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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


UMA FORTUNA PERIGOSA / Ken Follett
UMA FORTUNA PERIGOSA / Ken Follett

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

UMA FORTUNA PERIGOSA

Primeira Parte

  

 

No dia da tragédia, os meninos da Windfield School haviam sido confinados a seus quartos.

Era um sábado quente em maio, e normalmente passariam a tarde no campo do lado sul, alguns jogando críquete e outros assistindo da beira ensombreada de Bishop's Wood. Mas um crime fora cometido. Seis soberanos de ouro foram roubados da escrivaninha de Mr. Offerton, o mestre de latim, e a escola inteira se encontrava sob suspeita. Todos os meninos ficariam detidos em seus quartos até que o ladrão fosse descoberto.

Micky Miranda sentava a uma mesa escalavrada com as iniciais de gerações de estudantes entediados. Tinha nas mãos uma publicação do governo, Equipment of infantry.

As gravuras de espadas, mosquetes e rifles costumavam fasciná-lo, mas agora sentia calor demais para se concentrar. No outro lado da mesa, seu colega de quarto, Edward Pilaster, levantou os olhos de um livro de exercícios de latim. Copiava a tradução de Micky de uma página de Plutarco, e agora apontou um dedo sujo de tinta, e disse.

- Não consigo ler esta palavra. Micky deu uma olhada.

- Decapitado - disse ele. - É a mesma palavra em latim, decapitare. Micky achava o latim fácil, talvez porque muitas palavras eram parecidas com o espanhol, a sua língua materna.

A pena de Edward continuou a deslizar sobre o papel. Micky levantou-se, irrequieto, e foi até a janela aberta. Não havia qualquer brisa. Ele olhou ansioso através do pátio do estábulo para o bosque. Havia um poço ensombreado numa pedreira abandonada na extremidade norte de Bishop's Wood. A água era fria e profunda...

- Vamos nadar - propôs ele, subitamente.

- Não podemos - respondeu Edward.

- Poderíamos sair pela sinagoga.

A "sinagoga" era o quarto ao lado, partilhado por três garotos judeus A Windfield School ensinava teologia, mas era tolerante com diferenças religiosas, motivo pelo qual atraía os pais judeus, a família metodista de Edward e o pai católico de Micky. Mas apesar da atitude oficial da escola os garotos judeus sofriam certa perseguição. Micky acrescentou:

- Passamos pela janela deles, descemos para o telhado da lavanderia, baixamos para o chão pelo lado sem janelas da estrebaria e corremos para o bosque.

Edward parecia assustado.

- É a Listradora se você for apanhado.

A Listradora era a vara de freixo usada pelo diretor, dr. Poleson. A punição por violar o castigo era de 12 golpes dolorosos. Micky já fora açoitado uma vez pelo dr. Poleson, por jogar a dinheiro, e ainda estremecia quando pensava a respeito. Mas a possibilidade de ser apanhado era remota, e a perspectiva de se despir e entrar nu no poço era tão imediata que ele quase podia sentir a água fria em sua pele suada.

Olhou para o seu companheiro de quarto. Edward não era muito apreciado na escola: era preguiçoso demais para ser um bom aluno, desajeitado demais para se sair bem nos esportes, e egoísta demais para fazer muitos amigos. Micky era o único amigo de Edward, que o odiava sempre que ele passava algum tempo na companhia de outros garotos.

- Vou perguntar se Pilkington quer ir - disse Micky, encaminhando-se para a porta.

- Não faça isso! - exclamou Edward, nervoso.

- Por que não? - indagou Micky. - Você está apavorado.

- Não estou apavorado - protestou Edward, implausível. - Preciso acabar meu dever de latim.

- Então acabe, enquanto Vou nadar com Pilkington.

Edward pareceu obstinado por mais um momento, depois acabou cedendo, embora relutante.

- Está bem, irei com você.

Micky abriu a porta. Havia um rumor baixo por todo o prédio, mas não se via qualquer bedel no corredor. Ele correu para o quarto ao lado. Edward seguiu-o.

- Olá, hebreus - disse Micky.

Dois dos meninos jogavam cartas à mesa. Fitaram-no por um momento, depois continuaram seu jogo, sem dizerem nada. O terceiro, Fatty Greenbourne, comia um bolo. A mãe lhe mandava comida o tempo todo.

- Olá, vocês dois - disse ele, afável. - Querem bolo?

- Por Deus, Greenbourne, você come como um porco! - disse Micky. Fatty deu de ombros e tornou a se concentrar no bolo. Sofria muitas zombadas, por ser gordo e judeu ainda por cima, mas nada parecia afetálo. Diziam que seu pai era o homem mais rico do mundo, e talvez isso o tornasse imune aos insultos, pensou Micky.

Indo até a janela, Micky abriu-a, olhou ao redor. O pátio do estábulo estava deserto. Fatty perguntou:

- O que vocês vão fazer?

- Vamos nadar - respondeu Micky.

- Serão açoitados.

- Sei disso - murmurou Edward, lamuriento.

Micky sentou no peitoril da janela, virou de barriga para baixo, esticou-se de costas e caiu pelos poucos centímetros que o separavam do telhado inclinado da lavanderia.

Teve a impressão de ouvir uma telha partir, mas o telhado agüentou seu peso. Levantou o rosto e divisou Edward a fitá-lo na maior ansiedade.

- Desça logo! - exortou-o Micky.

Ele escorregou pelo telhado e aproveitou um cano de escoamento conveniente para chegar ao chão. Um minuto depois, Edward estava a seu lado. Micky espiou pelo canto da parede da lavanderia. Não havia ninguém à vista Sem mais hesitação, ele disparou pelo pátio do estábulo e entrou no bosque. Continuou a correr entre as árvores até julgar que ninguém mais podia avistá-lo dos prédios da escola, e só então parou para descansar. Edward parou ao seu lado.

- Conseguimos! - exclamou Micky. - Ninguém nos viu!

- Provavelmente seremos apanhados na volta - murmurou Edward, sombrio.

Micky sorriu. Edward tinha uma típica aparência inglesa, cabelos louros lisos e olhos azuis, um nariz grande como uma faca de lâmina larga. Era grande, de ombros largos, forte mas sem muita coordenação. Não tinha a menor noção de elegância, e usava suas roupas de qualquer maneira. Ele e Micky tinham a mesma idade, 16, mas sob outros aspectos eram muito diferentes: Micky tinha cabelos pretos crespos e olhos escuros, era meticuloso com sua aparência e detestava andar desarrumado ou sujo.

- Confie em mim, Pilaster - disse Micky. - Não cuido sempre de você?

Edward sorriu, apaziguado.

- Está certo. Vamos embora.

Seguiram por uma trilha quase indiscernível através do bosque. Estavá um pouco mais fresco sob as folhas das faias e olmos, e Micky começou a se sentir melhor.

- O que vai fazer neste verão? - perguntou a Edward.

- Costumamos ir para a Escócia em agosto.

- Sua família tem uma caixa de tiro ali?

Micky absorvera o jargão das classes superiores inglesas e sabia que "caixa-de-tíro" era o termo correto para indicar uma cabana de caça, mês mo que a cabana em questão fosse um castelo de 50 cômodos.

- Alugamos uma propriedade - explicou Edward. - Mas não caçamos nada. Meu pai não é um desportista.

Micky percebeu um tom defensivo na voz de Edward e tentou analisar seu significado. Sabia que a aristocracia inglesa gostava de atirar em aves em agosto e caçar raposas durante todo o inverno. Também sabia que os aristocratas não enviavam seus filhos para aquela escola. Os pais dos meninos de Windfield eram homens de negócios e engenheiros, em vez de condes e bispos, e homens assim não tinham tempo a desperdiçar com caçadas. Os Pilasters eram banqueiros, e quando Edward dizia "Meu pai não é um desportista" estava reconhecendo que sua família não ocupava uma posição muito alta na hierarquia social.

Micky achava divertido que os ingleses respeitassem mais os ociosos do que as pessoas que trabalhavam. Em seu país, o respeito maior não era concedido nem aos nobres sem objetivos, nem aos homens de negócios que trabalhavam com afinco. O povo de Micky respeitava o poder acima de tudo. Se um homem tinha o poder de controlar outros - para alimentá-los ou deixá-los à míngua, aprisioná-los ou libertá-los, matá-los ou permitir que vivessem, - de que mais precisava?

- E você? - indagou Edward. - Como vai passar o verão? Micky queria mesmo que ele fizesse essa pergunta.

- Aqui. Na escola.

- Vai passar as férias inteiras na escola outra vez?

- Tenho de passar. Não posso ir para casa. A viagem leva seis semanas... Preciso começar a voltar antes mesmo de chegar lá.

- Por Deus, isso não é fácil!

Na verdade, Micky não sentia o menor desejo de voltar. Detestava sua casa desde que a mãe morrera. Havia agora apenas homens ali: o pai, o irmão mais velho, Paulo, alguns tios e primos, e 400 vaqueiros. Papa era um herói para os homens e um estranho para Micky: frio, inacessível, impaciente. Mas o maior problema era o irmão de Micky. Paulo era estúpido, mas forte. Odiava Micky por ser mais esperto, e gostava de humilhar o irmão caçula. Nunca perdia a oportunidade de provar a todos que Micky não era capaz de laçar novilhos, domar cavalos ou matar uma cobra com um tiro na cabeça. Sua brincadeira predileta era assustar o cavalo de Micky para que disparasse. Micky fechava os olhos, segurava-se nas rédeas com toda a sua força, apavorado, enquanto o cavalo corria frenético pelos pampas até se exaurir. Não, Micky não queria voltar para as férias em casa. Mas também não queria permanecer na escola. O que ele realmente desejava era ser convidado a passar o verão com a família Pilaster.

Edward, porém, não fez a sugestão de imediato, e Micky abandonou o assunto. Tinha certeza de que tornaria a surgir.

Pularam uma cerca de estacas podres e subiram por uma colina baixa. Avistaram o poço quando chegaram na crista. Os lados cortados da pedreira eram íngremes, mas os meninos ágeis podiam encontrar um meio de descer. No fundo havia um poço de água verde e turva que continha sapos, rãs, e uma ou outra cobra-d'água.

Para surpresa de Micky, já havia três garotos ali.

Ele contraiu os olhos devido à claridade do sol refletindo-se na superfície e observou os meninos nus. Todos os três eram da quarta série da Windfield.

A cabeleira ruiva pertencia a Antônio Silva, que apesar dos cabelos era um compatriota de Micky. O pai de Tonio não possuía tantas terras quanto o de Micky, mas os Silvas residiam na capital e tinham amigos influentes. Como Micky, Tonio não podia ir para casa nas férias, mas era bastante afortunado por ter amigos na embaixada de Córdoba em Londres, e assim não precisava ficar na escola durante todo o verão.

O segundo menino era Hugh Pilaster, primo de Edward. Não havia qualquer semelhança entre eles: Hugh tinha cabelos pretos, feições delicadas e impecáveis, e quase sempre exibia um sorriso malicioso. Edward ressentia-se de Hugh por ser um bom aluno e fazer com que ele parecesse o pateta da família.

O outro era Peter Middleton, um garoto um tanto tímido sempre ligado a Hugh, mais confiante. Todos os três tinham os corpos brancos e sem pêlos, próprios dos seus 13 anos, com braços e pernas finos.

Só depois é que Micky divisou o quarto garoto. Ele nadava sozinho, no outro lado do poço. Era mais velho que os outros três e não dava a impressão de que viera com eles. Micky não podia ver seu rosto direito para identificá-lo.

Edward tinha um sorriso insinuante. Percebera a oportunidade de fazer uma brincadeira. Levou um dedo aos lábios pedindo silêncio e começou a descer pelo lado da pedreira. Micky seguiu-o.

Chegaram à platibanda em que os garotos menores haviam deixado suas roupas. Tonio e Hugh haviam mergulhado, investigando algum coisa, enquanto Peter nadava sozinho de um lado para outro. Peter foi o primeiro a avistar os recém-chegados.

- Essa não! - exclamou ele.

- Ei, vocês não estão violando o castigo? - gritou Edward. Hugh Pilaster notou o primo e respondeu:

- E vocês também!

- É melhor voltarem, antes que sejam apanhados! - Edward pegou uma calça no chão. - Mas tomem cuidado para não molharem as roupás, ou todos saberão onde estiveram!

No instante seguinte, ele jogou a calça no meio do poço e caiu na gargalhada.

- Seu desgraçado! - berrou Peter, nadando para pegar a calça que flutuava.

Micky sorria, divertido.

Edward pegou uma botina e arremessou-a.

Os meninos menores começaram a entrar em pânico. Edward pegou outra calça, jogou-a na água. Era hilariante ver as três vítimas berrando, mergulhando para buscar suas roupas, e Micky caiu na gargalhada.

Enquanto Edward continuava a lançar botinas e roupas no poço, Hugh Pilaster saiu da água. Micky esperava que ele fugisse, mas inesperadamente Hugh foi para cima de Edward. Antes que este pudesse se virar, Hugh deu-lhe um violento empurrão. Embora fosse muito maior, Edward foi apanhado meio desequilibrado. Cambaleou na platibanda por um instante e caiu no poço ruidosamente.

Tudo aconteceu muito depressa. Hugh recolheu as roupas ainda ali e subiu pela encosta da pedreira como um macaco. Peter e Tonio desataram numa risada zombeteira.

Micky perseguiu Hugh por um momento, mas logo compreendeu que não tinha a menor chance de alcançar um menino menor e mais ágil. Virando-se, olhou para ver se Edward estava bem. Nem precisava ter se preocupado. Edward aflorara à superfície. Agarrara Peter Middleton e começara a empurrar a cabeça do garoto para dentro d'água várias vezes, punindo-o pela risada zombeteira.

Tonio nadou para longe e alcançou a beira do poço, segurando um punhado de roupas encharcadas. Virou-se para olhar o que acontecia lá atrás.

- Deixe-o em paz, seu macaco grande! - gritou ele para Edward.

Tonio sempre fora afoito, e Micky se perguntou o que ele faria agora. Tonio se afastou um pouco mais pela beira do poço e tornou a se virar, com uma pedra na mão.

Micky berrou uma advertência para Edward, mas já era tarde demais. Tonio arremessou a pedra com uma surpreendente acurácia, acertando Edward na cabeça. Uma mancha de sangue apareceu na testa.

Edward soltou um grito de dor, largou Peter e começou a atravessar o poço, atrás de Tonio.

Hugh correu nu pelo bosque, na direção da escola, segurando o que restava de suas roupas, tentando ignorar a dor dos pés descalços no terreno acidentado. Chegando ao ponto em que a trilha era cruzada por outra, ele virou à esquerda, correu mais um pouco e depois mergulhou nas moitas, escondendo-se.

Esperou, tentando acalmar a respiração ofegante, e ficou escutando atentamente. Seu primo Edward e o amigo dele, Micky Miranda, eram os piores animais de toda a escola: preguiçosos, maus desportistas, arrogantes. A única coisa a fazer era se manter longe deles. Mas tinha certeza de que Edward viria em seu encalço. O primo sempre o odiara.

Seus pais também haviam brigado. O pai de Hugh, Toby, tirara seu capital do negócio da família e iniciara seu próprio empreendimento, negociando com tintas para a indústria têxtil. Mesmo aos 13 anos, Hugh sabia que o pior crime na família Pilaster era tirar seu capital do banco. O pai de Edward, Joseph, nunca perdoara o irmão.

Hugh se perguntou o que teria acontecido com seus amigos. Eram quatro no poço, antes de Micky e Edward aparecerem: Tonio, Peter e Hugh se divertiam num lado do poço, e um garoto mais velho, Albert Cammel, nadava sozinho no outro lado.

Tonio normalmente era corajoso, ao ponto da temeridade, mas tinha pavor de Micky Miranda. Vinham do mesmo lugar, um país sul-americano chamado Córdoba, e Tonio dissera que a família de Micky era poderosa e cruel. Hugh não compreendia direito o que isso significava, mas o efeito era impressionante: Tonio podia enfrentar os outros garotos da quinta série, mas era sempre polido com Micky, até mesmo subserviente, e ele devia estar aterrorizado: tinha medo da própria sombra.

Huj esperava que ele tivesse escapado dos valentões.

Albert Cammel, apelidado Hump, não estava com Hugh e seus amigos, e deixara as roupas num lugar diferente; por isso era provável que tivesse evitado maiores dificuldades.

Hugh também escapara, mas ainda não se livrara dos problemas. Perdera as roupas de baixo, meias e botinas. Teria de se esgueirar para a escola com a camisa e calça encharcadas e torcer para não ser visto por u bedel ou um dos garotos mais velhos. Soltou um grunhido alto à perspetiva. Por que essas coisas sempre acontecem comigo?

perguntou a si mesmo, angustiado.

Metera-se em encrencas desde que chegara a Windfield, 18 meses atrás. Não tinha problemas acadêmicos: estudava bastante e era sempre primeiro da turma em cada teste.

Mas as pequenas regras o irritavam além da razão. Ordenado a se deitar todas as noites quando faltavam quinze minutos para as dez horas, sempre encontrava algum motivo compulsivo para permanecer de pé até dez e quinze. Descobrira que os lugares proibidos eram irresistíveis e fora atraído a explorar o jardim da reitoria, o pomar da diretoria, o depósito de carvão e a adega de cerveja. Corria quando deveria andar, lia quando deveria dormir e conversava durante as orações. E sempre acabava daquele jeito, culpado e assustado, especulando por que se deixara levar a tanto sofrimento.

O bosque continuou silencioso por vários minutos, enquanto ele refletia sombriamente sobre seu destino, imaginando se terminaria com um pária da sociedade ou até mesmo um criminoso, metido na cadeia banido para a Austrália ou enforcado.

Acabou chegando à conclusão de que Edward não viria em seu en calço. Levantou-se, vestiu a calça e a camisa molhadas. Foi nesse instanti que ouviu alguém chorando.

Cauteloso, deu uma espiada... e avistou os cabelos ruivos de Tonio. O amigo caminhava devagar pela trilha, nu, todo molhado, carregando as roupas e soluçando.

- O que aconteceu? - perguntou Hugh. - Onde está Peter? Tonio explodiu subitamente:

- Não Vou contar nunca! Eles me matariam!

- Tudo bem, não precisa me contar.

Como sempre, Tonio sentia pavor de Micky: o que quer que acontecera, ele jamais revelaria. Hugh acrescentou, pragmático:

- É melhor você se vestir.

Tonio olhou apático para a trouxa de roupas encharcadas em seus braços. Parecia chocado ao separá-las. Hugh pegou as roupas. Ali estava as botinas e a calça, apenas

uma meia, e faltava a camisa. Hugh ajudou o amigo a vestir o que ele trouxera e depois se encaminharam para a escola.

Tonio parou de chorar, embora ainda permanecesse abalado. Hugh torceu para que os valentões não tivessem feito alguma coisa horrível com Peter. Mas agora não podia deixar de pensar que precisava salvar a própria pele.

- Se conseguirmos entrar no dormitório sem que ninguém nos veja, podemos pôr roupas limpas e as botinas de reserva - disse ele, planejando com antecedência. – E depois, assim que o castigo for suspenso, iremos até a cidade e compraremos roupas novas a crédito na Baxted's.

Tonio acenou com a cabeça e murmurou, apático:

- Está certo.

Enquanto seguiam entre as árvores, Hugh especulou de novo por que Tonio se mostrava tão transtornado. Afinal, a brutalidade dos garotos mais velhos não era novidade em Windfield. O que teria acontecido no poço depois que Hugh escapara? Mas Tonio não disse mais nada a respeito durante todo o caminho de volta.

A escola era um conjunto de seis prédios, e fora outrora o núcleo de uma grande fazenda. O dormitório deles era na antiga leiteria, perto da capela. Para chegar lá, tinham de pular um muro e atravessar a quadra de fives, o jogo de bola de mão. Subiram o muro e espiaram. O pátio estava deserto, como Hugh esperava, mas mesmo assim ele hesitou. A idéia da Listradora acertando seu traseiro o deixava arrepiado. Mas não havia alternativa. Tinha de voltar à escola e vestir roupas secas.

- Tudo limpo - sussurrou ele. - Vamos embora!

Pularam o muro juntos e correram através do pátio para a sombra fresca da capela de pedra. Até ali, tudo bem. Esgueiraram-se em torno do lado leste, quase colados na parede. Depois correram pelo caminho principal a fim de entrarem no dormitório. Hugh parou por um instante. Não havia ninguém à vista.

- Agora! - disse ele.

Os dois meninos saíram correndo. Foi no instante em que alcançavam a porta que o desastre se abateu. Uma voz familiar e autoritária gritou:

- Pilaster Menor! É mesmo você?

Hugh compreendeu então que estava perdido. Mr. Offerton escolhera aquele exato momento para sair da capela e agora se achava parado na sombra do pórtico, um vulto alto e dispéptico, na túnica do colégio e barrete na cabeça. Hugh reprimiu um gemido. Mr. Offerton, cujo dinheiro fora roubado, era o menos propenso entre todos os mestres a demonstrar misericórdia. Seria mesmo a Listradora. Os músculos de seu traseiro se contraíram involuntariamente.

- Venha até aqui, Pilaster - ordenou Mr. Offerton.

Hugh se aproximou, arrastando os pés, com Tonio logo atrás. Por que assumo esses riscos? pensou Hugh, angustiado.

- Para o gabinete do diretor, agora mesmo - acrescentou Mr. Offerton.

- Pois não, senhor - balbuciou Hugh, desesperado.

A situação se tornava cada vez pior. Quando o diretor visse como ele estava vestido, era possível que o expulsasse da escola. E como explicaria isso à sua mãe?

- Vá logo! - insistiu o mestre, impaciente.

Os dois meninos se adiantaram, mas Mr. Offerton acrescentou:

- Você não, Silva.

Hugh e Tonio trocaram um olhar rápido e aturdido. Por que Hugh deveria ser punido e Tonio não? Mas não podiam questionar as ordens e Tonio escapuliu para o dormitório, enquanto Hugh era conduzido à casa do diretor.

Já podia sentir a Listradora. Sabia que choraria, e isso seria ainda pior do que a dor, pois aos 13 anos de idade sentia-se velho demais para chorar.

A casa do diretor ficava no outro lado da escola, e Hugh foi andando bem devagar; mas chegou lá cedo demais, e a criada abriu a porta um segundo depois que ele tocou a sineta.

Encontrou o dr. Poleson no vestibulo. O diretor era calvo, com uma cara de buldogue, mas por algum motivo não parecia tão furioso quanto deveria estar. Em vez de perguntar por que Hugh saíra de seu quarto e se encontrava todo molhado, ele apenas abriu a porta de seu gabinete e disse em voz baixa:

- Entre, jovem Pilaster.

Não restava a menor dúvida de que ele poupava sua raiva para a aplicação do castigo. Hugh entrou, com o coração disparado. Ficou atônito ao deparar com a mãe sentada ali. Pior ainda, ela estava chorando.

- Mas eu só fui nadar um pouco! - balbuciou Hugh.

A porta foi fechada às suas costas, e ele percebeu que o diretor não o acompanhara.

Depois, começou a compreender que aquilo nada tinha a ver com a violação do castigo para ir nadar, a perda das roupas e o fato de se encontrar seminu.

Teve o terrível pressentimento de que era muito pior do que isso.

- Mãe, o que aconteceu? Por que veio até aqui?

- Oh, Hugh - soluçou ela, - seu pai morreu!

 

Sábado era o melhor dia da semana para Maisie Robinson. No sábado, o pai recebia o pagamento. Naquela noite haveria carne para o jantar e pão fresco.

Ela sentou no degrau da frente, com o irmão Danny, esperando que o pai voltasse do trabalho. Danny tinha 13 anos, dois a mais que Maisie, e ela o achava maravilhoso, muito embora nem sempre o irmão a tratasse com gentileza.

A casa situava-se numa rua de habitações úmidas e sem ventilação, no bairro do cais de uma pequena cidade na costa nordeste da Inglaterra. Pertencia a Mrs. MacNeil, uma viúva. Ela residia no quarto da frente, no primeiro andar. Os Robinsons viviam no quarto dos fundos, e outra família ocupava o segundo andar. Quando fosse o momento de Papa chegar em casa, Mrs. MacNeil estaria na porta, esperando para receber o aluguel.

Maisie estava com fome. No dia anterior suplicara alguns ossos quebrados ao açougueiro, Papa comprara um nabo, e fizeram um ensopado. Essa fora a sua última refeição.

Mas hoje era sábado!

Ela tentou não pensar no jantar, pois isso só aumentava a dor em seu estômago. A fim de afastar os pensamentos de comida, ela disse a Danny: - Papa praguejou esta manhã.

- O que ele disse?

- Falou que Mrs. MacNeil é um paskudniak.

Danny riu. A palavra significava saco de merda. As duas crianças falavam inglês fluentemente depois de um ano no novo país, mas ainda se lembravam do iídiche.

O nome da família não era na verdade Robinson, mas Rabinowicz. Mrs. MacNeil passara a odiá-los desde que descobrira que eram judeus.

Jamais conhecera qualquer judeu antes, e ao alugar o quarto pensara que fossem franceses. Não havia outros judeus naquela cidade. Os Robinsons também não tencionavam

vir para cá: haviam pago passagem para um lugar chamado Manchester, onde havia muitos judeus, mas o capitão do navio os enganara dizendo-lhes que Manchester era ali. Ao descobrirem que se encontravam no lugar errado, Papa dissera que teriam de economizar bastante dinheiro para irem até Manchester; mas depois Mama caíra doente.

E ainda estava, e eles continuavam ali.

Papa trabalhava no cais, num armazém enorme que tinha a inscrição Tobias Pilaster & Co. em letras grandes acima do portão. Maisie se perguntara muitas vezes quem seria Co. Papa trabalhava como escriturário, mantendo registros dos barris de corantes que entravam e saíam do prédio. Era um homem meticuloso, um tomador de anotações e fazedor de listas. Mama era o inverso. Sempre fora a ousada. Fora Mama quem quisera vir para a Inglaterra. Mama adorava festas, fazer viagens, conhecer novas pessoas, arrumar-se toda, participar de jogos. Era por isso que Papa a amava tanto, pensou Maisie: porque ela era algo que ele nunca poderia ser.

Mama não era mais tão animada. Passava o dia inteiro deitada no colchão velho, sempre sonolenta, o rosto pálido brilhando de suor, a respiração quente e malcheirosa.

O médico dissera que ela precisava adquirir forças com bastantes ovos frescos e creme, e carne todos os dias; depois Papa o pagara com o dinheiro do jantar daquela

noite. Agora, Maisie sentia-se culpada cada vez que comia, sabendo que assim tirava o alimento que poderia salvar a vida de sua mãe.

Maisie e Danny haviam aprendido a roubar. No dia do mercado, iam para o centro da cidade e furtavam batatas e maçãs das barracas armadas na praça. Os vendedores tinham olhos atentos, mas de vez em quando se distraíam com alguma coisa - uma discussão pelo troco, uma briga de cachorros, um bêbado - e as crianças agarravam o que podiam. Quando a sorte as ajudava, encontravam um garoto rico, da idade delas; tratavam então de cercá-lo e roubá-lo. Os meninos assim sempre tinham uma laranja

ou um saco de balas no bolso, até mesmo algumas moedas. Maisie tinha medo de ser apanhada, porque sabia que Mama ficaria muito envergonhada, mas também sentia fome.

Ela ergueu os olhos e avistou alguns homens se aproximando pela rua, num grupo, e se perguntou quem seriam. Ainda era muito cedo para os trabalhadores nas docas

voltarem para casa. Falavam em vozes iradas, acenavam com os braços, sacudiam os punhos cerrados. Ao chegarem mais perto, Maisie reconheceu Mr. Ross, que morava no segundo andar e trabalhava junto com Papa na Pilaster. Por que ele não estava no armazém? Teria sido despedido? Parecia bastante furioso para isso. Tinha o rosto vermelho e suava muito, falava sobre pessoas estúpidas, sanguessugas miseráveis e desgraçados mentirosos. Quando o grupo passou pela casa, Mr. Ross deixou-os abruptamente e entrou.

Maisie e Danny tiveram de se desviar apressados para evitar suas botinas ferradas.

Quando Maisie tornou a erguer os olhos, avistou Papa. Um homem magro, de barba preta e cabelos castanhos-claros, ele seguia os outros a alguma distância, andando de cabeça baixa. Parecia tão desolado e desesperado que Maisie sentiu vontade de chorar.

- Papa, o que aconteceu? - perguntou ela. - Por que voltou para casa mais cedo?

- Vamos entrar - murmurou ele, a voz tão baixa que Maisie mal conseguiu ouvir.

As duas crianças acompanharam-no para os fundos da casa. Ele se ajoelhou ao lado do colchão e beijou os lábios de Mama. Ela despertou, sorriu. Papa não retribuiu o sorriso.

- A firma quebrou - anunciou ele, falando em iídiche. - Toby Pilaster foi à falência.

Maisie não sabia direito o que isso significava, mas o tom de voz de Papa fazia com que parecesse um desastre.

- Mas por quê? - perguntou Mama.

- Houve um craque financeiro - explicou Papa. - Um grande banco de Londres quebrou ontem.

Mama franziu o cenho, num esforço para se concentrar.

- Mas não estamos em Londres - disse ela. - O que Londres tem a ver com a gente?

- Não sei dos detalhes.

- Então não tem mais trabalho?

- Nem trabalho, nem pagamento.

- Mas hoje eles pagaram a você. Papa baixou a cabeça.

- Não, não pagaram.

Maisie tornou a olhar para Danny. Isso eles compreendiam. A falta de dinheiro significava que não haveria comida. Danny parecia apavorado. Maisie outra vez sentiu vontade de chorar.

- Eles devem pagar- sussurrou Mama. - Você trabalhou a semana inteira. Eles têm de pagar.

- Eles não têm dinheiro. É isso o que "falido" significa, que você deve dinheiro às pessoas e não pode pagar.

- Mas Mr. Pilaster é um bom homem, você sempre disse.

- Toby Pilaster está morto. Enforcou-se ontem à noite em seu escritório em Londres. Tinha um filho da idade de Danny.

- Mas como vamos alimentar nossos filhos?

- Não sei.

Para horror de Maisie, Papa começou a chorar. As lágrimas escorriam para sua barba, enquanto ele acrescentava:

- Desculpe, Sarah. Eu a trouxe para este lugar horrível, onde não há judeus, ninguém para nos ajudar. Não posso pagar o médico, não posso comprar remédios, não posso alimentar nossos filhos. Eu falhei. Sinto muito, sinto muito...

Ele inclinou-se para a frente, comprimiu o rosto molhado contra o peito de Mama. Ela afagou seus cabelos com a mão trêmula.

Maisie estava consternada. Papa nunca chorava. Parecia significar o fim de qualquer esperança. Talvez todos morressem agora.

Danny levantou-se, olhou para Maisie, sacudiu a cabeça na direção da porta. Ela também se levantou; saíram juntos do quarto, na ponta dos pés. Maisie foi sentar

no degrau da frente, começou a chorar.

- O que vamos fazer? - murmurou ela.

- Teremos de fugir - respondeu Danny.

As palavras de Danny provocaram uma sensação de frio no peito da irmã.

- Não podemos.

- Devemos. Não há comida. Se ficarmos, morreremos.

Maisie não se importava se morresse, mas um pensamento diferente ocorreu-lhe: Mama com certeza passaria fome para alimentar os filhos. Se ficassem, ela morreria.

Tinham de ir embora para salvá-la.

- Tem razão - disse ela. - Se partirmos, talvez Papa consiga arrumar comida suficiente para Mama. Temos de ir embora, pelo bem dela.

Ao se ouvir dizer essas palavras, Maisie ficou abalada pelo que estava acontecendo com sua família. Era ainda pior do que o dia em que haviam deixado Viskis, com as casas da aldeia ainda ardendo lá atrás, e embarcaram num trem frio, com todos os seus pertences em dois sacos de pano de vela; pois naquela ocasião sabia que Papa sempre cuidaria dela, não importava o que mais pudesse ocorrer, e agora tinha de cuidar de si mesma.

- Para onde iremos? - indagou ela, num sussurro.

- Eu Vou para a América.

- América? Como?

- Há um navio no porto que vai partir para Boston com a maré da manhã... subirei por uma corda esta noite e me esconderei num dos escaleres no convés.

- Vai viajar como clandestino - murmurou Maisie, com medo e admiração na voz.

- Isso mesmo.

Olhando para o irmão, ela percebeu pela primeira vez que havia a sombra de um bigode começando a aparecer no lábio superior. Ele estava se tornando um homem, e um dia teria uma barba preta cheia como a de Papa.

- Quanto tempo leva para se chegar na América, Danny? Ele hesitou, fez uma cara de tolo e balbuciou:

- Não sei.

Maisie compreendeu que não se achava incluída nos planos do irmão, sentindo-se angustiada e assustada.

- Nós não vamos juntos, então - comentou ela.

Danny assumiu uma expressão de culpado, mas não a contestou.

- Eu lhe direi o que deve fazer, Maisie. Vá para Newcastle. Pode andar até lá em cerca de quatro dias. É uma cidade enorme, maior do que Gdansk... ninguém vai notá-la.

Corte os cabelos, roube uma calça e finja ser um menino. Procure um estábulo grande e ajude com os cavalos... sempre foi boa com eles. Se gostarem de você, vão lhe dar gorjetas, e depois de algum tempo podem até arrumar um emprego direito.

Maisie não podia imaginar a perspectiva de ficar completamente sozinha.

- Prefiro ir com você, Danny.

- Não pode. Já vai ser bastante difícil sozinho, tendo de me esconder no navio, roubar comida, e assim por diante. Não teria condições de cuidar de você ainda por

cima.

- Não precisaria cuidar de mim. Eu ficaria quieta como um camundongo.

- Eu me preocuparia com você.

- E não se preocupa em me deixar aqui sozinha?

- Temos de cuidar de nós mesmos! - exclamou Danny, irritado. Maisie compreendeu que o irmão já tomara sua decisão. Nunca fora capaz de dissuadi-lo de qualquer coisa depois que ele se decidisse. com o temor no coração, ela sussurrou:

- Quando devemos partir? Pela manhã? Ele sacudiu a cabeça.

- Agora. Terei de entrar no navio assim que escurecer.

- Fala mesmo a sério?

- Claro.

Como para provar, ele se levantou. Maisie também ficou de pé.

- Devemos levar alguma coisa?

- O quê?

Ela deu de ombros. Não tinha muda de roupas nem qualquer objeto pessoal. Não havia comida nem dinheiro para levar.

- Quero dar um beijo de despedida em mamãe.

- Não faça isso - disse Danny, em tom ríspido. - Se fizer, vai ficar. Era verdade. Se ela visse Mama agora, perderia a coragem e contaria tudo. Maisie engoliu em seco.

- Tem razão - balbuciou ela, reprimindo as lágrimas. - Estou pronta.

Eles se afastaram, andando lado a lado.

Ao chegarem ao final da rua, Maisie teve vontade de se virar, lançar um último olhar para a casa; mas sentiu medo de enfraquecer se fizesse isso, e assim continuou

a andar, sem olhar para trás.

 

De The Times

O CARÁTER DO COLEGIAL INGLÊS - O juiz sumariante de Ashton, Mr. H. S. Wasbrough, realizou ontem uma audiência no Station Hotel, Windfield, sobre a morte de Peter James St. John Middleton, de 13 anos, um colegial. O menino nadava num poço numa pedreira abandonada, perto da Windfield School, quando dois meninos mais velhos o viram aparentemente em dificuldades, como foi testemunhado na audiência. Um dos meninos mais velhos, Miguel Miranda, natural de Córdoba, declarou que seu companheiro, Edward Pilaster, de 15 anos, tirou as roupas e mergulhou, a fim de tentar salvar o menino mais jovem, mas em vão. O diretor da escola, dr. Herbert Poleson, disse que a pedreira era proibida aos alunos, mas sabia que a regra nem sempre era obedecida. O júri apresentou um veredito de morte acidental por afogamento. O juiz sumariante destacou a bravura de Edward Pilaster ao tentar salvar a vida do amigo e disse que o caráter do colegial inglês, quando formado por instituições como a Windfield, era uma coisa de que podíamos nos orgulhar.

Micky Miranda ficou fascinado pela mãe de Edward.

Augusta Pilaster era alta e escultural, beirando os 30 anos. Tinha cabelos e sobrancelhas pretos, um rosto altivo, de malares salientes, o nariz reto e afilado, um queixo forte. Não chegava a ser linda, nem mesmo bonita, mas de certa forma aquele rosto altivo exercia um profundo fascínio. Usou um casaco preto e um chapéu também preto para comparecer à audiência, e isso fez com que parecesse ainda mais dramática. E, no entanto, o mais encantador era a impressão incontestável que ela oferecia a Micky de que as roupas formais cobriam um corpo voluptuoso e a atitude arrogante e autoritária escondia uma natureza ardente. Ele mal conseguia desviar os olhos da mulher.

Ao seu lado sentou o marido, Joseph, o pai de Edward, um homem feio, de rosto amargo, beirando os 40 anos. Tinha o mesmo nariz largo de Edward e a mesma tonalidade clara, mas os cabelos louros já haviam recuado bastante pelo alto da cabeça, e usava enormes costeletas se projetando das faces, como a compensar a calvície. Micky não pôde deixar de se perguntar o que levara uma mulher tão espetacular a se casar com um homem assim. Ele era muito rico... talvez fosse isso.

Voltavam para a escola numa carruagem alugada do Station Hotel: Mr. e Mrs. Pilaster, Edward e Micky, e o diretor, dr. Poleson. Micky achou graça ao perceber que

o diretor também se encantara com Augusta Pilaster. O velho Pole perguntou se a audiência a cansara, indagou se ela se sentia confortável na carruagem, ordenou ao cocheiro que fosse mais devagar e se apressou em saltar primeiro ao final do percurso para ter a emoção de segurar sua mão quando ela desembarcou. O rosto de buldogue nunca parecera tão animado.

A audiência transcorrera sem problemas. Micky exibira sua expressão mais franca e honesta ao contar a história inventada por ele e Edward, mas no fundo ficara apavorado.

Os britânicos podiam ser muito rigorosos com a verdade, e ele estaria perdido se descobrissem o que de fato acontecera.

Mas o tribunal se mostrara tão maravilhado com o relato de heroísmo colegial que ninguém o questionara. Edward estava nervoso e gaguejara em seu depoimento, mas o juiz o desculpara, sugerindo que ele se encontrava transtornado por não ter sido capaz de salvar a vida de Peter e insistindo que não deveria se culpar por isso.

Nenhum dos outros meninos fora chamado para a audiência. Hugh deixara a escola no dia do afogamento por causa da morte do pai. Tonio não fora convocado a prestar depoimento porque ninguém sabia que ele testemunhara a morte; além disso, Micky o intimidara a se manter em silêncio. A outra testemunha, o menino desconhecido que nadava no outro lado do poço, não se apresentara.

Os pais de Peter Middleton estavam abalados demais para comparecerem. Enviaram seu advogado, um velho sonolento, cujo único objetivo era abafar todo o incidente, com um mínimo de estardalhaço. O irmão mais velho de Peter, David, comparecera à audiência e ficara indignado quando o advogado se recusara a fazer perguntas a Micky ou Edward. Para alívio de Micky, o velho rejeitara os protestos sussurrados de David. Micky sentira-se grato pela indolência do advogado. Ele estava preparado para uma reinquirição, mas Edward poderia desmoronar sob um interrogatório cético.

Na sala de estar empoeirada do diretor, Mrs. Pilaster abraçou Edward e beijou o ferimento em sua testa, onde a pedra arremessada por Tonio o atingira.

- Meu pobre menino - murmurou ela.

Micky e Edward não haviam contado a ninguém que Tonio o acertara com uma pedra, pois nesse caso teriam de explicar o motivo. Em vez disso, disseram que Edward batera com a cabeça ao mergulhar para salvar Peter. E Tonio se calara, com medo de Micky.

Enquanto tomavam o chá, Micky viu uma nova faceta de Edward. A mãe, sentada ao seu lado no sofá, tocava-o a todo instante, chamava-o de Teddy. Em vez de se mostrar embaraçado, como aconteceria com a maioria dos meninos, ele parecia gostar, e reagia aos afagos da mãe com um sorriso cativante, que Micky nunca vira antes. Ela se baba pelo filho, pensou Micky, e ele adora.

Depois de alguns minutos de conversa afável, Mrs. Pilaster levantou-se abruptamente, surpreendendo os homens, que também ficaram de pé.

- Tenho certeza de que deseja fumar, dr. Poleson. - Sem esperar por uma resposta, ela acrescentou: - Mr. Pilaster o acompanhará numa volta pelo jardim e poderá também fumar um charuto. Teddy, querido, vá com seu pai. Eu gostaria de passar alguns minutos sozinha na capela. Talvez Micky possa me mostrar o caminho.

- Claro, claro, claro - balbuciou o diretor, gaguejando em sua ansiedade para se submeter àquela série de ordens. - Leve Mrs. Pilaster, Miranda.

Micky ficou impressionado. Sem o menor esforço, ela impusera sua vontade a todos! Ele abriu a porta para ela e saiu atrás. No corredor, perguntou com a maior polidez:

- Gostaria que eu providenciasse uma sombrinha, Mrs. Pilaster? O sol está bem forte.

- Não, obrigada.

Passaram pela porta da frente. Havia muitos meninos nas proximidades da casa do diretor. Micky compreendeu que já se espalhara a notícia sobre a deslumbrante mãe de Edward, e todos queriam contemplá-la. Sentindo-se feliz por acompanhá-la, ele conduziu-a até a capela da escola.

- Devo esperá-la aqui fora, Mrs. Pilaster?

- Entre. Quero conversar com você.

Ele começou a se sentir nervoso. O prazer de acompanhar uma atraente mulher madura pela escola se desvaneceu, e se perguntou por que ela queria conversar com ele a sós.

A capela estava vazia. Ela sentou num banco no fundo, convidou-o a sentar ao seu lado e disse, fitando-o nos olhos:

- Agora me conte a verdade.

Augusta percebeu o lampejo de surpresa e medo no rosto do garoto, e compreendeu que acertara em cheio. Mas Micky recuperou-se num instante.

-Já contei a verdade.

Ela sacudiu a cabeça.

- Não, não contou.

Ele sorriu.

O sorriso pegou-a de surpresa. Acuara-o de forma inesperada. Sabia que o pusera na defensiva, e mesmo assim o garoto lhe sorria. Poucos homens podiam resistir à força de sua vontade, mas parecia que ele era uma exceção, apesar de sua juventude.

- Quantos anos você tem, Micky?

- Dezesseis.

Augusta estudou-o. Ele era escandalosamente bonito, com cabelos crespos de um castanho-escuro, a pele lisa, embora já houvesse uma insinuação de decadência nos olhos empapuçados e lábios cheios. Lembrava-a um pouco o conde de Strang, com seu controle e beleza... Ela tratou de afastar esse pensamento, com uma pontada de culpa.

- Peter Middleton não estava em dificuldades quando vocês chegaram ao poço - disse ela. - Nadava tranqüilo e feliz.

- Por que diz isso? - indagou Micky, friamente.

Augusta podia sentir que ele estava apavorado, mas ainda assim mantinha a pose. Era de fato um garoto bastante maduro. Involuntariamente, ela se viu revelando mais do que pretendia.

- Esquece que Hugh Pilaster também estava lá? Ele é meu sobrinho. O pai se matou na semana passada, como já deve saber, e é por isso que ele deixou a escola. Mas Hugh falou com a mãe, que é minha cunhada.

- O que ele disse?

Augusta franziu o cenho e informou relutante:

- Disse que Edward jogou as roupas de Peter no poço.

Ela não podia entender por que Teddy fizera uma coisa assim.

- E depois?

Augusta sorriu. O menino assumia o comando da conversa. Ela é que deveria interrogá-lo, mas acontecia o inverso.

- Quero apenas que me conte o que aconteceu. Micky balançou a cabeça.

- Está bem.

Quando ele disse isso, Augusta ficou aliviada, mas também preocupada. Queria saber a verdade, mas ao mesmo tempo a temia. Pobre Teddy... ele quase morrera quando bebê porque havia algo errado com o leite do seio de Augusta. Definhara a olhos vistos antes que os médicos descobrissem a natureza do problema e recomendassem uma ama-dê-leite. Desde então, Teddy sempre fora vulnerável, precisando de sua atenção especial. Se dependesse dela, o filho não teria ido para um colégio interno, mas o pai fora intransigente nesse ponto... Augusta tornou a concentrar sua atenção em Micky, que disse:

- Edward não queria machucar ninguém. Estava apenas se divertindo. Jogou as roupas dos outros garotos na água por brincadeira.

Ela concordou com a cabeça; isso lhe parecia normal, meninos provocando uns aos outros. O pobre Teddy também devia ter sofrido tais perseguições.

- Foi então que Hugh empurrou Edward para o poço.

- O pequeno Hugh sempre foi um arruaceiro... igual a seu desventurado pai - comentou Augusta.

E como o pai, pensou ela, era bem provável que tivesse um fim trágico.

- Os outros meninos riram, e Edward empurrou a cabeça de Peter para dentro d'água a fim de lhe dar uma lição. Hugh fugiu. Foi nesse momento que Tonio jogou uma pedra em Edward.

Augusta ficou horrorizada.

- Mas ele podia ter desmaiado e se afogado!

- Só que isso não aconteceu, e Edward saiu atrás de Tonio. Fiquei observando-os. Ninguém olhava para Peter Middleton. Tonio conseguiu escapar. Foi só então que notamos que Peter estava quieto demais. Não sabemos realmente o que aconteceu com ele. Talvez estivesse muito cansado ou sem fôlego para sair do poço por causa dos caldos que Edward lhe dera. Seja como for, ele boiava de cabeça para baixo. Nós o tiramos da água no mesmo instante, mas ele já estava morto.

Não era culpa de Edward, refletiu Augusta. Os meninos eram sempre rudes uns com os outros. De qualquer forma, ela sentia-se grata por aquela história não ter aflorado no inquérito. Micky dera cobertura a Edward, graças a Deus.

- E os outros meninos? - indagou ela. - Eles devem saber o que aconteceu.

- Foi muita sorte Hugh ter deixado a escola naquele mesmo dia.

- E o outro... você o chamou de Tony?

- Antonio Silva. Nós o tratamos por Tonio. Não se preocupe com ele. É do meu país. Fará o que eu mandar.

- Como pode ter certeza?

- Ele sabe que se me causar algum problema, sua família vai sofrer as conseqüências lá em Córdoba.

Havia algo assustador na voz do menino ao dizer isso, e Augusta estremeceu.

- Quer que eu vá buscar um xale? - perguntou Micky, atencioso. Augusta sacudiu a cabeça.

- Nenhum outro menino viu o que aconteceu? Micky franziu o cenho.

- Havia outro garoto nadando no poço quando chegamos.

- Quem?

Ele balançou a cabeça.

- Não pude ver seu rosto, e não imaginei que isso seria importante.

- Ele viu o que aconteceu?

- Não sei. Não posso afirmar em que momento ele foi embora.

- Mas já tinha desaparecido quando vocês tiraram o corpo da água? - Já, sim.

- Eu gostaria de saber quem era ele - disse Augusta, ansiosa.

- Talvez ele nem seja do colégio - ressaltou Micky. - Podia ser alguém da cidade. Mas, por qualquer motivo, ele não se apresentou como testemunha, e por isso acho que não representa um perigo para nós.

Um perigo para nós. Ocorreu a Augusta que se envolvera com aquele menino em algo desonesto, possivelmente ilegal. Não gostava da situação. Entrara nela sem pensar direito, e agora sentia-se acuada. Fitou-o nos olhos.

- O que você quer?

Ela pegou-o desprevenido pela primeira vez. Parecendo aturdido, Micky murmurou:

- Como assim?

- Deu cobertura a meu filho. Cometeu perjúrio hoje. - Augusta percebeu que ele ficara desequilibrado com sua franqueza. Isso a agradou, pois significava que recuperara o controle. - Não creio que tenha assumido tamanho risco pela bondade de seu coração. Acho que quer alguma coisa em troca. Por que não me diz logo o que é?

Ela viu o olhar de Micky baixar para seu busto, e por um momento frenético pensou que ele faria uma sugestão indecente.

- Quero passar o verão com vocês. Augusta não esperava por isso.

- Por quê?

- Teria de viajar seis semanas para chegar em minha casa. Por isso, passo os feriados no colégio. E detesto... é solitário, não tenho nada para fazer. Gostaria de ser convidado a passar o verão com Edward.

Subitamente, ele era de novo um colegial. Augusta pensara que ele pediria dinheiro, ou talvez um emprego no Pilasters Bank. Mas aquele pedido parecia insignificante, quase infantil. Contudo, era evidente que não se tratava de algo insignificante para o garoto. Afinal, pensou ela, ele tem apenas 16 anos.

- Muito bem, passará o verão conosco e será bem-vindo - garantiu Augusta.

A perspectiva não a desagradava. Era um jovem um tanto formidável sob certos aspectos, mas tinha modos perfeitos e era bonito: não seria difícil tê-lo como hóspede.

E ele podia ser uma boa influência sobre Edward. Se Teddy tinha algum defeito, era a falta de determinação. Micky parecia ser o oposto. Talvez um pouco de sua força se transmitisse a Teddy. Micky sorriu, exibindo dentes brancos, e murmurou:

- Obrigado.

Ele parecia sinceramente satisfeito. Augusta desejou ficar sozinha por algum tempo e meditar sobre o que acabara de acontecer.

- Agora pode se retirar. Encontrarei sozinha o caminho para a casa do diretor.

Micky levantou-se.

- Não pode imaginar como me sinto grato - disse ele, estendendo a mão.

Ela apertou-lhe a mão,

- Também sou grata a você por proteger Teddy.

Ele inclinou-se como se fosse beijar sua mão, mas depois, para espanto de Augusta, beijou-a nos lábios. Foi tão rápido que ela não teve tempo de desviar o rosto.

Procurou por palavras de protesto enquanto Micky se empertigava, mas não conseguiu pensar no que dizer; e no instante seguinte ele já tinha deixado a capela.

Um abuso! O garoto não deveria tê-la beijado, muito menos nos lábios. Quem ele pensava que era? O primeiro pensamento de Augusta foi o de revogar o convite para o verão. Mas sabia que nunca faria isso.

Por que não? ela perguntou a si mesma. Por que não podia cancelar o convite a um mero colegial? Ele agira com extrema presunção, e por isso não deveria ser seu hóspede.

Mas a idéia de voltar atrás em sua promessa deixou-a contrafeita. Não era apenas porque Micky salvara Teddy da desgraça, refletiu Augusta. Era pior do que isso.

Ela entrara numa conspiração criminosa com o garoto. Isso a deixava desagradavelmente vulnerável a ele.

Augusta continuou sentada na capela fresca por um longo tempo, olhando para as paredes vazias e se perguntando, com um profundo sentimento de apreensão, como aquele jovem tão bonito e esperto usaria o seu poder.

 

Maio

Quando Micky Miranda tinha 23 anos, seu pai foi a Londres para comprar rifles.

O Senor Carlos Raul Xavier Miranda, sempre conhecido como Papa, era um homem baixo, de ombros maciços. O rosto bronzeado era esculpido em linhas de agressão e vitalidade.

Num culote de couro e chapéu de aba larga, montado num garanhão castanho, podia ser uma figura graciosa e imponente; mas no Hyde Park, de fraque e cartola, ele sentia-se um tolo, o que o tornava perigosamente mal-humorado.

Não eram nada parecidos. Micky era alto e esguio, com feições suaves, impunha sua vontade pelo sorriso em vez de amarrar a cara. Sentia uma profunda afeição pelos requintes da vida em Londres: belas roupas, maneiras polidas, lençóis de linho e água corrente nas casas. Seu grande receio era o de que Papa quisesse levá-lo de volta a Córdoba. Não podia suportar o retorno aos dias na sela e noites dormindo no chão duro. Ainda pior era a perspectiva de ficar de novo sob o domínio do irmão mais velho, Paulo, que era uma réplica de Papa. Talvez Micky voltasse para casa um dia, mas seria como um homem importante por si mesmo, não como o filho mais novo de Papa Miranda. Enquanto isso, precisava persuadir o pai de que era mais útil em Londres do que o seria em Córdoba.

Caminhavam pela South Carriage Drive numa tarde ensolarada de sábado. O parque se achava apinhado de londrinos bem-vestidos, a pé, a cavalo ou em carruagens abertas, aproveitando o tempo ameno. Mas Papa não estava se divertindo.

- Preciso desses rifles! - murmurou ele para si mesmo, em espanhol, duas vezes.

Micky falou na mesma língua, sondando a situação:

- Pode comprá-los em Córdoba.

- Dois mil rifles? Talvez pudesse. Mas seria uma compra tão grande que todos saberiam.

Portanto, ele queria manter em segredo. Micky não tinha a menor idéia das intenções de Papa. O pagamento pelos dois mil rifles e a munição deveria consumir todas as reservas de dinheiro da família. Por que Papa precisava de repente de tamanho arsenal? Não havia guerra em Córdoba desde a agora legendária Marcha dos Vaqueiros, quando Papa levara seus homens através dos Andes para libertar a província de Santamaria dos dominadores espanhóis. Para quem seriam as armas? Somando-se os vaqueiros, parentes e demais empregados e agregados de Papa, daria menos de mil homens. Papa só podia estar planejando recrutar mais. Contra quem lutariam? Papa não dera nenhuma informação e Micky tinha medo de perguntar. Em vez disso, ele comentou:

- De qualquer maneira, é bem provável que não conseguisse encontrar armas de boa qualidade em nosso país.

- Isso é verdade - disse Papa. - O Westley-Richards é o melhor rifle que já conheci.

Micky pudera ajudar Papa na escolha dos rifles. Sempre fora fascinado por armas de todos os tipos e se mantinha a par dos últimos desenvolvimentos técnicos. Papa precisava de rifles de cano curto que não fossem muito difíceis de manipular por homens a cavalo. Micky levara Papa a uma fábrica em Birmingham e mostrara a carabina Westley-Richards com uma alavanca de carregar pela culatra, apelidada de Monkeytail (rabo de macaco) por causa da alavanca enroscada.

- E eles podem providenciar a remessa bem depressa - acrescentou Micky.

- Eu imaginava que teria de esperar seis meses para que as armas fossem fabricadas. Mas eles podem fornecer tudo em poucos dias!

- É que eles usam as máquinas americanas.

No passado, quando as armas eram fabricadas por ferreiros que ajustavam as peças por tentativa e erro, haveria mesmo necessidade de seis meses para produzir dois mil rifles; mas as máquinas modernas eram tão precisas que os componentes de qualquer arma podiam se ajustar a qualquer outra do mesmo padrão, e uma fábrica bem-equipada poderia fazer centenas de rifles idênticos por dia, como se fossem alfinetes.

- E ainda tem uma máquina que faz 200 mil cartuchos por dia! - exclamou Papa, balançando a cabeça, maravilhado. Mas seu ânimo oscilou mais uma vez, e ele acrescentou, sombrio: - Mas como podem pedir o dinheiro antes da entrega dos rifles?

Papa nada sabia de comércio internacional. Presumira que o fabricante entregaria os rifles em Córdoba e aceitaria o pagamento ali. Ao contrário, o pagamento deveria ser efetuado antes que as armas deixassem a fábrica em Birmingham.

Mas Papa relutava em enviar moedas de prata dentro de barricas através do oceano Atlântico. Pior ainda, não podia entregar toda a fortuna da família antes que as armas fossem entregues em segurança.

- Resolveremos esse problema, Papa - garantiu Micky. - É para isso que servem os bancos mercantis.

- Explique tudo de novo. Quero ter certeza de que compreendi direito.

Micky sentiu-se satisfeito por ser capaz de explicar alguma coisa a Papa.

- O banco pagará ao fabricante em Birmingham. Providenciará para que as armas sejam embarcadas para Córdoba e fará o seguro da viagem. Quando a carga chegar, o banco aceitará seu pagamento no escritório que mantém em Córdoba.

- Mas depois terá de mandar a prata para a Inglaterra.

- Não necessariamente. Podem usá-la para pagar uma carga de carne salgada enviada de Córdoba para Londres.

- E como eles ganham dinheiro?

- Tiram uma parte de tudo. Pagam ao fabricante dos rifles com um desconto, ficam com uma comissão do transporte e do seguro e cobram uma taxa extra pela entrega da mercadoria.

Papa balançou a cabeça. Tentava não deixar transparecer, mas era evidente que estava impressionado, e isso deixou Micky feliz.

Os dois deixaram o parque e se encaminharam por Kensington Gore para a casa de Joseph e Augusta Pilaster.

Nos sete anos desde que Peter Middleton se afogara, Micky passara todas as férias com os Pilasters. Concluído o curso colegial, excursionara pela Europa durante um ano em companhia de Edward, e foram colegas de quarto nos três anos que passaram na Universidade de Oxford, bebendo e jogando, causando os maiores distúrbios e apenas fingindo, sem muito empenho, que eram estudantes.

Micky nunca mais tornara a beijar Augusta. Bem que teria gostado. E queria mais do que apenas beijá-la. Tinha a impressão de que talvez ela permitisse. Por baixo daquele verniz de arrogância fria havia o coração quente de uma mulher ardente e sensual, ele tinha certeza. Mas se contivera por prudência.

Alcançara algo de valor inestimável ao ser aceito quase como um filho numa das famílias mais ricas da Inglaterra, e seria loucura arriscar essa posição invejável por seduzir a esposa de Joseph Pilaster. Apesar disso, ele não podia deixar de sonhar com a possibilidade.

Os pais de Edward haviam se mudado pouco antes para uma nova casa. Kensington Gore, que não muito tempo atrás era uma estrada rural, levando de Mayfair pelos campos até a aldeia de Kensington, era agora ocupada, ao longo do lado sul, por esplêndidas mansões. No lado norte da rua ficavam o Hyde Park e os jardins do Palácio de Kensington. Era o lugar perfeito para a residência de uma rica família do comércio.

Micky não tinha muita certeza sobre o estilo arquitetônico.

Sem dúvida, era impressionante. A mansão fora construída com tijolos vermelhos e pedras brancas, com enormes janelas no térreo e segundo andar. Acima do segundo andar havia um imenso frontão, de forma triangular abrangendo três fileiras de janelas - seis, depois quatro, e duas no ápice. Eram quartos, presumivelmente para os inúmeros parentes, hóspedes e criados. As laterais do frontão eram íngremes, e nos degraus se empoleiravam animais de pedra, leões, dragões e macacos. No topo havia um navio com a vela enfunada. Talvez representasse o navio negreiro que, segundo a lenda famíliar, fora a fundação da riqueza dos Pilasters.

- Tenho certeza de que não há outra casa como esta em toda a Londres - comentou Micky ao parar com o pai na rua, contemplando-a.

Papa respondeu em espanhol:

- É com certeza o que a dama queria.

Micky acenou com a cabeça. Papa ainda não conhecera Augusta, mas já tinha sua medida.

A casa tinha também um enorme porão. Uma ponte atravessava a área por ele ocupada, levando ao pórtico de acesso. A porta estava aberta, e eles entraram.

Augusta oferecia um chá da tarde, a fim de exibir sua casa. O vestíbulo revestido com painéis de carvalho se achava apinhado de convidados e criados. Micky e o pai entregaram seus chapéus a um lacaio e depois abriram caminho pela multidão para a enorme sala de estar, nos fundos da casa. As portas de vidro estavam abertas, e os convidados se espalhavam pelo terraço de lajes de pedra e pelo comprido jardim.

Micky escolhera de propósito a apresentação do pai numa ocasião com tantos convidados, pois o comportamento de Papa nem sempre correspondia aos padrões de Londres e era melhor que os Pilasters passassem a conhecê-lo aos poucos. Mesmo pelos padrões cordoveses, ele não dava muita atenção aos refinamentos sociais, e acompanhá-lo por Londres fora como levar um leão na coleira. Ele insistia em levar sua pistola por baixo do casaco em todos os momentos.

Papa não precisou que Micky lhe apontasse Augusta. Ela se encontrava no meio da sala, num vestido azul de seda, com um decote quadrado baixo que revelava o início dos seios. Quando Papa apertou-lhe a mão, ela fitou-o com seus olhos escuros hipnóticos e disse em voz baixa, aveludada:

- Senor Miranda... que prazer finalmente conhecê-lo!

Papa ficou fascinado no mesmo instante. Inclinou-se sobre a mão de Augusta e disse, num inglês precário.

- Nunca poderei retribuir toda a sua gentileza com Miguel. Micky estudou-a, enquanto ela lançava seu encantamento sobre Papa. Augusta mudara muito pouco desde o dia em que a beijara na capela da Windfield School. Uma ou duas linhas extras em torno dos olhos faziam com que parecesse

ainda mais fascinante; os fios prateados nos cabelos realçavam a escuridão do resto; e se ela se tornara um pouco mais corpulenta do que antes, isso só contribuíra

para que seu corpo ficasse ainda mais voluptuoso.

- Micky tem me falado com freqüência de seu esplêndido rancho -

disse ela a Papa. Ele baixou a voz.

- Deve nos visitar um dia.

Deus nos livre, pensou Micky. Augusta em Córdoba ficaria tão deslocada quanto um flamingo numa mina de carvão.

- Talvez eu vá - disse ela. - Fica muito longe?

- com os novos e velozes navios, é apenas um mês de viagem. Micky notou que o pai ainda segurava a mão de Augusta, E sua voz se tornara insinuante. Ele já se apaixonara. Micky sentiu uma pontada de ciúme. Se alguém tinha de flertar com Augusta, devia ser Micky, não Papa.

- Ouvi dizer que Córdoba é um lindo país – comentou ela. Micky rezou para que Papa não fizesse nada embaraçoso. Mas ele podia ser encantador quando lhe convinha, e agora representava o papel do romântico fidalgo sul-americano em benefício de Augusta.

- Posso lhe prometer que a receberíamos como a rainha que é - disse ele, ainda em voz baixa, deixando óbvio que representava para ela.

Mas Augusta era uma adversária à altura.

- Que perspectiva mais tentadora... - murmurou ela, com uma insinceridade desavergonhada que deixou Papa inebriado.

Retirando a mão com a maior suavidade, ela olhou por cima do ombro de Papa e exclamou:

- Capitão Tillotson! Que gentileza a sua ter vindo!

E Augusta se afastou para cumprimentar o recém-chegado. Papa ficou desconsolado. Demorou um momento para recuperar o controle e depois disse, abruptamente:

- Leve-me ao chefe do banco.

- Claro - respondeu Micky, nervoso.

Ele olhou ao redor à procura do velho Seth. Todo o clã Pilaster estava presente, inclusive tias solteironas, sobrinhos e sobrinhas, parentes afins e primos em segundo grau. Ele reconheceu dois membros do Parlamento e um punhado de representantes da nobreza menor. A maioria dos outros convidados tinha ligações comerciais, calculou Micky... e havia rivais também, pensou ele ao avistar a figura empertigada de Ben Greenbourne, chefe do Greenbournes Bank, que diziam ser o homem mais rico do mundo.

Ben era o pai de Solomon, o garoto que Micky conhecera como Fatty Greenbourne. Haviam perdido o contato depois de saírem do colégio: Fatty não estudara numa universidade nem fizera uma excursão européia, fora direto trabalhar com o pai.

A aristocracia, de um modo geral, achava vulgar falar sobre dinheiro, mas aquele grupo não tinha tais inibições, e Micky ouviu várias vezes a palavra "craque". A palavra saía às vezes escrita nos jornais como "Krach" porque originou-se na Áustria. Os preços das ações caíram e os juros bancários subiram, segundo Edward, que começara a trabalhar no banco da família. Algumas pessoas estavam alarmadas, mas os Pilasters sentiam-se confiantes que Londres não seria arrastada junto com Viena.

Micky levou Papa pelas portas de vidro para o terraço, onde havia bancos de madeira à sombra de toldos listrados. Ali encontraram o velho Seth sentado com uma manta sobre os joelhos, apesar do calor da primavera. Ele estava debilitado por alguma doença indeterminada e parecia frágil como uma casca de ovo; mas tinha o nariz dos Pilasters, uma lâmina enorme e curva que o ainda fazia parecer formidável. Outra convidada que se mostrava efusiva com o velho disse:

- Que pena que não esteja bastante bem para ir à recepção real, Mr. Pilaster!

Micky poderia ter avisado à mulher que essa era a coisa errada para se dizer a um Pilaster.

Ao contrário, fico contente pela desculpa - resmungou Seth.

- Não vejo por que deveria curvar os joelhos diante de pessoas que nunca ganharam um penny em suas vidas.

Mas o Príncipe de Gales... que honra!

Seth não se achava no ânimo de ser contestado - na verdade, quase nunca estava, - e disse:

- Minha jovem, o nome Pilaster é uma garantia aceita de negócios honestos em cantos do globo nos quais nunca se ouviu falar do Príncipe de Gales.

- Mas quase dá a impressão de que desaprova a família real, Mr. Pilaster! - insistiu a mulher, numa tentativa forçada de parecer jovial.

Seth não fora jovial por 70 anos.

- Desaprovo a ociosidade. A Bíblia diz: "Se alguém não trabalha, não deve comer". São Paulo escreveu isso na Segunda Epístola aos Tessalonicenses, capítulo três, versículo dez, e não acrescentou que a realeza era uma exceção à regra.

A mulher retirou-se, confusa. Reprimindo um sorriso, Micky disse:

- Mr. Pilaster, permita que eu lhe apresente meu pai, Senor Carlos Miranda, que veio de Córdoba para uma visita.

Seth apertou a mão de Papa.

- Córdoba, hem? Meu banco tem um escritório em sua capital, Palma.

- Vou muito pouco à capital. Tenho um rancho na província de Santamaria.

- Então está no negócio de carne.

- Isso mesmo.

- Pense na refrigeração.

Papa ficou aturdido. Micky explicou:

- Alguém inventou uma máquina para manter a carne gelada. Se conseguirem encontrar um meio de instalarem essa máquina em navios, poderemos enviar carne fresca para o mundo inteiro sem salgá-la.

Papa franziu o cenho.

- Isso pode ser ruim para nós. Tenho uma fábrica enorme para salgar carne.

- Desative-a - disse Seth. - E passe para o ramo da refrigeração. Papa não gostava que as pessoas lhe dissessem o que fazer, e Micky sentiu-se um pouco preocupado. De esguelha, ele avistou Edward.

- Papa, quero lhe apresentar meu melhor amigo. - Ele conseguiu afastar o pai de Seth. - Permita que lhe apresente Edward Pilaster.

Papa examinou Edward com um olhar frio e objetivo. Edward não era bonito - saíra ao pai, não à mãe, - mas parecia um saudável camponês, musculoso, a pele clara. As noites indormidas e as imensas quantidades de vinho não haviam cobrado seu tributo... pelo menos ainda não. Papa apertou sua mão e disse:

- Vocês dois são amigos há muitos anos.

- Almas irmãs - comentou Edward.

Papa franziu o cenho, sem compreender. Micky interveio:

- Podemos falar de negócios por um momento?

Desceram do terraço para o gramado novo. As bordas haviam sido plantadas recentemente, a terra revolvida, as mudas ainda eram pequenas.

- Papa tem feito algumas compras grandes aqui, precisa providenciar o transporte e financiamento - disse Micky. - Pode ser o primeiro negócio que você leva para o banco de sua família.

Edward se mostrou interessado.

- Terei o maior prazer em cuidar de tudo - garantiu ele a Papa. - Gostaria de ir ao banco amanhã de manhã, para que possamos acertar todos os detalhes?

- Estarei lá - respondeu Papa.

- Eu gostaria de saber algo - disse Micky. - Se o navio afundar, quem perde... nós ou o banco?

- Nenhum dos dois - informou Edward, presunçoso. - A carga será segurada pelo Lloyd"s. Nós receberíamos o dinheiro do seguro e embarcaríamos uma nova carga. Vocês não pagam até receberem a mercadoria. Por falar nisso, qual é a carga?

- Rifles.

Edward ficou desolado.

- Nesse caso, não poderemos ajudá-los. Micky ficou espantado.

- Por quê?

- Por causa do velho Seth. Ele é um metodista. Toda a família é, mas Seth é mais devoto do que os outros. Não financiamos vendas de armas, e como ele é um Sócio Sênior, essa é a política do banco.

- Mas que diabo! - praguejou Micky. Ele lançou um olhar apreensivo para o pai. Por sorte, Papa não entendera a conversa. Micky sentiu um frio no estômago. Todo o seu plano podia fracassar por causa de algo tão estúpido quanto a religião de Seth? - O velho hipócrita está praticamente morto. Por que deveria interferir?

- Ele está prestes a se aposentar - informou Edward. - Mas creio que Tio Samuel vai assumir, e ele é igual a Seth.

Muito pior, pensou Micky. Samuel era o filho -solteirão de Seth, com 53 anos e gozando de perfeita saúde.

- Teremos de procurar outro banco mercantil - murmurou Micky.

- Não deve ser problema - garantiu Edward - desde que vocês possam fornecer sólidas referências comerciais.

- Referências? Por quê?

- Um banco sempre assume o risco de que o comprador pode repudiar o negócio, deixando-o com uma carga indesejável no outro lado do mundo. Por isso, precisa de alguma garantia de que trata com um negociante respeitável.

O que Edward não compreendia era que o conceito de um negociante respeitável ainda não existia na América do Sul. Papa era um caudillo, um latifundiário provinciano com 50 mil hectares de pampas e uma força de trabalho de vaqueiros que também serviam como seu exército particular. Exercia o poder de uma forma que os britânicos

não conheciam desde a Idade Média. Era como pedir referências a Guilherme o Conquistador. Micky fingiu que continuava imperturbável.

- Não tenho a menor dúvida de que podemos providenciar tudo o que for necessário.

Na verdade, ele se sentia impotente. Mas se quisesse permanecer em Londres tinha de fechar aquele negócio.

Voltaram para o terraço apinhado. Micky escondia sua ansiedade. Papa ainda não percebera que se deparavam com uma grave dificuldade. Micky teria de explicar mais tarde... e então haveria problemas. Papa não tinha paciência com o fracasso, e sua raiva era assustadora. Augusta apareceu no terraço e disse a Edward:

- Procure Hastead para mim, Teddy querido. - Hastead era o solícito mordomo galés. - O cordial acabou, e o miserável escolheu logo este momento para desaparecer.

Edward afastou-se. Ela favoreceu Papa com um sorriso caloroso e íntimo.

- Está gostando de nossa pequena reunião, Senor Miranda?

- Gostando muito, obrigado - disse Papa.

- Deve tomar um chá, ou um copo de cordial.

Papa teria preferido tequila, Micky sabia, mas as bebidas alcoólicas não eram servidas em chás de metodistas.

Augusta olhou para Micky. Sempre hábil em reconhecer os ânimos das outras pessoas, ela comentou:

- Percebo que não está gostando da festa. Qual é o problema? Ele não hesitou em fazer uma confidencia:

- Esperava que Papa pudesse ajudar Edward a levar um negócio novo para o banco, mas envolve armas e munição. Edward acaba de explicar que Tio Seth não financia armas.

- Seth não continuará como Sócio Sênior por muito tempo - declarou Augusta.

- Ao que parece, Samuel tem a mesma posição do pai.

- É mesmo? - O tom de Augusta era insinuante. - E quem disse que Samuel será o próximo Sócio Sênior?

 

Hugh Pilaster usava uma nova gravata de plastrão azul-celeste, um pouco estufada no colarinho, mantida no lugar por um alfinete. Deveria usar também um paletó novo, mas ganhava apenas 68 libras por ano e por isso tinha de melhorar as roupas velhas com uma gravata nova. Aquela era a última moda, e o azul-celeste era uma ousada escolha de cor; mas quando contemplou seu reflexo no enorme espelho por cima do consolo da lareira na sala de estar de Tia Augusta, constatou que a gravata azul e o terno preto combinavam muito bem com seus olhos azuis e cabelos pretos, e torceu para que a gravata de plastrão lhe proporcionasse uma aparência jovial. Talvez Florence Stalworthy pensasse assim. Começara a se interessar por roupas desde que a conhecera.

Era um pouco embaraçoso morar com Augusta e ser tão pobre; mas havia uma tradição no Pilasters Bank: a de que os homens eram pagos pelo que valiam, não importando pertencerem ou não à família. Outra tradição era a de que todos começavam de baixo. Hugh se destacara nos estudos e teria sido um chefe de turma se não se metesse em tantas encrencas; mas sua instrução contava pouco no banco, e ele fazia o trabalho de um aprendiz de escriturario... e recebia de acordo. A tia e o tio nunca se ofereciam para ajudá-lo financeiramente, e por isso tinham de aturar sua aparência um tanto deficiente.

Hugh não ligava muito para o que pensavam de sua aparência, é claro. Era com Florence Stalworthy que se preocupava. Era uma jovem pálida e bonita, filha do conde de Stalworthy; o mais importante nela, porém, era o fato de se mostrar interessada por Hugh Pilaster. A verdade era que Hugh podia se deixar fascinar por qualquer moça que conversasse com ele. Isso o perturbava, porque significava sem dúvida que seus sentimentos eram superficiais; mas não podia evitar. Se uma jovem o tocava por acaso, era suficiente para deixá-lo com a boca ressequida. Sentia-se atormentado pela curiosidade sobre a aparência das pernas das moças por baixo de todas aquelas camadas de saias e anáguas. Havia ocasiões em que o desejo doía como uma ferida. Ele tinha 20 anos, sentia-se assim desde os 15, e nesses 5 anos nunca beijara ninguém além da mãe.

Uma festa como aquele chá de Augusta era uma tortura refinada. Por ser uma festa, todas as pessoas se empenhavam em ser agradáveis, encontravam assuntos para conversar, demonstravam interesse umas pelas outras. As moças pareciam adoráveis, sorriam, e às vezes flertavam discretamente. Tantas pessoas se apinhavam na casa, que se tornava inevitável que algumas das moças roçassem em Hugh, esbarrassem nele ao se virarem, tocassem em seu braço, ou até mesmo comprimissem os seios em suas costas ao se espremerem para passarem. Ele teria depois uma semana de noites irrequietas.

Muitos dos presentes eram parentes, como não podia deixar de ser. Seu pai, Tobias, e o pai de Edward, Joseph, haviam sido irmãos. Mas o pai de Hugh retirara seu capital do negócio da família, iniciara seu próprio empreendimento, falira e se matara. Era por isso que Hugh deixara o dispendioso colégio interno em Windfield e passara a estudar na Academia Folkestone para Filhos de Cavalheiros; era por isso que começara a trabalhar aos 19 anos, em vez de realizar uma excursão europeia e desperdiçar alguns anos na universidade; era por isso que morava com a tia; e era por isso que não tinha roupas novas para usar na festa. Era um parente, mas pobre; um embaraço para uma família cujo orgulho, confiança e posição social baseavam-se na riqueza.

Nunca ocorreria a qualquer deles resolver o problema pelo expediente simples de lhe dar dinheiro. A pobreza era a punição por fazer maus negócios, e se você começasse a atenuar o sofrimento pelos fracassos, não haveria incentivo para se sair bem.

"Seria como pôr colchões de plumas nas celas da prisão", diziam sempre que alguém sugeria ajudar os perdedores da vida.

O pai de Hugh fora vítima de uma crise financeira, mas isso não fazia a menor diferença. Ele falira a 11 de maio de 1866, uma data conhecida pelos banqueiros como Sexta-Feira Negra. Nesse dia, uma corretora chamada Overend & Gurney Ltd. quebrara, com uma dívida de cinco milhões de libras, e muitas firmas foram arrastadas na crise, inclusive o Joint Stock Bank de Londres e a companhia construtora de Sir Samuel Peto, além da Tobias Pilaster & Co. Mas não havia desculpas no mundo dos negócios, segundo a filosofia Pilaster. Também havia no momento uma crise financeira, e com certeza algumas firmas quebrariam antes que terminasse, mas os Pilasters defendiam-se com extremo vigor, descartando-se dos clientes menores, apertando o crédito e rejeitando de forma implacável todos os negócios que não fossem absolutamente seguros. Eles acreditavam que a auto-preservação era o maior dever do banqueiro.

Ora, também sou um Pilaster, pensou Hugh. Posso não ter o nariz Pilaster, mas compreendo a auto-preservação. Havia uma raiva que às vezes fervilhava em seu coração quando refletia sobre o que acontecera com seu pai, e o deixava ainda mais determinado em se tornar o mais rico e mais respeitado de toda a família. A escola ordinária lhe ensinara coisas úteis como aritmética e ciências, enquanto seu primo próspero, Edward, se debatia com latim e grego; e o fato de não ir para a universidade lhe proporcionara um início prematuro nos negócios. Nunca se sentira tentado a seguir por um rumo diferente na vida, tornar-se um pintor, um parlamentar ou um clérigo.

As finanças estavam em seu sangue. Podia informar a atual taxa de juros mais depressa do que era capaz de responder se chovia. Decidira que nunca seria tão presunçoso e hipócrita quanto seus parentes mais velhos, mas ainda assim seria um banqueiro.

Contudo, não pensava muito a respeito. Na maior parte do tempo, só pensava em mulheres.

Ele saiu da sala de estar para o terraço e avistou Augusta se aproximando com uma jovem a reboque.

- Meu caro Hugh - disse ela, aqui está sua amiga, Miss Bodwin.

Hugh soltou um gemido interior. Rachel Bodwin era uma jovem alta, intelectual, de opiniões radicais. Não era bonita - tinha cabelos castanhos opacos e olhos claros muito juntos, - mas era animada e interessante, cheia de idéias subversivas, e Hugh a apreciara muito quando chegara a Londres para trabalhar no banco. Mas Augusta decidira que ele deveria casar com Rachel, e isso arruinara o relacionamento. Antes disso, discutiam com a maior veemência e liberdade sobre divórcio, religião, pobreza e direito de voto para as mulheres. Desde que Augusta iniciara sua campanha para uni-los, eles se limitavam a uma conversa superficial e contrafeita.

- Está adorável, Miss Bodwin - disse ele, automaticamente.

- É muito gentil - respondeu ela num tom entediado. Augusta já se virava quando percebeu a gravata de Hugh.

- Oh, céus! - exclamou ela. - O que é isso? Você parece um estalajadeiro!

Hugh ficou vermelho. Se pudesse formular uma resposta brusca teria arriscado, mas nada lhe ocorreu, e limitou-se a murmurar:

- É uma gravata nova, que chamam de plastrão.

- Deve dá-la ao engraxate amanhã mesmo - disse ela, afastando-se em seguida.

O ressentimento tornou a aflorar no peito de Hugh, contra o destino que o obrigara a morar com a tia autoritária.

- As mulheres não deveriam comentar as roupas de um homem - murmurou ele, sombrio. - Não é próprio de uma dama.

- Acho que as mulheres devem comentar qualquer coisa que lhes interesse - protestou Rachel. - Por isso, direi que gosto de sua gravata e que combina com seus olhos.

Hugh sorriu para ela, sentindo-se melhor. Afinal, Rachel era muito simpática. Mas não era por sua simpatia que Augusta queria que Hugh casasse com ela. Rachel era

filha de um advogado especializado em contratos comerciais. Sua família não tinha outro dinheiro além dos rendimentos profissionais do pai, e na hierarquia social eles se encontravam vários degraus abaixo dos Pilasters; na verdade, nem estariam naquela festa se não fosse pelo fato de Mr. Bodwin ter prestado úteis serviços ao banco. Rachel era uma jovem de nível social inferior, e se casasse com ela Hugh confirmaria a sua posição como um ramo secundário da família; e era isso o que Augusta queria.

Ele não era totalmente avesso à idéia de pedir Rachel em casamento. Augusta insinuara que lhe daria um generoso presente de casamento se ele se casasse com a moça de sua escolha. Mas não era o presente de casamento que o tentava, mas sim a perspectiva de todas as noites poder ir para a cama com uma mulher, levantar sua camisola além dos tornozelos e joelhos, além das coxas...

- Não me olhe desse jeito - disse Rachel, insinuante. - Só falei que gostei de sua gravata.

Hugh corou de novo. Ela não podia imaginar o que aflorara em sua mente, não é mesmo? Seus pensamentos sobre mulheres eram tão grosseiramente físicos que se envergonhava de si mesmo durante a maior parte do tempo.

- Desculpe - murmurou.

-Que família numerosa são os Pilasters! - exclamou ela, jovial, olhando ao redor. - Como consegue lidar com todos eles?

Hugh também olhou ao redor e avistou Florence Stalworthy. Ela possuía uma beleza extraordinária: os cachos louros caíam sobre ombros delicados, usava um vestido rosa com rendas e fitas de seda, e tinha plumas de avestruz no chapéu. Fitou Hugh nos olhos e sorriu-lhe.

- Dá para perceber que perdi sua atenção - comentou Rachel, com uma brusquidão característica.

- Sinto muito.

Rachel tocou no braço dele.

- Hugh, meu caro, escute por um momento. Gosto de você. É uma das poucas pessoas na sociedade de Londres que não são completamente insípidas. Mas não o amo, e jamais casarei com você, não importa quão grande seja o empenho de sua tia.

Hugh ficou surpreso.

- Eu acho...

Mas ela ainda não acabara.

- E sei que você sente o mesmo em relação a mim. Portanto, não finja que está desolado, por favor.

Depois de um momento atordoado, Hugh sorriu. Aquela franqueza era o que apreciava em Rachel. Mas refletiu que ela tinha razão: gostar não era amar. Ele não tinha

certeza do que era o amor, mas Rachel parecia saber.

- Isso significa que podemos voltar a discutir sobre o sufrágio das mulheres? - indagou ele, na maior jovialidade.

- Claro que sim, mas não hoje. Vou falar com o seu antigo colega de escola, o Senor Miranda.

Hugh franziu o cenho.

- Micky não é capaz de soletrar "sufrágio", muito menos dizer o que isso significa.

- Mesmo assim, metade das debutantes de Londres está apaixonada por ele.

- Não posso imaginar por quê.

- Ele é a Florence Stalworthy do sexo masculino - explicou Rachel, afastando-se em seguida.

Hugh tornou a franzir o cenho, pensando a respeito. Micky sabia que Hugh era um parente pobre e o tratava de acordo. Por isso, era difícil para Hugh ser objetivo

em relação a ele. Micky era simpático, sempre muito bem-vestido. Lembrava a Hugh um gato, insinuante e sensual, da lavanderia Não havia ninguém tão bem-cuidado, e havia homens que diziam que ele não era muito viril, mas as mulheres pareciam não se importar com isso.

Hugh seguiu Rachel com os olhos enquanto ela atravessava o terraço para o lugar em que Micky se encontrava, conversando com a irmã de Edward, Clementine, Tia Madeleine e a jovem Tia Beatrice. Ele se virou para Rachel concedendo-lhe toda a sua atenção, enquanto apertava sua mão e dizia algo que a fez rir. Micky estava sempre conversando com três ou quatro mulheres ao mesmo tempo.

Mesmo assim, Hugh detestou a sugestão de que Florence era de alguma forma parecida com Micky. Ela também era atraente e popular, mas Micky era um cafajeste, refletiu Hugh. Ele se aproximou de Florence, emocionado e nervoso.

- Como tem passado, Lady Florence? Ela sorriu, deslumbrante.

- Que casa extraordinária!

- Gosta?

- Não tenho certeza.

- É o que diz a maioria das pessoas.

Ela riu, como se Hugh tivesse feito um comentário espirituoso, e ele se sentiu extremamente satisfeito.

- É muito moderna - continuou Hugh. - Tem cinco banheiros, uma enorme caldeira no porão que aquece a casa inteira, e canos de água quente.

- Talvez o navio de pedra lá em cima seja um pouco exagerado. Hugh baixou a voz ao dizer:

- Também acho. Lembra-me da cabeça de vaca na frente de um açougue.

Florence soltou outra risadinha. Hugh experimentou a maior satisfação por ser capaz de fazê-la rir. Decidiu que seria ótimo afastá-la da multidão.

- Precisa conhecer o jardim.

- É adorável!

Não era, pois acabara de ser plantado, mas isso não tinha a menor importância. Hugh conduziu-a pelo terraço, mas foram detidos por Augusta, que lançou um olhar de censura para o sobrinho e disse:

- Lady Florence, foi muita gentileza sua ter vindo! Edward vai lhe mostrar o jardim.

Ela pegou o filho, sentado ali perto, e despachou os dois para o jardim, antes que Hugh pudesse dizer qualquer coisa. Ele rangeu os dentes em frustração e jurou a si mesmo que não a deixaria escapar impune por isso.

- Hugh, meu caro, sei que você quer conversar com Rachel. Augusta segurou-o pelo braço e levou-o de volta. Não havia nada que ele pudesse fazer para resistir, a não ser desvencilhar o braço e provocar uma cena. Rachel conversava com Micky Miranda e seu pai.

- Micky, quero que seu pai conheça meu cunhado, Mr. Samuel Pilaster.

Augusta afastou-se com Micky e o pai, deixando Hugh outra vez em companhia de Rachel, que começou a rir.

- Não se pode discutir com ela.

- Seria como discutir com um trem a toda velocidade - comentou Hugh, furioso.

Ele podia ver a anquinha do vestido de Florence balançando pelo jardim, ao lado de Edward. Rachel acompanhou seus olhos e sugeriu:

- Vá atrás dela. Hugh sorriu.

- Obrigado.

Ele encaminhou-se apressado para o jardim. Ao se aproximar, uma idéia maliciosa lhe ocorreu. Por que não entrar no jogo da tia, e afastar Edward de Florence? Augusta ficaria uma fera ao descobrir... mas valeria a pena, por alguns minutos a sós no jardim com Florence. E que se danasse o resto, pensou ele.

- Edward, sua mãe me pediu para chamá-lo. Ela está no salão. Edward não questionou: já se acostumara às repentinas mudanças de idéia da mãe.

- com licença, por favor, lady Florence.

Ele deixou os dois, voltou para a casa. Florence indagou:

- Ela mandou mesmo chamá-lo?

- Não.

- Mas que maldade! - protestou ela, mas sorrindo.

Hugh fitou-a nos olhos, deleitando-se com sua aprovação. Teria problemas depois, mas arriscaria muito mais em troca de um sorriso assim.

- Venha conhecer o pomar - sugeriu ele.

Augusta estava se divertindo com Papa Miranda. Que camponês mais atarracado! Era muito diferente do filho gracioso e elegante. Augusta gostava bastante de Micky Miranda. Sempre se sentia mais mulher quando se achava em sua companhia, embora ele fosse tão jovem. Micky tinha um jeito de contemplá-la como se ela fosse a coisa mais desejável que já vira. Havia ocasiões em que Augusta desejava que ele fizesse mais do que olhar. Era um desejo absurdo, é claro, mas mesmo assim ela o experimentava de vez em quando.

Ficara alarmada com a conversa a respeito de Seth. Micky presumia que, quando o velho Seth morresse ou se aposentasse, seu filho Samuel assumiria como o Sócio Sênior do Pilasters Bank. Micky não faria essa suposição por conta própria.- devia tê-la captado da família. Augusta não queria que Samuel assumisse. Queria o cargo para seu marido Joseph, sobrinho de Seth.

Ela olhou pela janela da sala de estar e avistou os quatro sócios do Pilasters Bank juntos, no terraço. Três eram Pilasters; Seth, Samuel e Joseph - os metodistas

do início do século XIX tinham uma preferência por nomes bíblicos. O velho Seth parecia o inválido que era, sentado com uma manta sobre os joelhos, sobrevivendo à sua utilidade. O filho estava ao seu lado. Samuel não tinha uma aparência tão distinta quanto a do pai. Possuía o mesmo nariz, que se assemelhava a um bico, mas por baixo a boca era um tanto mole, com dentes estragados. A tradição o indicava como sucessor porque era o mais velho dos sócios, depois de Seth. O marido de Augusta, Joseph, era quem falava, argumentando para o tio e o primo com movimentos curtos da mão, um gesto característico de impaciência. Ele também tinha o nariz Pilaster, mas o resto das feições era um tanto irregular, e começava a perder os cabelos. O quarto sócio mantinha-se um pouco recuado, escutando com os braços cruzados. Era o major George Hartshorn, marido da irmã de Joseph, Madeleine. Ex-oficial do Exército, exibia uma cicatríz proeminente na testa, de um ferimento sofrido há 20 anos, na Guerra da Criméia. Não era nenhum herói, porém; seu cavalo se assustara com um motor a vapor, ele caíra e batera a cabeça na roda de uma carroça. Homem amável, que seguia as orientações dos outros, ele não era bastante inteligente para dirigir o banco, e além do mais nunca houvera um Sócio Sênior cujo nome não fosse Pilaster.

Os únicos candidatos para valer eram Samuel e Joseph.

Tecnicamente, a decisão era tomada por votação dos sócios. Pela tradição, a família costumava chegar a um consenso. Na realidade, Augusta sentia-se determinada a impor sua vontade. Mas não seria fácil.

O Sócio Sênior do Pilasters Bank era um dos homens mais importantes do mundo. Sua decisão de conceder um empréstimo podia salvar um monarca; sua recusa podia desencadear uma revolução. Junto com um punhado de outros J.P. Morgan, os Rothschilds, Ben Greenbourne - ele tinha nas mãos a prosperidade de nações. Era adulado por chefes de Estado, consultado por primeiros-ministros e cortejado por diplomatas; e sua esposa era bajulada por todos.

Joseph queria o cargo, mas não tinha qualquer sutileza. Augusta sentia-se apavorada com a possibilidade de o marido deixar a oportunidade escapar-lhe das mãos.

Entregue a si mesmo, ele poderia dizer bruscamente que gostaria de ser considerado, e depois permitir que a família decidisse. Podia não lhe ocorrer que havia outras coisas que deveria fazer para ter certeza de que venceria a competição. Por exemplo, Joseph jamais faria algo para desacreditar o rival.

Augusta encontraria meios de fazer isso por ele.

Não tivera a menor dificuldade para identificar a fraqueza de Samuel. Aos 53 anos de idade ele era um solteirão, e vivia com um rapaz a que todos se referiam, na maior jovialidade, como seu "secretário". Até agora, a família não dispensara a menor atenção aos arranjos domésticos de Samuel, mas Augusta especulava se não poderia mudar essa situação.

Seria preciso o maior cuidado para lidar com Samuel. Era um homem preciso e meticuloso, o tipo capaz de mudar toda a roupa só porque uma gota de vinho caiu no joelho da calça; mas não era frouxo e não podia ser intimidado. Uma ofensiva frontal não era o meio de atacá-lo.

Não teria nenhum pesar por prejudicá-lo. Jamais gostara de Samuel. Às vezes ele se comportava como se a achasse divertida, e tinha um jeito de se recusar a aceitá-la pelo que ela aparentava, o que causava a mais profunda irritação em Augusta.

Circulando entre os convidados, ela tratou de afastar da mente a relutância impertinente do sobrinho Hugh em cortejar uma jovem adequada. Esse ramo da família sempre criara problemas, e ela não permitiria que a distraísse da questão mais importante para a qual Micky a alertara: a ameaça de Samuel.

Ela avistou a cunhada, Madeleine Hartshorn, no vestíbulo. Pobre Madeleine, logo se via que era irmã de Joseph por causa do nariz Pilaster. Em alguns dos homens parecia distinto, mas nenhuma mulher podia parecer outra coisa a não ser feia com um nariz enorme como aquele.

Madeleine e Augusta haviam sido rivais outrora. Anos antes, logo depois do casamento de Joseph, Madeleine ressentira-se da maneira como a família começara a se concentrar em torno de Augusta - muito embora Madeleine nunca tivesse o magnetismo ou a energia para fazer o que Augusta fazia: cuidar de casamentos e funerais, promover romances, apaziguar brigas e organizar o apoio para doentes, grávidas e desconsolados. A atitude de Madeleine quase causara uma divisão na família. Depois, no entanto, ela entregara uma arma nas mãos de Augusta. Esta entrara uma tarde numa loja de prataria exclusiva na Bond Street, bem a tempo de ver Madeleine se esgueirar para os fundos. Augusta continuara ali, fingindo hesitar diante de uma bandeja para torradas, até divisar um jovem bonito seguir pelo mesmo caminho. Já ouvira comentários de que quartos sobre lojas assim eram às vezes usados para encontros românticos, e agora tinha quase certeza de que Madeleine mantinha uma relação extraconjugal. Uma nota de cinco libras persuadira a proprietária da loja, uma certa Mrs. Baxter, a revelar o nome do jovem, visconde Tremain.

Augusta ficara verdadeiramente chocada, mas o primeiro pensamento que lhe ocorrera fora o de que, se Madeleine podia se divertir com o visconde Tremain, ela também poderia fazê-lo com Micky Miranda. Mas era inadmissível, é claro. Além do mais, se Madeleine fora descoberta, o mesmo poderia lhe acontecer.

Madeleine poderia ficar arruinada socialmente. Um homem que tinha um caso amoroso era considerado iníquo, mas também romântico; uma mulher que fazia o mesmo era uma meretriz. Se o seu segredo transpirasse, ela seria escorraçada pela sociedade, a família se envergonharia de sua pessoa. A primeira idéia de Augusta fora a de usar o segredo para controlar Madeleine, mantendo sobre sua cabeça a ameaça de denúncia. Mas isso a tornaria hostil para sempre. Era tolice multiplicar inimigos sem necessidade. Tinha de haver um meio pelo qual pudesse desarmar Madeleine e ao mesmo tempo convertê-la numa aliada. Depois de muita reflexão, Augusta formulara uma estratégia. Em vez de intimidar Madeleine com a informação, ela fingiria estar do seu lado.

- Um aviso sensato, minha cara Madeleine - sussurrara Augusta. - Mrs. Baxter não merece confiança. Diga a seu visconde para providenciar um lugar mais discreto.

Madeleine lhe suplicara que guardasse segredo e se mostrara pateticamente grata quando Augusta prometera de bom grado silêncio eterno. Desde então, não houvera mais qualquer rivalidade entre as duas. Agora, Augusta pegou Madeleine pelo braço e disse:

- Venha conhecer o meu quarto... acho que você vai gostar.

No segundo andar da casa ficavam o seu quarto de dormir e o de vestir, o quarto de dormir e o de vestir de Joseph, e um escritório. Ela levou Madeleine a seu quarto, fechou a porta e esperou pela reação.

Decorara o quarto na última moda japonesa, com cadeiras de arabescos, papel de parede de plumas de pavão e peças de porcelana no consolo da lareira. Havia um enorme guarda-roupa pintado com temas japoneses, e o divã junto da janela projetada para fora era ocultado em parte por cortinas.

- Mas que ousadia, Augusta! - exclamou Madeleine.

- Obrigada. - Augusta experimentou uma felicidade quase total pelo efeito. - Havia um material melhor para as cortinas que eu desejava, mas a Liberty"s já tinha vendido quando fui lá. Venha conhecer o quarto de Joseph.

Ela conduziu Madeleine pela porta de comunicação. O quarto de Joseph era decorado numa versão mais moderada do mesmo estilo, com papel escuro nas paredes e cortinas de brocado. Augusta sentia um orgulho especial pelo armário laqueado de portas de vidro que continha a coleção de caixas de rapé cravejadas de pedras preciosas do marido.

-Joseph é um excêntrico - comentou Madeleine, olhando para as caixas de rapé.

Augusta sorriu. O marido não tinha nada de excêntrico, em termos gerais, mas era insólito para um solene banqueiro metodista colecionar algo tão frívolo e requintado, e toda a família se divertia com isso.

- Ele diz que é um bom investimento - explicou Augusta.

Um colar de diamantes para ela também seria um bom investimento, mas o marido jamais comprava tais coisas, pois os metodistas consideravam as jóias uma extravagância desnecessária.

- Um homem deve ter um hobby - disse Madeleine. - Serve para mantê-lo longe de encrencas.

Longe dos bordéis, era o que ela queria dizer. A referência implícita aos pecadilhos dos homens lembrou Augusta de seu propósito. Com extrema delicadeza, ela indagou:

- Madeleine, minha cara, o que vamos fazer em relação a nosso primo Samuel e seu secretário?

Madeleine ficou perplexa.

- Devemos fazer alguma coisa?

- Se Samuel se tornar o Sócio Sênior, devemos.

- Por quê?

- Ora, minha cara, o Sócio Sênior do Pilasters tem de receber embaixadores, chefes de Estado, até mesmo a realeza... e deve ser absolutamente irrepreensível em sua vida particular.

A compreensão surgiu, e Madeleine corou.

- Não está sugerindo que Samuel seja de alguma forma... depravado? Era exatamente o que Augusta sugeria, mas não queria dizê-lo expressamente por receio de pressionar Madeleine a defender o primo.

- Espero nunca saber - respondeu ela, evasiva. - O importante é o que as pessoas pensam.

Madeleine ainda não se convencera.

- Acha mesmo que as pessoas pensam... isso?

Augusta forçou-se a ter paciência com os melindres de Madeleine.

- Minha cara, ambas somos casadas e sabemos como são os homens. Possuem apetites animais. O mundo presume que um homem solteiro de 53 anos que vive com um rapaz bonito é pervertido... e os céus sabem que na maioria dos casos o mundo provavelmente está certo.

Madeleine franziu o cenho, parecendo preocupada. Antes que pudesse dizer qualquer coisa, houve uma batida na porta e Edward entrou.

- O que é, mãe?

Augusta irritou-se com a interrupção e não entendeu o que o filho queria.

- Como assim?

- Você mandou me chamar.

- De jeito nenhum. Eu lhe disse para mostrar o jardim a lady Florence. Edward assumiu uma expressão magoada.

- Mas Hugh disse que você queria falar comigo! Augusta compreendeu tudo.

- É mesmo? E posso supor que é ele quem está mostrando o jardim a lady Florence neste momento?

Edward percebeu aonde a mãe queria chegar.

- Acho que sim - murmurou ele, aflito. - Não fique zangada comigo, mãe, por favor.

Augusta se derreteu no mesmo instante.

- Não se preocupe, Teddy querido. Hugh é um menino muito astuto. Mas se ele pensava que podia ser mais esperto do que sua Tia Augusta, era um tolo também.

A interrupção irritara-a, mas pensando bem ela chegou à conclusão de que já dissera o suficiente a Madeleine sobre o primo Samuel. Naquele estágio, tudo o que desejava era plantar a semente da dúvida: qualquer coisa a mais poderia ser um desastre. Decidiu deixar como estava. Saiu com a cunhada e o filho do quarto proclamando:

- Agora preciso voltar aos meus convidados.

Desceram todos. A festa corria muito bem, a julgar pela cacofonia de conversa, riso e uma centena de colheres de chá de prata retinindo em pires de porcelana. Augusta verificou por um instante a sala de jantar, onde os criados serviam salada de lagosta, bolo de frutas e bebidas geladas. Passou pelo vestíbulo, trocando uma ou duas palavras com cada convidado que atraía sua atenção, mas procurando por uma pessoa em particular - a mãe de Florence, lady Stalworthy.

Preocupava-se com a possibilidade de Hugh casar com Florence. Hugh já vinha se saindo muito bem no banco. Tinha o ágil cérebro comercial de um vendedor ambulante e o comportamento cativante de um jogador profissional. Até mesmo Joseph falava dele com aprovação, alheio à ameaça a seu próprio filho. O casamento com a filha de um conde daria a Hugh a posição social para desenvolver seus talentos naturais, o que o tornaria um perigoso rival para Edward.

O querido Teddy não possuía o charme superficial de Hugh, nem sua cabeça para cifras, e por isso precisava de toda a ajuda que Augusta pudesse lhe conceder.

Ela encontrou lady Stalworthy de pé, junto à janela da sala de estar. Era uma bela mulher de meia-idade, num vestido rosa e um pequeno chapéu de palha cheio de flores.

Augusta especulou, na maior ansiedade, como ela se sentia em relação a Hugh e Florence. Hugh não chegava a ser um grande partido, mas também não era um desastre, do ponto de vista de lady Stalworthy. Florence era a mais jovem de três filhas, e as outras duas haviam casado bem. Assim, lady Stalworthy podia ser indulgente.

Augusta precisava impedir aquela união. Mas como?

Ela aproximou-se da janela e percebeu que lady Stalworthy observava Hugh e Florence no jardim. Hugh explicava alguma coisa, e os olhos de Florence faiscavam de prazer enquanto o contemplava e escutava.

- A felicidade despreocupada da juventude - murmurou Augusta.

- Hugh parece um bom rapaz - comentou lady Stalworthy.

Augusta fitou-a atentamente por um momento. Lady Stalworthy exibia um sorriso sonhador. Fora outrora tão bonita quanto a filha, calculou Augusta. Agora, recordava sua própria juventude. Precisava ser trazida de volta ao mundo com um solavanco, decidiu Augusta.

- Como passam depressa esses dias despreocupados...

- Mas são tão idílicos enquanto duram! Era a hpra do veneno.

- O pai de Hugh morreu, como você sabe. E sua mãe leva uma vida retraída em Folkestone. Por isso, Joseph e eu nos sentimos na obrigação de assumir um interesse parental.

- Augusta fez uma pausa. - Creio que nem preciso dizer que uma aliança com sua família seria um triunfo extraordinário para Hugh.

- É muita gentileza sua dizer isso - respondeu lady Stalworthy, como se tivesse recebido um lindo elogio. - Os Pilasters também são uma família de distinção.

- Obrigada. Se Hugh trabalhar com afinco, poderá um dia ter uma vida confortável.

Lady Stalworthy parecia um pouco consternada.

- Quer dizer que o pai nada lhe deixou?

- Não. - Augusta precisava fazer com que ela soubesse que Hugh não receberia nenhum dinheiro dos tios ao casar. - Ele terá de trabalhar muito para subir no banco,

vivendo de seu salário.

- Ah... - murmurou lady Stalworthy, o rosto deixando transparecer uma insinuação de desapontamento. - Felizmente, Florence tem uma pequena independência.

Augusta sentiu um aperto no coração. Portanto, Florence tinha seu próprio dinheiro. Era uma péssima notícia. Augusta especulou quanto seria. Os Stalworthys não eram tão ricos quanto os Pilasters - poucas pessoas eram - mas levavam uma vida confortável, Augusta refletiu. De qualquer forma, a pobreza de Hugh não era suficiente para colocar lady Stalworthy contra ele. Augusta teria de tomar medidas mais fortes.

- A querida Florence seria uma grande ajuda para Hugh... uma influência estabilizadora, tenho certeza.

- É, sim - disse lady Stalworthy, distraída, para depois franzir o cenho. - Estabilizadora?

Augusta hesitou. Esse tipo de coisa era perigoso, mas tinha de assumir o risco.

- Nunca dou ouvido a boatos, e tenho certeza de que você também não - disse ela. - Tobias foi bastante desafortunado, quanto a isso não resta a menor dúvida, mas Hugh praticamente não apresenta qualquer sinal de ter herdado a fraqueza.

- Isso é ótimo - comentou lady Stalworthy, mas com uma expressão de profunda ansiedade.

- Mesmo assim, Joseph e eu ficaríamos felizes em vê-lo casado com uma moça tão sensata quanto Florence. Sente-se que ela seria firme com ele se...

Augusta deixou o resto da frase no ar.

- Eu... - Lady Stalworthy engoliu em seco. - Não me recordo qual era a fraqueza do pai.

- Acho que não era verdade.

- Apenas entre nós duas.

- Talvez eu não devesse ter tocado no assunto.

- Preciso saber de tudo, pelo bem de minha filha. Tenho certeza de que compreende.

- O jogo. - Augusta falou em voz baixa, pois não queria ser ouvida por outros: havia pessoas ali que saberiam que ela mentia. - Foi o que o levou a tirar a própria vida. A vergonha.

Queiram os céus que os Stalworthys não se dêem ao trabalho de conferir a verdade, pensou ela, fervorosa.

- Pensei que sua companhia tivesse quebrado.

- Isso também.

- Que coisa trágica!

- É verdade. Joseph teve de pagar as dívidas de Hugh uma ou duas vezes, mas falou muito firme com o rapaz e temos certeza de que isso não tornará a acontecer.

- O que é tranqüilizador - disse lady Stalworthy, mas seu rosto contava uma história diferente.

Augusta concluiu que já devia ter falado o suficiente. A farsa de que era a favor da união se dissipava de uma maneira perigosa. Tornou a olhar pela janela. Florence ria de alguma coisa que Hugh dizia, inclinando a cabeça para trás e mostrando os dentes de um jeito um tanto... inconveniente. Ele praticamente a comia com os olhos.

Todos na festa podiam perceber que se sentiam atraídos um pelo outro.

- Tenho a impressão de que não vai demorar muito para que a situação alcance o ponto culminante - acrescentou Augusta.

- Talvez já tenham conversado o suficiente por um dia - declarou lady Stalworthy, transtornada. - É melhor eu interferir. Com licença.

- Pois não.

Lady Stalworthy encaminhou-se apressada para o jardim.

Augusta sentiu-se aliviada. Conduzira com êxito outra conversa delicada. Lady Stalworthy desconfiava agora de Hugh, e a partir do momento em que uma mãe sentia-se apreensiva em relação a um pretendente, raramente ficava a seu favor no final.

Ela olhou ao redor e avistou Beatrice Pilaster, outra cunhada. Joseph tivera dois irmãos: um fora Tobias, o pai de Hugh, e o outro era William, sempre chamado de

Jovem William, porque nascera 23 anos depois de Joseph. William tinha agora 25 anos e ainda não era um sócio no banco. Beatrice era sua esposa. Era como uma cachorrinha enorme, feliz e desajeitada, ansiosa por ser amiga de todos. Augusta decidiu lhe falar sobre Samuel e seu secretário. Aproximou-se e disse:

- Beatrice, minha cara, não gostaria de conhecer meu quarto?

 

Micky e o pai deixaram a festa e voltaram a pé para seus aposentos. Passaram apenas por parques - primeiro o Hyde Park, depois o Green Park, e o St. James"s Park - até chegarem ao rio. Pararam no meio da Ponte de Westminster para descansar por um momento e contemplar a vista.

Na margem norte do rio ficava a maior cidade do mundo. Rio acima, podia-se avistar as Casas do Parlamento, construídas numa imitação moderna da abadia de Westminster, do século XIII, situada nas proximidades. Rio abaixo viam-se os jardins de Whitehall, o palácio do duque de Buccleuch e o vasto prédio de alvenaria da nova estação ferroviária de Charing Cross.

As docas se achavam fora de vista e os navios grandes não subiam até ali, mas o rio estava movimentado, com botes, barcaças e embarcações de passeio, uma linda paisagem ao sol do final da tarde.

A margem sul parecia pentercer a um poderia ser um país diferente. Era a área das cerâmicas de Lambeth, e ali, nos campos de barro pontilhados de oficinas quase

em ruínas, bandos de homens e mulheres pálidos e esfarrapados ainda trabalhavam, fervendo ossos, catando lixo, acendendo fornos e despejando a massa nos moldes a fim de fazer os canos de escoamento e chaminés para a cidade em rápida expansão. Mesmo na ponte, a mais de meio quilômetro de distância, o cheiro ainda era forte.

As choupanas em que aquelas pessoas viviam se agrupavam em torno dos muros do Palácio Lambeth, a residência em Londres do arcebispo de Canterbury, como a sujeira deixada pela maré alta na praia lamacenta. Apesar da proximidade do palácio do arcebispo, o lugar era conhecido como Devil's Acre, o acre do demônio, provavelmente por causa das fogueiras e da fumaça, dos trabalhadores se arrastando e do cheiro fétido que levavam as pessoas a pensarem no inferno.

Os aposentos de Micky ficavam em Camberwell, um subúrbio respeitável, além das cerâmicas; mas ele e o pai hesitaram na ponte, relutantes em atravessarem Devil's Acre. Micky ainda amaldiçoava a escrupulosa consciência metodista do velho Seth Pilaster por frustrar seus planos.

- Resolveremos esse problema do embarque dos rifles, Papa - disse ele. - Não se preocupe.

Papa deu de ombros.

- Quem está se interpondo em nosso caminho?

Era uma pergunta simples, mas tinha um significado profundo na família Miranda. Quando enfrentavam um problema difícil, sempre perguntavam Quem está se interpondo em nosso caminho? Significava., na verdade, Quem temos de matar para conseguir o que queremos? Fazia Micky recordar de todo o barbarismo da vida na província de Santamaria, todas as lendas macabras que ele preferia esquecer: a história da punição que Papa aplicara à sua amante por ser infiel, enfiando-lhe um rifle e puxando o gatilho; a ocasião em que uma família judia abrira um armazém ao lado do seu na capital da província, e por isso ele o incendiara, queimando o homem, a mulher e os filhos vivos; o anão que se vestira como Papa no Carnaval e fizera todo mundo rir ao desfilar de um lado para outro numa perfeita imitação do modo de andar de Papa... até que este se aproximara calmamente, sacara uma pistola e estourara a cabeça do anão.

Mesmo em Córdoba isso não era normal, mas ali a brutalidade temerária de Papa o convertera num homem a ser temido. Aqui, na Inglaterra, o levaria à cadeia.

- Não prevejo a necessidade de uma ação drástica - declarou Micky, tentando encobrir seu nervosismo com um ar de despreocupação.

- Por enquanto, não há pressa. O inverno está começando em Córdoba. Não haverá luta antes do verão. - Papa lançou um olhar duro para Micky. - Mas preciso dos rifles até o final de outubro.

O olhar deixou Micky com os joelhos bambos. Teve de encostar no parapeito de pedra da ponte para se firmar.

- Cuidarei de tudo, Papa - murmurou ele, ansioso. - Não se preocupe.

Papa balançou a cabeça como se não tivesse a menor dúvida a respeito. Permaneceram em silêncio por um minuto. E depois, inesperadamente, Papa anunciou:

- Quero que você continue em Londres.

Micky sentiu os ombros descaírem em alívio. Era o que ele mais desejava. Portanto, devia ter feito algo certo.

- Acho que pode ser uma boa idéia, Papa - disse ele, tentando disfarçar sua satisfação.

E foi nesse momento que Papa lançou a bomba:

- Mas vamos suspender a remessa de dinheiro para você.

- Como?

- A família não pode mais mantê-lo. Terá de cuidar do seu próprio sustento.

Micky ficou consternado. A mesquinhez do pai era tão lendária quanto sua violência, mas ainda assim aquilo era inesperado. Os Mirandas eram ricos. Papa tinha milhares de cabeças de gado, monopolizava todos os negócios com cavalos num vasto território, arrendava terras para pequenos fazendeiros e possuía a maior parte das lojas da província de Santamaria.

Era verdade que o dinheiro da família não comprava muita coisa na Inglaterra. Em sua terra, um dólar de prata cordovês pagava uma lauta refeição, uma garrafa de rum e uma meretriz para passar a noite; aqui, mal daria para uma refeição ordinária e um copo de cerveja fraca. Micky compreendera isso como um tremendo golpe quando ingressara na Windfield School. Conseguira complementar sua mesada jogando cartas, mas tivera dificuldades para equilibrar o orçamento até se tornar amigo de Edward. Mesmo agora, Edward ainda pagava por todas as diversões caras que partilhavam: a ópera, visitas aos hipódromos, caçadas e meretrizes.

Mas Micky precisava de uma renda básica para pagar o aluguel, as contas do alfaiate, mensalidades dos clubes de cavalheiros que eram um elemento essencial da vida em Londres, e gorjetas para os criados. Como Papa esperava que ele conseguisse esse dinheiro? Arrumando um emprego? A perspectiva era assustadora. Nenhum membro da família Miranda trabalhava por salário.

Ele já ia perguntar como poderia viver sem dinheiro quando Papa mudou de assunto abruptamente:

- Explicarei agora para que são os rifles. Vamos nos apoderar do deserto.

Micky não entendeu. A propriedade dos Mirandas abrangia uma extensa área da província de Santamaria. Era limitada por uma propriedade menor, que pertencia à família Delabarca. Ao norte de ambas, estendia-se uma terra tão árida que nem Papa nem seu vizinho jamais haviam se dado ao trabalho de reivindicá-la.

- Para que queremos o deserto? - indagou Micky.

- Por baixo da areia há um mineral chamado nitrato. É usado como fertilizante, muito melhor do que estéreo. Pode ser embarcado para o mundo inteiro e vendido por altos preços. Quero que você fique em Londres para tomar conta da venda.

- Como sabemos que o mineral existe?

- Delabarca começou a extraí-lo, o que tornou sua família rica.

Micky sentia-se excitado. Aquilo podia transformar o futuro da família. Não de imediato, é claro; não bastante depressa para resolver o problema de sua sobrevivência sem o dinheiro de Papa. Mas a longo prazo...

- Temos de agir depressa - acrescentou Papa. - Riqueza é poder, e logo a família Delabarca será mais forte do que nós. Antes que isso aconteça, temos de destruí-la.

 

Junho

Whitehaven House Kensington Gore Londres, S. W.

2 de junho de 1873

Minha cara Florence,

Onde você está? Eu esperava encontrá-la no baile de Mrs. Bridewell, depois em Richmond, depois na casa dos Muncasters no sábado... mas você não foi a qualquer deles!

Escreva-me uma linha e diga que continua viva! Afetuosamente, Hugh Pilaster

Park Lane, 23

Londres, W.

 

3 de junho de 1873

A Hugh Pilaster, Esquire Senhor:

Agradeceria se não tentasse se comunicar com minha filha, sob quaisquer circunstâncias, daqui por diante. Stalworthy

 

Whitehaven House Kensington Gore Londres, S.W.

6 de junho de 1873

Querida Florence:

Finalmente encontrei uma mensageira confidencial para lhe entregar um bilhete. Porque vem sendo afastada de mim? Ofendi seus pais? Ou- que os céus não permitam

- a você? Sua prima Jane ficou de me trazer a resposta. Escreva-a depressa! com um profundo afeto, Hugh

 

Stalworthy Manor Stalworthy Buckinghamshire

7 de junho de 1973

Caro Hugh:

Estou proibida de vê-lo porque você é um jogador como

seu pai. Lamento sinceramente, mas devo acreditar que meus pais sabem o que é melhor para mim.

Com extremo pesar,

Florence

 

Whitehaven House Kensington Gore Londres, S.W.

8 de junho de 1873

Querida Mãe:

Uma jovem acaba de me rejeitar porque meu pai era um jogador. Isso é verdade? Por favor, responda imediatamente Preciso saber! Seu filho que muito a ama, Hugh

63

 

Wellington Villas, 2

Folkestone

Kent

9 de junho de 1873

Meu querido filho:

Jamais soube que seu pai jogava. Não posso imaginar quem inventaria uma coisa tão iníqua a seu respeito. Ele perdeu seu dinheiro num colapso dos negócios, como eu sempre disse a você. Não houve qualquer outro motivo. Espero que esteja bem e feliz, meu querido, e que sua amada acabe por aceitá-lo. Continuo como sempre. Sua irmã Dorothy manda lembranças. Sua Mãe

 

Whitehaven House Kensington Gore Londres, S.W.

10 de junho de 1873

Querida Florence:

Creio que alguém pode ter lhe contado uma coisa errada sobre meu pai. Sua companhia foi à bancarrota, é verdade. Não foi culpa dele: uma grande firma chamada OverendSi

Gurney quebrou, devendo cinco milhões de libras, e muitos dos credores foram à ruina. Ele acabou com apropria vida no mesmo dia. Mas jamais foi um jogador, e eu também não sou.

Se explicar isso ao nobre conde, seu pai, acredito que tudo ficará esclarecido. Afetuosamente, Hugh

 

Stalworthy Manor Stalworthy Buckinghan ish ire

11 de junho de 1873

Hugh:

Escrever mentiras para mim não vai adiantar. Sei agora

com certeza que o conselho de meus pais é certo, e que devo esquecê-lo.

Florence

 

Whitehaven House Kensington Gore Londres, S.W.

12 de junho de 1873

Querida Florence:

Tem de acreditar em mim! É possível que eu não tenha

contado a verdade sobre meu pai- embora não possa, com toda a sinceridade, duvidar da palavra de minha mãe, mas quanto a mim sei a verdade! Quando tinha 14 anos, apostei um xelim no Derby e perdi; desde então, nunca mais pensei em jogar em qualquer coisa. Quando a encontrar, farei um juramento.

Com a maior esperança,

Hugh

 

Foljambe & Meniweather, Advogados

G ray"s Inn

Londres, W.C.

13 de junho de 1873

A Hugh Pilaster, Esquire Senhor:

Fomos instruídos por nosso cliente, o conde de Stalworthy, a lhe solicitar que desista de qualquer tentativa de comunicação com sua filha.

Por favor, queira tomar conhecimento de que o nobre

conde tomará toda e qualquer providência necessária, inclusive uma ação judicial, para obrigá-lo a cumprir sua vontade nessa questão, a menos que se abstenha imediatamente.

Por Messrs. Foljambe& Merríweather

Albert C. Merríweather

 

Hugh:

Ela mostrou sua última carta à minha tia, a mãe dela. Levaram-na para Paris, até o fim da Temporada em Londres, e depois vão para Yorkshire. Não adianta- ela não quer mais saber de você. Sinto muito. Jane

 

Argyll Rooms era o local de diversão mais popular em Londres, mas Hugh nunca estivera lá. Jamais lhe ocorreria visitar um lugar assim: embora não chegasse a ser um bordel, tinha uma péssima reputação. Contudo, poucos dias depois de Florence Stalworthy rejeitá-lo de forma definitiva, Edward convidou-o para ir com ele e Micky até lá para uma noite de devassidão. Hugh aceitou.

Não passava muito tempo com o primo. Edward sempre fora mimado, um arrogante e preguiçoso que arrumava outras pessoas para fazerem seu trabalho. Hugh há muito fora lançado no papel de ovelha negra da família, seguindo os passos do pai. Tinham pouco em comum. Apesar disso, no entanto, Hugh decidiu experimentar os prazeres da devassidão. Espeluncas sórdidas e mulheres de vida fácil eram um modo de vida para milhares de ingleses das classes superiores. Talvez soubessem o que era certo:

talvez fosse aquele, em vez do amor verdadeiro, o caminho para a felicidade.

Na verdade, Hugh não tinha certeza de ter estado mesmo apaixonado por Florence. Sentia-se furioso pelos pais de Florence terem-na virado contra ele, ainda mais porque o motivo fora uma mentira insidiosa sobre seu pai. Mas descobrira, um tanto constrangido, que não ficara tão desolado assim. Pensava com freqüência em Florence, mas mesmo assim continuava a dormir bem, comer com apetite e se concentrar no trabalho sem dificuldade. Isso significava que nunca a amara? A moça de quem mais gostava no mundo, além da irmã Dotty, de seis anos, era Rachel Bodwin, e Hugh aventara a idéia de casar com ela. Isso era amor? Ele não sabia. Talvez fosse jovem demais para compreender o amor. Ou talvez simplesmente ainda não lhe ocorrera.

O Argyll Rooms ficava ao lado de uma igreja, na Great Windmill Street, perto de Piccadilly Circus. Edward pagou o ingresso de um xelim para cada um e entraram. Os três usavam traje a rigor: casaca preta com lapelas de seda, calça preta com galão de seda, colete branco, camisa branca e gravata-borboleta branca. O traje de Edward era novo e caríssimo; o de Micky um pouco mais barato, mas na última moda; e o de Hugh fora herdado de seu pai.

O salão de baile era uma extravagância iluminada por bicos de gás, com imensos espelhos dourados que aumentavam ainda mais a claridade. A pista de dança se encontrava apinhada de casais, e por trás de uma requintada treliça dourada havia uma orquestra, meio escondida, tocando uma vigorosa polca. Alguns homens usavam traje a rigor, um sinal de que pertenciam à classe superior e tinham vindo confraternizar com as pessoas inferiores; a maioria, porém, usava o respeitável terno preto de vestir durante o dia, o que a identificava como um bando de escriturários e pequenos negociantes.

Havia uma galeria escura em cima do salão de baile. Edward apontou para lá e disse a Hugh:

- Se fizer amizade com uma das mulheres, pode pagar mais um xelim e levá-la para cima: tem poltronas de pelúcia, meia-luz, e garçons cegos.

Hugh sentia-se ofuscado não apenas pelas luzes, mas também pelas possibilidades. Ao seu redor havia mulheres que tinham vindo com o propósito exclusivo de flertar!

Algumas estavam acompanhadas por namorados, mas outras se encontravam sozinhas, tencionando dançar com estranhos. Todas se vestiam com esmero, em vestidos de noite com anquinha, muitas com decotes profundos e os chapéus mais espantosos. Mas ele notou que na pista de dança todas usavam seus mantos, recatadas. Micky e Edward haviam lhe assegurado que não eram prostitutas, mas jovens comuns, atendentes de lojas, criadas e costureiras.

- Como se faz para conhecê-las? - indagou Hugh. - Não se pode abordá-las, tenho certeza, como se fossem meretrizes das ruas.

Edward apontou para um homem alto e de aparência distinta, de casaca e gravata branca, com algum emblema no peito e que parecia supervisionar a dança.

- Aquele é o mestre de cerimônias. Fará uma apresentação, se você lhe der uma gorjeta.

O clima era uma mistura curiosa mas excitante de respeitabilidade e licenciosidade, constatou Hugh. A polca terminou, e alguns dançarinos retornaram às suas mesas.

Edward apontou e exclamou:

- Essa não! Lá está Fatty Greenbourne!

Hugh olhou na direção indicada e avistou seu antigo colega de colégio, maior do que nunca, estufando o colete branco. Estava abraçado com uma moça de beleza espetacular.

Os dois sentaram-se a uma mesa, e Micky sugeriu:

- Por que não vamos até lá por um momento?

Hugh estava ansioso para ver a moça de perto e concordou no mesmo instante. Os três jovens adiantaram-se entre as mesas.

- Boa noite, Fatty! - disse Edward, jovialmente.

- Olá, turma - respondeu ele, muito amável. -As pessoas me chamam agora de Solly.

Hugh vira Solly algumas vezes na City, o distrito financeiro de Londres. Há alguns anos que Solly trabalhava no escritório central do banco da família, perto do Pilasters, logo depois da esquina. Ao contrário de Hugh, Edward só trabalhava na City há poucas semanas, e era por isso que não esbarrara antes com Solly.

- Pensamos em nos juntar a vocês - acrescentou Edward em tom casual, lançando um olhar inquisitivo para a moça.

Solly virou-se para sua companheira.

- Miss Robinson, permita que eu lhe apresente alguns antigos colegas de colégio.- Edward Pilaster, Hugh Pilaster e Micky Miranda.

A reação de Miss Robinson foi surpreendente. Empalideceu por baixo do ruge e disse:

- Pilaster? Da mesma família de Tobias Pilaster?

- Tobias Pilaster era meu pai - disse Hugh. - Como conhece o nome?

Ela recuperou o controle num instante.

- Meu pai trabalhava na Tobias Pilaster & Co. Quando criança, eu costumava especular quem era Co.

Todos riram, e o momento de tensão passou. A moça indagou:

- Não gostariam de sentar?

Havia uma garrafa de champanhe na mesa. Solly serviu Miss Robinson e pediu mais copos.

- É uma verdadeira reunião dos antigos companheiros de Windfield . disse ele. - Adivinhem quem mais está aqui: Tonho Silva.

- Onde? - perguntou Micky.

Ele parecia insatisfeito por saber que Tonio se achava ali, e Hugh se perguntou por quê. No colégio, Tonio sempre tivera medo de Micky, ele recordou.

- Está na pista de dança - informou Solly. - Dançando com uma amiga de Miss Robinson, Miss April Tilsley.

Miss Robinson interveio:

- Podem me chamar de Maisie. Não sou uma moça formal.

E ela deu uma piscadela lasciva para Solly. Um garçom trouxe um prato com lagosta e pôs na frente de Solly. Ele enfiou um guardanapo no colarinho da camisa e começou a comer.

- Sempre pensei que os judeus não comessem carne de crustáceos - comentou Micky, num tom levemente insolente .

Solly continuava indiferente, como antes, a comentários do gênero.

- Só como a comida kosher em casa.

Maisie Robinson fitou Micky com uma expressão hostil.

- Nós, judeus, comemos o que gostamos - disse ela, tirando um pedaço de lagosta do prato de Solly.

Hugh ficou surpreso ao saber que ela era judia: sempre pensara que os judeus eram morenos. Estudou-a atentamente. Ela era um tanto baixa, mas aumentava sua altura por um palmo ou mais empilhando os cabelos amarelos-castanhos num coque alto, e complementando com um enorme chapéu ornamentado com folhas e frutas artificiais.

Por baixo do chapéu havia um rosto pequeno e imprudente, com um brilho malicioso nos olhos verdes. O decote do vestido castanho revelava uma extensão espantosa de busto sardento. Não se considerava, de um modo geral, que sardas eram atraentes, mas Hugh mal conseguia desviar os olhos. Depois de algum tempo, Maisie sentiu seu olhar e fitou-o também. Ele desviou os olhos, com um sorriso de desculpa.

Hugh tratou de afastar o pensamento daquele busto e correu os olhos pelo grupo. Notou como seus antigos colegas de colégio haviam mudado nos últimos sete anos. Solly Greenbourne amadurecera. Embora ainda fosse gordo e exibisse o mesmo sorriso descontraído, adquirira um ar de autoridade nos seus vinte e poucos anos. Talvez fosse uma decorrência da riqueza... mas Edward era rico e não tinha a mesma aura. Solly já era respeitado na City; e embora fosse fácil conquistar respeito quando se era o herdeiro do Greenbournes Bank, ainda assim um jovem tolo nessa posição poderia em pouco tempo se tornar alvo de zombadas.

Edward se tornara mais velho mas não amadurecera, ao contrário de Solly. Para ele, como para uma criança, a diversão era tudo. Não era estúpido, mas tinha dificuldade para se concentrar em seu trabalho no banco porque preferia estar em outro lugar, dançando, bebendo e jogando.

Micky era agora um belo demônio, com olhos escuros, sobrancelhas pretas e cabelos crespos um pouco compridos demais. Seu traje para a noite era correto, mas um tanto ousado: o paletó tinha gola e punhos de veludo, a camisa era rufada. Hugh notara que ele já atraíra olhares de admiração e sorrisos convidativos de várias mulheres sentadas às mesas próximas. Mas Maisie Robinson demonstrara aversão por ele, e Hugh calculou que não era apenas por causa do comentário sobre os judeus. Havia algo sinistro em Micky. Era quieto, vigilante e controlado, de uma maneira enervante. Não era franco, raramente deixava transparecer hesitação, insegurança ou vulnerabilidade,

e nunca revelava coisa alguma de sua alma... se é que tinha uma. Hugh não confiava nele.

A dança terminou, e Tonio Silva veio para a mesa com Miss April Tilsley. Hugh encontrara-se com Tonio em diversas ocasiões desde os tempos do colégio, mas poderia reconhecê-lo de imediato, mesmo que não o visse há anos, pelos cabelos ruivos. Haviam sido os melhores amigos até aquele dia pavoroso em 1866 quando a mãe de Hugh viera avisá-lo que o pai morrera e o tirara do colégio. Eram os garotos mais levados da quarta série, sempre metidos em encrencas, mas desfrutavam a vida apesar das surras.

Hugh especulara muitas vezes, ao longo dos anos, o que teria acontecido de fato no poço naquele dia. Nunca acreditara na história do jornal de que Edward tentara salvar Peter Middleton: Edward não teria coragem Mas Tonio ainda se recusava a falar a respeito, e a única outra testemunha, Albert "Hump" Cammel, fora viver na Colônia do Cabo.

Hugh estudou o rosto de Tonio enquanto ele apertava a mão de Micky. Tonio continuava a parecer intimidado por Micky.

- Como vai, Miranda? - disse ele em voz normal.

A expressão, no entanto, era uma mistura de medo e admiração, a atitude que um homem poderia assumir diante de um campeão de boxe famoso por seu temperamento explosivo.

A companheira de Tonio, April, era um pouco mais velha do que a amiga Maisie, calculou Hugh, e parecia ser fechada e agressiva, o que a tornava menos atraente, mas Tonio estava se divertindo em sua companhia - pegava no braço, sussurrava no ouvido, fazia-a rir.

Hugh tornou a se virar para Maisie. Ela era loquaz e animada, com uma voz melodiosa que tinha um leve sotaque do nordeste da Inglaterra, onde ficava o armazém de Tobias Pilaster. Sua expressão era sempre fascinante ao sorrir, franzir o cenho, fazer beicinho, torcer o nariz arrebitado e revirar os olhos. Tinha pestanas claras, notou Hugh, e havia um punhado de sardas no nariz. Era uma beleza pouco convencional, mas ninguém podia negar que era a mulher mais bonita do salão.

Hugh sentia-se obcecado pela idéia de que, já que Maisie se encontrava ali, no Argyll Rooms, estava disposta a beijar, acariciar e talvez Ir Até o Fim naquela noite com um dos homens à mesa. Ele imaginava um encontro sexual com quase todas as moças que conhecia - envergonhava-se da intensidade e freqüência com que pensava a respeito - mas isso normalmente só podia acontecer depois da corte, noivado e casamento. com Maisie, porém, podia ser naquela noite!

Ela tornou a perceber que Hugh a fitava e ele experimentou o sentimento embaraçoso, que Rachel Bodwin às vezes lhe proporcionava, de saber quais eram seus pensamentos.

Ele procurou desesperado por alguma coisa para dizer, e acabou balbuciando:

- Sempre viveu em Londres, Miss. Robinson?

- Estou aqui há apenas três dias.

Podia ser superficial, pensou Hugh, mas pelo menos estavam conversando.

- Tão pouco tempo! - exclamou ele. - Onde esteve antes?

- Viajando - respondeu ela, virando-se em seguida para falar com Solly.

- Ah... - murmurou Hugh.

Isso parecia encerrar a conversa, e ele ficou desapontado. Maisie agira quase como se tivesse algum ressentimento contra ele. Mas April se compadeceu, e explicou:

- Maisie trabalha num circo há quatro anos.

- Céus! Fazendo o quê?

Maisie tornou a se virar e informou:

- Montando a cavalo sem sela. Ficando de pé sobre os cavalos, pulando de um para outro, todos esses truques.

April acrescentou:

- Numa roupa justa, é claro.

O pensamento de Maisie num traje justo era insuportavelmente tantalizante. Hugh cruzou as pernas e indagou:

- Como entrou nesse trabalho?

Ela hesitou por um instante, depois pareceu tomar uma decisão sobre alguma coisa. Mudou de posição na cadeira para fitar Hugh diretamente, e um brilho perigoso surgiu em seus olhos.

- É fácil explicar. Meu pai trabalhava para a Tobias Pilaster & Co. Seu pai enganou o meu, deixando de pagar uma semana de trabalho. Minha mãe estava doente nessa ocasião. Sem aquele dinheiro, ou eu passaria fome, ou ela morreria. Por isso, fugi de casa. Tinha 11 anos de idade.

Hugh sentiu o rosto se avermelhar.

- Não creio que meu pai tenha enganado alguém. E se você tinha 11 anos, não poderia compreender o que aconteceu.

- Compreendi a fome e o frio!

- Talvez a culpa fosse de seu pai - insistiu Hugh, embora soubesse que era uma insensatez. - Ele não deveria ter filhos se não tivesse condições de alimentá-los.

- Ele podia alimentá-los! - explodiu Maisie. - Trabalhava como um escravo... e depois vocês roubaram o dinheiro dele!

- Meu pai foi à falência, mas nunca roubou.

- É a mesma coisa quando se é o perdedor!

- Não é a mesma coisa, e você é tola e insolente ao alegar que é. Era evidente que os outros achavam que ele fora longe demais, e várias pessoas se puseram a falar ao mesmo tempo. Tonio disse:

- Não vamos discutir sobre uma coisa que aconteceu há tanto tempo. Hugh sabia que deveria parar, mas ainda se sentia furioso.

- Desde os 13 anos tenho de escutar a família Pilaster condenando meu pai, mas não aceitarei isso de uma artista de circo.

Maisie levantou-se, os olhos faiscando como esmeraldas lapidadas. Por um momento, Hugh chegou a pensar que ela fosse esbofeteá-lo. Depois, ela disse apenas:

- Dance comigo, Solly. Talvez o seu amigo grosseiro já tenha ido embora quando a música parar.

A discussão de Hugh com Maisie acabou com a festa. Solly e Maisie foram embora, e os outros decidiram ir a uma briga de ratos. Era ilegal, mas havia meia dúzia de

arenas regulares a cinco minutos a pé de Piccadilly Circus, e Micky Miranda conhecia todas.

Estava escuro quando saíram do Argyll e foram para o distrito de Londres conhecido como Babilônia. Ali, fora das vistas dos palácios de Mayfair, mas na proximidade

conveniente dos clubes de cavalheiros em St. James"s, havia um labirinto de ruas estreitas dedicadas ao jogo, esportes sangrentos, ópio, pornografia, e - acima de tudo - prostituição. Era uma noite quente e úmida, o ar se achava impregnado com os cheiros de comida, cerveja e esgoto. Micky e seus amigos foram andando devagar pelo meio da rua apinhada. Logo no primeiro minuto, um velho numa cartola amassada propôs lhe vender um livro de versos libidinosos, um rapaz com ruge nas faces piscou para ele, uma mulher bem-vestida de sua idade abriu o casaco para oferecer o vislumbre rápido dos seios bonitos, e uma velha esfarrapada perguntou se não queria fazer sexo com uma garota de cara de anjo, em torno dos dez anos de idade. Os prédios, quase todos bares, salões de dança, bordéis e pensões ordinárias, tinham paredes encardidas e janelas pequenas e sujas, através das quais se podia avistar de vez em quando uma festa iluminada por bicos de gás. Desfilavam pela rua grã-finos de colete branco como Micky, escriturários e pequenos comerciantes de chapéu-coco, agricultores de olhos arregalados, soldados com a túnica desabotoada, marujos com os bolsos temporariamente cheios de dinheiro e uma quantidade surpreendente de casais de classe média, de aparência respeitável, andando de braços dados.

Micky estava se divertindo. Era a primeira vez em várias semanas que conseguia escapulir de Papa por uma noite. Esperavam pela morte de Seth Pilaster a fim de fecharem o negócio dos rifles, mas o velho se apegava à vida como uma lapa no rochedo. Não era divertido ir a salões de dança e bordéis com o próprio pai. Ainda por cima, Papa tratava-o mais como um criado, às vezes chegando ao ponto de mandar esperá-lo do lado de fora enquanto ia para o quarto com uma prostituta. Aquela noite era um bendito alívio.

Ele sentia-se contente por ter se encontrado de novo com Solly Greenbourne. Os Greenbournes eram ainda mais ricos do que os Pilasters, e Solly poderia ser útil algum dia.

Mas não ficara tão contente por deparar com Tonio Silva. Tonio sabia demais sobre a morte de Peter Middleton, sete anos antes. Naquele tempo, Tonio tinha pavor de Micky. Ainda se mostrava cauteloso e ainda o respeitava, mas não era o mesmo que se sentir assustado. Micky preocupava-se com ele, mas naquele momento não sabia o que poderia fazer com relação a isso.

Ele deixou a Windmill Street e avançou por uma viela estreita. Os olhos de gatos piscavam para ele de pilhas de lixo. Depois de constatar que os outros o seguiam, Micky entrou num bar sórdido, atravessou-o, saiu pela porta dos fundos, cruzou um pátio em que uma prostituta se ajoelhava na frente de um cliente, ao luar, e abriu a porta de um prédio de madeira em péssimas condições, parecendo um estábulo.

Um homem de cara suja, metido num casaco comprido e seboso, cobrou quatro pence como ingresso. Edward pagou, e eles entraram.

O lugar era bastante iluminado, com um nevoeiro de fumaça de tabaco, e tinha um cheiro repulsivo de sangue e excremento. Quarenta ou cinqüenta homens e umas poucas mulheres se agrupavam em torno de uma arena circular. Os homens eram de todas as classes, alguns em grossos ternos de lã e lenços coloridos no pescoço, o traje típico de trabalhadores prósperos; outros vestiam casaca e roupas mais refinadas. Mas as mulheres eram todas mais ou menos de baixa extração, como April. Vários homens estavam com cachorros em seu colo ou amarrados na perna da cadeira.

Micky apontou para um homem barbudo, com um gorro de tweed, que segurava um cachorro com uma focinheira, preso por uma corrente. Alguns espectadores examinavam atentamente o cachorro. Era um animal atarracado e musculoso, com uma cabeça enorme e mandíbulas poderosas; parecia furioso e irrequieto.

- Ele será o próximo - informou Micky.

Edward afastou-se para comprar drinques de uma mulher com uma bandeja. Micky virou-se para Tonio, falou-lhe em espanhol. Era uma falta de educação fazer isso na presença de Hugh e April, que não falavam espanhol; mas Hugh não era ninguém, e April ainda menos, e assim não tinha a menor importância.

- O que anda fazendo agora? - perguntou ele.

- Sou adido do embaixador cordovês em Londres - respondeu Tonio.

- É mesmo? - Micky ficou intrigado. A maioria dos países sul-americanos não via sentido em ter um embaixador em Londres, mas Córdoba mantinha um representante ali há dez anos. Não restava a menor dúvida de que Tonio conseguira o posto de adido porque sua família, os Silvas, era bem relacionada na capital cordovesa, Palma.

Em contraste, o Papa de Micky era um barão provinciano e não exercia tanta influência. - O que você tem de fazer?

- Respondo às cartas de firmas britânicas que querem fazer negócios em Córdoba. Perguntam pelo clima, moeda, transporte interno, hotéis, uma porção de coisas.

- Trabalha o dia inteiro?

- Não com freqüência. - Tonio baixou a voz para acrescentar:- Não conte a ninguém, mas só preciso escrever duas ou três cartas na maioria dos dias.

- E eles lhe pagam?

Muitos diplomatas eram homens com recursos independentes, que trabalhavam de graça.

- Não. Mas tenho um quarto na residência do embaixador, e todas as refeições; além disso, recebo uma verba para roupas, e pagam minhas mensalidades em clubes de Londres.

Micky estava fascinado. Era o tipo de trabalho que lhe conviria com perfeição, e sentiu a maior inveja. Casa e comida de graça, as despesas básicas pagas em troca de uma hora de trabalho toda manhã. Micky especulou se poderia haver algum meio de afastar Tonio do cargo.

Edward voltou com cinco doses de conhaque em copos pequenos e distribuiu-os. Micky engoliu o seu de uma só vez. Era ordinário, e ardia ao descer pela garganta.

Subitamente, o cachorro rosnou e começou a correr em círculos frenéticos, puxando a corrente, os cabelos do pescoço eriçados. Micky olhou ao redor e avistou dois homens carregando uma gaiola com ratos imensos. Os ratos estavam ainda mais frenéticos do que o cachorro, correndo por cima e por baixo uns dos outros, guinchando de terror. Todos os cachorros começaram a latir, e por algum tempo houve uma terrível cacofonia enquanto os donos berravam com os animais para ficarem quietos.

A entrada foi fechada e trancada por dentro, e o homem de casaco ensebado começou a recolher as apostas. Hugh Pilaster disse:

- Nunca vi ratos tão grandes. Onde os conseguiram? Foi Edward quem respondeu:

- São criados para isso. - Ele se virou para um dos homens que carregavam a gaiola. - Quantos nesta briga?

- Seis dúzias. Edward explicou:

- Isso significa que vão pôr 72 ratos na arena.

- Como se aposta? - perguntou Tonio.

- Pode-se apostar no cachorro ou nos ratos; e se você acha que os ratos vão vencer, pode apostar em quantos ratos restarão depois que o cachorro morrer.

O homem de casaco ensebado gritava os rateios e aceitava dinheiro em troca de pedaços de papel, nos quais escrevia números com um lápis grosso.

Edward apostou um soberano no cachorro, e Micky um xelim em seis ratos sobrevivendo, visto que a cotação era de cinco para um. Hugh recusou-se a apostar, escrupuloso que era.

A arena tinha aproximadamente um metro e vinte de profundidade e uma cerca de madeira com mais um metro e vinte. Toscos candelabros a intervalos em torno da cerca projetavam uma claridade intensa no buraco. O dono do cachorro tirou a focinheira e o animal entrou na arena por um portão de madeira, que foi fechado em seguida.

O cachorro ficou imóvel, as pernas rígidas, os pêlos no dorso eriçados, esperando pelos ratos. Os homens levantaram a gaiola. Houve um silêncio de expectativa. Foi nesse instante que Tonio gritou: - Dez guinéus no cachorro.

Micky ficou surpreso. Tonio falara do emprego e vantagens como se precisasse tomar cuidado com a maneira pela qual gastava seu dinheiro. Seria um embuste? Ou ele fazia apostas que não tinha condições de arcar? O bookmaker hesitou. Era uma aposta grande para ele também. Mesmo assim, depois de um instante, rabiscou num pedaço de papel, que entregou a Tonio em troca do dinheiro.

Os homens balançaram a gaiola para a frente como se fossem jogá-la na arena; depois, no último instante, uma portinhola se abriu na extremidade e os ratos escorregaram para fora, caindo com guinchos de terror. April soltou um grito chocado, e Micky riu.

O cachorro se pôs a trabalhar com uma concentração letal. Enquanto os ratos caíam, suas mandíbulas se movimentavam em ritmo furioso. Pegava um rato, partia sua espinha com um movimento da enorme cabeça, largava para agarrar outro.

O cheiro de sangue tornou-se nauseante. Todos os cachorros no local latiam desesperados, e os espectadores aumentavam o barulho, as mulheres soltando gritos estridentes por verem a carnificina, os homens berrando palavras de encorajamento para o cachorro ou os ratos. Micky não parava de rir.

Os ratos levaram um momento para compreenderem que se achavam acuados na arena. Alguns correram pela beira, procurando uma saída; outros pulavam, tentando em vão se agarrar nos lados lisos; outros se amontoavam em pilhas. Por alguns segundos, o cachorro atacou à vontade, matando uma dúzia ou mais.

Depois os ratos se viraram, todos ao mesmo tempo, como se tivessem ouvido um sinal. Começaram a investir contra o cachorro, mordendo suas pernas, os quadris, o rabo curto. Alguns subiram em suas costas, morderam o pescoço e as orelhas, um cravou os pequenos dentes afiados em seu beiço inferior, ficou balançando das mandíbulas letais até que o cachorro uivou de raiva, bateu-o contra o chão e finalmente conseguiu soltá-lo de sua carne que sangrava.

O cachorro se virava em círculos vertiginosos, pegava um rato depois de outro, matando a todos; mas sempre havia mais por trás dele. Metade dos ratos já morrera quando ele começou a se cansar. As pessoas que haviam apostado em 36, com um rateio elevado, agora rasgaram seus talões; mas os que apostaram em números menores, passaram a gritar ainda mais alto.

O cachorro sangrava de 20 ou 30 mordidas, e o chão se tornara escorregadio de seu sangue e dos corpos úmidos dos ratos mortos. Ele ainda sacudia a cabeça enorme, ainda partia espinhas com a boca implacável, mas os movimentos já não eram mais tão rápidos, as patas não tinham tanta firmeza na terra escorregadia. Agora, pensou Micky, começa a ficar interessante.

Sentindo a fadiga do cachorro, os ratos se tornaram mais ousados. Quando ele tinha um nas mandíbulas, outro saltava para sua garganta. Corriam entre suas pernas, por baixo da barriga, saltavam para as partes macias da pele. Um dos ratos maiores cravou os dentes numa perna traseira e se recusou a largar. O cachorro virou a cabeça para mordê-lo, mas outro rato distraiu-o saltando para seu focinho. Um instante depois, a perna pareceu ceder - o rato deve ter cortado um tendão, pensou Micky - e subitamente o cachorro passou a mancar.

Era muito mais lento agora. Como se percebessem isso, todos os ratos remanescentes, cerca de uma dúzia, atacaram-no por trás. Cansado, ele os abocanhava, partia suas espinhas, deixava-os cair na terra ensangüentada. Mas a barriga se achava agora em carne viva, e não conseguiria resistir por muito mais tempo. Micky pensou que sua aposta fora correta, e que haveria seis ratos vivos quando o cachorro morresse.

Foi nesse instante que o cachorro teve um repentino acesso de energia. Girando sobre três pernas, matou mais quatro ratos, em quatro segundos. Mas foi seu último alento. Largou um rato, e as pernas vergaram sob o corpo. Mais uma vez, virou a cabeça para abocanhar as criaturas, mas dessa vez não encontrou nenhuma. E baixou a cabeça.

Os ratos começaram a se alimentar.

Micky contou: restavam seis ratos.

Ele olhou para seus companheiros. Hugh parecia nauseado. Edward murmurou:

- Um pouco forte para seu estômago, hem?

- O cachorro e os ratos estão se comportando de acordo com sua natureza - disse Hugh. - São os humanos que me deixam repugnado.

Edward soltou um grunhido e afastou-se para comprar mais drinques.

Os olhos de April faiscavam ao contemplarem Tonio, um homem - ela pensou - que podia se dar ao luxo de perder dez guinéus numa aposta. Micky observou com mais atenção e constatou que havia uma insinuação de pânico no rosto de Tonio. Não creio que ele tenha condições de perder dez guinéus, refletiu Micky.

Ele recebeu sua aposta do bookmaker: cinco xelins. Já obtivera um lucro naquela noite. Mas tinha o pressentimento de que aprendera uma coisa sobre Tonio que, no final das contas, poderia valer muito mais.

Fora Micky quem deixara Hugh mais enojado. Ao longo de toda a briga, ele ficara rindo, quase histérico. A princípio, Hugh não conseguira determinar por que aquela risada lhe parecia tão assustadoramente familiar. Depois, lembrara de Micky rindo da mesma maneira quando Edward jogara as roupas de Peter Middleton no poço. Era uma lembrança desagradável de um sinistro incidente. Edward voltou com os drinques e propôs:

- Vamos até a casa da Nellie.

Tomaram as doses de conhaque e saíram. Na rua, Tonio e April despediram-se e entraram num prédio que parecia um hotel ordinário. Hugh presumiu que passariam uma hora num quarto, ou talvez o resto da noite. Perguntou-se se deveria continuar com Edward e Micky. Não estava se divertindo, mas sentia-se curioso, queria saber o que acontecia na casa de Nellie. Decidira experimentar a depravação, refletiu, e para isso tinha de seguir até o final da noite, não largar no meio.

A casa de Nellie ficava na Prince"s Street, perto da Leicester Square. Havia dois guardas uniformizados na porta. Quando os três chegaram, os guardas proibiam a

entrada de um homem de meia-idade, que usava um chapéu-coco.

- Só com traje a rigor - declarou um dos guardas sob os protestos do homem.

Eles pareciam conhecer Edward e Micky, pois um tocou no quepe enquanto o outro abria a porta. Avançaram por um corredor comprido até outra porta. Foram inspecionados através de uma portinhola, e depois a porta foi aberta.

Era um pouco como entrar numa vasta sala de estar de uma mansão de Londres. Havia fogo em duas lareiras grandes, sofás, cadeiras e mesas pequenas por toda parte, e a sala estava repleta de homens e mulheres em trajes a rigor.

Contudo, era preciso só um momento para se reparar que não era uma sala de estar comum. A maioria dos homens continuava de chapéu na cabeça. Cerca da metade fumava - o que não era permitido em qualquer salão mais polido - e alguns haviam tirado o casaco e desfeito o nó da gravata. A maioria das mulheres se achava completamente vestida, mas umas poucas pareciam usar roupas de baixo. Algumas sentavam no colo de homens, outras os beijavam, e uma ou duas permitiam que as acariciassem nas partes íntimas.

Pela primeira vez em sua vida, Hugh estava num bordel.

Era um lugar barulhento, com homens gritando piadas, mulheres rindo e um violinista tocando uma valsa. Hugh seguiu Micky e Edward, atravessando a sala. Havia nas

paredes retratos de mulheres nuas e casais copulando, e Hugh começou a se sentir excitado. Na outra extremidade da sala, sob um enorme quadro a óleo de uma complexa orgia ao ar livre, sentava a pessoa mais gorda que Hugh já vira: uma mulher de busto imenso, o rosto todo pintado, num vestido de seda que parecia uma barraca púrpura.

Sentava na cadeira como se fosse um trono, cercada por moças. Por trás, havia uma escada larga com um carpete vermelho que presumivelmente levava aos quartos.

Edward e Micky aproximaram-se do trono e fizeram uma reverência; e Hugh seguiu o exemplo. Edward disse:

- Nell, minha querida, permita que lhe apresente meu primo, Mr. Hugh Pilaster.

- Sejam bem-vindos, rapazes - disse Nell. - Espero que divirtam essas lindas moças.

- Daqui a pouco, Nell. Há um jogo esta noite?

- Sempre há um jogo na casa de Nellie - respondeu ela, acenando para uma porta no outro lado da sala.

Edward fez outra reverência.

- Voltaremos logo.

- Não me falhem, rapazes! Eles se afastaram.

- Ela age como a realeza! - murmurou Hugh. Edward riu.

- Este é o melhor bordel de Londres. Algumas das pessoas que fazem uma reverência para ela esta noite estarão se curvando diante da Rainha pela manhã.

Foram para a sala ao lado, onde 12 ou 15 homens sentavam ao redor de duas mesas de bacará. Cada mesa tinha uma linha branca a cerca de 30 centímetros da beirada, e os jogadores empurravam fichas coloridas através da linha para fazer suas apostas. A maioria tinha drinques ao lado, e o ar recendia a fumaça de charuto.

Havia umas poucas cadeiras vazias em uma das mesas, e Edward e Micky sentaram. Um garçom trouxe-lhes algumas fichas, e eles assinaram um recibo. Hugh perguntou a Edward em voz baixa:

- De quanto são as apostas?

- Uma libra no mínimo.

Ocorreu a Hugh que, se jogasse e ganhasse poderia ter uma das mulheres na sala ao lado. Não chegava a ter uma libra nos bolsos, mas era evidente que Edward tinha crédito ali... Depois, ele se lembrou de Tonio perdendo dez guinéus na briga de ratos.

- Não Vou jogar - murmurou ele. Micky comentou, indiferente:

- Nunca imaginamos que você jogaria.

Hugh sentiu-se contrafeito. Pensou em pedir a um garçom que lhe trouxesse um drinque, mas concluiu que provavelmente lhe custaria o salário de uma semana. Um homem deu as cartas de uma caixa, e Micky e Edward fizeram suas apostas. Hugh decidiu sair dali.

Retornou à outra sala. Observando os móveis com mais atenção, percebeu que eram um tanto ordinários: havia manchas no estofamento de veludo e marcas de queimado na madeira envernizada, os tapetes eram puídos e rasgados. Ao seu lado, um bêbado cantava ajoelhado para uma prostituta enquanto seus dois companheiros caíam na gargalhada. Num sofá, um casal se beijava, as bocas abertas. Hugh já ouvira dizer que as pessoas faziam isso, mas nunca vira. Ficou observando, fascinado, enquanto o homem desabotoava a frente do vestido da mulher e começava a acariciar os seios. Eram brancos e flácidos, com mamilos enormes, de um vermelho-escuro. A cena excitou-o e repugnou-o ao mesmo tempo. Apesar da aversão, sentiu o membro endurecer. O homem no sofá baixou a cabeça e começou a beijar os seios da mulher. Hugh não podia acreditar no que via. A mulher olhou por cima da cabeça do homem, percebeu que Hugh observava e piscou um olho. Uma voz no ouvido de Hugh sussurrou:

- Você poderia fazer isso comigo, se quisesse.

Ele virou-se, com um sentimento de culpa, como se tivesse sido surpreendido a fazer algo vergonhoso. Ao seu lado se encontrava uma jovem de cabelos escuros, mais ou menos de sua idade, com uma grossa camada de ruge nas faces. Ele não pôde deixar de olhar para seu busto. Desviou os olhos no instante seguinte, embaraçado.

- Não seja tímido - disse ela. - Pode olhar à vontade. São para você desfrutar.

Horrorizado, Hugh sentiu a mão da mulher em sua virilha. Ela encontrou seu membro rígido e apertou-o.

- Puxa, como você está excitado!

Hugh sofria uma angústia de prazer. Sentia-se prestes a explodir. A moça ergueu a cabeça, beijou seus lábios, ao mesmo tempo em que esfregava seu membro.

Foi demais. Incapaz de se controlar, Hugh ejaculou nas roupas de baixo. A moça sentiu. Por um momento ficou surpresa, depois desatou a rir.

- Meu Deus, você é virgem! - exclamou ela, em voz alta.

Hugh sentiu-se humilhado. A moça olhou ao redor e acrescentou para a prostituta mais próxima:

- Bastou eu tocar e ele se molhou todo!

Várias pessoas riram. Hugh virou-se e encaminhou-se para a saída. Os risos pareciam acompanhá-lo por toda a extensão da sala. Teve de fazer um esforço para não correr.

Finalmente alcançou a porta, e um instante depois saiu para a rua.

A noite esfriara um pouco. Ele respirou fundo; parou por um momento a fim de se acalmar. Maisie fora grosseira em relação a seu pai; a briga de ratos fora repugnante; as prostitutas haviam rido dele. Pois que todos se danassem!

Um guarda lançou-lhe um olhar simpático.

- Decidiu se retirar cedo, senhor?

- Uma boa idéia - murmurou Hugh, afastando-se.

Micky estava perdendo. Podia trapacear no bacará se estivesse com a banca, mas naquela noite a banca não foi parar em suas mãos. Sentiu-se secretamente aliviado quando Edward propôs:

- Vamos pegar duas garotas.

- Vá você - disse ele, simulando indiferença. - Continuarei a jogar. Um brilho de pânico surgiu nos olhos de Edward.

- Está ficando tarde.

- Tentarei recuperar o que perdi - insistiu Micky, obstinado. Edward baixou a voz:

- Pagarei suas fichas.

Micky fingiu hesitar, mas acabou cedendo.

- Está bem. Edward sorriu.

Ele acertou as contas e os dois voltaram à sala principal. Quase que no mesmo instante, uma loura de seios grandes aproximou-se de Edward. Ele passou o braço por seus ombros nus, e ela comprimiu-se contra seu peito.

Micky avaliou as prostitutas. Uma mulher um pouco mais velha, com uma expressão de depravada, atraiu sua atenção. Ele sorriu-lhe, e a mulher se aproximou. Ela enfiou a mão por dentro de sua camisa, cravou as unhas no peito, mordeu gentilmente seu lábio inferior. Micky percebeu que Edward os observava, afogueado de excitamento, e começou a se sentir ansioso. Olhou para sua mulher.

- Qual é o seu nome?

- Alice.

- Vamos subir, Alice.

Subiram juntos. Havia no patamar uma estátua de mármore de um centauro com um enorme pênis ereto, que Alice acariciou ao passarem. Ao lado um casal cometia o ato sexual de pé, alheio a um bêbado sentado no chão, observando. As mulheres se encaminharam para quartos separados, mas Edward conduziu-as para o mesmo quarto.

- Todos juntos esta noite, rapaz? - indagou Alice.

- Estamos querendo economizar - disse Micky, arrancando uma gargalhada de Edward.

- Estiveram juntos no colégio, hem? - murmurou Alice, insinuante, enquanto fechava a porta. - Costumavam divertir um ao outro?

- Cale essa boca - ordenou Micky, abraçando-a.

Enquanto Micky beijava Alice, Edward aproximou-se por trás, envolvendo-a com os braços para apertar os seios. Ela pareceu um pouco surpresa, mas não fez qualquer objeção. Micky sentiu as mãos de Edward movendo-se entre seu corpo e o da mulher, e compreendeu que o amigo também se comprimia contra o traseiro da prostituta.

Depois de um momento, a outra mulher indagou:

- O que tenho de fazer? Estou me sentindo por fora.

- Tire as roupas - disse Edward. - Você será a próxima.

 

Julho

Quando menino, Hugh pensava que o Pilasters Bank pertencia aos homens que estavam sempre circulando de um lado para outro. Não passavam, na verdade, de meros mensageiros, mas todos eram um tanto corpulentos, usavam trajes impecáveis com correntes de relógio de prata estendidas pelo colete amplo. Andavam pelo banco com tamanha dignidade pomposa que para uma criança deviam mesmo parecer as pessoas mais importantes ali.

Hugh fora levado ao banco aos dez anos de idade pelo avô, irmão do velho Seth. O salão de paredes de mármore no térreo lhe parecera uma igreja: imenso, gracioso, silencioso, um lugar em que rituais incompreensíveis eram cumpridos por um sacerdócio de elite a serviço de uma divindade chamada Dinheiro. O avô lhe mostrara tudo: a quietude atapetada do segundo andar, ocupado pelos sócios e seus encarregados da correspondência, onde fora servido ao pequeno Hugh um copo de xerez e um prato de biscoitos na Sala dos Sócios; os escriturários sêniores às suas mesas no terceiro andar, cercados por pilhas de papéis amarradas com fitas, como presentes; e os juniores no último andar, sentados a mesas altas, em fileiras, como os soldadinhos de brinquedo de Hugh, escrevendo registros em livros enormes com os dedos sujos de tinta. Mas o melhor de tudo para Hugh fora o porão, onde contratos ainda mais velhos do que o avô eram guardados em cofres, milhares de selos esperavam para serem lambidos e havia uma sala inteira cheia de tinta, guardada em enormes jarros de vidro. Espantara-o refletir sobre o processo. A tinta chegava ao banco, era espalhada sobre papéis por escriturários e depois os papéis eram levados ao porão, onde ficariam guardados para sempre; e de alguma forma isso dava dinheiro.

O mistério desaparecera agora. Ele sabia que os enormes livros encadernados em couro não eram textos arcanos, mas apenas listas de transações financeiras compiladas de forma meticulosa e atualizadas com precisão; e seus próprios dedos haviam ficado com câimbras e manchados de tinta pelos dias a escrever neles. Uma letra de câmbio não era mais um encantamento mágico, mas apenas uma promessa de pagar uma determinada quantia numa data futura, escrita num papel, com a garantia de um banco. Descontar, que para uma criança pareceria contar para trás de cem até um, passara a ser a prática de comprar letras de câmbio a um pouco menos de seu valor expresso, guardando-as até a data especificada para então resgatá-las com um pequeno lucro.

Hugh era assistente-geral de Jonas Mulberry, o escriturário-chefe. Homem calvo, em torno dos 40 anos, Mulberry tinha um bom coração, mas era um tanto amargo. Sempre se demorava para explicar as coisas a Hugh, mas era sempre rápido em encontrar defeitos se o seu assistente se mostrasse apressado ou descuidado. Hugh trabalhava sob suas ordens há um ano, e no dia anterior cometera um grave erro. Perdera a nota de carga de uma remessa de tecido que partira de Bradford para Nova York. O fabricante se apresentara no salão lá embaixo pedindo seu dinheiro, mas Mulberry precisava conferir a nota antes de autorizar o pagamento, e Hugh não conseguira encontrar o documento. Foram obrigados a pedir ao homem que voltasse no dia seguinte.

Hugh acabara encontrando o documento, mas passara a maior parte da noite preocupado, e naquela manhã imaginara um novo sistema de arquivar os papéis para Mulberry.

Na mesa à sua frente havia duas bandejas de madeira, dois cartões retangulares, uma pena de escrever e um tinteiro. Ele escreveu devagar, com todo o cuidado, no

primeiro cartão:

No segundo, escreveu:

Depois de passar o mata-borrão, ele pregou um cartão em cada bandeja. Levou as bandejas para a mesa de Jonas Mulberry e recuou para avaliar seu trabalho. Mr. Mulberry entrou nesse momento. - bom dia, Mr. Hugh.

Todos os membros da família eram tratados no banco pelo primeiro nome, caso contrário haveria a maior confusão entre os diferentes Mr. Pilasters. - bom dia, Mr. Mulberry.

- Mas o que é isso? - indagou Mulberry, mal-humorado, olhando para as bandejas.

- Encontrei aquela nota de carga - informou Hugh.

- E onde estava?

- Misturada com algumas cartas que o senhor tinha assinado. Mulberry contraiu os olhos.

- Está tentando insinuar que a culpa foi minha?

- Claro que não. É minha a responsabilidade de manter seus papéis em ordem. Por isso é que instituí o sistema de bandejas... para separar os documentos que já examinou dos que ainda aguardam sua atenção.

Mulberry soltou um grunhido evasivamente. Pendurou o chapéucoco no gancho atrás da porta e sentou-se à mesa antes de dizer:

- Muito bem, vamos experimentar... talvez seja eficiente. Mas da próxima vez tenha a cortesia de me consultar antes de pôr em prática suas engenhosas idéias. Afinal,

esta é a minha sala, e sou o escriturário-chefe.

- Pois não - murmurou Hugh. - Peço desculpas.

Ele sabia que deveria ter pedido a permissão de Mulberry, mas ficara tão ansioso em executar a nova idéia que não tivera paciência para esperar.

- O Empréstimo Russo foi fechado ontem - anunciou Mulberry. - Quero que desça para a sala de correspondência e organize a contagem dos pedidos.

- Certo.

O banco estava levantando um empréstimo de dois milhões de libras para o governo da Rússia. Emitira títulos de cem libras, com juros de cinco libras ao ano; mas os títulos estavam sendo vendidos a noventa e três, o que significava que a taxa de juros real se situava acima de cinco e três oitavos. A maioria dos títulos fora comprada por outros bancos em Londres e Paris, mas alguns haviam sido oferecidos ao público em geral, e agora os pedidos deviam ser contados.

- Vamos torcer para que tenhamos mais pedidos do que podemos atender - comentou Mulberry.

- Por quê?

- Porque assim as pessoas não atendidas tentarão comprar os títulos amanhã no mercado aberto, e isso fará a cotação subir, talvez pára 95 libras... e todos os nossos clientes acharão que fizeram um bom negócio.

Hugh balançou a cabeça.

- E se tivermos poucos pedidos?

- Nesse caso, o banco, como subscritor, terá de comprar o excedente... a 93 libras. E amanhã a cotação pode baixar para 92 ou 91 libras, e teremos um prejuízo.

- Entendo.

- Pode ir.

Hugh deixou a sala de Mulberry, que ficava no terceiro andar, e desceu a escada apressado. Sentia-se feliz por Mulberry ter aceito sua idéia das bandejas e aliviado por não ter havido conseqüências maiores pelo extravio da nota de carga. Ao chegar ao segundo andar, onde ficava a Sala dos Sócios, ele avistou Samuel Pilaster, muito elegante numa casaca cinza-prateada e com uma gravata de cetim azul-marinho.

- bom dia, Tio Samuel.

- bom dia, Hugh. O que está fazendo?

Ele demonstrava mais interesse por Hugh do que os outros sócios.

- Vou contar os pedidos para o empréstimo russo. Samuel sorriu, exibindo os dentes tortos.

- Não sei como pode estar tão animado com um dia assim pela frente! Hugh continuou a descer. Na família, as pessoas começavam a falar aos sussurros sobre Tio Samuel e seu secretário. Hugh não achava chocante que Samuel fosse o que as pessoas chamavam de efeminado. As mulheres e os vigários podiam fingir que o sexo entre homens era pervertido, mas acontecia o tempo todo em colégios como o Windfield, e nunca fazia mal a ninguém.

Ele chegou ao térreo e entrou no vasto salão do banco. Eram apenas nove e meia, e as dezenas de empregados que trabalhavam no Pilasters ainda entravam pela porta da frente, recendendo a desjejuns com bacon e trens subterrâneos. Hugh acenou com a cabeça para Miss Greengrass, a única escrituraria. Um ano antes, quando ela fora contratada, houvera muita discussão no banco: homens especulando se uma mulher seria capaz de realizar aquele trabalho. Ela acabara por dirimir a questão ao demonstrar uma excepcional competência. Haveria mais mulheres trabalhando no banco no futuro, calculava Hugh.

Ele desceu pela escada nos fundos para o porão e seguiu para a sala de correspondência. Dois mensageiros separavam as cartas, e os pedidos para o empréstimo russo já enchiam um saco grande. Hugh decidiu convocar dois escriturados juniores para somar os pedidos, e depois poderia conferir a aritmética.

O trabalho ocupou-o durante a maior parte do dia. Faltavam poucos minutos para as quatro horas quando ele conferiu o último maço de pedidos e acrescentou a cifra à coluna. A emissão não fora totalmente vendida: não se adquiriu pouco mais de cem mil libras em títulos. Era bem pouco numa emissão de dois milhões de libras, mas havia uma grande diferença psicológica entre vender tudo e faltar um pouco. Os sócios ficariam desapontados.

Hugh escreveu a soma num papel limpo e subiu à procura de Mulberry. O salão do banco se achava quase quieto agora. Havia apenas uns poucos clientes junto ao balcão envernizado. Por trás do balcão, os funcionários tiravam e repunham os enormes livros-caixa de prateleiras. O Pilasters não tinha muitas contas particulares. Era um banco mercantil que emprestava dinheiro a negociantes para financiar seus empreendimentos. Como o velho Seth dizia, o Pilasters não se interessava por contaras moedas ensebadas de um merceeiro ou as notas encardidas de um alfaiate - não havia lucro suficiente nisso. Mas toda a família mantinha suas contas pessoais no banco, e o mesmo privilégio era oferecido a uns poucos clientes muito ricos. Hugh avistou um deles agora: Sir John Cammel. Conhecera seu filho em Windfield. Homem magro e calvo, Sir John tinha vastos rendimentos de minas de carvão e docas em suas terras em Yorkshire. Ele andava de um lado para outro no chão de mármore, parecendo impaciente e irritado. Hugh aproximou-se.

- Boa tarde, Sir John. Está sendo bem atendido?

- Não, meu rapaz, não estou. Será que ninguém trabalha neste lugar? Hugh olhou ao redor rapidamente. Nenhum dos sócios ou funcionários mais graduados se encontrava à vista. Ele decidiu usar sua iniciativa.

- Não quer subir para a Sala dos Sócios, senhor? Sei que terão o maior prazer em recebê-lo.

- Está bem.

Hugh levou-o para o segundo andar. Todos os sócios trabalhavam na mesma sala, a fim de poderem ficar de olho uns nos outros, segundo a tradição. O lugar parecia um salão de leitura num clube de cavalheiros, com sofás de couro, estantes e uma mesa de centro com jornais. Em retratos emoldurados nas paredes, os Pilasters ancestrais contemplavam os narizes acluncos de seus descendentes. A sala estava vazia.

- Um deles voltará logo, tenho certeza - disse Hugh.- Posso lhe oferecer um copo de Madeira?

Ele foi até o aparador e serviu uma dose generosa, enquanto Sir John instalava-se numa poltrona de couro.

- Sou Hugh Pilaster, por falar nisso.

- É mesmo? - Sir John sentiu-se um pouco apaziguado ao descobrir que falava com um Pilaster, e não com um empregado qualquer. - Estudou em Windfíeld?

- Estudei, sim, senhor. Fui contemporâneo de seu filho Albert. Nós o chamávamos de Hump, corcunda, por causa do nome.

- Todos os Cammels são chamados de Hump.

- Não o vejo desde... desde então.

- Ele foi para a Colônia do Cabo e gostou tanto que nunca mais voltou. Cria cavalos agora.

Albert Cammel era um dos estudantes que nadava no poço naquele dia fatídico em 1866. Hugh nunca ouvira sua versão sobre o afogamento de Peter Middleton.

- Eu gostaria de escrever para ele, senhor.

- Eu diria que ele ficará muito contente em receber uma carta de um antigo colega de colégio. Darei o endereço. - Sir John foi até uma mesa, molhou uma pena no tinteiro e escreveu num pedaço de papel. - Aqui está.

- Obrigado. - Sir John já não demonstrava qualquer irritação, notou Hugh, satisfeito. - Há mais alguma coisa que eu possa fazer enquanto espera?

- Talvez possa cuidar disso.

Ele tirou um cheque do bolso. Hugh examinou-o. Era de 110 mil libras, o maior cheque pessoal que ele já manuseara.

- Acabei de vender uma mina de carvão a meu vizinho - explicou Sir John.

- Claro que posso depositar.

- Que juros vão me pagar?

- Quatro por cento, no momento.

- Acho que está bom.

Hugh hesitou. Ocorreu-lhe que se fosse possível persuadir Sir John a comprar os títulos russos, a emissão do empréstimo seria totalmente coberta. Deveria mencionar o assunto? Já ultrapassara sua autoridade ao trazer um visitante para a Sala dos Sócios. Decidiu correr o risco.

- Pode conseguir cinco e três oitavos com a compra de títulos russos. Sir John contraiu os olhos.

- É mesmo?

- É, sim. A subscrição foi encerrada ontem, mas para o senhor...

- São seguros?

- Tão seguros quanto o governo russo.

- Pensarei a respeito.

O entusiasmo de Hugh fora atiçado, e ele queria fechar a venda naquele momento.

- A taxa pode não ser a mesma amanhã, como sabe. Quando os títulos entrarem no mercado aberto, o preço pode subir ou descer. - Hugh concluiu que parecia ansioso demais e tratou de recuar. - Depositarei o cheque em sua conta imediatamente, e se desejar pode conversar com um dos meu tios sobre os títulos.

- Está ceito, jovem Pilaster... até a próxima. Hugh saiu, encontrou Tio Samuel no corredor.

- Sir John Cammel está na sala, Tio. Encontrei-o no salão lá embaixo parecendo irritado, por isso trouxe-o para cá, servi um copo de Madeira... espero ter feito

a coisa certa.

- Claro que fez. Pode deixar que cuidarei dele.

- Ele trouxe este cheque de 110 mil libras. Mencionei o empréstimo russo... faltam 100 mil libras para completar a subscrição.

Samuel franziu as sobrancelhas.

- Foi uma precipitação de sua parte.

- Comentei apenas que ele poderia conversar a respeito com um dos sócios, se quisesse uma taxa de juros mais elevada.

- Está certo. Não é uma má idéia.

Hugh voltou ao salão no térreo, pegou o livro de registro de Sir John, anotou o depósito e levou o cheque ao funcionário responsável pela compensação. Subiu para a sala de Mulberry no terceiro andar. Entregou o cômputo dos pedidos para os títulos russos, mencionou a possibilidade de que Sir John Cammel pudesse comprar o saldo e sentou à sua mesa.

Um mensageiro entrou na sala com chá e pão com manteiga numa bandeja. Esse lanche era servido a todos os funcionários que ficavam no banco depois das quatro e meia.

Quando não havia muito trabalho, a maioria do pessoal se retirava nesse horário. Os empregados do banco figuravam na elite dos escrirurários muito invejados pelos funcionários de comerciantes e armadores, que muitas vezes trabalhavam até tarde, inclusive pela noite afora. Pouco depois Samuel entrou e entregou alguns papéis a Mulberry.

- Sir John comprou os títulos - informou ele a Hugh. - bom trabalho... uma oportunidade bem aproveitada.

- Obrigado.

Samuel avistou as bandejas na mesa de Mulberry.

- O que é isso? - indagou ele num tom divertido. - Aos cuidados do escriturário-chefe... Documentos já vistos pelo escriturário-chefe.

Mulberry explicou:

- O propósito é manter separados os documentos que entram e os que saem. Evita confusões.

- É um bom sistema. Acho que posso fazer o mesmo.

- Para dizer a verdade, Mr. Samuel, foi idéia do jovem Mr. Hugh. Samuel olhou divertido para Hugh.

- Parece-me bastante esperto, meu caro rapaz.

Hugh era às vezes acusado de ser presunçoso, e por isso preferiu agora simular humildade.

- Sei que ainda tenho muito a aprender.

- Sem falsa modéstia. Diga-me uma coisa: se fosse liberado do serviço de Mr. Mulberry, que função escolheria em seguida?

Hugh nem precisava pensar na resposta. O cargo mais cobiçado era o de escriturário da correspondência. A maioria dos empregados só tomava conhecimento de uma parte da transação - a que registrava, - mas o escriturário da correspondência, preparando cartas para os clientes, tinha uma visão global. Era a melhor posição para se aprender e a melhor para se obter uma promoção posterior. E o escriturário de correspondência de Tio Samuel, Bill Rose, estava prestes a se aposentar. Sem a menor hesitação, Hugh respondeu.

- Gostaria de ser o seu escriturário de correspondência.

- É mesmo? Depois de apenas um ano no banco?

- Quando Mr. Rose se afastar, já serão 18 meses.

- É verdade. - Samuel ainda parecia divertido, mas não dera uma resposta negativa. -Veremos, meu rapaz, veremos...

Assim que ele saiu, Mulberry perguntou a Hugh:

- Aconselhou Sir John Cammel a comprar os títulos russos?

- Apenas mencionei a possibilidade.

- Ora, ora...

Por vários minutos depois ele ficou observando Hugh com uma expressão especulativa.

Era uma tarde ensolarada de domingo, e toda a Londres saíra para passear em trajes dominicais. A larga avenida de Piccadilly estava livre de tráfego, pois só um inválido usaria um veículo no dia santificado. Maisie Robinson e April Tilsley desciam por Piccadilly, apreciando os palácios dos ricos e tentando atrair homens.

Moravam no Soho, partilhando um único quarto num cortiço na Carnaby Street, perto de St. James"s Workhouse, um asilo que abrigava e proporcionava trabalho a indigentes.

Levantavam por volta do meio-dia, vestiam-se com o maior cuidado e saíam para as ruas. Ao cair da noite, já haviam encontrado, de um modo geral, dois homens para lhes pagar o jantar; caso contrário, passavam fome. Quase não tinham dinheiro, mas precisavam de pouco. Quando o aluguel atrasava, April pedia um "empréstimo" a um namorado. Maisie sempre usava as mesmas roupas e lavava os trajes de baixo todas as noites. Um dia desses alguém lhe compraria um vestido novo. Mais cedo ou mais tarde, ela esperava, um dos homens que pagavam seu jantar haveria de pedi-la em casamento, ou instalá-la como sua amante.

April ainda estava excitada com o sul-americano que conhecera, Tonio Silva.

- Pense nisso, ele pode perder dez guinéus numa aposta! - exclamou ela. - E eu sempre gostei de cabelos ruivos.

- Não gostei do outro sul-americano, o moreno - comentou Maisie.

- Micky? Ele é deslumbrante!

- Tem razão, mas achei que havia algo furtivo nele. April apontou para uma vasta mansão.

- Esta é a casa do pai de Solly.

Era afastada da rua, com um caminho semicircular na frente. Parecia um templo grego, com uma fileira de colunas por toda a frente subindo até o teto. O latão reluzia na enorme porta, e havia cortinas vermelhas de veludo nas janelas. April disse:

- Você pode morar aí um dia. Maisie sacudiu a cabeça.

- Eu, não.

- Já aconteceu antes - insistiu April. - Você só precisa ser mais sensual do que as garotas das classes superiores, o que não é difúSl. Depois de casar, pode aprender num instante a imitar o sotaque. Já fala muito bem, a não ser quando se zanga. E Solly é um bom garoto.

- Um bom garoto gordo - murmurou Maisie, fazendo uma careta.

- Mas muito rico! As pessoas dizem que seu pai mantém uma orquestra sinfônica em sua casa de campo só para o caso de querer ouvir um pouco de música depois do jantar!

Maisie suspirou. Não queria pensar em Solly.

- Para onde vocês foram depois que gritei com o tal de Hugh?

- A uma briga de ratos. Depois, Tonio e eu fomos para o Ban"s Hotel.

- Fez tudo com ele?

- Claro! Por que acha que fomos para o Bait"s?

- Para jogar uíste? As duas riram. April fez uma cara de desconfiada.

- Você também fez com Solly, não é?

- Eu o deixei feliz.

- O que isso significa?

Maisíe fez um gesto com a mão, e elas tornaram a rir.

- Só o acariciou? - indagou April. - Por quê? Maisie deu de ombros.

- Talvez você esteja certa, Maisie. Às vezes é melhor não deixar que eles tenham tudo na primeira vez. Se os deixa esperando, eles se tornam ainda mais ansiosos.

Maisie mudou de assunto.

- Trouxe-me terríveis recordações encontrar pessoas com o nome Pilaster.

April balançou a cabeça.

- Odeio as porras dos patrões! - disse ela com uma súbita veemência. A linguagem de April era mais vulgar do que o vocabulário a que Maisie se acostumara no circo.

- Nunca trabalharei para nenhum. É o motivo pelo qual faço isso. Fixo o meu preço e recebo adiantado.

- Meu irmão e eu saímos de casa no dia em que Tobias Pilaster foi à bancarrota. - Maisie sorriu, pesarosa. - Pode-se dizer que é por causa dos Pilasters que hoje estou aqui.

- O que fez depois que partiu? Juntou-se ao circo imediatamente?

- Não. - Maisie sentiu um aperto no coração ao recordar como se sentira assustada e solitária. - Meu irmão embarcou num navio que ia para Boston. Nunca mais o vi, nem tive notícias dele. Dormi num depósito de lixo por uma semana. Graças a Deus que o tempo estava bom... era maio. Só choveu uma noite: eu me cobri com trapos e fiquei com pulgas por anos após... Lembro do funeral.

- De quem?

- De Tobias Pilaster. O cortejo fúnebre passou pelas ruas. Era um homem importante na cidade. Lembro que tinha um garoto, não muito mais velho do que eu, usando um casaco preto e cartola, segurando a mão da mãe. Devia ser Hugh.

- Essa não!

- Depois, fui andando até Newcastle. Vestia-me como um garoto, e trabalhei num estábulo como ajudante. Deixavam-me dormir na palha à noite, junto com os cavalos.

Passei três anos ali.

- Por que foi embora?

- Fiquei com isto. - Maisie sacudiu os seios. Um homem de meia-idade que passava por elas no momento arregalou os olhos. - Quando o chefe dos cavalariços percebeu que eu era uma moça, tentou me estuprar. Bati em sua cara com um chicote de montaria e perdi o emprego.

- Espero que o tenha cortado - comentou April.

- Com certeza esfriei seu ardor.

- Deveria ter batido na coisa dele.

- O homem poderia gostar.

- Para onde foi depois que deixou o estábulo?

- Fui para o circo. Comecei ajudando a cuidar dos cavalos e acabei me tornando uma das amazonas. - Ela suspirou, nostálgica. - Gostava do circo. As pessoas eram simpáticas.

- Até demais, aposto. Maisie acenou com a cabeça.

- Nunca me dei bem com o dono do circo, e quando ele quis me levar para a cama, resolvi ir embora. Cheguei à conclusão de que se tinha de chupar paus para viver, ia querer um salário melhor. E aqui estou.

Ela sempre absorvia os maneirismos da fala e adotara o vocabulário desenvolto de April. Fitando-a com um olhar matreiro, April perguntou:

- E quantos paus você chupou desde então?

- Nenhum, para dizer a verdade. - Maisie parecia embaraçada. - Não posso mentir para você, April... não tenho certeza se sou talhada para esse ofício.

- É perfeita para isso! - protestou April. - Tem aquele brilho nos olhos a que os homens não podem resistir. Quero que me escute. Insista com Solly Greenbourne.

Dê a ele um pouco mais de cada vez. Deixe-o sentir sua xoxota num dia, vê-la nua no outro... Em cerca de três semanas, ele estará ofegando de desejo. Uma noite, quando arriar sua calça e estiver com a ferramenta na boca, diga a ele: "Se me comprasse uma casinha em Chelsea, Solly, poderíamos fazer isso a qualquer momento que você quisesse". Juro para você, Maisie, que se ele disser não, eu me tornarei uma freira.

Maisie sabia que a amiga tinha razão, mas sua alma se revoltava contra isso. Não entendia direito por quê. Era em parte porque não se sentia atraída por Solly. Paradoxalmente, outro motivo era o fato de ele ser tão simpático. Não tinha coragem de manipulá-lo sem piedade. Mas o pior de tudo era achar que assim renunciaria a toda e qualquer esperança do verdadeiro amor... um casamento de verdade, com um homem que a amasse. Por outro lado, tinha de sobreviver de alguma forma, e estava determinada a não viver como os pais, esperando a semana inteira por uma ninharia no dia do pagamento e sempre correndo o risco de desemprego por causa de uma crise financeira a centenas de quilômetros de distância.

- O que me diz dos outros? - indagou April. - Poderia ter escolhido qualquer um.

- Gostei de Hugh, mas o ofendi.

- De qualquer maneira, ele não tem dinheiro.

- Edward é um porco, Micky me assusta e Tonio é seu.

- Então Solly é mesmo seu homem.

- Não sei...

- Pois eu sei. Se o deixar escapulir por entre os dedos vai passar o resto da vida circulando por Piccadilly, e pensando "Eu poderia morar naquela casa agora".

- É bem provável.

- E se não for Solly, quem seria? Pode acabar com um merceeiro antipático de meia-idade que a manterá sempre sem dinheiro, e vai querer que lave seus próprios lençóis.

Maisie remoeu essa perspectiva enquanto chegavam à extremidade oeste de Piccadilly e viravam para o norte, entrando na Mayfair. Era possível forçar Solly ao casamento, se assim se empenhasse. E seria capaz de desempenhar o papel de uma grande dama sem muita dificuldade. A fala era metade da batalha, e sempre fora competente na imitação. Mas o pensamento de acuar Solly a um casamento sem amor a repugnava.

Passaram por uma estrebaria de cavalos de aluguel. Maisie sentiu saudades do circo e parou para afagar um enorme garanhão castanho. O cavalo encostou o focinho em sua mão no mesmo instante. Uma voz de homem disse:

- Redboy não costuma permitir que pessoas estranhas o toquem.

Maisie virou-se para deparar com um homem de meia-idade num fraque preto, com um colete amarelo. As roupas formais contrastavam com o rosto curtido e a fala rude, e ela calculou que se tratasse de um ex-cavalariço que abrira seu próprio negócio e se saíra muito bem. Ela sorriu.

- Ele não se importa que eu o afague... não é mesmo, Redboy?

- Mas seria capaz de montá-lo?

- Se seria capaz? Claro que sim, e montar sem sela e ainda ficar de pé em cima dele. Redboy é seu?

O homem fez uma pequena reverência.

- George Sammies, a seu serviço, senhoras: proprietário, como diz ali. -Ele apontou para seu nome pintado acima da porta. Maisie disse:

- Eu não deveria me gabar, Mr. Sammies, mas passei os últimos quatro anos num circo e por isso sou capaz de montar qualquer animal em sua estrebaria.

- É mesmo? - murmurou ele, pensativo. - Ora, ora...

April interveio:

- Em que está pensando, Mr. Sammies?

Ele hesitou.

- Pode parecer um tanto repentino, mas me perguntei se essa dama não estaria interessada numa proposta de negócios.

Maisie especulou o que viria em seguida. Até aquele momento, pensara que a conversa não passasse de uma digressão sem conseqüências.

- Continue.

April acrescentou, insinuante:

- Sempre estamos interessadas em propostas de negócios.

Mas Maisie tinha a impressão de que Sammies não estava interessado no que April tinha em mente.

- O caso é que Redboy está à venda - começou o homem. - Mas não se vende um cavalo deixando-o dentro da estrebaria. Mas se sair montada nele pelo parque durante mais ou menos uma hora, uma dama como você, se me permite a ousadia, tão bonita assim, atrairia muita atenção, e as possibilidades são de que mais cedo ou mais tarde alguém pergunte quanto quer pelo cavalo.

Daria para ganhar dinheiro com isso? pensou Maisie. Poderia ser um meio de pagar o aluguel sem vender seu corpo, nem sua alma? Mas ela não fez a pergunta que prevalecia em sua mente. Em vez disso, comentou:

- E eu diria então à pessoa: "Vá falar com Mr. Sammies, em Curzon Mews, pois o pangaré é dele". É isso o que pretende?

- Exatamente, só que em vez de chamar Redboy de pangaré, poderia falar em "esta magnífica criatura", ou "este esplêndido animal", ou qualquer outra coisa assim.

- Talvez - disse Maisie, pensando que usaria suas próprias palavras, não as de Sammies. - Agora, vamos aos negócios. - Ela não podia mais simular indiferença pelo dinheiro. - Quanto me pagaria?

- Quanto acha que vale?

Maisie pensou numa quantia absurda.

- Uma libra por dia.

- É demais - disse ele no mesmo instante. - Pagarei a metade.

Ela mal podia acreditar em sua sorte. Dez xelins por dia era um salário fabuloso: as moças de sua idade que trabalhavam como criadas tinham sorte se ganhassem

um xelim por dia. Seu coração disparou.

- Negócio fechado - ela se apressou em dizer, com receio de que o homem mudasse de idéia. - Quando começo?

- Venha amanhã, às dez e meia.

- Estarei aqui.

Trocaram um aperto de mão, e as moças se afastaram. Sammies ainda disse:

- Não se esqueça de usar esse vestido... é encantador.

- Não se preocupe - respondeu Maisie.

Era o único que ela tinha. Mas não disse isso a Sammies.

TRÁFEGO NO PARQUE

AO EDITOR DE THE TIMES

Senhor: Tem sido observado no Hyde Park, nos últimos dias, por volta de onze e meia, todas as manhãs, um congestionamento tão grande de carruagens que não se pode avançar durante cerca de uma hora. Numerosas explicações foram sugeridas: como, por exemplo, as de que muitos residentes nos campos vieram à cidade para a Temporada; ou a de que a prosperidade de Londres é agora tão grande que as esposas dos negociantes também dispõem de carruagem, e vão passear no parque. Mas a verdade ainda não foi mencionada em qualquer lugar. A culpa é de uma dama, de nome desconhecido, mas a quem os homens chamam de "A Leoa", sem dúvida por causa da cor amarelo-castanho de seus cabelos. Trata-se de uma criatura fascinante, muito bem-vestida, que monta com facilidade e graça cavalos que desafiariam muitos homens; e guia, com igual facilidade, uma carruagem puxada por parelhas perfeitas. A fama de sua beleza e habilidade eqüestre é tão grande que toda a Londres desloca-se para o parque a essa hora; e uma vez ali, descobre que não pode se mover. Como seu ofício é saber de tudo e conhecer a todos, senhor, e assim deve estar a par da verdadeira identidade da Leoa, não poderia persuadi-la a desistir, a fim de que o parque possa voltar a seu estado normal de decoro sereno e facilidade de travessia?

Sempre ao seu dispor, senhor,

UM OBSERVADOR

A carta só podia ser uma piada, pensou Hugh, enquanto largava o jornal. A Leoa era bastante real - ouvira os escriturários falarem a seu respeito, - mas não era a causa da paralisação das carruagens. Mesmo assim, ele estava intrigado. Olhou para o parque através das janelas da Whitehaven House. Era feriado. O sol brilhava, e já havia muitas pessoas passeando a pé, a cavalo, em carruagens. Hugh pensou que poderia dar um pulo ao parque na esperança de ver a causa de toda aquela confusão.

Tia Augusta também planejava ir ao parque. Sua caleche estava parada na frente da casa. O cocheiro usava sua peruca, e o lacaio de libre esperava para subir atrás.

Ela ia ao parque àquela hora na maioria das manhãs, como faziam todas as mulheres e homens ociosos das classes superiores. Diziam que era pelo ar fresco e exercício; mais importante ainda, porém, era o fato de o parque ser um lugar para se ver e ser visto. A verdadeira causa do congestionamento era as pessoas pararem suas carruagens para conversarem, bloqueando a passagem.

Hugh ouviu a voz da tia. Levantou-se da mesa do desjejum e foi para o salão de entrada. Como sempre, Tia Augusta estava impecavelmente vestida. Hoje, usava um vestido púrpura, com um corpete justo, e metros de babados por baixo. A escolha do chapéu fora infeliz, no entanto: uma miniatura de chapéu de palha de barqueiro, não tendo mais de dez centímetros, empoleirado no alto do penteado, na frente. Era a última moda, e ficava gracioso nas moças bonitas; mas Augusta estava longe de ser graciosa, e nela o chapéu ficava ridículo. Não era com freqüência que ela cometia tais erros, mas quando acontecia era quase sempre por seguir a moda com uma fidelidade exagerada.

Ela conversava com Tio Joseph, que exibia o ar de cansaço que costumava assumir quando a esposa lhe falava. Postava-se na frente de Augusta, meio de lado, passando a mão pelas enormes costeletas, impaciente. Hugh se perguntou se haveria alguma afeição entre os dois. Devia ter havido no passado, refletiu ele, pois haviam concebido

Edward e Clementine. Agora, quase nunca demonstravam afeto, mas de vez em quando Augusta fazia algo deferente por Joseph. É bem provável que eles ainda se amem, concluiu Hugh. Augusta continuou a falar como se o sobrinho não estivesse presente, o que era o seu hábito.

- Toda a família está preocupada - disse ela, insistente, como se Tio Joseph tivesse sugerido o oposto. - Pode haver um escândalo.

- Mas a situação... qualquer que seja... vem se prolongando há anos, e ninguém jamais achou que era escandalosa.

- Porque Samuel não é o Sócio Sênior. Uma pessoa comum pode fazer muitas coisas sem atrair a atenção. Mas o Sócio Sênior do Pilasters Bank é uma figura pública.

- Ora, talvez o problema não seja urgente. Tio Seth ainda está vivo, e tudo indica que assim continuará por muito tempo.

- Sei disso. - Havia um tom de frustração denunciador na voz de Augusta. -Às vezes eu gostaria... - Ela parou antes de se expor demais. - Mais cedo ou mais tarde,

ele entregará o comando. Pode acontecer amanhã. O primo Samuel não pode fingir que não há nada com que se preocupar.

- Talvez - disse Joseph. - Mas se ele fingir, não sei o que se poderia fazer.

- Pode ser necessário informar Seth sobre o problema.

Hugh se perguntou o quanto o velho Seth sabia sobre a vida do filho. No fundo de seu coração, era provável que conhecesse a verdade; mas talvez nunca a admitisse, nem para si mesmo.

- Que os céus nos livrem - murmurou Joseph, apreensivo.

- Seria de fato lamentável - disse Augusta, com uma hipocrisia total. - Mas você deve fazer Samuel compreender que, se ele não mudar, seu pai terá de ser consultado, e nesse caso Seth ficará a par de tudo.

Hugh não podia deixar de admirar a astúcia implacável da tia. Ela dava um recado a Samuel: renuncie a seu secretário ou forçaremos seu pai a enfrentar a realidade

de que o filho é mais ou menos casado com um homem.

Na verdade, ela não se importava absolutamente com Samuel e seu secretário. Queria apenas tornar impossível que ele se tornasse Sócio Sênior... a fim de que o manto passasse para seu marido. Era um golpe baixo, e Hugh especulou se Joseph compreendia mesmo o que Augusta estava fazendo.

- Eu gostaria de resolver tudo sem qualquer ação drástica - declarou Joseph.

Augusta baixou a voz para um murmúrio íntimo. Quando isso acontecia, Hugh sempre achava que ela parecia obviamente insincera, como um dragão tentando ronronar.

- Tenho certeza de que encontrará um meio de fazer isso. - Ela sorriu, suplicante. - Vai me levar para passear hoje? Eu gostaria muito de sua companhia.

Ele balançou a cabeça.

- Preciso ir ao banco.

- É uma pena ficar trancado num escritório empoeirado num dia lindo como este!

- Houve um pânico em Bolonha.

Hugh ficou intrigado. Desde o "Krach" em Viena, houvera diversas bancarrotas de bancos e liquidações de companhias em diferentes partes da Europa, mas aquele era o primeiro "pânico". Londres escapara aos danos, até agora. Em junho, a taxa bancária, o termômetro do mundo financeiro, subira para sete por cento - nem chegava a ser um estado febril - e já caíra para seis por cento. Hoje, no entanto, podia haver alguma agitação.

- Espero que o pânico não nos afete - disse Augusta.

- Enquanto tivermos cuidado, isso não acontecerá - garantiu

Joseph.

- Hoje é feriado... não haverá ninguém para fazer o seu chá.

- Eu diria que posso sobreviver por meio dia sem tomar um chá.

- Mandarei Sara servi-lo dentro de uma hora. Ela fez um bolo de cereja... o seu predileto... levará uma fatia e aprontará o chá.

Hugh percebeu que era uma boa oportunidade.

- Quer que eu o acompanhe, Tio? Talvez necessite de um escriturário.

Joseph sacudiu a cabeça.

- Não Vou precisar de você.

- Pode querer que ele saia para algum serviço, querido - sugeriu

Augusta.

Hugh acrescentou, com um sorriso:

- Ou ele pode querer o meu conselho. Joseph não apreciou o gracejo.

- Só Vou ler os telegramas e decidir o que deve ser feito quando os mercados reabrirem amanhã.

Como um tolo, Hugh insistiu:

- Eu gostaria de ir assim mesmo... só por interesse. Era sempre um erro pressionar Joseph.

-Já disse que não preciso de você - respondeu ele, irritado. - Vá passear no parque com sua tia. Ela precisa de um acompanhante.

Ele pôs o chapéu na cabeça e saiu. Augusta comentou:

- Você tem um talento para aborrecer desnecessariamente as pessoas, Hugh. Pegue o seu chapéu. Já estou pronta para sair.

Hugh não queria passear com Augusta, mas o tio lhe dera essa ordem e ele sentia-se curioso em ver A Leoa, por isso não discutiu.

A filha de Augusta, Clementine, apareceu vestida para sair. Hugh brincava com a prima quando eram crianças, e ela sempre fora uma intrigueira. Aos sete anos, pedira

a Hugh para lhe mostrar seu pênis. Depois, contara à mãe o que ele fizera e Hugh levara uma surra. Agora, aos 20 anos, Clementine parecia com a mãe, mas onde Augusta era autoritária, ela se mostrava insidiosa.

Saíram todos. O lacaio ajudou-os a subirem na caleche. Era um veículo novo, pintado de azul, puxado por um magnífica parelha de tordilhos castrados - tudo à altura da esposa de um grande banqueiro. Augusta e Clementine sentaram viradas para a frente, e Hugh instalou-se no outro lado. A capota se achava arriada por causa do sol brilhante, mas as mulheres abriram suas sombrinhas. O cocheiro estalou o chicote e partiram.

Poucos momentos depois alcançaram a South Carriage Drive. Estava tão apinhada quanto alegara o autor da carta a The Times. Havia centenas de cavalos montados por homens de cartola e mulheres em silhões, dezenas de carruagens de todos os tipos, abertas e fechadas, de duas e quatro rodas, além de crianças em pôneis, casais a pé, babás com carrinhos de bebê e pessoas com cachorros. As carruagens faiscavam devido à tinta nova, os cavalos estavam escovados, os homens usavam fraque completo e as mulheres exibiam todas as cores brilhantes que as novas tinturas químicas podiam produzir. Todos avançavam devagar, o que era melhor para se avaliar cavalos e carruagens, roupas e chapéus. Augusta falava com a filha, e a conversa não exigia qualquer contribuição de Hugh além de uma indicação ocasional de concordância.

- Lá está lady St. Ann com um chapéu de Dolly Varden! - exclamou Clementine.

- Saíram de moda há um ano - comentou Augusta.

- Hum, hum - murmurou Hugh.

Outra carruagem emparelhou, e Hugh viu sua Tia Madeleine Hartshorn. Se ela tivesse costeletas, ficaria igual ao irmão Joseph, pensou ele. Era a maior aliada de Augusta na família. Juntas, controlavama vida social da família. Augusta era a força orientadora, mas Madeleine era sua fiel acólita.

As carruagens pararam e as duas trocaram cumprimentos. Obstruíam a passagem, e duas ou três carruagens pararam atrás. Augusta disse:

- Dê uma volta conosco, Madeleine. Preciso conversar com você. O lacaio de Madeleine ajudou-a a descer de sua carruagem e subir na de Augusta. Tornaram a partir.

- Estão ameaçando contar ao velho Seth sobre o secretário de Samuel - anunciou Augusta.

- Oh, não! - protestou Madeleine. - Não podem fazer isso!

- Falei com Joseph, mas eles insistem em fazê-lo.

O tom de sincera preocupação de Augusta deixou Hugh impressionado. Como ela conseguia? Talvez se convencesse de que a verdade era qualquer coisa que lhe aprouvesse dizer no momento.

- Vou conversar com George - prometeu Madeleine. - O choque pode matar o querido Tio Seth.

Hugh aventou a idéia de relatar a conversa ao Tio Joseph. Será que Joseph ficaria consternado ao descobrir como ele e os outros sócios vinham sendo manipulados por suas esposas? Mas não acreditariam em Hugh. Ele não era ninguém... e era por isso que Augusta não se importava com o que dizia em sua presença.

A carruagem passou a andar mais devagar, quase parando. Havia um agrupamento de carruagens e cavalos à frente. Augusta indagou, irritada:

- Qual é a causa disso?

- Deve ser A Leoa - informou Clementine, excitada.

Hugh esquadrinhou a multidão na maior ansiedade, mas não pôde divisar o que causava a retenção. Havia várias carruagens de tipos diferentes, nove ou dez cavalos e alguns pedestres.

- Que história é essa de Leoa? - perguntou Augusta.

- Oh, mãe, ela é notória!

Enquanto a carruagem de Augusta se adiantava, uma pequena e elegante vitória saiu do meio da multidão, puxada por uma parelha de pôneis de passadas altas, e guiada por uma mulher.

- EA Leoa! - balbuciou Clementine.

Hugh olhou para a mulher que conduzia a vitória e ficou espantado ao reconhecê-la.

Era Maisie Robinson.

Ela estalou um chicote e os pôneis aumentaram a velocidade. Usava um traje marrom de merino, com debruns de seda, uma gravata com um laço numa tonalidade marrom-amarelada. Tinha na cabeça um chapéu pequeno, com a aba levantada.

Hugh sentiu-se outra vez furioso com ela, pelo que dissera a respeito de seu pai. Ela nada sabia de finanças, não tinha o direito de acusar pessoas de desonestidade de uma forma tão casual. Mesmo assim, ele não pôde deixar de pensar que Maisie estava deslumbrante. Havia algo encantador e irresistível na pose daquele corpo pequeno e perfeito sentado na vitória, na inclinação do chapéu, e até mesmo na maneira como segurava o chicote e sacudia as rédeas.

Portanto, A Leoa era Maisie Robinson! Mas como ela adquirira de repente cavalos e carruagens? Será que ganhara muito dinheiro? E o que ela pretendia?

Hugh ainda especulava quando houve um acidente.

Um puro-sangue nervoso passou trotando pela carruagem de Augusta e foi assustado por um pequeno e barulhento cachorro terrier. Empinou no mesmo instante, e o cavaleiro caiu... bem na frente da vitória de Maisie.

Ela mudou de direção prontamente, demonstrando um controle extraordinário do veículo, e atravessou o caminho. A ação evasiva levou-a para a frente dos cavalos de Augusta, fazendo o cocheiro puxar as rédeas e soltar uma imprecação.

Maisie parou a vitória bem ao lado da caleche. Todos olharam para o cavaleiro caído. Ele parecia ileso. Levantou-se sem qualquer ajuda, limpou a poeira das roupas e afastou-se, praguejando, para pegar seu cavalo. Maisie reconheceu Hugh e disse:

- Ora essa, Hugh Pilaster! Hugh corou.

- bom dia - balbuciou ele, sem ter a menor idéia do que fazer em seguida.

Ele compreendeu no mesmo instante que cometera um grave erro de etiqueta. Não deveria ter respondido a Maisie enquanto estava na companhia das tias, já que não podia lhes apresentar uma pessoa assim. Deveria tê-la esnobado. Maisie, no entanto, não fez a menor tentativa de cumprimentar as mulheres.

- Gosta desses pôneis?

Ela parecia ter esquecido a discussão entre os dois. Hugh sentia-se completamente atordoado por aquela mulher linda e surpreendente, com uma excepcional habilidade nas rédeas e maneiras descuidadas.

- São muito bonitos - murmurou ele, sem olhar para os animais.

- Estão à venda.

Tia Augusta interveio, a voz gelada:

- Hugh, faça o favor de dizer a essa pessoa para nos deixar passar!

Maisie fitou-a pela primeira vez e disse calmamente:

- Cale essa matraca, sua velha megera.

Clementine engasgou, e Tia Madeleine soltou um gritinho de horror. Hugh ficou boquiaberto. As roupas deslumbrantes e a carruagem de luxo tornavam fácil esquecer que Maisie era uma garota dos cortiços. Suas palavras eram tão vulgares que por um momento Augusta ficou aturdida demais para responder. Ninguém se atrevia a lhe falar daquela maneira. Maisie não deu tempo para que se recuperasse. Tornou a se virar para Hugh e acrescentou:

- Diga a seu primo Edward que ele deveria comprar meus pôneis! Em seguida, ela estalou o chicote e partiu. Augusta explodiu:

- Como ousa me expor a uma pessoa assim? Como tem coragem de tirar o chapéu para ela?

Hugh olhava para Maisie, admirando as costas perfeitas e o chapéu gracioso. Tia Madeleine aderiu ao coro:

- Como pode conhecer uma mulher assim, Hugh? Nenhum rapaz bem-educado jamais teria qualquer relacionamento com esse tipo! E parece que você até a apresentou a Edward!

Fora Edward quem apresentara Maisie a Hugh, mas ele não tentaria transferir a culpa para o primo. Não iam mesmo acreditar.

- Não a conheço muito bem - protestou ele. Clementine estava fascinada.

- Onde a conheceu, Hugh?

- Num lugar chamado Argyll Rooms. Augusta franziu o cenho para Clementine e disse:

- Não quero saber dessas coisas. Hugh, mande Baxter nos levar para casa.

- Vou sair para dar uma volta - anunciou Hugh, abrindo a porta da caleche.

- Vai atrás daquela mulher! - exclamou Augusta. - Eu o proíbo!

- Pode ir, Baxter - disse Hugh ao saltar.

O cocheiro sacudiu as rédeas, as rodas viraram. Hugh tirou o chapéu, como a polidez determinava, enquanto as tias furiosas se afastavam.

Ainda não ouvira a última palavra. O problema continuaria mais tarde. Tio Joseph seria informado, e logo todos os sócios saberiam que Hugh se relacionava com mulheres de baixa extração.

Mas era um feriado, o sol brilhava, o parque se encontrava repleto de pessoas se divertindo, e Hugh não podia se preocupar com a raiva da tia naquele dia.

Sentia-se alegre enquanto avançava pelo caminho. As pessoas às vêzes andavam em círculos, e assim poderia encontrá-la de novo.

Estava ansioso em conversar mais com ela. Queria esclarecer tudo sobre seu pai. Por mais estranho que pudesse parecer, não guardava mais nenhum ressentimento pelo que Maisie dissera. Ela se enganara, pensou Hugh, e compreenderia se ele explicasse. E, de qualquer forma, só falar com ela já era emocionante.

Ele chegou a Hyde Park Corner e virou para o norte, ao longo da Park Lane. Tirou o chapéu para numerosos parentes e conhecidos: os jovens William e Beatrice numa berlinda, Tio Samuel numa égua castanha, Mr. Mulberry com a esposa e os filhos. Maisie poderia ter parado no outro lado, talvez até já tivesse deixado o parque àquela altura. Hugh começou a achar que não tornaria a vê-la.

Mas viu.

Ela estava de partida, atravessando a Park Lane. Era mesmo Maisie, sem a menor sombra de dúvida, com sua gravata marrom-amarelada. Ela não o viu.

Num súbito impulso Hugh seguiu-a até Mayfair, passando por estrebarias. Teve de correr para não perdê-la de vista. Maisie parou a vitória num estábulo e saltou.

Um cavalariço se adiantou e começou a ajudá-la com os cavalos. Hugh aproximou-se por trás, ofegante. Não entendia por que fazia aquilo.

- Olá, Miss Robinson.

- Olá de novo!

- Eu a segui - disse ele, supérfluo. Maisie fitou-o nos olhos.

- Por quê?

Sem pensar, ele balbuciou:

- Gostaria de saber se não quer sair comigo uma noite dessas.

Ela inclinou a cabeça para o lado, o rosto um pouco franzido, avaliando o convite. Sua expressão era cordial, como se apreciasse a idéia, e Hugh pensou-que ela aceitaria.

Mas parecia que considerações práticas travavam uma guerra com suas inclinações. Maisie desviou os olhos, ainda relutante, mas logo pareceu se decidir.

- Você não tem condições para sair comigo - afirmou ela, incisiva, virando as costas para entrar no estábulo.

CammelFarm Colônia do Cabo África do Sul

14 de julho de 1873

Prezado Hugh:

Foi ótimo ter notícias suas! Vive-se um tanto isolado por aqui, e você não pode imaginar o prazer que sentimos ao recebermos uma carta longa e cheia de notícias da Inglaterra. Mrs. Cammel, que era a Honorável Amélia Clapham até casar comigo, divertiu-se bastante com seu relato sobre A Leoa...

É um pouco tarde para falar a respeito, sei disso, mas fiquei muito chocado pela morte de seu pai. Os colegiais não escrevem mensagens de condolências. Além disso, sua tragédia pessoal foi um tanto ofuscada pelo afogamento de Peter Middleton naquele mesmo dia. Mas, pode ter certeza, muitos de nós pensamos em você, falamos a seu respeito, depois que foi tirado do colégio de uma forma tão abrupta...

Estou contente por me perguntar sobre Peter. Tenho me sentido culpado desde aquele dia. Não cheguei a ver opobre-coitado morrer, mas testemunhei o suficiente para adivinhar o resto.

Seu primo Edward, como você descreveu de maneira tão pitoresca, era mais podre do que um gato morto. Você conseguiu pegar a maior parte das suas roupas na água e escapou, mas Peter e Tonio não foram tão rápidos.

Eu me encontrava no outro lado, e creio que Edward e Micky nem me notaram. Ou talvez não me reconheceram. De qualquer forma, nunca me falaram sobre o incidente.

Depois que você foi embora, Edward continuou a atormentar Peter ainda mais, empurrando sua cabeça para o fundo, jogando água em seu rosto, enquanto o pobre se debatia e tentava recuperar suas roupas.

Percebi que a situação escapava ao controle, mas fui um covarde total, infelizmente. Deveria ter partido em socorro de Peter, mas também não era muito grande, não tinha condições de enfrentar Edward e Micky Miranda, e não queria que minhas roupas ficassem molhadas também. Lembra da punição por violar o castigo? Era de 12 golpes da Listradora, e não me importo de admitir que tinha mais medo disso do que de qualquer outra coisa. Tratei de pegar minhas roupas e fui embora, sem atrair qualquer atenção.

Só olhei para trás uma vez, da beira da pedreira. Não sei o que aconteceu no intervalo, mas Tonio subia pela encosta nu e segurando suas roupas molhadas, Edward nadava em seu encalço, deixando Peter ofegante e cuspindo água lá no meio.

Pensei que Peter se recuperaria, mas obviamente eu estava enganado. Ele devia estar no limite de suas forças. Enquanto Edward perseguia Tonio e Micky observava, Peter se afogou, sem que ninguém notasse.

Só mais tarde é que eu soube disso, é claro. Voltei à escola, fui para meu dormitório. Quando começaram a fazer perguntas, jurei que passara a tarde inteira ali.

E quando a história terrível foi revelada, nunca tive a coragem de admitir que testemunhara o que aconteceu.

Não é algo de que eu possa me orgulhar, Hugh. Mas contara verdade, finalmente, fez com que eu me sentisse um pouco melhor...

 

Hugh largou a carta de Albert Cammel e ficou olhando pela janela de seu quarto. A carta explicava mais e menos do que Cammel imaginava.

Explicava como Micky Miranda se insinuara nas boas graças da família Pilaster, a tal ponto que passava todas as férias em companhia de Edward e tinha todas as despesas pagas pelos pais do amigo. Não podia haver a menor dúvida de que Micky dissera a Augusta que Edward virtualmente matara Peter. No tribunal, porém, Micky jurara que Edward tentara salvar o garoto que se afogava. E ao dizer tal mentira, Micky salvara os Pilasters da desgraça pública. Augusta teria sentido a mais profunda gratidão...

e talvez também ficasse com medo de que Micky pudesse um dia se voltar contra a família e revelar a verdade. Hugh experimentou um calafrio de medo no estômago. Albert Cammel, sem saber, revelara que o relacionamento de Augusta com Micky era profundo, sinistro e corrupto.

Mas outro enigma persistia, pois Hugh sabia de uma coisa sobre Peter Middleton de que quase mais ninguém tinha conhecimento. Peter era um tanto fraco, e os outros meninos o maltratavam. Constrangido por sua fraqueza, ele iniciara um programa de treinamento... e seu principal exercício era a natação. Percorria aquele poço de um lado a outro, hora após hora, tentando desenvolver o físico. Não dera certo: um garoto de 13 anos só podia adquirir ombros largos e peito musculoso ao se tornar um homem, e esse processo não podia ser acelerado.

O único efeito de todo o seu esforço fora o de transformá-lo como um peixe na água. Conseguia mergulhar até o fundo, prender a respiração por vários minutos, boiar de costas e manter os olhos abertos sob a superfície. Seria preciso muito mais do que Edward Pilaster para afogá-lo. Então por que ele morrera?

Albert Cammel dissera a verdade até onde a conhecia, Hugh tinha certeza. Mas tinha de haver mais. Outra coisa acontecera naquela tarde quente em Bishop's "Wood.

Um nadador inexperiente poderia ter morrido por acidente, se afogado porque o tratamento rude de Edward fora demais para suportar. Mas isso não seria capaz de matar Peter. E se sua morte não fora acidental, então fora provocada. E isso era assassinato. Hugh estremeceu.

Só havia três pessoas ali na ocasião: Edward, Micky e Peter. Peter devia ter sido assassinado por Edward ou Micky. Ou por ambos.

Augusta já se sentia insatisfeita com sua decoração japonesa. A sala de estar estava cheia de biombos orientais, móveis angulosos sobre pernas finas e compridas, leques e vasos japoneses em armários pretos laqueados. Era tudo muito caro, mas cópias baratas já apareciam nas lojas da Oxford Street, e a decoração não era mais exclusiva das melhores casas. Infelizmente, Joseph não permitiria uma redecoração tão cedo, e Augusta teria de conviver com aqueles móveis cada vez mais comuns por vários anos.

A sala de estar era o lugar em que Augusta presidia na hora do chá, todos os dias da semana. As mulheres costumavam chegar primeiro: suas cunhadas, Madeleine e Beatrice, e a filha, Clementine. Os sócios vinham direto do banco, por volta de cinco horas: Joseph, o velho Seth, o marido de Madeleine, George Hartshorn, e Samuel de vez em quando. Se os negócios andavam tranqüilos, os rapazes também compareciam: Edward, Hugh e o Jovem William. A única pessoa que não pertencia à família e se tornara um freqüentador regular do chá era Micky Miranda, mas às vezes havia também a participação de um clérigo metodista, talvez um missionário procurando recursos para converter os pagãos nos Mares do Sul, na Malásia ou no recém-aberto Japão.

Augusta empenhava-se muito para que todos continuassem a vir. Os Pilasters gostavam de coisas doces, e ela providenciava os mais deliciosos biscoitos e bolos, além do melhor chá de Assam e do Ceilão. Grandes eventos, como os feriados e casamentos na família, eram planejados durante essas sessões; assim, quem deixasse de comparecer logo perdia o contato com o que estava acontecendo.

Apesar de tudo isso, de vez em quando um deles ingressava numa fase de querer ser independente. O exemplo mais recente fora o da esposa do Jovem William, Beatrice, há cerca de um ano, depois que Augusta se mostrara um tanto insistente sobre um pano para vestido escolhido por ela, e que não lhe convinha. Quando isso acontecia, deixava a pessoa em paz por algum tempo, depois a reconquistava com um gesto de extravagante generosidade. No caso de Beatrice, Augusta oferecera uma elegante festa de aniversário para sua velha mãe, que já se encontrava na fronteira da senilidade, e por pouco inapresentável em público. Beatrice ficara tão agradecida que esquecera por completo a discussão sobre o pano... exatamente como Augusta tencionara.

Naquelas reuniões na hora do chá, Augusta descobria o que estava acontecendo na família e no banco. Agora, sentia-se ansiosa em relação ao velho Seth. com extremo cuidado, vinha desenvolvendo na família a idéia de que Samuel não poderia ser o próximo Sócio Sênior. Seth, no entanto, não demonstrava a menor inclinação para se aposentar, apesar da saúde precária. Ela achava irritante ver seus planos cuidadosos bloqueados pela tenacidade obstinada de um velho.

Era o final de julho, e Londres se tornava mais sossegada. A aristocracia deixava a cidade nessa época do ano, indo para seus iates em Cowes ou propriedades de caça na Escócia. Permaneceria no campo, abatendo aves, caçando raposas e perseguindo os cervos, até depois do Natal. Entre fevereiro e a Páscoa, começaria a voltar, e em maio a "temporada" de Londres estaria no auge.

A família Pilaster não seguia essa rotina. Embora muito mais rica do que a aristocracia, eram homens de negócios, e nem pensavam em passar a metade do ano na ociosidade, perseguindo animais estúpidos pelos campos. De um modo geral, no entanto, era possível persuadir os sócios a tirarem férias durante a maior parte do mês de agosto, desde que não houvesse nenhuma agitação indevida no mundo financeiro.

Naquele ano, pairavam dúvidas sobre as férias durante todo o verão, já que uma tempestade distante ressoava ameaçadora sobre todas as capitais financeiras da Europa; mas o pior parecia ter passado, a taxas bancárias haviam caído para três por cento, e Augusta alugara um pequeno castelo na Escócia. Ela e Madeleine planejavam viajar dentro de uma semana, e os homens seguiriam um ou dois dias depois.

Poucos minutos antes das quatro horas, quando Augusta se encontrava parada na sala de estar, sentindo-se descontente com seus móveis e com a obstinação do velho Seth, Samuel apareceu.

Todos os Pilasters eram feios, mas Samuel era o pior, pensou ela. Tinha o nariz enorme da família, mas também exibia uma boca débil, feminina, e dentes irregulares.

Era meticuloso, vestia-se de forma impecável, era exigente com sua comida, amava os gatos e odiava os cachorros.

Mas o que Augusta mais detestava nele era o fato de ser, entre todos os homens da família, o mais difícil de persuadir. Ela podia envolver o velho Seth, suscetível a uma mulher atraente mesmo em sua idade avançada; podia em geral controlar Joseph, esgotando sua paciência; George Hartshorn se encontrava sob o domínio de Madeleine, e assim podia ser manipulado indiretamente; e os outros eram bastante jovens para serem intimidados, embora Hugh às vezes lhe criasse problemas.

Nada dava certo com Samuel... muito menos os seus charmes femininos. Ele tinha uma maneira irritante de rir quando Augusta pensava que estava sendo astuta. Dava a impressão de que Augusta era uma mulher que não se podia levar a sério... e isso a ofendia profundamente. Ela se sentia muito mais magoada pelo escárnio sutil de Samuel do que por ser chamada de velha megera por uma vagabunda no parque.

Hoje, porém, Samuel não apresentava seu sorriso divertido e cético. Parecia furioso... tão furioso que por um momento Augusta ficou alarmada. Era óbvio que ele viera mais cedo para encontrá-la sozinha. Ocorreulhe que há dois meses vinha conspirando para arruiná-lo, e que pessoas já haviam sido assassinadas por muito menos. Samuel não apertou a mão de Augusta. Parou na sua frente, usando um fraque cinza-pérola e uma gravata grená, recendendo a água de colônia. Augusta ergueu as mãos num gesto defensivo. Ele soltou uma risada seca e afastou-se.

- Não Vou agredi-la, Augusta, embora os céus saibam que merece uma surra de chicote.

Claro que ele não a tocaria. Era uma alma gentil, que se recusava a financiar a exportação de rifles. Augusta recuperou a confiança no mesmo instante e disse, desdenhosa:

- Como se atreve a me criticar?

- Criticar? - A raiva tornou a aflorar nos olhos de Samuel. - Não me rebaixo a criticá-la! - Ele fez uma pausa, e a voz tinha um tom de ira controlada quando voltou a falar. - Eu a desprezo.

Augusta não podia ser intimidada pela segunda vez.

- Veio aqui para me comunicar que está disposto a renunciar a seus hábitos iníquos? - indagou ela, numa voz retumbante.

- Meus hábitos iníquos... Você está disposta a destruir a felicidade de meu pai e tornar minha própria vida miserável só por causa de sua ambição, e ainda fala sobre os meus hábitos iníquos! Creio que ficou tão absorvida no mal que esqueceu por completo o que é isso.

Ele se mostrava tão convencido e arrebatado que Augusta se perguntou se não teria sido uma maldade de sua parte ameaçá-lo. Depois, no entanto, compreendeu que Samuel tentava enfraquecer sua determinação com um apelo à sua compaixão.

- Só estou preocupada com o banco - disse ela, friamente.

- É essa a sua desculpa? É o que vai dizer ao Todo-Poderoso, no Dia do Juízo Final, quando Ele perguntar por que me chantageou?

- Cumpro o meu dever.

Agora que se sentia outra vez no comando da situação, Augusta começou a especular por que ele viera. Seria para admitir a derrota... ou desafiá-la? Se Samuel cedesse, ela poderia ter a certeza de que muito em breve se tornaria a esposa do Sócio Sênior. Mas a alternativa a deixava com vontade de roer as unhas. Se ele a desafiasse, teria uma luta longa e difícil pela frente, sem qualquer garantia do resultado. Samuel foi até a janela e olhou para o jardim.

- Lembro que você era uma menina bonita - murmurou ele, pensativo, arrancando um grunhido impaciente de Augusta. - Costumava ir à igreja num vestido branco, com fitas brancas nos cabelos. As fitas não enganavam ninguém. Já era uma tirana mesmo naquele tempo. Todos passeavam pelo parque depois do serviço, e as outras crianças tinham medo de você. Apesar disso, aceitavam-na, porque era você quem organizava as brincadeiras. Aterrorizava até mesmo seus pais. Se não conseguisse o que queria, podia ter um acesso de raiva tão ruidoso que as pessoas paravam suas carruagens para saber o que estava acontecendo. Seu pai, que Deus guarde sua alma, tinha o olhar atormentado de um homem que não é capaz de compreender como trouxe tal monstro ao mundo.

Tudo o que ele dizia era bem próximo da verdade, e deixou Augusta contrafeita.

- Essas coisas aconteceram há muitos anos - protestou ela, desviando os olhos.

Samuel continuou, como se ela não tivesse falado:

- Não é por mim que estou preocupado. Gostaria de ser o Sócio Sênior, mas posso viver sem isso. Seria dos bons... não tão dinãmico quanto meu pai, talvez, mas alguém que trabalha em equipe. Mas Joseph não está à altura do cargo. É irascível e impulsivo, toma péssimas decisões; e você piora a situação ao estimular sua ambição e turvar seu julgamento. Joseph é excelente num grupo, quando outros podem guiá-lo e contê-lo. Mas não pode ser o líder, porque seu julgamento não é bastante bom. Vai prejudicar o banco a longo prazo. Você não se importa com isso?

Por um momento, Augusta se perguntou se ele teria razão. Corria o risco de matar a galinha dos ovos de ouro? Mas havia tanto dinheiro no banco que jamais poderiam gastar tudo, mesmo que todos eles nunca mais trabalhassem. De qualquer forma, era um absurdo dizer que Joseph seria prejudicial ao banco. Não havia nada de muito difícil no que os sócios faziam: iam ao banco, liam as páginas financeiras dos jornais, emprestavam dinheiro às pessoas, cobravam os juros. Joseph poderia fazer isso tão bem quanto qualquer outro.

- Os homens sempre fingiram que o trabalho no banco é complexo e misterioso. Mas você não me engana. - Ela compreendeu que caíra na defensiva e tratou de acrescentar:

- Eu me justificarei perante Deus, não para você.

- Falaria mesmo com meu pai, como ameaçou? - indagou Samuel.

- Sabe que isso poderia matá-lo.

Augusta só hesitou por um instante.

- Não há alternativa.

Ele fitou-a em silêncio por um longo tempo.

- Acredito em você, seu demônio.

Augusta prendeu a respiração. Era a submissão? Ela sentiu que a vitória se encontrava quase ao seu alcance, e em sua imaginação ouviu alguém dizer, com o devido respeito, Permita-me apresentar Mrs. Joseph Pilaster... a esposa do Sócio Sênior do Pilasters Bank...

Samuel ainda hesitou por um instante, mas acabou falando, com uma óbvia repulsa:

- Muito bem. Direi aos outros que não quero ser o Sócio Sênior quando meu pai se aposentar.

Augusta reprimiu um sorriso de triunfo. Vencera. Virou o rosto para esconder sua exultação.

- Pode desfrutar sua vitória - acrescentou Samuel, amargurado. - Mas lembre-se, Augusta, que todos temos segredos... até você. Um dia alguém usará seus segredos contra você dessa maneira, e vai recordar o que fez comigo.

Augusta ficou aturdida. A que ele se referia? Sem qualquer motivo aparente, o pensamento de Micky Miranda aflorou em sua mente, mas ela tratou de expulsá-lo.

- Não tenho segredos de que me envergonhar.

- Não mesmo?

- Não!

Mas a confiança de Samuel a preocupava. Ele fitou-a com uma estranha expressão.

- Um jovem advogado chamado David Middleton procurou-me ontem.

Por um momento, Augusta não compreendeu.

- Eu deveria conhecê-lo?

O nome era desconcertantemente familiar.

- Encontrou-o uma única vez, há sete anos, numa audiência. Augusta sentiu um súbito calafrio. Middleton: era o nome do garoto que se afogara. Samuel acrescentou:

- David Middleton está convencido de que seu irmão Peter foi assassinado... por Edward.

Augusta queria desesperadamente sentar, mas recusou-se a dar a Samuel a satisfação de vê-la abalada.

- Por que ele tenta criar problemas agora, depois de sete anos?

- Ele me disse que nunca ficou satisfeito com o resultado do inquérito, mas permaneceu em silêncio com receio de causar um sofrimento ainda maior aos pais. Mas a mãe morreu pouco depois de Peter, e o pai morreu este ano.

- Por que ele procurou você... e não a mim?

- Ele pertence ao meu clube. Diz que rêleu os registros da audiência e verificou que várias testemunhas não foram chamadas para prestar depoimento.

Era verdade, pensou Augusta, angustiada. Havia o insidioso Hugh Pilaster, um garoto sul-americano chamado Tony ou qualquer coisa parecida, e uma terceira pessoa que nunca fora identificada. Se David Middleton pressionasse um deles, toda a história poderia ser revelada. A expressão de Samuel era pensativa.

- Do seu ponto de vista, foi uma pena que o juiz sumariante fizesse aqueles comentários sobre o heroísmo de Edward. Isso deixou as pessoas desconfiadas. Acreditariam que Edward ficou parado na beira da água, hesitando, enquanto um garoto se afogava. Mas quem conhece Edward sabe que ele não atravessaria a rua para ajudar alguém, muito menos mergulharia num poço para salvar um garoto se afogando.

Aquele tipo de conversa era um absurdo total, e ainda por cima insultuoso.

- Como ousa falar assim? - protestou Augusta, sem conseguir projetar o tom de autoridade habitual.

Samuel ignorou-a.

- Os outros garotos no colégio nunca acreditaram. David estudou ali também, não muitos anos antes, e conhecia muitos dos rapazes mais velhos. Conversou com eles, o que aumentou suas suspeitas.

- Toda essa história é ridícula.

- Middleton é belicoso, como todos os advogados - insistiu Samuel, indiferente aos protestos. - Não vai deixar o caso ser esquecido.

- Ele não me assusta nem um pouco.

- Isso é ótimo, porque tenho certeza de que receberá uma visita dele muito em breve. - Samuel encaminhou-se para a porta. - Não ficarei para o chá. Boa tarde, Augusta.

Ela sentou num sofá. Não previra isso... como poderia? Seu triunfo sobre Samuel fora ofuscado. Aquela velha história ressurgira, sete anos depois, quando deveria estar completamente esquecida! Augusta sentiu medo por Edward. Não suportaria que acontecesse qualquer coisa ruim ao filho. Baixou a cabeça para que parasse de latejar.

O que poderia fazer?

Hasteacl, o mordomo, entrou na sala nesse momento acompanhado por duas criadas com bandejas de chá e bolos.

- Com sua permissão, madame? - murmurou ele, com seu sotaque galés.

Os olhos de Hastead pareciam espiar em direções diferentes, e as pessoas nunca sabiam em qual se concentrar. A princípio, isso fora desconcertante, mas Augusta já se acostumara. Ela acenou com a cabeça.

- Obrigado, madame.

Começaram a arrumar tudo para o chá. Augusta podia às vezes se acalmar com o comportamento subserviente de Hastead e a visão das criadas obedecendo às suas ordens; mas hoje isso não adiantou. Ela se levantou e foi até as portas de vidro, abertas. O jardim ensolarado também não a ajudou. Como poderia deter David Middleton?

Ainda se angustiava com o problema quando Micky Miranda chegou.

Augusta sentiu-se contente ao vê-lo. Ele estava encantador, como sempre, em seu fraque preto e calça listrada, um colarinho branco imaculado em torno do pescoço, uma gravata preta de cetim na garganta. Percebeu a aflição de Augusta, e no mesmo instante demonstrou sua simpatia. Atravessou a sala com a graciosidade e rapidez de um gato da selva, e sua voz soou como uma carícia:

- O que a deixou assim transtornada, Mrs. Pilaster?

Ela sentiu-se grata por Micky ter sido o primeiro a chegar. Segurou-o pelos braços.

- Aconteceu uma coisa terrível.

Micky pôs as mãos na cintura de Augusta, como se estivessem dançando, e ela experimentou um tremor de prazer quando os dedos apertaram seus quadris.

- Não precisa ficar tão aflita - murmurou ele, tranqüilizando-a.

- Conte-me tudo.

Augusta começou a se sentir mais calma. Em momentos como aquele, gostava muito de Micky. Lembrava como se sentira com o jovem conde de Strang quando moça. Micky era muito parecido com Strang: controlado, atencioso, bonito, roupas impecáveis, e acima de tudo a maneira como se movimentava, a agilidade das pernas e braços, um corpo que funcionava com perfeição. Strang era louro e inglês, enquanto Micky era moreno e latino, mas ambos tinham a capacidade de fazê-la se sentir feminina.

Ela queria puxar o corpo de Micky ao encontro do seu, repousar a cabeça em seu ombro...

Percebeu que as criadas observavam e compreendeu que era um pouco indecoroso Micky permanecer assim, com as mãos em seus quadris. Tratou de se desvencilhar, pegou seu braço e conduziu-o pelas portas de vidro para o jardim, onde poderiam conversar sem que os criados os ouvissem. O ar era quente e perfumado. Sentaram juntos num banco de madeira, à sombra, e Augusta virou-se de lado para fitá-lo. Ansiava em segurar a mão de Micky, mas isso seria impróprio.

- Vi Samuel saindo... ele teve alguma coisa a ver com isso? - indagou Micky.

Augusta falou em voz baixa, e Micky teve de inclinar a cabeça para ouvir, tão perto que ela poderia até beijá-lo sem se mexer.

- Ele veio me dizer que não vai reivindicar a posição de Sócio Sênior.

- Grande notícia!

- É verdade. Significa que o cargo caberá com certeza a meu marido.

- E Papa poderá ter seus rifles.

- Assim que Seth se aposentar.

- É irritante a maneira como o velho Seth resiste! - exclamou Micky.

- Papa sempre me pergunta quando isso vai acontecer.

Augusta sabia por que Micky se preocupava tanto: tinha medo de que o pai o mandasse voltar para Córdoba.

- Não creio que o velho Seth possa agüentar por muito mais tempo - comentou ela para confortá-lo.

Ele fitou-a nos olhos.

- Mas não foi isso que a deixou transtornada.

- Não, não foi. É aquele menino miserável que se afogou no colégio... Peter Middleton. Samuel me contou que o irmão dele, o advogado, começou a fazer perguntas.

Micky franziu o cenho.

- Depois de tantos anos?

- Ao que parece, ele se manteve calado por causa dos pais, mas agora os dois já morreram.

- Acha que o problema é grave?

- Você deve saber melhor do que eu. - Augusta hesitou. Havia uma pergunta que tinha de fazer, mas receava a resposta. Toniou coragem. - Micky... o menino morreu por culpa de Edward?

- Bom...

- Diga sim ou não! Micky fez uma pausa.

- Sim.

Augusta fechou os olhos. Teddy, querido, pensou ela, por que você fez isso?

- Peter não nadava muito bem - acrescentou Micky, gentilmente. - Edward não chegou a afogá-lo, mas deixou-o exausto. Peter estava vivo quando Edward largou-o e foi atrás de Tonio. Mas acho que ficou fraco demais para nadar até a beira do poço e se afogou enquanto ninguém o observava.

- Teddy não queria matá-lo.

- Claro que não.

- Foi apenas uma brincadeira mais rude.

- Edward não tencionava lhe causar qualquer mal.

- Então não foi assassinato.

- Receio que tenha sido - disse Micky, solene, e o coração de Augusta parou por um segundo. - Se um ladrão derruba um homem tencionando apenas roubá-lo, e o homem sofre um ataque cardíaco e morre, o ladrão é culpado de assassinato, mesmo não tendo a intenção de matar.

- Como sabe disso?

- Consultei um advogado há alguns anos.

- Por quê?

- Queria saber a situação de Edward.

Augusta baixou o rosto para as mãos. Era pior do que imaginara. Micky retirou as mãos de seu rosto, beijou-as, uma de cada vez. Foi um gesto tão terno que a deixou com vontade de chorar. Ele continuou a segurar suas mãos enquanto falava:

- Nenhuma pessoa sensata perseguiria Edward por causa de uma coisa que aconteceu quando ele era garoto.

- Mas será que David Middleton é uma pessoa sensata? - gritou Augusta.

- Talvez não. Parece que ele acalentou essa obsessão ao longo dos anos. Deus nos livre que sua persistência o leve a descobrir a verdade.

Augusta estremeceu ao imaginar as conseqüências. Haveria um escândalo: a imprensa sensacionalista diria SEGREDO VERGONHOSO DE HERDEIRO DE BANCO; a polícia entraria em ação. O pobre Teddy poderia ser levado a julgamento; e se fosse considerado culpado...

- Micky, é horrível demais para sequer cogitar! - murmurou ela.

- Então temos de fazer alguma coisa.

Augusta apertou as mãos de Micky, soltou-as, avaliou a situação. Encarara a magnitude do problema. Vira a sombra da forca se estender sobre seu único filho. Era tempo de parar de se angustiar, tomar a iniciativa. Graças a Deus que Edward tinha um amigo de verdade em Micky.

- Devemos dar um jeito para que as investigações de David Middleton não levem a parte alguma. Quantas pessoas conhecem a verdade?

- Seis. Edward, você e eu já somos três, mas não vamos lhe contar coisa alguma. Há Hugh também.

- Ele não estava presente quando o menino morreu.

- Não, mas testemunhou o suficiente para saber que a história que contamos no inquérito era falsa. E o fato de termos mentido vai fazer com que pareçamos culpados.

- Portanto, Hugh é um problema. E os outros?

- Tonio Silva viu tudo.

- Ele não disse nada na ocasião.

- Tinha muito medo de mim naquele tempo. Mas não tenho certeza de ele ainda sentir a mesma coisa agora.

- E o sexto rapaz?

- Nunca descobrimos quem era. Não vi seu rosto na ocasião, e ele nunca se apresentou. Receio que nada possamos fazer a seu respeito. Mas se ninguém sabe quem ele é, creio que não representa um perigo para nós.

Augusta experimentou um novo tremor de medo: não tinha a mesma certeza. Havia sempre o risco de que a testemunha desconhecida pudesse se apresentar. Mas Micky tinha razão ao dizer que não havia nada que pudessem fazer a respeito.

- Ou seja, há duas pessoas com quem precisamos tratar: Hugh e Tonio. Houve um momento de silêncio.

Hugh não podia mais ser considerado como um estorvo menor, refletiu Augusta. Seu comportamento agressivo lhe valia um crédito cada vez maior no banco, e Edward parecia lerdo em comparação. Augusta conseguira sabotar o romance entre Hugh e lady Florence Stalworthy. Mas agora Hugh ameaçava Teddy de uma maneira muito mais perigosa.

Era preciso fazer alguma coisa em relação a ele. Mas o quê? Hugh era um Pilaster, mesmo que do pior tipo. Ela vasculhou o cérebro à procura de uma resposta, mas nada encontrou. Micky comentou, pensativo:

- Tonio tem uma fraqueza.

- Qual é?

- É um mau jogador. Aposta mais do que pode e sempre perde.

- Poderia arrumar um jogo para ele?

- Talvez.

Passou pela cabeça de Augusta que Micky poderia saber como trapacear nas cartas. Só que não podia perguntar, a mera sugestão seria um insulto mortal para qualquer cavalheiro.

- Pode sair caro - acrescentou Micky. - Vai me financiar?

- De quanto precisaria?

- Cem libras, no mínimo.

Augusta não hesitou. A vida de Teddy estava em jogo.

- Está certo.

Ela ouviu vozes no interior da casa: os outros convidados começavam a chegar. Levantou-se.

- Não sei ainda como lidar com Hugh - acrescentou ela, preocupada. - Terei de pensar a respeito. E agora precisamos entrar.

Sua cunhada Madeleine se encontrava na sala, e pôs-se a falar no instante em que eles passaram pela porta.

- Aquela costureira ainda vai me levar à loucura, duas horas para marcar uma bainha. Mal posso esperar por uma xícara de chá... e você mandou fazer esse bolo de amêndoas divino! Puxa, não acham que o tempo esquentou demais?

Augusta apertou a mão de Micky num gesto de conspiração e sentou-se para servir o chá.

 

Agosto

Londres estava quente e abafada, a população ansiava por ar fresco e campos abertos. No primeiro dia de agosto, todos foram às corridas em Goodwood.

Viajaram em trens especiais, partindo da Victoria Station, no sul de Londres. As divisões da sociedade britânica refletiam-se nas disposições do transporte - a alta sociedade seguia nos luxuosos vagões da primeira classe; os pequenos comerciantes e professores viajavam na segunda classe, lotada, mas ainda confortável; e os trabalhadores em fábricas e criados domésticos sentavam nos bancos de madeira duros da terceira. Ao desembarcarem do trem, a aristocracia subia em carruagens, a classe média ia para os ônibus puxados por cavalos e os trabalhadores seguiam a pé. Os piqueniques dos ricos haviam sido enviados em trens anteriores: dezenas de cestos, carregados nos ombros por jovens lacaios, com louça de porcelana e toalhas de linho, galinhas cozidas e pepinos, champanhe e pêssegos de estufa. Para os menos ricos, haviam barracas vendendo salames, crustáceos e cerveja. Os pobres levavam pão e queijo embrulhados em lenços.

Maisie Robinson e April Tilsley foram com Solly Greenbourne e Tonio Silva. A posição deles na hierarquia social era incerta. Solly e Tonio, com toda a certeza, pertenciam à primeira classe, mas Maisie e April deveriam ficar na terceira. Solly ficou no meio-termo, comprando passagens de segunda classe, e pegaram um ônibus ao deixarem a estação para seguirem até o hipódromo.

Solly, no entanto, gostava demais de comer para se satisfazer com um almoço comprado numa barraca, e por isso enviara quatro criados na frente, com um vasto piquenique de salmão frio e vinho branco no gelo. Estenderam uma toalha branca como a neve no chão e sentaram ao redor dela, na grama viçosa.

Maisie colocava porções de comida na boca de Solly. Sentia uma afeição cada vez maior por ele. Solly era gentil com todos, divertido, tinha uma conversa interessante.

A gula era seu único vício. Ela ainda não o deixara fazer tudo o que queria, mas parecia que quanto mais recusava, mais devotado ele se tornava.

As corridas começaram logo depois do almoço. Havia um bookmaker ali perto, em cima de um caixote, gritando as cotações. Usava um terno quadriculado, uma gravata de seda enorme, um imenso ramo de flores na botoeira do paletó e chapéu branco. Tinha uma bolsa de couro cheia de dinheiro pendurada no ombro, e se postava sob uma faixa que dizia.- Wm. Tucker, King"s Head, Chichester.

Tonio e Solly apostaram em todos os páreos. Maisie acabou entediada: uma corrida de cavalos era igual a qualquer outra se você não apostasse. April não queria sair do lado de Tonio, mas Maisie decidiu dar uma volta sozinha.

Os cavalos não eram a única atração. Os campos ao redor do hipódromo estavam apinhados de barracas, estandes, carroças. Havia cabinas de apostas, espetáculos de aberrações, ciganas de pele escura e lenços coloridos na cabeça lendo mãos. Pessoas vendiam gim, sidra, pastelões de carne, laranjas e Bíblias. Realejos e bandas competiam uns com os outros, e entre a multidão circulavam mágicos, malabaristas e acrobatas, todos pedindo algumas moedas. Havia cachorros que dançavam, anões, gigantes e homens em pernas de pau. O clima exuberante de parque de diversões fez Maisie se lembrar do circo, com uma pontada nostálgica de pesar pela vida que deixara para trás. Os artistas ali estavam para tirar dinheiro do público por todos os meios possíveis, e ela se sentia satisfeita quando alcançavam seu objetivo.

Sabia que deveria tirar mais de Solly. Era uma loucura sair com um dos homens mais ricos do mundo e continuar a morar num quarto no Soho. A esta altura já deveria usar diamantes e peles, pensar na aquisição de uma casinha suburbana em St. John"s Wood ou Clapham. Seu trabalho de mostrar os cavalos de Sammies não duraria por muito mais tempo: a temporada de Londres se aproximava do fim e as pessoas em condições de comprar cavalos partiriam para o campo. Mas ela não permitia que Solly lhe desse outra coisa além de flores, o que deixava April furiosa.

Maisie passou por uma enorme barraca. Do lado de fora, duas moças vestidas como bookmakers e um homem de terno preto gritavam:

- A única certeza nas corridas em Goodwood hoje é o advento do Dia do Juízo Final! Apostem sua fé em Jesus e a recompensa será a vida eterna!

O interior da barraca parecia fresco, e Maisie resolveu entrar, num súbito impulso. A maioria das pessoas sentadas nos bancos dava a impressão de que já fora convertida.

Maisie sentou perto da saída e pegou um livro de hinos.

Podia compreender por que as pessoas se reuniam em capelas e iam pregar em corridas de cavalos. Fazia com que sentissem que pertenciam a alguma coisa. O sentimento de pertencer era a verdadeira tentação que Solly lhe oferecia: não tanto os diamantes e peles, mas a perspectiva de se tornar amante de Solly Greenbourne, com um lugar para morar, uma renda regular e uma certa posição. Não era uma posição respeitável, nem permanente - o arranjo terminaria no instante em que Solly se cansasse dela, - mas era muito mais do que tinha agora.

A congregação levantou-se para cantar um hino. Era sobre se lavar com o sangue do Cordeiro, e deixou Maisie nauseada. Ela saiu.

Passou por um espetáculo de marionetes no instante em que chegava ao clímax, com o irascível Mr. Punch sendo lançado de um lado para outro do pequeno palco pela esposa brandindo um porrete. Maisie estudou a multidão. Não havia muito dinheiro para se ganhar num espetáculo de marionetes, se conduzido com honestidade: a maior parte da audiência se afastaria sem pagar coisa alguma, e os outros dariam apenas quantias ínfimas. Mas havia outros meios de despojar os espectadores. Depois de alguns momentos, avistou um garoto roubando um homem de cartola. Todos observavam o espetáculo, à exceção de Maisie, e ninguém mais viu a mãozinha suja se insinuar pelo bolso do colete do homem.

Maisie não tinha a menor intenção de fazer alguma coisa a respeito. Os jovens ricos e descuidados mereciam perder seus relógios de algibeira, e os ladrões ousados mereciam os despojos, em sua opinião. Mas quando olhou mais atentamente para a vítima, reconheceu os cabelos pretos e os olhos azuis de Hugh Pilaster. Recordou que April lhe dissera que Hugh não tinha dinheiro. Ele não tinha condições de perder seu relógio. Maisie decidiu, num súbito impulso, salvá-lo de sua própria negligência.

Aproximou-se apressada por trás da multidão. O punguista era um garoto esfarrapado, de cabelos ruivos, em torno dos 11 anos, mais ou menos a idade de Maisie ao fugir de casa. Estava tirando do colete, com o maior cuidado, a corrente do relógio de Hugh. Houve uma explosão de risos da audiência, e nesse momento o punguista se esgueirou com o relógio na mão.

Maisie agarrou-o pelo pulso.

O garoto soltou um grito de medo e tentou se desvencilhar, mas Maisie era forte demais para ele.

- Passe-me o relógio e não direi nada - sussurrou ela.

Ele hesitou por um instante. Maisie percebeu o medo e a ganância em conflito no rosto sujo. Depois, com uma resignação cansada, o garoto largou o relógio no chão.

- Vá roubar o relógio de outro - disse ela.

Maisie soltou sua mão e o garoto sumiu num piscar de olhos. Ela pegou o relógio. Era de ouro, com uma cena de caça na capa dobradiça. Maisie abriu-o, verificou a hora, três e dez. Atrás, estava inscrito.

Tobias Pilaster de sua esposa que muito o ama Lydia

23 de maio de 1851

O relógio fora um presente da mãe de Hugh para o pai. Maisie sentiu-se contente por tê-lo recuperado. Fechou o relógio, bateu no ombro de Hugh.

Ele virou-se, contrariado por ter sua atenção desviada do espetáculo, mas logo seus olhos azuis se arregalaram em surpresa.

- Miss Robinson!

- Que horas são? - perguntou Maisie.

Ele estendeu a mão para o relógio num gesto automático e encontrou o bolso vazio.

- Estranho... - Hugh olhou ao redor, como se o relógio pudesse ter caído de seu bolso. - Espero não ter... Ela levantou o relógio.

- Oh, não! Como o encontrou?

- Vi quando você estava sendo roubado e consegui recuperá-lo.

- Onde está o ladrão?

- Deixei-o ir embora. Era apenas um menino.

- Mas...

Hugh parecia perplexo.

- Eu teria deixado ele levar o relógio se não soubesse que você não tem condições de comprar outro.

- Não fala a sério.

- Claro que falo. Eu também roubava quando era criança, sempre que podia escapar impune.

- Que coisa horrível!

Maisie descobriu-se irritada com ele mais uma vez. Na sua maneira de pensar, havia algo de hipócrita na atitude de Hugh.

- Ainda me lembro do funeral de seu pai. Era um dia frio, chovia bastante. Seu pai morreu devendo dinheiro ao meu ... e, no entanto, você usava um casaco naquele

dia, enquanto eu não tinha nenhum. Isso era honesto?

- Não sei - respondeu Hugh, com uma súbita raiva. - Eu tinha 13 anos quando meu pai faliu... isso significa que tenho de fechar os olhos à vilania pelo resto de minha vida?

Maisie sentiu-se atordoada. Não era com freqüência que os homens a tratavam com rispidez, e era a segunda vez que Hugh agia assim. Mas não queria discutir de novo com ele. Tocou em seu braço e murmurou:

- Desculpe. Não tive a intenção de criticar seu pai. Só queria que compreendesse por que uma criança pode roubar.

Ele se acalmou no mesmo instante.

- E ainda não lhe agradeci por recuperar meu relógio. Foi presente de casamento de minha mãe para meu pai, e por isso é mais precioso do que o seu valor.

- E o menino encontrará outro para roubar. Hugh riu.

-Jamais conheci alguém como você. Gostaria de tomar um copo de cerveja? Estou sentindo muito calor. Era o que Maisie desejava.

- Claro que gostaria.

A poucos metros dali havia uma carroça com enormes barris. Hugh comprou duas canecas de cerâmica com uma cerveja maltada. Maisie tomou um gole prolongado, pois estava com muita sede. Era mais saborosa do que o vinho francês de Solly. Um cartaz escrito a giz fora pregado na carroça: Saia daqui com uma caneca, e será quebrada na sua cabeça.

Uma expressão pensativa estampou-se no rosto normalmente animado de Hugh, e depois de algum tempo ele disse:

- Compreende que ambos fomos vítimas da mesma catástrofe? Maisie não entendeu.

- Como assim?

- Houve uma crise financeira em 1866. Quando isso acontece, companhias de absoluta honestidade quebram... como um cavalo que cai, arrastando os outros da equipe para o chão. A companhia de meu pai faliu porque havia pessoas que lhe deviam dinheiro e não pagaram; e ele ficou tão transtornado que se matou, deixando minha mãe viúva e a mim um órfão aos 13 anos. Seu pai não podia alimentar a família porque pessoas lhe deviam dinheiro e não puderam pagar, e você fugiu de casa aos 11.

Maisie percebeu a lógica do que ele dizia, mas seu coração não lhe permitia concordar: odiara Tobias Pilaster por tempo demais.

- Não é a mesma coisa - protestou ela. - Os trabalhadores não têm controle sobre essas coisas... apenas fazem o que os patrões mandam. Os patrões têm o poder. É culpa deles se as coisas saem erradas.

Hugh refletiu por um momento.

- Não sei... talvez você tenha razão. Os patrões, sem dúvida, ficam com a parte do leão nas recompensas. Mas de uma coisa tenho certeza, pelo menos: patrões ou empregados, seus filhos não são culpados.

Maisie sorriu.

- É difícil acreditar que descobrimos alguma coisa em que podemos concordar.

Acabaram de tomar a cerveja, devolveram as canecas e se afastaram por alguns metros, até um carrossel com cavalos de madeira.

- Quer dar uma volta? - sugeriu Hugh. Maisie tornou a sorrir.

- Não.

- Está aqui sozinha?

- Não. Vim com... amigos. - Por algum motivo, não queria que ele soubesse que fora trazida por Solly. - E você? Veio com aquela sua tia horrível?

Hugh fez uma careta.

- Não. Os metodistas não aprovam as corridas de cavalos... ela ficaria horrorizada se soubesse que estou aqui.

- Sua tia gosta de você?

- Nem um pouco.

- Então por que o deixa morar em sua casa?

- Ela gosta de manter as pessoas à vista a fim de poder controlá-las.

- E controla você?

- Bem que tenta. - Ele sorriu. - Às vezes consigo escapar.

- Deve ser difícil morar com ela.

- Não tenho condições de morar sozinho. Preciso ser paciente e me esforçar ao máximo no banco. Mais cedo ou mais tarde serei promovido, e poderei então me tornar independente. - Hugh tornou a sorrir. - E direi a ela para fechar a matraca, como você fez.

- Espero que isso não tenha lhe causado problemas.

- Causou, mas valeu a pena ver a expressão dela. Foi quando comecei a gostar de você.

- Foi por isso que me convidou para jantar?

- Foi, sim. Por que recusou?

- Porque April me disse que você não tinha dinheiro.

- Tenho o suficiente para duas costeletas e um pudim de ameixa.

- Como uma moça pode resistir a isso? - indagou Maisie, zombeteira. Ele riu.

- Saia comigo esta noite. Iremos a Cremorne Gardens, dançaremos um pouco.

Maisie sentiu-se tentada mas pensou em Solly, experimentando uma pontada de culpa.

- Não, obrigada.

- Por que não?

Ela se fez a mesma pergunta. Não estava apaixonada por Solly, não tirava dinheiro dele: por que então se guardava para ele? Tenho 18 anos, pensou Maisie, e se não posso sair para dançar com um rapaz com quem simpatizo, de que adianta viver?

- Está bem.

- Você irá?

- Irei.

Hugh exibiu um enorme sorriso. Ela o tornara feliz.

- Devo ir buscá-la?

Maisie não queria que ele visse o cortiço no Soho em que partilhava um quarto com April.

- Não. Vamos marcar um encontro em algum lugar.

- Certo... vamos nos encontrar no Westminster Pier; pegaremos a barca para Chelsea.

- Combinado. - Maisie sentia um excitamento que não experimentava há meses. - A que horas?

- Oito?

Ela fez os cálculos depressa. Solly e Tonio iam querer ficar até o último páreo. Depois, tinham de pegar o trem de volta a Londres. Poderia se despedir de Solly na Victoria Station e seguir a pé para Westminster. Concluiu que seria possível.

- Mas se eu me atrasar, você vai esperar?

- A noite inteira, se necessário.

Pensar em Solly fez com que ela se sentisse culpada de novo.

- É melhor voltar para junto de meus amigos agora.

- Eu a acompanharei - propôs Hugh, na maior ansiedade.

Maisie não queria isso.

- É melhor não ir comigo.

- Como quiser.

Ela estendeu a mão, Hugh apertou-a. Parecia estranhamente formal.

- Até esta noite - murmurou Maisie.

- Ficarei esperando.

Maisie afastou-se, com a sensação de que ele a observava. Por que fiz isso? pensou ela. Quero sair com ele? Gosto de fato desse rapaz? Em nosso primeiro encontro tivemos uma briga que acabou com a festa, e hoje ele já queria discutir de novo se eu não o acalmasse. Não nos damos bem. Nunca seríamos capazes de dançar juntos.

Talvez eu não vá. Mas ele tinha olhos azuis adoráveis.

Ela tomou a decisão de não pensar mais a respeito. Concordara em encontrá-lo e haveria de comparecer. Podia gostar da noite, talvez não, mas de nada adiantaria se preocupar com antecedência.

Precisaria inventar uma desculpa para deixar Solly. Ele esperava levála para jantar. Mas Solly nunca a questionava... aceitava qualquer desculpa, por mais implausível que fosse. De qualquer forma, ela tentaria pensar numa justificativa convincente, pois se sentia mal por abusar da natureza complacente de Solly.

Ela encontrou os outros no mesmo lugar em que os deixara. Passaram o resto da tarde entre a grade e o bookmaker de terno axadrezado. April e Tonio tinham os olhos brilhando, uma expressão triunfante. Assim que viu Maisie, April foi logo dizendo:

- Ganhamos 110 libras... não é maravilhoso?

Maisie ficou feliz por April. Era um bocado de dinheiro para se ganhar a troco de nada. Enquanto ela lhes dava os parabéns, Micky Miranda apareceu, passeando com os polegares nos bolsos do colete cinza. Ela não ficou surpresa por vê-lo ali: todos iam a Goodwood.

Embora Micky fosse muito bonito, Maisie não gostava dele. Fazia-a lembrar do diretor do circo, que achava que todas as mulheres deveriam ficar emocionadas quando as convidava para ir para a cama, sentindo-se afrontado quando alguma o recusava. Micky trazia Edward Pilaster a reboque, como sempre. Maisie estava curiosa sobre o relacionamento entre os dois. Eram bastante diferentes, Micky era esguio, impecável, confiante; Edward era enorme, desajeitado, parecia um porco. Por que eram tão inseparáveis? Mas a maioria das pessoas se encantava com Micky. Tonio tratava-o com uma espécie de veneração nervosa, como um cachorrinho com seu dono cruel.

Atrás deles vinham um homem mais velho e uma moça. Micky apresentou o homem como seu pai. Maisie estudou-o com interesse. Ele não parecia nada com Micky. Era baixo, de pernas tortas, ombros largos, o rosto curtido pelo tempo. Ao contrário do filho, não parecia à vontade no colarinho duro e cartola. A mulher se agarrava a ele como uma amante, mas devia ser pelo menos 30 anos mais jovem. Micky apresentou-a como Miss Cox.

Todos falaram sobre seus ganhos. Edward e Tonio haviam apostado alto num cavalo chamado Prince Charlie. Solly ganhara muito dinheiro e depois perdera tudo, dando a impressão de se divertir com as duas coisas. Micky não informou como se saíra, e Maisie concluiu que ele não apostara tanto quanto os outros: parecia muito cauteloso e calculista para ser um grande apostador. Mas ele a surpreendeu em seguida, quando disse a Solly:

- Vamos ter um jogo grande esta noite, Greenbourne... mínimo de uma libra. Quer entrar?

Maisie teve a impressão de que a pose descontraída de Micky encobria uma considerável tensão. Ele era do tipo controlado... e Solly um homem que aceitava qualquer coisa.

- Claro que sim.

Micky virou-se para Tonio.

- E você, também está interessado?

O tom de "aceite ou desista que não me importo" soou falso para Maisie.

- Pode contar comigo - respondeu Tonio, excitado. - Estarei lá! April ficou perturbada e protestou:

- Não esta noite, Tonio... você me prometeu.

Maisie desconfiou que Tonio não tinha condições de jogar com a aposta mínima de uma libra.

- O que eu prometi? - indagou ele, piscando para os amigos.

Ela sussurrou alguma coisa em seu ouvido, e todos os homens riram. Micky acrescentou:

- É o último grande jogo da temporada, Silva. Vai se arrepender se perdê-lo.

Isso foi uma surpresa para Maisie. No Argyll tivera a nítida impressão de que Micky detestava Tonio. Por que ele tentava agora persuadi-lo a participar de um jogo de cartas?

- Estou com sorte hoje... é só ver o quanto ganhei com os cavalos! - disse Tonio. - Claro que entrarei no jogo desta noite!

Micky olhou Edward, e Maisie surpreendeu uma expressão de alívio em seus olhos. Edward sugeriu.

- Vamos todos jantar juntos no clube?

Solly olhou para Maisie, e ela compreendeu que o convite lhe proporcionava a desculpa de que precisava para não passar a noite em sua companhia.

- Pode jantar com seus amigos, Solly - disse ela no mesmo instante. - Não me importo.

- Tem certeza?

- Tenho, sim. Tive um dia adorável. Passe a noite em seu clube.

- Então está combinado - declarou Micky.

Ele, o pai, Miss Cox e Edward se despediram. Tonio e April foram fazer uma aposta no páreo seguinte. Solly ofereceu o braço a Maisie e propôs:

- Vamos dar uma volta?

Foram andando ao longo da cerca pintada de branco que delimitava a pista. O sol estava quente, o ar do campo tinha um cheiro agradável. Depois de algum tempo, Solly indagou:

- Você gosta de mim, Maisie?

Ela parou, ergueu-se na ponta dos pés e beijou seu rosto.

- Gosto muito de você.

Solly fitou-a nos olhos e ela ficou aturdida ao ver lágrimas por trás dos óculos.

- Solly, querido, o que foi?

- Também gosto de você, Maisie. Mais do que de qualquer outra pessoa que já conheci.

- Obrigada.

Maisie sentiu-se comovida. Era inesperado da parte de Solly demonstrar alguma emoção mais forte do que um leve entusiasmo.

- Quer casar comigo, Maisie?

Ela ficou atordoada. Era a última coisa no mundo que esperava ouvir. Os homens da classe de Solly não pediam em casamento moças como ela. Seduziam-nas, davam dinheiro, mantinham-nas como amantes, tinham filhos com elas, mas não casavam. Maisie estava atônita demais para falar. Solly acrescentou:

- Eu daria qualquer coisa que você quisesse. Por favor, diga que sim. Casamento com Solly! Maisie compreendeu que seria rica, incalculavelmente rica, pelo resto de sua vida. Uma cama macia todas as noites, um fogo aceso em todos os cômodos da casa, e tanta manteiga quanto pudesse comer. Poderia se levantar quando quisesse, não quando tivesse que levantar. Nunca mais sentiria frio, nunca mais passaria fome, nunca mais se vestiria em andrajos, nunca mais ficaria exausta. A palavra "sim" tremeu na ponta de sua língua.

Pensou no quarto de April no Soho, com seu ninho de camundongos na parede; pensou como a latrina fedia nos dias quentes; pensou nas noites em que não jantavam; pensou como seus pés doíam depois de um dia inteiro circulando pelas ruas.

Olhou para Solly. Até que ponto seria difícil casar com aquele homem?

- Eu a amo demais, Maisie. Estou desesperado por você. Ele a amava de fato, Maisie podia perceber.

E era esse o problema.

Ela não o amava.

Solly merecia algo melhor. Merecia uma esposa que o amasse de verdade, não uma garota criada nas ruas, de coração duro. Se casasse com ele, estaria enganando-o.

E ele era bom demais para isso. Maisie sentiu-se à beira das lágrimas.

- Você é o homem mais generoso e gentil que já conheci... Ele interrompeu-a:

- Não diga não, por favor. Se não pode dizer sim, então não diga nada. Pense a respeito, pelo menos por um dia, talvez mais.

Maisie suspirou. Sabia que deveria recusá-lo, e seria mais fácil se o fizesse logo. Mas ele estava suplicando.

- Muito bem, pensarei a respeito. Solly ficou radiante.

- Obrigado.

Ela balançou a cabeça, pesarosa.

- O que quer que aconteça, Solly, acho que nunca serei pedida em casamento por um homem melhor.

Hugh e Maisie fizeram o passeio de barca do Westminster Pier a Chelsea. Era um princípio de noite quente e claro, o rio lamacento estava cheio de botes, barcaças e outras embarcações. Subiram pelo rio, sob a nova ponte ferroviária para a Victoria Station, passaram pelo Hospital Christopher Wren, em Chelsea, na margem norte, e contemplaram, na margem sul, as flores de Battersea Fields, a tradicional área de duelos de Londres. A ponte de Battersea era uma estrutura de madeira em precárias condições, parecia prestes a cair. No lado sul, ficavam as fábricas de produtos químicos, mas no lado oposto havia lindos chalés em torno da Old Church de Chelsea, e crianças nuas se banhavam nas águas rasas.

Eles desembarcaram pouco mais de um quilômetro além da ponte, subiram do cais para o espetacular portão dourado de Cremorne Gardens. Eram seis hectares de bosques e grutas, canteiros de flores e gramados, estufas e caramanchões, entre o rio e a King"s Road. Já escurecia quando chegaram, e havia lanternas chinesas nas árvores e lampiões de gás acesos ao longo dos caminhos sinuosos. O lugar se encontrava lotado: muitos dos jovens que tinham ido às corridas haviam decidido encerrar o dia ali. Todos se vestiam com esmero e circulavam despreocupados pelos jardins, rindo e flertando, as moças em duplas, os rapazes em grupos maiores, os casais de braços dados.

Fizera um tempo bom durante o dia inteiro, ensolarado e quente, mas agora a noite se tornava ainda mais quente e abafada, com nuvens que ameaçavam desabar numa tempestade.

Hugh sentia-se ao mesmo tempo exultante e nervoso. Estava emocionado por estar com Maisie, mas experimentava a insegurança de quem não conhecia as regras do jogo em que se metera. O que Maisie esperava? Deixaria que ele a beijasse? Permitiria que fizesse qualquer coisa que desejasse? Ansiava em tocar o corpo de Maisie, mas não sabia por onde começar. Ela esperava que ele fosse até o fim? Bem que Hugh queria, mas nunca fizera isso antes, e tinha medo de bancar o tolo. Os outros escriturários do Pilasters falavam muito sobre mulheres, o que faziam e deixavam de fazer com as meretrizes, mas Hugh desconfiava que grande parte não passava de invenção. De qualquer forma, Maisie não podia ser tratada como uma vagabunda.

Ela não era isso.

Ele também se preocupava com a possibilidade de ser visto por alguém que o conhecesse. Sua família desaprovaria com veemência o que estava fazendo. Cremorne Gardens não apenas era um lugar freqüentado pelas classes inferiores, mas também os metodistas achavam que encorajava a imoralidade. Se fosse descoberto, Augusta com certeza usaria essa arma contra ele. Uma coisa era Edward levar mulheres desregradas a lugares de péssima reputação; afinal, ele era o filho e herdeiro. Era diferente para Hugh, sem dinheiro e com uma educação deficiente, que todos esperavam se tornar um fracassado como o pai: diriam que aqueles jardins do prazer constituíam o seu habitat natural, que o seu lugar era entre escriturários, artesãos e moças como Maisie.

Hugh atingira um ponto crítico em sua carreira. Estava prestes a ser promovido a escriturário de correspondência - com um salário de 150 libras por ano, mais do que o dobro do que ganhava agora, - e podia perder tudo por um relato de comportamento dissoluto.

Ele olhava ansioso para os outros homens andando pelos caminhos sinuosos entre os canteiros de flores, com medo de reconhecer alguém. Havia uns poucos homens das classes superiores, alguns abraçados a moças; mas todos tomavam o cuidado de evitar os olhos de Hugh, e ele compreendeu que também tinham receio de serem vistos ali. Hugh concluiu que se encontrasse homens que conhecia, era bem provável que se sentissem tão ansiosos quanto ele em manter tudo em segredo, e ficou mais tranqüilo.

Não podia deixar de se orgulhar de Maisie. Ela usava um vestido azul-esverdeado com um decote e anquinha, um gracioso chapéu de marinheiro no alto dos cabelos armados, atraindo muitos olhares de admiração. Passaram por um bale, um circo oriental, um gramado para se jogar boliche americano, e entraram num restaurante para jantar.

Era uma experiência nova para Hugh. Embora os restaurantes se tornassem cada vez mais comuns, eram freqüentados principalmente pelas classes médias; as pessoas das classes superiores não gostavam da idéia de comer em público. Jovens como Micky e Edward comiam neles com freqüência, mas achavam que era apenas uma farra, e só faziam isso quando estavam procurando ou já haviam encontrado mulheres libertinas para lhes fazer companhia.

Durante todo o jantar, Hugh tentou não pensar nos seios de Maisie. As curvas apareciam sedutoras por cima do decote, e eram muito alvas, cheias de sardas. Ele só vira seios à mostra uma única vez - no bordel de Nellie, poucas semanas antes. Mas nunca tocara em nenhum. Seriam firmes, como músculos, ou flácidos? Quando uma mulher tirava o espartilho, os seios balançavam quando ela andava, ou permaneciam rígidos? Se eram apalpados, cediam à pressão, ou eram duros, como joelhos? Maisie o deixaria acariciá-los? As vezes ele pensava até em beijá-los, como o homem no bordel beijara os seios da prostituta, mas era um desejo secreto de que se envergonhava.

Na verdade, sentia-se vagamente envergonhado de todos esses sentimentos. Parecia animalesco sentar em companhia de uma mulher e pensar o tempo todo em seu corpo nu, como se não se importasse com ela, apenas querendo usá-la. Hugh, porém, não podia deixar de se sentir assim, ainda mais com Maisie, que era tão atraente.

Enquanto comiam, houve um espetáculo de fogos de artifício em outra parte de Cremorne. Os estouros e clarões perturbaram os leões e tigres nas jaulas, que rugiram em desaprovação. Hugh recordou que Maisie trabalhara num circo e perguntou como era.

- Você passa a conhecer as pessoas muito bem quando vivem tão juntas - comentou ela, pensativa. - É bom sob alguns aspectos, ruim sob outros. As pessoas ajudam umas às outras durante todo o tempo. Há romances, muitas discussões, algumas brigas... ocorreram dois assassinatos nos três anos que passei com o circo.

- Que coisa!

- E não se pode contar com o dinheiro.

- Por quê?

- Quando as pessoas precisam economizar, a diversão é a primeira coisa que cortam.

- Eu nunca tinha pensado nisso. Devo lembrar para não investir o dinheiro do banco em qualquer forma de diversão.

Maisie sorriu.

- Pensa em finanças durante todo o tempo?

Não, refletiu Hugh, pensei em seus seios durante todo o tempo.

- Deve compreender que sou o filho da ovelha negra. Sei mais sobre a atividade bancária do que os outros rapazes da família, mas preciso trabalhar em dobro para provar o meu valor.

- Por que é tão importante provar que é capaz?

Boa pergunta, pensou Hugh, e demorou um pouco para responder:

- Sempre fui assim, eu acho. No colégio, tinha de ser o primeiro da turma. E o fracasso de meu pai tornou a coisa ainda pior: todos pensam que também acabarei da mesma forma, e preciso demonstrar que estão enganados.

- De certa forma, também me sinto assim. Nunca viverei como minha mãe, sempre à beira da miséria. Terei dinheiro, não importa o que precise fazer.

Tão gentilmente quanto podia, Hugh perguntou:

- É por isso que sai com Solly?

Maisie franziu o cenho, e por um momento Hugh pensou que ela fosse se zangar. Mas logo passou, e Maisie ofereceu um sorriso irônico.

- Acho que é uma pergunta justa. Se quer saber a verdade, não me orgulho de minha ligação com Solly. Venho enganando-o com certas... expectativas.

Hugh ficou surpreso. Isso significava que ela não fora até o fim com Solly?

- Ele parece gostar de você.

- E eu gosto dele. Mas a amizade não é a única coisa que ele quer, nunca foi, e eu sempre soube disso.

- Acho que entendo.

Hugh concluiu que ela não fora até o fim com Solly, o que significava que podia não se mostrar disposta a fazer com ele. Sentiu-se ao mesmo tempo desapontado e aliviado: desapontado porque estava ansioso por ela, aliviado porque seu nervosismo a respeito era intenso.

- Você parece satisfeito com alguma coisa - comentou Maisie.

- Estou contente por saber que você e Solly são apenas amigos.

Ela parecia um pouco triste, e Hugh especulou se dissera a coisa errada.

Ele pagou o jantar. Foi bastante caro, mas trouxera o dinheiro que vinha economizando para comprar roupas novas, 19 xelins, e assim dispunha do suficiente. Ao deixarem o restaurante, as pessoas nos jardins pareciam mais efusivas do que antes, sem dúvida por terem consumido muita cerveja e gim no intervalo.

Chegaram a uma pista de dança. A dança era uma coisa em que Hugh se sentia confiante: fora o único assunto em que recebera uma boa instrução na Academia Folkestone para Filhos de Cavalheiros.

Levou Maisie para a pista; tomou-a em seus braços pela primeira vez. As pontas dos dedos comicharam quando encostou a mão direita em suas costas, um pouco acima da anquinha. Podia sentir o calor do corpo de Maisie através das roupas. com a mão esquerda segurou a dela, e Maisie a apertou: a sensação deixou-o emocionado.

Hugh sorriu ao final da primeira dança, satisfeito, e para sua surpresa ela tocou em sua boca com a ponta de um dedo.

- Gosto quando você sorri. Parece um menino.

Não era exatamente essa a impressão que tentava transmitir, mas àquela altura qualquer coisa que a agradasse seria ótima para ele.

Dançaram de novo. Eram bons parceiros: embora Maisie fosse baixa, Hugh era apenas um pouco mais alto, e os dois tinham leveza nos pés. Ele já dançara com dezenas de moças, talvez mesmo centenas, mas nunca se divertira tanto. Era como se só agora descobrisse a sensação deliciosa de ter uma mulher bem perto, movendo e balançando ao ritmo da música e executando os passos mais complicados em harmonia.

- Está cansada? - perguntou Hugh ao final da música.

- Claro que não!

E continuaram a dançar.

Nos bailes da sociedade, era falta de educação dançar com a mesma moça mais do que duas vezes. Tinha-se de levá-la para fora da pista, oferecer-se para buscar champanhe ou um sorvete. Hugh sempre se irritara com tais regulamentos, e agora sentia-se liberado, na maior alegria, para ser um dançarino anônimo naquele baile público.

Permaneceram na pista até meia-noite, quando a música parou.

Todos os casais deixaram a pista de dança e se afastaram pelas trilhas do parque. Hugh notou que muitos homens mantinham o braço em torno de suas parceiras, apesar de não estarem mais dançando; e por isso, com alguma apreensão, ele fez o mesmo. Maisie pareceu não se importar.

As festividades começavam a se tornar turbulentas. Ao lado das trilhas havia pequenas cabinas, como camarotes no teatro, onde as pessoas podiam sentar e jantar, observando a passagem das multidões. Algumas dessas cabinas haviam sido alugadas por grupos de estudantes, que agora estavam embriagados. Um homem andando à frente de Hugh teve a cartola derrubada de brincadeira, e ele próprio teve de se abaixar para evitar um pedaço de pão arremessado em sua direção. Puxou Maisie mais para perto, protetor, e experimentou uma imensa alegria quando ela passou o braço por sua cintura, apertando de leve.

Havia numerosos agrupamentos de árvores e moitas ensombreados ao largo da trilha principal. Hugh percebeu casais nos bancos de madeira, embora não pudesse ter certeza de estarem se abraçando ou apenas sentados juntos. Ficou surpreso quando o casal à frente parou de repente e trocou um beijo ardente no meio da trilha. Levou Maisie pelo lado, sentindo-se constrangido. Mas logo superou o embaraço, o excitamento dominou-o. Poucos minutos mais tarde, passaram por outro casal abraçado. Hugh olhou para Maisie, que lhe sorriu de uma forma que ele tinha certeza que era encorajadora. Mas não foi capaz de reunir a coragem necessária para beijá-la.

Os jardins se tornavam cada vez mais turbulentos. Tiveram de contornar uma briga envolvendo seis ou sete rapazes, todos embriagados, aos gritos, esmurrando e derrubando uns aos outros. Hugh notou que havia agora diversas mulheres desacompanhadas, e se perguntou se eram prostitutas. O clima era cada vez mais ameaçador, e ele sentia necessidade de proteger Maisie.

Foi nesse instante que um grupo de 30 ou 40 rapazes se aproximou, arrancando os chapéus das pessoas, empurrando as mulheres para o lado, derrubando os homens no chão. Não havia como escapar, pois eles se espalhavam pelo gramado nas laterais da trilha. Hugh agiu depressa. Postou-se na frente de Maisie, de costas para a investida, tirou o chapéu e abraçou-a com firmeza. O bando passou. Um ombro pesado acertou as costas de Hugh, ele cambaleou, ainda segurando Maisie, mas conseguiu recuperar o equilíbrio. A seu lado, uma moça foi derrubada, e mais adiante outro homem levou um soco na cara. E depois os arruaceiros sumiram.

Hugh relaxou o aperto e olhou para Maisie. Ela fitou-o em expectativa. Hesitante, ele baixou a cabeça e beijou-a nos lábios. Eram deliciosa mente macios e receptivos.

Hugh fechou os olhos. Esperara por isso durante anos: era o seu primeiro beijo. E era tão maravilhoso quanto sonhara. Aspirou a fragrância de Maisie. Os lábios dela se moviam contra os seus com extrema delicadeza. Ele queria nunca mais parar.

Foi Maisie quem rompeu o beijo. Fitou-o nos olhos e apertou-o com toda a força, os corpos se comprimindo.

- Você pode estragar todos os meus planos - murmurou ela. Hugh não entendeu o que ela queria dizer com isso.

Olhou para um lado. Havia um caramanchão com um banco vazio. Tomando coragem, ele sugeriu:

- Quer sentar um pouco?

- Está bem.

Avançaram pela escuridão, sentaram no banco de madeira. Hugh tornou a beijá-la.

Desta vez sentiu-se um pouco menos hesitante. Passou o braço pelos ombros de Maisie, puxou-a ao seu encontro, inclinou seu queixo com a outra mão e beijou-a com mais ardor do que antes, comprimindo os lábios com força. Ela reagiu com entusiasmo, arqueando as costas para que ele pudesse sentir os seios comprimidos contra seu peito. Surpreendeu-o que Maisie se mostrasse tão ansiosa, apesar de não conhecer nenhum motivo para que as mulheres não devessem gostar de beijos tanto quanto os homens. A ansiedade dela deixou-o ainda mais excitado.

Hugh acariciou seu rosto e o pescoço, a mão desceu para o ombro. Queria tocar nos seios, mas tinha medo de que ela ficasse ofendida; por isso hesitou. Maisie encostou os lábios em seu ouvido e disse num sussurro que era também um beijo:

- Pode tocá-los.

Surpreendeu-o que ela fosse capaz de ler seus pensamentos, mas o convite excitou-o de uma maneira quase insuportável - não apenas porque ela estava disposta, mas também porque falara a respeito. Pode tocálos. As pontas dos dedos de Hugh desceram do ombro, atravessaram a clavícula, alcançaram a curva de um seio, por cima do decote. A pele era macia e quente. Ele não sabia o que fazer em seguida. Devia tentar enfiar a mão por dentro?

Maisie respondeu à indagação silenciosa pegando sua mão e comprimindo-a contra o vestido, abaixo do decote.

- Aperte, mas gentilmente - sussurrou ela.

Foi o que ele fez. Não eram como músculos ou joelhos, descobriu, mas sim macios, exceto pelos mamilos duros. Sua mão passou de um para outro, acariciando e apertando, alternadamente. A respiração de Maisie era quente em seu pescoço. Hugh sentiu que podia ficar assim a noite inteira, mas fez uma pausa para beijá-la nos lábios outra vez. E agora beijou só por um instante, afastou o rosto, tornou a beijar e a se afastar várias vezes, o excitamento aumentando sempre. Compreendeu que havia muitas maneiras de beijar.

Subitamente, Maisie ficou imóvel.

- Escute!

Hugh já percebera, de forma um tanto vaga, que os jardins haviam se tornado mais barulhentos, e agora constatou que havia gritos e estrondos. Olhando para o caminho, viu que as pessoas corriam em diferentes direções.

- Deve ser uma briga - comentou ele.

E foi nesse instante que ouviu um apito da polícia.

- Droga! Agora vai haver a maior confusão.

- É melhor irmos embora - sugeriu Maisie.

- Vamos encontrar o caminho para a entrada da King"s Road, e ali pegaremos um fiacre.

- Está bem.

Ele hesitou, relutante em partir.

- Só mais um beijo.

- Pode dar.

Ele beijou-a, e Maisie abraçou-o com toda a força.

- Hugh, estou contente de ter conhecido você.

Ele pensou que era a coisa mais linda que alguém já lhe dissera.

Voltaram à trilha e seguiram para o norte, apressados. Um momento depois, dois jovens se aproximaram correndo, um perseguindo o outro; o primeiro esbarrou em Hugh, derrubando-o. Quando ele se levantou, os dois já haviam desaparecido. Maisie ficou preocupada.

- Você se machucou?

Ele limpou as roupas e pegou o chapéu.

- Não. Mas não quero que lhe aconteça a mesma coisa. Vamos pelos gramados... pode ser mais seguro.

No instante em que deixaram a trilha, os lampiões a gás se apagaram.

Foram andando no escuro. Havia agora um contínuo clamor de homens berrando e mulheres gritando, juntamente com apitos da polícia. Ocorreu de repente a Hugh que poderia ser preso. Todos saberiam então o que andara fazendo. Augusta diria que ele era devasso demais para merecer um posto de responsabilidade no banco. Sentiu-se angustiado.

Mas logo recordou a sensação que experimentara ao tocar nos seios de Maisie, e decidiu que não se importava com o que Augusta dissesse.

Mantiveram-se afastados dos caminhos e espaços abertos, passando através das árvores e arbustos. O terreno se elevava um pouco desde a margem do rio, e assim Hugh sabia que iam no caminho certo enquanto continuassem a subir.

Avistou a distância lanternas piscando, e se encaminhou para as luzes. Começaram a encontrar outros casais, que seguiam na mesma direção. Hugh torceu para que houvesse menos possibilidade de problemas com a polícia se estivessem no meio de um grupo de pessoas obviamente respeitáveis e sóbrias.

Trinta ou quarenta policiais passaram pelos portões no momento em que se aproximaram. Fazendo força para entrar no parque contra o fluxo da multidão, os guardas puseram-se a bater com os cassetetes em homens e mulheres, indiscriminadamente. A multidão virou-se e correu na direção oposta. Hugh pensou depressa.

- Deixe-me carregá-la - disse ele a Maisie. Ela parecia perplexa, mas concordou:

- Está bem.

Ele abaixou-se e suspendeu-a, um braço sob os joelhos, o outro em torno dos ombros.

- Finja que desmaiou.

Maisie fechou os olhos e ficou inerte. Ele se adiantou contra a pressão da multidão, gritando com sua voz mais autoritária:

- Abram caminho! Saiam da frente!

Avistando uma mulher aparentemente passando mal, até as pessoas em fuga se desviavam. Hugh avançou contra os policiais, que pareciam tão em pânico quanto o público.

- Saia da frente! - gritou ele para um dos guardas. - Deixe a dama passar!

O homem tinha uma expressão hostil, e por um momento Hugh chegou a pensar que seu blefe seria descoberto. Mas depois um sargento gritou:

- Deixem o cavalheiro passar!

Ele atravessou a linha da polícia e no instante seguinte se descobriu numa área livre.

Maisie abriu os olhos, e ele sorriu-lhe. Gostava de segurá-la assim, e não tinha a menor pressa em largar seu fardo.

- Você está bem?

Ela acenou com a cabeça. Parecia à beira das lágrimas. Hugh baixou-a com toda a gentileza e abraçou-a.

- Não precisa chorar. Tudo já passou agora. Maisie balançou a cabeça.

- Não é pela confusão. Já estive no meio de brigas antes, mas esta é a primeira vez que alguém tomou conta de mim. Sempre tive que me cuidar sozinha. É uma experiência nova.

Ele não sabia o que dizer. Todas as moças que conhecia sempre presumiam que os homens cuidariam delas, numa reação automática. A companhia de Maisie era uma constante revelação.

Hugh procurou por um fiacre de aluguel. Não havia nenhum à vista.

- Infelizmente, acho que teremos de andar.

- Quando eu tinha onze anos, andei durante quatro dias para chegar a Newcastle. Creio que posso andar de Chelsea até o Soho.

 

Micky Miranda começara a trapacear nas cartas quando ainda estudava na Windfield School, a fim de complementar o dinheiro insuficiente que o pai enviava. Os métodos que inventara para isso eram toscos, mas o suficiente para enganar colegiais. Depois, numa viagem transatlântica de volta para casa, realizada entre o colégio e a universidade, tentara trapacear num jogo com outro passageiro, que por acaso era um jogador profissional. O homem mais velho achara engraçado e tomara Micky sob sua proteção, ensinando todos os princípios básicos do ofício.

Trapacear se tornava mais perigoso quando as apostas eram altas. Se as pessoas jogavam por ninharias, nunca lhes ocorria que alguém pudesse trapacear. A suspeita aumentava com o volume das apostas.

Se fosse descoberto naquela noite, não seria apenas o fracasso de seu plano para arruinar Tonio. Trapacear nas cartas era o pior crime que um cavalheiro podia cometer na Inglaterra. Seria convidado a pedir demissão de seus clubes, os amigos nunca estariam em casa quando os visitasse e ninguém lhe falaria nas ruas. As raras histórias que ouvira a respeito de ingleses trapaceando sempre terminavam com o culpado deixando o país para se estabelecer em algum território selvagem, como Malásia ou a baía de Hudson. O destino de Micky seria voltar a Córdoba, suportar as zombarias do irmão mais velho e passar o resto da vida criando gado. A perspectiva deixava-o angustiado.

Mas as recompensas por aquela noite eram tão dramáticas quanto os riscos.

Não fazia aquilo apenas para agradar Augusta. Só isso já era bastante importante: ela representava seu passaporte para as pessoas ricas e poderosas de Londres.

Mas Micky queria também o cargo de Tonio.

Papa dissera que o filho teria de ganhar seu sustento em Londres - não receberia mais dinheiro de casa. O emprego de Tonio era ideal. Permitiria que Micky vivesse como um cavalheiro, trabalhando muito pouco. E seria também mais um degrau na escalada para uma posição superior. Um dia Micky poderia se tornar o embaixador. E assim seria capaz de manter a cabeça erguida em qualquer companhia. Nem mesmo seu irmão ousaria escarnecer.

Micky, Edward, Solly e Tonio jantaram cedo no Cowes, o clube que todos preferiam. Entraram na sala de jogo por volta das dez horas. Outros dois jogadores do clube, que haviam ouvido falar das apostas altas, sentaram com eles à mesa de bacará: o capitão Carter e o visconde Montagne. Micky sabia que Montagne era um tolo, mas Carter era esperto, teria de ser cauteloso com ele.

Havia uma linha branca em torno da mesa, a cerca de 30 centímetros da beira. Cada um dos jogadores tinha uma pilha de soberanos de ouro à sua frente, fora do quadrado branco. A partir do momento em que o dinheiro cruzasse a linha para o quadrado, estava apostado.

Micky passara o dia fingindo beber. No almoço, molhara os lábios com champanhe e jogara o resto na cama sem que ninguém percebesse. No trem de volta a Londres, aceitara várias vezes a oferta do frasco de Edward, mas sempre bloqueara o gargalo com a língua enquanto parecia tomar um trago. Ao jantar, servira-se de um copo pequeno de clarete, tornara a enchê-lo mais duas vezes, sem beber nada. Agora, pediu uma cerveja de gengibre que parecia conhaque com soda. Precisava se manter absolutamente sóbrio para executar as delicadas trapaças que lhe possibilitariam arruinar Tonio Silva.

Passou a língua pelos lábios, nervoso; depois controlou-se, fazendo um esforço para relaxar.

Entre todos os jogos, o preferido pelos trapaceiros era o bacará. Talvez tivesse sido inventado, pensou Micky, para permitir que os espertos roubassem os ricos.

Em primeiro lugar era um jogo de pura sorte, sem qualquer habilidade ou estratégia. O jogador recebia duas cartas e somava seus valores: um três e um quatro davam sete, um dois e um seis davam oito. Se o total fosse superior a nove, apenas o último dígito contava: assim, quinze era cinco, vinte era zero, e a soma mais alta possível era nove.

Um jogador com um total baixo podia pedir uma terceira carta, que seria aberta, para que todos vissem.

A pessoa na banca dava apenas três mãos: uma para a esquerda, outra para a direita, e a terceira para si mesma. Os jogadores apostavam na mão da esquerda ou da direita.

A banca pagava qualquer mão maior do que a sua.

A segunda grande vantagem do bacará, do ponto de vista do trapaceiro, era o fato de ser jogado com pelo menos três baralhos. Isso significava que o trapaceiro podia usar um quarto baralho, tirando uma carta da manga com a maior confiança sem se preocupar com a possibilidade de outro jogador já ter a mesma carta na mão.

Enquanto os outros ainda se acomodavam e acendiam seus charutos, Micky pediu a um garçom que trouxesse três baralhos novos. Ao voltar, era natural que o homem entregasse os baralhos a Micky.

A fim de controlar o jogo ele precisava dar as cartas, e assim seu primeiro desafio era obter a banca. Isso envolvia dois truques: neutralizar o corte e dar a segunda carta. Eram duas operações relativamente simples, mas ele se encontrava um tanto rígido com a tensão, o que poderia frustrar até as manobras mais fáceis.

Micky rompeu os lacres. As cartas eram sempre arrumadas da mesma maneira, com os curingas em cima, e o ás de espadas no fundo. Micky tirou os curingas e embaralhou, desfrutando a sensação das cartas novas. Era muito simples transferir um ás do fundo para cima do baralho; mas depois ele tinha de deixar que um dos outros jogadores cortasse, sem mudar a posição do ás.

Estendeu o baralho para Solly, sentado à sua direita. Ao baixar o baralho para a mesa, contraiu a mão um pouco, a fim de que a carta de cima - o ás de espadas -

permanecesse em sua palma, escondida. Solly cortou. Mantendo a palma virada para baixo durante todo o tempo, para esconder o ás, Micky tornou a pegar o baralho, repondo a carta escondida. Tivera sucesso na neutralização do corte.

- A cana mais alta fica com a banca? - indagou ele, forçando-se a parecer indiferente se respondessem sim ou não.

Houve murmúrios de assentimento.

Segurando o baralho com firmeza, ele deteve em sua mão a carta de cima, e começou a cartear, bem depressa. Mantendo a carta de cima recuada, ele sempre dava aos outros a segunda, até que chegou a sua vez, quando ficou com o ás. Todos viraram suas cartas. Micky era o único ás, e ganhou a banca. Ele conseguiu exibir um sorriso casual.

- Acho que Vou ter sorte esta noite.

Ninguém fez qualquer comentário.

Micky relaxou um pouco.

Disfarçando seu alívio, deu a primeira mão.

Tonio jogava à sua esquerda, junto com Edward e o visconde Montagne. À direita sentavam Solly e o capitão Carter. Micky não queria ganhar: não era esse o seu propósito naquela noite. Queria apenas que Tonio perdesse.

Jogou sem trapacear por algum tempo, perdendo um pouco do dinheiro de Augusta. Os outros relaxaram e pediram uma nova rodada de drinques. Quando chegou o momento oportuno, Micky acendeu um charuto.

Ajeitara um baralho extra em pares vencedores, todos dando um total de nove, a soma mais alta: quatro e cinco, nove e dez, nove e valete, e assim por diante. Deixara em casa as cartas excedentes.

Ao guardar a charuteira no bolso, ele empalmou o baralho extra. Pegando o baralho na mesa com a outra mão, encaixou as cartas novas no fundo. Enquanto os outros misturavam seus conhaques com soda, Micky embaralhou, arrumando no alto do baralho, com todo o cuidado, na ordem, uma carta de baixo, duas cartas ao acaso, outra carta de baixo, mais duas ao acaso. Começou a dar as cartas, primeiro para a esquerda, depois para a direita, em seguida para si mesmo, ficando com um par vencedor.

Na próxima rodada, ele deu a Solly a mão vencedora. Por algum tempo continuou assim, fazendo Tonio perder e Solly ganhar. O dinheiro que ganhava do lado de Tonio era pago ao lado de Solly, e ninguém desconfiava de Micky, pois a pilha de soberanos na sua frente permanecia praticamente a mesma.

Tonio começara pondo na mesa a maior parte do dinheiro que ganhara nas corridas - em torno de cem libras. Quando estava reduzido a cinqüenta, ele se levantou e disse:

- Este lado está com azar... Vou sentar junto de Solly. Ele foi para o outro lado da mesa. Isso não vai adiantar, pensou Micky. Não era mais difícil fazer o lado esquerdo ganhar e o direito perder, dali por diante. Mas Micky ficou um pouco nervoso ao ouvir Tonio falar em azar. Queria que Tonio continuasse a pensar que estava com sorte hoje, mesmo enquanto perdia.

De vez em quando Tonio variava seu estilo, apostando cinco ou dez soberanos numa mão, em vez de dois ou três. Quando isso acontecia, Micky lhe dava a mão vencedora.

Tonio recolhia os ganhos e comentava, exultante, apesar de sua pilha de soberanos se tornar cada vez menor: - Estou com sorte hoje! Tenho certeza!

Micky sentia-se mais relaxado agora. Estudava o estado mental de sua vítima enquanto manipulava as cartas com absoluta habilidade. Não era suficiente tirar tudo o que Tonio tinha. Micky queria que ele jogasse um dinheiro que não possuía, apostasse com dinheiro emprestado e fosse incapaz de pagar as dívidas contraídas. Só assim o lançaria na desgraça total.

Micky esperou com apreensão, enquanto Tonio perdia mais e mais. Tonio sentia-se intimidado por Micky e em geral fazia o que o outro lhe sugeria, mas não era um idiota rematado; havia a possibilidade de que tivesse o bom senso de recuar na beira da ruína.

Quando o dinheiro de Tonio estava quase acabando, Micky efetuou uma nova manobra. Tornou a tirar a charuteira do bolso e disse:

- Estes são da nossa terra, Tonio. Experimente um.

Para seu alívio, Tonio aceitou. Era um charuto comprido e levaria meia hora para ser fumado. Tonio não ia querer sair do jogo antes de terminar o charuto.

Depois que acenderam os charutos, Micky iniciou o golpe de misericórdia. Mais duas mãos, e Tonio estava quebrado.

- Lá se foi tudo o que ganhei em Goodwood esta tarde! - exclamou ele, desolado.

- Devemos lhe dar uma chance de recuperar - disse Micky. - Pilaster emprestará cem libras, tenho certeza.

Edward ficou um pouco surpreso, mas pareceria mesquinhez se recusasse, quando tinha uma pilha de ganhos à sua frente.

- Claro que sim - disse ele. Solly interveio:

- Talvez seja melhor você sair, Silva, e se sentir agradecido por ter um grande dia de jogo sem qualquer custo.

Micky xingou Solly silenciosamente por ser um intrometido de boas intenções. Se Tonio assumisse agora a atitude sensata, todo o seu plano seria arruinado.

Tonio hesitou.

Micky prendeu a respiração.

Mas não era da natureza de Tonio jogar com prudência, e como Micky previra, ele não pôde resistir à tentação de continuar.

- Está bem - disse Tonio. - Posso continuar a jogar até acabar o charuto.

Micky deixou escapar um discreto suspiro de alívio.

Tonio chamou um garçom, pediu pena, papel e tinta. Edward contou cem soberanos, e Tonio escreveu a nota de dívida. Micky sabia que Tonio nunca seria capaz de pagar se perdesse tudo.

O jogo continuou. Micky descobriu-se a suar um pouco enquanto mantinha o delicado equilíbrio, garantindo que Tonio perdesse sem parar, com um ganho ocasional mais elevado, a fim de mantê-lo otimista. Mas desta vez, quando ficou reduzido a 50 libras, Tonio declarou:

- Só ganho quando aposto alto. Vou apostar tudo na próxima mão.

Era uma aposta elevada, até mesmo para o Cowes Club. Alguns sócios viram o volume da aposta e se aproximaram da mesa para observar.

Micky deu as cartas.

Olhou para Edward, à esquerda, que sacudiu a cabeça para indicar que não queria outra carta.

Solly, à direita, fez o mesmo.

Micky virou suas cartas. Dera a si mesmo um oito e um ás, somando nove.

Edward virou sua mão, à esquerda. Micky não sabia que cartas eram: só sabia de antemão que cartas ele próprio ia receber, mas dava as outras ao acaso. Edward tinha um cinco e um dois, somando sete. Ele e o capitão Carter perderam suas apostas.

Solly virou sua mão, as cartas em que Tonio apostara seu futuro.

Ele tinha um nove e um dez. Dava dezenove, que contava como nove. Igualava o total da banca, e assim não havia vencedor nem perdedor, e Tonio continuava com suas cinqüenta libras.

Micky praguejou mentalmente.

Queria agora que Tonio deixasse aqueles cinqüenta soberanos na mesa. Recolheu as cartas depressa e indagou com um tom zombeteiro:

- Vai reduzir sua aposta, Silva?

- Claro que não - respondeu Tonio. - Pode dar as cartas. Micky agradeceu às suas estrelas e deu as cartas, ficando com outro par vencedor.

Desta vez Edward bateu nas cartas, indicando que queria uma terceira. Micky deu-lhe um quatro de paus e olhou para Solly - e Solly passou.

Micky virou suas cartas, um cinco e um quatro. Edward tinha um quatro virado, mostrou um rei sem valor, e outro quatro, dando o total de oito. Seu lado perdera.

Solly virou um dois e um quatro, fazendo seis. O lado direito também perdera para a banca.

E Tonio estava arruinado.

Ele empalideceu, parecia doente, murmurou alguma coisa, que Micky reconheceu como uma imprecaçào em espanhol.

Micky suprimiu um sorriso de triunfo e recolheu os ganhos... e foi nesse instante que viu uma coisa que o fez prender a respiração, enquanto o coração parava de medo.

Havia quatro quatros de paus na mesa.

Estavam supostamente jogando com três baralhos. Quem notasse as quatro cartas idênticas saberia no mesmo instante que cartas extras haviam sido de alguma forma acrescentadas.

Era um risco daquele método de trapacear, e a chance de que ocorresse era de uma em cem mil.

Se a irregularidade fosse notada, seria Micky, não Tonio, quem ficaria arruinado.

Até agora, ninguém percebera. Os naipes não tinham qualquer significado naquele jogo, e por isso a irregularidade não era flagrante. Micky apressou-se em recolher as cartas, o coração disparado. Agradecia às suas estrelas por ter escapado impune quando Edward disse:

- Espere um instante... havia quatro quatros de paus na mesa. Micky xingou-o mentalmente por ser tão estúpido. Edward estava apenas pensando em voz alta. Claro que não tinha a menor idéia do plano de Micky.

- Não é possível - declarou o visconde Montagne. - Jogamos com três baralhos, e assim só pode haver três quatros de paus.

- Exatamente - concordou Edward. Micky soprou uma baforada do charuto.

- Você está bêbado, Pilaster. Um deles era um quatro de espadas.

- Peço desculpas.

- A esta hora da noite, quem pode perceber a diferença entre espadas e paus? - indagou o visconde Montagne.

Mais uma vez, Micky pensou que escapara... e mais uma vez, sua exultação foi prematura.

- Vamos examinar as cartas - propôs Tonio, beligerante.

Micky teve a impressão de que seu coração parará. As cartas da mão anterior eram colocadas numa pilha, que era embaralhada e reutilizada quando o baralho acabava.

Se as cartas descartadas fossem viradas, os quatro quatros idênticos seriam vistos, e Micky estaria liquidado. Desesperado, Micky murmurou:

- Espero que não esteja questionando minha palavra.

Era um desafio dramático num clube de cavalheiros: não haviam se passado muitos anos da época em que tais palavras levavam a um duelo.

As pessoas às mesas vizinhas começaram a se virar para ver o que estava acontecendo. Todos fitaram Tonio, à espera de sua resposta.

Micky pensava depressa. Dissera que um dos quatros era de espadas, não de paus. Se pudesse tirar o quatro de espadas de cima da pilha de descarte, provaria sua afirmação... e com um pouco de sorte ninguém ia querer ver o resto das cartas.

Mas primeiro precisava encontrar um quatro de espadas. Havia três. Podiam estar na pilha de descarte, mas as probabilidades eram de que houvesse pelo menos um no baralho que vinha usando, ainda em sua mão.

Era sua única chance.

Enquanto todos fitavam Tonio, ele virou o baralho. com movimentos mínimos do polegar, foi expondo um canto de cada carta. Mantinha os olhos fixados em Tonio, mas levantou as cartas para seu campo de visão a fim de ainda poder ler os números e naipes no canto. Tonio insistiu, obstinado:

- Vamos examinar o descarte.

Os outros se viraram para Micky. Controlando os nervos ele continuou a manusear o baralho, rezando para que aparecesse logo um quatro de espadas. No meio de tamanho drama, ninguém reparava no que ele fazia. As cartas em discussão se encontravam numa pilha em cima da mesa, e por isso parecia não haver qualquer diferença no que ele fazia com as cartas em sua mão. Teriam de verificar com a maior atenção para perceber que por trás das mãos ele manuseava o baralho; e mesmo que percebessem, não compreenderiam de imediato quais eram suas intenções.

Mas Micky sabia que não podia depender indefinidamente de sua dignidade. Mais cedo ou mais tarde um deles perderia a paciência, abandonaria a cortesia e pegaria o descarte. A fim de ganhar uns poucos momentos preciosos, ele declarou:

- Se não pode perder como um homem, então não deveria jogar. Sentiu que um pouco de suor aflorava em sua testa, e se perguntou se passara pelo quatro de espadas em sua pressa. Solly interveio, a voz suave:

- Não faz mal nenhum verificar, não é mesmo?

Maldito Solly, sempre repulsivamente razoável, pensou Micky, cada vez mais desesperado.

E foi nesse instante que ele encontrou o quatro de espadas. Tratou de empalmá-lo.

- Está bem - murmurou Micky, com uma despreocupação simulada, que era o oposto polar do que sentia.

Todos ficaram imóveis e silenciosos.

Micky largou o baralho que manuseara de modo furtivo, mantendo o quatro de espadas na palma da mão. Pegou a pilha de descarte, largando o quatro em cima. Pôs a pilha na frente de Solly.

- Garanto que vai encontrar um quatro de espadas aí.

Solly virou a carta de cima e todos viram que era um quatro de espadas.

Houve um burburinho pela sala à medida que todos relaxavam.

Micky ainda se sentia apavorado com a possibilidade de que alguém virasse mais cartas e descobrisse que havia quatro quatros de paus por baixo. O visconde de Montagne disse:

- Creio que isso esclarece tudo, e falando por mim, Miranda, só posso pedir desculpas se houve alguma dúvida sobre sua palavra.

- É bom ouvi-lo dizer isso - respondeu Micky.

Todos olharam para Tonio. Ele se levantou, o rosto contraído.

- Que se danem todos vocês! - gritou ele, retirando-se em seguida. Micky recolheu todas as cartas da mesa. Agora, ninguém jamais saberia a verdade.

Suas palmas estavam úmidas de suor. Enxugou-as com discrição na calça.

- Lamento pelo comportamento de meu conterrâneo. Se há uma coisa que detesto, é alguém que não sabe jogar como um cavalheiro.

Nas primeiras horas do novo dia, Maisie e Hugh foram andando para o norte, através dos novos subúrbios de Fulham e South Kensington. A noite tornou-se mais quente, as estrelas desapareceram. Caminhavam de mãos dadas, embora as palmas estivessem suadas com o calor. Maisie sentia-se atordoada, mas feliz.

Alguma coisa estranha acontecera naquela noite. Ela não entendia, mas gostava. No passado, quando os homens a beijavam e apalpavam seus seios, sentira que era parte de uma transação, algo que dava em troca do que precisava deles, o que quer que fosse. Aquela noite fora diferente. Ela desejara que Hugh a tocasse... e ele fora bastante polido para não fazer coisa alguma sem ser convidado!

Começara enquanto dançavam. Até esse momento, Maisie não imaginara que poderia ser radicalmente diferente de qualquer noite anterior que já passara com um jovem da classe superior. Hugh era mais encanta dor do que a maioria, e muito bonito de colete branco e gravata de seda, mas ainda era apenas um rapaz simpático.

Depois, na pista de dança, ela começara a pensar como seria agradável beijá-lo.

A sensação se tornara mais intensa ao passearem pelos jardins, depois da dança, avistando tantos casais se acariciando. A hesitação dele era irresistível.

Outros homens consideravam o jantar e a conversa como uma preliminar tediosa ao evento importante da noite, e mal podiam esperar para levá-la a um canto escuro, passarem a apertá-la. Mas Hugh se mostrara inibido.

Sob outros aspectos, ele era o oposto de tímido. No meio da confusão, fora absolutamente destemido. Depois que fora derrubado, sua única preocupação fora a de evitar que o mesmo acontecesse com ela. Havia muito mais em Hugh do que no jovem elegante comum.

E quando finalmente o fizera compreender que queria ser beijada, fora delicioso, muito diferente de qualquer beijo que já experimentara antes. Contudo, ele não era

hábil, nem experiente. Muito ao contrário: era ingênuo e indeciso. Então por que ela gostara tanto? E por que ansiara de repente em sentir as mãos de Hugh em seus

seios?

Maisie não se sentia atormentada por essas indagações, apenas intrigada. Estava contente, caminhando por Londres no escuro em companhia de Hugh. De vez em quando sentia umas poucas gotas de chuva, mas a tempestade ameaçada não se concretizava. Ela se pôs a pensar como seria maravilhoso se ele a beijasse de novo.

Chegaram a Kensington Gore e viraram à direita ao longo do lado sul do parque, encaminhando-se para o centro da cidade, onde ela morava. Hugh parou na frente de uma casa enorme, cuja fachada era iluminada por dois lampiões a gás. Passou o braço pelos ombros de Maisie e informou:

- Esta é a casa de minha Tia Augusta. É aqui que eu moro.

Maisie passou o braço pela cintura dele e contemplou a casa, tentando imaginar como seria viver numa mansão tão vasta. Teve dificuldade para pensar no que faria com tantos cômodos. Afinal, se você tivesse um lugar para dormir, outro para cozinhar e talvez o luxo de uma sala para receber convidados, do que mais precisava?

Não havia sentido em ter duas cozinhas, ou duas salas de visita: só se podia ocupar uma de cada vez. Isso a lembrou que ela e Hugh viviam em ilhas distintas da sociedade, separadas por um oceano de dinheiro e privilégio. O pensamento perturbou-a.

- Nasci numa cabana de um só cômodo - murmurou ela.

- No nordeste?

- Não. Na Rússia.

- É mesmo? Maisie Robinson não parece um nome russo.

- Meu verdadeiro nome é Miriam Rabinowicz. Todos trocamos de nome quando viemos para cá.

- Miriam... Gosto desse nome.

Hugh puxou-a e tornou a beijá-la. A ansiedade de Maisie evaporou-se, e ela se entregou à sensação. Ele era menos hesitante agora: sabia do que gostava. Ela absorvia os beijos, sedenta, como um copo de água gelada num dia quente. E torceu para que Hugh tocasse de novo em seus seios.

Ele não a desapontou. Um momento depois, ela sentiu sua mão no seio esquerdo, acariciando-o gentilmente. Quase que no mesmo instante o mamilo ficou duro, e as pontas dos dedos de Hugh o comprimiram através da seda do vestido. Maisie ficou embaraçada por seu desejo ser tão óbvio, mas isso o inflamou ainda mais.

Depois de algum tempo, ela quis sentir o corpo de Hugh. Enfiou as mãos por dentro do casaco, subindo e descendo pelas costas, sentindo a pele quente através da camisa fina de algodão. Estava se comportando como um homem, pensou ela. E se perguntou se Hugh se importava. Mas experimentava um prazer grande demais para se controlar.

E foi nesse instante que começou a chover.

Não foi uma chuva que aumentasse pouco a pouco, mas uma tempestade que desabou de repente. Houve um relâmpago, uma trovoada logo em seguida, e um aguaceiro imediato.

Ao romperem o beijo, já tinham os rostos molhados. Hugh pegou-a pela mão.

- Vamos nos abrigar na casa!

Atravessaram a rua correndo. Desceram alguns degraus para a área do porão, passando por uma placa que dizia Entrada de entregadores. Ao alcançarem a porta, Maisie estava encharcada. Hugh abriu-a. Levou um dedo aos lábios, pedindo silêncio, e introduziu-a na casa.

Maisie hesitou por uma fração de segundo, especulando se deveria indagar o que ele tinha em mente; mas afastou o pensamento, e passou pela porta.

Cruzaram na ponta dos pés uma cozinha do tamanho de uma pequena igreja até uma escada estreita. Hugh encostou a boca em seu ouvido e sussurrou:

- Há toalhas limpas lá em cima. Vamos subir pela escada dos fundos. Ela seguiu-o por três longos lances de escada, passando por outra porta e saindo num patamar. Hugh olhou por uma porta aberta em que ardia uma luz noturna e disse em voz normal:

- Edward ainda não voltou. Não há mais ninguém neste andar. Os quartos do tio e da tia ficam no andar de baixo, os criados dormem em cima. Venha.

Ele levou-a para seu quarto e acendeu a luz a gás.

- Vou buscar as toalhas - murmurou, saindo em seguida.

Maisie tirou o chapéu e correu os olhos pelo quarto. Era surpreendentemente pequeno, mobiliado com simplicidade, com uma cama de solteiro, uma cômoda, um guarda-roupa mínimo e uma escrivaninha. Ela esperava algo mais luxuoso... mas Hugh era um parente pobre, e seu quarto refletia isso.

Ela examinou com interesse as coisas de Hugh. Ele tinha um par de escovas de cabelo com cabo de prata com as iniciais T.P. gravadas - outra herança do pai. Estava lendo um livro intitulado Manual da boa prática comercial. Havia na escrivaninha uma fotografia emoldurada de uma mulher e uma menina de cerca de seis anos. Maisie abriu a gaveta da mesinha de cabeceira. Continha uma Bíblia, e outro livro por baixo. Ela afastou a Bíblia para o lado e leu o título do livro escondido: A duquesa de Sodoma. Compreendeu que estava bisbilhotando. Com um sentimento de culpa, tratou de fechar a gaveta.

Hugh voltou com uma pilha de toalhas. Maisie pegou uma. Estava quente, e ela comprimiu-a contra seu rosto molhado, agradecida. Era assim que os ricos viviam, pensou ela: enormes pilhas de toalhas quentes sempre que se precisassem. Enxugou os braços nus e o peito.

- De quem é a fotografia, Hugh?

- Minha mãe e minha irmã. Ela nasceu depois da morte de meu pai.

- Qual é o seu nome?

- Dorothy. Eu a chamo de Dolly. Gosto muito dela.

- Onde elas moram?

- Em Folkestone, à beira-mar.

Maisie se perguntou se algum dia as conheceria.

Hugh puxou a cadeira da escrivaninha e fê-la sentar. Ajoelhou-se na frente, tirou seus sapatos, enxugou os pés molhados com uma toalha limpa. Maisie fechou os olhos:

a sensação da toalha quente e macia nas solas dos pés era maravilhosa.

Seu vestido ficara encharcado, e ela estremeceu. Hugh tirou seu casaco e botinas. Maisie sabia que não poderia se enxugar sem remover o vestido. Por baixo, estava até decente. Não usava o calção comprido até os joelhos - só as mulheres ricas o faziam, - mas tinha uma anágua comprida e uma camisa de baixo. Num súbito impulso, ela se levantou, virou as costas a Hugh e pediu:

- Pode me ajudar?

Maisie sentiu as mãos de Hugh tremerem enquanto os dedos manuseavam desajeitados os colchetes do vestido. Ela também estava nervosa, mas não podia recuar agora. Depois que ele acabou, Maisie agradeceu e tirou o vestido.

Virou-se para fitá-lo.

A expressão de Hugh era uma tocante mistura de embaraço e desejo. Ele se mantinha imóvel, como Ali Babá contemplando o tesouro dos ladrões. Maisie pensara vagamente que iria apenas se enxugar com uma toalha e tornaria a pôr o vestido mais tarde, assim que se enxugasse, mas agora compreendeu que não aconteceria assim, o que a deixou contente.

Levantou as mãos para o rosto de Hugh, puxou-o para baixo e beijou-o. Desta vez Maisie abriu a boca, esperando que ele fizesse o mesmo, mas isso não ocorreu. Hugh nunca beijara assim, ela compreendeu. E projetou a ponta da língua contra seus lábios. Sentiu que ele ficou chocado, mas também excitado. Depois de um momento, Hugh entreabriu a boca e respondeu com sua língua, ainda inibido. E sua respiração se tornou mais ofegante.

Logo ele rompeu o beijo, estendeu as mãos para o topo da camisa e tentou abrir o botão. Encontrou alguma dificuldade, e acabou pegando a camisa com as duas mãos, puxando com força e arrancando os botões. Maisie experimentava a sensação de que derretia por dentro. Queria mais daquilo, agora e sempre.

- Maisie...

Ela fitou-o.

- Quero... Ela sorriu.

- Eu também.

Quando as palavras saíram, ela se perguntou de onde vinham. Falara sem pensar. Mas não tinha qualquer dúvida. Desejava-o mais do que jamais quisera qualquer outra coisa. Ele acariciou seus cabelos.

- Nunca fiz isso antes.

- Nem eu.

Hugh ficou aturdido.

- Mas pensei...

Ele não continuou. Maisie sentiu um ímpeto de raiva, mas se controlou no mesmo instante. A culpa era sua se Hugh pensara que era uma mulher promíscua.

- Vamos deitar - murmurou ela. Hugh suspirou feliz, mas perguntou:

- Tem certeza de que é isso o que quer?

- Se tenho certeza? - Maisie mal podia acreditar que ele dissera isso. Jamais conhecera um homem que fizesse essa pergunta. Nunca pensavam em seus sentimentos.

Ela pegou a mão de Hugh entre as suas e beijou a palma. - Se não tinha certeza antes, tenho agora.

Maisie deitou na cama estreita. O colchão era duro, mas o lençol estava limpo. Ele deitou ao seu lado.

- E agora?

Aproximavam-se dos limites da experiência de Maisie, mas ela conhecia o passo seguinte.

- Acaricie-me - murmurou ela.

Ele a tocou, hesitante, por sobre a roupa. Subitamente, Maisie se tornou impaciente. Arrancou a anágua - não usava nada por baixo - e comprimiu a mão de Hugh contra a elevação entre suas pernas.

Hugh a acariciou, beijando seu rosto com uma respiração quente e acelerada. Ela sabia que deveria ter o receio de engravidar, mas não podia divisar o perigo. Perdera o controle: o prazer era intenso demais para que conseguisse pensar. Era o ponto máximo a que já fora com um homem, mas mesmo assim sabia exatamente o que queria em seguida. Encostou os lábios no ouvido de Hugh e sussurrou:

- Enfie seu dedo.

Ele o fez e disse, espantado:

- Você está toda molhada!

- É para ajudá-lo.

Os dedos de Hugh a exploraram, com extrema delicadeza.

- Parece tão pequena...

- Você terá de ser gentil - disse Maisie, embora uma parte dela quisesse ser possuída com toda a fúria.

- Vamos fazer agora?

A impaciência de Maisie era total.

- Depressa, por favor!

Ela sentiu-o mexer na calça, depois se ajeitar entre suas pernas. Estava assustada - ouvira histórias sobre a dor intensa da primeira vez - mas também consumida

pelo desejo por Hugh.

Ele a penetrou. Depois de um momento, encontrou resistência. Empurrou devagar... e doeu.

- Pare! - exclamou Maisie. Hugh fitou-a, preocupado.

- Desculpe...

- Vai dar tudo certo. Beije-me.

Ele baixou o rosto, beijou seus lábios, gentilmente a princípio, e logo com um ardor intenso. Maisie pôs as mãos na cintura de Hugh, levantou um pouco seus quadris da cama e puxou-o com força. Houve um instante de dor, bastante intensa para fazê-la gritar, depois algo cedeu, e ela experimentou uma imensa liberação da tensão.

Rompeu o beijo, fitou-o nos olhos.

- Você está bem, Maisie? Ela disse sim com a cabeça.

- Fiz algum barulho?

- Fez, mas acho que ninguém ouviu.

- Não pare.

Hugh ainda hesitou por mais um momento.

- Maisie, isto é um sonho?

- Se for, não vamos acordar agora.

Ela se movimentou contra ele, guiando-o com as mãos em sua cintura. Hugh seguiu as orientações. Maisie pensou que parecia com o jeito como haviam dançado poucas horas antes. Entregou-se à sensação. Ele começou a ofegar.

A distância, acima do barulho de suas respirações, Maisie ouviu uma porta ser aberta.

Mas se encontrava tão absorvida em suas sensações e no corpo de Hugh que o som não foi capaz de alarmá-la.

E de repente uma voz áspera destruiu o ânimo, como uma pedra atirada por uma janela:

- Ora, ora, Hugh... o que é isso? Maisie ficou paralisada.

Hugh soltou um gemido desesperado, e Maisie sentiu que ele ejaculava dentro dela.

Sentiu vontade de chorar.

A voz desdenhosa acrescentou:

- O que pensa que esta casa é... um bordel? Maisie sussurrou:

- Hugh... saia de cima de mim.

Ele se retirou, rolando para fora da cama. Maisie avistou o primo Edward, parado na porta, fumando um charuto, observando-os atentamente. Hugh cobriu-a com uma toalha grande. Ela sentou na cama e levantou a toalha até o pescoço. Edward exibiu um sorriso repulsivo.

- Se você já acabou, Hugh, acho que posso dar uma trepada agora. Hugh passou uma toalha por sua cintura. Controlando a raiva comum esforço visível, ele disse:

- Você está bêbado, Edward... vá para seu quarto antes de dizer algo do que se arrependa.

Edward ignorou-o e aproximou-se da cama.

- Mas é a garota de Solly Greenbourne! Não contarei nada a ele... se você for boazinha comigo.

Maisie compreendeu que ele falava a sério, e estremeceu em aversão. Sabia que alguns homens se sentiam atraídos por uma mulher que acabara, de ser possuída por outro

- April lhe dissera que a palavra, na gíria, para essa situação era "sopa" - e percebeu, intuitivamente, que Edward era desse tipo. Hugh ficou furioso.

- Saia daqui, seu idiota!

- Seja camarada - insistiu Edward. - Afinal, ela não passa de uma prostituta.

Ao dizer isso, ele se inclinou e arrancou a toalha de Maisie. Ela saltou para o outro lado da cama, cobrindo-se com os braços; mas não havia necessidade. Em dois passos, Hugh atravessou o pequeno quarto e acertou um violento soco no nariz de Edward. O sangue jorrou, e Edward soltou um berro de agonia.

Edward se tornou inofensivo no mesmo instante, mas Hugh ainda estava furioso e esmurrou-o de novo.

Gritando de dor e medo, Edward cambaleou para a porta. Hugh seguiu-o, acertando outros socos atrás da cabeça. Edward desatou a berrar:

- Deixe-me em paz! Pare com isso! Por favor!

Ele caiu na entrada da porta. Maisie se adiantou. Edward ficara estendido no chão com Hugh em cima dele, ainda batendo. Ela gritou:

- Pare, Hugh! Você vai matá-lo!

Maisie tentou segurar os braços de Hugh, mas ele se achava dominado por tamanha fúria que era difícil contê-lo.

Um momento depois ela vislumbrou um movimento com o canto dos olhos. Levantou o rosto e deparou com a Tia Augusta parada no alto da escada, usando um penhoar de seda preta, fitando-a fixamente. À luz bruxuleante dos bicos de gás, ela parecia um fantasma sensual.

E havia uma estranha expressão nos olhos de Augusta. A princípio, Maisie não pôde determinar o que era, mas logo compreendeu e sentiu-se assustada.

Era uma expressão de triunfo.

Assim que viu a moça nua, Augusta sentiu que era sua oportunidade de se livrar de Hugh, de uma vez por todas.

Reconheceu-a no mesmo instante. Era a mesma vagabunda que a insultara no parque, a que as pessoas chamavam de A Leoa. Passou pela cabeça de Augusta o pensamento de que até mesmo aquela mulher à-toa poderia um dia meter Hugh numa tremenda encrenca: havia algo arrogante e inflexível na cabeça erguida, no brilho dos olhos.

Mesmo agora, quando deveria estar mortificada de vergonha, mantinha-se firme ali, completamente nua, sustentando com frieza o olhar de Augusta. Tinha um corpo magnífico, pequeno, mas bem-feito, os seios brancos e redondos, uma explosão de pêlos ruivos na virilha. Sua expressão era tão altiva que quase fez Augusta se sentir como a intrusa. Mas ela provocaria a desgraça de Hugh.

Os contornos de um plano já se definiam na mente de Augusta quando ela notou, de repente, que Edward se encontrava estendido no chão, o rosto todo ensangüentado.

Todos os seus antigos temores afloraram com uma força incrível, e ela retornou ao passado, 23 anos antes, quando o filho pequeno quase morrera. O pânico cego a dominou.

- Teddy! - gritou ela. - O que aconteceu com Teddy? Ajoelhou-se ao lado de Edward, berrando:

- Fale comigo! Fale comigo!

Um medo insuportável a envolvia, como acontecera quando seu bebê fora emagrecendo dia a dia e os médicos não conseguiam entender por quê. Edward sentou e gemeu.

- Diga alguma coisa! - suplicou Augusta.

- Não me chame de Teddy!

O terror diminuiu um pouco. Ele estava consciente e era capaz de falar. Mas a voz era engrolada, e o nariz parecia deformado.

- O que aconteceu?

- Surpreendi Hugh com sua prostituta e ele ficou furioso! - respondeu Edward.

Reprimindo a raiva e o medo, Augusta estendeu a mão e tocou gentilmente no nariz do filho. Ele soltou um berro, mas permitiu que a mãe apalpasse seu nariz. Não havia nada quebrado, concluiu ela; estava apenas inchado. Foi nesse instante que ouviu a voz do marido:

- O que está acontecendo aqui? Augusta se levantou.

- Hugh agrediu Edward.

- O garoto está bem?

- Acho que sim. Joseph virou-se para Hugh.

- Como foi capaz de fazer uma coisa assim?

- O idiota pediu por isso - declarou Hugh, num tom de desafio.

Isso mesmo, Hugh, torne a sua situação cada vez pior, pensou Augusta. Faça qualquer coisa, mas não peça desculpas. Quero que seu tio fique furioso com você.

A atenção de Joseph, no entanto, dividia-se entre os rapazes e a mulher, e seus olhos retornavam a todo instante ao corpo nu. Augusta experimentou uma pontada de ciúme.

E isso a deixou mais calma. Não havia nenhum problema mais grave com Edward. Ela começou a pensar depressa. Como poderia aproveitar melhor a situação? Hugh se achava totalmente vulnerável agora: podia fazer qualquer coisa com ele. Pensou no mesmo instante em sua conversa com Micky Miranda. Hugh tinha de ser silenciado, pois sabia demais sobre a morte de Peter Middleton. E aquele era o momento de atacar.

Primeiro, tinha de separá-lo da mulher.

Alguns criados haviam aparecido, em suas roupas de dormir, e pairavam na porta que levava à escada dos fundos, olhando consternados, mas também fascinados, para a cena no patamar. Augusta divisou o mordomo, Hastead, num chambre amarelo de seda de que Joseph se desfizera alguns anos antes, e Williams, o lacaio, num camisão de dormir listrado.

- Hastead e Williams, ajudem Mr. Edward a ir para sua cama, está bem? Os dois se adiantaram apressados e ajudaram Teddy a se levantar.

Augusta dirigiu-se em seguida à governanta:

- Mrs. Merton, cubra essa moça com um lençol ou alguma outra coisa; leve-a para o meu quarto e ajude-a a se vestir.

Mrs. Merton tirou seu próprio chambre e ajeitou-o nos ombros de Maisie, que o fechou para cobrir sua nudez, mas sem fazer qualquer menção de se retirar. Augusta

acrescentou:

- Hugh, corra até a casa do dr. Humbold, na Church Street; é melhor ele examinar o nariz do pobre Edward.

- Não Vou deixar Maisie - protestou Hugh.

- Já que foi você quem causou o dano, o mínimo que pode fazer é chamar o médico! - insistiu Augusta em tom ríspido.

- Eu ficarei bem, Hugh - interveio Maisie. - Vá chamar o médico. Ainda estarei aqui quando você voltar.

Mas Hugh ainda hesitava. Mrs. Merton disse a Maisie, indicando a escada dos fundos:

- Por aqui, por favor.

- Ora, acho que devemos usar a escada principal - declarou Maisie. Andando como uma rainha, ela atravessou o patamar e começou a descer a escada. Mrs. Merton seguiu-a.

- E então, Hugh? - murmurou Augusta.

Ela percebeu que o sobrinho ainda resistia à idéia de se afastar, mas, por outro lado, não podia pensar em nenhum bom motivo para recusar. Depois de um momento ele cedeu e disse:

- Vou calçar as botas.

Augusta ocultou seu alívio. Conseguira separá-los. Agora, se sua sorte continuasse, seria capaz de sacramentar o destino de Hugh. Ela virou-se para o marido.

- Vamos para o seu quarto e conversaremos sobre o que aconteceu.

Desceram a escada e entraram no quarto de Joseph. Assim que a porta foi fechada, Joseph abraçou-a e beijou-a. Augusta compreendeu que ele queria fazer amor.

O que era inesperado. Faziam amor uma ou duas vezes por semana, mas era sempre ela quem tomava a iniciativa: ia para o quarto dele, para a sua cama. Considerava que mantê-lo satisfeito era parte de seu dever conjugal, mas gostava de ter o controle, e por isso o desencorajava a procurá-la em seu quarto. Ao se casarem, fora mais difícil conter Joseph. Ele insistia em possuí-la sempre que quisesse, e por algum tempo Augusta fora obrigada a se submeter; mas acabara impondo sua maneira de pensar ao marido. Depois, durante um certo período, ele a pressionara com sugestões indecorosas, como a de fazerem amor com a luz acesa, a de que Augusta ficasse por cima, ou lhe fizesse coisas inomináveis com a boca. Mas ela resistira com firmeza, e há muito que o marido deixara de manifestar tais idéias.

Agora, no entanto, ele rompia o padrão. E Augusta sabia o motivo. Joseph ficara inflamado pela visão do corpo nu de Maisie, aqueles seios jovens e firmes, a moita de cabelos ruivos. O pensamento deixou-a com um gosto amargo na boca, e ela tratou de repelir o marido.

Ele assumiu uma expressão ressentida. Augusta queria-o furioso com Hugh, não com ela; por isso pôs a mão em seu braço num gesto conciliatório.

- Mais tarde - murmurou ela. - Virei procurá-lo depois.

Joseph aceitou e comentou:

- Há sangue ruim em Hugh. Herdou-o do meu irmão.

- Ele não pode continuar a morar aqui depois disso - declarou Augusta num tom de quem não admitia discussão.

Joseph não se mostrou disposto a contestá-la nesse ponto.

- Tem toda a razão.

- E deve também despedi-lo do banco. Joseph se tornou obstinado.

- Peço que não tome decisões sobre o que deve acontecer no banco.

- Ora, Joseph, ele acaba de insultá-lo ao trazer para esta casa uma mulher desafortunada - insistiu Augusta, usando o eufemismo para prostituta.

Joseph foi sentar à sua escrivaninha.

- Sei muito bem o que ele fez. Só estou lhe pedindo para manter separado o que acontece na casa do que acontece no banco.

Ela decidiu recuar por um momento.

- Está bem. Tenho certeza de que você sabe melhor do que eu o que deve fazer.

Joseph sempre se surpreendia quando a esposa cedia inesperadamente.

- Acho que é melhor mesmo despedi-lo - murmurou ele, depois de um momento. - Imagino que voltará para a casa da mãe em Folkestone.

Augusta não tinha muita certeza a respeito. Ainda não definira sua estratégia; procurava pensar com os pés no chão.

- Em que ele poderia trabalhar?

- Não tenho a menor idéia.

Augusta compreendeu que cometera um erro. Hugh seria ainda mais perigoso se ficasse desempregado, ressentido, sem ter nada para fazer. David Middleton ainda não o procurara - talvez ainda não soubesse que Hugh estivera no poço com os outros meninos naquele dia fatídico - mas isso aconteceria, mais cedo ou mais tarde. Ela ficou aflita, desejando ter pensado melhor antes de insistir na demissão de Hugh. Sentiu-se irritada consigo mesma.

Poderia persuadir Joseph a mudar de idéia outra vez? Tinha de tentar.

- Talvez estejamos sendo rigorosos demais.

Ele alteou as sobrancelhas, espantado com aquela repentina demonstração de misericórdia. Augusta tratou de acrescentar:

- Afinal, você vive dizendo que ele tem grande potencial como banqueiro. Talvez seja uma insensatez mandá-lo embora.

Joseph se aborreceu.

- Decida logo o que quer, Augusta!

Ela sentou numa cadeira baixa, perto da escrivaninha. Deixou a camisola subir, estendeu as pernas. Ainda tinha pernas bonitas. O marido contemplou-as, sua expressão abrandou.

Enquanto ele estava distraído, Augusta vasculhou o cérebro em busca de uma idéia. E teve uma súbita inspiração.

- Mande-o para o exterior.

- Como?

Quanto mais pensava na idéia, mais Augusta a apreciava. Hugh seria mantido fora do alcance de David Middleton, mas ainda dentro de sua esfera de influência.

- Mande-o para o Extremo Oriente, ou para a América do Sul - continuou Augusta, animando-se com a perspectiva. - Algum lugar onde seu mau comportamento não se refletirá diretamente sobre a minha casa.

Joseph esquecera a irritação com ela.

- Não é uma má idéia - respondeu ele, pensativo. - Há uma vaga nos Estados Unidos. O homem que dirige nosso escritório em Boston precisa de um assistente.

A América seria um lugar perfeito, pensou Augusta. Ela sentia-se satisfeita com seu próprio brilho.

No momento, porém, Joseph apenas aventava a possibilidade. Ela queria que o marido assumisse o compromisso.

- Mande Hugh para lá o mais depressa possível. Não quero que ele continue nesta casa por mais um dia.

- Ele pode reservar a passagem pela manhã. Depois disso, não terá mais motivos para permanecer em Londres. Pode ir a Folkestone para se despedir da mãe e ficar lá até o navio zarpar.

E assim ele não se encontrará com David Middleton por muitos anos, refletiu Augusta com a maior satisfação.

- Esplêndido! Então esse problema está resolvido.

Havia mais alguma coisa? Ela se lembrou de Maisie. Será que Hugh gostava dela? Parecia improvável, mas tudo era possível. Ele podia se recusar a se separar da garota.

Era um fio solto, e preocupou Augusta. Por um lado, Hugh não podia levar uma vagabunda para Boston, mas por outro podia não querer deixar Londres sem ela. Augusta especulou se poderia atrapalhar o romance que se iniciava, apenas como precaução.

Ela se levantou e foi até a porta que se comunicava com seu quarto. Joseph parecia desapontado.

- Preciso me livrar da garota - explicou Augusta.

- Alguma coisa que eu possa fazer?

A pergunta surpreendeu-a. Não era típico do marido fazer ofertas generalizadas de ajuda. Ele queria dar outra olhada na prostituta, pensou Augusta, amargurada.

Ela sacudiu a cabeça.

- Voltarei num instante. Espere-me na cama.

Augusta passou para o seu quarto e fechou a porta. Maisie já se vestira, prendia o chapéu nos cabelos. Mrs. Merton dobrava um vestido azul e verde ordinário, que guardou numa bolsa barata.

- Emprestei um vestido meu, já que o dela está encharcado - explicou a governanta.

Isso respondia a uma pequena pergunta que vinha intrigando Augusta. Pensara que era muito estranho que Hugh fizesse uma coisa tão estúpida quanto trazer uma prostituta para casa. Compreendia agora como acontecera. Haviam sido surpreendidos pela súbita tempestade, e Hugh trouxera a mulher para se enxugar, depois uma coisa levara a outra.

- Qual é o seu nome? - perguntou ela.

- Maisie Robinson. Já sei o seu.

Augusta descobriu que sentia aversão a Maisie Robinson. Não sabia direito por quê, pois a garota não valia nenhum sentimento forte. Só podia ser por algo na maneira como ela se portara quando nua: orgulhosa, sensual, independente.

- Imagino que você queira dinheiro - disse ela, desdenhosa.

- Sua vaca hipócrita! - explodiu Maisie. - Não casou com aquele seu marido rico e feio por amor!

Era a pura verdade, e as palavras deixaram Augusta sem fôlego. Subestimara a jovem. Começara mal, e agora precisava fazer um esforço para sair do buraco. Dali por diante, precisaria ter o maior cuidado com Maisie. Era uma oportunidade providencial e não deveria desperdiçá-la. Augusta engoliu em seco, forçando a fala num tom neutro:

- Não quer sentar por um momento?

Ela indicou uma cadeira. Maisie se mostrou surpresa, mas acabou sentando depois de uma pequena hesitação.

Augusta sentou-se à sua frente.

Tinha de persuadir a jovem a renunciar a Hugh. Ela reagira com desdém à insinuação de um suborno. Augusta relutava em repetir a oferta; sentia que o dinheiro não daria certo com Maisie. Mas era evidente que também não se tratava de uma garota que podia ser pressionada.

Augusta precisava fazê-la acreditar que a separação seria a melhor coisa para ambos. E funcionaria melhor se Maisie pensasse que renunciar a Hugh fosse uma idéia sua. E seria possível chegar a esse ponto se Augusta argumentasse em contrário. Era uma idéia e tanto...

- Se quer casar com ele, não posso impedi-la - declarou Augusta. A moça ficou aturdida, e Augusta se deu os parabéns por pegá-la desprevenida.

- O que a faz pensar que quero casar com ele? - indagou Maisie. Augusta quase riu. Teve vontade de dizer O fato de que você é uma mulher interesseira e astuta, mas se conteve.

- Que moça não gostaria de casar com Hugh? É um jovem simpático e bonito, e pertence a uma grande família. Não tem dinheiro, mas suas perspectivas são excelentes.

Maisie contraiu os olhos.

- Quase parece que você quer que eu case com ele.

Augusta tencionava dar exatamente essa impressão, mas precisava ser cautelosa. Maisie era desconfiada, e parecia inteligente demais para ser enganada com facilidade.

- Não devemos ter fantasias, Maisie. Perdoe-me por dizer isso, mas nenhuma mulher da minha classe gostaria que um homem de sua família casasse tão abaixo de seu nível.

Maisie não demonstrou qualquer ressentimento.

- Ela poderia, se o odiasse bastante.

Sentindo-se encorajada, Augusta continuou a conduzi-la no rumo que desejava.

- Acontece que não odeio Hugh. Quem lhe deu essa idéia?

- Ele próprio. Disse-me que você o trata como um parente pobre, e cuida para que todos façam o mesmo.

- Como as pessoas podem ser ingratas! Mas por que eu desejaria arruinar sua carreira?

- Porque ele se destaca mais do que Edward, o idiota do seu filho. Uma onda de raiva envolveu Augusta. Mais uma vez, Maisie chegara perto da verdade. Não havia dúvida de que Edward carecia da astúcia de Hugh, mas era um jovem bom e delicado, enquanto Hugh era um grosseiro.

- Acho que é melhor não mencionar o nome de meu filho - murmurou ela.

Maisie sorriu.

- Parece que toquei num ponto fraco. - No instante seguinte, ela voltou a se mostrar solene. - Portanto, é esse o seu jogo. Mas não Vou entrar nele.

- Como assim?

As lágrimas afloraram de repente nos olhos de Maisie.

- Gosto demais de Hugh para arruiná-lo.

Augusta ficou surpresa e satisfeita com o vigor da paixão de Maisie. Seu plano se desenvolvia com perfeição, apesar do início desastroso.

- O que pretende fazer?

Maisie fez um esforço para não chorar.

- Nunca mais tornarei a vê-lo. Você ainda poderá destruí-lo, mas não terá a minha ajuda.

- Ele pode procurá-la.

- Vou desaparecer. Hugh não sabe onde moro e permanecerei longe dos lugares em que ele pode me procurar.

Um bom plano, pensou Augusta; e você só vai precisar cumpri-lo por pouco tempo, porque depois Hugh irá para o exterior e ficará ausente por anos, talvez para sempre.

Mas ela não disse nada. Levara Maisie à conclusão óbvia, e agora a moça não precisava de qualquer ajuda adicional. Maisie enxugou o rosto na manga.

- É melhor eu ir agora, antes de Hugh voltar com o médico. - Ela se levantou. - Obrigada por me emprestar seu vestido, Mrs. Merton.

A governanta abriu a porta.

- Vou lhe mostrar o caminho.

- Vamos pela escada dos fundos desta vez, por favor - pediu Maisie. - Não quero...

Ela parou de falar, engoliu em seco e depois acrescentou num quase sussurro:

- Não quero ver Hugh de novo. E depois ela se retirou.

Mrs. Merton seguiu-a e fechou a porta.

Augusta deixou escapar um longo suspiro. Contivera a carreira de Hugh, neutralizara Maisie Robinson e evitara o perigo de David Middleton, tudo em uma só noite.

Maisie fora uma oponente formidável, mas no final demonstrara ser emocional demais.

Augusta saboreou seu triunfo por alguns momentos e depois subiu para o quarto de Edward.

Encontrou-o sentado na cama, tomando conhaque num copo. O nariz estava machucado, havia sangue ressequido ao redor e ele parecia sentir pena de si mesmo.

- Meu pobre menino... - murmurou Augusta.

Ela foi molhar o canto de uma toalha na bacia, sentou na beira da cama e limpou o sangue do lábio superior do filho. Ele estremeceu.

- Desculpe! - exclamou ela. Edward sorriu.

- Tudo bem, mãe. Pode continuar. É reconfortante.

Enquanto ela o lavava, o dr. Humbold entrou no quarto, acompanhado por Hugh.

- Andou brigando, meu jovem? - indagou o médico, jovial. Augusta irritou-se com a sugestão.

- Claro que não. Ele foi agredido. Humbold ficou desconcertado.

- Claro, claro... Hugh perguntou:

- Onde está Maisie?

Augusta não queria falar a respeito de Maisie na presença do médico. Levantou-se e saiu com Hugh do quarto.

- Ela foi embora.

- Você a mandou embora?

Augusta sentiu-se propensa a lhe dizer que não falasse com ela naquele tom de voz, mas concluiu que nada teria a ganhar por enfurecê-lo: sua vitória sobre Hugh já era total, embora ele não o soubesse. Por isso, respondeu num tom apaziguador:

- Se eu a tivesse expulsado, não acha que ela esperaria na rua para informá-lo? Ela se retirou por sua livre e espontânea vontade e disse que escreveria para você amanhã.

- Mas ela garantiu que estaria aqui quando eu voltasse com o médico!

- Mudou de idéia. Nunca viu uma garota de sua idade fazer isso? Hugh estava atordoado, não sabia o que dizer em seguida. Augusta acrescentou:

- Não tenho dúvida de que ela desejava se livrar o mais depressa possível da situação embaraçosa em que você a colocou.

Parecia fazer sentido para Hugh.

- Suponho que você a fez se sentir tão constrangida que ela não pôde mais suportar a permanência na casa.

-Já chega! - protestou Augusta. - Não estou interessada em ouvir suas opiniões. Seu Tio Joseph conversará com você pela manhã, antes de sair para o banco. Boa noite.

Por um momento, Hugh deu a impressão de que insistiria em discutir o assunto. Mas não havia mais nada que ele pudesse dizer.

- Muito bem - murmurou ele, indo para o seu quarto. Augusta voltou ao quarto de Edward. O médico fechava sua maleta.

- Não houve nenhum dano maior - informou ele. - O nariz ficará dolorido por alguns dias, e Edward poderá acordar amanhã com o olho preto; ele é jovem e vai se recuperar rápido.

- Obrigada, doutor. Hastead o conduzirá até a porta.

- Boa noite.

Augusta inclinou-se sobre a cama e beijou o filho.

- Boa noite, Teddy querido. Trate de dormir agora.

- Está bem. mãe querida. Boa noite. Augusta tinha mais uma tarefa a cumprir.

Desceu a escada e entrou no quarto de Joseph. Esperava que ele tivesse adormecido enquanto a esperava, mas encontrou-o sentado na cama, lendo a Pall Mall Gazette.

Largou-a no mesmo instante e levantou as cobertas para que Augusta deitasse.

Abraçou-a imediatamente. Augusta percebeu que havia bastante claridade no quarto: o dia amanhecera sem que tivesse notado. Fechou os olhos.

Joseph penetrou-a depressa. Ela enlaçou-o, respondendo a seus movimentos. Pensou em si mesma quando tinha 16 anos, deitada na margem de um rio num vestido rosa e chapéu de palha, sendo beijada pelo jovem conde de Strang; só que em sua mente ele não parava de beijá-la, levantava sua saia, fazia amor sob o sol quente com o rio murmurando a seus pés...

Depois que tudo acabou, ela passou algum tempo deitada ao lado de Joseph, refletindo sobre sua vitória.

- Uma noite extraordinária - murmurou ele, sonolento.

- É verdade... aquela moça horrível...

- Hum... muito bonita... arrogante e voluntariosa... pensa que é tão boa quanto qualquer outra pessoa... um corpo adorável... como você era nessa idade.

Augusta sentiu-se mortalmente ofendida.

-Joseph! Como pode dizer isso?

Ele não respondeu, e Augusta percebeu que o marido já adormecera.

Enfurecida, ela puxou as cobertas, saiu da cama e deixou o quarto.

Não voltou a dormir naquela noite.

Micky Miranda morava em dois cômodos de uma casa em Camberwell, um subúrbio modesto no sul de Londres. Nenhum de seus amigos de alta classe jamais o visitara ali, nem mesmo Edward Pilaster. Micky representava o papel de um jovem elegante com um orçamento muito apertado, e acomodações de luxo eram uma das coisas que podia dispensar.

Às nove horas de cada manhã a senhoria, uma viúva com dois filhos crescidos, levava café e pão quente para ele e Papa. Enquanto comiam, Micky contou como fizera Tonio Silva perder cem libras que não possuía. Não esperava que o pai entoasse louvores, mas contava com um relutante reconhecimento de sua engenhosidade. Papa, no entanto, não se mostrou impressionado. Soprou o café e soltou um sonoro arroto.

- Quer dizer que ele voltou para Córdoba?

- Ainda não, mas voltará.

- É o que você espera. Tanto trabalho e ainda apenas espera que ele volte.

Micky sentiu-se magoado.

- Confirmarei seu destino hoje.

- Quando eu tinha a sua idade...

- Teria cortado a garganta dele, sei disso. Acontece que estamos em Londres, não na província de Santamaria, e acabará enforcado se sair por aí cortando a garganta das pessoas.

- Há ocasiões em que não se tem opção.

- Mas há outras ocasiões em que é melhor avançar com cuidado, Papa. Pense em Samuel Pilaster, nas suas objeções sentimentais a negociar com armas. Não consegui tirá-lo

do caminho sem derramar sangue?

Na verdade, fora Augusta quem o fizera, mas Micky não dissera isso a Papa.

- Ainda tenho minhas dúvidas - insistiu Papa, obstinado. - Quando terei os rifles?

Era uma questão delicada. O velho Seth continuava vivo, ainda era o Sócio Sênior do Pilasters Bank. Era o mês de agosto. Em setembro, a neve do inverno começaria a derreter nas montanhas de Santamaria. Papa queria voltar para casa... com as armas. Assim que Joseph se tornasse Sócio Sênior, Edward fecharia o negócio e as armas seriam embarcadas. Mas o velho Seth se apegava com uma teimosia irritante a seu posto e sua vida.

- Vai recebê-los em breve, Papa. Seth não pode durar por muito mais tempo.

- Ainda bem - murmurou Papa, com a expressão presunçosa de quem ganhara uma discussão.

Micky passou manteiga num pão. Sempre fora assim. Jamais conseguia agradar ao pai, por mais que tentasse.

Ele se concentrou no dia que teria pela frente. Tonio devia agora um dinheiro que não tinha como pagar. O próximo passo era converter um problema numa crise. Micky queria que Edward e Tonio travassem uma discussão em público. Se pudesse providenciar isso, a desgraça de Tonio se tornaria do conhecimento geral, e ele seria obrigado a renunciar a seu emprego e voltar para Córdoba. O que o deixaria fora do alcance de David Middleton.

Micky tencionava fazer tudo isso sem transformar Tonio num inimigo. Afinal tinha outro propósito: queria o emprego de Tonio. Era bem possível que Tonio tornasse as coisas difíceis, se assim desejasse, ao denegrir Micky para o embaixador. Micky queria persuadi-lo a lhe abrir as portas da embaixada.

A situação era complicada pela história de seu relacionamento com Tonio. No colégio, Tonio odiara e temera Micky; mais recentemente, passara a admirá-lo. Agora, Micky queria ser o melhor amigo de Tonio... ao mesmo tempo em que arruinava sua vida.

Enquanto Micky remoía o dia movimentado à sua frente, houve uma batida na porta do quarto e a senhoria anunciou um visitante. Um momento depois Tonio entrou.

Micky planejara procurá-lo logo depois do desjejum. A visita lhe poupava esse esforço.

- Sente e tome um café - disse ele, jovialmente. - Mas que azar você teve ontem à noite! É o que sempre acontece nos jogos de cartas, alguns ganham, outros perdem.

Tonio cumprimentou Papa antes de sentar. Dava a impressão de que não dormira.

- Perdi mais do que podia - admitiu ele.

Papa soltou um grunhido irritado. Não tinha paciência com pessoas que sentiam pena de si mesmas, e ainda por cima desprezava a família Silva como pusilânimes habitantes da cidade que viviam de favores e corrupção. Micky fingiu compaixão.

- Lamento ouvir isso.

- Sabe o que significa. Neste país, um homem que não paga suas dívidas de jogo não é um cavalheiro. E um homem que não é um cavalheiro não pode ser um diplomata.

Talvez eu tenha de pedir demissão e voltar para casa.

Exatamente, pensou Micky; mas ele disse em voz pesarosa:

- Compreendo o problema. Tonio continuou:

- Sabe como são as pessoas nessas coisas... se você não paga logo no dia seguinte, já se torna suspeito. Mas eu levaria anos para conseguir pagar cem libras. É por isso que vim procurá-lo.

- Não estou entendendo - disse Micky, embora compreendesse perfeitamente.

- Pode me dar o dinheiro? - suplicou Tonio. - É cordovês, diferente desses ingleses; não condena um homem por um único erro. E algum dia eu lhe pagarei tudo.

- Se eu tivesse todo esse dinheiro, pode ter certeza de que daria a você. Mas não sou tão próspero assim.

Tonio olhou para Papa, que o fitou friamente e disse apenas:

- Não.

Tonio baixou a cabeça.

- Sou um idiota em relação ao jogo. Não sei o que fazer. Se voltar para casa em desgraça não terei coragem de encarar minha família.

Micky anunciou, pensativo:

- Talvez eu possa fazer alguma coisa para ajudá-lo. Tonio se animou no mesmo instante.

- Oh, por favor, qualquer coisa!

- Edward e eu somos grandes amigos, como sabe. Posso conversar com ele em seu nome, explicar as circunstâncias e pedir que seja indulgente... como um favor pessoal para mim.

- Faria isso?

Tonio palpitava de esperança.

- Pedirei a ele para esperar por seu dinheiro e não contar a ninguém. Não posso garantir que ele vai concordar, é claro. Os Pilasters têm muito dinheiro, mas são duros. De qualquer forma, tentarei.

Tonio segurou a mão de Micky e disse veemente:

- Não sei como agradecer. Jamais esquecerei o que está fazendo por mim.

- Não fique tão esperançoso...

- Não posso evitar. Estava desesperado e você me deu um motivo para continuar a viver. - Tonio parecia envergonhado. - Pensei em me matar esta manhã. Fui até a ponte de Londres pensando em me jogar no rio.

Houve um grunhido baixo de Papa, que obviamente pensava que essa seria a melhor solução. Micky apressou-se em dizer:

- Graças a Deus que você mudou de idéia. Agora, é melhor eu ir logo ao Pilasters Bank para conversar com Edward.

- Quando poderei encontrá-lo?

- Estará no clube na hora do almoço?

- Claro, se você quiser que eu vá.

- Pois me espere lá.

- Combinado. - Tonio levantou-se. - Deixarei que terminem o desjejum, e...

- Não me agradeça - interrompeu Micky, levantando a mão para silenciá-lo. - Dá azar. Espere e torça.

- Está bem. - Tonio fez uma reverência para Papa. - Adeus, Senor Miranda.

Ele saiu.

- Garoto estúpido - murmurou Papa.

- Um idiota rematado - concordou Micky.

Ele foi para o quarto e vestiu um fraque: camisa branca de colarinho duro e punhos engomados, calça amarelo-clara, gravata preta de cetim com um laço perfeito e uma casaca preta trespassada. Os sapatos reluziam encerados, os cabelos brilhavam devido ao macáçar. Sempre se vestia com elegância, mas num estilo conservador: nunca usaria um dos novos colarinhos virados para baixo, como era a moda agora, nem levaria um monóculo, como um dândi. Os ingleses sempre se mostravam dispostos a acreditar que um estrangeiro era mal-educado, e ele tomava o cuidado de não lhes dar o menor pretexto para que o considerassem assim.

Deixando Papa sozinho por aquele dia, Micky saiu, atravessou a pé a ponte para o distrito financeiro, chamado de City por ocupar a área original da cidade romana de Londres. O tráfego se encontrava completamente parado em torno da catedral de St. Paul, com as carruagens, ônibus puxados por cavalos, carroças, fiacres de aluguel e carrocinhas de verdureiros disputando espaço com um enorme rebanho de ovelhas sendo conduzido para o mercado de carne de Smithfield.

O Pilasters Bank era um prédio novo e imenso, com uma fachada comprida e clássica, uma entrada imponente, flanqueada por maciças colunas acaneladas. Passavam alguns minutos de meio-dia quando Micky entrou ali. Embora Edward raramente começasse a trabalhar antes de dez horas, quase sempre se podia persuadi-lo a sair para o almoço

em qualquer momento depois do meio-dia. Micky aproximou-se de um dos mensageiros.

- Por gentileza, avise a Mr. Edward Pilaster que Mr. Miranda deseja lhe falar.

- Pois não, senhor.

Ali, mais do que em qualquer outro lugar, Micky invejava os Pilasters. Sua riqueza e poder eram proclamados em cada detalhe: no chão de mármore polido, nos ricos painéis de madeira nas paredes, nas vozes abafadas, no arranhar das penas em livros-caixa, e também, talvez acima de tudo, nos mensageiros bem-alimentados e bem-vestidos.

Todo aquele espaço e todas aquelas pessoas eram basicamente usados para contar o dinheiro da família Pilaster. Ninguém criava gado, colhia nitrato ou construía ferrovias: o trabalho era realizado por outros, muito longe dali. Os Pilasters apenas contemplavam o dinheiro se multiplicar. Para Micky, parecia a melhor maneira possível de se viver, agora que a escravidão fora abolida.

Havia também algo falso naquele ambiente. Era solene e distinto como uma igreja, um salão presidencial ou um museu. Eles eram agiotas, mas se comportavam como se cobrar juros fosse um nobre ofício, igual ao sacerdócio.

Depois de alguns minutos, Edward apareceu... com o nariz machucado e um olho preto. Micky alteou as sobrancelhas.

- Meu caro amigo, o que aconteceu?

- Tive uma briga com Hugh.

- Qual foi o motivo?

- Eu o repreendi por levar uma prostituta para casa e ele perdeu a cabeça.

Ocorreu a Micky que isso podia proporcionar a Augusta a oportunidade que ela vinha procurando para se livrar de Hugh.

- O que aconteceu a Hugh?

- Você não tornará a vê-lo por um longo tempo. Ele foi mandado para Boston.

bom trabalho, Augusta, pensou Micky. Seria ótimo se pudessem liquidar Hugh e Tonio no mesmo dia.

- Você me dá a impressão de que pode se beneficiar de uma garrafa de champanhe e um bom almoço, Edward.

- Uma esplêndida idéia!

Deixaram o banco e seguiram para o oeste. Não havia sentido em pegar um fiacre, pois as ruas estavam bloqueadas pelas ovelhas, e todos os veículos se encontravam parados. Passaram pelo mercado de carne, que era o destino das ovelhas. O mau cheiro dos matadouros era insuportavelmente repulsivo. As ovelhas eram jogadas da rua por um alçapão para o abatedouro subterrâneo. A queda era suficiente para quebrar suas pernas, o que as deixava imóveis até que o carniceiro se aproximava para cortar suas gargantas.

- É o suficente para se deixar de comer carne de carneiro pelo resto da vida - comentou Edward, enquanto cobriam o rosto com o lenço.

Micky pensou que seria preciso muito mais do que aquilo para afastar Edward de seu almoço.

Assim que deixaram a City, pegaram um fiacre e mandaram o cocheiro levá-los a Pall Mall. Ao partirem, Micky iniciou seu discurso preparado.

- Detesto pessoas que espalham notícias sobre o mau comportamento de outras.

- Eu também - murmurou Edward, vagamente.

- Mas quando afeta os amigos, a pessoa sente-se obrigada a dizer alguma coisa.

- Hum, hum...

Era evidente que Edward não tinha a menor idéia do que Micky queria dizer.

- E eu detestaria que você pensasse que me mantive calado só porque ele é meu conterrâneo.

Houve um momento de silêncio e depois Edward disse:

- Não tenho certeza de estar entendendo.

- Eu me refiro a Tonio Silva.

- Ah, sim. Suponho que ele não tenha condições de pagar o que me deve.

- Bobagem. Conheço a família dele. É quase tão rica quanto a sua. Micky não tinha o menor receio de mentir de uma forma tão afrontosa:

as pessoas em Londres não faziam a menor idéia da possível riqueza das famílias sul-americanas. Edward ficou surpreso.

- Santo Deus! Eu pensava justamente o contrário.

- Ele pode pagar com a maior facilidade. O que torna a situação ainda pior.

- Como assim?

Micky deixou escapar um profundo suspiro.

- Receio que ele não tenha a menor intenção de lhe pagar. E tem se gabado por aí, dizendo que você não é bastante homem para obrigá-lo a isso.

O rosto de Edward se tornou todo vermelho.

- Essa não! Não sou bastante homem? É o que veremos!

- Avisei a ele para não subestimar você. Disse que talvez você não suportasse que o fizessem de tolo. Mas ele preferiu ignorar meu conselho.

- Mas que canalha! bom, se ele não quer escutar um conselho sensato, talvez tenha de descobrir a verdade pelo caminho mais árduo.

- É uma vergonha.

Edward permaneceu em silêncio, fervilhando de raiva.

Micky se remexia, impaciente, enquanto o fiacre se arrastava pela Strand. Tonio já deveria ter chegado ao clube àquela altura. Edward se encontrava no ânimo certo para uma briga. Tudo corria bem.

O fiacre finalmente parou na frente do clube. Micky esperou, enquanto Edward pagava o cocheiro. Entraram. No vestiário, em meio a muitas pessoas pendurando o chapéu, encontraram Tonio.

Micky ficou tenso. Cuidara de tudo: agora, só lhe restava cruzar os dedos e torcer para que o drama que se projetara se desenrolasse conforme o planejado.

Tonio avistou Edward, mostrou-se constrangido e murmurou:

- bom dia para vocês dois.

Micky olhou para Edward. Seu rosto se tornara rosado, os olhos esbugalhados, e ele disse:

- Quero falar com você, Silva. Tonio fitou-o, amedrontado.

- O que é, Pilaster? Edward disse bem alto:

- Sobre aquelas cem libras.

Houve um súbito silêncio. Várias pessoas olharam, e dois homens, já de saída, pararam e se viraram. Era um comportamento reprovável falar de dinheiro, e um cavalheiro só fazia isso em circunstâncias extremas. Todos sabiam que Edward Pilaster tinha tanto dinheiro que não sabia o que fazer com ele, e assim era óbvio que havia algum outro motivo para mencionar a dívida de Tonio em público. Os espectadores pressentiram um escândalo. Tonio empalideceu.

- O que tem?

Edward declarou, impiedoso:

- Pode me pagar hoje, se isso lhe for conveniente.

Um desafio fora lançado. Muitas pessoas sabiam que a dívida era real, e por isso não havia sentido em contestá-la. Como um cavalheiro, Tonio só tinha uma opção.

Devia dizer: Claro. Se é tão importante para você, terá o seu dinheiro imediatamente. Vamos subir, e farei um cheque... ou prefere ir até o meu banco? Se ele não fizesse isso, todos saberiam que não podia pagar e cairia no ostracismo.

Micky observava com um fascínio mórbido. A princípio, uma expressão de pânico estampou-se no rosto de Tonio, e por um momento Micky chegou a temer que ele cometesse alguma loucura. Depois, o medo cedeu lugar à raiva, e ele abriu a boca para protestar, mas as palavras não saíram. Em vez disso, Tonio abriu os braços num gesto suplicante, mas logo abandonou também esse curso. Ao final, ficou com o rosto murcho como o de uma criança prestes a chorar. Foi nesse instante que se virou e saiu correndo. Os dois homens na porta recuaram para lhe dar passagem; ele disparou pelo saguão e foi para a rua sem o chapéu.

Micky exultou: tudo transcorrera com absoluta perfeição.

Todos os homens no vestiário tossiram e se agitaram, tentando disfarçar o embaraço. Um sócio mais velho comentou:

- Foi um pouco duro, Pilaster. Micky interveio apressado:

- Ele mereceu.

- Não há dúvida, não há dúvida - murmurou o homem mais velho.

- Preciso de um drinque - disse Edward. Ao que Micky propôs:

- Pode pedir um conhaque para mim? É melhor ir atrás de Silva, para evitar que ele se jogue sob as rodas de um ônibus.

Ele saiu apressado. Era a parte mais sutil de seu plano: agora tinha de convencer o homem que arruinara de que era seu melhor amigo.

Tonio seguia em passos rápidos na direção de St. James"s, sem olhar para onde ia, esbarrando nas pessoas. Micky correu e alcançou-o.

- Lamento profundamente, Silva. Tonio parou. Havia lágrimas em seu rosto.

- Estou liquidado. Acabou tudo.

- Pilaster recusou meu pedido. Fiz o que pude...

- Sei disso. Obrigado.

- Não me agradeça. Fracassei.

- Mas você tentou. Gostaria que houvesse algo que eu pudesse fazer para demonstrar meu agradecimento.

Micky hesitou, pensando: Devo me atrever a pedir seu emprego agora? Ele decidiu ser ousado.

- Para ser franco, há uma coisa... mas é melhor conversarmos a respeito em outra ocasião.

- Não. Fale-me agora.

- Eu me sentiria mal. Vamos deixar para outro dia.

- Não sei quantos dias mais continuarei aqui. O que é?

- bom... - Micky simulou embaraço. - Imagino que o embaixador cordovês terá de procurar alguém para substituí-lo.

- Ele precisará de alguém imediatamente. - A compreensão surgiu no rosto molhado de lágrimas de Tonio. - Mas é claro... você deve ficar com o cargo! Seria perfeito!

- Se pudesse interferir em meu favor...

- Farei mais do que isso. Direi a ele que você me prestou uma grande ajuda, tentou me livrar da confusão em que me meti. Tenho certeza de que ele vai querer noméa-lo.

- Eu gostaria de não tirar proveito de seus problemas - disse Micky. - Sinto que estou me comportando como um rato.

- De jeito nenhum! - Tonio pegou a mão de Micky entre as suas.- Você é um amigo de verdade.

 

Setembro

Dorothy, a irmã de seis anos de Hugh, dobrava suas camisas e guardava no baú. Ele sabia que assim que a irmã fosse para a cama teria de tirar tudo e arrumar de novo, porque ela não sabia dobrar direito; mas fingiu que Dorothy fazia um bom trabalho e elogiou-a.

- Fale de novo sobre a América - pediu ela.

- A América é tão longe que pela manhã o sol leva quatro horas para chegar lá.

- Eles passam a manhã inteira na cama?

- Isso mesmo... depois se levantam na hora do almoço e comem o desjejum!

Ela riu.

- Eles são preguiçosos.

- Não é bem assim. Como não escurece antes da meia-noite, eles têm de trabalhar a noite inteira.

- Eles vão para a cama tarde! Gosto de ir tarde para a cama. Acho que eu gostaria da América. Por que não podemos ir com você?

- Eu bem que gostaria que pudessem, Dotty.

Hugh sentia-se bastante ansioso: passaria anos sem ver a irmã caçula. Ela já teria mudado quando voltasse. Compreenderia os fusos horários.

A chuva de setembro tamborilava nas janelas e na baía o vento fustigava as ondas, mas onde estava havia um fogo de carvão e um tapete diante da lareira. Hugh guardou um punhado de livros: Modernos métodos de negócios, O escrituraria comercial de sucesso, A riqueza das nações, Robinson Crusoe. Os funcionários mais velhos do Pilasters Bank desdenhavam o que chamavam de "aprendizado de livro", e gostavam de dizer que a experiência era a melhor mestra - mas estavam enganados. Hugh fora capaz de compreender

o funcionamento dos diversos departamentos muito mais depressa porque estudara a teoria antes.

Partia para a América num momento de crise. No início da década de 1870, vários bancos haviam efetuado vultosos empréstimos com a garantia de ações especulativas de ferrovias. Em meados de 1873, quando a construção de ferrovias começou a enfrentar dificuldades, os bancos ficaram numa situação difícil. Poucos dias antes, o Jay Cooke & Co., agente do governo americano, havia quebrado, arrastando na queda o First National Bank de Washington; e a notícia chegara a Londres no mesmo dia através do cabo de telégrafo transatlântico. Agora, cinco bancos de Nova York haviam suspendido suas operações, inclusive o Union Trust company - um banco grande - e o antigo Mechanics" Banking Association. A Bolsa de Valores fechara suas portas. Negócios seriam frustrados, milhares de pessoas ficariam desempregadas, o comércio sofreria e as operações americanas do Pilasters se tornariam menores e mais cautelosas... e assim seria mais difícil para Hugh demonstrar sua capacidade.

Até agora, a crise causara pouco impacto em Londres. A taxa bancária subira um ponto, para quatro por cento, e um pequeno banco de Londres com grandes ligações americanas fechara as portas, mas não havia pânico. Mesmo assim, o velho Seth insistia que haveria problemas muito em breve. Ele estava bastante fraco agora. Mudara-se para a casa de Augusta e passava a maioria dos dias na cama. Mas se recusava obstinado a renunciar enquanto não conduzisse o Pilasters através da tempestade.

Hugh começou a dobrar suas roupas. O banco pagara dois ternos novos: desconfiava que a mãe persuadira seu tio-avô a autorizar isso. O velho Seth era tão sovina quanto o resto dos Pilasters, mas tinha uma fraqueza pela mãe de Hugh: na verdade, fora a pequena mesada que Seth dava a ela que permitira sua sobrevivência durante todos

aqueles anos.

A mãe também insistira que Hugh recebesse algumas semanas de licença antes de viajar, a fim de que tivesse mais tempo para se aprontar e se despedir. Quase não o via desde que ele fora trabalhar no banco - Hugh não tinha condições de arcar com a despesa da viagem de trem até Folkestone com muita freqüência - e queria passar algum tempo em sua companhia antes que deixasse o país. Passaram a maior parte do mês de agosto ali, à beira-mar, enquanto Augusta e sua família iam para a Escócia em férias. Agora, as férias haviam acabado. Chegara o momento de partir, e Hugh tinha de se despedir da mãe.

Enquanto pensava a respeito, a mãe entrou no quarto. Já estava no oitavo ano de viuvez, mas ainda se vestida de preto. Parecia que não queria casar de novo, embora pudesse fazê-lo com a maior facilidade - ainda era bonita, com serenos olhos azuis e abundantes cabelos louros.

Hugh sabia que ela se sentia triste porque não o veria durante anos. Mas a mãe não falara de sua tristeza: em vez disso, partilhara o excitamento e apreensão do filho pelo desafio de um novo país.

- Está quase na hora de deitar, Dorothy - disse ela. - Vá vestir sua camisola.

Assim que Dotty saiu do quarto, a mãe começou a dobrar direito as camisas de Hugh. Ele queria conversar a respeito de Maisie, mas sentia-se inibido. Sabia que Augusta escrevera para ela. A mãe podia também ter sabido por intermédio de outras pessoas da família, ou até ter se encontrado com alguém numa de suas raras viagens de compras a Londres. E a história que ela ouvira talvez fosse muito distante da verdade. Depois de um momento ele murmurou:

- Mãe...

- O que é, querido?

- Tia Augusta nem sempre diz a verdade.

- Não precisa ser tão polido - respondeu a mãe com um sorriso amargurado. - Há anos que Augusta vem espalhando mentiras sobre seu pai.

Hugh ficou surpreso com a franqueza.

- Acha que foi ela quem contou aos pais de Florence Stalworthy que ele era um jogador?

- Tenho certeza, infelizmente.

- Por que ela é assim?

A mãe largou a camisa que estava dobrando e pensou por um momento.

- Augusta foi uma garota muito bonita. Sua família ia ao culto na Igreja Metodista de Kensington, e foi lá que a conhecemos. Ela era filha única, mimada e voluntariosa.

Os pais nada tinham de especial: ele era atendente de loja, abriu seu próprio negócio e acabou com três pequenas mercearias nos subúrbios a oeste de Londres. Mas era evidente que Augusta estava destinada a coisas maiores.

Ela foi até a janela molhada pela chuva e olhou para fora, contemplando não o canal da Mancha sob a tempestade, mas o passado.

- Quando tinha 17 anos, o conde de Strang apaixonou-se por ela. Era um rapaz adorável... bonito, gentil, bem-nascido, rico. É claro que seus pais ficaram horrorizados com a perspectiva do casamento com a fi lha de um merceeiro.

Mas Augusta era linda, e já naquele tempo, embora ainda jovem, exibia um ar distinto que lhe permitia enfrentar a maioria das situações sociais.

- Eles ficaram noivos?

- Não formalmente. Mas todos presumiam que era uma conclusão inevitável. E foi então que estourou um terrível escândalo. Acusaram o pai de Augusta de sistematicamente vender um peso menor em suas lojas. Um empregado despedido denunciou-o à Junta de Comércio. Disseram que ele ludibriava até a igreja, que comprava seu chá para os grupos de estudo da Bíblia nas noites de terça-feira, e assim por diante. Havia uma possibilidade de que ele fosse para a prisão. Ele negou tudo com veemência, e no final não deu em nada. Mas Strang largou Augusta.

- Ela deve ter ficado desolada.

- Não, não desolada... mas transbordando de raiva. Durante toda a vida sempre impusera sua vontade. Agora, queria Strang mais do que jamais desejara qualquer outra coisa... e não podia tê-lo.

- E ela acabou casando com Tio Joseph de tabela, como costumam dizer.

- Eu diria que casou com ele num acesso de raiva. Joseph era mais velho sete anos, o que é muito quando se tem 17, e não era muito mais bonito do que agora; mas era muito rico, ainda mais rico do que Strang. Para dar crédito a Augusta, ela tem feito tudo o que pode para ser uma boa esposa. Mas ele nunca será Strang, e Augusta ainda se sente furiosa por isso.

- O que aconteceu com Strang?

- Casou com uma condessa francesa e morreu num acidente de caça.

- Quase sinto pena de Augusta.

- Não importa o que tenha, ela sempre quer mais: mais dinheiro, um cargo mais importante para o marido, uma posição social mais elevada para si mesma. O motivo para ser tão ambiciosa... por si, por Joseph e por Edward... é que ainda anseia pelo que Strang poderia ter lhe proporcionado: um título, o lar ancestral, a vida de lazer interminável, riqueza sem trabalho. Mas, na verdade, não era isso o que Strang lhe oferecia. Ele oferecia amor. E foi isso o que Augusta realmente perdeu. E nada jamais compensará essa perda.

Hugh nunca tivera uma conversa tão íntima com a mãe. Sentiu-se encorajado a abrir seu coração.

- Mãe... sobre Maisie...

Ela fitou-o com perplexidade.

- Maisie?

- A moça... a causa de todo o problema. Maisie Robinson. O rosto da mãe se desanuviou.

- Augusta não me disse seu nome. Hugh hesitou, mas acabou falando:

- Ela não é uma mulher "desafortunada".

A mãe mostrou-se embaraçada: os homens nunca mencionavam coisas como a prostituição para suas mães.

- Entendo - murmurou ela, desviando os olhos. Hugh continuou:

- Ela é da classe inferior, sem dúvida. E judia. - Ele olhou para o rosto da mãe e constatou que ela estava aturdida, mas não horrorizada. - Mas não é nada pior do que isso. Para dizer a verdade...

Ele hesitou. A mãe tornou a fitá-lo.

- Continue.

- Ela era virgem. A mãe corou.

- Lamento falar dessas coisas, mãe, mas se eu não o fizer você só conhecerá a versão da história de Tia Augusta.

A mãe engoliu em seco.

- Você gostava dela, Hugh?

- Gostava. - Ele sentiu as lágrimas aflorarem aos olhos. - Não entendo por que ela desapareceu. Não tenho a menor idéia do lugar para onde foi. Nunca soube seu endereço.

Perguntei na estrebaria para a qual ela trabalhava, e no Argyll Rooms, onde a conheci. Solly Greenbourne também gostava dela, e ficou tão aturdido quanto eu. Tonio Silva conhecia sua amiga April, mas ele voltou para a América do Sul e não consegui encontrar April.

- Que coisa misteriosa!

- Tenho certeza de que Tia Augusta arranjou isso de algum modo.

- E eu não tenho a menor dúvida a respeito. Não posso imaginar como, mas sei que ela é terrivelmente insidiosa. Mas você deve agora pensar em seu futuro, Hugh. Boston será uma grande oportunidade. Deve trabalhar com afinco e dedicação.

- Ela é realmente uma moça extraordinária, mãe. A mãe não acreditava nisso, Hugh percebeu.

- Mas você vai esquecê-la.

- Acho que não.

A mãe beijou-o na testa.

- Vai, sim. Eu prometo.

Havia apenas uma gravura na parede do quarto de sótão que Maisie partilhava com April. Era um cartaz de circo colorido, mostrando Maisie num traje justo, de pé

no lombo de um cavalo que galopava. Por baixo, em letras vermelhas, estava escrito A maravilhosa maisie. Não era um cartaz que correspondesse à verdade absoluta, pois o circo nunca tivera nenhum cavalo branco, e as pernas de Maisie não eram tão compridas. Ainda assim, ela gostava do cartaz. Era o seu único souvenir daqueles tempos.

Afora isso, o quarto continha uma cama estreita, um lavatório, uma cadeira e um banco de três pernas. As roupas das duas eram penduradas em pregos nas paredes. A sujeira na janela servia como cortina. Elas bem que tentavam manter o quarto limpo, mas era impossível. A fuligem caía da chaminé, os camundongos subiam pelas frestas no assoalho e a poeira e insetos entravam pelas aberturas entre o caixote da janela e os tijolos ao redor. Hoje estava chovendo, e a água pingava do peitoril da janela e de uma rachadura no teto.

Maisie se vestia. Era o Rosh Hashanah, quando o Livro da Vida era aberto, e nessa época do ano sempre se perguntava o que estaria escrito para ela. Nunca chegava a orar, mas quase acalentava a esperança, de uma maneira um tanto solene, de que havia algo bom em sua página do Livro.

April fora fazer um chá na cozinha comunitária e voltou alvoroçada para o quarto com um jornal na mão.

- É você, Maisie, é você!

- Como?

- No Lloyd"s Weekly News. Escute só: "Miss Maisie Robinson, nome de nascimento Miriam Rabinowicz. Se Miss Robinson entrar em contato com Messrs. Goldman e Jay, advogados, na Gray"s Inn, vai saber de uma coisa em seu proveito". Só pode ser você!

O coração de Maisie disparou, mas ela assumiu uma expressão firme, e a voz soou fria:

- É Hugh. Não irei. April parecia desapontada.

- Você pode ter herdado dinheiro de algum parente há muito perdido.

- Pode ser até a rainha da Mongólia, mas não irei até a Gray"s Inn por uma possibilidade remota.

Ela conseguia parecer irreverente, mas sentia um aperto no coração. Pensava em Hugh todos os dias e todas as noites, e sofria muito. Mal o conhecia, contudo era impossível esquecê-lo.

Mesmo assim, estava determinada a tentar. Sabia que ele a procurara. Estivera no Argyll Rooms todas as noites, pressionara Sammle, o dono da estrebaria, e perguntara por ela na metade das pensões baratas de Londres. Depois, as indagações cessaram, e Maisie presumira que ele desistira. Agora, tudo indicava que Hugh apenas mudara de tática e tentava alcançá-la através de anúncios de jornal. Era muito difícil continuar a evitálo quando ele a procurava com tanta persistência, e Maisie sentia-se muito ansiosa em revê-lo. Mas ela tomara sua decisão. Amava-o demais para querer arruiná-lo Enfiou os braços no espartilho e pediu a April:

- Ajude-me com as barbatanas. April começou a puxar os laços.

- Nunca tive meu nome no jornal - comentou ela, invejosa. - E você já teve duas vezes agora, se contar A Leoa como nome.

- E de que isso me adiantou? Por Deus, como estou engordando! April prendeu os laços e ajudou-a a pôr o vestido. Iam sair naquela noite. April tinha um novo amante, um editor de revista de meia-idade, com esposa e seis filhos em Clapham. Ele e um amigo levariam April e Maisie a um music-hall.

Até lá, elas passeariam pela Bond Street, olhando as vitrinas das lojas elegantes. Não comprariam nada. A fim de se esconder de Hugh, Maisie fora obrigada a parar de trabalhar para Sammle - para grande pesar deste, que por intermédio dela conseguira vender cinco cavalos e um pônei com charrete - e o dinheiro que economizara estava quase acabando. Mas tinham de sair, apesar do tempo; era deprimente demais permanecer no quarto.

O vestido de Maisie estava apertado nos seios, e ela estremeceu quando April o levantou. April lançou-lhe um olhar estranho.

- Seus mamilos estão doloridos?

- Estão, sim... por que será?

- Maisie, quando teve o último incômodo? - indagou April, em tom preocupado.

- Nunca me lembro de contar. - Maisie pensou por um momento e um calafrio percorreu-lhe o corpo. - Oh, Deus!

- Quando?

- Acho que foi antes de irmos às corridas em Goodwood. Acha que estou grávida?

- Sua cintura ficou maior, os mamilos doem e não tem o incômodo há dois meses... é isso mesmo, você está grávida - declarou April, exasperada. - Não posso acreditar que tenha sido tão estúpida. Quem foi?

- Hugh, é claro. Mas só fizemos uma vez. Como se pode engravidar de uma única foda?

- Você sempre engravida de uma única foda.

- Oh, Deus! - Maisie tinha a sensação de que fora atropelada por um trem. Chocada, aturdida e assustada, sentou na cama e começou a chorar. - O que Vou fazer?

- Podemos ir ao escritório daqueles advogados, para começar.

Subitamente, tudo era diferente.

A princípio, Maisie sentiu-se apavorada e furiosa. Depois, compreendeu que se achava obrigada agora a entrar em contato com Hugh, pelo bem da criança em seu ventre.

E quando admitiu isso para si mesma ficou mais contente do que assustada. Ansiava em revê-lo. Convencera-se de que isso seria um erro. Mas o bebê tornava tudo diferente.

Agora, era seu dever entrar em contato com Hugh, e a perspectiva deixou-a tonta de alívio.

Mesmo assim, sentia-se nervosa quando ela e April subiram a escada íngreme para o escritório dos advogados, na Gray"s Inn. O anúncio podia não ter sido posto por Hugh. Não seria surpresa se ele tivesse desistido de procurá-la. Ela se mostrara tão esquiva quanto uma moça podia ser, e nenhum homem se mantém apaixonado para sempre. O anúncio podia ter alguma relação com seus pais, se ainda estivessem vivos. Talvez as coisas tivessem começado a melhorar para eles, finalmente, e dispusessem de dinheiro para procurá-la. Maisie não sabia direito como se sentia em relação a isso. Houvera muitas ocasiões em que ansiara ver Mama e Papa de novo, mas tinha medo de que se envergonhassem de sua vida.

Chegaram ao topo da escada e entraram na sala externa. O empregado dos advogados era um jovem usando um colete cor de mostarda, com um sorriso condescendente. As moças estavam molhadas e enlameadas, mas ainda assim ele se dispôs a flertar.

- Minhas caras damas! Como duas deusas podem precisar dos serviços de Messrs. Goldman e Jay? O que posso fazer para ajudá-las?

April se mostrou à altura da ocasião e respondeu:

- Pode tirar esse colete, que está machucando meus olhos.

Maisie não tinha paciência para galanteios hoje.

- Meu nome é Maisie Robinson.

- Ah, sim! O anúncio! Por um feliz acaso, o cavalheiro em questão se encontra com o sr. Jay neste momento.

Maisie sentiu-se trêmula de apreensão.

- Diga-me uma coisa - murmurou ela, hesitante. - O cavalheiro em questão... é por acaso Mr. Hugh Pilaster?

Sua expressão era suplicante. Ele não a percebeu e disse em tom efusivo:

- Santo Deus, claro que não!

As esperanças de Maisie sofreram outro colapso. Sentou num banco duro de madeira, ao lado da porta, fazendo um esforço para conter as lágrimas, balbuciando:

- Não é ele.

- Não, não é. Para ser franco, conheço Hugh Pilaster... estudamos juntos em Folkestone. Ele foi para a América.

Maisie inclinou-se para trás, como se tivesse sido golpeada.

- América?

- Boston, Massachusetts. O navio partiu há umas duas semanas. Conhecia Hugh?

Maisie ignorou a pergunta. Seu coração parecia uma pedra, pesado e frio. Hugh fora para a América. E ela tinha uma criança sua no ventre. Sentia-se horrorizada demais para chorar. April indagou, agressiva:

- Quem é então?

O escriturário começou a perceber que fora além de suas atribuições. Perdeu o ar de superioridade e respondeu, bastante nervoso:

- É melhor eu deixar que ele mesmo se apresente. com licença. Ele desapareceu por uma porta interna. Maisie ficou olhando para as caixas de papéis empilhadas contra a parede, lendo os títulos inscritos nas laterais: Espólio Blenkinsop, Regina versus Wiltshire Flour Millers, Great Southern Railway,

Mrs. Stanley Evans (falecida). Tudo o que acontecia naquele escritório era uma tragédia para alguém, refletiu ela: morte, bancarrota, divórcio, um processo penal.

Quando a porta foi aberta de novo, um homem diferente apareceu, um homem de aparência impressionante. Não muito mais velho do que Maisie, tinha o rosto de um profeta bíblico, os olhos escuros destacando-se por baixo de sobrancelhas pretas, um nariz grande com narinas enormes e uma barba cerrada. Parecia familiar, e depois de um momento ela compreendeu que lembrava um pouco seu pai, embora Papa nunca parecesse tão aterrador.

- Maisie? - disse ele. - Maisie Robinson?

Suas roupas eram um pouco esquisitas, como se tivessem sido compradas em outro país, e o sotaque era americano.

- Isso mesmo. Sou Maisie Robinson. Quem é você?

- Não me reconhece?

E de repente ela se lembrou de um menino magro, esfarrapado e descalço, com a primeira insinuação de um bigode no lábio e uma expressão determinada nos olhos.

- Oh, Deus! Danny! - Por um momento ela esqueceu seus problemas e correu para os braços do irmão. - É mesmo você, Danny?

Ele abraçou-a com tanta força que até doeu.

- Claro que sou eu. April interveio:

- Quem é ele?

- Meu irmão! - exclamou Maisie. - O que fugiu para a América! Ele voltou!

Danny rompeu o abraço para contemplá-la.

- Como conseguiu ficar tão bonita? Era uma pirralha esquelética! Ela tocou em sua barba.

- Eu poderia tê-lo reconhecido se não fosse por todo esse pêlo. Houve uma tosse discreta atrás de Danny, e Maisie virou o rosto para deparar com um homem idoso, parado na porta, olhando a cena com algum desdém.

- Ao que parece, fomos bem-sucedidos - comentou ele. Danny disse:

- Mr. Jay, permita que lhe apresente minha irmã, Miss Robinson.

- Seu criado, Miss Robinson. Se posso fazer uma sugestão...

- Por que não? - disse Danny.

- Há um café na Theobalds Road, a poucos metros daqui. Vocês devem ter muito o que conversar.

Era óbvio que ele queria tirá-los do escritório, mas Danny não parecia se importar com os desejos de Mr. Jay. Independentemente de qualquer coisa que pudesse ter lhe acontecido, não aprendera a ser defcrente.

- O que acham, meninas? Gostariam de conversar aqui ou preferem sair para tomar um café?

- Vamos sair - disse Maisie. Mr. Jay acrescentou:

- E talvez possa voltar mais tarde para acertar suas contas, Mr. Robinson.

- Não esquecerei. Vamos, meninas.

Deixaram o escritório e desceram a escada. Maisie fervilhava de perguntas, mas controlou a curiosidade com algum esforço, enquanto seguiam até o café e sentavam a uma mesa. Só então indagou:

- O que andou fazendo nos últimos sete anos?

- Construindo ferrovias. Por acaso cheguei na América numa boa ocasião. A Guerra Civil terminara pouco antes, e a febre da construção de ferrovias começava. Precisavam tanto de trabalhadores que os traziam da Europa. Até mesmo um garoto magrela de 14 anos podia conseguir um emprego. Trabalhei na primeira ponte de aço já construída,

sobre o Mississippi, em St. Louis. Depois, arrumei um emprego na construção da Union Pacific Railroad, em Utah. Era capataz aos 19 anos... é um trabalho para jovens.

Entrei para o sindicato e liderei uma greve.

- Por que você voltou?

- Houve um craque no mercado de ações. As ferrovias ficaram sem dinheiro e os bancos que as financiavam quebraram. Há milhares de homens, centenas de milhares, procurando por trabalho. Decidi voltar para casa e começar uma vida nova.

- O que pretende fazer... construir ferrovias aqui? Danny balançou a cabeça.

- Tenho uma idéia nova. A mesma coisa me aconteceu duas vezes, minha vida foi abalada por uma crise financeira. Os homens que dirigem os bancos são as pessoas mais estúpidas do mundo. Nunca aprendem, e por isso cometem os mesmos erros muitas vezes. E são os trabalhadores que sofrem. Ninguém os ajuda... ninguém jamais os ajudará.

Eles devem ajudar uns aos outros.

April interveio:

- As pessoas nunca ajudam umas às outras. É cada um por si neste mundo. Você tem de ser egoísta.

April dizia isso com freqüência, recordou Maisie, embora na prática fosse uma pessoa generosa, capaz de fazer qualquer coisa por uma amiga.

- Vou começar uma espécie de clube para os trabalhadores - explicou Danny. - Eles pagarão seis pence por semana, e se forem despedidos, caso a culpa não seja sua, o clube lhes pagará uma libra por semana enquanto procuram um novo emprego.

Maisie fitou o irmão com uma profunda admiração. O plano era tremendamente ambicioso... mas ela pensara o mesmo quando aos 14 anos de idade ele dissera: Há um navio no porto que vai partir para Boston pela manhã... subirei por uma corda esta noite e me esconderei num dos escaleres. Danny fizera o que dissera naquela ocasião, e era provável que também fizesse agora. Dissera que liderara uma greve. Parecia ter se transformado no tipo de pessoa que outros homens seguiam.

- Tem notícias de Papa e Mama? - indagou ele. - Manteve contato com eles?

Maisie balançou a cabeça e depois, surpreendendo a si mesma, desatou a chorar. Sentia de repente a dor de perder a família, uma angústia que se recusara a reconhecer durante todos aqueles anos. Danny pôs a mão em seu ombro.

- Voltarei ao norte e tentarei encontrá-los.

- Torço para que os encontre. Sinto muita saudade. - Ela olhou para April, que a fitava espantada. - Mas receio que se envergonharão de mim.

- Por que deveriam?

- Estou grávida.

O rosto de Danny ficou vermelho.

- E não é casada?

- Não.

- Vai casar?

- Não. Dânny explodiu:

- Quem é o miserável? Maisie alteou a voz:

- Poupe-me do seu ato de irmão indignado, está bem?

- Eu gostaria de torcer o pescoço dele...

- Cale-se, Danny! - gritou Maisie, furiosa. - Deixou-me sozinha há sete anos e não pode voltar e se comportar como se fosse meu dono.

Ele se mostrou consternado e Maisie acrescentou num tom mais gentil:

- Não importa mais. Ele teria casado comigo, eu acho, mas fui eu quem não quis. Portanto, pode esquecê-lo. Além do mais, ele foi para a América.

Danny se acalmou.

- Se não fosse seu irmão, eu mesmo casaria com você. Está muito bonita. Seja como for, pode ficar com o pouco dinheiro que me restou.

- Não o quero. - Ela compreendeu que parecia ingrata, mas não podia evitar. - Não precisa cuidar de mim, Danny. Invista o dinheiro no seu clube de trabalhadores.

Cuidarei de mim mesma. Consegui isso quando tinha 11 anos, acho que também posso conseguir agora.

Micky Miranda e Papa estavam num restaurante no Soho, almoçando um ensopado de ostras - o prato mais barato no cardápio - com cerveja forte. A casa ficava a poucos minutos da embaixada cordovesa, em Portland Place, onde Micky agora trabalhava sentado a uma escrivaninha todas as manhãs, por uma ou duas horas, cuidando da correspondência do embaixador. Já concluíra seu serviço por aquele dia e se encontrara com Papa para almoçar. Sentaram de frente um para o outro, em bancos de madeira de encosto alto. Havia serragem no chão, e anos de gordura no teto baixo. Micky detestava comer em lugares assim, mas o fazia com freqüência para poupar dinheiro. Só comia no Cowes Club quando Edward pagava. Além do mais, levar Papa ao clube era uma constante tensão: Micky sentia um medo permanente de que o velho provocasse uma briga, sacasse uma arma ou cuspisse no tapete. Papa enxugou a tigela com um pedaço de pão e empurrou-a para o lado.

- Devo lhe explicar uma coisa - disse ele. - Micky largou sua colher.

- Preciso dos rifles para lutar contra a família Delabarca. Depois que a destruir, assumirei o controle das minas de nitrato. As minas tornarão nossa família muito rica.

Micky acenou com a cabeça, sem dizer nada. Já ouvira tudo isso antes, mas não ousava dizê-lo.

- As minas de nitrato são apenas o começo, o primeiro passo - continuou Papa. - Quando tivermos mais dinheiro, compraremos mais rifles. E diferentes pessoas da família se tornarão importantes na província.

Micky aguçou os ouvidos. Aquela era uma linha nova.

- Seu primo Jorge será um coronel no Exército. Seu irmão Paulo vai ser o chefe de polícia da província de Santamaria.

E assim poderá ser um algoz profissional em vez de amador, pensou Micky. Papa acrescentou:

- E eu serei o governador da província.

Governador! Micky não imaginara que as aspirações de Papa eram tão altas. Mas o velho ainda não acabara.

- Assim que controlarmos a província, vamos olhar pela nação. Seremos fervorosos partidários do presidente Garcia. Você será o embaixador dele em Londres. Seu irmão talvez seja o ministro da Justiça. Seus tios serão generais. Seu meio-irmão Dominic, o padre, será o arcebispo de Palma.

Micky estava atônito: nunca soubera que tinha um meio-irmão. Mas não disse nada, pois não queria interromper.

- E depois, quando chegar o momento oportuno, vamos expulsar a família Garcia e tomaremos seu lugar.

- Está querendo dizer que assumiremos o governo? - indagou Micky, os olhos arregalados, aturdido com a audácia e confiança de Papa.

- Isso mesmo. Em 20 anos, meu filho, ou eu serei o presidente de Córdoba... ou você.

Micky tentou absorver o plano. Córdoba tinha uma Constituição que determinava eleições democráticas, mas nenhuma jamais fora realizada. O presidente Garcia assumira o poder através de um golpe há dez anos; antes, fora o comandante-em-chefe das Forças Armadas, sob o presidente Lopez, que liderara a rebelião contra o domínio espanhol em que Papa e seus vaqueiros haviam lutado.

Papa surpreendeu Micky pela sutileza de sua estratégia: tornar-se um fervoroso partidário do atual governante e depois traí-lo. Mas qual era o papel de Micky? Deveria se tornar o embaixador cordovês em Londres. Já dera o primeiro passo, afastando Tonio Silva e obtendo seu lugar. Teria de encontrar um meio de fazer o mesmo com o embaixador.

E depois? Se seu pai fosse presidente, Micky poderia ser o ministro do Exterior, viajar pelo mundo como representante de seu país. Mas Papa dissera que o próprio

Micky poderia se tornar o presidente... não Paulo, nem Tio Rico, mas Micky. Seria mesmo possível?

Por que não? Micky era inteligente, implacável, bem-relacionado: de que mais precisava? A perspectiva de dominar um país inteiro era inebriante. Todos se curvariam para ele; as mais lindas mulheres do mundo estariam à sua disposição, quer assim desejassem ou não, e seria tão rico quanto os Pilasters.

- Presidente... - murmurou ele, sonhador. - Gosto disso. Papa inclinou-se calmamente e deu um tapa em seu rosto.

O velho tinha um braço musculoso e a mão calejada; o tapa sacudiu Micky. Ele soltou um grito de choque e dor, levantando-se de um pulo. Sentia o gosto de sangue na boca. Houve silêncio no restaurante, todos olharam.

- Sente-se - ordenou Papa. Devagar, relutante, Micky obedeceu.

Papa estendeu as mãos por cima da mesa, agarrou-o pelas lapelas e disse numa voz desdenhosa:

- Todo esse plano corre perigo porque você fracassou por completo no serviço simples que lhe foi designado!

Micky sentia-se apavorado.

- Vai ter seus rifles, Papa!

- Dentro de um mês, será primavera em Córdoba. Precisamos tomar as minas Delabarca nessa estação... no ano que vem será tarde demais. Reservei passagem num cargueiro que vai para o Panamá. O capitão já foi subornado para me desembarcar, junto com as armas, na costa atlântica de Santamaria.

Papa levantou-se, puxando Micky e rasgando sua camisa com a força do movimento. O rosto estava vermelho de raiva.

- O navio parte dentro de cinco dias - acrescentou ele numa voz que encheu Micky de medo. - Agora saia daqui e me compre aquelas armas!

O subserviente mordomo de Augusta Pilaster, Hastead, pegou o casaco molhado de Micky e pendurou-o perto do fogo que ardia no vestíbulo. Micky não agradeceu. Os dois se detestavam. Hastead tinha ciúme de qualquer pessoa que Augusta favorecesse, e Micky o desprezava por ser tão bajulador. Além do mais, Micky nunca sabia para que lado os olhos de Hastead se dirigiam, e isso o irritava.

Micky foi para a sala de estar e encontrou Augusta sozinha. Ela pareceu satisfeita ao vê-lo. Pegou a mão de Micky entre as suas e comentou:

- Você está gelado.

- Atravessei o parque a pé.

- Mas que tolice! Deveria ter pegado um fiacre.

Micky não tinha condições de pagar fiacres de aluguel, mas Augusta não sabia disso. Ela comprimiu a mão de Micky contra o busto e sorriu. Era como um convite sexual, mas ela agia como se estivesse inocentemente esquentando seus dedos frios.

Augusta fazia esse tipo de jogo com freqüência quando se achavam a sós, e Micky costumava gostar. Ela pegava sua mão, tocava na coxa de Micky, ele tocava em seu braço ou ombro, fitava-a nos olhos, conversavam em voz baixa como amantes, sem jamais reconhecerem que flertavam. Mas hoje ele estava desesperado demais para tais distrações.

Ela percebeu e largou sua mão sem protestar, embora parecesse desapontada.

- Vamos sentar perto do fogo. - Augusta se instalou num sofá, apalpando o assento ao seu lado. - Seth melhorou bastante.

Micky sentiu um aperto no coração.

- Ele pode continuar conosco por muitos anos ainda. - Ela não podia evitar que a irritação transparecesse em sua voz. Estava impaciente, queria que o marido assumisse logo. - Ele mora aqui agora, como sabe. Pode visitá-lo depois de tomar um chá.

- Ele não pretende se aposentar em breve? - indagou Micky.

- Não há o menor sinal de que isso possa acontecer, infelizmente. Esta manhã mesmo ele proibiu a emissão de mais títulos ferroviários russos. - Augusta afagou o

joelho de Micky. - Seja paciente. Seu Papa acabará obtendo os rifles mais cedo ou mais tarde.

- Ele não pode esperar muito mais - explicou Micky, preocupado. - Tem de partir na semana que vem.

- Então é por isso que você anda tão nervoso. Pobre menino... Eu gostaria de poder fazer alguma coisa para ajudar. Mas se houvesse qualquer possibilidade, eu já teria feito.

- Não conhece meu pai. - Micky não podia disfarçar o tom de desespero em sua voz. - Ele finge ser civilizado quando a encontra, mas na verdade é um bárbaro. Só Deus sabe o que fará comigo se eu o decepcionar.

Soaram vozes no vestíbulo.

- Há uma coisa que preciso lhe contar antes dos outros entrarem, Micky. Finalmente conheci Mr. David Middleton.

- O que ele disse?

- Foi polido, mas franco. Disse que não acreditava que toda a verdade sobre a morte de seu irmão tenha sido revelada, e perguntou se eu podia pô-lo em contato com Hugh Pilaster ou Antonio Silva. Informei que os dois haviam viajado para o exterior, e que ele desperdiçava seu tempo.

- Gostaria que pudéssemos resolver o problema do velho Seth tão bem quanto resolvemos esse - murmurou Micky no momento em que a porta era aberta.

Edward entrou, seguido pela irmã Clementine. Ela parecia com Augusta, mas não possuía a mesma força de personalidade; e embora fosse mais jovem, não tinha a atração sexual da mãe. Augusta serviu o chá. Micky conversou com Edward de uma maneira superficial sobre os planos para a noite. Não havia festas ou bailes em setembro:

a aristocracia permanecia longe de Londres até depois do Natal, e só os políticos e suas esposas se encontravam na cidade. Mas não havia escassez de diversão para a classe média, e Edward tinha ingressos para uma peça de teatro. Micky fingiu estar ansioso pelo espetáculo, mas sua mente se concentrava em Papa.

Hastead trouxe os bolinhos quentes com manteiga. Edward comeu vários, mas Micky não sentia o menor apetite. Mais pessoas da família chegaram: o irmão de Joseph, o Jovem William; a feia irmã de Joseph, Madeleine; e o marido de Madeleine, major Hartshorn, com a cicatriz na testa. Todos conversaram sobre a crise financeira, mas Micky podia notar que não tinham medo: o velho Seth percebera que ela se aproximava e cuidara para que o Pilasters Bank não ficasse exposto. Os papéis de alto risco haviam perdido o valor, - os títulos egípcios, peruanos e turcos despencaram, - mas os títulos do governo inglês e as ações das ferrovias inglesas tinham sofrido apenas quedas mínimas.

Um a um, todos subiram para visitar Seth; um a um, todos desceram e disseram como ele estava maravilhoso. Micky esperou para ser o último. Só subiu às cinco e meia.

Seth estava no antigo quarto de Hugh. Uma enfermeira sentava no lado de fora, com a porta entreaberta, para o caso de ser chamada. Micky entrou e fechou a porta.

Seth estava sentado na cama, lendo The Economist. Micky disse;

- Boa tarde, Mr. Pilaster. Como está se sentindo? O velho baixou o jornal, com óbvia relutância.

- Muito bem, obrigado. Como vai seu pai?

- Ansioso em voltar para casa.

Micky avaliou o velho frágil, nos lençóis brancos. A pele do rosto era traneld'água|d"águaúcida, e a curva do nariz Pilaster parecia mais acentuada do que nunca, mas ainda havia uma inteligência intensa brilhando nos olhos. Ele dava a impressão de que poderia continuar a viver e dirigir o banco por mais dez anos.

Micky teve a sensação de que ouvia a voz do pai em seu ouvido, indagando: Quem está em nosso caminho?

O velho era fraco e impotente, só havia Micky no quarto e a enfermeira lá fora.

Micky compreendeu que tinha de matar Seth.

A voz do pai disse: Faça isso agora.

Podia sufocar o velho com um travesseiro, sem deixar qualquer pista. Todos pensariam que ele sofrerá uma morte natural.

O coração de Micky se encheu de aversão, e ele sentiu-se mal.

- Qual é o problema? - indagou Seth. - Você parece mais doente do que eu.

- Está confortável, senhor? Deixe-me ajeitar seus travesseiros.

- Não precisa se incomodar, por favor. Estou bem assim.

Mas Micky estendeu as mãos por trás dele pegou um enorme travesseiro de plumas.

Olhou para o velho e hesitou.

O medo surgiu nos olhos de Seth, que abriu a boca para gritar.

Antes que ele pudesse emitir qualquer som, Micky cobriu seu rosto com o travesseiro e empurrou a cabeça para baixo.

Infelizmente, os braços de Seth se encontravam fora das cobertas, e agora as mãos agarraram o antebraço de Micky com uma força surpreendente. Micky olhou horrorizado as garras envelhecidas puxando as mangas de seu casaco, mas continuou a apertar com toda a sua força. Seth batia desesperado nos braços de Micky, mas o homem mais jovem era mais forte.

Como nada conseguisse assim, Seth passou a chutar e se contorcer. Não podia escapar da pressão de Micky, mas a velha cama de Hugh rangia. Micky ficou apavorado, pois a enfermeira podia ouvir e entrar para investigar. A única maneira que lhe ocorreu para manter o velho quieto foi montar em cima dele. Ainda mantendo o travesseiro sobre o rosto de Seth, Micky subiu na cama e estendeu-se sobre o corpo que se debatia. Era uma cena grotesca, parecia sexo com uma mulher que resistia, pensou Micky, desesperado, e reprimiu a risada histérica que aflorou em seus lábios. Seth continuou a espernear, mas os movimentos eram contidos pelo peso de Micky, e a cama parou de ranger. Micky continuou a pressionar.

Os movimentos finalmente cessaram. Micky manteve a pressão por tanto tempo quanto ousava, para ter certeza; depois, cauteloso, removeu o travesseiro, examinou o rosto branco e imóvel. Os olhos estavam fechados. O velho parecia morto. Micky pensou que deveria verificar as batidas do coração. Devagar, apreensivo, baixou a cabeça para o peito de Seth.

E foi nesse instante que os olhos de Seth se arregalaram e ele aspirou o ar, sôfrego e trêmulo.

Micky quase soltou um grito de horror. Um momento depois, recuperou o controle e tornou a comprimir o travesseiro contra o rosto de Seth. Sentia que tremia de medo e repulsa enquanto fazia força; mas não houve mais resistência.

Sabia que deveria persistir por vários minutos a fim de ter certeza de que o velho morrera mesmo desta vez, mas estava preocupado com a enfermeira. Ela podia notar o silêncio. Micky precisava falar, oferecer uma aparência de normalidade. Mas não podia imaginar o que dizer a um morto. Diga qualquer coisa, ordenou a si mesmo, não importa o que seja, contanto que ela escute um murmúrio de conversa.

- Estou muito bem - murmurou ele, desesperado. - Muito bem, muito bem. E como vai você? Bem, bem. Fico contente em saber que se sente melhor. Esplêndido, Mr. Pilaster. Fico contente em vê-lo tão bem, tão esplêndido, tão melhor, oh, Deus, não posso continuar com isso, muito bem, esplêndido, esplêndido...

Ele não conseguia mais agüentar. Tirou seu peso do travesseiro. com uma careta de repugnância, pôs a mão no peito de Seth, onde imaginava que ficava o coração. Havia cabelos brancos esparsos na pele branca do velho. O corpo ainda estava quente por baixo da camisa de dormir, mas o coração não batia. Está mesmo morto desta vez? pensou

Micky. E foi então que ele teve a impressão de ouvir a voz de Papa, furiosa e impaciente: Está, sim, seu idiota! Ele já morreu, e agora trate de sair daí bem depressa!

Deixando o travesseiro sobre o rosto, Micky saiu de cima do cadáver e ficou de pé ao lado da cama.

Uma onda de náusea o engolfou. Sentia-se fraco e tonto, teve de se apoiar na cama. Eu o matei, pensou ele. Eu o matei.

Uma voz soou no patamar.

Micky olhou para o corpo na cama. O travesseiro ainda se encontrava sobre o rosto de Seth. Ele arrancou-o. Os olhos do velho estavam arregalados, com um olhar fixo.

A porta abriu-se.

Augusta entrou.

Parou no mesmo instante, olhando para a cama desarrumada, o rosto imóvel de Seth com os olhos arregalados, o travesseiro nas mãos de Micky. O sangue se esvaiu de seu rosto.

Micky fitou-a, em silêncio e desamparado, esperando que ela falasse.

Augusta continuou parada, olhando de Seth para Micky, outra vez para Seth, por um longo momento.

Depois, devagar, fechou a porta.

Tirou o travesseiro de Micky. Levantou a cabeça de Seth, ajeitou o travesseiro por baixo, esticou as cobertas. Pegou The Economist no chão, colocou-o no peito do morto e cruzou as mãos dele por cima a fim de dar a impressão de que Seth adormecera enquanto lia.

Ela fechou os olhos. E, depois, aproximou-se de Micky, murmurando:

- Você está tremendo.

Pegando o rosto de Micky entre as mãos, Augusta beijou-o na boca.

Por um instante, ele ficou aturdido demais para responder. E depois, num relance, passou do terror para o desejo. Abraçou-a, sentindo os seios se comprimirem contra seu peito. Augusta abriu a boca, as línguas se encontraram. Micky segurou os seios com as duas mãos, apertou com força. Ela ofegou. A ereção foi imediata. Augusta esfregou a pélvis contra a dele, roçando no pênis duro. Ambos tinham a respiração acelerada.

Augusta pegou a mão de Micky, levou-a à sua boca e mordeu para não gritar. Mantinha os olhos fechados e tremia toda. Micky compreendeu que ela estava gozando, e sentiu-se tão inflamado que também chegou ao orgasmo.

Levara apenas uns poucos momentos. Depois, permaneceram abraçados, ofegantes, por mais um instante. Micky se achava atordoado demais para pensar. Assim que recuperou o fôlego, Augusta desvencilhou-se.

- Vou para o meu quarto - murmurou ela. - Você deve deixar a casa imediatamente.

- Augusta...

- Trate-me de Mrs. Pilaster!

- Está bem...

- Isso nunca aconteceu! - acrescentou ela num sussurro veemente. - Está me entendendo? Nada disso jamais aconteceu!

- Está bem.

Ela alisou a frente do vestido e ajeitou os cabelos. Micky observava-a, impotente, imobilizado pela força de sua vontade. Augusta virou-se e encaminhou-se para a porta. Num gesto automático, Micky abriu-a. E saiu atrás.

A enfermeira lançou um olhar inquisitivo para os dois. Augusta levou um dedo aos lábios, num gesto de silêncio, e murmurou:

- Ele acaba de pegar no sono.

Micky sentiu-se espantado e assustado com tanta frieza.

- A melhor coisa para ele - comentou a enfermeira. - Vou deixálo descansar por uma hora.

Augusta balançou a cabeça em concordância.

- Era o que eu faria se estivesse no seu lugar. Pode ter certeza de que ele está muito bem agora.

 

Janeiro

Hugh voltou a Londres seis anos depois.

Durante esse período, os Pilasters haviam dobrado sua fortuna... e Hugh era em parte o responsável.

Saíra-se extraordinariamente bem em Boston, melhor do que jamais sonhara. O comércio transatlântico prosperara à medida que os Estados Unidos se recuperavam da Guerra Civil, e Hugh cuidara para que o Pilasters Bank financiasse uma parcela considerável das transações.

Também orientara os sócios numa sucessão de lucrativos lançamentos de ações e outros títulos norte-americanos. Depois da guerra, o governo e as empresas precisavam de recursos, e o Pilasters Bank se encarregou de levantar o dinheiro necessário.

Ao final, ele desenvolvera uma excepcional percepção no caótico mercado de ações de ferrovias, determinando quais delas ganhariam fortunas e quais nunca passariam da primeira cordilheira. Tio Joseph mantivera-se cauteloso a princípio, recordando o craque de Nova York em 1873; mas Hugh herdara o comedimento ansioso dos Pilasters e recomendara apenas as ações de melhor qualidade, evitando de forma escrupulosa qualquer coisa que cheirasse a mera especulação; e seu julgamento sempre fora procedente. Agora, o Pilasters era o líder mundial no levantamento de capital para o desenvolvimento industrial da América do Norte. Hugh ganhava mil libras por ano, e sabia que seu trabalho valia mais.

Ao desembarcar em Liverpool, foi recebido no cais pelo escrituráriochefe da sucursal local do Pilasters, um homem com quem trocara telegramas pelo menos uma vez por semana desde que fora para Boston.

Nunca haviam se encontrado pessoalmente, e o escriturado comentou ao se identificarem:

- Eu não sabia que era tão jovem, senhor!

Hugh ficou satisfeito, pois naquela manhã mesmo encontrara um fio prateado entre seus cabelos pretos. Tinha 26 anos de idade.

Ele seguiu de trem para Folkestone, sem fazer escala em Londres. Os sócios do Pilasters Bank poderiam achar que ele deveria vê-los primeiro, antes de procurar a mãe, mas Hugh pensava diferente: dera-lhes os últimos seis anos de sua vida e devia à mãe pelo menos um dia.

Encontrou-a mais bela e serena do que nunca, mas ainda usando preto, em memória de seu pai. A irmã Dotty, agora com 12 anos, mal se lembrava dele, e se mostrou tímida, até que Hugh a sentou em seus joelhos e lembrou como ela dobrara de qualquer maneira suas camisas.

Ele pediu à mãe que se mudasse para uma casa maior: podia agora pagar o aluguel sem dificuldades. Ela recusou, disse-lhe que guardasse seu dinheiro, juntasse um capital. Mas Hugh conseguiu persuadi-la a contratar outra criada para ajudar Mrs. Builth, a idosa governanta.

Partiu para Londres no dia seguinte, pela Chatham e Dover Railway, e desembarcou na estação de Holbom. Um imenso hotel fora construído na estação por pessoas que achavam que Holbom seria uma escala movimentada para ingleses a caminho de Nice ou São Petersburgo. Hugh não teria posto seu dinheiro no empreendimento: em sua opinião, a estação seria usada principalmente por pessoas que trabalhavam na City e que residiam nos subúrbios em expansão a sudeste de Londres.

Era uma linda manhã de primavera. Ele seguiu a pé para o Pilasters Bank. Esquecera o ar enfumaçado de Londres, muito pior que o de Boston ou Nova York. Parou por um momento diante do banco, contemplando a fachada grandiosa.

Dissera aos sócios que queria voltar de licença para rever a mãe, a irmã e o país. Mas tinha outro motivo para retornar a Londres.

Estava prestes a lançar uma bomba.

Viera propor a fusão da operação norte-americana do Pilasters com um banco de Nova York, o Madler and Bell, formando uma nova sociedade que passaria a ser chamada Madler, Bell and Pilaster. Proporcionaria muito dinheiro ao banco, coroaria suas realizações nos Estados Unidos e permitiria seu retorno a Londres, passando de agente a tomador de decisões. Representaria o fim de seu período de exílio.

Ele ajeitou a gravata, nervoso, e entrou.

O salão, que anos atrás tanto o impressionara, com o chão de mármore e os pomposos mensageiros, agora parecia apenas sóbrio. Ao começar a subir a escada, encontrou-se com Jonas Mulberry, seu antigo supervisor. Mulberry se mostrou surpreso e satisfeito ao vê-lo.

- Mr. Hugh! - exclamou ele, apertando sua mão vigorosamente.

- Voltou em caráter permanente?

- Espero que sim. Como vai Mrs. Mulberry?

- Muito bem, obrigado.

- Transmita-lhe os meus respeitos. E as três crianças?

- São cinco agora. Todas gozando de boa saúde, Deus seja louvado. Ocorreu a Hugh que o escriturário-chefe podia conhecer a resposta a uma pergunta que o preocupava.

- Mulberry, você já estava aqui quando Mr. Joseph foi promovido a sócio?

- Acabara de ingressar no banco. Isso foi há 25 anos, a completar em junho.

- Portanto, Mr. Joseph tinha...

- Vinte e nove anos.

- Obrigado.

Hugh subiu para a Sala dos Sócios, bateu na porta e entrou. Tio Joseph, sentado à mesa do Sócio Sênior, parecia mais velho e mais calvo, mais como o velho Seth; o marido de Tia Madeleine, major Hartshorn, o nariz se tornando vermelho para combinar com a cicatriz na testa, lendo The Times ao lado do fogo; Tio Samuel, muito bem-vestido, como sempre, num fraque cinza-escuro trespassado, um colete cinza-pérola, o rosto franzido sobre um contrato; e o sócio mais novo, o Jovem William, agora com 31 anos, sentado à sua mesa, escrevendo num bloco. Samuel foi o primeiro a cumprimentar Hugh.

- Meu caro rapaz! - disse ele, levantando-se e apertando sua mão.

- Que aparência ótima!

Hugh apertou a mão de todos, aceitou um copo de xerez. Correu os olhos pelos retratos dos Sócios Sêniores anteriores nas paredes.

- Há seis anos, nesta sala, vendi a Sir John cammel títulos do governo russo no valor de cem mil libras - recordou ele.

- É verdade - concordou Samuel.

- A comissão do Pilasters sobre essa venda, a cinco por cento, ainda é mais do que todo o dinheiro que recebi nos oito anos em que trabalhei para o banco - comentou Hugh com um sorriso.

Joseph disse, irritado:

- Espero que não esteja pedindo um aumento de salário. Já é o empregado mais bem pago de toda a firma.

- Exceto pelos sócios - ressaltou Hugh.

- Claro - arrematou Joseph, ríspido.

Hugh percebeu que fora um mau começo. Ansioso demais, como sempre, disse a si mesmo: Trate de se controlar.

- Não estou pedindo um aumento. Mas tenho uma proposta para apresentar aos sócios.

- É melhor sentar e nos falar a respeito - disse Samuel.

Hugh largou seu drinque sem prová-lo e organizou os pensamentos. Queria desesperadamente que concordassem com sua proposta. Era ao mesmo tempo a culminação e a prova de seu triunfo sobre a adversidade. Traria mais negócios para o banco de uma só vez do que a maioria dos sócios podia atrair em um ano. E se concordassem, seriam mais ou menos compelidos a promovê-lo a sócio.

- Boston não é mais o centro financeiro dos Estados Unidos - começou ele. - Nova York é agora o lugar mais importante. Devemos transferir nosso escritório para lá.

Mas há um problema. Muitos dos negócios que realizei nos últimos seis anos foram em conjunto com um estabelecimento de Nova York, o Madler and Bell. Sidney Madler, de certa forma, me tomou sob sua proteção quando eu era inexperiente. Se nos mudássemos para Nova York, entraríamos em competição com eles.

- Não há nada de errado com a competição, onde é apropriada - declarou o major Hartshorn.

Raramente ele tinha qualquer coisa de valor com que contribuir para uma discussão; mas em vez de permanecer calado, preferia enunciar o óbvio, de uma maneira dogmática.

- Talvez. Mas tenho uma idéia melhor. Por que não fundir nossa operação norte-americana com o Madler and Bell?

- Fundir? - repetiu Hartshorn. - Como assim?

- Seria um empreendimento conjunto. Madler, Bell and Pilaster. Teria um escritório em Nova York, outro em Boston.

- Como funcionaria?

- A nova empresa cuidaria de todo financiamento de importações e exportações que no momento efetuam em separado, e os lucros seriam divididos. O Pilasters teria a oportunidade de participar de todos os novos lançamentos de títulos e ações negociados pelo Madler and Bell. Eu cuidaria dessas atividades de Londres.

- Não me agrada - declarou Joseph. - Seria entregar nossos negócios ao controle de outros.

- Mas ainda não ouviram a melhor parte - continuou Hugh. - Todos os negócios europeus do Madler and Bell, agora distribuídos entre vários agentes em Londres, seriam entregues ao Pilasters.

Joseph soltou um grunhido de surpresa.

- Isso deve eqüivaler a...

- Mais de 50 mil libras por ano em comissões.

- Santo Deus! - exclamou Hartshorn.

Todos estavam surpresos. Nunca haviam participado antes de um empreendimento conjunto, e não esperavam que uma proposta tão inovadora partisse de alguém que nem mesmo era um sócio. Mas a perspectiva de 50 mil libras por ano em comissões era irresistível.

- É evidente que você já conversou a respeito com eles - disse Samuel.

- Isso mesmo. Madler é muito sagaz, assim como seu sócio, John James Bell.

- E você supervisionaria o empreendimento conjunto de Londres - comentou o Jovem William.

Hugh percebeu que William o encarava como um rival que seria muito menos perigoso a cinco mil quilômetros de distância.

- Por que não? Afinal, é em Londres que se levanta o dinheiro.

- E qual seria sua posição?

Era uma pergunta que Hugh preferia não responder tão cedo. William a fizera com astúcia para embaraçá-lo. Agora, não tinha como se esquivar.

- Creio que Mr. Madler e Mr. Bell esperariam tratar com um sócio.

- É jovem demais para ser um sócio - protestou Joseph no mesmo instante.

- Tenho 26 anos, Tio. Você foi promovido a sócio quando tinha 29 anos.

- Três anos é uma grande diferença.

- E 50 mil libras por ano é um bocado de dinheiro.

Hugh compreendeu que se mostrava muito petulante - um defeito a que era propenso - e recuou apressado. Sabia que se os acuasse num canto, rejeitariam a proposta por puro conservantismo.

- Mas há diversos fatores que devem ser avaliados. Sei que vão querer conversar a respeito. Não seria melhor eu me retirar?

Samuel acenou com a cabeça, num gesto discreto, e Hugh encaminhou-se para a porta. Antes de sua saída, Samuel disse:

- Quer dê certo ou não, Hugh, você merece os parabéns por uma boa proposta... tenho certeza de que todos concordam com isso.

Ele olhou inquisitivo para os outros sócios, que balançaram a cabeça em assentimento. Tio Joseph murmurou:

- É verdade, é verdade...

Hugh não sabia se deveria se sentir frustrado por não terem concordado de imediato com seu plano ou satisfeito por não o terem ainda recusado. Experimentava uma sensação desoladora de anticlimax. Mas não havia mais nada que pudesse fazer ali.

- Obrigado - murmurou ele, saindo da sala.

Às quatro horas da tarde ele parou diante da casa enorme e rebuscada de Augusta, na Kensington Gore.

Seis anos da fuligem de Londres haviam escurecido os tijolos vermelhos e manchado a pedra branca, mas ainda tinha as estátuas de aves e monstros no frontão inclinado, com o navio de velas enfunadas no ápice. E ainda dizem que os americanos são ostentosos! pensou Hugh.

Pelas cartas da mãe, ele sabia que Joseph e Augusta haviam gastado uma parte de sua crescente fortuna com duas outras propriedades, um castelo na Escócia e uma mansão rural em Buckinghamshire. Augusta pensara em vender a casa em Kensington e comprar uma mansão em Mayfair, mas Joseph resistira: gostava daquele lugar.

Era uma casa relativamente nova quando Hugh partira, mas ainda lhe trazia muitas recordações. Sofrerá ali a perseguição de Augusta, cortejara Florence Stalworthy,

socara o nariz de Edward e fizera amor com Maisie Robinson. A lembrança de Maisie era a mais pungente. Não era tanto a humilhação e vergonha que ele recordava, mas sim a paixão e emoção. Não vira nem tivera notícias de Maisie desde aquela noite, mas ainda pensava nela todos os dias de sua vida.

A família lembraria o escândalo pelo relato de Augusta: como o filho depravado de Tobias Pilaster levara uma prostituta para casa, e ao ser surpreendido agredira covardemente o pobre e indefeso Edward. Que assim fosse. Podiam pensar o que bem quisessem, mas tinham de reconhecê-lo como um Pilaster e um banqueiro, e muito em breve, com um pouco de sorte, seriam obrigados a promovê-lo a sócio.

Ele se perguntou até que ponto a família teria mudado em seis anos. Sua mãe o mantivera a par dos eventos domésticos em cartas mensais. Sua prima Clementine ficara noiva, e estava prestes a casar; Edward não, apesar dos esforços de Augusta; o Jovem William e Beatrice haviam tido uma filha. Mas a mãe não relatara as mudanças mais profundas. Tio Samuel ainda vivia com seu "secretário? Augusta continuava impiedosa como antes ou abrandara com a idade? Edward se tornara mais sóbrio e assentara? Micky Miranda finalmente casara com uma das moças que se apaixonavam por ele em cada temporada?

Era tempo de enfrentar a todos. Hugh atravessou a rua e bateu na porta.

Foi aberta por Hastead, o untuoso mordomo de Augusta. Ele não parecia ter mudado: os olhos ainda se fixavam em direções diferentes.

- Boa tarde, Mr. Hugh.

O sotaque galés era gelado, indicando que Hugh ainda se encontrava em desfavor naquela casa. Sempre se podia contar que a recepção de Hastead refletia o que Augusta pensava.

Hugh passou pelo vestíbulo e deparou com um comitê de recepção, as três megeras da família Pilaster: Augusta, a cunhada Madeleine e a filha Clementine. Aos 47 anos, Augusta continuava tão bonita quanto antes: ainda possuía um rosto clássico, com sobrancelhas escuras, um olhar orgulhoso, e se engordara um pouco nos últimos 6 anos, tinha altura suficiente para isso. Clementine era uma edição mais fina do mesmo livro, mas não exibia o ar indômito da mãe, carecia da mesma atração. Tia Madeleine era uma Pilaster da cabeça aos pés, desde o nariz curvado para baixo, passando pelo corpo magro e anguloso, até a renda cara na bainha do vestido azul.

Hugh rangeu os dentes e beijou a todas.

- Posso presumir que sua experiência no exterior o tenha transformado num jovem mais sensato do que era, Hugh? - indagou Augusta.

Ela não deixaria ninguém esquecer que Hugh partira em circunstâncias condenáveis.

- Espero que todos nós tenhamos nos tornado mais sábios com a idade, minha cara tia - respondeu ele, tendo a satisfação de ver o rosto de Augusta se contrair de raiva.

- Tem toda a razão! - disse ela, a voz gelada. Clementine interveio:

- Hugh, permita que lhe apresente meu noivo, Sir Harry Tonks. Trocaram um aperto de mão. Harry era jovem demais para ter sido contemplado com o título de cavaleiro, e por isso o "Sir" devia significar que era um baronete, uma espécie de aristocracia de segunda classe. Hugh não o invejava por casar com Clementine. Ela não chegava a ser tão ruim quanto a mãe, mas sempre tivera uma veia de mesquinhez.

- Como foi sua travessia? - perguntou Harry.

- Muito rápida - respondeu Hugh. - Viajei num dos novos vapores de hélice. Levou apenas sete dias.

- Mas isso é incrível!

- De que parte da Inglaterra é, Sir Harry? - indagou Hugh, sondando os antecedentes do homem.

- Tenho uma propriedade em Dorsetshire. A maioria dos meus arrendatários cultiva lúpulo.

A pequena aristocracia rural, concluiu Hugh; se ele tivesse algum bom senso, venderia a propriedade e investiria o dinheiro no Pilasters Bank. Na verdade, Harry não parecia primar pela inteligência, mas podia ser dócil. As mulheres Pilasters gostavam de casar com homens que fizessem o que elas mandassem, e Harry era uma versão mais jovem de George, o marido de Madeleine. Ao se tornarem mais velhos, ficavam rabugentos e ressentidos, mas raramente se rebelavam.

- Vamos para a sala de estar - ordenou Augusta. - Todos esperam para vê-lo.

Hugh seguiu-a, mas estacou na porta. A vasta sala familiar, com enormes lareiras nas extremidades, portas de vidro dando para o jardim, mudara bastante. Todos os móveis e tecidos japoneses haviam desaparecido, e a sala fora redecorada numa profusão de padrões ousados de cores vivas. Olhando mais atentamente, Hugh percebeu que eram todos de flores: enormes margaridas amarelas no tapete, rosas vermelhas subindo por uma treliça no papel de parede, papoulas nas cortinas, crisântemos cor-de-rosa na seda que encobria as pernas das cadeiras, espelhos, mesas e o piano.

- Mudou a sala, Tia - comentou ele, supérfluo. Clementine informou:

- Veio tudo da nova loja de William Morris, na Oxford Street... é a última moda.

- Mas o tapete tem de ser trocado - acrescentou Augusta. - Não é da cor certa.

Ela nunca estava satisfeita, recordou Hugh.

Quase toda a família Pilaster se encontrava ali. Hugh percebeu que todos sentiam-se curiosos em relação a ele. Partira em desgraça, e talvez tivessem pensado que nunca mais tornariam a vê-lo... mas haviam-no subestimado, e ele voltara como um herói conquistador. Agora, todos se mostravam ansiosos em avaliá-lo melhor.

A primeira pessoa cuja mão ele apertou foi seu primo Edward. Aos 29 anos, Edward parecia mais velho: já se tornava bastante corpulento, e o rosto tinha a aparência

corada de um glutão.

- Então você voltou - murmurou ele.

Edward tentou sorrir, mas a expressão foi de desdém ressentido. Hugh não podia culpá-lo. Os dois primos sempre haviam sido comparados.

Agora, o sucesso de Hugh atraía atenção para a falta de realizações de Edward no banco.

Micky Miranda postava-se ao lado de Edward. Ainda bonito e impecavelmente vestido, parecia mais insinuante e presunçoso do que nunca.

- Olá, Miranda - disse Hugh. - Ainda trabalha para o embaixador cordovês?

- Agora eu sou o embaixador cordovês - respondeu Micky. Hugh não se surpreendeu. Ficou satisfeito ao deparar com sua velha amiga, Rachel Bodwin.

- Olá, Rachel. Como tem passado?

Ela nunca fora uma jovem bonita, mas estava se transformando numa mulher atraente, constatou Hugh. Tinha feições angulosas e olhos muito juntos, mas o que parecera feio seis anos antes era agora estranhamente fascinante.

- O que tem feito nos últimos tempos, Rachel?

- Uma campanha para reformar a lei de propriedade das mulheres. - Ela sorriu e acrescentou: - Para o constrangimento de meus pais, que preferiam que eu fizesse campanha para arrumar um marido.

A franqueza de Rachel sempre fora alarmante, recordou Hugh. Achava-a interessante por isso, mas podia imaginar que muitos solteiros se sentiam intimidados. Os homens gostavam que as mulheres fossem um pouco tímidas e não muito inteligentes.

Enquanto conversava com ela, Hugh especulou se Augusta ainda queria promover o casamento entre os dois. Não fazia muita diferença: o único homem por quem Rachel já demonstrara um interesse genuíno era Micky Miranda. Mesmo agora, ela cuidava de incluir Micky em sua conversa com Hugh. Ele nunca entendera por que as jovens achavam Micky irresistível, e Rachel o surpreendia mais do que a maioria porque era inteligente o suficiente para perceber que Micky não prestava; mas a impressão era a de que fascinava ainda mais as mulheres justamente por causa disso.

Hugh foi cumprimentar o Jovem William e sua esposa. Beatrice saudou-o com a maior cordialidade, e ele concluiu que ela não sofria tanto a influência de Augusta quanto as outras mulheres da família Pilaster. Hastead interrompeu-os para entregar um envelope a Hugh.

- Isto acaba de chegar, trazido por um mensageiro - anunciou o mordomo.

Continha um bilhete, escrito por uma secretária, pelo que pareceu a Hugh:

Por baixo, num rabisco vermelho, estava escrito: - w/tak

Hugh ficou satisfeito. Solly sempre fora cordial e tranqüilo. Por que os Pilasters não podiam ser também descontraídos assim? Seriam os metodistas naturalmente mais tensos do que os judeus? Mas talvez houvesse tensões que ele desconhecesse na família Greenbourne. Hastead disse:

- O mensageiro espera por uma resposta, Mr. Hugh.

- Meus cumprimentos a Mrs. Greenbourne, e avise que terei o maior prazer em comparecer ao jantar - disse Hugh.

Hastead fez uma reverência e se retirou. Beatrice disse:

- Vai jantar com os Solomon Greenbournes? Mas que coisa maravilhosa!

Hugh ficou surpreso.

- Não me parece tão maravilhoso assim. Fui colega de colégio de Solly e sempre gostei dele, mas um convite para jantar em sua casa nunca foi um privilégio cobiçado.

- É agora - garantiu Beatrice.

- Solly casou com uma mulher extraordinária - explicou William. - Mrs. Greenbourne adora receber, e suas festas são as melhores de Londres.

- Eles fazem parte da Turma de Marlborough - acrescentou Beatrice, reverente. - São amigos do Príncipe de Gales.

O noivo de Clementine, Harry, ouviu o comentário e protestou, num tom ressentido:

- Não sei onde a sociedade inglesa vai acabar, visto que o herdeiro do trono prefere judeus a cristãos.

- É isso o que pensa? - disse Hugh. - Pois devo dizer que nunca entendi por que as pessoas detestam os judeus.

- Eu não consigo suportá-los - declarou Harry.

- Mas como está entrando numa família de banqueiros, vai encontrálos com bastante freqüência no futuro.

Harry se mostrou ligeiramente ofendido.

- Augusta desaprova toda a Turma de Marlborough, os judeus e os outros - informou William. - Ao que parece, sua moral não é o que deveria ser.

- E eu aposto que não convidam Augusta para suas festas - comentou Hugh.

Beatrice riu da idéia, e William exclamou:

- Mas claro que não!

- Agora me sinto ansioso em conhecer Mrs. Greenbourne - acrescentou Hugh.

Piccadilly era uma rua de palácios. Às oito horas de uma noite fria de janeiro o movimento ali era intenso, carruagens passando de um lado para outro, as calçadas iluminadas por lampiões a gás e ocupadas por homens vestidos como Hugh, de gravata branca e casaca, e mulheres em casacos de veludo com gola de pele, e, maquiados, prostitutas e prostitutos.

Hugh caminhava absorto em pensamentos. Augusta continuava implacavelmente hostil com ele, como sempre. Acalentara uma tênue esperança secreta de que ela pudesse ter abrandado, mas isso não acontecera. E ela ainda era a matriarca; portanto, tê-la como inimiga era estar em desavença com a família.

A situação no banco era melhor. Os negócios obrigavam os homens a serem objetivos. Era inevitável que Augusta tentasse impedir sua ascensão ali, mas ele tinha mais possibilidade de se defender nesse território. Ela sabia como manipular as pessoas, mas era de uma ignorância total nas operações bancárias.

De um modo geral, o dia não fora tão ruim assim, e agora ele aguardava ansioso por uma noite descontraída em companhia dos amigos.

Quando Hugh partira para a América, Solly Greenbourne morava com o pai, Ben, numa vasta casa diante do Green Park. Agora, Solly tinha sua própria casa, na mesma rua da residência do pai, e não muito menor. Hugh passou por um portal imponente, parou num enorme vestibulo margeado de mármore e contemplou a extravagante escada de mármore, em preto e laranja. Mrs. Greenbourne tinha algo em comum com Augusta Pilaster: nenhuma das duas acreditava na discrição.

Um mordomo e dois lacaios se encontravam no vestíbulo. O mordomo recebeu o chapéu de Hugh apenas para entregá-lo a um lacaio; depois, o segundo lacaio conduziu-o pela escada acima. No patamar, ele olhou por uma porta aberta e viu o assoalho envernizado de um salão de baile, as janelas cobertas por cortinas, e mais além uma sala de estar.

Hugh não era um entendido em decoração, mas reconheceu no mesmo instante o estilo grandioso e extravagante de Luís XVI. O teto era uma profusão de sancas, as paredes tinham painéis de papel, e todas as mesas e cadeiras tinham finas pernas douradas, que davam a impressão de que poderiam se partir a qualquer instante. As cores eram o amarelo, vermelho-laranja, dourado e verde. Hugh podia muito bem imaginar pessoas afetadas dizendo que era vulgar, escondendo sua inveja sob uma pretensão de aversão. Na verdade, era sensual, uma sala em que pessoas de riqueza incalculável faziam qualquer coisa que lhes aprouvesse.

Vários outros convidados já haviam chegado e conversavam em grupos, tomando champanhe e fumando cigarros. Aquilo era novidade para Hugh: nunca vira ninguém fumando numa sala de estar. Solly avistou-o e se desligou de um grupo de pessoas para ir ao seu encontro.

- Pilaster, que bom que você veio! Como tem passado?

Hugh percebeu que Solly se tornara um pouco mais extrovertido. Ainda era gordo e usava óculos e já havia uma mancha de algum tipo no colete branco; mas ele se mostrava mais jovial do que nunca, e Hugh sentiu logo que também era mais feliz.

- Muito bem, obrigado, Greenbourne.

- E sei disso muito bem! Tenho observado seu progresso. Gostaria que o nosso banco tivesse alguém como você na América. Espero que os Pilasters estejam lhe pagando uma fortuna... você merece.

- E você se tornou um socialite, pelo que dizem.

- Não foi por obra minha. Casei, como já sabe.

Ele se virou, bateu no ombro alvo e despido de uma mulher baixa, num vestido verde. Ela se achava virada para o outro lado, mas suas costas eram estranhamente familiares, e uma súbita impressão de déjà vu dominou Hugh, provocando uma tristeza inexplicável.

- Minha cara, lembra do meu velho amigo Hugh Pilaster?

A mulher permaneceu como estava por mais um momento, concluindo o que dizia às outras pessoas, e Hugh pensou: Por que me sinto tão ansioso ao vê-la? E depois se virou, bem devagar, como uma porta se abrindo para o passado; seu coração parou ao contemplar o rosto dela.

- Claro que me lembro dele - disse ela. - Como vai, Mr. Pilaster?

Hugh ficou olhando aturdido, incapaz de falar, para a mulher que se tornara Mrs. Solomon Greenbourne. Era Maisie.

Augusta sentou-se à sua penteadeira e pôs a fieira de pérolas que sempre usava nos jantares elegantes. Era sua jóia mais cara. Os metodistas não admitiam os ornamentos dispendiosos, e seu parcimonioso marido usava isso como uma desculpa para não lhe comprar jóias. Ele bem que gostaria que Augusta parasse de redecorar a casa com tanta freqüência, mas ela o fazia sem perguntar: se ficasse a critério de Joseph, ele não viveria melhor do que seus empregados. Aceitava as mudanças na decoração de má vontade, e exigia apenas que ela não mexesse em seu quarto.

Ela tirou da caixa aberta o anel que Strang lhe dera, 30 anos antes. Tinha a forma de uma serpente de ouro, a cabeça de diamante e os olhos de rubi. Enfiou-o no dedo e, como já fizera mil vezes antes, roçou a cabeça da serpente pelos lábios, recordando. A mãe lhe dissera:

- Devolva o anel e tente esquecê-lo.

Ao que Augusta, com 17 anos, respondera:

-Já o mandei de volta, e Vou esquecê-lo.

Era mentira. Escondia o anel na lombada de sua Bíblia e jamais esquecera Strang. Se não podia ter o seu amor, ela jurara, teria um dia todas as outras coisas que Strang poderia lhe dar, de alguma forma.

Nunca seria a condessa de Strang, aceitara isso há muitos anos. Mas estava determinada a ter um título; e como Joseph não tinha nenhum, ela trataria de providenciá-lo.

Remoera o problema por anos, estudando os mecanismos pelos quais os homens adquiriam títulos, e empenhara em sua estratégia muitas noites sem dormir de planejamento e anseio. Agora se encontrava preparada, e o momento era oportuno.

Iniciaria sua campanha naquela noite, durante o jantar. Entre os seus convidados, havia três pessoas que desempenhariam um papel fundamental na concessão do título de conde a Joseph.

Ele poderia ser o conde de Whitehaven, refletiu Augusta. Whitehaven era o porto em que a família Pilaster começara os seus negócios, quatro gerações antes. O bisavô de Joseph, Amos Pilaster, ganhara sua fortuna num jogo lendário, apostando todo o seu dinheiro num navio negreiro. Mas depois passara para transações menos arriscadas, comprando sarja e calicó estampado da indústria têxtil de Lancashire e embarcando para as Américas. A residência da família em Londres já era chamada de Whitehaven House, em reconhecimento ao local em que surgira a prosperidade dos Pilasters. Augusta seria a condessa de Whitehaven se os seus planos dessem certo.

Ela se imaginou e a Joseph entrando numa imponente sala de recepção, enquanto um mordomo anunciava: "O conde e a condessa de Whitehaven". O pensamento fê-la sorrir.

Viu Joseph fazendo seu primeiro discurso na Câmara dos Lordes, sobre um tema relacionado com as altas finanças, e os outros pares escutando com uma respeitosa atenção.

Os lojistas a chamariam de "lady Whitehaven" em voz alta, e as pessoas ao redor se virariam para ver quem era.

Mas queria isso por Edward, tanto quanto por qualquer outra coisa, disse a si mesma. Um dia ele herdaria o título do pai, e até lá poderia pôr em seu cartão de visitas:

O Honorável Edward Pilaster.

Augusta sabia exatamente o que tinha de fazer, mas ainda assim se sentia apreensiva. Obter um título de nobreza não era como comprar um tapete; não se podia procurar o fornecedor e dizer: "Quero este. Quanto custa?" Tudo devia ser feito por insinuações. Precisaria ser muito cautelosa naquela noite. Se desse um único passo em falso, seus planos meticulosos poderiam desmoronar num instante. Se avaliara errado as pessoas, estava perdida. Uma criada bateu na porta e avisou:

- Mr. Hobbes chegou, madame.

Ela terá de me chamar de "milady" muito em breve, pensou Augusta.

Guardando o anel de Strang, ela se levantou e passou pela porta de comunicação interna para o quarto de Joseph. Ele já se vestira para o jantar e sentava junto do armário em que mantinha sua coleção de caixinhas de rapé cravejadas de pedras preciosas, examinando uma delas à luz de gás. Augusta se perguntou se deveria mencionar

Hugh agora.

Hugh continuava a ser um estorvo. Seis anos antes, Augusta pensara que se livrara dele para sempre, mas Hugh voltara, ameaçando outra vez ofuscar Edward. Já se falava em promovê-lo a sócio: Augusta não podia tolerar essa perspectiva. Decidira que Edward seria um dia o Sócio Sênior, e não permitiria que Hugh tomasse a dianteira.

Mas tinha razão em se preocupar tanto? Talvez fosse melhor deixar Hugh dirigir os negócios. Edward faria outra coisa, poderia até ingressar na política. Mas o banco era o coração da família. As pessoas que se afastavam, como o pai de Hugh, Tobias, sempre acabavam naufragando. Era no banco que se ganhava o dinheiro, que se exercia o poder. Os Pilasters podiam derrubar um monarca ao lhe recusarem um empréstimo: poucos políticos tinham essa capacidade. Era terrível pensar em Hugh como Sócio Sênior, recebendo embaixadores, tomando café com o ministro das Finanças da Inglaterra e ocupando o lugar principal

nas reuniões da família, acima de Augusta e seu lado da família.

Mas seria muito difícil se livrar de Hugh desta vez. Ele estava mais velho e mais esperto, conquistara uma posição consolidada no banco. O desgraçado trabalhara com afinco e paciência durante seis anos para reabilitar sua reputação. Ela conseguiria desfazer tudo isso?

Só que aquele não era o momento para confrontar Joseph a propósito de Hugh. Ela o queria no melhor ânimo possível para o jantar.

- Pode ficar aqui em cima por mais alguns minutos, se quiser, Joseph. Só Arnold Hobbes chegou até agora.

- Eu gostaria de ficar mesmo, se você não se importar.

Seria conveniente para Augusta poder conversar a sós com Hobbes por algum tempo.

Hobbes era o editor de um jornal político chamado The Fórum. De um modo geral, apoiava os Conservadores, que representavam a aristocracia e a Igreja oficial, e era contra os Liberais, o partido dos homens de negócios e metodistas. Os Pilasters eram ao mesmo tempo homens de negócios e metodistas, mas os Conservadores detinham o poder.

Augusta só se encontrara com Hobbes uma ou duas vezes antes, e calculava que ele ficara surpreso ao receber seu convite. Mas sentira-se certa de que seria aceito.

Hobbes não recebia muitos convites para casas tão ricas quanto a de Augusta.

Encontrava-se numa posição curiosa. Era poderoso porque seu jornal era bastante lido e respeitado; mas também era pobre, pois não ganhava muito dinheiro com isso.

A combinação era constrangedora para Hobbes... e mais do que apropriada aos objetivos de Augusta. Ele tinha o poder para ajudá-la, e podia ser comprado.

Só havia um problema. Augusta esperava que ele não tivesse princípios elevados, pois isso acabaria com sua utilidade. Mas se o julgara certo, Hobbes era corruptível.

Ela sentia-se nervosa e apreensiva. Parou por um momento na porta da sala de estar dizendo a si mesma: Relaxe, Mrs. Pilaster, é muito competente nessas coisas. Logo se acalmou e entrou na sala.

Hobbes levantou-se ansioso para cumprimentá-la. Era um homem nervoso e perspicaz, de movimentos bruscos. Sua roupa tinha pelo menos dez anos, calculou Augusta. Ela conduziu-o ao divã na janela a fim de proporcionar à conversa um clima de intimidade, embora não fossem velhos amigos.

- Conte-me a quem desancou hoje - disse ela, jovial. - Criticou Mr. Gladstone? Censurou nossa política na índia? Falou mal dos católicos?

Ele fitou-a através dos óculos sujos.

- Escrevi sobre o City of Glasgow Bank. Augusta franziu o cenho.

- Esse é o banco que quebrou há pouco tempo.

- Exatamente. Muitas associações profissionais escocesas ficaram arruinadas, como sabe.

- Lembro que ouvi comentários a respeito. Meu marido disse que já se sabia há anos que o City of Glasgow não era sólido.

- Não consigo entender - disse Hobbes, excitado. - As pessoas sabem que um banco não é bom mas permitem que continue em atividade até quebrar, e milhares de pessoas perdem as economias de sua vida.

Augusta também não compreendia. Não sabia quase nada sobre negócios. Mas percebeu a oportunidade de levar a conversa na direção que desejava.

- Talvez os mundos do comércio e do governo estejam separados demais - comentou ela.

- Deve ser isso. Uma comunicação melhor entre homens de negócios e estadistas poderia evitar tais catástrofes.

- Eu me pergunto... - Augusta hesitou, como se avaliasse uma idéia que acabara de lhe ocorrer. - Eu me pergunto se alguém como você não consideraria a possibilidade de se tornar diretor de uma ou duas companhias.

Ele ficou surpreso.

- É possível.

- Afinal... uma experiência direta, participando da direção de um empreendimento, poderia ajudá-lo quando comentasse em seu jornal o mundo do comércio.

- Não tenho a menor dúvida quanto a isso.

- As recompensas não são grandes... 100 ou 200 libras por ano, no máximo. - Augusta viu os olhos do jornalista se iluminarem: era um bocado de dinheiro para ele.

- Mas as obrigações também não são muitas.

- Uma idéia muito interessante.

Hobbes fazia um esforço para esconder seu excitamento, mas Augusta podia percebê-lo.

- Meu marido poderia dar um jeito, se estivesse interessado. Ele sempre recomenda diretores para as empresas em que tem alguma participação.

Pense a respeito e depois me diga se gostaria que eu mencionasse o assunto.

- Está certo.

Até agora, tudo bem, pensou Augusta. Mas mostrar a isca era a parte fácil. Agora, tinha de fisgá-lo. Ela acrescentou, pensatíva.

- E o mundo do comércio deve retribuir, é claro. Acho que mais homens de negócios deveriam servir a seu país na Câmara dos Lordes.

Os olhos de Hobbes contraíram-se um pouco, e ela concluiu que sua mente ágil começava a compreender o acordo que lhe era oferecido.

- Não resta a menor dúvida - murmurou ele, em tom neutro. Augusta tratou de desenvolver o tema:

- As duas Casas do Parlamento se beneficiariam com os conhecimentos e sabedoria de experientes homens de negócios, em particular quando se debater as finanças da nação. Só que há um estranho preconceito contra um homem de negócios ser elevado ao pariato.

- Há mesmo, e é completamente irracional-admitiu Hobbes. - Nossos mercadores, manufatores e banqueiros são responsáveis pela prosperidade do país, muito mais do que os proprietários de terras e os clérigos, mas são estes que são promovidos à nobreza por seus préstimos à nação, enquanto se esquecem os homens que de fato produzem e fazem as coisas.

- Deveria escrever um artigo sobre isso. É o tipo de causa pela qual seu jornal já fez campanha no passado... a modernização de nossas antigas instituições.

Augusta ofereceu-lhe seu sorriso mais efusivo. Já pusera suas cartas na mesa. Hobbes não podia deixar de perceber que essa campanha era o preço que teria de pagar pelas diretorias de companhias que ela oferecia. Ele se empertigaria, com uma cara de ofendido, e discordaria? Iria embora furioso? Sorriria e rejeitaria sua proposta com toda a polidez? Se fizesse qualquer das três coisas, ela teria de começar tudo de novo com outro.

Houve uma pausa prolongada, e depois ele disse.

- Talvez você tenha razão. Augusta relaxou.

- Talvez devamos mencionar o assunto - continuou Hobbes. - Uma ligação maior entre o comércio e o governo.

- Títulos de nobreza para os homens de negócios - ressaltou Augusta.

- E diretorias de companhias para jornalistas.

Augusta sentiu que já haviam ido até onde era possível no curso da franqueza, e chegara o momento de recuar. Se ficasse subentendido que ela o estava subornando,

ele poderia se" sentir humilhado e recusar. Já fi cara satisfeita com o que conseguira, e se achava prestes a mudar de assunto quando mais convidados chegaram, poupando-lhe o trabalho.

Os outros convidados apareceram logo em seguida, e Joseph desceu ao mesmo tempo. Poucos momentos depois, Hastead entrou na sala para anunciar:

- O jantar está servido, senhor.

Augusta ansiava por ouvi-lo dizer milorde, em vez de senhor.

Saíram da sala de estar e atravessaram o vestíbulo para a sala de jantar. Essa procissão um tanto curta irritava Augusta. Nas casas aristocráticas havia quase sempre um desfile longo e elegante até a sala de jantar, e era um ponto alto no ritual. Os Pilasters, tradicionalmente, desdenhavam copiar as maneiras da classe superior, mas Augusta sentia-se diferente. Para ela, aquela casa parecia suburbana demais, de uma forma irremediável. Mas não conseguira persuadir Joseph a se mudar.

Naquela noite, ela providenciara para que Edward viesse para o jantar com Emily Maple, uma jovem bonita e tímida de 19 anos, acompanhada pelo pai, um ministro metodista, e a mãe. Eles ficaram impressionados com a casa e a companhia, e era evidente que não se enquadravam no ambiente; mas Augusta já começava a se desesperar em sua busca por uma esposa apropriada para o filho. Edward tinha agora 29 anos e nunca demonstrara o menor interesse por qualquer moça casadoira, para tremenda frustração

da mãe. Ele não podia deixar de achar Emily atraente: ela tinha enormes olhos azuis e um sorriso meigo. Os pais ficariam emocionados com a união. Quanto à moça, teria de fazer o que lhe mandassem. Mas Edward precisava ser pressionado. O problema era que ele não via motivos para casar. Gostava da vida que levava com os amigos, freqüentando o clube, e assim por diante, e assentar na vida conjugal não o atraía. Por algum tempo Augusta presumira que se tratasse apenas de uma fase normal na vida de um rapaz, mas já se prolongara por tempo demais, e ultimamente ela começara a se preocupar com a possibilidade de Edward nunca sair dela. Teria de lhe aplicar o máximo de pressão.

À sua esquerda, à mesa, Augusta pôs Michael Fortescue, um jovem simpático, com aspirações políticas. Diziam que era muito ligado ao primeiro-ministro, Benjamin Disraeli, que fora elevado à nobreza e agora era lorde Beaconsfield. Fortescue era a segunda das três pessoas que Augusta precisava para ajudá-la a obter um título para Joseph.

Ele não era tão inteligente quanto Hobbes, mas era mais sofisticado e seguro. Augusta fora capaz de impressionar Hobbes, mas teria de seduzir Fortescue.

Mr. Maple fez a oração, e Hastead serviu o vinho. Nem Joseph nem Augusta tomavam vinho, mas sempre o serviam aos convidados. Enquanto o consomê era servido, Augusta sorriu efusiva para Fortescue e perguntou em voz baixa e íntima:

- Quando vamos vê-lo no Parlamento?

- Eu bem que gostaria de saber.

- Todos se referem a você como um jovem brilhante, como deve saber. Ele ficou satisfeito pela lisonja, mas também embaraçado.

- Não tenho tanta certeza assim.

- E também é bem-apessoado... o que nunca faz mal.

A reação de Fortescue foi de surpresa. Não esperava que ela flertasse... mas não se sentia avesso à perspectiva.

- Não deveria esperar por uma eleição geral - continuou Augusta. - Por que não se candidata numa eleição suplementar? Deve ser bastante fácil providenciar isso... as pessoas dizem que você tem acesso direto ao primeiro-ministro.

- É muito gentil... mas as eleições suplementares são muito caras, Mrs. Pilaster.

Era a resposta que Augusta esperava, mas não o deixou perceber isso.

- É mesmo?

- E não sou rico.

- Eu não sabia disso. Neste caso, deve arrumar um patrocinador.

- Quem sabe um banqueiro? - sugeriu Fortescue, num tom que era meio jovial, meio ansioso.

- Não é impossível. Mr. Pilaster se interessa em assumir uma participação mais ativa no governo da nação. - Assim seria, se um pariato lhe fosse oferecido. - E ele acha que não há motivos para que os homens do comércio se sintam na obrigação de apoiar os Liberais. Aqui entre nós, muitas vezes ele se descobre mais de acordo com os Conservadores mais jovens.

O tom confidencial de Augusta encorajou-o a ser franco - como ela tencionava, - e ele indagou:

- De que maneira Mr. Pilaster gostaria de servir à nação... além de patrocinar um candidato numa eleição suplementar?

Era um desafio. Ela deveria responder à pergunta ou continuar a ser indireta? Augusta decidiu ser franca também.

- Talvez na Câmara dos Lordes. Acha que é possível? Ela estava gostando daquele jogo... e Fortescue também.

- Possível? Claro que sim. Se é provável, já é outra questão. Devo sondar?

Estava sendo mais direto do que Augusta previra.

- Poderia fazê-lo com discrição? Ele hesitou.

- Creio que sim.

- Seria muita gentileza - murmurou ela, satisfeita por tê-lo convertido num colega de conspiração.

- Eu a informarei do que descobrir.

- E se for marcada uma eleição suplementar conveniente...

- É muito generosa.

Augusta tocou em seu braço. Era um jovem muito atraente, e gostara de conspirar com ele.

- Acho que nos entendemos muito bem - murmurou ela.

Augusta notou que ele tinha mãos excepcionalmente grandes. Manteve a mão em seu braço por mais um momento, fitando-o nos olhos, antes de se virar.

Sentia-se muito bem. Já acertara tudo com duas das três pessoas essenciais, e ainda não cometera qualquer deslize. Durante o prato seguinte, ela conversou com lorde Morte, sentado à sua direita. com ele, limitou-se a uma conversa polida e superficial: era sua esposa que queria influenciar, e para isso teria de esperar que o jantar terminasse.

Os homens permaneceram na sala de jantar para fumar, e Augusta leVou as mulheres para seu quarto. Ali, ficou a sós com lady Morte por alguns minutos. Quinze anos mais velha do que Augusta, Harriet Morte era dama de companhia da rainha Vitória. Tinha cabelos grisalhos e um ar de superioridade. Como Arnold Hobbes e Michael Fortescue, tinha influência; e Augusta esperava que, como os dois, ela também fosse corruptível. Hobbes e Fortescue eram vulneráveis por serem pobres. Lorde e lady Morte não eram tão pobres, mas sim imprevidentes: tinham bastante dinheiro, mas gastavam além dos seus recursos.Os vestidos de lady Morte eram esplêndidos e as joias magníficas, e lorde Morte ainda acreditava, contra as evidências de 40 anos, que tinha um bom olho para um cavalo de corrida.

Augusta sentia-se mais nervosa por lidar com lady Morte do que ficara com os homens. As mulheres eram mais difíceis. Não aceitavam qualquer coisa pelas aparências e sabiam que estavam sendo manipuladas. Trinta anos como cortesã teriam refinado a sensibilidade de lady Morte ao ponto em que, nada podia lhe escapar. Augusta começou por dizer;

- Mr. Pilaster e eu somos grandes admiradores da nossa cara rainha. Lady Mone acenou com a cabeça, como se dissesse Nem poderia ser de outra forma. Mas não era bem assim: a rainha Vitória era detestada por grande parte da nação, por ser retraída, sóbria, remota e inflexível. Augusta acrescentou:

- Se algum dia houver alguma coisa que possamos fazer para ajudála em seus nobres deveres, teríamos o maior prazer.

- É muita gentileza. - Lady Morte parecia um pouco perplexa. Hesitou por um instante, mas decidiu perguntar: - Mas o que poderiam fazer?

- O que os banqueiros fazem? Emprestam dinheiro. - Augusta baixou a voz. - Imagino que a vida na corte deva ser bastante dispendiosa.

Lady Morte se empertigou. Havia um tabu em sua classe sobre falar de dinheiro, e o violava de maneira flagrante. Mas Augusta persistiu:

- Se abrisse uma conta no Pilasters, nunca teria problemas nessa área... Lady Morte sentiu-se ofendida, mas, por outro lado, era-lhe oferecido o privilégio extraordinário de crédito ilimitado num dos maiores bancos do mundo. O instinto lhe dizia para esnobar Augusta, mas a ganância a conteve. Augusta pôde perceber o conflito em seu rosto e não lhe deu tempo para pensar.

- Por favor, perdoe-me por ser tão horrivelmente franca. Só faço isso pelo desejo de poder ajudar.

Lady Morte não acreditava nisso, mas presumiu que Augusta queria apenas agradar à realeza. Não procuraria por um motivo mais específico, e Augusta não lhe daria mais nenhuma indicação naquela noite. Lady Morte ainda hesitou um pouco, mas acabou dizendo:

- É muito gentil.

Augusta superara o terceiro obstáculo. Se avaliara a mulher corretamente, lady Morte ficaria irremediavelmente em dívida com o Pilasters Bank dentro de seis meses.

E só então descobriria o que Augusta desejava.

Mrs. Maple, a mãe de Emily, voltou da toalete e lady Morte aproveitou-se disso, retirando-se com uma expressão de suave constrangimento. Augusta sabia que ela e lorde Morte concordariam, ao voltarem para casa na carruagem, que as pessoas comerciais eram insuportavelmente vulgares e mal-educadas; mas um dia, muito em breve, ele perderia mil guinéus num cavalo, e nesse mesmo dia a costureira de lady Morte exigiria o pagamento de 300 libras por uma conta com 6 meses de atraso, e os dois concluiriam que as pessoas comerciais vulgares, no final das contas, tinham alguma utilidade.

As mulheres voltaram a se reunir na sala de estar, no andar térreo, e tomaram café. Lady Morte ainda se mantinha distante, mas deixou de ser grosseira. Os homens se reuniram a elas poucos minutos depois. Joseph subiu com Mr. Maple para mostrar sua coleção de caixinhas de rapé. Augusta ficou satisfeita: Joseph só fazia isso quando gostava de alguém.

Emily tocou piano. Mrs. Maple pediu-lhe para cantar, mas ela disse que estava resfriada e persistiu na recusa com uma obstinação admirável, apesar das súplicas da mãe, levando Augusta a pensar, ansiosa, que talvez a moça não fosse tão submissa quanto parecia.

Ela já realizara seu trabalho por aquela noite: queria agora que todos fossem embora para suas casas, a fim de poder repassar os acontecimentos e avaliar o quanto conseguira. Não gostava, na verdade, de nenhum deles, à exceção de Michael Fortescue. Contudo, forçou-se a ser polida e manteve a conversa por mais uma hora. Hobbes estava fisgado, concluiu Augusta; Fortescue fizera um acordo e cumpriria sua parte; lady Morte vislumbrara a encosta escorregadia que levava à perdição, e era apenas uma questão de tempo antes que começasse a descer. Augusta sentia-se aliviada e satisfeita.

Depois que todos os convidados se retiraram, Edward queria ir para o clube, mas Augusta o deteve.

- Sente-se e escute por um momento - disse ela. - Quero conversar com você e seu pai.

Joseph, que já ia para a cama, tornou a sentar. Ela perguntou-lhe:

- Quando vai promover Edward a sócio no banco? Joseph se mostrou irritado.

- Quando ele for mais velho.

- Mas ouvi dizer que Hugh pode ser promovido a sócio, e ele é três anos mais moço do que Edward.

Augusta não tinha a menor idéia de como se ganhava dinheiro, mas sempre sabia o que acontecia no banco em termos do progresso pessoal dos membros da família. Os homens não costumavam falar de negócios na presença das mulheres; ela lhes arrancava todas as informações em suas reuniões na hora do chá.

- A idade é apenas um dos meios pelos quais um homem pode se qualificar para sócio - disse Joseph, ainda irritado. - Outra é a capacidade de realizar negócios, que Hugh possui num grau que nunca vi em alguém tão jovem. Outras qualificações seriam um grande investimento de capital no banco, uma alta posição social, ou a influência política. Receio que Edward ainda não tenha nenhuma dessas.

- Mas ele é seu filho.

- Um banco é um negócio, não uma recepção social! - protestou Joseph cada vez mais furioso, pois detestava quando a mulher o contestava. - O cargo não é apenas uma questão de posição ou precedência. A capacidade de ganhar dinheiro é o teste.

Augusta ficou em dúvida por um momento. Deveria pressionar pela promoção de Edward se ele não era realmente capaz? Mas isso era um absurdo. Edward era perfeitamente capacitado. Podia não somar uma coluna de cifras tão depressa quanto Hugh, mas no final a prática acabaria prevalecendo.

- Edward poderia ter um grande investimento de capital no banco, se você quisesse - insistiu ela. - Pode lhe dar o dinheiro a qualquer momento.

Joseph assumiu uma expressão obstinada, que Augusta conhecia muito bem; era a mesma que ele exibia quando se recusava a mudar de casa, ou a proibia de redecorar seu quarto.

- Não antes do rapaz casar - declarou Joseph, saindo da sala em seguida.

Edward comentou:

- Você o deixou furioso.

- É para o seu bem, Teddy querido.

- Mas tornou a situação ainda pior!

- Não, não tornei. - Augusta suspirou. - Às vezes sua visão generosa o impede de perceber o que está acontecendo. Seu pai pode acreditar que tem um controle firme, mas se pensar um pouco no que ele disse vai compreender que lhe prometeu uma grande quantia, além de promovê-lo a sócio, assim que casar.

- Tem razão, acho que foi isso mesmo - murmurou Edward, surpreso. - Não vi por esse lado.

- É esse o seu problema, querido. Não é astuto como Hugh.

- Hugh teve muita sorte na América.

- Claro que teve. Você gostaria de casar, não é? Edward sentou ao lado da mãe e pegou sua mão.

- Por que deveria, quando tenho você para cuidar de mim?

- Mas quem fará isso depois que eu for embora? Gostou da pequena Emily Maple? Achei-a encantadora.

- Ela me disse que a caça é uma crueldade com a raposa - disse Edward, em tom desdenhoso.

- Seu pai lhe daria pelo menos cem mil libras... talvez mais, talvez um quarto de milhão.

Edward não se impressionou.

-Já tenho tudo o que quero, e gosto de viver com você.

- E eu também gosto de tê-lo ao meu lado. Mas quero que tenha um casamento feliz, com uma esposa adorável, sua fortuna pessoal e o cargo de sócio no banco. Diga que pensará a respeito.

- Está certo, pensarei a respeito. - Ele beijou-a na face. - E agora tenho de ir, mamãe. Prometi me encontrar com alguns amigos há meia hora.

- Pois então vá logo.

Edward levantou-se e foi até a porta.

- Boa noite, mamãe.

- Boa noite... e pense em Emily.

Kingsbridge Manor era uma das maiores residências da Inglaterra. Maisie já estivera lá três ou quatro vezes, e ainda não vira nem a metade. A casa tinha 20 quartos principais, sem contar os quartos de cerca de 50 criados. Era aquecida por carvão e iluminada por velas. Só tinha um banheiro, mas o que faltava em matéria de confortos modernos compensava em luxo antigo: camas de baldaquinho com cortinas grossas de seda, deliciosos vinhos da vasta adega subterrânea, cavalos, armas, livros e caçadas intermináveis.

O jovem duque de Kingsbridge possuíra outrora 40 mil hectares da melhor terra agrícola de Wiltshire, mas a conselho de Solly vendera a metade e comprara uma boa parte de South Kensington com o dinheiro. Pouco depois, a depressão agrícola empobrecera muitas grandes famílias, mas deixara "Kingo" incólume, e ele ainda era capaz de receber os amigos em grande estilo.

O Príncipe de Gales passara a primeira semana com eles. Solly, Kingo e o príncipe partilhavam um gosto por diversões turbulentas, e Maisie ajudara a providenciá-las.

Substituíra o creme batido por espuma de sabão na sobremesa de Kingo; desabotoara os suspensórios de Solly enquanto cochilava na biblioteca, e sua calça caíra no momento em que se levantara; e colara as páginas de The Times afim de que ninguém pudesse abrir o jornal. Por acaso, o príncipe fora o primeiro a pegá-lo, e enquanto ele puxava as páginas houve um momento de suspense, todos se perguntando como seria sua reação - pois embora o herdeiro do trono adorasse aquelas brincadeiras, nunca era a vítima, - mas depois ele desatara a rir ao perceber o que acontecera, e os outros caíram na gargalhada, de alívio tanto quanto de diversão.

O príncipe fora embora e Hugh chegara; e fora então que os problemas começaram.

Fora idéia de Solly convidar Hugh a Kingsbridge Manor. Solly gostava dele. Maisie não conseguira pensar numa razão plausível para protestar. Fora também Solly quem convidara Hugh para o jantar em Londres.

Ele recuperara o controle bastante depressa naquela noite e demonstrara ser um convidado perfeito para o jantar. Talvez suas maneiras não fossem tão refinadas quanto poderiam ser se passasse os últimos seis anos nos salões de Londres, em vez de nos armazéns de Boston, mas seu charme natural compensava qualquer deficiência. Nos dois dias em Kingsbridge divertira a todos com histórias da vida na América, um lugar que nenhum deles visitara.

Era irônico que ela achasse as maneiras de Hugh um tanto rudes. Seis anos atrás era o contrário. Mas Maisie aprendia depressa. Adquirira o sotaque da classe superior sem a menor dificuldade. A gramática demorara um pouco mais. As pequenas sutilezas de comportamento haviam sido o mais difícil, as atitudes que indicavam a superioridade social: a maneira como passavam por uma porta, falavam com um cachorro de estimação, mudavam o assunto de uma conversa, ignoravam um bêbado. Mas ela estudara com afinco, e agora tudo lhe vinha com naturalidade.

Hugh se recuperara do choque do reencontro, mas o mesmo não acontecera com Maisie. Jamais esqueceria sua expressão quando ele a viu. Ela estava preparada, mas para Hugh fora uma surpresa total. Por causa de sua surpresa, ele deixara transparecer os sentimentos que o dominavam, e Maisie ficara consternada ao perceber a angústia em seus olhos. Ela o magoara profundamente, há seis anos, e Hugh não superara o sofrimento.

A expressão dele a atormentava desde então. Ficara transtornada quando soubera que Hugh viria para Kingsbridge. Não queria vê-lo. Não queria que o passado voltasse.

Estava casada com Solly, que era um bom marido, e não podia suportar a idéia de fazê-lo sofrer. E havia Bertie, sua razão para viver.

O filho tinha o nome de Hubert, mas todos o chamavam de Bertie, que também era o apelido do Príncipe de Gales. Bertie Greenbourne completaria cinco anos no dia primeiro de maio, mas isso era um segredo.- seu aniversário era comemorado em setembro, para esconder o fato de que nascera apenas seis meses depois do casamento. A família de Solly conhecia a verdade, mas ninguém mais estava a par: Bertie nascera na Suíça durante a excursão européia de 12 meses que fora a lua de mel. Desde então, Maisie fora feliz.

Os pais de Solly não acolheram Maisie muito bem. Eram judeus alemães obstinados e esnobes que viviam na Inglaterra há gerações e des prezavam os judeus russos que falavam iídiche e haviam acabado de imigrar. O fato de ela estar grávida de outro homem confirmava os preconceitos e lhes proporcionara um pretexto para rejeitá-la. Mas a irmã de Solly, Kate, que tinha mais ou menos a idade de Maisie e uma filha de sete anos, tratava-a muito bem quando os pais não estavam presentes.

Solly a amava, e amava Bertie também, embora não soubesse quem era o pai do menino; e isso era suficiente para Maisie... até Hugh voltar.

Ela se levantou cedo, como sempre, e foi até a ala das crianças. Bertie comia o desjejum na sala de refeições com os filhos de Kingo, Anne e Alfred, sob a supervisão

de três babás. Maisie beijou seu rosto sujo e perguntou:

- O que está comendo?

- Mingau com mel.

O menino falava com o jeito arrastado das classes superiores, o sotaque que Maisie se esforçara em aprender e que esquecia de vez em quando.

- Está gostoso?

- O mel é gostoso.

- Acho que também Vou comer um pouco - disse Maisie, sentando. Seria mais digestivo do que os salmões ou rins temperados que os adultos comiam ao desjejum.

Bertie não saíra a Hugh. Quando bebê, parecia com Solly, pois todos os bebês pareciam com Solly; agora, tornava-se mais e mais parecido com a mãe, de cabelos ruivos e olhos verdes. Maisie podia perceber alguma coisa de Hugh de vez em quando, em particular quando ele oferecia um sorriso malicioso; mas, por sorte, não havia qualquer semelhança óbvia.

Uma babá trouxe para Maisie um prato com mingau e mel, e ela provou.

- Gostou, mamãe? - perguntou Bertie. Anne interveio:

- Não fale de boca cheia, Bertie.

Anne Kingsbridge era uma menina arrogante de sete anos que dominava Bertie e o irmão dela, Freddy, de cinco.

- Está uma delícia - disse Maisie. Outra babá perguntou:

- Querem torradas com manteiga, crianças?

Todos responderam que sim em coro. A princípio, Maisie pensara que não era natural que uma criança crescesse cercada por criadas, e receava que Bertie pudesse ser superprotegido; mas aprendera que as crianças ricas brincavam na sujeira, escalavam muros e se metiam em brigas tanto quanto as pobres, e a principal diferença era o fato de que as pessoas que as limpavam depois recebiam um pagamento por isso.

Ela gostaria de ter mais filhos, os filhos de Solly, mas tivera algum problema quando Bertie nascera, e os médicos suíços lhe disseram que nunca mais poderia conceber.

Acertaram em cheio, pois ela dormia com Solly há cinco anos e nunca conseguira engravidar. Bertie era o único filho que jamais teria. Lamentava amargamente por Solly, que nunca teria seus próprios filhos, embora declarasse que já tinha mais felicidade do que qualquer homem merecia.

A esposa de Kingo, a duquesa, conhecida pelos amigos como Liz, aderiu à reunião com as crianças pouco depois de Maisie. Enquanto lavavam as mãos e os rostos das crianças, Liz comentou:

- Sabe, minha mãe nunca teria feito isso. Ela só nos via depois que estávamos lavados e vestidos.

Maisie sorriu. Liz considerava-se muito equilibrada porque lavava os rostos dos próprios filhos.

Elas ficaram com as crianças até dez horas, quando a governanta chegou e pôs as três para trabalhar em desenho e pintura. Maisie e Liz voltaram a seus aposentos.

Hoje era um dia tranqüilo, sem caçada. Alguns homens sairiam para pescar, outros passeariam pelo bosque, com um ou dois cachorros, atirando em coelhos. As mulheres - e os homens que gostavam das mulheres mais do que de cachorros - dariam uma volta pelo parque antes do almoço.

Solly já comera o desjejum e se aprontava para sair. Vestira um traje marrom de tweed, com o paletó curto. Maisie beijou-o e ajudou-o a calçar as botas que subiam até os tornozelos: se ela não estivesse ali, Solly teria chamado seu criado pessoal, pois não conseguia se abaixar o suficiente para prender os cordões. Ela pôs um casaco de pele e um chapéu, Solly vestiu um capote xadrez e ajeitou na cabeça um chapéu-coco, e desceram para o vestíbulo frio a fim de se encontrarem com os outros.

Era uma manhã clara e fria, maravilhosa quando se tinha um casaco de pele, uma tortura para quem vivia num cortiço ventoso e tinha de andar descalço. Maisie gostava de recordar as privações da infância: aumentava o prazer que sentia por ser casada com um dos homens mais ricos do mundo.

Ela foi andando com Kingo de um lado e Solly do outro. Hugh vinha atrás com Liz. Embora não o visse, Maisie podia sentir sua presença, ouvilo conversar com Liz, fazê-la rir, e imaginar o brilho em seus olhos azuis. Depois de menos de um quilômetro chegaram ao portão principal. Ao virarem para atravessar o pomar, Maisie avistou um vulto alto e familiar, de barba preta, aproximando-se da direção da aldeia. Por um momento imaginou que fosse seu pai; depois, reconheceu o irmão Danny.

Danny voltara seis anos atrás à primeira cidade da Inglaterra em que haviam residido, mas descobrira que os pais não mais viviam na velha casa e não haviam deixado outro endereço. Desapontado, ele viajara mais para o norte, até Glasgow, e fundara a Associação Beneficente dos Trabalhadores, que não apenas segurava seus associados contra o desemprego mas também fazia campanha por regras de segurança nas fábricas, o direito ao ingresso nos sindicatos e a regulamentação financeira das empresas.

Seu nome começara a aparecer nos jornais - Dan Robinson, não Danny, pois ele era formidável demais para ser um Danny agora. Papa lera a seu respeito, fora ao escritório da associação e houvera uma alegre reunião.

Papa e Mama haviam finalmente encontrado outros judeus, pouco depois de Maisie e Danny fugirem de casa. Tomaram dinheiro emprestado e se mudaram para Manchester, onde Papa arrumara outro emprego e nunca mais haviam passado tanta necessidade. Mama sobrevivera à doença e gozava agora da melhor saúde.

Maisie já era casada com Solly quando a família se reencontrara. Solly teria o maior prazer em dar a Papa uma casa e uma renda pelo resto da vida, mas Papa não queria se aposentar; em vez disso, pedira a Solly que lhe emprestasse dinheiro para abrir uma loja. Agora, Papa e Mama vendiam caviar e outras iguarias aos cidadãos ricos de Manchester. Quando os visitava, Maisie tirava seus diamantes, vestia um avental e atendia os fregueses de trás do balcão, confiante de que não era provável que alguém da Turma de Marlborough fosse a Manchester... e se fossem, jamais fariam suas próprias compras.

Vendo Danny ali, em Kingsbridge, Maisie temeu no mesmo instante que algo tivesse acontecido aos pais e correu ao seu encontro, com o coração na boca.

- Danny! O que aconteceu? É Mama?

- Papa e Mama estão bem, assim como todo o resto - respondeu ele, com seu sotaque americano.

- Graças a Deus! Como soube que eu estava aqui?

- Você me escreveu.

- Ah, é verdade...

Danny parecia um guerreiro turco, com sua barba crespa e os olhos faiscantes, mas vestia-se como um escriturário, de terno preto surrado e chapéu-coco. Dava a impressão de ter caminhado por uma longa distância, pois tinha as botas enlameadas e uma expressão de cansaço. Kingo fitou-o de esguelha, mas Solly se mostrou à altura da ocasião com sua elegância social habitual. Apertou a mão de Danny e disse:

- Como tem passado, Robinson? Este é meu amigo, o duque de Kingsbridge. Kingo, permita que lhe apresente meu cunhado, Dan Robinson, secretário-geral da Associação Beneficente dos Trabalhadores.

Muitos homens ficariam atordoados ao serem apresentados a um duque, mas não Danny.

- Como tem passado, duque? - disse ele com uma cortesia descontraída.

Kingo apertou sua mão, cauteloso. Maisie adivinhou que ele pensava que ser polido com as classes inferiores era certo, mas só até certo ponto; não se devia ir longe demais. Depois, Solly acrescentou:

- E este é nosso amigo Hugh Pilaster.

Maisie ficou tensa. Em sua ansiedade por Mama e Papa, esquecera que Hugh vinha logo atrás. Danny conhecia os segredos a respeito de Hugh, segredos que Maisie nunca revelara ao marido. Sabia que Hugh era o pai de Bertie. Danny quisera outrora torcer o pescoço de Hugh. Nunca haviam se encontrado, mas Danny não esquecera. O que faria agora?

Mas ele era seis anos mais velho agora. Lançou um olhar frio para Hugh, mas apertou sua mão cortesmente.

Hugh, que não sabia que era pai, não tinha a menor idéia da ameaça antiga e dirigiu-se a Danny com toda a cordialidade:

- Então você é o irmão que fugiu de casa e foi para Boston?

- Isso mesmo.

- É curioso que Hugh saiba disso - comentou Solly.

Solly não imaginava o quanto Hugh e Maisie sabiam a respeito um do outro; ignorava que haviam passado uma noite juntos, contando um ao outro a história de sua vida.

Maisie sentiu-se angustiada pela conversa: deslizava sobre a superfície de muitos segredos, e o gelo era fino. Por isso, apressou-se em voltar a terreno firme:

- Por que está aqui, Danny?

O rosto cansado assumiu uma expressão de amargura.

- Não sou mais o secretário da Associação Beneficente dos Trabalhadores. Estou arruinado, pela terceira vez na vida, por banqueiros incompetentes.

- Danny, por favor! - protestou Maisie.

Ele sabia muito bem que tanto Solly quanto Hugh eram banqueiros. Mas Hugh interveio:

- Não se preocupe. Também detestamos os banqueiros incompetentes. Constituem uma ameaça a todos. Mas o que aconteceu exatamente, Mr. Robinson?

- Passei cinco anos desenvolvendo a Associação Beneficente. Era um tremendo sucesso. Pagávamos centenas de libras todas as semanas em benefícios e recebíamos milhares em contribuições. Mas o que deveríamos fazer com os excedentes?

- Presumo que guardaram contra a possibilidade de um ano desfavorável - disse Solly.

- E onde acha que guardamos?

- Num banco, eu espero.

- No City of Glasgow Bank, para ser mais preciso.

- Mas que pena! - murmurou Solly.

- Não estou entendendo - interveio Maisie. Solly explicou:

- O City of Glasgow Bank quebrou.

- Oh, não!

Maisie estava com vontade de chorar. Danny balançou a cabeça.

- Todos aqueles xelins pagos por trabalhadores honestos... perdidos por idiotas de cartola. E ainda há quem se espante que as pessoas falem em revolução. - Ele suspirou.

- Tenho tentado salvar a Associação desde que isso aconteceu, mas o esforço era inútil, e acabei desistindo.

Kingo disse, abruptamente:

- Mr. Robinson, lamento por você e seus associados. Não quer tomar um refresco? Deve ter andado 12 quilômetros se veio a pé da estação.

- Quero, sim, obrigado.

- Entrarei com Danny e deixarei que vocês terminem seu passeio - disse Maisie.

Ela sentia que o irmão estava magoado e queria ficar a sós com ele, fazendo o que pudesse para atenuar seu desespero. Os outros também sentiam a tragédia, e Kingo indagou:

- Vai passar a noite aqui, Mr. Robinson?

Maisie estremeceu. Kingo estava sendo generoso demais. Era muito fácil ser cortês com Danny por alguns minutos ali fora, no parque, mas se ele passasse a noite, Kingo e seus amigos indolentes logo se cansariam de suas roupas ordinárias e preocupações das classes trabalhadoras e passariam a esnobá-lo, o que o deixaria ainda mais magoado. Mas Danny disse:

- Preciso chegar a Londres ainda esta noite. Só vim passar umas poucas horas com minha irmã.

- Neste caso, permita que eu mande minha carruagem levá-lo à estação no momento em que desejar - propôs Kingo.

- Agradeço a gentileza. Maisie pegou o braço do irmão.

- Venha comigo; providenciarei alguma coisa para você comer.

Depois que Danny partiu para Londres, Maisie foi se juntar a Solly para um cochilo vespertino. Solly deitou na cama num roupão vermelho de seda e observou-a se despir.

- Não posso salvar a Associação Beneficente de Dan - disse ele. - Mesmo que houvesse algum senso financeiro nisso... o que não acontece... não conseguiria persuadir os outros sócios.

Maisie experimentou um súbito ímpeto de afeição pelo marido. Não lhe pedira para ajudar Danny.

- Você é um homem muito bom. - Ela abriu o roupão, beijou a vasta barriga de Solly. -Já fez demais por minha família, nunca precisa se desculpar. Além do mais, Danny não aceitaria sua ajuda, e você sabe disso. Ele é muito orgulhoso.

- Mas o que ele pretende fazer? Maisie tirou as anáguas e baixou as meias.

- Vai se reunir amanhã com a Sociedade Profissional dos Engenheiros. Quer ser um membro do Parlamento, e espera que eles o patrocinem.

- E imagino que ele fará campanha por regulamentos mais rigorosos do governo para os bancos.

- Você seria contra isso?

-Jamais gostaríamos que o governo nos dissesse o que fazer. É verdade que tem havido muitas quebras, mas poderia ocorrer ainda mais se os políticos dirigissem os bancos.

Ele rolou para o lado e apoiou a cabeça na mão para ter uma visão melhor de Maisie tirando as roupas de baixo.

- Eu gostaria de não ter de partir esta noite.

Maisie desejava o mesmo. Uma parte dela sentia-se excitada pela perspectiva de ficar a sós com Hugh durante a ausência de Solly, mas isso aumentava ainda mais seu sentimento de culpa.

- Não me importo - murmurou ela.

- Sinto-me envergonhado por minha família, Maisie.

- Não deveria.

Era a Páscoa, e Solly ia celebrar o seder com os pais. Maisie não fora convidada. Compreendia a aversão que Ben Greenbourne lhe devotava, e chegava a achar que merecia a maneira como era tratada. Solly, no en tanto, sentia-se profundamente perturbado.

Seria capaz até de brigar com o pai se Maisie permitisse, mas ela não queria ter isso também na consciência e insistia que ele continuasse a se encontrar com os pais normalmente.

- Tem certeza de que não se importa? - indagou ele, ansioso.

- Claro que tenho. Se me preocupasse com essas coisas, poderia ir para Manchester e passar a Páscoa com meus pais. - Ela se calou, pensativa, por um momento. - A verdade é que nunca me senti parte de todo esse ritual judaico desde que deixamos a Rússia. Quando chegamos à Inglaterra, não havia judeus na cidade. As pessoas com as quais convivi no circo não tinham qualquer religião em sua maioria. Mesmo depois que casei com um judeu, sua família me fez sentir indesejável. Estou fadada a ser uma intrusa, e para dizer a verdade, não me importo. Deus nunca fez nada por mim. - Maisie sorriu. - Mama diz que Deus deu você a mim, mas isso é bobagem:

eu o conquistei por mim mesma.

Solly sentiu-se tranqüilizado.

- Sentirei sua falta esta noite.

Maisie sentou na beira da cama e inclinou-se para que ele pudesse aconchegar-se a seus seios.

- Também sentirei sua falta.

- Hum...

Depois de um momento deitaram lado a lado, ao contrário, e Solly acariciou-a entre as pernas enquanto ela beijava, lambia e depois sugava seu pênis. Ele adorava fazer isso à tarde, e soltou um grito abafado ao gozar em sua boca.

Maisie mudou de posição e aninhou-se em seu ombro.

- Que gosto tem? - indagou ele, sonolento. Ela estalou os lábios.

- Caviar.

Solly riu e fechou os olhos.

Maisie começou a se acariciar. Logo ele estava roncando. E quando ela gozou, Solly nem se mexeu.

- Os homens que dirigiam o City of Glasgow Bank deviam ir para a cadeia - disse Maisie pouco antes do jantar.

- Isso é um pouco duro - protestou Hugh. Ela achou o comentário presunçoso.

- Duro? - repetiu ela, irritada. - Não tão duro quanto o que aconteceu aos trabalhadores que perderam seu dinheiro!

- Ainda assim, ninguém é perfeito, nem mesmo esses trabalhadores - insistiu Hugh. - Se um carpinteiro comete um erro e uma casa cai, ele deve ir para a cadeia?

- Não é a mesma coisa!

- E por que não?

- Porque o carpinteiro ganha 30 xelins por semana e é obrigado a seguir as ordens de um capataz, enquanto um banqueiro ganha milhares de libras e justifica isso

com a alegação de que carrega o peso da responsabilidade.

- É verdade. Mas o banqueiro é humano, tem uma esposa e filhos para sustentar.

- Pode-se dizer o mesmo de assassinos, mas os enforcamos independentemente do destino de seus filhos órfãos.

- Mas se um homem mata outro acidentalmente, por exemplo, ao atirar num coelho e acertar um homem que se escondia atrás de uma moita, nem mesmo o mandamos para a cadeia. Então por que deveríamos encarcerar os banqueiros que perdem o dinheiro de outras pessoas?

- Para tornar os banqueiros mais cuidadosos!

- E pela mesma lógica, poderíamos enforcar o homem que atirou no coelho, para tornar os outros caçadores mais cuidadosos.

- Hugh, você está distorcendo tudo.

- Não estou, não. Por que tratar os banqueiros negligentes com mais rigor do que os caçadores negligentes?

- A diferença é que os tiros descuidados não jogam milhares de trabalhadores na miséria a intervalos de poucos anos, como fazem os banqueiros.

A esta altura, Kingo interveio na conversa, lânguido:

- É bem provável que os diretores do City of Glasgow Bank acabem na cadeia, pelo que ouvi dizer; e o gerente também.

- Creio que é inevitável - confirmou Hugh. Maisie sentiu vontade de gritar em frustração.

- Então por que me contestou? Ele sorriu.

- Para ver se você podia justificar sua atitude.

Ela recordou que Hugh sempre tivera o poder de lhe fazer isso e mordeu a língua. Sua personalidade inflamada era uma das coisas que atraíam a Turma de Marlborough, um dos motivos pelos quais aceitavamna, apesar de suas origens; mas acabariam entediados se ela permitisse que seus acessos se prolongassem além da conta. Seu ânimo mudou no mesmo instante.

- Senhor, acaba de me insultar! - gritou ela, teatral. - Eu o desafio para um duelo!

- com que armas as damas duelam? - indagou Hugh, rindo.

- Agulhas de crochê ao amanhecer!

Todos riram, e nesse instante um criado entrou para anunciar o jantar.

Havia sempre de 18 a 20 pessoas em torno da mesa comprida. Maisie não se cansava de admirar o linho engomado e a porcelana delicada, as centenas de velas refletidas nos copos, os impecáveis trajes a rigor em preto e branco dos homens, as cores deslumbrantes e as jóias de valor inestimável das mulheres. Havia champanhe todas as noites, mas ia direto para a cabeça de Maisie, e por isso ela só se permitia um ou dois goles.

Descobriu-se sentada ao lado de Hugh. A duquesa normalmente a colocava junto de Kingo, pois ele gostava de mulheres bonitas, e a duquesa era tolerante; mas naquela noite, ao que parecia, ela decidira variar a fórmula. Ninguém disse uma oração, pois naquele grupo a religião era reservada apenas aos domingos. A sopa foi servida e Maisie conversou na maior jovialidade com os homens ao seu lado. Seus pensamentos, no entanto, desviavam-se a todo instante para o irmão. Pobre Danny! Tão inteligente, tão dedicado, um líder tão vigoroso... e tão desafortunado. Ela se perguntou se Danny teria êxito em sua nova ambição, a de se tornar um membro do Parlamento. Esperava que sim. Papa ficaria muito orgulhoso.

Hoje, de uma forma inesperada, suas origens haviam se intrometido visivelmente em sua nova vida. Era surpreendente quão pouca diferença fazia. Como ela, Danny não parecia pertencer a qualquer classe específica da sociedade. Representava os trabalhadores; seus trajes eram da classe média; e, no entanto, exibia o mesmo comportamento confiante e um pouco arrogante de Kingo e seus amigos. Não poderiam dizer com facilidade se ele era um filho da classe superior que optara pelo martírio entre os trabalhadores ou um filho da classe trabalhadora que subira na vida.

Algo similar se aplicava a Maisie. Qualquer pessoa com um mínimo de instinto para as diferenças de classe poderia dizer que ela não nascera uma dama. Contudo, desempenhava o papel tão bem, era tão bonita e encantadora, que também não podiam acreditar no persistente rumor de que Solly a conhecera num salão de dança. Se restava alguma dúvida sobre sua aceitação pela sociedade de Londres, estava fora dirimida quando o Príncipe de Gales, filho da rainha Vitória e futuro rei, confessara-se "cativado"

por ela e lhe enviara de presente uma cigarreira de ouro com um fecho de diamantes.

Durante a refeição, ela foi sentindo mais e mais a presença de Hugh ao seu lado. Fez um esforço para manter a conversa leve, e cuidou de falar também com o homem no outro lado; mas o passado parecia rondar à sua volta, esperando para ser reconhecido, como um suplicante cansado e paciente.

Ela e Hugh haviam se encontrado três ou quatro vezes desde que ele voltara a Londres, e agora se encontravam há 48 horas na mesma casa, mas nunca tinham conversado sobre o que acontecera seis anos antes. Tudo o que Hugh sabia era que ela desaparecera sem deixar vestígios, apenas para ressurgir depois como Mrs. Solomon Greenbourne.

Mais cedo ou mais tarde, Maisie teria que lhe dar alguma explicação. Ela tinha medo de que uma conversa a respeito ressuscitasse todos os antigos sentimentos em ambos. Mas era preciso, e talvez aquela fosse uma ocasião oportuna, com Solly ausente.

Houve um momento em que várias pessoas ao redor da mesa conversavam ruidosamente. Maisie decidiu que deveria falar agora. Virou-se para Hugh e subitamente foi dominada pela emoção. Começou a falar três ou quatro vezes, e não conseguiu continuar. Ao final, pôde apenas balbuciar umas poucas palavras:

- Eu teria arruinado sua carreira, sabe disso.

Depois, teve de fazer um esforço tão grande para não chorar que não foi capaz de acrescentar mais nada. Hugh compreendeu no mesmo instante o que ela queria dizer.

- Quem lhe disse que arruinaria minha carreira?

Se ele se mostrasse compadecido, Maisie poderia desmoronar, mas felizmente Hugh falou num tom agressivo, o que lhe permitiu responder:

- Sua Tia Augusta.

- Eu já desconfiava que ela estava envolvida de alguma forma.

- Mas ela tinha razão.

- Não acredito nisso - respondeu ele, irritado. - Você não arruinou a carreira de Solly.

- Acalme-se. Solly não era a ovelha negra da família. Mesmo assim, foi muito difícil. A família dele ainda me odeia.

- Apesar de você ser judia?

- Não faz diferença. Os judeus podem ser tão esnobes quanto as outras pessoas.

Ele nunca saberia o verdadeiro motivo... que Bertie não era filho de Solly.

- Por que não me contou o que estava fazendo, e qual era o motivo?

- Não podia. - Recordando aqueles dias horríveis, Maisie sentiu que sufocava outra vez e respirou fundo para se acalmar. - Descobri que era muito difícil me afastar daquele jeito, partiu meu coração. Não conseguiria se ainda tivesse de me justificar para você. Ainda assim, ele persistiu.

- Poderia ter me enviado um bilhete.

A voz de Maisie baixou para um sussurro:

- Não tive coragem de escrevê-lo.

Hugh finalmente abrandou. Toniou um gole do vinho, evitando os olhos de Maisie.

- Foi horrível não compreender, não saber se você ainda estava viva. Ele falava em tom ríspido, mas agora Maisie podia perceber a angústia recordada em seus olhos.

- Lamento muito - balbuciou ela. - Lamento tê-lo feito sofrer. Não queria isso. Apenas queria salvá-lo da infelicidade. Fiz por amor.

Ela se arrependeu no mesmo instante em que pronunciou a palavra. Hugh indagou abruptamente.

- Você ama Solly agora?

- Amo.

- Os dois parecem muito bem.

- Pela maneira como vivemos... não é difícil nos sentirmos contentes. Ele ainda não descarregara toda a sua fúria.

- Você conseguiu o que sempre desejou.

Era um pouco exagerado, mas ela achou que talvez merecesse; por isso limitou-se a balançar a cabeça.

- O que aconteceu com April?

Maisie hesitou. Estava indo longe demais.

- Quer dizer que me compara a April? - murmurou ela, magoada. Por algum motivo, isso conteve a raiva de Hugh. Ele sorriu, pesaroso.

- Não, você nunca foi como April. Sei disso. Apesar disso, eu gostaria de saber o que aconteceu com ela. Você ainda a vê?

- Ainda... discretamente.

April era um tópico neutro: conversar a seu respeito os afastaria daquele terreno perigosamente emocional. Ela decidiu satisfazer a curiosidade de Hugh.

- Conhece um lugar chamado Nellie"s? Ele baixou a voz:

- É um bordel.

Maisie não pôde se abster de perguntar: -Já esteve lá alguma vez? Hugh ficou embaraçado.

- Uma vez... e foi um fiasco.

O que não a surpreendeu, pois recordava como Hugh era ingênuo e inexperiente aos 20 anos.

- Pois April agora é a dona do lugar.

- Incrível! Como isso aconteceu?

- Primeiro, ela se tornou amante de um famoso escritor e foi viver no mais lindo chalé de Clapham. Ele cansou-se de April na mesma ocasião em que Nell pensava em se aposentar. Assim, April vendeu o chalé e comprou a casa de Nell.

- É engraçado... Jamais esquecerei Nell. Foi a mulher mais gorda que já conheci.

As pessoas à mesa ficaram quietas de repente, e a última frase foi ouvida por diversas pessoas próximas. Houve risos e alguém perguntou:

- Quem era essa mulher tão gorda?

Hugh apenas sorriu, não respondendo. Depois, os dois se mantiveram longe de assuntos perigosos, mas Maisie sentia-se deprimida e um tanto frágil, como se tivesse sofrido uma queda e se machucado.

Quando o jantar terminou e os homens fumavam seus charutos, Kingo anunciou que queria dançar. O tapete da sala de estar foi enrolado e um lacaio que sabia tocar polcas no piano foi chamado.

Maisie dançou com todos, à exceção de Hugh; mas logo ficou óbvio que o evitava, e acabou dançando com ele também. Foi como se seis anos se desvanecessem e se encontrassem de novo em Cremorne Gardens. Hugh mal a conduzia: pareciam fazer a mesma coisa instintivamente. Maisie não pôde reprimir o pensamento desleal de que Solly era um dançarino desajeitado.

Depois, Hugh pegou outra parceira, mas os outros pararam de chamar Maisie para dançar. Enquanto as dez horas viravam onze, e o conhaque aparecia, as convenções foram abandonadas: gravatas brancas foram afrouxadas, algumas mulheres tiraram os sapatos, e Maisie fez par constante com Hugh. Sabia que deveria se sentir culpada, mas nunca fora de se deixar angustiar pela culpa: estava se divertindo, e não ia parar.

Quando o lacaio-pianista ficou exausto, a duquesa quis respirar um pouco de ar fresco; as criadas foram buscar casacos a fim de que todos pudessem dar uma volta pelo jardim. Na escuridão, Maisie pegou o braço de Hugh.

- Todo mundo sabe o que andei fazendo nos últimos seis anos, mas e você?

- Gosto da América. Não há sistema de classes. Há ricos e pobres, mas não existe aristocracia, nenhuma dessas bobagens de posição e protocolo. O que você fez ao casar com Solly e se tornar amiga dos mais po derosos do país é muito raro aqui, e mesmo agora sou capaz de apostar que nunca revelou toda a verdade sobre suas origens...

- Eles desconfiam, eu acho... mas você tem razão, não contei tudo.

- Na América, você se gabaria de seus princípios humildes, da mesma forma como Kingo se gaba de seus ancestrais lutando na Batalha de Agincourt.

Ela estava interessada em Hugh, não na América.

- Você não casou.

- Não.

- Em Boston... houve alguma moça de quem gostasse?

- Bem que tentei, Maisie.

Subitamente, ela desejou não ter feito a pergunta, pois teve uma premonição de que a resposta destruiria sua felicidade; mas era tarde demais, a pergunta fora formulada, e ele já respondia.

- Havia moças bonitas em Boston, simpáticas, inteligentes, moças que dariam maravilhosas esposas e mães. Interessei-me por algumas, e elas pareciam gostar de mim.

Mas quando chegava o momento em que tinha de propor casamento ou recuar, sempre constatei que meus sentimentos não eram suficientes. Não era o que senti por você.

Não era amor.

Agora, ele já dissera.

- Pare! - sussurrou Maisie.

- Duas ou três mães ficaram aborrecidas comigo, minha reputação se espalhou, as moças se tornaram cautelosas. Mostravam-se bastante simpáticas, mas sabiam que havia algo errado comigo; eu não era sério, não era do tipo casadouro. Hugh Pilaster, o banqueiro inglês que partia corações. E se alguma moça parecia se apaixonar por mim, apesar de minha reputação, eu tratava de desencorajá-la. Não gosto de partir os corações de outras pessoas. Sei muito bem qual é a sensação.

Maisie percebeu que seu rosto se achava molhado de lágrimas, e sentiu-se grata pela escuridão.

- Sinto muito - sussurrou ela, tão baixo que mal deu para ouvir a própria voz.

- Seja como for, sei agora o que há de errado comigo. Creio que sempre soube, mas os dois últimos dias removeram qualquer dúvida.

Haviam ficado um pouco para trás dos outros; Hugh parou e fitou-a. Maisie balbuciou:

- Não fale, Hugh, por favor.

- Ainda amo você. Isso é tudo. Já falara, e estava tudo arruinado.

- E acredito que você também me ama - acrescentou ele, implacável. - Não é verdade?

Maisie fitou-o também. Podia ver refletidas em seus olhos as luzes da casa, no outro lado do gramado, mas o rosto de Hugh se mantinha nas sombras. Ele inclinou a cabeça, beijou-a nos lábios, e ela não se afastou.

- Lágrimas salgadas - murmurou ele, depois de um momento. - Você me ama. Eu sabia.

Hugh tirou do bolso um lenço dobrado e tocou gentilmente no rosto de Maisie, enxugando as lágrimas. Ela tinha de acabar com aquilo.

- Precisamos alcançar os outros antes que comecem a falar. Maisie virou-se, começou a andar, e Hugh tinha de largar seu braço ou acompanhá-la. Ele foi junto.

- Estou surpreso que se preocupe com o que as pessoas possam falar, Maisie. Sua turma é famosa por não se importar com coisas desse tipo.

Ela não estava de fato interessada nos outros. Era consigo mesma que se preocupava. Obrigou-o a andar mais depressa até se juntarem aos outros; depois se afastou de Hugh e passou a conversar com a duquesa.

Sentia-se vagamente aborrecida pelo comentário de Hugh de que a Turma de Marlborough era famosa por sua tolerância. Era verdade, mas gostaria que ele não tivesse usado a expressão coisas desse tipo, e não sabia direito por quê.

Ao retornarem à casa, o relógio no vestíbulo marcava meia-noite. Maisie sentiu-se de repente esgotada pelas tensões do dia e anunciou:

- Vou para a cama.

Viu a duquesa lançar um olhar pensativo para Hugh, depois para ela, reprimindo o riso, e compreendeu que todos pensavam que os dois dormiriam juntos naquela noite.

As mulheres subiram juntas, deixando os homens jogarem bilhar e tomarem um último drinque. Enquanto as mulheres lhe davam um beijo de boa-noite, Maisie percebeu a mesma expressão nos olhos de cada uma, um brilho de excitamento mesclado de inveja.

Foi para o seu quarto e fechou a porta. Um fogo mantido a carvão ardia alegre na lareira, e havia velas no consolo e na penteadeira. Na mesinha de cabeceira, como sempre, havia uma bandeja com sanduíches e uma garrafa de xerez, para o caso de ela sentir fome durante a noite. Maisie nunca os tocava, mas os bem-treinados criados de Kingsbridge Manor sempre deixavam uma bandeja ao lado de sua cama, sem falta.

Ela começou a se despir. Todos podiam estar errados: talvez Hugh não a procurasse naquela noite. O pensamento foi como uma pontada de dor, e compreendeu que ansiava por ele, queria vê-lo passar pela porta a fim de poder abraçá-lo e beijá-lo, beijos de verdade, sem qualquer culpa, como acontecera no jardim, mas sôfregos, sem inibições - o que trouxe de volta a lembrança sufocante da noite das corridas de Goodwood, seis anos antes, a cama estreita na casa da tia de Hugh, a expressão em seu rosto quando ela tirara o vestido.

Maisie contemplou seu corpo no espelho comprido. Hugh notaria como mudara. Seis anos antes, ela tinha pequenos mamilos rosados, como covinhas, mas agora, depois de amamentar Bertie, haviam crescido, saltado para fora, adquirido uma cor de morango. Quando moça, ela não precisava usar espartilho - tinha um corpo afilado natural, mas sua cintura nunca voltara completamente ao normal depois da gravidez.

Ouviu os homens subindo a escada, arrastando os pés, rindo de alguma piada. Hugh tinha razão: nenhum deles ficaria chocado por um pequeno adultério numa festa de dias no campo. Não se sentiriam desleais com seu amigo Solly? pensou Maisie, desdenhosa. E foi então que lhe ocorreu, como um tapa na cara, que era ela quem devia se sentir desleal.

Excluíra Solly de sua mente durante toda a noite, mas agora ele voltou em espírito: o inofensivo e amável Solly, o gentil e generoso Solly, o homem que a amava perdidamente, o homem que amava Bertie mesmo sabendo que era filho de outro. Poucas horas depois que Solly viajara, Maisie já se dispunha a deixar que outro homem fosse à sua cama. Que tipo de mulher eu sou? pensou ela.

Num súbito impulso, foi até a porta e trancou-a.

Entendeu agora por que detestara quando Hugh dissera Sua turma é famosa por não se importar com coisas desse tipo. Fazia com que seus sentimentos por Hugh parecessem vulgares, assim como qualquer outro dos muitos flertes, romances e infidelidades que proporcionavam temas para as conversas das mulheres da sociedade. Solly merecia algo melhor do que ser traído por uma ligação vulgar.

Mas eu quero Hugh, pensou ela.

A idéia de renunciar àquela noite em sua companhia deixou-a com vontade de chorar. Recordou seu sorriso infantil, o peito magro, os olhos azuis, a pele branca e lisa; e lembrou também a expressão em seu rosto quando, contemplara seu corpo, a expressão de admiração e felicidade, desejo e prazer; e parecia muito difícil renunciar a tudo isso.

Houve uma batida leve na porta.

Ela ficou parada no meio do quarto, nua, paralisada e atordoada.

A maçaneta girou, a porta foi empurrada, mas é claro que não abriu.

Ela ouviu seu nome pronunciado em voz baixa.

Foi até a porta e pôs a mão na chave.

- Maisie! - chamou ele, baixinho. - Sou eu, Hugh!

Ela ansiava tanto por ele que o som de sua voz a deixou toda molhada. Enfiou um dedo na boca, mordeu com força, mas a dor não mascarou o desejo.

Hugh tornou a bater na porta.

- Maisie! Não quer me deixar entrar?

Ela se encostou na parede, as lágrimas escorrendo pelas faces, pingando do queixo para os seios.

- Vamos pelo menos conversar!

Maisie sabia que não haveria conversa se abrisse a porta... trataria de abraçá-lo, e cairiam no chão, num frenesi de desejo.

- Diga alguma coisa. Você está aí? Sei que está aí! Ela ficou imóvel, chorando em silêncio.

- Por favor, Maisie... por favor... Depois de algum tempo, ele foi embora.

Maisie dormiu mal, acordou cedo, mas se reanimou um pouco quando o novo dia raiou. Antes que os outros hóspedes se levantassem foi até a ala das crianças, como sempre fazia. Parou de repente, diante da porta da sala de refeições. Não fora a primeira hóspede a se levantar, no final das contas. Podia ouvir uma voz de homem lá dentro.

Ficou escutando. Era Hugh, que dizia:

- ... e foi nesse momento que o gigante acordou.

Houve um grito infantil de terror e satisfação, e Maisie reconheceu que partira de Bertie. Hugh continuou:

-João desceu pelo pé de feijão tão depressa quanto suas pernas podiam... mas o gigante foi atrás dele!

A filha de Kingo, Arme, interveio, com o jeito superior de uma menina de sete anos que pensava saber de tudo:

- Bertie se escondeu atrás de sua cadeira porque está com medo. Eu não tenho medo.

Maisie queria se esconder como Bertie. Virou-se. começou a voltar para seu quarto, mas parou de novo. Teria de enfrentar Hugh hoje, em algum momento, e ali poderia ser o lugar mais fácil. Tratou de se controlar

e entrou.

Hugh mantinha as três crianças fascinadas. Bertie mal reparou na entrada da mãe. Hugh fitou-a, com mágoa nos olhos.

- Não pare - disse Maisie, sentando ao lado de Bertie e abraçando-o.

Hugh tornou a se concentrar nas crianças.

- E o que vocês acham que João fez em seguida?

- Eu sei - declarou Anne. - Ele pegou um machado.

- Isso mesmo.

Maisie continuou sentada ali, abraçando Bertie, que fitava de olhos arregalados o homem que era o seu verdadeiro pai. Se eu puder suportar isso, pensou Maisie, sou capaz de qualquer coisa.

- Enquanto o gigante ainda estava no meio do pé de feijão - continuou Hugh -João cortou-o com o machado! O gigante despencou lá de cima... e morreu. E João e sua mãe viveram felizes para sempre.

Bertie pediu:

- Conte de novo.

O embaixador cordovês estava muito ocupado. Amanhã era o Dia da Independência de Córdoba, e haveria uma grande recepção à tarde para membros do Parlamento, autoridades do Ministério do Exterior britânico, diplomatas e jornalistas. Naquela manhã, para aumentar suas preocupações, Micky Miranda recebera um comunicado formal do ministro do Exterior sobre dois turistas ingleses que haviam sido assassinados quando exploravam os Andes. Mas quando Edward Pilaster chamou, Micky Miranda largou tudo, pois o que tinha a dizer ao amigo era muito mais importante do que a recepção ou o protesto. Precisava de meio milhão de libras e esperava obter todo esse dinheiro de Edward.

Micky era o embaixador cordovês há um ano. Obter o cargo exigira toda a sua astúcia, mas também custara à sua família uma fortuna em subornos em Córdoba. Prometera a Papa que todo o dinheiro seria devolvido à família, e agora precisava cumprir a promessa. Preferia morrer a decepcionar o pai.

Ele levou Edward para o gabinete do embaixador, uma sala grande no segundo andar, dominada por uma enorme bandeira cordovesa. Foi até a mesa, abriu um mapa de Córdoba, prendendo os cantos com sua charuteira, a garrafa de cristal com xerez, um copo e a cartola cinza de Edward. Hesitou por um instante. Era a primeira vez que pedia meio milhão de libras a alguém.

- Aqui está a província de Santamaria, no norte do país - começou ele.

- Conheço a geografia de Córdoba - disse Edward, impaciente.

- Sei que conhece.

Era verdade. O Pilasters Bank tinha um considerável volume de negócios em Córdoba, financiando suas exportações de nitrato, carne salgada e prata, e as importações de equipamentos de mineração, armas e artigos de luxo. Edward cuidava de todas as operações graças a Micky, que como adido e depois embaixador tornara a vida difícil para qualquer um que não quisesse usar o Pilasters Bank para financiar seu comércio com o país. Em conseqüência, Edward era agora considerado o maior entendido em Córdoba em Londres.

- Sei que conhece - repetiu Micky. - E sabe também que todo o nitrato extraído por meu pai tem de ser transportado em caravanas de mulas de Santamaria para Palma.

Mas o que pode não saber é que é perfeitamente possível construir uma ferrovia ao longo desse percurso.

- Como pode ter certeza? Uma ferrovia é uma coisa muito complicada. Micky pegou um volume encadernado em sua escrivaninha.

- Porque meu pai encomendou um levantamento a um engenheiro escocês, Gordon Halfpenny. Todos os detalhes estão aqui... inclusive os custos. Dê uma olhada.

- Quanto? - indagou Edward.

- Quinhentas mil libras.

Edward folheou as páginas do relatório.

- Como está a situação política?

Micky levantou os olhos para o enorme retrato do presidente Garcia, no uniforme de comandante-em-chefe. Cada vez que olhava para aquilo, Micky jurava a si mesmo que um dia seria o seu próprio retrato que ocuparia aquele espaço na parede.

- O presidente é a favor da idéia. Acredita que reforçará seu controle militar sobre o interior.

Garcia confiava em Papa. Desde que Papa se tornara governador da província de Santamaria - com a ajuda de dois mil rifles Westley-Richards, de cano curto, fabricados em Birmingham - os Mirandas eram os mais fervorosos partidários e maiores aliados do presidente. Garcia não desconfiava dos motivos de Papa para querer uma ferrovia até a capital: permitiria que a família Miranda atacasse Palma em dois dias, em vez de duas semanas.

- Como será financiada? - perguntou Edward.

- Levantaremos o dinheiro no mercado de Londres - respondeu Micky, num tom jovial. - Para ser mais preciso, pensei que o Pilasters Bank poderia gostar de se encarregar da operação.

Ele tentava manter uma respiração lenta e normal. Era o clímax do longo e meticuloso cultivo da família Pilaster, a recompensa por anos de preparativos. Mas Edward sacudiu a cabeça.

- Não creio.

Micky ficou atônito e consternado. Na pior das hipóteses, esperava que Edward concordasse em pensar a respeito.

- Mas vocês estão sempre levantando dinheiro para ferrovias... pensei que aproveitariam essa oportunidade com a maior satisfação!

- Córdoba não é a mesma coisa que o Canadá ou a Rússia - explicou Edward. - Os investidores não gostam da estrutura política de seu país, cada caudilho de província contando com seu exército particular. É medieval.

Micky não pensara nisso.

- Mas vocês financiaram a mina de prata de Papa!

- Tem razão. É a única mina de prata da América do Sul que tem dificuldades para dar algum lucro.

Na verdade, a mina era muito rica, mas Papa desviava todos os lucros e não deixava nada para os acionistas. Se ao menos ele deixasse uma pequena margem para garantir a respeitabilidade! Mas Papa nunca escutava conselhos desse tipo. Micky fez um esforço para conter o pânico, mas as emoções deviam ter transparecido em seu rosto, pois Edward disse, preocupado:

- É tão importante assim, meu caro? Você parece transtornado.

- Para ser franco, significaria muito para minha família - admitiu Micky. Achava que Edward poderia levantar o dinheiro, se quisesse de fato; não podia ser impossível.

- Se um banco com o prestígio do Pilasters apoiasse o projeto, tenho certeza de que as pessoas concluiriam que Córdoba deve ser um bom lugar para se investir.

- É bem possível - concordou Edward. - Se um dos sócios apresentasse a proposta e quisesse mesmo executá-la, provavelmente teria sucesso. Acontece que não sou um sócio.

Micky compreendeu que subestimara a dificuldade de levantar meio milhão de libras. Mas não estava vencido. Encontraria uma forma.

- Terei de pensar de novo - disse ele, com uma jovialidade forçada. Edward esvaziou seu copo de xerez e levantou-se.

- Vamos almoçar?

Naquela noite, Micky e os Pilasters assistiriam a H.M.S. Pinafore, no Opera Comique. Micky chegou alguns minutos antes. Enquanto esperava no saguão, encontrou a família Bodwin, muito ligada aos Pilasters: Albert Bodwin era um advogado que trabalhava bastante para o banco, e Augusta tentara outrora casar a filha dele, Rachel Bodwin, com Hugh.

A mente de Micky se concentrava no problema de levantar dinheiro para a ferrovia, mas ele flertou com Rachel Bodwin numa reação automática, como fazia com todas as moças e muitas mulheres casadas.

- Como vai o movimento de emancipação feminina, Miss Bodwin? A mãe corou e pediu:

- Eu gostaria que não falasse a respeito, Senor Miranda.

- Então não falarei, Mrs. Bodwin, pois seus desejos são para mim como as Leis do Parlamento, legalmente compulsórias.

Ele tornou a se virar para Rachel. Ela não era exatamente bonita, - os olhos eram juntos demais - mas tinha um corpo atraente, pernas compridas, cintura estreita, busto volumoso. Num súbito relance de fantasia, Micky imaginou-a com as mãos amarradas na cabeceira de uma cama, as pernas nuas abertas, e gostou da imagem. Levantando os olhos de seu busto, ele surpreendeu os olhos de Rachel. A maioria das moças teria corado e se apressado em virar o rosto, mas ela ofereceu-lhe um olhar de extraordinária franqueza e sorriu; foi Micky quem se sentiu embaraçado. Procurando algum assunto, ele perguntou:

- Sabia que nosso velho amigo Hugh Pilaster voltou das colônias?

- Claro que sabia. Estive com ele na Whitehaven House. Você também se achava presente.

- Ah, sim... Eu tinha esquecido.

- Sempre gostei de Hugh.

Mas não queria casar com ele, pensou Micky. Rachel se encontrava em oferta no mercado de casamentos há muitos anos, e começava a parecer uma mercadoria velha e encalhada, refletiu ele, cruelmente. Seu instinto, porém, lhe dizia que Rachel era uma mulher das mais sensuais. Seu problema, sem dúvida, era ser formidável demais. Afugentava os homens. Mas devia estar ficando desesperada. Aproximava-se dos 30 anos e continuava solteira; com certeza especulava se estaria fadada a uma vida de solteirona.

Algumas mulheres podiam encarar essa perspectiva com serenidade, mas não era o caso de Rachel, Micky tinha certeza.

Ela sentia-se atraída por ele, mas o mesmo acontecia com quase todas as pessoas, jovens e velhas, homens e mulheres. Micky gostava quando pessoas ricas e influentes se deixavam fascinar por ele, pois isso lhe proporcionava poder; mas Rachel não era ninguém, e seu interesse por ele não tinha o menor valor.

Os Pilasters chegaram, e Micky concentrou sua atenção em Augusta. Ela usava um vestido rosa deslumbrante.

- Parece... deliciosa, Mrs. Pilaster - murmurou ele.

Augusta sorriu com evidente prazer. As duas famílias conversaram por alguns minutos, e depois chegou o momento de ocuparem seus lugares.

Os Bodwins estavam na platéia, mas os Pilasters tinham um camarote. Ao se separarem, Rachel ofereceu um sorriso efusivo a Micky e disse:

- Talvez possamos nos encontrar de novo mais tarde, Senor Miranda.

O pai ouviu e exibiu uma expressão desaprovadora ao pegar seu braço e se afastar apressado, mas Mrs. Bodwin sorriu para Micky ao se separarem. Mr. Bodwin não queria que a filha se apaixonasse por um estrangeiro, pensou Micky, mas Mrs. Bodwin não é mais tão exigente.

Ele se preocupou com seu empréstimo ferroviário durante o primeiro ato. Não lhe ocorrera que a primitiva estrutura política de Córdoba, que permitira que a família Miranda lutasse para alcançar a riqueza e o poder, fosse encarada pelos investidores como um risco. Isso provavelmente significava que não conseguiria obter de qualquer outro banco o financiamento para o projeto ferroviário. O único meio de levantar o dinheiro seria usar sua influência interna com os Pilasters. E as únicas pessoas que podia influenciar eram Edward e Augusta.

Durante o primeiro intervalo, ele descobriu-se a sós no camarote com Augusta por alguns momentos e foi direto ao assunto, sabendo que ela apreciava sua franqueza:

- Quando Edward será promovido a sócio do banco?

- Essa é uma questão delicada - disse ela, amargurada. - Por que pergunta?

Micky fez um rápido relato sobre o projeto da ferrovia, excluindo o objetivo a longo prazo de Papa de atacar a capital.

- Não posso obter o dinheiro de outro banco... nenhum deles sabe nada sobre Córdoba porque os mantive a distância em benefício de Edward.

Não era o verdadeiro motivo, mas Augusta nunca saberia disso: ela não compreendia o mundo dos negócios.

- Mas seria um sucesso se Edward apresentasse a proposta - acrescentou ele.

Augusta balançou a cabeça.

- Meu marido prometeu promover Edward a sócio assim que ele casar.

Micky ficou surpreso. Edward casar? A idéia era desconcertante... e, no entanto, por que deveria ser?

- Até concordamos numa esposa, Emily Maple, a filha do diácono Maple - informou Augusta.

- Como ela é?

- Bonita, jovem... tem apenas 19 anos... e sensata. Os pais aprovam a união.

Parecia a mulher certa para Edward, pensou Micky: ele gostava de garotas bonitas, mas precisava de uma que pudesse dominar.

- Então qual é o obstáculo? Augusta franziu o cenho.

- Não sei. Mas por algum motivo Edward nunca se anima a pedi-la em casamento.

O que não surpreendia Micky. Não podia imaginar Edward casando, por mais apropriada que fosse a moça. O que ele tinha a ganhar com o casamento? Não desejava ter filhos. Mas agora havia um incentivo: a posição de sócio. Mesmo que Edward não se importasse com isso, Micky estava interessado.

- O que podemos fazer para encorajá-lo? Augusta fitou-o nos olhos.

- Tenho a impressão de que ele poderia concordar se você também casasse.

Micky desviou os olhos. Era muito perceptive da parte de Augusta. Ela não tinha a menor idéia do que acontecia nos quartos do bordel da Nellie... mas possuía uma intuição de mãe. Ele também achava que, se casasse primeiro, Edward poderia se mostrar mais disposto.

- Eu, casar? - murmurou Micky, soltando uma risada.

Claro que ele casaria, mais cedo ou mais tarde, pois todos casavam, mas não via motivo para fazê-lo por enquanto.

Mas se fosse o preço para obter o financiamento da ferrovia...

Não era apenas a ferrovia, refletiu Micky. Um empréstimo bem-sucedido levaria a outro. Países como a Rússia e o Canadá levantavam novos empréstimos todos os anos no mercado de Londres... para ferrovias, portos, companhias de abastecimento de água e financiamento geral do governo. Não havia razão para que Córdoba não pudesse fazer o mesmo. Micky receberia uma comissão, oficial ou extra-oficial, em cada libra obtida; e, mais importante ainda, o dinheiro seria canalizado para os interesses de sua família em Córdoba, tornando-a ainda mais rica e poderosa.

E a alternativa era inconcebível. Se decepcionasse o pai desta vez, nunca seria perdoado. Para evitar a sua ira, seria capaz de casar três vezes.

Ele tornou a olhar para Augusta. Nunca haviam falado sobre o que acontecera no quarto de Seth naquele mês de setembro de 1873, mas não era possível que ela tivesse esquecido. Fora sexo sem intercurso sexual, infidelidade sem adultério, alguma coisa e nada. Ambos estavam vestidos, durara apenas alguns segundos, mas fora mais arrebatado, comovente e inesquecível do que qualquer coisa que Micky já fizera com as prostitutas no bordel, e tinha certeza de que também fora um acontecimento significativo para Augusta. Como ela se sentia, no íntimo, diante da perspectiva do casamento de Micky? Metade das mulheres de Londres sentiria ciúme, mas era muito difícil saber o que havia no coração de Augusta. Ele decidiu perguntar diretamente, e fitou-a nos olhos.

- Quer mesmo que eu case?

Augusta hesitou. Ele viu o pesar em seu rosto por um momento, mas logo a expressão de Augusta se endureceu e a resposta soou firme:

- Quero.

Micky continuou a fitá-la. Ela sustentou o olhar. Ele compreendeu que Augusta falava a sério e sentiu um estranho desapontamento.

- Deve ser acertado em breve - continuou Augusta. - Emily Maple e os pais não ficarão à espera indefinidamente.

Em outras palavras, é melhor eu me casar depressa, pensou Micky. Pois casarei. Que assim seja.

Joseph e Edward voltaram ao camarote e a conversa passou para outros assuntos.

Durante o ato seguinte, Micky pensou em Edward. Eram amigos há 15 anos. Edward era fraco e inseguro, ansioso em agradar, mas sem iniciativa nem ímpeto. Seu projeto de vida era fazer com que as pessoas o encorajassem e apoiassem, e Micky vinha suprindo essa necessidade desde que começara a ajudá-lo com o latim no colégio. Agora, Edward precisava ser pressionado ao casamento, que era necessário para a sua carreira... e a de Micky. Durante o segundo intervalo, Micky disse a Augusta:

- Edward precisa de alguém para ajudá-lo no banco... um escrirurário inteligente, que lhe seja leal e cuide de seus interesses.

Augusta pensou por um momento.

- É uma boa idéia. Alguém que você e eu conheçamos e em quem possamos confiar.

- Exatamente.

- Tem alguém em vista?

- Tenho um primo trabalhando para mim na embaixada. Seu nome é Simon Oliver. Era Olivera, mas ele inglesou-o. É um rapaz inteligente e merece confiança absoluta.

- Leve-o para o chá - disse Augusta. - Se eu gostar do seu jeito, falarei com Joseph.

- Combinado.

O último ato começou. Ele e Augusta pensavam da mesma forma com freqüência, refletiu Micky. Era com Augusta que deveria casar: juntos, poderiam conquistar o mundo.

Ele tratou de afastar da cabeça a idéia fantástica. Com quem iria casar? Não devia ser uma herdeira, pois nada tinha a oferecer a uma moça assim. Havia várias herdeiras que poderia cativar com a maior facilidade, mas conquistar seus corações seria apenas o começo: haveria uma batalha prolongada com os pais, sem qualquer garantia de resultado certo. Nada disso. Precisava de uma moça de origens modestas, que já gostasse dele e...

 

                                                                                CONTINUA  

 

                      

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