oportunidade da sua carreira.
Subiram a rampa que conduzia à saída do parque de estacionamento subterrâneo. Havers lançou um olhar de cobiça ao restaurante italiano situado a norte da Yard, enquanto Lynley se concentrava em virar para a Broadway e passava pela praça ajardinada que ficava ao fundo da rua. Os candeeiros iluminaram-se subitamente, fazendo incidir sobre o Suffragette Scroll a sua claridade coada pelas copas altas das árvores.
Seguiram na direcção de Parliament Square. Àquela hora tardia, as filas de camionetas de turismo já tinham desaparecido, pelo que a estátua de Winston Churchill podia contemplar tranquilamente as águas do Tamisa.
Viraram para norte, mesmo antes de Westminster Bridge, curvando depois para os cais de Victoria Embankment e seguindo paralelamente ao rio. Rolavam agora em sentido contrário ao fluxo de trânsito, e depois de terem passado a estrutura em forma de passadeira de Hungerford Footbridge, encontraram-se subitamente na via que conduzia à City, deserta aos fins-de-semana. Tinham os jardins de um lado e o rio do outro, e tempo suficiente para avaliarem o efeito desastroso que a arquitectura do pós-guerra da margem sul do Tamisa tivera sobre os contornos da cidade.
O que é que sabemos sobre Mollison? perguntou Havers. Terminara a outra metade da sanduíche e tentava agora desenterrar qualquer coisa no interior do bolso das calças. Um pacote de pastilhas de mentol. Com o polegar, fez saltar uma e depois passou o pacote a Lynley, perguntando num tom de voz falsamente jovial, característico de uma assistente de bordo com horas de voo a mais:
Posso oferecer-lhe um bombom para complementar a sua refeição, senhor?
Obrigado respondeu Lynley, enfiando uma pastilha na boca. Sabia a pó. Como se ela tivesse apanhado do chão um pacote parcialmente fechado, decidindo que não seria capaz de o desperdiçar.
Sei que joga na equipa do Essex disse ela, quando não joga na selecção. Mas é tudo.
Nos últimos dez anos tem jogado na selecção inglesa explicou Lynley.
Comunicou-lhe em seguida os factos adicionais sobre Mollison que conseguira apurar depois de uma conversa telefónica com Simon St. James, seu amigo de longa data, especialista em criminologia e um grande adepto do críquete. A conversa tivera lugar à hora do chá, pontuada por interrupções e exclamações diversas, à medida que St. James adicionava o quarto e o quinto cubo de açúcar à sua chávena de chá, e, ao fundo, soava a voz da mulher que o repreendia.
Ele tem trinta e sete anos...
A sua carreira de desportista tem os dias contados, então.
... e é casado com uma advogada chamada Allison Hepple. O pai foi, em tempos, um dos patrocinadores da equipa.
Estes tipos, os patrocinadores, estão em toda a parte.
Mollison tem um diploma de Cambridge estudou no Pembroke College. Ciências naturais. Uma área em que não se notabilizou particularmente. Jogava críquete em Harrow antes de fazer parte da equipa universitária de Cambridge. Continuou a jogar depois de ter concluído os estudos.
Se entendi bem, a universidade não passou de um pretexto para jogar críquete.
É possível.
É então legítimo pensar que preza muito os interesses da equipa. Sejam eles quais forem.
Sejam eles quais forem.
Guy Mollison vivia numa zona de Wapping que tinha sofrido profundas remodelações ao nível urbanístico. Nesta zona do East End londrino, enormes entrepostos vitorianos esmagavam com a sua imponência um conjunto de estreitas ruas calcetadas que bordejavam as margens do rio. Alguns destes edifícios continuavam operacionais. Todavia, bastava uma olhadela de soslaio para a inscrição Fruit of the Loom Sportswear, pintada em cores berrantes nas paredes laterais de um camião para compreender em parte a história da metamorfose de Wapping. As docas buliçosas onde grassava a criminalidade e os estivadores se acotovelavam sobre as passadeiras para descarregar todo o tipo de mercadoria, desde pós de sapato a carapaças de tartaruga tinham desaparecido. Nos sítios onde, outrora, os cais e as ruas transbordavam de fardos, barris e sacas, imperava o rejuvenescimento. Os mirones do século xvI, que aqui vinham deleitar-se com o espectáculo de piratas condenados a serem acorrentados na maré baixa e a afogar-se com a subida das águas perto do pub Town of Ramsgate, tinham cedido lugar aos jovens quadros do século xx. Estes viviam nos armazéns e nos cais que, classificados como monumentos históricos, não poderiam demolidos nem substituídos pelos monstros monolíticos que, do Royal Hall de Southwark até à London Bridge, desfiguravam a margem sul do Tamisa.
A casa de Guy Mollison ficava em China Silk Wharf, um edifício de seis andares em tijolo cor de canela, que se erguia na esquina de Garnet Street com Wapping Wall. O edifício tinha por Cérbero um porteiro que, quando Lynley e Havers chegaram, montava guarda de uma forma bastante desenvolta, refastelado diante de um televisor miniatura, dentro de um gabinete minúsculo que dava acesso ao vestíbulo.
Mollison? disse ele, quando Lynley tocou à campainha, lhe mostrou a sua identificação e indicou o nome da pessoa que vinha visitar. Esperem aqui, se faz favor.
Apontou para um canto do vestíbulo e, com o cartão de Lynley na mão, retirou-se para o seu gabinete onde pegou no telefone e marcou alguns números. Enquanto isso, no televisor, os espectadores de um concurso rugiam de contentamento ao verem os participantes escorregarem dentro de barris cheios de gelatina vermelha.
Regressou com o cartão numa mão e, na outra, o que parecia ser a sua refeição nocturna, uma garfada de enguia gelatinosa.
Quatrocentos e dezassete, quarto andar. À esquerda quando se sai do elevador. E não se esqueçam de passar por aqui à saída.
Indicando o elevador com um movimento de cabeça, enfiou a garfada na boca. Lynley e Havers em breve verificaram que as indicações fornecidas pelo porteiro relativamente à localização do apartamento de Mollison tinham sido Desnecessárias. Com efeito, quando as portas do elevador se abriram no 4.° andar do edifício, o capitão da selecção inglesa esperava-os no corredor. Encosado à parede mesmo em frente ao elevador, as mãos enfiadas nos bolsos das calças de linho convenientemente amarrotadas e os pés cruzados à altura dos tornozelos.
Lynley reconheceu Mollíson pelo nariz. Tinha-o partido por duas vezes no campo de críquete e nunca conseguira corrigi-lo por completo. O seu rosto tinha a coloração característica de um homem que passa demasiado tempo ao sol e tinha a fronte cheia de sardas. Por baixo do olho esquerdo um hematoma do tamanho de uma bola de críquete ou de um murro começava a mudar do violeta para o amarelado.
Mollison estendeu a mão:
Inspector Lynley? A polícia de Maidstone informou-me de que tinham pedido ajuda à Scotland Yard. Suponho que a Scotland Yard sejam os senhores, não é verdade?
Lynley apertou a mão que ele lhe estendia. Mollison tinha um aperto de mão bastante firme.
Sim, somos nós esclareceu Lynley e, em seguida, apresentou a sargento Havers. Esteve em contacto com a polícia de Maidstone?
Mollison cumprimentou a sargento Havers com um movimento de cabeça e retorquiu:
Desde ontem à noite que tento obter informações concretas. Mas quando se trata de iludir questões, os vossos colegas são uns verdadeiros especialistas.
Que género de informações?
Gostaria de saber o que se passou exactamente. Ken não fumava. Que história é esta, então, de um incêndio, de uma poltrona e de um cigarro? E como é que um incêndio que tem origem numa poltrona pode degenerar em ”presumível homicídio”, doze horas mais tarde?
Mollison voltou a encostar-se à parede. Esta era em tijolo pintado de branco, e ele recostou-se nela, a luz do tecto produzindo reflexos dourados nos seus cabelos.
Para ser sincero, acho que a minha reacção um pouco viva se deve ao facto de ainda não conseguir acreditar que ele está morto. Ainda na quarta-feira à noite falei com ele. Conversámos um bocado. Desligámos. Estava tudo a correr às mil maravilhas. E depois...
É justamente sobre esse telefonema que gostaríamos de conversar consigo.
Sabem que falámos ao telefone?
Os traços de Mollison tornaram-se mais vivos. Depois pareceu descontrair-se um pouco.
Oh, Miriam, claro. Foi ela quem atendeu a chamada. É verdade, já me tinha esquecido.
Tornou a enfiar as mãos nos bolsos e deixou descair ligeiramente o corpo encostado à parede, como se aí pretendesse permanecer durante um bocado.
O que é que querem saber?
O seu olhar oscilou entre um e outro inocentemente, como se o facto de estarem a conversar no corredor não lhe parecesse estranho. Podemos entrar? perguntou Lynley.
Isso é um pouco delicado disse Mollison. Eu preferiria que discutíssemos esse assunto aqui, se não se importam.
Porquê?
Inclinou a cabeça na direcção do apartamento, explicando em voz baixa: É por causa de Allison, a minha mulher. Não quero perturbá-la. Ela está grávida de oito meses e não está realmente em grande forma. As coisas estão um pouco complicadas.
Ela conhecia Kenneth Fleming?
Ken? Não. De vista, sim. Trocavam algumas palavras casuais, quando se encontravam num cocktail, mas nada mais.
Deduzo, então, que não está em choque por causa da morte de Fleming.
Não, não. Nada disso.
Mollison sorriu e bateu levemente com a cabeça na parede como se estivesse a fazer troça dele mesmo.
Eu sou uma pessoa naturalmente inquieta, inspector. É o nosso primeiro filho. Um rapaz. Não gostaria que houvesse complicações de espécie alguma.
Não se preocupe disse Lynley, afavelmente. Nós vamos ter isso em conta. Aliás, a menos que a sua mulher tenha alguma informação sobre a morte de Fleming que queira partilhar connosco, ela nem precisa assistir à nossa conversa.
Mollison abriu a boca como se fizesse tenções de acrescentar alguma coisa.
Muito bem, então. Sigam-me. Mas não se esqueçam do estado dela, está bem?
Conduziu-os ao longo do corredor até à terceira porta, que abriu, revelando uma divisão imensa com janelas encaixilhadas em carvalho e vista Para o Tamisa.
Allie? chamou, enquanto atravessava o chão forrado a madeira de raia e se dirigia para um canto da sala, decorado com sofás, que ocupava três dos lados de um quadrilátero. O quarto estava guarnecido de portas envidraçadas que, abertas naquele momento, permitiam contemplar um dos passadiços de carga do cais, onde em tempos a mercadoria era içada até ao entreposto.
Uma brisa forte levantava as páginas de um jornal, abandonado sobre Uma mesa baixa, num dos cantos da sala. Mollison fechou as portas, dobrou o jornal convidou-os a sentar e voltou a chamar a mulher. Uma voz feminina respondeu:
Estou no quarto. Eles já foram embora?
Ainda não respondeu ele. Fecha a porta para que nós não te incomodemos, querida.
Em resposta a este pedido ouviram um ruído de passos. No entanto, em vez de se fechar no quarto, Allison entrou na sala, uma pilha de papéis numa das mãos e a outra massajando os rins. A sua gravidez estava, de facto, bem avançada, mas ela não parecia estar em tão mau estado como o marido lhes quisera fazer crer. Antes pelo contrário, parecia ter sido surpreendida em plena sessão de trabalho, óculos encavalitados na cabeça e uma esferográfica presa à gola do vestido.
Termina o que estás a fazer disse o marido. Nós não precisamos de ti aqui. E depois, lançando um olhar ansioso a Lynley: Pois não, inspector?
Antes que Lynley tivesse tempo de responder, Allison contrapôs:
Que disparate, Guy. Não preciso que me tratem como um bebé. Francamente, gostaria que te deixasses disso.
Pousou os papéis sobre a mesa de jantar em vidro, colocada entre a sala de estar e a cozinha. Em seguida retirou os óculos da cabeça e desprendeu a esferográfica.
Posso oferecer-vos alguma coisa? perguntou a Lynley e a Havers. Um café, talvez?
Allie. Santo Deus. Sabes muito bem que não podes...
Não tenho intenção de beber nada cortou ela, com um suspiro. Mollison fez uma careta.
Peço desculpa, querida. Hei-de suspirar de alívio quando tudo tiver terminado.
Não serás o único, acredita.
A mulher repetiu a oferta a Lynley e a Havers.
Eu tomaria de bom grado um copo de água pediu Havers.
Para mim, nada, obrigado disse Lynley.
Guy?
Mollison pediu uma cerveja e observou a mulher atentamente enquanto ela se dirigia em passo lento até à cozinha, onde a iluminação indirecta fazia reluzir as bancadas em granito e as portas dos armários cromados. Voltou com uma lata de Heineken e um copo de água, dentro do qual flutuavam duas pedras de gelo. Colocou ambos sobre a mesa baixa e instalou-se numa cadeira. Lynley e Havers sentaram-se no sofá.
Mollison, ignorando a cerveja que pedira, permaneceu de pé. Dirigiu-se às portas que fechara antes e abriu uma delas.
Estás corada, Allie. Está um pouco abafado aqui, não acham?
Está bem, está tudo muito bem. Bebe a tua cerveja.
Claro.
Em vez de se juntar a eles, porém, baixou-se junto da porta aberta, onde via um cesto de verga em frente a um par de palmeiras envasadas. Meteu a mão dentro do cesto e tirou três bolas de críquete.
Lembrando-se do capitão Queeg, Lynley ficou à espera que ele as fizesse rolar na palma da mão, apesar do tamanho.
Quem é que vai substituir Kenneth Fleming na equipa de críquete? perguntou.
Mollison pestanejou.
A sua pergunta pressupõe que Ken teria sido novamente escolhido para jogar na selecção inglesa.
E teria?
O que é que a sua convocação tem que ver com esta história?
Ignoro-o, por enquanto.
Lynley recordou alguns pormenores fornecidos por St. James.
Se bem me lembro, Fleming substituiu um certo Ryecroft? Antes do Inverno, não foi? Há dois anos atrás?
Ryecroft lesionou-se no cotovelo.
E Fleming ocupou o lugar dele.
Se quiser colocar a questão nesses termos.
Ryecroft não voltou a jogar na selecção.
Nunca recuperou a forma. Deixou de jogar.
Você e Ryecroft estiveram em Harrow e em Cambridge juntos, não foi?
O que é que a minha amizade com Brent Ryecroft tem que ver com Fleming? Conheço-o desde os treze anos de idade. Andámos na escola juntos. Jogámos críquete juntos. Fomos padrinhos de casamento um do outro. Somos amigos.
Você falou em defesa dele, creio eu.
Nos tempos em que ele jogava, sim. Mas agora já não.
Mollison endireitou-se, duas bolas numa das mãos, uma na outra. Executou alguns malabarismos durante uns bons trinta segundos antes de continuar, fitando-os por entre as bolas.
Porquê? Pensam que me desembaracei de Fleming para permitir que Brent Ryecroft recuperasse o seu lugar na equipa? Essa é uma suposição sem qualquer consistência. Neste momento há uma centena de jogadores melhores do que Brent. Ele sabe-o. Eu sei-o. Os seleccionadores sabem-no.
Sabia que Fleming ia para o Kent na quarta-feira à noite? Abanou a cabeça negativamente, concentrando-se nas bolas que revoluteavam no ar.
Tanto quanto eu sabia, ele ia de férias com o filho.
Não mencionou que tinha cancelado a viagem? Ou adiado?
1 Herói de Furacão sobre o Carne, interpretado por Humphrey Bogart N. da T ]
Não. Nem sequer tocou nesse assunto.
Mollison precipitou-se para a frente quando uma das bolas escapou ao seu controlo. Esta aterrou ruidosamente no chão e saltou para cima de uma carpete cor de espuma que delimitava a zona da sala onde se encontravam. A bola rolou até junto dos pés da sargento Havers. Ela levantou-a do chão e deliberadamente, colocou-a no sofá ao seu lado.
A mulher de Mollison compreendeu a mensagem.
Senta-te, Guy.
Não posso replicou ele com um sorriso juvenil. Não consigo estar quieto. Tenho de canalizar esta energia toda.
Allison disse-lhes com um sorriso fatigado:
Quando o bebé nascer, será o meu segundo filho. Queres a cerveja ou não, Guy?
Já a bebo, já a bebo.
Fazia agora malabarismos com duas bolas, em vez de três.
Estás tão agitado, porquê? perguntou-lhe a mulher.
Com um murmúrio quase inaudível, enquanto mudava de posição por forma a ficar de frente para Lynley, acrescentou:
Guy estava aqui comigo na quarta-feira à noite, inspector. Foi por isso que vieram falar com ele, não foi? Para verificar o alibi dele. Se formos directos ao assunto, poderemos acabar com as conjecturas.
Colocou a mão sobre a barriga, como se quisesse chamar a atenção para o seu estado.
Já não consigo dormir muito bem. Faço pequenas sestas quando posso. Fiquei acordada a maior parte da noite. Guy esteve aqui em casa comigo. Se ele tivesse saído, eu ter-me-ia apercebido. E se, por milagre, eu estivesse a dormir durante a ausência dele, posso assegurar-lhe que o porteiro estaria bem acordado. Conheceram-no, suponho?
Allison, por favor. Mollison, finalmente, colocou as bolas no cesto de verga de onde as tinha retirado. Aproximou-se de um dos sofás, sentou-se e abriu a lata de cerveja. O inspector não está a pensar que eu matei Ken. Por que razão é que eu teria feito uma coisa semelhante, aliás? Eu estava apenas a dizer disparates.
Qual foi o motivo da vossa discussão? perguntou Lynley. Sem esperar que Mollison protestasse, prosseguiu: Miriam Whitelaw ouviu o início da sua conversa com Fleming. Ela disse-nos que você tinha mencionado uma discussão. Que você falou em esquecer a discussão e meter mãos ao trabalho.
Tivemos uma troca de palavras mais acesa a semana passada, no Lord’s, durante um jogo que se desenrolou ao longo de quatro dias. A situação estava tensa. A equipa de Middlesex estava em maus lençóis e tinha de se esforçar muito para ganhar. Um dos seus melhores batedores tinha sido obrigado a abandonar o jogo com um dedo fracturado, e eles não estavam particularmente bem-humorados. No terceiro dia fiz um comentário, no parque de estacionamento, acerca de um dos jogadores. Um paquistanês. Foi um comentário sobre o jogo, não sobre o homem em si, mas Ken não o entendeu dessa forma. Achou que eu tinha feito um comentário racista. A situação complicou-se.
Eles agrediram-se clarificou tranquilamente Allison. No parque de estacionamento. Guy foi quem saiu mais magoado. Duas costelas partidas e um olho negro.
É estranho que os jornais não tenham falado no assunto referiu Havers. Os tablóides adoram esse género de incidentes.
Era tarde explicou Mollison. Não havia ninguém por perto.
Estavam os dois sozinhos?
Exactamente confirmou Mollison bebendo um gole de cerveja.
E você não comentou o sucedido com ninguém? Porquê?
Porque foi uma pega ridícula. Tanto um como outro tínhamos bebido de mais e comportámo-nos como dois vulgares rufias. Nenhum de nós estava interessado em que se soubesse o que tinha acontecido.
E fez as pazes com ele, depois?
Não imediatamente. Foi por isso que lhe telefonei na quarta-feira. Deduzi que ele seria escolhido para jogar na selecção este Verão. E deduzi o mesmo em relação a mim. É certo que não tínhamos de ser unha com carne para ganhar aos Australianos, mas precisávamos pelo menos de nos sentirmos à vontade um com o outro. E uma vez que tinha sido eu o causador do nosso desentendimento, senti que seria sensato da minha parte tomar a iniciativa de uma reconciliação.
De que é que falaram na quarta-feira à noite, para além da vossa discussão?
Colocou a cerveja sobre a mesa, inclinou-se para a frente e juntou as mãos entre as pernas.
Do lançador australiano. Do estado do terreno no Oval. De quantos pontos pensávamos que Jack Pollard poderia marcar. Esse género de coisas.
E em nenhum momento da conversa Fleming mencionou as suas intenções de ir para o Kent nessa noite?
- Não.
E Gabriella Patten? Falou-lhe nela?
Gabriella Patten? Perplexo, Mollison inclinou a cabeça para o lado. - Não. Não falou de Gabriella.
Fitou Lynley directamente nos olhos com uma intensidade que o traiu. - Conhece-a? perguntou Lynley. O olhar de Mollison manteve-se firme.
- Claro que conheço. É a mulher de Hugh Patten, o patrocinador dos jogos deste Verão. Como os senhores certamente saberão.
Ela e o marido estão separados, segundo julgo saber. Está ao corremte disso?
Mollison lançou um olhar rápido à mulher e depois tornou a fitar Lynley
Ignorava-o. Lamento sabê-lo. Sempre tive a impressão de que ela e Hugh eram loucos um pelo outro.
Via-os com frequência?
Aqui e ali. Em festas. Na altura dos jogos. Eles seguem as épocas de críquete de perto. É normal que isso aconteça, suponho, uma vez que ele patrocina a equipa.
Mollison ergueu a cerveja e esvaziou a lata. Com a ajuda dos polegares começou a esmagá-la.
Há mais? perguntou à mulher, acrescentando logo de seguida: Deixa estar, eu vou buscar.
Levantou-se de um salto, dirigiu-se à cozinha e remexeu dentro do frigorífico, dizendo:
Queres alguma coisa, Allie? Praticamente não comeste nada ao jantar. Estas coxas de frango têm um aspecto apetitoso. Queres uma, querida?
Allison observava com um olhar pensativo a lata de cerveja amachucada que o marido deixara sobre a mesa da sala. Quando ela não respondeu, ele tornou a chamá-la.
Não estou interessada, Guy. Em comida.
Ele juntou-se a eles e, com o polegar, abriu uma Heineken.
Têm a certeza que não querem uma? perguntou a Lynley e a Havers.
E os jogos do condado? quis saber Lynley.
O que é que têm?
Patten e a mulher também assistiam a eles? Alguma vez assistiram a um jogo do Essex, por exemplo? Têm alguma equipa favorita quando a selecção inglesa não está a jogar?
São adeptos do Middlesex, julgo eu. Ou do Kent. Os condados domésticos, percebem?
E quanto à equipa do Essex? Nunca foram vê-lo jogar?
É provável que sim. Não tenho a certeza. Mas como já vos disse, eles seguem os campeonatos atentamente.
Viu-os recentemente?
Recentemente?
Sim, estava a pensar quando teria sido a última vez que os teria visto?
Vi Hugh a semana passada.
Onde?
No Garrick, ao almoço. Faz parte do meu trabalho. Zelar para que o patrocinador da equipa se sinta satisfeito por nos apadrinhar.
Ele não lhe disse que se tinha separado da mulher?
Não, claro que não. Eu não o conheço... enfim, conheço-o, mas não intimamente. Conversámos sobre desporto. Qual o melhor lançador para
abrir as hostilidades contra a equipa australiana. Como é que estou a pensar organizar O campo. Quais serão as escolhas dos seleccionadores para a selecção. Ergueu a cerveja e bebeu mais um pouco. Lynley esperou que Mollison baixasse a lata de cerveja antes de perguntar:
E Mrs. Patten. Quando é que a viu pela última vez?
Os olhos de Mollison fixaram-se numa tela enorme que, pendurada na parede atrás do sofá, fazia lembrar um quadro de Hockney. Era como se a tela fosse um imenso calendário onde ele anotara os seus compromissos diários.
Para ser sincero, não me lembro.
Ela estava presente no jantar interveio Allison. No final de Março.
Perante a expressão perplexa do marido, ela acrescentou:
No Savoy. Na River Room.
Santo Deus. Que memória a minha, Allie disse Mollison. Foi isso mesmo. Final de Março. Uma quarta-feira...
Quinta.
Claro, claro, uma quinta-feira à noite. Tu usaste aquele vestido africano, púrpura.
É persa.
Persa. Exactamente. E eu...
Lynley apressou-se a pôr termo ao diálogo entre ambos.
Não tornou a vê-la depois dessa data, então? perguntou. Não tornou a vê-la depois de ela ter ido viver para o Kent?
Para o Kent? O rosto de Mollison permaneceu imperscrutável. Eu não sabia que ela estava a viver no Kent. O que é que ela está a fazer no Kent? E onde é que ela está a morar, exactamente?
No mesmo local onde morreu Kenneth Fleming? Na mesma casa, precisamente.
Santo Deus engoliu em seco.
Quando falou com ele, na quarta-feira ao fim da tarde, Kenneth Fleming não lhe disse que tencionava deslocar-se ao Kent para ir visitar Gabriella Patten?
Não.
Não sabia que ele mantinha uma ligação com ela?
Não.
Não sabia que essa ligação durava desde o Outono passado?
Não.
E que planeavam divorciar-se dos respectivos cônjuges para casarem um com o outro?
Não. De modo nenhum. Eu desconhecia tudo isso. Virou-se para a mulher.
Sabias disto, Allie?
Ela não desviara os olhos dele nem por um instante, durante o tempo que durara o interrogatório de Lynley.
Dificilmente poderia sabê-lo retorquiu, impassível.
Pensei que ela pudesse ter comentado o assunto contigo justificou-se Mollison. Em Março. Durante o tal jantar.
Hugh estava lá.
Na casa de banho. Por exemplo.
Nunca nos encontrámos a sós nessa noite. E ainda que tivéssemos estado sozinhas, não creio que me tivesse confessado que costumava ir para a cama com outro tipo que não o marido. Esse não é, em geral, um tema que se discuta nas casas de banho, Guy. Na das senhoras, pelo menos.
O seu rosto e o seu tom de voz não concordavam com o vocabulário que utilizara. Bastaram, todavia, para que o marido concentrasse as suas atenções nela. Um silêncio desceu sobre eles, e Lynley nada fez para quebrá-lo, deixando que se prolongasse até aos limites do intolerável. Através da porta aberta, vindo do rio, chegou-lhes o som da sirene de um barco. Quase como se fosse uma resposta à sirene, uma corrente de ar glacial invadiu a sala. A brisa agitou os ramos das palmeiras e afastou do rosto de Allison algumas madeixas cor de avelã que se tinham desprendido da fita cor de pêssego que lhe prendia os cabelos à altura da nuca. Guy levantou-se de imediato e fechou a porta envidraçada.
Lynley pôs-se igualmente de pé. Havers lançou-lhe um olhar reprovador. A contragosto, dispôs-se a abandonar o sofá macio e confortável. Lynley tirou um dos seus cartões de visita.
Se por acaso se lembrar de mais alguma coisa, Mr. Mollison. E quando este se virou, estendeu-lhe o cartão.
Disse-vos tudo o que sabia disse Mollison. Não estou a ver que mais...
Por vezes há pormenores que avivam a nossa memória. Um comentário ocasional. Uma conversa que se escuta inadvertidamente. Uma fotografia. Um sonho. Telefone-me, se isso lhe suceder.
Mollison guardou o cartão dentro do bolso da camisa.
Com certeza. Mas acho que não...
Se lhe suceder insistiu Lynley.
Despediu-se da mulher de Mollison com um aceno de cabeça e deu por terminada a visita.
Ele e Havers não trocaram palavra até entrarem no elevador, que os levaria de volta ao vestíbulo onde o porteiro destrancaria as portas para deixá-los sair.
Este tipo não nos disse a verdade disse Havers.
Pois não concordou Lynley.
Então, porque é que não estamos lá em cima a espremê-lo?
As portas do elevador abriram-se com um silvo. Saíram para o vestíbulo, un porteiro assomou à porta do gabinete e escoltou-os até à porta com a mesma formalidade com que um guarda prisional libertaria um detido. Lynley permaneceu em silêncio.
Havers acendeu um cigarro enquanto caminhavam na direcção do Bentley.
Inspector, porque é que nós... insistiu.
Não precisamos de fazer aquilo que a mulher dele pode fazer por nós retorquiu Lynley. Ela é advogada, o que é uma bênção.
Junto do carro, Lynley olhou na direcção do Prospect of Whitby. Um grupo de clientes habituais aglomerava-se diante de um pub. Havers fumava o seu cigarro, abastecendo-se de nicotina antes de iniciar a longa viagem até casa.
Mas ela nunca ficará do nosso lado disse Havers. Não agora, quando o bebé está prestes a nascer. E jamais, se Mollison estiver implicado.
Não precisamos que ela se coloque do nosso lado. Basta apenas que ela o interrogue sobre as perguntas que ele se esqueceu de nos fazer.
O cigarro de Havers, a meio caminho dos seus lábios, parou subitamente.
As perguntas que ele se esqueceu de nos fazer?
Sim disse Lynley. Onde está Gabriella Patten neste momento? O incêndio deflagrou na casa onde Gabriella vivia. Os chuis andam às voltas com um cadáver; mas é o cadáver de Fleming. Onde diabo está Gabriella, então?
Lynley desactivou o alarme do carro.
Interessante, não é? disse abrindo a porta e instalando-se ao volante- Tudo aquilo que as pessoas revelam só por ficarem caladas.
CAPÍTULO 11
A esplanada da taberna Load of Hay fervilhava de vida e de animação. Algumas luzes cintilavam nas árvores, desenhando uma abóbada coruscante sobre os convivas, reluzindo nos braços nus e nas pernas longas daqueles que celebravam o tempo ameno do mês de Maio. Ao contrário da noite anterior, no entanto, Barbara não pensou sequer em juntar-se a eles. Ainda não bebera a sua caneca semanal de Bass, nem dirigira a palavra a nenhum vizinho, à excepção de Bhimani, na mercearia. Mas eram dez e meia da noite e já estava a pé há demasiado tempo. Sentia-se exausta.
Aproveitou o primeiro lugar vago que descobriu e estacionou o carro ao lado de um monte de sacos de lixo, que vomitavam ervas daninhas sobre o passeio. Em Steele’s Road, exactamente debaixo de um amieiro, cujos ramos se elevavam numa cúpula frondosa bem acima da rua. Na manhã seguinte, o carro estaria certamente coberto por uma camada de excrementos de pássaro. Não que esta fizesse grande diferença, tendo em conta o estado geral do Mini. Bem pelo contrário. Com um pouco de sorte, talvez houvesse guano em quantidade suficiente para tapar os buracos que embelezavam o tejadilho enferrujado do seu carro.
Abriu caminho com cuidado por entre os sacos de lixo e alcançou o passeio, seguindo depois na direcção de Eton Villas. Bocejando, friccionou o ombro dorido e prometeu a si mesma que esvaziaria o conteúdo da mala e procederia a uma criteriosa selecção do resto dos seus pertences. Que diabo trazia ela dentro da mala, afinal, perguntou-se enquanto a carregava até casa. Tinha a impressão que andava sempre com uma tonelada de tijolos atrás. De facto, era como se tivesse parado na Jaffri’s Fine Groceries para comprar dois sacos de gelo e os tivesse enfiado dentro da mala, juntamente com tudo o que lá havia.
Abrandou o passo ao pensar na Jaffri. No gelo. Grande merda, pensou. Esquecera-se do frigorífico.
Estugou o passo e virou a esquina. Contra todas as probabilidades, deu por si a alimentar a esperança de que o filho do filho do avô tivesse conseguido desembaraçar-se sozinho durante o longo trajecto entre Fulham e Chalk Farm, na sua camioneta de caixa aberta. Barbara não lhe dissera onde, exactamente, deveria entregar o frigorífico, pressupondo erradamente que estaria em casa quando ele chegasse. Todavia, ao ver que ela não se encontrava lá, teria com certeza pedido a algum vizinho que lhe indicasse o caminho. Jamais teria a ideia despropositada de deixar o electrodoméstico em pleno passeio. E muito menos na rua.
Ao chegar a casa percebeu que, de facto, ele não fizera nem uma coisa nem outra. Percorreu a alameda, contornou um Golf vermelho, último modelo, empurrou o portão e verificou que o filho do filho do avô conseguira com ou sem ajuda, nunca saberia transportar o frigorífico através do relvado fronteiro à casa, descendo depois quatro estreitos degraus em cimento. E ali estava ele, meio envolto num cobertor cor-de-rosa, um pé enterrado num delicado tufo de camomila que crescia por entre as lajes do pavimento, em frente ao apartamento do rés-do-chão.
Ele enganou-se protestou Barbara. Enganou-se, o grandessíssimo estafermo.
Deu um pontapé numa das lajes e encostou o ombro à corda que prendia o cobertor. Soltou um protesto e empurrou, tentando avaliar o peso que teria de levantar para fazer com que o frigorífico subisse os quatro degraus. Depois disso ainda teria de empurrá-lo ao longo da fachada lateral da casa e, por fim, metê-lo dentro da sua própria casa, ao fundo do jardim. Conseguiu erguer cerca de três centímetros num dos lados, mas o outro enterrou-se ainda mais na camomila que, sem dúvida, o inquilino do rés-do-chão plantara para fins medicinais. Agora gorados, por culpa do inútil e cretino filho do filho do avô.
Que grandessíssima merda exclamou, empurrando uma vez mais. O frigorífico tornou a enterrar-se mais dois centímetros. Ela tornou a empurrar. E de novo ele se enterrou.
Que se lixe! protestou com a mesma energia que reunira para manobrar o frigorífico.
Enfiou a mão na mala e tirou o maço de tabaco. Mal-humorada, aproximou-se de um banco de madeira colocado em frente às portas envidraçadas do apartamento do rés-do-chão. Sentou-se e acendeu um cigarro. Contemplou o frigorífico através da cortina de fumo e tentou decidir o que haveria de fazer.
Uma luz acendeu-se sobre a sua cabeça. Uma das portas envidraçadas abriu-se. Barbara virou-se e Viu a garotinha morena que, na noite anterior, punha a mesa para o jantar. Desta vez, não estava vestida com um uniforme escolar, mas em camisa de noite. Longa e imaculadamente branca, ornamentada com um vivo na bainha e um pequeno cordão na gola. O cabelo continuava entrançado.
É seu, então? perguntou num tom sério, coçando o tornozelo direito com o dedo grande do pé esquerdo. Estávamos a tentar imaginar de quem seria.
Barbara olhou para trás dela, à procura de mais alguém. O apartamento estava imerso na escuridão, à excepção de um feixe de luz que jorrava por uma porta aberta, ao fundo.
Esqueci-me completamente de que vinham entregá-lo explicou Barbara. E o idiota que o trouxe deixou-o aqui por engano.
Pois foi confirmou a garota. Eu vi-o. Tentei dizer-lhe que não queríamos nenhum frigorífico, mas ele não ouviu o que eu disse. Já temos um, disse eu, e só não o deixei entrar para lhe mostrar porque não posso deixar entrar ninguém em casa quando o meu pai não está, e ele ainda não tinha chegado. Mas agora já chegou.
-Já?
Já. Mas está a dormir. É por isso que estou a falar baixinho. Para não o acordar. Ele trouxe frango para o jantar e eu fiz courgettes e depois comemos chapatas e depois ele adormeceu. Nem sequer posso abrir a porta. Mas agora está tudo bem, não está, porque ele está em casa. Posso gritar, se precisar dele, não posso?
Claro que podes disse Barbara.
Deixou cair um pedaço de cinza sobre as lajes impecavelmente limpas. Vendo que os olhos escuros da garota seguiam o seu percurso descendente com uma expressão reprovadora, Barbara fez deslizar um dos pés e, casualmente, esfregou a cinza deixando no chão uma mancha negro-acinzentada. A garota observou-a, mordendo o lábio.
Não devias estar na cama? perguntou Barbara.
Não consigo dormir bem. Quase sempre fico a ler até já não conseguir ter os olhos abertos. Só que tenho de ficar à espera que o meu pai adormeça para acender a luz, porque se a acendo enquanto ele está acordado, ele entra no quarto e tira-me o livro. Ele diz que eu devo contar do cem até ao zero, mas ler é muito melhor, não acha? Além disso, conto tão depressa que quando chego ao zero ainda não estou a dormir. E nessa altura, fico sem saber o que fazer.
Um problema, de facto. Barbara tornou a espreitar para o interior do apartamento, nas costas da garota. E a tua mãe, não está?
A minha mãe foi visitar uns amigos. No Ontario. Fica no Canadá.
Pois fica, eu sei.
Ainda não me escreveu nenhum postal. Deve estar ocupada, que é o que acontece quando vamos visitar amigos. O nome da minha mãe é Malak. Bem, esse não é o seu verdadeiro nome. O meu pai é que lhe chama assimMalak significa anjo. É bonito, não é? Oxalá fosse o meu nome. Eu chamo-me Hadiyyah, que não é tão bonito como Malak. E não quer dizer anjo.
É um nome simpático, no entanto. E o seu nome, qual é? Oh, desculpa. Chamo-me Barbara. Vivo ali atrás.
Hadiyyah sorriu e as suas faces encheram-se de pequenas covinhas.
Naquela casinha amorosa? cruzou as mãos sobre o peito. Oh,
queria que fôssemos viver para lá quando nos mudámos. Mas é muito pequena. Parece uma casa de bonecas. Posso vê-la?
Claro que sim. Porque não? Um destes dias. Posso vê-la agora?
Agora? perguntou Barbara, frontalmente.
Começava a sentir um certo desconforto. Não era assim que tudo começava muitas vezes? Será que não estaria a correr o risco de vir a ser acusada de um crime abominável na pessoa de uma criança?
Agora, não sei. Não devias estar a dormir? E se o teu pai acorda de repente?
Ele nunca acorda durante a noite. Nunca. Só de manhã. Ou então se eu tiver um pesadelo.
E se ele ouvisse um barulho e acordasse e tu não estivesses no teu quarto...
Mas eu vou estar a dois passos daqui, não vou? perguntou com um sorriso maroto. Vou estar atrás da casa. Eu podia escrever um bilhete e deixá-lo em cima da minha cama, no caso de ele acordar. Podia dizer que estou consigo, até vou usar o seu nome e vou dizer que estou com Barbara, e que me vai trazer a casa depois de eu ter visto a sua. É uma boa ideia, não acha?
Não, pensou Barbara. Uma boa ideia, seria um longo duche quente, uma sanduíche de ovo estrelado e uma chávena de chá, porque uma única fatia de presunto grelhado e uma nesga de queijo com um nome francês não contavam como um jantar decente. E depois disso, uma ideia ainda melhor, seriam quinze minutos de descoberta literária, durante os quais ela ficaria a saber que parte do corpo de Flint Southern vibrava por Shar Flaxen dentro daqueles jeans bem justos.
Outro dia.
Barbara ajustou a alça da mala sobre o ombro e levantou-se.
Deve estar cansada, não é verdade? perguntou Hadiyyah. Está de rastos, não?
Exactamente.
O meu pai também fica assim quando chega a casa depois do trabalho- Atira-se para o sofá e não se consegue mexer durante uma hora. Eu faço-lhe sempre uma chávena de chá. Earl Grey. Eu já sei fazer chá. Ai sabes?
Sei, sei quanto tempo ele deve ficar em infusão. É nisso que está o segredo de um bom chá. - Na infusão. Sim, sim.
A garota mantinha as mãos cruzadas sobre o peito, como se entre elas segurasse um talismã. Os enormes olhos escuros espelhavam uma expressão de tal modo implorante e vulnerável, que Barbara teve vontade de lhe ordenar com brusquidão que fosse corajosa, que se habituasse à realidade da vida. Em vez disso, deixou cair o cigarro sobre as lajes, esmagou-o com a ponta do ténis e guardou a beata no bolso das calças.
Vai lá escrever o bilhete ao teu pai disse, por fim. Eu espero. Hadiyyah lançou-lhe um sorriso radioso. Virou-se e entrou a correr no apartamento. O feixe de luz alargou-se quando ela entrou no quarto do fundo. Em menos de dois minutos estava de volta.
Prendi o bilhete ao meu candeeiro disse. Mas o mais provável é ele não acordar. Não costuma acordar. Excepto quando eu tenho um pesadelo.
Muito bem disse Barbara. Por aqui.
Eu conheço o caminho informou Hadiyyah. Esgueirou-se para a frente dela, dizendo por cima do ombro:
Para a semana faço anos. Oito anos. O meu pai disse que posso fazer uma festa. Ele disse que posso ter bolos de chocolate e gelado de morango. Quer... queres vir à minha festa? Não precisas de trazer nenhuma prenda.
Avançou sem esperar pela resposta.
Barbara reparou que ela continuava descalça. Genial, pensou. A garota ainda apanha uma pneumonia e a culpa é dela.
Alcançou Hadiyyah junto do quadrado de relva que separava o edifício principal da sua casa. A garota parara para endireitar uma bicicleta caída no chão.
Pertence a Quentin informou. Ele está sempre a deixar as coisas dele cá fora. A mãe fica doida e grita-lhe da janela, mas ele nunca liga. Ele não deve perceber o que ela lhe quer dizer, não achas?
Mais uma vez não esperou pela resposta. Apontou para uma espreguiçadeira em lona, prestes a desfazer-se, e, em seguida, para uma mesa em plástico e duas cadeiras iguais.
São de Mrs. Downey. Ela vive no estúdio. Já a conheces? Tem um gato chamado Jones. E ali vivem os Jensen. Não gosto muito deles dos Jensen, mas não vais dizer nada a ninguém, pois não, Barbara?
A minha boca está selada. Hadiyyah franziu o nariz.
Tu és descarada, Barbara. O meu pai não gosta que eu seja descarada com as pessoas. É preciso ter cuidado com as pessoas que conhecemos, não é? É importante que ele goste de ti. Para que possas vir à festa do meu aniversário. É...
Para a semana. Já sei.
Barbara conduziu a garota até à porta de sua casa e procurou a chave dentro da mala. Abriu-a e acendeu a luz do tecto. Hadiyyah entrou atrás dela.
Que maravilha! exclamou. É perfeita. Parece uma caixa de bonecas.
Correu até o meio da sala e começou a rodopiar.
Quem me dera que morássemos aqui. Quem me dera. Quem me dera.
Vais ficar com a cabeça a andar à roda.
Barbara pousou a mala sobre a bancada e encheu a chaleira com água.
Não vou, não respondeu Hadiyyah.
Rodopiou outras três vezes e depois parou, vacilando ligeiramente.
Bem, só um bocadinho talvez.
Olhou em volta. Esfregou as mãos na camisa de dormir. O seu olhar saltitava de objecto em objecto. Por fim, disse com uma formalidade estudada:
Transformaste a tua casa num lugar muito agradável, Barbara. Barbara reprimiu um sorriso. Das duas, uma: ou Hadiyyah era muito bem-educada ou os seus gostos eram discutíveis. Tudo o que havia dentro daquelas quatro paredes, provinha ou da casa dos pais, em Acton, ou de uma venda de beneficência. No primeiro caso, os objectos eram malcheirosos e esfarrapados. No segundo, práticos e pouco mais. A única peça de mobiliário que se tinha permitido comprar em primeira mão fora a cama. Era em verga, o colchão coberto com almofadas mosqueadas e uma colcha feita de um tecido com motivos indianos.
Hadiyyah aproximou-se da cama e contemplou uma fotografia emoldurada, que estava sobre a mesa ao lado dela. Vendo-a saltitar sem parar, Barbara sentiu-se tentada a perguntar-lhe se queria ir à casa de banho.
É o meu irmão Tony explicou.
Mas ele é pequenino. Como eu.
Foi tirada há muito tempo. Ele já morreu.
Hadiyyah franziu o sobrolho. Olhou para Barbara por cima do ombro.
É triste. Ainda estás triste por causa dele?
Às vezes. Nem sempre.
Eu fico triste, às vezes. Não há ninguém por aqui para eu brincar e não tenho nem irmãos, nem irmãs. O meu pai diz que não faz mal estar triste, se eu olhar para dentro da minha alma e descobrir que existe uma razão verdadeira para estar triste. Não sei muito bem como é que hei-de olhar para dentro da minha alma. Já tentei pôr-me à frente do espelho, mas sentia-me esquisita quando ficava a olhar para lá durante muito tempo. Já te aconteceu isso? Olhares para o espelho e sentires-te esquisita?
Barbara esboçou um sorriso cansado. Tirou o balde que estava debaixo do lava-loiça e inventariou o seu magro conteúdo.
Quase todos os dias disse.
Tirou dois ovos e pousou-os sobre o balcão. Meteu a mão na mala à Procura dos cigarros.
O meu pai fuma. Ele sabe que não devia, mas fuma. Parou durante dois anos inteirinhos, porque a minha mãe não gostava. Mas agora fum outra vez. E ela vai ficar bem furiosa com ele quando voltar. Ela está no Canadá.
Exacto. Eu já te disse isso, não disse? Desculpa.
Não faz mal.
Hadiyyah aproximou-se de Barbara e inspeccionou o espaço livre junto à parede da cozinha.
É o espaço para o frigorífico anunciou.
Não te preocupes com o frigorífico, Barbara. Quando o meu pai se levantar, amanhã, vai trazê-lo para aqui. Eu digo-lhe que é teu. Digo-lhe que és minha amiga, está bem? Não te importas que eu diga que és minha amiga? É uma boa ideia, sabes, se eu disser isto. O meu pai vai ficar muito satisfeito por ajudar uma das minhas amigas.
Aguardou, ansiosa, a resposta de Barbara, equilibrada num só pé, as mãos unidas atrás das costas. Barbara respondeu-lhe interrogando-se sobre aquilo em que se estaria a meter.
Claro que podes dizer isso.
Hadiyyah ficou radiante. Rodopiou pela divisão, aproximando-se da lareira.
E isto também é bom disse. Achas que funciona? Achas que podemos assar marshmallows aqui? Isto é um atendedor de chamadas? Vê, tiveste uma chamada, Barbara.
Estendeu a mão para a prateleira sobre a lareira, onde se encontrava o atendedor.
Vamos ouv...
Não!
A mão de Hadiyyah recuou. Afastou-se rapidamente da máquina.
Eu não devia...
Parecia tão consternada que Barbara disse:
Desculpa. Não queria ser bruta contigo.
Deves estar cansada. O meu pai exalta-se às vezes, quando está muito cansado. Queres que te faça um chá?
Não, obrigada. Já pus a água a aquecer. Eu mesma faço o chá.
Oh! Hadiyyah olhou em volta, como se procurasse novos motivos de distracção. Quando não conseguiu descobrir nenhum, disse: É melhor eu ir embora, então.
Foi um dia muito comprido.
Pois foi.
Hadiyyah caminhou para a porta e Barbara reparou, pela primeira vez, que as fitas minúsculas que lhe prendiam as tranças eram brancas. Perguntou a si mesma se a garotita as trocaria sempre que mudava de roupa.
Bem disse ela, da porta. Boa noite, Barbara. Foi um prazer conhecer-te.
Igualmente respondeu Barbara. Se esperares um momento, eu acompanho-te até casa.
Encheu a caneca do chá com água quente e juntou-lhe uma saqueta de chá. Quando se virou para a porta, a garota tinha desaparecido.
Hadiyyah? chamou, saindo para o jardim.
Ouviu-a dizer: ”Boa noite” e viu a camisa de dormir branca esvoaçando junto à parede da casa, à medida que ela fazia o trajecto de regresso a casa.
Não te esqueças da festa. É...
O teu aniversário Barbara completou em voz baixa. Eu sei.
Esperou até ouvir a porta do apartamento do rés-do-chão fechar-se e depois entrou em casa e preparou-se para beber o seu chá.
O atendedor de chamadas obstinava-se em recordar-lhe o segundo compromisso que falhara naquele dia. Era inútil ouvir a mensagem, pois sabia perfeitamente quem a deixara. Levantou o auscultador e marcou o número de Mrs. Flo.
Ora, estávamos precisamente a tomar uma boa chávena de Bourn-vita. E a comer umas torradinhas. A mãe gosta muito de cortar o pão em losângulos. Não é verdade, minha querida? Muito bem, sim senhor, muito bonito. Agora, vamos meter o pão na torradeira e prestar atenção para que não se queime.
Como é que ela está? perguntou Barbara. Lamento muito não ter podido ir até aí hoje. Fui destacada para um caso.
Ouviu o som de passos arrastados sobre o linóleo e a voz de Mrs. Flo, que dizia:
Vai tomar conta da torrada, não vai, minha querida? Isso mesmo, deixe-se ficar aí, bem pertinho da torradeira. Perfeito. Sabe o que há-de fazer se a torradeira começar a deitar fumo, não é verdade?
A resposta soou imperceptível, por entre risos abafados.
Estamos muito marotas, hoje, não estamos? disse Mrs. Flo.
O timbre da sua voz mudou quando disse, ”Barbie?”, não tanto em consequência de uma alteração de humor, mas como se tivesse passado para uma divisão mais pequena.
Deve ter deixado a cozinha e passou para o corredor, pensou Barbara. Durante uma fracção de segundo, a inquietação tomou conta dela.
Acabei de chegar a casa disse Barbara. Aconteceu alguma... Como está a minha mãe?
Trabalhas de mais, minha querida retorquiu Mrs. Flo. Andas a a alimentar-te bem? Estás a ter cuidado contigo? E a dormir as horas suficientes, ao menos?
Eu estou bem. Não se preocupe. Tenho o meu frigorífico novo estacionado à porta do apartamento do meu vizinho, em vez de estar dentro de minha casa, mas à parte isso, tudo continua bem. Como está a minha mãe Mrs. Flo? Melhor?
Queixou-se de dores de barriga durante todo o dia, por isso não conseguiu tocar em comida. O que me deixou um pouco preocupada, devo confessar. Mas agora está melhor. Ela sente saudades tuas, sabes?
Mrs. Flo fez uma pausa. Barbara conseguia imaginá-la no corredor escuro que dava para a cozinha, vestida com um dos seus imaculados vestidos-camiseiros, a gola adornada com um pregador em forma de flor. Os collants combinariam na perfeição com um dos tons do vestido e os sapatos rasos estariam primorosamente engraxados. Barbara nunca a vira arranjada de outra maneira. Mesmo quando fazia jardinagem, Mrs. Flo vestia-se como se esperasse a visita da princesa de Gales.
Sim respondeu Barbara, eu sei. Tenho imensa pena.
Não deves preocupar-te, nem podes sentir-te culpada disse Mrs. Flo com firmeza.
A voz dela soava calorosa.
Estás a fazer o melhor que podes pela tua mãe. Ela já está quase boa, agora. Ainda tem um pouco de febre, mas já consegui convencê-la a comer uma torrada.
Mas ela não pode viver à base de torradas.
Por agora ficará lindamente, querida.
Posso falar com ela?
Claro. Ela vai ficar radiante quando ouvir a tua voz.
Mrs. Flo tornou a entrar na cozinha, e Barbara ouviu-a anunciar:
Temos um telefonema muito especial, minhas queridas. Vamos lá tentar adivinhar quem é que está ao telefone para falar com a sua mãezinha? Mrs. Pendlebury, que está a fazer com essa compota? É assim, querida, por cima da torrada, que se deve barrar. Isso mesmo. Muito bem.
Passaram-se alguns instantes. Barbara tentou não pensar em torradas, compota, em comida de espécie alguma. A mãe não estava bem, não fora visitá-la, e o único pensamento que lhe ocorria era enfiar na boca algo remotamente comestível. Que tipo de filha era ela?
Doris? Dorrie? a voz de Mrs. Havers soou trémula e hesitante no outro lado da linha. Mrs. Flo diz que o blackout já acabou. Eu disse-lhe que tínhamos de tapar as janelas, senão os Alemães descobriam-nos, mas ela disse que não era preciso. Que não há guerra. Sabias? A mãe já destapou as janelas, aí em casa?
Estou? Mãe? retorquiu Barbara. Mrs. Flo disse-me que ontem não te tinhas sentido muito bem, e hoje também não. Como é que está a tua barriga?
Eu vi-te com Stevie Baker volveu Mrs. Havers. Pensavas que eu não te tinha visto, mas eu vi-te, Dorrie. Ele tinha levantado o teu vestido e puxado as tuas cuecas para baixo. Estavas na marmelada com ele.
Mãe? insistiu Barbara. Eu não sou a tia Doris. Ela morreu, lembras-te? Durante a guerra.
Mas Mrs. Flo disse que já não havia guerra...
Ela queria dizer que a guerra já tinha acabado, mãe. Sou eu, Barbara, quem está ao telefone. A tua filha. A tia Doris morreu.
Barbara.
Mrs. Havers repetiu o nome dela num tom de tal modo pouco convincente que Barbara teve a impressão de ver as engrenagens do cérebro doente da mãe rangendo penosamente dentro da cabeça dela.
Acho que não me lembro...
Tinha quase a certeza de que a mãe ia torcendo o fio do telefone à volta dos dedos, à medida que a sua confusão aumentava. Sem dúvida, olhava na direcção da cozinha, como se a chave do enigma estivesse escondida entre as suas quatro paredes.
Morávamos em Acton continuou Barbara, com ternura. Tu, o pai e eu. E Tony.
Tony. Tenho uma fotografia dele lá em cima.
Exactamente, mãe. Tony.
Ele nunca vem visitar-me.
Pois não. Bem...
Barbara apercebeu-se, de súbito, de que a sua mão se crispava em torno do auscultador e esforçou-se por descontrair os dedos.
Ele também já morreu.
Tal como o pai. E praticamente todos aqueles que, em tempos, tinham feito parte do pequeno mundo de sua mãe.
Ai já? E como é que ele...? Morreu na guerra, como Dorrie?
Não. Tony era demasiado jovem para isso. Ele nasceu depois da guerra. Muito tempo depois.
Então, não foi atingido por uma bomba?
Não. Nada disso.
Fora muito pior, pensou Barbara, uma passagem muito menos caridosa, uma entrada muito mais demorada no reino da eternidade.
Ele sofria de leucemia, mãe. É quando há alguma coisa de mal no sangue das pessoas.
Leucemia. Oh! a voz dela tornou-se subitamente mais viva. Eu não tenho isso, Barbie. Só tenho umas dorzinhas de barriga. Mrs. Flo queria que eu comesse sopa ao meio-dia, mas não fui capaz. Não havia meio de a sopa descer pela garganta abaixo. Mas agora estou a comer. Fizemos torradas. Com doce de amora. Estou a comer a torrada. Mrs. Pendlebury está a comer o doce.
Barbara agradeceu mentalmente ao céu por aquele momento de lucidez e decidiu aproveitá-lo de imediato, antes que a mãe perdesse novamente a noção da realidade.
Ainda bem, mãe. Faz-te bem. Precisas de comer para manter as forças. Olha, peço-te desculpa por não ter podido ir visitar-te hoje. Fui destacada para um caso, a noite passada. Mas vou tentar ir aí no próximo fim-de-semana, está bem?
Tony vem contigo? E o pai, Barbie?
Não. Vou sozinha.
Mas eu não vejo o pai há tanto tempo.
Eu sei, mãe. Vou levar-te uma prenda. Lembras-te de me teres falado na Nova Zelândia? Numas férias em Auckland?
O Inverno estival da Nova Zelândia, Barbie.
Isso. Excelente, mãe.
Estranho, pensou Barbara, lembrava-se dos factos, mas esquecera os rostos. De onde viria, então, a informação armazenada na nossa memória? Como é que se perderia?
Consegui arranjar-te algumas brochuras. Da próxima vez que eu for visitar-te, já poderás começar a planear as férias. Podemos fazê-lo juntas, tu e eu. Que tal?
Mas nós não podemos ir de férias, se houver blackout, pois não? E Stevie Baker não vai querer que vás sem ele. Se andas na marmelada com Stevie Baker, isso vai acabar mal, Dorrie. Eu vi a salsicha dele, sabes. Vi onde ele a meteu. Tu pensavas que eu estava a brincar na cozinha, mas eu fui atrás de ti. Vi como ele te beijou. Foste tu que tiraste as tuas cuecas sozinha. E depois mentiste à mãe. Disseste que tu e Cora Trotter tinham estado a enrolar ligaduras. Disseste que era para praticar para quando fosses enfermeira. Disseste...
Barbie? era a voz de Mrs. Flo. Ao fundo, Mrs. Havers continuava a desfiar o rol de pecados cometidos pela irmã adolescente.
Ela está a ficar um pouco agitada, minha querida. Mas não te preocupes. É o teu telefonema, que a deixa assim excitada. Vai ficar mais calma depois de beber um pouco de Bourn-vita e de comer mais uma torrada. Em seguida é só lavar os dentes e deitar-se. Até já tomou o seu banho.
Barbara engoliu em seco. Os telefonemas tornavam-se cada vez mais difíceis, nunca o contrário. Preparava-se sempre para o pior. Sabia o que tinha a esperar. De vez em quando, porém, ao fim de três ou quatro conversas com a mãe, sentia parte da sua coragem abandoná-la, como se fosse uma falésia demasiado fustigada pelo oceano.
Certo retorquiu Barbara.
Não quero que te preocupes.
Está bem.
A tua mãe sabe que virás visitá-la quando puderes.
A mãe ignorava tal coisa, mas era uma atitude generosa da parte de Mrs. Flo. Barbara perguntou a si própria, mais uma vez, onde iria Florence Magentry buscar tanta presença de espírito, tanta paciência e tanta bondade genuína.
Estou a trabalhar num caso voltou a dizer. Talvez tenha lido sobre ele, ou tenha visto as notícias. Aquele jogador de críquete. Fleming. Morreu num incêndio.
Mrs. Flo expressou de imediato a sua compaixão.
Pobre alma disse.
Sim, pensou Barbara. Pobre alma, de facto.
Desligou e tornou a pegar na caneca com o chá. Sobre a bancada da cozinha, as cascas de oves cor de areia estavam salpicadas de pequenas gotas de humidade. Pegou num dos ovos e rolou-o ao longo de uma das faces. Já não tinha grande apetite.
Lynley certificou-se de que a porta do apartamento de Helen estava bem fechada antes de ir embora. Reflectiu por momentos, olhando fixamente a maçaneta e a lingueta em bronze. Helen não estava em casa. Tanto quanto lhe era dado ver, e uma vez que o correio não fora recolhido, passara a maior parte do dia fora. Assim, qual aprendiz de detective, deambulara pelo apartamento à procura de indícios que explicassem o seu desaparecimento.
Os pratos dentro do lava-loiça eram do pequeno-almoço. Que Helen fosse incapaz de meter uma tigela, uma chávena de café, um pires e duas colheres dentro da máquina de lavar-loiça continuava a ser um mistério para ele. Tanto The Times como o Guardian evidenciavam sinais de terem sido desdobrados e lidos. Muito bem. Não saíra de casa à pressa e, aparentemente, nada de estranho a perturbara ao ponto de lhe ter tirado o apetite. A verdade, porém, é que jamais ouvira dizer que Helen tivesse perdido o apetite, fosse por que motivo fosse. Era um começo: não houvera nenhuma saída precipitada, nem catástrofes dignas de nota.
Foi até ao quarto. A cama estava feita o que só vinha reforçar a teoria de que não saíra à pressa. O toucador continuava tão escrupulosamente arrumado como na noite anterior. A caixa das jóias estava fechada. Um frasco de perfume com a base em prata aparecia ligeiramente desalinhado em relação aos restantes. Lynley destapou-o.
Interrogou-se sobre as possíveis implicações negativas decorrentes do facto de ela se ter perfumado antes de sair de casa. Será que o fazia habitualmente? Ter-se-ia perfumado na noite anterior? Não se lembrava. Sentiu uma Vaga sensação de desconforto e tentou perceber se o facto de não se lembrar seria um presságio tão mau quanto a possibilidade de Helen se ter perfumado Pela primeira vez ao fim de várias semanas. Por que razão se perfumavam as mulheres, afinal? Para seduzir, atrair as atenções, excitar, suscitar reacções?
O pensamento levou-o a dirigir-se a passos largos até ao guarda-vestidos.
Percorreu as roupas que estavam no seu interior. Vestidos de noite, peças casuais, calças, saias-casacos. Se tivesse ido encontrar-se com alguém, certamente que a escolha da indumentária lhe revelaria, ao menos, o sexo da pessoa em questão. Reviu mentalmente os homens que tinham sido amantes dela. Que usava ela quando a vira na companhia deles? Era uma pergunta sem resposta. Uma tarefa inútil. Não conseguia lembrar-se. A carícia suave de uma camisa de noite em cetim, pendurada no lado de dentro da porta do guarda-vestidos, começou a distrair a sua atenção.
Ridículo, pensou. Não, tudo aquilo era ridículo. Fechou a porta do guarda-vestidos, desiludido consigo mesmo. Que estaria a passar-se com ele? Se não se controlasse, em breve daria consigo beijando as jóias dela ou acariciando amorosamente as solas dos seus sapatos.
Isso mesmo, pensou. As jóias. A mesa-de-cabeceira. O anel. O estojo não estava no sítio onde ele o deixara na véspera. Tão-pouco estava dentro da gaveta da mesa de cabeceira. Nem misturado com as outras jóias. O que significava que ela enfiara o anel no dedo, o que queria dizer que aceitara, o que implicava que tinha ido até casa dos pais anunciar a grande novidade.
Devia ter decidido passar lá a noite e, por isso, levara uma mala. Claro, era isso mesmo. Porque é que não percebera logo a verdade? Dirigiu-se rapidamente ao armário do corredor, a fim de comprovar o seu raciocínio. Outro beco sem saída. Lá estavam, intactas, as duas malas de viagem.
De regresso à cozinha, reparou no que vira logo à chegada e se esforçara por ignorar: o atendedor de chamadas piscava furiosamente. Parecia ter recebido dezenas de chamadas ao longo do dia. Não desceria tão baixo, disse para si próprio. Se começasse a violar o atendedor de chamadas dela, em breve estaria a abrir-lhe o correio. Em suma, saíra, estivera fora o dia todo, e caso tivesse intenção de regressar a casa nas próximas horas, iria fazê-lo sem que ele estivesse a controlá-la, escondido entre os arbustos, qual Romeu transido de paixão, aguardando que se fizesse luz.
Deixou o apartamento dela e foi para casa, em Eaton Terrace, descendo Sydney Street e percorrendo o trajecto que o levaria até às ruas silenciosas e decoradas com pórticos brancos de Belgravia. Sentia-se exausto, tinha uma fome de lobo e ansiava por um bom uísque.
Boa noite, senhor. O dia foi longo.
Denton cumprimentou-o à entrada, um monte de toalhas brancas meticulosamente dobradas debaixo do braço. Embora trajasse da forma habitual, de fato completo, enfiara já os chinelos de quarto, uma forma subtil de lhe dizer que já não estava ao serviço.
Esperava-o por volta das oito horas, senhor.
Consultaram ambos o relógio de sala, que soava com uma cadência ritmada no vestíbulo. Faltavam dois minutos para as onze.
Às oito? repetiu Lynley, atónito.
Exactamente. Lady Helen disse...
Helen? Ela telefonou?
Não precisou de o fazer.
Não precisou...
Está cá desde as sete horas. Disse que o senhor lhe tinha deixado uma mensagem e que tinha a impressão que chegaria por volta das oito horas. Decidiu passar por cá e preparar-lhe o jantar. Que neste momento deve estar impróprio para consumo. As massas não são, de facto, pratos de grande longevidade. Tentei evitar que Lady Helen começasse a cozinhar antes que o senhor chegasse, mas não quis escutar-me.
Cozinhar?
Lynley lançou um olhar rápido na direcção da sala de jantar, que ficava na parte de trás da casa.
Denton, estás a querer dizer-me que foi Helen quem preparou o jantar? Helen?
Exactamente, senhor. E não desejaria entrar em pormenores no que se refere ao estado em que Lady Helen deixou a minha cozinha. Felizmente, já está tudo arrumado.
Denton transferiu as toalhas para o outro braço e dirigiu-se para as escadas. Ergueu a cabeça na direcção do primeiro andar da casa.
Está na biblioteca disse antes de começar a subir. Deseja que lhe prepare uma omolete? Acredite em mim, senhor. Não vai querer comer a massa, a não ser que esteja a pensar usá-la como argamassa.
Ela cozinhou repetiu Lynley para si próprio, atónito. Deixando Denton sem resposta, encaminhou-se para a sala de jantar. Passadas três horas após o momento em que deveria ter sido ingerida, a refeição apresentava agora o mesmo aspecto da comida plastificada que costuma estar exposta nas vitrinas dos restaurantes de Tóquio. Ela conseguira combinar fettuccine com camarões, alface agora murcha, espargos que pareciam entretanto amolecidos, uma baguette cortada em fatias e vinho tinto. Este último estava pronto a servir. Lynley encheu os dois copos colocados sobre a mesa. Em seguida, contemplou a mesa.
Ela cozinhou disse.
Intrigava-o o paladar que a comida teria realmente. Tanto quanto sabia, Helen jamais fora capaz de preparar uma refeição completa por sua conta e risco.
Pegou no copo de vinho e contornou a mesa, observando atentamente
os pratos, os garfos e as facas. Bebeu um gole de vinho. Depois de ter concluído a sua inspecção, pegou num garfo e agarrou três fios de fettuccine. A comida devia estar gelada, e o microndas já pouco poderia fazer por ela. Mesmo assim, ficaria com uma ideia...
Santo Deus murmurou.
Que teria ela posto no molho? Tomate, não havia dúvida. Mas será que tinha usado estragão, em vez de salsa? Empurrou a massa com a ajuda de um generoso gole de vinho. Talvez tivesse sido melhor não ter chegado a casa a tempo de saborear todas aquelas delícias culinárias.
Pegou no segundo copo de vinho e deixou a sala de jantar. Restava-lhe o vinho, ao menos. Que era um clarete muito razoável. Perguntou-se se teria sido ela a escolhê-lo, ou se Denton teria ido buscá-lo à garrafeira.
Sorriu ao lembrar-se de Denton. Não lhe era difícil imaginar o horror que deveria ter-se apoderado do seu mordomo e a sua tentativa para dissimulá-lo à medida que Helen ia semeando o caos na sua cozinha, sem dúvida recusando distraidamente as sugestões dele com um: ”Meu caro Denton, se insistir em deixar-me ainda mais confusa, vou acabar por deitar tudo a perder. A propósito, tem alguma especiaria? As especiarias são o segredo de um excelente molho, segundo sei.”
Helen era incapaz de distinguir entre uma erva e uma especiaria. Deve ter espalhado noz-moscada e canela sobre o preparado com o mesmo zelo com que acrescentaria tomilho e salva.
Subiu as escadas que conduziam ao primeiro andar. A porta da biblioteca estava entreaberta o suficiente para deixar entrar um fio de luz que iluminava a carpete. Helen estava sentada numa das poltronas junto à lareira. O clarão de um candeeiro de mesa formava uma auréola de luz em torno da sua cabeça. À primeira vista parecia estar absorta na leitura de um livro que pousara sobre os joelhos. Todavia, quando se aproximou, Lynley viu que ela estava a dormir, a face apoiada numa mão. Tinha estado a ler As Seis Mulheres de Henrique VIII, de Antonia Fraser, o que não era exactamente um bom presságio. As suas esperanças renasceram quando se apercebeu de que Helen estivera a folhear a biografia de Jane Seymour. Examinando a página mais de perto, no entanto, viu que ela estava a meio do grotesco processo de Ana Bolena, a antecessora de Jane Seymour, o que lhe parecia algo ominoso. Por outro lado, o facto de ter adormecido a meio do processo poderia ser interpretado como...
Lynley repreendeu-se mentalmente. A ironia da situação não lhe escapava. Durante a maior parte da sua vida adulta, com uma única excepção, levara sempre a melhor em questões de mulheres. Ele seguia o seu próprio caminho e se, por acaso, o caminho que elas seguiam se cruzasse com o dele, muito bem. Se não, poucas tinham sido as vezes em que chorara um desgosto amoroso. Helen, no entanto, viera revolucionar todo o seu modus operandiAo longo dos últimos dezasseis meses, desde que admitira pela primeira vez para si próprio que acabara por se apaixonar por uma mulher que conhecia desde sempre, e que era uma das suas melhores amigas, sentira-se completamente perdido. Ora acreditava que compreendia as mulheres, ora se sentia desesperado para se libertar da sua ignorância crassa. Nos seus momentos de maior desencorajamento, descobria dentro de si uma nostalgia em relação ao que gostava de chamar ”os bons velhos tempos”, a época em que as mulheres nasciam e eram educadas para serem esposas, consortes, amantes, cortesãs ou fosse o que fosse que exigisse total submissão à vontade do macho. Tudo teria sido muito mais simples, com efeito, se tivesse podido dirigir-se a casa do pai de Helen a fim de reclamar a sua mão, os seus afectos, negociar o montante do dote, até, mas sobretudo ficar com ela, sem ter de se preocupar com a sua opinião sobre o assunto. Se os casamentos por conveniência ainda se mantivessem, poderia ficar com ela, primeiro, e depois pensar em conquistá-la. No actual estado de coisas, a corte e a conquista estavam a desgastá-lo. Não era, nunca fora um homem particularmente paciente.
Pousou o copo de vinho sobre a mesa que estava junto da poltrona. Pegou no livro, marcou a página onde ela interrompera a leitura e fechou-o. Em seguida baixou-se junto dela e pousou a sua mão sobre a dela. Esta mexeu-se e os dedos de ambos entrelaçaram-se. Foi então que os dele se fecharam sobre um objecto inesperado, rijo e saliente. Baixando os olhos, viu que ela usava o anel que ele lhe deixara sobre a mesa-de-cabeceira. Ergueu a mão dela e beijou-lhe a palma.
Ao senti-lo, ela mexeu-se, por fim.
Estava a sonhar com Catarina de Aragão murmurou.
E como era ela?
Infeliz. Henrique não a tratava lá muito bem.
Desgraçadamente, tinha-se apaixonado por outra mulher.
Pois tinha, mas não a teria repudiado se ela lhe tivesse dado um filho varão. Porque é que os homens são tão abomináveis?
Não achas que estás a generalizar demasiado depressa?
De Henrique para os homens em geral? Tenho dúvidas. Espreguiçou-se. Reparando no copo de vinho que ele tinha na mão, disse:
Estou a ver que encontraste o teu jantar.
Encontrei, sim. Desculpa-me, querida. Se eu soubesse...
Não tem importância. Pedi a Denton que provasse, e a avaliar pela expressão do rosto dele que, justiça lhe seja feita, tentou ocultar deduzi que não tinha alcançado o cume da excelência em matéria de culinária. Teve a gentileza de me deixar utilizar a cozinha dele, no entanto. Ele descreveu-te O caos em que eu a deixei?
Foi de um laconismo exemplar. Ela sorriu.
Se nos casarmos, Denton irá certamente divorciar-se de ti, Tommy. Como poderia ele suportar que eu queimasse o fundo de todos os seus tachos e Panelas?
Foi isso que fizeste?
Ah, então ele foi mais do que lacónico, não foi? Que homem adorável, Pegou no seu copo de vinho e, segurando-o pelo pé, fê-lo rodar lentamente.
Foi só um tacho, na verdade. E pequenino. E não queimei o fundo todo. É que, sabes, a receita exigia alho salteado e eu dispus-me a salteá-lo Só que distraí-me ao telefone com a tua mãe, aliás. Se o alarme de fumo não tivesse disparado, provavelmente terias encontrado um monte de escombros ao voltar a casa, em vez de agitou a mão na direcção da sala de jantar fettuccine à la mer avec lês crevettes et lês monies.
O que é que a minha mãe queria?
Desfiou o rosário das tuas virtudes. A tua inteligência, a tua compaixão, o teu sentido de humor, a tua integridade e a tua fibra moral. Aproveitei para lhe perguntar pelo estado da tua dentadura, mas ela não me ajudou muito nesse aspecto.
Essa pergunta, terás de a fazer ao meu dentista. Queres que te dê o número de telefone?
Fazias isso?
E mais, ainda. Iria ao ponto de comer os fettuccine à la mer avec lês crevettes et lês monies.
Ela tornou a sorrir.
Eu mesma provei um bocadinho. Estava um horror. Sou um caso perdido, Tommy.
Jantaste?
Denton apiedou-se de mim às nove e meia. Preparou-me qualquer coisa com frango e alcachofras. Divinal. Devorei a comida na cozinha e obriguei-o a jurar segredo sobre o assunto. Mas sobrou ainda um pouco de frango. Vi-o guardá-lo no frigorífico. Queres que eu o ponha a aquecer? Com certeza, devo conseguir fazer isso sem lançar fogo à casa. Ou já jantaste?
Ele disse-lhe que não, que por diversas vezes ao longo daquele dia julgara que o seu dia de trabalho tinha chegado ao fim, mas que a investigação teimara em arrastar-se quase indefinidamente. Confessou que estava esfomeado, ajudou-a a levantar-se e, juntos, desceram as escadas até ao rés-do-chão. Evitando a sala de jantar e os fettuccine à la mer, que continuavam o seu intrépido processo de solidificação, dirigiram-se à cave, onde ficava a cozinha. Helen examinou o interior do frigorífico, sob o olhar atento de Lynley. Sentia-se absurdamente reconfortado, de uma forma juvenil, ao vê-la remover boiões e sacos de plástico até descobrir um determinado recipiente com uma expressão de triunfo no rosto. Que se passaria? Porquê aquela súbita sensação de total contentamento? Seria pelo anel e por ela ter decidido usá-lo? Seria a antecipação de uma refeição moderadamente decente? Ou seria o comportamento dela, afadigando-se na cozinha dele, agindo de uma forma tão decididamente conjugal em relação a ele, tirando pratos de dentro de armários, talheres do interior de gavetas, colocando o frango e as alcachofras dentro de um tacho em aço inoxidável, metendo-o depois no microndas/ fechando a porta com uma expressão...
Helen! Lynley atravessou a cozinha rapidamente, antes que ela tivesse tempo de ligar o aparelho. Não podes pôr utensílios de metal aqui dentro.
Ela olhou-o, perplexa.
Porque não?
Porque não podes. Porque metal e microndas... Que diabo, não sei
porquê. Apenas sei que não podes.
Ela estudou o pequeno electrodoméstico.
Santo Deus. Será que...
O quê?
Provavelmente foi isso que aconteceu ao meu.
Puseste metal lá dentro?
Na verdade, não pensei no objecto como sendo de metal. Uma pessoa nunca pensa neles dessa maneira, sabes.
O quê? Era o quê?
Uma lata de vichyssoise. Nunca gostei dela fria, percebes? E por isso pensei: vou metê-la no microndas durante um ou dois minutos. E assim fiz. Ouvi um estrondo, um silvo, uma efervescência, e depois nada, silêncio. Lembro-me de ter pensado, ”não admira que a sirvam fria”, mas depois pensei que era só sopa. Realmente, nunca relacionei a lata em si com o estrondo, o silvo e a efervescência.
Deixando descair os ombros, numa atitude desencorajada, soltou um suspiro:
Primeiro, o fettuccine. Agora isto. Não sei, Tommy.
Fez rodar o anel no dedo. Ele abraçou-a e beijou-a na têmpora.
Porque é que me amas? perguntou ela. Sou um caso absolutamente perdido e sem remédio.
Eu não diria isso.
Estraguei o teu jantar. Destruo as tuas panelas.
Pára de dizer disparates disse ele, virando-a para si.
Por pouco não faço explodir a tua cozinha. Meu Deus, estarias mais seguro na companhia do IRA.
Não sejas ridícula. Beijou-a.
Se me deixarem entregue a mim mesma, o mais provável é que eu lance fogo à casa e a Howenstow, ao mesmo tempo. Consegues imaginar o horror de tudo isso? Consegues?...
Não. Mas prometo que vou tentar. Durante alguns momentos.
Tornou a beijá-la, desta vez apertando-a contra si e roçando-lhe a boca e os lábios com a língua. Ela colou-se a ele naturalmente e, maravilhado, ele experimentou a milagrosa e antipática natureza da sexualidade masculina-feminina. Contornos angulosos contra curvas, aspereza contra suavidade, dureza contra doçura. Helen era maravilhosa. Era tudo o que ele queria E mal acabasse de comer qualquer coisa haveria de lho provar.
Os braços dela rodearam-lhe o pescoço. Os seus dedos deslizaram langorosamente pelos cabelos de Lynley. As ancas dela comprimiram-se de encontro às dele. Sentia-se, simultaneamente, excitado e estonteado, à medida que os dois apetites disputavam entre si o controlo sobre o seu corpo.
Não conseguia lembrar-se da última refeição equilibrada e nutritiva que ingerira. Fora há trinta e seis horas atrás, pelo menos. Comera um ovo cozido com uma torrada na manhã daquele dia, mas isso dificilmente teria algum peso, tendo em conta o número de horas que se tinham escoado desde então. O frango e as alcachofras continuavam sobre a bancada da cozinha. Levariam menos de cinco minutos a aquecer. E outros cinco a serem devorados. Três minutos para lavar a loiça, se não quisesse deixar os restos para Denton. Sim, essa talvez fosse a melhor solução. Comer. Em menos de quinze minutos estaria como novo, forte como um touro...
Gemeu. Santo Deus. Que se estaria a passar com a sua cabeça? Precisava de sustento. Naquele mesmo instante. Porque, se não comesse, jamais conseguiria...
As mãos de Helen deslizaram ao longo do seu peito, desabotoando-lhe a camisa à medida que progrediam. Baixando até às calças, começaram a desapertar o cinto que as prendia.
Denton já se foi deitar, querido? sussurrou ela, lábios colados aos dele.
Denton? Que teria ele a ver com tudo aquilo?
Não há perigo de ele descer até à cozinha, pois não? Cozinha? Será que ela tencionava mesmo... Não. Não. Impossível. Ouviu o som do fecho das suas calças. Um véu de gaze negra desceu sobre os seus olhos. Pensou na possibilidade de desmaiar de fome. E depois sentiu a mão dela tocá-lo e o pouco sangue que lhe restava na cabeça pareceu latejar furiosamente noutro sítio.
Helen disse ele. Não como nada há horas. Sinceramente, não sei se serei sequer capaz de...
Que disparate.
Ela tornou a cobrir a boca dele com a sua.
Tenho a certeza de que vais portar-te muito bem. E portou-se.
Tenho cãibras nas pernas. Deixei cair quatro lápis nos últimos vinte minutos e não tive forças para levantá-los do chão. Limito-me a ir buscar outro à lata de conservas. Continuo a escrever e esforço-me por ignorar o crescente desequilíbrio que a minha caligrafia tem vindo a sofrer ao longo dos últimos meses.
Chris veio ver como é que eu estava, há minutos atrás. Deixou-se ficar de pé, atrás de mim. Pousou as mãos sobre os meus ombros e massajou-me os músculos como eu gosto. Depois, apoiou a face no alto da minha cabeça.
Não tens de escrever tudo de uma vez disse.
Antes pelo contrário, é precisamente isso o que tenho de fazer contrapus.
Porquê?
Não me faças essa pergunta. Tu sabes porquê.
Deixou-me sozinha. Neste momento está na oficina, construindo uma coelheira para Felix. Isto é o mínimo”, explicou-me. ”Poucas pessoas têm a noção do espaço que um coelho precisa.” Habitualmente trabalha ao som de música; desta vez, porém, deixou o rádio e a aparelhagem desligados, pois quer que eu me concentre e escreva com clareza. Eu também. Mas o telefone toca e eu oiço-o atender a chamada. Oiço a sua voz, que se suaviza e adquire uma entoação macia e doce como o conhaque, se fosse feito de sons. Tento ignorar o que ele diz. ”Sim... Não... Nenhuma alteração em especial... Não vou poder... Não... Não é isso...” Segue-se um longo e terrível silêncio, antes de ele acrescentar ”compreendo”, num tom de voz sofrido que me magoa. Fico à espera de o ouvir sussurrar outras palavras reveladoras. Amor, desejo, saudade, se ao menos. Ou outros sons, como suspiros. Esforço-me por ouvir, mesmo quando recito mentalmente o alfabeto, de trás para a frente, a fim de abafar a voz dele. Oiço-o dizer: ”Paciência, apenas.” E, então, as palavras tornam-se desfocadas, no papel pousado sobre os meus joelhos. O lápis escorrega-me por entre os dedos e cai no chão. Estico o braço para tirar outro da lata.
Chris entra na cozinha. Põe a chaleira ao lume. Vai buscar uma caneca e tira o chá de dentro do armário. Mãos assentes sobre a bancada, baixa a cabeça como se examinasse um objecto que aí estivesse pousado.
Sinto o coração latejar-me na garganta e tenho vontade de dizer: ”Podes ir ter com ela. Vai lá, se quiseres.” Fico calada, no entanto, porque tenho medo que ele se vá embora.
Amar causa-me demasiado sofrimento. Por que razão imaginamos sempre que o amor será maravilhoso? O amor só traz sofrimento. O amor é como derramar ácido sobre o coração.
A água na chaleira começa a ferver e ouve-se o silvo avisador. Ele serve-se de água, perguntando:
Queres uma chávena de chá, Livie?
Pode ser.
Oolong?
Não respondo eu. Não temos Gunpowder? Procura dentro do armário.
Não sei como é que consegues engolir esta mistela. A mim só me sabe a água.
É preciso possuir um paladar apurado digo eu. Há sabores mais delicados do que outros.
Ele vira-se para mim. Olhamo-nos durante alguns instantes. E em silêncio dizemos um ao outro tudo aquilo que não ousamos confessar em voz alta. Por fim, ele diz:
Tenho de terminar a coelheira. Felix vai precisar de um sítio para dormir esta noite.
Digo que sim com a cabeça, mas o meu rosto continua tenso. Quando passa por mim, a sua mão roça no meu braço, e o meu maior desejo é agarrá-la e pressioná-la contra a minha face.
Chris...
Ele pára atrás de mim. Sinto dificuldade em respirar, e a dor é muito mais aguda do que eu esperava.
Provavelmente, ainda vou demorar umas boas horas. Por isso, se quiseres sair... levar os cães para um último passeio... dar um salto até ao pub.
Os cães estão bem, acho eu responde ele, tranquilamente. Olho para o bloco amarelo pautado, o terceiro desde que comecei a escrever.
Já não vou demorar muito mais, sabes digo.
Demora o tempo que quiseres replica ele. Volta ao trabalho.
Diz-me lá, então diz para Felix, como é que preferes os teus novos aposentos: virados a poente ou a nascente?
Logo de seguida, os golpes de martelo tornam a soar, rápidos e seguros. Chris é forte, habilidoso. Não comete erros.
Costumava interrogar-me sobre os motivos que o teriam levado a acolher-me.
Foi um capricho do momento? cheguei a perguntar-lhe.
Porque não fazia nenhum sentido para mim que ele tivesse acolhido uma prostituta, que lhe tivesse pago duas chávenas de café e um crepe, tivesse levado para sua casa, onde a pusera a fazer trabalhos de carpintaria, para acabar por convidá-la a morar com ele quando não tinha qualquer intenção já para não falar em desejo de ir para a cama com ela. De início, pensei que ele queria que eu trabalhasse para ele como puta. Julguei que tinha um vício a sustentar e fiquei à espera de ver seringas, colheres e pacotes de pó. Quando me decidi a perguntar-lhe, ”Porquê tudo isto, afinal?”, ele respondeu ”Tudo isto, o quê?”, passeando os olhos pela lancha, como se a minha pergunta se referisse a ela.
Isto. Este sítio. Eu. Aqui, contigo.
E é suposto ter algum significado em especial?
Um gajo e uma gaja. Quando estão juntos é porque há alguma coisa entre os dois, não achas?
- Ah.
Colocou uma prancha de madeira ao ombro e inclinou a cabeça.
Para onde foi o martelo?
E atirou-se ao trabalho, requisitando a minha ajuda.
Enquanto concluíamos as obras da lancha, dormíamos em dois colchões pneumáticos, à esquerda das escadas, no extremo oposto ao sítio onde estavam instalados os animais. Chris dormia em roupa interior. Eu dormia nua. Em certas ocasiões, de manhã cedo, afastava os cobertores e deitava-me de lado, de maneira que os meus seios parecessem mais fartos. Fazia de conta que estava a dormir e ficava à espera que algo acontecesse entre nós. Surpreendi-o uma vez, a olhar para mim. Vi os seus olhos percorrerem lentamente o meu corpo. A sua expressão era pensativa. É desta, pensei eu. Espreguicei-me, arqueando as costas, num movimento que eu sabia por experiência ser sensual.
Tens uma musculatura invejável, Livie disse ele. Fazes ginástica? Costumas correr?
Acho que consigo correr quando tem de ser.
És rápida?
Como é que queres que saiba isso?
E no escuro? Sentes-te à vontade no escuro? Aproximei-me dele e acariciei-lhe o peito.
Depende do que se estiver a passar no escuro, de facto.
Correr. Saltar. Escalar. Esconder.
O quê? Jogar aos índios e cowboys.
Algo desse género.
Insinuei os meus dedos no elástico das suas cuecas. Ele agarrou-me pelo Pulso.
Vamos lá ver, então disse.
Ver o quê?
Se és boa noutra coisa, que não seja isto.
És larilas? É isso? Tens o libido em baixo? Porque é que não queres ir para a cama comigo?
Porque nada desse género vai acontecer entre nós. Abandonou o colchão pneumático e pôs-se de pé. Agarrou nas calças de ganga e na camisa e vestiu-se em menos de um minuto, costas viradas para mim, cabeça baixa, permitindo-me admirar a sua nuca, vulnerável e enternecedora.
Não és obrigada a comportares-te dessa maneira com os homens disse ele. Há outras alternativas.
Alternativas para quê?
Para seres tu mesma. Para seres útil. Sei lá.
Oh, claro.
Sentei-me, aconchegando o cobertor em volta do corpo. Através das guarnições das ombreiras as portas ainda não tinham sido colocadas, conseguia ver os animais, no outro extremo do tombadilho. Toast estava acordado e mordiscava uma bola de borracha, tal como o beagle, que Chris baptizara como Jam. Uma das ratazanas pedalava na sua roda, que estava dentro de uma gaiola, produzindo um ruído estranho, semelhante à cadência de uma metralhadora, perdida na distância.
Continua. Diz lá, então disse eu.
O quê?
Continua com o sermão que estás morto por me dar. Só que é melhor teres cuidado, porque eu posso não gostar agitei o braço na direcção dos animais. Posso sair daqui para fora quando muito bem me apetecer.
E porque é que não o fazes?
Lancei-lhe um olhar fulminante. Não consegui responder. Tinha um estúdio em Earl’s Court. Uma clientela regular. Oportunidades diárias para expandir o negócio. Desde que estivesse disposta a fazer o que fosse preciso e estivesse disponível para viver todo o tipo de experiências. Tinha uma fonte de rendimento segura e estável. Porque é que fiquei, então?
Naquela época, pensei: é porque tenciono mostrar-te com quantos paus se faz uma canoa. Antes que tudo isto esteja acabado, meu querido, hei-de pôr-te a uivar à lua. Vais desejar-me tanto que hás-de rastejar aos meus pés só para que eu te deixe lamberes-me os tornozelos.
E para consegui-lo, claro, tinha de ficar a viver com ele.
Apanhei as minhas roupas, que estavam espalhadas pelo chão, entre os dois colchões, e enfiei-as. Dobrei o cobertor e passei a mão pelos cabelos para alisá-los.
Está bem disse eu.
O quê?
Vou mostrar-te.
O quê?
Como consigo correr depressa. E até onde. E tudo o mais que quiseres saber.
Sabes escalar?
Claro. Óptimo.
Agachares-te?
Canja.
Deslizar sobre o estômago?
Acho que vais descobrir que essa é a minha especialidade.
Ele corou. Foi a primeira e a única vez que consegui deixá-lo embaraçado. Com a ponta do pé, afastou uma prancha de madeira.
Livie... disse.
Não fazia tenções de te cobrar nada repliquei. Ele suspirou.
Não é por seres uma prostituta. Não tem nada a ver com isso.
Tem, sim disse eu. Para começar, eu não estaria aqui se não fosse puta.
Subi ao tombadilho. Ele veio ter comigo. O dia estava cinzento e ventoso. Folhas de árvores esvoaçavam ao longo da plataforma que ligava os barcos ao cais. A chuva começava a enrugar a superfície do canal.
Muito bem disse eu. Correr, escalar, agachar, deslizar.
E saí, seguida por Chris, decidida a mostrar-lhe o que era capaz de fazer.
Estivera a testar as minhas capacidades. Isto é óbvio para mim, hoje, mas na época supus que eram apenas estratégias para se impedir a si próprio de ceder aos meus encantos. É que eu ignorava tudo sobre as suas outras actividades, percebem? Durante as primeiras semanas que passámos juntos, ele trabalhava na lancha, encontrava-se com clientes que necessitassem dos seus serviços para trabalhos de restauro de casas antigas e tratava dos animais. À noite, ficava em casa, a ler na maior parte do tempo, embora também ouvisse música e atendesse dúzias de telefonemas que eu supunha pelo tom profissional e pelas inúmeras referências, tanto à cidade como a diferentes mapas militares estarem relacionados com os seus trabalhos como restaurador. Saiu à noite, pela primeira vez, cerca de quatro semanas depois de me ter acolhido na sua lancha. Tinha uma reunião, disse ele uma reunião mensal, acrescentou, com quatro amigos dos tempos de escola, o que em certa medida era verdade, como depois vim a descobrir e não chegaria tarde. Não chegou, de facto. Tornou a sair uma segunda vez, nessa semana, e ainda uma terceira. Na quarta saída, só regressou às três horas da madrugada e quando chegou fez um alarido dos diabos, acordando-me. Perguntei-lhe onde tinha estado. ”Bebi de mais”, foi a resposta dele, afundando-se no colchão Pneumático e caindo de imediato num sono profundo. Uma semana mais tarde, retomou as saídas. Ia encontrar-se com os amigos, disse. Só que dessa vez não regressou a casa.
Esperei-o, sentada no tombadilho, acompanhada por Toast e por Jam. À medida que as horas passavam, a minha preocupação crescia. Muito bem pensei, este joguinho pode muito bem ser jogado a duas mãos. Vesti a minha saia de licra, pus as minhas lantejoulas, os collants pretos e os saltos-agulha rumei até Paddington. Engatei um montador de filmes australiano que estava a trabalhar num projecto cinematográfico, nos estúdios de Shepperton. Ele queria levar-me para o hotel onde estava hospedado, mas isso não servia de todo os meus propósitos. Queria-o na lancha.
Ele ainda lá estava adormecido, completamente nu, um braço atirado sobre os olhos e uma mão pousada sobre a minha cabeça, que repousava sobre o peito dele quando Chris finalmente regressou, silencioso como uma empregada a dias, às seis e meia da manhã do dia seguinte. Abriu a porta e desceu os degraus, trazendo o casaco pendurado no braço. Por momentos, não consegui vê-lo com nitidez, por causa da luz que me cegava. Semicerrei os olhos e depois espreguicei-me, feliz, quando distingui os contornos da sua cabeleira ruiva. Bocejei e comecei a acariciar a perna do australiano, que reagiu com um gemido.
Bom dia, Chris cumprimentei-o. Apresento-te o Bri. Um australiano. Amoroso, não é?
E virei-me para me concentrar em Brian, fazendo aumentar o volume do seu baixo-ventre e fazendo-o gemer ainda mais. Ele aconchegou-me ainda mais a ele, murmurando: ”Outra vez, não. Não consigo. Vou atirar ao lado, Liv.”
Tanto quanto me era dado ver, ele ainda não abrira os olhos.
Livra-te dele, Livie disse Chris. Preciso de ti. Ignorei-o e continuei a excitar Brian.
O quê? Quem? O que é que se passa? gaguejou subitamente Brian, soerguendo-se e apoiando-se nos cotovelos.
Agarrou o cobertor e cobriu-se da cintura para baixo.
Este é Chris disse eu. Acariciei o peito de Brian. Vive aqui.
Quem é ele?
Ninguém. É Chris. Já te disse. Vive aqui.
Puxei o cobertor. Brian agarrou-se a ele ainda mais. Com a outra mão começou a tactear o chão à procura das suas roupas. Atirei-as para longe com um pontapé, dizendo:
Ele está ocupado. Não vamos incomodá-lo. Anda cá. A noite passada não dizias que não.
Já percebi disse Chris. Leva-o daqui para fora.
E, de súbito, ouviu-se outro som. Um lamento abafado. Vi, então, que Chris segurava, não o casaco, mas um velho cobertor castanho, cuja bainha tinha sido rasgada, onde estava escondido algo de volumoso. Chris atravessou a lancha e dirigiu-se para a zona mais recuada da lancha, o sítio onde estavam os outros animais. A cozinha já estava concluída nessa altura, tal como o espaço reservado aos bichos e a casa de banho. Por isso, não conseguia perceber o que ele estava a fazer ali. Ouvi os latidos de Jam. Chris gritou por cima do ombro:
Ao menos deste de comer aos bichos? Levaste os cães a passear? Oh, merda. Esquece.
E, em seguida, numa voz muito baixa e suave, acrescentou:
Pronto. Está tudo bem. Vai correr tudo bem.
O australiano e eu mantínhamos os olhos fixos na direcção que ele seguira.
Vou-me pirar disse Brian.
Tudo bem respondi.
Os meus olhos, porém, continuavam presos à porta da cozinha. Enfiei uma T-shirt à pressa. Ouvi Brian subir os degraus e fechar a porta atrás de si. Entrei na cozinha e fui ter com Chris.
Estava debruçado sobre a longa mesa de trabalho. Não acendera a luz. A claridade fraca do sol matinal penetrava através da janela.
Está tudo bem dizia, numa voz terna. A sério que está. Foi uma noite difícil, não foi? Mas agora já passou.
O que é que tens aí? perguntei, olhando por cima do ombro dele. Oh, meu Deus! exclamei, com um sobressalto. O que é que aconteceu? Estavas com os copos, ou quê? De onde é que ele saiu? Atropelaste-o?
Foi a única explicação que me ocorreu quando vi o beagle pela primeira vez. Todavia, se estivesse menos afectada pelo álcool teria percebido que as suturas que começavam entre os dois olhos do animal e se prolongavam até à base da sua cabeça estavam longe de serem recentes. Não, aquilo não eram vestígios de uma cirurgia de emergência realizada durante a noite. O cão estava deitado de lado e respirava com dificuldade. Quando Chris aproximou os dedos da mandíbula, o animal agitou debilmente a cauda.
Agarrei no braço de Chris.
Tem um aspecto horrível. O que é que lhe fizeste? Olhou-me de relance e, pela primeira vez, vi como estava pálido.
Roubei-o disse. É o meu trabalho.
Roubaste-o? Isso?... A quem?... Que diabo se passa contigo? Assaltaste o consultório de um veterinário?
- Ele não estava no veterinário.
Então, onde...
Retiraram-lhe uma parte do crânio para expor o cérebro. Preferem os beagles porque são uma raça afectuosa. É fácil ganhar a sua confiança. O que, obviamente, é indispensável, antes de...
Preferem? Quem é que prefere? De quem é que estás a falar? Estava a deixar-me assustada. Tal como na noite em que o tinha conhecido.
Pegou num frasco e numa caixa com algodão. Em seguida começou a cobrir as suturas. O cão fitava-o com olhos tristes e vítreos, as orelhas baixas presas ao crânio dilacerado. Chris segurou delicadamente a pele do beagle e prendeu-a entre o polegar e o dedo indicador. Quando a soltou, a pele permaneceu na mesma posição.
Está desidratado disse Chris. Precisa de uma intravenosa.
Nós não temos...
Eu sei. Toma conta dele. Não o deixes levantar-se.
Foi até à cozinha. Ouvi água a correr. Estendido sobre a mesa, o cão lutava para manter os olhos abertos. O ritmo da sua respiração tornou-se mais lento e as patas estremeceram. Sob as pálpebras, os globos oculares pareciam agitar-se sem descanso.
Chris! chamei. Despacha-te!
Toast estava de pé e empurrava-me a mão com o focinho. Jam retirara-se para um canto onde se entretinha a mordiscar um bocado de pele.
Chris!
E quando ele regressou com uma tigela de água fresca:
Está a morrer. Acho que ele está a morrer.
Chris pousou a água e inclinou-se para o cão. Examinou-o, uma mão pousada sobre o flanco.
Está a dormir disse.
Mas as patas dele. Os olhos.
Está a sonhar, Livie. Os animais sonham, sabes. Tal como nós. Molhou os dedos na água e aproximou-os do focinho do beagle, que estremeceu. O cão entreabriu os olhos. Lambeu as gotas dos dedos de Chris. A sua língua estava quase branca.
Isso disse Chris. Assim mesmo. Devagarinho.
Tornou a molhar a mão e aproximou-a uma vez mais do focinho do animal, ficando a vê-lo lamber-lhe a mão. A cauda do beagle batia ritmadamente contra o tampo da mesa de trabalho. Tossiu. Chris permaneceu junto dele, pacientemente, dando-lhe água. Demorou uma eternidade. No fim, quando tudo estava terminado, colocou-o carinhosamente no chão, numa cama feita com cobertores. Toast aproximou-se e farejou as extremidades dos cobertores. Quanto a Jam, deixou-se ficar no sítio onde estava, mordiscando o seu pedaço de pele.
Onde estiveste? perguntei eu. O que é que aconteceu? Onde é que o descobriste?
De repente, no outro extremo da lancha, soou uma voz masculina, chamando:
Chris? Estás em casa? Só recebi a tua mensagem agora. Desculpa.
Chris respondeu-lhe, gritando por cima do ombro:
Estou aqui, Max.
Um homem mais velho veio juntar-se a nós. Era calvo e usava uma pala num olho. Estava impecavelmente vestido com um fato azul-marinho, camisa branca e gravata salpicada de pontos minúsculos. Trazia uma mala preta, como aquelas que os médicos costumam usar. Olhou para mim e depois para Chris, hesitante.
É de confiança, não te preocupes explicou Chris. Apresento-te
Livie.
O tipo cumprimentou-me com um aceno de cabeça e ignorou-me logo de seguida.
O que é que nos trouxeste? perguntou a Chris.
Este, aqui respondeu Chris. Robert conseguiu outros dois. A mãe dele, um quarto. Este era o que estava em pior estado.
Mais alguma coisa?
Dez furões. Oito coelhos.
Onde?
Em casa de Sarah. E de Mike.
E este? Baixou-se para examinar o cão. Deixa estar, eu vejo. Abriu a mala.
Leva os outros lá para fora, se não te importas sugeriu, referindo-se a Toast e a Jam.
Não vais abatê-lo, pois não, Max? Eu posso muito bem tomar conta dele. Basta que me dês o que for preciso, que eu trato dele.
Max levantou a cabeça.
Leva os cães lá para fora, Chris.
Fui buscar as trelas deles, que estavam penduradas em dois pregos suspensos na parede.
Vamos disse eu a Chris.
Recusou-se a ir mais longe do que a plataforma de acesso ao cais. Os cães deambularam em direcção à ponte, farejando o muro e parando, frequentemente, para o marcarem. Aproximaram-se da água e ladraram aos patos. Jam agitou o corpo, abanando furiosamente as orelhas, como se estivesse molhado. Toast imitou-o, mas desequilibrou-se e caiu pesadamente sobre o ombro. Levantou-se em seguida. Chris assobiou. Viraram-se e saltitaram na nossa direcção.
Max veio ter connosco.
Então? perguntou Chris.
Vou dar-lhe quarenta e oito horas. Fechou a mala. Deixei-te mais comprimidos. Dá-lhe arroz cozido e carne de carneiro moída. Meia chávena. Veremos o que acontece.
Obrigado agradeceu Chris. Vou chamar-lhe Beans.
No teu lugar, chamar-lhe-ia Sortudo.
Quando os cães se aproximaram de nós, Max acariciou a cabeça de Toast e puxou carinhosamente as orelhas de Jam.
Este está pronto para lhe arranjarmos um lar disse ele a Chris.. Tenho uma família em vista para ele, em Holland Park.
Não sei. Veremos.
Não podes ficar com todos.
Tenho consciência disso. Max consultou o relógio.
Muito bem disse.
Meteu a mão no bolso. Os dois cães latiram e recuaram um pouco. Ele sorriu e atirou um biscoito a cada um deles.
Vai dormir um pouco disse a Chris. Fizeste um bom trabalho. Parabéns.
Cumprimentou-me com outro aceno de cabeça e afastou-se na direcção da ponte.
Chris instalou o seu colchão pneumático junto dos animais. Passou a manhã a dormir ao lado de Beans. Eu fiquei junto de Toast e de Jam, na oficina. Enquanto eles disputavam entre si um boneco de borracha, eu tentava organizar as caixas, ferramentas e tábuas de madeira. De vez em quando tomava nota de uma chamada telefónica. Eram recados enigmáticos. ”Diga a Chris que está tudo em ordem com os canis de Vale of March”, ”Tudo a postos em Laundry Farm”, ”Cinquenta pombas em Lancashire”, ”Nenhuma novidade sobre Boots. Continuamos à espera de notícias de Sônia”. Quando Chris acordou, ao meio-dia e um quarto, eu começava a compreender o que não fora capaz de ver antes.
Devo dizer que o noticiário da BBC, que anunciou as actividades levadas a cabo, na noite anterior, pelo Animal Rescue Movement em Whitechapel foi uma ajuda preciosa. Quando Chris entrou na oficina, a personalidade que estava a ser entrevistada declarava num tom de voz mortificado: ”Destruíram levianamente quinze anos de investigação médica com a sua estupidez cega.”
Chris ficou parado à entrada, uma chávena de chá na mão. Fitei-o.
Roubas animais?
Exactamente.
Toast?
Sim.
Jam?
Sim.
As ratazanas?
E gatos e ratos. De tempos a tempos, um pónei. E macacos, muitos macacos.
Mas... isso é ilegal. - É, não é?
Então, porque é que tu...
Era inconcebível. Chris Faraday, o mais cumpridor dos cidadãos. Quem era ele, afinal?
O que é que lhes fazem? Aos animais, quero dizer.
Tudo o que lhes passa pela cabeça. Choques eléctricos. Ou então cegam-nos, fracturam-lhes o crânio, provocam-lhes úlceras gástricas, seccionam-lhes a medula, queimam-nos. Enfim, tudo aquilo de que se lembrarem. São apenas animais. Não sentem dor. Apesar de terem um sistema nervoso central, como todos nós. E receptores de dor, bem como conexões entre estes receptores e o sistema nervoso. Apesar de...
Esfregou os olhos com as costas da mão.
Desculpa. Estou a dar-te um sermão. Tive uma noite muito longa. Tenho de ir ver como está Beans.
Achas que ele vai sobreviver?
Se eu tiver alguma palavra a dizer sobre o assunto, podes apostar que sim.
Permaneceu junto de Beans todo o dia e toda a noite. Max voltou na manhã do dia seguinte. Conversaram por breves momentos. O diálogo entre ambos foi tenso. Ouvi Max dizer: ”Ouve o que te digo, Christopher. Não podes...” e Chris cortar-lhe a palavra com: ”Não. Vou fazê-lo.”
No final, Chris acabou por sair vitorioso, aceitando uma solução de compromisso: Max levaria Jam consigo e entregá-lo-ia à tal família de Holland Park e nós ficaríamos com Beans. Quando as obras da lancha estivessem concluídas, serviria de refúgio temporário para os animais resgatados durante a noite, o quartel-general a partir do qual Chris exerceria o seu poder clandestino.
Poder. Quando vimos as fotografias que mostravam o que tinha acontecido junto ao rio, na última quinta-feira à tarde, Chris disse que chegara o momento de eu proclamar a verdade.
Tu podes pôr um fim a tudo isto, Livie. Tens esse poder.
E como soavam estranhas aquelas palavras, já que traduziam precisamente aquilo que eu sempre desejara.
Nisso, suponho, sou mais parecida com a minha mãe do que gostaria de admitir. Enquanto eu aprendia a cuidar dos animais, assistia às minhas primeiras reuniões do Movimento e arranjava um emprego que poderia vir a revelar-se útil aos nossos intentos, técnica inferior no hospital veterinário do Jardim Zoológico de Londres, a minha mãe punha em marcha a sua estratégia relativamente a Kenneth Fleming. Quando conseguiu descobrir o sonho secreto do seu antigo aluno integrar a selecção inglesa de críquete ficou também a conhecer a brecha no casamento dele com Jean Cooper. Para a minha mãe, que Kenneth e Jean pudessem, não só ser compatíveis mas tambem ser felizes um com o outro e estar satisfeitos com a vida que tinham construído para eles e para os filhos era simplesmente inaceitável. Apesar de tudo, intelectualmente, Jean não estava à altura de Kenneth. E, de certa maneira ela atraíra-o a uma armadilha, à qual ele se submetera em nome do dever-e-da-responsabilidade. Não porque a amasse, todavia. Aos olhos da minha mãe, Kenneth estava condenado a puxar uma charrua que há muito ficara atolada na lama. O críquete seria a sua passagem para a liberdade.
Agiu com prudência e discernimento. Kenneth ainda jogava na equipa de críquete da fábrica, e por isso ela começou por ir assistir aos jogos. De início, os operários sentiram-se um pouco desconcertados com a sua presença, cadeira de lona e chapéu de palha, instalada junto à linha, numa das extremidades do campo onde jogavam, em Mile End Park. Os rapazes da equipa tratavam-na por ”minha senhora”, e tanto eles como as respectivas esposas mantinham uma distância respeitosa.
A minha mãe não se deixou desencorajar por esta atitude. Estava habituada àquele tipo de reacções. Sabia que era uma figura importante, vestida com as suas roupas estivais, de corte clássico, com sapatos e malas a condizer. Sabia também que as diferenças entre a sua vida e a dos seus funcionários não se limitavam a Hyde Park, Green Park e à City londrina. Todavia, estava persuadida de que, um dia, haveria de sair vitoriosa. Jogo após jogo, ia-se misturando cada vez mais com as mulheres dos jogadores. Conversava com os filhos deles. Em suma, conseguiu fazer-se aceitar pelo grupo, sem no entanto deixar de manter as distâncias. Entusiasmada, gritava: ”Oh, bem jogado! Bem jogado!”, junto de uma pequena mesa onde dispunha o chá e os biscoitos que nunca se esquecia de trazer, tecendo comentários, durante a pausa para o lanche, no final do jogo, ou na fábrica, sobre uma jogada particularmente bem executada. Os jogadores e as suas famílias começaram a aceitá-la e até a antecipar a presença dela nos jogos. Ao fim de algum tempo começou a organizar reuniões regulares com os membros da equipa, encorajando-os a delinearem estratégias de jogo e a procurarem aconselhamento junto de jogadores mais experientes.
Chegou até a acalmar as apreensões que a sua presença durante os jogos fazia nascer em Jean Cooper. Sabia que a chave do futuro de Kenneth Fleming residia em conquistar a confiança de Jean, e dispôs-se a provar que era digna dela. Assim, mostrava-se interessada nos progressos escolares dos dois filhos mais velhos. Embrenhava-se em conversas sobre a saúde e o desenvolvimento do mais novo, um rapazinho de três anos de idade chamado Stan, que revelava algumas dificuldades na fala e caminhava ainda com passos hesitantes quando já deveria ser capaz de se equilibrar firmemente nos seuspróprios pés.
Olivia era exactamente igual a Stan, com a mesma idade confessava a minha mãe. Mas aos cinco anos, já não conseguia mantê-la sossegada em sítio nenhum. E falava pelos cotovelos, meu Deus.
E ria docemente das ansiedades e angústias de outros tempos.
As preocupações que eles nos dão, não é verdade?
Um verdadeiro achado, este nos.
Dir-se-ia que o encontro desastroso entre Jean e a minha mãe, alguns dias antes, em Billingsgate Market, nunca acontecera. As duas substituíram a troca de insultos por conversas sobre creches, sobre as extraordinárias semelhanças entre Jimmy e o pai, o instinto maternal de Sharon, que a garota revelara desde o dia em que Jean trouxera o pequeno Stan da maternidade. A minha mãe tinha o cuidado de não abordar temas que pudessem despertar em Jean um sentimento de inferioridade. Já que iam conjugar esforços para ajudar ao renascimento pessoal de Kenneth, tinham de estar em pé de igualdade. Com efeito, era preciso que Jean aceitasse o que, antes, lhe parecera impensável. E a minha mãe era astuta o suficiente para perceber que só poderia conquistar a concordância de Jean, se esta pensasse que a ideia, em parte, também era dela.
Já perguntei a mim mesma por diversas vezes se a mãe terá delineado a sua estratégia de uma forma sistemática, ou se terá seguido o seu instinto. E também já me perguntei se ela terá tomado a sua decisão de fazer de Kenneth Fleming um jogador famoso no momento em que o viu em acção no campo de críquete. O que as suas maquinações têm de notável e de audacioso é o facto de parecerem mesmo hoje, e para mim, que conheço a verdade perfeitamente naturais. Tão naturais, que eu jamais suporia que uma mente maquiavélica poderia estar na sua origem.
De onde lhe terá vindo a ideia de que a equipa da fábrica precisava de um capitão? De um raciocínio lógico, claro. A partir de uma pergunta delicada, que deve ter formulado com o espanto característico de um neófito: ”Digam-me lá uma coisa. A selecção inglesa tem um capitão, não tem? As equipas dos diferentes condados também, não é? Aliás, as equipas de todas as escolas e universidades do país devem ter um capitão. Talvez os rapazes da Whitelaw Printworks devessem ter também um capitão, não acham?”
Depois de terem reflectido longamente, os rapazes escolheram o seu capataz para capitão da equipa. Quem melhor para organizar os jogos da equipa do que o homem que supervisionava o trabalho de todos eles na fábrica? Pensando bem, no entanto, esta talvez não fosse uma ideia lá muito boa. Afinal, as competências requeridas nas oficinas não são exactamente as mesmas que são necessárias num campo de críquete, pois não? E mesmo que fossem, era preciso fazer alguma distinção entre o tempo passado no local de trabalho e as horas dedicadas ao lazer. E como seria isso possível, se aquele
que era o capataz na fábrica ocupasse exactamente a mesma posição no campo de críquete? Não seria muito melhor que o capataz fosse, ele próprio, Um simples jogador, em vez de ser o líder da equipa? Será que o espírito de camaradagem não sairia ainda mais reforçado, se o capataz fosse um dos jogadores da equipa?
Claro que sim. Os rapazes concordaram. O capataz também. Decidiram então, proceder a uma nova escolha. Teria de ser alguém que conhecesse bem as regras do jogo, que o tivesse praticado nos seus tempos de estudante alguém que desempenhasse um papel inspirador e galvanizador dentro do campo, quer como batedor quer como lançador. A equipa tinha dois bons lançadores: Shelby, o compositor, e Franklin, responsável pela manutenção das máquinas. E, claro, tinham um batedor notável: Fleming, que trabalhava a meio tempo numa das impressoras e cumpria o resto do horário de trabalho na administração. E que tal Fleming? Estaria ele à altura da função? Se o escolhessem, nem Shelby nem Franklin sairiam menosprezados. Porque não dar uma oportunidade a Fleming?
E foi assim que Kenneth se tornou capitão da equipa. As novas funções não lhe rendiam nem dinheiro nem prestígio. Nada disso interessava, porém, porque a finalidade última era aguçar o apetite dele pelo jogo, fazê-lo sentir-se cada vez mais nostálgico em relação a um passado não cumprido.
Ninguém ficou surpreendido, muito menos a minha mãe, com o enorme sucesso obtido por Kenneth enquanto capitão de equipa. Distribuía os jogadores com sabedoria e precisão, colocando-os ora numa posição ora noutra, até descobrir aquela que mais lhes convinha. Encarava o jogo como uma ciência, e não tanto como uma oportunidade para granjear popularidade entre os companheiros de equipa. O seu desempenho permanecia inalterado. Quando manejava o bastão, Kenneth Fleming fazia maravilhas.
Nunca jogava críquete a pensar na possível adulação do público. Jogava porque adorava o críquete. E a sua paixão era evidente: na forma decidida como se colocava em posição, no sorriso radiante que lhe iluminava o rosto um segundo depois de ter batido a bola. Foi ele, por isso, o primeiro a acolher com entusiasmo a proposta de um velho cavalheiro chamado Hal Rashadam que, depois de ter assistido a três ou quatro jogos, decidiu oferecer-se para ser treinador da equipa. Por gozo, justificou Rashadam. Gosto do jogo. Cheguei a jogá-lo quando tinha idade e forças para isso. Gosto que ele seja praticado como deve ser.
Um treinador para uma equipa fabril? Era inédito. De onde saíra ele, afinal? Os jogadores tinham reparado nele, junto ao campo de jogos, coçando o queixo, meneando a cabeça e falando sozinho, de tempos a tempos. Tomaram-no por um dos maluquinhos da vizinhança e esqueceram-no de imediato. Por isso, quando Rashadam se aproximou, depois de um jogo particularmente renhido contra a equipa de uma fábrica de Haggerston, e ofereceu os seus conselhos acerca do modo como a equipa jogava, os rapazes sentiram-se tentados a dizer-lhe que não metesse o nariz onde não era chamado.
Foi a minha mãe que lhes travou o impulso: ”Esperem um momento, meus senhores. Há qualquer coisa... a que é que o senhor está a referir-se, exactamente?” E deve ter colocado a pergunta com tal ingenuidade, que hum deles suspeitou do tempo que ela demorara a persuadir Hal Rashadam a vir assistir a um jogo da Whitelaw Printworks. Porque não duvidem, era a minha mãe que estava por detrás da presença de Rashadam, como alguém com um mínimo de inteligência teria percebido logo que ele aparecera em Kenneth Fleming exclamara: ”Rashadam. Rashadam!” Depois, batendo com a mão na testa, desatou a rir e disse aos companheiros de equipa: ”Ora bolas, vocês não sabem quem é Rashadam, seu bando de ignorantes?”
Harold Rashadam. O nome diz-vos alguma coisa? Suponho que não, se não forem daqueles que seguem a modalidade com a mesma paixão de um Kenneth Fleming. Rashadam foi obrigado a abandonar o críquete há cerca de trinta anos, em consequência de uma lesão no ombro. No entanto, ao longo da sua curta carreira de dois anos, primeiro no Derbyshire e depois na selecção inglesa, distinguira-se como um jogador extraordinariamente completo.
As pessoas acreditam naquilo em que querem acreditar. E, aparentemente, os rapazes da Whitelaw Printworks queriam acreditar que Hal Rashadam descobrira a equipa por acaso, quando viera visitar uns amigos que moravam nas imediações de Mile End Park. Andava a passear por ali, dissera ele, e eles engoliram a explicação. Queriam acreditar, também, que Rashadam estava a oferecer-lhes os seus serviços como treinador gratuitamente. Por amor ao desporto, apenas. Estava reformado, alegou ele, tinha muito tempo livre e gostava de ter com que ocupar a cabeça. Além disso, queriam acreditar que o interesse de Rashadam se estendia a toda a equipa e não apenas a um dos seus elementos e que, por isso, o colectivo beneficiaria dos seus conselhos.
A minha mãe encorajou-os, como é evidente. A sua reacção à sugestão de Rashadam foi: ”Deixe-nos pensar um pouco sobre o assunto, está bem, Mr. Rashadam?” Em seguida reuniu-se com os rapazes da equipa e vestiu o hábito da Dama Prudência: ”Será ele realmente quem diz ser? E quem era este Rashadam nos tempos em que era uma figura importante?”
Alguém se encarregou de investigar, desenterrando velhos recortes de jornais, descobrindo uma cópia do Wisden Cricketers Almanack, para que ela Pudesse ver com os seus próprios olhos. A minha mãe sofreu, então, uma transmutação e trocou as vestes de Dama Prudência pelas de Dama Interesse. Tenho a certeza que se sentia interiormente deliciada por ver o efeito que o Aparecimento de Rashadam em Mile End Park tinha produzido em Kenneth Fleming.
Como teria ela conhecido o antigo campeão? Estão a tentar adivinhar a resposta, não é verdade? Por que artes mágicas Miriam Whitelaw, antiga professora de inglês, teria conseguido tirar um ás do críquete de dentro da cartola?
É simples. Pensem nos anos de vida que ela consagrou a obras de beneficência e ao voluntariado, pensem no que todos esses anos significaram em termos de contactos, conhecimentos, de organizações que estavam em dívida para com ela. Um amigo de um amigo, era tudo o que ela precisava. Se conseguisse persuadir alguém como Rashadam a visitar Mile End Park num domingo à tarde, a passear-se pelo campo, dissimulado entre espectadores sentados nas suas cadeiras de lona e acompanhados dos seus cestos de piquenique, o talento de Kenneth Fleming encarregar-se-ia do resto. Estava certa disso.
Naturalmente, havia a questão do dinheiro. Rashadam não se teria dado a tanto trabalho por ter uma alma pura e generosa. Nem a minha mãe lhe teria exigido que o fizesse. Era uma mulher de negócios, e aquilo era um negócio. Ele deve ter fixado o seu preço para visitar, conversar e treinar. E ela deve tê-lo pago.
Porquê?, perguntarão. Parece-me que estou a ouvir-vos: Por que razão se daria ela a tanto trabalho? Porquê sujeitar-se a tantos sacrifícios?
Porque, para a minha mãe, não se tratava nem de um incómodo, nem de um sacrifício. Fazia apenas aquilo que tinha vontade de fazer. Já não tinha marido. A sua relação comigo fora destruída por ambas as partes interessadas. Precisava de Kenneth Fleming. Chamem-lhe o que quiserem: necessidade de um objectivo onde concentrar as suas atenções e preocupações, de um possível destinatário para os seus afectos, de uma causa pela qual valesse a pena lutar e que tivesse possibilidades de ganhar, de um homem que substituiria aquele que perdera, de um filho para ocupar o lugar deixado vago por aquela que ela expulsara da sua vida. Talvez sentisse que o tinha abandonado, dez anos antes, no tempo em que ele era seu aluno. Talvez encarasse a amizade que entretanto renascera entre ambos como uma excelente oportunidade para se redimir e não o abandonar uma segunda vez. Ela sempre acreditara no seu potencial. Talvez procurasse apenas uma forma de provar que tinha razão. Desconheço aquilo em que ela estaria a pensar, exactamente, que esperanças alimentava, que sonhos e planos eram os seus quando começou a pôr de pé a sua estratégia. Acredito, no entanto, que o seu coração estava no lugar certo. Queria o melhor para Kenneth. Mas também queria ser aquela que lhe mostraria qual o caminho a seguir.
Rashadam passou, então, a fazer parte da equipa da fábrica. Kenneth em breve se tornou o alvo preferencial das suas atenções. Primeiro em Mile End Park, onde Rashadam se excedia em conselhos e trabalhava o talento especial que Kenneth Fleming revelava no manuseamento do bastão. Ao fim de dois meses, o velho jogador de críquete sugeriu a marcação de algumas sessões de treino nos terrenos do Lord’s.
Gozariam de maior privacidade, em certa medida, terá ele dito a Fleming- Afinal, não queremos atrair as atenções de nenhum caçador de talentos.
E lá foram eles para o Lord’s. De início, treinavam apenas aos domingos de manhã. Não é difícil imaginar o que terá sentido Kenneth Fleming quando as portas da escola de críquete se fecharam atrás dele e ele ouviu o som das bolas batendo nos bastões e o sussurro que produziam ao serem lançadas por outros jogadores. Não é difícil adivinhar o que ele deve ter sentido ao percorrer os campos de críquete: estômago tenso, palmas das mãos húmidas de ansiedade, a excitação apagando do seu espírito eventuais dúvidas sobre os motivos que levariam Hal Rashadam a consagrar tanto tempo e energia a um jovem, cujo futuro não estava no críquete afinal de contas já tinha vinte e sete anos, já não era nenhuma criança, mas na Isle of Dogs, numa casa de tijolo geminada, em Cubitt Town, junto da mulher e dos três filhos de ambos.
E Jean, em tudo isto? Onde estava ela? Que estava a fazer? Qual era a sua reacção às atenções que Kenneth recebia de Rashadam? Suponho que, inicialmente, não se terá apercebido de nada. Nos primeiros tempos, as atenções foram muito discretas. Quando Kenneth chegava a casa e dizia: ”Hal pensa isto”, ou ”Hal diz aquilo”, ela decerto que terá concordado com um movimento de cabeça, reparando como o cabelo do marido estava a adquirir uma tonalidade mais dourada devido às exposições cada vez mais frequentes ao sol, como a sua pele nunca tivera um brilho tão saudável, como os seus movimentos eram mais ágeis e seguros, como o seu rosto transbordava de alegria e irradiava um entusiasmo pela vida que ela já não se lembrava que ele possuía. Tudo isto se deve ter traduzido em desejo. E, na cama, os corpos unidos num movimento único e ritmado, a questão menos importante era saber até onde os conduziria todo aquele ardor pelo críquete e se no amor que o marido sentia por aquele desporto não estaria o germe da infelicidade deles.
Suponho que Kenneth Fleming terá ocultado à mulher o seu desejo mais profundo e querido, esse desejo nascido da esperança e da fantasia, que tão pouco tinha que ver com a sua vida quotidiana. Entre os afazeres domésticos, os filhos e o emprego em Billingsgate Market, Jean não tinha um minuto de descanso. Teria certamente desatado a rir perante a ideia de que Kenneth seria capaz de vir a fazer outra coisa na vida que não fosse garantir o seu lugar na fábrica e, talvez, um dia mais tarde, ser promovido a gerente. Estas dúvidas não derivavam de uma incapacidade ou de uma recusa em acreditar nos talentos do marido. Resultavam, sim, de uma análise prática e racional dos factos que estavam à vista de todos.
Na minha opinião, Jean sempre foi o elemento mais realista e mais ponderado dos dois. É preciso não esquecer que foi ela quem, ainda adolescente, hesitou antes de manter relações sexuais sem a protecção da pílula, tal como foi ela que, depois de anunciar a gravidez, decidiu ter o bebé e prosseguir com a sua vida, independentemente das decisões que Kenneth viesse a tomar em relação ao assunto.
Parece-me, pois, sensato concluir que ela teria sido perfeitamente capaz de avaliar os factos de forma realista, no momento em que Hal Rashadam surgiu nas vidas deles. Kenneth estava prestes a cumprir vinte e oito anos; nunca jogara críquete, a não ser na escola, com os filhos ou com a equipa da fábrica. Ora, quando se queria jogar na selecção inglesa, havia um percurso a respeitar, solidamente ancorado numa longa tradição.
Kenneth não cumprira este percurso. Dera o primeiro passo, é certo, quando jogara na escola, mas o seu envolvimento com o desporto parara por aí.
Jean teria até troçado carinhosamente da ideia de Kenneth poder vir a jogar como profissional. Teria dito: ”Kenny, meu amor, andas com a cabeça nas nuvens.” Tê-lo-ia provocado, perguntando-lhe, maliciosamente, quanto tempo estava a contar esperar até que o capitão da selecção inglesa e os seleccionadores nacionais aparecessem para assistir ao jogo do século entre a Whitelaw Printworks e a Cowpwer’s Guaranteed Rebuilt Appliances. Ao fazê-lo, porém, não estaria a contar com a interferência da minha mãe.
Talvez tivesse sido por sugestão da minha mãe que Kenneth não confessou os seus sonhos a Jean. Ou talvez a minha mãe lhe tenha perguntado, na noite em que ele lhe confessou os seus desejos mais caros: ”E Jean está a par de tudo isto, meu querido Ken?” Ao ouvi-lo responder pela negativa, ela terá acrescentado docemente: ”Compreendo. Há coisas que é melhor não mencionar, não é verdade?” E com estas palavras terá estabelecido entre ambos o primeiro de uma longa série de laços de adulto para adulto.
Se conhecem a história da carreira de Kenneth Fleming e a forma fulgurante como conquistou glória e fortuna, então conhecem o resto da história. Hal Rashadam aguardou o momento propício, continuando a treinar Kenneth em privado. Em seguida, convidou o presidente do comité da equipa do condado de Kent para assistir a uma sessão de treinos no Lord’s. Intrigado, o presidente do comité deslocou-se a Mile End Park, onde a equipa da Whitelaw Printworks defrontava a East London Tool Manufacturers, Ltd. No final do jogo, Kenneth Fleming foi apresentado ao homem do Kent. ”Posso oferecer-lhe uma Guinness?”, perguntou-lhe este último. E Kenneth acompanhou-o.
Prudente, a minha mãe soube manter as distâncias. Ao convidar o presidente do comité da equipa do condado de Kent, Rashadam limitava-se a dar cumprimento às instruções da minha mãe. Ninguém, contudo, poderia vir a sabê-lo. Ninguém devia suspeitar que havia algo em preparação.
Entre duas canecas de Guinness, o presidente convidou Kenneth a participar numa sessão de treinos no Kent e a observar a equipa do condado. Ele assim fez, acompanhado por Rashadam, numa sexta-feira de manhã, sob o beneplácito da minha mãe.
Vai até Canterbury, Ken. Depois compensas as horas que faltares. Não há problema nenhum.
Rashadam aconselhou-o a levar o equipamento. Kenneth quis saber porquê.
Faz o que te digo, rapaz insistiu Rashadam.
Mas vou fazer figura de parvo, no meio de todos aqueles profissionais disse Kenneth.
Isso é o que vamos ver ao fim do dia acrescentou Rashadam.
E quando o dia terminou, Kenneth tinha conquistado um lugar no seio da equipa do condado de Kent, à revelia dos costumes e das tradições. E isso, quarenta e oito horas antes de se completarem oito meses desde o dia em que Hal Rashadam tinha vindo observar os rapazes da Whitelaw Printworks.
Restavam dois obstáculos a vencer, antes que Kenneth pudesse jogar na equipa do Kent. Primeiro, o dinheiro: iria receber pouco mais de metade do ordenado que ganhava na fábrica. Segundo, o domicílio: a Isle of Dogs era demasiado distante do campo de jogos e da zona de treinos, em Canterbury, sobretudo para um principiante. De acordo com o capitão, se Kenneth quisesse jogar na equipa do Kent, teria de se mudar para o Kent.
No essencial, portanto, a Fase Número Um do plano arquitectado pela minha mãe estava concluída. A sua mudança para o Kent constituía a Fase Número Dois.
Kenneth deve ter confiado as suas preocupações à minha mãe. Primeiro porque eles trabalhavam em estreita colaboração, nas horas que ele dedicava à administração da fábrica. Depois, porquê que era graças à generosidade dela e à fé inabalável que tinha nele que ele conseguira um lugar como jogador na equipa do Kent. Mas como haveria ele de resolver os problemas relacionados com a sua integração na equipa de críquete do Kent? Esta pergunta, deve tê-la colocado tanto a ela como a si próprio. Não podia obrigar a mulher e os filhos a mudarem-se para o Kent. Jean tinha o emprego em Billingsgate Market, que passaria a ser ainda mais crucial para o orçamento familiar, se ele decidisse aproveitar a oportunidade que lhe ofereciam. Ainda que pudesse pedir-lhe que fizesse as longas viagens de ida e volta e não podia fazê-lo, não queria fazê-lo, nem pensar nisso não queria que ela fizesse os trajectos entre Canterbury e East London, a meio da noite, ao volante de um carro velho sujeito a avarias de última hora que a deixariam apeada no meio de nenhures. Era impensável. Além disso, toda a família dela vivia na Isle of Dogs. E os amigos dos miúdos também. E depois havia ainda o problema do dinheiro. Porque, mesmo que Jean mantivesse o emprego em Billingsgate Market, como poderiam eles sobreviver quando ele iria fazer menos dinheiro do que ganhava na fábrica? Havia demasiadas considerações de ordem financeira a ponderar. As despesas de uma mudança de residência, de encontrar um sítio adequado para viver, as despesas com um carro... Pura e simplesmente, não havia dinheiro que chegasse.
Imagino como terá sido a conversa entre ambos, entre Kenneth e a minha mãe. Estão no gabinete do terceiro andar, que era do meu pai e que ela remodelou e adaptou para si. Está a ler alguns contratos, enquanto, sobre a secretária, um bule de chá em porcelana branca ornado com um vivo azul liberta uma fina coluna de fumo com odor a Earl Grey. É tarde oito horas da noite, aproximadamente, e o edifício está mergulhado num profundo silêncio. Cinco funcionários, todos eles imigrantes, manejam vassouras, esfregonas e trapos por entre a maquinaria imóvel.
Kenneth entra no gabinete, trazendo outro contrato para a minha mãe analisar. Ela tira os óculos e massaja as têmporas. Deve ter desligado as luzes do tecto do gabinete, alegando que lhe provocam dores de cabeça. O candeeiro sobre a secretária dela espalha sombras que mancham a parede como se fossem marcas de mãos gigantes.
Tenho estado a pensar, Ken.
Preparei o orçamento dos trabalhos que o Ministério da Agricultura nos pediu. Acho que vamos conseguir o contrato.
Entrega-lhe os papéis.
Ela coloca o orçamento num dos cantos da secretária. Enche mais uma chávena de chá e vai buscar outra para ele. Tem o cuidado de não tornar a sentar-se. Nunca se senta à secretária quando ele está no gabinete, porque sabe que ao fazê-lo estaria a sublinhar a distância que os separa.
Estava a pensar em ti disse. E no Kent.
Ele ergue as mãos, baixando-as logo em seguida, num gesto que significa para quê. Parece resignado.
Ainda não lhes deste uma resposta, pois não? pergunta a minha mãe.
Tenho estado a adiá-la diz ele. Estou a agarrar-me ao sonho o máximo de tempo que posso.
E quando é que eles precisam de uma resposta definitiva?
Disse-lhes que telefonava no final da semana.
Ela serve-lhe uma chávena de chá. Sabe como ele o toma com açúcar, mas sem leite e estende-lhe a chávena. Há uma mesa num dos cantos do gabinete, onde as sombras são mais densas. É para aí que ela o conduz, pedindo-lhe que se sente. Ele declara que devia ir para casa, Jean já deve estar a tentar imaginar o que lhe terá acontecido, têm um jantar de família em casa dos pais dela, e ele já está atrasado, pelo que ela provavelmente já deve ter pegado nos miúdos e saído sem esperar por ele... Permanece imóvel, no entanto.
É uma rapariga independente, a tua Jean prossegue a minha mãe.
Lá isso é concorda ele.
Mexe o chá, mas não o bebe logo. Pousa a chávena sobre a mesa e senta-se. É alto e esbelto mais do que quando era adolescente e parece encher o quarto de uma forma que outros homens não conseguem. Há algo que emana dele, uma vibração, uma espécie de força vital semelhante a uma energia irrequieta. Mas é mais do que isso.
A minha mãe apercebe-se disso. Conhece-o bem.
Não há nenhuma hipótese de ela encontrar um trabalho no Kent?
Claro que há responde ele. Mas teria de trabalhar numa loja. Ou numa cafetaria. E não iria conseguir ganhar o suficiente para cobrir as nossas despesas.
Ela não tem... quaisquer qualificações propriamente ditas, pois não, Ken? É óbvio que a minha mãe conhece a resposta a esta pergunta, mas quer que seja ele a dizê-lo.
Profissionais, quer dizer? Ele faz rodar a chávena sobre o pires. Para além do que aprendeu na cafetaria em Billingsgate, não.
O mesmo que nada, seria a resposta correcta. Serve à mesa, toma nota de pedidos, regista-os na caixa, faz trocos.
Percebo. Isso não facilita as coisas.
Isso torna-as totalmente impossíveis.
Digamos que as torna... difíceis.
Difíceis. Complicadas. Impossíveis. Por mais voltas que se dê ao assunto, voltamos sempre ao mesmo, não é? Não precisa de mo recordar. Eu próprio fiz a cama onde me deitei.
Esta não seria, provavelmente, a imagem que a minha mãe teria escolhido. Razão por que se apressa a acrescentar:
Talvez haja outra solução, uma solução que não causaria grandes transtornos na tua vida familiar.
Eu podia pedir à equipa do Kent que me aceitasse nestas condições à experiência. Podia fazer os trajectos e provar que eles não são um obstáculo. O problema é o dinheiro... empurra a chávena de chá. Não, não. Já sou crescidinho, Miriam. Jean abdicou dos seus sonhos de criança e chegou a altura de eu fazer o mesmo com os meus.
Ela está a pedir-te que o faças?
Ela diz que devemos pensar nos miúdos, em primeiro lugar, no que é melhor para eles e não no que é mais conveniente para nós. E tem razão. Suponhamos que eu deixava a fábrica e ia jogar pela equipa do Kent, que passava os próximos anos entre o Kent e a minha casa na Isle of Dogs, nada me garante que não fosse acabar num beco sem saída. Ela pergunta-se se valerá realmente a pena correr o risco quando não tenho garantia de nada.
E se tivesses garantias? O teu emprego aqui, por exemplo.
Ele observa a minha mãe, pensativo, com a franqueza que lhe é habitual, olhos firmemente grudados no rosto dela, como se estivesse a ler-lhe os pensamentos.
Eu jamais poderia pedir-lhe que mantivesse o meu lugar aqui, na fábrica. Isso não seria justo para com os outros homens. E mesmo que fizesse isso por mim, haveria ainda muitos outros obstáculos a transpor.
Ela vai até à secretária e regressa com um bloco-notas na mão.
Vamos fazer uma lista, queres?
Ele protesta, mas com pouca convicção. Pois partilhar os seus sonhos com alguém, no fim de um dia de trabalho, é ainda uma maneira de permanecer ligado a eles. De não renunciar. Diz que tem de telefonar a Jean, para avisá-la de que vai chegar ainda um pouco mais tarde do que o previsto. E enquanto ele se afasta para ligar à mulher e à família, a minha mãe atira-se ao trabalho, elaborando listas atrás de listas para acabar por chegar à mesma conclusão a que certamente chegara no momento em que o vira bater a bola pela primeira vez e atirá-la para fora dos limites do campo de Mile End Park. Oxford era um assunto arrumado. Quanto a isso não restavam quaisquer dúvidas. O futuro, porém, reservava-lhe outras possibilidades.
Conversam. Trocam ideias. Ela sugere. Ele levanta objecções. Discutem algumas questões mais delicadas. Finalmente, saem da fábrica e vão jantar a um restaurante chinês, em Limehouse, durante o qual continuam a debater os factos. A minha mãe, porém, tem um trunfo na manga que, prudentemente, mantém escondido até ao último momento. Celandine Cottage, nas Springburns. No Kent.
Celandine é propriedade da família desde 1870. Durante algum tempo, o meu bisavô instalou aí a amante e os dois filhos de ambos. Mais tarde foi herdada pelo meu avô, que aí viveu os últimos anos da sua vida. O meu pai, por sua vez manteve-a alugada a diversos caseiros até à época em que passou a ser moda possuir uma casa de campo. Durante a minha adolescência usávamo-la de tempos a tempos, mas naquela altura encontrava-se desocupada.
E se, sugeriu a minha mãe, Kenneth se instalasse em Celandine Cottage? Isso permitir-lhe-ia ter uma residência no Kent. E se ele se encarregasse dos eventuais trabalhos de renovação que a casa precisava, tomasse a seu cargo a manutenção dos jardins e das pinturas? E se ele, em suma, aproveitasse a sua estada na casa para a beneficiar? Dessa maneira, não teria de pagar renda. E se, além disso, trabalhasse na fábrica nos seus tempos livres? A minha mãe remunerá-lo-ia em função do trabalho executado, solucionando, assim, uma parte dos seus problemas financeiros. E se Jean e os miúdos continuassem a viver na Isle of Dogs onde Jean poderia manter o seu emprego e os miúdos poderiam ficar junto dos avós e dos amigos mais próximos e fossem passar os fins-de-semana ao campo com ele? Isso não iria certamente perturbar o quotidiano de todos eles, contribuiria para manter a família unida e as crianças teriam oportunidade de beneficiar de alguns dias num ambiente natural e saudável. Deste modo, se por alguma razão Ken não conseguisse entrar no mundo profissional do críquete, não poderia culpar-se por não ter aproveitado a oportunidade que se lhe apresentara.
A minha mãe foi inexcedível no papel de Mefisto. Só que as suas intenções eram realmente as melhores. Acredito sinceramente que assim era. A maior parte das pessoas julgam que só estão a fazer o bem, no fundo...
Livie! Olha! exclama Chris.
Faço recuar a cadeira e torço o pescoço para poder espreitar para dentro da oficina. Terminou a coelheira. Felix está a inspeccioná-la. Hesitante, salta, fareja e torna a saltar.
Ele precisava era de um jardim onde pudesse esgravatar à vontade comento.
É verdade concorda ele. Mas uma vez que não temos jardim, vai ter que se contentar com estas instalações, até encontrarmos uma solução melhor.
Chris observa Felix, que entra na coelheira e se aproxima da garrafa de água para beber um pouco. A garrafa embate nas paredes da coelheira, produzindo um ruído metálico.
Onde é que eles aprendem a fazer aquilo? pergunto eu.
A fazer o quê? A beber por uma garrafa?
Chris começa a arrumar os pregos, distribuindo-os por tamanhos nos respectivos compartimentos. Guarda também o martelo e, com a mão, limpa a serradura espalhada sobre a mesa de trabalho empurrando-a para dentro de um caixote de lixo.
É um processo de observação e de exploração, acho eu. Avalia os seus novos domínios, vai de encontro à garrafa de água, fareja-a. E como já viveu numa coelheira antes, provavelmente já sabe o que vai encontrar lá dentro.
Ficamos a olhar para o coelho, eu sentada na minha cadeira na cozinha, e Chris encostado à mesa de carpinteiro. Ou melhor, Chris observa o coelho, eu observo-o a ele.
As coisas têm estado calmas, nos últimos tempos, não achas? digo eu. Há vários dias que o telefone não toca.
Ele concorda com um movimento de cabeça. Ambos fingimos ignorar o telefonema que ele recebeu há uma hora atrás, porque ambos sabemos muito bem a que é que estou a referir-me. Não estou a falar de telefonemas pessoais, nem de chamadas de trabalho, mas sim dos telefonemas do ARM. Passeia a mão ao longo da parte da frente da coelheira e quando encontra uma zona ainda áspera começa a amaciá-la com a ajuda de uma folha de lixa.
Não há actividades previstas, então? pergunto.
Só no País de Gales.
O que é que se passa por lá?
Canis, uma criação de beagles. Se a nossa unidade for convocada para o serviço, terei de me ausentar durante alguns dias.
E quem é que decide? pergunto. A convocação, quero dizer.
Eu.
Então decide.
Ele olha para mim. Enrola a folha de lixa em torno dos dedos. Aperta-a, depois solta-a, examinando o pequeno tubo em que a transformou, fazendo-o rolar para trás e para a frente na palma da mão.
Eu posso muito bem desenvencilhar-me sem ti digo eu. Vou sair-me lindamente. Pede a Max que passe por aqui. Sempre poderá levar os cães a passear e depois eu e ele podemos jogar às cartas.
Vamos ver.
Quando é que tens de decidir? Arruma a folha de lixa.
Não há pressa. Ainda tenho tempo.
Mas os beagles... Chris, achas que os canis podem estar a preparar-se para enviá-los para os laboratórios?
Estão sempre prontos para isso.
Nesse caso, tens de...
Vamos ver, Livie. Se não for eu a tratar do caso, alguém se encarregará de fazer o que tem de ser feito. Não te preocupes. Os cães não hão-de ir parar a nenhum laboratório.
Mas tu és o mais competente do grupo. Sobretudo com cães. E os proprietários do canil devem estar à espera de sarilhos, se os cachorros estiverem a atingir a idade de serem expedidos. É preciso que lá vá alguém competente. É preciso que sejam os melhores a tomar conta do assunto.
Ele desliga a lâmpada fluorescente colocada por cima da mesa de trabalho. Felix passeia-se dentro da coelheira. Chris vai até à cozinha.
Ouve, Chris. Tu não precisas de tomar conta de mim digo eu.
Odeio isso. Faz-me sentir como se fosse uma atracção de circo.
Ele senta-se e pega na minha mão. Vira-a e estuda a palma. Dobra-me os dedos. Fica a olhar quando eu volto a esticá-los. Ambos sabemos o esforço de concentração que tenho de fazer para conseguir executar este simples movimento.
Quando consigo esticar os dedos, ele cobre a minha mão com as suas.
Tenho dois elementos novos na equipa, Livie. Não tenho a certeza se estarão prontos para uma saída como a do País de Gales. E não vou pôr a vida dos cães em risco só para satisfazer o meu ego; as mãos dele apertam as minhas. É este o problema. Não tem nada a ver contigo. Ou com isto.
Percebes?
Dois elementos novos? pergunto. Nunca me falaste neles. Em tempos eu teria sido informada. Teríamos discutido o assunto.
Devo ter-me esquecido. Trabalham comigo há quase seis semanas.
Quem são?
Um tipo chamado Paul. E a irmã, Amanda.
Ele sustenta o meu olhar com uma firmeza tal que eu percebo de imediato que é ela. Amanda. O nome dela parece ficar a pairar entre nós como uma bruma.
Apetece-me dizer: ”Amanda. Bonito nome.” E continuar, num tom ligeiro: ”É ela, não é? Fala-me dela, então. Como é que vocês os dois se apaixonaram? Quanto tempo esperaste até ires para a cama com ela?”
Tenho vontade que ele me responda: ”Livie...”, com uma expressão embaraçada, para que eu possa prosseguir com: ”Vocês não estão a infringir um bocadinho as regras?”, como se aquela fosse a menor das minhas preocupações. Quero poder dizer: ”Então, a organização não proíbe envolvimentos entre os seus membros? Não era isso que passavas a vida a dizer-me? E, uma vez que os elementos de uma equipa já para não falar dos elementos de todo o maldito grupo conhecem apenas os nomes próprios de cada um dos companheiros, será que isso não se torna um pouco constrangedor, tendo em conta a vossa situação particular? Ou será que vocês já trocaram outras coisas, para além dos fluidos corporais? Ela sabe quem tu és? Têm planos, tu e Amanda?”
Se eu disser tudo isto, e se o disser de um fôlego, evitarei imaginá-los juntos. Não serei tentada a imaginar onde fazem amor e como o fazem Se conseguir bombardeá-lo com perguntas e deixá-lo na defensiva, não serei obrigada a pensar em nada disto.
Mas não consigo. Houve tempos em que o teria feito sem hesitar. Agora porém, pareço ter perdido essa parte de mim mesma que era capaz de atacar fosse quem fosse, dentes afiados, prontos a morder.
Ele observa-me. Sabe que eu sei. Basta uma palavra minha para que tenhamos a conversa que ele terá, sem dúvida, prometido a Amanda que iria ter comigo. ”Vou contar-lhe tudo sobre nós”, sussurrará ele, talvez, depois de fazerem amor, os corpos reluzindo de suor. ”Vou contar-lhe. Prometo.” Beija-a no pescoço, na face, na boca. A perna dela mexe-se e enrola-se nas dele. ”Amanda”, dirá ele, ou ”Mandy”, a boca colada à dela. Dormitam.
Não, não quero pensar neles. Não quero pensar neles, e pronto. Chris tem direito à vida dele, tal como eu tive direito à minha. E eu própria violei muitos dos regulamentos da organização quando era um dos seus membros activos.
Depois de ter provado a Chris que era capaz de correr, escalar, saltar, deslizar e tudo o mais que ele ordenasse, comecei a assistir às reuniões do braço educativo da ARM. Estas reuniões realizavam-se em igrejas, escolas e centros comunitários, onde os antivivisseccionistas oriundos de uma boa meia dúzia de organizações prestavam esclarecimentos à população local. Foi assim que me iniciei nos segredos da investigação e das experiências com animais. Foi assim que compreendi o que Boots fazia em Thurgarton, que fiquei a saber o que eram as quintas industriais, quantos cães de raça cruzada de Laundry Farm eram, alegadamente, animais de estimação roubados, que conheci o comportamento neurótico das martas mantidas em cativeiro, em Halifax, o número de fornecedores biológicos que criam animais para laboratórios. Familiarizei-me com os argumentos morais e éticos de ambos os lados da questão. Lia toda a literatura que me forneciam. Ouvia tudo o que me diziam.
Quis fazer parte de uma unidade de assalto desde o primeiro momento. Gostaria de poder dizer que uma olhadela a Beans, na manhã da sua chegada à lancha, bastara para que eu aderisse à causa. A verdade, porém, era que eu queria integrar uma unidade de assalto, não porque acreditasse apaixonadamente na necessidade de salvar os animais, mas por causa de Chris. Por causa do que queria dele. Do que queria provar-lhe. Claro que não admitia isso. Em vez disso, dizia a mim própria que queria fazer parte da unidade, porque as actividades que giravam em torno da libertação dos animais pareciam estar carregadas de tensão, do terror de se ser apanhado em flagrante e, mais importante que tudo o resto do júbilo inacreditavelmente inebriante que se apoderava de nós sempre que um assalto era completado sem uma única falha. Nessa altura, já não trabalhava na rua havia vários meses. Sentia-me inquieta, tinha necessidade de uma boa dose de excitação proporcionada pelo desconhecido, pelo perigo e por uma fuga desesperada. Tomar parte num assalto parecia-me a solução mais apropriada.
As unidades de assalto eram constituídas por especialistas e corredores. Os especialistas preparavam o caminho actuando como agentes infiltrados semanas antes da data do assalto, surripiando documentos, fotografando processos, desenhando um mapa das instalações, descobrindo a localização dos sistemas de alarme e desactivando-os. Os corredores executavam o assalto propriamente dito, durante a noite, comandados por um capitão, cuja palavra tinha a força da lei.
Chris nunca cometia erros. Encontrava-se com os seus especialistas, reunia com a direcção do ARM e com os seus corredores. Um grupo nunca se cruzava com o outro. Ele era o elo de ligação entre todos nós.
O meu primeiro assalto ocorreu quase um ano depois de eu e Chris nos termos conhecido. Eu queria que fosse mais cedo, mas ele não permitiu que eu subvertesse o processo que todos seguiam. Assim, cumpri a minha ascensão no interior da organização sem perder de vista o objectivo que tinha fixado para mim própria: destruir as defesas de Chris. Como vêem, eu não podia ser mais desprezível.
O primeiro assalto em que participei tinha por alvo um programa de investigação sobre a medula espinal, que se desenrolava numa universidade situada a cerca de duas horas de Londres, onde Chris colocara um especialista sete semanas antes. Chegámos em quatro carros e duas carrinhas. Enquanto as sentinelas avançavam em direcção ao edifício, a fim de eliminarem as luzes de segurança, o resto do grupo permaneceu deitado atrás de uma sebe de teixo, atento às instruções finais de Chris.
O nosso objectivo primordial eram os animais, disse ele. O objectivo secundário, a investigação. Libertar os primeiros, destruir a segunda. Todavia, só nos poderíamos ocupar do segundo se, e quando, o primeiro objectivo tivesse sido cumprido. Devíamos libertar todos os animais. Mais tarde, ver-se-ia quais aqueles que poderiam ser poupados.
Poupados? sussurrei. Chris, não estamos aqui para os salvar a todos? Não vamos devolver nenhum deles, pois não?
Ele ignorou-me e enfiou o gorro. Quando as luzes se apagaram, disse, ”Vamos”, e mandou avançar a primeira vaga da unidade: os libertadores.
Parece-me que estou a vê-los, silhuetas vestidas de negro da cabeça aos pés, movendo-se nas sombras como bailarinos. Atravessaram o pátio, servindo-se da sombra do arvoredo para dissimularem os seus movimentos. Perdemo-los de vista quando eles dobraram a esquina do edifício. Chris iluminou o mostrador do seu relógio com a lanterna, enquanto uma rapariga chamada Karen encobria o clarão com as mãos colocadas em concha.
Passaram-se dois minutos. Eu olhava fixamente para o edifício. Um ponto de luz tremeluziu numa das janelas do piso térreo.
Já entraram disse eu.
Agora ordenou Chris.
Eu fazia parte da segunda vaga, a dos transportadores. Equipados com caixas de cartão, esgueirámo-nos através do pátio, corpos curvados. Quando chegámos junto do edifício, duas das janelas estavam abertas. Mãos estenderam-se na nossa direcção e puxaram-nos para dentro. Entrámos num gabinete cheio de livros, pastas, um computador e uma impressora, gráficos suspensos nas paredes e tabelas. Deslizámos para fora do gabinete e passámos ao corredor. Uma luz piscou uma vez à nossa esquerda. Os libertadores já tinham entrado no laboratório.
Os únicos ruídos que ouvíamos eram o som da nossa própria respiração, o estalido seco das gaiolas sendo abertas, os lamentos débeis dos gatos. As lanternas acendiam-se e apagavam-se apenas o tempo suficiente para confirmar se havia ou não animais dentro das gaiolas. Os libertadores retiravam os gatos e as suas crias. Os transportadores precipitavam-se para a janela aberta levando as caixas de cartão. E os receptadores que constituíam a última vaga corriam em silêncio, transportando as caixas de cartão até aos carros e às carrinhas. A totalidade da operação estava concebida para demorar menos de dez minutos.
Chris era o último a avançar. Trazia a tinta, a areia e o mel. À medida que os transportadores se diluíam na noite, reunindo-se com os receptadores que tinham ficado junto das viaturas, ele e os libertadores destruíam o projecto de investigação. Deambulavam durante dois minutos por entre papéis, gráficos, computadores e arquivos. Ao fim desse tempo, saíam pela janela e atravessavam rapidamente o pátio. A janela fechava-se atrás deles e ficava trancada, como estava antes de terem entrado. Enquanto esperávamos, na extremidade do pátio sob a protecção da sebe as sentinelas materializavam-se à volta do edifício. Dissolviam-se nas sombras densas junto ao arvoredo. Moviam-se de sombra para sombra até chegarem junto de nós.
Um quarto de hora sussurrou Chris. Demasiado lento. Fez-nos sinal com a cabeça para que o seguíssemos por entre os edifícios até aos carros. Os receptadores já tinham colocado os animais na carrinha de Chris, tendo depois seguido caminho.
Terça-feira à noite disse Chris em voz baixa. Dia de Manobras. Subiu para a carrinha. Tirou o gorro. Segui-o. Esperámos até que os outros carros partissem em direcções diferentes. Chris ligou a carrinha e seguimos para sudoeste.
Genial, genial, genial desabafei.
Inclinei-me e puxei Chris para mim. Beijei-o. Ele endireitou-se e manteve os olhos fixos na estrada.
Foi óptimo. Foi qualquer coisa de fantástico. Meu Deus! Viste-nos?
Viste-nos? Fomos invencíveis. Ri e comecei a bater palmas.
Quando é a próxima? Responde-me, Chris. Quando é a próxima?
Ele não respondeu e carregou ainda mais no acelerador. A carrinha acelerou, veloz. Atrás de nós, as caixas de cartão recuaram alguns centímetros. Os gatinhos começaram a miar.
O que é que vamos fazer com eles? Fala comigo, Chris. O que é que vamos fazer com eles? Não podemos ficar com todos. Não estás a pensar em ficar com todos, pois não, Chris?
Ele lançou-lhes uma olhadela rápida. Depois tornou a fixar os olhos na estrada. O reflexo das luzes do painel de instrumentos do carro emprestavam uma tonalidade amarelada ao seu rosto. Uma indicação da saída para a M20 surgiu, iluminada pelos faróis do veículo. Ele virou para a esquerda, na direcção da auto-estrada.
Já arranjaste casas para eles? Vamos entregá-los agora de manhã, juntamente com o leite? E se ficássemos só com um, para recordação.
Ele pestanejou, como se algo estivesse a picar-lhe o interior das órbitas.
Magoaste-te? perguntei-lhe. Estás ferido? Magoaste as mãos? Queres que eu conduza? Encosta o carro e deixa-me conduzir, Chris. Vá lá, deixa que eu levo o carro.
Ele carregou ainda mais no acelerador. O ponteiro do velocímetro subiu perigosamente. Os gatinhos começaram a miar.
Virei-me e puxei uma das caixas de cartão, dizendo:
Ora bem. Vamos lá ver o que temos aqui.
Livie disse Chris.
Quem és tu? Como é que te chamas, meu querido? Estás contente por teres deixado aquele sítio horrível, estás?
Livie tornou a dizer Chris.
A essa altura, porém, já eu tinha levantado a tampa da caixa e tirado de lá de dentro uma pequena bola de pêlo, que segurava na palma da minha mão. Era um gatinho malhado, castanho-acinzentado e branco com olhos e orelhas desmesuradamente grandes.
Olha só, como és fofo.
Pousei-o, então, sobre o meu colo e ele começou a miar. As suas garras minúsculas prenderam-se nas malhas das minhas calças, e ele começou a engatinhar na direcção dos meus joelhos.
Põe o gato dentro da caixa disse Chris, precisamente no momento em que eu reparava nas patas traseiras do animal.
Estavam bambas, balouçavam sem vida, inúteis e torcidas. Tal como a cauda. Uma fina incisão prolongava-se ao longo da coluna vertebral, segura por agrafos metálicos manchados de sangue ressequido. À altura do ombro a ferida libertava pus ensopando o pêlo do pobre animal. Recuei de súbito.
Merda! exclamei.
Põe o gato dentro da caixa disse Chris.
Eu... o que é... O que é que fizeram...?
Fizeram-lhe um corte na medula espinal. Guarda-o dentro da caixa. Não era capaz. Não era capaz de lhe tocar. Pressionei a cabeça contra as costas do assento.
Tira-o de cima de mim pedi. Por favor, Chris.
O que é que pensavas que era? O que é que imaginavas? Fechei os olhos com força. Senti as pequenas garras sobre a minha pele.
A imagem do gatinho estava gravada nas minhas pálpebras. Estas pareciam estar em chamas. O meu rosto queimava. O gatinho miava. Senti a sua cabeça pequenina roçando-me a mão.
Vou vomitar disse eu.
Chris saiu da auto-estrada e entrou numa área de repouso. Saiu, batendo com a porta e veio ter comigo. Abriu a porta com gestos bruscos e eu ouvi-o soltar uma imprecação.
Pegou no gatinho que estava sobre os meus joelhos e puxou-me para fora da carrinha.
O que é que pensavas que isto era? perguntou. Um jogo? O que é que pensavas que isto era, meu Deus?
A sua voz soou tensa e estridente. Foi o timbre da voz dele, mais do que as suas palavras, que me levaram a abrir os olhos. Tinha ar de quem tinha sido atingido com um murro no estômago. Mantinha o gatinho aconchegado junto ao peito.
Chega aqui disse ele, encaminhando-se para a parte de trás da carrinha. Disse-te que viesses até aqui.
Não me obrigues...
Raios te partam. Chega aqui, Livie. Já.
Abriu a porta traseira da carrinha e começou a abrir as tampas das caixas.
Vê ordenou. Vem cá. Estou a dizer-te para olhares aqui para dentro.
Não preciso de ver o que aí está.
Temos medulas seccionadas.
Não faças isso.
Cérebros abertos.
Não.
Eléctrodos implantados no crânio e...
Chris!
eléctrodos suturados nos músculos.
Por favor.
Não. Vê. Vê.
Foi então que a sua voz falhou e, encostando a testa à carrinha, começou a chorar.
Fiquei a olhar para ele. Não conseguia esboçar um gesto. O seu choro misturou-se com os gemidos dos animais. Não conseguia pensar noutra coisa, a não ser no desejo de estar, pelo menos, a centenas de quilómetros de distância daquela área de repouso, envolta na escuridão e varrida por uma brisa glacial que soprava de um canal distante. Os ombros dele estremeceram. Dei um passo na sua direcção. Naquele instante, soube que a redenção jamais seria possível se eu não olhasse. Para os corpos meio tosquiados e totalmente partidos, os membros encolhidos, os inchaços e as bolsas de sangue ressequido.
De repente senti calor e, logo depois, frio. Pensei nas palavras que proferira, reflecti sobre tudo aquilo que ignorava. Virei-me.
Passa-me o gatinho, Chris.
Obriguei-o a abrandar a pressão dos dedos, peguei no gato e aconcheguei-o nas minhas mãos. Tornei a colocá-lo dentro da caixa. Baixei as tampas das restantes. Fechei a porta da carrinha e agarrei Chris pelo braço.
Vamos disse e conduzi-o até ao assento do passageiro. Quando já estávamos os dois dentro do carro, perguntei:
Max está à nossa espera onde?
Sabia agora aquilo que ele me escondera ao longo do tempo de preparação da operação que tínhamos acabado de montar.
Chris, onde é que nos vamos encontrar com Max? tornei a perguntar.
Abatemo-los, um por um. Max administrava as injecções. Chris e eu segurávamo-los. Junto ao peito, para que a última coisa que cada um dos animais ouvisse antes de morrer fosse o som compassado de um coração humano.
Quando terminámos, Max pôs-me a mão no ombro.
Não é exactamente a iniciação de que estavas à espera, pois não? Abanei a cabeça, morta de cansaço. Coloquei o corpo do último gatinho dentro da caixa que Max tinha preparado para o efeito.
Parabéns, miúda disse Max.
Chris virou-se e saiu. Faltava pouco para o amanhecer, o momento em que os céus ainda hesitavam entre a escuridão e a luz e em que ambos coexistem. A ocidente, o céu surgia encoberto, acinzentado. A oriente estava Semeado de nuvens orladas de rosa.
Chris estava junto da carrinha, a mão pousada no tejadilho, crispada. Contemplava o amanhecer.
Porque é que as pessoas fazem aquilo que fazem? Perguntei Ele abanou a cabeça sem responder e entrou na carrinha. No caminho de regresso a Little Venice segurei-lhe na mão. Queria reconfortá-lo. Queria fazer com que tudo ficasse bem novamente.
Ao chegarmos à lancha, Toast e Beans vieram ter connosco. Gemiam e comprimiam-se de encontro às nossas pernas.
Querem ir dar um passeio disse eu. Queres que saia com eles um bocadinho?
Chris disse que sim com a cabeça. Atirou a mochila para cima de uma cadeira e encaminhou-se para o quarto. Ouvi-o fechar a porta.
Saí com os cães, que se puseram a saltitar ao longo do canal. Corriam atrás de uma bola, disputando-a entre si por entre rosnidos, correndo depois na minha direcção para deporem a bola aos meus pés e tornarem a partir a toda a pressa atrás dela, com um latido de felicidade. Quando se cansaram da brincadeira, e a manhã começou a agitar-se e a encher-se com os sons das crianças que se dirigiam à escola e dos suburbanos que rumavam para os locais de trabalho, regressámos à lancha. Estava escuro no interior, por isso decidi abrir as persianas da oficina. Dei de comer e de beber aos cães. Avancei, com cuidado, ao longo do corredor e parei à porta do quarto de Chris. Bati. Ele não respondeu. Rodei a maçaneta e entrei.
Estava deitado na cama. Tinha tirado o casaco e descalçado os sapatos, mas não despira nem as calças de ganga pretas, nem o camisolão igualmente preto, nem as meias pretas com um buraco no calcanhar direito. Não estava a dormir. Em vez disso olhava fixamente e sem pestanejar para uma fotografia colocada no meio dos livros que enchiam a estante. Já a tinha visto antes. Chris e o irmão, com cinco e oito anos de idade, respectivamente. Estavam ajoelhados na lama e sorriam, felizes, os braços rodeando o pescoço de um burro bebé. Chris estava mascarado de Sir Galaad e o irmão de Robin dos Bosques.
Apoiei o joelho na beira da cama e pousei a mão sobre a perna dele.
Estranho disse ele.
O quê?
Aquilo. Eu também me devia ter tornado advogado. Como Jeffrey. Já te tinha dito?
Só que ele era advogado.
Jeff sofre de úlceras. Eu não queria que o mesmo acontecesse comigoQuero mudar as coisas, disse-lhe eu, e esta não é a melhor maneira de o fazer. A mudança decorre do trabalho que se desenvolve dentro do sistema/ disse ele. Achei que ele estava errado. Mas era eu quem estava enganado.
Não estavas, não.
Não sei. Acho que estava. Sentei-me na beira da cama dele.
- Não estavas enganado disse eu. Vê só como me mudaste a mim.
São as pessoas que se mudam a si mesmas.
Nem sempre. Não agora.
Deitei-me ao seu lado, a minha cabeça partilhando a almofada dele, o meu rosto perto do dele. As suas pálpebras fecharam-se. Os meus dedos tocaram-nas ao de leve. Segui o contorno das suas pestanas loiras. Toquei as cicatrizes que marcavam as suas faces.
Chris sussurrei.
Fechara os olhos, mas permanecia imóvel.
Humm? Nada.
Já alguma vez desejaram alguém ao ponto de sentirem dores reais no baixo-ventre? Era exactamente assim que eu me sentia. O meu coração batia como sempre batera. O ritmo da minha respiração permanecia inalterado. Mas toda eu latejava e sofria com dores. O meu desejo por ele queimava-me como um anel de fogo que me apertasse o corpo.
Eu sabia o que havia a fazer. Onde colocar as mãos, como me havia de mexer, qual o momento ideal para tirar-lhe a roupa e despir-me a mim também. Sabia como havia de excitá-lo. Sabia exactamente aquilo que lhe agradaria. Sabia perfeitamente como fazê-lo esquecer.
A dor trespassava-me o corpo como uma espada incandescente, mas eu tinha o poder de fazê-la desaparecer. Só precisava de regressar ao passado. Voltar a ser um jovem cisne deslizando no Serpentine, uma nuvem flutuando no céu, uma corça na floresta, um pónei galopando sobre a charneca varrida pelo vento, em Dartmoor. Em suma, bastava que fosse qualquer coisa que me permitisse existir sem sentir. Pudesse eu repetir um dos milhares de gestos e estratagemas a que outrora recorrera por dinheiro, e o sofrimento desapareceria juntamente com a rendição de Chris.
Não fiz nada. Deitada na cama dele, fiquei a vê-lo dormir. No momento em que a dor me apertou a garganta, vi-me forçada a admitir que era amor aquilo que eu sentia por ele.
No início, odiei-o. Odiei aquilo em que ele me tinha transformado, odiei a mulher em que me tinha tornado por causa dele.
Jurei, então, que haveria de matar toda a emoção que existia em mim. E comecei por engatar todos os tipos que se atravessavam no meu caminho. O local era-me indiferente. Carros, casas abandonadas, estações de metro, parques, casas de banho de pubs. E na lancha, até. Fazia-os uivar como cães, transbordar de suor e de lágrimas. Suplicar. Rastejar aos meus pés. Arfar e gritar. Chris permanecia impassível. Nem uma palavra se escapava da sua boca. Até ao dia em que comecei a assediar os membros da nossa equipa de assalto.
Eram presas fáceis. Rapazes sensíveis. Depois de uma missão concluída com sucesso sentiam-se excitados. Como eu. Por isso, inocentes como eram, acolhiam com prazer o meu convite para comemorar o sucesso conseguido. Começavam por dizer, ”Mas, Liv, nós não devemos...”, ou ”Se bem entendi, fora da estrutura das actividades regulares da organização, não estamos autorizados a...”, e ”Meu Deus, Livie, não podemos. Demos a nossa palavra. Em relação a envolvimentos”. E a minha reacção a estas débeis tentativas de resistência, era, ”Ora! E quem é que vai descobrir? Eu, pela minha parte, não vou contar a ninguém. Tu vais?”, ao que eles replicavam, corando violentamente, ”Claro que não vou contar. Não sou esse tipo de pessoa”. Então, eu perguntava-lhes, com um olhar inocente, ”Que tipo de pessoa? Só estou a sugerir que tomemos um copo juntos”. E, então, eles gaguejavam, ”Claro. Eu não estava a referir-me... Nem me atreveria a pensar...”
Levava os tipos para a lancha. ”Livie, não podemos. Não aqui, pelo menos. Se Chris descobre, estamos arrumados”, protestavam eles. Peremptória eu dizia, ”Não te preocupes. Deixa Christopher por minha conta” e fechava a porta atrás de nós. ”Mas, no fundo, talvez não estejas interessado?”, dizia, provocadora. Prendia os dedos na fivela dos cintos deles e puxava-os para mim. Erguia a minha boca para eles. Oferecia-lhes os meus lábios. ”Talvez não te apeteça, hum?”, insistia eu, os meus dedos insinuando-se nas calças de ganga. ”Então?”, continuava eu, a minha boca colada à deles, um braço rodeando-lhes a cintura. ”Queres, ou não queres? É melhor decidires-te.”
O pouco discernimento que lhes restava naquele momento estava canalizado para um único pensamento, pouco consistente, aliás. Caíamos na minha cama, livrávamo-nos das roupas. Eu preferia os mais faladores, porque no momento crucial as coisas tornavam-se bastante ruidosas, e ruído era exactamente aquilo que eu queria.
Uma manhã, bem cedo, depois de um assalto, estava eu acompanhada por dois tipos quando Chris decidiu interferir. O rosto lívido, entrou no meu quarto, agarrou um dos tipos pelos cabelos e o outro pelo braço. ”Fora daqui. Chega.” Empurrou-os ao longo do corredor que ia dar à cozinha. Um deles insurgiu-se, ”Ouve lá, Faraday! Não achas que estás a ser um pouco hipócrita?”, enquanto o outro começava a choramingar. ”Fora. Peguem na vossa tralha e desapareçam”, tornou a dizer Chris. Quando a porta da lancha se fechou com um estrondo e os gonzos voltaram à sua posição inicial, Chris veio ter comigo.
Estendida na minha cama, acendi um cigarro, a imagem viva da indiferença.
Desmancha-prazeres disse eu com um trejeito de menina mimada. Estava nua e não fiz qualquer tentativa para me cobrir com um cobertor ou com o roupão.
Vi-o serrar os punhos. Parecia ter dificuldade em respirar.
Veste-te. Já.
Porquê? Estás a pôr-me fora também?
Não tenciono facilitar-te a vida dessa maneira. Suspirei.
Porque é que estás tão incomodado? Estávamos a divertir-nos um bocado, é tudo.
Não disse ele, estavas a tentar atingir-me. Revirando os olhos, dei uma fumaça no cigarro.
Só te vais sentir satisfeita quando tiveres conseguido destruir a unidade toda, não é? É esse o preço que eu tenho de pagar?
O preço? Porquê?
Por não querer ir para a cama contigo. Porque é mais que certo que não vou. Nunca fui e não faço tenções de começar agora, independentemente da quantidade de tolinhos que conseguires engatar em Londres. Porque é que não consegues aceitar este facto? Porque é que não podes, simplesmente deixar ficar as coisas como estão? E por amor de Deus, vê se vestes alguma coisa.
Se não me desejas, nem nunca me desejaste, nem tencionas começar a desejar-me agora, porque é que estás tão preocupado com o facto de eu estar vestida ou não? Estás a ficar excitado?
Ele dirigiu-se ao armário e tirou o meu roupão, atirando-mo logo de seguida.
Estou a ficar excitado, sim, mas não da forma que tu queres.
Eu não quero nada fiz notar. Eu saco.
E é isso que andas a fazer com todos estes tipos. A sacar-lhes aquilo que queres. Ora, não me faças rir.
Se vejo algum que me agrada, vou atrás dele. É tão simples como isso. Onde é que está o problema? Incomoda-te?
E a ti, incomoda-te?
O quê?
Mentir? Racionalizar? Representar um papel? Vá lá, Livie. Pára de fazer teatro e encara a verdade de frente.
Saiu do meu quarto, chamando, ”Beans, Toast, vamos”.
Eu deixei-me ficar onde estava, odiando-o ainda mais.
Pára de fazer teatro. Encara a verdade de frente. As palavras dele ecoam ainda na minha cabeça. E pergunto-me como conseguirá olhar para si próprio de frente e encarar as suas verdades sempre que está com Amanda.
Porque, tal como eu, ele está a violar os regulamentos da organização. Que tipo de racionalização terá ele desenvolvido para se justificar a si mesmo? Duvido muito que tenha uma desculpa racional na manga para o envolvimento de ambos. Pode chamar-lhe futura esposa ou o teste da lealdade, ou é mais forte do que nós, ou ela precisa da minha protecção, ou fui seduzido, ou finalmente conheci a mulher por quem quero arriscar tudo, mas tenho a certeza que inventou alguma cómoda justificação que há-de transmitir ao ARM, no dia em que os seus membros vierem pedir-lhe contas.
Devo parecer-vos cínica, totalmente desprovida de qualquer sentimento de solidariedade para com a situação em que ele se encontra. Devo parecer-vos amarga, vingativa; julgam, sem dúvida, que me agarro com unhas e dentes à esperança de que ele venha a ser apanhado com a boca na botija. Eu, no entanto, não me sinto cínica e não tenho consciência de nenhum assomo de indignação apertando-me o coração quando penso nela e em Chris. Não me sinto compelida a fazer acusações. Penso apenas que é mais sensato da minha parte presumir que, mais cedo ou mais tarde, a maioria das pessoas acaba por arranjar justificações racionais. Haverá melhor forma de evitar responsabilizações do que racionalizar? E não há ninguém que realmente qqueira ser responsabilizado, pelo menos quando as coisas correm mal.
É a melhor solução, era esta a racionalização da minha mãe. Só um imbecil teria recusado a oferta que ela fizera a Kenneth Fleming: Celandine Cottage, no Kent, emprego a tempo parcial na fábrica durante os meses em que houvesse jogos e a tempo inteiro no Inverno. Ela tinha antecipado todas as possíveis objecções que Jean poderia levantar e apresentara a sua proposta a Kenneth de forma que todas as objecções tivessem sido contempladas. Todos os protagonistas da história saíam a ganhar. Jean só tinha de concordar com a mudança de Kenneth para o Kent e com um casamento a meio tempo.
Pensa nas possibilidades terá dito a minha mãe a Kenneth, esperando que ele transmitisse a mensagem a Jean. Pensa numa futura integração na selecção inglesa. Pensa em tudo o que isto poderá significar para ti.
Enfrentar os melhores jogadores do mundo Kenneth terá murmurado, pensativo, a cadeira inclinada para trás e uma expressão sonhadora nos olhos, à medida que, na sua cabeça, se formava a imagem de um batedor e de um lançador frente a frente no campo do Lord’s.
Para além de viagens, fama, contratos de publicidade. Dinheiro.
Isso já é andar muito depressa.
Só se não acreditares em ti próprio como eu acredito em ti.
Não acredite em mim, Miriam. Já a desiludi uma vez.
Não falemos do passado.
Podia perfeitamente desiludi-la outra vez.
Ela terá pousado os dedos ao de leve, e por breves instantes, no pulso dele.
Muito pior seria desiludires-te a ti próprio. E a Jean. E aos miúdos. Facilmente adivinharão o resto. Fim da Fase Dois. Kenneth Fleming mudou-se para o Kent.
É inútil falar-vos dos sucessos de Kenneth. Os jornais têm contado a sua história até à exaustão desde que ele morreu. Logo após a sua morte, Hal Rashadam declarou numa entrevista que nunca conhecera um homem mais dotado para este desporto do que ele. Kenneth possuía um corpo de atleta e um talento natural. Apenas precisava de alguém que o ajudasse a desenvolver as suas potencialidades.
Fazer frutificar estes talentos exigia tempo e esforço. Não bastava treinar e jogar na equipa do Kent. Para que Kenneth conseguisse desenvolver ao máximo as suas potencialidades, precisaria de seguir um programa que conjugasse a dieta, a musculação e o exercício físico com os treinos. Precisaria de observar os melhores jogadores do mundo sempre que tivesse oportunidade Para o fazer. Porque a única forma de se impor seria conhecendo profundamente os seus futuros adversários e superando-os em condição física em competências e em técnica. Tinha de ultrapassar dois obstáculos: a idade e falta de experiência. E isso, claro, levava o seu tempo.
Os jornalistas dos tablóides avançaram especulações sobre a hipótese do fracasso do casamento de Kenneth com Jean Cooper ter obedecido a um padrão tão velho como o mundo. As horas e dias consagrados à concretização do seu sonho resultaram em horas e dias passados longe da mulher e dos filhos. No momento em que os Fleming tomaram consciência do tempo que Kenneth iria necessitar para atingir uma condição física invejável, aperfeiçoar o seu jogo, estudar os seus adversários e os potenciais companheiros susceptíveis de serem seleccionados para integrar a selecção inglesa, Kenneth apercebeu-se também que lhe era praticamente impossível assumir as suas responsabilidades como pai de família aos fins-de-semana, como a minha mãe sugerira. A maior parte das vezes, Jean e os filhos rumavam fielmente até ao Kent, aos fins-de-semana, apenas para descobrirem que o marido e pai devia deslocar-se ao Hampshire no sábado e a Somerset, no domingo. E quando não estava a jogar ou a estudar o jogo dos adversários, estava a treinar. Quando não estava a treinar, estava a cumprir as suas obrigações para com a Whitelaw Printworks. Deste modo, a explicação para o fosso cada vez maior que começou a cavar-se no seio do casal gira em torno da esposa abandonada, mas cada vez mais exigente, e do marido ausente. Havia, no entanto, outras razões.
Tentem imaginar a situação. Pela primeira vez na sua vida, durante a sua estada no Kent, Kenneth Fleming estava a viver verdadeiramente sozinho. É certo que deixara a casa dos pais para passar um ano num colégio privado, mas pouco depois deixara a escola para se precipitar para o casamento. Só agora ele experimentava o sabor da liberdade. Esta não estava, obviamente, livre de constrangimentos. Havia obrigações, mas estavam relacionadas com a realização de um sonho e não tinham como único propósito a necessidade premente de ganhar dinheiro para sobreviver e responder às necessidades da família. Além disso, não tinha de se culpabilizar por estar a lutar por um sonho individual, pois os seus esforços redundariam num futuro melhor para a sua família. Assim, entregou-se de alma e coração aos objectivos que tinha definido: tornar-se jogador de críquete profissional. E o facto de se sentir liberto da mulher e dos filhos constituiu apenas um feliz e inesperado incidente de percurso.
Imagino que deve ter-se sentido um pouco desconfortável quando se mudou para Celandine Cottage, sobretudo na primeira noite. Deve ter desfeito as malas, preparado uma refeição. Enquanto a ingeria, deve ter-se sentido um pouco esmagado pela calma e o silêncio do campo, tão alheia a tudo o que conhecia até então. Terá telefonado a Jean, mas ela deve ter ido jantar fora com os miúdos, um programa especial para fazê-los esquecer a ausência Ho pai- Deve ter telefonado a Hal Rashadam sob pretexto de recapitularem os horários de treino, mas devem ter-lhe dito que Rashadam saíra para jantar com a filha e com o marido desta, nessa noite. Finalmente, quando a necessidade de contacto humano começou a deixá-lo nervoso, deve ter telefonado à minha mãe.
Bom, já estou instalado terá dito, esforçando-se por desviar o olhar das janelas e da noite escura como breu que se prolongava indefinidamente para além das vidraças.
Estou muito feliz por ti, meu querido. Tens tudo o que precisas?
Acho que sim. Sim, claro que tenho. Acho.
O que é que se passa, Ken? Algum problema com a casa? Falta alguma coisa? Não tiveste dificuldade em entrar, pois não?
Nenhuma. É só que... Nada. Só... Peço desculpa, sou um cretino. Devo dar a impressão de que estou louco, não é?
O que é que se passa? Diz-me.
Não estava à espera de me sentir... esquisito, em certa medida.
Estás doente?
Estou sempre à espera de ouvir Stan atirar a bola contra a parede da sala. Ou de ouvir Jean gritar-lhe para que esteja quieto. É estranho que eles não estejam aqui, comigo.
É natural que sintas saudades deles. Não deves recriminar-te por te sentires dessa maneira.
Sim, é isso. Acho que tenho saudades deles.
Claro que tens. Eles representam uma parte importante da tua vida.
Acabei de lhes telefonar e... Oh, que chatice. Não devia estar para aqui a chorar no seu ombro por causa disto. Tem sido tão boa para mim. Para todos nós. Dando-me esta oportunidade. Ela pode muito bem mudar as nossas vidas.
Mudar a vida dos Fleming fazia parte do plano. Naquela noite, ao telefone, a minha mãe tê-lo-á aconselhado a encarar a situação com calma, a dar tempo ao tempo, a adaptar-se à casa, à vida no campo, e a usufruir da oportunidade que lhe fora dada.
Prometo que vou manter-me em contacto com Jean terá ela dito. Vou visitá-la amanhã, depois de sair da fábrica, para ver como é que ela e as crianças estão a lidar com a situação. Bem sei que isto não diminuirá as saudades que sentes deles, mas pelo menos sentir-te-ás mais descansado, não é verdade?
É boa de mais para nós.
Fico feliz por poder fazer tudo o que estiver ao meu alcance.
Em seguida tê-lo-á encorajado a tomar um café ou um conhaque no jardim e a contemplar o firmamento, onde cintilavam estrelas que ele jamais conseguira ver nos céus de Londres. Precisas de uma boa noite de sono, terá ela dito para concluir. Atira-te ao trabalho amanhã de manhã. Há muito para fazer, tanto no críquete como na casa.
Ele terá seguido os conselhos dela, como sempre. Deve ter saído para o jardim, levando o conhaque, não só o copo mas a garrafa também. Sentado no relvado por aparar, na zona inclinada que dá para o caminho de acesso, ter-se-á servido de um pouco de conhaque e levantado os olhos para o céu a fim de contemplar as estrelas. Terá estudado atentamente os sons que enchem as noites campestres.
O doce relinchar de um cavalo num cercado próximo dali, o canto de um grilo, o piar de uma coruja marcando o início da caçada nocturna, o repicar do sino de uma igreja numa das Springburns, o chiar de um comboio perdido na distância. Afinal, o campo não é assim tão calmo e silencioso, terá pensado com surpresa.
Apoiado nos cotovelos, ter-se-á servido de uma nova dose de conhaque, que terá bebido de um trago, enchendo o copo novamente. Mais bem humorado, ter-se-á estendido na relva, um braço aconchegado sob a cabeça, e ter-se-á finalmente dado conta de que era dono e senhor da sua vida e dos seus movimentos.
Para ser franca, duvido que tudo isto tenha acontecido tão rapidamente, logo na primeira noite. O mais provável é que as coisas se tenham desenrolado de forma mais subtil e insidiosa. As sessões de exercício físico, os treinos, o estudo dos adversários devem ter-se misturado com uma crescente sensação de liberdade. O que de início se lhe afigurava estranho, acabou por lhe agradar. Nada de crianças turbulentas, nem a presença constante de uma mulher cuja conversa se tornava por vezes bastante entediante e repetitiva; já não tinha de se arrastar para o emprego todas as manhãs, nem era obrigado a testemunhar discussões de vizinhos, perpassando as paredes finas da casa, nem precisava de inventar desculpas para evitar jantares em casa dos sogros. Descobriu que esta independência lhe agradava. Tomou-lhe o gosto e quis mais. E ao querer mais entrou em rota de colisão com Jean.
Nos primeiros tempos, suponho que deve ter inventado pretextos para explicar à mulher e aos filhos as razões por que não podia estar com eles aos fins-de-semana. Fiz uma distensão muscular que me obriga a ficar deitado, querida, incapaz de mexer um dedo, sequer. Tenho de acabar um orçamento urgente para a gráfica. Estou a arranjar a cozinha e a casa de banho. Rashadam insiste em que eu vá a Leeds ver um jogo.
Durante esses fins-de-semana sem a família, deve ter descoberto que conseguia desenvencilhar-se bastante bem. Quando assistia a uma pequena festa organizada pelo condado de Kent, enquanto bebia e conversava com os colegas de equipa, as mulheres deles e as amigas destas, devia tentar imaginar Jean no meio deles e deve ter-se perguntado se ela, por acaso, encaixaria no grupo. Talvez a tenha levado uma vez, no início, observando o modo como ela circulava entre os convidados, verificando que a razão por que insistia em manter-se à margem da multidão se ficava a dever mais a uma sensação de desconforto do que a uma atitude cautelosa e prudente, e concluindo de forma conveniente e cómoda que uma exposição às conversas superficiais das mulheres e às brincadeiras dos homens seria de mais para Jean e ela acabaria por se sentir pouco à vontade.
Tinha, portanto, razões válidas para não estar com a família tão frequentemente quanto desejava. E quando Jean começou a fazer-lhe perguntas e a exigir-lhe explicações, quando ela lhe recordou que as suas responsabilidades como pai não se limitavam apenas a dar-lhe o dinheiro suficiente para sustentar os filhos, teve de se esforçar para inventar desculpas mais consistentes. E quando, passando à ofensiva, Jean começou a fazer exigências que punham em perigo a sua liberdade, deve ter decidido contar-lhe uma parte da verdade. Aquela que a magoaria menos.
Esta decisão, tê-la-á tomado, sem dúvida, com a ajuda da sua principal confidente: a minha mãe. Ela deve tê-lo apoiado fortemente durante aqueles tempos de incerteza. Kenneth estava a tentar avaliar a sua situação: já não sei o que sinto. Será que ainda a amo? Que a desejo? Será que quero continuar casado com ela? Estarei a sentir-me assim porque passei muitos anos dentro de uma prisão? Será que foi Jean quem me aprisionou? Ou fui eu que o fiz a mim mesmo? Se devo continuar casado, porque será que me sinto finalmente vivo desde que estamos separados? Como é possível que me sinta desta forma? Ela é minha mulher. São os meus filhos. Amo-os. Sinto-me um canalha. Fora muito hábil da parte da minha mãe ter sugerido uma separação provisória, uma vez que separados já eles estavam. ”Precisas de ficar sozinho para reflectires, meu querido. A tua vida está virada do avesso, o que não é de admirar. Pensa só nas mudanças por que passaste em tão pouco tempo. Não só tu, mas Jean e os miúdos também. Vocês têm de dar a vocês próprios tempo e espaço para que possam decidir quem são. Nunca tiveram oportunidade para o fazer ao longo de todos estes anos, pois não? Nenhum de vocês.”
Muito astuta, esta maneira de formular as coisas. Não era apenas Kenneth que precisava de ”reflectir”. Ambos precisavam. Não interessava que para Jean não fosse essencial reflectir sobre nada, e muito menos sobre se queria, ou não, continuar casada com ele. Quando Kenneth decidiu que uma separação temporária ajudaria a clarificar quem eles eram e aquilo que poderiam significar um para o outro no futuro, se é que poderiam significar alguma coisa, os dados estavam lançados. Ele já vivia fora de casa. Jean podia exigir que voltasse, mas ele não precisava de o fazer.
Aconteceu tudo tão depressa ter-lhe-á ele dito. Não me podes conceder algumas semanas para que eu possa reencontrar-me? Para descobrir o que sinto?
O que sentes em relação a quê? perguntou ela. A mim? Aos miúdos? Que tretas são essas que me estás a dizer, Kenny?
Não se trata de ti. Nem dos miúdos. Sou eu. Sinto-me perdido confuso.
Olha só que conveniente. Tretas, Kenny. Tretas. Queres o divórcio? É isso que queres? Não tens coragem para o pedir na minha cara?
Deixa-te disso, querida. Estás fora de ti. Eu alguma vez falei em divórcio?
Quem é que está por detrás disto? Diz-me lá, Kenny. Andas com alguém? É isso que não tens coragem para me contar?
Em que é que estás a pensar, rapariga? Meu Deus. Não ando com ninguém. Não quero andar com ninguém.
Então porquê? Porquê? Maldito sejas, Kenny Fleming.
Dois meses, querida. É tudo o que peço.
Não tenho alternativa, pois não? Por isso não transformes isto num jogo.
Não chores. Não há necessidade. Só vais deixar os miúdos preocupados.
Porque a tua ausência não os vai preocupar? O facto de não poderem ver o pai deles? Não saberem se somos uma família, ou não? Isso não vai preocupar os miúdos?
É egoísta da minha parte, eu sei.
Podes crer que é.
Mas é o que eu preciso.
Jean nada podia fazer a não ser ceder à vontade dele. Não iriam ver-se com muita frequência durante o tempo em que Kenneth estivesse a reflectir sobre a sua vida. Os dois meses de separação que ele pedira acabaram por se transformar em quatro, depois em seis, em dez e, por fim, em doze. Em breve transcorreu um ano, logo seguido de um segundo. Viveu, certamente, momentos de alguma incerteza quanto ao seu novo local de residência na altura em que, na sequência de um desentendimento com os seleccionadores da equipa do Kent, aceitou o convite para ir jogar para o Middlesex. Todavia, quando Kenneth Fleming finalmente conseguiu tornar o seu sonho realidade, quando os seleccionadores nacionais convocaram o novo batedor da equipa do Middlesex para jogar na selecção inglesa, o seu casamento não passava já de uma mera formalidade.
Por razões que não consigo explicar, não pediu o divórcio. E ela também não. Porquê?, perguntarão. Por causa dos filhos? Por uma questão de segurança? Para salvaguardar as aparências? Sei apenas que quando ele regressou a Londres, alegando que teria de se manter o mais próximo possível do campo do Middlesex, perto de Regent’s Park, não voltou a instalar-se na Isle of Dogs. Em vez disso, mudou-se para a casa da minha mãe, em Kensington.
A localização era quase perfeita, afinal. Bastava-lhe subir Ladbroke Grove, atravessar Maida Vale e percorrer St. John’s Wood Road para alcançar o Lord’s, onde jogava o Middlesex.
As condições não eram menos perfeitas. A minha mãe vivia sozinha numa casa enorme em Staffordshire Terrace, onde não faltavam quartos vazios. Kenneth precisava de um alojamento pouco dispendioso, o que lhe permitiria continuar a ajudar, financeiramente, a mulher e os filhos.
Entre a minha mãe e Kenneth, os laços que os uniam estreitaram-se ainda mais. Ela era simultaneamente uma mascote e uma fonte de inspiração e de força interior para ele. No dia em que partilhou com ela as dificuldades inerentes à sua decisão de trocar a equipa do Kent pela do Middlesex, suponho que lhe terá igualmente confessado a sua relutância em retomar o seu antigo estilo de vida. Com um ar grave, ela ter-lhe-á perguntado: ”E Jean está ao corrente disso, Ken?” Ao que ele terá respondido: ”Ainda não lhe disse nada.” Nesta altura, a minha mãe terá feito as recomendações do costume: ”Talvez seja melhor que vocês deixem as vossas vidas evoluírem gradualmente. Deixar que a natureza siga o seu curso. E se... sei que isto pode soar um pouco repentino, mas... que dizes a mudares-te temporariamente para minha casa? Só o tempo necessário para ver de que forma é que a situação evolui...” Kensington ficava mais perto do Lord’s do que a Isle of Dogs e Ken ainda não estava a ganhar o suficiente para sustentar a família sozinho. E assim por diante. ”Achas que esta poderia ser a solução adequada aos teus problemas, meu querido?”
Ou seja, ela forneceu-lhe o discurso. E ele utilizou os argumentos que ela lhe oferecia. Resultado: mudou-se para a casa da minha mãe.
E enquanto a minha mãe se preocupava com o bem-estar de Kenneth Fleming, eu estava a trabalhar no jardim zoológico, em Regent’s Park.
Lembro-me de ter pensado: ”Queres a verdade, Chris? Muito bem. Julgas que me conheces, meu cretino de meia-tigela. Pois não percebeste nada.”
Empenhei-me, então, em provar-lhe que ele não tinha percebido absolutamente nada. Comecei a trabalhar no jardim zoológico. Primeiro com o pessoal da manutenção e, mais tarde, no hospital, onde tinha acesso à base de dados que, com o tempo, acabou por se revelar uma ajuda preciosa e consolidou a minha posição no seio da organização, quando o ARM decidiu que era tempo de descobrir os sítios para onde eram despachados os excedentes. Apliquei-me a fundo. Chris gostava de animais? Pois bem, eu iria gostar ainda mais. Podia provar que gostava mais deles. Podia correr riscos ainda maiores.
Solicitei a minha integração numa segunda unidade de assalto. ”Somos muito lentos”, disse eu. ”Não estamos a fazer o suficiente. Não somos suficientemente rápidos. Se alguns de nós pudessem pertencer a várias equipas, duplicaríamos as nossas actividades. Poderíamos até triplicá-las. Pensem na quantidade de animais que conseguiremos salvar.” O meu pedido foi rejeitado.
Comecei, então, a pressionar a nossa unidade a fim de a obrigar a aumentar o ritmo. ”Estamos a amolecer. Estamos a ficar complacentes. Vá lá mexam-se.”
Chris estudava-me com um olhar circunspecto. É compreensível. Convivia comigo há tempo suficiente para ter o direito de se interrogar sobre as razões que me moviam e ficou à espera que elas viessem à superfície.
Se estivéssemos envolvidos em problemas menos delicados, essas razões ter-se-iam manifestado no espaço de semanas. Quando penso nisso agora, não posso deixar de reparar na ironia da situação. Intensifiquei as minhas actividades no seio da organização com o objectivo de mostrar a Chris a pessoa que eu realmente era, para que ele não tivesse outro remédio senão apaixonar-se por mim, para que eu tivesse oportunidade de ir para a cama com ele e, depois, pudesse rejeitá-lo e afastar-me, rejubilando perante o facto de não lhe ligar a mínima importância. Tencionava servir-me friamente das operações de salvamento. O destino dos animais que eu ajudasse a salvar teria tanto significado para mim quanto a sorte dos homens que eu costumava engatar na rua. No fim, acabei com o coração despedaçado, como se mo tivessem retalhado com uma tesoura de podar ferrugenta.
Todo este processo demorou algum tempo a concretizar-se. A minha carapaça de indiferença permaneceu miraculosamente intacta quando senti na minha mão a língua ressequida do primeiro beagle que resgatei de um laboratório, onde servia de cobaia para experiências com úlceras gástricas. Limitei-me a entregá-lo ao transportador e a passar para a gaiola seguinte, concentrando-me na necessidade de agir rápida e silenciosamente.
Quando finalmente cedi à pressão, não foi por causa de nenhuma experiência científica, mas sim durante um assalto a uma quinta situada no Hampshire, perto de Wallops, onde se criavam animais ilegalmente.
Já ouviram falar nestes sítios? Criam cães para revenda. Situam-se sempre em locais isolados, por vezes nas imediações de uma quinta aparentemente banal.
Tomámos conhecimento desta quinta por intermédio de um dos nossos corredores. De visita a casa dos pais, em Hampshire, decidira ir espreitar uma espécie de ferro-velho, onde se cruzara com uma mulher rodeada de cachorros. Tinhas duas cadelas em casa, declarara com uma expressão demasiado inocente, tinham parido as duas ao mesmo tempo. Cachorros, todos eles de raça, era coisa que não lhe faltava e estava disposta a ceder-lhos todos por uma ninharia. O nosso corredor não gostara do aspecto da mulher, nem do olhar infeliz dos cachorros. Seguira-a até casa, por uma estrada estreita e sinuosa que terminava num caminho de terra batida.
Ela guarda-os num celeiro disse-nos.
Juntou as palmas das mãos como se rezasse enquanto falava.
Dentro de gaiolas. Empilhadas umas sobre as outras. Sem luz. Sem ventilação.
Parece-me um caso para a RSPCA fez notar Chris.
Talvez. Mas isso pode demorar semanas. E mesmo que decidissem passar à acção... lançou um olhar breve e comovido pelo grupo e continuou em tom solene: Esta mulher tem de ser posta fora de circulação. Definitivamente.
Alguém levantou o problema da logística. Não se tratava de um laboratório deserto, à noite. Era um sítio onde viviam pessoas, a escassos cinquenta metros do celeiro onde estavam os animais. E se os cães começassem a ladrar, como decerto começariam? Será que a dona da quinta não iria dar o alarme? Telefonar à polícia? Sair atrás de nós de caçadeira em punho?
Era possível, admitiu Chris. Decidiu fazer ele próprio um reconhecimento do terreno.
Foi até Hampshire sozinho. Quando regressou, disse apenas:
Avançamos na próxima semana.
Na próxima semana? repliquei. Mas isso não nos deixa tempo nenhum, Chris. Isso coloca-nos a todos em risco. Isso...
Na próxima semana insistiu ele, desdobrando um mapa da quinta. As sentinelas ficariam encarregues de vigiar Mrs. Porter. A proprietária
da quinta não teria interesse em alertar a polícia, adiantou Chris, pois isso só iria atrair as atenções das autoridades. Poderia, no entanto, tentar algo diferente e as sentinelas teriam de estar preparadas para neutralizá-la. Recomendou-nos que levássemos máscaras cirúrgicas, o que desde logo deveria ter-me deixado de sobreaviso em relação ao que iria suceder.
Chegámos ao local à uma da manhã. As sentinelas esgueiraram-se para as respectivas posições, montando guarda junto das duas entradas da quinta: uma no pátio e a outra de frente para o jardim bem cuidado e a álea semeada de buracos. As sentinelas fizeram sinais de luzes com as lanternas, confirmando que estavam em posição, e os libertadores entre os quais eu me encontrava prepararam-se para a corrida até ao celeiro. Excepcionalmente, Chris juntou-se a nós. Ninguém ousou perguntar porquê.
Descobrimos o primeiro cadáver dentro de um redil, à entrada do celeiro. Iluminado pelo círculo de luz que Chris fez incidir sobre ele, jazia aquilo que em tempos fora um spaniel. Estava inchado, e, à luz da lanterna, o seu corpo parecia formar um padrão ondulante. Eram larvas. Tinha por companheiro de redil um golden retriever, conspurcado de lama e de fezes ressequidas. O animal lutava para se pôr de pé, indo de encontro à vedação de arame farpado.
Merda murmurou alguém. Foi o retriever quem deu o alerta.
- Vamos ordenou Chris. Esqueçam este.
Royal Society for the Prevention of Cruelty to Animals: equivalente britânico à Sociedade protectora dos Animais. (N da T.)
Ouvimos os gritos provenientes da casa da quinta, quando já estávamos dentro do celeiro. Estes, porém, depressa se transformaram num mero ruído de fundo quando comparados com o que descobrimos no interior do celeiro Cada um de nós tinha a sua lanterna. Acendemo-las. Havia excrementos por toda a parte. Os nossos pés chapinhavam e enterravam-se no chão à medida que pisávamos a palha que cobria o esterco.
Os animais ganiam, comprimidos dentro de gaiolas do tamanho de caixas de sapatos. Estas estavam empilhadas umas sobre as outras, de forma que os cães que se encontravam por baixo viviam atolados nas defecações dos que estavam por cima. Debaixo das gaiolas havia três sacos de lixo pretos. O conteúdo de um deles espalhava-se sobre a palha: quatro cachorros terrier mortos, misturados com restos de pêlo, fezes e comida podre.
Ninguém falava, o que era habitual. Surpreendente, no entanto, foi o facto de um dos tipos ter começado a chorar. Recuou aos tropeções e esbarrou numa das paredes do casebre.
Patrick, Patrick, não me falhes agora, amigo disse Chris, num tom urgente.
E, virando-se para mim:
Dá o sinal.
Os cães começaram a latir baixinho. Voltei para junto da porta do celeiro e, com a lanterna, fiz sinal aos transportadores que aguardavam junto à sebe que rodeava a propriedade. Na casa da quinta, as sentinelas debatiam-se com Mrs. Porter. Mal alcançara os degraus da entrada, desatara a gritar, ”Polícia! Socorro! Polícia”, antes que qualquer uma das duas sentinelas tivesse tido tempo de a agarrar e amordaçar. Tornaram a arrastá-la para dentro de casa e apagaram as luzes do interior. Os transportadores atravessaram o pátio a correr e entraram no celeiro. Um deles escorregou no esterco e caiu. Os cães começaram a uivar.
Chris percorria velozmente a fileira de gaiolas. Corri para junto dos outros, que se atarefavam no lado oposto do celeiro. Mesmo à luz fraca da lanterna, conseguia ver e senti-me tomada por uma vertigem. Havia cachorros por toda a parte. Só que não eram os bichos amorosos que costumam aparecer nos calendários de Natal. Estes yorkies e shelties, estes retrievers e spaniels tinham fístulas nos olhos, os corpos crivados de chagas e o pêlo fervilhando de parasitas.
Um dos tipos mais velhos insurgiu-se e duas raparigas desataram a chorar. Eu esforçava-me por não respirar e por ignorar as vagas de calore de frio que, alternadamente, se abatiam sobre mim. O zumbido nos meus ouvidos ajudava a abafar o som das vozes dos animais. Todavia, aterrorizada com a perspectiva de o zumbido parar, comecei a recitar tudo o que conseguia lembrar-me de The Bad Child’s Book of Beasts. Já tinha feito de iaque, de urso-polar e de baleia quando cheguei à última gaiola. Dentro desta estava um pequeno lhasa-apso. Enfiei as mãos enluvadas por entre as grades, murmurando tudo o que conseguia lembrar-me da rima sobre o Dodo. Começava com qualquer coisa sobre andar em círculos. Algo sobre apanhar sol e respirar ar puro.
Abri a porta da gaiola, concentrando-me nos versos. A rima tinha de bater certo, mas não conseguia lembrar-me de como era.
Estendi as mãos para o animal, mas continuei à procura das palavras. Como era, ao certo?
Puxei o cão na minha direcção. Tinha de lembrar-me da rima, porque se não o fizesse, ir-me-ia abaixo, e isso era algo que eu não podia enfrentar. Não sabia o que fazer para evitá-lo, a não ser passar rapidamente à rima seguinte, mais familiar, cujas palavras eu não esquecesse. Qualquer coisa como o Humpty Dumpty.
Levantei a cadela e reparei numa das suas patas traseiras, a da direita. Pendia, inerte, na extremidade de uma tira de carne. Esta ostentava as inconfundíveis marcas de uma dentadura. Como se a pequena cadela tivesse tentado morder o seu próprio pé. Ou como se o seu vizinho da gaiola de baixo tivesse tentado abocanhá-la com os dentes.
Os meus olhos semicerraram-se até eu não conseguir ver mais nada a não ser uma infinidade de pontos luminosos. Gritei, mas não emiti qualquer som que pudesse ser considerado uma palavra ou um nome. A forma inerte da cadela pesava-me nas mãos.
À minha volta, uma agitação febril, manchas negras e fluidas em constante movimento, à medida que os libertadores iam soltando os animais, esforçando-se por não respirar. Tentei inspirar uma lufada de ar fresco, mas não consegui.
Dá cá, deixa que eu levo a cadela alguém disse junto de mim. Livie, Livie. Passa-me a cadela.
Não era capaz. Não conseguia mexer-me. Estava petrificada. Tinha a sensação de que as minhas entranhas se derretiam, como se uma fogueira imensa estivesse a devorar-me a carne. Desatei a chorar.
A pata dela disse, entre soluços.
Depois de tudo o que já me fora dado ver como membro do ARM, era difícil acreditar que a pata de um cão pendendo, inerte, de uma tira de carne fosse a causa do meu colapso nervoso. Foi o que aconteceu, no entanto. Senti a ira crescer dentro de mim, senti-me submersa por um sentimento de impotência, como se estivesse a afundar-me num banco de areias movediças.
Chega disse.
E fui eu quem agarrou na lata de gasolina que Chris deixara à entrada do celeiro.
1 Personagem de Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll. (N. da T.)
Afasta-te, Livie disse ele.
Tira aquele cão de dentro da gaiola pedi eu. Leva-o lá para fora. Vai buscá-lo. Já te disse para ires buscá-lo, Chris.
E comecei a regar o interior daquele inferno com a gasolina. Depois de o último cão ter sido libertado e de a última gaiola ter sido atirada ao chão acendi o fósforo. As chamas irromperam como um géiser e tive a sensação de nunca, até então, ter visto nada de tão belo como aquele fogo.
Se Chris não me tivesse puxado violentamente pelo braço, eu teria ficado lá dentro e perecido juntamente com o conteúdo daquele celeiro hediondo. Saí aos tropeções, certificando-me de que o retriever fora retirado do redil e corri em direcção ao caminho de terra batida. Não parava de dizer, ”Chega!”, esforçando-me por apagar do meu espírito a imagem daquela pequena pata pendendo, inerte, na extremidade de uma tira de carne.
Parámos diante de uma cabina telefónica, em Itchen Abbas. Chris ligou para os bombeiros para comunicar o incêndio e, em seguida, regressou à carrinha.
É mais do que ela merece disse eu.
Não podemos deixá-la atada e amordaçada. Não queremos um crime a pesar-nos na consciência.
Porque não? E ela, não tem a consciência roída por dezenas de crimes?
É isso que nos torna diferentes.
Contemplei a noite que desfilava perante os meus olhos. A auto-estrada perfilava-se diante de nós, um rasgão de betão cinzento esventrando a terra.
Deixou de ser divertido disse eu, olhando para a minha imagem reflectida na janela do assento do passageiro. Senti os olhos de Chris fixos em mim.
Queres desistir? perguntou. Fechei os olhos.
Quero que acabe, é tudo.
E há-de acabar disse ele. Embrenhámo-nos na auto-estrada.
CAPÍTULO 12
Oruge-ruge dos lençóis acordou-o, mas Lynley manteve os olhos fechados durante alguns instantes. Ficou a ouvi-la respirar. Estranha, a alegria que lhe proporcionava um acto tão simples. Virou-se de lado para poder olhá-la de frente, mexendo-se com cuidado para não lhe perturbar o sono. Ela, no entanto, já estava acordada, deitada de costas, uma perna dobrada e os olhos fixos nas folhas de acanto feitas de gesso, que se entrelaçavam ao longo do tecto.
Procurou a mão dela debaixo dos cobertores e entrelaçou os seus dedos nos dela. Olhou-o e ele reparou numa fina ruga vertical que se tinha formado entre as sobrancelhas dela. Alisou-a com a outra mão.
Lembrei-me agora de que... começou ela.
O quê?
Desviaste a conversa ontem à noite. E acabaste por não responder à minha pergunta.
Se bem me lembro, foste tu que me desviaste do assunto. Prometeste-me frango com alcachofras, não foi? Não foi por isso que descemos até à cozinha?
E foi na cozinha que eu te fiz a pergunta, não foi? À qual tu nunca respondeste.
Estava ocupado. Contigo.
Os lábios dela alongaram-se num sorriso.
Estavas mesmo?
Ele riu baixinho. Inclinou-se sobre ela e beijou-a, seguindo com um dedo a curva da sua orelha.
Porque é que me amas? perguntou ela.
O quê?
É a pergunta que te fiz ontem à noite. Não te lembras?
Ah! Essa pergunta.
Rolando sobre si mesmo ficou deitado de costas e fixou os olhos notecto. - Apertou a mão de Helen contra o peito e reflectiu sobre as esquivas Justificações para o amor.
Não consigo estar à tua altura em termos de educação e de experiência referiu ela.
Ele ergueu uma sobrancelha céptica, que ela retribuiu com um sorriso fugaz.
De acordo. Não estou à tua altura em termos de educação. Não tenho uma carreira. Nem sequer tenho um emprego bem remunerado. Sou completamente desprovida de talentos domésticos e, o que ainda é pior, não faço tenções de me transformar numa fada do lar. Numa palavra, sou a encarnação da frivolidade. Pertencemos ao mesmo meio, é verdade. Mas não é por pertencermos ao mesmo meio que vamos dedicar-nos de alma e coração a um homem. O que é que isso tem que ver com os assuntos do coração?
Em tempos, era a razão primordial para que duas pessoas se casassem.
Não estamos a falar de casamento. Estamos a falar de amor. Na maioria das vezes, ambos excluem-se mutuamente e são muito diferentes entre si. Catarina de Aragão e Henrique VIII eram casados e vê o que lhes aconteceu. Ela deu-lhe uma descendência e cosia-lhe as camisas. Enquanto isso, ele divertia-se à grande e teve, pelo menos, seis mulheres. E ambos pertenciam ao mesmo meio social.
Lynley bocejou.
Que outra coisa poderia ela esperar, casando-se com um Tudor? O próprio filho de Richmond. O que ela fez foi fundar um laço genealógico com a mais miserável das escórias. Cobardes. Pelintras. Assassinos. Politicamente paranóicos. E com muito boas razões a justificar esta última característica.
Meu Deus. Não vais passar em seguida para a linha da sucessão e para os príncipes encarcerados na Torre, pois não, querido? É que isso só iria desviar-nos consideravelmente do assunto.
Desculpa.
Lynley ergueu a mão dela e beijou-lhe os dedos.
Basta mencionarem o nome de Henrique Tudor para que eu fique imediatamente possuído por uma espécie de raiva cega.
É. uma excelente maneira de fugir à pergunta.
Eu não estava a fugir à pergunta. Estava apenas a ganhar tempo. Reflectia.
E? Porquê? Porque é que me amas? Porque se não és capaz, nem de explicar nem de definir o amor, talvez seja preferível admitir que o verdadeiro amor não existe de facto.
Se assim é, que nome dás ao que nós sentimos um pelo outro? Ela mexeu-se, inquieta, uma espécie de encolher de ombros.
Apetite sexual. Paixão. Desejo. Sensações agradáveis, mas efémeras. Não sei.
Ele soergueu-se e, apoiando-se num cotovelo, contemplou-a.
Deixa-me ver se compreendi bem o que disseste. Devemos considerar a possibilidade de a nossa ser uma relação assente no desejo sexual?
É uma possibilidade, não é? Sobretudo, se pensarmos na noite passada. Na forma como nos comportámos.
Na forma como nos comportámos repetiu ele.
Na cozinha. E depois no quarto. Admito que fui eu quem tomou a iniciativa, Tommy. Não és, portanto, o único a deixar-se cegar pelo aspecto físico e a recusar-se a encarar a realidade.
A realidade? Que realidade?
Que entre nós não existe mais nada a não ser uma atracção física. Que é tudo uma questão de pele.
Ele olhou-a longamente antes de se mexer ou falar. Sentia os músculos do abdómen endurecidos pela tensão. Sentia o sangue a ferver. Desta vez, porém, não era o desejo que falava. Embora se tratasse de uma paixão.
Helen, que diabo se passa contigo? conseguiu perguntar, num tom de voz controlado.
Que tipo de pergunta é essa? Apenas quero sublinhar o facto de que aquilo que tomas por amor pode ser apenas desejo sexual. É uma hipótese a considerar, não achas? Porque se nos casássemos e descobríssemos que o que sentíamos um pelo outro nunca tinha sido mais do que...
Ele afastou os lençóis, saiu da cama e enfiou o roupão com gestos bruscos e apressados.
Ouve aquilo que te vou dizer, Helen. De uma vez por todas. E escuta-me bem, do princípio ao fim. Eu amo-te. Tu amas-me. Assim sendo, das duas, uma: ou nos casamos, ou não nos casamos. Nada mais há a dizer sobre o assunto. Entendeste?
Atravessou o quarto a passos largos, murmurando uma série de imprecações. Afastou os cortinados para deixar entrar a luminosidade intensa do sol primaveril, que inundava o jardim da sua casa citadina. A janela já estava parcialmente aberta, mas ele escancarou-a para poder inspirar o ar matinal.
Tommy disse ela, eu queria apenas saber...
Basta cortou ele, pensando, Mulheres. Mulheres. Que espíritos tortuosos e retorcidos têm elas, santo Deus. As perguntas. Os escrutínios. As dúvidas infernais. Santo Deus, mais valia abraçar uma carreira de monge.
Uma batida hesitante soou na porta do quarto.
O que é? perguntou Lynley, num tom seco.
Peço desculpa, senhor respondeu Denton. Tem uma visita, senhor.
Uma visita... Que horas são?
Enquanto fazia a pergunta, Lynley aproximou-se da mesa-de-cabeceira e agarrou no relógio-despertador.
Quase nove informou Denton, enquanto Lynley protestava vivamente ao confirmar as horas no relógio que tinha na mão. Posso dizer-lhe que...
Quem é?
Guy Mollison. Eu disse-lhe que devia telefonar para a Yard e falar com quem estivesse de serviço, mas ele insistiu. Disse que o senhor haveria de querer ouvir o que ele tinha para dizer. Pediu-me que lhe dissesse que se tinha lembrado de uma coisa. Sugeri que deixasse o número de telefone, mas ele não quis. Disse que tinha de falar consigo. Deseja que me livre dele, senhor. Lynley estava já a caminho da casa de banho.
Serve-lhe um café, o pequeno-almoço, o que ele quiser.
Devo...
Vinte minutos disse Lynley. E telefona à sargento Havers, está bem, Denton? Diz-lhe que venha para cá o mais depressa possível.
Soltou outra imprecação e fechou a porta da casa de banho com gestos firmes.
Já tinha tomado banho e fazia a barba, quando Helen se lhe juntou.
Nem mais uma palavra disse ele, falando para a imagem dela reflectida no espelho, enquanto passava a lâmina de barbear pelas faces cobertas de espuma. Não estou disposto a ouvir mais nenhum dos teus disparates. Se não consegues aceitar o casamento como uma consequência natural do amor, está tudo acabado entre nós. Se, para ti indicou o quarto de dormir com o polegar se trata apenas de passar um bom bocado, desisto. Percebes? Francamente, se és demasiado tacanha para perceber que... Ui! Merda!
Cortou-se. Agarrou num lenço de papel e pressionou-o sobre a ferida, que sangrava.
Estás a ir depressa de mais disse ela.
Não me venhas com essa. Esse tipo de argumento não colhe. Conhecemo-nos desde os teus dezoito anos. Dezoito anos, que diabo. Somos amigos. Amantes. Somos... agitou a lâmina na direcção da imagem dela reflectida no espelho. Estás à espera de quê, Helen?
Referia-me à barba interrompeu-o ela.
As faces ainda meio ensaboadas, olhou-a através do espelho, perplexo.
A barba repetiu.
Estás a barbear-te demasiado depressa. Vais cortar-te de novo.
Ele baixou os olhos para a lâmina de barbear que tinha na mão. Também ela estava coberta de espuma. Pô-la debaixo da torneira, deixando que a água corresse livremente e limpasse a espuma e os pêlos alourados.
Sou um grande motivo de distracção para ti observou Helen. Tu próprio o disseste na sexta-feira à noite.
Ele sabia onde ela estava a tentar chegar, mas durante alguns instantes não tentou desviá-la do rumo que ela pretendia seguir. Meditou sobre a palavra distracção: as explicações que encerrava, as promessas que continha e as implicações que escondia. E, finalmente, a resposta surgiu, clara, límpida.
É isso mesmo.
O quê?
A distracção. Não entendo.
Acabou de se barbear, lavou o rosto e secou-o com a toalha que ela lhe estendia. Só lhe respondeu depois de ter aplicado a loção pós-barba.
Amo-te começou, porque quando estou contigo, não sou obrigado a pensar naquilo em que, noutras circunstâncias, seria forçado a pensar.
Vinte e quatro horas por dia. Sete dias por semana.
Passou por ela e tornou a entrar no quarto. Começou a atirar as roupas para cima da cama.
Preciso de ti para isso continuou, enquanto se vestia. Para suavizar a sordidez do meu mundo. Para me proporcionar algo que não é nem sombrio, nem revoltante.
Ela escutava-o; ele continuava a vestir-se.
Adoro voltar para casa e encontrar-te à minha espera. Adoro imaginar a surpresa que me terás preparado. Adoro o exercício de imaginar. Adoro ter de me preocupar com a eventualidade de teres feito explodir a casa por causa do microndas; porque nos momentos em que me preocupo com essa possibilidade, durante esses cinco, quinze ou vinte e cinco segundos de preocupação, não tenho de pensar no crime que estou a investigar nesse momento, na forma como terá sido cometido e em quem será o seu autor.
Procurou um par de sapatos, sem parar de falar.
Eis a resposta. Claro que o desejo também está presente. A paixão. O apetite sexual, a atracção física. Chama-lhe o que quiseres. O desejo existe, e em abundância. Sempre existiu, para ser sincero. Nunca me coibi de convidar mulheres a partilharem a minha cama.
Mulheres?
Não tentes apanhar-me em falso, Helen. Sabes muito bem onde quero chegar.
Encontrou os sapatos que procurava debaixo da cama. Calçou-os e apertou os atacadores com uma força tal que a dor lhe chegou aos joelhos.
E quando o desejo que sinto por ti desaparecer, como acabará por acontecer, um dia, ficará o resto, suponho. As distracções. Ou seja, a razão Principal por que te amo.
Dirigiu-se à cómoda, pegou na escova e passou-a quatro vezes pelos cabelos- Tornou a atravessar o quarto e entrou na casa de banho. Ela continuava Parada, à porta. Pousou a mão sobre o ombro dela e beijou-a, com brusquidão.
- É esta a história disse-lhe. Do princípio ao fim. Agora, decide-te e Ponhamos fim a isto.
Lynley encontrou Guy Mollison na sala de estar que dava para Eato Terrace. Com o seu tacto habitual, Denton decidira oferecer ao jogador de críquete café, croissants, fruta e compota, complementando as delícias culinárias com um fundo musical, conforme testemunhavam os acordes de uma composição de Rachmaninov que ecoavam pela sala. Interrogando-se sobre quem teria escolhido a música, Lynley concluiu que fora, sem dúvida, Mollison. Denton tinha uma apetência particular por excertos de comédias musicais famosas.
Mollison estava inclinado sobre a mesa baixa da sala, chávena e pires na mão, concentrado na leitura de The Sunday Times. O jornal estava aberto perto do tabuleiro onde Denton lhe servira o pequeno-almoço. Contrariamente ao que seria de esperar do capitão da selecção inglesa de críquete, nas vésperas de um jogo contra a Austrália, não estava a ler a página desportiva, mas sim um artigo sobre a morte de Fleming. Em particular, verificou Lynley quando passou por ele a fim de desligar a alta-fidelidade, uma notícia, já obsoleta, intitulada: ”Carro de Jogador de Críquete Procura-se”.
Lynley desligou a música. Denton espreitou.
O seu pequeno-almoço, Lord Asherton. Deseja tomá-lo aqui ou na sala de jantar?
Lynley estremeceu interiormente. Detestava que se dirigissem a ele pelo título quando estava a trabalhar.
Aqui respondeu com rispidez. Conseguiste localizar a sargento Havers?
Vem a caminho. Estava na Yard e pediu-me que lhe transmitisse uma mensagem. ”Os nossos rapazes estão em acção.” Suponho que fará sentido para si, senhor.
Fazia. Havers chamara a si a tarefa de distribuir pelos diferentes postos os agentes que ele convocara para o fim-de-semana. Tratava-se de um procedimento irregular teria preferido falar com eles pessoalmente, mas ela apenas se encarregara dessa missão porque ele se esquecera de ligar o despertador antes de cair na cama com Helen, na noite anterior.
Faz, sim. Obrigado.
Quando Denton saiu, Lynley virou-se para Mollison, que se pusera de pé e seguira a troca de palavras entre ele e o seu mordomo com indisfarçável interesse.
Quem é você, ao certo? perguntou.
Como?
Vi o brasão junto à campainha, mas pensei que fosse uma brincadeira.
E é respondeu Lynley.
Mollison parecia disposto a insistir. Lynley serviu-lhe mais uma chávena de café.
Ontem à noite mostrou ao porteiro o seu distintivo da Yard disse
Mollison lentamente, como se estivesse a falar consigo mesmo. Foi o que ele me disse, pelo menos.
A informação está correcta. E agora, Mr. Mollison, que posso fazer por si? Parece que tem algo a dizer-me.
Mollison olhou em volta como se estivesse a avaliar o conteúdo da sala de estar e a tentar estabelecer um paralelo entre o mobiliário e a ideia que fazia do que deveria ser o salário de um polícia. Com uma expressão subitamente circunspecta, pediu:
Não se importa de me mostrar o seu distintivo?
Lynley tirou-o do bolso e entregou-lho. Mollison examinou o cartão de identificação e, depois de um longo escrutínio, pareceu satisfeito, pois devolveu-o, dizendo:
Muito bem. Gosto de ser prudente. Para bem de Allison. Há sempre gente a espiolhar a nossa vida. Faz parte do jogo, quando se é famoso.
Sem dúvida concordou Lynley em tom seco. E quanto às suas informações?
Não fui completamente sincero consigo, ontem. Peço desculpa por isso. Mas há coisas... mordiscou a unha do dedo indicador, fez uma careta, cerrou um dos punhos e deixou-o cair sobre a coxa. Bom, aqui vai. Há coisas de que não posso falar na presença de Allison. Sejam quais forem as consequências jurídicas. Compreende?
Foi por isso que, inicialmente, quis que a nossa conversa decorresse no corredor e não no seu apartamento?
Tento perturbá-la o menos possível. Mollison pegou na chávena e no pires. Está no oitavo mês de gravidez.
Referiu esse facto ontem à noite, segundo creio.
Mas quando a viu... tornou a pousar o café sem sequer lhe ter tocado. Oiça, não estou a dar-lhe nenhuma novidade: o bebé está óptimo. Allison também. No entanto, não seria preciso muito para que a situação se deteriorasse.
Entre você e ela.
Lamento ter-me afastado da verdade quando disse que ela não estava bem, mas foi a única desculpa de que consegui lembrar-me para vos impedir de falarem na frente dela recomeçou a mordiscar a unha. Com um movimento de cabeça indicou o jornal. Estão à procura do carro dele.
Agora já não.
Porque não?
Mr. Mollison, há alguma coisa que queira dizer-me?
Encontraram-no? O Lotus?
Julguei que tivesse vindo até aqui fornecer-me informações. Denton entrou na sala, trazendo outro tabuleiro. Aparentemente, decidira tomar medidas drásticas depois do fiasco dos fettuccine à la mer, na noite anterior. Preparara cereais com bananas, ovos e salsichas, tomates grelhados e cogumelos, para além de uma toranja e torradas. Tivera ainda o cuidado de colocar uma rosa num solitário e de acrescentar um bule de Lapsang Souchong. Enquanto pousava o tabuleiro sobre a mesa, a campainha soou.
Deve ser a sargento disse.
Eu abro a porta disse Lynley.
Denton não se enganara. Lynley encontrou Havers à porta de sua casa.
Mollison está cá.
Fechou a porta depois de ela ter entrado.
Quais são as novidades?
Até agora nada, a não ser pedidos de desculpas e evasivas. Ah, sim, tem uma predilecção por Rachmaninov.
Isso deve tê-lo deixado reconfortado. Riscou-o imediatamente da lista de suspeitos, suponho.
Lynley sorriu. Cruzaram-se com Denton, que ofereceu café e croissants a Havers.
Café. Estou a fazer uma hora de dieta respondeu a sargento. Denton desatou a rir e seguiu o seu caminho. Na sala de estar, Mollison mudara-se do sofá para a janela, onde roía conscientemente as unhas. Cumprimentou Havers com um movimento de cabeça, enquanto Lynley se preparava para tomar o pequeno-almoço. Permaneceu em silêncio até Denton ter regressado com outra chávena e outro pires e ter saído, novamente, depois de ter servido o café a Havers.
Estão à procura do carro? perguntou Mollison, por fim.
Já o encontrámos.
Mas o jornal dizia...
Gostamos de nos manter um passo à frente dos jornais, sempre que podemos observou Havers.
E Gabbie?
Gabbie?
Gabriella Patten. Falaram com ela?
Gabbie.
Lynley reflectiu sobre a utilização do diminutivo, enquanto engolia os cereais. Na noite anterior, não conseguira ingerir uma refeição decente e nunca a comida lhe soubera tão bem.
Se encontraram o carro, então...
Porque é que não nos diz o que o trouxe até aqui, Mr. Mollison? perguntou Lynley. Mrs. Patten, ou é um suspeito, ou uma testemunha material de um homicídio. Se conhece o seu paradeiro, faria bem em partilhar essa informação connosco. Como, sem dúvida, a sua mulher já o terá aconselhado a fazer.
. Allison não deve ser envolvida nesta história. Disse-vos isso ontem à noite e estava a falar a sério.
Certamente.
Se me assegurarem de que tudo o que eu vos disser ficará apenas entre nós.
Nervoso, Mollison fazia correr o polegar ao longo do dedo indicador, como se experimentasse a textura da sua pele.
Não poderei dizer-vos nada, a não ser que me dêem essa garantia.
Receio que isso não seja possível disse Lynley. Mas pode sempre telefonar ao seu advogado, se quiser.
Não preciso de nenhum advogado. Não fiz nada. Só queria certificar-me de que a minha mulher... Oiçam, Allie não sabe... Se, por algum acaso, ela viesse a descobrir que... tornou a virar-se para a janela e contemplou Eaton Terrace. Merda. Eu só quis ajudar. Não. Eu só estava a tentar ajudar.
Mrs. Patten?
Lynley pousou os cereais e passou aos ovos. A sargento Havers tirou o bloco-notas de dentro da mala. Mollison soltou um suspiro.
Ela telefonou-me.
Quando?
Na quarta-feira à noite.
Antes ou depois de ter falado com Fleming?
Depois. Horas mais tarde.
A que horas?
Deviam ser... não sei... pouco antes das onze? Minutos depois? Por volta dessa hora.
Onde estava ela?
Numa cabina telefónica em Greater Springburn. Ela e Ken tinham discutido, segundo me disse. Estava tudo terminado entre eles. Precisava de um sítio onde ficar.
Porque é que ela lhe telefonou a si e não a outra pessoa? A uma amiga, por exemplo?
Porque Gabbie não tem amigas. E mesmo que tivesse, telefonou-me porque eu fui a causa da discussão. Estava em dívida para com ela, disse-me. E tinha razão.
Em dívida para com ela? perguntou Havers. Ela tinha-lhe feito algum favor?
Mollison virou-se para eles. O seu rosto rosado adquiria um rubor intenso, que começava no pescoço e alastrava rapidamente.
Ela e eu... Em tempos. Nós dois. Percebem, não é?
Não, não percebemos respondeu Havers. Mas porque é que não nos explica?
Passámos bons bocados juntos. Esse género de coisa.
Você e Mrs. Havers foram amantes? esclareceu Lynley, e quando o rubor que tingia o rosto de Mollison se intensificou, prosseguiu: Quando?
Há três anos.
Voltou para junto do sofá e pegou na chávena de café. Engoliu o seu conteúdo de um só trago, como um homem desesperado por algo que lhe transmitisse força ou lhe acalmasse os nervos.
Foi uma loucura. Por pouco não destruiu o meu casamento. Nós bem, não soubemos ler muito bem as reacções um do outro.
Lynley prendeu uma salsicha com o garfo. Juntou-lhe um bocado de ovo. Comeu e, impassível, fitou Mollison, que, por sua vez, o observava. A sargento Havers escrevia, o lápis avançando firmemente sobre as páginas do seu bloco-notas.
As coisas passam-se assim: quando se é famoso, há sempre mulheres que decidem que se sentem atraídas por nós disse Mollison. Querem... Estão interessadas em... Têm estas fantasias. Sobre nós. Ou seja, nós fazemos parte das fantasias delas. Tal como elas fazem parte das suas próprias fantasias. E, regra geral, não sossegam enquanto não tiverem uma oportunidade de comprovar até onde conseguem concretizar as suas fantasias.
Por outras palavras, você e Gabriella Patten acabaram por fornicar que nem doidos traduziu Havers com uma crueza exemplar.
Chegou até a consultar ostensivamente o seu Timex, não fosse dar-se o caso de Mollison não ter percebido bem o sentido das suas palavras.
Mollison lançou-lhe um olhar furioso. O que é que alguém como você percebe deste género de coisa?, parecia querer dizer. No entanto, continuou:
Julguei que ela estava interessada naquilo que as outras... tornou a fazer uma careta. Oiçam, não sou nenhum santo. Se uma mulher me faz uma proposta, o mais provável é que eu aceite o que ela me propõe. Mas não passa de bocados bem passados. Nunca me esqueço disso. E a mulher em questão também não.
Gabriella Patten não sabia disse Lynley.
Ela julgou que quando ela e eu... quando nós...
Fornicaram acrescentou prontamente a sargento Havers.
O problema foi que a situação se arrastou disse Mollison. Isto é, houve mais de um encontro. Eu devia ter rompido quando percebi que o caso estava a assumir proporções extraordinárias para ela...
Ela alimentava esperanças em relação a si disse Lynley.
De início, não percebi. Não percebi o que ela procurava. Depois/ quando percebi, já estava tão envolvido com... com ela. Ela é... Como é que posso explicá-lo sem parecer tão... Ela tem qualquer coisa. Depois de ter estado com ela... ou seja, depois de termos ido com ela... as coisas tornam-se..- Oh, merda. Que mal que isto soa.
Tirou um lenço amarfanhado de dentro do bolso e passou-o pelo rosto.
É uma mulher que lhe abala os alicerces, então? interveio Havers.
Mollison fitou-a, inexpressivamente.
Quando está com ela, tem a impressão que a Terra treme.
Nenhuma reacção.
É uma bomba na cama.
Oiça lá começou Mollison, já irritado.
Sargento cortou Lynley, com calma.
Estava apenas a tentar...
Ergueu uma sobrancelha. ”Tente menos”, era o significado da mímica. Falando entredentes, retomou a sua posição, lápis pronto a escrever. Mollison guardou o lenço dentro do bolso.
Quando percebi o que ela realmente queria, julguei que poderia manter a ligação durante algum tempo. Não queria abdicar dela.
E que queria ela, exactamente? perguntou Lynley.
Queria-me a mim. Queria que eu deixasse Allie, para que pudéssemos ficar juntos. Queria casar-se comigo.
Mas ela era casada com Patten, na época, não era?
As coisas não iam muito bem entre eles, nessa altura. Não sei porquê.
Ela nunca lhe contou nada?
Não perguntei. Nunca se pergunta. Isto é, quando se trata de uma situação passageira de cama ninguém faz perguntas sobre a saúde do casamento do parceiro. Parte-se do princípio de que tudo podia correr melhor, mas ninguém quer envolver-se em confusões. Por isso esforçamo-nos por manter as coisas a um nível meramente superficial. Bebe-se uns copos. Um jantar aqui e ali, se o tempo permitir. Depois... aclarou a garganta.
A boca de Havers formou as palavras, dá-se uma queca, mas não as proferiu em voz alta.
Tudo o que sei é que ela não era feliz com Hugh. Ou seja, não era... Como é que posso explicar isto sem... Não era feliz com ele sexualmente. Ele nem sempre era capaz de... Não... Quando tinham relações, ela nunca... Eu sei apenas aquilo que ela me contava, e tenho consciência de que uma das vezes em que me contou isso estávamos bem lançados, por isso pode perfeitamente ter mentido. Mas ela disse-me que, de facto, nunca... percebem. Com Hugh.
Acho que sim, que já percebemos disse Lynley.
Exacto. Em todo o caso, foi o que ela me contou. Mas como vos disse, quando ela me falou nisso, estávamos mesmo a... por isso... sabem como são as mulheres, às vezes. Se ela quisesse que eu sentisse que era o único que alguma vez... E ela era boa nisso. Eu senti-me assim, de facto. Só que não queria casar-me com ela. Ela não passava de um caso. Uma distracção. Amo a minha mulher, percebem? Amo Allie. Tenho uma verdadeira adoração por ela. O resto são apenas coisas que acontecem quando se é famoso.
A sua mulher está ao corrente da vossa ligação?
Foi assim que pus fim a ela, aliás. Fui obrigado a confessar. Allison ficou muito perturbada, algo que eu lamento ainda, mas, pelo menos, con segui terminar tudo com Gabbie. E jurei a Allison que nunca mais voltaria a ter nada com ela. À parte as ocasiões em que teria de estar com ela, quando viess com Hugh. Durante os encontros entre a selecção e os eventuais patrocinadores
Uma promessa que não cumpriu, presumo?
Está enganado. Depois de termos terminado a nossa ligação, não tornei a ver Gabbie sem ser na companhia de Hugh. Até que ela me telefonou na quarta-feira à noite olhou para o chão com uma expressão de grande desalento. E, nessa altura, ela precisava da minha ajuda. E eu ajudei-a E ela... ela mostrou-se grata.
Será necessário perguntar de que forma é que ela demonstrou a sua gratidão? perguntou Havers, educadamente.
Merda sussurrou Mollison. Pestanejou rapidamente. Não aconteceu na quarta-feira à noite. Não a vi nessa noite. Foi na quinta-feira à tarde ergueu a cabeça. Ela estava perturbada. Praticamente histérica. A culpa foi minha. Queria fazer qualquer coisa para a ajudar. E as coisas aconteceram, naturalmente. Preferia que Allie não ficasse a saber...
... a natureza exacta da assistência que lhe prestou na quarta-feira à noite disse Lynley. Arranjou-lhe um sítio onde ficar?
Em Shepherd’s Market. Tenho um apartamento lá, juntamente com três tipos de Essex. Usamo-lo quando... baixou novamente a cabeça.
Querem dar umas quecas com alguém que não as vossas mulheres completou Havers, num tom fatigado.
Mollison não esboçou qualquer reacção. Limitou-se a dizer, numa voz igualmente fatigada:
Quando ela me telefonou na quarta-feira à noite, eu disse-lhe que arranjaria maneira de ela ficar no apartamento.
E como é que ela entrou?
A chave fica lá. No edifício. Com o porteiro. Para que as nossas mulheres... Percebem?
E a morada?
Terei de levar-vos até lá. Lamento, mas caso contrário ela não vos deixará entrar. Nem sequer atenderá à campainha.
Lynley pôs-se de pé. Mollison e Havers imitaram-no.
A sua discussão com Fleming disse Lynley. Aquela que o levou a telefonar-lhe na noite de quarta-feira. Não teve nada que ver com o jogador paquistanês do Middlesex, pois não?
Estava relacionada com Gabbie disse Mollison. Foi por isso que Ken foi até às Springburns. Para esclarecer tudo com ela.
Você sabia que ele tencionava ir até lá?
Sabia.
O que é que aconteceu?
Mollison tinha as mãos caídas ao longo do corpo, mas Lynley conseguia distinguir-lhe os polegares repuxando a pele em volta das unhas. Terá de ser a Gabbie a contar-vos replicou Mollison.
Mollison, por seu turno, estava disposto a confessar-lhes a verdadeira causa da sua altercação com Kenneth Fleming. Inventara a história do paquistanês para consumo de Allison. Se tivessem continuado a conversa no corredor de China Silk Wharf, na véspera, ele ter-lhes-ia contado logo a verdade. Na presença de Allison, no entanto, não podia permitir-se ímpetos de honestidade. Isso significaria correr o sério risco de levantar o véu sobre os acontecimentos da tarde de quinta-feira. Além disso, a história do paquistanês e da zaragata que se lhe seguira fora a desculpa que inventara para explicar à mulher a origem das suas feridas e escoriações.
Dirigiram-se para Mayfair, atravessando Eaton Square e os seus coloridos e exuberantes maciços de amores-perfeitos e tulipas. Depois de terem virado para Grosvenor Place e quando avançavam, lentamente, ao longo do muro amarelado que protegia os jardins de Buckingham Palace de olhares curiosos, Mollison prosseguiu com as suas explicações.
O episódio protagonizado por Fleming e por ele, disse, ocorrera no final do terceiro dia do jogo que opunha o Middlesex ao Kent. Tudo se passara no parque de estacionamento do Lord’s, mas na verdade a cena tivera início no bar ”no bar do Pavilhão... por detrás da grande galeria... suponho que o barman facilmente confirmará a história, se o interrogarem” onde Mollison e Fleming bebiam um copo, tranquilamente, na companhia de outros jogadores.
Eu estava a beber tequila precisou. É uma bebida traiçoeira. Sobe à cabeça de um tipo em menos de um fósforo. E não há nada melhor para soltar a língua de uma pessoa. De tal maneira que chegamos ao ponto de dizer coisas que, em circunstâncias diferentes, guardaríamos para nós.
Tinha ouvido rumores, explicou Mollison, a propósito de Fleming e de Gabriella Patten. Uma frase aqui, outra frase ali... Pessoalmente, nunca ouvira nem vira fosse o que fosse.
Eles eram extremamente cautelosos. Esse é, aliás, um comportamento típico de Gabriella. Quando arranja um amante, não é do tipo de espalhar o acontecimento aos quatro ventos.
Todavia, quando a ligação entre ambos assumira um tom mais sério e o casamento se tornara uma possibilidade séria, os cuidados de ambos deixaram de ser tão redobrados. Começaram a ser vistos em público juntos. As pessoas começaram a especular. E a história chegara aos ouvidos de Mollison.
Não sabia, exactamente, o que o levara a tocar no assunto, disse-lhe Não tinha... bem, entre ele e Gabriella não se passara nada nos dois últimos anos. Quando a ligação entre ambos terminara pronto, pronto, no dia em que ele confessara os seus delitos a Allison e se vira forçado a pôr termo à aventura, sob pena de perder a mulher, sentira-se tremendamente aliviado e empenhara-se em tornar-se um marido-modelo. O sentimento durara cerca de dois meses, durante os quais fora absolutamente fiel a Allison. Nada de aventuras com ninguém, nem sequer passageiras. Passado esse tempo, porém começara a sentir saudades de Gabbie. E de tal maneira, que na maior parte das vezes já nem sequer tinha vontade de... com Allison. Tentara fingir, mas há certas coisas que um tipo não consegue simular... Bem, não precisava de entrar em pormenores, pois não? Num esforço para se consolar, dissera para si próprio que a própria Gabriella também deveria estar a sentir falta dele. Sobretudo, porque Hugh era uma esponja, o que não devia contribuir em nada para melhorar o seu desempenho em vale de lençóis. E ela não andava a dormir com mais ninguém. Pelo menos, ele assim pensava. Passado algum tempo, as saudades tinham decrescido um pouco. Começara a sair com outras mulheres, o que lhe permitira voltar a dormir com Allie e convencer-se a si mesmo de que a sua aventura com Gabbie não passara disso mesmo, de uma aventura divertida enquanto durara, mas nada mais do que um episódio passageiro na vida dele.
Foi então que ouvira os rumores sobre Fleming. As circunstâncias da vida de Ken tinham sido sempre bizarras, mas ele Mollison partira do princípio que, a longo prazo, quando tivesse resolvido o que tinha a resolver, Fleming acabaria por voltar para a mulher. Era assim que as coisas se passavam quase sempre, não era? Todavia, quando começara a circular o boato de que Fleming contratara um advogado de renome para resolver a sua situação e tratar da papelada, que Hugh e Gabriella Patten já não viviam sob o mesmo tecto e quando, ele próprio, testemunhara uma troca de olhares e gestos afectuosos entre Fleming e Gabriella, a escassos metros do Pavilhão, à vista de todos... bom, ele não tinha nascido ontem, certo?
Fiquei cheio de ciúmes admitiu.
Indicou a Lynley uma rua calcetada e estreita que marcava a fronteira sul de Shepherd’s Market. Estacionaram em frente a um pub chamado Ye Grapes, abundantemente coberto de hera. Depois de terem saído do carro, Mollison encostou-se à porta do veículo, decidido a concluir o seu relato antes de os conduzir à presença da principal protagonista do caso. A sargento Havers continuou a tomar notas. De braços cruzados, Lynley escutava-o, impassível.
Eu podia ter ficado com ela, quer dizer, podia ter casado com ela, mas não quis disse Mollison. Mas quando fiquei a saber que havia outra pessoa interessada nela...
Outro galo na sua capoeira comentou Havers.
Exactamente. Isso, e a tequila que tinha bebido, aliada ao facto de ser obrigado a lembrar-me do que tínhamos vivido juntos. E pensar nela com outro tipo. Sobretudo um tipo que eu conhecia. Comecei a sentir que tinha sido um cretino em ter sentido tantas saudades dela. O mais certo era ela ter caído nos braços de outro logo depois de me ter deixado. Eu era apenas mais um numa longa lista de amantes, que terminava agora em Fleming, o último patinho que caíra na armadilha dela.
Deste modo, depois do jogo daquele dia, decidira fazer um comentário em forma de pergunta. Um comentário rude, dando a entender que conhecia Gabriella intimamente, uma reflexão que denotava uma autenticidade indiscutível. Que ele preferia não repetir, se eles não se importavam. Não se sentia muito orgulhoso do sentimento mesquinho que o levara a proferir o dito comentário, nem da sua falta de galanteria.
No início, Ken manteve-se impassível disse Mollison. Como se estivéssemos a falar de duas pessoas completamente diferentes.
Nessa altura, decidira clarificar o seu ponto de vista fazendo alusão ao número de jogadores de críquete que tinham beneficiado dos favores de Gabriella Patten.
Fleming saíra do bar, mas não abandonara o Lord’s. Quando Mollison chegara ao parque de estacionamento, estava à sua espera.
Atirou-se a mim disse Mollison. Não sei se estava a defender a honra dela, se estava só a dar-me uma lição. Fosse como fosse, apanhou-me desprevenido. Se o guarda não tivesse aparecido, provavelmente os senhores estariam agora a investigar o meu assassinato.
E na quarta-feira à noite, quando falou com ele? perguntou Lynley. De que é que falaram, ao certo?
Nesse ponto, fui franco convosco: a minha intenção era apresentar-lhe as minhas desculpas. Iríamos, certamente, jogar juntos contra a Austrália e eu queria sanar os conflitos que nos separavam.
Como é que ele reagiu a isso?
Disse que não tinha qualquer importância, que estava tudo esquecido, que, de qualquer maneira, ia esclarecer tudo com Gabriella nessa noite.
Diria, então, que ele já não estava furioso?
Claro que estava. Mas eu seria a última pessoa a quem ele iria demonstrá-lo, não é verdade? Mollison afastou-se do carro. Gabbie Poderá dizer-vos até que ponto estava furioso. Poderá até mostrar-vos as Provas vivas dessa fúria.
Conduziu-os a Shepherd Street, situada a escassos metros do sítio onde o bentley ficara estacionado. Aí, em frente a uma florista, cuja vitrina estava repleta de lírios, rosas, narcisos e cravos, tocou à campainha de um apartamento identificado apenas com o número 4. Esperou alguns segundos antes de insistir mais duas vezes. Decididamente, tal marido, tal mulher nnotou Lynley, sardónico.
Instantes depois, um som roufenho jorrou do pequeno intercomunicador de metal.
Guy.
Mais um momento, e a porta abriu-se com um estalido. Ele empurrou-a pedindo a Havers e a Lynley:
Não sejam duros para com ela. Verão que não terão necessidade de recorrer a esse tipo de procedimento.
Guiou-os ao longo de um corredor que conduzia às traseiras do edifício, fazendo-os depois subir um curto lanço de escadas que terminava num mezanino. Aqui, uma porta estava entreaberta. Mollison empurrou-a, chamando:
Gabbie?
Estou aqui alguém respondeu. Jean-Paul está a desforrar-se em mim. Ai! Cuidado. Não sou de borracha.
Aqui significava a sala de estar, que ficava no prolongamento do vestíbulo. Os móveis, demasiado bojudos, tinham sido encostados às paredes, a fim de criar espaço para a mesa de massagens. Sobre esta, deitada de barriga para baixo, estava uma mulher ligeiramente bronzeada. Pequena, mas dotada de formas voluptuosas, o corpo nu parcialmente coberto por um lençol. Tinha a cabeça virada para as janelas que davam para o pátio.
Não telefonaste antes de vir disse ela, numa voz sonolenta, à medida que Jean-Paul, trajando de branco, do turbante à ponta dos pés, lhe massajava a coxa direita. Humm. Que bom sussurrou ela.
Não pude.
Não? E porquê? Allison, a fera, anda outra vez a fazer das suas? O rosto de Mollison enrubesceu violentamente.
Trouxe visitas disse ele. Precisas de falar com elas, Gabbie. Lamento muito.
A cabeça da rapariga coberta por uma luxuriante massa de cabelos ondulados cor de trigo virou-se lentamente na direcção deles. Os seus olhos azuis, orlados por uma espessa franja de pestanas escuras, oscilaram entre Mollison, Havers e Lynley, detendo-se neste último. Fez uma careta quando os dedos competentes de Jean-Paul encontraram um músculo ainda recalcitrante.
E quem são, exactamente, estas visitas que me trouxeste?
Encontraram o carro de Ken, Gabbie disse Mollison. Os polegares dele brincavam nervosamente com os dedos. Têm andado à tua procura. Já começaram a passar Mayfair a pente fino. É melhor para nós dois, se...
Melhor para ti, queres tu dizer.
Os olhos de Gabriella Patten continuavam presos em Lynley. Ergueu um pé e rodou-o. Interpretando este movimento como uma indicação, Jean apressou-se a agarrá-lo e começou a massajar os dedos, a planta do pé, calcanhar.
Delicioso murmurou ela. Fazes-me derreter que nem manteiga,
Jean-Paul
Jean-Paul afadigava-se. A sua mão movia-se ao longo da perna dela e
daí subia até à coxa.
Está errada discordou ele, num tom brusco. Sinta isto, Madame Patten. Como ficou tenso num instante. Duro como pedra. Mais do que estava. Muito mais. E aqui, e aqui.
Soltou um estalido com a língua, expressando o seu desagrado.
Lynley sentiu os seus lábios entreabrirem-se num sorriso, que tentou reprimir o melhor que pôde. Jean-Paul era mais temível do que um detector de mentiras.
Com um movimento abrupto, Gabriella repeliu o massagista.
Por hoje chega disse.
Virou-se, sentou-se e passou as pernas sobre o rebordo da mesa. O lençol descaiu-lhe até à cintura, e Jean-Paul apressou-se a cobrir-lhe os ombros com um imenso e imaculado toalhão branco. Com gestos lentos, ela enrolou-o em volta do corpo, à maneira de um sarongue. Enquanto Jean-Paul desmontava a mesa e começava a colocar os móveis nos seus devidos lugares, Gabriella dirigiu-se para uma mesa inglesa, perto do sítio onde se encontravam as visitas. Sobre esta, havia uma pesada taça de vidro cheia de fruta. Escolheu uma laranja e enterrou as unhas bem arranjadas na pele enrugada. O perfume do citrino invadia o ar, à medida que ela o ia descascando. Com uma voz suave, disse a Mollison:
Obrigada, Judas. Mollison protestou.
Vá lá, Gabbie. Que outra coisa podia eu fazer?
Não sei. Porque é que não pedes conselhos à tua advogada preferida? Tenho a certeza que ela estaria mais do que disposta a aconselhar-te.
Não podes ficar aqui para sempre.
Não queria isso.
Eles precisam de conversar contigo. Precisam de saber o que aconteceu, para que possam chegar ao fundo das coisas.
Ai precisam? E desde quando é que te divertes a brincar aos polícias e espiões?
Gabbie, conta-lhes o que se passou quando Ken chegou à casa do Kent. Conta-lhes o que me contaste. É só isso que eles pretendem saber. DePois vão-se embora.
Gabriella lançou um longo olhar de desafio a Mollison. Finalmente, baixou a cabeça e concentrou a sua atenção na laranja. Uma parte da casca escorregou-lhe da mão, e tanto ela como Mollison se baixaram para apanhá-la. Ele
foi mais rápido. A mão dela fechou-se sobre a dele.
Guy disse ela, num tom de voz urgente.
Está tudo bem replicou ele, ternamente. Prometo. Conta-lhes a verdade, é tudo. Fazes isso?
Se eu falar, ficas aqui comigo?
Já conversámos sobre isso. Não posso. Sabes que não posso.
Não digo depois. Estou a pedir-te que fiques agora. Enquanto eles aqui estiverem. Ficas?
Allison julga que eu fui até ao centro desportivo. Não podia dizer-lhe onde... Gabbie, tenho de ir embora.
Por favor pediu ela. Não me obrigues a enfrentar tudo isto sozinha. Não saberei o que dizer.
Basta que lhes contes a verdade.
Ajuda-me a contá-la. Por favor os dedos dela subiram do pulso para o braço dele. Por favor repetiu. Não vai levar muito tempo, Guy. Prometo.
Dir-se-ia que Mollison só conseguiu tirar os olhos dela à custa de um esforço prodigioso.
Meia hora, é tudo o que te posso dar disse ele.
Obrigada replicou ela, num sussurro. Vou vestir qualquer coisa. Passou por eles e desapareceu dentro do quarto, fechando a porta atrás de si.
Jean-Paul eclipsou-se discretamente. Os outros entraram na sala de estar. A sargento Havers aproximou-se de uma das duas cadeiras colocadas sob as janelas que davam para o pátio. Sentou-se pesadamente, pousou a mala no chão e apoiou um dos pés, enfiado num sapato de couro grosseiro, sobre o joelho oposto. O seu olhar cruzou-se com o de Lynley e ela ergueu os olhos para o céu. Lynley sorriu. A sargento conseguira controlar-se de forma admirável até àquele momento. Gabriella Patten era o género de mulher que Havers teria adorado esmagar como uma mosca.
Mollison dirigiu-se, primeiro, para junto da lareira e acariciou as folhas sedosas de uma aspidistra artificial. Examinou o seu reflexo no espelho que cobria a parede por inteiro. Em seguida aproximou-se das estantes e passou os dedos ao longo de uma fileira de livros de bolso. Dick Francis, Jeffrey Archer e Nelson DeMille. Roeu as unhas durante alguns segundos antes de se virar para Lynley.
Não é de todo aquilo que está a pensar disse, bruscamente.
O quê?
Inclinou a cabeça na direcção da porta.
Aquele tipo. O facto de ele cá estar. Não é muito positivo para a imagem de Gabriella. Mas não é nada do que está a pensar.
Lynley interrogou-se sobre as ilações que Mollison julgava que ele tirara da curta mas tocante representação de Gabriella. Decidiu optar pelo silêncio esperar pelo que Mollison iria dizer. Aproximou-se da janela e contemplou nátio, onde dois passarinhos deambulavam ao longo do rebordo de uma fonte, bebericando aqui e ali.
Ela não é indiferente.
A quê? inquiriu Havers.
Ao que se passou com Ken. Está a fazer de conta que não aconteceu nada por causa do que sucedeu na quarta-feira à noite. Do que ele lhe disse. Do que ele lhe fez. Está magoada e não quer demonstrá-lo. No lugar dela, não agiriam da mesma forma?
Eu acho que se estivesse envolvida num caso de homicídio agiria com muita cautela disse Havers, sobretudo se tivesse sido eu a última pessoa a ver o cadáver antes de ele se ter transformado em cadáver.
Ela não fez nada. Limitou-se a sair de lá o mais depressa que conseguiu. E teve motivos para o fazer, se querem saber a verdade.
A verdade. É justamente isso que nos interessa saber.
Óptimo. Porque estou mais do que preparada para a contar. Gabriella Patten juntara-se a eles. Estava parada sob a ombreira da porta da sala, vestida com umas calças de malha pretas, uma camisola curta florida e de alças finas e uma espécie de túnica diáfana, que flutuou em torno do seu corpo quando ela caminhou até ao sofá. Desapertou as delicadas fivelas douradas que prendiam as sandálias pretas que lhe cobriam os pés e descalçou-as. Dobrou as pernas e escondeu os pés bem tratados, as unhas pintadas num tom rosa igual ao das unhas das mãos debaixo do corpo, instalando-se num dos cantos do sofá e sorrindo fugidiamente na direcção de Mollison.
Queres que te traga alguma coisa, Gabbie? perguntou ele. Um chá? Café? Uma coca-cola, talvez?
A tua presença aqui já é suficiente. Vai ser bastante penoso para mim ter de recordar tudo novamente. Ainda bem que ficaste pousou a palma da mão no assento do sofá ao seu lado. Vens?
Em resposta, Mollison afastou-se das estantes onde se encostara e sentou-se a cerca de dez centímetros de distância dela, suficientemente perto para lhe transmitir o apoio da sua presença e, ao mesmo tempo, longe do alcance dela. Lynley perguntou a si mesmo qual dos dois seria o destinatário daquela mensagem: a polícia ou Gabriella Patten. Ela parecia não se aperceber do facto. Endireitando os ombros e a coluna, desviou a sua atenção para Lynley e Havers, agitando levemente os caracóis sedosos que lhe caíam sobre os ombros.
Querem saber o que aconteceu na quarta-feira à noite disse ela.
É um bom começo replicou Lynley. Que não implica que não possamos ir mais longe.
Não há muito que contar. Ken deu um salto até às Springburns. Tivemos uma discussão violenta. Eu vim embora. Não faço a mais pequena ideia do que aconteceu depois disso. A Ken, claro.
Descansou a cabeça numa das mãos - têmpora sobre as pontas dos dedos, braço esticado ao longo das costas do sofá e observou a sargemto Havers, que folheava o seu bloco-notas.
É realmente necessário? perguntou.
A sargento Havers continuou a folhear o caderninho. Encontrando a página pretendida, molhou a ponta do lápis e começou a escrevinhar.
Eu disse... começou Gabriella.
Teve uma discussão com Fleming. Veio embora murmurou Havers, enquanto tomava nota. A que horas foi isso?
Tem mesmo de tomar notas?
É a melhor maneira de obter uma versão correcta das histórias de toda a gente.
Gabriella olhou para Lynley, como se estivesse a pedir-lhe que interviesse.
A que horas, Mrs. Patten?
Ela hesitou, franzindo as sobrancelhas, a sua atenção centrada ainda em Havers, como se desejasse telegrafar o seu desagrado pelo facto de as suas palavras estarem prestes a ser imortalizadas pelo lápis da sargento.
Não sei dizer-vos com exactidão. Não olhei para o relógio.
Deviam ser umas onze horas quando me telefonaste, Gabbie prontificou-se a informar Mollison. Da cabina, em Greater Springburn. Por isso, a discussão deve ter acontecido antes das dez.
A que horas chegou Fleming? perguntou Lynley.
Nove e meia? Dez? Não sei precisar, porque tinha saído para ir dar um passeio e quando regressei a casa ele já lá estava.
Não estava à espera da visita dele?
Eu julgava que ele ia para a Grécia. Com aquele... compôs a túnica preta com gestos delicados, com o filho. Disse que era o aniversário de James e que estava a tentar entender-se com ele, por isso iriam até Atenas. E daí iriam velejar.
Estava a tentar entender-se com ele?
Existia uma anomia considerável entre os dois, inspector.
Não compreendo.
Eles não se davam muito bem.
Ah! Lynley viu a boca de Havers mimar a palavra anomia, enquanto a escrevia com uma expressão aplicada. Só Deus sabia que destino ela daria àquele lapso lexical quando tivesse de redigir o relatório. E qual era a origem desta... anomia? perguntou.
James não era capaz de se habituar à ideia de que Ken deixara a mãe dele.
Foi Fleming quem lhe contou isso?
Não precisava de me dizer nada. James era a personificação da hostilidade em relação ao pai, e não é necessário ler os manuais de psicologia infantil para perceber porquê. As crianças agarram-se sempre à esperança tenebrosa de que os pais separados hão-de acabar por se reunir de novo colocou a palma da mão sobre o peito, como se assim quisesse enfatizar as suas palavras. - Eu representava a intrusa, inspector. James sabia da minha existência. Sabia quais eram as implicações da minha presença na vida do pai dele. Não gostava delas e dava-o a entender ao pai de todas as maneiras possíveis.
- A mãe de Jimmy diz que ele não sabia que o pai tencionava casar-se consigo - interveio Havers. - Diz até que nenhum dos filhos sabia.
- Nesse caso, a mãe de James está a mentir - disse Gabriella. - Ken comunicou-o aos filhos. E a Jean, também.
- Tanto quanto sabe.
- O que é que está a sugerir?
- Estava presente quando ele comunicou a sua decisão à mulher e aos filhos? - quis saber Lynley.
- O facto de Kenny estar a pôr fim ao casamento dele para viver comigo não era algo que me deixasse radiante, como imagina. E também não sentia qualquer necessidade de estar presente no dia em que ele anunciasse publicamente o facto à mulher.
- E em privado?
- Como?
- Sentia-se radiante, em privado?
- Até quarta-feira à noite, estava louca por ele. Queria casar-me com ele. Eu própria poderia ser acusada de mentir, se dissesse que não me sentia contente pelo facto de ele estar a tomar providências na sua vida pessoal para que pudéssemos ficar juntos.
- E em que é que os acontecimentos da noite de quarta-feira a fizeram mudar de opinião?
Ela virou a cabeça, e os dedos que estavam pousados sobre a têmpora deslizaram para junto da sobrancelha.
- Há certas coisas que, quando ditas entre um homem e uma mulher, infligem danos irreparáveis a uma relação. Estou certa de que compreende o que quero dizer.
Mais matéria, menos arte, pensou Lynley. O que disse, no entanto, foi:
- Tenho de pedir-lhe que seja mais específica, Mrs. Patten. Recapitulemos, então. Fleming chegou às nove e meia ou às dez horas. Começaram a discutir imediatamente, ou a troca de palavras entre ambos foi-se transformando progressivamente numa discussão?
Ela ergueu a cabeça. Dois círculos perfeitos, do tamanho de uma moeda de dez pence, tingiam-lhe as faces.
- Não vejo em que é que um relato pormenorizado dos acontecimentos daquela noite poderá alterar o que aconteceu em seguida.
- Cabe-nos a nós ajuizá-lo - disse Lynley. - A discussão entre ambos surgiu imediatamente?
Ela não respondeu.
- Gabbie - interveio Mollison -, conta-lhe tudo. Podes confiar nele
- acrescentou, num tom ansioso. - Não tens nada a temer. A tua reputação não sairá prejudicada.
Ela soltou uma curta gargalhada.
- Dizes isso, porque não te contei tudo, Guy. Não fui capaz. E ter de confessar tudo, aqui, na tua frente...
Passou os dedos pelas pálpebras e os seus lábios estremeceram, convulsivamente, sob a protecção da sua mão.
- Queres que saia? - sugeriu Mollison. - Posso esperar no outro quarto. Ou lá fora...
Ela inclinou-se para ele e procurou-lhe a mão. Ele aproximou-se dela cerca de um centímetro.
- Não - recusou ela. - És a minha força. Fica. Por favor. Segurou a mão dele entre as suas e respirou fundo.
- Muito bem - disse.
Saíra para dar um longo passeio, disse-lhes. Fazia parte da sua rotina quotidiana. Costumava sair para dar dois longos passeios diários. Um de manhã e outro à noite. Naquele dia, dera a volta às Springburns, ou seja, percorrera uma distância de cerca de nove quilómetros, em passo vivo e firme. De regresso a Celandine Cottage, vira o Lotus de Ken Fleming, parado na álea.
- Como vos disse, pensava que ele tinha ido para a Grécia com James. Por isso, fiquei surpreendida ao ver o carro dele. Mas senti-me feliz, também, porque desde o sábado anterior que não estávamos juntos e, antes de me ter apercebido que ele viera até ao Kent motivado por simples capricho, não tinha quaisquer esperanças de tornar a vê-lo antes que ele voltasse da Grécia, no domingo à noite.
Entrara em casa, chamando por ele. Encontrara-o no primeiro andar, na casa de banho. Ajoelhado no chão, remexia no lixo. Já tinha feito o mesmo na cozinha e na sala, deixando atrás de si os caixotes de lixo revirados.
- Que procurava ele? - perguntou Lynley.
Fora isso, precisamente, que Gabriella se esforçara por descobrir, e que = Fleming não quisera dizer-lhe de início. Na verdade, recusara-se a pronunciar uma só palavra. Continuara a revolver o lixo e, depois de dar por terminada essa tarefa, entrara de rompante no quarto e arrancara a colcha e os cobertores ^ da cama antes de examinar os lençóis. Em seguida descera ao rés-do-chão, tirara as garrafas de licor de dentro do armário antigo onde estavam arrumadas, alinhara-as sobre a mesa e estudara atentamente os níveis de líquido de cada uma delas. Finda mais esta verificação - sempre perseguido por Gabriella, que não parava de lhe perguntar o que procurava, o que se passava o que sucedera regressara à cozinha e desatara novamente a escrutinar o lixo.
Perguntei-lhe se tinha perdido alguma coisa disse Gabriella. Desatando a rir, ele limitara-se a repetir a pergunta dela. Em seguida, pusera-se de pé, afastara o caixote de lixo para o lado com um pontapé e agarrara-lhe no braço. Exigira que ela lhe dissesse quem tinha estado ali. Lembrara que Gabriella estava sozinha desde domingo de manhã e que, sendo quarta-feira à noite, era improvável que tivesse conseguido sobreviver quatro dias inteiros sem uma boa dose de servilismo masculino; nunca acontecera antes, pois não? e, sendo assim, quem tinha sido o feliz contemplado? Antes que ela pudesse responder ou protestar a sua inocência, ele saíra de casa, disparado, e atravessara o jardim em direcção ao monte de compostagem, começando a esgravatá-lo de imediato.
Parecia louco. Nunca o tinha visto daquela maneira, antes. Supliquei-lhe que, ao menos, me dissesse aquilo que procurava, para que eu pudesse ajudá-lo a encontrá-lo, e então ele disse... levou a mão de Mollison até ao rosto e fechou os olhos.
Está tudo bem, Gabbie Mollison reconfortou-a.
Não está, não sussurrou ela. O rosto dele estava deformado. Eu não o teria reconhecido. Recuei. Disse, ”O que é que se passa, Ken? O que é que se passa? Não me podes dizer? Tens de me dizer”, e ele... ele deu um salto. Levantou literalmente os pés do chão.
Fleming passara em revista o tempo em que tinham estado separados, dizendo, ”domingo à noite, segunda-feira à noite, terça-feira à noite, Gabriella. Isto sem mencionar as manhãs e as tardes.” Sobrava-lhe muito tempo, dissera ele. Tempo para quê, para quê, perguntara Gabriella. Ele rira, dizendo que lhe sobrava tempo mais do que suficiente para dar assistência a toda a equipa de Middlesex e, ainda, a metade da de Essex. E ela era astuciosa, não era? Teria destruído as provas, para começar. Porque, talvez, não tivesse pedido aos outros que lhe satisfizessem a sua premente necessidade de protecção e segurança, como pedira a Fleming. Talvez os outros se limitassem a usufruir de um mergulho compensatório na sua passarinha excessivamente cooperante, sem que o látex se interpusesse entre ambos. Foi assim, Gabriella? Pedes ao bom do Ken que use preservativo, para que ele continue a pensar que és uma amante muito cuidadosa, enquanto nas costas dele atendes aos pedidos de outros sem impor esse tipo de exigências?
Ele tinha andado a revistar o lixo... tinha andado à procura de... Como se eu... Gabriella vacilou.
Acho que já percebemos. Havers tamborilou o lápis sobre a sola grossa do sapato. Discutiram no jardim?
Fora aí que tudo começara, contou Gabriella. Primeiro, Fleming acusara-a, depois Gabriella negara. As suas negações, no entanto, apenas tinham conseguido deixá-lo ainda mais furioso. Dissera-lhe que se recusava a discutir acusações tão absurdas e tornara a entrar em casa. Ele seguira-a. Ela tentara trancar a porta e deixá-lo do lado de fora, mas, obviamente, ele tinha a sua própria chave. Dirigira-se, então, à sala e tentara, sem sucesso, prender a porta, encaixando uma cadeira debaixo da maçaneta. O esforço acabara por se revelar inútil. Fleming abrira a porta com um encontrão. A cadeira caíra ao chão. Ele entrara. Gabriella recuara para um canto, armada com um dos atiçadores. Avisara-o para que não se aproximasse. Ele ignorara-a.
Por pouco não o atingi disse ela. Mas chegado o momento só conseguia imaginar sangue e osso, e o que aconteceria se eu de facto o agredisse.
Hesitara quando Fleming se aproximara dela, avisando-o mais uma vez. Erguera o atiçador.
E depois, de repente, ele começou a comportar-se de forma muito racional disse-lhes ela.
Pedira desculpa. Pedira-lhe que lhe entregasse o atiçador. Prometera que não iria magoá-la. Dissera que tinha ouvido rumores. Que lhe tinham contado algumas coisas, confessara, e que elas tinham andado a zumbir dentro da cabeça dele como vespas. Ela perguntara-lhe que coisas eram essas, que rumores. Pedira-lhe que lhe contasse, para que ela pudesse, ao menos, defender-se ou explicar. Ele perguntara-lhe se ela explicaria, se ela lhe contaria a verdade, caso ele lhe dissesse um nome.
Havia algo tão patético acerca dele disse Gabriella. Parecia indefeso e desesperado. Por isso pousei o atiçador. Disse-lhe que o amava e que faria tudo para ajudá-lo naquilo que ele precisasse.
Fora então que ele mencionara Mollison. Queria saber sobre Mollison, primeiro. Ela repetira a palavra primeiro. Perguntara-lhe o que é que ele queria dizer com primeiro, e esta simples palavra deixara-o novamente desnorteado.
Acusou-me de ter dezenas de amantes. As suas acusações não me agradaram muito, por isso fiz algumas, também, bastante violentas. Sobre ele. Sobre Míriam. Ele reagiu a estas acusações e a discussão subiu de tom a partir daqui.
O que é que a levou a partir? perguntou Lynley.
Isto.
Afastou a pesada cabeleira dos ombros, deixando o pescoço a descoberto. Em ambos os lados viam-se algumas contusões, que eram como marcas de tinta sobre a pele.
Estava mesmo convencida de que ele ia matar-me. Estava indomável.
Em defesa de Mrs. Withelaw?
Não. Rejeitara as acusações de Gabriella, rindo, como se elas fossem um perfeito absurdo. A sua preocupação maior prendia-se com o passado dela. Quantas vezes fora infiel a Hugh? Com quem? Onde? Como é que tinha sido com os outros? ”Porque não estás à espera que eu acredite que Mollison foi o único, advertira ele. Essa resposta não é válida. Passei os três últimos dias a fazer perguntas. Tenho nomes. Lugares. E o melhor que tens a fazer neste momento é fazer com que os nomes e os lugares coincidam.”
A culpa é minha disse Mollison.
Com a mão livre, compôs os cabelos de Gabriella, voltando a esconder as equimoses.
E minha, também. Gabriella agarrou na mão de Mollison pela segunda vez. Porque depois de tu e eu termos terminado, Guy, senti-me tão perturbada que... fiz exactamente aquilo de que ele me acusava. Oh, tudo não, claro. Ninguém teria tempo para todas as abominações que ele queria acreditar que eu fizera. Mas tive vários amantes, é um facto. Porque estava desesperada. Porque o meu casamento era uma farsa. Porque sentia tanto a tua falta que só me apetecia morrer. Que importância teria, então...
Oh, Gabbie disse Mollison.
Estou tão arrependida.
Deixou cair a sua mão e a de Mollison sobre os joelhos. Erguendo a cabeça, dirigiu-lhe um sorriso trémulo. Mollison aproximou a mão que tinha livre da face de Gabriella, ao longo da qual deslizava uma lágrima discreta. Limpou-a.
Havers interrompeu a cena comovente.
Ele estava a preparar-se para estrangulá-la, portanto? É isso? Você conseguiu libertar-se e fugiu.
Sim, foi isso que aconteceu.
Porque é que levou o carro dele?
Porque estava a impedir-me a passagem.
Ele não tentou segui-la?
Não.
E a chave?
Que chave?
A chave do carro.
Ele tinha-a deixado sobre a bancada da cozinha. Agarrei nela para impedir que ele viesse atrás de mim. Só quando cheguei à álea é que percebi que o Lotus me impedia de sair. Nessa altura decidi levar o carro dele. Depois disso, nunca mais o vi, nem ouvi falar dele.
E os gatos? perguntou Lynley. Ela olhou-o, perplexa.
Gatos?
- O que é que lhes fez? Tem dois, não é verdade?
Oh, meu Deus! Tinha-me esquecido completamente deles. Ficaram a dormir na cozinha quando eu saí para o meu passeio de fim de tarde pela primeira vez, parecia genuinamente entristecida. Eu devia tomar conta deles, supostamente. Prometi-o a mim mesma no dia em que os encontrei à beira da nascente. Jurei que não os abandonaria. E depois fugi e...
Estavas aterrorizada disse-lhe Mollison. Sentiste a tua vida em perigo e, por isso, fugiste. Ninguém espera que te lembres de fazer tudo o que tinhas a fazer antes de fugir de uma situação de perigo.
Não é isso que está em jogo. Eram criaturas indefesas e eu abando nei-os, porque só pensei em mim e na minha segurança.
Eles hão-de aparecer tranquilizou Mollison. Devem estar com alguém, caso não estejam na casa do Kent.
Para onde se dirigiu quando saiu de casa? quis saber Lynley.
Fui directamente para Greater Springburn disse ela, e telefonei a Guy.
Quanto tempo demora o trajecto?
Quinze minutos.
Ou seja, a sua discussão com Fleming durou mais de uma hora?
Mais de...?
Perplexa, Gabriella olhou para Mollison.
Se Fleming chegou por volta das nove e meia, dez horas e se só telefonou a Mollison depois das onze horas, então é porque passaram mais de uma hora juntos resumiu Lynley.
Nesse caso, devemos ter discutido durante todo esse tempo, sim.
E limitaram-se a discutir, é isso?
Onde é que quer chegar?
Havia um maço de Silk Cut dentro de um dos armários da cozinha informou Lynley. Fuma, Mrs. Patten?
Mollison agítou-se no sofá.
Não está com certeza a pensar que Gabriella...
Fuma, Mrs. Patten?
Não.
Então, a quem pertenciam os cigarros? Já que Fleming também não fumava, segundo julgo saber.
São meus. Eu fumava, mas parei há quase quatro meses. Para agradar a Ken, sobretudo. Tinha-me pedido que deixasse de fumar. No entanto, faço questão em ter sempre um maço por perto, para a eventualidade de me apetecer fumar um cigarro. Considero que é mais fácil resistir, se souber que tenho cigarros perto de mim. A sensação de que estou num processo de negação não é tão forte.
E não tinha outro maço? Já aberto?
Ela olhou primeiro para Lynley, depois para Havers e, por fim, novamente para Lynley. Pareceu reflectir, contextualizar a pergunta.
Por acaso não estão a pensar que fui eu que o matei. Que fui eu que lancei fogo à casa. Como poderia tê-lo feito? Ele estava lá. E estava furioso.
Acham que ele teria parado de me insultar, que se teria afastado para me Deixar... E eu fiz o quê, supostamente?
Tem cigarros aqui também? perguntou Lynley. Para a ajudar a resistir à tentação?
Tenho um maço, sim. Intacto. Quer vê-lo?
Antes de sairmos, queria, sim. Gabriella levantou a cabeça e Lynley prosseguiu. Depois de ter telefonado a Mollison e de ter conseguido um sítio onde ficar, o que é que fez?
Meti-me no carro e vim até aqui respondeu ela.
E encontrou alguém à sua espera?
Aqui? Não.
Por outras palavras, ninguém pode confirmar a hora da sua chegada aqui?
Gabriella lançou-lhe um olhar fulminante quando percebeu as implicações das palavras dele.
Acordei o porteiro. Foi ele quem me deu a chave do apartamento.
E ele vive sozinho? O porteiro, quero eu dizer?
Não estou a ver a relação, inspector.
Na quarta-feira à noite, Fleming pôs fim ao relacionamento que mantinha consigo, Mrs. Patten? Esta questão também foi abordada durante a discussão? Os seus projectos de casamento ficaram reduzidos a cinzas?
Alto lá, espere um instante, inspector interpôs-se Mollison.
Não, Guy. Gabriella soltou a mão de Mollison. Mudando de posição e, sem tirar as pernas de debaixo do corpo, ficou de frente para Lynley. A sua resposta soou cortante. Ken terminou a relação. Eu terminei a relação. Que interesse pode isso ter? De qualquer maneira, já estava tudo acabado entre nós. Eu vim embora. Telefonei a Guy. Parti depois para Londres, onde cheguei por volta da meia-noite.
Será que alguém poderá confirmar as suas palavras? Para além do porteiro.
Este, pensava Lynley, estaria mais do que disposto a confirmar tudo o que Gabriella quisesse.
Oh, claro que sim. Há, de facto, alguém que poderá confirmar as minhas palavras.
Vamos precisar do nome dessa pessoa.
- Nada me dará mais prazer do que dar-lhe o nome dessa pessoa, acredite. Miriam Whitelaw. Falámos ao telefone menos de cinco minutos depois de eu ter entrado neste apartamento.
O rosto dela iluminou-se e os seus lábios abriram-se num sorriso triunfante ao ver a surpresa momentaneamente estampada nos traços de Lynley. Duplo alibi, pensou ele. Um para cada uma.
CAPÍTULO 13
A sargento Havers esperava junto ao Bentley, em Shepherd’s Market dividindo um muffin de mirtilo em duas metades iguais. Enquanto Lynley falava ao telefone com a Yard, ela dera um salto ao Express Café, regressando com dois copos fumegantes, que colocara sobre o tejadilho do carro, e um saco de papel, de dentro do qual tirara o bolo.
Ainda é cedo para o café das onze, mas pouco importa comentou enquanto oferecia uma das metades do muffin a Lynley.
Ele recusou com um, ”Cuidado com o carro, sargento”. Ouvia o relatório do agente Nkata, que até ao momento consistia em indicar o número de agentes destacados para a Isle of Dogs e para Kensington e em descrever os esforços destes para se esquivarem às perguntas dos jornalistas que, segundo Nkata, ”giravam à volta deles como um bando de abutres sedentos de sangue”. De momento, não havia dados importantes a comunicar. Nem na Isle of Dogs, nem em Kensington, nem em Little Venice, onde uma outra equipa investigava as idas e vindas de Olivia Whitelaw e de Chris Faraday, na noite de quarta-feira.
Em contrapartida, toda a família Cooper está em casa, em Cardale Street informou Nkata.
O filho mais velho também? perguntou Lynley. Jimmy?
Tanto quanto sabemos, sim.
Óptimo. Se ele sair, sigam-no.
Certo, chefe.
No outro lado do fio, soou um roçagar insistente. Nkata devia estar a remexer em folhas de papel perto do auscultador.
Houve uma chamada de Maidstone disse ele. Uma miúda, a pedir-lhe que lhe telefone logo que possa.
A inspectora Ardery? Novamente o roçagar de folhas de papel.
Exacto. Ardery. Diga-me uma coisa, chefe, ela é tão sensual como a voz que tem?
Demasiado velha para si, Winston.
Merda. É sempre a mesma história.
Lynley desligou e aproximou-se de Havers. Provou o café que ela lhe trouxera.
Que mistela horrível, Havers. A boca cheia, Havers disse:
Talvez, mas é líquido.
O óleo de motor também, mas eu prefiro não o beber.
Havers continuou a mastigar e ergueu o copo na direcção do edifício de onde tinham saído momentos antes.
Então, qual é a sua opinião?
Boa pergunta replicou Lynley, meditando sobre o encontro que acabavam de ter com Gabriella Patten.
Podemos verificar a história da chamada telefónica para Mrs. Whitelaw disse Havers. Se ela, de facto, telefonou para Kensington por volta da meia-noite de quarta-feira, fê-lo do apartamento, uma vez que o porteiro confirmou a hora a que ela foi buscar a chave. O que a coloca fora da corrida. Não podia ter estado em dois sítios ao mesmo tempo, não é verdade. No Kent, lançando fogo à casa, e, em Londres, tagarelando amigavelmente com Mrs. Whitelaw. Bem sei que Gabriella é uma rapariga de múltiplos recursos, mas não exageremos.
Possuía outros, no entanto. Como fora dado ver a ambos. E, aparentemente, não tinha qualquer relutância em servir-se deles.
Vou ficar aqui mais um pouco dissera-lhes Guy Mollison sem o mínimo vestígio de embaraço no final da entrevista, quando acompanhara Lynley e Havers até ao mezanino. Gabbie acaba de passar um mau bocado. Precisa de um amigo. Se eu puder reconfortá-la... Bom, a verdade é que me sinto um pouco responsável, entendem? Se não tivesse provocado aquele incidente com Ken... estou em dívida para com ela. Sabem como é olhou para trás, na direcção da porta que deixara entreaberta. Humedeceu os lábios. A morte de Ken deixou-a arrasada. Tenho a certeza de que deve precisar de alguém com quem desabafar.
Lynley pasmou perante a capacidade das pessoas para se auto-iludirem. Era difícil acreditar que ambos tinham, de facto, assistido à mesma representação. Sentada no sofá cabeça e ombros atirados para trás, dedos entrelaçados, Gabriella reproduzira a conversa telefónica que mantivera com Míriam Whitelaw e os acontecimentos que a tinham ocasionado.
- Aquela mulher é a personificação da hipocrisia dissera ela.
Quando nos via juntos, a Ken e a mim, era toda delicodoce. No entanto, detestava-me. Não queria que ele casasse comigo, pois estava convencida de que eu não estava à altura dele. Ninguém estava, aliás, segundo Miriam.
Ninguém, a não ser ela própria, claro.
Ela nega que eles tenham sido amantes.
Claro que não eram amantes asseverou Gabriella. Mas não era por ela não tentar, acredite.
Foi Fleming quem lhe fez essas confidências?
Ele não precisava de me dizer nada. Bastava-me abrir bem os olhos e observar. A maneira como ela olhava para ele, como o tratava, como bebia cada uma das suas palavras. Um nojo. E mal ele virava as costas, lá estava ela, sempre a tentar implicar. Comigo. Connosco. Tudo em nome dos interesses de Ken. E sempre sempre com aquele sorrizinho dengoso. ”Gabriella peço-lhe que me desculpe, minha querida. Não quero de modo nenhum ser desagradável consigo, mas...”, e lá começava ela.
”Desagradável” como?
Tem a certeza de que essa é a palavra que quer usar, querida? Tem mesmo a certeza? Gabriella imitava o tom de voz de Mrs. Whitelaw na perfeição. Tem a certeza de que não está a confundir uma palavra com outra? Ora aí está um ponto de vista... original. Leu muito sobre o assunto, suponho? Ken é um leitor devorador, sabe?
Lynley perguntou a si mesmo se Miriam Whitelaw teria ido ao ponto de inventar palavras, mas compreendia muito bem o que ela queria dizer. Gabriella continuou a imitar Mrs. Whitelaw.
Estou certa de que quando vocês se casarem, hão-de querer formar uma união duradoura. Não há-de levar a mal, portanto, se eu lhe lembrar quão importante é para o casal que os dois parceiros estejam em igualdade de circunstâncias no plano intelectual. É tão importante como o bom entendimento no plano físico.
Gabriella agitou a farta cabeleira, um movimento que tornou a pôr a descoberto as equimoses que lhe maculavam o pescoço.
Ela sabia que ele me amava. Sabia que ele me desejava. Mas não conseguia suportar a ideia de Ken se sentir atraído por outra mulher, por isso fazia tudo o que podia para minimizar esse sentimento. ”A paixão física não dura para sempre, minha querida. É preciso que exista algo mais entre os amantes, se eles querem que a sua relação resista ao teste do tempo. Tenho a certeza que vocês dois devem ter consciência deste facto. Duvido que ele queira repetir consigo os erros que cometeu com Jean.”
Se aquelas eram, de facto, as palavras que dirigia a Gabriella, que seria ela capaz de dizer nas costas dela? Ou a Ken? E tudo, declarara Gabriella, teria sido destilado com muito tacto e delicadeza, sem o mais ténue vislumbre de outro sentimento que não fosse uma imensa e profunda preocupação maternal em relação a um jovem que ela conhecia desde que ele tinha quinze anos.
Foi por isso que quando cheguei a Londres lhe telefonei continuou Gabriella. Ela empenhou-se tanto em separar-nos, pensei eu, que há-de querer saber que os seus desejos se tornaram, finalmente, realidade.
Quanto tempo durou a vossa conversa?
O tempo suficiente para que eu dissesse àquela cabra que ela tinha conseguido o que queria.
E a que horas?
já vos disse. Por volta da meia-noite. Não olhei para o relógio, mas como vim directamente do Kent para cá, não pode ter sido muito depois da meia-noite e meia.
Um pormenor que, pensou Lynley, podia ser verificado junto de Mrs. Whitelaw. Bebeu outro gole de café, fez uma careta e despejou o que restava no copo para a sarjeta, onde o líquido formou uma pequena poça gordurosa. Atirou o recipiente para o caixote do lixo e regressou ao carro.
Bom... começou Havers. Se Gabriella está fora da jogada, quem é que se segue?
A inspectora Ardery tem novidades replicou Lynley. Temos de falar com ela.
Entrou no carro. Havers seguiu-o, deixando atrás de si um rasto de migalhas, tal como a personagem do conto dos Irmãos Grimm. Fechou a porta e equilibrou o bolo e o café sobre os joelhos, enquanto apertava o cinto de segurança e dizia:
Uma coisa ficou clara para mim, pelo menos.
O quê, Havers?
Desde sexta-feira à noite que penso nisso. Aquilo a que se referia, inspector, quando dizia que a morte de Fleming não tinha sido nem um suicídio, nem um homicídio, nem um acidente; ou seja, que Gabriella Patten podia muito bem ser a potencial vítima do crime. Agora, ela está fora deste filme. Não concorda?
Lynley não respondeu logo. Ponderou a questão, lançando um olhar furtivo a uma mulher bem penteada, vestida com um vestido preto perigosamente coleante, que passou diante do Bentley e parou casualmente junto a um candeeiro de rua, a alguns passos do Ye Grapes. A mulher adoptou uma máscara onde se podia ler um misto de sensualidade, tédio e indiferença.
Havers seguiu a direcção do olhar de Lynley e soltou um suspiro.
Oh, merda. Quer que telefone aos Costumes?
Lynley fez que não com a cabeça e fez rodar a chave na ignição.
Ainda é cedo. Duvido que consiga ter muita clientela.
Deve estar desesperada, então.
Tenho a certeza que está apoiou a mão na alavanca de mudanças com uma expressão pensativa. Talvez o desespero seja a chave desta história.
A chave da morte de Fleming? Porque é mesmo da morte de Fleming premeditada que se trata, não é, inspector? E não da de Gabriella
avers bebeu um gole de café e prosseguiu sem lhe dar tempo para discordar- Aqui vai como eu vejo as coisas: havia apenas três pessoas que poderiam desejar a morte de Gabriella e que, além disso, sabiam onde ela se encontrava na quarta-feira à noite. O problema, no entanto, é que os três hipotéticos assassinos possuem alibis de ferro.
Hugh Patten disse Lynley, com uma expressão pensativa.
Que, segundo todos os testemunhos, se encontrava exactamente onde disse que tinha estado: sentado a uma mesa de jogo no Cherbourg Club
Miriam Whitelaw.
Cujo alibi foi inconscientemente corroborado por Gabriella Patten há menos de dez minutos atrás.
E o último? perguntou Lynley.
O próprio Fleming, destroçado pelo conteúdo das suas descobertas acerca do passado pouco recomendável de Gabriella. E, dos três, ele é quem tem o alibi mais perfeito.
Está, então, a deixar de lado Jean Cooper. E o rapaz. Jimmy.
Como potenciais assassinos de Gabriella? Eles não sabiam onde ela estava. No entanto, se Fleming for a vítima pretendida desde o início, o filme passa a ser completamente diferente, certo? Porque, nesse caso, Jimmy tinha de saber que o pai tencionava levar o processo de divórcio até às últimas consequências. E ele falou com o pai nessa mesma tarde. Podia perfeitamente conhecer o destino de Fleming. Da forma como eu vejo a coisa, Fleming tinha magoado a mãe do rapaz, tinha magoado o próprio filho, bem como o irmão e a irmã, tinha feito promessas que não estava disposto a cumprir...
Não está a querer sugerir que Jimmy terá assassinado o pai por causa de uma viagem de barco cancelada?
O cancelamento da viagem não passou de um sintoma. Não era a doença. Jimmy decidiu que eles já tinham tido a conta deles, por isso foi até ao Kent, na quarta-feira à noite, e administrou o único medicamento que sabia que podia curar o mal. Recorreu, inclusivamente, a um meio que já utilizara no passado: o incêndio.
Uma estratégia de homicídio bastante sofisticada para um garoto de dezasseis anos, não acha?
De modo nenhum. Ele já ateou incêndios antes...
Um.
Tanto quanto sabemos, inspector. E o facto de o incêndio da casa de campo ter sido ateado de forma tão grosseira sugere uma ausência de sofisticação e não o oposto. Temos de deitar as mãos àquele miúdo, inspector.
Antes disso, precisamos de elementos concretos.
Como por exemplo?
Como por exemplo, uma prova simples e irrefutável. Uma testemunha que tenha visto o rapaz no local do crime, na quarta-feira.
Inspector...
Eu percebo onde quer chegar, Havers, mas não tenciono ir Por aí levianamente. O seu raciocínio acerca de Gabriella parece-me consistente.
AS pessoas eventualmente interessadas na sua morte e que conheciam o seu paradeiro têm todas um alibi, enquanto as pessoas com móbil mas sem alibi desconheciam o sítio onde ela se encontrava. Aceito tudo isso.
Então...
Então, há outros pontos que não está a considerar.
Tais como?
As equimoses no pescoço dela. Terá sido Fleming a infligi-las?
Ou será que ela se agrediu a si própria para dar consistência à sua história.
Mas alguém o tipo que tinha saído para ir dar um passeio, o dono da quinta, ele ouviu a discussão, o que vem confirmar a história dela. E foi ela própria que nos forneceu o argumento de peso: que estaria Fleming a fazer, enquanto ela andava pela casa, incendiando-a?
Quem pôs os gatos fora?
Os gatos?
Os gatinhos. Quem os terá posto fora? Fleming? Porquê? Será que ele sabia que eles se encontravam ali? Será que se importava com eles?
Onde quer chegar? Fleming foi assassinado por um amante e defensor de animais, disfarçado de misantropo?
É uma ideia como outra qualquer, não é verdade? Lynley arrancou na direcção de Piccadilly.
No tombadilho da lancha, iluminado pelo sol do meio da manhã que conseguira, enfim, furar a copa das árvores e acariciava com o seu calor reconfortante os seus músculos doridos, Chris Faraday observava, ansioso, os dois polícias. Não usavam uniforme um deles vestia um blusão de cabedal e calças de ganga, enquanto o outro estava de calças de algodão e camisa com colarinho desabotoado, pelo que, em circunstâncias diferentes, Chris ter-se-ia convencido de que se tratava de simples turistas ocasionais ou de Testemunhas de Jeová divulgando a sua mensagem porta a porta ao longo do canal. Naquele momento, porém, ao vê-los subir a bordo de uma lancha atrás da outra, ao ver os proprietários das lanchas virarem sistematicamente a cabeça na sua direcção, desviando depois os olhos à pressa com medo de que ele os surpreendesse, compreendeu quem eram realmente aqueles dois homens e o que faziam ali. A sua missão era proceder a um inquérito da vizinhança destinado a comprovar a veracidade das suas declarações relativamente às idas e vindas de quarta-feira à noite. Desempenhavam a missão que lhes fora confiada de forma profissional e metódica. Tão-pouco se esforçavam por dissimulá-la. Era uma maneira de o desestabilizar, caso estivesse a observá-los, bingo! felicitou-os mentalmente. Sentia os nervos à flor da pele.
Havia medidas a tomar, telefonemas a fazer e relatórios a redigir. Todavia Sentia-se incapaz de reunir energias para esboçar o mínimo gesto.
A presença deles, aqui, nada tem que ver comigo, repetia para si próprio. A verdade, porém, era outra. Tinha tudo a ver com ele e com as suas actividades durante os últimos cinco anos, desde o dia em que tirara Livie das ruas e lançara a si próprio o desafio de a reabilitar e regenerar. Imbecil, pensou. Eis onde o conduzira o orgulho.
Enterrou os dedos nos músculos tensos da nuca. Estavam crispados formavam autênticos nós, uma espécie de emaranhado de fios de arame. Estas contracções eram, em parte uma reacção à presença da polícia e, em parte, o resultado de uma noite de insónia.
A ironia e a angústia não são bons companheiros de cama, concluiu Chris. Não só o tinham impedido de dormir, como também estavam a transformar a vida dele numa eterna espera. A própria presença daqueles dois sentimentos, nas margens da sua consciência, levara-o a abrir os olhos nessa manhã, a fixá-los na superfície nodosa do tecto em madeira de pinho, a sentir-se como um puritano suspeito de feitiçaria, como se tivesse uma bigorna a esmagar-lhe o peito. Deve ter dormido, mas não conseguia lembrar-se de o ter feito. E os lençóis e cobertores tão torcidos e amarrotados, que pareciam ter acabado de sair da máquina de lavar eram o testemunho silencioso do sono agitado.
A dor causada pelos primeiros movimentos fora tal que ele soltara um gemido. O pescoço e os ombros estavam completamente rígidos, e embora sentisse uma vontade de urinar de tal modo imperiosa que por pouco não vira o pirilau precipitar-se para a casa de banho sem a sua ajuda, sentia as costas doridas e os membros pesados como chumbo. Levantar-se da cama surgira-lhe como um projecto que não seria capaz de executar em menos de um mês.
Fora Livie que o fizera levantar-se. ”Deve ser assim que ela se sente.” Este pensamento devolvera-lhe as forças, fazendo nascer dentro dele um terrível sentimento de culpabilidade. Gemendo, passara da posição deitado de costas para a posição deitado de lado; em seguida arriscara pôr um pé fora da cama, testando a temperatura do quarto. Uma língua macia lambera-lhe o dedo grande do pé. Beans estava deitado no chão, aguardando pacientemente o momento de tomar o pequeno-almoço e de sair para um passeio.
Chris deixara cair a mão ao lado da cama, e, numa atitude cooperativa, o beagle aproximara-se e esticara a cabeça pedindo uma festa.
Lindo cão murmurou. Que me dizes a uma chávena de chá. Vieste anotar o meu pedido de pequeno-almoço, foi? Muito bem, eu vou querer ovos, torradas, uma fatia de bacon, mas não demasiado passada, por favor, e uma taça de morangos. Anotaste tudo, Beans?
O cão começou a bater com a cauda no chão e, em resposta, soltou um latido de prazer. No outro lado do corredor soou a voz de Livie.
Já estás levantado, Chris? Já estás em pé?
Estou a levantar-me respondeu Chris.
Dormiste até tarde, hoje.
Nem uma única palavra de censura. Nunca fazia censuras. E, no entanto, ele teve a impressão de estar a ser repreendido.
Desculpa...
Chris, eu não estava a...
Eu sei. Não é nada. Uma noite má, é tudo.
Passou as pernas por cima da beira da cama. Deixou-se ficar sentado durante alguns momentos, a cabeça entre as mãos. Esforçou-se por não pensar em nada, mas, tal como acontecera durante quase toda a noite, as suas tentativas saíram goradas.
Como as Parcas deveriam estar a rir-se dele, naquele momento. Vivera toda a sua vida sem nunca ceder ao mínimo impulso. Apenas se desviara deste modo de vida uma vez. E agora, por causa daquele instante em que vira Livie parada no passeio, à espera do seu cliente das terças-feiras à tarde, os sacos atafulhados de bugigangas eróticas caídos aos pés, por causa daquele instante em que perguntara a si próprio se seria capaz de destruir aquela máscara de cinismo por detrás da qual ela teimava em esconder-se, agora, iria pagar o preço de tudo isso. De uma forma ou de outra, se não conseguisse lembrar-se de uma pista que distraísse a atenção das autoridades policiais, iria sofrer as consequências do seu gesto impulsivo. Tudo aquilo era de uma ironia tremenda. Porque, pela primeira vez, não era culpado de nada... e era culpado de tudo.
Merda lamentou-se.
Está tudo bem, Chris? perguntou Livie. Chris, estás bem?
Apanhara a parte de baixo do pijama, que estava caída no chão, e vestira-a. Dirigira-se depois ao quarto dela. Pela posição do andarilho compreendeu que ela tentara levantar-se da cama sozinha e sentiu-se de novo assaltado pela culpa.
Livie, porque é que não me chamaste?
Ela sorriu-lhe, debilmente. Conseguira colocar todas as bijutarias à excepção do anel que usava habitualmente no nariz e que se encontrava sobre um exemplar de Hollywood Wives. Franziu o sobrolho ao ver o livro, e mais uma vez se interrogara sobre os motivos que a levariam a retirar um prazer grosseiro de tudo o que era insignificante e de mau gosto. Em jeito de resposta à sua interrogação muda, ela disse:
Estou a instruir-me. O livro está pejado de intermináveis cenas de sexo acrobático.
Espero que eles, ao menos, gozem com isso disse Chris. Sentou-se na cama dela e afastou Panda para o lado, enquanto os cães entravam no quarto. Moviam-se, inquietos, farejando a cama, depois a cómoda e finalmente o guarda-vestidos que estava entreaberto e vomitava uma cascata de roupas pretas.
Estão com vontade de sair para um passeio disse Livie.
Estão demasiado mimados. Levo-os lá fora daqui a pouco. Estás pronta?
Estou.
Ela agarrou-o pelo braço. Ele afastou os cobertores, fez rodar o corpo de Olivia e pousou os pés dela no chão. Em seguida, colocou o andarilho em frente dela e ajudou-a a levantar-se.
A partir daqui consigo desenvencilhar-me sozinha disse ela, dirigindo-se à casa de banho.
Apoiada no andarilho, avançava centímetro a centímetro, arrastando os pés desajeitadamente.
O seu estado deteriorava-se a olhos vistos. Desde quando, perguntou a si próprio. Ela já nem conseguia assentar bem os pés no chão.
Também ele queria ir à casa de banho. Teria tido tempo mais que suficiente para ir e vir antes que ela sequer conseguisse aproximar-se da casa de banho. Todavia, deixou-se ficar sentado na beira da cama e obrigou-se a si mesmo a esperar. Como castigo.
Deixara-a na cozinha, onde ela se esforçava por encher a tigela de cereais, sem conseguir evitar que a maior parte fosse parar ao chão. Saíra com os cães e voltara com The Sunday Times. Em silêncio, mergulhara a colher na tigela e começara a ler o jornal. Nos tempos que corriam, ele retinha a respiração sempre que ela abria um jornal. Não parava de dizer para si próprio: ”Vai acabar por se aperceber, vai começar a fazer perguntas, não é nenhuma idiota.” Até àquele momento, porém, não reparara em nada, nem fizera perguntas. Estava de tal maneira absorta no conteúdo do artigo que estava a ler que nem sequer prestara atenção ao que não figurava nas suas páginas.
Esperara que ela percorresse com um dedo um parágrafo que falava sobre uma viatura procurada pela polícia. ”Estou no tombadilho. Se precisares de mim, grita”, dissera-lhe. Ela murmurara vagamente uma resposta. Subira ao tombadilho, desdobrara uma cadeira de lona na qual se deixara cair com um gemido, tentando ao mesmo tempo reflectir e não pensar em nada. Reflectir sobre as medidas a tomar. E não pensar no que fizera.
Examinara, pesara as diferentes possibilidades e deixara que o sol lhe aquecesse os músculos doridos durante uma hora. Fora então que, de súbito, se apercebera da presença dos dois agentes da polícia. Estes encontravam-se no tombadilho da lancha dos Scannel, por baixo de Warwick Avenue Bridge. John Scannel estava diante do seu cavalete. A mulher posava para ele sobre o tecto da cabina, meio deitada e praticamente nua. Ao longo da plataforma de acesso ao cais, Scannel dispusera uma série de telas que expunham a nudez roliça da esposa, na esperança que algum coleccionador se deixasse tentar. Era quase certo que pensara que os dois homens que se aproximavam da sua lancha eram amantes do cubismo à la Scannel.
Chris observara a cena com uma expressão vagamente atenta. No entanto, quando vira o pintor lançar uma olhadela rápida na sua direcção antes de se inclinar para os seus visitantes com uma expressão conspiratória, redobrara a atenção. A partir desse momento, acompanhara o percurso dos dois homens, de lancha em lancha, vira-os conversar com os seus vizinhos, imaginando o conteúdo das declarações que o empurravam inexoravelmente para o precipício.
Os polícias não iriam interrogá-lo: contentar-se-iam em transmitir os resultados do inquérito ao respectivo superior hierárquico, aquele tipo do corte de cabelo de vinte libras e fatos feitos por medida. Só então, o inspector tornaria a fazer-lhe mais uma pequena visita. Desta vez, porém, as suas perguntas seriam muito mais incisivas. E se Chris não fosse capaz de lhe responder com convicção, iria com certeza passar um valente mau bocado.
Os polícias prosseguiram o seu trabalho tranquilamente. Por fim, subiram a bordo da lancha que estava atracada ao lado da de Chris. Estavam, de facto, a dois passos dele. Chris ouviu um deles aclarar a garganta e o outro bater suavemente à porta da cabina. Os Bidwell um romancista alcoólico e uma antiga manequim completamente fora de moda, que ainda acreditava que bastaria perder vinte quilos para voltar a ser capa da Vogue levariam pelo menos uma hora a abrir-lhes a porta. E se fossem acordados pela polícia, as hipóteses de se mostrarem cooperantes eram muito escassas. Era uma hipótese. Talvez os Bidwell lhe permitissem, sem terem consciência disso, ganhar algum tempo. Porque era de tempo que se tratava, era de tempo que ele necessitava, se quisesse sair ileso da confusão gerada nos últimos quatro dias.
Subitamente, ouviu Henry Bidwell resmungar: ”Santo Deus... o que é que se passa com as pessoas?”, do outro lado da porta da cabina. Chris não esperou para ouvir a resposta do polícia. Pegou na chávena de chá, sobre o qual flutuava uma película acastanhada, e chamou os dois cães que tiravam partido do sol, ao seu lado. Beans e Toast levantaram-se e começaram a agitar-se, impacientes. Cabeças erguidas, perguntavam: ”Vamos correr? Vamos andar um pouco? Comer qualquer coisa?”, as caudas fustigando o chão da lancha a fim de manifestarem o seu entusiasmo. ”P’ra baixo”, ordenou Chris. Em vez disso, Toast coxeou até à amurada. Beans seguiu-o como um carneiro. ”Agora não”, disse Chris, ”vocês já saíram hoje. Vamos ter com Livie. Vamos, depressa”. Apesar disso, Toast pousou a sua única pata sobre o rebordo da amurada da lancha, pronto a saltar para a plataforma de acesso ao cais e a correr na direcção de Regent’s Park. ”Ei!” chamou Chris num tom de voz seco fazendo sinal para a cabina. Reconsiderando, Toast decidiu obedecer. Jeans seguiu-o e Chris acertou o seu passo pelo deles, fechando o cortejo.
Livie encontrava-se exactamente onde ele a deixara uma hora antes, sentada à mesa da cozinha. As tigelas de cereais espreitavam por entre as cascas de banana, o bule do chá, o açucareiro e um jarro de leite. O jornal de domingo continuava desdobrado na frente dela, aberto na mesma página E ela parecia estar ainda absorta na leitura do artigo, porque tinha a cabeça inclinada, a testa apoiada numa mão, e os dedos da outra, adornados por uma fileira de anéis de prata, pousados sobre a primeira palavra do título Críquete. A única diferença, de facto, era a presença de Panda, que saltara para cima da mesa, acabara o leite e os cereais empapados que se acumulavam no fundo de uma tigela e se preparava para engolir o conteúdo da outra. A gata deitou-se, satisfeita, em frente à tigela, olhos fechados, a imagem viva da felicidade felina. A sua língua movia-se furiosamente, antecipando o inevitável momento em que seria apanhada.
Panda! gritou Chris. Sai daí!
Livie estremeceu, espasmodicamente. As mãos dela voaram e embateram na loiça. Uma das tigelas caiu no chão, enquanto a outra se virou em cima da mesa. Os restos de leite, as bananas e os cereais espalharam-se sobre as patas dianteiras da gata. Panda não pareceu nada desconcertada e começou a lamber-se.
Desculpa disse Chris.
Aproximou-se para juntar a loiça, enquanto a gata saltava para o chão, silenciosamente, e se afastava ao longo do corredor com receio de um possível castigo.
Estavas a dormir?
Havia algo de estranho no rosto de Olivia. Os olhos dela pareciam perdidos no vazio, os seus lábios estavam pálidos.
Não reparaste em Pan? perguntou Chris. Não gosto que ela esteja em cima da mesa, Livie. Põe-se a meter o focinho nos pratos e isso não é...
Desculpa. Estava distraída.
Passou a mão por cima do jornal, alisando-o, e sujou a palma da mão com tinta. Em seguida começou a colocar as páginas pela ordem correcta. Alinhou-as, dobrou-as, bem ao meio, e arrumou o jornal, com uma atenção meticulosa a cada gesto. Ele observava-a. A mão direita começou a tremer e ela deixou-a cair sobre os joelhos, continuando só com a esquerda.
Eu trato disso disse ele.
Algumas das páginas estão molhadas. Por causa do leite. Desculpa. Ainda nem sequer o leste.
Não faz mal, Livie. É só um jornal, mais nada. Que importância tem? Se precisar de outro, posso sempre ir comprá-lo.
Ele pegou na tigela dela. Durante o pequeno-almoço, pouco mais fizera do que brincar com a comida e, pelo que podia ver, continuara a fazê-lo durante toda a manhã. Cereais saturados de leite e rodelas de banana em vias de escurecerem rapidamente escorriam da tigela que ela entornara.
Continuas sem fome? perguntou ele. Queres um ovo? Ou uma sanduíche? E que me dizes a um pouco de tofu? Podia preparar uma salada de tofu.
Não.
Livie, tens de comer qualquer coisa.
Não tenho fome.
Pouco importa que tenhas fome, ou não. Tens de...
O quê? Manter as minhas forças?
Para começar, sim. Não é má ideia.
Não é isso que tu desejas realmente, Chris.
Lentamente, virou costas ao caixote de lixo onde deitava os cereais amolecidos e as bananas gelatinosas. Estudou as suas feições crispadas e a pele macilenta, e perguntou a si próprio por que razão teria ela escolhido aquele momento em particular para o magoar. O seu comportamento nessa manhã não fora exemplar, era certo fora Livie quem sofrera as consequências de ele ter acordado tarde, mas ela não tinha o hábito de fazer acusações sem estar na posse de factos concretos. E ela não possuía quaisquer factos concretos. Ele agira com prudência, tivera esse cuidado.
O que é que se passa? perguntou-lhe ele.
Quando as minhas forças se forem, também eu me terei ido embora.
E tu achas que é isso que eu quero?
E porque não haverias de querê-lo?
Colocou as tigelas dentro do lava-loiça. Tornou a aproximar-se da mesa para ir buscar o açucareiro e o jarro de leite. Pousou ambos na bancada da cozinha e voltou para junto dela, sentando-se no lado oposto da mesa. A mão esquerda de Olivia estava crispada e ele estendeu o braço para cobri-la com a sua, mas ela fugiu ao contacto. Foi então que se apercebeu. Pela primeira vez, o braço direito dela tremia. Os músculos estremeciam desde o pulso até ao cotovelo, e daí até ao ombro. Sentiu-se perpassado por um frio glacial. Era como se uma nuvem tivesse velado o sol e invadido a cabina, trazendo consigo uma corrente de ar pesado e húmido. Merda, pensou. Tens de manter a calma.
Há quanto tempo é que isto dura? perguntou.
O quê?
Tu sabes a que me refiro.
Mexeu a mão esquerda e viu os dedos fecharem-se em torno da curvatura do cotovelo direito, como se julgasse que com a força do seu olhar e uma pressão desproporcionada iria conseguir dominar os músculos. Manteve os olhos fixos no braço, nos dedos e na débil tentativa destes para obedecerem à mensagem que o cérebro lhes enviava.
Livie disse ele, eu quero saber.
O que é que interessa saber há quanto tempo é que isto dura? Que diferença faz isso?
Eu estou envolvido nisto, Livie. Mas não por muito mais tempo.
Ele reconheceu os inúmeros significados contidos nas palavras que ela acabava de proferir. Falavam do futuro dele, do futuro dela, das decisões que ela tomara e, mais do que isso, da verdadeira razão por que as tomara. Pela primeira vez, desde que ela surgira na vida dele, Chris sentiu um verdadeiro acesso de raiva. E à medida que esta raiva, que lhe nascia no peito, alastrava até à ponta dos seus dedos, o seu espírito pareceu abandonar o seu corpo flutuar até ao tecto onde ficou a pairar, olhando para eles, para o que passava entre ambos, dizendo: ”É esta a razão, imbecil.”
Por outras palavras, mentiste-me disse ele. Não tinha nada a ver com a lancha. Com a dimensão das portas. Com a necessidade de uma cadeira de rodas.
Os dedos dela desceram do cotovelo até ao pulso.
Não é verdade que me mentiste? insistiu ele. Essas não foram as razões, pois não?
Estendeu o braço para tocá-la, mas ela repeliu-o.
Quanto tempo? Vá lá, Livie. Há quanto tempo tens o braço assim? Ela fitou-o durante alguns momentos, tão cansada como um dos animais que ele costumava resgatar. Ergueu a mão direita com a ajuda da esquerda e colocou as duas sobre o peito.
Já não consigo trabalhar disse. Não consigo cozinhar. Não consigo limpar. Nem sequer consigo dar uma queca.
Há quanto tempo? perguntou ele mais uma vez.
Não que esta última consequência te tenha preocupado alguma vez, não é verdade?
Diz-me.
Talvez ainda fosse capaz de te fazer um broche decente, se me deixasses. Da última vez que tentei, no entanto, não estavas disposto, lembras-te? Comigo, é claro.
Deixa-te dessas merdas, Livie. E o braço esquerdo? Está afectado também? Raios te partam, não podes usar uma cadeira de rodas e sabes muito bem disso. Porque raio, então, é que...
Já não sou um membro da equipa. Fui substituída. É altura de eu desaparecer.
Já discutimos este assunto antes. Pensava que já tínhamos chegado a acordo.
Já discutimos muitos assuntos.
Nesse caso, vamos discutir mais um. Mas desta vez vamos ser breves. Estás a piorar. Há semanas que te apercebeste disso. Não tens confiança em mim? Tens medo que eu não consiga dar conta do recado? É isso?
Os dedos da mão esquerda de Olivia crisparam-se sobre o braço direito dela, que ela tornou a deixar cair sobre os joelhos. As cãibras começavam, sem dúvida, a prender-lhe os músculos, mas ela já não possuía a força para acalmá-las. A cabeça pendeu-lhe sobre o ombro direito, como se o movimento pudesse de alguma forma aliviar-lhe a dor. Os traços dela contorceram-se, ela, finalmente, confessou, numa voz trémula:
Chris, estou morta de medo.
No espaço de um instante, sentiu a raiva esmorecer. Ela tinha trinta e dois anos de idade. Estava frente a frente com a sua própria mortalidade. Sabia que a morte estava próxima. E sabia também, com exactidão, como iria ser essa morte.
Levantou-se e aproximou-se. Ficou parado atrás da cadeira dela. Colocou as mãos sobre os seus ombros, baixando-as em seguida para as pousar, cruzadas, sobre o peito esquelético.
Tal como ela, ele sabia como iria ser. Fora até à biblioteca e requisitara todos os livros, todas as revistas científicas, todos os artigos de jornal ou de revista susceptíveis de o esclarecer. Sabia, por isso, que o avanço da degeneração tinha início nas extremidades e progredia implacavelmente para cima e para dentro, como um exército invasor que avançasse sem fazer prisioneiros. Primeiro eram as mãos e os pés, rapidamente seguidos pelos braços e pelas pernas. Quando, por fim, a doença atingisse o sistema respiratório, ela começaria a sentir falta de ar, sensações de asfixia. Nessa altura, ser-lhe-ia dado a escolher entre a sufocação imediata ou a vida ligada a um ventilador. Em qualquer dos casos, porém, o resultado final era o mesmo. De uma forma ou de outra, ia morrer. Mais cedo ou mais tarde.
Ele inclinou-se e pressionou a face contra os cabelos curtos dela. Cheirava intensamente a suor. Deveria ter-lhe lavado o cabelo no dia anterior, mas a visita da Scotland Yard apagara-lhe do espírito todos os pensamentos que não estivessem especificamente relacionados com as suas preocupações imediatas e pessoais. Sacana, pensou. Canalha. Porco. Queria dizer, ”Não tenhas medo. Eu ficarei junto de ti. Até ao fim”, mas ela já se encarregara de lhe retirar essa opção das suas mãos. Em vez disso, sussurrou:
Eu também tenho medo.
Mas não por minha causa.
Não. Não por isso.
Beijou-lhe os cabelos. Sob as suas mãos, sentiu o peito dela elevar-se. E depois, o seu corpo estremeceu.
Não sei o que fazer disse ela. Não sei como devo ser.
Havemos de arranjar uma solução. Sempre arranjámos.
Desta vez, não. É demasiado tarde para isso.
Não acrescentou aquilo que ele já sabia. A morte tornava tudo demasiado pequeno e demasiado tarde. Em vez disso, puxou o braço trémulo e encostou-o firmemente ao corpo. Endireitou os ombros e a coluna. Tenho de ir ver a minha mãe disse. Levas-me lá?
Agora? Agora.
CAPÍTULO 14
Eram duas e meia da tarde quando Lynley e Havers chegaram a Celandine Cottage, para uma segunda visita à casa de campo. A única diferença em relação à véspera parecia consistir na ausência de mirones nas proximidades da propriedade. Em vez dos curiosos, no entanto, cinco jovens amazonas, equipadas com botas, quépis e pingalins, conduziam as respectivas montadas ao longo da azinhaga fronteira à casa. Muito compenetrado, o grupo passou pelas fitas da polícia que isolavam Celandine Cottage, sem sequer lhe lançar uma olhadela rápida.
Em pé, junto do Bentley, Lynley e Havers viram-nas passar. Havers fumava em silêncio e Lynley examinava as estacas em madeira de castanheiro que espreitavam por detrás da sebe, do outro lado da azinhaga. Os fios que uniam as estacas umas às outras em breve serviriam de suporte para o lúpulo. Naquele momento, porém, tanto os fios como as estacas faziam lembrar as tendas cónicas e despojadas de uma velha aldeia índia abandonada.
Aguardavam a chegada da inspectora Ardery. Depois de quatro chamadas telefónicas, feitas enquanto ziguezagueavam entre Mayfair e a Westminster Bridge, Lynley conseguira localizá-la no restaurante de uma pequena estalagem, próximo de Maidstone. Quando ele se identificara, ela dissera, ”Estou a almoçar com a minha mãe, inspector”. Era como se o mero som da voz de Lynley tivesse soado como uma reprimenda silenciosa e não autorizada e ela se tivesse sentido obrigada a justificar-se. Num tom arrogante, acrescentara, ”Acontece que ela faz anos hoje. Eu telefonei-lhe esta manhã”, ao que ele replicara, ”É justamente por isso que estou a telefonar-lhe, para retribuir a sua chamada”. Ela manifestara a intenção de lhe comunicar os elementos que recolhera por telefone. Ele objectara. Preferia receber os relatórios por mão própria. Era uma mania que ele tinha. Além disso, gostaria de tornar a inspeccionar o local do crime. Dado que tinham encontrado Mrs. Patten e já a tinham interrogado, desejava comprovar as informações que ela lhe fornecera. E ela própria não poderia ficar encarregue de verificar os novos dados-/ quisera saber a inspectora. Podia, claro que podia, mas ele sentir-se-ia mais tranquilo depois de ter examinado a casa de campo mais uma vez. Por isso, se ela não se importasse... pelo seu tom de voz, Lynley compreendeu que a inspectora Ardery se sentira bastante contrariada. Não podia culpá-la por isso. Tinham definido as
regras do jogo na sexta-feira à noite e, em vez de as respeitar, ele estava a tentar violá-las. Lamentava, mas era inevitável.
Por mais mal-humorada e contrariada que estivesse, Isabelle Ardery conseguiu reprimir os seus sentimentos quando imobilizou o Rover e se apeou, dez minutos depois de eles terem chegado. Ainda estava vestida com o traje que escolhera para ir almoçar com a mãe: um vestido leve cor de bronze, preso na cintura por um cinto, o pulso adornado por cinco pulseiras de ouro e, nas orelhas, um par de brincos iguais às pulseiras. A sua voz, no entanto, soou estritamente profissional quando lhes pediu desculpa pelo atraso. ”Um telefonema do laboratório. Os peritos identificaram o molde da pegada. Pensei que talvez gostasse de dar uma vista de olhos a esse relatório, e passei por lá para o ir buscar. Infelizmente, acabei por ser retida por Mr. Smarm, o chefe de redacção do Daily Mirror, que queria que eu lhe confirmasse se Fleming tinha sido encontrado completamente nu, mãos e pés atados à cama, no quarto de Celandine Cottage. E se, além disso, eu estava em condições de confirmar o rumor segundo o qual Fleming estaria em coma alcoólico? Se o jornal poderia divulgar que Fleming mantivera ligações com as mulheres de dois ou três patrocinadores da selecção inglesa, sem correr o risco de ter de publicar um desmentido formal da polícia. Sim, não, era tudo o que ele me pedia.” Fechando a porta do Rover, dirigiu-se à mala do carro e abriu-a com gestos bruscos.
Não passam de umas lesmas, aqueles tipos! exclamou, acrescentando logo em seguida. Peço desculpa. Enervam-me, é mais forte do que eu.
Sei o que isso é. Também temos de lidar com eles, em Londres comentou Lynley.
E como é que conseguem manobrá-los?
Regra geral, fazemos o possível por lhes fazer chegar informações que possam ser-nos úteis.
Ela tirou uma caixa de cartão de dentro da mala do carro e fechou-a. Equilibrou a caixa sobre a anca. Fitou-o e inclinou a cabeça, com uma expressão pensativa.
Ai sim? Eu nunca lhes disse nem uma palavra. Odeio as relações simbióticas entre a imprensa e a polícia.
Eu também retorquiu Lynley. Mas, por vezes, surtem os seus efeitos.
Ela lançou-lhe um olhar céptico e encaminhou-se para a fita da polícia, que levantou para poder passar por baixo. Eles seguiram-na, atravessaram o Portão branco e subiram a álea. Ardery conduziu-os para as traseiras da casa,
e a mesa que ficava por baixo do caramanchão coberto por uma videira.
Usou a caixa sobre a mesa. No seu interior, Lynley distinguiu um maço de papéis, um conjunto de fotografias e dois moldes em gesso. Um destes reproduzia uma pegada completa e o outro o de uma pegada parcial.
Quando ela estendeu o braço e se preparava para esvaziar a caixa, ele disse.
Antes disso, gostaria de dar uma volta pela casa, inspectora, se não se importa.
Segurando na mão o molde correspondente à pegada parcial, ela contrapôs.
Mas as fotografias estão consigo. Tal como o relatório.
Sim, mas como lhe disse ao telefone, possuo novos elementos. Que gostaria de confirmar. Com a sua colaboração, evidentemente.
Os olhos de Ardery fixaram-se, então, em Havers. Em seguida, tornou a colocar o molde dentro da caixa. Era óbvio que, dentro dela, se travava uma luta tremenda: ou atendia ao pedido de um colega, ou continuava a protestar. Finalmente, aquiesceu:
Muito bem.
E comprimiu os lábios, como se assim pretendesse refrear outros comentários.
Retirou a fechadura que a polícia colocara na porta da casa e afastou-se para os deixar entrar. Depois de lhe agradecer com um movimento de cabeça, Lynley dirigiu-se imediatamente ao lava-loiça, abriu o armário que estava por baixo e verificou que, tal como esperava, a equipa de técnicos de Maidstone tinha enviado o caixote de lixo para o laboratório. Procuravam tudo o que pudesse ter servido para fabricar um dispositivo de incêndio, explicou Ardery. Ela quis saber as razões do seu interesse pelo caixote de lixo?
Lynley pô-la, então, ao corrente de tudo o que Gabriella Patten lhes contara sobre a busca desenfreada que Fleming fizera aos diversos caixotes de lixo espalhados pela casa. Sobrancelhas franzidas, mão pousada na clavícula, Ardery escutou-o, pensativa. Não, disse-lhe quando ele terminou o seu relato, os homens dela não tinham encontrado nenhum caixote de lixo derrubado. Nem na cozinha. Nem na casa de banho. Nem sequer na sala de estar. Se, num momento de cólera, Fleming tivesse espalhado o conteúdo dos caixotes de lixo pelo chão da casa, deveria ter voltado a arrumar tudo, depois de se acalmar. E fora uma arrumação escrupulosa, acrescentou. Nem o mais pequeno bocado de papel fora encontrado em parte nenhuma da casa.
Ele pode muito bem ter recuperado o sangue-frio, depois da partida de Gabriella sublinhou Havers. Afinal de contas, a casa não era dele. Pertencia a Mrs. Whitelaw. Ele não haveria de querer deixá-la virada do avesso, por mais enervado que estivesse.
Era uma possibilidade, concedeu Lynley. Perguntou à sua colega, se os seus homens tinham encontrado alguma beata de cigarro no meio do chão, precisando que Gabriella Patten afirmara ter deixado de fumar. Ardery confirmou que, de facto, não tinham sido encontrados quaisquer beatas ou fósforos queimados. Lynley dirigiu-se a um dos cantos da lareira, onde estava uma mesa de pinho. Por baixo dela, havia um cesto em verga. Baixou-se para examiná-lo e raspou alguns pêlos que tinham ficado colados à almofada.
Gabriella Patten afirma que os gatos ficaram dentro de casa quando ela saiu disse. Dentro deste cesto, suponho.
Bom, o que é certo é que devem ter arranjado maneira de sair disse Ardery.
Lynley atravessou a sala de jantar e entrou no pequeno corredor que conduzia à sala de estar. Aí, observou atentamente a porta. Gabriella dissera-lhes que Fleming dera um encontrão na porta da sala onde ela se refugiara, para abri-la. Se assim tivesse sido, de facto, haveria certamente provas que comprovassem as declarações dela.
Tal como o resto da casa, a porta estava pintada de branco. E tal como o resto da casa, encontrava-se agora coberta por uma camada de fuligem. Lynley esfregou a sujidade à altura do ombro e em torno da maçaneta da porta. Não havia indícios de força.
Ardery e Havers juntaram-se a ele.
Nós já recolhemos todas as impressões digitais, inspector disse Ardery, num tom exageradamente paciente que traía um mau humor bastante compreensível.
Havers, por seu turno, aproximou-se da lareira a fim de inspeccionar os tições que, alegadamente, Gabriella usara para se defender. Os acessórios ainda lá estavam, no suporte: um atiçador, uma escova, uma pá em miniatura e uma tenaz.
E os ferros da lareira? perguntou. Também recolheram impressões digitais aqui, foi?
Recolhemos todas as impressões digitais, sargento. Creio que as informações que procuram estão no relatório que vos trouxe.
Lynley fechou a porta da sala de estar, a fim de examinar o lado oposto da mesma. Com a ajuda de um lenço, limpou as marcas de fuligem.
Ah, aqui está o que eu procurava, sargento. Havers aproximou-se.
Por baixo da maçaneta, uma linha fina, dentada e desbotada, com cerca de vinte centímetros de comprimento, manchava a madeira pintada de branco. Lynley passou os dedos ao longo da marca e depois virou-se para inspeccionar o interior da divisão.
Ela disse que tinha usado uma cadeira lembrou Havers e, juntos, examinaram todas as que se encontravam na sala.
A cadeira em questão era, na realidade, uma das cadeiras de lareira de Mrs. Whitelaw. Estava forrada com um tecido de veludo verde-garrafa e encontrava-se por baixo de uma cantoneira suspensa na parede. Havers afastou-a da parede. Lynley distinguiu de imediato o veio branco e irregular a orla mais escura, em madeira de nogueira, que guarnecia a parte de cima e os lados da cadeira. Colocou a cadeira por baixo da maçaneta da porta. A mancha branca coincidia com a linha irregular.
Confirmado disse.
A inspectora Ardery continuava junto da lareira.
Inspector, se me tivesse dito aquilo que procurava logo de início os meus homens poderiam ter-lhe poupado o incómodo desta viagem.
Lynley baixou-se para examinar a carpete junto à porta. Descobriu um rasgão minúsculo que poderia perfeitamente ter sido causado pela cadeira utilizada para prender a porta. Uma confirmação adicional, pensou ele. Pelo menos em parte, Gabriella falara verdade.
Inspector Lynley insistiu Ardery.
Lynley pôs-se de pé. Tudo na atitude da colega denotava indignação. Tinham chegado a acordo sem dificuldades aparentes: ela ficaria encarregue da investigação no Kent, ele tomaria conta da operação em Londres. Algures entre ambos, juntariam forças intelectualmente e fisicamente, também, se fosse caso disso. Todavia, chegar à verdade que se escondia por detrás da morte de Fleming não era tarefa simples, como ele muito bem sabia. A natureza da investigação exigiria que um deles assumisse uma posição subordinada, e, pelo que lhe era dado ver, Ardery não gostava da ideia de ter de se apagar perante ele.
Importa-se de nos conceder uns momentos a sós, sargento? pediu Lynley.
Com certeza, senhor aquiesceu Havers, desaparecendo na direcção da cozinha.
Lynley ouviu a porta fechar-se no momento em que ela saiu de casa.
Francamente, acho que está a exagerar um pouco, inspector Lynley. Ontem. Hoje. E isso não me agrada. Eu tenho informações para si. Trouxe-lhe os relatórios. Tenho a equipa do laboratório a fazer horas extraordinárias. Que mais quer?
Peço desculpa disse ele. Não era minha intenção exercer qualquer tipo de pressão.
As suas desculpas funcionaram ontem. Esta tarde, receio que sejam insuficientes. A sua intenção é pressionar e continuar a pressionar. Gostaria de saber porquê.
Por breves instantes, pensou se deveria tentar acalmá-la. Não devia ser fácil para ela exercer uma profissão num meio dominado por homens que/ provavelmente, passariam metade do tempo a questionar cada um dos seus movimentos e a interrogar-se sobre os fundamentos das suas opiniões e relatórios. No entanto, se tentasse aplacar a fúria dela naquele momento apenas iria mostrar-se condescendente. Sabia perfeitamente que não se teria incomodado se ela fosse um homem. Assim, de acordo com a sua forma de pensar, o facto de ela não ser do sexo masculino não deveria entrar em linha de conta na discussão que ambos travavam naquele instante.
Não se trata de saber quem faz o quê ou quem investiga onde. Trata-se de encontrar um assassino. Estamos de acordo quanto a isso, não estamos?
Não me venha com paternalismos. Ambos acordámos numa delimitação clara das responsabilidades de cada um. Eu cumpri a minha parte do acordo. E o senhor, inspector?
Não estamos a discutir uma situação contratual, inspectora. As nossas fronteiras, previamente delimitadas, não são tão nítidas como gostaria que fossem. Ou trabalhamos em conjunto ou não trabalhamos e ponto final.
Nesse caso, talvez tenha de redefinir o que entende por trabalhar em conjunto. Porque, tanto quanto me é dado ver neste momento, eu estou a trabalhar para si e segundo as suas conveniências. E se é assim que as coisas se vão passar, agradecia-lhe que o clarificasse desde já, para que eu possa decidir quais as medidas que tenho de tomar para lhe proporcionar a margem de manobra de que parece necessitar.
Aquilo de que preciso, inspectora Ardery, é da sua competência.
É difícil acreditar que assim seja.
E não vou poder contar com ela, se decidir pedir ao seu superior hierárquico que a retire do caso.
Eu não disse...
Ambos sabemos que a ameaça estava implícita absteve-se de acrescentar que se tratava de uma falta de profissionalismo. Era uma expressão que preferia evitar, na medida do possível, mas que parecia vir à superfície sempre que dois oficiais se incompatibilizavam um com o outro. Todos nós temos formas diferentes de trabalhar e temos de nos adaptar ao estilo de cada uma das pessoas com quem colaboramos. O meu é investigar minuciosamente todas as informações. Não faço tenções de pisar os galões dos colegas quando o faço, mas por vezes acontece. Isso não significa, porém, que eu ache que os meus colegas são incapazes de fazer o seu trabalho. Significa apenas que aprendi a confiar nos meus próprios instintos.
Mais do que no dos outros, obviamente.
Sim, mas se estiver errado, só tenho de me culpar a mim próprio e sou o único responsável.
Estou a perceber. Muito cómodo, sem dúvida.
O quê?
A forma como concebe o exercício da sua profissão. Os seus colegas têm de se adaptar à sua forma de trabalhar. O inverso, porém, não é válido.
Não foi isso que eu disse, inspectora.
Não precisou de o dizer, inspector. Deixou-o bastante claro. O senhor deverá poder examinar minuciosamente todas as pistas da investigação da forma que julgar mais adequada. E eu devo proporcionar-lhe todas as oportunidades e meios para tal.
Isso é o mesmo que defender que o papel que desempenha é insignificante disse Lynley. Ora, eu não acredito nisso. E a senhora, inspectora, porque é que acredita numa coisa dessas?
Mais do que isso ela continuou, como se ele não tivesse feito qualquer comentário, devo abster-me de proferir qualquer opinião ou levantar quaisquer objecções à direcção que o senhor decida tomar. E se essa direcção exigir que eu permaneça à sua disposição devo aceitá-la, gostar dela e manter a boca calada como uma menina obediente e bem-comportada.
Não se trata de um conflito homem-mulher volveu Lynley mas de uma questão de abordagem. Eu obriguei-a a interromper o seu almoço para atender às minhas necessidades e peço-lhe desculpa por isso. Mas nós estamos a começar a recolher elementos novos que poderão ajudar-nos a compreender melhor este caso, e eu gostaria de tirar partido deles enquanto posso. O facto de optar por seguir o caso pessoalmente não tem nada que ver consigo. Não é uma forma de questionar as suas competências. É, quando muito, uma forma de questionar a minha competência. Ofendi-a quando estava longe de o querer fazer. Gostaria de passar um pano sobre o assunto e analisar os dados que conseguiu reunir desde ontem. Se for possível.
Ela cruzara os braços enquanto falavam. Lynley via a pressão dos dedos dela sobre os braços. Esperou que desse por terminada a batalha interior que deveria estar a travar consigo própria, esforçando-se por esconder a impaciência que sentia e por manter uma expressão tão impávida quanto possível. Era inútil ofendê-la ainda mais. Ambos sabiam que era ele quem estava em vantagem. Um simples telefonema dele e a Yard tomaria as decisões políticas necessárias, que resultariam ou na neutralização ou no afastamento de Isabella Ardery do caso. O que, concluiu ele, seria uma pena, pois ela parecia ser inteligente, viva e competente.
A pressão sobre os seus braços afrouxou.
Muito bem disse.
Sem perceber muito bem a que é que ela estava a dar o seu assentimento, Lynley concluiu que estava pronta a passar à fase seguinte, isto é, a sair da casa e a juntar-se à sargento Havers, que estava sentada à sombra da videira. Lynley verificou que ela tivera o bom senso de não mexer na caixa de cartão onde estavam guardados as provas e os relatórios. O seu rosto era, aliás, a máscara perfeita da indiferença.
Ardery tornou a tirar os moldes de gesso de dentro da caixa, bem como os relatórios e as fotografias.
Identificámos o sapato. O desenho da sola é muito característicoEstendeu a Lynley o molde completo, que reproduzia a totalidade de uma sola de sapato. Ao longo do rebordo podia ver-se um conjunto de marcas que faziam lembrar o padrão do tecido pied-de-poule. Reproduzidas no molde como recortes dentados, seriam protuberâncias na sola do sapato propriamente dita. Atravessando diagonalmente o fundo do sapato, entre uma marca e outra, havia um segundo conjunto de entalhes que faziam lembrar traços. Estes motivos repetiam-se no calcanhar. Era, de facto, uma sola muito característica.
Doc Martens informou Ardery.
Sapatos de passeio? Botas?
Botas, parece-me.
Ideais para quem pretende dar azo aos seus ímpetos xenófobos observou Havers. Nada melhor do que esses protectores metálicos para pisar as carantonhas de alguns tipos, depois de um passeiozito por Bethnal Green.
Lynley colocou o segundo molde ao lado do primeiro. Representava a ponta do sapato e alguns centímetros de sola. Manifestamente, os moldes correspondiam ao mesmo sapato. Uma das marcas visíveis ao longo do rebordo esquerdo estava um pouco gasta, como se tivesse sido usada de forma irregular ou parcialmente retalhada com uma faca. A parte gasta aparecia reproduzida nos dois moldes e não era, explicou Ardery, uma das características habituais da marca.
O molde completo provém do fundo do jardim continuou ela. Do sítio onde alguém saltou por cima da vedação, vindo do cercado vizinho.
E o outro? perguntou Lynley. Ela apontou para oeste.
Deste lado há um caminho pedonal público que corre ao longo da nascente e continua até Lesser Springburn. Há um valado a cerca de três quartos do caminho. Foi lá que encontrámos a pegada.
Lynley arriscou-se a fazer uma pergunta que não lhe ia agradar. Ardery, com certeza, não iria deixar de deduzir que ele suspeitava que tanto ela como a sua equipa tinham passado por cima de qualquer coisa no decorrer da investigação.
Importa-se de nos levar até lá?
Passámos a aldeia a pente fino, inspector. Falámos com toda a gente. O relatório...
Está provavelmente mais completo do que qualquer outro que eu próprio pudesse redigir concluiu Lynley. Mesmo assim, gostaria de Vê-lo com os meus próprios olhos. Se não se importa.
Ardery sabia perfeitamente que eles não tinham necessidade, nem da Sua autorização nem da sua presença para examinar um caminho pedonal Público. Lynley, aliás, podia ler esta constatação no rosto dela. Ainda que o seu pedido tivesse sido formulado de forma que ambos estivessem em pé de igualdade, não deixava de lançar uma suspeita sobre a seriedade do trabalho efectuado por Ardery. Cabia-lhe decidir em que sentido deveria interpretar as Palavras dele.
Muito bem aquiesceu ela. Podemos ir até à aldeia dar uma espreitadela. São só dez minutos a pé.
O caminho público começava na nascente, uma bacia de água borbu lhante a cerca de cinquenta metros de Celandine Cottage. Era uma passagem manifestamente muito frequentada. Elevava-se suavemente acima do curso da água que provinha da nascente. De um lado, o caminho começava por ladear uma série de cercados e depois um pomar no qual algumas macieiras negligenciadas cobertas de flores cor de rosa e brancas que pareciam flocos de neve ao pôr do sol estavam em vias de desaparecer fatalmente sob monopolizadoras e malcheirosas barbas de milho. Do outro lado do caminho, as ortigas misturavam-se com amoreiras silvestres e as inflorescências brancas do cerefólio selvagem sobrepunham-se à hera que, por sua vez, se enrodilhava em volta dos troncos dos carvalhos, amieiros e salgueiros. A maior parte das árvores que se sucediam ao longo da passagem e do riacho estavam em folha. Um ruído característico, ao qual respondeu um silvo claro e distinto, anunciava a presença, no meio da vegetação, de uma toutinegra e de um tordo.
Apesar das sandálias de salto alto, que a faziam tão alta quanto Lynley, a inspectora Ardery avançava ao longo do caminho em passo vivo e rápido. Ladeando sebes e silvas, baixando-se para passar por baixo de ramos, ia falando enquanto caminhava.
Identificámos as fibras que encontrámos na vedação danificada ao fundo do jardim. Ganga azul. Levi Strauss.
Grande ajuda, sobretudo se pensarmos que setenta e cinco por cento da população usa calças de ganga comentou Havers, em voz baixa.
Lynley brindou a sargento, que seguia alguns metros atrás dele, com um olhar fulminante. Depois de ter conseguido obter a cooperação da inspectora Ardery, não lhe apetecia nada pô-la em risco por causa de uma das observações de Havers, instintivas mas extemporâneas. Ela compreendeu a mensagem que ele lhe enviava e desculpou-se com um movimento de lábios silencioso.
Quanto a Ardery, ou não ouviu o comentário ou preferiu ignorá-lo.
Havia vestígios de óleo nas fibras. Enviámo-las para análise para nos certificarmos, mas um dos nossos rapazes examinou-as pormenorizadamente ao microscópio e concluiu tratar-se de óleo de motor. Sinto-me inclinada a concordar com ele. Trabalhava em medicina legal antes do aparecimento dos cromatógrafos. É um tipo experiente, que sabe do que fala-
E quanto às beatas? perguntou Lynley. A que foi usada dentro de casa e as que foram encontradas no jardim.
Ainda não temos resultados.
Depois, como se adivinhasse que Lynley iria concluir que os serviços dela não tinham peso suficiente e que, por isso, as provas deveriam ser entregues ao laboratório da New Scotland Yard, Ardery apressou-se a esclarecer.
O nosso especialista volta hoje de Sheffield, onde foi dar uma conferência. Amanhã de manhã entregamos-lhe os cigarros e depois disso os resultados não demorarão muito tempo a ficar prontos.
Não tem nenhum elemento que nos possa fornecer de momento, então? perguntou Lynley.
Ele é o nosso especialista. Claro que poderia fazer um bocado de adivinhação. Mas não passaria disso mesmo: adivinhação. Como sabem, existem oito diferentes critérios de identificação para uma beata. E eu prefiro que o meu especialista os passe em revista, um a um, em vez de eu própria tentar reconhecer um ou dois e chegar a conclusões erradas.
Ela chegara a uma vedação em ferro que atravessava o caminho. Parou diante da plataforma coberta de musgo, que formava um simples valado.
É aqui indicou ela.
Em torno do valado, a terra era mais mole do que a que cobria o caminho. Era possível distinguir um verdadeiro labirinto de pegadas, a maioria delas meio apagadas e cobertas por outras marcas adicionais. A equipa de Ardery tivera sorte, de facto, em ter conseguido descobrir algo que correspondesse à pegada encontrada em Celandine Cottage. Até uma marca parcial seria um verdadeiro achado.
Um pouco mais longe disse Ardery, como se respondesse ao pensamento de Lynley. Aqui, onde ainda se vêem os fragmentos de gesso.
Lynley abanou a cabeça e olhou para o outro lado da vedação. Cerca de cento e cinquenta metros mais à frente, em direcção a noroeste, conseguia distinguir os telhados de Lesser Springburn. O caminho era bem visível, um trilho usado que se distanciava do riacho, atravessava uma via-férrea, contornava um pomar e desaparecia num pequeno lote de terreno.
Subiram o valado. Uma vez alcançado o referido lote de terreno, o caminho tornava-se mais largo, o que permitia que caminhassem os três lado a lado, ao longo dos jardins traseiros das casas que ladeavam o caminho. Alcançaram o lote de terreno em forma de quarto crescente ao longo do qual se elevava um conjunto de habitações rigorosamente iguais: fachadas em tijolo, chaminés atarracadas, janelas salientes e telhados com empenas. Os três detectives foram objecto de alguns olhares curiosos, já que a rua estava povoada de crianças que saltavam à corda, de homens que se entretinham a lavar os respectivos automóveis e de rapazinhos embrenhados numa espécie de jogo de críquete.
Fizemos um inquérito pela vizinhança informou Ardery. Ninguém viu nada fora do comum, na quarta-feira à noite. Mas suponho que as Pessoas deviam estar dentro de casa à hora que ele terá passado por aqui.
- Decidiu-se por um ele, pelo que vejo disse Lynley.
Por causa da marca do sapato. E do tamanho. Da profundidade da Pegada encontrada em Celandine Cottage. Sim acrescentou, eu diria que estamos à procura de um homem.
Foram sair a Springburn Road, no extremo da aldeia. À direita, a estreita rua principal desdobrava-se, sinuosa, ao longo de uma inclinação suave que passava pelo meio de uma fieira de velhas casas cobertas por telhados de colmo e de uma sucessão de lojas. Mesmo em frente a estas, abria-se u segundo caminho, ocupado por uma série de casas de madeira, que terminava numa igreja. À esquerda, uma alameda calcetada conduzia ao parque de estacionamento do Fox and Hounds. No sítio onde se encontrava, nas traseiras do pub, Lynley conseguia ver um terreno relvado público repleto de carvalhos e freixos que projectavam as suas longas sombras vespertinas sobre a relva. Um emaranhado de arbustos cerrados e pouco cuidados bordejavam o terreno. Depois de ter lançado uma olhadela à rua principal e ao caminho que conduzia à igreja, Lynley decidiu meter por este último.
Os arbustos não formavam uma sebe compacta. Aqui e ali, a verdura era interrompida por pequenas aberturas que asseguravam a ligação entre o parque de estacionamento do pub e o jardim público. Foi uma destas aberturas, aliás, que os detectives atravessaram, passando por baixo de uma cúpula natural formada pelos ramos de um carvalho.
No extremo sul do relvado desenrolava-se outro jogo de críquete. Entre um grupo de aldeãos, aparentemente. Os jogadores, homens adultos, estavam vestidos de branco, como manda a tradição. Os espectadores, esses, estavam sentados em cadeiras de lona em torno das quais cirandava um grupo de crianças ruidosas. Um dos árbitros gritou:
Por amor de Deus, Donna, tira-me esse garoto do campo. Lynley e os seus colegas passaram despercebidos, graças aos arbustos que cresciam ao longo do extremo nordeste do terreno. O solo era duro naquele sítio, coberto por uma camada de terra irregular sobre a qual a hera crescia em manchas assimétricas. Algumas gavinhas de hera não só se estendiam pelo solo, como também trepavam por uma vedação em madeira. Ao longo desta última floresciam rododendros, cujos ramos se curvavam pesadamente sob o peso das flores imensas. Um ocasional arbusto de azevinho alastrava os seus ramos de folhas espinhosas por entre os rododendros. A sargento Havers aproximou-se deles para os examinar, enquanto Lynley inspeccionava o solo sob o olhar atento de Ardery.
Um dos rapazes da minha equipa falou com Connor O’Neill disse Ardery, o proprietário do pub. Ele e o filho estavam a trabalhar na quarta-feira à noite.
E ele disse alguma coisa de interessante?
Disse que fecharam por volta da meia-noite e meia. Mas nenhum deles viu um carro desconhecido no parque de estacionamento, quando saíram. O parque de estacionamento estava vazio, aliás, à parte o carro deles.
Isso não tem nada de surpreendente, pois não?
Também examinámos este local prosseguiu Ardery em tom firme. Conforme pode verificar, inspector, toda esta área foi passada a pente fino.
A consistência do solo não permite que se façam moldes de espécie alguma.
Ela tinha razão. Os locais onde a hera não crescia estavam cobertos com folhagem em decomposição do ano anterior. Por baixo desta, o solo era duro como pedra, um autêntico tapete de cimento. Não havia marca que se lhe agarrasse, nem pegada, nem pneus, nem sequer a assinatura do assassino.
Endireitou-se. Olhou para trás, na direcção do caminho por onde tinham vindo. Os arbustos eram, segundo ele, o local mais lógico para esconder um veículo, se é que algum veículo fora, de facto, usado em alguma fase do crime. Os arbustos permitiam o acesso ao parque de estacionamento e daqui facilmente se alcançava o trilho que conduzia ao caminho pedonal. Este deixaria qualquer pessoa que o atravessasse a cerca de cinquenta metros de Celandine Cottage. Tudo o que se pedia ao assassino que procuravam era que este possuísse um conhecimento profundo do local.
Por outro lado, se o assassino tivesse agido em conluio com mais alguém, não teria sentido necessidade de esconder o veículo. Um motorista poderia ter parado, por momentos, no Fox and Hounds, ter deixado sair o assassino, que entretanto desapareceria ao longo do caminho, e ter-se limitado a passar uma ou duas horas guiando pelos campos circundantes até que o fogo tivesse sido ateado na casa de campo e o incendiário tivesse tido tempo de regressar. Este procedimento pressupunha, não só uma cumplicidade de longa data, mas também um conhecimento íntimo dos movimentos de Fleming, no dia da sua morte. Duas pessoas e não uma estariam, então, interessadas no desaparecimento do jogador de críquete.
Senhor chamou a sargento Havers, importa-se de ver isto. Lynley viu que Havers avançara vagarosamente ao longo da fileira de rododendros e azevinho. Estava agachada no sítio onde os arbustos roçavam o parque de estacionamento do pub. Com a mão, afastou algumas folhas caídas e levantou uma gavinha de hera, perdida no meio de uma dezena de outras gavinhas que se estendiam até um losango de terra.
Lynley e Ardery aproximaram-se. Olhando por cima do ombro dela, Lynley viu o que ela tinha encontrado: um círculo grosseiro de terra batida, com cerca de sete centímetros de diâmetro. A marca circular era mais escura do que o resto do solo, cor de café, mais exactamente, contrastando com a tonalidade avelã da terra em volta.
Com os dedos, Havers partiu a gavinha que segurava na mão. Tornou a Pôr-se de pé com um gemido, afastou o cabelo da testa e estendeu-a a Lynley.
Parece-se bastante com óleo disse. Salpicou três folhas ainda. Está a ver? Aqui e aqui. E ali.
Óleo de motor murmurou Lynley.
Também penso que sim. Tal como o óleo nas calças de ganga.
Havers apontou para Springburn Road.
Deve ter vindo por ali, desligou o motor e as luzes e deslizou ao longo do relvado. Estacionou aqui. Esgueirou-se por entre os arbustos e atravessou o parque de estacionamento, dirigindo-se ao caminho de terra. Aí até Celandine Cottage, saltou o muro do cercado da propriedade vizinha e ficou à espera no fundo do jardim até que a costa estivesse desimpedida.
Ardery apressou-se a comentar.
E acha que as marcas dos pneus nos teriam passado despercebidas sargento? Porque se um carro tivesse, de facto, avançado ao longo do relvado Não foi um carro disse Havers. Foi uma moto. Dois pneus em vez de quatro. Mais leve do que um carro e, por isso, com menos probabilidades de deixar marcas. Fácil de manobrar e mais fácil de esconder.
Lynley sentiu alguma relutância em aceitar este cenário.
O condutor de uma moto que depois fumou seis ou oito cigarros a fim de assinalar a sua presença em Celandine Cottage? Como é que explica isto, sargento? Que tipo de assassino deixa um cartão de visita?
O tipo de assassino que não espera ser apanhado.
Mas qualquer pessoa com conhecimentos mínimos de medicina legal sabe como é importante não deixar nenhuma pista disse Lynley. Qualquer uma. Seja ela qual for.
Exacto. Por isso estamos à procura de um assassino que partiu do princípio pateta de que o seu crime não iria parecer um crime. Estamos à procura de um assassino que pensava unicamente no seu objectivo principal: a morte de Fleming. Como concretizá-la e o que teria a ganhar com ela e não na forma como essa morte seria investigada posteriormente. Alguém que pensou que a casa de campo, atafulhada de móveis e de antiguidades, inspectora, se transformaria num autêntico braseiro mal aquele cigarro colocado no cadeirão ardesse o tempo suficiente. Na mente dele não haveria provas. Não haveria nenhuma beata. Não haveria restos de fósforos. Não haveria mais nada, senão um monte de escombros. E que poderia a polícia fazer com um monte de escombros, terá ele pensado, se é que sequer parou para reflectir um pouco?
Um grito de júbilo levantou-se entre os espectadores do jogo de críquete. Os três detectives viraram-se. O batedor tinha acertado na bola e corria velozmente na direcção da base seguinte. Dois outros jogadores atravessavam o campo a correr. O lançador gritava. Desesperado, o receptador de bolas atirava uma das luvas ao chão. Era óbvio que alguém se esquecera de uma das regras de ouro do críquete: acontecesse o que acontecesse, o importante era tentar apanhar a bola, sempre.
Temos de falar com o rapaz, inspector disse Havers. Queria provas. Pois a inspectora Ardery já nos forneceu as provas. Beatas...
Que ainda têm de ser identificadas.
Fibras de ganga manchadas de óleo.
- Que têm de ser submetidas ao teste do cromatógrafo.
- Pegadas que já foram identificadas. Uma sola de sapato com um padrão característico. E agora isto - esboçou um gesto na direcção da hera que ele segurava numa das mãos. - Que mais é preciso?
Lynley não respondeu. Sabia qual seria a reacção de Havers à resposta dele. Ele não queria mais. Queria menos, muito menos.
A inspectora Ardery olhava fixamente para o local onde se encontrava a mancha de óleo. O seu rosto expressava a mais viva das contrariedades. Falando num tom calmo e baixo, mais como se falasse para si mesma, disse:
- Eu pedi-lhes que procurassem pegadas. Ainda não sabíamos que havia óleo nas fibras.
- Não tem importância - disse Lynley. - Tem, sim. Se não tivesse insistido...
O olhar resignado de Havers pedia a Lynley que lhe dissesse se deveria ou não afastar-se e deixá-los a sós pela segunda vez. Erguendo uma mão, Lynley fez-lhe sinal para que ficasse onde estava.
- Ninguém lhe exige que adivinhe os sítios onde se encontram os vestígios.
- É o meu trabalho.
- Esta mancha de óleo pode não querer dizer nada. Pode até nem coincidir com o óleo encontrado nas fibras.
- Merda - desabafou Ardery, mais para si própria do que para eles. Observou o jogo de críquete durante perto de um minuto - os mesmos dois batedores continuavam incansavelmente a desafiar os talentos modestos da equipa contrária -, antes que os traços do seu rosto assumissem novamente um semblante de impassibilidade profissional.
- Quando este processo tiver sido arquivado - disse Lynley com um sorriso, no momento em que o seu olhar tornou a cruzar-se com o dela -, pedirei à sargento Havers que faça o relato de alguns dos erros de julgamento mais interessantes da minha carreira.
Ardery ergueu a cabeça num movimento quase imperceptível. A sua reacção foi fria.
- Todos nós cometemos erros, inspector. Eu gosto de aprender com os meus. Este género de coisas não tornará a repetir-se.
Afastou-se deles e caminhou na direcção do parque de estacionamento, dizendo:
- Gostaria de visitar mais algum sítio na aldeia? Não esperou pela resposta dele, contudo.
Havers pegou na gavinha de hera que Lynley segurava e guardou as folhas manchadas de óleo dentro de um saco de plástico.
- Com que então, erros de julgamento - disse ela, com uma expressão cúmplice dispondo-se a seguir Ardery até ao parque de estacionamento.
CAPÍTULO 15
Jeannie Cooper deitou água a ferver sobre as P. G. Tips e ficou a ver as saquetas flutuando à superfície como bóias salva-vidas. Pegou numa colher, mexeu o líquido e tapou o bule de chá. Naquela tarde, escolhera deliberadamente, o serviço de chá que reservava para os dias especiais: bule em forma de coelho, chávenas em forma de cenouras e pires imitando folhas de alface. Era o bule que ela costumava usar sempre que os miúdos estavam doentes, para os animar e desviar-lhes os pensamentos das dores de ouvidos ou de barriga.
Colocou o bule sobre a mesa da cozinha. Antes retirara a velha toalha de plástico vermelho que a cobria, substituindo-a por outra em algodão verde pintalgada de violetas. Sobre esta dispusera já as restantes peças do serviço de chá: os pratos em forma de folha de alface, o leiteiro em forma de coelho e açucareiro igual. Na travessa da família-coelho, colocada no centro da mesa, pusera as sanduíches de pasta de fígado. Cortara as crostas, fazendo alternar as sanduíches com simples fatias de pão com manteiga. Em volta do pão compusera um aro com biscoitos de manteiga.
Stan e Sharon estavam na sala de estar. Stan via televisão, em cujo ecrã uma enguia gigante nadava, hipnoticamente, ao ritmo de uma voz de fundo que dizia: ”O habitat da enguia moreia...” Sharon, por seu turno, estava curvada sobre o caderno e rodeada por lápis de cor que usava para colorir uma gaivota que desenhara na tarde do dia anterior. Os óculos tinham-lhe deslizado até à ponta do nariz e a sua respiração soava difícil e sonora, como se tivesse o cérebro muito constipado.
O chá está pronto anunciou Jeannie. Shar, vai chamar Jimmy. Sharon levantou a cabeça e fungou. Com as costas da mão empurrou os óculos e endireitou-os.
Ele não vai querer descer.
Como é que sabes? Vai lá chamá-lo.
Jimmy passara o dia fechado no quarto. Por volta das onze e meia dessa manhã tinha querido sair. Entrara na cozinha com o blusão vestido e abrira o frigorífico de onde tirara restos de pizza que embrulhara em papel de alumínio e enfiara depois no bolso. Jeannie observara-o apoiada na pia, onde lavava a loiça do pequeno-almoço. «O que é que andas a tramar, Jimmy?», perguntara. «Nada», respondera ele. Ela tinha querido então saber se ele estava a preparar-se para sair. «E se estivesse?», tornara ele. Não estava para ficar fechado em casa um dia inteiro como se fosse um garoto de dois anos de idade. Além disso, combinara encontrar-se com um amigo em Millwall Outer Dock. E que amigo é esse?, perguntara Jeannie. Um amigo, nada mais. Ela não o conhecia, nem precisava de conhecer. Era Brian Jones, quisera saber Jeannie. Brian Jones? Quem era... Não conhecia nenhum Bri... Calou-se subitamente, tomando consciência de que acabara de cair numa armadilha. Num tom de voz inocente, Jeannie comentara que ele devia lembrar-se, certamente... Brian Jones... de Deptford? O rapaz com quem Jimmy passara o dia de sexta-feira, em vez de ir às aulas.
Jimmy fechara a porta do frigorífico. Dirigira-se para a porta das traseiras, anunciando que ia sair. Nessa altura, Jeannie aconselhara-o a dar uma espreitadela pela janela, primeiro. Estava a falar a sério, dissera, e se ele por acaso tivesse algum juízo na cabeça, deveria fazer o que ela lhe pedia.
Uma mão pousada sobre a maçaneta da porta, Jimmy olhara-a com uma expressão interrogativa, os olhos navegando, desconfortáveis, entre Jeannie e o fogão. Ela pediu-lhe que se aproximasse da vidraça. Queria que ele visse com os seus próprios olhos. O quê?, perguntara ele, com aquele trejeito de lábios que fazia crescer dentro dela um desejo intenso de o esbofetear. Ele apenas tinha que se aproximar da janela, dissera ela, e olhar lá para fora.
Era evidente que pensava que o pedido dela não passava de outra armadilha. Por isso, ela afastou-se da janela, para deixar-lhe espaço suficiente. Ele atravessara a cozinha, andando de lado, como se esperasse que ela fosse saltar-lhe em cima a todo o momento e olhara pela janela, como ela lhe pedira. E vira os jornalistas. Era difícil não reparar neles, recostados num Escort estacionado do outro lado da rua. E depois?, dissera ele. Já lá estavam no dia anterior. Não, Jim, não estava a referir-me a eles, respondera ela. Ele que olhasse para a frente da casa dos Cowper. Quem é que ele achava que eram aqueles tipos, os que estavam sentados dentro do Nova preto? Ele encolhera os ombros, indiferente. A polícia, dissera ela, então. Podia sair, se quisesse. Mas que não esperasse ficar muito tempo sozinho. A polícia segui-lo-ia, sem dúvida.
Ele meditara sobre aquela informação, tanto física como mentalmente. Perguntara o que queria a polícia. Saber o que tinha acontecido ao pai dele, respondera-lhe ela. Saber quem estava com ele na noite de quarta-feira. Saber por que razão tinha sido morto.
E depois ficou à espera. Espiara-o, enquanto ele observava os polícias e os jornalistas. Ele tentara arvorar uma atitude indiferente, mas ela não se deixara enganar. Havia indícios subtis que o denunciavam: a forma como apoiava o peso do corpo, ora num pé ora no outro. O punho fechado que enfiara no bolso das calças de ganga. A forma como atirava a cabeça para trás, erguia o queixo e garantia que não se podia estar mais nas tintas para o caso logo a seguir, no entanto, fizera oscilar novamente o peso do seu corpo e Jeannie imaginara de imediato as palmas das mãos dele tornando-se fumdas e o seu estômago estremecendo como geleia.
Deu consigo desejando sair vitoriosa da situação, desejando pergunttar-lhe casualmente se ele ainda estava a pensar em sair para passear naquela bonita manhã de domingo. Quisera pressioná-lo, abrir a porta, encorajá-lo a sair para apanhar um pouco de ar fresco apenas para forçá-lo a admitir o seu sofrimento, o seu medo, a necessidade de lhe pedir ajuda, a admitir a verdade fosse ela qual fosse, a fazer qualquer coisa. Ficara calada, no entanto, recordando no último minuto e com uma nitidez assustadora como era ter dezasseis anos e enfrentar uma crise. Deixou que ele abandonasse a cozinha, subisse as escadas pesadamente, e desde esse momento não tornara a violar a sua privacidade.
Agora, enquanto Sharon subia ao primeiro andar para ir chamá-lo, Jeannie disse a Stan:
P’rà cozinha, vamos. Hora do chá.
Ele não respondeu. Viu que ele explorava o nariz com o dedo mínimo.
Stan! repreendeu ela. Que nojo! Pára com isso, já!
Stan retirou o dedo imediatamente, baixou a cabeça e escondeu as mãos debaixo do traseiro.
Jeannie acrescentou, numa voz mais doce:
Anda, vem, meu querido. O chá está pronto.
Empurrou-o na direcção do lava-loiça para que lavasse as mãos, enquanto servia o chá nas chávenas em forma de cenoura. Ele aproximou-se dela e murmurou:
Puseste os pratos especiais, hoje, mãe.
E enfiou a mão ainda húmida na dela.
Pus, sim confirmou ela. Pensei que precisávamos de nos animar um bocadinho.
Jimmy vai descer?
Não sei. Vamos ver.
Stan afastou a cadeira da mesa e sentou-se. Escolheu um biscoito, uma fatia de pão com manteiga e uma sanduíche de pasta de fígado, que colocou no seu prato. Abriu a última, colocando uma fatia sobre cada uma das palmas da mão.
Sabes, mãe, ontem à noite ouvi Jimmy chorar.
Jeannie sentiu-se imediatamente interessada, mas disse apenas:
Chorar é natural. Não deves criticar o teu irmão por isso. Stan começou a lamber a pasta de fígado.
Ele pensou que eu não estava a ouvir, porque eu fiquei calado. Mas ouvi. Ele tinha a cabeça enterrada na almofada e estava a bater no colchão a dizer: merda, merda, merda. Stan encolheu-se quando Jeannie ergueu rapidamente uma mão disciplinadora. Foi o que eu ouvi, mãe. Não sou eu que estou a dizer.
E aconselho-te a continuar assim. Jeannie acabou de encher as outras chávenas. E que mais? perguntou ela, em voz baixa.
Depois de ter retirado a totalidade da pasta de fígado, Stan começou a mastigar o pão.
Mais palavras feias.
Como por exemplo?
Sacana. Merda, merda, meu grande sacana. Foi isso que ele disse. Enquanto estava a chorar. Stan lambeu a pasta de fígado que cobria a fatia que segurava na outra mão. Acho que estava a chorar por causa do pai, também. Ele partiu os barcos à vela dele, sabias?
Eu vi-os, Stan.
E ele disse: merda, merda, merda, enquanto estava a partir tudo. Jeannie sentou-se em frente ao filho mais novo. Fechou o polegar e o indicador em torno do pulso delgado da criança.
Não estás a inventar essas histórias, pois não, Stan? Porque, se estás a inventá-las, isso é muito feio.
Eu nunca...
Óptimo. Porque Jimmy é teu irmão e deves gostar muito dele. Ele está a passar um mau bocado agora, mas vai ficar bem outra vez.
Enquanto falava, Jeannie sentiu o seu corpo trespassado por uma lança, que continuou a exercer pressão sob o seu seio esquerdo sem jamais lhe rasgar a pele. Também Kenny atravessara um mau momento, um momento que começara mal e só piorara.
Jimmy diz que não quer porcaria de chá nenhum. Só que não disse porcaria. Disse outra palavra.
Shar entrou na cozinha, esvoaçante, como um dos seus pássaros, tendo por asas folhas de papel de desenho. Empurrou o prato, a chávena e o pires destinados a Jimmy para o lado e colocou o papel sobre a toalha. Com gestos delicados, escolheu uma sanduíche e mordeu-a com igual delicadeza enquanto observava o seu trabalho: uma águia careca sobrevoando uma mata de pinheiros, árvores tão diminutas que a águia parecia uma prima de King Kong.
- Ele disse merda, não foi? Stan beliscava o rebordo da fatia de pão com manteiga.
Não quero ouvir essa palavra nem mais uma vez disse Jeannie.
limpa a boca. Shar, vigia o teu irmão, por favor. Eu vou tratar de Jimmy.
Procurou dentro do armário ao lado do lava-loiça e tirou um tabuleiro plástico. Fora um presente de casamento. Era verde-ácido, decorado com ramos de miosótis. Ideal, pensara ela na altura, para servir scones e sanduíches com o chá. Nunca o usara para isso, todavia. Apenas para levar refeições ao quarto dos filhos quando um deles estava com gripe ou constipado. Colocou a chávena de chá de Jimmy no tabuleiro, adicionando-lhe o açúcar nas quantidades que ele gostava. Escolheu uma das sanduíches, uma fatia de pão com manteiga e alguns biscoitos.
E ele não vai descer, mãe? perguntou Stan ao vê-la dirigir-se para as escadas. Porque estás sempre a dizer que quando não estamos doentes podemos muito bem comer cá em baixo? insistiu Stan.
Pois é respondeu Jeannie. Mas é que Jim está a sentir-se doente Tu próprio disseste a mesma coisa.
Shar não fechara a porta do quarto de Jimmy. Por isso, depois de chamar por ele, Jeannie empurrou a porta com o traseiro.
Trouxe-te o teu chá.
Estava sentado na cama, costas apoiadas na cabeceira. Quando a viu entrar no quarto com o tabuleiro, apressou-se a esconder qualquer coisa debaixo da almofada e fechou rapidamente a gaveta da mesa-de-cabeceira. Jeannie fez de conta que não tinha reparado em nada. Ao longo dos últimos meses tivera oportunidade de passar em revista, e por diversas vezes, o conteúdo da gaveta. Sabia, por isso, o que ele guardava lá dentro. Conversara com Kenny sobre as fotografias e ele, preocupado, passara lá por casa, numa altura em que Jimmy estava na escola. Sentado na beira da cama do filho mais velho, as pernas compridas estiradas sobre a carpete já gasta, ele próprio verificara o conteúdo da gaveta, tendo o cuidado de não perturbar a ordem em que Jimmy a arrumara. Deixara escapar uma gargalhada ao ver as mulheres, a sua indumentária, ou melhor, a ausência da mesma, as posições, as expressões de meninas mimadas, pernas afastadas, costas arqueadas e seios artificiais, de tão perfeitos. ”Não é nada de grave, Jean”, dissera. Que diabo queria ele dizer com aquilo, perguntara ela. O filho tinha uma gaveta cheia de fotografias nojentas e se isso não era razão para ficar preocupada, então o que seria? ”Não são nojentas. Nem pornográficas. Ele está curioso, nada mais”, dissera ele, acrescentando de imediato: ”Se quiseres, posso mostrar-te fotografias realmente pornográficas. Essas, sim, poderiam deixar-te preocupada.” A verdadeira pornografia era outra coisa. As imagens realmente pornográficas incluíam sempre mais de um protagonista homens com mulheres, homens com homens, adultos com crianças, crianças com crianças, mulheres com mulheres, mulheres com animais, homens com animais. ”Não tem nada a ver com isto, rapariga. Isto é o que os garotos contemplam enquanto tentam imaginar qual será a sensação de ter uma mulher por baixo deles. É natural, acredita. Faz parte do crescimento.” Ela perguntara-lhe/ então, se ele também tinha coleccionado fotografias como aquelas, se as escondera da família como se fossem um segredo indecente. Ele tornara a colocar as fotografias dentro da gaveta, arrumando-as com cuidado. ”Não, dissera ao fim de alguns instantes, falando sem olhar para ela. ”Tinha-te a ti. Não precisava de imaginar como seria. Sempre soube.” Em seguida, virara a
cabeça e sorrira, fazendo-a sentir que o seu coração se abria como uma flor. Era incrível, o efeito que Kenny Fleming tinha sobre ela. Que sempre tivera.
Fiz-te umas sanduíches de pasta de fígado conseguiu dizer apesar do nó que lhe apertava a garganta. Afasta as pernas, Jimmy, e deixa-me pousar o tabuleiro.
já disse a Shar que não tinha fome.
A sua voz soou desafiadora, mas os seus olhos tinham um brilho desconfiado. Apesar disso, afastou as pernas como a mãe lhe tinha pedido, e Jeannie viu neste gesto uma razão para ter esperança. Pousou o tabuleiro sobre a cama, perto dos joelhos dele. Usava um par de calças de ganga imundas. Não despira o blusão, nem descalçara os sapatos, como se ainda fizesse tenções de sair quando a polícia se cansasse de vigiar a casa deles. Jeannie queria dizer-lhe que era muito pouco provável que a polícia se cansasse de manter a casa sob vigilância. Eles eram às dezenas, às centenas, aos milhares, talvez, e tudo o que tinham a fazer era revezarem-se entre si.
Esqueci-me de te agradecer por ontem disse Jeannie.
Jimmy passou os dedos pelos cabelos. Olhou para o tabuleiro sem denunciar a mais pequena reacção ao ver o serviço de chá dos dias especiais. Tornou a olhar para ela.
Por Stan e Shar explicou ela. Foi simpático da tua parte teres saído com eles. O teu pai...
Quero é que ele se lixe, o sacana. Depois de ter respirado fundo, continuou.
O teu pai teria sentido muito orgulho em ti, ao ver-te tomar conta dos teus irmãos.
Achas que sim?
Stan e Shar dependem de ti, agora. Tens de ser como um pai para eles. Sobretudo para Stan.
O melhor que Stan tem a fazer é tomar conta dele próprio. Sem depender de ninguém, caso contrário corre o risco de apanhar uma desilusão.
Se puder contar contigo, não.
Jimmy mudou de posição, encostando-se mais à cabeceira da cama, como se assim quisesse aliviar a pressão sobre a coluna ou afastar-se ainda mais de Jeannie. Pegou num maço de cigarros meio amarfanhado e enfiou Um na boca. Acendeu-o e expeliu o fumo pelas narinas. Ele não precisa de mim disse Jimmy.
Claro que precisa, Jim.
Não, enquanto tiver a sua mãezinha para tomar conta dele. Não é Verdade,mãe?
A sua voz soava novamente desafiadora, como se as suas palavras encerrassem uma mensagem escondida. Jeannie tentou, mas foi incapaz de a ler.
Os rapazes pequenos precisam de um modelo, de um homem de quem sintam respeito e admiração.
Ai sim? Nesse caso tenho muita pena, já que não faço tenções de ficar aqui muito mais tempo. Por isso, se Stan precisa de alguém para lhe assoar o nariz e manter o pirilau fora do alcance das mãos dele depois das luzes estarem apagadas, não vou ser eu com certeza quem se vai ocupar disso. Entendido?
Jimmy inclinou-se para a frente e deitou a cinza no pires em forma de folha de alface, sobre o qual se encontrava a chávena em forma de cenoura
E para onde é que estás a pensar ir?
Não sei. Para um sítio qualquer. Pouco me interessa o sítio, desde que não seja aqui. Odeio este lugar e estou farto de aqui estar.
E a tua família?
O que é que tem, a minha família?
Agora que o teu pai morreu...
Não me fales nele. Não me interessa o sítio onde ele está. Já se tinha ido embora, de qualquer forma, antes de ter batido as botas. E nunca mais ia voltar. Achas que Stan e Shar estavam à espera que ele aparecesse, um dia, à porta de casa em bicos de pés e lhes perguntasse se podia voltar para casa? perguntou ele, levando o cigarro aos lábios. Tinha os dedos amarelos por causa da nicotina. Só tu é que ainda acreditavas nisso, mãe. Mas nós estávamos fartos de saber que o pai não ia voltar para casa. E estávamos fartos de saber dela, também. Desde o princípio. Chegámos até a conhecê-la. Só que decidimos nunca te contar nada, porque não queríamos que sofresses ainda mais.
Conheceram a...
Sim, perfeitamente. Estivemos com ela duas ou três vezes. Quatro, talvez. Não sei. Era ver a maneira como o pai olhava para ela e como ela olhava para o pai. Os dois a tentarem pôr um ar inocente, tratando-se por Mr. Fleming e por Mrs. Patten, como se não fossem a correr enfiar-se na cama, mal lhes tivéssemos virado as costas.
Tornou a levar o cigarro aos lábios, fumando furiosamente. E Jean viu que o cigarro tremia.
Não sabia disso disse ela. Afastou-se da cama e aproximou-se da janela. Olhou para baixo, para o jardim, mas nada viu. Levou a mão ao cortinado. Precisam de ser lavados, pensou. Devias ter-me contado, Jim-
Para quê? Terias agido de maneira diferente?
Diferente?
Sim, sabes muito bem o que eu quero dizer. Relutante, Jeannie virou costas à janela.
Diferente como? perguntou.
Podias ter-te divorciado dele. Podias ter feito isso por Stan.
Por Stan?
Ele tinha quatro anos quando o pai saiu de casa, não tinha? Teria conseguido recuperar. E quando estivesse como novo, continuaria a ter a sua mãezinha. Porque é que não pensaste nisso? tornou a atirar cinza para o pires. Achavas que estava tudo lixado, antes, não era, mãe? Pois agora as coisas estão muito piores.
Jeannie sentiu uma súbita lufada de ar gélido invadir o quarto abafado, como se alguém tivesse aberto uma janela no quarto ao lado.
O melhor que tens a fazer é falar comigo disse ao filho. O melhor é contares-me a verdade.
Jimmy abanou a cabeça e continuou a fumar.
Mãe?
Sharon estava parada à porta do quarto.
Agora não disse Jeannie. Estou a falar com o teu irmão. Não vês? A garota recuou um passo. Por detrás dos óculos, os seus olhos faziam lembrar os de uma rã, enormes, protuberantes. Vendo que ela continuava no mesmo sítio, Jeannie enervou-se:
Não ouviste o que eu te disse, Shar? Estás a ficar surda, para além de cega? Vai acabar de beber o chá.
Eu... olhou por cima do ombro, na direcção da escada. Estão uns...
Diz tudo de uma vez, Shar disse o irmão.
A polícia disse ela. À porta. Para falar com Jimmy.
Mal tinham saído do carro, Lynley e Havers tinham sido rodeados pelos jornalistas, que rapidamente se afastaram do Ford Escort, contra o qual estavam reclinados. Depois de se terem certificado de que Lynley e Havers se dirigiam para a casa dos Cooper-Fleming, começaram automaticamente a bombardeá-los com perguntas. Não pareciam estar à espera de resposta para as suas perguntas, apenas tinham necessidade de as formular, de se manifestar e de, assim, fazer sentir o peso e a presença do quarto poder.
Já existe algum suspeito? gritou um deles. ~- já conseguiram localizar Mrs. Patten? bradou outro.
... em Mayfair, com as chaves caídas no assento. Podem confirmar-nos esta informação? lançou um terceiro, enquanto as máquinas fotográficas continuavam a disparar.
Ignorando-os, Lynley tocara à campainha, enquanto Havers observava O Nova, estacionado mais abaixo.
Ali estão os nossos rapazes disse ela, em voz baixa, apostando a intimidação, não há dúvida.
Lynley olhou-os, por seu turno.
A presença deles aqui deve ter certamente deixado alguns nervos à flor da pele.
A porta abrira-se e diante deles surgira uma garotita com uns óculos grossos encavalitados no nariz, os cantos da boca cheios de migalhas de pão e o queixo pontuado por algumas borbulhas. Lynley exibira o cartão da Yard e perguntara se podia falar com Jimmy Fleming.
Cooper, quer dizer retorquira a garota. Quer falar com Jimmy? Sem esperar uma resposta, deixara-os à porta e subira as escadas a correr.
Eles tinham entrado, indo dar a uma sala de estar. Aí, o ecrã de um televisor mostrava um enorme tubarão branco investindo contra as grades de uma jaula, dentro da qual um infeliz mergulhador flutuava, gesticulava e fotografava o monstro. O som era quase inaudível. Ninguém parecia estar a ver o programa. Enquanto observavam o ecrã em silêncio, uma voz de criança disse:
Parece o peixe do Tubarão. Vi a cassete na casa de um amigo. Lynley viu que o rapaz falava da cozinha, onde afastara a cadeira da mesa posicionando-a de maneira a colocá-la no prolongamento da sala. Mastigava um biscoito, as pernas encostadas à cadeira.
É detective? perguntou. Como Spender? Eu costumava ver o Spender na televisão.
Sim respondeu Lynley. Como Spender. E tu? És Stan?
Os olhos do garoto dilataram-se, como se Lynley tivesse revelado poderes sobrenaturais.
Como é que sabe?
Vi uma fotografia tua no quarto do teu pai.
Na casa de Mrs. Whitelaw? Fui a casa dela muitas vezes. Ela deixa-me dar corda aos relógios. Só não me deixa mexer no que está na sala mais pequena. Sabem porquê? Ela disse que o avô dela tinha parado o relógio na noite em que a rainha Vitória morreu e nunca mais lhe tinha dado corda.
Gostas de relógios?
Não muito. Mas ela tem uma data de coisas na casa dela. Em todo o sítio. Quando vou lá, ela deixa-me...
Já chega, Stan.
Uma mulher estava parada nas escadas. Havers dirigiu-se a ela.
Ms. Cooper, apresento-lhe o inspector...
Não preciso saber o nome dele.
Acabou de descer as escadas e entrou na sala. Sem olhar para o filho disse-lhe:
Stan, leva o chá para o teu quarto.
Mas eu não estou doente, mãe retorquiu, num tom ansioso.
Faz o que te digo. Agora. E fecha a porta.
Ele desceu da cadeira rapidamente, as mãos cheias de sanduíches e biscoitos, e galgou as escadas com passo rápido. No andar de cima, alguém fechou uma porta.
Jean Cooper atravessou a sala e desligou a televisão, onde o enorme tubarão branco exibia meia dúzia de fileiras de dentes afiados. Pegou num maço de Embassy, que estava sobre o televisor, acendeu um cigarro e virou-se para olhá-los de frente.
O que é que se passa? perguntou.
Gostaríamos de conversar com o seu filho.
Era o que estavam a fazer, não era?
Com o seu filho mais velho, Ms. Cooper.
E se ele não estiver em casa?
Sabemos que está.
Conheço os meus direitos. Não sou obrigada a deixar-vos entrar em minha casa. Posso telefonar a um advogado, se quiser.
Não vemos nenhum inconveniente nisso. Jeannie Cooper dirigiu-se, então, a Havers.
Eu disse-lhe tudo o que sabia, ontem.
Jimmy não estava em casa, ontem retorquiu Havers. É uma mera formalidade, Ms. Cooper. Nada mais.
Não pediram para falar com Shar. Nem com Stan. Porque é que só estão interessados em falar com Jimmy?
Porque ele devia partir com o pai numa viagem de férias esclareceu Lynley. Na quarta-feira à noite. Se a viagem foi formalmente cancelada ou adiada, talvez, é possível que ele tenha falado com o pai. Gostaríamos de conversar com ele sobre isso.
Ao vê-la fazer girar o cigarro, nervosamente, entre os dedos, antes de tornar a puxar nova fumaça, acrescentou:
Tal como disse a sargento Havers, trata-se apenas de uma formalidade. Estamos a interrogar todas as pessoas que possam fornecer-nos pormenores sobre as últimas horas de vida do seu marido.
Jean Cooper reagiu às últimas palavras deles, ainda que com um simples pestanejar e um estremecimento quase imperceptível.
É mais do que uma simples formalidade disse.
Pode ficar connosco enquanto conversamos com ele disse Havers. ~~ Ou, então, pode telefonar ao seu advogado. Seja qual for a sua decisão, será sempre um direito que lhe assiste, já que o seu filho é menor.
Não se esqueçam disso sublinhou Lynley. Ele tem dezasseis anos. Dezasseis anos. Não passa de um miúdo.
Nós sabemos isso disse Lynley. E agora, se não se importar, gostaríamos de conversar um pouco com ele.
Por cima do ombro, gritou:
- Jimmy. É melhor vires falar com eles e despachar o assunto de uma vez por todas.
O adolescente devia ter permanecido à escuta no patamar do primeiro andar. Desceu as escadas devagar, curvado, os ombros descaídos, a cabeça inclinada para o lado.
Não olhou para ninguém. Dirigiu-se para o sofá e afundou-se nele, queixo caído sobre o peito e pernas esticadas à sua frente. O que deu a Lynley uma oportunidade para examinar os pés dele. Calçava botas. As solas tinham um desenho semelhante ao do molde realizado no Kent pela inspectora Ardery. Tudo coincidia, até a zona onde o desenho se apresentava mais gasto.
Lynley apresentou a sargento Havers depois de se ter identificado. Instalou-se num dos cadeirões e Havers sentou-se no outro. Jean Cooper sentou-se no sofá, ao lado do filho. Pegou num cinzeiro de metal que estava sobre a mesa baixa e colocou-o sobre os joelhos.
- Queres um cigarro? - perguntou ao filho, em voz baixa.
- Não - recusou ele, atirando os cabelos para trás.
Ela estendeu a mão, como se quisesse ajudá-lo, mas depois pareceu reflectir e recolheu a mão. - Falou com o seu pai na quarta-feira? - perguntou Lynley.
Jimmy confirmou com um movimento de cabeça, olhos ainda fixos num ponto vago, algures entre os joelhos e o chão.
- A que horas foi isso?
- Não me lembro.
- De manhã? À tarde? O vosso voo para a Grécia estava previsto para a noite, segundo creio. Ele deve ter telefonado antes.
- À tarde, acho.
- À hora do almoço? Do lanche?
- Eu tinha levado Stan ao dentista - disse a mãe dele. - O teu pai deve ter telefonado nessa altura, Jim. Por volta das quatro horas, ou das quatro e meia.
- Parece-lhe correcto? - Lynley perguntou ao rapaz.
O adolescente respondeu com um encolher de ombros, que Lynley interpretou como sendo uma resposta afirmativa.
- Que disse o seu pai?
Jimmy repuxava um fio da bainha da T-shirt, que se soltara.
- Que tinha que fazer qualquer coisa - disse ele.
- O quê?
- O meu pai disse que tinha que fazer qualquer coisa.
A resposta dele soou algo impaciente. Cabrões imbecis, estes chuis, estava implícito na entoação da sua resposta.
- Nesse dia?
- Sim.
- E a viagem? - O que é que tem?
Lynley perguntou a Jimmy em que pé tinha ficado a viagem de barco na Grécia. Tinha sido adiada? Ou cancelada?
Jimmy pareceu reflectir sobre a pergunta. Pelo menos foi isso que Lynley concluiu ao vê-lo desviar os olhos. Finalmente, disse-lhes que o pai dissera que a viagem iria ter de ser adiada por uns dias. Telefonar-lhe-ia de manhã,
dissera. Nessa altura fariam novos planos.
- E quando ele não lhe telefonou, na manhã seguinte - continuou Lynley -, o que é que pensou?
- Não pensei nada. O meu pai era assim, certo? Estava sempre a dizer que ia fazer um monte de coisas que nunca fazia. A viagem de barco foi uma delas. Não liguei à história. De qualquer maneira, não estava muito interessado em ir, não era?
Como se pretendesse enfatizar esta última interrogação, enterrou o calcanhar da bota na carpete bege. Devia ser uma reacção frequente da parte dele, porque a carpete estava gasta e tingida de uma tonalidade cor de ferrugem no sítio onde ele estava sentado. - E no que diz respeito ao Kent? - perguntou Lynley.
O rapaz deu um puxão vigoroso ao fio da bainha da T-shirt. Este partiu-se. Imediatamente, os dedos dele procuraram outro.
- Esteve lá na quarta-feira à noite - disse Lynley. - Na casa de campo. Sabemos que esteve no jardim, mas pergunto-me se terá chegado a entrar em casa.
Jean Cooper levantou a cabeça bruscamente. Estava a sacudir a cinza do cigarro, mas deteve-se e estendeu a mão na direcção do braço do filho. Ele repeliu-a, sem proferir palavra.
- Também fuma Embassy, como a sua mãe, ou será que as beatas que encontrámos no fundo do jardim são de outra marca? - Mas que história é esta? - perguntou Jean.
- A chave que estava na cabana do jardim desapareceu também perguntou Lynley. - Se fizermos uma busca ao seu quarto, ou se lhe pedirmos para esvaziar os seus bolsos, acha que vamos encontrá-la, Jimmy?
Os cabelos do rapaz tinham começado a deslizar para a frente, como se fossem dotados de vida própria. Ele não lhes tocou, pois escondiam-lhe o rosto de forma providencial.
- Seguiu o seu pai até ao Kent? Ou foi ele que lhe disse que ia até lá? Disse há pouco que ele lhe tinha contado que tinha qualquer coisa para resolver. Ele disse-lhe que esses assuntos estavam relacionados com Gabriella Patten, ou você deduziu por si próprio que havia uma ligação entre as duas coisas?
Pare com isso! Jean esmagou o cigarro e pousou o cinzeiro metálico com força sobre a mesa baixa. O que é que julga que está a fazer? Não tem o direito de vir a casa das pessoas, a minha casa, e dizer essas coisas a Jimmy. Não tem uma única prova. Não tem testemunhas. Não tem...
Pelo contrário contrapôs Lynley.
Jean calou-se imediatamente. Ele inclinou-se para a frente.
Queres um advogado, Jimmy? A tua mãe pode chamar um, se quiseres.
O rapaz encolheu os ombros.
Ms. Cooper disse Havers, pode telefonar para um advogado. Talvez não fosse má ideia.
No entanto, as ameaças de Jean pareciam estar a ser sufocadas pela raiva que a invadira.
Não precisamos de nenhum advogado imbecil declarou, em tom cortante. Ele não fez nada, o meu Jim. Nada. Nada. Tem dezasseis anos. É o homem desta família, agora. É ele que tem de tomar conta do irmão e da irmã. Não está interessado no Kent. Ele estava cá em casa, na quarta-feira à noite. Enfiado na cama. Eu própria confirmei isso. Ele...
Jimmy disse Lynley, nós mandámos fazer os moldes de duas pegadas que certamente irão corresponder às botas que tens nos pés. Doc Martens, não são? O adolescente não respondeu. Uma das pegadas foi encontrada no fundo do jardim, no sítio onde saltaste a vedação, pelo lado do cercado da propriedade vizinha.
Isso são puras invenções disse Jeannie.
A outra foi recolhida no caminho pedonal que vai dar a Lesser Springburn. Na base do valado perto da linha férrea.
Lynley falou-lhe do resto: sobre as fibras de ganga que, sem dúvida, corresponderiam aos rasgões das calças que ele tinha vestidas, sobre o óleo encontrado nessas fibras e nos arbustos próximos do jardim de Lesser Springburn. Queria forçar uma reacção por parte do adolescente. Queria que ele se retraísse diante das palavras proferidas, que tentasse negá-las, que lhes fornecesse uma pista por mais ténue que fosse que pudessem seguir. Jimmy, no entanto, continuou calado.
Que foste fazer ao Kent? perguntou Lynley.
Não se atreva a falar com ele dessa maneira! gritou Jean. Ele não foi ao Kent! Nem uma vez!
Isso não é verdade, Ms. Cooper. E a senhora sabe que não é.
Saiam desta casa pôs-se de pé de um salto e colocou-se entre Lynley e o filho. Rua. Os dois. Já fizeram o que tinham a fazer. Já fizeram as vossas perguntas. Já viram o rapaz. Agora saiam. Rua!
Lynley suspirou. Sentia-se duplamente oprimido por aquilo que sabia/ por aquilo que precisava de saber.
Nós vamos ter de obter algumas respostas, Ms. Cooper. Jimmy pode fornecê-las agora, ou terá de vir connosco até à Yard para responder às nossas perguntas. Seja como for, ele vai ter de falar connosco. Gostaria de telefonar ao seu advogado agora?
Para quem é que trabalha, senhor Falinhas Mansas? Diga-me o nome.
É a ele que vou telefonar.
Webberly disse Lynley. Malcolm Webberly.
A reacção de Lynley pareceu deixá-la aturdida. Semicerrou os olhos e observou-o, hesitando, talvez, entre manter a sua posição e dirigir-se ao telefone. Um truque, dizia a expressão do seu rosto. Se ela saísse da sala para ir telefonar, eles ficariam a sós com o filho, e ela sabia-o.
O seu filho tem uma moto? perguntou Lynley.
Uma moto não prova nada.
Podemos vê-la, por favor?
É um monte de ferro ferrugento. Nem à Torre de Londres ele chegaria em cima dela. Não podia ter ido ao Kent naquela moto. Impossível.
Não estava parada em frente à casa continuou Lynley. Está nas traseiras?
Eu disse... Lynley levantou-se.
A moto está a perder óleo, Ms. Cooper?
Jeannie uniu as mãos no que podia ser tomado como um gesto de súplica. Começou a contorcê-las. Quando Havers se levantou, também, Jean olhou de um para o outro, como se estivesse a pensar em fugir dali. Atrás dela, o filho mexeu-se e pôs-se de pé.
Dirigiu-se para a cozinha. Ouviram-no abrir uma porta. Jean gritou:
Jim!
Ele, porém, não respondeu.
Lynley e Havers seguiram-no, acompanhados de perto pela mãe do rapaz. Quando se lhe juntaram, ele abria a porta de uma pequena cabana ao fundo do jardim. Ao lado dela, um portão dava acesso ao que parecia ser uma álea que passava entre as casas de Cardale Street e as que ficavam na rua por detrás delas.
Diante dos olhos deles, Jimmy Cooper tirou a sua moto de dentro da cabana. Sem olhar para eles uma única vez, sentou-se no assento, ligou-a, deixou o motor a trabalhar durante alguns instantes e depois desligou-o. Em seguida afastou-se para o lado o braço direito agarrando no cotovelo esquerdo, o peso do corpo sobre a anca esquerda enquanto Lynley examinava o motociclo.
A moto estava, tal como dissera Jean Cooper, muito ferrugenta. E nos sítios onde não havia ferrugem, via-se vestígios da tinta vermelha que em tempos a colorira. Esta cor, no entanto, oxidara com o tempo, deixando manchas desbotadas que, misturadas com a ferrugem, pareciam crostas. O motor continuava a trabalhar, no entanto. Quando Lynley o ligou, respondeu sem dificuldade e ressoou sem falhar uma única vez. Desligou-o e colocou a mão no apoio.
Eu bem lhe disse referiu Jean. Um monte de ferrugem. Ele anda com ela em Cubbit Town. Sabe que não pode ir até mais longe com ela. Usa-a para me fazer alguns recados. E para ir visitar a avó. Em Millwall Park. Ele...
Inspector a sargento Havers baixara-se no outro lado da moto para examiná-la mais de perto. Ergueu um dedo e Lynley viu o óleo que lhe cobria a ponta do dedo, como se fosse uma bolha de sangue. Tem uma fuga acrescentou desnecessariamente, e, enquanto falava, uma nova gota pingou do motor manchando o chão de cimento da álea onde Jimmy a estacionara.
Deveria ter sentido contentamento, júbilo. Em vez disso, porém, sentiu apenas tristeza. De início não conseguiu perceber porquê. O rapaz era insolente, não colaborava e estava imundo, um provável delinquente que andava há anos na corda bamba. Recolhia agora o que andara a semear; mas Lynley não retirava deste facto nenhuma satisfação. Após alguns instantes de reflexão encontrou a resposta. Ele tinha a idade de Jimmy quando tivera a primeira desavença com um dos seus pais. Sabia o que era odiar e amar um adulto incompreensível com igual intensidade.
Sargento, quando quiser disse numa voz cansada.
Em seguida encaminhou-se para o portão e olhou fixamente para a estrutura de madeira, enquanto Havers dava ordem de prisão a Jimmy.
CAPÍTULO 16
Fizeram-no sair pela porta da frente, o que forneceu aos repórteres e aos fotógrafos que os acompanhavam matéria sensacionalista para os jornais diários do dia seguinte. Os termos do artigo seriam, obviamente, pesados com cuidado, por forma a sugerir e não a afirmar, assegurando assim a protecção dos direitos das pessoas implicadas. No momento em que Lynley abriu a porta e empurrou Jimmy Cooper para que avançasse à sua frente a cabeça do rapaz estava inclinada para a frente, como a de uma marioneta, as mãos cerradas à frente, como se estivesse algemado um grito de excitação percorreu o pequeno grupo de repórteres. Gravadores e bloco-notas na mão, abriram caminho por entre os carros estacionados ao longo do passeio. Os fotógrafos começaram a tirar fotografias e os repórteres desataram a lançar as suas perguntas.
Uma detenção, inspector?
É o filho mais velho?
Jimmy! Hei, Jim! Tens alguma declaração a fazer?
Quais são os motivos? Ciúme? Dinheiro?
Jimmy virou a cabeça para um dos lados, murmurando, ”Vão-se lixar”. De súbito, tropeçou quando o dedo do seu pé ficou preso numa irregularidade do chão do jardim fronteiro à casa. Lynley agarrou-o pelo braço para evitar que ele caísse. As câmaras ecoaram para imortalizar o momento.
Desapareçam daqui, vocês todos!
O grito veio da porta da casa, onde estava Jean Cooper, acompanhada dos outros dois filhos, que espreitavam por entre os braços dela. As câmaras viraram-se na sua direcção. Ela empurrou Stan e Sharon para dentro da sala, colocando-os fora do alcance das objectivas. Saiu de casa a correr e agarrou no braço de Lynley. As câmaras soaram mais uma vez.
Deixe-o em paz gritou Jean.
Não posso fazer isso respondeu Lynley, em voz baixa. Se ele não fala connosco aqui, não nos resta outra alternativa. Gostaria de nos acompanhar? Tem esse direito, Ms. Cooper, uma vez que o seu filho é menor.
Ela esfregou as mãos na T-shirt demasiado larga. Depois lançou um olhar para a casa, onde os seus dois outros filhos os observavam, desde a janela da sala. Sem dúvida interrogou-se sobre o que poderia acontecer se os deixasse sozinhos, à mercê dos jornalistas.
Vou telefonar ao meu irmão, primeiro disse ela.
Eu não quero que ela venha disse Jimmy.
Jim!
Eu disse atirou o cabelo para trás e, apercebendo-se do erro que acabava de cometer, quando os fotógrafos rapidamente apanharam o seu rosto desprotegido, tornou a baixar a cabeça.
Tens de me deixar...
Não.
Lynley dava-se conta de que os repórteres estavam deliciados com a situação, escutando avidamente cada uma das réplicas e tomando nota delas. Era ainda um pouco cedo, no actual estádio da investigação, para que os jornais mencionassem o nome de Jimmy, e era provável que os chefes de redacção tivessem o cuidado de publicar uma fotografia pouco nítida do rapaz, evitando assim influenciar um julgamento e deixá-los em maus lençóis durante dois anos. Todavia, os jornais usariam todo o material que pudessem e quando pudessem, pelo que disse, em voz baixa:
Telefone ao seu advogado, se assim o desejar, Ms. Cooper. Peça-lhe que vá ter connosco à Yard.
Quem é que o senhor pensa que eu sou? Uma dessas ricaças de Knightsbridge? Eu não tenho nenhum maldito... Jim! Jim! Deixa-me ir.
Jimmy olhou para Lynley pela primeira vez.
Não quero que ela venha. Não vou abrir a boca, se ela lá estiver.
Jimmy! a mãe proferiu o nome dele como um lamento. Virou-se e entrou em casa, cambaleante.
Os repórteres retomaram o papel de coro de uma tragédia grega.
Advogado? Nesse caso, ele é de facto um suspeito.
Não quer confirmar, inspector? Será razoável supor...
E em relação a Maidstone? A colaboração está a funcionar?
Já tem o relatório da autópsia?
Vá lá, inspector, seja simpático. Dê-nos alguma coisa, por amor de Deus.
Lynley ignorou-os. Havers abriu o portão. Ultrapassou os repórteres e abriu caminho para Lynley e para o rapaz. Os repórteres e fotógrafos seguiram-nos até ao Bentley. Como as suas questões continuassem sem resposta, limitaram-se a subir de tom, mudando de registo e de assunto a pouco e pouco.
Tens alguma declaração a fazer?
Mataste o teu pai, miúdo?
O barulho atraiu a atenção da vizinhança, que saiu de suas casas. Alguns cães começaram a ladrar.
Havers murmurou, ofegante, ”Santo Deus” e depois, para Jimmy, ”Cuidado com a cabeça”, quando Lynley abriu a porta traseira do carro. Quando o rapaz entrou e os fotógrafos se comprimiram contra os vidros do carro para registarem cada uma das variações de expressão no rosto dele, Jean Cooper irrompeu por entre eles. Trazia um saco de papel na mão, que agitava freneticamente. Lynley ficou tenso. Havers disse, ”Cuidado, Senhor!” e avançou preparada para interferir.
Jean empurrou um dos repórteres para o lado. ”Vai-te lixar”, gritou para outro. Estendeu o saco a Lynley.
Oiça bem o que lhe vou dizer. Se fizer mal ao meu filho... Se tocar nem que seja num fio de cabelo dele... a voz dela tremeu. Pressionou os nós dos dedos contra os lábios. Eu conheço os meus direitos continuou, ele tem dezasseis anos. Não se atrevam a perguntar-lhe seja o que for sem um advogado ao lado. Nem se atrevam a pedir-lhe que soletre o nome dele inclinou-se para a frente e gritou através do vidro subido do Bentley. Jimmy, tu fica-me de bico calado até o advogado chegar. Estás a ouvir, Jim? Não fales com ninguém.
O filho mantinha o olhar fixo em frente. Jean gritou o nome dele.
Nós podemos arranjar um advogado, Ms. Cooper. Se isso a ajudar. Ela endireitou-se e atirou a cabeça para trás, num gesto que fazia lembrar o filho.
Eu não gosto do vosso género de ajuda.
Tornou a abrir caminho por entre os repórteres e fotógrafos, desatando a correr quando eles começaram a segui-la.
Lynley passou o saco de papel a Havers. Dirigiam-se para norte, ao longo da Manchester Road, quando ela o abriu.
Uma muda de roupa disse, enquanto passava em revista o conteúdo do saco. Dois pedaços de pão com manteiga. Um livro sobre vela. Um par de óculos.
Virou-se para trás e disse, ao passar-lhe o último objecto:
Queres os óculos?
Ele ficou a olhar para ela, brindando-a com uma expressão onde se podia ler, ”Vai-te lixar”. Em seguida desviou os olhos.
Havers tornou a guardar os óculos dentro do saco, que colocou no chão, dizendo, ”Como queiras”. Lynley pegou no telefone do carro e marcou o número da New Scotland Yard. Ao fim de algum tempo, conseguiu localizar O agente Nkata na sala de operações, onde o ruído de fundo campainhas de telefone e um burburinho generalizado lhe permitiu deduzir que pelo menos uma parte dos agentes que ele escalara para o fim-de-semana tinha regressado à sede, uma vez concluídas as suas investigações sobre as idas e Vindas dos principais suspeitos na noite de quarta-feira.
E então, Nkata, o que é que temos?
Em relação a Kensington, nada disse Nkata. Mrs. Whitelaw está fora da jogada.
E mais?
Staffordshire Terrace está atulhado de antigos palacetes reconvertido em blocos de apartamentos. O senhor sabe isso, perfeitamente, inspector.
Sim, eu conheço a rua, Nkata.
Cada um desses palacetes tem entre seis e sete apartamentos. Cada apartamento, por seu turno, é habitado por três, quatro pessoas.
O pesadelo dos investigadores... Suspeito que vou ter direito a um rol de lamentações.
Nada disso. Tudo o que quero dizer é que a mulher está pura como a neve. Falámos com todos os moradores que encontrámos em casa. Ninguém, em Staffordshire Terrace, foi capaz de nos dizer se a tinha visto sair de casa durante a semana passada.
O que não abona muito em favor dos poderes de observação de cada um deles, não é verdade? Uma vez que ela saiu connosco ontem de manhã.
Sim, só que para ir dar uma volta ao Kent à meia-noite, ela teria de levar o carro, certo? Não iria propriamente chamar um táxi para levá-la até lá e depois pedir ao motorista que ficasse à sua espera enquanto ela ateava um incêndio. Também não estou a vê-la a apanhar uma camioneta. Ou o comboio. Pelo menos àquela hora da noite. E é por isso que está pura como a neve.
Continue.
O carro dela fica estacionado numa garagem, nas traseiras da casa, numa ruazinha chamada... deixe-me ver... Phillips Walk. Segundo os rapazes que lá foram espreitar hoje de manhã, é sobretudo uma rua residencial.
Moradias?
Exactamente. Muito juntinhas umas às outras, como as garotas de King’s Cross. Janelas em cima e em baixo. Todas abertas na quarta-feira à noite, porque estava bom tempo.
Deduzo, então, que ninguém terá visto Mrs. Whitelaw sair? Ninguém terá ouvido o carro dela?
Além disso, na noite de quarta-feira, o bebé que vive na moradia mesmo em frente à garagem dela ficou acordado até às quatro da madrugada. Estava adoentado e passou o tempo ao colo da mãe. Esta teria com certeza ouvido o carro, já que passou a noite a passear em frente à janela tentando adormecer a criança. Nada. Por isso, a não ser que Mrs. Whitelaw seja uma especialista em levitação, acho que podemos concluir que ela tem a folha limpa, inspector. Espero que isso não o aborreça muito.
Não tem importância disse Lynley. Essas notícias não me surpreendem. De qualquer maneira, um dos suspeitos já lhe tinha fornecido um alibi.
Acha que ela poderia ser o assassino?
Não, exactamente. Mas a minha política é nunca descurar nenhum pormenor.
Deu por terminado o telefonema, pedindo a Nkata que tivesse a sala de interrogatórios preparada e que comunicasse ao gabinete de imprensa que um rapaz de dezasseis anos, oriundo do East End, iria auxiliar a polícia nas suas investigações. Pousou o telefone e o resto do trajecto até à Yard foi feito em silêncio.
Os jornalistas que se encontravam na Isle of Dogs tinham obviamente telefonado a todos os colegas que pudessem encontrar-se nas imediações de Victoria Street, porque quando Lynley virou para a Broadway Street, onde se encontrava a entrada para o parque de estacionamento da New Scotland Yard, o Bentley foi imediatamente cercado. No meio da multidão de repórteres e fotógrafos que se acotovelava, gritando perguntas e empurrando as máquinas fotográficas na direcção do assento traseiro, encontravam-se também as equipas de televisão, representadas por operadores de câmara agressivos que abriam caminho por entre os colegas da imprensa escrita.
Santo Deus murmurou Havers.
Baixa a cabeça, Jim disse Lynley, avançando lentamente em direcção ao quiosque e à entrada que dava acesso ao parque de estacionamento subterrâneo.
Alcançaram o quiosque, acossados pelos flashes implacáveis de uma centena de fotógrafos e filmados até à exaustão pelos operadores de câmara. A sequência seria, sem dúvida, difundida por todos os canais televisivos no final daquele dia.
Durante todo o percurso, Jimmy Cooper limitara-se a desviar o rosto das câmaras. Não demonstrara nem interesse nem nervosismo quando Lynley e Havers o escoltaram até ao elevador e depois o conduziram ao longo de uma série de corredores. Durante alguns metros foram acompanhados por uma assessora de imprenssa que, bloco-notas em punho, os colocou ao corrente daquilo que eles já sabiam:
Já difundimos o seu comunicado, inspector. Um adolescente de dezasseis anos. Oriundo do East End lançou um rápido olhar na direcção de Jimmy, antes de prosseguir. Deseja acrescentar mais alguma coisa, inspector? A escola que o rapaz frequenta? Número de irmãos? Alusões indirectas à família? Alguma coisa sobre o Kent?
Lynley disse que não com a cabeça.
Certo disse a assessora de imprensa. Os telefones não param de tocar. Parecem alarmes de incêndio. Quando puder, fornece-me outros elementos, combinado?
Desapareceu sem obter resposta.
O agente Nkata juntou-se a eles na sala de interrogatórios, apetrechada com um gravador pronto a funcionar e quatro cadeiras devidamente distribuídas: duas em cada lado de uma mesa de pernas metálicas, outras duas encostadas às paredes em frente à mesa.
Tiramos-lhe as impressões digitais? perguntou Nkata.
Ainda não replicou Lynley.
Indicou ao adolescente em qual das cadeiras deveria sentar-se.
Podemos conversar um bocado, Jimmy? Ou preferes esperar até que a tua mãe mande um advogado?
Jimmy afundou-se na cadeira, as mãos ainda ocupadas com a bainha da T-shirt.
Estou-me nas tintas.
Avise-nos quando ele chegar Lynley pediu a Nkata. Até lá vamos conversando.
Nkata olhou para Lynley com uma expressão de assentimento: a mensagem fora recebida. O inspector iria tentar arrancar o que pudesse ao adolescente antes que o advogado dele chegasse e o obrigasse a calar a boca.
Lynley premiu um botão do gravador, indicou a data e a hora e referiu as pessoas presentes na sala de interrogatórios: ele próprio, a sargento Barbara Havers e James Cooper, o filho de Kenneth Fleming.
Gostarias de ter um advogado presente, Jimmy? tornou a perguntar. Queres esperar? e quando o rapaz reagiu com um encolher de ombros, prosseguiu: Vais ter de responder às nossas perguntas.
Eu não preciso de nenhum advogado, está bem? São todos uns cretinos. Não quero ninguém.
Lynley sentou-se em frente ao adolescente. A sargento Havers instalou-se numa das cadeiras encostadas à parede. Lynley ouviu o ruído produzido por um fósforo ao ser aceso e, um segundo mais tarde, sentiu o cheiro a tabaco. Os olhos de Jimmy pousaram avidamente em Havers, desviando-se logo a seguir. Lynley felicitou interiormente a sargento. O seu tabagismo era-lhes, muitas vezes, bastante útil.
Apetece-te fumar? perguntou.
A sargento Havers atirou os fósforos para cima da mesa.
Queres um cigarro? perguntou ela a Jimmy.
Ele fez que não com a cabeça, mas os pés continuaram a mover-se, irrequietos, e os dedos não largaram a bainha da T-shirt.
É difícil ter de falar à frente da tua mãe disse Lynley. Ela está cheia de boas intenções, mas não deixa de ser mãe, não é? Gostam de andar sempre à volta dos filhos.
Jimmy passou um dedo debaixo do nariz. Os seus olhos detiveram-se na carteira de fósforos e depois desviaram-se.
Nunca nos deixam em paz continuou Lynley. A minha, pelo menos, era assim. E têm uma dificuldade tremenda em meter na cabeça que os filhos cresceram e se tornaram homens.
Jimmy levantou a cabeça o tempo suficiente para afastar o cabelo do rosto. Aproveitou o movimento para lançar um olhar furtivo a Lynley.
Faz sentido que não queiras falar à frente dela. Eu devia ter percebido isto porque só Deus sabe como me custaria ter de dizer fosse o que fosse com a minha mãe presente. Ela não te dá muito espaço de manobra, pois não?
Jimmy coçou o braço. Depois o ombro. Tornou a prender os dedos na bainha da T-shirt.
O que eu gostaria disse Lynley, era que tu nos ajudasses a esclarecer alguns pormenores. Estás aqui para nos ajudar, não estás preso. Sabemos que estiveste no Kent, na casa de campo. Pressupomos que estiveste lá na quarta-feira à noite. Gostaríamos de saber porquê e como é que te deslocaste até lá. A que horas chegaste e a que horas vieste embora. E é tudo. Achas que podes ajudar-nos?
Atrás de si, Lynley ouviu Havers inalar e depois sentiu o fumo do cigarro flutuar na direcção deles. Uma vez mais, enumerou os indícios que lhes tinham permitido concluir que o adolescente estivera no Kent. Terminou com uma pergunta.
Seguiste o teu pai?
Jimmy tossiu. Elevou as pernas dianteiras da cadeira cerca de um ou dois centímetros.
Adivinhaste que ele tencionava ir até lá? Ele disse-te que tinha uns assuntos a resolver. Pareceu-te que estava aborrecido? Ansioso? Foi isso que te fez concluir que ele iria encontrar-se com Gabriella Patten?
Jimmy baixou a cadeira.
Ele tinha consultado um advogado recentemente continuou Lynley. Queria divorciar-se da tua mãe. Imagino que ela devia andar muito perturbada por causa disso. É possível que a tenhas ouvido chorar e que tenhas perguntado a ti próprio qual seria a razão das suas lágrimas. Ela pode ter conversado contigo. Pode ter-te dito...
Fui eu disse Jimmy, decidindo-se, finalmente, a levantar o rosto. Os seus olhos cor de avelã estavam raiados de sangue, mas ele olhou firmemente para Lynley. Fui eu repetiu. Fui eu quem limpou o sebo àquele canalha. Ele merecia morrer.
Lynley ouviu a sargento Havers mexer-se nas suas costas. Jimmy tirou Uma mão do bolso e colocou uma chave sobre a mesa. Vendo que Lynley continuava calado, o adolescente disse: ~~ É disto que anda à procura, não é?
Tirou os cigarros de dentro do outro bolso, um maço amarfanhado do qual conseguiu extrair um cigarro, parcialmente destruído. Acendeu-o com os fósforos de Havers. Só ao fim de quatro tentativas conseguiu fazer lume.
Conta-me o que se passou pediu Lynley.
Jimmy inalou profundamente, segurando o cigarro entre o polegar e o indicador.
Estava convencido que era um durão, o meu pai. Pensava que podia fazer tudo.
Seguiste-o até ao Kent?
Seguia-o para todo o lado. Sempre que me apetecia.
Levaste a moto? Naquela noite?
Eu sabia onde ele morava. Já lá tinha estado antes. O gajo pensava que podia dizer o que lhe passava pela cabeça e que depois ficava tudo bem outra vez. Apesar de toda a merda que nos obrigava a engolir.
O que é que aconteceu naquela noite, Jimmy?
Fora até Lesser Springburn, disse Jimmy, porque o pai lhe tinha mentido e ele queria apanhá-lo com a boca na botija e atirar-lhe a mentira à cara. Ele dissera-lhe que tinham de adiar as férias porque tinha de resolver uns assuntos relacionados com o críquete, assuntos urgentes que não podiam esperar. Qualquer coisa relacionada com os jogos contra a Austrália, um jogador da selecção, um jogo amigável algures... Jimmy não se lembrava bem e, de qualquer maneira, estava-se nas tintas, porque nunca acreditara em nenhuma daquelas tretas.
Ela é que era o verdadeiro problema disse ele. Tinha-lhe telefonado do Kent a dizer que lhe apetecia dar uma boa queca, uma daquelas para ele recordar enquanto estivesse na Grécia comigo. E ele, claro, estava em pulgas para ir ter com ela. Era sempre assim quando ela entrava na jogada. Sempre com o cio, como um cão.
Não se dirigira directamente para Celandine Cottage, pois queria surpreendê-los. Não queria correr o risco de que eles o ouvissem chegar de moto, ou que o vissem subir a álea. Por isso, em vez de virar em Springburn Road, como sempre fazia, seguiu em frente em direcção à aldeia. Estacionou atrás do pub e empurrou a moto para o meio do arbusto que ficava na berma do jardim da aldeia. Depois seguiu a pé pelo atalho.
Já conhecias a existência desse caminho, então? perguntou LynleyClaro, quando eram crianças iam muitas vezes passar o fim-de-semana ao Kent. No tempo em que o pai deles morava lá e jogava na equipa do Kent. Ele e Shar tinham explorado os arredores juntos. Ambos sabiam da existência daquele caminho de terra. Toda a gente sabia.
E naquela noite? insistiu Lynley. Quando chegaste a Celandine Cottage?
Saltara o muro que ficava perto da casa, explicou. Aquele que dava para o cercado que pertencia à quinta situada a leste. Tinha caminhado ao longo do cercado até alcançar os terrenos de Celandine Cottage. Aí saltara por cima da vedação e aterrara ao fundo do jardim.
A que horas foi isso?
Não sabia. Mas fora depois do encerramento do pub de Lesser Springburn Pubs. quando lá chegara não havia carros no parque de estacionamento. Deixara-se ficar ao fundo do jardim, disse, pensando neles.
Em quem? perguntou Lynley.
Nela, respondeu. Na loura. E no pai. Esperava que estivessem a tirar o melhor partido da queca que estavam a dar, disse. Esperava que estivessem a suar que nem porcos, porque ele acabara de decidir naquele preciso momento que iria ser a última.
Conhecia o sítio onde a chave sobressalente estava guardada, na cabana do jardim, por baixo do vaso de cerâmica. Fora buscá-la. Abrira a porta da cozinha. Pegara fogo ao cadeirão. Regressara a correr para junto da moto e voltara para casa.
Eu queria que morressem os dois esmagou o cigarro no cinzeiro e cuspiu uma partícula de tabaco para cima da mesa. Hei-de apanhar a cabra um dia destes. Hão-de ver se não vou.
Como é que sabias que o teu pai estava lá? Seguiste-o, quando ele saiu de Kensington?
Não precisei, pois não? Encontrei-o à mesma.
Viste o carro dele? Estacionado em frente à casa? Ou na álea? Jimmy lançou-lhe um olhar incrédulo. O carro do pai era sagrado. Mais
importante ainda do que o pirilau. Ele nunca o teria deixado cá fora, sobretudo quando tinha uma garagem por perto. O rapaz procurou o maço de tabaco dentro do bolso e conseguiu extrair outro cigarro amarfanhado do seu interior. Acendeu-o sem dificuldade. Vira o pai através da janela da cozinha, informou, minutos antes de ele apagar a luz e subir ao primeiro andar para ir ter com ela.
Fala-me do incêndio propriamente dito pediu Lynley. Do incêndio no cadeirão.
O que é que tem? ripostou Jimmy.
Diz-me como é que o ateaste?
Usara um cigarro. Acendera-o. Enfiara-o no maldito cadeirão. Esgueirara-se, depois, pela cozinha e regressara a casa.
Conta-me tudo, passo a passo, se não te importas insistiu Lynly- Estavas a fumar na altura?
Não. Claro que não estava a fumar na altura. O que é que eles pensavam? Que ele era um imbecil qualquer?
Era um igual a este? Um PS? Exactamente. Um PS.
- E tu acendeste-o? perguntou Lynley. És capaz de me mostrar como é que o fizeste, por favor?
Jimmy afastou a cadeira da mesa.
Mostrar-lhe o quê? perguntou bruscamente.
Como é que acendeste o cigarro.
Porquê? Nunca acendeu um cigarro?
Gostaria de ver como é que tu o fazes, se não te importas.
Como é que acha que eu acendo um cigarro?
Não sei. Usaste um isqueiro?
Claro que não. Fósforos.
Como estes?
Jimmy esticou o queixo na direcção de Havers, no rosto uma expressão que parecia querer dizer ”com essa não me enganas tu”.
Esses são dela.
Eu sei que são. O que te estou a perguntar é se usaste uma carteira de fósforos, uma vez que não te serviste de um isqueiro.
O rapaz baixou a cabeça. Fixou a sua atenção no cinzeiro.
Os fósforos eram iguais a estes? insistiu Lynley.
Vá-se lixar murmurou ele.
Levaste-os contigo ou usaste os fósforos da casa do Kent?
Ele merecia disse Jimmy, como se estivesse a falar consigo mesmo. Merecia e ela há-de ser a próxima. Vai ver se não a apanho.
Alguém bateu à porta da sala de interrogatórios. A sargento Havers foi abri-la. Seguiu-se uma conversa em surdina. Lynley observava Jimmy Cooper em silêncio. O rosto do adolescente ou, pelo menos, o pouco que Lynley conseguia ver ostentava uma expressão de total indiferença, como se fosse feito de cimento. Lynley perguntou a si próprio quanta dor, culpa e sofrimento seriam necessários para chegar àquele grau de frieza e desprendimento.
Senhor? chamou Havers da porta. Lynley foi ter com ela. Nkata estava no corredor.
Os homens destacados para Little Venice e para a Isle of Dogs acabaram de chegar informou ela. Estão na sala de operações. Quer que eu vá reunindo as novidades?
Lynley disse que não com a cabeça.
Tragam-lhe qualquer coisa para comer pediu a Nkata. E tirem-lhe as impressões digitais. Façam os possíveis para que ele entregue as botas de livre vontade. Espero que o faça. Além disso, vamos precisar de uma amostra para o teste de ADN.
Não vai ser fácil disse Nkata.
O advogado dele já chegou?
Ainda não.
Nesse caso, vejam se conseguem persuadi-lo a falar por vontade própria antes de o pormos em liberdade.
Pô-lo em liberdade? interveio Havers rapidamente. Mas’ins pector, ele acabou de nos dizer...
Basta que o advogado tome conta dele... prosseguiu Lynley, como ela não tivesse aberto a boca.
Nkata concluiu a ideia:
Para termos sarilhos à perna.
Trabalhem depressa. Mas, Nkata... acrescentou, enquanto o agente encostava o ombro à porta mantenha o rapaz calmo.
Entendido.
Nkata entrou na sala de interrogatórios. Lynley e Havers dirigiram-se para a sala de operações, que fora instalada não muito longe do gabinete de Lynley- Nas paredes estavam pendurados mapas, fotografias e gráficos. Havia pastas espalhadas sobre secretárias. Seis agentes quatro homens e duas mulheres tinham-se instalado junto de telefones, armários de arquivo e em volta de uma mesa redonda coberta de jornais.
Isle of Dogs disse Lynley quando entrou na sala, atirando o casaco para as costas de uma cadeira.
Uma das agentes respondeu à chamada, o auscultador de um telefone sobre o seu ombro, enquanto esperava que alguém atendesse no outro lado da linha.
O rapaz entra e sai a qualquer hora da noite, quase todos os dias da semana. Tem uma moto. Sai pelas traseiras e atravessa ruidosamente a álea que passa por entre as casas, puxando pelo motor e fazendo soar a buzina. Nenhum dos vizinhos foi capaz de dizer que o tinha visto sair na quarta-feira à noite, uma vez que está fora quase todas as noites e todas elas se parecem umas com as outras. Talvez sim, talvez não, com mais gente a inclinar-se para o sim.
O companheiro dela, vestido com umas calças de ganga desbotadas e uma camisola com as mangas cortadas, disse:
Um autêntico rufia, é o que ele é. Discussões com os vizinhos. Gosta de provocar garotos mais novos. É malcriado para a mãe.
E a mãe? perguntou Lynley.
Trabalha em Billingsgate Market. Sai para o emprego por volta das três e quarenta da madrugada e volta para casa cerca do meio-dia.
E na quarta-feira à noite? Quinta de manhã?
Nunca faz barulho, a não ser quando põe o carro a trabalhar disse a agente. Por isso, os vizinhos não foram capazes de nos adiantar muitos pormenores sobre ela, quando lhes perguntámos sobre quarta-feira. Fleming visitava-os regularmente, no entanto. Todas as pessoas com quem falámos confirmaram isso.
Ia ver os filhos?
- Não. Aparecia à tarde, por volta da uma hora, em alturas em que os miudos não estavam em casa. Em geral, ficava durante duas horas ou mais. Tinha passado por lá no início da semana, aliás. Segunda ou terça, talvez.
Jean foi trabalhar na quinta-feira?
A agente fez sinal com o auscultador.
Estou a tentar sabê-lo. Até agora, não consegui descobrir ninguém que nos confirmasse esse dado. Billingsgate está fechado até amanhã.
Ela afirma que estava em casa na quarta-feira à noite disse Havers a Lynley. Mas não há ninguém que o corrobore, porque estava sozinha com os filhos. E estes estavam a dormir.
E Little Venice? inquiriu Lynley.
Em cheio respondeu outro agente. Estava sentado à mesa com o companheiro de equipa, ambos disfarçados de turistas de forma a diluírem-se facilmente na paisagem. Faraday saiu da lancha por volta das dez e meia, na quarta-feira à noite.
Isso foi o que ele nos disse ontem.
Só que não é tudo: Olivia Whitelaw acompanhou-o. Dois dos vizinhos viram-nos sair, já que é impossível tirar Whitelaw de dentro da lancha sem atrair as atenções.
Falaram com alguém perguntou Lynley.
Não, mas os que testemunharam esta saída acharam-na esquisita. E por duas razões sublinhou as palavras com os dedos, primeiro o polegar e depois o indicador. Um, não levaram os cães com eles, o que não é habitual, segundo todos aqueles com quem falámos; dois... e neste momento sorriu, revelando um espaço acentuado entre os dentes da frente, de acordo com um tipo chamado Bidwell só regressaram a casa por volta das cinco e meia da manhã. A hora a que ele próprio regressou da inauguração de uma exposição, em Windsor, que se transformou num cocktail e depois naquilo que Bidwell classificou como ”um tremendo bacanal. Mas, peço-vos, nem uma palavra sobre o assunto à minha mulher, rapazes”.
Ora aí está uma reviravolta interessante disse Havers, dirigindo-se a Lynley. De um lado, uma confissão. Do outro, um chorrilho de mentiras onde estas não eram necessárias. O que é que acha de tudo isto, senhor?
Lynley pegou no casaco.
É o que lhes vamos perguntar.
Assistido por um segundo agente, Nkata permaneceu na Yard para atender as chamadas telefónicas. Lynley pediu-lhe, ainda, que confiasse Jimmy Cooper aos cuidados do seu advogado, quando este chegasse. O adolescente entregara as Doc Martens a Nkata sem protestar e deixara-o tirar-lhe as impressões digitais e a fotografia. Quando o agente lhe pedira autorização para cortar dois fios de cabelo, reagira com um mero encolher de ombros. Das duas uma: ou não compreendia o alcance do que estava a passar-se com ele, ou não se importava. Nkata recolhera, então, os fios de cabelo, guardando-os depois dentro de uma embalagem própria, que etiquetara.
Passava já das sete da tarde quando Lynley e Havers atravessaram a ponte de Warwick Avenue e viraram para Blomfield Road. Encontraram um local onde estacionar o carro junto de uma das elegantes moradias vitorianas que davam para o canal. Em passo apressado, percorreram a distância que os separava das escadas e do caminho que os conduziria a Browning’s Pool.
No tombadilho da lancha de Faraday não se via vivalma, embora a porta da cabina estivesse aberta e os rumores de um programa de televisão ou de rádio chegassem até eles, misturados com o crepitar característico de uma frigideira. Lynley bateu no mirante de madeira e chamou Faraday pelo nome. O rádio ou a televisão foram apressadamente desligados no momento em que o locutor anunciava, à Grécia na companhia do seu filho, que deveria festejar o seu décimo sexto aniversário na sexta-feira...»
Um instante mais tarde, o rosto de Chris Faraday surgiu à porta da cabina, abaixo deles. O corpo dele bloqueava as escadas. Os olhos estreitaram-se quando reconheceu Lynley.
- O que é que se passa? - perguntou. - Estou a fazer o jantar.
- Precisamos de clarificar um determinado número de pontos - explicou Lynley, descendo os degraus mesmo sem ser convidado.
Faraday levantou uma das mãos como se quisesse impedir Lynley de continuar.
- Eh, lá! Isso não pode esperar? - Não iremos roubar-lhe muito tempo.
Soltando um suspiro contrariado, Faraday acabou por se afastar para deixá-los passar.
- Mudou a decoração, pelo que vejo - disse Lynley, referindo-se ao conjunto de cartazes casualmente pendurados nas paredes forradas a madeira de pinho. - Não estavam aqui ontem, pois não? A propósito, aproveito para lhe apresentar a sargento, Barbara Havers.
Examinou os cartazes, demorando-se em frente a um mapa da Grã-Bretanha, dividido em sectores, o que lhe dava um aspecto bizarro.
- O que é que se passa? - tornou a perguntar Faraday. - Tenho o jantar ao lume. Vai acabar por se queimar.
- Nesse caso, faria melhor em baixar ligeiramente o lume. Miss Whitelaw está em casa? Gostaríamos de conversar com ela também.
Por momentos, pareceu-lhes que Faraday ia protestar. Finalmente, porém, virou-se e desapareceu dentro da cozinha. Ouviram uma porta abrir-se e a voz sussurrada de Faraday. A dela soou mais nitidamente. «Chris! O quê? Chris!» Ele acrescentou mais qualquer coisa. A resposta dela foi abafada pelos latidos dos cães. Seguiram-se outros ruídos: o som de metal, o rumor de passos hesitantes no soalho, o roçar de garras caninas sobre um chão de linóleo.
Dois minutos mais tarde, Olivia Whitelaw juntou-se a eles, movendo-se em passo meio arrastado com a ajuda do andarilho, o rosto atingido por uma palidez extrema. Atrás dela, Faraday atarefava-se na cozinha, levantando tampas de tachos, pegando em caçarolas, abrindo e fechando armários, ordenando aos cães que se afastassem com expressões irritadas. Olivia reagiu com um, ”Toma cuidado, Chris”, sem desviar as suas atenções de Havers que deambulava ao longo da parede, lendo os cartazes.
Estava a descansar um pouco. Olivia informou Lynley. Que há assim de tão urgente que não possa ficar para depois?
É sobre a noite de quarta-feira. A sua história não é muito clara disse Lynley. Parece-me que se esqueceu de referir alguns pormenores
Mas o que é que se passa, afinal?
Faraday saiu da cozinha, seguido de perto pelos cães, um pano de loiça nas mãos. Depois de ter secado as mãos, atirou o pano para cima da mesa, que foi aterrar em cima de um dos pratos colocados para o jantar. Aproximou-se de Olivia e quando se preparava para a ajudar a instalar-se numa das cadeiras, ela reagiu com brusquidão, dizendo: ”Eu consigo desenvencilhar-me sozinha.” Empurrou o andarilho para o lado. O beagle mal teve tempo de se desviar com um latido assustado, indo juntar-se ao rafeiro que farejava os sapatos da sargento Havers.
A noite de quarta-feira? perguntou Faraday.
Sim. A noite de quarta-feira. Faraday e Olivia entreolharam-se.
Já vos disse começou ele. Fui a uma festa em Clapham.
Pois disse. Não se importaria de ser mais específico acerca dessa festa?
Lynley apoiou o peso do corpo no braço da cadeira em frente àquela onde Olivia estava sentada. Havers, por seu turno, escolheu o banco que estava perto da mesa de carpinteiro. Folheou o bloco-notas até encontrar uma página em branco.
O que é que quer saber, exactamente?
Era em honra de quem, essa festa?
De ninguém. Era só um grupo de tipos que decidiram juntar-se para beber uns copos?
E quem são esses tipos?
Quer que lhe diga os nomes deles? Faraday massajou a nuca, como se ela estivesse tensa. Está bem.
Franziu o sobrolho e, lentamente, começou a enumerar um chorrilho de nomes, hesitando num ou noutro e fazendo comentários do género, ”Oh, claro. Também lá estava um tipo chamado Geoff. Nunca o tinha visto antes”.
E a morada em Clapham? perguntou Lynley.
Ficava em Orlando Road, disse-lhes. Aproximou-se da mesa de carpinteiro e retirou um velho caderno de moradas, escondido no meio de um conjunto de livros em mau estado. Folheou-o e depois leu uma morada:
É a casa de um tipo chamado David Prior. Quer que lhe dê o número de telefone?
Sim, por favor.
Faraday ditou o número e Havers anotou-o. Tornou a enfiar o caderno de moradas no meio dos outros livros e regressou para junto de Olivia, sentando-se, finalmente, numa cadeira ao lado dela.
Havia mulheres presentes nessa festa? perguntou Lynley.
Não, claro que não. Era uma reunião só para homens. Suponho que as mulheres não teriam gostado muito da festa. Era uma daquelas festas, sabe...
Uma daquelas festas?
Faraday lançou um olhar embaraçado na direcção de Olivia.
Vimos uns filmes. Uma data de tipos que se tinham juntado para beber uns copos, fazer barulho, dizer umas piadas e dar umas boas gargalhadas. Nada de mal.
E não havia nenhuma mulher presente? Nenhuma mesmo?
Não, nenhuma. Suponho que nenhuma mulher acharia graça àquele tipo de filmes.
Eram filmes pornográficos?
Eu não iria tão longe. Tinham pretensões um pouco mais artísticas, apesar de tudo.
Olivia observava-o atentamente. Ele sorriu e disse:
Livie, tu sabes que não teve qualquer significado. A Ama Marota. A Menina do Papá. O Buda de Banguecoque.
Foram esses os filmes que viram? tentou clarificar Havers, lápis suspenso no ar.
Ao ver que ela se preparava para escrever os títulos, Faraday tomou a iniciativa de referir os títulos dos outros, as faces tingidas de carmesim. Quando terminou, acrescentou:
Alugámo-los no Soho. Num clube de vídeo em Berwick Street.
E não havia nenhuma mulher presente repetiu Lynley. Tem a certeza? Em nenhum momento?
Claro que tenho a certeza. Porque é que insiste em perguntar-me isso?
A que horas chegou a casa?
A casa? Faraday lançou um olhar interrogador a Olivia. Já lhe disse. Tarde. Pouco depois das quatro da manhã, acho eu.
E você ficou cá sozinha? Lynley virou-se para Olivia. Não saiu, nem ouviu Mr. Faraday entrar em casa?
Exactamente, inspector. Por isso, se não se importa, gostaria que Déssemos oportunidade de digerir o nosso jantar. Pode ser?
Lynley abandonou a cadeira onde estava sentado e dirigiu-se à janela onde, depois de afastar as persianas, observou demoradamente Browning Island, na margem oposta do lago.
Não havia, então, mulheres presentes na festa repetiu.
Mas onde é que quer chegar com isso? Já lhe disse que não.
Miss Whitelaw não o acompanhou?
Até prova em contrário, acho que ainda conto como mulher, inspector interveio Olivia.
Nesse caso, para onde é que a senhora e Mr. Faraday se dirigiram às dez e meia da noite, na quarta-feira? E, mais importante do que isso, de onde é que vinha quando regressou por volta das cinco da madrugada seguinte? Isto, obviamente, se for verdade que não estava na... reunião só para homens foi o que disse, certo?
Nem um nem outro falaram durante alguns instantes. Um dos cães o rafeiro de três patas pôs-se de pé, vacilante, e coxeou na direcção de Olivia. Colocou a cabeça sobre o joelho dela. Olivia deixou cair a mão sobre a cabeça do animal, mas não lhe fez qualquer festa.
Faraday não olhou nem para a polícia, nem para Olivia. Em vez disso, pegou no andarilho que Olivia afastara para o lado. Endireitou-o, deixando deslizar a mão ao longo da estrutura de alumínio. Por fim, decidiu-se a olhar na direcção de Olivia. Era óbvio que a decisão de clarificar a situação lhe cabia a ela.
Bidwell disse, arquejante, aquele bufo incorrigível. Virou a cabeça para Faraday. Deixei os meus cigarros ao lado da cama. Não te importas de...
Não, claro que não.
Pareceu aliviado por poder sair dali, ainda que apenas durante os segundos necessários para ir buscar o tabaco. Regressou com um maço de Marlboro, um isqueiro e uma lata de conserva onde apenas restava metade do rótulo. Colocou esta última entre os joelhos. Puxou um cigarro para fora do maço e acendeu-o. Ela falou sem retirar o cigarro dos lábios. Quando precisava de sacudir a cinza, deixava que a mesma caísse negligentemente sobre a camisola de lã preta.
Chris ajudou-me a sair disse ela. Foi para a festa. Veio buscar-me quando a festa acabou.
Sair? insistiu Lynley. Das dez da noite às cinco horas da manhã seguinte?
Exacto. Sair. Das dez da noite às cinco horas da manhã. Provavelmente mais próximo das cinco e meia. Tenho a certeza que Bidwell teria ficado radiante por poder informá-lo, se tivesse estado suficientemente sóbrio para conseguir ler as horas no seu relógio de pulso.
Foi a uma festa também?
Riu.
Enquanto os homens se babavam diante dos filmes pornográficos,
as miúdas divertiam-se no meio dos tachos e panelas? Não, não fui a festa nenhuma.
Nesse caso, importa-se de nos dizer onde estava.
Também não estive no Kent, se é aí que quer chegar.
Será que há alguém que possa confirmar o local onde se encontrava na quarta-feira à noite?
Encheu os pulmões de fumo e fitou-o através das volutas que formavam um véu em volta dela, ocultando-a de forma quase tão eficaz como na véspera. Mais ainda, talvez, já que ela teimava em deixar o cigarro suspenso nos lábios.
Miss Whitelaw começou Lynley.
Estava cansado. Cheio de fome. Estava a fazer-se tarde. E o jogo do gato e do rato durara já tempo mais que suficiente.
Talvez nos sentíssemos todos mais à vontade, se esta conversa decorresse noutro sítio.
Sentada à mesa de carpinteiro, Havers fechou o bloco-notas com um ruído seco.
Livie disse Faraday.
Muito bem.
Apagou o cigarro e começou a brincar com o maço. Este acabou por escorregar por entre os dedos dela e caiu no chão. ”Deixa estar”, disse ela quando Faraday fez menção de se baixar para o apanhar.
Estive com a minha mãe disse ela a Lynley.
Lynley não sabia muito bem que resposta deveria esperar da parte dela, mas aquilo não era com certeza o que esperava ouvir.
Com a sua mãe repetiu.
Isso mesmo. Já a conhece, sem dúvida. Miriam Whitelaw, uma mulher de poucas falas, mas que tem sempre a palavra certa no momento certo. Staffordshire Terrace, número dezoito. Uma velha relíquia vitoriana. Bolorenta. A casa, não a minha mãe, claro. Embora, a minha mãe ocupe um honroso segundo lugar no género velho e bolorento. Saí para ir visitá-la às dez e meia, na quarta-feira à noite, quando Chris foi ter com os amigos. Na manhã seguinte passou para me ir buscar.
Havers tornou a abrir o bloco-notas. Lynley ouvia o lápis dela arranhando furiosamente o papel.
Porque é que não me contou isso antes? perguntou ele.
A pergunta que realmente o intrigava era: por que razão é que a própria Miriam Whitelaw não tinha mencionado o facto?
Porque não tinha nada a ver com Kenneth Fleming. Com a vida dele, com a sua morte, com nada que estivesse relacionado com ele. Tinha a ver comigo. Com Chris. Com a minha mãe. Não lhe falei em nada, porque era algo que não lhe dizia respeito. E ela não lhe disse nada, porque quis proteger a minha privacidade. A pouca que me resta, melhor dizendo
A vida privada é algo que não existe quando se trata da investigação de um homicídio, Miss Whitelaw.
Oh, merda! Que treta mais pomposa, arrogante e mesquinha. Você” impinge essa a toda a gente? Eu não conhecia Kenneth Fleming. Nunca me encontrei com ele, sequer.
Nesse caso, suponho que estivesse ansiosa por eliminar quaisquer suspeitas em relação à sua pessoa. Com a morte dele, você torna-se a herdeira universal da fortuna da sua mãe.
Mas afinal que número é este? Você é sempre assim tão pateta? Ou isto é um exclusivo em minha honra? Levantou a cabeça para olhar para o tecto. Ele viu-a pestanejar. Engolir em seco. Faraday pousou a mão no braço da cadeira dela, mas não a tocou. Olhe para mim disse. Era como se falasse entredentes. Baixou a cabeça e os seus olhos cruzaram-se com os de Lynley. Olhe bem para mim e ponha a cabeça a funcionar. Eu estou-me nas tintas para o testamento da minha mãe. Não estou interessada na casa dela, no dinheiro dela, nas acções dela, nos títulos, nos negócios, em nada que lhe pertença. Estou a morrer, percebeu? Será que isso lhe diz alguma coisa? Consegue encaixar esta pequena peça, por mais que ela destrua o seu precioso caso? Estou a morrer. A morrer. Por que razão haveria eu de estar interessada em limpar o sebo a Kenneth Fleming e em encontrar o caminho de volta para o testamento da minha mãe? Restam-me dezoito meses de vida. Ela pode muito bem viver mais vinte anos. Eu não sou herdeira nenhuma, nem dela nem de ninguém. E muito menos de nada. Entendeu?
Começara a tremer. As pernas dela embatiam na cadeira onde estava sentada. Faraday murmurou o nome dela. Ela reagiu com brusquidão, exclamando ”Não!”, sem nenhuma justificação aparente. Mantinha o braço esquerdo junto ao corpo. O rosto adquirira um certo brilho no decorrer da conversa e agora parecia reluzir ainda mais.
Fui visitá-la na quarta-feira à noite, porque sabia que Chris tinha uma festa e não podia ir comigo. Porque eu não queria que Chris fosse comigo. Porque precisava de estar a sós com ela.
A sós com ela? perguntou Lynley. E Fleming? Ele poderia muito bem estar em casa nessa noite?
Ele não tinha qualquer importância para mim. O que eu não conseguia suportar era que Chris me visse rastejar aos pés da minha mãe. Mas se Kenneth assistisse à cena, se estivesse presente na sala, então talvez as minhas hipóteses de sucesso aumentassem. Na minha maneira de ver as coisas, a minha mãe ficaria radiante por poder representar o papel de Dama Misericordiosa e Magnânima em frente a Kenneth. Nem lhe passaria pela cabeça
pôr-me no olho da rua, se ele estivesse em casa.
E quando percebeu que ele não estava? inquiriu Lynley.
Descobri que não tinha importância. A minha mãe viu... Olivia virou a cabeça na direcção de Faraday. Aparentemente, ele achou que ela precisava de encorajamento, pois dirigiu-lhe um aceno de cabeça e olhou para ela com uma expressão afável. A minha mãe viu-me. Neste estado. Talvez pior, porque era mais tarde, noite dentro, e eu fico pior durante a noite. E aconteceu que, no fim de contas, não precisei de rastejar aos pés dela. Não tive de lhe pedir nada.
Foi essa a razão que a levou a visitá-la? Foi fazer-lhe um pedido?
Sim, essa foi a razão.
O quê?
Não tem nada a ver com isto. Com Kenneth. Com a morte dele. Só tem a ver comigo e com a minha mãe. E com o meu pai, também.
Seja como for, é um elemento primordial. E vai ser necessário que nos diga de que se trata. Lamento muito insistir neste ponto, sei que é difícil para si.
Não. O senhor não lamenta coisa nenhuma abanou a cabeça de um lado para o outro, numa lenta negativa. Parecia demasiado cansada para continuar a lutar contra ele. Eu pedi disse ela. A minha mãe concordou.
Concordou com o quê, Miss Whitelaw?
Em juntar as minhas cinzas às do meu pai, inspector.
CAPÍTULO 17
Barbara Havers experimentou uma deliciosa sensação de bem-estar ao esticar o braço para a travessa segundos antes de Lynley, para se apoderar da última argola de calamari fritti. Ponderou por breves instantes sobre qual dos molhos deveria escolher para aí mergulhar a lula: marinara, azeite virgem e ervas aromáticas, ou alho e manteiga. Escolheu o segundo, perguntando qual dos dois seria a metade virgem: a azeitona ou o azeite. Aliás, como é que algum dos dois poderia ser virgem?
Quando Lynley lhe sugerira que começassem por partilhar os calamari, ela opinara: ”Excelente ideia, inspector. Venham lá, então, esses calamari.” Depois, consultara a ementa, esforçando-se por aparentar o ar de sofisticação adequado. Ora, em matéria de cozinha italiana, a sua experiência mais significativa resumira-se ao ocasional prato de spaghetti bolognese, engolido à pressa numa anónima cafetaria. O esparguete de pacote e a bolonhesa de lata tinham sido atirados para dentro de um prato onde um aro de azeite cor de ferrugem rapidamente se formara em torno da comida, um prenúncio de fortes perturbações digestivas.
O spaghetti bolognese não fazia parte da ementa que acabara de consultar. E a designação dos pratos não estava traduzida em inglês. Se tivesse pedido, certamente que lhe teriam trazido uma ementa em língua inglesa, mas...
Elizabeth George
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