Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
UMA PEQUENA CIDADE NA CAMPINA
Um dia, na hora do jantar, Papai perguntou:
— Laura, você gostaria de ir trabalhar na cidade?
Laura ficou sem poder dizer uma palavra, bem como todo o resto da família, gelada de surpresa. Os olhos de Grace se esbugalharam, os dentes de Carrie ficaram presos num pedaço de pão e Mary ficou com a mão no ar, segurando o garfo. Mamãe continuou pondo chá na xícara de Papai e quase que entornou.
— Que foi que você disse, Charles? perguntou.
— Perguntei se Laura gostaria de ir trabalhar na cidade, respondeu ele.
— Uma menina trabalhar na cidade? Que espécie de trabalho... Não, Charles, não vou deixar Laura trabalhar num hotel, no meio de uma porção de desconhecidos.
— Quem foi que falou nisso? Nenhuma filha nossa fará isso, pelo menos enquanto eu estiver vivo e puder trabalhar.
— Claro que não, disse Mamãe, em tom de desculpa. Mas você me surpreendeu tanto! Que outra espécie de trabalho pode ser? Laura ainda não tem idade para ser professora.
Papai começou a explicar e logo Laura entrou a pensar na cidade, no sítio onde viviam agora, tão cheios de trabalho e tão felizes, e achou que não queria que nada mudasse. Ela não queria trabalhar na cidade.
Depois da nevasca prolongada de outubro passado mudaram-se para a cidade e por algum tempo Laura ali freqüentou a escola. Posteriormente, a escola fora fechada em virtude das tempestades e, ao longo de todo o inverno, a nevasca açoitava as casas, isolando-as uma das outras. Dia após dia e noite após noite, mal se podia ouvir uma voz ou vislumbrar uma luz em meio à tempestade de neve.
Durante todo o inverno tinham ficado apinhados na pequena cozinha, com frio e fome, e trabalharam duramente no escuro e no frio, para preparar feno em suficiente quantidade para conservar o fogo aceso e para moer trigo no pequeno moinho de café para fazer o pão de cada dia.
Durante aquele inverno interminável, a única esperança tinha sido que algum dia ele teria que terminar, que a nevasca cessaria de açoitar, que o sol novamente irradiaria calor e que eles poderiam deixar a cidade e voltar para o sítio.
Agora era primavera. A campina de Dakota estendia-se tão quente e brilhante sob o sol ardente, que a gente mal podia crer que ela tivesse sido varrida pelos ventos e nevadas daquele inverno rigoroso. Como era maravilhoso estar de volta ao sítio 1 Laura nada mais desejava senão ficar ao ar livre. Tinha a impressão de que jamais poderia apanhar bastante sol que penetrasse em todo seu corpo.
De madrugada, quando ia apanhar o primeiro balde de água fresca no poço, na extremidade do pantanal, o sol vinha surgindo com todo o esplendor de suas cores. As cotovias voavam e cantavam por sobre a relva úmida de orvalho. Os coelhos pulavam pelo caminho, com seus olhos brilhantes muito abertos e suas longas orelhas mexendo-se, enquanto comiam os tenros brotos de grama.
Laura não se demorava na cabana mais que o tempo necessário para deixar o balde d'água e apanhar o balde para o leite. Saía logo correndo para o pasto, onde Ellen, a vaca, estava ruminando tufos de grama. Ellen ficava bem quieta, continuando a ruminar, enquanto Laura a ordenhava.
Quente e doce, o cheiro de leite fresco e espumante vinha misturar-se a outros perfumes da primavera. Os pés descalços de Laura sentiam o frescor da relva orvalhada, seu pescoço se aquecia ao sol e, mais quente ainda, o flanco de Ellen roçava seu rosto. Amarrado em sua cordinha, o bezerrinho de Ellen balia ansiosamente e Ellen respondia com um calmo mugido.
Depois de extrair as últimas gotas de leite, Laura levava o balde para a cabana. Mamãe punha um pouco do leite fresco e quente no balde do bezerrinho e o resto era filtrado em um pano muito branco e guardado em pequenas latas, que Laura ia guardar cuidadosamente na despensa, enquanto sua mãe preparava coalhada com o leite da véspera. Depois, Laura ia dar leite ao bezerrinho.
Não era fácil ensinar ao animalzinho como beber o leite, mas, em compensação, era sempre interessante. O bezerrinho, fraco de pernas, nascera pensando que, para mamar, tinha de dar marradas com seu focinho cor-de-rosa. Por isto, logo que sentia o cheiro do leite no balde, queria dar marradas.
Laura tinha de impedi-lo de derramar o leite, o que nem sempre conseguia, e tinha também de ensiná-lo a beber, porque ele não sabia. Ela molhava seus dedos no leite e deixava a língua áspera do bezerro chupá-los e suavemente empurrava seu focinho para dentro do balde. De repente, o bezerro engolia leite pelo nariz e o expelia de um jato, fazendo com que o leite do balde se derramasse, e voltava a querer dar marradas com toda a força no balde. Tão fortes eram as marradas que Laura quase deixava cair o balde. Caía leite na cabeça do bezerro e no vestido de Laura.
Pacientemente, ela recomeçava tudo, molhando de novo seus dedos, deixando que o animal os lambesse, tentando conservar o leite no balde e ensinando-o a beber. No fim de contas, sempre conseguia que o bezerrinho bebesse um pouco do leite.
Depois, ela removia as estacas de ferro. Um a um, ela levava Ellen, o bezerrinho e o%bezerro maior para lugares frescos na relva macia. Fincava bem as estacas no solo. O sol já estava então bem alto, o céu todo azul e a terra parecia um grande oceano de relva, movendo-se ao vento. Mamãe estava chamando:
— Depressa, Laura! O café está pronto!
Na cabana, Laura lavava depressa o rosto e as mãos na bacia. Jogava a água fora, que fazia uma curva cheia de respingos e ia cair na relva, onde em pouco tempo o sol a secaria. Passava o pente pelos cabelos, no alto da cabeça e na trança sempre a balançar. Nunca tinha tempo antes do café para desfazer a longa trança, escovar bem o cabelo e refazer a trança. Só podia fazê-lo depois que acabava o trabalho da manhã.
Sentada ao lado de Mary, seu olhar passava pela toalha de xadrez vermelho, muito limpa, pelos pratos rebrilhantes, e ia até sua irmãzinha Carrie e até Grace, o bebê, com seus rostos recendendo a sabonete e com seus olhos brilhantes. Olhava o pai e a mãe, tão alegres e sorridentes. Sentia a doce brisa matinal entrar pela porta e pela janela e não podia conter um pequeno suspiro.
O pai olhava para ela, sabendo como ela se sentia, e dizia:
— Eu também acho que é muito bonito e bom.
— Realmente, está uma bela manhã, concordava Mamãe. Depois do café, Papai levava os dois cavalos, Sam e David, para a planície a leste da cabana, onde ele estava revolvendo a terra para plantar milho. Mamãe se encarregava de distribuir o trabalho entre todos e o de que Laura mais gostava era quando sua mãe dizia que precisava trabalhar na horta.
Mary se apressava em oferecer-se para fazer o trabalho de casa, para que Laura pudesse ajudar a mãe. Mary era cega. Mesmo antes que a escarlatina lhe roubasse a visão, jamais gostara de trabalhar ao ar livre, ao vento e ao sol. Agora estava feliz, por poder ajudar dentro de casa. Dizia alegremente que tinha de trabalhar onde pudesse "ver" com os dedos. Não podia distinguir entre uma ervilha e uma erva má na ponta do forcado, mas podia lavar os pratos, fazer as camas e cuidar do bebê.
Carrie também estava prosa, porque, embora fosse pequena, já tinha dez anos e podia ajudar Mary a fazer todo o trabalho de casa. Assim, Mamãe e Laura podiam ir trabalhar na horta.
Agora, vinha muita gente do Leste para ocupar toda a planície. Estavam construindo novas cabanas para o leste, para o sul e para o oeste, muito além do Grande Pântano. Freqüentemente chegava uma nova carroça, guiada por desconhecidos, indo até o caminho do pântano, para o norte, na direção da cidade, e depois voltando. Mamãe dizia que, quando terminasse o trabalho da primavera, haveria tempo para ir conhecer os recém-chegados. Na primavera, não havia tempo para fazer visitas.
Papai tinha um novo arado, próprio para arrotear o solo. Era admirável para trabalhar na planície. Tinha uma roda muito afiada, chamada cortadeira giratória, que cortava a terra na frente da relha, que, por sua vez, cortava as tufadas raízes da grama, enquanto a aiveca levantava o longo e fino pedaço de terra e o revirava. Esse pedaço de terra tinha exatamente trinta centímetros de largura e parecia cortado à mão.
Estavam todos muito contentes com o novo arado. Graças a ele, agora, depois de um dia inteiro de trabalho, Sam e David podiam espojar-se alegremente, ou então comer descansados o seu capim, não sem antes terem levantado as orelhas e olhado a planície. Já não estavam sendo esgotados no trabalho, nem ficavam tristes e magros. E, na hora de jantar, Papai já não estava cansado demais para brincar com os outros.
— Puxa, dizia ele, este arado trabalha sozinho. Com essas novas invenções, um homem já não precisa ter músculos. Qualquer noite dessas, o arado vai continuar a trabalhar e, quando acordarmos de manhã, veremos que ele arou um bom pedaço de terra e eu vou poder descansar.
Os matacões de terra ficavam revirados sobre os regos, mostrando as raízes da grama, espetadas na terra. A terra dos regos era bem fresquinha e macia, debaixo dos pés descalços. Muitas vezes, Carrie e Grace seguiam o arado, brincando. Bem que Laura gostaria de fazer a mesma coisa, mas ela já tinha quase quinze anos e não estava mais na idade de brincar assim. Além disto, à tarde, Mary tinha necessidade de sair para apanhar um pouco de sol.
Por isto, quando terminava o trabalho da manhã, Laura acompanhava Mary em seu passeio pela planície. As flores primaveris estavam nascendo e as nuvens projetavam sombras sobre as encostas recobertas de relva.
Era engraçado lembrar que, quando eram menores, Mary, por ser mais velha, gostava de mandar, mas agora que tinham crescido, pareciam da mesma idade. Gostavam dos longos passeios, que faziam juntas ao vento e ao sol, colhendo violetas e rainúnculos e comendo os frutos da azedinha. Os botões graciosamente encurvados da azedinha, suas folhas em forma de trevo e seus finos pecíolos tinham um gosto acre.
— O gosto da azedinha é o gosto da primavera, disse Laura.
— É sim, parece com o gosto de essência de limão, Laura, corrigiu Mary. Antes de comer, ela sempre perguntava:
— Você olhou bem? Não tem nenhum bicho?
— Nunca tem bicho, protestou Laura. Esta planície é tão limpinha! Nunca houve um lugar tão limpo.
— Está bem, mas olhe de qualquer jeito. Não quero comer o único bicho que exista em todo o Território de Dakota.
Riam-se juntas. Mary estava tão feliz agora que quase sempre fazia brincadeiras como esta. Seu rosto estava tão sereno, protegido pelo chapeuzinho, seus olhos azuis tão claros e sua voz tão alegre, que nem parecia que ela vivia nas trevas.
Mary sempre fora boa. As vezes, ela era tão boa que Laura quase não podia agüentar. Mas agora ela estava diferente. Certa vez, Laura interpelou-a sobre o assunto.
— Você costumava procurar ser boazinha todo o tempo e sempre era. Às vezes eu ficava danada, tinha vontade de bater em você. Mas agora você é boa mesmo sem fazer força.
Mary estacou de repente:
— Laura, que horror! Você ainda me quer bater agora?
— Não, agora não, respondeu Laura sinceramente.
— De verdade mesmo? Você não está dizendo isto, só porque eu sou cega.
— Não, juro que não, Mary. Quase nunca penso na sua cegueira. Eu... eu fico contente de você ser minha irmã, queria ser como você. Mas acho que nunca conseguirei. Não entendo como é que você pode ser tão boa.
— Mas eu não sou, disse Mary. Bem que eu procuro ser, mas se você soubesse como eu fico revoltada e como me sinto má às vezes, se você pudesse ver como é que eu sou mesmo, por dentro, você não ia mais querer ser como eu.
— Eu posso ver como é que você é mesmo, por dentro. Está tão claro sempre. Você é sempre paciente e nunca é mesquinha.
— Eu sei por que você me queria bater. Era porque eu me estava mostrando. De verdade, eu não estava querendo ser boa. Estava-me mostrando boazinha, estava era sendo vaidosa e bem que merecia apanhar por causa disso.
Laura chocou-se com o que a irmã estava dizendo. Então, de repente, ela compreendeu que sempre soubera de tudo. Mas não era verdade, não no caso de Mary.
— Não, você não é assim, de verdade. Você é boa mesmo.
— "Somos todos terrivelmente maus e inclinados ao mal, como as fagulhas que sobem", disse Mary, citando uma passagem da Bíblia. Mas isto não tem importância.
— O quê?! gritou Laura.
— Quero dizer que acho que não devíamos pensar muito a nosso próprio respeito, se somos bons ou maus, explicou Mary.
— Mas meu Deus, como é que se pode ser bom sem pensar?
— Não sei, acho que não podemos mesmo. Não sei explicar direito o que eu quero dizer. Não é bem pensar demais, mas apenas saber. Basta a gente ter certeza da bondade de Deus.
Laura ficou parada, e Mary também, porque ela não tinha coragem de andar sem apoiar-se no braço da irmã para guiá-la. Ali ficou Mary de pé, no meio da imensa campina florida, agitada levemente pelo vento, e sob o imenso céu azul, percorrido por nuvens brancas, que ela não podia ver. Todos sabem que Deus é bom, mas Laura pensava que Mary devia saber disso de uma maneira especial.
— Você sabe que Deus é bom, não sabe?
— Sei, sim, agora tenho absoluta certeza. "O Senhor é o meu Pastor, nada me faltará. Ele me deu campos frescos onde me deito, ele me levou até águas tranqüilas". Acho que este é o mais belo salmo. Por que paramos aqui? Não estou sentindo o perfume das violetas.
— Nós viemos pelo charco dos búfalos, conversando, e vamos voltar por ele, respondeu Laura.
Na volta, Laura podia ver um bom pedaço de terra que subia da vegetação espessa do pântano até a pequena cabana do sítio. Parecia pouco maior que uma gaiola, com seu meio-telhado. O estábulo de adobe mal aparecia entre a vegetação. Mais adiante, estavam Ellen e os dois bezerros no pasto e, mais para leste, Papai estava plantando milho no solo arado de novo.
Ele tinha arroteado tudo quanto pudera, antes que o solo ficasse seco demais. Tinha passado a grade na terra arada no ano passado e semeado aveia. Agora, com um saco de sementes de milho suspenso do ombro, caminhava lentamente pela terra que acabara de arar.
— Papai está plantando milho, disse Laura. Vamos por aqui, pelo charco dos búfalos.
— Eu sei, respondeu Mary.
Ficaram paradas um instante, aspirando profundamente o perfume das violetas que subia espesso como o mel. O charco dos búfalos, perfeitamente redondo, parecia um prato, com mais ou menos um metro de profundidade, e estava cheio de violetas. Milhares, milhões de violetas, tantas que umas escondiam as outras.
Mary mergulhou o rosto nas violetas e sorveu profundamente seu perfume. Seus dedos tocavam delicadamente as pétalas e depois escorregavam pelo pecíolo para colhê-las.
Quando passaram pelo campo que o pai estava arando, havia também um forte cheiro de violetas.
— Fizeram um passeio bonito, meninas? perguntou ele, sem parar de trabalhar. Amaciou um pouco a terra, cavou um pequeno buraco, atirou quatro caroços de milho, cobriu o buraco com terra outra vez, calcando com a bota para ficar bem firme e, depois, preparou-se para repetir a operação mais adiante.
Carrie veio correndo para enterrar o nariz nas violetas.
Ela estava tomando conta de Grace, que só brincava onde estivesse o pai. As minhocas fascinavam Grace. Sempre que Papai metia a enxada no solo, ela espiava para ver se havia minhocas e ria vendo o comprido e fino verme engordar e encurtar, fazendo força para se enterrar outra vez.
— Mesmo quando cortadas em dois, as duas metades fazem isto. Por que, Papai?
— Porque querem voltar para a terra, eu acho, respondeu Papai.
— Mas, por que?
— Ora, porque querem.
— Mas, por que é que elas querem?
— Por que é que você gosta de brincar na terra?
— Por que, Papai? Quantos milhos o senhor põe, Papai?
— Milhos não, caroços. Quatro caroços. Um, dois, três quatro.
— Um, dois, quatro. Por que, Papai?
— Ah, esta é fácil de responder:
Um para o rexenxão
Outro para o feio corvo
Sobram assim dois
Que sozinhos crescerão.
A horta já estava bem grande agora. Em canteiros diferentes, cresciam os rabanetes, as alfaces, as cebolas, cada canteiro com um tom de verde. Apareciam as primeiras folhas das ervilhas e os tomates surgiam em meio a sua folhagem rendada.
— Estive olhando a horta; está precisando de enxada, disse Mamãe, enquanto Laura punha as violetas na água para perfumar a mesa do jantar. Acho que qualquer dia o feijoal vai brotar; está tão quente já.
De fato, numa quente manhã, os feijões estouraram do solo. Grace foi quem os descobriu e veio correndo, toda excitada, contar à mãe. Ninguém a pôde impedir de passar a manhã toda olhando o feijoal. Da terra nua, os pés de feijão iam saltando, como se fossem movidos por uma mola de aço, e à luz do sol as metades dos feijões ainda conservavam presas duas folhas gêmeas. Cada vez que um feijão arrebentava, Grace gritava.
Agora que o milho já tinha sido plantado, Papai construiu o resto da cabana. Numa manhã, ele pôs os alicerces. Depois, levantou as paredes e Laura ajudou-o segurando o prumo, enquanto ele pregava as tábuas. Depois, colocou as traves e abriu duas janelas. Finalmente, pôs as vigas do teto, para completá-lo.
Laura ajudou-o durante todo o tempo, enquanto Carrie e Grace ficavam espiando e apanhavam os pregos que, sem querer, Papai deixava cair. Até mesmo Mamãe arranjava um tempinho para descansar e vir observar a obra. Era muito agradável ver a cabana transformar-se numa casa de verdade.
Quando ficou pronta, tinha três cômodos. A parte nova consistia de dois pequenos quartos de dormir, cada um com uma janela. Agora, as camas já não teriam de ficar na sala da frente.
— Vamos matar dois coelhos de uma só cajadada, disse Mamãe. Vamos fazer ao mesmo tempo a grande limpeza da primavera e a mudança.
Lavaram as cortinas das janelas e os cobertores, pondo-os ao sol para secar. Depois, lavaram as janelas até que elas ficaram brilhando, e penduraram as cortinas novas, feitas de lençóis velhos e muito bem embainhados por Mary. Mamãe e Laura puseram os estrados nos quartos novos, todos feitos com ripas que cheiravam a limpo. Laura e Carrie encheram os travesseiros com palha bem amarelinha e fizeram as camas com lençóis ainda quentes do ferro de passar de Mamãe e os cobertores bem limpos, com o cheiro bom da planície.
Só então é que Mamãe e Laura escovaram e rasparam cada centímetro da cabana velha, que formava agora a sala da frente. Havia bastante espaço, sem as camas, só o fogão, as prateleiras, a mesa, as cadeiras e uma estante. Quando tudo ficou limpo e arrumado, todos vieram admirar.
— Você não me precisa contar, Laura, disse Mary. Posso sentir como está grande, fresca c bonita a sala da frente.
As cortinas novas, brancas e engomadas, moviam-se brandamente ao vento que soprava pela janela aberta. As paredes e o chão eram de um suave amarelo-acinzentado. Um ramo de anêmonas apanhadas por Carrie, postas no jarro azul da mesa, pareciam trazer a primavera para dentro de casa. Ao canto, a estante envernizada dava um ar de elegância à sala.
A luz da tarde iluminava os títulos dourados dos livros na prateleira mais baixa da estante e se refletia nas três caixas de cristal na prateleira imediata, cada uma delas com pequenas flores pintadas. Acima delas, na outra prateleira as flores artificiais também se refletiam no vidro do relógio, cujo pêndulo de alumínio rebrilhava a cada oscilação de um lado para outro. Mais alto ainda, na última prateleira, estava uma caixa de jóias de porcelana branca, que pertencia a Laura, com uma xícara com filete dourado e seu pires e, ao lado, como que a vigiá-la, o cachorrinho de Carrie, marrom e branco, também de porcelana branca.
Na parede, entre as portas dos quartos novos, Mamãe pendurou a peanha que Papai tinha esculpido como presente de Natal, muito tempo atrás, na grande floresta do Wisconsin. Cada folha e cada flor, a pequena liana da base e a liana maior que ia até a estrela da ponta, tudo ainda estava perfeito, como quando ele as esculpira com seu canivete grande. Há muito tempo, mais do que Laura podia lembrar-se, Mamãe pusera ali na estante a pastora sorridente de porcelana, rosa e branca.
Era uma bela sala.
Precisa-se de um gato
As primeiras orelhas amarelo-esverdeadas das espigas de milho estavam cortadas como pontas de fitas, ao longo dos regos do solo arroteado. Uma tarde, Papai atravessou o campo e foi observá-las. Voltou cansado e danado da vida.
— Vou, ter de replantar mais de meto campo de milho, disse ele.
— Oh, Papai, por que? perguntou Laura.
— Camundongos, disse Papai. Bem, esta é a recompensa que se recebe, quando se planta milho pela primeira vez numa região.
Grace estava-se roçando contra suas pernas. Ele a pôs no colo, fazendo-lhe cócegas com a barba, para fazê-la rir-se. Ela se lembrava da quadrinha que o Pai tinha cantado quando estava plantando, e sentando-se em seu colo, repetiu-a orgulhosamente:
Um para o rexenxão
Outro para o feio corvo
Sobram ainda dois
Que sozinhos crescerão.
Nem bem ele tinha plantado o milho e os ratos o encontraram. Por toda a plantação eles tinham andado, só parando para cavar pequenos buracos no solo tenro com suas patinhas. Era admirável como eles sabiam exatamente onde os caroços tinham sido enterrados.
Era quase inacreditável que os camundongos, correndo, cavando, sentando em suas patas de trás e comendo cada um deles um caroço de milho seguro entre as patas dianteiras, tivessem devorado mais de metade de toda a plantação.
— Eles são uma praga! disse Papai. Bem que eu gostaria de ter um gato como Susana-Negrinha. Ela teria dado cabo deles.
— Eu também preciso de um gato dentro de casa, disse Mamãe. Os ratos estão ficando tão atrevidos que não posso deixar comida descoberta no guarda-comidas. Será que há algum gato disponível, Charles?
— Não há um só gato em toda a região, ao que eu saiba. Os lojistas também estão reclamando. Wilmarth já falou até em mandar buscar um no Leste.
Nessa mesma noite, Laura foi despertada, no mais profundo de seu sono. Através da parede divisória entre os quartos de dormir, ela ouviu primeiro como que uma respiração abafada, logo depois um resmungo e, em seguida, o barulho feito por alguma coisa pequena que estivesse sendo espremida. Ouviu sua mãe dizer:
— Charles, que foi isso?
— Eu estava sonhando, disse Papai em voz baixa. Sonhando que um barbeiro estava cortando meu cabelo.
Mamãe também falava baixo, porque a noite já ia em meio e todo o mundo estava dormindo.
— Foi apenas um sonho. Torne a deitar-se e me dê um pedaço do cobertor.
— Eu ouvi o barulho da tesoura do barbeiro.
— Bem, torne a deitar-se e durma, disse Mamãe, bocejando.
— Meu cabelo estava sendo cortado, insistiu Papai.
— Nunca vi você perturbado com um sonho. Deite-se e vire para o outro lado que não voltará a sonhar.
— Carolina, meu cabelo estava sendo cortado, repetiu Papai.
— Que quer você dizer com isto? Mamãe, agora, estava bem desperta.
— Estou dizendo que, enquanto dormia, passei a mão pela cabeça e... Aqui. Veja você mesma.
— Charles!— Seu cabelo foi cortado!
Laura ouviu sua mãe sentar-se na cama.
— Estou sentindo, há um lugar na sua cabeça que...
— É aí mesmo. Eu passei a mão e...
— Um pedaço do tamanho de minha mão, onde o cabelo foi raspado.
— Passei a mão e agarrei qualquer coisa...
— O que era?
— Eu acho que era um rato.
— Onde é que ele está?
— Não sei. Atirei-o longe com toda a força.
— Meu Deus! Um rato! Cortando seu cabelo para fazer um ninho!
Houve um minuto de silêncio e, depois, ouviu-se de novo a voz de Papai:
— Carolina, eu juro...
— Não, Charles, não jure, murmurou Mamãe.
— Bem, eu juraria que não posso passar as noites em claro para tirar os ratos de minha cabeça.
— Como eu gostaria de ter um gato! disse Mamãe, mas sem muita esperança.
De fato, no dia seguinte, apareceu um rato morto, junto à parede contra a qual Papai o tinha atirado. E, na hora do café, Papai apareceu com um pedaço da cabeça quase inteiramente careca, onde o rato tinha roído o cabelo.
Ele não teria dado muito importância ao fato, se não fosse por que o cabelo não cresceria até a próxima reunião dos comissários do condado. (1).
A região estava crescendo tão depressa que já se estava organizando um condado e Papai, o mais antigo colono, não podia deixar de cumprir seu dever, colaborando nessa organização. A reunião ia realizar-se no sítio de Whiting, a uns seis quilômetros a nordeste da cidade. A Senhora Whiting certamente estaria lá e Papai não poderia ficar de chapéu na cabeça.
(1) O condado é uma divisão administrativa dos Estados e Territórios norte-americanos, semelhante aos municípios brasileiros. (Nota do tradutor).
— Não se aborreça, disse Mamãe, tentando consolá-lo. Conte-lhes simplesmente o que aconteceu. Vai ver que eles também têm ratos.
— Ora, nós vamos ter coisas mais importantes para discutir. O melhor é deixar que eles pensem que é assim que minha mulher corta meu cabelo.
— Charles, você não teria coragem! exclamou Mamãe, sem perceber que ele estava caçoando com ela.
Quando ele saiu com a carroça, naquela manhã, disse a Mamãe que não o esperasse para jantar, pois teria de fazer uma viagem de mais de quinze quilômetros, sem falar no tempo que duraria a reunião.
Já era hora da ceia quando ele voltou, dirigindo-se para o estábulo. Desatrelou o cavalo e correu para dentro de casa, esbarrando em Carrie e Grace, que corriam para fora.
— Meninas! Carolina! Adivinhem o que eu trouxe para vocês! Sua mão estava metida no bolso e seus olhos piscavam maliciosamente.
— Balas! responderam juntas Carrie e Grace.
— Coisa melhor, disse Papai.
— Uma carta? perguntou Mamãe.
— Vai ver que é um jornal, disse Mary. Talvez "O Progresso".
Laura observava o bolso de Papai. Estava certa de que alguma coisa, e não a mão de Papai, estava-se mexendo dentro do bolso.
— Deixem Mary ver primeiro, disse Papai. Tirou a mão de dentro do bolso e apareceu um gatinho cinzento e branco.
Colocou-o cuidadosamente no mão de Mary. Ela passou o dedo por seu pêlo macio, tocando delicadamente suas orelhinhas, seu focinho e suas patinhas.
— Um gatinho, disse ela. Um gatinho bem pequenininho.
— Seus olhos ainda não se abriram, disse-lhe Laura. Seu pêlo é cinzento-azulado como fumaça, mas a cara, o peito, os pés e a pontinha do rabo são brancos. Suas garras são muito branquinhas e pequeninas.
Todos se curvaram para ver melhor o gatinho, que continuava na mão de Mary. Ele abriu sua boquinha rosa, num miado silencioso.
— Ele é muito pequeno para ser tirado da mãe, disse Papai. Mas eu tinha de trazê-lo enquanto podia, antes que alguém o levasse. Whiting trouxe uma gata do Leste e ela teve cinco gatinhos. Quatro foram vendidos hoje, por meio dólar cada um.
— O senhor pagou meio dólar por esse gatinho, Papai? perguntou Laura, arregalando os olhos.
— Paguei sim, respondeu Papai.
Rapidamente, Mamãe disse:
— Não o censuro, Charles. Um gato nesta casa vale bem o preço que você pagou.
— Será que nós vamos poder criá-lo? perguntou Mary, ansiosamente.
— Oh, por certo que sim, assegurou Mamãe. Teremos de alimentá-lo repetidas vezes, lavar seus olhos com muito cuidado e conservá-lo sempre. Laura, vá buscar uma caixinha e apanhe os retalhos mais macios e quentes que houver na caixa dos retalhos.
Laura preparou um ninho bem quente e macio para o gatinho, numa caixa de papelão, enquanto Mamãe esquentava um pouco de leite. Todos ficaram vendo como é que Mamãe o alimentava, gota a gota, com uma colher de chá. As garras do gatinho agarravam a colher e ele chupava o leite lentamente, embora sempre escorresse um pouco. Depois, puseram-no em sua caminha e Mary o aqueceu com sua mão, até que ele dormisse.
— Ele tem sete vidas como todos os gatos, disse Mamãe. Vão ver como sobreviverá.
Dias felizes
Papai contou que a cidade estava crescendo depressa. Estavam chegando cada vez mais colonos, que se apressavam em construir casas para morar. Uma tarde, Papai e Mamãe foram à cidade, para ajudar a organizar uma igreja e logo começaram a construí-la. Não havia carpinteiros bastantes para todas as construções novas e, assim, Papai conseguiu trabalho como carpinteiro.
Todas as manhãs, depois de seu trabalho no sítio, ia a pé para a cidade, carregando seu almoço numa marmita. Começava a trabalhar às sete horas e, descansando apenas um pouco ao meio-dia, acabava às seis e meia, voltando para casa na hora da ceia. Ganhava quinze dólares por semana.
Foi uma época feliz, pois a horta estava bem, o milho e a aveia estavam crescendo, o bezerro já tinha desmamado e, assim, havia bastante leite para fazer queijo, requeijão e manteiga. Melhor que tudo, porém, era que Papai estava conseguindo ganhar aquele dinheiro todo.
Muitas vezes, quando estava trabalhando na horta, Laura pensava a respeito da ida de Mary para o colégio. Quase dois anos atrás, eles tinham sabido da existência de um colégio para cegos em Iowa. Diariamente pensavam no assunto e todas as noites rezavam para que Mary pudesse freqüentá-lo. A pior coisa na cegueira de Mary era o prejuízo para seus estudos. Ela gostava tanto de ler e aprender e tinha sempre desejado tanto ser professora... Agora, ela já não poderia ser. Laura não queria ser professora, mas teria de ser e logo que pudesse, para ganhar dinheiro e ajudar a manutenção de Mary no colégio. Para consolar-se, dizia, enquanto cavava, que ela podia ver.
Sim, ela podia ver a enxada, as cores, o sombreado das folhas dos ervilhais. Bastava-lhe levantar os olhos para ver quilômetros e quilômetros de gramado, o longínquo horizonte azulado, os pássaros a voar, Ellen e os bezerros na encosta verde, os diferentes tons de azul do céu, as enormes e nevadas nuvens de verão. Tinha tanto e Mary só tinha escuridão.
Tinha esperança, embora mal ousasse pensar nisto, que Mary pudesse ir para o colégio no outono seguinte, porque o pai estava ganhando bastante dinheiro. Se Mary pudesse ir, ela estudaria com todas as forças, trabalharia tanto que poderia ser professora assim que fizesse dezesseis anos, e então ajudaria com seu ordenado a manter Mary no colégio.
Todos estavam precisando de novas roupas e sapatos e Papai sempre tinha de comprar farinha, açúcar, chá e carne salgada. Havia a conta da madeira para a metade nova da cabana, e era preciso comprar carvão para o inverno e pagar os impostos. Mas, este ano, havia a horta, o milho c a aveia. Dentro de dois anos, quase tudo quanto a família comia poderia vir do próprio sítio.
Se tivessem galinhas e um porco, nem precisariam comprar carne. A região agora estava quase toda colonizada, a caça era pouca, e tinha-se de comprar carne, ou então criar animais. Alguns colonos já os estavam trazendo.
Uma tarde, Papai voltou radiante para casa.
— Carolina, meninas, imaginem só uma coisa! Encontrei-me com Boast hoje na cidade e ele mandou um recado para a mulher dele. Ela vai por uma galinha no choco para nós!
— Que bom, Charles!
— Assim que os pintos já puderem arranjar comida sozinhos, ele nos trará toda a ninhada.
— Que boa notícia, Charles. Isso é bem da Senhora Boast, ser tão boa assim. Como é que ela vai, ele disse alguma coisa?
— Disse que ela vai bem. Tem estado tão ocupada que não pode vir à cidade nesta primavera, mas que sempre se lembra de você.
— Toda uma ninhada, talvez doze ou mais pintos, não há muitas pessoas capazes de fazer isso.
— Eles não se esquecem de como você os acolheu quando chegaram, recém-casados, perdidos na tempestade de neve, quando nós éramos os únicos colonos num raio de sessenta quilômetros. Boast freqüentemente fala nisto.
— Bobagem, isto não foi nada. Mas uma ninhada inteira... vamos levar um ano menos para ter o nosso galinheiro.
Se eles pudessem criar os pintos, se os gaviões, as doninhas e as raposas não os comessem, alguns deles seriam frangos no verão. No ano seguinte, as frangas já começariam a por ovos, que seriam postos a chocar. Haveria franguinhos para assar no espeto e mais frangas para aumentar o bando. Haveria ovos para comer e, quando as galinhas ficassem velhas demais, Mamãe poderia fazer suflê de galinha.
— Se na primavera do ano que vem Papai puder comprar um porco, disse Mary, dentro de dois anos poderemos ter presunto com ovos, toucinho, lingüiça, costeletas e patê!
— E Grace poderá assar o rabinho do porco! gritou Carrie.
— Por que? quis saber Grace. Que é que tem o rabinho do porco?
Carrie lembrava-se do tempo de abate, mas Grace nunca tinha segurado um rabinho de porco diante da grelha do fogão para tostá-lo bem tostadinho. Nunca tinha visto Mamãe tirar do forno a panela cheia de costeletas tostadas, estalando, cheias de molho, ou a travessa azul cheia de lingüiças, nem o gosto de seu molho derramado sobre panquecas. Só se lembrava do Território de Dakota e a carne de que se lembrava era a carne de porco salgada, esbranquiçada e gordurosa, que Papai comprava às vezes.
Um dia, porém, eles teriam todas essas coisas gostosas outra vez, porque os tempos estavam melhorando. Com tanto trabalho e com tudo que estava por vir, os dias pareciam voar. Estavam todos tão ocupados que mal davam por falta de Papai durante o dia. Quando ele chegava, à noite, trazendo notícias da cidade, toda a família tinha muitas novidades para contar-lhe.
Durante o dia inteiro, eles tinham guardado alguma coisa diferente para contar-lhe quando chegasse. Mal podiam pensar que ele acreditasse, pois eis o que acontecera:
Enquanto Mamãe estava fazendo as camas e Laura e Carrie lavavam os pratos do café da manhã, ouviram o gatinho miar de dor. Já tinha os olhos abertos agora e corria atrás de uma bola de papel puxada por Grace.
— Cuidado, Grace! exclamou Mamãe. Não machuque o gatinho.
— Não o estou machucando, respondeu Grace.
Antes que Mary pudesse falar, o gatinho miou outra vez.
— Não faça isso, Grace, disse Mamãe. Você está pisando nele?
— Não, Mamãe.
O gato tornou a miar desesperadamente e Laura virou-se da pia.
— Pare com isso, Grace. Que é que você está fazendo com o gato?
— Não estou fazendo nada com o gato! gemeu Grace.
— Não consigo encontrá-lo!
Ninguém via o gato. Carrie olhou debaixo do fogão e atrás do armário. Grace meteu-se debaixo da mesa para procurá-lo. Mamãe procurou debaixo da estante e Laura nos dois quartos.
Aí, o gato miou outra vez e Mamãe o viu atrás da porta. Entre a porta e a parede, o gatinho estava agarrado a um rato. O rato era bem grande e forte, quase tão grande quanto o próprio gatinho e lutava com todas as forças. O gatinho miava cada vez que o rato o mordia, mas não o largava. Firmava-se em suas patinhas e metia os dentes no toutiço do rato mas quase que caía, pois suas patas ainda eram fraquinhas. O rato mordeu-o mais duas vezes.
Mamãe pegou a vassoura e disse:
— Laura, apanhe o gatinho, que eu mato o rato.
Laura obedeceu, naturalmente, mas não pôde deixar de dizer:
— Ih, Mamãe, detesto ter de fazer isto! O gato está agüentando. Afinal de contas, a luta é dele!
Quando Laura o ia apanhar, o gatinho fez um esforço maior. Pulou em cima do rato, mantendo-o debaixo de suas patas dianteiras, miando de dor outra vez quando o rato o mordeu. Depois, os seus próprios dentes se cravaram no pescoço do rato, que deu um chiado agudo e morreu. Sozinho, o gato tinha matado seu primeiro rato.
— Esta é fantástica, disse Mamãe. Quem é que já ouviu falar de uma batalha entre um gato e um rato!
O gatinho deveria estar junto de sua mãe, para que ela lhe lambesse as feridas e rosnasse de satisfação. Mamãe lavou cuidadosamente as feridas e deu-lhe leite morno, Carrie e Grace fizeram-lhe festas no focinho e na cabeça e Mary o adormeceu em suas mãos. Grace agarrou o rato morto pelo rabo e o atirou longe. Durante todo o resto do dia, ficaram pensando que aquela seria uma ótima história para contar ao pai.
Esperaram até que ele lavasse o rosto, penteasse o cabelo e se sentasse para cear. Laura respondeu a suas perguntas sobre as tarefas do dia: sim, ela tinha dado de beber aos cavalos, a Ellen e aos bezerros, tinha mudado de lugar as estacas dos animais. As noites agora eram tão agradáveis que não era preciso recolhê-los ao estábulo. Dormiam sob as estrelas, acordando e pastando quando lhes apetecia.
Por fim chegou a hora de contar-lhe a façanha do gatinho. Papai disse que jamais ouvira uma história igual. Ele contemplou o gatinho, que passeava pelo chão, com sua cauda bem levantada, e disse:
— Esse gatinho vai ser o melhor caçador de ratos de todo o condado.
O dia ia acabando numa felicidade completa. Estava toda a família reunida. Até o dia seguinte não haveria mais trabalho, exceto lavar a louça da ceia. Estavam saboreando um pão gostoso com manteiga, batatas fritas, queijo e alface temperada com vinagre e açúcar.
Pela porta aberta, podia-se entrever a planície que já se sombreava, enquanto o céu ainda estava pàlidamente iluminado, mal cintilando as primeiras estrelas. Soprava uma brisa, que circulava agradàvelmente pela casa, aquecida pelo fogão e espalhava uma agradável mistura de perfumes, em que entravam o frescor da planície, o cheiro gostoso da comida e do chá, o odor do sabão e o persistente cheiro da madeira nova de que tinham sido feitos os quartos de dormir.
Talvez o melhor de tudo fosse saber que o dia seguinte seria igualmente feliz, embora sempre houvesse alguma novidade, como naquele dia. Laura, porém, não o sabia até o momento em que seu pai lhe perguntou:
— Laura, você gostaria de ir trabalhar na cidade?
Trabalho na cidade
Ninguém podia imaginar que pudesse haver qualquer espécie de trabalho para uma menina na cidade, exceto como empregada do hotel.
— É uma idéia nova de Clancy, disse Papai.
O senhor Clancy era um dos novos comerciantes, em cujo armazém Papai estava trabalhando.
— O armazém já está quase pronto e ele já está trazendo as mercadorias. Sua sogra veio com eles para o Oeste e vai fazer camisas para fora.
— Fazer camisas? perguntou Mamãe.
— Sim. Há tantos homens trabalhando nos sítios das redondezas que Clancy pensa fazer bom dinheiro com os tecidos, se houver alguém na loja para fazer camisas, especialmente para aqueles que não têm em casa mulher que as possa fazer.
— É uma boa idéia, concordou Mamãe.
— Disso você pode estar certa. Clancy não é bobo. Já comprou até uma máquina de costura, para fazer as camisas.
— Uma máquina de costura? perguntou Mamãe, muito interessada. É parecida com a que vimos no "Inter-Ocean?" Como é que funciona?
— Mais ou menos como eu tinha imaginado. Move-se o pedal com o pé, o que faz mover-se a roda e agulha. Há um
dispositivo em baixo da agulha que também fica cheio de linha. Clancy fez uma demonstração para nós. Vai depressa que nem um relâmpago e a bainha sai tão boa como se fosse feita à mão.
— Calculo quanto não há de custar.
— Caro demais para gente comum. Mas Clancy encara a despesa como um investimento. Ele vai recuperar o dinheiro com os lucros.
— Sim, naturalmente, disse Mamãe.
Laura sabia no que ela estava pensando. Pensava em quanto trabalho aquela máquina poupava, mas, mesmo que eles a pudessem comprar, era bobagem empatar tanto dinheiro em uma máquina, só para fazer a costura de uma família.
— Será que ele vai querer que Laura aprenda a manejá-la?
Laura ficou com medo: ela não podia ser responsável, se acontecesse um acidente a uma máquina tão custosa.
— De certo que não, respondeu Papai. A Senhora White é quem vai usar a máquina. Ela quer uma menina jeitosa para ajudar na costura à mão. E, virando-se para Laura:
— Ela me perguntou se eu conhecia uma menina assim. Eu disse que você cosia direitinho e ela respondeu que você fosse trabalhar com ela. Clancy tem recebido mais encomendas de camisas do que ela pode aviar sozinha. A Senhora White disse que pagará a uma ajudante de boa vontade vinte e cinco centavos por dia e mais o jantar.
Laura fez as contas depressa, de cabeça. Era um dólar e meio por semana, um pouco mais de cinco dólares por mês. Se ela trabalhasse bastante e se a Senhora White ficasse contente, talvez pudesse trabalhar durante todo o verão. Poderia ganhar quinze dólares, ou mesmo vinte, e isto ajudaria a mandar Mary para o colégio. Ela não queria ir trabalhar na cidade, no meio de estranhos, mas também não poderia recusar uma oportunidade para ganhar quinze dólares, ou dez, cinco que fossem. Engoliu em seco e perguntou:
— Posso ir, Mamãe? Suspirando, a mãe respondeu:
— Não gosto muito da idéia, mas enfim você não estará propriamente sozinha. Seu pai está na cidade. Se você quiser, pode ir, sim.
— Eu não quero deixar a senhora com todo o trabalho, hesitou Laura.
Carrie se apressou em oferecer-se para ajudar. Ela podia fazer as camas, varrer, lavar a louça sozinha e trabalhar na horta. Mamãe acrescentou que Mary ajudava bastante dentro de casa e que, agora, que os animais podiam ficar ao ar livre, não havia muito que fazer à tarde.
— Vamos sentir falta de Laura, mas nos arranjaremos.
Não houve tempo a perder na manhã do dia seguinte. Laura apanhou a água, ordenhou Ellen, lavou o rosto, penteou o cabelo, amarrando a trança no alto. Pôs seu vestido novo de percal, calçou as meias e os sapatos. Guardou o dedal num avental passadinho de fresco. Tomou um pouco de café, sem lhe sentir o gosto Pôs o chapéu e saiu apressada com o pai, pois tinham de estar na cidade às sete horas.
O ar fresco enchia a manhã. Os rouxinóis cantavam e do Grande Pântano subia o grito curto e rouco dos alcaravões, com suas pernas compridas e seus longos pescoços sempre espichados. A manhã era linda e cheia de vida, mas Papai e Laura estavam apressados demais. Estavam apostando com o sol.
O sol subia no céu, sem esforço, enquanto eles caminhavam tão depressa quanto podiam, encaminhando-se para a Rua Central.
A cidade tinha mudado tanto que parecia outra. Dois quarteirões da Rua Central estavam agora inteiramente construídos, com casas novas de madeira amarela. Em frente dessas casas, havia uma calçada de madeira, também nova, mas Papai e Laura não tinham tempo para passar por ela. Iam depressa, em fila indiana, pelo poeirento caminho do outro lado da rua.
Deste lado, a vegetação ainda cobria todos os terrenos, até o estábulo de Papai e seu escritório, na esquina da Rua Central e da Rua Dois. (1) Mais além, do outro lado da Rua Dois, havia o esqueleto de um novo prédio na esquina. Mais adiante ainda, havia outros terrenos baldios e, depois, vinha o armazém de Clancy.
(1) Em geral, as ruas das cidades americanas são numeradas, não tendo nomes, como acontece no Brasil (Nota do tradutor).
O interior do armazém era todo novo e ainda cheirava a serragem. Podia sentir-se também o vago odor de goma, que vinha dos fardos de tecido. Atrás de dois longos balcões, havia nas duas paredes compridas prateleiras, cheias até o teto com fardos de chita, percal, cambraia, morim, casimiras e até mesmo sedas.
Não havia gêneros alimentícios, nem ferragens, nem sapatos, nem ferramentas. Laura nunca tinha visto uma loja que só vendesse tecidos.
À direita havia uma pequena vitrina com todas as espécies de botões, agulhas e alfinetes. Ao lado, havia uma prateleira cheia de carretéis de linha de todas as cores, cada qual mais bonita à luz coada pelas janelas.
A máquina de coser estava colocada atrás do balcão, perto da janela. Suas partes niqueladas e sua longa agulha rebrilhavam, bem como as partes de madeira bem envernizada. Sobre seu braço negro havia um carretel de linha branca. Por nada deste mundo, Laura tocaria naquelas coisas.
O Sr. Clancy estava desenrolando peças de percal para dois fregueses, ambos com suas camisas muito sujas. Uma mulher grande e gorda, com cabelo negro bem penteado, estava pregando com alfinetes moldes feitos de papel de jornal na fazenda já cortada, que ela pusera sobre o balcão, perto da máquina. Papai tirou o chapéu e a cumprimentou:
— Bom dia, Senhora White, aqui está minha filha Laura. A Senhora White tirou os alfinetes da boca e disse:
— Espero que você cosa bem e depressa. Você sabe alinhavar o peito das camisas e casear bem?
— Sim, Senhora, respondeu Laura.
— Bem, ponha seu chapeuzinho naquele cabide, e vamos começar, disse a Sra. White.
Papai sorriu para Laura, encorajando-a, e foi-se embora.
Laura tinha esperança de que seus receios se fossem dissipando com o tempo. Pendurou seu chapeuzinho no cabide, pôs o avental e o dedal. A Sra. White entregou-lhe as partes já cortadas de uma camisa para alinhavar, dizendo-lhe que se sentasse na cadeira ao lado da máquina, à luz da janela.
Rapidamente, Laura puxou um pouco a cadeira, de modo que a máquina a escondia parcialmente. Baixando a cabeça sobre seu trabalho, começou a alinhavar tão depressa quanto podia.
A Sra. White nem falava. Nervosamente, não parava de cortar camisa atrás de camisa, de acordo com os moldes, usando longa tesoura para isso. Assim que Laura acabava de alinhavar uma camisa, ela lhe dava outra.
Depois de certo tempo, sentou-se à máquina. Deu impulso à roda com a mão e, depois, com o pé trabalhando rápido no pedal, manteve-a rodando. O barulho enchia a cabeça de Laura, como se fosse o zumbir de uma agulha gigantesca. A roda girava tão depressa que chegava a perder seu contorno, enquanto a agulha parecia um raio de luz. As mãos gordas da Sra. White empurravam incessantemente a fazenda para debaixo da agulha.
Laura alinhavava tão depressa quanto podia. Colocou a camisa alinhavada numa pilha à esquerda da Sra. White, apanhou mais trabalho na outra pilha e continuou a alinhavar. A
Sra. White pegava as camisas na pilha da esquerda, cosia à máquina e empilhava as já prontas à sua direita.
Havia um ritmo contínuo na maneira pela qual as camisas vinham do balcão para as mãos de Laura, daí para a pilha, depois para a máquina e, finalmente para a outra pilha. Lembrava o trabalho dos operários na planície, quando construíram a estrada. Laura, porém, só trabalhava com as mãos, guiando a agulha tão rapidamente quanto possível.
Seus ombros e seu pescoço começaram a doer. Tinha cãibra no corpo e suas pernas pesavam-lhe de cansadas. O barulho da máquina não lhe saía da cabeça.
De repente, a máquina parou.
— Pronto! disse a Sra. White, acabando de coser a última camisa alinhavada.
Laura ainda tinha de prender a manga e alinhavar a cava de uma camisa, sem contar que ainda havia uma camisa inteira para alinhavar à sua espera no balcão.
— Eu alinhavo esta, disse a Sra. White. Estamos atrasadas.
— Sim, senhora, respondeu Laura. Ela deveria ter trabalhado mais depressa, mas a verdade é que tinha feito o melhor que podia.
Um homem grandalhão apareceu à porta da janela, seu rosto empoeirado recoberto de barba ruiva:
— Ei, Clancy, minhas camisas estão prontas?
— De tarde, respondeu o Sr. Clancy.
Depois que o grandalhão foi embora, o Sr. Clancy perguntou à Sra. White quando é que as camisas estariam prontas. Ela respondeu que não sabia quais eram as camisas e, aí, o Sr. Clancy começou a blasfemar.
Laura se encolheu toda em sua cadeira, alinhavando ainda mais depressa. O Sr. Clancy agarrou um monte de camisas na pilha e quase as atirou em cima da Sra. White. Ainda aos gritos, disse que ela as tinha de acabar antes do jantar, ou então ele iria querer saber por que.
— Não permito que ninguém fique em cima de mim! gritou a Sra. White. Nem você nem nenhum irlandês miserável!
Laura mal ouviu o que o Sr. Clancy respondeu. Tudo quanto ela queria era estar bem longe dali, mas a Sra. White lhe disse que viesse almoçar. As duas foram para a cozinha, que ficava na parte de trás da loja, e o Sr. Clancy veio atrás delas, furioso.
A cozinha era pequena e estava cheia de gente. A Sra. Clancy estava pondo o almoço, enquanto três meninas e um menino se empurravam mutuamente para fora de suas cadeiras. O Sr. e a Sra. Clancy e a Sra. White, embora continuando a brigar uns com os outros, aos berros, sentaram-se e comeram com excelente apetite. Laura não conseguia entender por que é que eles estavam brigando, nem sabia se o Sr. Clancy estava brigando com sua mulher ou com a sogra, ou se elas estavam brigando com ele, ou uma com a outra.
Pareciam tão zangados que Laura teve medo de que passassem às vias-de-fato. De vez em quando o Sr. Clancy dizia "Me passa o pão" ou "Quer me dar água?". A Sra. Clancy fazia o que ele pedia, mas, enquanto isto, continuavam a se insultar em altos brados. As crianças não prestavam a menor atenção. Laura estava tão perturbada que nem podia comer, só queria ir-se embora. Logo que pôde, voltou a seu trabalho.
O Sr. Clancy saiu da cozinha assobiando uma música, como se nada tivesse acontecido, como se o almoço tivesse decorrido no melhor dos ambientes familiares. Alegremente, perguntou à Sra. White:
— Quanto tempo ainda demora para acabar essas camisas?
— Umas duas horas, mais ou menos, prometeu a Sra. White. Vamos trabalhar as duas juntas.
Laura lembrou-se de um provérbio que sua mãe repetia sempre: "É preciso haver gente de todas as espécies para compor o mundo".
Em duas horas, elas fizeram quatro camisas. Laura alinhavou os colarinhos com o maior cuidado, porque é muito difícil unir o colarinho a uma camisa. A Sra. White caseou à máquina. Depois, fizeram os punhos e as bainhas nas fraldas, dobraram o peito e os punhos, pregaram firmemente os botões e cascaram.
Não é fácil fazer as casas exatamente à mesma distância uma da outra, nem tampouco cortá-las no tamanho certo. A menor falha com a tesoura fará com que a casa fique grande demais e, se se deixar de cortar um só pedacinho de linha, ela ficará estreita demais.
Depois de cortar as casas, Laura tirou todos os fiapinhos e cobriu rapidamente as bordas com pontos pequenos e bem apertados, todos exatamente do mesmo tamanho. Ela detestava casear e, por isto mesmo, aprendera a fazê-lo muito depressa, para acabar logo. A Sra. White veio olhar seu trabalho e disse:
— Você faz casas melhor do que eu.
Depois que terminaram as quatro camisas, só trabalharam mais três horas naquele dia. Laura ia alinhavando as camisas que a Sra. White cortava.
Laura nunca tinha ficado sentada tanto tempo. Seus ombros, seu pescoço, todo seu corpo doía, seus dedos estavam picados da agulha e seus olhos estavam vermelhos e cansados. Por duas vezes, teve de desmanchar o alinhavo já feito e refazê-lo. Ficou bem contente quando seu pai chegou e ela pôde levantar-se e dobrar sua tarefa.
Foram andando para casa animadamente. O dia tinha passado e começava o crepúsculo.
— Como é que foi o primeiro dia de trabalho? Tudo saiu bem? perguntou Papai.
— Acho que sim, respondeu Laura. A Sra. White elogiou as casas que eu fiz.
O mês das rosas
Ao longo de todo aquele lindo mês de junho, Laura ajudou a fazer camisas. As rosas silvestres estavam florescendo em grandes ondas rosadas no verde da planície, mas ela só as via de manhãzinha, quando ia para o trabalho em companhia de seu pai.
O suave céu da manhã passava lentamente a um azul mais claro e já viajavam por ele algumas nuvens de verão. O vento trazia o perfume das rosas e, ao longo da estrada, os botões, com suas pétalas novinhas e o miolo dourado, pareciam uns rostos pequeninos.
Laura sabia que, ao meio-dia, grandes nuvens brancas se espreguiçariam pelo céu radiante. Projetariam sua sombra sobre o relvado e sobre as rosas, que se moveriam ao vento. Mas, ao meio-dia, ela estaria na cozinha barulhenta. À noitinha, quando ela voltava para casa, as rosas da manhã tinham fenecido e suas pétalas voavam, espalhadas pelo vento.
Na verdade, Laura já não estava em idade de brincar e achava formidável que já estivesse ganhando um bom ordenado. Todos os sábados, a Sra. White lhe pagava um dólar e meio, que Laura entregava a sua mãe.
— Eu não quero ficar com todo o seu dinheiro, disse Mamãe uma vez. Acho que você deveria ficar com uma parte para você mesma.
— Para que, Mamãe? respondeu Laura. Não preciso de nada.
Seus sapatos ainda estavam bem bons, tinha meias e roupa-de-baixo e seu vestido de percal estava quase novo. Durante a semana toda, pensava no prazer de poder levar para casa o seu ordenado. Freqüentemente pensava que aquilo era apenas um começo.
Dentro de dois anos, ela já poderia ser professora. Se estudasse bastante, recebesse o certificado de professora e conseguisse uma escola, então poderia realmente ajudar os pais. Poderia recompensá-los por tudo quanto eles tinham feito por ela, desde que nascera. Aí, sim, seria certo Mary ir para o colégio.
Às vezes tinha vontade de perguntar à mãe se não poderiam mandar Mary imediatamente para o colégio, contando com seus futuros ordenados para a manter lá. Mas nunca chegava a perguntar, porque tinha medo que a mãe dissesse que era um risco grande demais.
Apesar disso, a leve esperança fazia com que fosse mais alegre para o trabalho. Seu ordenado já era uma ajuda. Sabia que a mãe economizava cada tostão que podia e que Mary iria para o colégio logo que seus pais pudessem pagar as despesas.
A cidade era como uma ferida na bela e selvagem planície. Restos de alfafa e de estrume apodreciam em volta dos estábulos e cocheiras, as fachadas das lojas eram toscas e feias. Tinha desaparecido a grama até mesmo na Rua Dois e o vento levantava uma poeira pedrenta entre as casas. Havia no ar um cheiro desagradável de sujeira, fumaça, poeira e de gordura das cozinhas. Dos bares vinha um cheiro úmido, enquanto da parte de trás das casas vinha o cheiro acre da água usada para lavar a louça, que era jogada no chão. Depois de algum tempo, porém, a gente se habituava e já não sentia aquela mistura de maus cheiros e sempre era interessante ver passar gente desconhecida.
Os meninos e meninas que Laura tinha conhecido no inverno passado, não estavam agora na cidade. Tinham ido para seus ranchos. Os lojistas ficavam na cidade para tomar conta de suas lojas e dormiam nos quartos de trás, enquanto suas mulheres e filhos passavam todo o verão na planície, nas cabanas de seus ranchos. De acordo com a lei, ninguém podia conservar seu rancho se sua família não vivesse nele pelo menos seis meses por ano, durante cinco anos. Tinha também de arar dez acres de terra e plantar durante cinco anos, para que o Governo lhe desse o documento de posse definitiva da terra. Por isto, as mulheres e as crianças passavam o verão nas cabanas dos ranchos, os meninos ocupando-se de arar e cultivar a terra, enquanto seus pais construíam a cidade, tratando de ganhar dinheiro bastante para comprar alimentos e ferramentas do Leste.
Quanto mais Laura observava a vida da cidade, mais ela compreendia quanto era boa a situação de sua família. Isto porque seu pai levava um ano de vantagem sobre os outros. Tinha arado a terra no ano passado e, agora, já tinham a horta, o campo de aveia e o segundo plantio de milho estava crescendo bastante bem. Haveria alfafa para alimentar os animais durante o inverno e, com o dinheiro da venda do milho e da aveia, Papai poderia comprar carvão. Todos os novos colonos estavam fazendo agora o que seu pai tinha feito há um ano.
Levantando os olhos de seu trabalho, Laura podia ver quase toda a cidade, pois os edifícios, cm sua maioria, estavam nos dois quarteirões do outro lado da rua. As fachadas de todos eles eram construídas de maneira a dar a impressão de que havia dois andares.
O Hotel Mead, no fim da rua, o Hotel Beardsley, quase em frente à loja de Clancy, a Mobiliária Tinkham, no meio do outro quarteirão, tinham mesmo dois andares. Havia cortinas nas janelas do segundo andar, mostrando que eles eram sobrados de verdade, no meio daquelas fachadas falsas.
Não era esta a única diferença entre eles e os outros edifícios. Eles eram todos em madeira, que começava a tornar-se cinzenta com o tempo. Cada um tinha duas grandes janelas com vidro na frente e uma porta no meio delas. Por causa do calor, todas as portas estavam abertas e nos umbrais havia um pedaço de tela contra os mosquitos.
À frente dos edifícios corria a calçada de madeira, em cujas bordas havia postes para amarrar cavalos. Sempre havia alguns cavalos à vista, amarrados aqui e ali, e às vezes uma carroça puxada por uma parelha de cavalos ou por uma junta de bois.
De quando em vez, cortando com os dentes um pedaço de linha, Laura via um homem cruzar a rua, desamarrar seu cavalo, montá-lo e desaparecer. Outras vezes, ouvia o barulho feito por uma carroça e, quando o barulho era mais forte do que de hábito, ela levantava os olhos para ver quem passava.
Um dia, levou um susto ao ouvir um vozerio confuso. Viu um homem alto sair correndo do bar Brown. A porta fechou-se atrás dele, batendo violentamente.
Muito sério, ele virou-se para trás, olhou altivamente para a porta de arame (contra os mosquitos) e, apoiando-se num pé só, deu um violento pontapé na tela, que ficou dependurada de um lado só. De dentro do bar, veio um forte berro de protesto.
O homem alto não prestou a mínima atenção aos que tinham gritado. Tornou a virar-se, orgulhosamente, e deu de cara com um homem baixo e gordo, que queria entrar no bar. O homem alto queria sair, mas um estava diante do outro.
O homem alto não se mexeu, muito alto e muito sério. O homem baixo e gordo também estava muito sério.
O dono do bar se estava queixando do prejuízo, mas eles nem o ouviam. Entreolhavam-se, cada vez mais sérios.
De repente, o homem alto descobriu o que devia fazer. Deu o braço ao homem baixo e começaram a andar pela calçada, cantando:
Vamos a terra, marinheiro!
Vamos a terra!
Não ligue p'ros ventos...
Solenemente, o homem alto levantou a perna e deu um pontapé na porta de tela da loja Harthorn. De dentro veio um grito: — Ei, o que é que... Os dois prosseguiram, cantando:
Não importa quão forte eles soprem!
Vamos a terra, marinheiro...
Ambos estavam tão sérios quanto possível. As compridas pernas do homem alto davam largas passadas e o homem baixo tentava acompanhá-lo com suas perninhas curtas.
Não ligue p'ros ventos...
Com uma cara muito séria, o homem alto deu um pontapé na tela do Hotel Beardsley. O Sr. Beardsley veio furioso lá de dentro, mas os dois nem ligaram.
Não importa quão forte eles soprem!
Laura ria tanto que as vezes chegava a chorar. Ela viu quando a longa e solene perna do homem alto arrebentou a tela do armazém do Sr. Barker, que saiu aos gritos, em protesto. Mas, em largas passadas, as pernas compridas se afastaram, acompanhadas pelas pernas curtas que se abriam o mais que podiam.
Vamos a terra !
O homem alto deu novo pontapé e lá se foi a tela do Armazém Wilder, cujo dono abriu a porta e disse tudo quanto lhe veio à cabeça.
Os dois homens o ouviram com toda a dignidade, até que ele parou para respirar. Então, o homenzinho disse, muito sério:
— Eu me chamo Pim Pam Pom e estou bêbado.
Os dois continuaram a andar, cantando em dueto:
— Eu me chamo Pim Pam Pom, começava o gordo.
— E estou bêbado, cantavam os dois, em voz de falsete. O homem alto não dizia chamar-se Pim Pam Pom, mas não falhava na hora de cantar:
E estou bêbado!
Deram meia-volta e entraram no outro bar. Desta vez, apesar da violência com que abriram a porta, a proteção contra os mosquitos ficou inteira.
Laura ria a bandeiras despregadas. Nem pôde parar, quando a Sra. White lhe disse que era uma horrível desgraça o que os homens faziam quando estavam bêbados.
— Pense no que vai custar consertar todas essas telas, disse a Sra. White. Estou espantada com você. Os jovens de hoje não têm nenhum senso comum.
À noite, quando Laura tentou descrever os dois homens de modo que Mary pudesse imaginar como eles eram, ninguém riu.
— Meu Deus, Laura, como é que você pôde rir dos dois bêbados? perguntou-lhe a mãe.
— Acho isto horrível, acrescentou Mary.
— O homem alto era Bill O'Dowd. Sei que seu irmão o trouxe para aqui para ver se ele deixa de beber. Dois bares nesta cidade são dois bares demais, disse Papai.
— É pena que mais homens não sejam dessa opinião, disse Mamãe. Eu acho que, se não pararem com o contrabando de bebidas, nós mulheres vamos ter de tomar nossas providências.
— Penso que você teria muito que dizer, Carolina. Nem minha mãe nem você nunca me deixaram ter qualquer dúvida a respeito dos males causados pela bebida.
— Seja como for, é uma vergonha que essas coisas aconteçam diante de Laura.
Papai olhou para Laura, e seus olhos ainda piscavam maliciosamente. Laura sabia que ele não estava zangado porque ela havia rido.
Nove dólares
O Sr. Clancy já não estava recebendo muitas encomendas de camisas. Parecia que quase todos os homens que podiam comprar camisas naquele ano, já o tinham feito. Num sábado, à tarde, a Sra. White comentou:
— Parece que o movimento da primavera já acabou.
— É sim, senhora, respondeu Laura.
A Sra. White separou um dólar e meio, que entregou a Laura, dizendo-lhe:
— Já não preciso de você e, por isto, não precisa vir segunda-feira. Até outro dia.
— Até outro dia, disse Laura.
Ela tinha trabalhado durante seis semanas e recebido nove dólares. Um dólar parecia muito dinheiro uma semana atrás, mas agora nove dólares já não eram muita coisa. Se ela tivesse trabalhado mais uma semana, ganharia dez dólares e meio; se duas semanas mais, teria conseguido doze dólares.
Não que ela não achasse bom ficar de novo em casa, ajudando nos trabalhos domésticos e na horta, passear com Mary e colher flores silvestres, e esperar pela volta do pai à noite. Mas, de certo modo, ela se sentia abandonada e vazia por dentro.
Lentamente, começou a andar ao longo da Rua Principal. Agora, Papai estava trabalhando no prédio da esquina com a Rua Dois. Ele estava de pé, ao lado de um monte de ripas, esperando por Laura e, quando a viu, gritou-lhe:
— Veja o que recebi para levar para sua mãe!
À sombra do monte de ripas havia uma cesta, recoberta por um pano de saco. De dentro da cesta, vinha um barulhinho de garras e de pios. Os pintos!
— Boast os trouxe hoje, disse Papai. Quatorze, todos sadios e bem espertos! Seu rosto irradiava contentamento, só de pensar no prazer que Mamãe iria ter.
— A cesta não está muito pesada. Você segura de um lado e eu do outro.
Desceram a Rua Principal, tomando a estrada para casa, com a cesta entre os dois. O céu crepuscular parecia incendiar-se em ouro e púrpura. O ar estava cheio de uma luz dourada e, mais para leste, a Lagoa Prateada reverberava como se fosse de fogo. Dentro da cesta, os pintinhos continuavam a piar, assustados.
— Papai, disse Laura, a Sra. White já não precisa de mim.
— É, eu acho que o movimento da primavera já está acabando, respondeu ele.
Laura não tinha pensado que também o trabalho extra do pai iria acabar.
— Ih, Papai, não vai haver mais trabalho de carpinteiro, também?, perguntou.
— Bem, não esperávamos que durasse todo o verão, respondeu ele. De qualquer maneira, dentro em pouco terei de cuidar do feno.
Depois de um minuto de silêncio, Laura voltou a falar:
— Papai, só ganhei nove dólares.
— Nove dólares não são de desprezar. Por outro lado, você fez um bom trabalho e a Sra. White ficou inteiramente satisfeita, não é verdade?
— Sim, respondeu Laura, com sinceridade.
— Então, está tudo bem: foi um bom trabalho bem executado.
Na verdade, pensou Laura, que se sentia melhor, havia razão para estar satisfeita. Além de tudo, estavam levando os pintinhos para Mamãe.
Esta ficou contentíssima ao vê-los. Carrie e Grace vieram logo espiá-los na cesta, enquanto Laura os descrevia para Mary. Todos estavam de boa saúde e tinham brilhantes olhos negros e unhas amarelo-claro, também brilhantes. Já estavam perdendo a penugem, o que os deixava pelados no pescoço; nas asas e nos rabos, já apareciam as primeiras penas. Eram de diversas cores e alguns eram carijós.
Um a um, Mamãe passou-os cuidadosamente para seu avental, dizendo:
— A Senhora Boast não pode tê-los conseguido todos numa só ninhada. Acho que não há senão dois frangos ao todo.
— O casal Boast está tão adiantado na criação de galinhas que, provavelmente, estão pensando em comer frangos assados no verão, respondeu Papai. Talvez ela tenha ficado com alguns dos frangos dessa ninhada para isso.
— É possível, disse Mamãe, com ar pensativo; talvez tenha substituído os frangos por frangas boas poedeiras. Isso estaria bem de acordo com o temperamento da Sra. Boast. Nunca vi pessoa tão generosa quanto ela.
Mamãe levou os pintos em seu avental para o viveiro que Papai tinha construído. A frente do viveiro era de sarrafos, para deixar passar luz e ar, com uma portinha fechada por uma tramela. Não tinha chão, pousando diretamente no solo, de forma que os pintinhos podiam comer a relva tenra. Quando o chão ficasse sujo, o viveiro mudaria de lugar.
Numa velha frigideira, Mamãe preparou um mingau de farelo, com bastante pimenta. Assim que a colocou no viveiro, os pintinhos juntaram-se em torno dela, comendo tão gulosamente que às vezes chegavam a se enganar, bicando, por engano, os próprios pezinhos. Quando se fartaram, foram para a beira da gamela de água e, enchendo os bicos, esticavam o pescoço e inclinavam a cabeça para trás, para beber a água.
Mamãe determinou que Carrie teria o encargo de alimentá-los e de encher a gamela sempre com água fresca. No dia seguinte, deixaria os pintinhos sair para que corressem um pouco. Grace vigiaria atentamente contra os gaviões.
Depois da ceia, ela mandou Laura ver se os pintinhos estavam dormindo em segurança. As estrelas brilhavam sobre a planície envolta em trevas e uma pálida lua aparecia a oeste, baixa sobre a linha do horizonte. A relva e os caniços moviam-se brandamente, adormecidos dentro da noite quieta.
A mão de Laura passou suavemente pelos pintinhos, que já dormiam amontoados e mornos, a um canto do viveiro. Depois, Laura ficou a admirar a noite de verão. Perdera a noção de há quanto tempo ali estava, quando viu a mãe que vinha saindo de casa.
— Ah, você está aí, Laura, disse ela e, tal qual Laura fizera antes, ajoelhou-se para apalpar os pintinhos. Depois, ficou também a contemplar a noite.
— Agora, este lugar está começando a parecer uma fazenda de verdade, disse ela.
Os campos de aveia e de milho surgiam, num sombreado pálido em meio à escuridão, a horta cheia de altos e baixos, com tufos de folhas escuras. À desmaiada luz das estrelas, viam-se os pepinos e as abóboras. O estábulo, baixo, mal se podia ver, mas da janela da casa vinha uma luz que aquecia.
De repente, sem pensar, Laura exclamou:
— Ah, Mamãe, como eu gostaria de que Mary pudesse ir para o colégio no outono!
Para surpresa sua, a mãe respondeu:
— Pode ser que ela vá. Seu pai e eu temos conversado sobre o assunto.
Laura nem pôde falar logo. Depois, perguntou:
— Os senhores disseram alguma coisa a ela?
— Ainda não. Não devemos dar-lhe esperanças só para desapontá-la depois. Mas, com o salário de seu pai, a aveia e o milho, se tudo der certo, pensamos que ela poderá ir neste outono. Devemos ter confiança em nós mesmos, que conseguiremos mantê-la no colégio até que ela termine o curso completo de sete anos, tanto de estudo quanto de aprendizagem manual.
Pela primeira vez, Laura compreendeu que, quando Mary fosse para o colégio, já não estaria com eles. Teria ido embora mesmo. Não estaria ali o dia todo. Laura não conseguia imaginar como seria a vida sem Mary.
— Eu..., começou a dizer, mas logo parou. Desejava tanto que Mary fosse para o colégio!
— Sim, nós sentiremos falta dela, disse Mamãe, com serenidade. Mas temos de pensar que esta é a grande oportunidade para ela.
— Eu sei, Mamãe, disse Laura, tristemente.
Agora, a noite parecia imensa e sem sentido. A luz que vinha da janela de casa ainda era firme e aconchegadora, mas até mesmo a casa já não seria igual, sem a presença de Mary.
A voz de Mamãe fez-se ouvir novamente:
— Seus nove dólares são uma grande ajuda, Laura. Estive pensando e acho que, com eles, poderei comprar a fazenda para o vestido de sair de Mary e, talvez, o veludo para um chapéu.
Quatro de julho
BUM!
Laura despertou num sobressalto. O quarto ainda estava escuro. Carrie perguntou, num murmúrio amedrontado:
— Que foi isto?
— Não tenhas medo, respondeu Laura.
Ficaram à escuta. Mal se via a janela no escuro, mas Laura sabia que já tinha passado metade da noite.
BUM! Tudo parecia tremer.
— Caramba! exclamou Papai, com voz sonolenta.
— Por que? Por que? perguntava Grace. Por que, Papai? Por que, Mamãe?
Carrie perguntou:
— Quem é que está fazendo isso? Que é que estão disparando?
— Que horas são? perguntou Mamãe. Através da parede, chegou a voz de Papai:
— Hoje é 4 de julho, Carrie.
De novo, tudo tremeu. BUM!
Não eram canhões de grosso calibre, mas sim pólvora que faziam explodir na bigorna do ferreiro, lá na cidade. O barulho era igual ao das batalhas que os americanos tinham travado pela, sua independência. Quatro de Julho fora o dia em que os primeiros americanos declararam que todos os homens nascem livres e iguais. BUM!
— Vamos, meninas, é melhor que nos levantemos de uma vez! disse Mamãe.
Papai começou a cantar:
"Oh, dizei, podeis ver, à luz da madrugada?" (1)
(1) Primeiro verso do hino "The Star-Spangled Banner", cuja letra foi composta por Francis Scott Key, quando prisioneiro dos ingleses na Guerra de 1812, entre a Grã-Bretanha e os Estados Unidos. E, desde 1931, o Hino Nacional dos Estados Unidos, em virtude de uma lei do Congresso (Nota do Tradutor),
— Charles! protestou Mamãe, mas a verdade é que estava rindo, pois ainda estava muito escuro para ver-se alguma coisa.
— Ora, não precisamos ficar solenes, disse Papai, pulando da cama. Hurra! Hurra — Nós somos americanos! E recomeçou a cantar:
Viva! Viva! Cantemos com toda a alegria!
Viva! Viva! Viva a bandeira que faz livres todos os homens!
O próprio sol, a iluminar o mais claro dos céus, parecia saber que aquele dia era o glorioso Quatro de Julho. Depois do café, Mamãe disse que era um bom dia para fazer-se um piquenique, mas Papai respondeu que a cidade era muito longe e que melhor seria esperar pelo outro ano.
— Aliás, dificilmente poderíamos fazer um piquenique este ano, concordou Mamãe. Sem galinha assada, nem pareceria piquenique.
Depois de um despertar tão excitante, o dia pareceu vazio. Um dia tão especial merecia um acontecimento também especial, mas nada de extraordinário parecia acontecer.
— Estou com vontade de me vestir, disse Carrie, enquanto lavavam os pratos.
— Eu também, respondeu Laura, mas para quê?
Quando foi levar a bacia para jogar a água fora, viu o Pai que observava a aveia. Estava crescendo bem, grossa e alta, de um verde-acinzentado, agitando-se suavemente à brisa. O milho também estava bem bonito. Seus longos pendões amarelo-esverdeados quase escondiam o solo. Na horta, os sarmentos dos pepineiros já apareciam, suas pontas rastejantes a esticar-se debaixo de grandes folhas. Os canteiros de ervilhas e vagens se entremeavam, os canteiros de cenouras se apresentavam como plumas verdes e as beterrabas brotavam em longas folhas escuras, com pecíolos vermelhos. Os morangos silvestres já formavam pequenas moitas. Os pintos, espalhados entre as plantas, ciscavam insetos para comer.
Tudo isto seria ótimo num dia comum, mas um Quatro de Julho exigia alguma coisa mais.
Papai também pensava assim. Não tinha nada para fazer, pois num Quatro de Julho só havia mesmo o trabalho de casa. Dali a pouco, ele entrou e perguntou a Mamãe:
— Há uma festa na cidade, hoje, você não gostaria de ir?
— Que espécie de festa? perguntou Mamãe.
— Bem, uma corrida de cavalos, mas também fizeram uma coleta para refrescos, respondeu Papai.
— Senhoras não devem ir a corridas de cavalos e, além disso, não posso ir sem ser convidada, disse Mamãe.
Laura e Carrie esperavam, quase estourando de vontade de ir, enquanto a mãe refletia, sacudindo a cabeça.
— Vá você, Charles. De qualquer maneira, seria muito cansativo para Grace.
— Em casa, é muito melhor, disse Mary. Foi aí que Laura falou:
— Papai, se o senhor for, será que Carrie e eu também podemos ir?
Os olhos de Papai brilharam e ele piscou para as duas. Mamãe sorriu para os três e disse:
— Isso mesmo, Charles, será um belo passeio para vocês todos. Carrie, vá à despensa e traga manteiga; enquanto vocês se vestem, farei sanduíches para vocês.
De repente, o dia parecia mesmo um Quatro de Julho. Mamãe fez os sanduíches, Papai engraxou os sapatos, Laura e Carrie vestiram-se apressadamente. Felizmente, Laura tinha lavado e passado o seu vestido de percal. Ela e Carrie lavaram o rosto na bacia, esfregando as faces, o pescoço e as orelhas até que ficaram rosados. Puseram anáguas de cassa bem engomadas. Escovaram e pentearam o cabelo. Laura enrolou suas trancas, prendendo-as no alto da cabeça. Amarrou a fita dos domingos nas trancas de Carrie. Depois, vestiu seu vestido novo, abotoado nas costas. O frufru de suas saias ia-lhes até os pés.
— Abotoe-me, por favor, pediu Carrie. No meio das costas de seu vestido, havia dois botões que ela não alcançava. Todos os outros estavam abotoados para dentro.
— Você não pode ir assim a uma festa de Quatro de Julho, disse Laura, desabotoando-os e tornando a abotoá-los direito.
— Se abotôo para fora, eles prendem nas minhas trancas, reclamou Carrie, e puxam meu cabelo.
— Eu sei. Comigo era a mesma coisa. Mas, você tem de esperar crescer para poder usar o cabelo para cima.
Puseram seus chapéus de verão. Papai estava esperando, com o embrulho dos sanduíches. Mamãe inspecionou-as cuidadosamente e disse que estavam muito bonitas.
— Tenho muito prazer, disse Papai, em sair com minhas duas , lindas filhas.
— O senhor também está muito elegante, Papai, disse Laura.
Seus sapatos brilhavam, tinha aparado a barba e estava usando sua roupa dos domingos, com o chapéu de feltro.
— Eu também quero ir! reclamou Grace.
Mesmo depois de Mamãe ter dito que não, ela repetiu duas ou três vezes que queria ir. Como ela era a caçula, tinham-na mimado demais. Agora sua desobediência tinha de ser cortada pela raiz. Papai a sentou firmemente numa cadeira e disse-lhe:
— Você ouviu o que sua mãe disse.
Saíram um pouco tristes, por causa de Grace. Mas ela tinha de aprender a obedecer. Talvez no ano seguinte ela pudesse acompanhá-los, se houvesse uma festa grande e toda a família viesse na carroça. Desta vez, iam a pé, para que os cavalos pudessem ficar pastando à vontade, porque eles se cansavam muito quando ficavam amarrados o dia todo ao sol e no meio da poeira. Grace ainda era muito pequena para poder fazer a pé o trajeto de ida e volta, e grande demais para ir ao colo.
Antes de chegar à cidade, começaram a ouvir um barulho como o de milho na frigideira. Carrie perguntou o que era e Papai explicou que eram fogos.
Havia cavalos ao longo de toda a Rua Principal. Era tanta a gente na calçada que quase uns tocavam os outros. Na rua poeirenta, os meninos queimavam fogos que assobiavam e explodiam. O barulho era assustador.
— Não sabia que ia ser assim, murmurou Carrie.
Laura também não estava gostando. Nunca tinham estado em meio a tanta gente. Nada se podia fazer senão continuar andando para cima e para baixo. Não era agradável ficar no meio de tanta gente desconhecida.
Por duas vezes andaram dois quarteirões em companhia de Papai e, então, Laura perguntou se ela e Carrie não podiam ficar na antiga loja. Papai disse que era ótima idéia: poderiam ver a multidão que passava, enquanto ele daria umas voltas; depois, comeriam os sanduíches e veriam as corridas. Deixou-as na casa vazia e Laura fechou a porta.
Era gostoso estarem sozinhas, na casa cheia de ecos. Foram ver a cozinha, onde haviam passado o longo e duro inverno anterior. Subiram até os quartos, quentes debaixo das calhas do teto feito de ripas, e ficaram olhando da janela, acompanhando os que passeavam e vendo os foguetes que espocavam no ar.
— Bem que eu gostaria de ter uns foguetes, disse Carrie.
— Vamos fingir que são canhões. Estamos no Forte Ticonderoga(l) e eles são os ingleses e os índios. Nós somos americanos, lutando pela independência, disse Laura.
— Mas os ingleses é que estavam em Forte Ticonderoga e os soldados da Montanha Verde(2) foram os vencedores, protestou Carrie.
(1) Forte situado perto do Lago Champlain, objeto de ferozes combates entre ingleses e americanos durante a Guerra da Independência. (Nota do tradutor).
(2) Assim eram chamados os soldados do Vermont, onde fica a Montanha Verde. Vermont é uma região dos Estados Unidos, onde estava situado o Forte Ticonderoga. Hoje, é um Estado da União. (Nota do tradutor).
— Então vou fingir que estamos com Daniel Boone (3) em Kentucky(4) e que estamos atrás de uma paliçada de madeira. Só que os ingleses e os índios o capturaram, disse Laura.
(3) Herói norte-americano das guerras contra os índios c da Independência (Nota do tradutor).
(4) Outro Estado da União (Nota do tradutor).
— Quanto custarão os foguetes? perguntou Carrie.
— Mesmo que Papai pudesse comprá-los, seria uma tolice gastar dinheiro só para fazer um barulhinho, respondeu Laura. Olhe aquele cavalinho baio. Vamos brincar de escolher os cavalos de que mais gostarmos; comece você.
Havia tanta coisa para ver que mal acreditaram que já fosse meio-dia quando ouviram os passos do pai no andar térreo e ele as chamou:
— Meninas, onde é que vocês estão?
Correram escada abaixo. Ele estava-se divertindo, seus olhos brilhavam de satisfação. Disse-lhes, quase cantando:
— Vejam o que eu trouxe! Arenque defumado, para acompanhar nosso pão com manteiga. E vejam outra coisa, disse-lhes mostrando um punhado de foguetes.
— Ih, Papai, gritou Carrie, quanto é que custou?
— Não me custaram nem um tostão. O advogado Barnes é que me deu para vocês.
— Por que é que ele fez isto? perguntou Laura, que nunca tinha ouvido falar no advogado Barnes antes.
— Ora, ele vai candidatar-se a algum cargo, eu acho, respondeu Papai. Está sendo agradável e gentil com todo o mundo. Vocês querem que eu solte os foguetes agora, ou depois que comermos?
Laura e Carrie estavam pensando a mesma coisa. Sabiam disto ao se entreolharem, mas quem falou foi Carrie:
— Vamos guardá-los, Papai, para Grace.
— Muito bem, disse Papai, guardando-os no bolso e abrindo o embrulho do arenque defumado, enquanto Laura abria o de sanduíches. O arenque estava uma delícia e eles guardaram um pouco para Mamãe. Quando acabaram com o último pedacinho de pão com manteiga, foram até o poço e beberam água, em grandes sorvos, da borda do balde que Papai tirou bem cheio. Depois lavaram as mãos e os rostos afogueados, enxugando-os no lenço de Papai.
Já estava na hora das corridas. Todo o mundo estava atravessando o leito da estrada-de-ferro, indo para a planície. Num mastro, a bandeira dos Estados Unidos tremulava ao vento. O sol estava quente e soprava uma brisa fresca.
Junto do mastro apareceu um homem bem acima da multidão, trepado num estrado. O vozerio foi-se acalmando e se pôde ouvir o que ele estava dizendo.
— Bem, minha gente, não sei fazer discursos, mas hoje é o glorioso Quatro de Julho. É o dia em que nossos antepassados se libertaram dos déspotas da Europa. Não havia muitos americanos naquele tempo, mas eles não toleraram que um rei qualquer os tiranizasse. Tiveram de combater os soldados ingleses, os mercenários do Hesse(5) e os peles-vermelhas escalpeladores que aqueles elegantes aristocratas enviaram contra nossos povoados para assassinar, queimar e escalpelar mulheres e crianças. Um punhado de americanos teve de bater-se contra todos eles e deu-lhes uma surra tremenda. Sim, senhores! Surramos os ingleses em 1776, outra vez em 1812, expulsamos todas as monarquias européias faz menos de vinte anos, graças à Gloriosa! Sim, senhores, a Velha Gloriosa que drapeja sobre minha cabeça, sempre que os déspotas da Europa tentarem humilhar a América, nós os surraremos outra vez!
(5) Região da Alemanha, onde antigamente se recrutavam soldados para combater, mediante dinheiro, em outros países (Nota do tradutor).
— Viva! Viva! gritaram todos, inclusive Laura, Carrie e Papai.
— Bem, prosseguiu o orador, aqui estamos nós. Qualquer João, entre nós, é um cidadão livre e independente desta terra de Deus, o único país no mundo onde um homem é livre e independente de fato. Hoje é o dia Quatro de Julho, o mesmo dia em que tudo começou, e deveria haver uma festa maior e mais bonita. Não podemos, porém, fazer muita coisa este ano. Muitos de nós estão em grandes dificuldades. Talvez para o ano estejamos em melhores condições e possamos comemorar condigna-mente o Dia da Independência. De uma maneira ou de outra, aqui estamos. É Quatro de Julho e, neste dia, alguém deve ler a Declaração da Independência(6). Parece que o escolhido fui eu; portanto, tirem os chapéus, que vou começar a leitura.
Naturalmente, Carrie e Laura sabiam a Declaração de cor, mas experimentaram uma sensação de solene orgulho, quando ouviram as palavras. Deram-se as mãos e ficaram ouvindo, juntamente com a multidão, que também estava solene. A "Stars and Stripes" (7) tremulava altaneira ao céu azul diáfano e as palavras eram pensadas antes mesmo de serem pronunciadas.
(6) Documento adotado pelo Congresso reunido em Filadélfia, em 1776, e do qual participavam representantes das Treze Colônias, que deram origem aos Estados Unidos. Seus principais redatores foram Thomas Jefferson, Benjamin Franklin e John Adams, notadamente o primeiro. (Nota do tradutor).
(7) Literalmente, "Estrelas e Listras", nome por que é conhecida a bandeira norte-americana. As estrelas, cujo número tem variado com o tempo, representam os Estados da União e as listras alternadas (7 vermelhas e 6 brancas) simbolizam as treze colônias originais. (Nota do tradutor ).
"Quando, no curso dos acontecimentos, um povo tem necessidade de cortar os laços políticos que o ligavam a outro povo, assumindo entre as demais potências do mundo o seu próprio lugar, igual ao das outras, que lhe foi reservado pelas leis naturais e divinas, um elementar respeito à opinião mundial exige que este povo torne conhecidas as razões que o impelem a tal separação.
"Sustentamos como verdades evidentes que todos os homens são criados iguais, que são dotados por seu Criador de certos direitos inalienáveis, entre os quais a Vida, a Liberdade e a busca da Felicidade..."
Seguia-se a longa enumeração dos crimes do Rei(8).
(8) Alusão ao Rei Jorge III, da Grã-Bretanha, contra quem se revoltaram os americanos do norte, em 1776. (Nota do tradutor).
"Ele procurou evitar a expansão da população dos Estados.
"Obstruiu a ação da Justiça.
"Tornou os juizes dependentes de sua exclusiva vontade.
"Criou uma infinidade de novos cargos e mandou para cá um grande número de funcionários para oprimir nosso povo e destruir sua alma.
"Saqueou nossos mares, devastou nossas costas, queimou nossas cidades e destruiu a vida de nosso povo...
"Atualmente, está transportando grandes forças de estrangeiros mercenários, a fim de completar a obra de morte, destruição e tirania, iniciada em meio a crueldade e perfídia tais que dificilmente encontrarão paralelo nas eras mais bárbaras e inteiramente indignas do Chefe de uma Nação civilizada...
"Portanto, nós, os Representantes dos Estados Unidos da América, reunidos em Congresso Nacional, tomando ao Supremo Juiz por testemunha da retidão de nossos propósitos, em nome e pela autoridade do nobre Povo dessas Colônias, solenemente publicamos e declaramos
"Que essas Colônias Unidas são, de pleno direito, Estados Livres e Independentes, totalmente desligados de qualquer sujeição à Coroa Britânica, e que todo e qualquer vínculo político entre elas e o Reino da Grã-Bretanha fica, e deve ficar, completamente desfeito; e que, como Estados Livres e Independentes, eles têm pleno direito de fazer a Guerra...
E, para sustentar esta Declaração, confiando firmemente na proteção da Divina Providência, empenhamos uns aos outros nossas Vidas, nossa Fortuna e nossa Honra sagrada".
Ninguém deu vivas. Parecia mais adequado dizer "Amém", mas ninguém sabia bem o que fazer.
Então, Papai começou a cantar, logo acompanhado por todos:
'Minha Pátria, é de Ti,
Doce terra da liberdade,
É de Ti que eu canto...
Por muitos anos possa o nosso País
Ser iluminado pela santa luz da Liberdade.
Proteja-nos o Teu poder,
Deus Onipotente, nosso Rei! (9)
(9) Canção patriótica norte-americana. (Nota do tradutor).
A multidão já se dispersava, mas Laura continuava imóvel. De repente, veio-lhe um pensamento inteiramente novo para ela. Lembrou-se das palavras da Declaração e da letra da canção ao mesmo tempo e pensou: Deus é o rei da América. Os americanos não obedecerão a nenhum rei na terra. Os americanos são livres. Isto quer dizer que eles devem obedecer a suas próprias consciências. Nenhum rei manda em Papai; ele tem de mandar em si mesmo. Puxa! (pensou ela), quando eu crescer, Papai e Mamãe já não me dirão o que fazer e o que não fazer e não haverá ninguém com direito a me dar ordens. Eu mesma é que terei de esforçar-me para ser boa.
Sua mente iluminou-se com esse pensamento. Isto é que queria dizer ser livre. Quer dizer ser bom. "Deus nosso Pai, criador da Liberdade...". As leis naturais e as leis divinas nos garantem o direito à vida e à liberdade. Então, devemos obedecer às leis de Deus, pois só elas é que nos dão o direito de sermos livres.
Laura não teve tempo para continuar a pensar. Carrie estava admirada de vê-la parada e Papai já as chamava:
— Por aqui, meninas! Aqui temos refrescos de graça!
Os barris estavam no chão, ao lado do mastro da bandeira. Alguns homens estavam esperando sua vez para beber numa concha de folha-de-flandres. À medida que cada um bebia, passava a concha ao seguinte e se encaminhava para a pista de corridas a examinar os cavalos e os carros.
Laura e Carrie estavam um pouco para trás, mas o homem que estava com a concha as viu e deu a concha para Papai. Ele a encheu e passou-a para Carrie. O barril estava quase cheio e rodelas de limão flutuavam na limonada.
— Eu vi por muito limão, de modo que ela deve estar gostosa, disse Papai, enquanto Carrie bebia lentamente. Seus olhos estavam arregalados de tanto que estava gostando. Ela nunca tinha tomado limonada antes.
— Acabaram de prepará-la, disse um dos homens para Papai. Trouxeram a água agorinha mesmo do poço do hotel, de modo que ela está bem fresca.
Outro homem disse:
— Depende da quantidade de açúcar que puseram.
Papai tornou a encher a concha e deu-a a Laura. Ela já tinha provado limonada uma vez, na festa de Nellie Oleson, quando era pequena em Minnesota(10). Mas esta era ainda mais gostosa. Ela bebeu até a última gota e devolveu a concha a Papai. Não seria polido pedir para repetir.
(10) Um dos Estados da União norte-americana (Nota do tradutor).
Depois que Papai também bebeu, cruzaram a relva machucada pela multidão e foram para a pista de corridas. Tinham limpado um bom pedaço de relva e nivelado a terra negra, que agora estava macia. Por toda a parte plantas e caniços agitavam-se ao vento, exceto onde os homens e os carros tinham aberto trilhas.
— Alô, Boast! chamou Papai, e o Sr. Boast abriu caminho por entre a multidão. Tinha chegado à cidade a tempo de ver apenas as corridas. A Sra. Boast, como Mamãe, tinha preferido ficar em casa.
Apareceram quatro pôneis na pista. Havia dois baios, um tordilho e um preto. Os rapazes que os montavam puseram-nos em linha reta.
— Em qual vocês apostariam, se apostassem? perguntou o Sr. Boast.
— Ah, no preto, exclamou Laura. O pêlo do pônei preto rebrilhava à luz do sol e sua longa crina e a cauda esvoaçavam sedosamente ao vento. Ele sacudiu sua fina cabeça e empinou-se elegantemente.
Ao sinal de partida, todos os pôneis começaram a correr. A multidão gritava. Com boa margem, vinha na dianteira o pônei preto, com os outros atrás dele. Suas patas ferradas levantaram uma nuvem de poeira que os encobria. Deram a volta pelo outro lado da pista, galopando a toda a brida. O pônei tordilho estava agora bem perto do preto. Corriam emparelhados, depois o tordilho passou um pouco à frente, com a multidão gritando de novo. Estavam pescoço a pescoço, mas o tordilho passou um pouquinho e a multidão tornou a gritar. Laura ainda tinha esperanças no preto, que estava fazendo o possível. Pouco a pouco, voltou a emparelhar com o tordilho. Sua cabeça colou-se ao pescoço do tordilho, o focinho quase emparelhou com o do rival. De repente, os quatro pôneis apareceram na pista, formando um grupo cada vez mais compacto envolto na poeira. O pônei baio de focinho branco passou pelo tordilho e pelo preto, cruzando a linha de chegada sob os aplausos da multidão.
— Se você tivesse apostado no preto, Laura, teria perdido, disse o Sr. Boast.
— Apesar de tudo, é o mais bonito, respondeu Laura. Nunca ela se tinha divertido tanto. Os olhos de Carrie brilhavam, suas faces estavam rosadas de contentamento; sua trança estava presa em um botão do vestido e, estouvadamente, ela a deixou solta.
— Haverá outras corridas, Papai? perguntou Carrie.
— Claro, já estão chegando para a corrida de carros, respondeu Papai.
O Sr. Boast troçou com Laura, dizendo-lhe:
— Indique o vencedor, Laura!
Através da multidão, em direção à pista, vinha a primeira parelha de baios, atrelada a um carrinho leve. Os baios eram iguaizinhos e caminhavam como se o carro não lhes pesasse. Depois foram chegando outras parelhas e outros carros, mas Laura não lhes prestou muita atenção, pois havia uma parelha de castanhos que ela conhecia. Conhecia as suas cabeças altivas e alegres, os pescoços arqueados, o reflexo da luz em seu corpo acetinado, as negras crinas ondulando ao vento e seus topetes balançando acima dos olhos irrequietos, brilhantes, gentis.
— Veja, Carrie! São os castanhos Morgan! (11).
(11) Famosa raça de cavalos originária do Estado de Vermont. (Nota do tradutor).
— É a parelha de Almanzo Wilder, Boast, disse Papai. Mas em que é que ele a atrelou?
Almanzo Wilder estava sentado muito acima dos cavalos. Trazia o chapéu sobre a nuca e parecia alegre e confiante.
Levou a parelha para o lugar que lhe competia na fila e então todos viram que ele estava sentado numa boléia alta, à frente de uma longa, alta e pesada carroça, com uma porta ao lado.
— É a carroça de mascatear de seu irmão Royal, disse um homem que estava perto deles.
— Ele não tem chance, com todo esse peso, contra os carros mais leves, disse outro.
Todos estavam olhando os Morgans e o carro, fazendo comentários a respeito deles.
— O cavalo do lado de lá, Príncipe, foi o que ele montou no inverno passado, naquela viagem de sessenta quilômetros que Almanzo e Cap Garland fizeram para trazer o trigo que nos salvou de morrer de fome, disse Papai ao Sr. Boast. O outro é Lady, que fugiu com a manada de antílopes naquela ocasião. São ambos muito velozes.
— Estou vendo, disse o Sr. Boast. Mas nenhuma parelha pode puxar aquela carroça e ganhar dos baios de Sam Owen, com aquele carrinho leve. Até parece que esse rapaz perdeu o seu carro, em alguma parte da região.
— Ele é um bocado independente, disse alguém. Prefere perder com o que tem a ganhar com um carro emprestado.
— Pena que ele não tenha um bom carro, disse o Sr. Boast.
Os castanhos eram, de fato, os cavalos mais bonitos na pista, e também os mais altivos. Nem pareciam sentir o peso da carroça, agitando as cabeças, levantando as orelhas e as patas, como se o solo não fosse digno de ser pisado por eles.
— Ah, que pena, que pena, que eles não tenham uma boa chance, pensava Laura. Suas mãos estavam contraídas. Ela queria tanto que aqueles belos e nobres animais tivessem uma boa chance. Mas, atrelados àquela carroça, eles não tinham chance alguma. Ela gritou:
— Ah, não é justo!
A corrida começou. À frente, puseram-se logo, ligeiros, os baios, dominando todos os outros concorrentes. Suas reluzentes e velozes patas e as rodas que giravam loucamente mal pareciam tocar o solo. Todos os carros eram leves, de um só assento. Nenhuma parelha sequer puxava o peso de um carro de dois assentos, exceto os belos castanhos, que fechavam a raia, puxando a alta e pesada carroça de mascatear.
— A melhor parelha em toda a região, Laura ouviu um homem dizer, mas não tem a menor chance.
— Nenhuma, disse um outro. Aquele carro é pesado demais. "No duro", eles vão ter de diminuir o trote.
Mas, eles continuavam a puxar e a manter o trote. Coordenadamente, sem uma interrupção, as oito patas executavam um trote perfeito. Uma nuvem de poeira os encobriu. Do outro lado da pista, porém, eles reapareceram a toda a velocidade. Um carro... não, dois carros! estavam atrás dos castanhos. Agora, três. À frente, só estavam os baios.
— Vamos, vamos! Ganhem, ganhem! pedia Laura aos cavalos castanhos. Ela queria tanto que os Morgans trotassem mais rapidamente que até parecia que era sua vontade que os fazia correr.
Estavam quase dando a volta à pista. Aproximavam-se da reta de chegada. Os baios estavam na frente. Os Morgans não podiam, era impossível que eles vencessem, mas Laura continuava a desejá-lo com todas as suas forças. Mais depressa, mais depressa, um pouquinho só! Vamos, vamos!
Almanzo curvou-se para a frente, dando a impressão de que falava com os cavalos. Continuando a trotar elegantemente, eles se aligeiraram. Suas cabeças alcançaram o carro do Sr. Owen e, pouco a pouco, eles se iam emparelhando. Cada vez trotando mais depressa, finalmente emparelharam. Os quatro cavalos formavam agora uma só linha, sempre mais rápida.
— Empate, por Deus, que é empate, gritou alguém. Então, o chicote do Sr. Owen reluziu no ar, silvando uma, duas vezes, enquanto ele gritava. Os baios deram um salto e passaram à frente. Almanzo não tinha chicote, mas curvou-se novamente, segurando as rédeas levemente, mas com firmeza. De novo, deu a impressão de estar falando com os cavalos. Ligeiros e serenos como pardais, os castanhos ultrapassaram os baios e cruzaram a linha de chegada. Tinham vencido!
Todo o mundo estava gritando, todos se amontoaram em torno dos castanhos e de Almanzo, trepado na boléia. Laura viu que tinha prendido a respiração todo aquele tempo. Seus joelhos tremiam. Tinha vontade de gritar, de rir, de chorar, de sentar-se e descansar.
— Eles ganharam! Eles ganharam! Eles ganharam! gritava Carrie sem parar, batendo palmas. Laura nada dizia.
— Ele ganhou cinco dólares, disse o Sr. Boast.
— Que cinco dólares? perguntou Carrie.
— Alguns moradores da cidade ofereceram um prêmio de cinco dólares para a melhor parelha, explicou Papai. Almanzo Wilder ganhou.
Laura estava contente de não ter sabido disso antes. Ela não teria tolerado saber que os castanhos estavam correndo por causa de um prêmio de cinco dólares.
— Bem que ele o merece, disse Papai. Esse rapaz sabe lidar com cavalos.
Não havia outras corridas. Nada mais havia a fazer, senão ficar por ali, ouvindo as conversas. O barril de limonada estava quase vazio. O Sr. Boast trouxe uma concha, que Laura e Carrie repartiram. Estava mais doce que antes, mas não tão fresca. As parelhas e os carVos estavam indo embora. Papai afastou-se da multidão, que se desfazia, e disse que era hora de irem para casa.
O Sr. Boast foi andando com eles pela Rua Principal. Papai contou-lhes que os Wilder tinham uma irmã, que era professora no Estado de Minnesota.
— Ela arranjou um sítio a um quilômetro mais ou menos daqui, disse Papai, e pediu a Almanzo que verificasse se ela poderia ensinar em nossa escola no próximo inverno. Respondi que ela deveria mandar suas qualificações para a Junta Escolar. Em condições idênticas, não vejo por que ela não possa ficar com a escola.
Laura e Carrie se entreolharam. Papai fazia parte da Junta Escolar e com certeza os outros membros pensariam como ele. Laura pensou: "Se eu for uma boa aluna e ela gostar de mim, talvez me leve a passear num carro puxado por aqueles lindos cavalos."
Os rexenxões
Em agosto os dias ficaram tão quentes que Laura e Mary tinham de passear bem cedo de manhã, antes que o sol estivesse alto no céu. Ainda havia, àquela hora, um pouco de frescor, o que tornava o passeio agradável. Mas cada passeio parecia agora ser o último, pois Mary estava prestes a ir-se embora.
Ela iria mesmo no próximo outono para o colégio. Tinham esperado tanto que ela fosse que, agora, quando ela iria realmente, isto não parecia possível. Era-lhe difícil imaginar como seria o colégio, pois nenhum deles tinha visto um colégio antes. Mas Papai tinha ganho quase cem dólares naquela primavera; a horta, a aveia e o milho estavam progredindo maravilhosamente; assim, Mary poderia finalmente ir para o colégio.
Uma manhã, voltando de seu passeio, Laura notou diversas ervas espetadas na saia de Mary. Tentou tirá-las, mas elas não se soltavam.
— Mamãe! chamou. Venha ver essa erva esquisita.
Mamãe nunca tinha visto uma erva como aquela. A cabeça das ervas tinha barbas como a de cevada, mas eram retorcidas e terminavam num casulo de uns dois centímetros de comprimento, terminando numa ponta fina e dura como a de uma agulha, e uma espécie de flecha recoberta de pêlos duros dirigidos para trás. Como se fossem agulhas de verdade, tinham-se cosido ao vestido de Mary. Os pêlos duros acompanhavam a ponta com toda a facilidade, mas impediam sua retirada, e as longas barbas retorcidas iam atrás, torcendo e empurrando a ponta mais para dentro.
— Ui! alguma coisa me mordeu! disse Mary. Logo acima do peito do sapato, uma daquelas estranhas ervas tinha furado a meia e estava penetrando na carne.
— Isso ganha de tudo, disse Mamãe. Que teremos de encontrar ainda neste sítio?
Quando Papai chegou ao meio-dia, mostraram-lhe a estranha erva. Ele a identificou como sendo espinhos-de-agulha. Quando entrava na boca dos cavalos e do gado, tinha de ser cortado de seus beiços e línguas. Atravessava a lã dos carneiros e penetrava-lhes no corpo, muitas vezes matando-os.
— Onde é que vocês os encontraram? perguntou, ficando contente quando Laura não soube dizer.
— Se vocês não os notaram é porque não há muitos. Essa erva cresce em tufos e se espalha muito. Por onde é que vocês passearam, exatamente?
Isso, Laura pôde explicar. Papai disse que resolveria o caso da erva.
— Dizem que ela pode ser exterminada, se for queimada quando ainda está verde. Eu a queimarei agora, para exterminar quanto possa e, na primavera do ano que vem, estarei atento e a queimarei ainda verde.
Havia batatas para jantar, com creme e ervilhas, vagens e ce-bolinhas verdes. E ao lado de cada prato, havia um pires com rodelas de tomates maduros para comer com creme e açúcar.
— Bem, temos coisas gostosas para comer, disse Papai, ser-vindo-se de uma nova porção de batatas e ervilhas, e em grande quantidade.
— Sim, respondeu Mamãe, contente. Agora podemos comer tudo que deixamos de comer no inverno passado.
Ela estava orgulhosa da horta, que crescia tão bem.
— Vou começar a preparar as conservas de pepinos amanhã; já há muitos debaixo dos sarmentos. As batatas estão saindo com tal força que mal posso encontrar as raízes.
— Se nada lhes acontecer, disse Papai, teremos muitas batatas neste inverno!
— Teremos também espigas assadas, anunciou Mamãe. Esta manhã, vi que alguns dos pendões do milharal já estão amadurecendo.
— Nunca vi um milharal melhor. Conto com ele para nos arranjarmos.
— E com a aveia, disse Mamãe. Depois, ela perguntou:
— O que é que não vai bem com a aveia, Charles?
— Bem, os rexenxões estão comendo quase toda ela. Mal eu faço um monte, ele fica logo coberto com essas pestes. Estão comendo todos os grãos que conseguem e deixam quase que só a palha.
A alegria de Mamãe diminuiu, mas Papai prosseguiu:
— Não se preocupe, há bastante palha e, logo que eu tenha recolhido toda a aveia, liquidarei com os rexenxões a tiro.
Naquela tarde, levantando os olhos de sua costura para enfiar a linha na agulha, Laura viu uma espiral de fumaça agitando-se em ondas quentes que subiam da planície. Papai tinha arranjado tempo, enquanto trabalhava no campo de aveia, para cavar em torno dos espinheiros-de-agulha e botar fogo na praga.
— A planície parece tão bonita e amável, disse ela, mas eu fico sempre pensando no que vai acontecer. Parece que a gente tem de lutar o tempo todo.
— Nossa vida na terra é uma luta perpétua, respondeu Mamãe. Se não é contra um inimigo, é contra o outro. Sempre foi assim e sempre será. Quanto mais cedo você se acostumar a esta idéia, melhor para você mesma e mais você será grata pelos prazeres que tiver. Bem, Mary, podemos provar o corpete.
Estavam fazendo o vestido de inverno para Mary usar no colégio. No quarto quente, com o sol dardejando nas paredes finas e no teto, os pedaços de casimira de lã já as estavam sufocando. Mamãe estava nervosa com aquele vestido. Ela tinha feito primeiro os vestidos de verão, para praticar com os moldes.
Tinha cortado os moldes de jornal, usando como modelo um molde especial de costureira, de papelão fino. As linhas e as medidas para todos os tamanhos estavam indicados nesse molde especial. A dificuldade estava em que ninguém era exatamente dos tamanhos indicados. Depois de ter tirado as medidas de Mary, calculado e marcado o tamanho de cada manga, saia e corpete no molde, cortado e alinhavado a fazenda, quando experimentava em Mary sempre tinha de fazer alterações.
Laura nunca tinha percebido que sua mãe detestava costurar. Seu rosto amável não o mostrava agora, e sua voz nunca se alterava. Mas sua resignação fazia-lhe uma ruga em torno da boca, que mostrava a Laura que sua mãe detestava tanto coser quanto ela mesma.
Estavam preocupadas também porque, quando foram comprar a fazenda, a Sra. White lhes tinha dito que a irmã dela, que vivia em Iowa(l), lhe tinha dito que as anquinhas tinham voltado à moda em Nova York. Não havia anquinhas para comprar na cidade, mas o Sr. Clancy estava pensando encomendar algumas.
— Bem, eu não sei como fazer, disse Mamãe. No ano passado, a Sra. Boast tinha um número de "Godeys Ladys Book(2). Se ela tivesse o deste ano, tudo estaria resolvido. Mas Papai tinha de cortar a aveia e o feno; todos estavam cansados demais aos domingos para ir até o sítio dos Boast, com aquele calor. Finalmente, quando Papai se encontrou com o Sr. Boast no sábado, na cidade, ele lhe disse que sua mulher não tinha o novo "Godey's Lady's Book”.
(1) Um dos Estados da União. (Nota do tradutor).
(2) Revista de modas femininas e de etiqueta, a primeira do gênero a ser editada nos Estados Unidos, em Filadélfia, entre 1830 e 1898. (Nota do tradutor).
Faremos as saias bastante largas e, assim, se as anquinhas voltarem à moda, Mary poderá comprá-las em Iowa, decidiu Mamãe. Até lá, as anáguas encherão bem a saia.
Tinham feito quatro novas anáguas para Mary, duas de musselina sem goma, uma de musselina engomada e uma de cambraia branca bem fina. Na bainha da de cambraia, Laura tinha prendido, com todo o cuidado, com pontos bem pequenos, a renda que tinha dado a Mary como presente de Natal.
Tinham feito também duas anáguas de flanela cinza e três conjuntos de baixo em flanela vermelha. Na bainha das anáguas, Laura tinha feito um debrum com linha vermelha brilhante, em ponto-espinho, que tinha ficado muito bonito sobre a flanela cinzenta. Fizera ponto-de-sombra em todas as costuras das anáguas e dos conjuntos de baixo e, nas golas e nos punhos das mangas, tinha feito um debrum com ponto-espinho em linha azul.
Estava gastando as mais bonitas linhas que tinham vindo no último Natal, mas estava contente. Nenhuma menina do colégio teria roupa de baixo tão bonita quanto a de Mary.
Quando Mamãe acabou o ponto-de-sombra nos vestidos e assou-os a ferro cuidadosamente, Laura coseu as barbatanas de baleia das cavas e do corpete. Tomou muito cuidado para coser os dois lados exatamente iguais, sem fazer a menor prega, de maneira que o corpete ficasse bem assentado por fora. Era um trabalho tão delicado que suas costas ficaram doendo.
O corpete do melhor vestido de Mary estava finalmente pronto para ser experimentado. Era de casimira marrom, debruado com cambraia marrom. Era abotoado com botões pequenos, também marrons, e em volta de cada botão Mamãe tinha debruado com tafetá escocês marrom e azul, com estrias vermelhas e douradas. O vestido tinha gola alta do mesmo tafetá e Mamãe tinha separado um pedaço de renda branca, para colocar por dentro da gola de modo a aparecer um pouco.
— Oh, Mary, está uma beleza. As costas assentam sem uma ruga e os ombros também, disse Laura. E as mangas estão bem ajustadas aos cotovelos.
— Estão sim, respondeu Mary. Não sei se vou poder abotoar-me.
Laura ficou em frente a Mary e disse-lhe:
— Prenda a respiração, Mary. Respire forte e prenda, aconselhou nervosamente.
— Está muito apertado, disse Mamãe, desanimada.
Alguns dos botões estavam forçando as casas, outros nem podiam ser fechados.
— Não respire, Mary! Não respire! disse Laura afobadamente, soltando a toda pressa os botões. Agora sim, pode respirar.
Mary respirou fundo, desafogando-se do corpete.
— Ah, meu Deus, como é que eu errei dessa maneira, disse Mamãe. Este corpete estava tão bom na última semana.
Laura teve uma inspiração súbita:
— Deve ser o colete de Mary! Tem de ser. Os atacadores do colete devem ter cedido.
Era isso mesmo, Mary prendeu a respiração de novo, Laura apertou bem os atacadores e o corpete abotoou, ajustando-se perfeitamente.
— Estou bem contente por não ter de usar colete, disse Carrie.
— Pois fique contente enquanto pode. Em breve, você também terá de usar colete, disse Laura.
Para ela, ô colete era um martírio, desde que o vestia de manhã até que o tirava de noite. Mas, quando mocinhas usavam o cabelo para cima e vestiam vestidos compridos, tinham de usar colete.
— Você devia vesti-lo à noite, disse Mamãe.
Mary o fazia, mas Laura não podia suportar o tormento das barbatanas que, à noite, não lhe deixavam respirar fundo. Sempre antes de deitar-se, tinha de tirar o colete.
— Só quero ver como é que vai ficar o seu corpo, Mamãe lhe dizia. Quando eu me casei, seu pai podia abarcar minha cintura com as duas mãos.
— Agora ele não pode, respondeu Laura com uma pontinha de malícia. E assim mesmo parece que ele gosta da senhora.
— Você não deve ser maliciosa, censurou Mamãe. Mas seu rosto ficou vermelho e ela não pôde esconder um sorriso.
Mamãe prendeu a renda na gola de maneira a que ela caísse elegantemente, como uma cascata entre as pontas da gola.
Todas se afastaram um pouco para admirar. A saia triangular de casimira marrom estava bem lisa e ajustada na frente, mas deixava bastante espaço atrás e dos lados para colocar as anquinhas. Na frente, ela ia até o chão por igual a toda a volta, enquanto atrás caía numa graciosa cauda curta que volteava, acompanhando os passos de Mary. Em volta de toda a barra havia um babado pregueado.
A sobressaia era de tafetá marrom e azul, franzida na frente, drapeada dos lados para mostrar a saia de baixo e atrás caía em amplos fofos, que terminavam um pouco antes da cauda franjada.
Emergindo de tudo isto, vinha a fina cintura de Mary, apertada no corpete liso. Os pequenos botões corriam até a macia renda branca que cascadeava sob seu queixo. A casimira marrom era tão lisa que parecia pintada sobre a curva suave de seus ombros, descendo até os cotovelos, onde as mangas se alargavam. Um franzido de tafetá acompanhavam o contorno do braço e os punhos amplos caíam livremente, deixando ver um babadinho de renda branca de onde saíam as delicadas mãos de Mary.
Mary estava linda naquele lindo vestido. Seu cabelo estava mais sedoso e dourado que as estrias douradas do tafetá. Seus olhos cegos, mais azuis que as estrias azuis. Suas faces eram rosadas e seu porte extremamente elegante.
— Oh, Mary, exclamou Laura, você parece saída de um figurino. Não vai haver, não pode haver, nenhuma moça mais bonita que você no colégio.
— Estou assim tão bem, Mamãe? perguntou Mary timidamente, enrubescendo ainda mais.
Por uma vez, Mamãe não se protegeu contra a vaidade:
— Sim, Mary, está sim. Não só você está tão elegante quanto se possa ser, mas também está linda. Onde quer que você vá, será sempre um prazer para os olhos de quem a veja. E, graças a Deus, suas roupas estão à altura de qualquer ocasião.
Não a podiam admirar mais. Ela estava quase desmaiando dentro daquele vestido de lã quente. Dobraram-no cuidadosamente, contentes de havê-lo acabado e certas de que ele seria um sucesso. Agora, faltava pouca coisa para fazer. Mamãe tinha de fazer um chapéu de veludo para o inverno e tricotar alguns pares de meias. Laura estava tricotando um par de mitenes de linha de seda marrom.
— Posso acabá-las nos momentos de folga. Já terminamos a costura e posso ir ajudar Papai a cuidar do feno.
Ela gostava de trabalhar com o Pai, de trabalhar ao ar livre, ao sol e ao vento. Além disto, tinha a esperança de poder tirar o colete enquanto estivesse trabalhando no feno.
— Acho que você poderá ajudar a carregar o feno, mas ele vai ser empilhado na cidade.
— Ah, não, Mamãe! gritou Laura. Vamos ter de ir para a cidade de novo?
— Module sua voz, Laura. Lembre-se: "Sua voz era sempre amável, baixa e suave, excelente qualidade em uma mulher"(3).
(3) William Shakespeare, "King Lear", Ato V, cena 3. (Nota do tradutor).
— Vamos ter de ir para a cidade? murmurou Laura.
— Seu pai e eu pensamos que é melhor não nos arriscarmos a passar outro inverno aqui, enquanto não pudermos tornar a casa mais abrigada contra o mau tempo. Você sabe que poderíamos não ter resistido ao último inverno.
— Talvez este ano o inverno não seja tão rigoroso.
— Não devemos tentar o Senhor, respondeu Mamãe, firmemente.
Laura compreendeu que o assunto estava decidido: teriam de passar o inverno na cidade e ela teria de tirar o melhor partido possível do fato.
Ao cair da noite, quando o bando de alegres rexenxões redemoinhava ao crepúsculo sobre a semeadura de aveia, Papai apanhou a espingarda de caça e começou a atirar contra eles. Não que gostasse de fazê-lo, e em casa ninguém gostava do barulho dos tiros, mas todos sabiam que aquilo tinha de ser feito. Papai tinha de proteger as plantações. Os cavalos, a vaca Ellen e os bezerros comeriam o feno durante o inverno, mas a aveia e o milho representavam dinheiro vivo. Com esse dinheiro é que pagariam os impostos e comprariam o carvão.
Assim que o orvalho secou na manhã seguinte, Papai começou a cortar a grama com a cortadeira. Em casa, Mamãe começou a fazer o chapéu de veludo para Mary e Laura continuou a tricotar as mitenes. Às onze horas, Mamãe disse:
— Bem, está na hora de preparar o almoço. Laura, vá lá fora ver se há espigas de milho para assar.
O milho agora estava mais alto do que Laura e era um belo espetáculo para os olhos, com seus longos pendões sussurrando surdamente ao vento e suas balouçantes cabeças. À medida que Laura ia por entre os pés de milho, um bando de rexenxões levantava-se a sua passagem, fazendo círculos sobre sua cabeça. O ruflar de suas asas era mais forte que o rugido surdo do milharal. Havia tantos pássaros que faziam sombra como uma nuvem. A sombra passou rapidamente sobre o milharal e o bando de pássaros voltou a pousar sobre o milharal.
Os pés de milho estavam carregados. Em quase todos eles, havia pelo menos duas espigas, em alguns três. As cabeças já estavam secas, só um pouquinho de pólen ainda voava, e os pendões caíam como um cabelo grosso e verde. Aqui e ali, um tufo de barba de milho ia amadurecendo, tomando uma cor marrom, e, ao suave toque da mão de Laura, a espiga se revelava cheia de grãos. Para ter certeza, antes de arrancar a espiga, ela abria um pouco as folhas para ver as carreiras de grãos.
Os rexenxões continuavam a voar em torno dela. De repente, ela parou de susto! Eles estavam comendo o milho!
Aqui e ali, ela podia ver as espigas devoradas, as folhas rasgadas e os grãos desaparecidos. Os rexenxões pousaram a sua volta. Suas garras cravavam-se nas espigas, seus bicos afiados rompiam as folhas e rapidamente os pássaros devoravam os grãos.
Com o silêncio do desespero, Laura correu para cima deles. Tinha a impressão de estar gritando, enquanto batia nos pássaros com o seu chapéu. Eles levantaram vôo em círculos, ruflando as asas e voltaram a pousar à frente da menina, atrás dela, por todos os lados. Balançavam-se agarrados às espigas, cortando as folhas, engolindo os grãos. Sozinha, ela nada podia fazer contra tantos pássaros,
Apanhou umas poucas espigas no avental e voltou para casa. Seu coração batia rápido, seu pulso estava agitado e os joelhos trêmulos. Quando Mamãe lhe perguntou o que havia acontecido, ela não gostou de ter de responder:
— Os rexenxões estão comendo o milho. Não é melhor avisar Papai?
— Os rexenxões sempre comem um pouco de milho, eu não me preocuparia com isto. Leve um refresco para seu pai.
No campo de feno, Papai não se importou muito com a notícia sobre os rexenxões. Disse que quase tinha acabado com eles na semeadura de aveia, tinha matado uns cem ou mais:
— Talvez causem algum dano ao milharal, mas nada há a fazer.
— Mas, há tantos, disse Laura. Papai, se nós não conseguirmos uma safra de milho... será que Mary poderá ir para o colégio?
— Você acha que é tão sério assim?
— São tantos, mas tantos, respondeu Laura. Papai olhou para o sol:
— Bem, uma hora a mais não poderá fazer muita diferença. Verei o que há na hora do almoço.
Ao meio-dia, pegou da espingarda e foi para o milharal. Andando por entre os pés de milho, começou a disparar contra o bando de rexenxões, que levantava vôo. Cada tiro abatia uma porção de pássaros, mas a nuvem negra voltava a pousar no milharal. Quando os cartuchos se acabaram, o bando não parecia menor.
Não havia um rexenxão no campo de aveia. Tinham-no abandonado, mas não sem devorar antes cada grão de aveia, só deixando palha.
Mamãe pensou que ela e as meninas poderiam manter os rexenxões afastados do milharal. Tentaram fazê-lo e até Grace veio ajudar, correndo acima e abaixo, gritando e agitando seu chapeuzinho. Os rexenxões porém continuavam a esvoaçar em torno delas e voltavam a pousar nos pés de milho, cortando as folhas e bicando os caroços.
— Vocês vão-se cansar à toa, Carolina, disse Papai. Vou à cidade comprar mais cartuchos.
Quando ele partiu, Mamãe disse:
— Vamos ver se conseguimos espantar os rexenxões até que seu pai volte.
Correram acima e abaixo, sob o sol escaldante, tropeçando na terra revolta, gritando e abanando os braços. O suor escorria por seus rostos e nas suas costas, as afiadas folhas do milharal cortavam suas mãos e suas faces. Suas gargantas doíam de tanto que gritavam. E sempre os pássaros levantavam vôo, mas tornavam logo a pousar. Sempre uma quantidade enorme de pássaros estava agarrada às espigas, com seus bicos aguçados, rasgando e bicando.
Por fim, Mamãe parou:
— É inútil, meninas.
Papai chegou com mais cartuchos. Durante toda a tarde, ele matou rexenxões. Havia tantos que cada tiro abatia um deles. Parecia, porém, que, quantos mais ele matava, mais pássaros apareciam. Parecia que todos os rexenxões da região estavam voando para a festança do milho.
A princípio, só havia rexenxões comuns. Mas logo chegaram os rexenxões de cabeça amarela, maiores, e os rexenxões de cabeça vermelha, com penas vermelhas nas asas. Vieram às centenas.
Pela manhã, uma escura nuvem de rexenxões se abateu sobre o milharal. Depois do café, Papai voltou para casa, com as mãos cheias de rexenxões mortos.
— Nunca ouvi alguém dizer que já comeu rexenxões, mas devem ter boa carne e esses estão bem gordos.
— Depene-os, Laura, e prepare-os, porque vou fritá-los para o almoço, disse Mamãe. Sempre há alguma coisa a ganhar num grande prejuízo.
Laura depenou e preparou as aves e Mamãe as fritou para o almoço, na sua própria gordura, e todos disseram que era a carne mais tenra e gostosa que já tinham provado.
Depois do almoço, Papai trouxe mais rexenxões e um bocado de milho:
— Podemos dar por perdida a safra de milho. Este ainda está um pouco verde, mas é melhor comê-lo do que deixá-lo para os rexenxões.
— Não sei como não pensei nisto antes! disse Mamãe. Laura e Carrie, apressem-se e vão apanhar todas as espigas de que já se possa fazer milho torrado. Podemos poupar um pouco para comer no próximo inverno.
Laura sabia por que Mamãe não tinha pensado naquilo antes. Ela estava muito preocupada: a safra de milho estava perdida e Papai teria de utilizar suas economias para pagar os impostos e para comprar carvão. Como poderiam mandar Mary para o colégio no outono?
Havia tantos rexenxões agora entre os pés de milho que suas asas batiam duramente contra a cabeça e os braços de Laura e Carrie gritava que eles a estavam bicando. Parecia que os pássaros achavam que o milho era deles e lutavam por sua propriedade. Batiam com força no rosto de Laura e de Carrie e esvoaçavam raivosos, bicando seus chapéus.
Não havia muito milho. Mesmo as espigas mais novas, cujos grãos mal apareciam, tinham sido abertas e bicadas. Assim mesmo, elas conseguiram encher diversas vezes seus aventais com espigas apenas parcialmente bicadas.
Quando Laura foi procurar os rexenxões para depená-los para o jantar, não os encontrou e, de jeito nenhum, Mamãe quis dizer onde é que eles estavam.
— Espere e verá, respondeu misteriosamente. Enquanto isto, vamos cozinhar o milho e tirar os grãos para secar.
Há um truque para tirar os grãos de milho. A faca deve cortar por igual ao longo das fileiras de grãos, fundo bastante para tirar o grão por inteiro, mas não fundo demais que corte a bolsa em que cresce o grão. Os grãos, cortados assim, caem juntos, numa pasta leitosa e pegajosa.
Mamãe os espalhou em uma toalha velha, que colocou ao ar livre, recobrindo-a com outro pano, para protegê-la dos rexenxões, das galinhas e das moscas. O sol quente secaria o milho e, no inverno vindouro, bem empapado e cozido, seria excelente alimento.
— É um costume índio, disse Papai, quando veio almoçar. Você tem de concordar que se pode dizer alguma coisa em favor dos índios.
— Se se pode, respondeu Mamãe, você já disse muitas vezes, de modo que eu não preciso repetir.
Mamãe detestava os índios, mas agora estava muito satisfeita com um segredo. Laura suspeitava que era alguma coisa em relação aos rexenxões desaparecidos.
— Penteie o cabelo, Charles, e sente-se para almoçar, disse Mamãe.
Ela abriu a porta do forno e tirou a panela grande de ferver leite. Estava cheia de alguma coisa coberta com massa de torta. Pôs o prato diante do marido, que o olhou espantado:
— Empadão de galinha!
— "Cantemos uma cançãozinha..."
Laura continuou, acompanhada por Mary, Carrie e até Grace:
"Um bocado de centeio,
Vinte e quatro rexenxões,
Assados em um empadão!
Quando abriram o empadão,
Os rexenxões começaram a cantar.
Não é um prato elegante
Digno de um rei?' (4).
(4) Canção folclórica norte-americana. (Nota do tradutor).
— Que surpresa! exclamou Papai.
Cortou a massa do empadão com uma colher e pôs uma grossa fatia no prato. Por dentro, estava bem quente e fofo. Sobre a massa, ele derramou bastante molho e, ao lado, pôs metade de um rexenxão, bem tostadinho e tão tenro que a carne se despegava dos ossos. Passou o prato para Mamãe.
O perfume do empadão estava pondo água na boca de todos que ainda não tinham sido servidos, de modo que ficavam engolindo em seco. Debaixo da mesa, o gatinho se enroscava em suas pernas, miando de fome.
— A panela deu para doze rexenxões, disse Mamãe. Dois para cada um, mas Grace não agüenta comer mais de um e, assim, sobram três para você, Charles.
— Só mesmo você consegue fazer empadão de galinha sem ter galinhas, disse Papai, comendo um bocado e afirmando:
— Isto é muito melhor que empadão de galinha.
Todos concordaram que empadão de rexenxão era ainda melhor que o de galinha. Além do empadão, havia batatas, ervilhas, pepinos em fatias, cenouras cozidas que Mamãe tinha trazido dos canteiros e requeijão. E nem era domingo! Enquanto houvesse rexenxões e a horta estivesse produzindo, eles poderiam comer assim todos os dias.
Laura pensou que sua mãe tinha razão em dizer que sempre havia alguma coisa a agradecer. Apesar disso, seu coração estava opresso. A aveia e o milho estavam perdidos. Ela não sabia como Mary poderia ir para o colégio agora. O belo vestido novo, os outros dois vestidos, a elegante roupa de baixo, teriam de ser guardados até o outro ano. Seria um cruel desapontamento para Mary.
Papai comeu a última colherada do creme açucarado de tomates e bebeu sua xícara de chá. O almoço estava acabado. Ele levantou-se, apanhou o chapéu no cabide e disse para a mulher:
— Amanhã é sábado. Se você quiser ir à cidade comigo, podemos trazer a mala de Mary.
Mary ficou de queixo caído e Laura gritou:
— Mary vai mesmo para o colégio? Papai estava atônito:
— Que é que há com você, Laura?
— Não percebi que você já é grande bastante para se preocupar, respondeu Papai. Eu vou vender a novilha.
Mary gritou:
— A novilha não, Papai!
Mais um ano e a novilha já seria uma vaca e, com duas vacas, eles teriam leite e manteiga durante o ano todo. Se Papai a vendesse, teriam de esperar mais dois anos para que a outra bezerra crescesse.
— Essa venda vai ajudar-nos muito, disse Papai. Conseguirei no mínimo quinze dólares por ela.
— Não se preocupem, meninas. Não se faz uma fritada sem quebrar ovos, disse Mamãe.
— Mas, Papai, isto vai atrasar o senhor de um ano, lamentou Mary.
— Não se incomode, Mary. Já é tempo de você ir para o colégio e, agora que tomamos a decisão, você irá. Não há de ser um bando de rexenxões praguentos que nos há de impedir.
Mary vai para o colégio
Aquele era o último dia antes da partida de Mary para o colégio.
Papai e Mamãe tinham trazido para casa a sua mala. Era coberta de folha-de-flandres brilhante, marchetada, de forma que a cobertura formava um desenho. Tinha ripas de madeira envernizada no meio e nos cantos e três na tampa abaulada. Havia chapas de ferro nos cantos para proteger a madeira. Quando se baixava a tampa, as lingüetas de ferro entravam nas fechaduras e dois anéis de ferro se enganchavam, de modo que a mala podia ser fechada com cadeados.
— É uma boa e sólida mala, disse Papai. E ainda tenho um pedaço de corda para amarrá-la.
O rosto de Mary estava radiante, quando ela passou seus dedos sensíveis sobre ã mala, ouvindo a descrição feita por Laura.
— É o modelo mais novo de malas, disse Mamãe, e deve durar até o fim de sua vida, Mary.
Por dentro, a mala era de madeira envernizada. Mamãe forrou-a cuidadosamente com jornais, e arrumou todos os pertences de Mary. Nos cantos, colocou bolos de jornal para evitar que as coisas dançassem durante a viagem por trem. Pôs diversas camadas de jornal, porque receava que Mary não tivesse roupas suficientes para encher a mala. Mas, quando estava tudo arrumado, a mala estava cheia até a tampa e Mamãe teve de sentar-se sobre ela para que Papai pudesse passar os cadeados.
Depois, Papai amarrou bem a mala, dando-lhe voltas, enquanto Laura ajudava a segurar a corda para que ele desse os nós.
— Pronto, disse Papai, um trabalho bem feito.
Enquanto estavam ocupados, podiam deixar de pensar no fato de que Mary estava de partida. Agora, tudo estava feito, ainda não era hora da ceia e havia tempo para pensar.
Papai pigarreou e saiu de casa. Mamãe trouxe sua cesta de costura e remendos, mas, deixando-a em cima da mesa, ficou a olhar pela janela. Grace pediu:
— Não vai embora, não, Mary, por que? Não vai embora, me conta uma história.
Pela última vez, Mary sentaria Grace no colo e lhe contaria a história de Vovô e a Pantera na Grande Floresta do Wisconsin. Quando ela voltasse para casa, Grace já estaria bem crescida.
— Não, Grace, não aborreça, disse Mamãe, quando a história acabou. Que é que você quer para a ceia, Mary? Aquela seria a última ceia de Mary em casa.
— Qualquer coisa que a senhora faz é gostoso, Mamãe, foi a resposta.
— Está tão quente, que acho melhor fazer bolinhos de queijo com cebolas e ervilhas com creme fresco. Que tal se você trouxesse um pouco de alface e tomates da horta, Laura?
Mary perguntou, quase sem pensar:
— Posso ir com você, Laura? Gostaria de passear um pouco.
— Não precisam apressar-se, disse Mamãe, há bastante tempo antes da ceia.
— Como é que pode? Não há nem aveia, nem milho! Elas foram passear além do estábulo e subiram a colina. O sol estava-se deitando para descansar, como um rei, pensou Laura, puxando as ricas cortinas de seu grande leito. Mary, porém, não gostava dessas fantasias e por isto Laura disse:
— O sol está-se deitando, Mary, em brancas nuvens baixas que se estendem até o fim do horizonte. No alto, elas estão bordadas de púrpura e do alto do céu caem grandes e ricas cortinas de um rosa dourado, com bordas cor de pérola. Formam um vasto dossel sobre a planície. Os pedacinhos de céu entre elas estão de um verde muito puro e claro.
Mary estava quieta:
— Vou sentir falta de nossos passeios, disse com a voz um pouco trêmula.
— Eu também, mas pense que você está indo para o colégio.
— Eu não poderia, se não fosse você. Sempre me ajudou a estudar e deu seus nove dólares a Mamãe por minha causa.
— Não foi grande coisa, nada como o que eu gostaria...
— Foi, sim! Foi muita coisa.
Laura estava com a voz embargada. Bateu as pestanas e tomou uma inspiração funda, mas sua voz tremia também:
— Espero que você goste do colégio, Mary.
— Oh, eu vou gostar, eu vou gostar! Imagine só, poder estudar e aprender... tudo, até mesmo tocar órgão. E tudo isto eu devo em parte a você, Laura. Apesar de você ainda não estar ensinando na escola, já me ajudou a ir.
— Vou ser professora assim que tiver a idade necessária. Aí, vou poder ajudar mais.
— Eu gostaria que você não tivesse de fazer isso.
— Bem, eu tenho de fazer, mas não antes de completar dezesseis anos. É a lei, uma professora deve ter pelo menos dezesseis anos.
— Eu já não estarei aqui.
De repente elas tiveram a sensação de que Mary estava indo embora para sempre. Os anos futuros pareceram vazios e ameaçadores.
— Oh, Laura, eu nunca saí de casa, não sei o que fazer, confessou Mary, toda trêmula.
— Você se sairá muito bem, disse Laura com firmeza. Mamãe e Papai vão com você e você sabe que pode passar nos exames. Não fique assustada.
— Não estou assustada, nem nunca vou ficar assustada. Es-tou-me sentindo sozinha. Mas, não há nada a fazer.
— Não, disse Laura, e acrescentou, depois de uma pausa e de um pigarro:
— O sol desapareceu atrás das nuvens brancas. Agora, parece uma bola imensa de fogo líquido, que pulsa. As nuvens acima dele estão escarlate e púrpura, ou púrpura e ouro, e as nuvens no céu parecem grandes labaredas.
— Tenho a impressão de que sinto sua luz em meu rosto. Será que o céu e os crepúsculos são diferentes em Iowa?
Laura não sabia. Desceram lentamente a colina. Seu último passeio chegara ao fim, pelo menos o último antes que decorresse um prazo tão longo que parecia eterno.
— Eu sei que posso passar nos exames, disse Mary, porque você me ajudou muito. Repassou comigo todas as palavras de cada uma de suas lições, até que eu aprendi de cor tudo que está nos livros. Mas, Laura, que é que eu vou fazer? Papai está gastando tanto dinheiro comigo — a mala, um casaco novo, um par de sapatos, as passagens de trem e tudo o mais — fico preocupada. Como é que ele vai arranjar dinheiro para comprar livros e roupas para você e Carrie?
— Ora, não se preocupe, Papai e Mamãe darão um jeito. Você sabe que eles sempre dão.
No dia seguinte, de manhã cedo, antes mesmo que Laura estivesse vestida, Mamãe estava escaldando e depenando rexenxões que o Papai tinha abatido. Ela os fritou depois do café e, assim que esfriaram, arrumou-os numa caixa de sapatos para serem comidos ao almoço no trem.
Papai, Mamãe e Mary tinham tomado banho de véspera. Mary pôs seu vestido de percal que, embora velho, ainda estava muito bom, e calçou seus melhores sapatos, sem ser os novos. Mamãe pôs seu vestido de verão e Papai vestiu o terno dos domingos. Um rapaz da vizinhança tinha concordado em guiar a carroça até a estação. Papai e Mamãe estariam ausentes por uma semana e, na volta, poderiam vir a pé.
Chegou a carroça. O rapaz sardento e ruivo, com o cabelo aparecendo por um furo no seu chapéu de palha, ajudou Papai a acomodar a mala na carroça. O sol estava forte c soprava um vento moderado.
— Bem, Carrie e Grace, sejam comportadas e obedeçam a Laura, disse Mamãe. Laura, não se esqueça de encher sempre a gamela das galinhas, cuidado com os gaviões, escalde e ponha ao sol as latas de leite todos os dias.
— Sim, Mamãe, responderam todas juntas.
— Adeus, disse Mary. Adeus, Laura, Carrie e Grace.
— Adeus, conseguiram responder Laura e Carrie. Grace só sabia esbugalhar os olhinhos. Papai ajudou Mary a subir pela roda da carroça e a sentar-se no banco com Mamãe e o rapaz. Ele sentou-se em cima da mala.
— Bem, vamos embora, disse ele ao rapaz. Até a volta, meninas.
A carroça partiu. Grace abriu a boca e começou a chorar.
— Que vergonha, Grace! Que vergonha! uma menina grande como você, chorando!
Laura engoliu um soluço. Sua garganta estava tão inflamada de conter as lágrimas, que chegava a doer. Carrie parecia que de um momento para outro ia começar a chorar também.
— Que vergonha! repetiu Laura, e Grace engoliu um último soluço.
Papai, Mamãe e Mary não olharam para trás. Tinham de partir. Depois da partida da carroça, só ficou o silêncio. Laura nunca tinha experimentado uma tal quietude, mas não era a quietude feliz da planície. Ela a sentia como uma angústia, lá dentro de seu estômago.
— Vamos entrar, disse ela.
O mesmo silêncio reinava na casa. Era tão denso que Laura achou que tinha de murmurar. Grace engoliu mais um soluço. Ficaram de pé, em sua própria casa, mas só sentiam o silêncio e o vazio em torno delas. Mary tinha ido embora.
Grace começou a chorar de novo e havia duas grandes lágrimas nos olhos de Carrie. Assim não era possível. Desde aquele momento e por toda a semana, tudo estaria a cargo de Laura e Mamãe confiara nela.
— Ouçam-me vocês duas, Carrie e Grace, disse um tanto rispidamente, nós vamos limpar esta casa de cima abaixo, e vamos começar agora mesmo! Assim, quando Mamãe voltar, já teremos feito a limpeza de outono.
Nunca antes Laura tinha estado tão ocupada. O trabalho era duro. Ela não imaginara quanto um cobertor é pesado, quando se tem de tirá-lo molhado da tina, para torcer e pendurar na corda. Não sabia quanto seria difícil não zangar-se, às vezes, com Grace, que sempre queria ajudar, mas acabava arranjando mais trabalho. Era impressionante também como ficavam sujas limpando uma casa que antes parecia tão limpa. Quanto mais trabalhavam, mais sujo tudo parecia ficar.
O pior dia de todos estava muito quente. Elas tinham tirado os colchões de palha para fora, tinham-nos esvaziado e lavado, e, depois de secos, encheram-nos de palha nova. Tinham tirado os estrados das camas e agora estavam desarmando as cabeceiras. Tinham-nas posto de encontro à parede e Laura machucara o dedo. Quando foram tirar as traves laterais de uma delas, a cabeceira caiu na cabeça de Laura, que viu estrelas.
— Oh, Laura, você se machucou? gritou Carrie.
— Muito não, disse Laura, empurrando de novo a cabeceira para a parede, de onde ela escorregou e veio bater no seu tornozelo.
— Ui! gritou ela. Ora, essa cabeceira que fique no chão se é no chão que ela quer ficar.
— Mas nós temos de esfregar o chão, disse Carrie.
— Eu sei que temos, respondeu Laura, meio aborrecida. Sentou-se no chão, agarrando o tornozelo. Seu cabelo prendia no pescoço suado. O vestido estava molhado, quente e sujo, suas unhas estavam positivamente negras. O rosto de Carrie estava sujo de poeira e suor e havia pedaços de feno em seu cabelo.
— Temos de tomar um banho, disse Laura. De repente, ela gritou: Onde está Grace?
Tinham-se esquecido dela, durante algum tempo. Uma vez, Grace se tinha perdido na planície. Duas crianças de Brookins perderam-se na planície, morrendo antes que as achassem.
— 'Tou aqui, respondeu Grace suavemente, entrando. Está chovendo.
— Não! exclamou Laura. Na verdade, havia uma sombra sobre a casa. Algumas grossas gotas começavam a cair. Nesse instante, trovejou forte. Laura gritou:
— Carrie! os colchões! a roupa de cama!
Saíram correndo. Os colchões não eram pesados, mas estavam cheios de feno e eram de transporte difícil. Um dos lados sempre escorregava das mãos de Laura e de Carrie. Para entrar em casa, tiveram de deitá-los para que pudessem passar pela porta.
— Ou seguramos ou o empurramos, mas não podemos fazer as duas coisas ao mesmo tempo, disse Carrie, ofegante.
Agora já ouviam a chuva forte que caía em torrentes.
— Saia do caminho! berrou Laura. De um jeito ou de outro, ela conseguiu sozinha fazer passar o colchão para dentro de casa. Era muito tarde para trazer o outro colchão, ou a roupa de cama. A chuva caía fortemente.
A roupa de cama secaria na corda, mas o outro colchão teria de ser esvaziado de novo, lavado e cheio outra vez. Colchões de palha têm de estar perfeitamente secos, senão cheiram sempre a mofo.
— Podemos levar tudo para o outro quarto e continuar a esfregar, disse Laura. E assim fizeram. Durante algum tempo, só se ouvia o barulho dos trovões e da chuva, bem como dos panos de esfregar. Laura e Carrie estavam trabalhando ajoelhadas e já estavam quase na metade do quarto, quando Grace, toda contente, chamou-as:
— Estou ajudando!
Tinha trepado numa cadeira e estava lustrando o fogão com graxa preta(1).
(1) Os fogões de lenha, como os do tempo em que se passa o romance, eram lustrados com graxa. (Nota do tradutor).
Da cabeça aos pés, estava toda suja de graxa. No chão, em torno do fogão, havia riscas e manchas de graxa. Grace tinha enchido a lata de graxa com água. Olhou para Laura, pedindo aprovação, e, nessa hora, passou de novo o pano de engraxar na chaminé do fogão e derrubou a lata de graxa. Seus olhos azuis se encheram de lágrimas.
Laura olhou, com raiva, para aquela casa toda suja e em desordem, que Mamãe deixara tão limpa e bem arrumada. Mas, assim mesmo, conseguiu dizer:
— Não faz mal, Grace, não chore. Eu limparei tudo. Sentou-se entre as partes da cama que havia desarmado, deixando a cabeça pender entre os joelhos.
— Oh, Carrie, eu acho que não sei tomar conta da casa como Mamãe! disse, quase chorando.
Esse foi o pior dia. Na sexta-feira, a casa estava quase arrumada e elas estavam preocupadas, com medo de que os pais voltassem antes do dia marcado. Por isto trabalharam até tarde da noite e no sábado era quase meia-noite quando Laura e Carrie puderam tomar banho e cair no sono. Mas, no domingo, a casa estava imaculada.
Em torno do fogão, o chão tinha sido esfregado até ficar bem branquinho. Só restavam uns traços muito leves de graxa preta. As camas tinham sido feitas com cobertores bem lavados e cheiravam a palha fresca. As vidraças das janelas rebrilhavam. As prateleiras dos armários tinham sido esfregadas e cada prato tinha sido lavado.
— Agora só comeremos pão e beberemos leite, decidiu Laura, e lavaremos toda a louça!
Só faltava lavar, passar e tornar a pendurar as cortinas, além da lavagem normal, na segunda-feira. Elas estavam bem contentes por domingo ser dia de descanso.
Segunda-feira, de manhã, Laura lavou as cortinas, que já estavam secas quando ela e Carrie foram pendurar o resto da roupa. Borrifaram as cortinas e passaram-nas a ferro, pendurando-as de novo nas janelas. A casa estava perfeita.
— Vamos conservar Grace fora de casa, até que Papai e Mamãe cheguem, disse ela, em segredo, a Carrie.
Nem uma nem outra tinham vontade de passear. Sentaram-se na relva, à sombra da casa, vendo Grace correr de um lado para o outro e esperando avistar a fumaça do trem.
Viram-na subir na planície, sumindo lentamente na linha do horizonte, desenhando uma mensagem que elas não podiam ler. Ouviram o apito do trem, uma vez, depois outra, e a fumaça voltou a enviar uma mensagem acima da linha do horizonte. Já tinham quase decidido que Papai e Mamãe não tinham vindo, quando os viram, pequeninos na longa perspectiva, caminhando pela estrada que levava à cidade.
Então, voltaram a sentir de novo toda a falta que Mary lhes fazia, tão fortemente quando ela partira.
Foram encontrar os pais à beira do Grande Pântano e, durante algum tempo, falaram todos simultaneamente.
Papai e Mamãe tinham gostado do colégio. Contaram que era um lugar bonito, num grande edifício de tijolos. Mary estava confortavelmente instalada e não teria frio, quando chegasse o inverno. Seria bem alimentada e suas colegas eram simpáticas. Mamãe tinha gostado muito de sua companheira de quarto. Os professores eram simpáticos e amáveis. Mary tinha sido aprovada nos exames com distinção. Mamãe não tinha visto roupas mais bonitas do que as dela. Mary estudaria economia política, literatura, matemática superior, costura, tricô e crochê, trabalhos com miçangas e contas, e música. O colégio tinha um pequeno órgão.
Laura estava tão feliz por Mary que quase podia esquecer a dor da separação e da saudade. Mary sempre gostara tanto de estudar. Agora poderia dedicar-se ao estudo como se nunca tivesse tido uma oportunidade anterior para fazê-lo.
— É preciso que ela fique lá, é preciso, pensou Laura, renovando sua promessa de estudar bastante, embora não gostasse muito, para obter um certificado de professora o mais cedo possível, logo que completasse dezesseis anos, a fim de ganhar dinheiro e ajudar a pagar o colégio de Mary.
Tinha esquecido o trabalho da semana anterior, mas, quando estavam chegando perto de casa, Mamãe perguntou:
— Carrie, de que é que você e Grace estão rindo? Vocês estão escondendo alguma coisa.
Aí, Grace deu um pulo e disse:
— Eu lustrei o fogão!
— Sim, disse Mamãe, você o lustrou, está muito bem, mas com certeza Laura a ajudou. Você não deve dizer...
Foi então que ela viu as cortinas:
— Oh, Laura, vocês lavaram as... e as janelas também e... ah, que surpresa!
— Fizemos a grande limpeza para a senhora, Mamãe, respondeu Laura, e Carrie acrescentou, com sua vozinha fina:
— Lavamos a roupa de cama, enchemos os colchões de palha, esfregamos o chão e tudo o mais.
Mamãe não cabia em si de surpresa, levantando e abaixando as mãos, até que se sentou emocionada:
— Meu Deus, que surpresa!
No dia seguinte, quando desfez as malas, foi a vez de ela surpreender as meninas. Saiu do quarto com três pequenos embrulhos chatos e deu um a cada uma das filhas.
No embrulho de Grace, havia um livro de figuras coloridas, em papel brilhante, coladas a páginas de pano de diferentes cores e em cada página havia uma cercadura cor-de-rosa.
No embrulho de Laura havia um belo livrinho, fino e mais largo do que comprido. Na capa vermelha, gravadas a ouro, havia as palavras
ÁLBUM DE AUTÓGRAFOS
As páginas de várias cores suaves estavam em branco. Carrie ganhara um exatamente igual, só que a capa era azul e dourada.
— Soube que álbuns de autógrafos estão agora muito em moda, disse Mamãe. Todas as mocinhas elegantes em Vinton têm um.
— Para que é que eles servem exatamente? perguntou Laura.
— Você pede a uma amiga que escreva um verso numa das páginas e assine o nome, explicou Mamãe. Se ela tiver também um álbum, você fará a mesma coisa no dela e vocês guardarão os álbuns para lembrarem-se uma da outra.
— Agora irei mais contente para a escola, disse Carrie. Mostrarei meu álbum de autógrafos às outras meninas e, se elas forem boas para mim, eu as deixarei escrever nele.
Mamãe estava satisfeita porque elas tinham gostado dos álbuns.
— Seu pai e eu quisemos que vocês tivessem alguma coisa de Vinton, em Iowa, onde Mary está estudando.
A nova professora
Cedo, no primeiro dia de escola, Laura e Carrie saíram de casa. Tinham posto seus vestidos de percal, pois Mamãe dissera que, de qualquer maneira, eles ficariam pequenos no correr do ano, antes que chegasse o verão. Levavam os livros debaixo do braço e Laura carregava ainda a merendeira.
O frescor da noite ainda pairava ao raiar do sol. Sob o azul escuro do céu, o verde da planície estava esmaecendo para marrom claro e para o violeta. Uma pequena brisa soprava, levando o perfume da relva e o cheiro dos girassóis silvestres. Ao longo da estrada, os botões amarelos balouçavam ao vento e batiam contra a merendeira. Laura caminhava por uma das marcas de rodas e Carrie pela outra.
— Tomara que a Senhorita Wilder seja uma boa professora, disse Carrie. Que é que você acha?
— Papai deve achar que ela é, ele é da Junta Escolar, observou Laura. Mas, talvez, ele a tenha escolhido porque ela é irmã do Almanzo Wilder. Oh, Carrie, você se lembra daqueles lindos cavalos castanhos?
— Só porque ele tem cavalos bonitos, não quer dizer que a irmã dele seja simpática, contraditou Carrie. Mas talvez ela seja.
— De qualquer maneira, ela sabe ensinar. Tem um certificado, disse Laura. E suspirou, pensando em quanto teria de estudar, para conseguir seu certificado.
A Rua Principal estava cada dia maior. Agora havia um novo estábulo ao lado da loja de Papai, do outro lado do Banco. Um novo elevador de cereais se erguia bem alto no fim da rua, do outro lado dos trilhos da estrada de ferro.
— Por que haverá tantos terrenos baldios entre o estábulo novo e a loja de Papai? quis saber Carrie.
Laura não sabia. Fosse porque fosse, ela gostava de ver ali um pouco da planície. Os fardos de feno de Papai ali estavam em volta do celeiro. Este ano, ele não teria de ir buscá-lo no sítio durante o inverno.
As duas dobraram a esquina da Rua Dois. Além da escola, havia agora pequenas cabanas de novos sítios. Um moinho novo trabalhava ao lado da estrada de ferro e, do outro lado dos terrenos baldios entre a Rua Dois e a Rua Três, podia-se ver o esqueleto de uma nova igreja em construção. Havia muitos alunos desconhecidos agrupados à porta da escola.
Intimidada, Carrie recuou um pouco, enquanto os joelhos de Laura fraquejaram, mas ela precisava ter coragem pelas duas e, por isto, caminhou resolutamente para a frente. As palmas de suas mãos estavam molhadas de suor com todos aqueles olhos fixados nela. Devia haver uns vinte meninos e meninas.
Fazendo das tripas coração, Laura encaminhou-se para eles e Carrie a seguia. Os meninos se afastaram para um lado e as meninas para o outro. Laura tinha a impressão de que não teria coragem de galgar os degraus da escada.
De repente, ela viu, nos degraus, Mary Power e Minnie Johnson. Ela as conhecia, pois tinham freqüentado a escola no outono anterior, antes que começassem as tempestades de inverno. Mary Power chamou-a:
— Alô, Laura Ingalls!
Seus olhos escuros demonstravam prazer em rever Laura e a face sardenta de Minnie também. Laura sentiu-se bem, pensando que sempre gostara muito de Mary Power.
— Já escolhemos nossas carteiras, vamos sentar juntas, disse Minnie. Por que é que vocês não vêm sentar-se no corredor conosco?
Entraram juntas na escola. Os livros de Mary e de Minnie estavam em cima da carteira de trás, ao lado da parede, do lado das meninas. Laura pôs os dela na carteira ao lado. As duas
carteiras de trás eram as melhores. Carrie, naturalmente, teria de sentar-se mais à frente, perto da professora, com as meninas menores.
A Senhorita Wilder veio do corredor, com a sineta na mão.(l) Seu cabelo era preto e os olhos azul-acinzentados. Parecia muito agradável. Seu vestido cinza-escuro era bem elegante, como o de Mary, apertado e liso na frente, com um babado de pregas que ia até o chão, e uma sobressaia drapeada e fofada acima de uma cauda curta.
(1) Antigamente, o início e o fim das aulas eram anunciados por meio de uma sineta. (Nota do tradutor).
— Meninas, vocês já escolheram seus lugares, não é mesmo? perguntou com voz agradável.
— Sim, senhora, respondeu Minnie Johnson, encabuladamente, mas Mary Power sorriu e disse:
— Meu nome é Mary Power, esta é Minnie Johnson e esta Laura Ingalls. Nós gostaríamos de ficar com estes lugares se a senhora concordasse. Somos as maiores da sala.
— Sim, vocês podem conservá-los, disse a Senhorita Wilder, cada vez mais simpática.
Foi até a porta e tocou a sineta. Os alunos começaram a entrar, até que quase todas as carteiras ficaram ocupadas. Do lado das meninas, havia apenas uma carteira vazia. Do lado dos meninos, todas as carteiras de trás estavam vazias, porque os meninos maiores não viriam à escola até o período do inverno. Ainda estavam trabalhando nas fazendas.
Laura viu que Carrie estava bem contente, sentada com Mamie Beardsley, nas carteiras da frente, onde as meninas menores deviam sentar-se. Subitamente, Laura viu uma menina desconhecida, em atitude hesitante no corredor. Aparentava ser da mesma idade que Laura, e tão tímida quanto ela. Era baixinha e magra. Seus olhos castanhos eram grandes demais para seu rosto pequeno. Seu cabelo era preto e suavemente ondulado, fazendo cachinhos na testa. Suas faces estavam vermelhas de nervosismo. Timidamente, ela olhou para Laura. Se Laura não a aceitasse como companheira de carteira, ela teria de sentar-se sozinha.
Laura sorriu-lhe logo e indicou a carteira a seu lado. Os olhos da novata, grandes e castanhos, riram alegremente. Ela pôs seus livros na carteira e sentou-se ao lado de Laura.
Depois de fazer silêncio, a Senhorita Wilder tomou o livro de chamada e foi de carteira em carteira, escrevendo os nomes dos alunos. A companheira de Laura disse que seu nome era Ida Wright, mas que era conhecida como Ida Brown, porque era filha adotiva do Pastor e da Sra. Brown(2).
O Pastor Brown era o novo ministro congressional(3), que acabava de chegar à cidade. Laura sabia que Papai e Mamãe não tinham gostado muito dele, mas ela estava certa de ter gostado de Ida.
(2) Os pastores protestantes podem casar-se, ao contrário dos sacerdotes católicos. (Nota do tradutor).
(3) A Igreja Congressional é uma seita protestante. (Nota do tradutor ).
A Senhorita Wilder tinha posto o livro em sua mesa e ia começar a lição, quando a porta se abriu novamente. Todos olharam para ver quem é que chegava atrasado no primeiro dia de aula.
Laura não podia acreditar em seus olhos. A menina que estava entrando era Nellie Oleson, do Riacho das Ameixeiras, no Estado de Minnesota. Estava mais alta que Laura e muito mais esguia, enquanto Laura continuava redonda como um pônei francês. Laura, porém, a reconheceu assim que a viu, apesar de se terem passado dois anos desde que a vira pela última vez. O nariz de Nellie ainda era emproado, seus olhinhos continuavam apertados junto ao nariz e sua boca era afetada e voluntariosa.
Nellie era a menina que tinha caçoado de Laura e Mary porque estas eram meninas da roça, enquanto o pai dela era um comerciante. Tinha respondido mal a Mamãe e sido má para Jack, o bom e fiel buldogue que já morrera.
Chegara atrasada, mas olhava para tudo tão orgulhosamente que a escola parecia não ser boa bastante para ela. Trazia um vestido marrom-acinzentado de belo feitio. Fartos babados em pregas rodeavam a saia, a gola e os punhos das amplas mangas. Na garganta, trazia um jabô de renda. Seu cabelo fino estava cuidadosamente penteado para trás de sua face pontuda e enrolado num coque bem grande. Andava com a cabeça muito rígida e olhava desdenhosamente por cima do nariz.
— Gostaria de sentar-me numa das carteiras de trás, por favor, disse ela à Senhorita Wilder, olhando para Laura com um olhar antipático que significava "saia daí e dê-me esse lugar".
Laura sentou-se ainda mais firmemente e encarou Nellie com os olhos apertados.
Todos olhavam para a Senhorita Wilder, para ver o que ela faria. Ela pigarreou nervosamente. Laura continuava a encarar Nellie, até que esta desviou o olhar. Nellie olhou para Minnie Johnson e disse, apontando para a cadeira de Minnie:
— Este lugar me serve.
— Minnie, você se incomodaria de trocar de lugar? perguntou a Senhorita Wilder, embora tivesse prometido que Minnie se sentaria ali.
Lentamente, Minnie respondeu que não, lentamente ela apanhou seus livros e passou para a frente, ocupando a carteira vazia. Mary Power não se mexeu e Nellie ficou de pé, esperando na passagem: ela não se daria o trabalho de passar pela frente da carteira para chegar ao lugar que Minnie tinha deixado.
— Por favor, Mary, disse a Senhorita Wilder, se você chegar para a ponta e der lugar à menina nova, estaremos todos acomodados.
Mary levantou-se e disse, impaciente:
—Vou sentar-me com Minnie. Prefiro.
Nellie sentou-se com um sorriso: tinha conseguido a melhor carteira da sala, só para ela.
Laura não pôde evitar um sentimento de alegria mesquinha quando a ouvia declarar à Senhorita Wilder, para registro no livro de chamada, que seu pai estava vivendo num sítio ao norte da cidade. Então, agora Nellie também era uma menina da roça! Subitamente, ela compreendeu que Papai mudaria para a cidade no inverno e, assim, ela e Carrie também seriam meninas da cidade.
A Senhorita Wilder bateu com a régua na mesa e disse:
— Atenção, meninos e meninas! E começou um pequeno discurso, sorrindo sempre.
O discurso foi assim:
"Estamos aqui para começar o período escolar e vamos todos dar o melhor de nossos esforços para que ele tenha completo êxito, não é mesmo? Vocês sabem que estão aqui para aprender tudo que seja possível e estou aqui para ajudá-los. Vocês não devem considerar-me como uma professora apenas, mas como uma amiga. Vamos ser todos muito amigos, tenho certeza."
Os meninos menores estavam rindo às escondidas e Laura também tinha vontade de rir. Ela não agüentava mais os sorrisos da Senhorita Wilder. Queria que ela parasse de falar, mas a professora continuou:
"Nenhum de nós será mau e egoísta, não é mesmo? Estou certa de que ninguém se comportará mal, assim não será preciso pensar em castigos em nossa escola tão feliz. Vamos todos ser amigos uns dos outros, amar-nos e ajudar-nos mutuamente".
Por fim, disse:
— Apanhem seus livros.
Não houve leitura pela manhã, porque a professora estava separando os alunos pelas turmas. Laura, Ida, Mary, Minnie e Nellie eram as únicas meninas maiores. Elas constituíam a turma mais adiantada e, até que viessem os meninos maiores, seriam toda a turma.
No intervalo, formaram um grupo, para se conhecerem melhor. Ida era simpática e amistosa logo ao primeiro olhar.
— Sou apenas uma filha adotiva, disse ela, mas Mamãe Brown deve ter gostado muito de mim, para me tirar de um orfanato, vocês não acham?
— É claro que ela gostou de você, como é que podia ser de outro modo?, respondeu Laura, imaginando o belo bebê que Ida devia ter sido, com seus cachos negros e os risonhos olhos castanhos.
Mas Nellie queria atrair a atenção geral:
— Não sei se vamos gostar daqui ou não. Somos do Leste e não estamos habituados a uma região tão inóspita e a gente tão mal-educada.
— Você veio de Minnesota, do mesmo lugar que nós, respondeu Laura.
— Ora, isto! e Nellie fez um gesto com a mão, como se estivesse varrendo o Estado de Minnesota. Nós só vivemos lá por pouco tempo. Viemos do Leste, do Estado de Nova York.
— Todos viemos do Leste, disse Mary Power, mal-humorada. Vamos, vamos lá para fora, apanhar um pouco de sol.
— Não, por Deus, não! disse Nellie, suas peles serão queimadas pelo vento.
Todas estavam queimadas, menos Nellie, que continuou em seu tom altivo:
— Pode ser que eu tenha de viver nesta região selvagem por algum tempo, mas não deixarei que ela estrague minha cútis. No Leste, uma moça sempre conserva sua pele branca e suas mãos finas e delicadas.
As mãos de Nellie eram brancas e finas.
De qualquer maneira, não houve tempo para sair. O intervalo terminara e a Senhorita Wilder veio à porta, tocando a sineta.
De noite, em casa, Carrie falou o tempo todo sobre o primeiro dia de aula, até que Papai lhe disse que ela falava mais que um papagaio.
— Deixe Laura dizer alguma coisa. Por que é que você está tão calada, Laura? Alguma coisa não vai bem?
Então, Laura contou tudo a respeito de Nellie Oleson, o que ela tinha feito e dito. Acabou por dizer que a Senhorita Wilder não deveria ter deixado que ela tomasse o lugar de Minnie e de Mary Power.
— Nem você deve criticar sua professora, lembrou-lhe Mamãe.
Laura sentiu suas faces vermelhas e quentes. Sabia que era uma grande oportunidade poder ir para a escola. A Senhorita Wilder estava lá para ajudá-la a aprender e ela devia ser-lhe grata e não criticá-la impertinentemente. Tudo quanto tinha que Fazer era procurar ser perfeita em suas lições e em seu comporta-mente. Apesar disso, não podia impedir-se de repetir mentalmente: Assim mesmo, ela não devia ter deixado! Não é justo!
— Então os Oleson vieram de Nova York não é? Papai perguntava, divertido. Isso não é coisa de que se possa orgulhar muito, não é mesmo?
Só então é que Laura se lembrou de que, em menino, Papai vivera em Nova York.
Papai continuou a falar:
— Não sei como aconteceu, mas Oleson perdeu tudo quanto tinha em Minnesota. A única coisa que possui agora é a fazenda e me disseram que seus parentes do Leste o estão ajudando, ou até isto ele perderia, não podendo esperar uma safra. Talvez Nellie precise contar um pouco de vantagem para manter o seu lugar. Eu não deixaria que isto me aborrecesse, Laura.
— Mas ela estava tão elegante, protestou Laura. E ela não deve fazer nada, suas mãos e seu rosto são tão brancos...
— Você podia usar o seu chapéu contra o sol, disse Mamãe, e, quanto às roupas elegantes, talvez elas tenham saído do fundo do baú, ou talvez ela seja como a moça da canção, que estava muito elegante "com uma bela gola dupla de renda e nem um sapato para calçar".
Laura achava que devia ter pena de Nellie, mas não conseguia. Gostaria que ela tivesse ficado no Riacho das Ameixeiras.
Papai levantou-se da mesa e aproximou a cadeira da porta aberta.
Pediu a Laura que lhe trouxesse o violino, dizendo que queria tirar uma canção que ouvira alguém assobiar dias antes, acrescentando que apostava que o violino era melhor que o assobio.
Silenciosamente Laura e Carrie começaram a lavar os pratos, para não perderem uma só nota da música. Papai cantava, baixinho e com gosto, acompanhando o violino.
Venha me encontrar,
Venha me encontrar,
Quando ouvir, quando ouvir,
O primeiro sabiá cantar.
"Sabiá cantar", dizia o violino e ele mesmo respondia, alternando os sons como se fosse o próprio pássaro: "sabiá cantar". Mais perto e em tom de pedido: "sabiá cantar", depois mais longe e baixo, mas se aproximando de novo: "sabiá cantar"... "sabiá cantar", até que a noite, a cair, encheu-se de vozes de pássaros.
Os pensamentos de Laura libertaram-se de seus labirintos tristes e feios, tornando-se calmos e tranqüilos. Ela pensou:
— Vou ser boa, não importa que Nellie Oleson seja muito antipática, eu vou ser boa.
O inverno
Durante todo aquele agradável outono, Laura e Carrie estiveram muito ocupadas. Pela manhã, ajudavam um pouco na limpeza e a fazer o café. Preparavam sua merenda, vestiam-se e iam, de marcha batida, para a escola. Depois das aulas, voltavam depressa para casa, pois tinham deveres para fazer até que escurecesse.
Sábado tinha sido um dia de muito trabalho, preparando a mudança para a cidade.
Laura e Carrie apanhavam as batatas colhidas por Papai, cortavam as cabeças dos nabos e ajudavam o pai a encher a carroça. Arrancaram cenouras também, e beterrabas e cebolas. Colheram tomates e morangos silvestres, que crescem em moitas baixas e com muitas folhas. Grossas, nos pecíolos, debaixo das largas folhas, pendem seis campânulas, de um cinzento pálido e finas como papel, e dentro de cada campânula há um fruto redondo, cheio, dourado e suculento.
Os tomates-com-casca eram recobertos com uma casquinha suave e lisa. Quando se abria esta casca, aparecia o tomate, vermelho cor de púrpura, maior que um morango silvestre, mas muito menor que os tomates comuns que exibiam suas cores brilhantes.
Durante dias a fio, enquanto as meninas estavam na escola, Mamãe preparara conservas de tomates, de tomates-com-casca e de morangos silvestres. Fez picles com os tomates verdes, que não teriam tempo de amadurecer antes que nevasse. A casa estava cheia do perfume doce das conservas e do cheiro apimentado do picles.
— Levaremos nossas provisões conosco quando formos para a cidade, desta vez, disse Papai, satisfeito. E temos de ir em breve. Não quero que outra nevasca de outubro nos apanhe nesta casa de paredes finas.
— Este inverno não vai ser tão rigoroso quanto o outro, disse Laura. O tempo está diferente.
— É verdade, concordou Papai, não é provável que este inverno seja tão rigoroso, nem que venha tão cedo, mas, este ano, quero estar preparado, quando ele vier.
Ele levou a palha de aveia e a forragem para empilhar junto aos montes de feno na cidade. Levou as batatas, os nabos, as cenouras e as beterrabas, guardando-as na despensa da loja. Por fim, à tarde e à noite de uma segunda-feira, Laura e Carrie ajudaram Mamãe a arrumar as roupas, os pratos e os livros.
Foi então que Laura descobriu um segredo. Estava ajoelhada, tirando roupa de baixo de inverno da gaveta do camiseiro de sua mãe, e, debaixo das flanelas, sentiu alguma coisa dura. Meteu a mão e achou um livro.
Era um livro novinho em folha, lindamente encadernado em pano verde e com um desenho dourado gravado. O corte dourado das páginas dava a impressão de ser ouro sólido, de tão liso. Na capa, desenhado em duas linhas curvas, com letras de fantasia, lia-se o título
POEMAS DE TENNYSON(l)
(1) Lorde Alfred Tennyson (1809-1892), um dos maiores poetas ingleses do século passado (Nota do tradutor).
Laura levou um susto tão grande e estava tão espantada por ter descoberto aquele livro entre as flanelas, que quase o deixou cair. Ele ficou aberto em suas mãos, mostrando, à luz do lampião, nas páginas invioladas, empolgantes palavras desconhecidas, impressas em tipo claro e fino. Linhas vermelhas, retas e finas, emolduravam cada página, como o tesouro que realmente era, deixando uma ampla margem branca.
Na página da esquerda, quase ao final, havia uma linha curta impressa em caracteres maiores:
OS COMEDORES DE LÓTUS(2)
(2) Um dos mais famosos poemas de Tennyson, baseado numa lenda grega, encontrada na Odisséia de Homero, sobre um povo visitado por Ulisses e que se alimentava da flor do lótus. (Nota do tradutor).
"Coragem!" era a primeira palavra que se lia abaixo dessa linha e, contendo a respiração, Laura leu:
"Coragem!" disse ele, apontando para a terra.
"Esta onda que sobe nos levará em breve até a praia."
À tarde, aportaram a uma terra
Onde sempre parecia ser de tarde.
Ao longo da costa a lânguida atmosfera desmaiava,
Arfando como que sonha fatigante sonho.
Alta e plena sobre o vale, brilhava a lua;
E, como...
Laura interrompeu a leitura, envergonhada. De repente, tinha compreendido o que estava fazendo. Mamãe, com certeza, escondera o livro. Laura não tinha o direito de lê-lo. Fechou depressa os olhos e, depois, fechou o livro. Quase não o podia fazer, tanta era sua vontade de continuar a ler, ao menos até o fim daquele verso. Mas sabia que não devia sucumbir à tentação, por menor que fosse.
Tornou a guardar o livro onde o encontrara, entre as flanelas vermelhas. Recolocou as flanelas na gaveta, fechou-a e abriu a gaveta de cima. Não sabia bem o que fazer.
Devia confessar à mãe o que tinha feito. Mas, logo compreendeu que a mãe devia ter escondido o livro de propósito para fazer uma surpresa. Pensava rapidamente, o coração batendo forte, que o pai e a mãe deviam ter comprado aquele livro em Vinton e que o deviam estar guardando para dar de presente no Natal. Um livro tão bonito e tão caro, um livro de poesias, só podia ser um presente de Natal. E Laura era a mais velha de todas agora; devia ser um presente para ela!
Se ela confessasse à Mãe, estragaria a surpresa de Natal, que ela e o pai estavam esperando causar. Os dois ficariam desapontados.
Parecia-lhe que tinha decorrido muito tempo, desde a hora em que tinha encontrado o livro, mas tinha sido apenas um instante. Mamãe chegou apressada e disse:
— Eu termino isto, Laura, vá dormir, já passou de sua hora.
— Sim, Mamãe.
Ela sabia que Mamãe receava que ela tivesse aberto a gaveta e achado o livro. Nunca antes ela tinha guardado um segredo para a mãe, mas agora não disse uma palavra.
No dia seguinte, depois da escola, ela e Carrie não tiveram de fazer a longa viagem de volta para a fazenda. Ficaram no armazém de Papai, na esquina da Rua Dois com a Principal. Papai e Mamãe se tinham mudado para a cidade, esperando o inverno.
O fogão e o armário estavam na cozinha. No andar de cima, estavam as camas debaixo do teto em declive, com os colchões atirados sobre peças, debaixo de montanhas de cobertores e travesseiros. Fazer as camas fora tudo que Mamãe deixara para elas. E Laura estava certa de que o livro de Natal, os Poemas de Tennyson, estava escondido na gaveta do camiseiro de Mamãe, mas naturalmente jamais iria verificar.
Entretanto, cada vez que olhava para o camiseiro, não podia deixar de lembrar-se.
Alta e plena sobre o vale, brilhava a lua
E, como...
Como o quê? Teria de esperar até o Natal para conhecer o resto daquele belo poema.
"Coragem!" disse ele, apontando para a terra.
"Esta onda que sobe nos levará em breve até a praia".
À tarde, aportaram a uma terra
Onde sempre parecia ser de tarde.
Mas para Laura não parecia que o Natal estivesse próximo.
No andar de baixo, Mamãe já tinha tornado o grande armazém limpo e agradável. O aquecedor tinha sido polido, as cortinas lavadas postas nas janelas, os pequenos tapetes de corda pousados sobre o chão bem varrido. As duas cadeiras de balanço estavam onde havia mais sol. A de Mary estava vazia.
Às vezes, Laura sentia tanta falta de Mary que chegava a doer. Mas, de nada adiantaria falar. Mary estava no colégio, onde ela queria estar. Um professor tinha escrito a Papai, contando que ela estava progredindo rapidamente; em breve, poderia escrever uma carta.
Por isto, ninguém falava sobre o vazio que sentiam. Calmos e felizes, preparavam a ceia e arrumavam a mesa e Mamãe não percebeu que Laura suspirara, quando ela disse:
— Bem, estamos confortàvelmente instalados para o inverno.
— Sim, respondeu Papai. Desta vez, estamos bem preparados.
Não tinham sido os únicos a se prepararem. Todo o mundo na cidade tinha feito a mesma coisa. Na lenharia havia bastante carvão, os comerciantes tinham armazenado grande quantidade de mercadorias, havia farinha no moinho e trigo nos depósitos.
— Teremos carvão para queimar e alguma coisa para comer neste inverno, se os trens não puderem passar, disse Papai.
Era bom sentir-se seguro, em prosperidade, com bastante comida e combustível, de sorte que não precisavam ter medo da fome e do inverno.
Laura sentia falta do longo passeio de ida e volta para a escola. Gostava muito deles, mas em compensação, agora, não havia pressa pela manhã, pois não havia nada a fazer. Papai fazia tudo, porque não tinha o trabalho da fazenda. E a caminhada menor era melhor para Carrie.
Papai, Mamãe e Laura se preocupavam muito com Carrie. Ela nunca tinha sido muito forte e não se estava recuperando do inverno como devia. Poupavam-lhe todo o trabalho de casa, salvo os mais leves e Mamãe procurava abrir seu apetite com o que havia de melhor. Apesar de tudo, ela era magrinha e pálida, pequena para a idade e muito fininha. Seus olhos eram grandes demais para seu rostinho. Muitas vezes, embora tivessem de andar pouco mais de um quilômetro e Laura carregasse seus livros, Carrie se cansava antes de chegar à escola. Às vezes, sua cabeça doía tanto que ela errava na leitura e nas argüições. Morando na cidade, tudo seria mais fácil. Seria muito melhor para Carrie.
Na escola
Laura estava gostando da escola. Conhecia todos os colegas agora e Ida, Mary, Minnie e ela estavam-se fazendo cada vez mais amigas. No intervalo e ao meio-dia estavam sempre juntas.
Os meninos brincavam ao ar livre e tonificante, cheio de sol, brincando de pique c de pegar, outras vezes simplesmente atirando a bola contra a parede da escola para sair correndo, aos trancos e barrancos, atrás dela na planície. Freqüentemente, eles chamavam Laura:
— Venha, Laura, venha brincar conosco. Ora, venha logo!
Não era próprio de uma mocinha de sua idade correr e brincar. Mas ela gostava tanto de correr, de saltar, de pegar a bola e jogá-la, que às vezes bem que se juntava aos meninos. Eram todos pequenos. Ela gostava deles e nunca se queixava, mesmo quando as brincadeiras ficavam um pouco brutas. Um dia, ela ouviu Charley dizer:
— Ela não é maricas, mesmo sendo menina.
Foi um prazer para ela ouvir isto. Quando até os meninos pequenos gostam de uma mocinha, é sinal que todos gostam dela.
As outras meninas sabiam que Laura não tinha gostos de menino, ainda quando seu rosto estava afogueado de correr e pular, e os grampos se soltassem de seus cabelos. Às vezes, Ida também brincava, enquanto Mary Power e Minnie as admiravam e aplaudiam. Só Nellie Oleson torcia o nariz.
Nellie nem passeava, mesmo que a convidassem gentilmente. Tudo para ela "era muito rude".
— Ela tem medo de estragar sua cútis de Nova York, mofou Ida.
— Eu acho que ela fica na escola para fazer amizade com a Senhorita Wilder, disse Mary Power. Ela conversa com ela o tempo todo.
— Ora, deixem estar. Nós nos divertimos muito mais sem ela, disse Minnie.
— A Senhorita Wilder também viveu em Nova York, vai ver é disso que elas falam, observou Laura.
Mary Power olhou para ela, com o rabo dos olhos, rindo e apontando-lhe o braço. Ninguém chamou Nellie de "queridinha da professora", mas era isto que todos pensavam. Laura não se incomodava. Era a primeira aluna da turma e não precisava ser a "queridinha da professora", para continuar sendo.
Depois da ceia, ela estudava até a hora de ir dormir. Nesta hora, é que ela sentia mais falta de Mary. Sempre tinham estudado juntas. Mas ela sabia que, longe, lá em Iowa, Mary também estava estudando no colégio e para que ela pudesse aproveitar todas as magníficas oportunidades para aprender, era preciso que Laura obtivesse o certificado de professora.
Tudo isto passou como um relâmpago na sua cabeça, enquanto caminhava, de braço dado com Ida e Mary Power.
— Vocês sabem o que é que eu estou pensando? perguntou Minnie.
— Não, que é? perguntaram elas.
— Aposto que é isto que ela está planejando, respondeu Minnie e apontou para uma parelha que vinha na direção delas. Eram os cavalos castanhos Morgan.
Suas patas finas moviam-se àgilmente, os cascos levantavam pequenas nuvens de poeira. Suas ancas fortes rebrilhavam, suas crinas e caudas negras reluziam agitadas pelo vento. Suas orelhas estavam bem em pé e seus olhos irrequietos e brilhantes olhavam para tudo alegremente. Borlas vermelhas enfeitavam as guias.
A luz do sol se refletia na curva em arco de seus pescoços, ao longo de seus flancos e das ancas. Atrás deles corria um carrinho novo em folha. O assento rebrilhava, a capota preta se encurvava sobre o assento presa a ferros reluzentes, as rodas eram vermelhas. Laura nunca tinha visto aquele carro.
— Por que é que você não cumprimentou, Laura? perguntou Ida, quando o carro já ia longe.
— Você não viu que ele tirou o chapéu para nós? perguntou Mary.
Laura não tinha visto os lindos cavalos, até que o carro passara por elas.
— Oh, desculpem, não quis ser mal-educada, disse ela. Eles são mesmo uma beleza, não são?
— Você não vai dizer que ela está querendo atrair para si a atenção dele, disse Mary. Ele já é um homem feito, um fazendeiro.
— Eu já a vi olhando para os cavalos, respondeu Minnie. Aposto que ela está decidida a dar um passeio atrás deles. Você conhece aquele olhar calculista que ela tem de vez em quando, E agora que ele comprou aquele carro...
— Ele não o tinha no último Quatro de Julho, disse Laura.
— Acaba de chegar do Leste, contou Minnie. Ele o encomendou depois de ter vendido sua safra de trigo, que foi ótima.
Minnie sempre sabia dessas novidades, porque seu irmão, Arthur, lhe contava.
Lentamente, Mary Power disse:
— Eu acho que você está com a razão, nada é impossível com ela.
Laura sentia-se um pouco culpada. Ela não iria adular a Se-nhorita Wilder para conseguir um passeio no carro puxado pelos cavalos de Almanzo Wilder. Mas, muitas vezes, tinha pensado que ela bem poderia convidá-la, se gostasse um pouquinho dela.
A Senhorita Wilder estava morando num sítio naquela mesma estrada, a meio quilômetro mais ou menos da escola. Vivia lá, numa pequena cabana. Almanzo muitas vezes a trazia para a escola de manhã, ou a levava de volta para casa, de tarde. E sempre, quando via os cavalos, Laura tinha a esperança de que a Senhorita Wilder talvez um dia a convidasse para um passeio. Será que ela era tão mesquinha quanto Nellie Oleson?
Agora, que tinha visto o carro, mais do que nunca Laura queria dar um passeio nele. Como é que ela podia evitar tais pensamentos, se os cavalos eram tão bonitos e o carro tão veloz?
— Está quase na hora da sineta, disse Ida, e todas voltaram para a escola. Não deviam chegar atrasadas. À entrada, beberam da concha que havia no balde. Entraram na sala, queimadas, cortadas pelo vento, suadas e poeirentas. Nellie estava imaculada e com pose de moça, sua pele branca como sempre, o cabelo muito bem penteado.
Ela olhou de cima para as colegas e deu um sorriso de superioridade. Laura olhou-a bem nos olhos e Nellie fez um movimento de desdém com os ombros e com o queixo.
— Você não deve ser tão orgulhosa, Laura Ingalls! A Senhorita Wilder diz que seu pai não tem muito que dizer sobre esta escola, embora esteja na Junta Escolar.
— O quê?! exclamou Laura.
— Eu acho que ele tem tanta influência quanto qualquer outra pessoa, e talvez mais ainda! disse Ida, corajosamente. Não é verdade, Laura?
— Claro que é! disse Laura.
— Sim, disse Mary Power. Tem mais, porque Laura e Carrie estão nesta escola e os outros membros da Junta não têm filhos.
Laura estava furiosa, porque Nellie tinha ousado falar mal de seu pai. Nos degraus da escada, a Senhorita Wilder estava tocando a sineta e as badaladas ecoavam na cabeça de Laura. Ela virou-se para Nellie e disse.
— É uma pena que vocês não sejam senão gente da roça, Nellie. Se vocês vivessem na cidade, talvez seu pai fosse membro da Junta Escolar e tivesse alguma influência nesta escola.
Nellie ia esbofeteá-la. Laura viu sua mão erguer-se e mal teve tempo de pensar que não devia, de maneira nenhuma, esbofetear Nellie e esperar que ela não o faria. Então, a mão de Nellie caiu e ela sentou-se rapidamente. A Senhorita Wilder tinha entrado.
Todos os alunos vieram, fazendo barulho, e Laura sentou-se em sua carteira. Estava ainda tão furiosa que mal podia ver. Por debaixo da carteira, Ida lhe apertou o pulso, querendo dizer:
— Muito bem, Laura! Você lhe deu o que ela merecia!
O castigo
A Senhorita Wilder estava espantando a todos na escola. Desde o primeiro dia, como de hábito, os meninos estavam vendo até que ponto podiam levar as travessuras, antes que ela os obrigasse a se comportarem direito, c ninguém compreendia por que não o fazia.
A princípio, eles se mexiam nas carteiras e depois começaram a fazer barulho com os livros e as ardósias. A Senhorita Wilder não deu importância até que o barulho começou a perturbar. Mas não ralhou com o mais barulhento; ao contrário, deu-lhes um sorriso e pediu-lhes gentilmente que ficassem quietos:
— Acho que vocês não perceberam que estão perturbando os outros, disse ela.
Eles não entenderam nem sabiam o que fazer. Quando se virou para escrever no quadro-negro, o barulho foi crescendo. Os garotos começaram a murmurar.
Todos os dias, a Senhorita Wilder pedia a todos, diversas vezes, que ficassem um pouco mais quietos, por favor. Isto não era justo para os que não estavam fazendo barulho. Em breve, todos os meninos estavam conversando, empurrando-se, e até lutando nas carteiras, às escondidas. Algumas das meninas menores escreviam bilhetinhos umas para ar» outras em suas ardósias.
Ainda assim, a Senhorita Wilder não punia ninguém. Uma tarde, ela bateu com a régua na mesa para pedir a atenção de toda a turma, e falou sobre a certeza que tinha de que todos eles queriam ser bons. Disse que não acreditava em castigar as crianças. Queria dirigi-los pelo amor, não com castigos. Gostava de todos eles e estava certa de que todos gostavam dela. Até as meninas maiores sentiam-se embaraçadas com a maneira de falar da professora.
— "Os pássaros em seus ninhos vivem em paz", disse ela, sorrindo, e Laura e Ida quase riram de encabuladas. Além de tudo, aquela frase provava que ela nada entendia de pássaros.
A Senhorita Wilder sorria sempre, mesmo quando seus olhos mostravam que ela estava aborrecida. Só os seus sorrisos para Nellie Oleson pareciam sinceros. Parecia que ela acreditava poder confiar em Nellie.
— Ela é uma... bem, quase uma hipócrita, Minnie disse um dia, em voz baixa, durante o recreio. Estavam junto da janela, vendo os meninos jogar bola. A Senhorita Wilder e Nellie estavam conversando perto da lareira. Fazia frio na janela, mas as outras meninas preferiram sentir frio.
— Não acho que ela seja realmente hipócrita, disse Mary. Você acha, Laura?
— Não, disse Laura. Não é bem assim. Acho que ela não sabe julgar bem as pessoas. Mas sabe tudo que está nos livros. Ê muito culta.
— Sim, é verdade, concordou Mary. Mas não pode uma pessoa saber tudo que está nos livros e ter um pouco mais de bom senso? Só fico imaginando o que vai acontecer quando os meninos maiores vierem para a escola, se ela agora não consegue disciplinar os menores.
Os olhos de Minnie acenderam-se excitados e Ida riu. Ida era sempre alegre, sorridente e boa, acontecesse o que acontecesse, mas Mary Power estava séria e Laura preocupada.
— Oh, não devemos criar dificuldades na escola, foi o seu comentário. Ela precisava estudar e conseguir o seu certificado de professora.
Agora que estavam morando na cidade, Laura e Carrie podiam ir a casa, ao meio-dia, e almoçar comida quente. Certamente, comida quente era melhor para Carrie, embora não parecesse fazer diferença. Ela ainda estava pálida e magrinha, sempre cansada. Às vezes, sua cabeça doía tanto que ela não podia aprender a ortografia das palavras. Laura a ajudava a estudar. Carrie sabia cada palavra de manhã; mas, à tarde, quando era chamada à argüição, sempre cometia um erro,
Ida e Nellie traziam o almoço para a escola e a Senhorita Wilder também. Comiam juntas, ao pé da lareira. Quando as colegas voltavam para a escola, Ida juntava-se a elas, mas Nellie comumente conversava com a Senhorita Wilder durante toda a hora do almoço.
Muitas vezes, ela dizia às outras, com um sorriso superior:
— Qualquer dia desses, vou dar um passeio naquele carro novo puxado pelos cavalos Morgan. Vocês vão ver!
E ninguém duvidava disso!
Voltando um dia para a escola, Laura levou Carrie para perto da lareira, para tirarem seus casacos perto do fogo. A Senhorita Wilder e Nellie estavam lá, conversando animadamente. Laura ouviu a Senhorita Wilder dizer, indignadamente "... Junta Escolar!" Nesta hora, as duas a viram.
— Preciso tocar a sineta, disse a Senhorita Wilder, e saiu precipitadamente, sem olhar para Laura quando passou por ela. Talvez a Senhorita Wilder tivesse uma queixa a fazer à Junta Escolar e se tivesse lembrado, quando a viu, que o pai de Laura era membro da Junta.
Naquela tarde, Carrie errou de novo a ortografia de três palavras. Laura estava com o coração apertado. Carrie, muito pálida, com uma carinha tão triste, se esforçava tanto, e era fácil ver que sua cabeça doía horrivelmente. Seria um pequeno consolo para ela ver que Mamie Beardsley também tinha cometido alguns erros.
A professora fechou o livro de ditado e disse tristemente que estava desapontada e aborrecida:
— Sente-se, Mamie, e estude a mesma lição de novo. Carrie, venha ao quadro-negro. Quero que você escreva corretamente "cachoeira", "separar" e "exasperar", cinqüenta vezes cada uma.
Ela falou com um tom de triunfo na voz.
Laura tentou controlar seu gênio, mas não pôde. Estava furiosa. Era um castigo para a pobre Carrie, fazê-la ficar de pé, envergonhada, diante de toda a turma. Não era justo! Mamie também tinha errado algumas palavras. A Senhorita Wilder a tinha mandado sentar e tinha castigado Carrie. Ela devia ver que Carrie fazia o melhor que podia e que não era forte. Ela era má, mesquinha e cruel, injusta!
Laura teve de sentar-se, impotente. Carrie dirigiu-se, cheia de vergonha, mas corajosamente, para o quadro-negro. Estava trêmula e tinha de fazer força para não chorar. Laura observava a sua mão fininha escrever lentamente, linha após linha. Carrie estava cada vez mais pálida, mas continuava a escrever. De repente, sua face ficou cinzenta de tão pálida e ela teve de agarrar-se à borda do quadro para não cair.
Rapidamente Laura levantou a mão, depois levantou-se e quando a Senhorita Wilder olhou para ela, ela falou sem licença:
— Por favor! Carrie vai desmaiar.
A Senhorita Wilder virou-se depressa e olhou para Carrie.
— Carrie! Pode sentar-se, disse ela.
Carrie começou a suar e seu rosto já não estava tão pálido. Laura sabia que o pior já tinha passado.
— Sente-se na primeira carteira, disse a Senhorita Wilder, e Carrie conseguiu alcançá-la.
A Senhorita Wilder virou-se para Laura e disse:
— Já que você não quer que Carrie escreva as palavras que errou, Laura, você pode vir ao quadro escrevê-las.
Toda a sala ficou gelada de silêncio, olhando para Laura. Era uma vergonha para ela, uma das maiores, ficar de pé no quadro-negro, escrevendo palavras como castigo. A Senhorita Wilder olhava para Laura que lhe devolvia o olhar, francamente.
Laura foi para o quadro-negro e pegou o giz, começando a escrever. Sua face estava escaldante, mas logo viu que ninguém estava caçoando dela. Continuou a escrever as palavras, sempre com a mesma letra, uma debaixo da outra.
Mais de uma vez, ela ouviu, baixinho, um "psiu!" "psiu!" A sala estava na desordem de sempre. Aí, ela ouviu um murmúrio: "Psiu! Laura!"
Charley estava fazendo um sinal para ela, murmurando:
— Não faça isso, não! Diga a ela que você não vai fazer! Estamos todos do seu lado!
Laura sentiu-se reconfortada. Mas havia uma coisa que não podia acontecer, era ela ter dificuldades na escola. Ela sorriu, franzindo a testa, e fazendo que não com a cabeça. Charley sentou-se, desapontado, mas quieto. Laura percebeu um olhar furioso da Senhorita Wilder. Ela tinha visto tudo.
Laura virou-se para o quadro-negro e recomeçou a escrever. A Senhorita Wilder nada lhe disse, nem a Charley. Laura pensava magoada:
— Ela não tem razão de estar magoada comigo. Deve apreciar minha contribuição para manter a disciplina na escola.
Depois da aula, Charley e seus companheiros, Clarence e Al-fred, saíram logo atrás de Laura, Mary e Minnie.
— Amanhã, ela vai ver uma coisa comigo! jactou-se Clarence, em voz alta, para ser ouvido por Laura. Vou por um alfinete na cadeira dela.
— Antes, eu quebro a régua dela, prometeu Charley, para ela não te poder castigar, se ela te descobrir.
Laura voltou-se e desfez o caminho:
— Por favor, meninos, não façam nada disto, por favor.
— Por que? Por que não? Vai ser gozado e ela não nos castigará, argumentou Charley.
— Onde é que está a graça? Não é bonito vocês tratarem assim uma senhora, ainda que vocês não gostem dela. Gostaria que vocês não o fizessem.
— Be-e-em, concordou Clarence. 'Tá bem, não farei nada então.
— Então, nós também não faremos, concordaram Charley e Alfred.
Laura sabia que eles cumpririam sua palavra, ainda que sem muita vontade.
Estudando suas lições, naquela noite, Laura parou um instante para dizer:
— Não sei por que a Senhorita Wilder não gosta nem de Carrie nem de mim.
Mamãe parou de tricotear:
— Você deve ter imaginado isso, Laura. Papai olhou por cima do jornal:
— Tome cuidado para não lhe dar razão para isto, e em breve você pensará diferentemente.
— Mas, Papai, eu não lhe dei nenhuma razão para não gostar de mim, respondeu Laura, sinceramente. Talvez Nellie Oleson a tenha influenciado, acrescentou, curvando de novo a cabeça sobre o livro, pensando consigo mesma: "Ela dá atenção demais a Nellie Oleson".
Laura e Carrie chegaram cedo à escola no dia seguinte. A Senhorita Wilder e Nellie estavam sentadas junto ao fogão. Não havia mais ninguém na sala. Laura deu bom dia e, quando se aproximou do fogo, sua saia prendeu na borda quebrada do balde de carvão.
— Ah, que pena! exclamou Laura, abaixando-se para soltá-la.
— Você rasgou sua saia, Laura? perguntou a professora, em tom azedo. Porque é que você não arranja um balde novo, já que seu pai está na Junta Escolar e você consegue tudo quanto quer?
Laura olhou para ela, espantada:
— Não, senhora, eu não consigo tudo que quero. Mas certamente a senhora poderá ter um balde novo se quiser.
— Oh, muito obrigada, respondeu a Senhorita Wilder. Laura não conseguia entender por que a Senhorita Wilder lhe falava daquela maneira. Nellie fingiu que estava lendo um livro com muita atenção, mas havia um sorriso traiçoeiro nos cantos de sua boca. Laura não sabia o que dizer e, por isto, não disse nada.
Durante toda a manhã, a sala esteve inquieta e barulhenta, mas os meninos cumpriram a promessa. Não estavam mais travessos do que habitualmente. Não sabiam as lições porque não estudavam e a Senhorita Wilder estava tão exausta que Laura teve pena dela.
Na parte da tarde, a aula começou mais tranqüilamente. Laura estudava atentamente sua lição de geografia. Olhando em torno, enquanto tentava decorar as exportações do Brasil, viu Carrie e Mamie Beardsley mergulhadas no estudo. Suas cabeças estavam juntas sobre o livro de ortografia, seus olhos fixos na lição e seus lábios moviam-se silenciosamente à medida que elas soletravam as palavras para si mesmas. Não tinham percebido que se estavam balançando para a frente e para trás e que o banco estava balançando com elas.
Os cravos que deviam prender a carteira ao chão devem estar soltos, pensou Laura. O movimento do banco não fazia barulho e não estava, portanto, incomodando ninguém. Laura voltou a ler seu livro, pensando nos portos marítimos.
Subitamente, ela ouviu a voz irritada da Senhorita Wilder:
— Carrie, Mamie! Podem por os livros de lado e ficar apenas balançando o banco!
Laura levantou os olhos. Os olhos e a boca de Carrie estavam muito abertos, com a surpresa. Seu rosto estava branco com o choque, mas logo ficou vermelho de vergonha. Ela e Mamie fecharam o livro e começaram a balançar a cadeira, timidamente e ainda quietas.
— Temos de ter silêncio para poder estudar, explicou suavemente a Senhorita Wilder. Daqui por diante, todo aquele que perturbar a aula, continuará a fazer o que estava fazendo até ficar exausto.
Mamie não se importava muito, mas Carrie estava com tanta vergonha que tinha vontade de chorar.
— Continuem a balançar o banco, meninas, até que eu lhes dê licença para parar, disse a Senhorita Wilder, com o mesmo tom triunfal. Virou-se para o quadro-negro e continuou a explicar um problema de aritmética para os meninos, que não estavam prestando atenção nenhuma.
Laura tentava pensar no Brasil, mas não podia. No fim de algum tempo, Mamie abanou a cabeça, levantando-se e passou, audaciosamente, para outra carteira.
Carrie continuou a balançar, mas o banco era pesado demais para ela sozinha. Lentamente, o movimento parou.
— Continue a balançar, disse a Senhorita Wilder para Carrie, mas sem dizer nada a Mamie.
O rosto de Laura estava vermelho de cólera. Já nem tentava controlar seus sentimentos. Odiava a Senhorita Wilder, por causa de sua injustiça e de sua mesquinhez. Mamie estava sentada, recusando-se a cumprir sua parte do castigo, e a Senhorita Wilder nada lhe dissera. Carrie não era bastante forte para balançar o banco sozinha. Laura mal podia controlar-se. Mordeu os lábios com força e ficou quieta.
Com certeza, pensava, Carrie vai ser desculpada daqui a pouco. Carrie estava pálida. Estava fazendo o melhor que podia para manter o banco em movimento, mas era pesado demais. Seu movimento diminuía pouco a pouco. Por fim, reunindo todas as suas forças, Carrie mal conseguia mexê-lo.
— Mais depressa, Carrie! Mais depressa! Você queria balançar o banco. Pode balançar à vontade.
Laura já estava de pé. Sua cólera tinha tomado conta dela, e ela nem tentou resistir, rendeu-se inteiramente.
— Senhorita Wilder, se a senhora quer, eu posso balançar o banco mais depressa!
A Senhorita Wilder aceitou a sugestão, alegremente.
— Ótimo! Pode fazê-lo. Não precisa levar o livro, basta balançar o banco.
Laura apressou-se e segredou a Carrie: "Fique quieta e descanse." Plantou os pés firmemente no chão e começou a balançar.
Não era à toa que Papai sempre dizia que ela era forte como um cavalo francês.
Bam! batiam as pernas de trás no chão. Bam! respondiam as pernas da frente. Todos os cravos se soltaram. Bam! Bam! Bam! Bam!
O balanço agora era ritmado, com Laura balançando contente e Carrie sentada quietinha.
Nem mesmo o peso acalmou a fúria de Laura. Cada vez mais irritada, balançava com mais força e mais depressa.
Bam! Bam! Bam! Bam!
Ninguém conseguia estudar.
Bam! Bam! Bam! Bam!
A Senhorita Wilder mal escutava a própria voz. Em voz alta, chamou os alunos do terceiro ano para leitura. Mas ninguém podia ler, nem se fazer ouvir.
Bam! Bam! Bam! Bam!
A Senhorita Wilder disse:
— Laura, você e Carrie estão dispensadas por hoje. Podem ir para casa pelo resto do dia.
Bam! Laura fez o banco gritar. Depois houve silêncio absoluto.
Todos já tinham ouvido falar em ser dispensado, mas nunca tinha acontecido antes. Era um castigo pior do que o de ser chicoteado. Só havia uma punição pior, era a expulsão da escola.
Laura manteve a cabeça ereta, mas quase não podia enxergar. Ela apanhou os livros de Carrie, que a seguiu encolhendo-se atrás dela, tremendo enquanto esperava na porta que Laura apanhasse seus próprios livros. O silêncio era completo na sala. Por amizade, Mary e Mamie não olharam para Laura. Nellie Oleson fingia ler atentamente seu livro, mas havia um sorriso mau em sua boca. Ida olhou rápido para Laura, mas cheia de simpatia.
Carrie tinha aberto a porta, Laura saiu e fechou a porta.
À porta de entrada, puseram as capas. Fora da escola, tudo parecia estranho e vazio, porque a estrada estava deserta. Eram mais ou menos duas horas c ninguém estaria esperando por elas em casa.
— Oh, Laura, que é que vamos fazer? perguntou Carrie desesperadamente.
— Vamos para casa, é claro, respondeu Laura.
Já estavam indo para casa e a escola estava a alguma distância delas.
— Que será que Papai e Mamãe vão dizer?
— Saberemos quando eles o disserem, respondeu Laura. Não vão censurar você, porque a culpa foi minha, por ter balançado o banco com tanta força. Mas, como estou contente! Faria tudo de novo.
Carrie não queria saber de quem era a culpa. Não há consolo para quem está com medo de ir para casa.
— Oh, Laura, disse ela, agarrando a mão de Laura. E assim, de mãos dadas, e sem dizer mais nada, seguiram seu caminho. Atravessaram a Rua Principal e se encaminharam para a porta, que foi aberta por Laura, e entraram.
Papai voltou-se na escrivaninha onde estava escrevendo. Mamãe levantou-se e deixou cair o novelo de linha que rolou no chão. O gatinho pulou alegremente sobre ele.
— Que é que aconteceu, meu Deus? exclamou Mamãe. Meninas, o que foi que aconteceu? Carrie está doente?
— Nós fomos dispensadas da escola, disse Laura.
Mamãe tornou a sentar-se, olhando desamparadamente para Papai. Depois de um silêncio horrível, Papai perguntou, com voz severa:
— Por que?
— Foi por minha culpa, Papai, respondeu logo Carrie. Eu não fiz de propósito, mas foi por minha culpa.
— Não, a culpa foi minha, contestou Laura e contou o que se passara. Quando ela acabou, voltou o mesmo silêncio horrível.
Depois, Papai falou gravemente:
— Amanhã, vocês vão à escola como se nada tivesse acontecido. A Senhorita Wilder pode ter errado, mas é a professora. Não posso permitir que minhas filhas façam desordem na escola.
— Nós não faremos, Papai, prometeram as duas.
— Agora, tirem seus vestidos da escola e comecem a estudar, disse Mamãe. Podem estudar aqui, o resto da tarde. Amanhã farão como seu pai mandou e talvez tudo passe.
A visita da Junta Escolar
LAURA pensava que Nellie Oleson se mostraria surpresa e desapontada quando ela e Carrie voltassem à escola no dia seguinte. Nellie talvez pensasse que elas não voltariam.
— Oh, como eu estou contente por vocês terem voltado! disse Mary, apertando-lhe ligeiramente o braço.
— Você não vai deixar que a mesquinhez dela a afaste da escola, não é, Laura? perguntou Ida.
— Não vou deixar que nada me impeça de me educar, foi a resposta de Laura.
— Você não poderia educar-se se fosse expulsa da escola, intrometeu-se Nellie.
Laura olhou para ela e disse:
— Não fiz nada para ser expulsa, nem vou fazer.
— De qualquer maneira, não é mesmo, você não seria expulsa, com seu pai na Junta Escolar, respondeu Nellie.
— Por favor, pare de falar que Papai está na Junta Escolar. Não sei por que você fala tanto nisto e... Nesse momento, tocou a sineta e todas se dirigiram para suas carteiras.
Carrie estava muito bem comportada e, por obediência ao pai, Laura também estava quieta. Ela não se lembrava da passagem da Bíblia que fala da xícara e do pires que só estavam limpos por fora, mas a verdade é que ela estava exatamente no mesmo caso. Odiava a Senhorita Wilder, ainda sentia um terrível ressentimento contra sua cruel injustiça para com Carrie. Queria vingar-se. Por fora, ela estava resplandecente de bom comportamento, mas nem sequer se esforçava por ser boa interiormente.
Nunca a sala estivera tão barulhenta. Por toda a parte se ouvia o barulho de livros batidos, de pés arrastados e de conversas baixo. Apenas as meninas maiores e Carrie estavam quietas, estudando. Para todo lado que se virava a Senhorita Wilder, surgia logo a desordem atrás dela. De repente, ouviu-se um grito lancinante.
Charley deu um pulo e ficou em pé. Suas mãos agarravam o fundilho das calças e ele gritava:
— Um alfinete! Um alfinete no meu banco!
E mostrava à professora o alfinete. Seus lábios se contraíram e, com sua voz cortante, ela ordenou:
— Venha cá, Charley!
Charley deu uma piscadela para os colegas e dirigiu-se à mesa.
— Dê-me sua mão, disse a Senhorita Wilder, procurando sua régua dentro da gaveta. A princípio, tateou, mas como não a encontrasse, olhou para dentro da gaveta. A régua não estava lá. A Senhorita Wilder perguntou:
— Alguém viu minha régua?
Ninguém respondeu. O rosto da Senhorita Wilder estava vermelho de cólera.
— Vá para o canto, de rosto para a parede!
Charley obedeceu, esfregando as nádegas como se ainda estivesse sentindo a espetadela do alfinete. Clarence e Alfred riram alto. A professora virou-se depressa para o lado deles e, mais depressa ainda, Charley aproveitou para virar-se para trás e fazer uma careta tão engraçada que todo o mundo deu gargalhadas. Charley era tão rápido que, quando a professora se virou, para ver o que os estava fazendo rir, ele já estava de frente para a parede outra vez.
Três ou quatro vezes Charley repetiu a brincadeira, e toda a turma ria às gargalhadas. Só Laura e Carrie conseguiam ficar sérias. Até mesmo as meninas maiores quase sufocavam nos próprios lenços.
A Senhorita Wilder pedia silêncio, mas tinha de bater na mesa com os nós dos dedos, porque não tinha régua. E não havia jeito de conseguir silêncio. Não podia vigiar Charley o tempo todo e sempre que ela virava a cabeça ele aproveitava para fazer uma careta e as gargalhadas explodiam.
Os meninos não tinham violado a promessa feita a Laura, mas estavam conseguindo ser mais travessos do que nunca. E Laura não se incomodava. Para falar a verdade, estava até gostando.
Quando Clarence saiu de seu lugar e começou a andar de quatro, ela sorriu para ele.
No intervalo, ela ficou na sala. Estava certa de que os meninos estavam planejando novas travessuras e queria estar onde não os pudesse ouvir.
Depois do intervalo, a desordem piorou muito. Os meninos começaram a atirar bolas de papel e gaivotas. As meninas menores conversavam e trocavam notas. Quando a Senhorita Wilder foi para o quadro, Clarence pôs-se de quatro, seguido por Alfredo e Charley, ágil como um gato, saiu correndo e pulou carniça sobre os dois.
Eles olharam para Laura, como que pedindo sua aprovação, e ela sorriu para eles.
— Por que é que você está sorrindo? perguntou a Senhorita Wilder.
— Eu estava sorrindo? perguntou Laura, tirando os olhos do livro e fingindo surpresa. A sala estava em silêncio, os meninos em suas carteiras, todos pareciam muito ocupados estudando.
— Bem, não sorria! disse a professora incisivamente e olhando sério para Laura. Depois, voltou-se para o quadro-negro e todos, com exceção de Laura e de Carrie, estouraram de rir.
Durante toda a manhã, Laura ficou quieta, sem tirar os olhos de suas lições, olhando de vez em quando para Carrie. Uma vez, Carrie olhou para trás, mas Laura fez sinal para que se calasse, e Carrie curvou-se de novo sobre o livro.
Com tanto barulho e confusão atrás dela, a Senhorita Wilder acabou confusa ela mesma. Ao meio-dia, mandou todos embora meia hora mais cedo e, de novo, Laura e Carrie tiveram de explicar por quê.
Contaram a desordem na sala e Papai ficou com um ar sério:
— Vocês devem comportar-se. Lembrem-se do que eu lhes disse, foi o seu único comentário.
Elas obedeceram. No dia seguinte a desordem foi ainda pior. Toda a sala, ou quase toda, estava rindo da Senhorita Wilder.
Laura estava estarrecida com o que ela tinha originado, só porque sorrira para dois meninos travessos. Mas agora, ela não queria que aquilo parasse. Nunca perdoaria à Senhorita Wilder sua injustiça com Carrie. Não queria perdoar-lhe.
Agora que todos estavam aborrecendo, provocando ou, pelo menos, rindo da Senhorita Wilder, Nellie também se juntou aos colegas. Ainda era a "queridinha da professora", mas contava para as outras tudo quanto ela lhe dizia e ria da professora. Um dia, contou-lhes que o nome da Senhorita Wilder era Eliza Jane.
— É segredo. Ela me contou faz muito tempo, mas não quer que ninguém aqui saiba.
— Não vejo por que, ponderou Ida. É um bonito nome.
— Eu sei, continuou Nellie. Quando ela era pequena, no Estado de Nova York, uma menina suja veio para a escola e a Senhorita Wilder teve de sentar-se com ela e — Nellie chamou as outras mais para perto, murmurando — apareceram piolhos em seu cabelo.
Todas se afastaram e Mary disse:
— Você não devia contar essas coisas horríveis, Nellie!
— Eu não ia contar, mas Ida pediu.
— Eu? Eu não pedi nada, protestou Ida.
— Pediu sim. Ouçam, isto é tudo. Sua mãe mandou um bilhete para o professor, que teve de mandar a menina suja para casa e todo o mundo ficou sabendo. E a mãe da Senhorita Wilder teve de ficar com ela em casa uma manhã inteira para passar o pente fino em seu cabelo. A Senhorita Wilder chorou muito e teve medo de voltar para a escola, andou devagar e chegou atrasada. No recreio, fizeram roda e começaram a gritar "Lazy lousy Lizy, Jane!(1) Desde esse dia, ela detesta seu nome. Enquanto ela esteve nesta escola, quem se zangava com ela a chamava de "Lazy, lousy Lizy Jane!"
(1) Trocadilho impossível de ser traduzido, por causa da alteração entre "Lazy" (preguiçosa), "lousy'' (piolhenta) e Lizy (diminutivo de Eliza) (Nota do tradutor).
Ela o contou com tanta graça que todas riram, embora um pouco envergonhadas. Depois, concordaram que nunca contariam coisas a Nellie, porque ela era leva-e-traz.
Havia tanto barulho na escola que já não era escola. Quando a Senhorita tocava a sineta, os alunos entravam contentes, para aborrecê-la. Não podia tomar conta de todos ao mesmo tempo, nunca conseguia surpreender um faltoso. Eles batiam com suas ardósias e livros, atiravam bolas de papel, assobiavam e brincavam nas passagens entre as carteiras. Estavam todos aliados contra a professora e encantados de cansá-la, enganá-la, persegui-la e caçoar.
Este sentimento contra a Senhorita Wilder quase que amedrontava Laura. Ninguém o poderia deter agora. A desordem era tal que Laura não conseguia estudar. Se ela não pudesse estudar, não conseguiria seu certificado de professora cedo bastante para ajudar a conservar Mary no colégio. Talvez Mary tivesse de deixar o colégio, só porque ela encorajara dois meninos travessos, sorrindo para eles.
Ela sabia agora que não o deveria ter feito. Mas, por outro lado, não estava arrependida. Não perdoava à Senhorita Wilder. Sentia-se dura e quente como um carvão, quando pensava na crueldade do tratamento que a Senhorita Wilder dera a Carrie.
Um sábado pela manhã, Ida desistiu de estudar e começou a desenhar na sua ardósia. Todo o primeiro ano estava errando de propósito em ortografia e rindo muito. A Senhorita Wilder mandou a turma ao quadro para escrever a lição. Aí, ela ficou entre os alunos que estavam nas carteiras e os que estavam no quadro-negro. Ida continuava ocupada, desenhando, balançando os pés e cantarolando sem se dar conta. Laura tentava fechar os ouvidos com as mãos e estudar.
Quando a Senhorita Wilder dispensou a turma para o recreio, Ida mostrou a Laura o que tinha desenhado. Era uma caricatura da professora tão bem feita que parecia ela mesma. Embaixo, Ida tinha escrito:
Nós nos divertimos muito na escola,
Rir e engordar é a única regra,
Todos riem até arrebentar
De "lazy, lousy, Lizy Jane"!
Não consigo fazer direito os versos, disse Ida. Mary Power e Minnie estavam admirando a caricatura, rindo, e Mary disse:
— Por que é que você não pede a Laura para ajudar, ela faz versos tão bem.
— Será que você faria, Laura, por favor!
Laura apanhou a ardósia e o lápis e, enquanto as outras esperavam, ela pensou numa canção e arranjou uma letra adequada. Ela só queria agradar a Ida e, talvez, mostrar-se um pouco. Em lugar dos versos que Ida escrevera, ela pôs:
Ir para a escola é coisa engraçada,
De risos já ganhamos uma tonelada,
Rimos a bandeiras despregadas
De "lazy, lousy, Lizy Jane".
Ida ficou contentíssima e as outras também. Mary Power disse:
— Eu sabia que Laura podia fazer os versos.
Nesse mesmo instante, a Senhorita Wilder tocou a sineta. O recreio tinha passado com uma rapidez louca.
Os meninos foram chegando, fazendo todo o barulho que podiam e quando Charley passou por elas e viu a ardósia, Ida riu e deixou-o ler o que estava escrito.
— Não! disse Laura num murmúrio, mas era tarde demais. Até meio-dia, os meninos passaram a ardósia uns para os outros, e Laura receou que a Senhorita Wilder a apanhasse, com o desenho de Ida e sua letra. Respirou aliviada quando a ardósia voltou para elas e Ida, rapidamente, a limpou com a esponja.
Quando saíram ao ar livre para irem para casa almoçar, Laura ouviu os garotos cantando ao longo da Rua Principal:
Ir para a escola é coisa engraçada,
De risos já ganhamos uma tonelada,
Rimos a bandeiras despregadas,
de lazy, lousy, Lizy Jane!"
Laura ficou boquiaberta, sentindo-se doente por um instante e gritou:
— Não! eles não devem fazer isto! Temos de fazê-los parar. Mary Power, Minnie, venham, corram. Meninas! Charley! Clarence!
— Eles não estão ouvindo, disse Minnie, e de qualquer maneira não conseguiríamos que se calassem.
Os meninos já se estavam separando na Rua Principal. Estavam apenas conversando, mas, mal Laura tinha dado um suspiro de alívio, um deles recomeçou a cantar, logo seguido pelos outros:
Ir para a escola é coisa engraçada...
Abaixo e acima da Rua Principal, eles berravam;
LAZY, LOUSY, LIZY JANE!
— Ah, meu Deus, por que é que eles não têm um pouco mais de bom-senso! disse Laura.
— Laura, só há uma coisa a fazer, observou Mary Power. Não diga a ninguém quem escreveu isto. Ida não vai dizer, que eu sei, eu também não e Minnie também, não é, Minnie?
— Juro, prometeu Minnie. Mas, e Nellie Oleson?
— Ela não sabe. Estava conversando com a Senhorita Wilder durante todo o recreio, recordou Mary. Você nunca contará, não é mesmo, Laura?
— Não, a menos que Papai ou Mamãe me perguntem diretamente, garantiu Laura.
Quando estavam almoçando, Charley e Clarence passaram pela casa deles, cantando aquela canção horrorosa e Papai disse:
— Isto parece com uma canção que eu conheço. Você já ouviu alguma canção sobre uma "lazy, lousy, Lizy Jane"?
— Nunca, respondeu Mamãe, mas não me parece uma canção bonita.
Laura não disse uma palavra. Nunca se tinha sentido tão infeliz.
Em volta da escola, os meninos estavam cantando a mesma coisa. O irmão de Nellie, Willie, estava com eles. Na escola, Ida e Nellie estavam numa janela, longe da Senhorita Wilder que, agora, já sabia que Nellie tinha contado a história.
Nellie estava furiosa. Queria saber quem tinha escrito aqueles versos, mas Ida não lhe tinha dito e nenhuma das outras iria contar. Na certa, seu irmão Willie sabia ou descobriria, contaria a ela e ela à senhorita Wilder.
De noite, depois da escola, e ainda no domingo, os meninos continuavam a cantar aquela letra. Com o tempo bom e firme, eles estavam todos na rua. Laura quase que desejava uma borrasca que os prendesse em casa. Nunca tinha sentido tanta vergonha, pois ela tinha espalhado a mesquinha história contada por Nellie muito mais longe do que Nellie poderia ter feito. Achava-se culpada, mas culpava também a Senhorita Wilder, pois, se não tivesse sido tão injusta com Carrie, Laura não se teria metido naquela encrenca.
De tarde, Mary veio visitá-la. Freqüentemente, domingo à tarde, elas se visitavam e trabalhavam juntas. Sentaram-se no quarto da frente, ensolarado e agradável.
Laura estava fazendo um capuz de lã branca para mandar de presente no Natal para Mary enquanto sua colega estava fazendo uma gravata para o pai. Mamãe sentara-se na cadeira de balanço, tricotando ou lendo trechos do jornal de sua igreja, "O Progresso". Grace estava brincando ali perto e Carrie estava cosendo uma colcha de retalhos.
Eram tardes muito agradáveis. O sol de inverno entrava pela janela. O quarto estava agradàvelmente aquecido a carvão. Kitty, agora adulta, esticava-se, miando preguiçosamente ao sol ou no tapete de corda, ou se esfregava de encontro à porta, pedindo para sair para ir vigiar os cachorros.
Kitty se tinha tornado famosa. Era uma gata bonita, muito branca, esbelta de corpo e com uma longa cauda, que todos desejavam acarinhar. Mas, era uma gata que pertencia a uma só
família. Só as pessoas da família podiam tocá-la. Quando outra pessoa se abaixava para acariciar seu dorso, jogava-se contra seu rosto, para arranhar. Em geral, alguém gritava "Não toque nessa gata!", em tempo de salvar o estranho.
Gostava de sentar-se no degrau da soleira e ficar espiando a cidade. Meninos, e até homens feitos, às vezes traziam um cachorro novo para gozar o espetáculo. Kitty sentava-se plàcidamente, enquanto o cachorro rosnava e latia, mas estava sempre pronta. Quando o cachorro atacava, dava um pulo no ar, soltava um miado de fazer parar o coração e caía, com todas as garras, nas costas dele. O cachorro não queria saber de mais nada. Os dois seguiam em linha reta, Kitty montada silenciosamente e o cachorro rosnando. Quando Kitty achava que já estava bastante longe de casa, saltava, mas o cachorro continuava em frente. Kitty então, voltava para casa, com sua cauda orgulhosamente em pé. Só um cachorro novo podia ser lançado contra Kitty.
Nada podia ser mais agradável para Mary do que essas tardes de sábado, quando a amizade de Mary se juntava à intimidade do lar e Kitty fornecia muitos movimentos de diversão. Mas agora, Laura não podia nem ter esse prazer. Sentada, tinha medo de que os meninos recomeçassem a cantar aqueles versos e ficava com uma terrível dor de estômago.
"Devia contar tudo para Mamãe e Papai", pensava ela. Ainda estava furiosa com a Senhorita Wilder. Ela não tinha intenção de causar-lhe dano quando escreveu os versos, tinha escrito no recreio e não na sala de aula. Mas seria muito difícil explicar. Talvez, como dissera Mamãe, tudo se arrumaria. Quanto menos falasse, melhor. Quem sabe, porém, naquele instante talvez alguém estivesse contando a Papai.
Mary Power também estava preocupada. Ambas cometeram erros e tiveram de desmanchar pontos. Nunca tinham feito tão pouca coisa numa tarde de sábado. Não tinham vontade que chegasse segunda-feira de manhã.
Naquela segunda-feira foi pior ainda. Nem se fingiu que se estava estudando. Os meninos assobiavam e miavam, lutavam nos corredores. Todas as meninas menores, com exceção de Carrie, estavam conversando e dando risinhos e passando de um banco para o outro. Inutilmente, a Senhorita Wilder pedia "Quietos, por favor! Quietos, por favor!'
Alguém bateu à porta. Laura e Ida o ouviram, porque estavam sentadas mais perto da porta. Uma olhou para a outra e, quando bateram novamente, Ida levantou a mão, mas a Senhorita Wilder não lhe deu a mínima atenção.
De repente, uma pancada forte soou na porta de entrada. Todos ouviram dessa vez. A porta foi aberta e o barulho desapareceu inteiramente. A sala parecia morta quando Papai entrou, seguido de dois outros homens que Laura não conhecia...
— Bom dia, Senhorita Wilder, disse Papai. A Junta Escolar resolveu que era tempo de fazer uma visita à escola.
— Já era mais que tempo, retrucou a Senhorita Wilder, enrubescendo, mas logo empalidecendo. Bom dia, disse ela, dirigindo-se aos dois outros homens e fazendo com que eles viessem juntamente com Papai, para a frente da sala, de onde a ficaram a contemplar.
Todos os alunos estavam quietos e o coração de Laura batia forte.
— Ouvimos dizer que a Senhorita estava encontrando alguma dificuldade em manter a disciplina, disse o homem alto e em tom solene, embora gentil.
— Sim, e estou satisfeita por ter uma oportunidade para expor-lhes, meus senhores, a verdade sobre o caso. É Laura Ingalls a culpada de tudo nesta escola. Ela pensa que pode dirigir a escola, porque seu Pai faz parte da Junta Escolar. Sim, senhor Ingalls, esta é a verdade! Ela se jacta de poder dirigir a escola. Ela pensou que eu não sabia disto, mas eu soube!
Ela deu um olhar de triunfo na direção de Laura que se sentou estupefata. Nunca imaginara que a Senhorita Wilder pudesse contar uma mentira.
— Estou muito triste por ouvir isto, Senhorita Wilder. Estou certo de que Laura não tinha a intenção de lhe criar dificuldades.
Laura levantou a mão, mas Papai meneou a cabeça de leve.
— Ela encoraja os meninos a serem travessos, também. Esta é a única dificuldade com eles, declarou a Senhorita Wilder. Laura Ingalls os incita em toda a espécie de desordens e desobediências.
Papai olhou para Charley, com seus olhos maliciosos, e disse:
— Rapazinho, ouvi dizer que você foi castigado por ter sentado em cima de um alfinete.
— Oh, não, senhor! respondeu Charley, que parecia a própria inocência. Não fui punido por me ter sentado em um alfinete, mas sim por ter tirado ele de mim.
O mais alegre membro da Junta teve de disfarçar o riso num acesso de tosse. Até o bigode do homem solene se mexeu. A Senhorita Wilder ficou vermelha de cólera. Só Papai estava perfeitamente sério. Ninguém mais teve vontade de sorrir.
Lenta e solenemente, Papai disse:
— Senhorita Wilder, queremos que saiba que a Junta Escolar está inteiramente a seu lado no sentido de manter a disciplina nesta escola.
Olhando para os alunos, continuou:
— Vocês, alunos, têm de obedecer à Senhorita Wilder, comportar-se bem e aprender suas lições. Queremos uma escola e vamos tê-la.
Quando Papai falava assim, era para valer e as coisas aconteciam como ele dizia.
A sala estava quieta e quieta continuou depois que os membros da Junta se despediram da Senhorita Wilder. Não houve empurrões, nem conversas, Quietos, todos estudaram suas lições, e depois, turma após turma, todos leram.
Em casa, Laura também estava quieta, procurando adivinhar o que Papai lhe iria dizer. Não lhe cabia falar do que tinha acontecido, até que ele o fizesse. Ele não disse nada ate que os pratos da ceia tivessem sido lavados e que todos estivessem sentados e acomodados para o serão, em torno do lampião.
Só então, dobrando o jornal, olhou para Laura e disse lentamente:
— É tempo de você me contar o que foi que você disse que deu a impressão à Senhorita Wilder de que você pensava que poderia dirigir a escola, porque eu sou membro da Junta Escolar.
— Eu nunca disse isso e nunca pensei assim, Papai.
— Eu sei que não, mas alguma coisa lhe deu essa idéia. Pense no que possa ter sido.
Laura procurava pensar. Não estava preparada para essa pergunta, pois ela tinha-se estado defendendo mentalmente, dizendo que a Senhorita Wilder tinha contado uma mentira. Não tinha pensado na razão pela qual ela a tinha contado.
— Você falou com alguém a respeito de eu ser membro da Junta?
Nellie Oleson tinha falado muitas vezes sobre isto, mas tudo quanto Laura queria é que ela nunca tivesse falado. Lembrou-se então da briga, quando Nellie quase a esbofeteara.
— Nellie Oleson me disse que a Senhorita Wilder tinha dito que o senhor não tinha influência na escola, embora fosse membro da Junta. E eu disse...
Tinha ficado tão irritada que agora era difícil recordar precisamente o que dissera,
— Eu disse que o senhor tinha tanto a dizer quanto qualquer outra pessoa. E acrescentei que era uma pena que o pai dela não tivesse uma posição na cidade. Talvez se eles não fossem apenas gente da roça, o pai dela pudesse ser membro da Junta.
— Oh, Laura, disse Mamãe tristemente. Isto a fez ficar furiosa.
— Era o que eu queria. Queria fazê-la ficar furiosa. Quando nós vivíamos no Riacho das Ameixeiras, ela estava sempre troçando de mim e de Mary porque nós éramos da roça. Agora, ela pode saber por conta própria se é bom.
— Laura, Laura, como é que você pode ser tão rancorosa? Foi há tanto tempo.
— Ela foi malcriada com a senhora e má para Jack, respondeu Laura, com os olhos marejados de lágrimas.
— Não pense mais nisso, disse Papai. Jack era um bom cachorro e foi para onde será recompensado. Assim, Nellie torceu o que você disse, repetiu à Senhorita Wilder e isto causou todas as dificuldades.
E, retomando o jornal:
— Talvez você tenha aprendido uma lição digna de nota. Lembre-se sempre disso: Um cão que encontrar um osso carregará o osso.
Por alguns instantes houve silêncio, e Carrie recomeçou a estudar sua lição de ortografia.
— Laura, se você me trouxer seu álbum, disse Mamãe, eu gostarei de escrever alguma coisa nele.
Laura foi buscar o álbum, Mamãe sentou-se à escrivaninha e escreveu com sua pena de cabo de madrepérola. Secou cuidadosamente a página e devolveu o álbum a Laura.
Na página macia e cor de creme, Laura leu estas palavras escritas com a letra fina de sua Mãe:
Se quiseres trilhar os caminhos da sabedoria,
Observa cuidadosamente cinco coisas:
Com quem falas, De quem falas.
Como, quando e onde.
Sua mãe que muito a estima
Os cartões
Depois de tantos preparativos para o inverno, parecia que não haveria inverno. Os dias estavam claros e ensolarados. O solo estava livre de neve.
O período escolar de outono terminou e a Senhorita Wilder voltou para Minnesota. O novo professor, Sr. Clewett, era calmo, firme e disciplinador. Não se ouvia um barulhinho agora na aula, exceto as vozes baixas dos que estavam lendo, e nas fileiras de carteiras todos estudavam diligentemente.
Todos os rapazes estavam chegando, lá estava Cap Garland, com rosto queimado, seu cabelo muito louro e os olhos azuis, quase brancos. Seu sorriso ainda era rápido como o relâmpago e quente como o sol. Todos se lembravam de que ele tinha feito a terrível viagem com Almanzo Wilder, no inverno passado, para ir buscar o trigo que os tinha salvado da fome. Ben Woodworth, Fred Gilbert, cujo pai tinha trazido a última correspondência depois que os trens tinham parado de circular, e Arthur Johnson, o irmão de Minnie, todos tinham voltado à escola.
Ainda não havia neve. No recreio e ao meio-dia, os rapazes jogavam beisebol e as mocinhas já não brincavam ao ar livre.
Nellie fazia seu crochê. Ida, Minnie e Mary Power estavam na janela vendo o jogo. Às vezes, Laura se juntava a elas, mas em geral ficava na carteira estudando. Tinha urgência, quase medo de não passar nos exames e não conseguir seu certificado de professora quando tivesse dezesseis anos. Já tinha quase quinze.
— Venha, Laura, venha ver esse jogo, chamou Ida, um dia. Você têm um ano inteiro para estudar antes de precisar saber tanto.
Laura fechou o livro. Sentia-se feliz porque as meninas gostavam dela. Nellie balançou a cabeça desdenhosamente:
— Fico bem satisfeita de não ter de ser professora. Meus parentes podem viver sem que eu tenha de trabalhar.
Com esforço, Laura manteve a voz baixa e respondeu suavemente:
— Por certo você não precisa, Nellie, mas, veja, não somos parentes pobres ajudados por nossa gente do Leste.
Nellie ficou tão zangada que chegou a gaguejar quando tentou responder e Mary Power a interrompeu friamente.
— Se Laura quer ser professora, ninguém tem nada com isso. Ela é inteligente e será uma boa professora.
— Sim, disse Ida. Ela está muito na frente de... Parou, porque a porta se abrira e Cap Garland entrou. Tinha vindo diretamente da cidade e trazia na mão um pequeno saco de papel listrado.
— Alô, meninas, disse, olhando para Mary Power, e sorrindo enquanto lhe estendia o saco, querem caramelos?
Nellie foi rápida!
— Ora, Cappie! exclamou, agarrando o saco, como é que você adivinhou que eu gostava tanto de caramelos? Os melhores da cidade, ainda por cima! Ela sorria bem junto a seu rosto, com um olhar que Laura nunca lhe tinha visto antes. Cap parecia surpreendido e intimidado.
— Querem um pouco?
Nellie ofereceu rapidamente o saco a cada uma delas e tirou um para si mesma, guardando o saco no bolso da saia.
Cap olhava, suplicante, para Mary Power, mas esta abanou a cabeça e olhou para o outro lado. Inseguro, ele disse, antes de voltar para o jogo:
— Bem, alegro-me de que você tenha gostado.
No dia seguinte, ele trouxe caramelos de novo e, do mesmo modo, tentou dá-los a Mary Power, mas Nellie foi mais rápida:
— Oh, Cappie, você é tão gentil de me trazer mais caramelos, disse ela toda sorridente.
Desta vez, conservou-se um pouco afastada das outras, só tinha olhos para Cap.
— Não devo ser gulosa e comê-los todos sozinha. Tire um, por favor, Cappie.
Ele tirou um e, rapidamente, ela comeu todos os outros, sempre murmurando que ele era muito gentil, alto e forte.
Cap parecia desamparado, mas lisonjeado. Nunca seria capaz de lidar com Nellie, Laura sabia disto. Mary Power era muito orgulhosa para entrar na competição. Irritadamente, Laura pensou: Será que uma menina como Nellie conseguirá sempre o que ela quer? E não era só caramelos.
Até a hora em que o Sr. Clewett tocou a sineta, Nellie conservou Cap a seu lado, obrigando-o a ouvi-la. As outras fingiram que não os ouviam. Laura pediu a Mary Power que escrevesse no seu álbum de autógrafos. Todas as meninas estavam escrevendo umas nos álbuns das outras, menos Nellie, porque ela não tinha.
Mary sentou-se em sua carteira e escreveu cuidadosamente, a tinta, enquanto as demais esperavam que ela acabasse para poderem ler o verso que ela tinha escrito. Sua letra era bonita, bem como o verso que ela escolhera:
A rosa do vale pode murchar,
Podem os prazeres da juventude passar,
A amizade, porém, para sempre há de florescer,
Enquanto todas as outras flores hão de morrer.
O álbum de Laura tinha muitas coisas bonitas agora. Lá estavam os versos que Mamãe escrevera e na página seguinte os de Ida.
No dourado escrínio da lembrança,
Guarda uma pérola para mim.
Sua amiga que muito a estima
Ida B. Wright
De vez em quando, Cap olhava para elas, como a pedir auxílio, por cima do ombro de Nellie, mas elas não prestavam atenção nem a ele nem a Nellie. Minnie Johnson pediu a Laura que escrevesse em seu álbum e Laura disse que sim, mas se ela escrevesse no seu também.
— Farei o melhor possível, mas eu não posso escrever com uma caligrafia tão bonita quanto a de Mary. A dela parece impresso, disse Minnie, sentando-se e começando a escrever:
Quando o nome que aqui escrevo
Houver empalidecido nesta página
E as folhas de teu álbum, com o tempo
Houverem amarelecido,
Pensa ainda em mim com amizade
E não te esqueças
De que, onde quer que esteja,
Eu me lembrarei de ti.
Minnie Johnson.
Tocou a sineta e todas foram para seus lugares. À tarde, no recreio, Nellie fez pouco dos álbuns de autógrafos, dizendo:
— Já estão antiquados. Eu tinha um antigamente, mas agora eu não guardaria uma velharia dessas.
Ninguém acreditou nela, que continuou falando:
— No Leste, agora, o que está na moda são cartões com nomes.
— Que são cartões com nomes? perguntou Ida. Nellie fingiu surpresa, depois sorriu e disse:
— Bem, vocês não podem mesmo saber. Amanhã trarei os meus para a escola e lhes mostrarei, mas não darei a nenhuma, porque vocês não têm para me dar e o certo é trocar os cartões. Atualmente, todo o mundo está trocando cartões no Leste:
Elas não acreditavam. Álbuns de autógrafos não podiam estar fora de moda. Os delas eram novos em folha. Mamãe tinha trazido o de Laura, de Vinton, no último mês de setembro. No caminho de casa, Minnie Johnson disse que ela estava era contando prosa:
— Ela está mas é contando vantagem. Não acredito que ela tenha cartões com nome. Nem acredito que isto exista.
Mas, no dia seguinte, tinham tanta pressa de falar com Laura que a esperaram sair de casa. Mary Power tinha descoberto alguma coisa a respeito de cartões com nome. Jack Hopp, que imprimia o jornal, tinha-os em sua loja perto do banco. Havia cartões coloridos, com desenhos de flores e pássaros, e o Sr. Hopp imprimiria o nome delas.
— Não acredito que Nellie tenha cartões, insistiu Minnie. Ela os descobriu antes de nós, está pensando em conseguir alguns e fingir que vieram do Leste.
— Quanto é que custam? perguntou Laura.
— Depende dos desenhos e da espécie de impressão, respondeu Mary. Mandei fazer doze em tipo simples, por vinte e cinco centavos.
Laura não disse mais nada. O pai de Mary Power era alfaiate e podia trabalhar o ano inteiro, mas agora não havia nenhum trabalho de carpintaria na cidade, e não haveria até a próxima primavera. Papai tinha de alimentar cinco bocas em casa e conservar Mary no colégio. Era uma loucura pensar em gastar vinte e cinco centavos só por prazer.
Nellie não tinha trazido seus cartões naquela manhã. Minníe lhe perguntou, assim que se reuniram em torno da lareira, onde estava aquecendo as mãos depois da longa e fresca caminhada até a escola.
— Meu Deus, não é que os esqueci! Acho que vou ter de amarrar um barbante no dedo para me lembrar.
O olhar de Minnie para Mary Power e Laura significava: Eu não disse a vocês?
Ao meio-dia, Cap trouxe mais caramelos e, como de hábito, Nellie é quem estava mais perto da porta. Ela começou a arrulhar:
— Ooooh, Cappie! e quando ia pegar o saco de caramelos, Laura chegou perto e o tirou de sua mão, para sua inteira surpresa, e o entregou a Mary Power.
Todo mundo estava espantado, até Laura. O rosto de Cap iluminou-se com um sorriso, ele olhou agradecidamente para Laura e depois para Mary.
— Muito obrigada, disse Mary. Nós apreciaremos muito os caramelos.
Ela os ofereceu às outras, enquanto ele voltava para o jogo, não sem antes dar mais uma olhadela cheia de satisfação.
— Tire um, Nellie, ofereceu Mary.
— Certamente! e Nellie tirou o maior de todos. Eu gosto dos caramelos de Cap, mas quanto a ele ora! você pode ficar com o mocinho.
Mary Power enrubesceu, mas não disse nada. Laura sentiu seu próprio rosto enrubescer!
— Eu acho que se você pudesse agarrá-lo, bem que o agarrava. Você sabia todo o tempo que ele estava trazendo os caramelos para Mary.
— Meu Deus! Eu faço dele o que quiser. Mas ele não é nada de extraordinário. O amigo dele, sim, é que eu quero, esse jovem Sr. Wilder, de nome esquisito. Vocês vão ver como eu vou passear no carro puxado por aqueles cavalos.
Sim, certamente ela o faria, pensava Laura. Nellie tinha sido tão amiga da Senhorita Wilder que era de espantar que o irmão dela já não a tivesse convidado para um passeio. Quanto a si mesma, Laura sabia que tinha jogado fora as suas chances.
Os cartões de Mary Power ficaram prontos na outra semana e ela os trouxe para a escola. Eram muito bonitos, verde-pálidos, com o desenho de um passarinho balançando-se e cantando num galho dourado. Embaixo, estava impresso em letras pretas o nome Mary Power. Ela deu um para Minnie, um para Ida e um para Laura, embora elas não tivessem para trocar.
No mesmo dia, Nellie trouxe os dela também. Eram amarelo-claros, com um buquê de amores-perfeitos com uma fita com os dizeres "Para lembrança". Seu nome estava impresso em imitação de sua própria caligrafia. Ela trocou um deles com Mary.
No dia seguinte, Minnie disse que iria comprar também. Seu pai lhe tinha dado o dinheiro e ela os encomendaria depois da escola se as outras fossem com ela. Ida não podia ir e explicou, sempre contente:
— Não devo esperdiçar meu tempo. Como sou filha adotiva, tenho de correr para casa para ajudar nos trabalhos domésticos tanto quanto possível. Não posso pedir para comprar cartões. O Sr. Brown é um pastor e essas coisas são vaidade. Por isto, me contentarei olhando os seus, quando você os tiver, Minnie.
— Ela não é um amor? — perguntou Mary depois que Ida tinha ido embora.
Ninguém conseguia não gostar de Ida. Laura queria ser como ela, mas não era. Em segredo, ela queria ter cartões também, quase que tinha inveja de Mary Power e de Minnie.
No escritório do jornal, o Sr. Hopp, com seu avental todo manchado de tinta, espalhou os cartões de amostra no balcão para que elas escolhessem. Cada qual era mais bonito que o outro. Laura não pôde deixar de sentir-se satisfeita — mesquinhamente satisfeita — quando viu os de Nellie, prova de que ela também os tinha comprado ali mesmo.
Eram de diferentes cores, todas muitos suaves, alguns deles tinham as bordas douradas. Havia seis diferentes buquês, um tinha um ninho entre flores, dois tinham pássaros, com a palavra "Amor" escrita em cima.
— Esses são cartões para rapazes, explicou o Sr. Hopp. Só rapazes são bastante audaciosos para dar um cartão com a palavra "Amor".
— Escolham à vontade, meninas. Vou continuar a fazer o jornal.
Voltou para a oficina para por tinta na impressora, estendendo folhas de papel. Já tinha acendido o lampião, antes que Minnie finalmente se decidisse pelo cartão azul-claro. Finalmente, sentindo-se culpadas por terem demorado tanto, correram para suas casas.
Papai estava lavando as mãos na bacia, Mamãe estava pondo a ceia na mesa, quando Laura chegou, ofegante. Tranqüilamente, Mamãe perguntou:
— Onde é que você esteve, Laura?
— Desculpe, Mamãe. Não pensava demorar-me mais do que um minuto, desculpou-se Laura. Ela contou-lhe tudo acerca dos cartões, mas, naturalmente, não disse que tinha vontade de comprar alguns. Papai comentou que Jake estava progredindo, trazendo todas as novidades.
— Quanto é que custam? perguntou Papai e Laura respon-. deu que os mais baratos custavam vinte e cinto centavos a dúzia.
Já estava quase na hora de dormir, e Laura olhava para a parede, pensando na Guerra de 1812, quando Papai dobrou o jornal e chamou-a.
— Que é, Papai?
— Você gostaria de ter esses cartões, não é?
— Eu estava pensando a mesma coisa, Charles, disse Mamãe.
— Bem, sim, bem que gostaria, confessou Laura. Mas não preciso deles.
Os olhos de Papai sorriam brincalhonamente enquanto ele tirava do bolso algumas moedas e separou duas de dez centavos e uma de cinco:
— Acho que você pode comprá-los, Canarinho, aqui está o dinheiro.
Laura hesitou:
— O senhor acha mesmo que poso? Será que nós podemos gastar esse dinheiro?
— Laura! disse Mamãe, como querendo dizer: Você está discutindo o que seu Pai diz?
Toda emocionada, Laura virou-se para o pai:
— Muito obrigada, muito obrigada, Papai! Sua mãe voltou a falar:
— Você é uma boa menina, Laura, e é natural que goste das coisas próprias de sua idade. Antes de ir para a escola amanhã, se você andar depressa, poderá ir encomendar seus cartões.
Sozinha na cama, sem Mary, Laura sentiu-se envergonhada. Ela não era boa de verdade como Papai, Mamãe e Ida. Naquele instante, ela estava felicíssima por causa dos cartões, não só porque eles eram bonitos, mas também para fazer figa a Nellie Oleson e ainda para ter coisas bonitas como Mary Power e Minnie.
Hopp tinha prometido que eles estariam prontos na quarta-feira ao meio-dia, e Laura mal pôde almoçar naquele dia. Mamãe dispensou-a de lavar os pratos e ela correu para o escritório do jornal. Lá estavam eles, rosa pálido, com um buquê de rosas vermelhas e de violetas-do-campo azuis. Seu nome estava impresso em caracteres finos e nítidos: Laura Elizabeth Ingalls.
Quase não teve tempo para admirá-los, pois não podia chegar atrasada à escola. A um quarteirão da Rua Dois, ela corria junto à calçada, quando de repente um brilhante carrinho parou a seu lado.
Laura olhou espantada, vendo os cavalos Morgan. O jovem Wilder tinha descido do carrinho, com o boné numa das mãos. Estendendo a outra, perguntou a Laura.
— Posso levá-la até a escola? Chegaria mais depressa.
Deu-lhe a mão, ajudando-a a subir no carrinho e sentou-se ao lado dela. Laura quase nem podia falar, com a surpresa, a timidez e o prazer de estar de verdade passeando no carro puxado por aqueles lindos cavalos. Eles trotavam alegremente, mas lentamente, e suas pequenas orelhas mexiam de um lado para outro, esperando a ordem de trotarem mais depressa.
— Eu... eu sou Laura Ingalls, disse ela. Era uma bobagem o que tinha dito. Claro que ele devia saber quem era ela.
— Conheço seu pai, e já vi a senhorita aqui pela cidade. Minha irmã falava muito da senhorita.
— Que lindos cavalos! Como se chamam? Ela já sabia, mas tinha de dizer alguma coisa.
— Esta é Lady e o outro, Príncipe, respondeu o rapaz. Laura gostaria de que ele os deixasse correr, tanto quanto podiam. Mas seria indelicado pedi-lo.
Pensou em falar do tempo, mas isto lhe pareceu outra bobagem.
Não conseguiu pensar num bom assunto, e só tinham andado um quarteirão.
— Fui buscar meus cartões, disse ela, quase sem sentir.
— Ah, sim? Os meus são muito simples. Trouxe-os de Minnesota.
Tirou um do bolso e deu-o à menina. Estava guiando muito bem, mantendo as rédeas entre seus dedos enluvados. O cartão era liso e branco. Impresso em tipo gótico estava o nome: Almanzo James Wilder.
— É um nome de origem estrangeira, disse ele.
Laura procurou pensar em alguma coisa inteligente para dizer, mas só conseguiu observar que era um nome raro.
— Deram-me de propósito esse nome. Minha família tem a idéia de que sempre deve haver um Almanzo entre nós, porque, no tempo das Cruzadas, um Wilder participou delas e um árabe salvou sua vida. Seu nome era El Manzor, mas eles o modificaram na Inglaterra, e não acho que tenha melhorado muito.
— É um nome muito interessante, disse Laura sinceramente. Ela não sabia o que fazer com o cartão. Não parecia polido
devolvê-lo, mas talvez ele não quisesse que ela o guardasse. Ela o segurava de maneira que ele o pudesse apanhar, se assim o desejasse. A parelha dobrava a esquina da Rua Dois. Nervosa, Laura pensava, caso ele não quisesse o cartão de volta, se ela deveria dar-lhe um seu. Nellie tinha dito que era elegante trocar cartões de visitas.
Ela pôs o cartão um pouco mais perto dele, de forma que ele o visse bem. Ele continuava a guiar.
— O senhor... quer seu cartão de vota?
— A senhorita pode guardá-lo se quiser, foi a resposta.
— Quer um dos meus? Laura tirou um do embrulho e deu a ele.
Ele o olhou e agradeceu:
— É um bonito cartão, disse, guardando-o no bolso.
Tinham chegado à escola. Ele segurou as rédeas, pulou do carro, tirou o chapéu e ofereceu-lhe a mão para descer. Ela não precisava de ajuda e sua mão mal tocou a dele ao descer.
— Muito obrigada pelo passeio.
— De nada.
Seu cabelo não era tão preto quanto ela pensava. Era castanho escuro e seus olhos eram de um azul tão escuro que não destoavam de seu rosto queimado. Seu ar era de firmeza e inspirava confiança, embora fosse jovial.
— Alô, Wilder! Cap Garland o cumprimentou e ele acenou em resposta, já de partida.
O Senhor Clewett tocava a sineta e os meninos estavam entrando.
Quando Laura se sentou, mal houve tempo para Ida apertar seu braço, delicadamente, e murmurar:
— Ah, eu queria que você visse a cara dela, quando você apareceu no carro!
Mary Power e Minnie estavam radiantes e faziam-lhe sinais da outra fila, mas Nellie estava olhando fixamente para o outro lado.
Uma festa de caridade
Num sábado, à tarde, Mary Power veio correndo ver Laura, as faces rosadas de tão excitada, A Sociedade Beneficente de Senhoras estava organizando uma festa de caridade, nos salões da Sra. Tinkham, no andar de cima da loja de móveis, na noite de sexta-feira.
— Eu irei, se você for, Laura, disse Mary. Oh, será que ela pode, Sra. Ingalls?
Laura não quis perguntar como seria a festa. Embora gostasse muito de Mary, sentia-se sempre em desvantagem em relação a ela. Suas roupas eram muito bonitas, porque seu pai, que era alfaiate, era quem as fazia, e ela trazia seu cabelo elegantemente penteado.
Mamãe disse que Laura podia ir. Ela não sabia, até ali, que tivessem organizado uma Sociedade Beneficente de Senhoras.
Para falar a verdade, Papai e Mamãe tinham ficado muito desapontados porque o Reverendo Alden, do Riacho das Ameixeiras, não era o pastor. Ele queria ser e a Igreja o tinha enviado, mas, quando ele chegou, o Pastor Brown já se havia instalado. O Reverendo Alden tinha sido obrigado a partir como missionário para o Oeste selvagem.
Papai e Mamãe continuavam a interessar-se pela igreja, é claro, e Mamãe trabalharia para a Sociedade Beneficente, mas não era a mesma coisa sem o Reverendo Alden.
Durante toda a semana, Laura e Mary Power esperaram pela festa. Custava dez centavos a entrada e, por isto, Minnie e Ida não sabiam se poderiam ir e Nellie disse, positivamente, que não estava interessada.
Sexta-feira parecia não terminar nunca para Laura e Mary, tão ansiosas estavam para que chegasse a noite. Nesta noite, Laura não tirou seu vestido da escola, mas pôs um longo avental e prendeu o guardanapo debaixo do queixo. Cearam mais cedo e, assim que acabou de lavar os pratos, Laura começou a arrumar-se para a festa.
Mamãe ajudou-a a escovar cuidadosamente o vestido. Era de lã marrom, em estilo "princesa". A gola era alta e engomada, bem perto do queixo de Laura, e a saia caía sobre botinas de atacar. Era um vestido muito bonito, com pintinhas vermelhas nos punhos e na gola, com os botões da blusa de chifre marrom, com um castelinho no meio de cada um deles.
Olhando-se no espelho do quarto da frente, onde estava o lampião, Laura escovou e penteou o cabelo, pondo-o para cima e para baixo, sem conseguir arrumá-lo a seu gosto.
— Oh, Mamãe, como eu gostaria que a senhora me deixasse usar o penteado de Mary Power! É tão elegante!
— Seu cabelo está muito bonito assim. Mary Power é uma boa menina, mas eu acho que seu novo penteado pode muito bem ser chamado de "loucura".
— Seu cabelo está muito bonito, consolou-a Carrie. É de um castanho tão bonito, tão comprido e grosso, e brilha na luz.
Laura ainda se sentia triste com sua imagem no espelho. Continuava a pensar nos cabelinhos que sempre cresciam sobre sua testa. Não apareciam quando os escovava para trás, mas ela os penteou todos para a frente e para trás, de forma que fizeram uma franjinha.
— Oh, Mamãe, por favor, eu não pentearei exatamente como Mary, mas deixe-me cortar um pouquinho só, para poder enrolar sobre a testa.
— Está bem, Mamãe consentiu.
Laura apanhou a tesoura na cesta de costura e, de pé diante do espelho, cortou um bocado de cabelo. Esquentou o lápis da lousa e, segurando-o pela ponta que estava fria, enrolou os cachos um a um.
Penteou o resto bem para trás, fez a trança, que enrolou em diversas voltas atrás da cabeça e prendeu-a firmemente.
— Dê uma volta para que eu veja, disse Mamãe.
— A senhora gosta, Mamãe?
— Está muito bonito, mas eu gostava mais antes de você cortar.
— Vire-se para cá e deixe-me ver, disse Papai. Olhou-a longamente e seus olhos se agradaram do que viram.
— Bem, se você tem de usar "esse penteado maluco", está muito bem feito, disse Papai, e continuou a ler seu jornal.
— Eu acho muito bonito, disse Carrie. Você está muito alinhada.
Laura vestiu o casaco marrom e pôs cuidadosamente o capuz marrom, debruado de azul. As bainhas da fazenda tinham sutaches cor-de-rosa e o capuz dava várias voltas como uma echarpe.
Laura olhou-se uma vez mais no espelho. Seu rosto estava rosado de excitação e os rolos de cabelo apareciam elegantemente debaixo do debrum azul do capuz, que fazia seus olhos parecerem mais azuis ainda.
Mamãe deu-lhe dez centavos e disse:
— Divirta-se, Laura. Espero que você não se esqueça de sua boa educação.
Papai perguntou:
— Não é melhor eu levá-la até a porta, Carolina?
— Ainda é cedo, basta atravessar a rua e ela vai com Mary Power, respondeu Mamãe.
Laura saiu para a noite escura e estrelada. Seu coração batia por antecipação. Sua respiração deixava um rastro branco no ar frio. A luz dos lampiões fazia manchas movediças na calçada, na frente da loja de ferragens e da farmácia, e no andar de cima da loja de móveis as janelas brilhavam de luz. Mary Power saiu da alfaiataria e subiram juntas a escada entre ela e a loja de móveis.
Mary bateu à porta e a Sra. Tinkham a abriu. Era uma mulher franzina, vestida de preto, com renda branca nos punhos e na gola. Disse boa noite, recolhendo os dez centavos de Mary e de Laura. Disse-lhes:
— Acompanhem-me e deixem seus casacos aqui.
Durante toda a semana, Laura mal tinha podido esperar para ver o que era uma festa de caridade. Agora, tinha chegado a hora de saber. Algumas pessoas estavam sentadas no salão iluminado. Ela sentia-se embaraçada ao passar por elas, seguindo a Sra. Tinkham até um pequeno quarto de dormir. Ela e Mary puseram seus casacos e capuzes numa cama. Depois, modestamente, sentaram-se no salão.
O Sr. e a Sra. Johnson estavam sentados ao lado da janela. Havia uma cortina de cassa suíça e, em frente, uma mesa de centro, com um grande lampião, com manga de porcelana com rosas vermelhas. Ao lado, estava pousado um grosso álbum de fotografias.
O chão era coberto por um tapete de flores brilhantes. Um aquecedor alto, com postigos feitos de cola de peixe, erguia-se bem no meio do salão. As cadeiras em torno das paredes eram todas envernizadas. O Sr. e a Sra. Woodsworth estavam sentados num sofá de madeira preta brilhante, forrado de preto também.
Só as paredes de madeira eram iguais às de sua casa, mas estavam cobertas de retratos de pessoas e de pinturas de lugares que Laura não conhecia. Alguns tinham molduras, largas, pesadas, douradas. Via-se que o Sr. Tinkham era o dono da loja de móveis.
A irmã mais velha de Cap Garland, Florence, tinha vindo, com a mãe deles. A Sra. Beardsley também, com seu marido, o farmacêutico. Todos se sentavam em silêncio. Mary e Laura não conversavam também. Não sabiam o que dizer.
Alguém bateu à porta. A Sra. Tinkham apressou-se em abri-la e entraram o Reverendo e Sra. Brown. Sua voz arrastada encheu o salão, quando cumprimentou a todos e ele ficou conversando com a dona da casa sobre o lar que tinham deixado em Massachussetts.
— Não se parecia com isto aqui, disse ele. Mas, aqui somos todos desconhecidos.
O Reverendo fascinava Laura, mas ela não gostava dele. Papai tinha dito que ele se orgulhava de ser primo de John Brown, de Ossawatomie, que tinha matado muitos índios no Kansas e tinha conseguido começar a Guerra Civil. O Reverendo Brown parecia-se muito com o retrato de John Brown que havia no livro de História de Laura.
Seu rosto era grande e ossudo. Seus olhos eram encovados, debaixo de sobrancelhas brancas e revoltas e brilhavam orgulhosamente, mesmo quando ele estava sorrindo. Sua sobrecasaca flutuava em seu corpo enorme, as mãos eram grandes, rudes, com grandes nós nos dedos. Não era muito limpo e, em volta da boca, havia manchas amarelas em sua barba branca, como se o fumo tivesse escorrido por ali.
Falava muito e, depois de sua chegada, os outros falaram um pouco, menos Mary e Laura. Procuravam ficar sentadas polidamente, mas de vez em quando se mexiam. Demorou muito até que a Sra. Tinkham trouxesse alguns pratos da cozinha. Em cada um deles havia um pedaço de bolo com cauda de suspiro.
Depois que comeu o seu, Laura murmurou para Mary:
— Vamos para casa.
Mary concordou, elas puseram os pratos em uma mesinha perto delas, vestiram os casacos e os capuzes, despediram-se da Sra. Tinkham.
Na rua, Laura respirou fundo:
— Uf! Se isto é que é uma festa de caridade, não gosto delas.
— Nem eu, disse Mary, Preferia não ter ido e guardado os dez centavos.
Papai e Mamãe se olharam surpreendidos quando Laura entrou e Carrie perguntou, ansiosa:
— Você se divertiu, Laura?
— Bem, não, não me diverti, confessou Laura. A senhora é que devia ter ido, Mamãe. Mary e eu éramos as únicas meninas. Não havia ninguém com quem conversarmos.
— Bem, esta é a primeira festa. Na certa, quando as pessoas se conhecerem melhor, as festas serão mais interessantes. Li em "O Progresso" que as festas de caridade nas igrejas são muito boas.
Atividades literárias
O Natal estava chegando, mas ainda não havia neve. Não tinha havido uma só borrasca. De manhã, o chão estava branco de geada, que se dissolvia com a chegada do sol. Só junto da calçada e à sombra das casas é que a geada permanecia, quando Laura e Carrie iam para a escola. O vento cortava seus narizes e gelava suas mãos, e elas não tentavam falar por fora de suas echarpes.
O vento tinha um som triste. O sol era fraco e não havia pássaros no céu. Na planície sem fim, as ervas tinham morrido. O edifício da escola parecia velho, cinzento e triste.
Parecia que o inverno jamais começaria e nunca terminaria. Nada acontecia, senão ir e vir da escola, deveres na escola e deveres em casa. O dia seguinte seria exatamente igual ao de hoje e Laura pensava que toda sua vida se resumiria em estudar e ser professora. Até o Natal não seria um Natal de verdade sem Mary.
O livro de poemas, pensava Laura, devia continuar escondido na gaveta do camiseiro de Mamãe. Sempre que ela passava pelo camiseiro, lembrava-se do livro e do poema que não acabara de ler.
"Coragem!" disse ele, apontando para a terra,
"Esta onda que sobe nos levará em breve até a praia".
Tinha pensado tantas vezes a mesma coisa que já se sentia enjoada e nem mesmo esperar pelo livro no Natal lhe interessava mais.
Chegou a noite de sexta-feira, como sempre. Como sempre, Laura e Carrie lavaram os pratos. Como sempre, trouxeram seus livros para a mesa iluminada. Papai estava em sua cadeira, lendo o jornal. Mamãe balançava-se suavemente, tricotando rapidamente como fazia sempre. Como sempre, Laura abriu o livro de História.
De repente, não conseguiu agüentar mais. Atirou a cadeira para trás, fechou o livro violentamente e jogou-o sobre a mesa. Papai e Mamãe levaram um susto, olhando para ela muito surpreendidos.
— Não importa! gritou Laura. Não quero estudar! Não quero aprender! Não quero ser professora, nunca!
Mamãe olhou-a tão severamente quanto lhe era possível:
— Laura, sei que você não ia blasfemar, mas perder o controle e atirar as coisas é tão feio quanto blasfemar. Por favor acabemos com isto.
Laura não respondeu.
— Que se passa, Laura? perguntou Papai. Por que é que você não quer estudar, nem ser professora?
— Não sei, disse Laura, desesperada. Estou tão cansada de tudo. Eu queria... eu queria que acontecesse alguma coisa. Queria ir para o Oeste. Acho que quero brincar, mas já sou muito grande, disse quase soluçando, o que ela nunca fazia.
— Que é isto, Laura! exclamou Mamãe.
— Não se importe, disse Papai, confortadoramente. Você tem estudado demais, é isto.
— Sim, pode parar de estudar por hoje, disse Mamãe. Nos últimos números do "Companheiro da Juventude" há algumas histórias que ainda não lemos. Você poderia ler uma para nós, não gostaria, Laura?
— Sim, Mamãe, respondeu Laura, desalentada. Mesmo ler uma história não era o que ela queria. Ela não sabia o que queria, mas sabia que nunca o conseguiria, fosse o que fosse. Apanhou as revistas e aproximou de novo sua cadeira da mesa.
— Escolha você a história, Carrie.
Pacientemente, leu em voz alta, enquanto Carrie e Grace ouviam, com os olhos arregalados, e Mamãe se balançava, tricotando. Papai tinha saído para conversar com alguns amigos, em torno do fogão da loja de ferragens.
De repente, a porta se abriu e Papai entrou afobado, dizendo:
— Ponham seus capuzes, Carolina, e vocês também, meninas! Há uma reunião na escola!
— Mas, reunião sobre quê...?
— Todo o mundo vai! Vamos fundar uma sociedade literária.
Mamãe deixou de lado o tricô:
— Laura e Carrie, apanhem seus casacos, enquanto eu arrumo Grace.
Rapidamente, aprontaram-se para seguir a lanterna de Papai. Mamãe apagou o lampião, mas Papai o apanhou, dizendo:
— É melhor levá-lo, pois vão precisar de luz na escola.
Outras lanternas surgiam ao longo da Rua Principal e também da Rua Dois. Papai chamou o Sr. Clewett, que tinha trazido a chave da escola. As carteiras pareciam esquisitas à luz vacilante das lanternas. Outras pessoas também tinham trazido lampiões. O Sr. Clewett acendeu um bem grande em sua mesa e Gerald Fuller pendurou outro na parede, com um refletor fino. Ele tinha fechado a loja para vir à reunião. Todos os comerciantes tinham fechado suas lojas para vir também. Quase toda a gente tinha vindo. O lampião de Papai e as lanternas faziam com que a sala estivesse bem iluminada.
As carteiras estavam todas ocupadas e havia muita gente de pé, quando o Sr. Clewett pediu silêncio, anunciando que o objetivo da reunião era organizar uma sociedade literária.
— A primeira coisa a fazer é uma lista dos membros. Depois, elegemos o presidente provisório, que dirigirá a reunião e organizará a eleição dos diretores permanentes.
Todos perderam um pouco do entusiasmo, mas era uma questão interessante eleger o Presidente. Então, Papai levantou-se e disse:
— Sr. Clewett, meus concidadãos, viemos aqui para fazer alguma coisa que nos animasse um pouco. Não precisamos organizar coisa nenhuma. Pelo que tenho visto, a dificuldade em organizar alguma coisa é que logo as pessoas começam a dar mais atenção à organização do que aos propósitos dela. Acho que todos estamos de acordo sobre o que queremos. Se começarmos a organizar e a eleger, é bem capaz de não concordarmos quanto a quem deva ser eleito. Por isto, sugiro que prossigamos e façamos o que queremos, sem diretores. Temos o professor Clewett para nos dirigir. Ele organizará um programa em cada reunião para a reunião seguinte. Quem tiver uma boa idéia, que a apresente, e quem for chamado a fazer alguma coisa deverá fazê-la da melhor maneira possível. Assim, todos terão uma oportunidade de divertir-se.
— É isto mesmo, Ingalls! apoiou o Sr. Clancy e, quando Papai se sentou, algumas pessoas começaram a bater palmas. O Sr. Clewett disse:
— Todos que forem a favor, digam Sim!
Em resposta, veio um coro de sim!
Aí, ninguém sabia o que fazer, e o Sr. Clewett acrescentou que não tinham programa para aquela reunião.
— Ora, não queremos ir para casa agora, disse alguém.
O barbeiro sugeriu que se cantasse, alguém perguntou ao professor Clewett se ele tinha alunos que soubessem recitar, um outro propôs um concurso de ortografia. A essa proposta aderiram diversos participantes da reunião gritando:
— Muito bem! Boa idéia! Vamos fazer um concurso de ortografia!
O professor Clewett indicou Papai e Gerald Fuller para chefes de grupo. Houve muitas brincadeiras quando eles tomaram seus lugares em cantos opostos da sala e começaram a escolher os membros de cada grupo.
Laura esperava ansiosamente, sentada. Os adultos foram escolhidos primeiro, é claro. Um a um se levantaram, formando duas filas e, à medida que estas cresciam, Laura temia que Gerald Fuller a chamasse antes de Papai. Por fim, veio a pausa mais angustiante. Era a vez de Papai escolher e, apesar de ele ter feito uma brincadeira de que todos riram, Laura percebeu que ele hesitava. Finalmente ele se decidiu e chamou:
— Laura Ingalls!
Ela apressou-se a tomar seu lugar na fila. Mamãe já estava lá, bem acima dela. Gerald Fuller chamou:
— Foster!
Era o último dos adultos e ficou em frente a Laura. Talvez Papai o escolhesse, porque ele era adulto, mas tinha preferido Laura. Seguramente, pensou Laura, o Sr. Foster não devia ser muito forte em ortografia. Ele era um dos fazendeiros que guiavam o gado e, no último inverno, ele tinha estupidamente desmontado de Lady, um dos cavalos de Almanzo Wilder, e deixado que ele fugisse enquanto Foster atirava contra um rebanho de antílopes, que estava fora do alcance de sua arma.
Apressadamente, agora, todos os alunos da escola foram escolhidos, mesmo os menores de todos. Os dois grupos iam da mesa do professor até as paredes da sala e davam voltas. O professor Clewett abriu o livro de exercícios de ortografia.
Começou com as palavras mais fáceis: jibóia, xícara, pajem, jeito, herói(1) — e pilhou o Sr. Barclay! Nervoso, ele soletrou herói assim: H — e — r — o — e. Colhido de surpresa pelo riso que se seguiu, foi sentar-se, rindo também de ter sido o primeiro a cair.
(1) Aqui adaptamos livremente, mais do que traduzimos, a fim de poder reproduzir o interesse do jogo. (Nota do tradutor).
As palavras foram-se complicando. Outros soletradores foram caindo. Primeiro, foi o lado de Fuller que ficou menor, depois o de Papai, depois o de Fuller outra vez. Todos se aqueciam de entusiasmo e riso. Laura estava no seu elemento, pois adorava ortografia. Com os calcanhares fincados numa racha do chão e as mãos atrás das costas, ia soletrando todas as palavras que lhe cabiam. Caíram quatro do grupo rival e três do de Papai, e chegou a vez de Laura. Respirou fundo e soletrou rapidamente e com segurança a palavra "vivissecção"!
Pouco a pouco, quase todas as carteiras estavam ocupadas por pessoas que tinham perdido no jogo. Agora, havia seis no grupo de Fuller e cinco no de Papai: ele mesmo, Mamãe, Florence Garland, Ben Woodworth e Laura.
"Psitacídeo", anunciou o professor Clewett. Caiu um do outro grupo, fazendo com que as duas filas ficassem iguais. Com sua voz suave, Mamãe soletrou a palavra corretamente.
"Aracnídeo", foi a palavra anunciada. Gerald Fuller começou A-r-a-q-, parou para observar o Professor, tentou emendar, mas acabou por sentar-se, dizendo. — Agora perdi.
Florence Garland começou por sua vez: A-r-a-c-n-í-d-i-o. E tinha sido professora!
O seguinte no grupo de Fuller também errou e Ben desistiu, sem mesmo sequer tentar. Agora era a vez de Foster, que, sob aplausos gerais, soletrou corretamente. Alguém gritou: Boa, Foster! Ele tirou o casaco pesado que vestia, ficando só com a camisa de xadrez, sorrindo timidamente. Seus olhos, porém, brilhavam. Ninguém teria imaginado que ele era tão forte em ortografia.
Cada vez mais difíceis, vinham as palavras mais complicadas, das últimas páginas do livro. No grupo de Fuller, caíram todos, menos Foster. Mamãe caiu. Ficaram só Papai e Laura, para vencer o Sr. Foster.
Nenhum dos três perdia uma palavra. Num silêncio opresso, Papai soletrava, o Sr. Foster soletrava, depois Laura, depois Foster outra vez. Parecia que eles não conseguiriam vencê-lo.
"Sincinesia", anunciou o Professor. Era a vez de Laura.
"Sincinesia", repetiu a menina. Para surpresa sua, estava confusa. Fechou os olhos. Quase podia ver a palavra na última página do livro, mas não conseguia pensar. Pareceu-lhe que ficaram muito tempo num silêncio terrível, cheio de olhos que a observavam.
"Sincinesia", disse mais uma vez, e começou a soletrar rapidamente: S-i-n-s-... O Professor Clewett sacudiu a cabeça negativamente.
Laura sentou-se, trêmula. Agora só restava Papai.
O Senhor Foster pigarreou e começou: S-i-n-c-i-n-e-... Laura não podia respirar, nem ninguém... houve um longo silêncio, todos esperavam... finalmente, o Sr. Foster concluiu: z-i-a?
— Bem, esta me venceu, disse ele e foi sentar-se, entre aplausos gerais pelo que tinha feito. Naquela noite, ele havia conquistado o respeito de todos.
"Sincinesia", disse Papai. Parecia impossível que alguém conseguisse soletrar corretamente aquela terrível palavra, mas Laura pensava consigo mesma: Papai pode, Papai tem de soletrar!
S-i-n-c-i-n-e-... Talvez a pausa tenha sido menor do que pareceu, antes que Papai terminasse: s-i-a.
O Professor Clewett fechou o livro. Nunca houve aplausos tão fortes como os que saudaram Papai. Ele tinha ganho de toda a cidade.
Ainda animados, todos começaram a vestir seus abrigos.
— Não sei se algum dia me diverti tanto, disse a Sra. Bradley a Mamãe.
— O melhor de tudo é que sexta-feira teremos outra sessão, disse a Sra. Garland.
As conversas continuavam, mas, aos poucos, a multidão ia diminuindo, enquanto as lanternas balançavam na direção da Rua Principal.
— Como é, Laura, está-se sentindo melhor? Papai perguntou.
— Ah, sim! respondeu a menina, como nos divertimos!
Muita alegria
Agora sempre se esperava pela noite de sexta-feira e, depois da segunda sessão, havia tanta emulação entre os participantes que sempre surgiam novidades.
A segunda sessão fora dedicada às charadas e Papai ganhou as honras da noite, pois ninguém conseguiu adivinhar sua charada em mímica.
Ele a representou sozinho, com suas roupas de trabalho. Caminhou pelo corredor central, com duas batatas na lâmina do machado. Isto era tudo.
Ficou provocando a assistência, piscando os olhos e dando pistas.
— Tem relação com a Bíblia. Ora, vamos, todos vocês sabem a solução.
Chegou a dizer:
— É útil para entender-se São Paulo. Não me digam que desistem!
Todos tinham desistido e Laura estava cheia de orgulho e gosto quando Papai explicou:
São os Comentaristas dos Atos.(l)
(1) Foi impossível adaptar a charada, por causa do jogo de palavras, somente possível em inglês, permitido pela semelhança fônica entre "two potatoes" (duas batatas) e "commentators" (comentaristas), de um lado, e entre "axe" (machado) e "acts" (Atos). A charada refere-se aos comentaristas dos "Atos dos Apóstolos', um dos livros do Novo Testamento. (Nota do tradutor).
Quando compreenderam, houve uma estrepitosa salva de palmas e uma não menos estrepitosa gargalhada.
Na volta para casa, Laura ouviu o Sr. Bradley dizer:
— Temos de descobrir alguma coisa para bater esse danado do Ingalls!
Gerald Fuller, com seu sotaque britânico, perguntou:
— Há talentos musicais para fazer-se um programa, não?
Na sessão seguinte, houve música. Papai com seu violino e Fuller com seu acordeão tocaram músicas tão bonitas que pareciam mergulhar a sala e as pessoas num encantamento. Sempre que paravam, pediam mais e mais.
Dificilmente haveria uma noite tão agradável como aquela. Agora, porém, toda a cidade estava interessada e vinha gente até dos sítios para as reuniões. Os homens sentiam-se desafiados e planejaram um grande programa musical. Ensaiaram bastante e pediram emprestado o órgão da Sra. Bradley.
Quando chegou a sexta-feira, envolveram cuidadosamente o órgão em cobertores e mantas de cavalos, puseram-no na carroça do Sr. Foster e levaram-no para a escola, com muitas precauções. Era um belo instrumento, todo de madeira lustrosa, com pedais cobertos, pequenas estantes laterais e espelhos biselados. A estante de música era um rendilhado de madeira, com um pano vermelho por trás, que aparecia por entre os tubos. De cada lado, havia um lugar apropriado para colocar-se um lampião.
Tiraram a mesa do professor para colocar o órgão. O Professor Clewett escreveu o programa no quadro-negro. Haveria um recital de solos de órgão, órgão com acompanhamento de violino tocado por Papai, e números de canto (quartetos, duetos e solos). A Sra. Bradley cantou
Volta, volta,
Oh, Tempo, em teu vôo.
Faze-me criança de novo.
Apenas por esta noite.
Era triste demais para Laura, sua garganta estava grossa e doía. Uma lágrima brilhou no rosto de Mamãe, antes que ela a pudesse enxugar com o lenço. Todas as senhoras estavam limpando os olhos e os homens pigarreavam e assoavam o nariz.
Todos disseram que nada poderia ser mais bonito que o programa musical. Mas, Papai disse com ar de mistério:
— Esperem o verão!
Como se tudo isto não bastasse, o teto da igreja foi afinal construído, de modo que agora havia dois serviços aos domingos, além da escola dominical.
Era uma igreja bonita, embora fosse tão recente que parecesse um pouco rude. Ainda não havia sino no campanário, nem polimento nas paredes de madeira. Por fora, ainda o tempo não marcara sua passagem e por dentro só havia pranchas nuas e o reboco. O púlpito e os longos bancos eram de madeira, também, tudo fresquinho ainda e cheirando a limpo.
No pequeno pórtico de entrada, havia espaço suficiente para tirar a neve dos sapatos e botas e arranjar a roupa desarrumada pelo vento, antes de entrar na igreja. O aquecedor a carvão e a própria assistência aqueciam a igreja. A Sra. Bradley tinha alugado seu órgão, de modo que havia música e cânticos.
Laura chegou a gostar dos sermões do Reverendo Brown. O que ele dizia não fazia muito sentido para ela, mas ele parecia o retrato de John Brown no livro de História, feito vivo. Seus olhos brilhavam, seu bigode branco e suas barbas se animavam, suas mãos enormes gesticulavam, ora se abriam, ora se fechavam, batendo no púlpito e cortando o ar em largos gestos. Laura divertia-se, também, arranjando sinônimos para as palavras que ouvia, melhorando seus conhecimentos de gramática. Não precisava lembrar-se do sermão, pois em casa Papai só pedia a ela e a Carrie que reproduzissem o sentido corretamente. Quando o sermão acabava, cantavam novos hinos.
O mais bonito de todos era o Hino XVIII, em que as notas do órgão ressoavam fortes e todos cantavam vigorosamente.
Caminhamos com nosso bastão de peregrinos na mão
Através de um selvagem deserto em direção a uma terra estranha
Mas nossa Fé rebrilha e nossa esperança é grande
E nossa canção é a da Velha e Boa Estrada.
Depois, cantavam todos juntos, abafando com suas vozes em coro o próprio órgão:
Esta é a Boa e Velha Estrada pisada por nossos pais,
Esta é Estrada da Vida que leva a Deus,
É o único caminho para o reino da Luz,
Voltamos a nossos lares pela Boa e Velha Estrada!
Com a escola dominical e o serviço divino pela manhã, a ceia de domingo e a lavagem dos pratos e a volta à igreja pela tarde, o domingo passava depressa. Segunda-feira, havia escola e começava a espera da reunião literária de sexta-feira; sábado não dava para comentar tudo isto e logo chegava domingo de novo.
Como se tudo isto não fosse mais que suficiente, a Sociedade Beneficente planejou uma grande comemoração para o Dia de Ação de Graças, para ajudar nas obras da igreja. Seria uma ceia à moda da Nova Inglaterra.
Laura saiu correndo da escola para ajudar Mamãe a descascar, cortar em fatias e cozinhar a maior abóbora que Papai tinha conseguido no último verão. Ela separou cuidadosamente uma grande quantidade de feijões brancos. Mamãe estava preparando uma torta de abóbora gigantesca e a maior das latas de leite com feijão para levar para a ceia de Ação de Graças.
Não houve aula nesse dia. Também não houve o jantar tradicional. Foi um dia esquisito, meio vazio mas cheio de expectativa em torno da torta de abóbora e dos feijões e de espera pela noite. À tarde, todos tomaram banho de banheira na cozinha, à luz do dia. Era tão engraçado tomar banho de banheira durante o dia e numa terça-feira!
Laura escovou cuidadosamente seu vestido de escola, penteou e escovou o cabelo e ajeitou a franjinha. Mamãe pôs um de seus melhores vestidos, e Papai aparou a barba e vestiu a roupa dos domingos.
Ao cair da noite, quando todos já estavam famintos, Mamãe embrulhou o panelão de feijão com papel pardo e com um pano de lã, para conservar a comida quente. Enquanto isto, Laura arrumava Grace e vestia apressadamente seu casaco e punha o capuz. Papai carregava a panela de feijão, Mamãe a torta de abóbora, assada em sua grande assadeira de pão. Laura e Carrie carregavam uma cesta de pratos e Grace segurava a outra mão de Laura.
Logo que passaram pela loja de Fuller, puderam ver, depois dos terrenos baldios, a igreja toda iluminada. Carroças puxadas por parelhas e cavalos de montaria estavam chegando em quantidade, trazendo gente que se aglomerava à entrada frouxamente iluminada.
Todos os lampiões pendurados nas paredes da igreja estavam acesos. Seus bojos estavam cheios de querosene e sua luz brilhava intensamente, graças aos refletores de metal colocados atrás das mangas de vidro polido. Os bancos tinham sido postos contra as paredes e duas longas mesas, cobertas de brancas toalhas, tinham sido preparadas no meio da neve.
— Olhem! exclamou Carrie, de repente.
Laura parou por um instante, com a surpresa. Até mesmo Papai e Mamãe quase pararam, embora, como adultos, não devessem deixar transparecer surpresa. Um adulto nunca podia mostrar, pela voz ou por um gesto, que estava surpreso. Por isto, Laura deu só uma olhadeía, apressando delicadamente Grace, embora ela estivesse tão excitada e surpreendida quanto Carrie.
Bem no meio de uma das mesas havia um porco assado, mas em pé, com uma bela maçã na boca.
Dominando todos os outros cheiros deliciosos vindos das mesas, vinha o cheiro gostosíssimo de porco assado.
Nunca na vida, Laura e Carrie tinham visto tanta comida. As mesas estavam cheias de verdade. Havia montanhas de purê de batatas, de purê de nabos e de abóbora, todos deixando escorrer manteiga de pequenos furos feitos em cima. Havia grandes terrinas de milho seco, cozido com creme. Havia pratos cheios de broas de milho douradinhas, pão de trigo e de centeio, e de pão feito com nozes. Havia picles de pepinos, picles de beterrabas e de tomates verdes, conserva de tomates e geléias de diversas qualidades, em compoteiras de pé alto. Em cada mesa, havia uma imensa frigideira cheia de empadão de galinha, fumegando através das rachas em sua massa quebradiça.
O melhor de tudo, porém, era o porco. Posto de pé sobre pequenos suportes de madeira, parecia de verdade mesmo. Em volta, uma porção de maçãs assadas. Cheirava tão bem! Era melhor que o cheiro de qualquer outro prato, aquele cheiro forte de gordura de porco assado, que Laura não sentia havia tanto tempo.
As pessoas já estavam começando a sentar-se, enchendo seus pratos e repetindo, passando pratos uns aos outros, comendo e conversando. A gostosa carne de porco, fumegante também na borda de sua gordura que estalava, estava sendo cortada de um dos lados.
— Quanto pesava o porco? ouviu Laura um homem perguntar, enquanto esticava o prato para repetir, ao que respondeu o que estava cortando:
— Não sei dizer exatamente, mas, depois de preparado, pesava bem uns vinte quilos.
Não havia um lugar vago à mesa. De um lado para outro, por trás das cadeiras, as senhoras Tinkham e Bradley estavam muito atarefadas, servindo chá e café. Outras senhoras estavam tirando os pratos usados, substituindo-os por outros limpos. Assim que alguém acabava de comer e se levantava, outra pessoa tomava o lugar, embora o jantar custasse meio dólar. A igreja estava já quase cheia e mais gente estava chegando.
Tudo isto era novidade para Laura. Sentiu-se perdida e sem saber o que fazer. Foi aí que viu Ida muito ocupada na lavagem dos pratos, a um canto da mesa. Mamãe começou a ajudar no serviço da mesa e Laura foi ajudar Ida.
— Você não trouxe um avental? perguntou esta. Então ponha essa toalha na cintura, para não molhar o vestido.
Como filha de um pastor, Ida estava acostumada ao serviço da igreja. De mangas arregaçadas, o vestido protegido por um longo avental, ria e conversava enquanto lavava os pratos, tão depressa quanto Laura conseguia enxugá-los.
— Puxa, a ceia está mesmo um sucesso! disse Ida alegremente. Quem imaginaria que iríamos ter tanta gente!
— É mesmo, respondeu Laura, acrescentando, num murmúrio:
— Será que vai sobrar alguma coisa para nós?
— Claro que sim, respondeu Ida, com inteira confiança, a Sra. Brown sempre pensa nisso. Ela guardou duas das melhores tortas e um bolo,
Laura não se importava muito com as tortas ou com o bolo. O que ela gostaria de saber era quanto porco sobraria até que chegasse a hora de ir para a mesa.
Ainda havia alguma carne quando Papai conseguiu lugar para Carrie, Grace e para si mesmo. Laura deu uma olhadela para eles, que comiam satisfeitos, enquanto ela enxugava pratos. Mal ela os enxugava, eram levados de novo para a mesa e chegavam, mais depressa ainda, novas pilhas de pratos sujos.
— Estamos precisando de ajuda aqui, disse Ida.
Ninguém esperava tanta gente. Mamãe e as outras senhoras quase que voavam para atender a todos. Laura manteve-se fiel em seu posto, enxugando pratos. Ela não ia deixar Ida sozinha para enfrentar aquele trabalho, por mais fome que sentisse e por menor que fosse a esperança de conseguir alguma coisa para comer.
Passou-se muito tempo antes que as mesas começassem a ficar vazias. Por fim somente as senhoras da Associação, Laura e Ida ainda não tinham comido. Finalmente, acabaram de lavar pratos, copos e talheres, puseram uma mesa só para elas e puderam comer. Havia um montão de ossos onde antes estava o porco, mas Laura ficou feliz ao ver que havia bastante carne presa a esses ossos, e que havia ainda um pouco de empadão de galinha. Calmamente, a Sra. Brown trouxe as tortas e o bolo que tinha guardado.
Por alguns instantes, Laura e Ida comeram e descansaram, enquanto as senhoras elogiavam umas os pratos feitos pelas outras e comentavam o sucesso que a ceia tinha alcançado. Até elas, chegavam os ecos das conversas nos bancos superlotados, enquanto os homens conversavam pelos cantos e perto do fogão.
Finalmente, as mesas foram tiradas. Laura e Ida lavaram e enxugaram os pratos, as senhoras os separaram e guardaram nas cestas, com os restos de comida. Para elogio da cozinha de Mamãe, não sobrou nem um pouquinho do feijão nem do empadão de abóbora. Ida lavou os panelas, Laura as secou para que Mamãe as guardasse na cesta.
A Sra. Bradley estava tocando órgão e Papai e alguns outros homens cantavam, mas Grace estava com sono e tinha chegado a hora de ir para casa.
— Sei que você está cansada, Carolina, disse Papai, carregando Grace, na volta para casa, enquanto Mamãe levava a lanterna e Carrie e Laura levavam a cesta com os pratos. Mas, acrescentou ele, a festa de caridade de sua Associação foi um sucesso e tanto.
— Estou muito cansada, respondeu Mamãe. Um ligeiro toque de irritação em sua voz surpreendeu Laura. — Mas não era uma festa de caridade. Era uma ceia à moda da Nova Inglaterra.
Papai não disse mais nada. O relógio batia onze horas quando ele abriu a porta. No dia seguinte, haveria a escola e à noite haveria reunião da Sociedade Literária.
Haveria um debate sobre o tema "Lincoln foi maior do que Washington". Laura queria muito ouvir o debate, pois o advogado Barnes defenderia a tese e seus argumentos seriam bons.
— Serão educativos, disse ela para Mamãe, quando se aprontavam para ir à reunião. Na realidade, ela estava discutindo consigo mesma, pois sabia que devia estar estudando. Tinha perdido todas as noites de uma semana. Assim mesmo, haveria alguns dias antes do Natal, entre os dois períodos escolares, que ela poderia aproveitar para recuperar o tempo perdido.
O pacote de Natal tinha sido enviado a Mary. Mamãe tinha arrumado amorosamente a capa de tricô feita por Laura, de lã tão branca e macia que parecia os grandes flocos de neve, caindo graciosamente lá fora. Pôs a gola de renda que ela mesma tinha feito. Pôs os seis lenços que Carrie tinha feito de cambraia. Três tinham bainha de renda e três bainha comum. Grace ainda não podia fazer ela mesma o seu presente, mas tinha economizado seus tostões para comprar meio metro de fita azul, de que Mamãe tinha feito um laço para Mary usar com a gola branca. Escreveram uma longa carta conjunta desejando-lhe feliz Natal e, dentro do envelope, Papai pôs uma nota de cinco dólares.
— Isto é para ela comprar uns alfinetes, disse ele.
O professor de Mary tinha escrito, elogiando-a muito. A carta acrescentava que Mary poderia enviar uma amostra de seus trabalhos com miçangas se as pudesse comprar, que ela precisava de uma ardósia especial e que, mais tarde, ele quereria um outro tipo de ardósia em que pudesse escrever em Braille, uma espécie de escrita que os cegos podiam ler com os dedos.
— Mary verá que todos pensamos nela no Natal, disse Mamãe, e todos ficaram mais contentes por saber que os presentes já estavam a caminho.
Mas, apesar disso, o Natal não era a mesma coisa, sem Mary. Só Grace estava inteiramente feliz, quando, no café da manhã, cada um abriu o seu presente. Para Grace, havia uma boneca de verdade, com cabeça e braços de porcelana, e sapatos pretos nos pés de pano. Papai tinha posto umas traves numa caixa de charutos, para fazer um berço para a boneca e Laura, Carrie o Mamãe tinham feito lençóizinhos, um travesseirinho e um cobertor feito de retalhos, bem como uma camisola e uma touca de dormir. Grace estava felicíssima.
Laura e Carrie tinham comprado juntas um dedal de prata para Mamãe e uma gravata de seda azul para Papai. No lugar de Laura, estava o livro azul, os Poemas de Tennyson. Papai e Mamãe não perceberam que ela não se surpreendera. Tinham trazido de Iowa um livro para Carrie que também estava escondido. Seu título era "Histórias da Terra dos Mouros".
E assim foi o Natal. Depois de acabar o trabalho da manhã, Laura pôde finalmente acabar de ler o poema "Os Comedores de Lótus". Mas, até o poema a desapontou, pois naquela terra em que parecia ser sempre tarde os marinheiros não ficaram felizes. Eles pareciam pensar que tinham direito a viver naquela terra mágica e ficavam-se queixando. Quando quiseram reanimar-se, só conseguiram gemer: "Por que iremos de novo mourejar nas inquietas ondas?' Ora esta, porque! pensou Laura indignada. Não era esta a obrigação de marinheiros, mourejar nas inquietas ondas? Mas não, eles queriam aquela felicidade de sonho. Laura fechou o livro com raiva.
Sabia que devia haver muitos outros belos poemas no livro, mas sentia tanta falta de Mary que não tinha coragem de lê-los.
Neste momento, Papai chegou correndo da agência do correio, com uma carta. A caligrafia era desconhecida, mas a carta estava assinada por Mary Ela explicava que tinha colocado o papel sobre uma chapa de metal com as letras entalhadas e, acompanhando o entalhe, podia formar as letras com o lápis de chumbo. A carta era o seu presente de Natal para todos eles. Contava que gostava do colégio e que os professores diziam que ela ia bem nos estudos. Estava aprendendo a escrever e a ler em Braille. Gostaria de estar em casa, com eles, no Natal, e pedia que pensassem nela no dia de Naal como ela estaria pensando neles todos.
O dia passou calmamente depois da leitura da carta de Mary. Mas Laura não pôde deixar de dizer:
— Se Mary estivesse aqui, como iria gostar das Reuniões Literárias!
Compreendeu, então, como as coisas estavam mudando rapidamente. Passar-se-iam mais seis anos antes que Mary voltasse e as coisas nunca mais seriam iguais.
Laura não estudou entre os dois períodos escolares e janeiro passou tão depressa que não deu tempo para nada. O inverno fora tão suave que a escola não ficou fechada um só dia. Todas as sextas-feiras, havia Reunião Literária, cada uma melhor que a outra.
Houve, por exemplo, as Figuras de Cera, da Sra. Jarley. Veio gente de longe, naquela noite. Cavalos, carroças e pôneis ocuparam todos os postos. Os castanhos Morgan estavam cobertos com bonitas mantas e Almanzo Wilder ficou junto de Cap Garland na sala de aula apinhada de gente.
Uma cortina branca escondia o estrado do professor. Quando se abriu, houve um grito de admiração, porque ao longo da parede e do estrado havia uma fila de figuras de cera, em tamanho natural.
Pelo menos, pareciam feitas de cera.
Seus rostos eram brancos como cera, menos as sobrancelhas pretas e os lábios. Envoltas em amplas túnicas brancas, as figuras permaneciam imóveis.
Depois de alguns momentos de admiração, a Sra. Jarley apareceu de trás da cortina. Ninguém sabia quem era ela. Vestia uma longa e ampla túnica preta, um chapéu pontudo e trazia na mão a vareta usada pelo professor para apontar.
Com voz funda, ela disse:
— George Washington, eu te ordeno: Volta à vida e anda! E, com a vareta, ela tocou em uma das figuras.
A figura começou a andar! Com movimentos curtos, duros, levantou um braço, de dentro das dobras da túnica, com uma machadinha na mão macilenta fez o gesto de quem corta alguma coisa com aquele instrumento.(l).
A Sra. Jarley chamou cada figura por seu nome, tocando-a com a vareta, e todas elas se moviam como autômatos. Daniel Boone apontou uma espingarda. A Rainha Elisabete pôs e tirou sua coroa. Sir Walter Raleigh segurava, na mão rígida, uma cachimbo que punha e tirava de seus lábios imóveis(2).
(1) Alusão a um episódio da meninice de Washington. Ele derrubara uma cerejeira e, interrogado pelo pai, confessou o fato, apesar de saber que seria castigado. (Nota do tradutor).
(2) Alusão ao fato de Sir Walter Raleigh, o descobridor da Virgínia, ter sido o introdutor do tabaco na Europa. (Nota do tradutor).
Uma a uma, todas as figuras moviam-se, com tal rigidez, que era difícil acreditar que eram pessoas de verdade.
Quando finalmente caiu o pano, houve uma pausa profunda e, depois, trovejaram os aplausos. Todas as figuras de cera, agora andando naturalmente, vieram à cena, crescendo ainda mais os aplausos. A Sra. Jarley tirou o chapéu pontudo e viu-se que "ela" era Gerald Fuller. A Rainha Elisabete tirou a coroa e a peruca e virou o Sr. Bradley. Parecia que as gargalhadas não terminariam nunca.
— Não haverá nada melhor do que isto, disse Mamãe, ao voltarem para casa.
— Nunca se sabe, respondeu Papai, como se não quisesse dizer tudo que sabia. Todo mundo na cidade está entusiasmado.
Mary Power veio visitar Laura no dia seguinte e falaram a tarde toda a respeito das figuras de cera. Quando se sentou, à noite, para estudar, Laura não fazia senão bocejar.
— Melhor eu ir para a cama, disse. Estou com tanto so... o... e deu um enorme bocejo.
— Com esta, são duas noites que você perde esta semana, disse Mamãe. E amanhã é dia de ir à igreja. Estamos vivendo em meio a tanta alegria que... Estão batendo à porta?
Bateram de novo e Mamãe foi abri-la. Era Charley, mas não quis entrar. Mamãe apanhou o envelope que ele trazia e fechou a porta.
Carrie e Grace olhavam espantadas, enquanto Papai e Mamãe esperavam que Laura acabasse de ler o sobrescrito: Senhorita Laura Ingalls, De Smet, Território de Dakota.
— Puxa, que será? disse ela, abrindo o envelope cuidadosamente com um grampo e tirando uma folha de papel de carta. Desdobrou-a e leu em voz alta:
Ben M. Woodworth
agradeceria o prazer de sua companhia
em sua casa
sábado à tarde
28 de janeiro
Ceia às 20,00 h
Laura sentou-se molemente, como Mamãe fazia às vezes. Mamãe pegou o convite e leu outra vez.
— É uma festa, uma festa com ceia.
— Que beleza, Laura! Você foi convidada para uma festa! Carrie exclamou. Com é uma festa?
— Não sei, respondeu Laura. Ih, Mamãe, que é que eu vou fazer? Nunca fui a uma festa. Como é que eu me devo comportar numa festa?
— Você aprendeu a se comportar em qualquer lugar, Laura. Tem apenas de comportar-se bem, como você sabe fazer.
Isto era verdade, mas não tranqüilizou Laura.
Festa de aniversário
Durante a semana toda, Laura pensou na festa. Queria ir e, ao mesmo tempo, não queria. Certa vez, quando era pequena, tinha ido ao aniversário de Nellie Oleson, mas tinha sido uma festa de crianças. Agora, seria diferente.
Na escola, Ida e Mary Power estavam muito excitadas com a notícia. Arthur tinha contado a Minnie que seria a festa de aniversário de Ben. Por delicadeza, não puderam falar muito sobre o assunto na hora do recreio, porque Nellie estava junto delas e não tinha sido convidada. Ela não poderia ir, porque morava no campo.
Na noite da festa, Laura aprontou-se às sete horas. Mary Power viria apanhá-la para irem juntas, mas só às sete e meia.
Laura tentou ler mais uma vez seu poema favorito de Tennyson:
"Venha ao jardim, Maud,
Pois o negro morcego — a noite — foi-se embora,
Venha ao jardim, Maud,
Estou só junto à grade.
O perfume das madressilvas se esvai ao longe
E voou o pólen das rosas".
Mas não podia ficar quieta, sentada. Olhou-se mais uma vez no espelho da parede. Queria tanto ser alta e esbelta que tinha a esperança de ver a imagem aparecer assim. Mas, o espelho refletiu apenas uma mocinha baixa e gordota, no seu melhor vestido de casimira azul.
Pelo menos, era um vestido de menina-moça visto que chegava até os pés. A saia rodada pufava o mais possível atrás. Sobre ela, vinha o corpete bem ajustado, em pontas atrás e na frente, fechado com pequenos botões verdes. Uma barra de tafetá escocês cercava a saia um pouco acima da bainha e pequenos debruns de tafetá enfeitavam as pontas do corpete e os punhos das mangas, compridas e juntas. A gola era de tafetá, com um pouco de renda branca, e Mamãe tinha emprestado seu broche de madrepérola para fechar a gola.
Laura não encontrava um só defeito no vestido. Mas, como gostaria de ser alta e esbelta, como Nellie Oleson! Sua cintura era bem grossa, seus braços finos, mas redondos, e suas mãos pequenas e gordinhas mostravam que estavam habituadas a trabalhar. Não eram finas e lânguidas, como as de Nellie.
Até o rosto era todo cheio de curvas. O queixo era uma curva suave e o lábio superior também. O nariz era quase reto, mas um toquinho de arrebitação impedia que se pudesse considerar um nariz grego. Os olhos, achava Laura, eram muito afastados um do outro, e de um azul um pouco mais pálido que os de Papai. Eram arregalados e ansiosos. Não brilhavam nem um pouco.
Bem no meio da testa, vinham os cachos enrolados. Pelo menos, seu cabelo era longo e espesso, embora não fosse dourado. Estava penteado para trás, até encontrar-se com a trança enrodilhada, que cobria toda a parte de trás da cabeça. Girou lentamente a cabeça para ver o reflexo do lampião na sua maciez castanha. Viu, então, que estava agindo como se se orgulhasse vaidosamente do seu cabelo.
Foi para a janela. Mary Power ainda não estava à vista. Laura receava tanto a festa que achava melhor não ir.
— Sente-se e espere calmamente, disse Mamãe.
Laura viu Mary Power e, febrilmente, vestiu o casaco e pôs o capuz.
Quase não falaram no caminho pela Rua Principal até a estação, onde moravam os Woodworth. As janelas de cima estavam brilhantemente iluminadas, e havia luz no telégrafo, embaixo, onde.o irmão de Ben, Jim, ainda estava trabalhando. Ele era o telegrafista. O aparelho ressoava fortemente na noite fria.
— Acho que temos de ir para a sala de espera, disse Mary Power. Batemos ou vamos entrando?
— Não sei, confessou Laura, Por estranho que fosse, sentia-se melhor ao ver que Mary também estava insegura. Apesar de tudo, sua garganta ainda estava apertada e suas mãos trêmulas. A sala de espera era pública, mas a porta estava fechada por causa da festa.
Mary Power hesitou e depois resolveu bater. Não bateu com muita força, mas o barulho assustou as duas.
— Vamos entrar logo, disse Laura resolutamente.
Na hora em que dizia isto e agarrava a maçaneta, Ben abriu a porta.
Laura estava tão nervosa que não respondeu quando ele lhe deu boa noite. Estava vestindo seu terno dos domingos e um colarinho engomado. O cabelo estava úmido e bem penteado.
— Mamãe está lá em cima, acrescentou ele. Seguiram-no através da sala de espera e subiram as escadas, onde a mãe dele estava esperando no vestíbulo. Era tão baixa quanto Laura e mais gorda, mas estava muito bonitinha com um vestido cinza, com babados brancos como a neve na gola e nos punhos. Era tão simpática que Laura se sentiu logo à vontade.
Tiraram os casacos no quarto de dormir dela. O quarto era tão bem arrumado quanto a própria Sra. Woodworth. Elas hesitaram em colocar seus casacos em cima da cama tão bem feita, com a colcha branca e as fronhas rendadas dos travesseiros. Finas cortinas de percal franzido pendiam nas janelas e na mesinha de cabeceira havia um paninho de crochê debaixo do lampião. Havia também paninhos de crochê na parte de cima do camiseiro e na moldura do espelho, tudo combinando muito bem.
Mary Power e Laura olharam-se no espelho, afofando os cachos com os dedos, porque estavam um pouco amassados pelos capuzes. Com voz meiga, a Sra. Woodworth disse-lhes:
— Se vocês já acabaram de enfeitar-se, venham para a sala de visitas.
Ida, Minnie, Arthur, Cap Garland e Ben já estavam lá. A Senhora Woodworth anunciou, sorrindo:
— Quando Jim chegar do trabalho, nossa festa estará completa.
Sentou-se e começou a conversar amàvelmente. A sala de visitas era muito agradável, com abajures, íntima e quente, graças ao aquecedor. Cortinas vermelhas pendiam às janelas, e as cadeiras não ficavam de encontro à parede, mas em volta da lareira, onde os carvões brilhavam através do vidro de cola de peixe da porta. Além do álbum de fotografias em cima do mármore da mesa do centro, havia muitos outros livros na prateleira de baixo. Laura tinha vontade de vê-los melhor, mas não seria delicado deixar de prestar atenção à Sra. Woodworth.
Dali a pouco, a Sra. Woodworth pediu licença e foi à cozinha. O silêncio desceu sobre todos. Laura achou que deveria dizer alguma coisa, mas nada lhe ocorreu. Seus pés pareciam grandes demais e não sabia o que fazer com as mãos.
Pela porta, via uma longa mesa coberta com uma toalha branca. A porcelana e a prataria rebrilhavam, à luz do lustre suspenso do teto por longas correntes. Reluzentes pingentes de vidro caíam em volta do abajur leitoso do lustre.
Era tudo muito bonito, mas Laura não se esquecia de seus pés. Procurava escondê-los bem debaixo da saia. Olhava para as outras meninas e sentia que tinha de dizer alguma coisa, senão ninguém o faria. Mas era mais forte do que ela. Seu coração entristeceu-se quando ela pensou que, afinal de contas, uma festa de aniversário era tão aborrecida quanto uma festa de caridade.
Ouviram-se passos pela escada e Jim apareceu. Olhou em volta e perguntou, gravemente:
— Vocês estão jogando o sério?
Todos riram. Depois disso, todos começaram a falar, embora ouvissem o tempo todo o tilintar da porcelana na outra sala onde a Sra. Woodworth acabava de arrumar a mesa. Jim estava tão à vontade que perguntou à mãe:
— A ceia está pronta, Mamãe?
— Sim, respondeu ela, da porta, não querem passar para a sala de jantar?
Parecia que os Woodworth só usavam aquela sala para comer.
Havia oito lugares à mesa, com um fumegante prato de sopa de ostras em cada um deles. O lugar de Ben era numa das cabeceiras, o de Jim, na outra. A Sra. Woodworth indicou os lugares dos outros convidados e disse que ela serviria a todos,
Agora os pés de Laura estavam debaixo da mesa, suas mãos estavam ocupadas e tudo era tão brilhante e alegre que já não se sentia encabulada.
Bem no meio da mesa, havia um galheteiro de prata, representando um castor, com garrafinhas de cristal talhado para vinagre e azeite e potes para mostarda e molho de pimenta, bem como saleiros e frascos para pimenta em pó. Os pratos eram de porcelana branca, com uma borda de flores de diversas cores. Ao lado de cada um deles, havia um guardanapo dobrado de tal maneira que a parte de cima parecia uma flor.
O melhor de tudo era que, à frente de cada prato, havia uma laranja, também cortada em flor. A casca da laranja tinha sido cortada de cima para baixo em pontas e cada ponta virada para dentro e para baixo, como as pétalas de uma flor. Os gomos estavam contidos dentro dessas pétalas, cobertos com sua película branca.
Só a sopa de ostras já era bastante deliciosa e para acompanhá-la a Sra. Woodworth serviu bolachas especiais. Depois que a última colherada de sopa foi tomada, ela retirou os pratos fundos e trouxe uma travessa cheia de bolinhos de batata, bem tostadinhos. Trouxe também uma travessa com bolinhos de bacalhau, bem quentes, cremosos e dourados, bem como uma travessa de pequenos biscoitos quentes. Serviu manteiga também. A Sra. Woodworth servia grandes porções e ainda repetia. Depois, serviu café, com creme e açúcar.
Depois de tudo isto, limpou a mesa e trouxe um bolo de aniversário, todo nevado. Pô-lo diante de Ben e ao lado pôs uma pilha de pratinhos de sobremesa. Ben levantou-se para cortar o bolo, colocando uma fatia em cada pratinho que a Sra. Woodworth ia passando. Todos esperaram que Ben se servisse também.
Laura estava pensando na laranja diante dela. Se eram para comer, não sabia nem como, nem quando. Eram tão bonitas que dava pena desmanchá-las. Ela tinha comido uma vez um pedaço de laranja e sabia como era gostoso.
Começaram a comer o bolo, mas ninguém comeu a laranja. Talvez seja para levar para casa, pensou Laura e ela a poderia repartir com Papai, Mamãe, Carrie e Grace.
Aí, todos viram Ben pegar sua laranja, segurá-la cuidadosamente no prato, retirar a película branca e parti-la em gomos. Comeu um pedaço de laranja e um pedacinho de bolo.
Laura pegou na sua e assim fizeram todos. Cuidadosamente retiraram a película branca, partiram em gomos e comeram com pedaços de bolo.
Quando o jantar acabou, não havia nem um pedacinho de gomo nos pratos. Laura lembrou-se de limpar os dedos no guardanapo e dobrá-lo e as outras meninas fizeram o mesmo.
— Agora vamos descer e brincar, disse Ben.
Ao se levantarem, Laura perguntou baixinho a Mary:
— Não devíamos ajudar a lavar os pratos? Ida perguntou francamente:
— Não era melhor lavarmos os pratos primeiro, Sra. Woodworth?
A Sra. Woodworth agradeceu-lhes, mas disse que descessem e se divertissem, sem se preocupar com os pratos.
A sala de visitas estava muito bem iluminada e aquecida. Havia espaço bastante para brincarem do que quisessem. Primeiro brincaram de prendas e de cabra-cega. Quando todos se sentaram, cansados, Jim disse que sabia uma brincadeira de que eles nunca tinham brincado antes.
Todos queriam saber o que era.
— Bem, acho que ainda não tem nome, é muito recente, respondeu Jim. Mas, vamos para o meu escritório e eu lhes mostrarei como é.
No pequeno escritório, mal havia espaço para todos formarem um semicírculo, como Jim mandou, com ele numa das pontas e Ben na outra, espremidos junto à mesa de trabalho de Jim. Este mandou que todos se dessem as mãos.
— Agora, fiquem quietos — e todos obedeceram, esperando pelo resto.
De repente, Laura sentiu uma espécie de choque. As mãos de todos se contraíram, as meninas gritaram, os meninos urraram. Laura levou um susto tremendo, mas não gritou nem se mexeu.
Todos começaram a perguntar, excitados:
— Que foi? Que foi? Que é que você fez, Jim? Como é que você fez isto, Jim?
Cap disse:
— Sei que foi com eletricidade, Jim, mas como? Jim sorriu e perguntou:
— Laura, você não sentiu nada?
— Senti, sim!
— Então, por que não gritou?
— Que é que adianta gritar?
Jim não soube o que responder.
— Mas, o que foi? perguntou Laura como todos os outros. A resposta de Jim foi:
— Ninguém sabe.
Papai, também, tinha dito que ninguém sabia o que era a eletricidade. Benjamin Franklin tinha descoberto que o raio era eletricidade, mas ninguém sabia o que o raio era. Agora ela fazia funcionar o telégrafo, mas ninguém conseguia saber o que era.
Todos se sentiam um pouco esquisitos, olhando a pequena máquina de bronze em cima da mesa, capaz de mandar mensagens tão longe e tão depressa. Jim deu um toque e disse:
— Esse toque foi ouvido em Saint Paul.
— Agora mesmo? perguntou Minnie.
— Agora mesmo, respondeu Jim.
Estavam todos em silêncio, quando Papai abriu a porta e entrou.
— A festa já acabou? Vim buscar minha filha.
O relógio batia dez horas. Ninguém tinha percebido que era tão tarde.
Enquanto os rapazes vestiam os casacos e punham os bonés, as mocinhas subiram para despedir-se da Sra. Woodworth. No elegante quarto de dormir, vestiram seus casacos, puseram os capuzes, comentando que se tinham divertido muito. Agora, que a festa acabara, Laura queria que ela tivesse durado mais.
Embaixo, o Reverendo Brown tinha vindo buscar Ida. Laura e Mary foram para casa com Papai.
Mamãe estava esperando acordada, quando eles chegaram.
— Vejo que você se divertiu muito, pelo jeito de seus olhos brilharem, Laura, disse ela, sorrindo. Agora vá deitar-se sem fazer barulho, porque Carrie e Grace estão dormindo. Amanhã, você nos contará como foi a festa.
— Ah, Mamãe, cada um de nós comeu uma laranja inteira!
Laura não podia deixar de contar isto, mas guardou o resto para o dia seguinte para contar a todos juntos.
Grandes brincadeiras
Depois da festa, Laura mal podia estudar. A festa tinha estreitado de tal modo a amizade entre as mocinhas e os rapazes que agora, no recreio, eles estavam sempre juntos, perto do fogão, conversando e brincando.
Os dias de bom tempo, entre as tempestades de neve, ainda eram mais animados. Todos brincavam com bolas de neve, ao ar livre. Não era uma brincadeira própria de mocinhas, mas era tão divertido! Chegavam ofegantes, sorridentes, tirando neve dos sapatos, dos casacos e dos capuzes. Sentavam-se aquecidos e cheios de ar puro.
Laura estava-se divertindo tanto que quase se esqueceu de aproveitar a oportunidade de melhorar na escola. Continuava a ser a primeira da turma, mas já não tirava só 100. Cometia erros em matemática e até mesmo em história. Uma vez, sua nota em matemática baixou para 93. Mas, ela pensava que poderia compensar o tempo perdido se estudasse bastante no próximo verão, embora soubesse de cor essas palavras tão verdadeiras:
Perdeu-se, entre o nascer e o por do sol,
Uma hora de ouro, com sessenta minutos de diamante.
Não se oferece recompensa, porque está perdida para sempre.
Os meninos menores trouxeram para a escola os esquis que tinham ganho de presente no Natal. Às vezes os meninos maiores os pediam emprestados e levavam as meninas a patinar. Empurravam os patins, pois não havia colina por onde escorregar e naquele inverno não tinha havido tempestades de neve que fizessem bons campos de patinação.
Cap e Ben fizeram um tobogã, onde cabiam quatro meninas. Os quatro meninos maiores o empurravam. Na hora do recreio, patinavam a grande velocidade, até a estrada da planície e voltavam.
Por fim, Nellie Oleson não pôde suportar mais ficar sozinha, na janela, espiando aquilo. Tinha sempre desdenhado as brincadeiras ao ar livre, porque podiam estragar sua cútis delicada e machucar suas mãos. Mas, um dia declarou que gostaria de andar um pouco no tobogã*.
O tobogã não dava para cinco, mas os rapazes não concordaram em deixar uma delas de fora e conseguiram acomodá-las todas. Os pés delas ficaram para o lado de fora, suas saias tiveram de ser arregaçadas até o alto dos sapatos. Lá se foram elas pela estrada coberta de neve.
O vento batia em seus rostos, despenteando-as, colorindo suas faces, e elas riam muito quando os rapazes fizeram uma volta na planície e voltaram correndo para a cidade, puxando o tobogã. Passaram pela porta da escola e Cap gritou:
— Vamos correr pela Rua Principal.
Entre gritos e risos, os outros concordaram, correndo mais depressa ainda. Nellie gritou:
— Parem, parem já! Eu estou mandando.
Ida disse que eles não deviam fazer aquilo, mas não podia parar de rir. Laura também ria, pois formavam um espetáculo divertido, com os calcanhares batendo impotentes, as saias voando, as echarpes e o cabelo batendo o ar. Os gritos de Nellie só serviram para aumentar a alegria dos rapazes e fazê-los correr ainda mais. Seguramente, pensava Laura, eles não iriam para a Rua Principal, a qualquer momento voltariam atrás.
— Não! Não! Arthur, não! gritava Minnie e Mary Power pedia:
— Não, por favor, não!
Laura viu os castanhos Morgan, debaixo de suas mantas, amarrados a um poste. Almanzo Wilder, vestido num imenso casaco marrom, estava-os desamarrando. Virou-se para ver por que é que as meninas estavam gritando e, neste instante, Laura compreendeu que os rapazes tinham intenção de passar diante dele, diante de toda a Rua Principal. Isto não tinha graça nenhuma.
As outras meninas estavam fazendo tanto barulho que Laura teve de falar baixinho, ao ouvido dele, para ser ouvida:
— Cap! Por favor, faça-os parar. Mary não quer passar pela Rua Principal.
Cap começou logo a fazer a volta. Os outros puxaram contra ele, mas Cap disse — Vamos embora — e deu volta ao tobogã.
Voltaram para a escola, quando a sineta já estava tocando. À porta da escola, desceram contentes, menos Nellie que estava furiosa.
— Vocês pensam que são muito engraçados! Vocês... seus... seus... ignorantes do Oeste!
Os rapazes olhavam para ela, sérios e calados. Não podia dizer o que queriam porque ela era uma mocinha. Cap olhou ansiosamente para Mary, que lhe sorriu.
—Obrigada pelo passeio, rapazes, disse Laura.
— Muito obrigada, foi tão divertido, ecoou Ida.
— Muito obrigada, repetiu Mary, sorrindo para Cap, e o rosto do rapaz se iluminou com um grande sorriso.
— Daremos outro ao meio-dia, prometeu ele, enquanto entravam em bando para a escola.
Em março, a neve se derreteu e se aproximavam os exames finais. Mesmo assim, Laura não estudava tanto quanto devia. Todo o mundo estava falando sobre o que haveria na última Reunião Literária daquele inverno. Era um segredo que todos queriam adivinhar. A família de Nellie viria daquela vez e Nellie estrearia um vestido.
Em casa, em vez de estudar, Laura tratava de limpar e passar seu vestido de casimira azul e de renovar seus enfeites de renda. Tinha tanta vontade de por um chapéu em vez do capuz, que Mamãe lhe comprou meio metro de veludo marrom.
— Sei que você vai cuidar bem desse chapéu e que ele lhe durará muitos invernos, disse.
Aos sábados, Mary e Laura fizeram seus chapéus. O de Mary era de fazenda azul, escuro, com uma barra de veludo azul e preto, que ela tinha achado entre os retalhos do pai. O de Laura era de lindo veludo marrom, tão macio ao tato e com um brilho de ouro-velho tão sedoso. Ela o estreou no dia da reunião literária.
Na sala de aula, nenhum arranjo tinha sido feito, exceto que tinham tirado a mesa do professor do estrado. As carteiras estavam todas ocupadas e a sala apinhada de gente em pé. Até em cima da mesa, os garotos se tinham sentado. O Sr. Bradley e o advogado Barnes pediam às pessoas que deixassem a passagem central livre. Ninguém sabia por que, nem ninguém sabia o que estava acontecendo quando se ouviu um clamor da multidão que queria entrar.
Pela passagem central, entraram cinco pretos com uniformes bem velhos e usados. Tinham pintado enormes círculos brancos em torno dos olhos e enormes beiçorras vermelhas. Subiram no estrado e, formando uma fila, adiantaram-se cantando:
Podem falar de seus Guardas Mulligan!
Ninguém vence estes negrinhos!
Para a frente e para trás, para a frente e para trás, continuavam a marchar cantando:
Oh, podem falar de seus Guarda Mulligan!
Ninguém vence estes negrinhos!
Marchamos certo e reluzimos!
Olhem só os pés destes negrinhos!
O homem do meio estava fazendo piruetas e atrás um tocava berimbau, o outro gaita, um marcava o compasso com um chocalho e o quarto batia com as mãos e com os pés.
Os aplausos começaram, espontaneamente, ninguém poderia impedir. Os pés não podiam ficar quietos, todo o mundo se deixava levar pela música bem ritmada, pelas risonhas faces de olhos brancos, pela dança selvagem.
Não havia tempo para pensar. Quando parou a dança, começaram as brincadeiras. Os olhos rolavam nos círculos brancos, as enormes bocas vermelhas faziam perguntas e davam respostas engraçadíssimas. Depois dançaram ainda mais agitadamente e tocaram de novo.
Quando, de repente, os cinco negrinhos desapareceram correndo pelo corredor central, todos estavam exaustos de admiração e riso. Não era possível que a noite já tivesse passado. Por certo, os famosos espetáculos de Nova York não seriam melhores do que aquele. Uma pergunta estava na boca de todos:
— Quem seriam eles?
Com aquelas roupas surradas e com as faces pintadas de preto, era difícil reconhecê-los. Laura estava certa de que o dançarino era Gerald Fuller, porque o tinha visto, certa vez, dançar uma jiga, na calçada defronte a sua loja de ferragens. E quanto mais se lembrava das mãos pintadas de preto com o chocalho nos dedos, marcando o compasso, mais certa ficava de que Papai era aquele negrinho, mas onde é que tinham ido parar as barbas de Papai?
— Papai não cortaria a barba, não é, Mamãe? perguntou ela. Horrorizada, Mamãe respondeu:
— Não, por Deus! Espero que não, acrescentou.
— Papai deve ser um dos negrinhos, porque ele não veio conosco, disse Carrie.
— Eu sei que ele andou ensaiando para o espetáculo, disse Mamãe, apressando o passo.
— Bem, mas nenhum dos negrinhos tinha barba, Mamãe, lembrou Carrie.
— Meu Deus, disse Mamãe, meu Deus!
Ela tinha estado tão entusiasmada que não tinha pensado nisso.
— Ele não pode ter feito isto, você acha que ele fez? perguntou a Laura.
— Não sei, respondeu a menina. Ela acreditava que, para aquele espetáculo, Papai sacrificaria até a barba, mas não sabia o que ele tinha feito.
Apressaram o passo para casa, mas Papai ainda não tinha chegado. Parecia que se tinha passado muito mais tempo do que na verdade se passara, quando ele chegou, perguntando alegremente:
— Então, que acharam do espetáculo?
Sua longa barba castanha estava igualzinha!
— Que é que o senhor fez com sua barba? perguntou Laura, quase gritando.
Papai fingiu surpresa e perguntou:
— Que é que aconteceu com minha barba?
— Charles, você me mata, disse Mamãe, rindo impotentemente. Olhando de perto, Laura viu um pouco de alvaiade no canto dos olhos de Papai e um pouco de graxa na barba.
— Já sei! Você as enegreceu debaixo daquele colarinho enorme! disse ela, e ele não pôde negar. Ele era mesmo o negrinho do chocalho.
Isto só acontecia uma vez na vida, disse Mamãe, e todos ficaram acordados até tarde, comentando o espetáculo. Não haveria mais reuniões naquele inverno e a primavera já estava perto.
— Voltaremos para a fazenda, assim que acabar a escola, disse Papai. Que tal? Gostam?
— Preciso procurar minhas sementes para a horta, disse Mamãe pensativamente.
— Eu gosto de voltar. Grace e eu poderemos colher violetas de novo, disse Carrie. Você não gosta, Grace?
Mas, Grace estava quase dormindo no colo de Mamãe, sentada na cadeira de balanço. Limitou-se a abrir os olhos, repetindo: "violetas".
— E você, Laura? Estive pensando que agora você talvez prefira a cidade.
— Talvez, disse Laura. Agora gosto mais de morar na cidade, mais do que pensei ser possível. Mas todo o mundo vai voltar para as fazendas no verão, e nós voltaremos para a cidade no outro inverno, não é, Papai?
— Penso que sim. Acho melhor, até que eu possa alugar esta loja; é melhor para vocês, meninas, para irem à escola. É verdade que poderíamos ter ficado na fazenda, este inverno. Bom, assim mesmo é que as coisas acontecem. A gente se prepara para um inverno rigoroso e não há nem uma tempestade.
Papai disse isso com um ar tão jocoso que todos se riram.
Depois de tudo isto, tinham de tratar da mudança e, em meio ao cheiro de terra úmida, Laura tinha menos vontade de estudar. Sabia que passaria nos exames, ainda que suas notas não fossem tão boas quanto poderiam ser.
Quando sua consciência protestava, ela se revoltava, pensando que não veria Ida, nem Mary, nem Minnie, nem os rapazes, durante todo o verão. Prometia que, no próximo verão, estudaria bastante.
Nas provas finais, ela não alcançou nenhuma nota 100. Em História, tirou 99 e em Aritmética, 92. Estas eram suas notas e nunca mais elas poderiam ser mudadas.
Compreendeu então que não poderia ser mais indulgente consigo mesma. Só faltavam dez meses para completar 16 anos. O verão ia começar, com os céus azuis e as grandes nuvens brancas e movediças, as violetas nascendo no charco dos búfalos, as rosas silvestres marchetariam a planície, mas ela teria de ficar em casa e estudar. Era sua obrigação. Se não ficasse, talvez não conseguisse seu certificado de professora, na próxima primavera, e talvez Mary tivesse de deixar o colégio.
Surpresa de abril
Tudo estava arrumado na pequena casa da fazenda. Lá fora, a neve tinha desaparecido inteiramente, a relva nova brotava e a terra arada cheirava bem debaixo do sol morno.
Laura tinha estudado durante duas horas pela manhã. Arrumando os pratos do almoço, podia ver sua ardósia e seus livros de escola esperando por ela, enquanto a brisa macia a convidava para ir passear com Carrie e Grace. Mas, ela sabia que tinha de estudar.
— Acho que vou à cidade esta tarde, disse Papai, apanhando o chapéu. Você quer que eu lhe traga alguma coisa, Carolina?
De repente, a brisa ficou fria, e Laura, olhando pela janela, gritou:
— Papai, olha uma nuvem de tempestade de neve!
— Não pode ser! Tão tarde em abril? disse Papai, virando-se para certificar-se ele mesmo.
O sol desaparecera, o barulho do vento mudava à medida que aumentava de intensidade. A tempestade golpeou a pequena casa. Um redemoinho branco bateu contra a janela e o frio entrou.
— Pensando bem, disse Papai, acho que prefiro ficar em casa hoje.
Puxou uma cadeira para perto da lareira e sentou-se:
— Ainda bem que o gado está todo no estábulo. Eu ia comprar sogas na cidade.
Kitty estava horrorizada, era seu primeiro temporal. Não sabia o que fazer, quando seu pêlo se eriçou todo, estalando. Tentando acalmá-la, Grace descobriu que saía uma faísca sempre que se tocava nela. Não se podia fazer nada, exceto não tocar.
Por três dias e três noites, a tempestade soprou com fúria. Papai trouxe as galinhas para o estábulo, com medo de que elas morressem geladas. Fazia tanto frio que passaram aqueles dias tristes junto do fogão, e apesar da luz fraca, Laura teimava em estudar aritmética. Ao menos, pensava, não tenho vontade de ir passear.
No terceiro dia, a tempestade cessou, deixando a planície coberta de uma neve fina e dura. Ainda estava gelado, quando Papai foi à cidade no quarto dia. Trouxe a triste notícia de que dois homens tinham morrido em meio à tempestade.
Tinham vindo do Leste, de trem, chegando numa manhã quente de primavera. Tinham saído para visitar uns amigos numa fazenda, ao sul da cidade, e pouco antes do meio-dia tinham ido a outra fazenda, a três quilômetros de distância.
Depois da tempestade, todos saíram à procura deles, encontrando-os ao lado de um monte de feno, mortos de frio.
— Sendo do Leste, não sabiam o que fazer, disse Papai. Se se tivessem metido debaixo do monte de feno, bem tapados, teriam esquentado um ao outro e poderiam ter resistido.
— Mas, quem é que iria esperar uma tempestade tão fora de época? disse Mamãe.
— Ninguém sabe o que vai acontecer. Preparar-se para o pior e esperar o melhor, é tudo que se pode fazer.
— O senhor se preparou para o inverno, e todo o trabalho foi perdido, Papai. Não houve nenhuma tempestade, até voltarmos para a fazenda, onde não estávamos preparados, objetou Laura.
— É mesmo, até parece que essas tempestades sempre conseguem agarrar a gente, na ida ou na volta, disse Papai.
— Não sei como é que alguém se pode preparar para tudo, disse Laura. Quando se espera uma coisa, é sempre outra que acontece.
— Laura!, disse Mamãe.
— Mas é assim mesmo, protestou Laura.
— Não, disse Mamãe. Até mesmo o tempo tem mais sentido do que você está dizendo. As tempestades vêm numa região de
tempestades. Você pode preparar-se para ser professora e nunca ser professora, mas se não se preparar, não poderá nunca ser professora.
E assim era com efeito. Mais tarde, Laura lembrou-se de que sua mãe tinha sido professora. Naquela tarde, quando deixou de lado os livros para ajudar Mamãe a preparar a ceia, perguntou:
— Quantos períodos a senhora ensinou, Mamãe?
— Dois.
— Que foi que aconteceu então?
— Conheci seu Pai.
— Ah, disse Laura. Ela tinha esperança de conhecer alguém. Talvez, no fim de contas, não precisasse ser professora a vida toda.
De volta à escola
DEPOIS disto, pareceu a Laura que ela não fizera outra coisa senão estudar durante todo o verão. Naturalmente, isso não era exato. Ela buscava água de manhã no poço, ordenhava a vaca, mudava as sogas, ensinava o bezerrinho novo a mamar. Trabalhava na horta e em casa, e, no tempo da colheita de feno, ela amassava os grandes fardos que Papai levava para a cidade. Mas as intermináveis horas com os livros e a ardósia obscureciam tudo o mais. Não foi à cidade nem no Quatro de Julho. Carrie foi com Papai e Mamãe, enquanto ela ficava tomando conta de Grace e estudando a Constituição.
Toda a semana escreviam a Mary em resposta às freqüentes cartas que chegavam dela. Até Grace já podia escrever pequenos bilhetes, que Mamãe lhe ensinava e que iam juntos das outras cartas.
As galinhas já estavam pondo agora. Mamãe guardava os melhores ovos para chocar e nasceram vinte e quatro pintinhos. Os ovos menores eram usados na cozinha e num almoço de domingo começam frango assado com ervilhas e batatas. Os outros frangos, Mamãe deixava engordar para comer mais tarde.
Apareceram ratinhos outra vez e Kitty engordou bastante. Matava mais ratos do que os que podia comer e a cada instante vinha miando orgulhosamente deixar um rato morto aos pés de alguém. Queria dividir sua rica comidinha e seus olhos espantados revelavam claramente que não entendia por que toda a família não comia ratos.
Os rexenxões também voltaram. Embora não fossem tantos como no ano anterior e Kitty conseguisse agarrar alguns, ainda assim fizeram bastante estrago. De novo, veio o tempo suave do outono e Carrie e Laura voltaram à escola.
Havia mais gente na cidade e no campo em volta. A escola estava tão cheia que todas as carteiras estavam ocupadas e, na primeira fila, em algumas delas se sentavam três alunos pequenos.
Havia um novo professor, o Sr. Owen, filho daquele senhor cujos cavalos baios quase tinham ganho a corrida do Quatro de Julho. Laura gostava muito dele e o respeitava. Não era muito idoso, mas era sério, trabalhador e exigente.
Desde o primeiro dia, manteve estricta disciplina. Todos os alunos ficavam quietos e obedeciam, estudando a lição muito bem. No terceiro dia, o Professor Owen bateu em Willie Oleson. (1)
(1) No século passado, os castigos corporais eram usados em todas as escolas. (Nota do tradutor)
Por muito tempo, Laura não soube o que pensar daquele castigo. Willie era bastante inteligente, mas nunca sabia a lição. Quando chamado à argüição, abria a boca e revirava os olhos, como se tivesse perdido a consciência. Ficava aparvalhado, parecendo semi-humano. Bastava olhar-se para ele para ficar-se doente.
Tinha começado a fazer aquilo para implicar com a Senhorita Wilder. Parecia incapaz de concentrar sua atenção no que diziam. No recreio, fazia a mesma coisa para divertir os outros. No tempo do Professor Clewett, este, pensando que ele fosse retardado, deixou-o de lado. O hábito se apoderara de Willie, de modo que, agora, ele estava sempre no mundo da lua, com a boca aberta e os olhos vazios. Laura achava que, de fato, ele perdia inteiramente a consciência nessas ocasiões.
A primeira vez que Willie fez isso, foi quando o Professor Owen perguntou o seu nome para escrevê-lo no livro de chamada. O professor levou um susto e Nellie explicou:
— É meu irmão, Willie Oleson, e ele não pode responder, as perguntas o embaraçam.
Diversas vezes, naquele dia e no dia seguinte, Laura viu que o Professor Owen olhava desconfiado para Willie, sempre de boca aberta e com os olhos perdidos, Quando foi chamado, Laura não agüentou olhar para sua cara de idiota. No terceiro dia, o Professor Owen chamou-o:
— Venha comigo, Willie.
Estava com a vara na mão. Com a outra mão firme no ombro de Willie, o professor foi para a entrada da escola e fechou a porta. Não disse uma só palavra. De suas carteiras mais próximas da porta, Ida e Laura ouviam o silvo da vara. Todos ouviram os gritos de Willie.
O prof. Owen voltou calmamente com Willie, dizendo-lhe que parasse de chorar e que voltasse para sua carteira e estudasse, pois, dali em diante, esperava que sempre soubesse a lição.
Willie parou de chorar e foi para a carteira. Depois disto, bastava um olhar do Professor Owen para diminuir a expressão idiota no rosto de Willie. Parecia que ele se esforçava para pensar e agir como os outros meninos. Laura se perguntava se Willie poderia recompor inteiramente o espírito, depois de tê-lo deixado partir-se daquela maneira, mas pelo menos ele estava tentando, Tinha medo de não tentar.
Laura, Ida, Mary, Minnie e Nellie conservaram seus lugares. Todas estavam queimadas de sol, menos Nellie, que estava mais pálida e lânguida do que nunca. Suas roupas eram muito bonitas, embora sua mãe as fizesse de retalhos, tão bonitas que Laura ficou farta de seu vestido da escola e de seu melhor vestido de casimira azul. Naturalmente, não se queixava, mas tinha vontade.
As anquinhas tinham voltado à moda, e Mamãe comprou-lhe um par. Ela baixou a bainha do vestido marrom, de modo que pôde usar perfeitamente as anquinhas com ele. O azul não precisava ser modificado. Mas, Laura achava que as outras meninas estavam sempre mais bem vestidas.
Mary tinha um novo vestido para a escola. Minnie tinha um casaco novo e sapatos novos. As roupas de Ida vinham da mala de um missionário, mas Ida era tão alegre e doce que parecia sempre ótima com qualquer vestido. Quando Laura se vestia para ir à escola, quanto mais procurava melhorar sua aparência, mais ela parecia desagradável.
— Seu colete está muito frouxo, disse-lhe Mamãe, um dia. Aperte as barbatanas e seu porte ficará mais elegante. E não consigo achar que essa franja maluca assente melhor o seu cabelo. Pentear o cabelo todo para trás e fazer esses rolinhos na testa faz com que as orelhas de qualquer mocinha pareçam maiores.
Mamãe estava tentando ajudar, mas de repente começou a rir.
— Que é, Mamãe? Conte-nos! pediram Laura e Carrie.
— Estava-me lembrando do tempo em que sua Tia Elisa e eu penteamos o cabelo por cima das orelhas e fomos para a escola assim. O professor nos chamou na frente de todos e nos censurou por sermos tão pouco recatadas, como devem ser as senhoras e senhoritas, e tão ousadas, a ponto de mostrarmos nossas orelhas. Mamãe continuava a sorrir.
— É por isso que a senhora traz sempre as orelhas cobertas, Mamãe?
Mamãe, um pouco surpresa, respondeu:
— Não sei, acho que sim.
No caminho para a escola, Laura disse:
— Carrie, você sabe que eu nunca vi as orelhas de Mamãe?
— Devem ser bonitas, também, porque você se parece com ela e tem orelhas pequenas e bonitas.
— Bem, começou Laura, mas parou porque o vento forte sempre fazia sua saia subir por causa das anquinhas e ela tinha de arrumá-la. Tinha de girar até que as barbatanas se soltassem e caíssem para a barra da saia onde tinham de ficar.
Quando recomeçaram a andar, ela continuou:
— Eu acho ridícula a maneira de vestir-se quando Mamãe era moça, você não acha? Maldito vento!, exclamou, porque as anquinhas estavam subindo outra vez.
Calmamente, Carrie esperou que ela se arrumasse, dizendo:
— Sorte a minha de não ter de usar anquinhas ainda. Ficaria tonta.
— São muito incômodas, concordou Laura, mas estão na moda e quando você tiver a minha idade quererá andar na moda também.
Havia tantas diversões na cidade naquele outono que Papai disse que não precisariam das Reuniões Literárias. Havia serviço religioso todos os domingos, orações nas quartas-feiras à noite. A Associação Beneficente organizou duas festas e falava-se de uma árvore de Natal. Laura tinha esperanças de que houvesse, pois Grace nunca tinha visto uma. Em novembro deveria haver uma semana de ensaios na igreja e o Professor Owen estava preparando, com a aprovação da Junta Escolar, uma Exposição para o fim do ano.
A escola continuaria sem interrupção até a Exposição, pouco antes do Natal. Assim, os rapazes não esperaram pelo inverno, e vieram para a escola em novembro. Os alunos menores tinham de sentar-se em grupos de três, para dar lugar para todos.
— Esta escola precisa de um edifício maior, disse o Prof. Owen a Laura e a Ida, um dia na hora do recreio. Espero que a cidade possa construí-la no próximo ano. Há realmente necessidade de separar as turmas. Conto com a Exposição para fazer com que todos conheçam melhor a escola e suas necessidades.
Em seguida, explicou-lhes o que fariam na Exposição, dizendo-lhes qua as duas teriam de recitar, de cor, toda a História dos Estados Unidos.
— Você acha que nós podemos? perguntou Ida, depois que ele se foi.
— Claro que sim. Você sabe que nós gostamos de História.
— Ainda bem que você tem a parte mais comprida. Só tenho de decorar de John Quincy Adams até Rutherford Hayes(2), mas você tem de saber tudo a respeito da descoberta, dos mapas e das batalhas, do Oeste e da Constituição. Puxa, não sei como que você pode aprender tudo isto.
(2) Sexto e décimo nono Presidente dos Estados Unidos, respectivamente. A presidência de Adams começou em 1825 e a de Hayes terminou em 1881.
— É mais comprido, mas nós estudamos mais vezes e revimos freqüentemente, disse Laura, que estava contente por ter esta parte, mais interessante.
As outras meninas estavam falando animadas acerca das pregações evangélicas. Todos da cidade e das fazendas vizinhas compareceriam. Laura não sabia por que, visto que nunca tinha ido a uma dessas pregações, mas quando ela disse que ia ficar em casa>e estudar, Nellie exclamou horrorizada:
— Mas quem não vai às pregações é ateu!
As outras nada disseram em defesa de Laura e os olhos de Ida estavam ansiosos quando ela pediu:
— Você virá, não virá, Laura?
As pregações durariam uma semana inteira, e, além das lições diárias, havia a Exposição Escolar para preparar. Na segunda-feira de noite, Laura corria para casa e estudava até a hora da ceia; pensava em História enquanto lavava os pratos e ainda lia um pouquinho, enquanto Papai e Mamãe se preparavam.
— Anda, Laura, ou chegaremos atrasados! Está na hora de ir para a igreja, dizia Mamãe.
De pé, diante do espelho, Laura colocava seu querido chapéu de veludo marrom e afofava os cachos. Mamãe estava esperando na porta, com Carrie e Grace. Papai fechava o fogão e apagava o lampião.
— Estão prontas? À luz da lanterna, saíam e ele fechava a porta. Não havia uma só janela iluminada na Rua Principal. Atrás da loja de ferragens do Sr. Fuller, as últimas lanternas podiam ser vistas, através dos terrenos baldios, em direção à igreja brilhantemente iluminada, onde se viam carroças, charretes, cavalos, nas sombras em volta do pátio.
A igreja estava cheia e quente com tantos lampiões e o aquecedor a carvão. Os velhos ficavam junto do púlpito, as famílias nos bancos do meio, e os rapazes e meninos nos bancos de trás. Laura viu todos os conhecidos e muitos desconhecidos, enquanto ia atrás de Papai pela passagem central, à procura de um lugar vazio. Ele parou no segundo banco e todos se sentaram.
O Reverendo Brown levantou-se de sua cadeira atrás do púlpito e anunciou o Hino número 154. A Sra. Brown tocou o órgão e todos cantaram, de pé:
Havia noventa e nove em segurança
No abrigo do aprisco,
Mas uma tinha ido para as colinas
Para longe das portas de ouro,
Para as montanhas selvagens e nuas,
Para longe dos cuidados do pastor.
Se uma pregação fosse apenas canto, Laura teria gostado muito, embora achasse que deveria estar estudando e não se divertindo. Sua voz clara e firme, como a de Papai, se fazia ouvir:
Alegrai-vos que o Senhor recuperou o que é Seu!
Depois veio a longa reza. Laura abaixou a cabeça e fechou os olhos, enquanto a voz áspera do Reverendo Brown resmoneava. Foi um grande alívio, quando ficaram de pé outra vez, para cantar. Este hino tinha um ritmo alegre e marcado:
Plantando a semente à clara luz do dia,
Plantando a semente ao luar,
Plantando a semente à expirante luz,
Plantando a semente pela noite solene,
Oh, qual será a colheita,
Oh, qual será a colheita?
O Reverendo Brown voltou a pregar. Sua voz subia e descia, trovejava e tremia. Suas espessas sobrancelhas levantavam-se e abaixavam-se, seu punho cerrado batia no púlpito: "Arrependam-se, arrependam-se enquanto há tempo, tempo para escapar da condenação!", rugia.
Laura sentia arrepios pelo corpo todo. Parecia-lhe que de toda aquela gente subia alguma coisa negra e terrível que crescia e crescia ao influxo daquela voz trovejante. As palavras já não faziam sentido, não formavam frases, eram apenas palavras ameaçadoras. Por um instante terrível, Laura imaginou que o Reverendo era o Demônio. Seus olhos despediam chispas:
— Venham, venham e salvem-se! Venham para a salvação! Arrependam-se, pecadores! De pé, de pé, e cantem! Oh, ovelhas perdidas! Fujam da ira! Remem, remem para a praia!" Suas mãos levantaram todos e sua voz forte cantou;
Remem para a praia, marinheiros!
Remem para a praia!
"Vamos! Vamos!" sua voz trovejava acima do coro, e um rapaz veio cambaleante pelo corredor.
Não se perturbem com os ventos tempestuosos
Por mais forte que soprem!
"Deus o abençoe, irmão pecador, de joelhos e que Deus o abençoe! Há mais alguém? O Reverendo Brown estava aos gritos e recomeçou o estribilho: Remem para a praia!
As primeiras palavras do hino deram a Laura vontade de rir. Ela lembrou-se dos dois homens, o magro e o gordo, cantando solenemente e arrebentando todas as telas de arames das lojas. O que estava acontecendo agora não a emocionava de maneira alguma.
Procurou ver Mamãe e Papai. Estavam de pé, cantando calmamente, enquanto aquela coisa negra e selvagem os cercava e rugia em torno deles como uma tempestade.
Um outro rapaz, depois uma velha, caíram de joelhos. Finalmente, tudo acabou, mas não de todo. Muita gente estava tentando ir para a frente, ajoelhar-se ao lado daqueles três e rezar por suas almas. Em voz baixa, Papai disse para Mamãe:
— Vamos embora.
Carregou Grace no colo, através do corredor em direção à porta. Mamãe o seguia com Carrie e Laura ia logo atrás. Nos bancos de trás, os rapazes e meninos olhavam as pessoas que passavam. O medo que Laura tinha de desconhecidos caiu sobre ela e a porta aberta pareceu-lhe um refúgio contra seus olhos.
Não percebeu um leve toque na manga de seu casaco, até que ouviu uma voz:
— Posso acompanhá-la até a casa?
Era Almanzo Wilder.
Laura estava tão surpresa que não pôde dizer uma só palavra. Não podia nem fazer que sim com a cabeça. Não podia pensar. A mão dele continuava pousada em seu braço e foram caminhando juntos até a porta. Ele a protegeu contra os empurrões à saída.
Papai tinha acabado de acender a lanterna. Estava abaixando a manga e olhou para cima, quando Mamãe, virando-se para trás, perguntou:
— Onde está Laura?
Ambos a viram com Almanzo Wilder a seu lado e Mamãe ficou petrificada.
— Vamos, Carolina, disse Papai, e ela o seguiu e Carrie também, depois de lançar um olhar espantado.
O chão estava branco de neve e fazia frio, mas não ventava e as estrelas brilhavam intensamente no céu.
Laura não sabia o que dizer. Queria que o Sr. Wilder dissesse alguma coisa. Um leve odor de charuto vinha de seu espesso sobretudo. Era agradável, mas não tão doméstico quanto o perfume do cachimbo de Papai. Era um perfume mais atrevido, que a fez pensar em Cap e aquele ousado rapaz na sua audaciosa viagem no inverno para trazer trigo.
Para surpresa sua, ouviu sua própria voz:
— Bem, não houve tempestade.
— Não, este inverno foi bom, nada parecido com o outro. Silêncio de novo, exceto o barulho que seus pés faziam na neve.
Na Rua Principal, grupos apressados se dirigiam para suas casas, com as lanternas projetando longas sombras. A lanterna de Papai ia reta atravessando a rua, Papai, Mamãe, Carrie e Grace chegaram em casa,
Laura e Almanzo ficaram do lado de fora, diante da porta fechada.
— Bem, boa noite, disse ele, recuando um pouco e erguendo o boné. Vê-la-ei amanhã.
— Boa noite, disse Laura, abrindo a porta rapidamente.
Papai estava segurando a lanterna e dizia a Mamãe:
—... eu tenho confiança nele em qualquer lugar e, além de tudo, foi só voltar da igreja para casa.
— Mas ela só tem quinze anos!
Laura fechou a porta e entrou no quarto aquecido. A lâmpada estava acesa e tudo estava em ordem.
— Então, que é que você achou da pregação? perguntou Papai.
— Não são como os sermões tranqüilos do Reverendo Alden. Gostava mais dos dele.
— Eu também, disse Papai, mas Mamãe lembrou que já passava da hora de dormir.
No dia seguinte, Laura pensou várias vezes no que o jovem Sr. Wilder queria dizer quando disse que a veria naquela noite. Ela não sabia por que ele a tinha acompanhado até a casa. Era uma coisa estranha, pois ele já era um adulto. Já era fazendeiro há dois anos, devia, portanto, ter pelo menos vinte e três e era mais amigo de Papai do que dela.
Naquela noite, não prestou atenção ao sermão. Queria era não estar ali, no meio daquela gente tão excitada. Alegrou-se quando Papai disse: "Vamos embora".
Almanzo Wilder estava na fila dos rapazes perto da porta, e Laura ficou encabulada. Via que vários rapazes estavam acompanhando moças até suas casas. Sentia suas faces enrubescer e não sabia para onde olhar. De novo, ele perguntou: "Posso acompanhá-la?", mas desta vez ela respondeu educadamente: "Sim."
Tinha pensado o que queria dizer na véspera e falou de Minnesota. Ela tinha vindo do Riacho das Ameixeiras e ele de Spring Valley, mas antes tinha vivido no Estado de Nova York, perto de Malone. Laura achou que tinha conversado bastante bem até que chegaram à porta, e ela pôde dizer: "Boa noite."
Todas as noites daquela semana ele a acompanhou depois da pregação. Ela não podia compreender por que. Mas, a semana acabou depressa, ela pôde voltar a estudar durante a noite e esqueceu Almanzo para pensar no medo que tinha da Exposição Escolar.
A exposição de fim de ano
A sala estava quente e o lampião dava uma luz clara e brilhante, mas os dedos frios de Laura mal podiam abotoar o corpete de seu vestido de casimira azul e o espelho dava a impressão de estar embaçado. Estava-se vestindo para a Exposição Escolar.
Tinha sentido tanto medo que agora nem parecia de verdade, mas era. De um jeito ou de outro, tinha de passar por aquilo.
Carrie também estava com medo. Seus olhos estavam muito arregalados em seu rostinho e ela murmurava» para si mesma — "Com o cinzel na mão, o menino escultor" — enquanto Laura atava sua fita de cabelo. Mamãe tinha feito um vestido novo de tafetá escocês e lã para Carrie vestir em seu recitativo.
— Por favor, Mamãe, escute mais uma vez meu recitativo, pediu ela.
— Não há tempo, Carrie. Já estamos quase atrasadas. Além do mais, estou certa de que você sabe direitinho. Escuto no caminho. Você está pronta, Laura?
— Sim, Mamãe, respondeu Laura com voz fraca. Mamãe apagou o lampião. Lá fora, soprava um vento frio e a neve brilhava no chão. A saia de Laura subia com o vento, as anquinhas também subiam loucamente, e ela receava que o cacho se estivesse soltando.
Esforçava-se por lembrar-se de tudo quanto tinha de dizer, mas não conseguia ir além de "A América foi descoberta por
Cristóvão Colombo, em 1492. Colombo, natural de Gênova, na Itália..." Carrie continuava a recitar: "Esperando a hora em que, por ordem de Deus,..."
Papai disse:
— Vejam, a igreja está toda iluminada.
Tanto a igreja quanto a escola estavam iluminadas. Um espesso cortejo se dirigia para a igreja, iluminado pela luz amarela das lanternas.
— Que é que há? perguntou Papai e o Sr. Bradley respondeu que, tendo vindo muita gente, não se podia ficar na escola. O Professor Owen estava mudando tudo para a igreja.
A Sra. Bradley disse:
— Ouvi dizer que você nos vai dar um grande prazer hoje, Laura.
Laura nem soube o que respondeu. Continuava a pensar no descobrimento da América, sem conseguir passar de Colombo, mas tinha de ir adiante.
À entrada, havia tanta gente que ela teve medo de que suas anquinhas ficassem deformadas. Já não havia lugar nos cabides para os abrigos. As passagens estavam cheias de gente procurando um lugar. O Prof. Owen repetia: "Os lugares da frente são para os alunos. Por favor, os alunos que venham para a frente".
Mamãe disse que ela tomaria conta dos abrigos. Ajudou Carrie a despir o seu e a tirar o capuz, enquanto Laura tirava o casaco e o chapéu, arrumando nervosamente os cachos.
— Agora, Carrie, você só tem de fazer como ensaiou, disse Mamãe, alisando-lhe a saia. Você sabe seu recitativo perfeitamente.
— Sim, Mamãe, murmurou Carrie.
Laura não podia falar. Calada, ela encaminhou Carrie pelo corredor. No caminho, Carrie encostou-se nela e olhou para ela, os olhos pedintes:
— Eu estou bem?
Laura viu os olhos arregalados de medo. Um cachinho de cabelo dançava acima deles. Laura o recolocou em seu lugar. O cabelo de Carrie descia inteiramente liso, partido ao meio com duas trancas duras, caindo-lhe às costas.
— Agora, sim, você está ótima! Seu vestido novo é uma beleza.
Sua voz não parecia a sua, estava tão calma.
O rosto de Carrie se iluminou e ela passou diante do Professor Owen e foi juntar-se a suas companheiras no banco da frente.
O Professor disse a Laura:
— Os retratos dos Presidentes estão pendurados na parede, exatamente como na escola. Minha vareta está no púlpito. Quando você chegar a George Washington, pegue a vareta e aponte cada Presidente quando começar a falar dele. Isto a ajudará a lembrar-se da ordem exata.
— Sim, senhor, disse Laura, vendo que o Professor também estava preocupado. Entre todos os alunos, quem menos podia falhar era ela, por ter a seu cargo o número mais importante da Exposição.
— Ele falou da vareta? perguntou Ida baixinho, quando Laura se sentou perto dela. Ida parecia um cópia esmaecida do que era habitualmente. Laura fez que sim com a cabeça, e elas viram Cap e Ben que estavam pendurando os retratos dos Presidentes na parede. O púlpito tinha sido empurrado contra a parede, para deixar o estrado livre. Podiam ver a longa vareta sobre ele.
— Eu sei que você pode fazer a sua parte, mas estou com um medo danado, disse Ida.
— Você não sentirá medo quando começar, encorajou-a Laura. Você sempre foi boa aluna em História. É mais fácil do que o cálculo mental que teremos de fazer.
— Fico satisfeita de ter cabido a você a primeira parte. Eu não conseguiria, não conseguiria, não.
Laura estava satisfeita de ter recebido aquela parte, porque era a mais interessante. Agora estava tudo confuso em sua cabeça. Tentava recordar tudo quanto tinha estudado, embora soubesse que era tarde demais. Mas, tinha de lembrar-se, não queria fracassar.
— Façam silêncio, por favor, disse o Prof. Owen. A festa de fim de ano tinha começado.
Nellie Oleson, Mary Power e Minnie, Laura, Ida, Cap, Ben e Arthur formaram uma fila no estrado. Arthur estava de sapatos novos e um deles rangia. Em fila, enfrentavam a igreja apinhada. Tudo estava confuso para Laura. O Professor Owen começou a fazer perguntas, rapidamente.
Laura não estava com medo: nada daquilo parecia de verdade, ela não estava ali, de pé, no meio da luz, com sen vestido azul e respondendo a perguntas de geografia. Seria uma vergonha deixar de responder ou errar, diante daquela gente toda, de Papai e de Mamãe, mas ela não sentia medo. Tudo parecia um ' sonho desses que a gente sonha meio acordada.
O tempo todo ela pensava: A América foi descoberta por Cristóvão Colombo..., mas não cometeu um só erro em geografia.
Houve aplausos quando acabou esta parte. Veio então a argüição sobre gramática, o que era mais difícil porque não havia quadro-negro. Era fácil analisar cada palavra de longos e complexos períodos, cheios de orações adverbiais, quando o período estava escrito no quadro ou na ardósia. Não era tão fácil quando se tinha de decorar o período inteiro e não esquecer nem uma palavra ou vírgula. Assim mesmo, só Nellie e Arthur cometeram erros.
Cálculo mental era mais difícil ainda. Laura não gostava de matemática. Seu coração batia horrivelmente quando chegou a sua vez e ela estava certa de que ia errar. Ela mesma se surpreendeu quando ouviu sua própria voz, fazendo rapidamente uma divisão. "Dividir 347.264 por 16. Trinta e quatro por dezesseis, dois, baixa o dois, resto dois: 27 por dezesseis, um, baixa... e assim por diante, até o fim: 21.704.
Ela não precisou tirar a prova para ter certeza de que o resultado estava certo. Sabia que estava, porque o Professor Owen passou outro problema. Por fim, ele anunciou:
— A turma está dispensada.
Em meio a grandes aplausos, todos voltaram para seus lugares. Chegara a vez de os menores dizerem suas poesias. Depois, seria a vez do número de Laura.
À medida que meninos e meninas eram chamados ao estrado, Laura e Ida sentiam mais medo. Toda a história que Laura tinha aprendido se atropelava em sua cabeça: "A América foi descoberta... O Congresso das Colônias Confederadas reunido em Filadélfia... Só há uma palavra nesta petição que eu não aprovo — Congresso... O Senhor Benjamin Harrison levantou-se e disse: Só há uma palavra neste documento, Senhor Presidente, que eu aprovo — Congresso... E Jorge III... pode aprender sua lição. Se isto é traição, que lhes aproveite bastante!...Dêem-me a liberdade ou a morte... Sustentamos que essas verdades são evidentes por si mesmas... Seus pés deixaram marcas sangrentas na neve..."
De repente, ela ouviu a voz do Professor chamar:
— Carrie Ingalls.
O rostinho de Carrie estava contraído e pálido quando ela se dirigiu para o estrado. Todos os botões das costas de seu vestido estavam abotoados para fora. Laura tinha pensado em abotoá-la; mas não, era melhor que Carrie fizesse as coisas sozinha, o melhor que pudesse.
Carrie estava muito erecta, as mãos atrás das costas, os olhos fixos na assistência. Sua voz saiu firme, mas suave
Com o cinzel na mão, o menino escultor
Diante do bloco de mármore,
Sua face se iluminou com um sorriso de alegria
Quando um sonho angelical passou por ele.
Ele esculpiu este sonho na pedra dócil
Com golpes certeiros...
O escultor banhava-se na própria luz do céu —
Tinha captado aquela angélica visão.
Nós somos os escultores da vida,
Nossas vidas ainda não tocadas a nossa disposição
Esperando a hora em que, por ordem de Deus,
Nos chegue o sonho de nossas vidas.
Devemos esculpi-lo então na pedra dócil
Com golpes certos.
Sua celestial beleza será nossa —
Nossas vidas — esta angélica visão.
Ela não tinha gaguejado nem esquecido uma só palavra. Lau-ra estava orgulhosa e Carrie, enrubescida, voltou sorrindo para o seu lugar, em meio a aplausos.
Então, o Professor Owen anunciou:
— Agora ouviremos um resumo de nossa história, desde o descobrimento até os dias de hoje, por Laura Ingalls e Ida Wrigth. Comece, Laura.
Tinha chegado a hora. Laura levantou-se. Não sabia como ir para o estrado. Sem saber como, chegou até lá e começou:
— A América foi descoberta por Cristóvão Colombo em 1492. Cristóvão Colombo, natural de Gênova, na Itália, há muito tempo solicitara permissão para fazer uma viagem para o Oriente, a fim de descobrir um novo caminho para as Índias. Naquele tempo, a Espanha era governada pelos reis de...
Sua voz estava um pouco trêmula. Ela a firmou e continuou cuidadosamente. Não parecia a realidade que ela estivesse ali, em seu vestido de casimira azul, aumentado pelas anquinhas, com o broche de Mamãe prendendo a cascata de renda debaixo de seu queixo, sua franjinha úmida e quente no meio da testa.
Falou a respeito dos exploradores espanhóis e franceses, de seus estabelecimentos, da colônia perdida de Raleigh, das companhias comerciais inglesas na Virgínia, dos holandeses que tinham comprado a ilha de Manhattan e colonizado o vale do Rio Hudson.
A princípio, não conseguia distinguir ninguém, mas, pouco a pouco, foi reconhecendo o rosto dos assistentes. Papai era o que mais se destacava. Seus olhos encontraram os dela e brilhavam quando aprovou de cabeça.
Então ela começou a falar da grande história da América. Falou da nova visão da liberdade e igualdade no Novo Mundo, dos opressores da Europa, da guerra contra a tirania, da guerra pela independência dos Treze novos Estados, como a Constituição fora escrita e de como esses Treze Estados se uniram. Então, tomando a vareta, apontou para George Washington.
O silêncio era completo, quando ela contou sua meninice pobre, seus trabalhos como topógrafo, sua derrota pelos franceses em Fort Duquesne e os longos e desanimadores anos de guerra. Contou a sua primeira eleição para Presidente, o título que lhe deram de Pai da Pátria, as leis aprovadas pelo Primeiro e pelo
Segundo Congressos, a abertura do Território do Noroeste. Depois de John Adams, veio Jefferson, que tinha escrito a Declaração da Independência, e estabeleceu a liberdade de religião e a propriedade privada na Virgínia, e comprou todo o território entre o Mississipi e a Califórnia.
Depois, veio Madison, com a guerra da 1812, a invasão, u derrota, o incêndio do Capitólio e da Casa Branca, em Washington, as batalhas navais corajosamente travadas pelos americanos com poucos navios, e finalmente a vitória que consolidou a independência.
Depois veio Monroe, que ousou dizer a todos os países mais velhos e mais fortes e a seus tiranos que nunca mais ousassem invadir o Novo Mundo. Andrew Jackson saiu do Tennessee para combater e vencer os espanhóis na Flórida, mas os Estados Unidos, por honestidade, pagaram por ela. Em 1820, chegaram tempos difíceis: os bancos faliram, os negócios pararam, ninguém tinha emprego e muitos morreram de fome.
Finalmente, Laura apontou para John Quincy Adams. Contou sua eleição, falou sobre os mexicanos, que também se tinham tornado independentes, podendo comerciar com quem quisessem. Os primeiros comerciantes partiram do Missouri para Santa Fé, através de milhares de quilômetros desertos, para comerciar com os mexicanos. O primeiro carroção rodou pelo Estado de Kansas.
Laura tinha acabado. Agora, era a vez de Ida.
Pousou a vareta e cumprimentou o auditório. Um coro de aplausos quase a fez saltar de emoção. Os aplausos eram cada vez mais fortes até que ela teve a sensação de que precisava lutar contra eles para poder voltar a seu lugar. Não paravam os aplausos nem mesmo quando ela se pôs ao lado de Ida e, emocionada, sentou-se. Continuaram até que o Professor Owen os fez parar.
Laura tremia dos pés à cabeça. Queria dizer uma palavra para encorajar a amiga, mas não podia. Tudo quanto podia fazer era sentar e descansar, e sentir-se grata por se ter desincumbido da sua tarefa.
Ida se saiu muito bem. Não cometeu um só erro. Laura gostou de ouvir os aplausos para Ida, também.
Depois que o Professor Owen encerrou a sessão, levaram muito tempo para sair da igreja. Todos estavam de pé entre os bancos e nos corredores, comentando a Exposição. Laura percebeu que o Professor Owen estava satisfeito.
— Bem, Canarinho, você se saiu esplendidamente, disse Papai, e você também, Carrie.
— Sim, orgulho-me de todas as duas, disse Mamãe.
— Felizmente, lembrei-me de todas as palavras, disse Carrie. Mas, como estou contente por já ter passado! suspirou.
— Eu também, disse Laura, lutando com o casaco. Nisto sentiu que alguém a ajudava a vesti-lo e ouviu uma voz que dizia:
— Boa noite, Senhor Ingalls.
Era Almanzo Wilder.
Ele não disse nada, nem ela, até que saíram da igreja, seguindo a lanterna de Papai ao longo da estrada coberta de neve. O vento tinha parado. O ar estava frio e parado, e o luar refletia-se na neve.
Então Almanzo disse:
— Acho que deveria ter pedido licença para acompanhá-la até a casa.
— Sim, respondeu Laura, mas agora o senhor já está.
— Foi tão difícil sair daquela multidão, explicou o rapaz. Ficou em silêncio, por um instante e depois disse:
— Posso acompanhá-la até a casa?
Laura não pôde deixar de rir, e ele também.
— Sim, disse Laura.
De novo pensava por que ele estaria fazendo isto, quando era tão mais velho do que ela. O Sr. Boast, ou qualquer outro dos amigos de Papai poderia acompanhá-la até a casa, quando Papai não estava, mas agora Papai estava ali mesmo. Ela achava que ele tinha um riso simpático. Provavelmente, seus cavalos estavam presos na Rua Principal, de modo que, de qualquer maneira, ele tinha de seguir aquele caminho.
— Seus cavalos estão na Rua Principal? perguntou Laura.
— Não, amarrei-os no lado do sul da igreja, protegidos do vento. E acrescentou: — Estou fazendo um trenó.
Alguma coisa, no seu tom de voz, deu a Laura uma esperança louca. Pensou como seria bom deslizar atrás daqueles cavalos tão velozes. Naturalmente, ele não queria dizer que ia convidá-la, mas assim mesmo ela sentiu-se tonta.
— Se a neve agüentar, haverá boas oportunidades para andar de trenó. Parece que vamos ter outro inverno suave.
— É mesmo, não é? Laura estava certa de que ele não a convidaria.
— Leva algum tempo para fazê-lo bem feito e depois vou pintá-lo, com duas mãos de tinta. Não ficará pronto antes do Natal. A senhorita gosta de andar de trenó?
Laura pensou que fosse desmaiar.
— Não sei, nunca andei. Mas, por certo que gostaria muito, disse num arrebato.
— Bem, então virei em janeiro e talvez a senhorita queira dar uma volta para experimentar. Um sábado, está bem? Assim lhe convém?
— Sim, sim. Muito obrigada.
— Bem, eu aparecerei, dentro de umas duas semanas, se continuar esse tempo.
Tinham chegado, ele tirou o boné e deu-lhe boa noite. Laura quase que dançava de tanta alegria.
— Papai, Mamãe, imaginem que o Sr. Wilder está fazendo um trenó e vai levar-me para passear!
Papai e Mamãe se entreolharam e era um olhar sério.
Laura disse rapidamente.
— Quer dizer, se os senhores deixarem. Deixam?
— Veremos, quando chegar a ocasião, respondeu Mamãe.
Os olhos de Papai, porém, irradiavam bondade quando olhou para ela e ela ficou certa de que, quando chegasse a ocasião, ela poderia ir. Pensou como seria divertido, ir rapidamente, pela atmosfera fria, ao ar livre, puxada por aqueles cavalos. E não pôde deixar de pensar com um pouco de alegria:
— Ih, Nellie Oleson vai ficar louca de raiva!
Uma surpresa em dezembro
O dia seguinte foi calmo e preguiçoso. Não tentariam de novo fazer uma festa de Natal sem Mary. Os únicos presentes escondidos tinham sido os de Carrie e Grace e, embora o Natal só fosse no dia seguinte, tinham aberto naquela manhã o embrulho de Natal mandado por Mary.
Haveria uma semana inteira sem escola. Laura sabia que ela devia aproveitar o tempo para melhorar seus conhecimentos, mas não conseguia ficar junto dos livros.
— Não tem graça estudar, quando Mary não está aqui, dizia.
O almoço tinha acabado e a casa estava arrumada, mas parecia vazia sem Mary a balançar-se em sua cadeira. Laura andava pelo quarto, como se estivesse procurando alguma coisa.
Mamãe pousou seu jornal da igreja e disse:
— Confesso que não me habituo à idéia de que ela foi embora. Este artigo por um missionário é interessante, mas eu li em voz alta para Mary durante tanto tempo, que não sei ler para mim.
— Gostaria de que ela não tivesse ido! explodiu Laura e Mamãe disse-lhe que ela não devia pensar assim.
— Ela está progredindo tanto em seus estudos e é admirável que possa aprender tantas coisas — coser à máquina, tocar órgão, fazer trabalhos tão bonitos com miçangas.
Ambas olharam o bonito vaso feito de continhas azuis e brancas, enfiadas em fios muito finos de arame, que Mary tinha mandado de presente no Natal. Estava na escrivaninha perto de
Laura. Ela o apanhou e ficou passando os dedos pelas contas, enquanto a mãe falava:
— Estou preocupada em como vamos arranjar dinheiro para as novas roupas de verão dela e precisamos mandar algum dinheiro também para que ela possa comprar o que precisa. Ela já devia ter sua ardósia Braille, mas são tão caras.
— Dentro de dois meses, farei dezesseis anos. Talvez consiga meu certificado no próximo verão.
— Se você puder ensinar um período no ano que vem, poderemos trazê-la nas férias de verão. Ela está longe faz tanto tempo que deve ter vontade de nos ver, e só custaria o preço das passagens. Mas não se deve contar com os pintos antes de saírem da casca.
— É melhor eu ir estudar, suspirou Laura. Estava envergonhada de sua preguiça, quando Mary tinha paciência bastante para fazer um trabalho tão perfeito com as continhas que ela nem podia ver.
Mamãe retomou o jornal e Laura curvou-se sobre seus livros, mas não podia acordar de sua letargia. Da janela, Carrie anunciou:
— O Sr. Boast está chegando, com um outro senhor. Olhem, está batendo!
— Sim, é ele, disse Mamãe.
Laura abriu a porta e o Sr. Boast entrou, dizendo:
— Como vão todos? Apresento-lhes o Sr. Brewster.
As botas e o casaco do Sr. Brewster indicavam que ele era fazendeiro. O Sr. Brewster não tinha muito a dizer.
— Muito prazer, disse Mamãe, oferecendo cadeiras. Charles está na cidade. Como vai a Sra. Boast? Que pena ela não tenha vindo com o senhor.
— Eu não pensava vir, disse o Sr. Boast.
— Entramos apenas para conversar com esta moça, disse olhando para Laura, com seus olhos pretos.
Ela se assustou e sentou-se muito dura, como Mamãe lhe tinha ensinado, as mãos cruzadas no colo, os sapatos debaixo da saia, mas não podia respirar. Não sabia o que significavam as palavras do Sr. Boast.
— Lew Brewster, continuou ele, está procurando uma professora para a nova escola do distrito. Ele veio à Exposição
Escolar de ontem. Acha que Laura é a professora que procuram e eu lhe disse que não podiam fazer melhor escolha.
O coração de Laura parecia dar pulos, caindo até os pés.
— Ainda não tenho idade, murmurou.
— Ora, Laura, não há necessidade de dizer sua idade, a menos que alguém pergunte. O problema é: Você quer ou não ensinar se o Superintendente do Condado lhe der um certificado?
Laura não podia falar, Olhou para Mamãe, que perguntou:
— Onde é essa escola, Sr. Brewster?
— A dezoito quilômetros para o sul, foi a resposta.
O coração de Laura pulou mais ainda. Tão longe de casa, no meio de desconhecidos, teria de ver-se sozinha, sem ninguém para ajudá-la. Não poderia vir para casa, senão no fim do período. Dezoito quilômetros era uma distância enorme.
O Sr. Brewster prosseguiu:
— É uma comunidade pequena. O campo por lá ainda não está todo colonizado. Não podemos oferecer mais do que um período de dois meses, a vinte dólares por mês, com casa e comida.
— Estou certa de que é um ordenado razoável, disse Mamãe. Seriam quarenta dólares. Quarenta dólares! Laura não pensara que pudesse ganhar tanto dinheiro.
— Charles tem confiança em sua opinião, eu sei, Sr. Boast, acrescentou Mamãe.
— Lew Brewster e eu nos conhecemos no Oeste. É uma boa oportunidade para Laura, se ela quiser.
Laura estava tão entusiasmada que mal podia falar.
— Claro, gostaria de ser professora, se pudesse — gaguejou por fim.
— Bom, temos de ir, disse o Sr. Boast, levantando-se, acompanhado pelo Sr. Brewster. Williams está na cidade e se pudermos encontrá-lo antes que volte para casa, ele virá aqui para fazer o exame imediatamente.
Despediram-se e se foram.
— Oh, Mamãe, a senhora acha que eu serei aprovada?
— Acho que sim, Laura. Não se entusiasme nem fique com medo.
Não há razão para isto. Faça de conta que é uma simples prova na escola e você se sairá muito bem.
Um minuto depois, Carrie gritou:
— É ele! Vem saindo da loja de ferragens do Sr. Fuller! Bateram à porta. Mamãe a abriu. Um homem alto e forte, com um rosto simpático e um sorriso amável, disse-lhe que era Williams, o Superintendente do Condado.
— Esta é a mocinha que quer um certificado. Quase não precisava fazer o exame. Eu a ouvi ontem à noite. A senhorita respondeu a todas as perguntas. Mas, estou vendo seus livros e sua ardósia sobre a mesa, o melhor é acabar logo com isto.
Sentaram-se juntos à mesa. Laura fez problemas, exercícios de ortografia, respondeu a perguntas de geografia, leu a oração fúnebre de Marco Antônio na morte de César. Sentia-se inteiramente à vontade com o Sr. Williams, ao fazer a análise sintática do período escrito na ardósia.
Escalando aquele pico, eu vi uma águia
Voando perto do seu cume.
"Eu", pronome pessoal reto, da primeira pessoa do singular, funcionando como sujeito de "vi", pretérito perfeito do verbo ver, transitivo. "Águia", substantivo comum, objeto direto de "vi", modificado pelo artigo indefinido "uma", funcionando como adjunto adnominal... E assim por diante, até o final.
Depois de alguns outros períodos, o Sr. Williams declarou-se satisfeito:
— Não há necessidade de examiná-la em História, depois do que ouvi ontem. Vou ter de baixar um pouco suas notas, pois não lhe posso dar senão um certificado de terceiro grau até o ano que vem. Posso usar o tinteiro e uma pena?
— Aqui na escrivaninha, disse Mamãe.
Ele sentou-se à escrivaninha de Papai e abriu um certificado em branco. Por alguns instantes, o único ruído era o roçar de sua manga contra o papel. Ele limpou a pena, fechou o vidro de tinta e levantou-se.
— Aqui o tem, Senhorita Ingalls. Brewster me pediu que lhe dissesse que o período escolar começa segunda-feira próxima. Ele virá buscá-la sábado ou domingo, conforme o tempo. Sabe que é a dezoito quilômetros ao sul da cidade?
— Sim, senhor. O Sr. Brewster me preveniu.
— Bem, felicidade, disse ele cordialmente.
— Muito obrigada, senhor.
Depois que ele se foi, as duas leram o certificado.
DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO
Dakota Condado de Kingsbury
CERTIFICADO DE PROFESSOR
Pelo presente, certifico que a Senhorita Laura Ingalls foi examinada por mim e que a considero habilitada a ensinar Leitura, Ortografia, Escrita, Aritmética, Geografia, Gramática Inglesa e História
e, tendo dado provas de boa conduta moral, fica autorizada por este certificado de terceiro grau a ensinar as referidas matérias em qualquer escola deste Condado pelo prazo de doze meses.
Feito em 24 de dezembro de 1882.
Assinado
Geo A. Williams, Superintendente Escolar
Condado de Kingsbury, D. T.
Resultado do exame:
Leitura, 62, Escrita, 75, História, 98, Gramática Inglesa, 81, Aritmética, 80, Geografia, 85.
Laura estava de pé, com o certificado na mão, quando Papai chegou.
— Que é Laura? Você parece que tem medo de que este papel a morda.
— Papai, já sou professora.
— O quê! Que é isto, Carolina?
— Leia, disse Laura, entregando o certificado, e sente-se. Ele nem me perguntou pela idade.
Depois que Papai leu o certificado e Mamãe lhe contou tudo a respeito da escola, ele disse:
— Estou confuso.
Sentou-se e leu de novo o certificado.
— Muito bom, muito bom mesmo, para uma menina de quinze anos.
Queria falar naturalmente, mas sua voz estava oca, pois Laura teria de ir-se também.
Ela não queria nem pensar no que seria lecionar numa escola a dezoito quilômetros de casa, sozinha entre desconhecidos. Não queria pensar, nem queria ir. Quanto menos pensasse no assunto, melhor, pois tinha de ir e enfrentar o que viesse.
— Agora, Mary poderá ter tudo de que precisa e poderá vir para casa no verão, disse. Oh, Papai, o senhor acha, o senhor acha que eu posso mesmo lecionar?
— Claro, Laura, estou certo disto.
Laura Ingalls Wilder
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