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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


VERÃO PRÓDIGO / Barbara Kingsolver
VERÃO PRÓDIGO / Barbara Kingsolver

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

Venham todos os insatisfeitos

Reis de uma sala solitária e calada

Cheia de pássaros mudos e flores falsas

E armários abarrotados de sonhos há muito mortos!

Venham, vamos varrer as velhas ruas - como o noivo; Varrer as folhas mortas com vassoura incansável; Preparar-se para a primavera, como se fosse a noiva Cujo passo leve esperamos ansiosos.

Vamos varrer as sombras, onde comem os ratos; Varrer nossa vergonha - e deixar em seu lugar Um ninho de amor, um leito esplêndido.

Fragrante a flores trêmulas pela primavera.

E quando ela chegar, nossos sonhos mortos acordarão;

E quando ela chegar, todas as aves mudas cantarão.

 

 

 

 

                                     Predadores

O corpo se movia com a desenvoltura que resulta de hábitos solitários. Mas a solidão não passa de uma presunção humana. Cada passo abafado soa como um trovão para a vida dos insetos que corre sob nossos pés. Para o escolhido, cada escolha é um mundo renovado. Todos os segredos têm testemunhas.

Se alguém nessa floresta a estivesse observando - quem sabe um ho­mem armado, oculto dentro de uma mata fechada de faias - veria que ela andava depressa pela trilha e que franzia o cenho para o caminho à frente de seus pés. Teria visto nela uma mulher irritada, em busca de alguma coisa odiosa.

Estaria errado. Estava frustrada, é verdade, por estar seguindo no barro pegadas que não conseguia identificar. Gostava de certezas. Mas, se estivesse preocupada em examinar a própria mente naquela manhã úmida e clara, ela se teria declarado feliz. Adorava o ar depois de uma chuva forte, e a maneira como uma floresta de folhas gotejantes se enchia de uma percussão sibilante, que esvazia as palavras da sua cabeça. Sentia o corpo livre para seguir as próprias regras: o passo largo, rápido demais para admitir companhia, o agachar-se descuidada no caminho, para tocar os ramos quebrados, uma trança de cabelos, quase tão grossa quanto seu braço, a varrer o chão quando ela se abaixava. Seus membros se deliciavam, finalmente fora da minúscula cabana de paredes sufocantes feitas de troncos que as longas chuvas da primavera cobriram de musgo. O cenho cerrado indicava apenas concentração, nada mais. Dois anos de solidão haviam dado a seu rosto a expressão indiferente dos cegos.

Seguira os rastros do animal encosta acima durante toda a manha, subindo a montanha, contornara um terreno coberto de loureiros, e agora entrava numa floresta antiga, poupada pelos madeireiros devido à inclinação do terreno. Mas, mesmo aqui, onde o dossel de um velho carvalho protegia o topo da colina, a forte chuva da noite anterior havia apagado os rastros. Calculava o tamanho do animal pelos rastros que ele deixara na vegetação embaixo das macieiras, e essa noção bastava para fazer seu coração disparar. Poderia ser o que ela buscava havia já dois anos ou mais. Uma eternidade. Mas para saber com certeza, ela precisava de detalhes, especialmente a discreta marca de uma garra no prolongamento do dedo, o que distingue os canídeos dos felídeos, e que seria a primeira coisa a desaparecer sob uma chuva forte. Portanto, não seria vista agora, por mais que ela procurasse. Ela agora teria de procurar algo além dos rastros, o que para ela estava ótimo nessa manha doce e úmida, no começo do mundo. Ela era uma rastreadora paciente. O animal sempre acabava por se denunciar com um monte de fezes (que a chuva também teria dissolvido), ou por outra coisa qualquer, um sinal particular da espécie. Um urso deixa marcas de suas garras nos troncos, ou até morde a casca, mas esse não era um urso. Era do tamanho de um pastor alemão, mas também não era um animal doméstico. O cão que deixara esses rastros, se é que realmente era um cachorro, certamente era selvagem e estava faminto, para sair assim na tempestade.

Encontrou um lugar onde ele havia dado a volta num toco de castanheira, provavelmente para deixar o cheiro que era sua marca. Estudou o toco: um velho gigante em decomposição, que retornava ao solo desde que fora morto por um machado ou uma doença vegetal. Na sua base, o húmus estava pontilhado por cogumelos, pequeninos, de um alaranjado brilhante, e com os chapéus riscados, iguais a guarda-sóis abertos. O aguaceiro teria destruído coisas tão frágeis; esses deveriam ter nascido depois da chuva - depois de o animal ter passado por aqui, atraído pela amônia. Ela estudou o terreno por longo tempo, abstraída da elegante linha desenhada pelo seu nariz e seu queixo em perfil, sem notar o movimento da mão esquerda junto ao rosto para espantar uma nuvem de insetos e afastar do olho uma mecha de cabelo. Agachou-se, e apoiou as pontas dos dedos no terreno ao pé do toco, encostou o rosto na madeira velha e escura. Aspirou.

"Gato", disse baixinho para ninguém. Não era o que ela esperava, mas era uma boa surpresa encontrar sinais de haver um puma nesse lugar. A mistura de florestas e terras úmidas nessas montanhas era um excelente habitat para felinos, mas ela sabia que eles se restringem aos barrancos calcários do rio, na fronteira entre a Virgínia e o Kentucky. E, mesmo assim, ali estava um. Isso explicava os branidos que ouvira duas noites antes, estridentes e gelados no meio da chuva, iguais a gritos de mulher. Mesmo certa de ter sido um puma, ela havia perdido o sono. Nenhum ser humano teria deixado de se comover por aquela angústia tão humana. A lembrança lhe provocou um calafrio, e ela equilibrou o peso do corpo sobre as pontas dos pés, levantando-se.

E lá estava ele, encarando-a. Vestia botas e traje de camuflagem e tinha uma mochila maior que a dela. A carabina não era de brinquedo calibre 30, ao que parece. A surpresa se estampou em seu rosto antes que ela se compusesse para uma inspeção humana. Às vezes ela cruzava com caçadores ali no alto. Mas era sempre ela que os via primeiro. Este lhe havia tomado a vantagem - ele a vira por dentro.

- Eddie Bondo - disse ele, tocando a aba do chapéu, mas ela não entendeu de imediato.

- O quê?

- Meu nome.

- Meu Deus - disse ela recuperando finalmente o fôlego. - Eu não perguntei o seu nome.

- Mas você tinha de saber.

Arrogante, pensou ela. Ou melhor: rápido. Como uma carabina engatilhada, pronta a disparar.

- E para que eu preciso do seu nome? Está querendo me contar uma história para eu contar mais tarde? - perguntou, calma.

Era uma tática que havia aprendido com o pai, igual ao povo da montanha - mostrar calma quando se está muito agitado.

- Isto eu não sei. Mas eu não mordo.

Ele sorriu, parecendo pedir desculpas. Era muito mais jovem que ela. A mão esquerda tocou o cano da arma pendurada no ombro.

- Também não atiro em moças.

- Ainda bem. É ótimo saber disso.

Ele falou "eu não mordo" com sotaque nortista. Um estranho a invadir aquele espaço como uma praga de jardim. Não era muito alto, mas era bastante musculoso, do tipo que transparece na roupa, nos punhos, no pescoço e na postura: um corpo acostumado ao trabalho, que parece tenso mesmo quando relaxado.

- Vejo que você gosta de cheirar tocos - disse ele.

- Gosto.

- E deve ter bons motivos para cheirar tocos, não é?

- Tenho.

- E você vai me contar?

- Não.

Mais uma pausa. Ela olhou para as mãos dele, mas o que a atraía era o brilho verde dos olhos. Ele a observava indiscretamente, parecendo avaliar suas vogais sulistas e tentando adivinhar os segredos que se escondiam atrás do "tenho" e do "não" dela. O sorriso dele caía pelos cantos da boca, em vez de subir, e era como um parêntese interragativo acima do queixo reto. Ela nunca vira uma combinação tão atraente no rosto de qualquer outro homem.

- Você fala pouco - disse ele. - a maioria das moças que conheço fala tanto do que ainda vai fazer, que acaba não fazendo nada.

- Pois é. Eu não pertenço à maioria das moças que você conhece. Ainda não sabia se o estava antagonizando. Não tinha arma, e ele tinha, apesar de prometer não atirar. Nem morder. Ficaram calados. Ela mediu o silêncio pela passagem da nuvem diante do sol e pelos dois trinados de um sabiá, que soaram de repente através da folhagem e pararam diante dela e desse homem, sua... presa? Não, invasor. Predador era uma forte possibilidade.

- Posso acompanhá-la um pouco? - perguntou educadamente.

- Não - cortou ela. - Você iria me atrapalhar.

Um homem ou um menino, o que era ele? O sorriso se dissolveu, e de repente ele pareceu ferido pela secura dela, tal como um filho repreendido pela mãe. Ela ficou incerta sobre que tom usar: sabia espantar um caçador esquecido de que a estação de caça ao veado havia terminado - era esse o seu trabalho. Mas geralmente nesse ponto, a conversa já teria terminado. E os bons modos nunca foram seu forte, nem mesmo há muito tempo, quando ela vivia numa casa de tijolos, espremida entre marido e vizinhos. Passou quatro dedos pelos cabelos, uma longa trança marrom riscada de prata, e prendeu os fios desembaraçados num coque armado na nuca.

- Estou rastreando - disse ele calmamente - duas pessoas fazem duas vezes mais barulho do que uma só. Sendo caçador, eu esperava que você já soubesse disso. Não estou vendo a sua arma.

- É porque não tenho. Acho que estamos na Floresta Nacional, no interior de uma área de proteção, onde a caça é proibida.

- Ah! Isso explica tudo.

- Explica mesmo.

Ele ficou ali, olhando-a de cima a baixo durante um longo tempo. Tempo bastante para ela entender que Eddie Bondo - um homem, não uma criança - a havia despido de todas as suas vestes e as repusera na ordem correta. O náilon verde-escuro e Goretex eram o uniforme do Serviço Florestal, a flanela de algodão era dela mesma, assim como a calça térmica de seda, e o que um homem poderia encontrar de interessante debaixo de tudo aquilo, ela não fazia a menor idéia. Já havia muito tempo que ninguém chegava até lá.

Então ele se foi. O canto dos pássaros vibrava no espaço entre as árvores, um ar vazio, que agora parecia vasto e repentinamente oco. Mer­gulhara de cabeça no meio dos rododendros, sem deixar nada que levasse alguém a pensar que ele estivera ali.

O que ele deixou com ela foi um forte rubor, que lhe queimava a pele da nuca.

Ela foi para a cama levando Eddie Bondo na cabeça, e se levantou com uma pistola do governo enfiada no cinto. Ela devia ter sempre uma pistola à mão, para se proteger dos ursos, para autodefesa, e disse a si mesma que estava quase certa de que era o que devia fazer.

Durante dois dias ela o viu em todo lugar - à sua frente, na trilha à luz do crepúsculo; na cabana, e atrás dele a janela enluarada. Em sonhos. Na primeira noite, ela tentou distrair ou enganar a própria mente com livros, e na segunda ela se banhou cuidadosamente com a chaleira, pano e sabonete, que sempre evitava usar para não ofender o olfato dos veados e de outros animais com o único cheiro humano que conheciam - o dos caça­dores -, o cheiro do predador. Nas duas noites, ela acordou suada, perturbada pelo som feroz e abafado de morcegos se acasalando nas sombras de sua varan­da, cópulas agressivas, que soavam como estranhos se entrechocando.

Ê agora, aqui, em carne e osso, em plena luz do dia, ao lado do tronco de castanheira. Pois quando tornou a aparecer, foi no mesmo local. Desta vez ele estava com uma mochila, mas não com a carabina. Ela levava a pistola no casaco, carregada e com a trava de segurança acionada.

Mais uma vez, ela estava agachada ao lado do toco procurando sinais, certa de que dessa vez havia encontrado o que queria. Não restava dúvida: eram ras­tros caninos, provavelmente da fêmea cuja toca ela havia encontrado duas sema­nas antes. Macho ou fêmea, ele havia parado ao lado do tronco para observar as marcas do puma, que talvez o intrigassem, ofendessem, ou nada significassem para ele. É duro para um humano ser incapaz de entender aquela mente.

E mais uma vez - como se o fato de se erguer junto do tronco fosse o encantamento que materializara Eddie Bondo, como se ele fosse mais um resultado do fluxo de sangue que lhe fugia da cabeça - lá estava ele sorrindo para ela.

- Veja só quem eu encontrei! Aquela que não é como a maioria das moças que conheço.

O coração dela bateu tão forte, que as pulsações a ensurdeceram.

- Sou a única que você conhece, se é que gasta o seu tempo vagueando pela Floresta Nacional de Zabulon. O que parece ser sua única ocupação.

Desta vez ele estava sem chapéu, com o cabelo preto levemente desarranjado, parecendo um corvo na chuva. Seu cabelo tinha uma textura grossa e brilhante, que ela invejou, pois era absolutamente reto, dócil e nunca se embaraçava. Abriu as mãos.

- Veja senhora polícia florestal. Nenhuma arma. Eis um homem decente e obediente à lei.

- É o que estou vendo.

- E o máximo que eu posso dizer sobre você é que gosta de cheirar troncos.

- Eu jamais seria vista como uma pessoa decente. Nem passaria por homem.

O sorriso dele ficou mais sério.

- Evidente que não.

Estou armada. Ele não vai me ferir, mas ao pensar essas palavras, ela sabia que outras mesas haviam sido viradas. Ele havia voltado. Ela o queria de volta àquele lugar. E dessa vez ela iria esperar. Ele ficou calado por um minuto. Então, cedeu.

- Desculpe.

- Por quê?

- Por irritar você. Mas hoje estou decidido a seguir você nesta trilha, pelo menos um pouquinho. Se você não se importar.

- O que você quer descobrir?

- O que uma moça bonita como você anda cheirando nessas velhas florestas. Tenho passado as noites em claro.

Então ele tinha pensado nela. A noite.

- Não sou Chapeuzinho Vermelho, se é isso que você está imagi­nando. Tenho o dobro da sua idade.

O dobro da sua idade: antigo hábito do povo das montanhas invadia sua conversa atarantada.

- Sinceramente, eu duvido.

Ela achou que viria mais, e ele propôs:

- Eu fico longe, se você preferir.

Ela não gostava da idéia dele atrás dela.

- Eu prefiro que você vá na frente, tomando cuidado para não pisar nos rastros deste animal. Se é que você consegue ver para não pisar - ela mostrou os rastros feitos pelo gato três dias antes, não as pegadas mais recentes, nas folhas decompostas ao lado da trilha.

- Sim, senhora, acho que consigo.

Inclinou-se levemente, virou-se e caminhou na frente, mantendo cui­dadosamente os pés longe das marcas e sem tocar nas folhas podres. Ele era bom. Ela quase o deixou desaparecer entre a folhagem, e então voltou a observar os rastros dos dois machos, gato e homem caminhando lado a lado. Sem ser notada, queria observar como ele caminhava, obser­var seu corpo.

A tarde chegava ao fim; o lado norte da montanha, onde os rododen-dros se acumulavam nos vales, escurecia. Sob a sombra densa, o chão estava úmido e escorregadio. Mais um mês, e os rododendros estariam recobertos por esferas de flores cor-de-rosa, iguais aos buquês de noiva, um tanto vaidosos demais para uma flor silvestre nessa montanha isolada. Mas naquela hora, os botões ainda dormiam. Naquele momento, apenas a terra que florescia em jatos e contrações: lírios, belas da primavera,, todas as flores que tinham de percorrer todo um ciclo de vida entre o primeiro calor de maio - enquanto a luz do sol ainda passava entre os galhos nus -e a sombra escura do terreno sob a floresta. No sopé dessa montanha, nas fazendas do vale, a primavera já se estava esgotando na primeira semana de maio, mas a maré de flores silvestres que cobria as encostas havia acabado de chegar aqui, aos mil e duzentos metros. Nessa trilha, as flores eram tão espessas que eram esmagadas pelos pés. Mais algumas semanas, e as árvo­res estariam cobertas de folhas, as copas se fechariam, e essas flores fenece­riam. A primavera continuaria a subir, acordaria os ursos, e finalmente chegaria como uma chama absorvida pela escuridão ao alto da Montanha de Zabulon. Mas aqui e agora, a primavera ofegava num momento de luxúria. Onde quer que se olhasse, alguma coisa pedia mais tempo, mais luz, um beijo de pólen, a fusão de um esperma e um ovo e mais uma chance.

Ele parou duas vezes na trilha à sua frente, uma diante de uma azaléa ardente, tão coberta de flores que parecia um arbusto em fogo, e a outra por alguma razão que ela não chegou a ver. Mas nunca se voltou. Devia estar prestando atenção nos passos dela. Pelo menos isso; ou quem sabe, não. Na verdade, não fazia diferença.

Chegaram a um ponto onde a velha trilha do puma seguia encosta acima, e ela o deixou seguir. Esperou até ele desaparecer, e começou a descer, pisando de lado no terreno íngreme até encontrar um chão familiar a seus pés, o de uma das trilhas do Serviço Florestal. Durante o ano todo, ela procurava manter abertos os vários quilômetros dessas trilhas, umas cem, mas essa o mato nunca cobriu, pois ligava sua cabana a um mirante que ela amava. Os rastros frescos haviam se separado da trilha do puma, e aqui estavam eles novamente, descendo na direção de sua descoberta recente. Hoje ela ia evitar a trilha. Fazia já duas semanas, quatorze longos dias, que pareciam estações ou anos, que ela se forçava a não se aproximar. Já era oito de maio, o dia que ela pretendia se permitir voltar para observar sua descoberta e se convencer de que era verdade. Mas não agora; claro que não. Deixaria Eddie Bondo encontrá-la em outro lugar, se ele estivesse observando.

Ela descera até uma fenda de calcário onde as samambaias caíam da pedra em cascatas. O calcário úmido estava riscado de preto pelas nascentes que surgiam na estação das chuvas e que apareciam por toda parte na montanha castigada pelo excesso de precipitação. Estava perto da nascente do riacho, entrando no mais antigo bosque de abetos dessas montanhas. Manchas perfeitamente circulares de agulhas pálidas se espalhavam, tal como a decoração na base das árvores de Natal, sob a copa das enormes coníferas. Parou ali com os pés no terreno seco e escutou. "Nyaa, nyaa nycta" gritaram os chapins conhecidos. Então, um estalo. Ele voltara, e agora a seguia. Ela esperou até ele surgir de dentro do bosque escuro.

- Perdeu o rastro do puma? - perguntou a ele.

- Não. Perdi você. Por algum tempo.

- Já vi que foi por pouco tempo.

Estava novamente de chapéu, com a aba abaixada. Era mais difícil ler-lhe os olhos.

- Hoje você não estava atrás do gato. Aquela trilha já tem alguns dias.

- É verdade.

- Posso saber o que você estava procurando?

- Você é o tipo de homem que não se contenta com pouco, não é? Ele sorriu.

- O que está caçando, minha senhora?

- Coiotes.

Ele arregalou os olhos por um segundo e meio. Poderia jurar que as pupilas se dilataram. Mordeu o lábio inferior, pois preferia não ter dito nada. Mas parece que havia esquecido a arte de conversar com as pessoas - e a de evitar uma pergunta e esconder o necessário.

- E pumas e ursos e raposas - empilhou rapidamente, a fim de enter­rar os coiotes - tudo o que há por aqui, mas especialmente os carnívoros.

Mexeu-se, e sentiu os dedos dentro das botas. Ele devia dizer alguma coisa depois de ela ter falado. Como não falou, ela sugeriu:

- Acho que outro dia você estava procurando veados.

Ele deu de ombros. A temporada de caça ao veado havia terminado muitos meses antes. Ele não se deixaria pegar por uma guarda-florestal com distintivo.

- Por que os carnívoros, em especial?

- Nenhuma razão especial.

- Já sei. É deles que você gosta. Há os que gostam de observar os pássaros, outros que colecionam borboletas; e há garotas como você, que gostam de observar os comedores de carne.

Ele devia saber que isso faria a conversa chegar ao essencial: a con­descendência de um estranho - a razão é serem eles o topo da cadeia alimentar - disse ela friamente. - Se estão bem, então sua presa está bem, seu alimento está bem. Se não estão, é porque está faltando alguma coisa na cadeia.

- Ah, é?

- É. Observar os predadores nos informa o que é preciso saber sobre os herbívoros, como o veado, sobre a vegetação, os detritívoros, as populações de insetos, os pequenos predadores, como os musaranhos e arganazes. Tildo isso.

Ele a estudou meio confuso, e ela notou. Já estava acostumada a ver cérebros ianques tentando conciliar o sotaque sulista com uma boa for­mação. Então, ele perguntou.

- E o quê, mais precisamente, é necessário saber sobre "musaranhos e arganazes"?

- Eles são mais importantes do que você imagina. Os besouros, os vermes... Acho que, ao ver essas matas, um caçador enxerga um zooló­gico, mas quem você acha que alimenta os animais e limpa as jaulas? Sem larvas e térmites, você estaria afundado até o nariz em galhos pomortos ao tentar uma boa mira.

Ele tirou o chapéu, intimidado pela repentina disposição de con­versar.

- Eu tenho veneração pelas larvas e térmites. Ela olhou para ele.

- Você está querendo me deixar louca? Porque eu raramente converso tanto assim com pessoas. Eu quase esqueci como ler os sinais.

- Agorinha mesmo eu agi de um jeito que você poderia chamar de um pé no saco.

Dobrou o chapéu de caça e o prendeu numa das alças da mochila.

- E antes eu estava sendo intrometido. Me desculpe. Ela deu de ombros.

- Não é segredo nenhum, você pode perguntar. É o meu trabalho; o governo me paga para fazer isso, acredite ou não. Não paga muito, mas eu não me queixo.

- Para fazer o quê, fugir de chatos como eu? Ela sorriu.

- É, também isso. E manter as trilhas; e se fica muito seco em agos­to, para me sentar numa torre de vigia de incêndio. Essencialmente, é isso o que eu faço.

Ele olhou para a copa do abeto.

- Vigiar o paraíso. Vida dura, a sua.

- É. Alguém tem de tomar conta.

Foi então que ele lançou um sorriso direto ao coração dela. Todos os sorrisos anteriores tinham sido um ensaio para esse.

- Você deve ser inteligente, já que conseguiu um emprego neste lugar.

- Bem. Não sei se é inteligência. E preciso ser um certo tipo de pessoa. E preciso gostar dos vizinhos.

- Você não recebe muitas visitas?

- Humanas, não. Mas em fevereiro eu recebi a visita de um urso na minha cabana.

- E ele ficou o mês inteiro?

Ela riu, e o som a surpreendeu. Há quanto tempo não ria em voz alta?

- Não. Só o bastante para assaltar a minha cozinha. Houve uma espécie de degelo precoce, e eu acho que ele acordou com muita fome. Felizmente, eu não estava em casa.

- Então é assim, só você e os ursos? E você vive de quê, de raízes e frutas ?

- O serviço florestal manda uma pessoa me trazer enlatados e que­rosene uma vez por mês. Acho que é principalmente para ver se eu ainda estou viva e trabalhando. Se eu estiver morta, eles não precisam mais depositar o meu cheque.

- Ou seja: um desses namorados que vem uma vez por mês. Ela fez uma careta.

- Ai, meu Deus; claro que não. Eles mandam um rapazinho. Metade das vezes em que ele aparece eu nem estou na cabana, estou fazendo alguma coisa noutro lugar. Eu me esqueço do dia em que ele vem, e ele simplesmente deixa o material na cabana e vai embora. Para falar a verdade, acho que ele tem um pouco de medo de mim.

- Você não me parece nem um pouco assustadora - disse Eddie Bondo. - Para falar a verdade.

Ela sustentou o olhar dele enquanto agüentou. Ela lhe vislumbrou o queixo sob a lixa de uma barba de dois dias, e bastou olhar para adivinhar a sensação que teria se roçasse sua pele na dele. O pensamento lhe pro­vocou uma dor repentina. Quando continuaram a andar, ela o deixou uns cinco ou seis passos à sua frente. Ele era calmo, não tinha a necessidade de encher de conversa o espaço entre duas pessoas, o que para ela era uma qualidade. Ouvia os pássaros. Depois de algum tempo, parou para ouvir, e se surpreendeu por ele também ter parado, instantaneamente, com se estivesse sintonizando o passo dela às suas costas. Ele se voltou para ela com a cabeça baixa e ficou parado, ouvindo, tal como ela.

- O que foi?

- Nada. Só um passarinho.

- Qual?

Ela esperou, então inclinou a cabeça ao som de um trilado agudo.

- Aquele lá, um sabiá-magnólia. É realmente importante.

- Por quê?

- Bem, é que eles não faziam ninhos nestas montanhas desde a déca­da de trinta, quando as florestas foram todas derrubadas. Agora as flores­tas estão crescendo outra vez e eles estão voltando a se acasalar aqui.

- Como você sabe que é acasalamento?

- Não tenho como provar. Eles fazem os ninhos lá no alto, onde só Deus consegue encontrar. Mas só o macho canta, e ele canta para agitar as coisas, portanto ele deve ter razão para cantar.

- Impressionante.

- Não. Não é. Tudo o que se ouve agora na floresta é isso. Machos agitando as coisas.

- Impressionante é você saber tudo isso só com um trinado que eu mal consegui ouvir.

- Não é difícil.

Ela corou e agradeceu por ele ter se voltado, recomeçando a andar na sua frente, e não ter visto. Quando havia corado pela última vez? - pergun­tou a si mesma. Havia anos, com toda a certeza. E agora, duas vezes durante essas visitas. Corar e rir seriam coisas que só ocorrem entre pessoas? For­mas de comunicação?

- Então, você é uma observadora de pássaros. Não apenas de predadores.

- E você acha que aquele bichinho não é um predador? Tente ver o mundo do ponto de vista de uma lagarta.

- Vou tentar.

- Mas não, ele não é o topo da cadeia alimentar. Não é o lobo mau.

- Pensei que o lobo mau fosse o objetivo de sua caça, dona "guarda-florestal".

- Ora, ia ser uma caçada realmente sem graça, nos dias de hoje.

- Acho que sim. Quem matou o último lobo destas montanhas, Daniel Boone?

- Provavelmente. O último lobo cinzento. E deve ter sido por aí.

- E existe uma outra espécie?

- Existe. O cinzento, o lobo das histórias, todo mundo conhece. Mas havia uma outra espécie por aqui. Pequeno, chamado lobo vermelho. Mataram todos eles, antes mesmo de acabarem com os grandes.

- Um lobo pequeno? Nunca ouvi falar.

- Nem podia. Desapareceu do planeta.

- Ele está extinto? Ela hesitou.

- Bem, depende do que se considera extinção. Há um lugar lá na Luisiânia, um pântano, onde as pessoas, vez por outra, dizem ter visto um. Mas os lobos que foram encontrados lá são mestiços de coiote.

Falavam baixo. Ela falava baixinho para as costas dele, feliz por ele estar à sua frente na trilha. Ele era um caminhante surpreendentemente silencioso, o que ela achou bom. E muito rápido. Poucas vezes ela havia encontrado homens que conseguiam acompanhar o seu passo. E como se você estivesse sempre fugindo da cena do crime, como lhe tinha dito o seu marido. Por que você não anda como as outras mulheres? Mas não, ela não conseguia, e isso era mais uma coisa que ele usava contra ela. "Feminina" era um teste igual ao julgamento de bruxas, em que ela estava condenada ao fracasso.

- Mas você disse que viu coiotes por aqui - Eddie Bondo relembrou calmamente.

Coiotes: pequenos fantasmas dourados do lobo vermelho desapa­recido, que voltavam. Desejou ver o rosto dele.

- Eu disse isso?

- Não exatamente isso, mas quase.

- Eu disse que estava procurando por eles.

Estava aprendendo a usar astúcia da meia verdade: falar muito e dizer menos que o suficiente.

- Se eles estivessem realmente por aqui, eu gostaria muito de ver como iriam afetar as outras populações. Porque são uma coisa nova.

- Talvez novas para você, não para mim - disse ele. - Já vi mais coiotes do que pulgas em cachorros.

- E mesmo?

Olhando para as costas dele, ela não sabia o que ele sentia, nem mesmo se era verdade.

- Quero dizer, novas para este lugar. Eles não viviam aqui na época de Daniel Boone, nem na dos índios.

- Não?

- Não. Não existe registro deles por aqui. Então, de repente, eles simplesmente decidem estender seu território para o sul dos Apalaches. Ninguém sabe por quê.

- Mas aposto que uma moça esperta como você será capaz de adivinhar.

Será capaz, pensou ela. Mas não quer. Suspeitou que ele soubesse muito mais do que ela estava lhe contando. O que não era nada, seu segredo estava bem guardado.

- E não é só aqui - acrescentou ela.

Achou detestável o som da própria tagarelice ao evitar a pergunta.

- Não sou como a maioria das moças que você conhece, mas observe: nos últimos anos, apareceram coiotes em todos os estados continentais do país. Até na cidade de Nova Iorque. Alguém fotografou um correndo entre dois táxis.

- Devia estar correndo para pegar o metrô.

- O mais provável é que estivesse tentando pegar um rato. Decidiu que agora ficaria calada, e sentiu a satisfação costumeira

por essa escolha, o pequeno puxão interno que lembrava o puxão das alças de uma sacola de pano. Ela queria guardar seu segredo naquela sacola, manter os olhos na trilha, tentar ouvir. E também tentar não olhar o movimento animal do cabelo escuro dele, e a forma dos músculos nos fundilhos das calças. Mas o homem era todo músculos, não importa onde se estivesse olhando.

Ela fixou os olhos nas árvores, onde uma nuvem de planipênios recém-eclodidos parecia encher o ar entre os galhos. Provavelmente, perderiam as asas depois da chuva. Estavam por toda parte, dançando à luz do sol entre os galhos mais altos, tremendo com o dever grave e breve da vida adulta: viver um dia de luz e cópula. Depois de sair da vida lenta e paciente de larva carnívora, eles rasgavam as costas e despiam as cascas daquelas formas predatórias que se arrastam pelas folhas, que ficavam caídas na lama com as pernas vazias, enquanto as novas silhuetas voavam como fadas carnais, na busca urgente de um par, para a postura dos ovos e a vida eterna.

A trilha terminava abruptamente no mirante. Ela sempre perdia o fôlego ali: um despenhadeiro onde a floresta simplesmente se abria e a montanha descia aos seus pés, muitos pés de paredão calcário que até um esquilo teria dificuldade em escalar. Na primeira vez em que chegara até ali, ela vinha correndo, não era apenas uma caminhada a passo rápido, estava realmente correndo - no que estaria pensando? E quase caíra no despenha-deiro. Correr muito rápido foi sua forma de passar os primeiros meses nes­se trabalho, como se ela e seu passo longo e pouco feminino estivessem realmente tentando fugir da cena de um crime. Foi dois verões antes, e desde então sua mente já havia relembrado mil vezes aquele instante terrível em que teve de estacar com força, esfolando a perna e o rosto num tombo, quase arrancando do chão um arbusto. Sua vida poderia ter terminado naquele instante, num piscar de olhos, sem testemunhas. Ela sempre revivia o mo­mento, aterrorizada pela fragilidade do elo que ligava a parte da frente de sua vida a todo o resto. A isto. Um dia em que ela quase perdeu o dom de sentir o abençoado sol em seu rosto e mais o cenário da verde terra de Deus estendida lá em baixo como se fosse um cobertor amarrotado, os campos e pastos do Vale do Zabulon costurados uns nos outros.

- Você é dali?

Assentiu com a cabeça, surpresa por ele ter adivinhado. Ficaram em silêncio por mais de uma hora durante a subida pela tarde enfeitada de insetos até esse lugar, essa vista que ela agora observava. Lá estava o fio prateado do Ribeirão do Ovo; e lá onde ele se juntava, como o polegar aos outros quatro dedos, o Amargo, o Ganso, o Walker e o Preto, ficava a cidade de Barra do Ovo, um arranjo desordenado de pequenos quadrados que pareciam, a essa distância, um punhado de balas jogadas no chão. Em seu coração, ela guardava outras perspectivas: a loja de Oda Black, onde se viam tortas esquimós cobertas de gelo na geladeira; a loja de ferragens dos Irmãos Little, com a jarra de pirulitos gratuitos sobre o balcão empoeirado - toda uma infância na palma de um vale. Viu o caminhão de gado subindo lentamente a Rodovia 6, entre o pomar de Nannie Rawley e a fazenda que foi dela e do pai. Dali não era possível ver a casa, por mais que ela tentasse.

- Aquela não é a sua cidade, disso eu tenho certeza - disse ela.

- Como você sabe?

- Primeiro, pelo sotaque. E segundo, não existe família Bondo no Condado de Zabulon.

- E você conhece todo mundo no condado?

- Todo mundo. E o cachorro de cada um.

Um gavião de rabo vermelho subiu, aproveitando uma corrente de ar e dando guinchos estridentes, a alegria do predador. Ela correu os olhos pelo céu em busca de outro. Quando guinchavam assim, estavam se acasalando. Uma vez ela viu um casal juntando-se no céu, agarrando-se, e caindo pelo ar em mergulhos mortais de muitos pés, que a deixavam sem fôlego, mas sempre se soltando e voando cada um para um lado, antes de se esborrachar mortalmente numa paixão louca.

- Qual é o nome daquele lugar? Ela deu de ombros.

- Vale. Vale do Zabulon, por causa da montanha.

Tinha certeza de que ele teria rido do nome Barra do Ovo e resolveu não dizer.

- Você nunca pensou em ir embora?

- Por acaso você está me vendo lá em baixo?

Ele colocou a mão em pala sobre os olhos, como um índio de livros de história, e fingiu esquadrinhar o vale:

- Não.

- Pois então...

- Eu queria dizer dessa região, dessas montanhas.

- Eu fui embora. E voltei. Nem faz tanto tempo assim.

- Como os sabiás-magnólia.

- E, como eles.

Ele concordou com a cabeça.

- Dá para ver por quê.

Por que tinha saído, ou por que tinha voltado - qual dos dois ele via? Imaginou como os olhos estrangeiros dele viam o lugar. Ela sabia a impressão que aquele som produzia; havia aprendido a nunca dizer o nome de sua terra na presença de gente da cidade. Mas, e a vista? Seria possível que o lugar não fosse bonito? No fundo, não passava de uma fileira de pequenas fazendas espremidas entre esta montanha e a seguinte, o Pico Clinch, cujas encostas enrugadas eram cobertas de florestas escuras. Entre aquele pico e este, apenas um muro de ar azul e transparente e um único gavião.

- As fazendas lá embaixo são de criação de ovelhas - comentou Eddie Bondo.

- Algumas são. Outras produzem fumo. Algumas são de gado leiteiro. Ela se fechou em pensamentos, tocando-os como se fossem pedras

lisas no fundo do bolso, enquanto franzia os olhos para ver o Clinch, o relevo da terra, a densidade das florestas. Na primavera passada, um cria­dor tinha encontrado uma toca de coiotes na mata acima de seu pasto. Mãe, pai e seis filhotes, como se comentava na cidade, todos mortos graças à pontaria do fazendeiro. Ela não acreditava. Sabia como os homens do Zabulon gostavam de bravatas, e sabia que uma família de coiotes era uma criação praticamente imortal. "Mãe e pai" era a avaliação de um fazendei­ro de alguma coisa que estava além de seu conhecimento; uma família de coiotes era formada principalmente por fêmeas irmãs, lideradas por uma fêmea alfa, todas dedicadas à reprodução de uma delas.

Quatorze dias antes, quando encontrou a toca na sua própria montanha, ela teve vontade de se levantar e cantar igual a um galo. Era o mesmo bando, tinha de ser. A mesma família, recomeçando. Haviam ocupado uma toca sob o emaranhado de raízes de um enorme carvalho caído no solo, perto do Ribeirão Amargo, montanha abaixo. Encontrara a toca por acidente, naquela manhã, quando estava só procurando sinais da primavera e descia a montanha com um sanduíche enfiado no bolso. Caminhara uns três quilômetros encosta abaixo antes de encontrar umas campainhas que floresciam ao longo das margens do riacho, e estava sentada no meio delas, comendo o sanduíche com uma mão enquanto observava um tentilhão através dos binóculos, quando percebeu um movimento na toca. A surpresa foi inacreditável, depois de dois anos de busca. Passou o resto do dia deitada num canteiro de gualtérias, prendendo a respiração como uma adolescente apaixonada, esperando entrever alguma coisa. Conseguiu ver uma fêmea entrar na toca, uma anca dourada entrando na escuridão, e pressentiu a presença de mais uma ou duas. Não teve coragem de se aproximar para ver os filhotes. Se perturbasse essas senhoras astutas, elas desapareceriam. Mas a que ela viu tinha as tetas cheias da mãe lactante. As outras deviam ser suas irmãs, ajudando a alimentar os filhotes. Quanto menos os fazendeiros do Vale do Zabulon soubessem dessa família, melhor.

Eddie Bondo arrancou-a de seus pensamentos. O tecido da sua man­ga encostava no dela, sussurrando segredos. Foi bruscamente atirada de volta ao próprio corpo, onde os músculos do rosto pareciam enormes e insensíveis, enquanto ela olhava para o vale, tentando ver o perfil dele com a visão periférica. Será que ele sabia que o toque do seu tecido no dela era tão perturbador quanto o de uma pele nua? Como ela havia chegado a esse ponto, um corpo que apagara toda e qualquer lembrança do que fosse um toque humano - fora essa a sua escolha? Não fora dela a iniciativa do divorcio, a menos que fosse verdadeira a alegação do marido de que seu treinamento e preferência, voltados para o ar livre, eram escolhas que um homem se via forçado a rejeitar. Um marido da mesma idade que repenti­namente se torna muito crítico em relação à esposa ja passada dos quarenta era algo que ela não conseguiria suportar. Mas o emprego aqui no alto do Monte Zabulon, onde vivia em perfeito isolamento nos últimos vinte e cinco meses - isso sim. Fora escolha dela. Uma prova, se é que alguém estava observando, de que o casamento nunca fora para ela uma necessidade. - Que lindo - disse ele.

- ela pensou: "o quê?" Olhou para o rosto dele. Ele também a olhou:

- Já viu alguma vista mais bela que isso aí? - Nunca - concordou ela: era a sua terra.

Os dedos de Eddie Bondo se curvaram sob as pontas dos dela, e assim, de repente, ele estava segurando sua mão. Tocava sua mão como se fosse a única reação possível a tanta beleza aos pés dos dois. Um pulso

de eletricidade percorreu a parte interna de suas coxas como um raio que rasga uma árvore ao meio, deixando-a a em brasas ou, quem sabe, a ponto de irromper em chamas.

- Eddie Bondo - exclamou ela em voz alta.

- tomando cuidado de não olhar para ele, e sim para o nada azul­celeste a sua frente, emendou:

- Não o conheço e a nenhum antepassado seu desde Adão e Eva. Mas você poderia passar a noite na minha cabana, se não preferir passar a noite no mato. Depois disso ele não largou mais os dedos dela.

Tomaram juntos a trilha que entrava na floresta, com essa coisa nova entre eles, as mãos dadas, vivas, com os terminais nervosos de um animal recém-nascido dotados de vontade própria, puxando os dois para

a frente. Ela se sentia como se todos os seus sentidos duplicassem ao olhar essa outra pessoa, observando o que ele via. Ele se abaixava sob galhos baixos e os prendia com a mão livre para que não batessem no rosto dela. Moviam-se muito próximos, vendo pela primeira vez o milagre produzido no chão da floresta por dois meses de chuva e dois dias do calor da primavera. Estava coberto de cogumelos: amarelos, vermelhos, mar­rons, cor-de-rosa, mortalmente brancos, minúsculos, enormes, delicados, berrantes, que pintavam o chão e cobriam os lados das árvores com sua carne filamentosa. Suas cabeças bulbosas varavam o chão de folhas decompostas, anunciando o erotismo de um bosque fecundo no apogeu da pri­mavera, o começo do mundo. Ela se ajoelhou no chão de húmus para lhe mostrar uma cabeça de cobra, pequenos lírios amarelos com tímidas péta­las curvas e folhas parecidas com uma cabeça de cobra. Ele se curvou ao lado dela para tocar outra flor que ela não tinha visto e quase amassou. - Veja - disse ele.

- Ah, veja - repetiu ela, quase num sussurro - um sapatínho-de-vénus. A pequena orquídea cor-de-rosa estava onde ela tinha certeza de que estaria, onde o solo era adoçado pelos pinheiros. Afastou-se para não machucá-la e viu outras iguais, dezenas de sacos ovais enrugados, por toda a encosta, presos em hastes altas. Ela comprimiu os lábios, ten­tando tirar os olhos de todos aqueles escrotos cor-de-rosa.

- Quem inventou este nome? - perguntou ele.

E riu - os dois riram - de quem fingiu que aquelas flores pareciam sapatos e não testículos masculinos. Mas os dois tocaram com cuidado a carne venosa da orquídea, surpresos com sua fria textura vegetal.

- As abelhas entram aqui - disse ela, tocando a abertura abaixo da coroa de pétalas estreitas por onde o polinizador entra no saco.

Ele se inclinou para olhar de perto, quase roçando sua testa na coroa escura dos cabelos dela. Ela se surpreendeu com o seu interesse pela flor, e com a aguda reação física que teve ao corpo dele, casualmente tão próximo do dela. Sentia o cheiro de lã lavada do cabelo úmido e da pele acima do colarinho. Essa dor seca que ela sentia era mais profunda que a fome, parecia mais sede. O coração batia com força e ela se perguntou se lhe havia oferecido um lugar seco para dormir, seria isso o que ele esperava? Seria só isso que ela queria oferecer? Não tinha certeza de ser capaz de suportar todas as horas de uma noite passada em tamanhã proximidade, numa cabana apertada, querendo, mas não tocando. Ela não suportaria ser descartada outra vez, como o fora no final pelo marido, nem ser olhada sem ser vista no quarto quando ele procurasse os óculos ou as chaves, ainda que ela estivesse nua, o corpo apenas um estorvo, como um estranho no teatro ou no cinema bloqueando a visão do filme. Ela já estava velha demais para se fazer de tola. De perto, este Eddie Bondo era um rapaz ferozmente lindo, ainda mal saído da segunda década.

Ele se deixou cair sentado e olhou para ela, pensativo. Mais uma vez ele a surpreendeu ao dizer:

- Existe coisa parecida lá no norte, que cresce nos torrões de turfa.

Ela se sentia perturbada por cada nova presença dele, pelas modula­ções de sua voz, os seus dedos tocando essa flor, seus conhecimentos sobre a turfa, que ela nunca havia visto. Não tinha coragem de tirar os olhos dos crescentes brancos das unhas nas pontas dos dedos dele, as linhas finas das mãos ásperas. Tinha de falar alguma coisa.

- Sapatinhos-de-vênus lá no norte? Onde, no Canadá?

- Não é a mesma flor, mas atrai os insetos. A abelha sente o cheiro de alguma coisa doce e entra; então fica presa, a menos que encontre a única saída. Assim, ela espalha o pólen por todo o interior, exatamente onde a flor deseja. Exatamente como agora, olhe aqui.

Ela se inclinou para ver, consciente da própria respiração ao tocar o pequeno botão onde a orquídea forçava o polinizador a arrastar o abdômen antes de deixá-lo voar. Sentiu uma pontada de comoção no osso do púbis.

Como ela podia querer este estranho? Seria razoável fazer outra coisa que não se levantar e se afastar dele? Mas quando ele virou o rosto em sua direção, ela não conseguiu conter-se, e levou a mão ao queixo dele, e bastou isso. A pressão do rosto dele contra o dela empurrou-a suavemente para trás, até ficarem os dois deitados no chão, cedendo à gravidade da Terra. Esmagavam as orquídeas sob seus corpos, pensou ela vagamente, mas de­pois esqueceu tudo, pois parecia sentir todas as camadas de tecido, carne e osso entre o corpo dele e o coração palpitante dela, cada um dos folículos da pele dele contra seu rosto, até mesmo os riscos dos lábios dele, quando a toca­ram. Fechou os olhos contra as sensações avassaladoras, mas isso as tornou ainda mais intensas, assim como olhos fechados tornam mais aguda a sensação de tonteira. Abriu os olhos para tornar tudo isso real e possível, estarem se beijando deitados nas folhas frias, despencando como um par de gaviões; não mergulhando no ar, mas rolando gradualmente para baixo sobre línguas de cobra e amanitas venenosas. Pararam na base da colina, o corpo dele sobre o dela. Ele olhou dentro dos olhos dela como se houvesse alguma coisa atrás deles, no fundo da terra, e arrancou folhas secas de seu cabelo.

- Que coisa! Olhe só como você está.

- Não posso - ela riu -, faz muito tempo que não tenho nenhum espelho na cabana.

Ele a ajudou a se levantar, e os dois caminharam durante alguns minutos em silêncio perplexo.

- Esta é a estrada do jipe - mostrou quando chegaram a ela -, minha cabana fica logo acima, mas a estrada continua pela encosta abaixo até aquela cidadezinha. Se é que você estava procurando a saída.

Ele parou um instante e olhou para baixo; então, forçou-a gentil­mente a encará-lo e segurou sua trança.

- Pensei que já tinha encontrado o que eu queria.

Os olhos dela se moveram para o lado, para a descrença, e volta­ram. Mas ela se permitiu um sorriso quando as mãos dele chegaram ao seu peito e começaram a afastar as camadas de roupa que pareciam sair todas daquele ponto acima de seu coração. Tirou o casaco de náilon, des­lizou-o pelos seus ombros até a dobra dos cotovelos.

- Encontrar não é procurar - disse ela.

Mas sentiu o cheiro do cabelo e do pescoço dele quando ele encos­tou a boca no seu queixo. A intoxicação da lã a levou a sentir sede outra vez, se é que o nome era realmente esse, mas uma sede ancestral, que nenhum ser vivo deixaria de saciar, já que a água estava à mão. Soltou o protetor dos cotovelos e deixou-o cair no barro, ergueu as mãos até o fecho do casaco e rolou o capuz para trás como se fosse uma pele solta. Permitiria o surgimento dessa coisa nova, o que quer que ela fosse. Moveram-se desajeitados os últimos cem metros até a cabana, sem se separar, arrastando as mochilas e metade das camadas de roupa de náilon.

Então ela o soltou, e se sentou nas tábuas do chão da varanda aberta, para tirar as botas.

- É aqui que você vive?

- É - respondeu, imaginando o que mais precisava ser dito - eu e os ursos.

Ele se sentou a seu lado e levou o dedo até os lábios dela. Chega de conversa, parecia dizer - mas eles nunca haviam conversado sobre isso, e ela ainda não tinha certeza de que isso era real. Ele guiou os ombros dela até o chão e se deitou a seu lado, acariciando-lhe a face, desabotoando a saia; e tocando-a sob as roupas, desceu a mão para estudá-la, até que apenas sua boca sobre a dela a impedia de chorar. Ela curvou as costas e deslizou a pistola sobre as tábuas do chão. Tudo estava correndo rápido demais, sua pélvis se ergueu novamente, e então ela chorou - apenas um gemido de mulher - e teve de se distanciar para não se perder completamente nele. Abriu os olhos e viu a pistola na beirada da varanda, apontada para o vale com a trava de segurança acionada. O último apêndice de seu medo.

Cuidadosamente, apartou-se das duas mãos dele, ergueu-as acima dos ombros, rolou por cima dele e o prendeu no chão, como faria um lutador. Escanchada sobre as coxas dele, olhando seu rosto, ela se sentiu encantada com essa presença tão próxima. Ele sorriu, aquele estranho sorriso em parênteses, que ela já conhecia. Então é só isso: bem simples, pensou. E é possível. Ela se curvou sobre ele, e sentiu na ponta da língua o gosto da pele salgada do seu peito, e continuou a explorar o tambor esti­cado do abdome. Ele tremeu ao sentir o hálito quente sobre a pele, dei­xando-a saber que podia tomar e possuir Eddie Bondo. Foi a decisão do corpo, um corpo sem mais escolhas em sua história natural do que uma orquídea, ou a abelha de que ela necessita, e assim os dois se perderiam aqui, ela o deixaria entrar onde quisesse ir. Na última hora de luz, en­quanto os planipênios buscavam alívio para suas breves vidas no ar bri­lhante do alto da floresta, e o casulo de náilon de seu casaco jazia amarrotado na lama, seus corpos de pele fina completaram as apresentações no chão da varanda. Uma brisa espargiu uma chuva das folhas novas nos cabelos dos dois, mas na busca da eternidade, eles nem notaram o frio.

Mais tarde, ao crepúsculo, cada vez mais escuro, passou-se uma eternidade até ela sentir o coração voltar ao ritmo normal. Ele estava deitado, olhando para a floresta escura atrás dela, aparentemente sem problemas com o próprio coração. Os sabiás cantavam, já era tarde. Um vento soprou, as árvores jogaram mais pingos d'água no telhado da cabana, que ressoaram como chumbinhos de caça e escaldaram com gotas geladas as partes nuas dos dois corpos. Ela observou uma gota d'água pendurada na ponta da orelha dele, presa num fio de ouro quase imperceptível, que lhe perfurava a orelha esquerda. Seria ele tão bonito quanto lhe parecia? Ou era apenas mais um homem, um osso que lhe jogaram para matar sua fome?

Com a mão esquerda, Eddie desembaraçou os cabelos que ele mesmo havia embaraçado. Mas ainda olhava para longe; a mão se movia por si só. Ela se perguntou se ele trabalhava com animais ou coisa parecida.

Voltando de onde estivera, ele fixou os olhos no rosto dela.

- Ei, menina bonita. Você tem nome?

- Diana.

Ele esperou, e:

- Diana, e ponto final?

- Diana, e não tenho certeza do resto.

- Ora, essa é diferente: uma moça ainda sem sobrenome.

- Eu tenho um sobrenome, mas é do meu marido... era do meu marido. Ou é dele, mas ele era - ela se sentou e tremeu, observando-o levantar-se para puxar a calça - você não entende, mas a gente fica meio confusa. Esse nome já não significa nada para mim, mas ainda assim continua pregado em toda a minha vida, na minha carteira de motorista e no resto.

- Ainda assim - brincou ele, sorrindo e se apropriando das palavras dela - o macho é assim: marca território.

Ela riu.

- É isso. Ele pôs sua marca em tudo que eu tinha, e depois foi embora. Eddie Bondo foi até a beirada da varanda e urinou no mato. Ela não

percebeu até ouvir o barulho nas folhas das maçãs de maio e nas samam-baias do Natal, e então se espantou.

- Meu Deus - disse ela.

Ele se voltou e olhou surpreso para ela.

- O quê? Desculpe.

O arco de urina baixou, reduziu-se a gotas, e ele fechou a braguilha. Ela disse mansamente:

- Você ainda está no meu território.

Diana tinha sido casta durante toda a adolescência, tímida demais para os rituais de alteração de aparência que os meninos pareciam exigir e, sem a mãe, longe demais do jogo para aprendê-lo. Quando foi para a universidade, viu-se acolhida e orientada por homens muito mais velhos - principalmente professores - até se casar com um. Sua mundanidade caipira, sua altura e seriedade - alguma coisa - levou-a a saltar uma geração. Nunca soube o que um homem perto dos trinta anos tinha a oferecer. Eddie Bondo sabia o que fazia e tinha energia para buscar a perfeição. Não dormiram entre o crepúsculo e a aurora.

Já estava claro quando ela recuperou uma serenidade ainda que tardia para, num ato de contrição, imaginar o que poderia ter perdido aqui -além, momentaneamente, do controle. Ela sabia que muitos homens da sua idade, e a maioria dos outros animais, já haviam feito isso. Uma colisão de estranhos. Ou, não exatamente estranhos, pois havia a corte caracterís­tica: a exibição, a retirada, a dança do tríduo de obsessão. Mas a visão dele dormindo na sua cama fê-la sentir-se eufórica e profundamente perturbada. Sua própria nudez a assustava; ela geralmente dormia sob muitas camadas. Acordada pelos sabiás à primeira luz da madrugada, sentindo a textura do lençol frio sobre a pele, ela se sentia abalada e desorientada como uma borboleta saída da larva sem graça, sem idéia de onde voar.

Pela aparência da mochila, concluiu que ele era um tipo desgarrado, na longa estrada, e se sentiu infeliz ao indagar a si mesma se havia se acasalado com alguém perigoso. Mais tarde, entretanto, ela se decidiria pelo contrário. Ele se levantou calmamente e sem pressa, e começou a tirar itens da mochila, empilhando-os no chão em montes bem organizados, enquanto procurava roupas limpas e o aparelho de barbear. Ela concluiu que um criminoso não gastaria tempo fazendo a barba. A mochila lembrava um lar respeitável: um armário de remédios, a despensa, a cozinha. Havia muita comida lá dentro, até mesmo uma cafeteira. Ele encontrou um ponto de apoio para colocar o espelhinho num dos troncos da parede e foi escanhoando os diversos planos de seu rosto, um quadradinho de cada vez. Ela tentou não olhar. Depois, ele andou pela cabana com a confiança de um convidado, assoviando, só parando para examinar os títulos dos livros. Te­oria genética da população e ecologia evolucionista: aquele tipo de coisa lhe deu um certo susto que logo passou.

A minúscula cabana estava tomada pela presença dele, e ela não conseguia se concentrar no preparo do café da manhã. Batia as portas dos armários procurando coisas nos lugares errados, não estava acostumada a ter companhia. Tinha só uma cadeira, mais uma velha poltrona na varanda, de cujos braços os passarinhos arrancaram a fibra para revestir seus ninhos. E era só. Afastou da mesa a cadeira, encostou-a aos troncos da parede oposta e pediu a ele para se sentar, para abrir espaço junto ao fogão a gás onde fritava ovos em pó e fervia água para o mingau. À direita dele, estava a cama de metal com as cobertas desarrumadas, a mesinha de cabeceira, soterrada sob uma pilha de livros e cadernetas de campo, e a lamparina de querosene que os dois quase haviam derrubado na pressa louca de se consumirem.

O fogo da lareira se apagara durante a noite, e a manhã estava fria. Só em julho o calor do verão chegaria àquela altitude. Quando ela trouxe os dois pratos de ovos, ele se levantou para lhe oferecer a cadeira, e ela se sentou sobre as pernas enroladas na camisola de flanela, tremendo, observando-o através do vapor que saía de sua caneca de café. Ele foi até a janela e ficou olhando para fora enquanto comia. Tinha um metro e sessenta e cinco. Não era só mais jovem, era também meia cabeça mais baixo que ela.

- Não estou querendo ofender - observou - mas homens da sua altura fogem de mim como o diabo da cruz.

- É mesmo?

- É. Geralmente me encaram ferozmente do outro lado da sala. É como se ser alta fosse um insulto que eu tivesse inventado especi­ficamente contra eles.

Ele parou, o garfo suspenso no ar, e olhou para ela.

- Não me ofendeu, Diana, mas você vem passando tempo demais no meio de vermes e roedores.

Ela riu, e ele lhe lançou um sorriso: um pescador de truta lançando a isca.

- Você é o que os caras no oeste chamam de um grande copo d'água. Ele parecia sincero. Os braços e coxas longos, seus pés compridos na verdade, todas as suas dimensões -, pareciam ser coisas de que ela jamais se cansaria. Era impressionante. E disso, ela gostava. Era a juventu­de dele que a deixava nervosa. Ela abafou a vontade de perguntar se a mãe dele sabia onde ele estava. O máximo que se permitiu foi perguntar por suas origens. "Wyoming", foi sua resposta. Criador de ovelhas, filho de três gerações de criadores de ovelhas. Ela não lhe perguntou o que trouxera um criador de ovelhas do Wyoming até o sul dos Apalaches. Teve o mau pressentimento de que já sabia.

Por isso, ela rejeitou a isca e olhou pela janela para a floresta lá fora e para a bruxa dourada pousada na tela da janela. O bichinho chegara ao fim de sua longa noite de comilança e amor, e agora, levada pelo primeiro calor do dia, iria procurar um lugar onde recolher as asas e esperar as horas inúteis do dia. Observou-a subir lentamente pela janela com as pernas douradas e peludas. De repente, abriu as asas, revelando o par de olhos escuros pintados para assustar os predadores, e voou para um esconderijo seguro. Diana sentiu o mesmo sobressalto - fugir desse macho perigoso, que surgira na sua floresta.

Um criador de ovelhas. Ela sabia do ódio que os criadores do oeste tinham pelos coiotes; era a mais famosa, talvez a mais feroz das inimizades entre homem e animal. Já era suficientemente mau deste lado mais calmo do Mississipi. Os fazendeiros entre os quais ela crescera preferiam matar um coiote a aprender a pronunciar o seu nome. Era um medo injetado nos humanos ao longo de séculos de contos de fadas: mande um homem tomar conta de um lugar, e ele se livra de ursos e lobos. Os europeus haviam exterminado os seus muitos séculos antes, em toda parte, menos nas montanhas mais remotas, e talvez até mesmo esses refúgios já fossem lenda. A partir do terceiro ano, quando Diana Wolfe aprendera a recitar o juramento e a procurar "lobo" na enciclopédia, ela havia aprendido a amar a América por ser tão jovem que o povo ainda não fora capaz de exterminar os grandes predadores. Apesar de continuar tentando, com toda a seriedade.

- Outro dia você estava com uma carabina calibre 30 - disse ela. -Onde está?

- Guardei - respondeu ele com toda a simplicidade.

Estava barbeado, alegre e peito nu, pronto para comer os ovos em pó que ela lhe havia oferecido. A arma dele estava escondida em algum lugar, enquanto seus pés lindos e bem arqueados andavam pela sua cabana com uma graça nua e pura. Diana percebeu que estava afundada até o pescoço.

O que poderia atrair um criador de ovelhas do Wyoming até o sul dos Apalaches nessa época do ano só poderia ser a Grande Caçada das Montanhas, organizada pela primeira vez naquele ano. Terminara há pouco, uns dias antes do primeiro de maio - época de parir e amamentar, uma excelente temporada de caça quando o objetivo é o extermínio deli­berado. O evento atraíra caçadores de todo o país, com o festejado objetivo de matar coiotes.

 

                             O AMOR DAS BRUXAS

Lusa estava sozinha, enrodilhada na poltrona, lendo furtivamente - única forma de leitura permitida à mulher de um fazendeiro -, quando a força de uma fragrancia lhe interrompeu os pensamentos. Na décima primeira hora de um dia em meados de maio, durante um momento indelével que iria mudar tudo, ela foi arrancada de sua vida.

Fechou os olhos e voltou seu rosto para a janela aberta, aspirando profundamente. Madressilvas. Lusa fechou o livro sobre o dedo indicador. Charles Darwin a falar de bruxas, era nisso que ela se havia perdido: uma descrição de uma Satumia carpini virgem, cujo cheiro os machos seguiam até cobrir a toca, e muitos chegavam mesmo a entrar pela chaminé do Mr. Darwin para encontrá-la. Pilhas de livros de Lusa estavam no chão, meio ocultos sob uma poltrona excessivamente estofada, único lugar da casa que considerava seu. Quando se havia mudado, arrastara pelo quarto aquela poltrona, uma coisa esquisita, forrada de brocado verde, até a janela alta, virada para o sul, por causa da luz. Agora, ela se inclinou na cadeira e moveu ligeiramente a cabeça para enxergar através da tela empoeirada. Lá longe, do outro lado do campo de feno, seus olhos perceberam a camiseta branca de Cole, e depois ela distinguiu o resto dele, o corpo curvado para a frente. Estava inclinado para fora do trator, quebrando um galho de ma­dressilvas que caía sobre o campo por cima da cerca. Talvez o cacho de madressilvas estivesse apenas atrapalhando. Ou talvez ele o estivesse cor­tando para levar para Lusa. Ela gostava de colocar um cacho novo na jarra em cima da pia da cozinha. Sobreviver aqui só seria possível se ela enches­se o ar de perfumes e afastasse os severos fantasmas femininos da família com a doçura de uma erva florida e desavergonhada.

Cole estava a 400 metros de distância no campo do fundo, arando a terra onde em breve iriam plantar fumo. Parecia inacreditável que aquele galho pudesse liberar tal perfume, que a alcançava na casa, mas a brisa era suave e tinha a direção certa. O povo das Apalaches teimava que as montanhas respiravam, e era verdade: o vale íngreme que havia atrás da casa aspirava longamente pela manhã, e à tarde expirava através das janelas abertas e dos campos até o anoitecer - era apenas um hausto profundo por dia. A primeira vez em que visitou Cole aqui, Lusa ouviu falar da respiração da montanha e abriu um sorriso condescendente. Respeitava a poesia da linguagem caipira, ainda que não admitisse a veracidade de cren­ças tais como as montanhas respirarem e as cobras só morrerem depois do anoitecer, ainda que tenham a cabeça cortada. Se uma tartaruga morde alguém, só o solta quando soa um trovão. Mas quando se casou com Cole e levou sua vida para essa casa, as inalações do Monte Zabulon roçaram seu rosto a manhã inteira, e ela finalmente entendeu. Aprendeu a saber as horas pela pele, quando a manhã virava tarde e o hálito da montanha começava a tocar suavemente na sua nuca. No início da noite, ele ficava tão insistente quanto um suspiro de amante, adoçado pelas florestas úmidas, a resfriar-lhe o pescoço e os ombros toda vez que ela parava o trabalho na cozinha para afastar da nuca os cachos úmidos de suor. Chegara a pensar em Zabulon como o outro homem da sua vida, maior e mais constante que qualquer outro companheiro que tivesse conhecido.

Mas agora tinha um marido para quebrar e trazer para ela um ramo de madressilva. Ela já não tinha dúvida, pois ele o prendera entre a coxa e o assento do Kubota. A nuvem de flores brancas tremia enquanto ele pulava pelo campo, controlando o trator com as duas mãos. O trabalho no campo do fundo já estava quase completo. Quando ele chegou em casa para o café do final da manhã e para o "jantar", como ela estava aprendendo a chamar a refeição do meio-dia, ela pensou em colocar o galho de madressilvas na água. Talvez os dois pudessem falar; talvez ela pusesse sopa e pão na mesa para poder engolir as palavras amargas da manhã. Discutiam quase diariamente, mas hoje a discussão fora uma das mais azedas. Naquela manhã, ao café, ela quase decidiu ir embora. Naquela manhã, ele quase desejou que ela se fosse. Usaram as piores palavras que conheciam. Agora, ela fechou os olhos e aspirou. Ela poderia ter deixado ele rir de seu amor por essa trepadeira que os fazendeiros detestavam ver nas cercas.

A coluna de jardinagem daquela semana no jornal era dedicada à eliminação das madressilvas. Fora o ponto de partida da briga:

"Seja vigilante! O projeto deverá exigir aplicações repetidas de fortes desfolhantes químicos", havia lido em voz alta, na sua versão do sotaque exagerado e estúpido das montanhas, que iria irritar Cole, como ela sabia. Mas não conseguira evitar. Era o instrutor agrônomo do condado quem escrevia essa horrível coluna chamada "Jardinagem no Céu", cuja principal preocupação, toda semana, era assassinar coisas. Sua impaciência se acentuava com essas pessoas que pareciam determinadas a eliminar todas as coisas vivas que chegassem a seu alcance. Arrancar roseiras selvagens, atirar nos gaios pousados nas cerejeiras, derrubar os ninhos dos beirais da varanda para evitar que os filhotes emporcalhassem as escadas: eram esses os passatempos do Condado de Zabulon, tão inevitáveis quanto os rituais da limpeza da primavera.

E ele dissera: - Quando você zomba do Condado de Zabulon está zombando é de mim, Lusa.

- E é preciso me dizer? - retrucara. Era como se, sentada na cozinha onde sentia a presença intolerante da falecida mãe dele, ela tivesse o direito de esquecer onde ele havia sido criado. Cole era o mais novo de seis filhos, com cinco irmãs que nunca haviam saído do vale, onde Pai Widener doara um meio hectare para cada uma construir sua casa, deixando para seu filho único, Cole, o restante dos trinta hectares. O cemitério da família ficava atrás do pomar. O destino da família Widener era evidentemente ocupar o mesmo pedaço de terra por toda a vida e pela eternidade. Para eles, a palavra cidade significava apenas Garfo do Ovo, uma cidadezinha próxima, com alguns milhares de almas, nove igrejas e um supermercado Kroger's. Ao passo que Lusa era uma estranha vinda do outro lado da montanha, de Lcxington - um lugar que ficava a uma distância absurda. E agora ela estava perdida entre cinco cunhadas que flanqueavam a sua faixa de passagem até a caixa do correio.

Então, silenciosamente, ficou durante algum tempo observando Cole comer o desjejum, até dar um tapa no jornal ofensivo e se levantar para iniciar o trabalho do dia, saindo pela porta da cozinha para buscar o leite na varanda dos fundos. Ela ainda estava de chinelos e com a camisola listrada; não se passara nem uma hora desde que haviam levantado, e a bruma ainda se erguia do riacho. Uma bruxa Io descansava na tela, sua. segunda bruxa preferida, cujas surpreendentes asas tinham a mesma cor dourada de seus cabelos. (A preferida seria sempre zActis luna, o etéreo fantasma verde das florestas altas.) "Esgotada pela noite de amor", zangou, "é bem merecido" - mas ela não tinha escolha. Toda a família do bicho da seda gigante, inclusi­ve as ios e lunas que ela admirava, só comia enquanto era larva, os adultos não têm boca. Que extravagância romântica e muda, pensou Lusa: uma criatura faminta correndo contra a morte, toda a noite, atrás de seu par.

Pegou o leite e o manuseou com cuidado, observando que a nata já estava quase toda separada. Só havia um galão. Só tinham uma vaca leiteira para preparar a manteiga caseira e o creme de que Cole gostava, e só a ordenhavam à noite. Lusa chocou a todos com a proposta de eliminar a incômoda ordenha das quatro da manhã, deixando a vaca e o bezerro passa­rem a noite juntos, deixando de ordenhar se precisasse viajar a Lexington no fim de semana (não era preciso ser um cientista para pensar nisso). Quando precisava de leite, Lusa simplesmente separava o bezerro da mãe para que o úbere se enchesse até a noite. As irmãs de Cole não aprovavam toda essa facilidade, mas Lusa estava contente. Se elas tinham passado a juventude como escravas de duas ordenhas por dia, não era problema de Lusa. Ela tinha seu próprio jeito de fazer as coisas. Aprendera o lado doméstico da fazenda em menos de um ano, e Cole gostava mais de sua comida que da de sua mãe. Agora, diante da pia da cozinha, mergulhando a concha e observando o creme escorrer suavemente pela borda numa corrente tão fina que parecia verde, ela teve uma inspiração: gordos buquês de espinafre savoy estavam prontos na horta dos fundos. Refogados na manteiga, com cogumelos fatiados, uma folha de louro e esse creme, dariam uma sopa fragrante e sensual, que Cole iria adorar. Estaria pronta ao meio-dia, quando ele voltasse para o almoço. Ela se concentraria na sopa e tentaria esquecer aquela discussão. Mas Cole não queria esquecer.

- Por que você não escreve a coluna de jardinagem para o jornal, Lusa? - cutucava ele à mesa do café. - Pense em tudo o que você poderia ensinar aos caipiras daqui.

- Cole, tenho de me concentrar no que estou fazendo. É preciso brigar?

- Não, querida. Só tenho pena - disse ele, sem a menor pena - de não ter nascido num lugar chique onde os cachorros ficam dentro de casa e os jardins ficam em caixas de vidro nas janelas.

- Você não consegue esquecer. Lexington não é um lugar chique. Acontece que lá as pessoas lêem e escrevem sobre outras coisas além de como exterminar as madressilvas das cercas vivas.

- Mas não é preciso. Eles não têm cercas vivas. Toda praça que eu vi termina numa calçada.

Em muitas espécies de bruxas, Darwin havia observado: os machos prefe­rem habitar um território mais aberto, enquanto as fêmeas vivem ocultas. Então ela e Cole não passavam de um clichê biológico? Uma macho e uma fêmea seguindo suas naturezas separadas? Ela ergueu os olhos de sua cachoeira de creme, pensando em como suavizar essa coisa que surgiu entre os dois.

- Sou apenas em parte uma pessoa da cidade - disse ela tranqüilamente. As linhas que adotavam nas discussões eram sempre as erradas; ele a colocava num campo que ela não tinha escolhido. Como ele iria entender que ela havia passado toda a infância sardenta presa em gramados, mas sonhando com os campos? Que passara a infância caçando borboletas e bruxas, buscando-as nos livros para colorir, tocando em todas as figuras, sonhando com as que se escondiam em lugares mais selvagens?

Ele estalou as articulações dos dedos e cruzou as mãos atrás da cabeça.

- Lusa, querida, a gente pode tirar uma moça da cidade, mas não pode tirar a cidade da moça.

- Merda - disse ela, irritada e elevando a voz. Será que ele realmente se achava esperto? Ela havia deixado a concha baixar demais, e perdeu a maior parte da nata que já havia separado. Agora teria de esperar outro meio-dia para a nata voltar a se separar. Jogou a concha na pia - E foi para isso que eu passei vinte anos estudando. - Voltou-se para encará-lo - Sinto muito que a minha educação não me preparou para viver aqui, onde só existem duas espécies de animais, os que são alimento, e os que servem para tiro ao alvo.

- Você esqueceu dos que são isca - resmungou ele.

- Isso não tem graça, Cole. Vivo muito só aqui. Você não tem a menor idéia.

Ele pegou o jornal e abriu na página dos preços da carne. Então ia ser assim. Sua solidão era problema só dela, e ela sabia. As únicas pessoas com quem conversava, além de Cole, estavam todas em Lexington. Quando ele sugeria que ela fizesse amigos aqui, ela só conseguiu imaginar as mulheres de olhos de cervo e penteados agressivos que havia visto no Kroger's, e corria para o telefone para discutir a vida do interior com Arlie e Hal, antigas companheiras de laboratório. Mas ultimamente o apoio das duas se esvaíra por causa das embaraçosas contas de telefone: Qual é o problema? Se você não está feliz, venha embora, você não é aleijada. Volte para cá enquanto ainda é possível recuperar o dinheiro da pesquisa.

Ela começou a esterilizar os utensílios do leite, tentando esquecer Arlie e Hal. Suas vidas passada e presente eram tão diferentes, que ela se sentia incapaz de guardar uma na memória enquanto vivia a outra. Ficava embaraçada ao tentar. Preferia cantar uma antiga litania: Actias luna, Hyalophora cecropia, Automeris io, luna, cecrópia, io, as bruxas saturnídeas gigantes, criaturas de seda que traziam os nomes dos deuses para os vales profundos e encostas de Zabulon. A maioria das pessoas não tinha idéia das asas que batiam contra suas janelas enquanto dormiam.

Era apenas mais uma coisa sobre o que não podia falar - sua formação era muito mais completa que a do marido. O gracejo predileto de Cole era dizer: "Eu gostava tanto de estudar, que repeti todas as séries do colégio e da faculdade". Lusa nunca tinha acreditado naquela autodepreciação. Desde o primeiro dia em que se conheceram na Universidade de Kentucky, ela o havia reconhecido como um intelectual diferente. Cole estava participando de um painel sobre manejo integrado de pragas. Um grupo de fazendeiros do condado pagara sua matrícula e o mandara para Lexington sabendo que Cole seria capaz de ignorar a pretensão universitária e trazer para eles o que valia a pena saber. A confiança deles era justificada. Ele não se impressionara automaticamente com o status de assistente pós-doutoral de Lusa, e a pressionava com perguntas, quando percebeu o quanto ela sabia sobre as bruxas gelequídeas, habitantes de grãos armazenados. Seus olhos, azuis como um céu de verão seco, começaram a segui-la de uma forma que a alarmou ou a seduziu, ela não sabia dizer qual das duas coisas. Ela lhe mostrou seu laboratório e o outro, maior, o do pai, no mesmo edifício, onde ele estudava os feromônios das bruxas da maça, conhecidas pragas das macieiras. As bruxas do laboratório viviam sob observação em caixas de vidro com as quais os cientistas enganavam os machos para eles se acasalarem com armadilhas carregadas de cheiro, e assim as noivas virgens depositavam ovos estéreis nas maçãs.

Mais tarde (mas não muito), Lusa e Cole dormiram juntos no apartamento dela na Rua Euclid. Cole fazia amor como um fazendeiro, o que não queria dizer que ele fosse grosseiro. Pelo contrário, ele tinha uma inteligência delicada em relação ao físico que o levava a buscar com sua boca peluda os cheiros terrenos dela e seus locais macios e úmidos, revirando-a como se fosse uma terra nova, para a glória de novas vidas. Seu corpo, que ela havia sempre considerado excessivamente curto e curvo, como um violão, para ser levado a sério, transformou-se em uma coisa nova no abraço de um homem que avaliava os reprodutores pelo toque das mãos. Ele a fez entender o que ela nunca havia compreendido: ela era voluptuosa.

Lusa lhe falou sobre a sinalização com odores que os animais usam para encontrar e identificar os parceiros. Feromônios. Ele ficou encantado. "Então, tudo é só sexo, para todos vocês no laboratório, e o dia inteiro. E ainda por cima recebem salário".

- Confesso a minha culpa - disse ela -, eu estudo o amor das bruxas. Ele se interessou pelo amor das bruxas. Ficou ainda mais interessado quando soube que até os humanos usam sinais feromônicos, embora a maioria não queira saber dos detalhes. Mas ela teve a impressão de que Cole queria. Cole, o homem que enterrava o rosto em todas as dobras de sua pele para lhe sentir o cheiro. Para desfrutar mais o sexo, só se ele tivesse antenas parecidas com penas, como as bruxas, para pentear o ar em volta dela, e uma bem elaborada estrutura no abdome, destinada a atraí-la com seu próprio cheiro.

Ele lhe havia perguntado: - Quando você se apaixona por alguém sem qualquer razão aparente, pode pensar então que é isso que está acontecendo? Os feromônios?

- Talvez. Provavelmente.

Ele rolou e ficou de costas com os dedos cruzados atrás da cabeça, oferecendo-lhe mais uma oportunidade de estudá-lo de perto. Ele era impressionantemente grande. Os ombros, as mãos, o plano largo do estômago chato e do peito - tudo nele a fazia sentir-se pequena e delicada. Era um gigante feliz, nu na cama dela.

- Então me explique por que uma mulher esconde de todas as for­mas possíveis o cheiro que realmente tem?

- Não tenho a menor idéia - Lusa já tinha pensado nisso, é claro. Até raspar as axilas vai contra a natureza. A razão dos pêlos pubianos é aumentar a área para as moléculas de cheiro, e foi o que ela lhe disse.

- Mas é uma coisa completamente diferente, dormir com uma cien­tista - declarou ele sorrindo, com o rosto de que ela já começava a sentir falta. E ele também era outra coisa completamente diferente. E em pouco tempo ele iria embora, a enormidade compenetrada e feliz que ele era, a barba bem feita, que marcava as linhas do maxilar e do centro do queixo até a boca linda. Sua barba lhe lembrava as guias do néctar no interior das flores, que ensinam às abelhas o caminho até onde se esconde o néctar.

O apartamento da Rua Euclid pareceu agradar-lhe tanto que, findo o seminário, ele adiou por dois dias a volta para casa. Pouco saíam da cama; na verdade, ela foi forçada a mentir ao laboratório e alegar uma doença repentina. Estava a ponto de lhe perguntar - não por astúcia, mas por simples curiosidade - se ele tinha o hábito de dormir com mulheres que acabava de conhecer, quando ele a pediu em casamento. Lusa ficou sem fala. No ano seguinte, ele a cortejou com uma intensidade que a fazia ovular durante as visitas. Ela começou a tomar cuidado, pois uma gravidez muito próxima do casamento poderia oferecer aos parentes dele certos conheci­mentos sobre Lusa que eles pareciam querer. O vocabulário de sua mãe tinha uma expressão para se referir a pessoas como as irmãs de Cole: "Nasceram com dez dedos para poder contar até nove".

Cole havia terminado o desjejum e olhou para Lusa, enquanto acen­dia um cigarro. Pareceu espantado ao vê-la olhando para ele.

- O quê? - perguntou.

- Estava me lembrando do quanto a gente gostava um do outro.

- Ah, esqueci de dizer: o Herb vem hoje mais tarde buscar o aspersor a pressão. Não se assuste se o vir revirando o quartinho de ferramentas.

Ela se irritou. Era típico de Cole responder a um apelo às suas emo­ções com a aparência de não as ter. - Não quero o Herb no nosso quarto de ferramentas - respondeu ela secamente -, então, acho que vou ter de descer e procurar eu mesma.

- Para quê? O Herb conhece o aspersor a pressão. Afinal, foi ele quem me convenceu a comprar um, e agora usa mais que eu.

- E enquanto procura, ele vai mexer nos meus funis e redes de insetos, e depois inventar histórias para a Mary Edna contar para a Hannie-Mavis por intermédio da Lois e da Emaline. Não, obrigada.

Ele inclinou a cadeira e sorriu.

- Os três mais eficientes meios de comunicação: telefone, telégrafo e contar para uma das minhas irmãs.

- Eu até achava engraçado. Antes de ser eu o assunto favorito delas.

- Elas não fazem por mal.

- E você acredita nisso? - ela balançou a cabeça, dando-lhe as costas. Elas faziam por mal. Desde o início. Desde que ela se tornara a dona da casa da família, no último mês de junho, elas pouco falaram com ela, mas falaram demais sobre ela. Antes mesmo de ter entrado no supermercado ou na casa de ferragens, ela já era conhecida como a mulher de Lexington que ficava de quatro para estudar os insetos na sala, em vez de matá-los.

- Minhas irmãs têm mais a fazer do que ficar te odiando - insistiu Cole.

- Suas irmãs ainda não aprenderam o meu nome.

- Ora, Lusa.

- Pergunte a elas. Eu lhe dou dez dólares se qualquer uma delas disser o meu nome corretamente - o nome completo, Lusa Maluf Landowski - elas fingem não lembrar. Você acha que eu estou brincando? Lois disse a Oda Back que meu nome de solteira era Zucchini.

- Não pode ser.

- Oda disse, rindo, que entendia a minha pressa de subir ao altar para me livrar daquilo. Ela observou o seu rosto, tentando ver se ele era capaz de entender tamanhã humilhação. Lusa havia mantido o próprio nome quando eles se casaram, mas isso não fez diferença: todo mundo a chamava de senhora Widener, como se não existisse uma Lusa.

- Bem, apesar de te desprezar de todo o coração - disse ele pacien­temente -, Lois nos convidou para uma ceia no Memorial Day*. Ela quer nos levar a todos para enfeitar os túmulos de papai e mamãe.

Lusa inclinou a cabeça, curiosa.

- Quando foi que ela convidou?

- Ontem à noite.

 

* Memorial Day, o dia 30 de maio é feriado em muitos estados em homenagem aos soldados perdidos na guerra. (NT)

 

- a família toda foi convidada? Mas como? a cozinha de Lois é do tamanho de uma cabine de telefone.

- Era muito maior antes de ficar cheia de cortinas e patos plásticos. Lusa teve de sorrir.

Ele fez um gesto.

- a cozinha é esta. Por que você nunca convida todo mundo? Ela balançou a cabeça.

- Como é possível alguém ser tão idiota? Como ficar sentado no meio desse furacão de mulheres odientas e agir como se fosse um domingo de sol?

- O quê?

Ela marchou até o armário do canto da sala de jantar e voltou com um prato de porcelana, que segurava no alto como uma tocha.

- Isto não significa nada para você?

- É do seu jogo de porcelana do casamento.

O jogo dela, é verdade - tinha pertencido à sua família, um desenho inglês com delicadas pinturas botânicas de flores e seus polinizadores. Mas elas tinham de zombar de tudo que ela amava?

- Você não se lembra do que aconteceu no jantar que ofereci aqui em julho, um mês depois do casamento? a sua festa de aniversário, que preparei durante duas semanas, sem ajuda, na minha primeira tentativa de impressionar sua família?

- Não.

- Então permita que eu o ajude a se lembrar. Pense na sua irmã mais velha. Agora, imagine-a sentada naquela cadeira, cabelo azul e tudo mais, e, me perdoe, com aquela cara de dar azia em bicarbonato. E eu servindo o jantar neste prato, exatamente este.

Ele riu.

- Lembro que ela comeu uma garfada e viu no prato uma viúva negra, ou coisa parecida, e deu um grito.

- Era a asa de uma mariposa-esfinge. O desenho de uma mariposa-esfinge pintado no prato. Eu jamais teria um jogo de porcelana com viúvas negras. E ela não gritou: pôs os talheres no prato e cruzou as mãos como um cadáver. E desde aquela noite, vem recusando todos os convites. Até para o dia de ação de graças, Cole, pelo amor de Deus. E logo na casa de sua famí­lia, onde você e suas irmãs sempre almoçavam juntos no dia de ação de graças até sua mulher dirigir um insulto mortal a sua majestade Mary Edna.

- Que venham então as outras, sem a Mary Edna. Ela sempre se julgou muito importante por ser a mais velha.

- Elas não virão sem a Mary Edna.

Ele deu de ombros.

- Bem, então elas não passam de caipiras, que não sabem apreciar pratos decorados com figuras de insetos e palavras latinas. Quem sabe elas estão com medo de usar o talher errado.

- Vai pro inferno, Cole. Se você e incapaz de não me ridicularizar, vão para o inferno, você e toda a sua família - sentiu o rosto quente e teve vontade de quebrar o prato para fazer uma cena, mas o gesto teria sido completamente errado. O prato parecia valer mais que o casamento.

- Meu Deus - disse ele com uma risadinha -, bem que me disseram que era perigoso casar com uma ruiva.

- Schuehach! - resmungou ela, afundando os dentes nas ásperas conso­antes árabes, marchando a passos largos até a sala de jantar, para guardar o prato. Lusa estava com vergonha das lágrimas, e de os convites recusados ainda doerem tanto. Quantas vezes no ano passado ela não desligou o telefone e ficou andando em círculos no tapete trançado da sala. Ela, uma mulher casada, graduada em entomologia, soluçando como uma criança. Por que dava tanta importância ao que elas pensavam? Qualquer pessoa que se dedicasse ao estudo dos insetos já teria aprendido a ignorar a opi­nião pública. Mas não conseguia suportar, nem antes nem agora, a crença implícita de que era um objeto estranho, sem sentido. Lusa tinha medo de ter julgado da mesma forma o próprio pai, de ter tido pena dele por ser um homem tão pouco mundano e tão amargo, por ter-se dedicado à agri­cultura em laboratórios desinfetados, que cheiravam a éter. Seus pais, os dois, tinham origens no campo, mas talvez o único conhecimento que ti­nham da realidade do trabalho rural fosse o que se adquire num passeio de carro, num domingo, pelas pastagens a leste do Condado de Fayette.

Lusa quis ser diferente. Ansiava por chocar as pessoas com seu amor pelas coisas rastejantes e pelo suor. Ainda sentia no corpo um desejo infan­til, o da menina a se inclinar para respirar junto do espelho quando a ativi­dade esportiva nos dias de verão lhe molhava os cabelos cor de palha e os transformava em gavinhas escuras, coladas na pele. Já mulher, havia agar­rado a inesperada oportunidade de se tornar parceira de um fazendeiro.

Não havia esperado o estranho legado que a seguiu até o Condado de Zabulon, onde seus novos parentes consideravam os antigos uma família de idiotas, que mantinha, de propósito, pragas vivas em caixas de vidro.

Voltou à cozinha sem olhar para ele. Se agir assim não o fazia so­frer, ela podia fazer o mesmo. "Anotado. Nunca servir um Widener num prato com insetos. Não vou me esquecer. E anotado, abrir a porta para Herb, o matador de predadores, quando ele vier revirar meu quartinho de ferramentas à procura de um aspersor a pressão". Na opinião de Lusa, Herb e Mary Edna formavam um casal perfeito: cada um era tão presun-çoso e mal-educado quanto o outro.

- O que você está querendo dizer?

- Sabe o que Hannie-Mavis me disse ontem? Ela me disse que uma vez Herb encontrou uma toca de coiotes no alto da floresta, bem acima da cerca, uma mãe e uma ninhada de filhotes. Ela me disse que ele enfiou uma bala na cabeça de cada um, dentro da toca.

Cole olhou-a com uma expressão vazia.

- É verdade? - perguntou ela - Você sabia?

- E por que lembrar disso agora?

- Quando foi? Recentemente?

- Nã-ão. Nã-nao. Acho que foi na primavera do ano passado. Mais ou menos quando a sua mãe adoeceu. De qualquer forma, foi antes do casamento. Foi por isso que você não ficou sabendo.

- Ah, há tanto tempo assim? Então já não tem mais importância. Ele suspirou.

- Lusa, eram animais carnívoros que estavam se fixando numa fazenda de leite. O que você esperava que o Herb fizesse, entregar o lucro para os lobos?

- Não eram lobos. Eram coiotes.

- E a mesma coisa.

- Não é a mesma coisa. Nunca passou pela cabeça de ninguém ten­tar entender por que apareceram coiotes por aqui, a duas mil milhas do Grand Canyon?

- Imagino que ele estava interessado no que eles comem. Por exem­plo, um bezerro novo.

- Se é que eram isso mesmo - coiotes -, no que não acredito, conhe­cendo a vista de Herb. Aposto que ele errou. Espero que tenha errado.

- Herb Goins com uma carabina é uma idéia assustadora, concordo. Mas se você quer saber a minha opinião, Lusa, espero que ele tenha acertado.

- Você e todo mundo no condado. Eu sei. Se Herb não os matou, alguém mais há de matá-los - desejou estar vestida. Sentia-se vulnerável e pouco convincente com a camisola. Saiu para a varanda, deixando a por­ta bater atrás de si. Colocou o leite outra vez no resfriador para tornar a separar a nata, e viu a bruxa io na tela da varanda. Estendeu o braço e deu um tapinha na tela onde ela estava. "Melhor voar para longe. Aqui não é seguro para nenhum inseto". Viu a bruxa abrir as asas, mostrando o lado cor de melancia e o impressionante par de pupilas negras. Os olhos de uma coruja, pensou ela, uma perfeita semelhança. Coitado do passarinho que abre a boca para pegar essa bruxa e dá de cara com isso. Beleza de vida, cheia de surpresas.

Voltou para a cozinha com uma tigela de tomates em cada mão; em vez da sopa ela ia fazer imam bayildi, receita de legumes recheados de sua mãe, que Lusa preferia a qualquer coisa feita de leite. Cole não era louco por imam bayüdi, não gostava muito de espaguete, que ele dizia ser um prato "italiano". Mas como o creme se perdera por culpa dele, então, tudo bem, ele que coma comida estrangeira. A que ponto eu cheguei, pensou. A ex-bolsista da Fundação Nacional de Ciências, dona da mais ambicionada bolsa de pós-graduação no seu departamento, agora faz jogo de poder no mundo com atos de cozinha vingativa.

A grande e exasperante pessoa dele ainda estava lá, à mesa, fumando. Arcos de cinza se estendiam como nebulosas por sobre o tampo escuro da mesa, entre sua mão esquerda e o feio cinzeiro de latão, mal-equilibrado na extremidade da mesa. No seu todo, a cena era como alguma coisa que ela gostaria de amassar e jogar fora. Não era normal Cole demorar tanto a sair para ver o gado e o trator. Já se tinha passado uma hora desde a aurora, o sol já ia alto. Será que ele estava decidido a irritá-la?

- O que Herb quer com o nosso aspersor?

- Não sei... Não, eu sei sim. Ele disse que vão dedetizar a igreja. Mary Edna disse que umas abelhas fizeram casa na parede.

- Ah, perfeito. Exterminar as criaturas de Deus na igreja. Ainda bem que Deus não mandou Herb e Mary Edna tomarem conta da arca de Noé. Eles a teriam fumigado e depois afundado.

Ele se recusou a rir.

- Lusa, querida, de onde você vem, eles acham bonito uma igreja cheia de abelhas. As pessoas ficam sentimentais num lugar onde a natureza já morreu há cinqüenta anos; então, é explicável o luto, como se ela fosse um parente que nunca conheceram. Mas aqui ela ainda está viva e forte.

- Meu marido é um poeta. A natureza é uma tia alcoólatra. Ele balançou a cabeça.

- É isso mesmo. Todo dia você tem de forçá-la a recuar dois passos, senão ela chega e toma tudo - Cole se defendia de sua condescendência com enorme facilidade. Ele também tinha o agüento-o-seu-tom-de-voz que fazia Lusa gritar de raiva.

- Toma o quê? - disse ela, tremendo para controlar a raiva. - Você é natureza, eu sou natureza. Cagamos, mijamos e temos filhos. Nós su­jamos tudo. O mundo não vai acabar porque você deixou uma madressilva subir num dos lados do celeiro.

- Temos filhos? Eu não tinha notado, parecia dizer o olhar dele. Mas em vez disso, ele perguntou: - Para que tolerar uma praga se a gente pode cortar o mal pela raiz?

Todas as palavras que diziam um para o outro eram erradas, as verdades ocultas sob elas não podiam ser ditas nem encontradas. O carinho tinha se estiolado, e as piadas eram como castanhas muito velhas, gastas demais para serem usadas. Lusa jogou o pano de prato na pia, sentindo-se cansada de clichês. - Tenha um bom dia lá fora, na sua mata fechada. Vou lavar sua roupa. Seus cigarros estão fazendo a cozinha feder.

- Já que você não gosta de fumo, seria bom lembrar que foi ele que pagou a lavadora e a secadora novas.

- TiVan deenuk! - gritou do corredor.

- Se minha mãe árabe me tivesse ensinado a praguejar, eu não ficaria orgulhoso - respondeu ele.

Mãe árabe, pai polonês - aparentemente, mais uma coisa que ele, tal como o resto da família, também usava contra ela. Mas a verdade é que ela também ridicularizava o sotaque dele, a educação que recebeu. E na verdade nenhum dos dois era assim. Cada um deles era visado por camadas de desprezo que se agachavam camufladas atrás do outro até que ficou impossível descobrir se ela e Cole continuariam a brigar sem saber por quê, mesmo que ficassem casados durante um século inteiro. Ela se sentia doente e derrotada, andava de um quarto para o outro pi­sando duro, recolhendo camisas e meias que haviam tirado nas salas do térreo (algumas eram dela). Não havia nada a dizer, mas mesmo assim eles diziam: a madressilva e o fumo. Em menos de um ano de casamento eles haviam aprendido a passar de uma discussão para a seguinte como um ribeirão que desce da montanha para a várzea: sai da calha, mas volta ao leito no fundo do vale. Discussões enchiam um casamento, varrendo tudo como água, sem gosto nem cor, mas com muito barulho.

Ribeirão Amargo era o nome daquele riacho, e o vale por onde ele corria, que ia desde o fundo da fazenda até a Floresta Nacional, era chama­do de Vale Amargo. Perfeito. Sou muito jovem para me sentir assim, pensou ela, subindo ao segundo andar para buscar o resto da roupa suja, enquanto ele ia arar o campo do fundo. Como estariam dentro de dez anos? Será que ela sonhara tanto assim em viver numa fazenda? Um pássaro na mão logo perde o mistério. Agora ela se sentia como uma noiva comprada do outro lado da fronteira, mal-entrada no casamento e já arrependida de ter deixa­do sua cidade e uma bela carreira em troca do pequeno espaço que o condado rural reserva para a mulher de um fazendeiro.

Só quatro horas depois, na décima primeira hora do dia nove de maio, enquanto a secadora zumbia lá em baixo e ela lia, sentada junto à janela do quarto, foi que a vida de Lusa deu uma reviravolta com essa coisa tão simples: o cheiro forte quando seu jovem marido estendeu o braço musculoso para pegar um ramo de flores. Era isso que ela tinha esquecido, a verdade inteira e completa da ligação entre os dois. Seu coração se esvaziou de palavras e se encheu com um sentimento novo. Mesmo que ele nunca tivesse chegado à casa, se a viagem através do campo tivesse sido interrompida por algum acidente dos que matavam fazendeiros nessas encostas íngremes, ela ainda teria tido aquela fragrância que atravessou a distância, para explicar a situação de Cole nos termos mais simples possíveis.

Lusa ficou sentada, maravilhada: era assim que as bruxas falavam entre si. Com o cheiro, falam do seu amor através do campo. Não têm boca, as palavras erradas são uma impossibilidade, o parceiro está lá, ou não está; e se estiver, o par se encontra na escuridão.

Suas mãos ficaram imóveis sobre o livro por vários minutos, en­quanto ela tentava imaginar uma linguagem que só comunicasse amor e verdades simples.

Dez dias depois, seu casamento chegaria ao fim. Quando chegou, Lusa reviu aquele momento junto à janela e sentiu o frio de sua presença.

Ninguém lhe daria o nome de premonição; o trator de Cole não virou. Também não foi o fumo que o matou, pelo menos não foi o vício. Se lhe tivesse permitido o prazer de uns dois maços por dia, não teria feito diferença no longo prazo, pois não haveria longo prazo. Mas o fumo teve parte da culpa - a queda nos preços que o forçaram a assumir um emprego temporário, transportando grãos para a Southern States. Lusa sabia que esse outro emprego o envergonhava como fazendeiro, embora não houves­se uma única família no vale que conseguisse viver exclusivamente dos lucros da fazenda. Para Cole, o fracasso não era apenas uma questão de dinheiro, mas de ligação. Ele detestava ficar longe da fazenda até mesmo uma única noite, quando era obrigado a viajar à Carolina do Norte percorrendo a Rodovia Blue Ridge. Ela lhe havia dito que eles encontrariam outro meio de arranjar dinheiro, tal como contrair um empréstimo - dando como ga­rantia o gado do ano seguinte -, apesar de ele não gostar da idéia, e de já estarem atolados em dívidas por causa do trator novo. Ou ela poderia dar aulas na faculdade comunitária em Franklin. (Mas essa idéia também poderia ser humilhante para ele. Não tinha certeza.) Ela estava pensando nessa possibilidade, imaginando-se num laboratório de biologia e dando aulas de enfermagem, pouco antes de o delegado chegar para dar a notí­cia ao parente mais próximo.

Era muito cedo, uma madrugada úmida, ainda indefinida, sem vento nem cheiro. Dezenove de maio, ainda um nada, mas depois daquele dia essa data nunca mais seria esquecida. Ela estava parada, de pé junto à mesma janela do quarto, observando a neblina subir pelas margens dos campos, ao longo das cercas vivas, tal como o fantasma de um rio ancestral cujos tributários já não obedecessem à gravidade. Havia uma estranha qualidade nas manhãs em que Cole estava fora, e ela acordava sozinha; estava livre. Livre e sem corpo, como um fantasma. Fixou o olhar num ponto no campo, a meia distância, onde observava o movimento frenético dos insetos noturnos nas sombras, mariposas noturnas volteando loucamente nos últimos minutos de sua busca de um par naquela noite.

Quando viu o sedan de Tim Boyer com o emblema na porta, ela teve certeza. Se ele estivesse apenas ferido num hospital seria uma coisa, Tim teria parado lá em baixo para avisar. Daria primeiro a notícia a Lois ou Mary Edna. Esta missão era diferente: exigia que se notificasse a esposa. Ela sabia por quê. Não conhecia os detalhes - na verdade, nunca chegaria a saber alguns deles. O estado do corpo é uma daquelas coisas que irmãs e cunhados discutem à exaustão, mas nada dizem à esposa. Mas o que ela soube já foi bastante.

Agora, pensou ela, sentindo o corpo esfriar, à medida que o carro branco subia tão devagar a trilha de acesso, que ela era capaz de ouvir o som dos seixos sob os pneus. Agora, exatamente a partir deste momento, tudo muda.

Mas não era verdade. Sua decisão e todo o resto de seus dias não foram transformados no momento em que recebeu a notícia de que Cole havia morrido, mas alguns dias antes, junto àquela mesma janela, quan­do recebeu sua mensagem sem palavras pelo cheiro que cruzou o campo.

 

                                 Velhas castanheiras

Viúvo havia oito anos, Garnett ainda acordava desorientado e perdido. Sentia que era por causa da enorme cama vazia; uma mulher era como uma âncora. Sem a esposa, ele havia procurado conforto em Deus, mas às vezes um homem também precisa da vista de sua janela.

Garnett se sentou devagar e se voltou para a luz, vendo tanto com a memória quanto com os olhos. Lá estava a neblina cinzenta da madrugada nesse vale úmido, subindo com a lentidão imperiosa da saia de uma se­nhora ao passar por uma poça. Lá estavam o estábulo e o depósito de grãos de paredes de tábua construídos por seu pai e seu avô, em tempos idos. O depósito de raízes, coberto de grama, ainda se projetava da encosta, as duas janelas na parede de pedra a olhar para fora da colina tal como olhos na cabeça de um homem. Garnett sempre começava o dia cumprimentando o velho na colina, com sua barba de hera descendo do queixo e um cacho de festuca caído sobre a testa. Quando era menino, Garnett nunca chegara a se imaginar como um velho, e ainda olhava essas imagens, necessitando tanto delas quanto um menino precisa da castanha da sorte no bolso, o talismã que se esfrega o dia inteiro só para ter certeza de que ainda está lá.

Os pássaros iniciavam o coro da manhã. Já eram adultos, a esta altura da primavera. Que dia era hoje? Dezenove de maio? Adultos e emplumados. Apurou o ouvido. O epitalâmio; deu-lhe esse nome alguns anos antes: uma canção de preparação para a união conubial. Cotovias, corrupiões, pardais, tentilhões azuis, todos com a cabeça erguida e voltada para a aurora, e o coração transformado em canto líquido e claro para suas fêmeas. Garnett apoiou o rosto nas mãos durante um instante. Quando era criança, ele nunca sonhara com uma idade em que já não haveria canções, mas ainda haveria coração.

 

                               Predadores

Estava sentada com as pernas cruzadas no chão da varanda, escovando o cabelo e ouvindo o coral de abertura do dia. O concerto começara, muito antes da aurora, por um chasco preto-e-branco, cujo pio agudo lhe invadira o sono. Diana imaginava-o lá fora, agarrado a um tronco de ála-mo, inclinando a cabecinha listrada na direção dos primeiros indícios de luz, rasgando o ontem do calendário e abrindo o verão do amor com sua voz enorme. Correra até a varanda, ainda de camisola e descalça. A escova, uma lembrança posterior, caíra no seu colo. Forçava-se a ouvir com aten­ção: eis o verão pródigo, a estação da procriação extravagante, capaz de destruir tudo o que se colocasse no seu caminho, com seus excessos apaixonados, mas nada que fosse vivo e tivesse asas ou coração, nem mesmo uma semente oculta dentro da terra, conseguia resistir ao im­pulso de saudar a sua chegada.

Outros chascos acordaram pouco depois do primeiro, preto-e-bran­co: logo ela ouviu o fraseado sincopado do chasco de capuz, cujo final era como uma boa piada, depois o do Kentucky, com seu trinado solene e envolvente. Uma tênue luz cinzenta se infiltrava no horizonte, ou do que ela conseguia ver através dos braços negros das árvores. Este vale era um divisor, cercado dos dois lados por altas montanhas e pelas árvores que se erguiam ainda mais alto. Não era um bom lugar para quem aprecia dias longos e muita luz, mas não existia melhor coral da madrugada em ne­nhum outro lugar da Terra. No auge da estação de cortejo e procriação, essa música era como se a própria terra abrisse a boca para cantar. O cres­cendo avançava à medida que a luz do sol acordava um pássaro após o outro: os chapins de cabeça preta e da Carolina foram os seguintes, seus primos de primeiro grau, que assoviavam as notas em escalas separadas, próximas, distinguíveis por qualquer chapim, mas por muito poucos hu­manos, principalmente no meio desse coro de outras vozes. Diana sorriu ao ouvir o primeiro sabiá, cujo canto soava como um dedo a correr nos dentes de um pente. Fora o primeiro canto a fasciná-la na infância - não o canto da cotovia e dos pardais, que toda manha cantavam perto de sua janela na fazenda, mas o canto do sabiá, um migrante das grandes altitudes, que ela só encontrava aqui, nas pescarias com o pai. Talvez ela sim­plesmente não prestasse atenção antes dessas excursões, que rendiam pou­cas trutas e ainda menos conversa, mas muita espera silenciosa no meio da mata. "Ouça, é um pássaro-pente", improvisou seu pai, sorrindo, quando ela perguntou, e ela imaginou uma criatura parecida com um pente cor-de-rosa. Anos mais tarde, ficou desapontada ao descobrir no guia de campo Peterson que ele não passava de um passarinho marrom comum.

O coro matinal se transformava agora num rumor assoviado, o som de milhares de machos cantando o amor para milhares de fêmeas silenci­osas, prontas a escolher e renovar o mundo. Era apenas uma cacofonia para quem não prestasse atenção a cada um dos cantos: o bicudo de peito cor-de-rosa e seu soneto complicado e doce; uma juruviara, com acordes repetitivos de oitavas e trinados. Depois foi o sabiá da mata, com um trinado que era um poema sinfônico. Era o sabiá quem definia essas matas para Diana, oferecendo a música de fundo para seus pensamentos e dando um nome para seu lugar na floresta. O coro da aurora se calaria dentro de uma hora, mas o sabiá da mata continuaria cantando até o fim da manhã, e retomaria o chilreio no início do crepúsculo, ou até mesmo ao meio-dia, se o tempo estivesse escuro. Nannie lhe tinha perguntado numa carta como ela conseguia viver sozinha naquelas alturas, com todo aquele silêncio, e esta foi sua resposta: quando cessa a conversa humana, o mundo era tudo, menos silencioso. Os sabiás eram a sua companhia.

Diana sorriu ao se lembrar de Nannie lá no vale. Nannie vivia para conversar, afirmando sua vida de velha senhora independente, mas agarrando-se a qualquer conversa que chegasse até ela, como as pessoas em dieta, que comem escondido os doces guardados no armário. Não admira que ela estivesse preocupada com Diana.

O céu agora estava de um branco manchado, como um prato de porcelana antiga, e as vozes começaram a se calar, uma a uma. Logo fica­riam apenas o canto do sabiá e o resto do dia. Algumas mejengras e chapins se reuniam sob a cerejeira a cerca de dez metros da cabana, onde ela sem­pre deixava alpiste sobre uma pedra plana. Escolhera aquele lugar por ser possível vigiá-lo da janela, e durante todo o inverno ela colocara o alpiste -que encomendava em sacos de 20 quilos, junto com seu pedido de provi­sões. O Serviço Florestal nunca questionou. Sem ter uma política de ali­mentar chapins e cardeais, o governo aparentemente estava disposto a fazer o que fosse necessário para manter a sanidade de seus guardas-florestais durante o inverno, o quê, no caso de Diana, era o alpiste. Sentada à mesa ao lado da janela, tomando café nas manhãs frias de fevereiro, ela passava horas observando a multidão colorida reunida lá fora, invejando a liberdade dos pássaros no frio intenso. Invejando até mesmo a sua agitação emproada. Um pássaro jamais tem dúvidas quanto a seu lugar no centro do universo.

Agora, já na terceira semana de maio, as folhas começavam a brotar e logo os insetos comedores de folhas pousariam nas árvores, e aqueles pequenos napoleões encontrariam muita comida por toda parte, mas já estariam viciados na que ela oferecia. Ela também já se viciara na presença deles. Ultimamente, ela vinha pensando em limpar o chapéu do Urso Smokey* (ela tinha dois: o do Serviço de Parques Nacionais e o do Serviço Florestal, uma característica de seu emprego híbrido), e ir colocá-lo de manhã sobre a pedra, cobrindo a aba com alpiste, para que os passarinhos se acostumassem a pousar nele. Esperava poder um dia pôr o chapéu e sair por aí com um bando de chapins na cabeça, sem nenhum propósito senão o da tolice inconseqüente.

Terminou de escovar o cabelo, que caía pelas suas costas e se espa­lhava pelo chão da varanda onde estava sentada, ondeando à sua volta como uma cascata escura de chá, salpicada de fios de prata. Cada dia mais prata e menos chá. Foi o que disse a seu ex-marido (já então ex) quando ele lhe perguntou por que ela não cortava o cabelo, já que estava se mudando para a montanha. Parecia ser a regra entre as mulheres com mais de quarenta anos: cabelo curto e atrevido. É provável que ele não tivesse entendido a piada, pensando ser uma vaidade embrionária em Diana, mas não era. Ela raramente se lembrava do cabelo, limitando-se a soltar a trança uma vez por semana, como se faz com um cachorro enjeitado. Ela apenas não gostava da regra, como também não queria aparentar a idade que tinha. Nenhuma idade. E alguém iria reparar se ela cortava o cabelo uma vez por semana ou uma por mês? Diana não sabia. Sempre vivera uma vida apartada desse e de outros mistérios femininos. Delineador, por exemplo: com que instrumento ele era aplicado, será que doía, e por que aplicá-lo? Ela nunca tinha cortado o cabelo. Seu pai jamais a levara ao cabe­leireiro, e se ele pensou em alguma outra opção, nada manifestou até que ela estivesse com o cabelo chegando aos joelhos. O cuidado máximo que ela já tivera com ele fora desembaraçá-lo dos galhos com a tesoura de seu canivete suíço. Este era o único tipo de mulher que ela conseguia ser, quando criança no Condado de Zabulon, e mais tarde, como professora

 

* Personagem das campanhas de proteção contra incêndios florestais, que usava o chapéu do uniforme dos guardas-florestais e do Serviço de Parques Nacionais nos Estados Unidos.

 

e quase esposa em Knoxville. Finalmente, aqui no alto da floresta, ela se transformara na única espécie de mulher existente.

A espécie sem homem. Eddie Bondo havia partido, tanto melhor.

Disse que voltaria, mas ela não acreditava. Levara consigo tudo que tinha - "tudo" sendo a mochila, o que na verdade não era muito. Se o que ele dissera fosse verdade, que ele queria apenas caminhar um ou dois dias, indo até o pico Clinch, e voltar para vê-la, ele realmente ia precisar da mochila. Então, ela não tinha condições de avaliar sua partida pelo que levara ou esquecera. Não era isso.

Disse que aqueles cabelos eram um milagre. Disse que era como se enrolar num casulo de seda.

Ela olhou para o céu e ouviu a floresta abençoada - foi o que ele lhe deixou. A oportunidade de ouvir o coro da madrugada e escovar os cabelos sem ser vista. Eddie Bondo lhe deixara essa gema rara e dura, esse diamante solitário, que era a vida.

Esticou as pernas à sua frente enquanto trançava os cabelos na cor­da costumeira, um exercício que suas mãos faziam sem espelho nem aten­ção. Quando prendeu a ponta com o anel de borracha que tinha no pulso, ela dobrou o corpo, tocando os joelhos com a cabeça, e fez um doloroso alongamento dos tendões das costas. Então, deitou-se de costas como uma menina, boca e olhos muito abertos para os galhos acima dela. Engasgou, tonta, caindo para o alto até a copa das árvores. Pensou na primeira vez em que ele a deitou nesta varanda. Tentou adivinhar como ele a veria agora, deitada como estava.

Xingou, e se sentou. Maldita timidez, igual à de um cachorro perdido que segue a gente pela rua - difícil de espantar, tão fácil de recuperar.

Nenhum homem jamais falara de seu corpo com tanta franqueza, nem o comparou com tantas coisas estranhas e da natureza. Não apenas com o casulo de seda. Houve também o marfim, que ele disse ser anor­malmente liso. Havia passado o último verão e o outono no Canadá, disse­ra ele - fora lá para ganhar dinheiro pescando salmão e continuou para caçar renas em volta da Bahia de Hudson, e enquanto isso havia aprendido a talhar o marfim das morsas para fazer cabos de faca. Ela ouvia suas histórias, imaginando a possibilidade de tocar as outras faces da natureza. Não conhecia outra que não esta. Perguntou a ele que pássaros havia por lá, e ele pareceu saber, embora não lhes conhecesse os nomes, com exceção dos que as pessoas caçam para comer. Percebia agora que o ouvira com muita atenção, tentando adivinhar as coisas que ele não contava - o que ele significava, as coisas em que ele cria. Ter seu estômago nu comparado ao marfim da morsa era um cumprimento que ele havia feito somente a ela? Não sabia como aceitá-lo, mas o havia aceitado quase tão intensamente quanto possível. Ainda sentia um choque de fraqueza física percorrer seu corpo ao pensar em certas coisas: o corpo dele contra o dela, o cheiro da pele dele. A expressão de alegria embevecida no rosto dele, quando a penetrou.

Levantou-se de um salto, tremeu de frio e de tolice, e entrou para se vestir e tratar da vida. Andou em círculo pelo quarto, enfiando a calça jeans e as botas, sem parar. Enquanto abotoava a blusa com uma das mãos, abriu a porta do armário com a outra e pegou uma sobra do pão de milho da véspera. Deu uma mordida e guardou o resto no bolso do casaco para comer na trilha, ou mais tarde, enquanto esperasse no esconderijo que ainda ia construir. Já tinha perdido muito tempo essa manhã. Havia ficado muito tempo longe da toca; nas duas primeiras semanas, de propósito, e nos últimos dez dias, por necessidade. Não tivera coragem de ir. Mesmo que tivesse ido sozinha, ou mentido, ele poderia tê-la seguido.

Seguiu pela trilha do Ribeirão Amargo, descendo a montanha com toda a rapidez, mas sem correr, porque seria inútil. Se estivessem lá, ainda lá estariam dez minutos depois. Ou já não estariam lá. Eram criaturas cautelosas, quase superavam o conceito humano de cautela - e no dia em que os descobrira, eles certamente a haviam visto antes. Não era lógico esperar que ela poderia ter sido mais esperta ou mais sensível que eles. Eles a veriam como inimiga, assim como todo ser humano cujo fedor eles já houvessem sentido. Se esta era a mesma família que num único dia perdera metade de seus membros lá no Vale do Zabulon, os sobreviventes seriam extremamente cautelosos.

Ela tinha certeza de que era a mesma família, ou outros refugiados da maldade humana. Por que outra razão teriam eles se embrenhado tão alto nesta floresta, tão longe das cercas vivas e dos limites das lavouras que eram o domínio habitual dos coiotes? Quando chegaram para parir os filhotes, devem ter cavado muitas tocas. Planos de contingência eram sua marca registrada, os famosos truques dos coiotes. Mas Diana sabia tudo que era possível saber sobre eles. Sabia que somente a fêmea alfa paria a ninhada; os outros adultos da matilha não se reproduziam. Em vez disso, davam apoio à alfa, buscando comida, guardando a toca, brincando com os filhotes, treinando-os para caçar e buscar comida quando pudessem se soltar para a larga, os olhos já abertos. Se seus pais fossem mortos, os filhotes não sentiriam a ausência deles - era essa a natureza da família de coiotes. Essa era a questão. E se o fato de Diana tê-los descoberto tivesse perturbado a matilha, seus membros já teriam levado os filhotes para outro lugar durante a noite. Qualquer predador que precise dormir à noite não consegue caçar coiotes.

Ela reduziu o passo e parou a 400 metros de onde achava estar a toca, para decidir sobre a construção do esconderijo. Tinha de ser bem próximo para ter uma boa visada; e com vento contra, é claro, mas a dire­ção do vento mudava da manhã para a tarde. Ela poderia construir apenas um esconderijo, pois queria reduzir a agitação ao mínimo possível, e dei­xar o mínimo de pistas, caso aparecesse algum bisbilhoteiro. Teria então de ser pela manha. Ela ia construir o esconderijo num ponto encosta acima e só viria pela manhã, quando o sol já tivesse aquecido os campos lá em­baixo e o ar ainda estivesse subindo do vale para o topo da montanha.

Ela se esquecera do quanto havia descido na montanha naquele pri­meiro dia, até encontrar a toca por puro acaso. Agora, procurava se situar, e nem tinha certeza de ainda estar na área da Floresta Nacional ou na fazenda que fazia divisa com ela - não havia cercas. Mas devia estar dentro da flores­ta e num ponto mais alto do que se poderia esperar. Pouco se sabia sobre os coiotes nos Apalaches para saber o que seria considerado normal. Eles não gostavam de montanhas; preferiam as terras baixas, onde poderiam encon­trar ratos do campo, entre outras coisas. Mas esta família tinha sua pró­pria história. Havia sido empurrada até a parede. Por isso, tinha vindo para o alto, para ter como base um esconderijo seguro ao sair para caçar, tal como Jeronimo.

Ela começou a avançar lentamente, quebrando e juntando ramos bai­xos de urze. Abandonou a trilha, protegendo os olhos enquanto avançava através de um maciço denso de rododendros. Queria fazer um círculo amplo em torno da toca para poder observá-la do outro lado do riacho. Os rododendros eram extremamente densos, o que era ótimo: ninguém iria encontrar os rastros dela. Tentou adivinhar quem era o dono da terra encosta abaixo, e se ele gostava de caçar. Provavelmente não chegaria até ali. A maioria dos fazendeiros locais não entravam na floresta, a não ser na temporada de caça ao veado, e mesmo assim somente na companhia do amigo Jack Daniel's. O verdadeiro problema eram os caçadores de ursos e assemelhados, que geralmente vinham de outros lugares. Eram homens especializados, que tinham de percorrer grandes extensões.

Desceu a encosta pisando de lado até ver do outro lado do riacho as raízes na base da gigantesca árvore caída. Pegou o binóculo, focalizou o vão escuro sob as raízes e prendeu a respiração. Nada. Sentou-se num tapete úmido de folhas do último outono e se preparou para esperar. Não tinha sentido construir um esconderijo antes de se assegurar de que eles ainda estavam ali.

Diana percebeu o instante exato em que a manhã terminou. Não usa­va relógio, e para isso não precisava de um. Soube quando o ar ficou tão parado, que ela ouviu as lagartas acima dela, recém-clodidas, comendo milhares de folhas para se transformarem em bruxas io e luna. Mais uma hora, e a brisa mudaria. Não tinha sentido arriscar; era hora de ir embora, e ela ainda não tinha visto nada - nenhum movimento, nenhum sinal. Nem cachorrinhos parecidos com raposas ou com lobos, ou algum primo dos dois, todos tão presentes nos seus estudos que às vezes corriam nos seus sonhos. Acordada, só tinha visto um único animal, um patético prisioneiro do Zoológico da Montanha de Gray, nos arredores de Knoxvüle. Implorara ao curador para alterar a exibição, explicando que os coiotes eram animais sociais, e que exibir um animal solitário não era apenas uma crueldade, era também um erro. Ofereceu a ele os seus serviços: era uma estudante de pós-graduação em biologia silvestre, prestes a concluir sua tese sobre a ex­tensão do habitat do coiote no século XX. O curador sugerira, polidamente, que ela fosse para o oeste, onde esses animais eram tão comuns, que as pessoas em geral só os notavam quando eram atropelados na estrada. A conversa lhe provocara dor de estômago. Em vez disso, elaborou uma proposta de pesquisa e inventou o emprego que agora tinha, e se empregou tão logo terminou e defendeu sua tese. Teve de lutar contra alguns céticos, conseguindo um raro acordo entre o Serviço Florestal, o Serviço de Parques e o Departamento de Caça e Pesca Interna, de forma que seu cheque de pagamento tinha mais palavras do que dólares. Mas todos pareciam achar que tudo estava indo muito bem. Dois anos depois de sua chegada, uma das montanhas mais dilapidadas do sul dos Apalaches voltava a ser um ecossistema intacto. Tudo isso estava certo, mas para ela, apenas em parte.

Soltou um suspiro, resignada. Um dia ela ainda iria pôr os olhos num Canis latrans na natureza, exatamente aqui, na sua própria monta­nha, numa trilha cruzada por outras trilhas nos caminhos que percorrera na juventude. Ainda ia acontecer. Mas não seria hoje.

No caminho de volta, subindo a montanha, ela reduziu consciente­mente o passo. Ouviu outro sabiá-magnólia - um sinal e uma maravilha, uma coisa vinda de entre os mortos. Muitos outros não ressuscitariam: o sabiá de Bachman, o pombo-passageiro, o periquito da Carolina, a mos­ca de Flint, a bruxa Apamea - tantas criaturas extintas se moviam atra­vés das folhas, fora de sua visão periférica, pois Diana sabia o suficiente para perceber que vivia entre fantasmas. Reverenciava os extintos como reverenciava os espíritos de parentes mortos, prestando seus respeitos nos lugares onde eles poderiam ter vivido. Pequenos lobos vermelhos espera­vam como sombras silenciosas às margens das clareiras, enquanto os peri-quitos da Carolina gritavam estridentemente, passando pelas margens dos rios em grandes bandos coloridos de verde e laranja berrantes. Os primei­ros moradores a migrar para esta região acharam-nos lindos e os mataram sem demora. Agora as pessoas chamavam de louco qualquer um que dis­sesse que uma coisa tão exótica quanto um papagaio já vivera nesses con­dados do sul.

Ela parou e olhou para os pés. Havia rastros frescos, e ela se abaixou para examiná-los: patas dianteiras e traseiras alternadas em fila única, numa longa linha sinuosa, a dianteira um pouco maior que a traseira; não havia dúvida de que se tratava de um canídeo. Também se viam as marcas das garras, claríssimas. Num ponto em que os rastros marcaram uma mancha barro mole, ela se ajoelhou para examinar melhor e mediu com a falange do indicador uma pegada bem nítida. Sete centímetros de compri­mento. Agente aprende o que é quando sabe o que não é, como dizia seu pai. Não era uma raposa cinzenta, não era uma raposa vermelha. Um coiote. Grande, provavelmente um macho. O companheiro da alfa.

Pouco mais adiante, onde os rastros cruzavam uma clareira e presumivelmente os rastros de outros animais, ela encontrou seu excremento. Um monte com a ponta recurvada como a dos sapatos de Ali Babá - era certamente um coiote, e que outro que não um grande macho iria fazer tamanhã exibição de seus excrementos? Ela se agachou e remexeu o monte com um pauzinho. O coiote come praticamente de tudo: ratos, grilos, sapos. Lixo humano, gatos domésticos. Os fazendeiros do vale tinham razão ao dizer que um coiote era capaz de comer um cordeiro inteiro; operando em conjunto, um bando podia mesmo derrubar um boi. Mas para isso, seria preciso uma alcatéia enorme, talvez duas dúzias de animais, talvez mais, mais coiotes adultos do que os existentes neste condado e até nesta ponta do estado. E por que eles se dariam tanto trabalho se nas encostas da montanha havia tanta coisa para comer, com mais facilidade e segurança? Poucas cria­turas sobreviviam e floresciam tão bem utilizando os refugos imprestáveis para os humanos. Nas pesquisas para sua tese, ela encontrara as anotações de um biólogo chamado Murie, que passou as primeiras décadas do século dissecando excrementos de coiote e registrando sua esplêndida variedade. Catalogou centenas de itens diferentes no seu diário. Os favoritos de Diana eram "restos de roupas de lã" e "melancia, roubada".

Dada a consistência esfarelada desse monte, Diana esperava encon­trar pinhas e sementes, uma dieta previsível para o local. Ficou surpresa ao dar com o brilho duro e escuro de uma semente de maçã. Depois, muitas outras. Sementes de maçã, nesta época do ano, fim de maio? As maçãs ainda estavam em floração no vale. Maçãs silvestres em árvores nos campos incultos do vale seriam uma possibilidade muito remota. O mais provável é que esse sujeito tivesse entrado num pomar onde al­guém cultivava maçãs que ficavam no pé durante todo o inverno, até a primavera. Ou quem sabe, o bicho penetrou no depósito de alguém e tirou da cesta os últimos exemplares de maçãs pretas do Arkansas. Diana gostou. Ela própria roubava maçãs, quando menina. A fazenda de fumo do pai oferecia poucos prazeres para uma criança, mas quando os dois descobriram respectivamente Nannie Rawley, e seu pomar, Diana encon­trou o sétimo céu. Nannie era uma mulher generosa, que não contava as pretas do Arkansas que sobravam depois da partida dos convidados.

Sentia dor nas pernas, mas continuou agachada mais um pouco, re­mexendo o excremento todo, dissecando-o com o pauzinho. Outra coisa a surpreendeu: grãos de painço, tanto vermelhos quanto brancos. Não havia painço nesta montanha, nem nas fazendas do vale. E certamente não havia painço vermelho e branco ao. mesmo tempo; era uma combinação raramente encontrada nas fazendas. Geralmente só eram encontrados nas misturas comerciais que as pessoas davam aos passarinhos. Era até possível que fosse o painço que ela própria havia colocado. Levantou-se piscando, olhou encosta abaixo através das árvores e troncos, e pensou. Quem mais dava comida aos chapins?

- Ah, seu bandido - disse ela em voz alta, rindo -, seu maravilhoso filho da puta: você estava me espionando.

Passou a tarde desorientada e nervosa, enrolada na pré-histórica poltrona de brocado verde encostada na parede externa da varanda, sob o beirai. Com o caderno de anotações sobre os joelhos, ela catalogou o conteúdo do excremento, o tamanho e a localização dos rastros, a loca­lização do canto do sabiá-magnólia que ouvira hoje. Depois, buscou na memória o primeiro dos sabiás-magnólia e algumas outras coisas que deveria ter registrado antes. Havia ignorado completamente o caderno de anotações durante os nove dias da visita dele. Mesmo agora, ela se sentia anormalmente agitada, precisando comer, pesquisar, verificar alguma coisa, obrigando-se, como se fosse uma criança, a ficar sentada e concentrada. Olhava as páginas em branco cuja numeração terminava na data de hoje, 19 de maio, e se sentiu friamente desapontada pela própria preguiça e falta de concentração. Tudo poderia ter acontecido naqueles dias, e ela não teria percebido.

O que ela tinha no alto desta montanha era uma oportunidade que jamais se repetiria, seja para quem fosse: a volta de um predador canídeo importante e o reordenamento das espécies que ele provocaria. Especi­almente significativo se o coiote se revelasse o que R. T. Paine chamou de predador notável. Tinha lido e relido cuidadosamente as famosas expe­riências de Paine desde a década de 60, nas quais ele retirava das lagoas deixadas pela maré todas as estrelas-do-mar, e observou a queda na diversidade, que passou de muitas para muito poucas espécies. A estrela-do-mar predava os mexilhões. Sem elas, os mexilhões proliferavam e, em razão de seu próprio crescimento, comiam ou expulsavam quase tudo em volta. Até então, ninguém soubera da importância crucial de um carnívoro para coisas tão distantes da carnivoridade. É claro que o experimento foi indefinidamente confirmado por acidente: o desapare­cimento do leão da montanha no Grand Canyon, por exemplo, transfor­mou aquele espaço numa monocultura prolífica de veados, que expulsou todos os outros herbívoros e reduziu a paisagem a pedra nua. Muitas pes­soas observaram e registraram o desastre da eliminação de um predador de um sistema, que podia ser observado até mesmo aqui, na sua querida montanha, onde o habitat biologicamente mais rico da América do Norte ia perdendo sua riqueza devido à extinção, uma seguida da outra, de plan­tas, pássaros, peixes, mamíferos, bruxas, moscas e especialmente das cri­aturas dos rios cujos nomes ela colecionava como contas: colher de açúcar, concha de garfo, concha de castanha, concha de folha. De 65 espécies de mexilhões, cerca de 20 já irrecuperavelmente extintas. Havia centenas de razões para cada morte - pesticidas, assoreamento resultante da aragem do solo, gado no riacho -, mas para Diana cada uma delas era uma peça do quebra-cabeça que há anos ela tentava montar. O principal predador dos moluscos dos rios em risco de extinção era o rato almiscarado, cuja popu­lação explodiu nos últimos cinqüenta anos. Historicamente, quem contro­lava a população de ratos era a marta (hoje, em sua maioria, casacos), a lontra (também quase extinta) e evidentemente o lobo vermelho. Não era possível saber como a volta de um cachorro grande e faminto iria fazer com que a estabilidade fosse restaurada, mesmo depois de uma ausência de 200 anos. Coisas raras, coisas em perigo, não somente a vida fluvial, mas também as plantas superconsumidas e seus polinizadores, poderiam começar a se recuperar.

Ou quem sabe, os coiotes se transformariam em novas pragas, como geralmente sucede com as novas espécies introduzidas. Talvez os fazendei­ros tivessem razão em matá-los - foi obrigada a concordar que seria possí­vel. Mas ela não pensava assim. Acreditava que os coiotes proliferavam aqui por uma razão muito simples: ocupavam silenciosamente um nicho deixado vago 200 anos antes pelo lobo vermelho. Os dois predadores eram praticamente idênticos: o lobo vermelho poderia ser o resultado do cruza­mento genético do lobo cinzento com o coiote. Como o coiote, ele era um caçador que dependia do olfato, capaz de caçar na escuridão da noite, ao contrário dos gatos, que são caçadores visuais. Sua taxa de reprodução era similar à do coiote, que tinha quase o mesmo tamanho. De fato, a julgar pelos rastros que encontrara, os coiotes daqui eram quase do tamanho do lobo vermelho, e provavelmente ficavam maiores a cada geração - e insinuavam-se no nicho dessa terra que deveria ser ocupado por eles. O fantasma de uma criatura há muito extinta vinha chegando com rastros silenciosos, vol­tando ao lugar que já fora seu na complexa anatomia desta floresta, assim como um coração pulsando volta ao seu corpo. Era isso que ela esperava ver, nesse momento mágico: uma restauração. Desde que não fosse pre­guiçosa ou desleixada demais. E desde que não conduzisse um matador ao seu abrigo.

Franziu a testa e voltou às anotações, lembrando-se das sementes brancas e vermelhas e tentando adivinhar de que outras formas ela poderia estar influenciando o experimento. Mordeu a caneta, tentando se concentrar. Quanto mais trabalhava, mais as aspirações de seu corpo evoluíam dos impulsos indefinidos para uma perturbação efetiva. Queria comer alguma coisa, quente e específica. Ela não se permitia dar a esse desejo seu verdadeiro nome, por isso deu-lhe o nome de comida, uma coisa que normalmente não mereceria uma segunda consideração na sua vida na montanha - comia quando tinha fome, e qualquer coisa servia. Mas o dia inteiro seu corpo lhe falou da presença desse desejo: uma dor na coxa, uma carência nas entranhas.

Decidiu então que queria uma boa sopa de feijão da marinha, levan­tou-se num arranco, e entrou. Um feijão a fumegar numa tigela esmaltada, afogando o resto do pão de milho. Ele fizera uma bela bisnaga de pão amarelo de milho na véspera, de manhã, antes de sair - para levar consigo, imaginou, mas acabou deixando a maior parte para ela. Pensou em levar tudo isso para a cadeira da varanda e sentar-se para contemplar o poente, com as costas voltadas para o pico de Clinch. Ver o céu a se incendiar por trás das árvores.

Entrou e acendeu o fogareiro de querosene, e foi sem pensar até uma lata grande de metal onde guardava os sacos de feijão, mas parou diante dela, sentindo-se meio tola. Já era muito tarde para pôr o feijão de molho e cozinhá-lo como ela fazia geralmente, uma quantidade suficiente para o consumo de uns três dias, com folga. Mas tinha certeza de haver uma lata de feijão pré-cozido no fundo do armário. Abriu as duas portas e foi afastando vidros de molho de espaguete, sopa Campbell, ravióli, coisas que ela tinha esquecido ali - geralmente ficava satisfeita com feijão e arroz. Empurrou o forno holandês para olhar por atrás dele e viu, consternada, que havia deixado a porta aberta. Merda! Com toda a certeza deixou a tampa aberta de manhã, na pressa de sair para a varanda, e um exército de camundongos da cabana nem precisou de convite. Olhou lá dentro, saben­do exatamente o que veria: a crosta redonda e crocante mordiscada, boli­nhas de excremento espalhadas pela superfície dourada. Os olhos se encheram de lágrimas ao olhar para o interior do pesado forno.

- Pressa demais, Diana - disse em voz alta.

Era apenas comida, e ela ainda tinha muita, mas a que ela queria era essa. Bateu a tampa do forno, retirou-o do apoio e saiu. Ela tinha deixado a tampa aberta, nada de "devia ter". Morando sozinha, não tinha mais ninguém a quem culpar, só a si mesma, quando deparava com o rolo vazio de papel higiênico, na casinha lá fora, ou quando o pão de milho está salpicado de excrementos. Se quisesse, poderia pôr a culpa nos camundongos, diabinhos sem vergonha. Mas eles apenas faziam a mesma coisa que todo mundo: sobreviviam.

Pois então, tudo bem; por mais fascinada que fosse com excrementos (a gota d'água para seu ex-marido fora exatamente aquela parte de sua tese), ela não estava disposta a comê-los, nem comer as migalhas deixa­das pelos camundongos. Andou até a ponta da varanda, continuou até a pedra sob a cerejeira. Lá, ela jogou os pedaços e migalhas de pão de milho no chão, adicionando suas perdas à miríade de sementes que ali havia. Então, completamente desanimada, voltou para dentro, sentou-se à mesa e comeu ravióli enlatado frio, enquanto gravava suas notas. Para o inferno com os desejos do corpo.

Antes do pôr-do-sol, ela se levantou da mesa e se espreguiçou, pois sentia cãibras. Depois foi até a varanda sem qualquer razão aparente, a tempo de ver a raridade que era uma bruxa luna voando à luz do dia. Uma subida surpreendente, igual a um par de folhas de castanheira levado por uma corrente ascendente, a fez parar na porta. Observou-a voar gradualmente para cima, aos saltos. Para cima, para baixo, depois um pouco mais para cima, como se estivesse subindo uma escadaria no ar. Diana não percebeu que estava prendendo a respiração, nem mes­mo quando finalmente expirou no momento mesmo em que a bruxa chegou às primeiras folhas da cerejeira e lá pousou. As bruxas luna eram muito comuns ali, mas sempre a comoviam pelo tamanho e as etéreas asas verde-claras, dotadas de caudas longas e graciosas. Como se já fossem fantasmas, pranteando a própria extinção. Essa estava fora de seu elemento, voando em plena luz do dia. Provavelmente fora acor­dada por algum esquilo. Ou, quem sabe, Diana estaria testemunhando a última e fatal desorientação que domina a criatura que chega ao fim da vida. Certa vez, ainda criança, estava com o pai num posto de gaso­lina quando viu uma luna na mesma situação: tonta, morrendo no pa­vimento na frente do caminhão. Enquanto enchiam o tanque, ela segurara o inseto na mão e observou-o a lutar contra o fim. De perto, era um bicho horroroso, contorcendo-se e debatendo-se na mão até começar a deixar umas manchas de pó verde nos seus dedos. O horror quase a tinha forçado a jogá-la no chão, mas sua afeição apriorística pela luna não permitiu. Quando elas dançavam a voar sobre o jardim à noite, ela e o pai lhes davam o nome de ballerinas. Mas essa não era uma ballerina. O corpo era um cone gordo e peludo, que de um lado se transformara numa cara feroz como a de uma coruja pequena e irrita­da. Olhava com raiva para Diana, parecendo saber demais para um inseto e, ainda pior, cheia de desprezo. O episódio não a fizera desistir de seu amor pela luna, mas ela nunca mais o esqueceu, nem se esque­ceu de como um mistério seguro na mão perdia toda a graça.

Bem mais tarde, muito depois do ocaso, depois de ter apagado a lamparina e já quase adormecida no catre, ela o ouviu lá fora. Eram pas­sos, tinha certeza, mas não eram estalos de algum passo que ela já tivesse ouvido. Na verdade, não chegava a ser nada. Sentou-se na cama, abraçan­do o próprio corpo sob o cobertor e prendeu a trança na boca para se manter imóvel. Não era nada, mas nada não é uma ausência, é uma presença. Os insetos que se calavam, uma mudança na qualidade da noite que indica a presença de alguma coisa ou de alguém. Ou seria ainda menos que nada, só um guaxinim fazendo suas rondas sem fim, que viera comer os restos de pão de milho que ela jogara fora?

Finalmente, ouviu uma coisa definida: o estalo de um passo. Tateou em baixo da cama para pegar a lanterna que guardava ali, enfiou os pés descalços nas botas e chegou até a porta, onde ficou imóvel, olhando para fora. Devia falar alguma coisa? Por que ele não vinha?

Na escuridão que havia fora da varanda, onde ela espalhava as se­mentes - era lá que ele estava. Ela quase via a movimentação. Encostou o cabo da lanterna na testa, entre os olhos - um truque que aprendera há muito tempo - para enxergar à noite. A luz que saía dali não revelaria sua presença a nenhum invasor, e aquele ponto na sua testa emitiria um raio de luz que iria direto até as retinas e devolveria a seus próprios olhos a cor característica dos olhos do invasor. Isso se, na verdade, ele tivesse olhos, e se esses olhos estivessem fixados diretamente nela.

Esperou mais um pouco e nada ouviu. Acendeu a lanterna: de início apenas a escuridão. Então, de repente, surgiram duas luzes pequenas, duas retinas brilhantes - não o feroz brilho vermelho de olhos humanos, mas um dourado esverdeado. Não era um homem, nem um guaxinim. Era um coiote.

 

                                   O AMOR DAS BRUXAS

Um vôo em espiral das bruxas parece aleatório apenas porque os me­canismos de rastreamento olfativo são muito diferentes dos nossos. Usan­do a visão binocular, avaliamos a localização de um objeto pela comparação das imagens nos dois olhos, e seguindo diretamente na direção do estímu­lo. Mas nas espécies que se valem do sentido do olfato, o organismo compara pontos no espaço, move-se na direção da máxima concentração e então com­para mais dois outros pontos, movendo-se em ziguezague em direção à ori­gem. Usando a navegação olfativa, a bruxa detecta correntes de cheiro no ar e, em pequenos incrementos, descobre como se mover para cima.

Foi a correria em ziguezague dos sobrinhos de Lusa em meio aos móveis o que a levou a ruminar a respeito dessa passagem sobre a navega­ção das bruxas; e então ela se perguntou: quando a havia lido. Há 100 anos? Anteontem? Ler secretamente na cama, correr para terminar uma página ou capítulo antes de Cole chegar: tudo isso havia acabado. Agora ela podia ler onde quisesse, ler até terminar o livro, se tivesse vontade. Lusa tentou se convencer de que esse estranho sonho era verdade, mas não conseguiu se ligar à pessoa que encontrou sentada aqui dentro, uma mu­lher de vestido preto, emprestado e folgado no peito. Nunca havia visto nem imaginado este lugar por dentro, especialmente para o velório de seu marido. As salas eram pintadas de um verde de pasta de dentes, e os ele­gantes marcos das portas eram na verdade feitos de plástico texturizado, para imitar madeira. Que coisa estranha, pensou Lusa, comprar e instalar plástico para imitar madeira numa cidade cercada de florestas.

Ela ouvia as pessoas que esperavam na fila do lado de fora da porta, abastecendo o longo e estreito corredor como uma substância numa pipeta ou num conta-gotas, a pingar um visitante de cada vez na sala, um rosto triste de cada vez. Os visitantes que acabavam de entrar na sala teriam de esperar uma hora ou mais, conforme Mary Edna havia anunciado (com expressão satisfeita) depois de fazer um reconhecimento. A fila se estendia agora do lado de fora, pois já anoitecia e as pessoas saíam do trabalho. A maioria chegava com roupas de trabalho, calças jeans limpas que usavam sob os aventais de ordenha; os ternos e gravatas estavam guardados para o enterro no dia seguinte. Essa noite seria uma cerimônia mais simples, a última oportunidade de ver Cole e as últimas despedidas. Ela tinha a impressão de que não havia uma única alma no vale que não tivesse vindo. Cole era muito estimado - Lusa sabia disso, é claro. E também havia o trabalho do agente funerário para ser admirado, dado o acidente.

Lusa não teve de esperar na fila. Estava no início dela, sentada junto ao caixão, onde as pessoas poderiam chegar para prestar as últimas home­nagens, embora a maioria só a conhecesse de nome e de ouvir falar, e se limitava a um rígido aceno de cabeça. Mas ela sabia que estavam pesaro­sos. Eles despejavam tamanhã torrente de condolências sobre o resto da família de Cole, que Lusa se sentiu afogada na turbulência. Estava sentada numa cadeira de metal, ladeada por duas cunhadas - que agora eram Hannie-Mavis e Mary Edna. Quando ia lá fora para cumprimentar quem chegava, Mary Edna era substituída por Jewel, ou Lois, ou Emaline, blo­cos intercambiaveis numa sólida parede de vestidos negros. Talvez não completamente intercambiaveis. Ficava mais aliviada quando quem estava ali era Jewell, menos dominadora que Mary Edna e seu físico de tronco de árvore, ou Lois e seu grasnido de fumante inveterada. Ou Hannie-Mavis, com delineador à moda de Cleópatra, até nesta ocasião tão deprimente. No começo, quando precisou de um mnemônico para decorar os nomes, Mary Edna era Menacing Eldest; Hannie Mavis Makeup Handy, Lois, de cara comprida, a Long-haired and Loud; Emaline era Emotional*. Mas Jewel era apenas a Jóia, um jarro vazio com dois filhos e olhos tristes da mesma cor dos de Cole. Lusa não se lembrava de ter falado com ela, ou de tê-la visto fazer qualquer coisa além de distribuir pirulitos para as crianças no jardim durante as reuniões de família e, uma única vez, aproximar-se de Lusa para lhe perguntar se ela vira o gato de rabo cortado que havia sumido.

Os dois filhos de Jewel e de Hannie-Mavis, com cinco anos de ida­de, corriam literalmente sob seus pés: um dos dois acabara de entrar sob as pernas de Lusa e sob as estranhas meias pretas que lhe deram para calçar. O incansável movimento em espiral dos meninos fizeram-na lem­brar-se da navegação das bruxas: será que os meninos cheiravam o ar de diferentes partes da sala? E se cheiravam, que cheiro eles sentiam no ar em volta de Lusa? Ela não sentia nada. De alguma forma, seu entorpeci­mento parecia ligado ao barulho. A medida que a noite avançava, o baru* Jogos de palavras intraduzíveis: Primogênita Ameaçadora é Menacing Eldest; Feita à Mão é Makeup Handy; Cabelos longos e Gritona é Long-haired and Loud; Emocional é Emotional.

Aumentava como uma maré. Muitas conversas simultâneas, superpos­tas a um ruído que ela não conseguia identificar. Então, ela passou a pres­tar atenção nas frases sem sentido que chegavam a seus ouvidos. O sotaque dos montanheses, mesmo sem palavras, era muito diferente da língua fa­lada nas cidades: as vogais eram mais ásperas, mas toda a cadência era mais suave. Aquela ali ela ouvia a todo instante.

Não está à venda. As vacas voltam para Lawrence. De qualquer jeito, não vai ter mais negócio de fumo esta semana. Meu Deus, não. É a cerca da divisa. Claro, eu não quero. Família Widener, terra de Widener, Meu Deus, claro, já estive lá.

É, pescando quando era menino. Tem uma lagoa lá no vale. Vale Amargo.

Ela não tem nada com isso. É terra da família Widener, todo mundo sabe, o lugar da família, ela não tem nada a ver.

- Não, ela não vai ficar. Nem sei se ela ia agüentar.

De repente, se apercebeu de que essa última fala havia sido de Mary Edna. Lá perto da porta, falando dela, Lusa. Então isso já fora decidido? Mas era natural, era até uma gentileza, supôs Lusa, deixá-la ir embora com tanta facilidade. Só podiam mesmo esperar que ela juntasse suas redes de pegar borboletas, seu nome estrangeiro, e voltar para Lexington. E como final de uma frase sussurrada, ela ouviu: "Lá é que é o lugar dela".

Sentiu-se estranhamente leve. Claro! Não precisava ficar no Condado de Zabulon. Ofereceram-lhe mais que a liberdade de ler na cama, o que ainda significava esconder-se das cunhadas, que com certeza não aprova­vam livros e provavelmente também desaprovavam qu:m ficasse tanto tempo na cama. Não, era o fato de poder ir embora, ser quem quisesse, onde quisesse. Pôs as mãos no rosto e, num repente de alegria, teve vonta­de de contar a Cole: agora, eles podiam ir embora! Meu Deus, Cole. Aper­tou os dedos nos olhos e entendeu vagamente o quanto estava perturbada. O choque, duas noites sem dormir, e durante dois dias toda aquela gente comendo sanduíches de presunto na sua cozinha, tudo isso a fizera perder a cabeça. Seu corpo, como se pertencesse a outra pessoa, começou a sacu­dir-se em soluços curtos e secos que ela não conseguia conter, num choro estranho que saía de sua garganta quase como uma risada. Hannie-Mavis passou o braço sobre seus ombros convulsivos e sussurrou: "Meu bem, eu também não sei como vou viver sem ele. Nós todas estamos tão perdidas quanto você".

Lusa olhou para Hannie-Mavis. Por trás dos cílios ferozmente cur­vados e pintados de azul, seus olhos pareciam realmente desamparados, perdidos, como dizia ela. O que ela estava tentando dizer? Que Lusa não tinha a prerrogativa de sofrer mais? Que, primeiro como dona da casa, e agora como viúva de Cole, Lusa estava ocupando um lugar que não era seu de direito?

- Você vai ficar bem - disse-lhe Lusa, sem emoção. - Basta eu ir embora. Sentia-se como num daqueles sonhos dos quais não se lembrava no dia seguinte. Presa numa repetição infinda, ela apertava as mãos calejadas de homens que ainda ordenhavam à mão, e aceitava na sua o contato das faces macias e perfumadas de suas mulheres.

- Um homem tão bom. Só Deus sabe por que a hora dele chegou tão cedo.

- Ele foi para junto do nosso Salvador.

- Ele parece estar tão bem!

Ela não havia olhado para o corpo e sentia-se incapaz de contemplá-lo. Não conseguia se convencer de que ele estava ali, não o seu corpo, com a mesa grande e perfeita que era seu o estômago sobre o qual ela repousava a cabeça como uma menina com sono; toda a energia que ela aprendeu a desejar, e com ela se movimentar como se numa dança ao som de uma canção que antes de Cole ela nunca soubera cantar. As mãos dele sobre suas costas nuas, a boca que sugava a dela como se a extrair néctar de uma flor - todas essas coisas de Cole que ela nunca mais teria na vida. Abriu os olhos, com medo de cair na escuridão. Uma velhinha muito pequenininha estava ajoelhada à sua frente, e assustou Lusa quando apertou com firmeza as duas mãos nos seus joelhos.

- Você não me conhece - sussurrou quase ameaçadora -, tenho um pomar a uma milha acima da sua fazenda. Conheci Cole Widener quando ele ainda era menino. Ele vinha brincar com minha filha e eu o deixava roubar maçãs.

- Ahn, sei; muito obrigada.

A mulher ergueu os olhos e piscou como se parasse para ouvir. Seus olhos eram de um marrom muito escuro, circundados por cílios claros, e ela arrumava o cabelo grisalho num coque de trancas enrolado no alto da cabeça, tal como alguém que viesse de outro país ou de outro tempo.

- Perdi uma filha - disse ela diretamente para os olhos de Lusa, -pensei que ia morrer. Mas a gente não morre. Acaba aprendendo a amar o lugar que o outro deixou para a gente.

Soltou os joelhos de Lusa e agarrou suas mãos, apertando-as com força antes de se afastar. Lusa continuou sentindo em seus dedos a frieza e a força daquela mão. Quando a mulher saiu pela porta, Lusa viu sua saia de algodão balançando como uma cortina que se fecha.

Pouco depois das nove horas, Mary Edna começou a insistir que Lusa devia ir para casa. Herb a levaria, e voltaria para velar com o resto da família. Ou outra pessoa - alguém poderia fazer isso; havia um volun­tário, primo de Cole, que poderia fazer companhia a ela para que não ficasse sozinha em casa até os outros voltarem.

- Mas por que eu iria para casa se todos vocês vão ficar? - pergun­tou Lusa, choramingando como uma criança desnorteada. E, então, tal como uma criança desnorteada que se sente tapeada, ela deixou de lado suas hesi­tações e se mostrou firme e determinada. Disse a Mary Edna que iria ficar até o final, até que a última pessoa se despedisse de Cole e fosse embora. Só depois de ter visto a nuca e a careca de Herb Goins, e os traseiros de Mary Edna, Lois, Jewel, Emaline e Hannie-Mavis saindo pela porta, ela se levan­taria e daria um beijo de despedida no marido. Não estava pensando no corpo de Cole quando declarou sua intenção de ficar. Limitava-se a repetir, cada vez com mais raiva, até aquilo se transformar em verdade.

Dois dias e duas noites depois do velório, Lusa ainda não havia dor­mido. Não entendia como sua mente não desmoronara por exaustão. Mas era o contrário: quanto maior o cansaço, mais sua mente se obstinava em continuar vigilante. Para quê? Ninguém ia roubar a prataria, pensava, nem ela dava a menor importância - e era até bem possível, pois a casa estava apinhada de visitantes. Na tarde de sexta feira, depois do enterro, ela cochilou por um minuto no sofá da sala cheia de gente, vestida com sua roupa de domingo. Poderia jurar que foi acordada pelo silêncio, pois as conversas sobre colheitas, chuvas, preços da carne e reumatismo cessaram quando perceberam que ela estava dormindo. Lusa abriu os olhos e viu os olhares silenciosos e piedosos, como se ela fosse o motivo do velório, e sentiu a possibilidade de o sono afastar-se para sempre dela.

Pelo menos as coisas ficavam mais calmas depois do anoitecer, quando já não era razoável fazer visitas ou comer. Nem aquele pastor chato iria mais aparecer. Mas as noites eram piores para Lusa. Tinha de percorrer os quartos de cima, evitando o quarto onde ela e Cole dormiam, mas sen­tia-se realmente presa ali, pois Jewel e Hannie-Mavis se haviam apossado do térreo pela quinta noite consecutiva. Aparentemente as duas decidiram se mudar para lá. Já era sábado - ou melhor, manhã de domingo, seria verdade? Será que elas não deviam voltar para suas casas, maridos e filhos? Lusa se deitou sobre a colcha no quarto de hóspedes (que as cunhadas chamavam de quarto das meninas), ouvindo o murmúrio sem som da con­versa das duas. Queria ser surda - já tinha ouvido mais do que o suficiente dessas muitas suposições sobre sua fragilidade, seus planos, sua falta de fé e de parentes em quem se apoiar. Mary Edna dissera ao pastor, sotto você, "ora, o senhor sabe que essa mulher não é cristã". Como se aquilo explicasse, em parte, sua incrível falta de sorte. Todos eles, irmãs e vizinhos, discutiram os mistérios da família do pai dela, há muito desaparecida ("a sociedade com os judeus, durante a guerra"), e a saúde da mãe, que se agra­vara recentemente ("na primavera, uma pena - não, nem era tão velha as­sim"), sem entender como a vida reservara dois pais mudos para Lusa. Desde o derrame, os olhos frenéticos de sua mãe procuravam palavras com tanto desespero, que Lusa não suportava mais vê-la, enquanto o pai se resignou ao silêncio como se isso fosse sua própria morte e ele já estivesse à sua espera. Quando ela telefonou para lhe dar a horrível notícia, a morte do genro, seu pai pareceu não entender que essa nova tragédia tinha relação com ele. Nem mesmo chegaram a discutir a vinda dele para o enterro.

Hannie-Mavis e Jewel estavam agora na cozinha, mudas, uma Jewel abatida em contraste com uma Handy-Mavis mais dramática, cujas faces lacrimosas exigiam constantes reparos (embora a mais emotiva Emaline a tivesse superado, dando profundos gemidos diante de um retrato de Cole ainda bebê). As coisas pareceram se acalmar quando os visitantes se foram, mas Lusa ainda as ouvia conversando e preparando comida. Tudo na cozi­nha continuava como a mãe delas havia organizado. Quando Lusa tentou reorganizar os armários, foi tratada como quem errou mas merece perdão. Era capaz de ver, na imaginação, as duas a alisar e reutilizar papel alumínio para cobrir as panelas. O ruído incessante de abrir e fechar a geladeira - um gemido e um chiado - tornou-se a música de fundo da infelicidade de Lusa.

Ah, se ela pudesse dormir, sair um pouquinho desse lugar.

Quando o relógio antigo no térreo bateu uma hora, ela desistiu. Essa noite, o sono não viria. Havia fantasmas por toda parte, até mesmo aqui, num quarto neutro como o de hóspedes, onde Lusa nunca havia ficado nem por uma hora. A cama não guardava lembranças, mas lá estava o grande contrabaixo de Cole encostado no canto, assustando-a com sua presença como se fosse um homem parado na sombra. Pensou nas mãos de Cole a deslizar sobre o braço, para cima e para baixo, como se partes dele se recusassem a morrer. Mais um elemento da profunda injustiça de sua morte: ela nunca havia parado para ouvi-lo tocar. Ele abandonara a música nos últimos anos, embora ela soubesse que nos tempos de colégio ele era bastante bom, tanto que integrava um conjunto chamado Out ofthe Blue, que tocava em cidades ali perto. Ela não sabia quem eram os outros membros - o violino, a guitarra, o bandolim, todos tocados por mãos que apertaram a dela nos últimos dias, embora ninguém houvesse mencionado aquele grupo. Agora Cole desfalcara permanentemente o conjunto como que arrancado dali igual a um dente, e o contrabaixo ainda o espe­rava no canto próprio.

Observou as curvas negras e brilhantes do instrumento e se deu conta de que já era velho, talvez mais velho do que a casa, que tinha mais de cem anos. Outros homens mortos o tocaram antes de Cole. Ela nunca lhe perguntara de onde viera. Era estranho dividir os objetos de sua vida com comunidades de mortos e nunca se preocupar até que um dos seus se juntasse a elas. Só recentemente Lusa chegara a esta verdade: vivia entre fantasmas.

Suspirou e se levantou. Iria para seu próprio quarto para ler alguma coisa, talvez Nabokov, para ocupar a mente. Não conseguiria dormir na­quela cama, mas o quarto tinha pelo menos uma lâmpada de leitura. Um livro faria a manha chegar mais cedo. Pensou em Cole, que se levantava sempre às cinco, ou até mais cedo, no verão, e como ela se irritava com o raiar do dia e a confusão de tarefas e escolhas. A irritação não era mais nada, se comparada com a infelicidade infinda de uma noite de insônia. Agora ela daria a alma em troca do amanhecer.

Encontrou os chinelos e patinou sobre as tábuas que gemiam e desceu para procurar no térreo o livro que acreditava ter deixado na sala. No seu atual estado de espírito, quem poderia garantir? Poderia tê-lo deixado na geladeira. Nessa manhã, ao servir ao pastor um copo de chá gelado com açúcar, ela pôs a tampa do açucareiro no copo e ofereceu o açucareiro ao Irmão Leonard. Não percebeu o erro até Jewel se levantar e corrigi-lo.

Depois disso, não foi capaz de encarar nenhuma delas. Só agora, finalmente, parecia seguro descer ao térreo para procurar o livro. A cozinha já estava em silêncio há algum tempo. As cunhadas já deviam estar dor­mindo nos seus postos nas salas de estar e de visitas.

Mas uma forma branca que subia a escada a assustou: Jewel ou Hannie-Mavis a correr escada acima de camisola.

- Eu ia ver você. Ouvi você andando lá em cima. Era Jewel.

- Só estou descendo para pegar um livro.

- Você não deve ler agora, querida. Você precisa dormir. Desamparada, Lusa deixou cair os ombros. Vão dizer a Lázaro que

ele deve se levantar.

- Não consigo. Tentei, mas não consegui.

- Sei. Trouxe uma coisa para você tomar. O dr. Gibben me deu isto quando Shel foi embora. Senti a mesma coisa.

"Foi embora". O marido de Jewel a tinha abandonado há uns três ou quatro anos, um fato que a família fazia tanta questão de esconder, que Lusa havia esquecido. Então, tomar o quê, veneno? Lusa tocou as mãos de Jewel e ouviu o estalido da tampa de um frasco plástico. Tentou adivinhar.

- Ah, pílulas para dormir? -É.

- Acho que não vou querer.

- Elas não fazem mal nenhum.

- Eu nunca tomo nada. Nem aspirina para dor de cabeça. Acho que tenho medo de pílulas. Acho que também estou morrendo de medo de dormir. Não é uma bobagem?

A camisola branca de Jewel descia dos picos de seus ombros, suspensa no ar como uma bruxa ou um fantasma. A voz veio da escuridão acima dela.

- Sei como é. A gente quer fechar os olhos, mas ao mesmo tempo sente que tem uma coisa que precisa ser vista e a gente não quer perder.

- É isso mesmo.

Lusa se inclinou no escuro, impressionada, tentando tocar o rosto que não conseguia ver, para ter certeza de que era mesmo Jewel. Parecia impossível conciliar essa simpatia sábia com a mulher que conhecia. Uma jarra vazia, como a chamava.

- Depois de algum tempo, a gente... não sei como explicar.

A voz tímida fez uma pausa e então, em sua mente, Lusa reconheceu Jewel.

- Depois de algum tempo, a gente pára de sentir falta do homem; quer dizer, fisicamente. O Senhor ajuda a gente a esquecer.

"Meu Deus". Lusa gemeu, lembrando-se do corpo que parecia tão pesado ao ser tocado, tão parecido com um fluido congelado, que ela se havia retraído, e apenas roçou os lábios na testa dele, antes de fugir. Sen­tou-se no tapete da escada e começou a soluçar. Nem conseguia sentir vergonha, não tinha energia. A aparição de asas brancas acima dela se abaixou e a abraçou com força.

Depois de um minuto, as duas se separaram.

- O que eu estou dizendo? - disse Jewel com brandura - Você é tão jovem, tão bonita... vai se casar de novo. Sei que agora você nem conse­gue pensar nisso, mas você vai casar outra vez.

Lusa se sentiu vazia.

- Você também é jovem, Jewel. Igual a mim.

- Não. Não é a mesma coisa. Para mim, está tudo acabado.

- Por quê?

- Psss.

Pôs suavemente a mão sobre a boca de Lusa e lhe acariciou o cabelo.

- Você precisa dormir. Uma hora você vai ter de descansar. A gente chega ao ponto de querer morrer, e isso é muito pior do que ter medo.

Lusa estendeu a outra mão, procurando a de Jewel, sentiu-a abrir o frasco e colocar um ponto sem peso na palma de sua mão. Se olhasse um pouco para o lado, seria capaz de vê-lo tal como se vê uma distante estrela-guia.

- Agora suba e tome isso com um copo d'água e deite. As vezes a gente só precisa de um empurrãozinho.

Deitada de lado, ela olhava os números vermelhos do relógio digital no lado da cama que era o de Cole. De início, ela teve medo dos efeitos do comprimido nos seus membros, mas aos poucos foi chegando a uma conclusão muito mais assustadora, a de que não haveria efeito nenhum. Quando o relógio do térreo bateu duas horas, Lusa sentiu total e angustiante desespero. Jewel tinha razão: seu corpo estava arrasado pela espera. Sua mente ansiava pela morte.

Então, tudo passou.

O sono levou Lusa para uma campina larga e íngreme, uma clareira no meio da mata. Um homem a chamava pelo nome.

- Lusa.

Era um desconhecido, ninguém que ela conhecesse. Ela ouvia a voz, mas não o via. Estava deitada de lado sobre a relva orvalhada, completa­mente enrolada num cobertor escuro que lhe cobria até a cabeça.

- Como você soube que era eu? - perguntou a ele através do cober­tor, porque de repente ela percebeu que havia outras mulheres deitadas por todo o campo, também enroladas em cobertores escuros.

- Eu a conheço. Conheço a forma do seu corpo.

- Então você me observou com atenção.

- É verdade.

Ela sentiu uma consciência aguda e erótica da cintura fina, dos ossos curtos e grossos das coxas, da curva incomum de seus quadris - coisas que a distinguiam de todas as outras mulheres embrulhadas em coberto­res. O prazer delicioso e insuportável de ser a escolhida.

- Você me conhecia tão bem assim, para me encontrar aqui?

Ele tinha uma voz suave, que vinha de longe para explicar sua posi­ção nos termos mais claros.

- Eu a conheço bem desde todo o sempre.

O cheiro dele explodiu dentro de seu cérebro como uma chuva de luzes, e ela o reconheceu perfeitamente. E assim que as bruxas falam entre si. Palavras erradas são impossíveis quando não existem palavras.

Ela rolou para ele e abriu o cobertor.

Ele era coberto de pêlos; não era um homem, era uma montanha com extremidades sedosas e verde-claras, e os ombros marrons como os de uma luna. Ele a envolveu na sua maciez, tocou seu rosto com o que parecia o balanço das árvores. Tinha o cheiro de água sobre pedras e almíscar de folhas em decomposição, uma doce aura selvagem, que provocou nela uma loucura de pura carência. Ela se apertou contra todo o comprimento dele, esfregando seu corpo pontilhado como uma floresta entre suas pernas, desejando dissolver suas carências dentro da segurança daquele abraço. Foi exatamente isso, sentiu-se confortada por sua força e densa imensidão quando ele tremeu e gozou dentro dela.

Acordou suada, costas arqueadas com o desejo e a saciedade simul­tâneas. Tocou rapidamente o próprio corpo - os seios, o rosto - para ter certeza de que era essa a sua forma. Parecia impossível, mas aqui estava ela depois de tudo o que acontecera, ainda ela, Lusa.

O dia estava raiando. Ela se enrolou de lado e durante um longo tempo contemplou através da janela aberta os solenes alamos, dos dois lados do vale, a guardar a boca da montanha, cuja respiração continuava chegando suavemente até ela. Acima das árvores, havia um céu quase branco onde a lua crescente estivera até pouco tempo antes: era a manha, com sua confusão de tarefas e escolhas. Um dia só seu, com um leve perfume de madressilvas. O que ele tentara lhe dizer naquela manhã em que ela estava sentada junto à janela era que as palavras não são toda a verdade. O que ela havia amado ainda estava aqui, e podia permanecer aqui, se ela soubesse chegar até lá.

Puxou o lençol e fechou os olhos, aceitando como sua a solidão na cama, se ela assim decidisse.

 

                                     Velhas castanheiras

VJarnett ainda se lembrava de um enorme tronco oco no meio da mata do Monte Zabulon, que havia em seu tempo de menino. Era tão grande, que ele e os outros meninos passavam em fila por dentro dele sem precisar baixar a cabeça. A lembrança o fez sorrir. Decidiram que o vão na árvore era deles, pois um garoto de dez anos é capaz de, tranqüilamente, achar que é o dono de um milagre da natureza, e então escrever nele com um canivete. Haviam dado um nome ao oco no tronco - como era mesmo? Alguma coisa a ver com os índios. O Túnel índio.

Então, pela primeira vez nos seus quase 80 anos de vida, ocorreu a Garnett uma constatação surpreendente: o infeliz que havia derrubado aquela árvore, calculando mal o seu tamanho e sendo forçado a abandoná-la, só podia ter sido o seu avô. Quantas vezes Garnett não havia parado ali mesmo, junto à cerca de sua plantação, a olhar para a encosta da montanha, ruminando sobre o Túnel índio? Mas ele nunca ligara os dois fatos. A árvore deve ter sido derrubada uns 100 anos antes, quando seu avô era dono de toda a encosta sul do Monte Zabulon. Foi seu avô, o primeiro Garnett Walker, quem o batizara, escolhen­do na Bíblia, despretensiosamente, o nome Zabulon, apesar de alguns conti­nuarem a chamá-lo Monte Walker. Quem mais poderia tê-la cortado? Ele e os filhos devem ter passado um dia inteiro serrando para derrubar aquele gigante e aproveitar a madeira. Devem então ter ficado enlouquecidos como vespas ao descobrir, depois de todo aquele trabalho, que o tronco era grande demais para ser arrastado encosta abaixo. Provavelmente, arrancaram galhos do ta­manho de árvores para serem transformados em paredes de celeiros, mas o tronco era mesmo enorme, e teve de ser abandonado onde estava. Abandona­do para se ocar de dentro para fora, até se transformar no brinquedo a serviço da maldade inútil de meninos vadios.

Naquele tempo era preciso usar mulas para qualquer tipo de traba­lho. Mulas ou homens. Trator ainda era uma coisa inimaginável. É verda­de que uma mula poderia passar por qualquer caminho, por mais íngreme ou estreito que fosse, aonde um trator não chegaria. Mas havia coisas que pode­riam ser feitas com a força do cavalo-vapor e que estavam além da capacidade do cavalo de carne e osso. Era essa a lição que ele devia aprender, os propósitos de Deus para aquelas duas lembranças, a do Vô Walker e a do Tú­nel índio. Se eles tivessem um trenó de madeireiro, ou um bom trator, aquele tronco não seria um túnel para garotos, nem uma toca de urso. E isso, às vezes o cavalo-vapor faz coisas que um cavalo de carne e osso é incapaz de fazer.

Foi exatamente isso o que ele tentara explicar àquela mulher Rawley durante anos.

"Miss Rawley", cansara-se de lhe dizer, enquanto ela tocava suas tarefas primitivas, "por mais que as pessoas se lembrem com saudade da simplicidade de antigamente, aquele tempo tinha seus limites. As pessoas têm boas razões para guardar os costumes do seu próprio tempo".

Nannie Land Rawley era o vizinho mais próximo de Garnett, e a desgraça de sua vida.

Ainda era, e sempre seria, Miss Rawley, e não Mrs, apesar de ter dado à luz uma criança, e todo mundo no Condado Zabulon saber que ela não se tinha casado com o pai. E isso se passara há mais ou menos trinta anos, época muito diferente da de hoje, quando as moças usam anéis no nariz e sininhos nos dedos dos pés, e geram filhos ilegítimos como se fosse a coisa mais normal do mundo. Naquele tempo, a moça ia para longe visi­tar um parente distante, ficava por lá por um período decente, e voltava um pouco mais triste e sábia. Mas não a Srta. Rawley Nunca demonstrou a menor tristeza, e era teimosa por princípio. Passou a gravidez aqui mes­mo, na frente de Deus e de todos, batizou a pobrezinha com um nome ridículo, e sempre agiu como se tivesse todo o direito de exibir um filho bastardo diante de uma comunidade temente a Deus.

E todos já a tinham perdoado, refletiu ele amargamente, olhando para a elevação entre os troncos do pomar de baixo, onde ficava a casa da vizinha, próxima demais de sua própria, que ficava numa área plana um pouco adiante do início da encosta da montanha. É verdade que a tragédia da criança tinha atraído a simpatia de todos, mas mesmo assim Nannie era o tipo da pessoa capaz de se safar de qualquer situação. Todo mundo a tratava com toda a gentileza quando a encontravam aqui na estrada, Nannie, com o rosto rosado entre suas margaridas, uma saia de algodão e trancas enroladas no alto da cabeça, igual a uma Gretel dos livros de historia. Fofocavam, é verdade, mas como um pássaro tão estranho não atraía as flechas certeiras lançadas por Oda Black da Loja Black? Mas até mesmo a vociferante Oda escondia a boca com a mão para cortar uma futrica sobre Nannie, deixando a sugestão em suspenso, mas revestindo-a com um ar de profunda pena. Nannie subornava Oda com tortas de maçã; esse era um de seus métodos. As pessoas a consideravam engraçada e intrigante, mas em geral ela era considerada excessivamente gen­til. Ao contrário de Garnett Walker, ninguém suspeitava que sua figura miúda abrigava o diabo. Ele suspeitava que Nannie Rawley fora deixada na terra para tentar sua alma e transformar sua fé em dúvida.

Se não, por quê, com tanta terra boa para pomares daqui até os Adirondacks, essa mulher tinha de ser sua vizinha?

A placa do pomar já era suficiente para lhe dar engulhos. Durante dois meses, desde que ela veio até o seu lado para erguer a placa, ele passou noites insones, deixando-se dominar pela irritação: Deus sabe que se pode perdoar ou esquecer um touro saltar a cerca e entrar na propriedade do vizinho, mas uma placa de compensado de mais de um metro não se levanta e caminha sem ajuda. Sofrerá a noite inteira, até quase o amanhecer, e depois do café da ma­nhã decidiu ir ao campo de cultivo da frente para conferir o seu lado da estrada. Iria procurar "sinais e maravilhas", como disse a Bíblia, apesar de saber que a placa de Nannie era apenas mais um sinal de mau comportamento.

Ele a via agora através do capim, o verso dela, erguida sobre o bar­ranco acima da Rodovia 6. Apertou os olhos para confirmar; ultimamente tinha de fazer um esforço para enxergar. Isso mesmo, o lado pintado estava voltado para a estrada, mas ele sabia o que estava escrito, toda aquela imbecilidade pintada à mão, demarcando a estrada - do seu lado, sessenta metros para dentro da divisa de sua propriedade - como uma "Zona Livre de Herbicidas". Como se para mandar no mundo bastasse inventar um conjunto idiota de opiniões e pintá-las numa placa de compensado com um metro de altura. E isso resumia Nannie Rawley.

Seu plano de hoje era arrancar a placa e jogá-la sobre a cerca, de volta ao canal no terreno dela, onde seria consumida pelo charco cheio de ervas daninhas, que surgiram depois que ela banira a aplicação de herbicidas; então a justiça voltaria a reinar neste pequeno canto desta verde terra de Deus. Gostaria muito que ela o estivesse observando.

Garnett desceu cuidadosamente o barranco, passando através da ve­getação alta, e ao tentar arrancar a placa teve tanta dificuldade, que se arrependeu, e desejou que ela não estivesse vendo. Precisou agarrá-la com as duas mãos e sacudi-la bastante tempo, até que ela se soltasse. A mulher devia ter usado uma marreta de dois quilos para fixá-la; sorte ela não ter furado um buraco com o velho trator, para assentá-la com cimento. Dava para imaginar. Ela não tinha o menor respeito pela propriedade, nem pe­los velhos em geral, nem por Garnett, em particular. Suspeitava que ela não gostava de homens - o que nesse caso não fazia a menor diferença. Ele também não gostava dela.

Começou a vadear em direção à divisa e foi abrindo caminho com a placa, através da vegetação à sua frente. Sentia-se como um cavaleiro de antanho, a brandir sua espada de madeira em luta com um exército de inimigos. O canal e o corte da estrada estavam numa condição pavorosa, com um emaranhado de ervas daninhas da altura de seu peito. Tinha de parar a cada passo para desembaraçar as mangas de sua camisa. Tudo por culpa de Nannie, a cruz que ele tinha de carregar. Em todos os outros lugares no Condado de Zabulon - todos os lugares que não este -os cortes na estrada eram capinados por trabalhadores, ou, quando muito íngremes para serem capinados, como era o caso deste diante de sua fa­zenda, sofriam capina química. Bastava uma boa dose mensal do herbicida 2-4-D para eliminar aquele mato, que depois poderia ser facilmente retira­do para se exibir ao mundo um corte bem cuidado. Mas não, tudo o que ele tinha era esse mato emaranhado, que abrigava todos os tipos de vermes conhecidos, que aqui proliferavam, ameaçando sua plantação de castanhas, campo Fl. Precisaria de uma semana para acabar com esse mato, e mesmo assim não tinha certeza de completar o serviço. Em apenas três meses, a fazenda de Garnett - cujos campos, após se atravessar a estrada, sempre foram tão bem cuidados - estava agora nesse estado deplorável. Provavel­mente era o que estariam dizendo na Loja Black, que Garnett Walker era um velho preguiçoso, quando tudo era culpa de Nannie Rawley, a querida amiga deles, a trabalhar nas sombras para arruiná-lo.

Tudo havia começado em abril, quando ele deixou para o pessoal do condado a tarefa de aplicar herbicida naquela mancha de mato, pois ela estava na faixa de domínio do condado. No dia primeiro de maio, fez a mesma coisa. Nas duas vezes, ela saiu na véspera da apli­cação, trabalhando à noite como uma bruxa, o que de fato ela era, para colocar a placa na propriedade de Garnett. Hoje era 2 de junho, e o caminhão fumigador devia estar chegando. Como ela sempre sa­bia que ele estava chegando? Seria bruxaria? a maioria das pessoas por aquelas redondezas nem sabia dizer quando suas vacas estavam prontas para parir, muito menos profetizar os hábitos de trabalho de um bando de adolescentes vagabundos, contratados pelo condado, que usavam fones de ouvido, jóias e calças largas.

Nos anos anteriores, ele conversara com ela. Com paciência de Jó, infor­mou-a de que ela tinha o dever de guardar sua placa de "Zona Livre de Herbicidas", se é que ela insistia em manter uma coisa dessas, dentro das divisas de sua propriedade. Ele mostrara a cerca e dissera (pois Garnett sabia ler), "Miss Rawley, como disse o poeta, 'boas cercas fazem bons vizinhos'".

E ela respondeu: "Todo mundo adora cercas, menos a Natureza". Dizia que o vento levava o herbicida das terras dele até os pomares dela.

Ele explicou, cientificamente: "Uma aplicação de herbicida no meu lado não vai derrubar as folhas das suas macieiras, nem das de ninguém".

"Não a queda das folhas", admitiu ela, "mas, e se algum inspetor aparecer amanhã e verificar que minhas maçãs estão contaminadas? Eu perderia o meu certificado".

(Garnett tornou a parar para soltar de uma moita a manga da camisa de trabalho. Seu coração batia pelo esforço de brandir a placa através daquele emaranhado infernal).

Ah, a certificação dela! Nannie Rawley tinha o maior orgulho em contar para todo mundo que fora o primeiro produtor orgânico a obter um certificado no Condado de Zabulon; e acima de tudo, o mais espalha­fatoso. Há 15 anos, ele teve a esperança de que aquilo seria uma loucura passageira, que logo desapareceria, tal como o rock e o fumo hidropônico. Mas não foi assim. Nannie Rawley declarou guerra não somente contra o 2-4-D do condado, mas também ao pó de Sevin e outros inseticidas que Garnett era obrigado a aplicar nas árvores para evitar que fossem devora­das pelos exércitos de besouros japoneses acampados nos pastos desprote­gidos de Nannie Rawley. A ignorância e o zelo dela eram paquidérmicos. Era amiga de fé de todas as criaturas, pequenas ou grandes, mesmo carra-patos, pulgas e pragas do milho. (De fato, todos os animais, com exceção dos bodes que odiava e temia devido a um incidente de infância.) Mas seria ela tão imbecil a ponto de temer os certificadores que vinham verificar amostras aleatórias de maçãs? Seria o mesmo que os católicos conferirem a moralidade de seu próprio papa. Mas, provavelmente, se os certificadores viessem, iriam pedir conselhos a ela.

Parou mais uma vez para recuperar o fôlego. Apesar do dia frio, ele sentiu que surgiam manchas escuras de suor em sua camisa, que se alastra­vam a partir das axilas tal como brânquias de peixe. Os braços doíam devi­do ao esforço de brandir a placa, e ele sentia um peso estranho na perna esquerda. Não via os pés, mas sentia as calças encharcadas pela umidade do terreno coberto de mato. Era praticamente um pântano. Quase impos­sível atravessar as urzes, e ele ainda tinha uns 20 metros a percorrer até a cerca. Garret se sentia o mais infeliz dos homens, e quase desistiu: bem, ele poderia retornar, atravessar o campo já ceifado e jogar a placa no po­mar limpo, do lado dela. Havia um portão na cerca, colocado pelo pai de Garnett e pelo de Nannie Rawley, dois grandes amigos.

Mas não, ele queria atravessar por aqui, e atirar a maldita placa por baixo da cerca nas urzes do lado dela, onde de início já deveria estar. Decidiu avançar mais 20 metros.

Se ao menos os venenos dele chegassem até as árvores dela... Ele sabia muito bem, e já havia dito a ela, que, sem aplicações constantes para controlá-los, os besouros japoneses destruiriam completamente o pomar. Ela ficaria parada ali, de saia de algodão, sob as árvores desfolhadas, torcendo as mãos, sem saber o que estava errado no seu pequeno paraíso. Sucesso sem química era uma impossibilidade. Nannie Rawley era uma velha harpia iludida, de cabelo maria-chiquinha.

Agora ele já avistava a cerca - pelo menos os mourões. (Seus olhos iam sendo velados pela catarata tão lentamente, que seu cérebro aprendera a preencher detalhes tais como fios da cerca ou folhas de árvores, ou ainda as características mais sutis de um rosto.) Mas à medida que se aproximava da divisa, a sensação de peso na perna esquerda ia se tornando insuportável, e ele quase já não conseguia arrastá-la. Tentou se imaginar brandindo a placa, tropeçando para frente igual ao monstro do Dr. Frankenstein. Seu embaraço se espalhou por todo o corpo, mas logo foi substituído por um pensamento aterrador: será que ele estava tendo um ataque? Tudo isso não eram sinto­mas? E aquele peso na perna esquerda? Parou para enxugar o suor da testa. Sua pele estava úmida e pegajosa, e ele sentiu uma dor esquisita no estôma­go. Meu Deus! Se ele caísse no meio daquele mato, quem o iria encontrar? Passados quantos dias? Ou seriam semanas? Seu obituário seria assim: "O corpo decomposto de Garnett Walker foi encontrado na quarta-feira, depois de as primeiras nevadas terem derrubado as folhas do mato na frente de sua propriedade ao longo da Rodovia 6".

Ele sentia uma pressão no peito como se fosse um grande tronco, firmemente enrolado com arame farpado. Ai, meu Deus! Apesar de tudo, com a respiração entrecortada, conseguiu gritar:

- Socorrro!

E lá veio ela, descendo o barranco. Entre tantas criaturas de Deus, ele estava sendo socorrido por Nannie Rawley, com uma calça de brim e um lenço vermelho enrolado na cabeça, igual à Aunt Jemima* das embalagens do xarope. Apareceu do nada e deslizou até onde ele estava, ainda carre­gando nas mãos um pouco do remédio com que estivera trabalhando -Nannie e suas armadilhas para atrair insetos - como se aquilo fosse a solu­ção de tudo. Parecia uma caixa amarela de papelão de que fora cortado o

 

* Marca de confeitos e doces muito popular nos Estados Unidos. (NT)

 

fundo. Aqui estou eu, pensou Garnett, chegando ao fim dos meus dias, a olhar para uma caixa amarela sem fundo. Minha última visão desta terra: uma armadilha para caçar insetos.

Meu Deus, rezou baixinho. Confesso ter pecado talvez por pensa­mentos, mas obedeci ao quinto mandamento. Não a matei.

Ela já o tinha agarrado pelas axilas encharcadas e o estava puxando para cima até o pomar da frente, situado num terreno plano. Ele nunca tinha sentido nenhum toque dela, e ficou chocado com a força daquela mulher miúda. Tentou ajudar com as pernas inúteis, mas se sentiu como um praticante de luta com jacarés e, desanimado, percebeu que nessa luta ele era o jacaré.

Finalmente, viu-se deitado de costas na grama sob as macieiras. Ela estava ajoelhada junto dele, examinando-o com preocupação, e ele en­gasgou diante da visão da cabeça coroada de vermelho, que rodopiava no espaço acima dele. Virou rapidamente a cabeça: não era um ataque - ele sempre ficava tonto quando se deitava de costas e olhava para cima.

- Miss Rawley - disse ele, debilmente, quando o mundo parou de girar - Não quero lhe dar trabalho. Pode continuar o que estava fazendo, mas se for possível, a senhora poderia chamar uma ambulância para mim. Acho que tive um ataque - fechou os olhos.

Como ela não respondeu, ele abriu os olhos e viu que ela estava olhando para sua perna esquerda, aparentemente horrorizada. Sentiu-se confuso - seria sangue, junto com um ataque? Ou algum tipo de deforma­ção? Claro que não, mas ele não conseguiu reunir forças para olhar.

- Mr. Walker - disse ela -, o senhor não teve um ataque.

- O quê?

- O senhor não teve um ataque. Seu ataque é uma tartaruga.

- O quê?

Ele lutou para se sentar. Sentia-se melhor, com as idéias claras na cabeça.

- Veja! Uma tartaruga mordeu sua bota esquerda e está pendurada na sua perna. Aposto que tem uns sete quilos.

O embaraço deixou Garnett mudo. Olhou para o monstro e sua cara-paça corcunda. Uma criatura verde e viscosa, certamente surgida de alguma parte desconhecida da mente de Deus. Havia abocanhado a sola de couro da sua bota e a agarrava com a tenacidade que tornou famosas as tartarugas Snapper. E essa, fiel à sua fama, parecia não querer se soltar antes do juízo final. Mas Garnett teve a impressão de que aqueles olhinhos pequenos o fitavam com uma expressão de cordeiro. Coitada, pensou Garnett, pren­der-se com tanta tenacidade ao erro de julgamento de um momento.

Numa primavera chuvosa como aquela, as tartarugas costumavam subir das lagoas para as valas, desbravando regiões novas, a fim de en­contrar um parceiro horroroso igual a elas e gerar filhotes horrorosos. E lógico que tinha de haver alguma delas esperando naquela vala coberta de mato - aquele pântano criado por Nannie Rawley - e se agora ele tinha uma tartaruga presa no pé, era por culpa dela.

- Bem, dela eu já sabia - disse ele, apontando a tartaruga gigantes­ca - de repente, eu comecei a me sentir mal. Mas já estou melhor. Acho que vou direto para casa pela estrada.

Ela trancou a cara e sacudiu a cabeça.

- Só depois de eu arrancar esse dinossauro do seu pé. Espere, que eu vou buscar um pedaço de pau e bater nela para que ela solte o senhor.

- Não mesmo. Não precisa fazer isso.

- Ora, senhor Walker, não seja teimoso.

- Bem, Miss Rawley, não estou entendendo. Conheço direitinho o amor que a senhorita tem por tudo o que é bicho ou praga.

- O senhor não sabe de nada. Tenho raiva dessas tartarugas desde que uma delas comeu os pés de um de meus patos. Não há nada que eu queira mais agora do que bater na cabeça dessa sem-vergonha até lhe estourar os miolos.

Olhou para Garnett, que fez uma careta, por causa da linguagem e dos modos.

- Mas é melhor o senhor tirar a bota. Não quero ser responsabilizada.

- Não! - gritou ele, recuperando o controle da situação.

Sentira a força das mãos dela a guiá-lo barranco acima como a força do próprio destino. Eram como as garras de uma ursa! Sentir aquelas mãos uma vez só era para ele mais que suficiente. Ele não ia se despir na frente dela de jeito nenhum.

- Não - disse-lhe com firmeza - não há a menor necessidade de a senhorita descontar sua raiva nessa coitada. Eu e ela vamos embora.

- Se é o que o senhor quer...

- E sim. Muito obrigado pela ajuda.

Garnett se levantou do modo menos desajeitado que conseguiu e desceu mancando pelo caminho encascalhado de Nannie Rawley em di­reção à estrada. O som de seus passos mancos era como o ruído de um carro com pneu furado. Agora ele teria de andar umas 100 jardas na estrada até chegar à trilha encascalhada, a de sua fazenda, rezando para que não aparecesse ninguém para pilhar o Garnett Walker arrastando oito quilos de tartaruga na Rodovia 6, de uma forma jamais vista.

Voltou-se para olhar para trás. Ela ainda estava lá, de lenço na cabe­ça e jeans, cara fechada, os braços magros firmemente cruzados sobre a blusa. Das duas uma: ou ela estava muito irritada com ele, ou então tentava decidir se ele era realmente louco. De qualquer forma, Garnett Walker não ligava a mínima.

De repente parou, pois quase tinha esquecido a razão de toda aquela situação. Virou-se para ela, inclinando um pouco a cabeça para o lado.

- Acho que a sua placa caiu lá no meio do mato, no fim do corte da estrada.

A cara fechada se abriu num sorriso feliz, que iluminou todo o seu rosto.

- Não precisa se preocupar, senhor Walker. O caminhão fumigador passou hoje às sete da manhã.

 

                                   Predadores

Era como se o Eddie Bondo parado na trilha fosse menos inesperado de que encontrar, naquela tarde quente, um cacho de cogumelos bufa-de-lobo diante do qual ela havia parado um minuto antes, para admirar.

- Olá - respondeu ela, tranqüilamente, como se seu coração não estivesse se debatendo dentro do peito igual a um prisioneiro que acaba de ser enjaulado - Como você me achou aqui?

- Pelo cheiro, menina. Você deixa um rastro doce e fácil, que qualquer homem é capaz de seguir.

Ela sentiu os músculos abdominais se contraírem. Ele talvez pensasse que era brincadeira, mas ela conhecia bem umas coisas a respeito do cheiro humano. Já havia passado pelo centro da cidade em Knoxville, e os homens viravam a cabeça, um depois do outro, no dia em que estava no meio de seu ciclo. Eles não sabiam a razão, só sabiam que a queriam. Era assim que os feromônios pareciam operar, pelo menos nos humanos - ninguém gostava de falar. Com a possível exceção de Eddie Bondo.

- Estou fértil, foi o que atraiu você - disse ela com franqueza, testan-do-o, mas ele não se perturbou - assim você fica sabendo que hoje é o dia.

Ela riu:

- Foi o que o atraiu lá no pico de Clinch.

Eddie Bondo também riu, exibindo aquele seu sorriso brilhante atra­vés do chuvisco do final da manhã. Seria ela capaz de fingir que não estava feliz? Como ela poderia não o querer de volta?

- E como você sabe disso?

- Saber o quê, que meu corpo fala com o seu?

Ela bateu o pé em cima dos cogumelos, liberando uma nuvem de esporos que subiu e se enrolou como um novelo de fumaça dourada, brilhando no ar iluminado no meio deles. Células sexuais, a felicidade dos cogumelos, sua tentativa de encher o mundo de cogumelos.

- Ou como eu conheço esta questão de ciclo? Qual das duas?

Ele também pisou nos cogumelos, espremendo-lhes a pele branca e grossa como bolas vazias de baseball, liberando mais esporos. A quantidade parecia infinita. Diana se perguntou se algumas daquelas partículas ficariam presas à pele dos dois, ou se inaladas penetrariam nos seus corpos.

- Acho que as duas coisas.

Ela deu de ombros. Ele estava falando sério? Quando presta atenção, uma mulher conhece bem as duas coisas. Diana se virou, e começou a subir a montanha, certa de que ele a seguiria.

- Muitas vezes eu durmo sob as estrelas. Meu ciclo é igual ao da lua. Ele riu.

- E o que é você, uma lobismulher?

Ela parou e virou-se para olhá-lo. Estava impressionada com os óbvi­os fatos animais que as pessoas se recusavam a reconhecer em si mesmas.

- Se se expuser bastante, qualquer mulher ovula na lua cheia. E a glândula pituitária que faz isso. Leva algum tempo até chegar a esse ponto, mas depois o ciclo permanece.

Eddie Bondo pareceu se divertir com essa informação.

- Então, era como antigamente, quando todo mundo dormia enro­lado em peles, debaixo das estrelas e em volta do fogo. Você está dizendo que todas as mulheres do mundo entravam no cio ao mesmo tempo?

Ela tornou a dar de ombros, sem querer aprofundar um assunto que ele achava apenas engraçado. Era como trair um segredo.

- Se você pensar um pouco, veria que é conveniente. Lua cheia, muita luz.

- Que diabo, não é de se admirar que aquela idiota enlouqueça os homens.

- E isso.

Ela recomeçou a subir a encosta sentindo os olhos dele em todos os músculos de suas pernas longas, seus grandes glúteos, e na curva das costas. Estava usando um short feito de calça jeans cortada, uma blusa fina de algodão, sem sutiã. Não pensara em Eddie Bondo ao se vestir naquela manhã, era apenas uma manifestação da febre da primavera e, evidentemente, de um corpo que queria ser visto.

- Aonde você está indo?

- Saí para passear na chuva, é só.

- Ela já está quase passando. Até que enfim.

- Não se anime, ela volta logo.

- Conte outra. Como você sabe?

Como? De seis maneiras diferentes: primeira, o vento soprava ape­nas o suficiente para fazer as folhas mostrarem o lado inferior, branco.

- Não sei - comentou em voz alta, fechando aquela porta inconvenien­te. Apesar de lhe ocorrer que sendo ele o único homem que encontrara desde a morte do pai, ninguém estava interessado em ouvir quais seriam as seis, uma por uma.

- Vocês, caipiras, devem ter guelras tal como os peixes. Nessas últi­mas semanas, eu cheguei a pensar que ia me dissolver.

- Mas vejo que não se dissolveu.

- Acontece que não sou feito de açúcar.

- Acontece.

Ela sorriu para si mesma.

- E então: aonde você está indo?

- a lugar nenhum. E só um lugar a que eu gosto de ir. Ele riu.

- Parece muito pouca ambição.

- Não, quero dizer, não é nenhum lugar importante. Do ponto de vista da vida selvagem.

- Do ponto de vista de qualquer um, provavelmente.

- Então, ó bela dama, isto quer dizer que a senhora está de folga? Ela conteve a respiração e tentou adivinhar qual a capacidade dele

para manipular o desejo dela. Teve vontade de parar e estraçalhá-lo ali mesmo na trilha, devorá-lo vivo, chupar seus sucos; e lamber os dedos.

- É só um lugar. E mais uma coisa que um lugar. Fica no fim do ziguezague desta trilha.

A trilha era extremamente íngreme desde aquele ponto até onde se encontrava o abrigo sagrado e amigo que ela procurava, cerca de 30 metros montanha acima. Ouvia os passos e a respiração dele sincronizados com os seus próprios.

- Animal, vegetal ou mineral? - perguntou ele.

- "Vegetal. Vegetal morto. Desde muito tempo antes de termos nascido.

- E um ... grande tronco oco de uma árvore? Ela se contraiu, mas não se voltou.

- De uns três metros de comprimento e desta altura, e a gente pode passar por dentro quase sem ter de abaixar a cabeça? Não, nunca vi.

Ela girou para encará-lo, trança voando.

- Esse lugar é meu!

- E você não acha que outras pessoas poderiam tê-lo encontrado? Ele já está aí há mais de cem anos.

- Não! Ninguém mais vem até aqui.

Desatou a correr, mas ele subiu a encosta um pouco mais rápido do que ela e a alcançou. Com as mãos nos quadris dela, ele a puxava e empur­rava; e antes que ela conseguisse se soltar, os dois chegaram ao tronco e ao túnel, e agora não havia mais retorno. Lá estava ele, e guardadas na sombra de seu interior, cuidadosamente protegidas da chuva, estavam as coisas dele: a mochila, a caneca de lata e o bule, a vida de Eddie Bondo inteirinha.

- Não acredito que você já tenha vindo aqui.

- Uma porção de bichos já passou por aqui, você não acha?

- Não acho - disse ela.

E ela não disse mais nada, pois sua boca foi comprimida pela dele, e o corpo dele a empurrava para dentro do oco. Ele afastou a mochila, empurrou-a para o interior escuro do túnel, o mais seguro dos lugares.

- É meu - sussurrou ela.

- Então, quem foi que o derrubou?

Ela só via o rosto dele, nada sentia além da deliciosa aspereza de um rosto em sua face, além das mãos nos seus botões.

- Ninguém. E uma castanheira. Há cinqüenta anos, uma epidemia matou todas as castanheiras.

- Então ninguém a derrubou?

Ela sabia que era possível. Seu pai lhe havia contado como as pessoas viam que as castanheiras morriam misteriosamente e corriam para apro­veitar a madeira, que era tão escassa. Mas não, se alguém se dera tanto trabalho, não iria deixá-lo abandonado aqui como morto. Começou a dizer "não", mas viu que não conseguiria falar sob a pressão dos lábios de Eddie Bondo. Ficou ainda mais sem sentido por estar com as costas apertadas contra o interior curvo, preto e macio desse útero que ela nunca dividira com nenhum gêmeo. Ele tomou seus seios nas duas mãos, olhando para ela. Ela não suportava o prazer de sentir aquele olhar e aquele toque, as palmas sobre os bicos dos seios e as pontas dos dedos tateando e abraçando suas costelas, puxando-a para si como se ela fosse uma coisa pequena e fácil de manipular. Beijou-a no pescoço, e depois no colo. Depois ergueu-se sobre os joelhos para pegar um pacote no bolso da calça. E claro que ele sabia que ela estava fértil. E era precavido.

Ela estava curvada, costas apoiadas na parede, queixo nos joelhos. O túnel era muito largo; ele se ajoelhou diante dela, olhando-a, desamarrou-lhe as botas, tirou-lhe o short e depois as próprias roupas. O calor tornava a nudez confortável, um calor rico e escuro, cheio de um cheiro doce de madeira velha. Ele comprimiu o rosto nos joelhos dela. - a lua cheia? O segredo de tudo é só ela? Ela não disse nem sim nem não.

As mãos dele a foram escalando, como se ela fosse uma árvore, desde os tornozelos, subiram aos joelhos, à cintura, e dali aos ombros, até empalmarem seu rosto, e ele a olhou dentro dos olhos como um cigano que tentasse ler o futuro em folhas de chá. Parecia muito feliz, sério e determinado.

- Então é por isso que os homens escrevem poemas idiotas, uivam, e assaltam lojas de bebidas? E tudo o que eles querem de fato é ter todas as mulheres do mundo ao mesmo tempo?

Ela fixou os olhos nos dele, mas não lhe conseguiu dizer como tudo isso era longínquo para ela, tão distante, que ultimamente seus ovários obe­dientes às vezes se recusavam a obedecer à lua, agora que ela estava nos seus 40 e poucos anos. Mais alguns meses, e nenhuma cabeça se voltaria. Tivera certeza de que era isso o que queria. Como seria possível, com Eddie Bondo olhando dentro de seus olhos, segurando sua trança e a enrolando no pulso até seu rosto se encostar no braço dele olhando para a direção oposta? Ela estava deitada com o rosto para baixo, rosto entre as mãos e com o corpo dele colado no dela, o pênis pressionando delicadamente o plexo solar e seus lábios tocando-a nas têmporas. Entre a pele de suas costas e o peito dele ela sentia como que pequenas ilhas de pó de castanheira.

- Diana - sussurrou ele no seu ouvido - eu te desejei desde que saí da Virgínia. Se não voltasse, iria arder com esse desejo até chegar ao Wyoming.

Ele respirou, e o sopro bateu na pele dela, atrás do lobo da orelha, e ela curvou as costas num reflexo, tal como uma borboleta desamparada que é atraída para o fogo. Ela não conseguia dizer uma palavra, mas seu corpo respondia perfeitamente ao dele quando deslizou ao seu lado, tomando sua nuca nos dentes tal como faz o leão ao morder a leoa no cio: uma mordida firme e suave, impossível de evitar, em razão de um acordo mútuo.

No final da manhã, a chuva parou, liberando um instante de sol vespertino, que penetrou no túnel e lambeu os pés e calcanhares nus dos dois, pois estavam deitados lado a lado. A sensação arrancou Diana de onde ela pairava, um lugar próximo ao sono, sem ser totalmente envolvida por ele. Assustada, ela percebeu que já era tarde. Abriu os olhos. O dia estava passando. Poderia dizer que já tinha passado. Para ele, o tempo dela, e todas as escolhas que ela pensava ter feito para sempre. Sentiu uma contração nas entranhas enquanto, ao longe, soava um trovão que ecoou no túnel anunciando mais chuva.

Examinou o homem deitado de costas a seu lado, dormindo o sono tranqüilo do proprietário. Pedaços de madeira macia e de folhas amassadas, pedaços da floresta dela, agarravam-se ao corpo dele, pintando-lhe o rosto e os ombros, e até mesmo seu pênis relaxado. Encheu-se de raiva dessa arro­gância tagarela, daquelas pálpebras plácidas e do braço caído sobre o corpo dela, pesado como chumbo. Empurrou o braço e tentou se afastar, mas ele passou do sono profundo para a semivigília e puxou-a para si.

- Não - disse ela, empurrando-o com força - não: me largue!

Ele abriu os olhos, mas Diana o agrediu com socos no peito e nos ombros. Sentia o fel a se acumular nas entranhas, um acesso de raiva física que o teria coberto de manchas pretas e azuis, se ela tivesse forças para tanto, antes de ele recuperar o instinto de caçador. Ela esteve a pon­to de cuspir no seu rosto quando ele a agarrou pelos punhos, apertando-os como um par de algemas. Foi dominada por um acesso de fúria, que a deixou tremendo.

- Por Deus, Diana.

- Me largue!

- Não se você quiser me matar. Pelo amor de Deus, mulher! - Ele lhe segurou os dois braços no lado direito do rosto dela e a contemplou como se tivesse cometido um erro terrível. Como se ela fosse um leão da mon­tanha que ele tivesse encontrado numa armadilha para esquilos.

- Largue-me. Quero me vestir.

Com todo o cuidado, ele lhe soltou uma das mãos, depois a outra, observando-lhe atentamente os braços enquanto ela se afastava dele.

- O que foi?

- Por que você voltou? - disse ela, como que cuspindo as palavras.

- Há uma hora você parecia muito feliz por eu ter voltado.

Ela balançou a cabeça devagar, expirou pelo nariz e comprimiu com tanta força os lábios, que eles ficaram brancos. Ele insistiu.

- Você não queria que eu voltasse?

Ela também odiou o fato de ele não saber. Não conseguia olhar para ele.

- Por Deus, Diana, o que foi.

- Eu não preciso de você aqui.

- Disso eu sei.

- Você não sabe de nada. Você nunca me viu sozinha.

- Já. Já vi.

A sombra de um sorriso passou pela sua voz. Ela se voltou para ele com uma expressão animal.

- Então é isso? Você fica me espionando igual a um predador, e daí acha que é meu dono?

Ele não respondeu. Ela tornou a lhe dar as costas.

- Eu vivia muito bem antes de você aparecer. Durante dois anos, enquanto você fazia sei lá o quê, eu estava aqui. Não sentia falta de gente, nem daquela conversa sobre as coisas que a gente devia ter, vestir ou fazer acontecer. E com certeza, eu não queria um namorado.

Ele não respondeu. Um tangará vermelho quebrou o silêncio com seu trinado. Ela pensou no passarinho escondido lá fora entre as folhas, invisível a todo e qualquer olho humano, e ainda assim, vermelho e bri­lhante. Lindo, apesar de tudo.

- E então, um dia, você está aqui, Eddie Bondo. E no outro, você já não está mais. O que isso pode significar?

Ele falou pausadamente:

- Não deve significar coisa nenhuma.

- Claro que não.

- Então eu vou embora, sem problemas. E isso que você quer? Ela agarrou a blusa e a vestiu, batendo da pele o pó de madeira úmida. Sentia-se irritada e patética. Vestiu a blusa pelo avesso, o que percebeu ao tentar se abotoar, e então amarrou as pontas e puxou bem depressa o short para cima. Pedia a Deus que ele não a estivesse vendo. Tentou acalmar a respiração e lembrar-se de como era antes. Arrastou-se até o fim do túnel, olhando para fora, em direção à margem em que a madeira da castanheira se dissolvia entre as folhas do chão da floresta.

- Diana, eu lhe perguntei se você quer que eu vá embora.

- Não. E digo com toda a franqueza: eu te desprezo por causa disso.

- Por quê?

Ela se recusou a encará-lo, não precisava ver aquele rosto. Falou para as árvores.

- Merda. Porque eu quero que você volte.

Ao acordar de manha, ela estava contente. Finalmente, depois de 15 dias de palpitações no coração e de ansiedade por causa de qualquer esta-lido na floresta que pudesse significar a volta dele, ela parará de ouvir. Não tinha nenhuma dúvida. Rememorava até o prazer de andar sozinha pelas trilhas, pensando apenas neste tronco, tentando imaginar como seria a mata quando as castanheiras eram as árvores dominantes das florestas do leste. Era uma coisa que ela conseguia imaginar. Esse gigante deve ter sido o mais alto, a coisa mais imortal nessa montanha - até o dia em que um fungo fugido de um navio sorriu para a terra, e derrubou todas as castanheiras de Nova Iorque até o Alabama. E assim, num piscar de olhos, a paisagem inteira foi alterada.

Sentou-se ereta, ignorando tanto o próprio corpo como o que respi­rava atrás dela. Aqui fora, à luz, ela quase conseguia ver a calma no ar a se reunir para a tarde, o oxigênio a se acumular entre as folhas úmidas. Essas árvores eram o pulmão de sua montanha - não dela, a montanha de ninguém, essa montanha que pertencia aos tangarás vermelhos, aos cogumelos, às bruxas e coiotes. Esse mundo, cheio de sombras e espíri­tos, onde ela morava, preparava-se para expirar. E seria a tarde, e depois o crepúsculo e depois a noite. E choveria. E ele ia dormir com ela.

Enxugou as lágrimas no rosto com as costas da mão e estendeu a outra mão para apertar os dedos na madeira macia e decomposta. Levou os dedos ao lábio superior, aspirou o cheiro de terra e sentiu na língua o gosto da madeira. Amava ferozmente este velho tronco. Ficou embaraçada ao ter de admiti-lo. Só a uma criança se permite amar tão desesperada-mente, ou possuir com tamanhã confiança uma coisa inanimada. Mas ele lhe pertencera. Agora se perdera o encanto, a magia deste lugar que ha­via sido só dela, e que homem nenhum conhecia.

 

Na varanda da frente, Lusa observava a chuva que caía do beirai em longas linhas prateadas. O telhado de duas águas da casa da fazenda - sua fazenda - era feito de telhas metálicas onduladas, que levavam a água para canais que desciam pelas laterais, fortemente inclinadas. Em alguns pontos, a água caía em filetes claros, iguais a linhas de pescar, enquanto outros pareciam contas, colares de pérolas. Ela pusera os baldes sob os filetes nos largos degraus sob os filetes de água, e descobriu que cada um deles batucava no balde em seu próprio ritmo. Durante toda a manha, o ritmo de cada filete não mudava - ficava mais abafado à medida que o balde se enchia, mas voltava à batida oca, rat-tat-a-mt-tat-tat, quando ela esvaziava o balde

Ela havia colocado os baldes para recolher água para as samambaias da varanda, que, por não serem atingidos pela chuva, estavam secando e escure­cendo, mesmo naquele tempo encharcado, tão desoladas e quebradiças como sua dor interna. Pensara em voltar ao trabalho, mas fora detida pela mistura de ritmos. Era um alívio parar um minuto, ouvindo sem ninguém para lhe lançar olhares de pena nem mandá-la para cama. Hannie-Mavis e Jewel final­mente haviam voltado para casa, apesar de ainda virem várias vezes por dia para "ver" como ela estava, o que geralmente significava mandá-la comer alguma coisa, ou até lhe dizer o que comer, como se ela fosse uma criança. Mas as duas logo iam embora. Lusa podia ficar parada na varanda, de calça jeans e a camisa de trabalho de Cole, observando a chuva e esforçando-se para insensibilizar a mente. Se não tivesse um galão de cerejas para descaroçar e colocar nos vidros de conserva, ela teria preferido passar aqui fora o resto da manhã, colocando baldes sob todos os filetes de água e compondo uma canção para cada ritmo. Uma das brincadeiras de seu avô Landowski era essa: batuca­va com os dedos ritmos inusitados no seu joelho ossudo de menina, inventan­do misteriosas melodias balcânicas para acompanhar o ritmo dos dedos.

"Seu zeida*, o último proprietário de terras da família", dizia sar-casticamente o pai dela, pois o avô teve uma fazenda de beterrabas junto

 

* Avô em polonês.

 

do Rio Ner, ao norte de Lodz, perdida durante a guerra, quando fugiu da Polônia, nada levando consigo além da própria vida, um filho pequeno, a esposa e uma clarineta. "Seu grande zeida, que se fez famoso em Nova York como músico klezmer*, antes de abandonar a mulher e o filho para juntar-se a uma garota americana que conheceu numa boate". Lusa sa­bia, embora não fosse comentado, que o velho teve filhos com essa garo­ta, e que todos morreram num incêndio - inclusive o zeida. Era difícil dizer que parte da história mais ofendia o pai de Lusa - ela acreditava que devia ser a história toda. Quando foram a Nova Iorque para assistir ao enterro dos restos carbonizados, Lusa ainda era muito nova para en­tender os sentimentos do pai e as ironias daquela perda. Em todos aque­les anos, zeida Landowski não visitara sua memória muitas vezes. E agora, aqui estava ele, no ritmo sincopado de gotas d'água, numa fazenda do condado de Zabulon. Começara como fazendeiro, até mudar toda sua vida por causa de uma perda. O que não teria feito ele num dia de chuva neste vale, com esse rico cheiro de decomposição e um cheiro doce de vida nova?

Lusa alisou a camisa e se compôs para parecer ocupada e bem ali­mentada, pois viu o caminhão verde de Herb e Mary Edna, que chegava pulando na estrada. Mas desta vez, quem dirigia não era o Herb: a Primogênita Ameaçadora estava ao volante. Quem Lusa viu sair do lado do passageiro foi Herb e o marido de Lois, Big Rickie. Os dois homens abaixaram a cabeça e seguraram a aba do chapéu com a mão direita ao correr até ela sob a chuva. Passaram pela cortina de contas d'água, evitando cuidadosamente os baldes nos degraus, e bateram ruidosamente as botas nas tábuas do chão da varanda antes de tirarem os chapéus. O cheiro que se desprendia de suas roupas de trabalho trouxe Cole para ali: poeira, óleo de motor, feno. Ela aspirou, buscando nas roupas de estranhos as moléculas do marido.

- Ele devia colocar uma calha nesta varanda - Rickie comentou para Herb, como se ambos também sentissem a presença de Cole - e a ausência de Lusa.

Que missão teria determinado essa delegação de maridos? Será que eles vinham ordenar a ela que partisse? E ela, devia resistir ou ir em paz?

- Oi, Rickie, oi, Herb - disse ela erguendo os ombros -, que bom ver vocês.

Os dois acenaram com a cabeça, e se voltaram para ver a chuva, a calha que não existia e os campos encharcados para onde pareciam estar ansiosos

 

* Conjunto especializado em música folclórica judia do leste da Europa.

 

por voltar e retomar o trabalho. Ela olhou de relance os carrapichos verdes, minúsculas minas terrestres cravadas nas pernas das calças caqui.

- Outra bela chuva - comentou Herb -, é uma pena que a gente precisa tanto dela quanto de um tiro no pé. Mais uma semana de chuva, e até os sapos vão afogar.

- Mas dizem que no sábado o tempo vai abrir - disse Rickie.

- E isso mesmo - concordou Herb -, se não fosse isso, a gente não tinha vindo te incomodar, mas o tempo deve abrir.

- Vocês vieram até aqui só para me dizer que o tempo vai clarear? -perguntou Lusa, buscando alguma pista num e noutro rosto queimado de sol.

Era sempre assim, toda vez que ela se envolvia em conversa com os cunhados. Uma sensação de ter entrado numa terra onde se falava inglês, mas todas as palavras eram diferentes.

- E - disse Herb.

Rickie balançou a cabeça para confirmar. Eles pareciam uma dupla de comediantes: Herb, gordo e careca, era o falador, e Rickie, alto e desajeitado, ficava quase sempre calado, boné nas mãos e o cabelo preto moldado pelo boné. No pescoço comprido, seu pomo-de-adão era enor­me, e lembrava um cecídio num tronco de carvalho. Era chamado Big Rickie, apesar de seu filho de 17 anos, Rickinho, já o ter superado em muitas coisas. Lusa tinha certa simpatia pelo destino de Rickinho. A vida em Zabulon; desde que nasce a pessoa vive presa igual a um inseto: é marido ou mulher de alguém e fica num lugar apertado demais para poder viver confortavelmente.

- Então - Herb interrompeu o silêncio - vamos ter de plantar o fumo de Cole.

- Ah - Lusa estava surpresa - já é tempo, não é?

- Para falar a verdade, já passou da hora. Com esta chuva, os cam­pos estão encharcados, e já é junho, quase tarde demais.

- Mas ainda é, que dia é hoje, cinco? Cinco de junho?

- E. O mofo azul deve atacar em julho, se as plantas ainda estive­rem pequenas.

- Mas é possível combater o mofo azul, se for preciso - disse Lusa. A patologia do tabaco não era exatamente o seu departamento, mas ela já tinha ouvido Cole falar do assunto. Estava doida para mostrar para esses homens que ela sabia alguma coisa.

- E possível sim - concordaram os dois, num entusiasmo limitado.

- E vocês dois, já plantaram o tabaco de vocês? Vão em frente, e plantem o seu primeiro.

- Eu arrendei a minha quota, já que as vacas me ocuparam demais para que eu pudesse tratar do tabaco. Eu e ele plantamos a do Big Rickie no domingo de manha, quando a chuva deu um descanso. A próxima é a do Cole.

"E Jewel?", pensou Lusa. Estariam eles tomando conta também da vida dela, já que seu marido havia fugido com uma garçonete de Cracker Barrei?

- Então vocês estão me dizendo que no sábado vocês e os meninos vêm plantar o fumo?

- É isso. Se parar de chover pelo menos um dia antes.

- E eu? Posso dar meus palpites?

Os dois homens olharam para ela com a mesma expressão: surpresa e cheia de medo, desapontada. Mas a fazenda agora não era dela? Ela olhou para outro lado, inalando os ricos perfumes de lama e madressilva, ouvindo seu projeto de infância, o balde no degrau: Tat-tat-ct-tat-tat-a-tat-tat-tat! Ouvia claramente a música que acompanhava o ritmo, o trinado da clarineta subindo igual a uma risada e o bandolim igual a um bater insistente de palmas. Música klezmer.

- Agora a fazenda é minha - disse ela em voz alta. Sua voz tremeu, e ela sentiu os dedos se esquentando.

- É mesmo - concordou Herb -, mas nós queremos dar uma ajuda ao Cole, como sempre foi todo ano. O fumo dá muito trabalho, é preciso a família inteira. Pelo menos é assim que o povo daqui trabalha.

- Eu estava aqui no ano passado - disse ela secamente -, levei café quente para você, para o Cole, o Rickinho, e para aquele outro menino, o primo que chegou de Tazewell. Você se lembra?

Big Rickie sorriu.

- Eu me lembro de você tentando segurar atrás do trator e plantar uma fileira de mudas. Algumas ficaram com as raízes balançando no ar e as folhas plantadas no chão.

- Cole estava dirigindo muito depressa de propósito! Nós éramos recém-casados e ele estava me provocando na frente de vocês.

Lusa enrubesceu até a raiz do cabelo ao se lembrar da viagem na plataforma rebocada pelo trator, quando lidou com as mudas moles de tabaco que estavam na caixa ao seu lado. A textura que se desintegrava era igual à de um lenço de papel; tentar enfiá-las no rego de terra argilosa que passava sob ela parecia-lhe uma tarefa impossível. Tinham apenas dois dias de casados.

- Foi minha primeira vez atrás do trator - insistiu ela.

- É mesmo - disse Big Rickie, - e de qualquer jeito, a maioria das mudas foi plantada com as raízes para baixo.

Herb voltou ao problema em discussão.

- Não temos mudas, mas Big BJckie achou um bom preço por um lote de Jackie Doddard.

- Agradeço muito. Mas e se eu não quiser plantar fumo este ano?

- Você não precisa fazer nada. Pode ficar em casa, se quiser.

- Não, não é bem isso; melhor dizendo: e se eu não quiser que se plante tabaco na minha fazenda?

Os dois não olharam de soslaio para Lusa, os dois a encararam.

- Ora, qual a vantagem de plantar tabaco se todo mundo está parando de fumar? Ou deviam tentar, se já não estão parando. O governo é oficial­mente contra o fumo, agora que já se sabe que o câncer mata. E todo mundo põe a culpa em nós.

Os dois homens olharam a chuva e os campos, onde era evidente que os dois gostariam de estar, com ou sem chuva. Ela via que os dois se esforçavam para não puxar o maço de Marlboro do bolso da camisa.

- Afinal, o que você está pensando em plantar? - perguntou Herb.

- Não pensei em nada. Que tal milho?

Herb e Big Rickie trocaram um sorriso, gozando a piada entre si.

- Mais ou menos   três dólares o alqueire - respondeu Herb -, a menos que você esteja pensando em milho de ração, aí é só cinqüenta centavos. Mas é claro que você está pensando em milho para gente.

- Claro!

- Bem, vejamos. Cole tem uma área de cinco acres, aí você planta milho e dá para colher uns quinhentos alqueires; seiscentos, se o ano for bom, o que não é muito comum por aqui.

Herb olhou para o alto, contando nos dedos, e continuou: - Mil e quinhentos dólares. Menos o diesel do trator, a semente, e muito fertilizante, porque o milho é muito exigente. E um pouco de sorte para vender no dia certo. Você pode até ganhar um líquido de... oitocen-tos dólares com o seu milho.

- Entendi - e Lusa enrubesceu ainda mais -, em geral, nós ganha­mos perto de doze ou treze mil dólares com o tabaco.

- E isso mesmo. Mais ou menos três mil e setecentos dólares por acre, menos os custos do trator, das mudas e dos produtos químicos.

- É disso que nós vivemos.

Ela falou baixinho, mas as palavras "nós" e "vivemos" ficaram pai­rando no ar. Ela as sentiu pressionar-lhe os ombros como se fossem as mãos de uma governanta que a repreendia, tentando dizer à menina manhosa: "Sente-se porque acabou a sua vez".

Tht-tat-a-tat-tat-a-tat-tat-tatl a seção rítmica do avô Landowski estava emudecendo. Ela tinha de esvaziar os baldes para recomeçar. Queria que os dois fossem embora. Que a deixassem fazer o que ela quisesse, ainda que errado. Desejava pedir conselhos sem ter de se sentir esfolada e ridicularizada.

- O que as pessoas plantam por aqui quando só têm um pedacinho de terra no fundo do vale? O que poderia render o suficiente para se sobreviver, além do fumo?

Big Rickie pareceu feliz, pois a pergunta antecipava más notícias.

- Turner Blevins tentou plantar tomates. Disseram para ele que dava para tirar dez mil dólares por acre. O que não disseram para ele é que, se mais duas pessoas resolvessem plantar a mesma coisa, os três iam inundar o mercado. Blevins jogou quinze toneladas de tomates para os porcos e enterrou o resto.

- E os outros dois? - perguntou Lusa.

- a mesma coisa. Todos três perderam dinheiro. Um deles tinha tanta fé nos tomates, que implantou um sistema de irrigação de dez mil dólares, pelo menos foi isso que eu ouvi. Está plantando tabaco outra vez, rezando por um ano muito seco, e ele poder usar o sistema sofistica­do de irrigação.

- Mas não é possível que todos eles tenham perdido dinheiro: todo mundo precisa de tomate.

- Mas não todo mundo no mesmo dia. Se em cinco dias, ou menos, todos os idiotas levam os tomates ao mercado, vai sobrar muita ração para porco, e é uma ração muito cara. E por aqui, transportador nenhum vai encostar um dedo na carga de alguém, se não tiver certeza de levar o dele.

Lusa cruzou os braços, desesperada pela profundidade da própria ignorância.

- Mas o tabaco - continuou Rickie - a gente pendura para secar, e ele fica lá enquanto for preciso, até a hora certa de vender. Todo mundo pode plantar tabaco, mas cada folha pode ser acendida num dia diferente do ano, num país diferente do mundo.

- Imagine só! - disse Lusa.

Parecia sarcástica, mas na verdade estava impressionada. Nunca havia pensado nessas lições básicas. O valor do tabaco se devia ao fato de ele durar muito e ser fácil de transportar.

Os três se calaram e ficaram a olhar para o jardim. A chuva caía sobre as grandes folhas da catalpa, baixando-as como se elas fossem as teclas de uma máquina de escrever.

Então, Lusa falou.

- Deve haver um meio de ganhar um dinheiro decentemente. O celeiro está precisando de um telhado novo.

?*- Eme-a-cê-o-ene-agá-a. Me disseram que ela rende a mesma coisa que o tomate, por acre, e tem mercado garantido.

- Já vi que você está zombando de mim. Muito bem, agradeço a oferta de vocês fazerem o plantio neste fim de semana, mas gostaria de pensar um pouco mais sobre o tabaco. Você sabe se o Jackie estaria dis­posto a entregar as mudas até amanhã ou depois de amanhã?

-Acho que ele entrega. O Jackie tem um daqueles trecos hidropônicos. No ano passado rendeu pouco, mas este ano ele produziu mais do que esperava.

- Então está certo. Antes de sábado eu aviso a vocês. Até lá eu já terei decidido o que fazer.

- Se parar de chover - disse Herb, para ela não ficar achando que podia decidir o que quisesse.

- Exato. E se não parar, vamos nos afundar todos juntos, não é? Não ganho nada com o tabaco que não plantei, e vocês nada com o que plantaram. E pensem no tempo e dinheiro que eu terei economizado!

Herb a encarou espantado. Big Rickie enviesou um sorriso em dire­ção à garagem.

- Mulher sabida, Herb. Acho que ela pensa como agricultor.

- Muito bem - disse Lusa, batendo as mãos -, estou com um galão de cerejas que vão apodrecer se eu não as enlatar hoje. Então, eu chamo vocês na sexta.

Herb se inclinou para fora da varanda e olhou para a encosta onde ficava o pomar. Ela tentava controlar a respiração, contando os segundos até os dois entrarem no caminhão, acenderem os cigarros e irem embora, para ela poder soluçar no balanço da varanda. Enfrentar os dois quase exigiu uma coragem que ela não tinha.

- Pois eu estou surpreso por você ter colhido cerejas este ano, com todos os corvos que aparecem por aqui - declarou Herb - Na primavera passada, eu ainda vim e espantei os corvos a tiros, para o Cole, mas este ano não. Pelo menos você colheu o suficiente para umas duas tortas, não é?

Lusa ainda conseguiu dar um sorriso forçado.

- Milagres acontecem, Herb.

Deve ser Jewel à porta, pensou Lusa. Jewel batendo a sombrinha na varanda da frente (elas sempre entravam sem bater, todas elas, mesmo quan­do Lusa e Cole eram recém-casados e faziam sexo no meio da tarde), a voz cansada de Jewel dizendo para os filhos limparem os pés e pendurarem as capas de chuva nos cabides na parede. Então, entraram todos na cozinha, o mais velho carregando na cabeça uma caixa de vidros de conserva, segurando-a com as duas mãos. Lusa havia chamado Jewel quando viu que estava sem vidros de conserva.

- Entrem. Coloquem a caixa ali na bancada.

- Nossa, chame a polícia: mataram alguém aqui! Lusa riu.

- Parece, não é>

Seu avental e o tampo das bancadas estavam escandalosamente su­jos do sangue de centenas de cerejas. O descaroçador manual estava pre­so à bancada e uma massa de caroços pretos brilhava dentro de um balde no chão, como uma coisa saída do matadouro. Ela ficou aliviada quando Jewel, pelo telefone, se ofereceu para vir ajudá-la a fazer as conservas. Lusa reconhecia objetivamente, embora não chegasse a sentir, que preci­sava de companhia, senão ficaria louca.

Mas aqui estava sua cunhada, com a mão tapando a boca, mortifíca-da porque deixou escapar uma piada sobre morte. Lusa esperava uma companhia mais forte do que essa.

- Tudo bem, Jewel. Eu sei que Cole morreu.

- Pois é, eu não queria ... foi uma estupidez. Nem pensei. Parecia angustiada. Lusa deu de ombros.

- Mas você não me lembrou de nada que eu já tivesse esquecido. Jewel ainda ficou um minuto com a mão na boca, lágrimas rolando,

olhando para Lusa, enquanto o menino de dez anos circunavegava pela cozinha, equilibrando uma caixa de vidros numa das mãos. O menino mais novo, Lowell, pegou um punhado de cerejas do bloco do matadouro. Jewel lhe deu um tapinha na mão.

- As pessoas são terríveis, não é? - acabou perguntando a Lusa. -Estou entendendo o que você quer dizer. Quando Shel...

Mas parou para mandar os meninos para fora.

- Vão brincar lá fora.

- Mãe, está chovendo lá fora.

- Está chovendo, Jewel. Eles podem brincar na varanda dos fundos.

- Muito bem, então vão para a varanda dos fundos, mas não vão quebrar nada, hein?

- Espere aí, Chris.

Lusa colocou um punhado de cerejas numa tigela de plástico e deu para o mais velho.

- Se faltar o que fazer, podem pegar a vassoura e a pá que estão lá.

- Para varrer?

- E você acha que é para jogar hóquei? Claro que é para varrer. Jewel esperou a porta se fechar atrás dos meninos, para então falar:

- Quando o Shel me deixou, todo mundo parou de falar dele ou o nome dele, como se eu nunca tivesse casado. Mas nós fomos, durante al­guns anos... quero dizer, casados. Mesmo enquanto ainda estávamos na­morando, está entendendo? Fugimos para Cumberland Falls dois meses antes do casamento e dissemos que aquilo era uma pré-estréia da nossa lua-de-mel.

Durante alguns segundos ela olhou para suas mãos com uma satis­fação discreta, a mais feminina das expressões que Lusa já vira em Jewel. Mas isso logo desapareceu.

- Juro que é triste - concluiu ela - fingir que parte de minha vida nunca aconteceu.

Começou a soltar o parafuso que fixava na bancada o antiquado descaroçador de aço inoxidável. Lusa passou uma boa meia hora tentan­do entender o sistema de fixação do descaroçador, mas é lógico que ele havia pertencido à mãe de Jewel. E ela sabia fixá-lo de olhos fechados.

- Esta família intimida muito a gente, não há dúvida - disse Lusa. Ela gostaria de poder dizer o quanto era difícil... como era difícil viver entre pessoas que já usavam os mesmos aparelhos de cozinha desde antes de ela ter nascido. Como atacavam em uníssono quando ela tentava rearranjar a mobília ou pendurar os retratos de sua própria família. Como a velha senhora Widener assombrava a cozinha, desaprovando as receitas de Lusa e ciumenta de suas sopas.

- Mas não é só a família - disse Jewel -, é todo mundo; é esta cidade. Já passaram quatro anos, e até hoje eu vejo gente que muda de fila na Kroger's para não ter de não dizer alguma coisa sobre o Shel.

Com uma esponja, Lusa limpou da bancada o suco vermelho.

- Eu acho que depois de quatro anos eles já teriam imaginado como tratar de outro assunto.

- É mesmo. Apesar de não ser a mesma coisa o Shel fugir e o Cole...

- Morrer - disse Lusa - é a mesma coisa. Por aqui, as pessoas agem como se perder o marido fosse uma doença contagiosa.

Lusa ficara impressionada com a rapidez de sua mudança de status: viver sozinha tornava-a invisível ou perigosa. Ou as duas coisas, igual a um micróbio. Havia observado essa mudança já no velório, especialmente entre os mais jovens, as esposas de sua idade, que precisavam da certeza de que o casamento era uma situação segura e definitiva.

- Pelo menos, todo mundo sabe que você não fez nada para seu marido fugir.

Lusa pegou um avental na gaveta e passou a alça pela cabeça de Jewel, virou-a e lhe deu um laço nas costas.

- O quê, e você fez alguma coisa? Deus sabe que ser fazendeiro é viver da mão para a boca, uma vida de que todo mundo gostaria de fugir. Eu mesma pensei em largar Cole umas cem vezes. Não por causa dele: por tudo.

- Santo Deus, eu sei como é, um inferno - disse Jewel, embora naquele momento as duas estivessem olhando, através da janela da cozinha, para uma siringa encharcada e agitada, coberta de flores, que estava uma beleza.

Lusa pegou mais uma vez a esponja.

- Você está proibida de contar para as suas irmãs que eu pensei em largar o Cole. Elas me cortariam em pedacinhos e guardariam nos vi­dros de conserva.

Jewel riu.

- Quem ouve você falar assim vai achar que nós somos muito más, meu bem. - calçou uma luva térmica, levantou a enorme tampa do esterilizador e a segurou no alto como se fosse um címbalo.

- Quer que eu esterilize os vidros?

- Quero sim. Quanto você acha que eu tenho, uns oito quartos*?

Jewel avaliou as cerejas descaroçadas sobre a tábua de cortar man­chada, fazendo de cabeça um cálculo qualquer. Lusa sentiu um certo mal-estar ao perceber que aderira à opinião da família, a idéia de que Jewel era uma criança, e não uma mulher, pelo simples fato de ela não ter um homem.

- O que você está fazendo, querida, conserva ou recheio de torta?

- Conservas, eu acho, se o açúcar não acabar antes. Já fiz mais ou menos dezoito pintas**.

 

* Unidade de volume equivalente 1,13 litros.

** Unidade de volume equivalente a 0,56 litro ou meio quarto.

 

- De conservas?

Lusa se sentiu meio boba.

- E muito, eu sei. Quando eu estava lá no alto da escada, na árvore, eu sentia orgulho de estar enchendo os baldes. Mas agora não sei o que vou fazer com essas conservas.

- Que nada, é bom ter essa geléia. Essas cerejas são muito doces, não são? Digo as daquela árvore de tronco duplo, que fica depois do pomar. Papai deve ter plantado aquela árvore antes de ele e mamãe se casarem. Já era grande quando eu ainda era menina.

- É mesmo?

Lusa sentiu sua já conhecida agonia, a de se culpar por ser dona dessa árvore que Jewel amava desde menina.

- É. Disseram que ela foi atingida por um raio no inverno em que o Cole nasceu. Foi assim que ela se partiu em duas: um raio.

Um raio e um caminhão que mergulha no abismo, dois aconteci­mentos inesperados que limitaram uma vida - Lusa sabia muito bem até onde sua mente poderia conduzi-la ao longo daquele caminho, e se obrigou a parar. Tentou adivinhar a idade de Jewel no inverno em que o Cole nasceu, se ela fora sua companheira ou sua babá. Nunca tinha pergunta­do a ele essas coisas a respeito das irmãs. Esperava poder contar com muitos anos ainda, para encontrar o fio da meada.

Jewel pareceu ter sentido sua melancolia, pois falou alegremente:

- Duas pintas já é muita conserva. Vamos guardar o resto e fazer recheio de tortas.

- Não quero mais fazer tortas, quero dizer, se forem só para mim. Ninguém aparece para jantar.

- Foi uma maldade da Mary Edna. Ela não tinha a menor razão para tanto orgulho. Emaline já me disse que também acha. Nós duas queremos comemorar o dia de ação de graças aqui na casa.

Lusa sentiu a cabeça rodar. Nunca sonhara ter aliados, muito menos o apoio de uma facção. Como viera parar aqui, no meio dessa família sem lógica? Sentiu-se de repente tão cansada com esse sofrimento, que se deixou cair sentada numa cadeira e deitou a cabeça na mesa. Jewel deixou-a em paz. Lusa ouvia os vidros tilintando na água fervente. E afinal, exclamou num sussurro:

- Acho que você tem só mais uns seis quartos.

- É conserva demais.

- Então vamos fazer tortas de cereja. E se tiver sobras, vamos fazer tortas hoje mesmo. A sua massa de torta é a melhor que eu conheço. Melhor até que a da mamãe.

- Pelo amor de Deus, não diga isso em voz alta. Sua mãe assombra esta cozinha. Ficava sempre por aqui atiçando brigas entre o Cole e mim.

Jewel engasgou com um espanto fingido.

- Ora, por que a Mamãe iria fazer uma coisa dessas?

- Pela causa de sempre. Ciúme territorial.

Os meninos entraram correndo pela porta de tela, precedidos pela tigela vazia. Pareciam dois mendigos cooperativos. Mas quando Lusa tornou a enchê-la, a necessidade deu lugar à luta pela posse, e os dois começaram a brigar e trocar tapas.

- Ai, o Chris não quer dar para mim.

- Meu Deus, o que não falta nesta cozinha é cereja. Tome, vou lhe dar uma tigela.

Lusa teve o cuidado de escolher para Jewel uma tigela do mesmo tamanho e encher as duas com a mesma quantidade. Quando os dois meninos foram para a varanda dos fundos, ela sentiu orgulho por ter satisfeito a ambos, ainda que brevemente. Crianças não eram o forte de Lusa. Era o que ela sempre dizia a Cole, que bebês a deixavam nervosa. Mas desde que se havia mudado para cá, ela descobrira como a auto-indulgência de um adulto em desespero se rende às necessidades das crianças.

- Como eu disse, cinco quartos e meio. Jewel riu, e emendou:

- Me desculpe por ter porcos em vez de filhos.

- Acho que não vão me fazer falta.

Lusa voltou a se sentar à mesa diante do exército de vidros que já havia enchido hoje, pequenos soldados de vidro repletos de entranhas vermelhas. Quem iria comer aquilo tudo? Deveria levar todas as conservas quando fosse para Lexington?

- Por que eu estou fazendo tudo isso? - perguntou numa voz dura e desanimada.

Jewel se pôs às suas costas, e lhe massageou os ombros.

- Para os dias de amanhã - disse com simplicidade.

- Se eu viver até lá.

- O que você quer dizer com isso?

- Nada - disse Lusa -, só que eu não consigo imaginar o amanhã. Passar minha vida vazia nesta cozinha cozinhando para ninguém.

- Você bem que podia fazer uma torta para os meus filhos. Quando chego em casa depois do trabalho, estou tão cansada que acabo servindo a eles praticamente uma lavagem de porcos num pãozinho.

Lusa tentou adivinhar se aquilo era mesmo um pedido ou uma ten­tativa de redenção de uma vida vazia.

- Posso fazer uma torta e levar para vocês.

Jewel se sentou, afastando dos olhos uma mecha de cabelo cor de rato.

- Não era isso que eu estava pedindo. Não sei se é muito, sei lá, educado pedir uma coisa dessas. Mas será que eles podiam vir jantar aqui com você uma vez ou outra?

Lusa estudou o rosto da cunhada. Parecia muito cansada. O pedido era genuíno.

- Claro que podem. E você também, Jewel, se não estiver a fim de cozinhar. Eu gosto de sua companhia.

- Mas e se eu não vier?

- Quer dizer, se você pegar o turno da noite no supermercado Kroger? É claro que sim. É bom poder ajudar.

- Então você importa se os meninos vierem? Lusa sorriu.

- Claro que sim.

Levara um ano para aprender que quando aquele povo dizia "impor­ta" queria dizer o contrário do que ela pensava. Queria dizer "não se im­porta".

Jewel olhou nos seus olhos, tímida e ousada ao mesmo tempo.

- Mas disseram que você ia voltar logo para Lexington.

- Quem disse isso?

- Eu entendo por que você quer ir embora. Só quero dizer que vou sentir sua falta.

Lusa deu um suspiro.

- Nesse caso, você ficaria com esta casa e as terras?

- Não. Acho que ia ficar para a Mary Edna. Ela é a mais velha. E eu não tenho um homem para tocar a fazenda.

- Então a Mary Edna quer ficar com este lugar.

- Mas ele é seu, Lusa; você pode vender ou fazer o que quiser. Cole não deixou testamento, então tudo fica para você. Ela disse que hoje exis­te um estatuto de sucessão ou coisa igual; antes a fazenda voltava para a família, mas agora fica com a mulher.

Lusa sentiu o fluxo de adrenalina correr pelas pernas. O fato de Jewel ter conhecimento da legislação sobre sucessões indicava que a família tinha consultado advogados.

- Ainda não decidi o que fazer - disse ela -, não consigo pensar com clareza desde que tudo aconteceu.

- Mas parece que você está fazendo tudo certo, meu bem.

Lusa olhou para Jewel querendo confiar e sabendo que não podia. Sentia-se desanimada pela complexidade até das coisas mais simples, como essa conversa com uma irmã - não a sua, propriamente - na cozinha, que também não era sua.

- E possível que vocês considerem que eu não me comporto como uma viúva decente - disse ela, surpresa com a raiva que trazia dentro de si.

Jewel começou a protestar, mas Lusa balançou a cabeça.

- Você me vê levando a vida, fazendo conservas como se estivesse tudo normal. Mas quando não há ninguém em casa, às vezes eu tenho de me deitar no chão só para poder continuar respirando. O que eu devo fazer, Jewel? Tenho vinte oito anos. Nunca fiquei viúva. Como é que uma viúva deve agir?

Jewel não tinha conselhos a dar. Lusa pegou um dos vidros de ge-léia e examinou aquela cor de rubi, uma cor clara e orgulhosa que ela amava, mas que agora não lhe dizia nada.

- Cresci numa família em que se sofria calado - disse Lusa - Meu pai é um homem que perdeu tudo: a terra da família, o pai, a fé, e agora a companhia da mulher. Tudo pelos motivos mais absurdos. E ele continuou a trabalhar a vida toda. Antigamente eu me queixava muito, mas estou aprendendo a sofrer cala­da: parece ser a única forma adulta de encarar essa coisa brutal que aconteceu.

Os olhos de Jewel eram tão parecidos com os do Cole, tão sérios e tão plena e perfeitamente azuis, que Lusa teve de desviar o olhar.

- Pode parecer que eu estou bem, mas nem sei se estou indo ou vindo. Quem lhe revelou meus planos sabe mais que eu.

Jewel tapou a boca com a mão - ao que parece, era um tique nervoso.

- Não tenho nada com isso, mas vocês tinham seguro de vida? Lusa balançou a cabeça.

- Cole não pretendia morrer este ano. Conversamos sobre contra­tar um seguro, mas estávamos muito apertados, e achamos que seria uma despesa a mais, e nós não precisávamos daquilo. Achamos que tal­vez, depois que viessem filhos...

- Vou te dizer uma coisa. A Mary Edna e o Herb podiam te ajudar no enterro. Se pudesse, eu ia ajudar, mas eles podem. Herb e o irmão dele têm uma fazenda de gado leiteiro lá em Six. É uma terra da família do Herb, que já está paga. Eles estão bem de vida.

- O enterro já está pago. Nós tínhamos economias. A Mary Edna não ofereceu, e é claro que eu não ia pedir.

- a Mary Edna late muito mais do que morde.

- Mas não se trata disso. Você sabe por quê. Não sou idiota, Jewel, sei o que todo mundo está dizendo: aqui estou eu, morando na casa em que todos vocês cresceram, na terra da família de vocês. E o que chamam de terra de Widener, e já não existe mais nenhum Widener nela. Você acha que eu tenho condições de pedir qualquer coisa para a sua família, Jewel?

Jewel lançou-lhe um olhar estranho.

- Então é verdade? Lois me disse que... você ia retomar seu nome de solteira.

- O quê? Não! Eu nunca...

Lusa se perguntou até onde chegaria o mal-entendido, e se seria possível desfazê-lo.

- Bem, de qualquer modo - disse Jewel - ter uma casa e uma fazen­da não é o mesmo que ter dinheiro.

- Nem precisa me dizer. Quando eu ouço as pessoas dizerem que eu sou uma caçadora de ouro, tenho vontade de publicar as minhas dívidas no jornal. Tenho um celeiro cujo teto precisa ser refeito antes do inverno, e esta casa também; se não no ano que vem, tem de ser no outro. E também há algo errado com a captação de água: um dia desses eu acordo e descubro que não tenho água. Que mais? Ah, o Kubota novinho do Cole, 22 mil dólares, que só estará pago daqui a quatro anos.

- Eu não sabia que ele tinha financiado o trator.

Será que Jewel estava espionando? Haveria alguma diferença se am­bas soubessem que ela era pobre? Nenhuma, decidiu Lusa.

- Ele não queria, mas nós precisávamos de um trator novo. E se não me engano, o John Deere de seu pai era mais velho do que o Cole, que passou a vida toda brigando com ele, consertando-o com corda de enfardar e arame de cerca.

- É verdade, aquele trator era mesmo mais velho do que o Cole.

- E agora, tenho de pagar para alguém cortar e ensilar o feno, e consertar as cercas, e recolher as vacas quando elas fogem para as fazen­das vizinhas, e operar o enfardador, que quebra toda vez que é usado. E consertar o triturador e a ceifadeira - ou será que eu vou ter de aprender a fazer tudo isso sozinha? Tenho certeza de que existem outras despesas; só que eu ainda não descobri quais são.

- Meu Deus, meu Deus - disse Jewel baixinho.

Seu rosto era a coisa mais triste que Lusa já vira em todos aqueles tristes dias. Rugas profundas lhe marcavam a testa, os olhos eram os de uma velha. De perto, ela parecia muito mais idosa do que Lusa imaginava.

- E como você costuma dizer, nem um homem sequer para tomar conta - resumiu Lusa.

- O Herb e o Rickie podem te ajudar.

- Ah, eles já estiveram aqui. Parece que agora eles ficaram respon­sáveis. A sepultura do Cole ainda nem secou, e eu já não sou ninguém.

- O que você quer dizer?

- É claro que eu preciso de ajuda. Mas ajuda. Ser consultada, em vez de mandada como uma criança. É isso que eles fazem com você?

- Eles não têm nada comigo. Nem planto mais nada no meu jardim. Agradeço ao Senhor pelo meu emprego na Kroger's e lhe dou autorização para matar o Shel se um dia o cheque de pagamento não chegar para os meninos.

- E a Emaline e o Frank?

- Oficialmente, a Emaline e o Frank já não são fazendeiros, é o que dizem, e acho que estão muito felizes assim, pois os dois trocaram o trabalho na fazenda por um emprego na fábrica.

- Mas no velório eu ouvi o Frank se queixar de ter perdido a quota de fumo. E também das viagens a Leesport.

- O Frank é capaz de se queixar da lua, se ela olhar torto para ele. Ganha bem na Toyota, e não faz o menor segredo disso.

- Então, quem ainda trabalha como fazendeiro, só a Lois e o Big Rickie? E o Herb, não? Não é possível eu viver no meio de vocês todos e não ter a menor idéia de quem é quem.

- Acho que é porque a coisa não é assim tão clara. A Hannie-Mavis e o Joel fazem um rodízio: num ano, arrendam a cota deles para um grande plantador de Roanoke, e o Herb faz a mesma coisa. Mas no ano seguinte, eles plantam. Já a Lois e Big Rickie sempre plantam tabaco, em pouco mais de quatro acres. Talvez você não saiba, mas ele e Joel arrendam terra em todo o condado para criar gado de corte. O Big Rickie tem sangue de fazendeiro.

As duas mulheres deram um pulo ao ouvirem um barulho de vidro quebrado, vindo da varanda. Lusa correu para a porta, mas Jewel a rete-ve e lhe ofereceu um par de pinças.

- Você tira os vidros do esterilizador e ferve a calda. Volto num instante.

Lusa ouviu Jewel gritando e os dois meninos chorando na varanda. Chegou na ponta dos pés até a janela alta em cima da pia.

- Jewel, se são os vidros de feijão verde, não tem a menor impor­tância. Eles já estavam aí quando eu cheguei.

Não houve resposta, e daquele ângulo ela não via nem Jewel nem os meninos, mas ouviu um tapa e um gemido.

- Você não pode tratar assim o seu irmão menor. Se continuar as­sim, amanhã eu te ponho de vestido. E eu estou falando sério.

Lusa franziu o cenho e voltou para o fogão. Pôs duas medidas iguais de açúcar e água na panela, esperando que três quartos de calda fossem suficientes para cobrir cinco quartos de cereja em conserva. Precisava de alguma coisa ácida para baixar o pH, e ela não tinha nenhum limão. Talvez vinagre servisse. Acrescentou uma colher de sopa, e então pegou a pinça para tirar os vidros do esterilizador. Fez uma fileira na bancada, pássaros de boca escancarada, à espera para serem alimentados.

- E, foi o feijão verde - suspirou Jewel voltando para a cozinha -catei todos os cacos de vidro, e mandei os dois limpar a sujeira, jogar no riacho e ir brincar no celeiro. Não me importa se está chovendo; eles não vão derreter.

- Está ótimo. De verdade. Eu estava com medo tanto de comer como de dar aquele feijão. Com a minha sorte, alguém ia morrer de botulismo.

Jewel sacudiu a pá com os cacos de vidro no lixo sob a pia: um som de sininhos ao vento.

- Essa menina ainda me mata, se eu não matar ela primeiro. O Lowell dá trabalho, mas ainda é pequeno. A Crystal Gail é diferente. Já é hora de sair dessa fase em que ela entrou no dia que nasceu.

Lusa percebeu que devia parecer ridícula, de tão confusa que estava.

- a Crystal?

- a Crys. Ah! - Jewel riu, e abriu os braços. - Você pensava que ela era um menino. Você e todo mundo. Quando ela foi para o pré-primário, a professora não queria deixar ela entrar no banheiro das meninas, e foi preciso eu correr lá com a certidão de nascimento.

-Ah.

Jewel ficou séria.

- Nada de pensar que foi por causa do Shel, essa coisa de filho de pais divorciados. Não, não. Ela sempre foi assim.

- Eu não estava pensando nada, Jewel; eu só não tinha percebido.

- Você nem imagina. Ela sempre foi assim, desde bebezinha. A primeira palavra que ela falou foi não, e a segunda foi vestido. Nem bonecas, nem lacinhos de fita. Deixei cortar o cabelo daquele jeito porque ela co­meçou a cortar sozinha. Tive medo de ela acabar furando os olhos.

Jewel parecia muito vulnerável, Lusa chegava a ver as veias sob a pele. Queria abraçá-la, confiar inteiramente nela.

- Não tem importância. Foi bom você ter me contado; agora eu paro de usar o pronome errado. Não acredito: conhecia aquela menina há um ano já, e ninguém me corrigia.

- Você e o Cole só tinham olhos um para o outro, meu bem. E de qualquer maneira, você vinha pouco às festas da família. E quando vinha, não era para ver a minha filha meio louca.

- Ai - Lusa se queimou na borda de um vidro -, ela não é louca, não se atormente por causa disso. Se eu fosse você, não me preocuparia com ela.

- Você ia se preocupar se fosse a mãe dela. Você ia ficar morta de preocupação. Ela é boa parte da razão porque o Shel me abandonou. Ele me culpava; ai meu Deus, como ele me culpava. Dizia que eu estava fazendo ela virar homo, deixando ela usar roupa de homem e cortar cabelo igual homem. Quem sabe, ele tinha razão. Mas eu não achava isso. Queria ver ele fazer ela pôr um vestido. Foi o que eu falei para ele: vai, você, tente enfiar uma meia-calça num gato!

Jewel e Lusa se olharam e caíram na risada.

- E de qualquer forma, um homo não é sempre homem?

- Jewel, ela é uma menina normal. Eu era igualzinha a ela, quando tinha a idade dela.

- E mesmo? Mas você é tão bonita. E sabe cozinhar.

Lusa se sentiu lisonjeada e meio sem jeito, apesar de saber que a questão não era essa.

- Você devia me ver. Vivia de joelhos esfolados e catava insetos. Eu queria ser fazendeira quando crescesse.

- Cuidado com esses desejos.

- a calda já está fervendo.

- Você põe um pouquinho de vinagre? Ah, põe, dá para sentir o cheiro. Segure o funil em cima do vidro e eu jogo... cadê a concha?

Jewel sabia exatamente onde ficava a concha, como também sabia onde ficava tudo naquela cozinha. Fez a pergunta por respeito. Lusa bus­cou a concha na gaveta e a fechou com o quadril, sentindo-se enormc-mente grata.

- Crystal é bonito. Quero dizer, o nome.

- Mas não tem nada dela. Ela parece mais um urso. Lusa sorriu e disse:

- Meeseh maydel, shayneh dame.

A promessa de seu avô se cumpria, de uma forma ou de outra.

- O quê? - perguntou Jewel

- "O patinho feio se transformou em cisne".

Lusa se sentiu frustrada outra vez - não queria realmente dizer que Crystal ia crescer normal e feminina, porque talvez não fosse assim. Qui­sera dizer que a alternativa também era ótima. Mas Lusa não conseguia se imaginar numa conversa desse tipo com Jewel.

- Talvez ela não queira agir como menino - arriscou-se a dizer, cautelosamente -, é só a maneira de ela ser ela mesma.

- Vamos parar de falar disso. Crys é Crys. Vamos fazer fofoca. Me diz por que você está com raiva do Herb e do Big Rickie.

Lusa colocou quatro medidas de cerejas em cada vidro e segurou o funil para Jewel jogar a calda fervente por cima.

- Acho que não estou com raiva. Quero dizer, estou mas não devia estar. Sei muito bem que eles só queriam ajudar.

- Mas o que foi que eles fizeram?

- Eles vieram aqui hoje de manhã para me informar que vinham plantar o meu tabaco no sábado.

- E daí?

- E daí, eu não quero plantar fumo.

- Não? E por que não?

- Ora, acho que é bobagem da minha parte. Não entendo nada dis­so, de economia rural, Jewel. Mas metade do mundo passa fome, Jewel, e nós temos uma das terras mais férteis deste planeta, e eu vou plantar droga em vez de comida? Eu me sinto hipócrita. Eu enchia a paciência do Cole para que ele parasse de fumar desde o dia em que nos casamos.

- Mas você não mandou o mundo inteiro parar de fumar: e, na verdade, ninguém parou.

- Eu sei. É a única lavoura que dá certeza de sobrevivência com um terreno de cinco acres, num condado que é íngreme demais para arar. Sei por que todo mundo neste condado planta fumo. E sei muito bem que um dia o fundo vai cair.

- Eles entraram num beco sem saída.

Jewel parou de encher os vidros e apontou a concha para a janela dos fundos, a que dava para o Vale Amargo, na direção da montanha.

- Você tem madeira.

Lusa balançou a cabeça.

- Eu não quero derrubar essa mata.

- Mas você pode. O vale sobe uma meia milha na encosta até chegar nos limites da Floresta Nacional. A gente pensava que aquela floresta não tinha fim.

- Não vou cortar aquelas árvores. Não me interessa se há cem mil dólares em madeira no fundo desta fazenda. Não vou vender. É o que eu mais amo neste lugar.

- O quê, as árvores?

- As árvores, os insetos. As raposas e todas as coisas silvestres que vivem lá em cima. Cole passou a infância lá em cima. Provavelmente, junto com você e suas irmãs.

- E verdade. Cole adorava a floresta mais do que qualquer uma de nós.

- É mesmo? Ele sempre agiu como se... como se... as florestas e os matagais do mundo fossem seu inimigo número um.

- Ser fazendeiro é isso. É preciso fazer o que for necessário.

- É. E por aqui, é plantar tabaco, se eu quiser manter a fazenda. Eu gostaria de ser a primeira pessoa a descobrir um meio de sair desse beco.

Jewel sorriu.

- Você e o Cole. Ele vivia dizendo isso.

- Dizendo o quê?

- Que ele ia ser o primeiro a viver de outra coisa que não o tabaco, neste condado.

- E quando ele disse isso?

- Ele devia ter uns dezesseis anos. Era sócio da Future Farmers of America e astro de futebol, que combinação. Interessado demais em ser bonito para virar fumante, ou pensar em plantar o velho tabaco. Ia pôr fogo no mundo. Um ano ele tentou pimenta vermelha; pepinos, no se­gundo, e no terceiro, ele tentou plantar batatas.

- E ele nunca me contou isso.

- Pois é. Aqui mesmo na área lá de trás das terras do papai. Todo ano a colheita gorava e ele engolia um pouquinho de seu orgulho. Na­queles três anos, ele passou de sonhador a fazendeiro. Desistiu dos so­nhos e passou a fumar.

Lusa balançou a cabeça.

- Nem consigo imaginar. Sei que o Cole era ativo, mas não consigo imaginá-lo tão... o quê?... com a cabeça nas nuvens.

Deu uma risada e continuou:

- Além do mais, eu tinha certeza de que ele já nasceu fumando. Era viciado.

- Não. Lembro que fiquei chocada quando vi ele fumando no velório da mamãe. No ano seguinte, papai limpou o celeiro e transferiu a fazenda para o Cole, e depois morreu. Parecia que ele finalmente achou que podia confiar no Cole para tocar a fazenda. Ia fazer o que era necessário, de­pois de ter passado pelas pimentas, pepinos e batatas.

Ele era tudo, menos inflexível, pensou Lusa morbidamente, reco­nhecendo que a autocomiseraçao se intrometia em qualquer conversa, igual a um cachorro chato. Ela era obrigada a gastar uma enorme ener­gia para tentar esquecê-lo por um minuto que fosse, e ainda assim sem­pre aparecia alguém para dizer que não queria fazê-la se lembrar.

- E o que pode dar errado quando se plantam batatas? - forçou-se Lusa a perguntar. - a meu ver, é um negócio muito garantido. Elas dão boas safras, são fáceis de transportar, e a gente ainda pode espaçar as colheitas.

- Isso é que foi engraçado. Disseram que ele ia ganhar dinheiro se conseguisse vender para a fábrica de batatas fritas de Knoxville. Mas quan­do ele tentou, eles não quiseram. Preferiam a batata do Idaho. As que dão aqui têm muito açúcar, são difíceis de fatiar e queimam nas bordas.

- Muito açúcar?

- Foi o que eles disseram. A terra do vale é muito rica. Quero dizer, as batatas são muito boas, mas não servem para o mercado.

- Jewel, minha vida é igual a uma música caipira: meu teto está cain­do, minha terra muito íngreme para arar, minha bunda tem muito açúcar.

- Sua bunda o quê!

Jewel deu uma lambada em Lusa com o pano de prato.

- Vamos é limpar esta sujeira. Você não vai passar fome, Loretta Lynn.

Jewel empilhou as coisas para levar para a pia, e Lusa enfiou as mãos na água com sabão: estava tão quente, que lhe irritou a pele. A dor que sentiu era como um castigo que iria apagar o sofrimento que lhe ia no peito. A chuva aumentou, batendo nas telhas de metal, tocando a música de zeida Landowski. Ontem fora o aniversário de casamento, que ninguém mencionou, mas zeida havia comemorado a noite inteira, tocando música klezmer na clarineta - para o casamento judeu que ela não teve. Ela e Cole realizaram uma breve cerimônia no jardim Hunt Morgan, em Lexington, ao ar livre, para contornar a questão da religião. O Cole não fazia tanta questão quanto suas irmãs.

- Jewel, quero contar uma coisa. Preciso lhe dizer que eu amava o meu marido.

- E claro que amava.

Em sua imaginação, Lusa viu a área da parte baixa das terras, quando ele tentou domá-la pela primeira vez: um mar de folhas balançando leve­mente na brisa, os sininhos vermelhos das pimentas maduras, um jovem vadeando por ali como se estivesse num lago. Cole aos 19 anos. Um homem que ela nunca conhecera.

- Acho que não tivemos tempo de acertar o passo. Vocês todos pen­sam que eu não sabia quem ele era, mas eu sabia e sei. Conversávamos muito; ele me dizia coisas. Poucos dias antes de morrer, ele me disse uma coisa impressionante.

Jewel fixou os olhos nela:

- O quê? Posso perguntar?

Lusa cruzou os braços sobre o estômago, prendendo a respiração, enlevada pela lembrança do perfume das madressilvas que vinha do cam­po. Como duas mariposas, estou aqui, estamos aqui. Ela olhou para Jewel.

- Sinto muito, você não entenderia. Não é nada que se possa dizer com palavras.

- Está bem - disse Jewel, afastando-se.

Lusa viu que ela ficou desapontada: ia pensar que Lusa estava es­condendo alguma coisa importante, um pedaço do irmão que a ajudaria a trazê-lo de volta.

- Não ligue. Sinto muito, Jewel, mas agora já não é realmente im­portante. Ele só quis dizer que nós fomos feitos um para o outro. Assim como você e Shel no início. Apesar de agora todo mundo ter envenenado tudo, a partir de um final infeliz e voltando até o começo de tudo.

Jewel passou a esponja de uma mão para a outra, enquanto esqua­drinhava Lusa.

- Ninguém disse que você não amava ele.

- Ninguém pensa que estão dizendo isso. - sentia os olhos de Jewel, mas não conseguiu erguer os olhos. Voltou-se para a pia e começou a lavar a panela com toda aquela geléia grudada, esfregando com força para não chorar nem gritar. Todo o seu corpo se movia com esse esforço.

- Meu Deus, querida. O que aconteceu?

- É essa história de mudar meu nome, por exemplo. O corpo de meu marido ainda nem esfriou, e eu já corri ao cartório para apagar o nome dele da escritura da fazenda da família? É uma merda. Que menti­ra mesquinha é essa, e quem a inventou?

Jewel hesitou.

- a Lois viu sua assinatura num papel qualquer no velório. Loud Lois, pensou com raiva, imaginando a cara comprida dela,

perpetuamente fechada por causa da preocupação de que alguém pudesse tomar o que era dela.

- Sempre tive o mesmo nome. Antes, durante e depois do Cole: Lusa Maluf Landowski. Minha mãe era palestina e meu pai judeu polonês, e nunca, antes de vir para cá, tive vergonha de meu nome. É meu desde que nasci. Mas nunca ouvi ninguém da sua família pronunciá-lo. Você fala so­bre fazer desaparecer uma pessoa? Você acha que eles apagaram Shel. Pois então tente viver numa família que não quer nem aprender a porcaria do seu nome.

Jewel e ela piscaram uma para a outra: ambas estavam chocadas.

- Ninguém fez por mal, meu bem. Só que aqui o normal é a gente tomar o nome do marido. Somos uns caipiras, com costumes caipiras.

- Nunca achei que fosse uma coisa normal, e por isso não troquei de nome. Meu Deus, Jewel, vocês realmente pensaram que eu iria adotar o nome dele e depois jogar fora, uma semana depois de ele morrer? Uma estranha, que apaga seu nome e rouba a sua casa, é assim que você me vê?

Jewel pôs a mão na boca, as lágrimas já escorrendo dos olhos; ti­nham voltado ao ponto de partida. Lusa havja levantado a voz para essa mulher tímida, talvez a pessoa mais perto de ser sua amiga naquela fa­mília ou naquele condado. Jewel balançou a cabeça e estendeu os braços para Lusa, que entrou desajeitada no abraço. Sob o avental, o corpo de Jewel era ossudo, e leve como o de um passarinho, todo penugens e palpitação.

Ficaram abraçadas durante um minuto, balançando para frente e para trás.

- Não ligue para mim - disse Lusa -, estou ficando louca. Existem fantasmas aqui. E há um que gosta de atiçar brigas.

Por sobre o ombro de Jewel, ela via o quintal e o pasto através do corredor e do vidro antigo da porta de entrada. Aquela chuva jamais iria passar, pensou. Via ao longe os sinais de uma nova tempestade a se formar: as folhas do álamo perto do celeiro tremendo e girando em torno de 100 eixos diferentes, como uma árvore coberta de hélices. Embaixo dela, Lowell e Crystal corriam, galopando dois cavalos invisíveis, com as rou­pas encharcadas, girando em círculo através da chuva sem fim, como se o tempo tivesse parado para eles, ou nem tivesse começado.

 

                                  Velhas castanheiras

VJarnett estava admirando a parede do celeiro. Passado um século, as tábuas de castanheira sem pintura exibiam um rico tom de cinza man­chado, interrompido apenas pelas linhas de líquen cor de laranja e limão que davam brilho à madeira em longas listas verticais por onde escorria a umidade que descia do teto de telha galvanizada.

Os fantasmas das velhas castanheiras o assombravam pelo grande vazio que sua extinção havia deixado no mundo, e por isso, de tempos em tempos, Garnett as homenageava, assim como ia ao cemitério para estar com os parentes mortos. Admirava as castanheiras. Por alguns momen­tos, prestou homenagem à sua cor, textura e à sua miraculosa capacidade de suportar décadas ao tempo sem precisar de tratamento por autoclave ou com inseticidas. Como e por quê, ninguém sabia com certeza. Não havia outra madeira que se comparasse a ela. Só se podia agradecer ao Senhor por ter oferecido a castanheira americana à Terra, aquela majestosa fonte de castanhas, sombra e madeira eterna, e sua ampla copa. Garnett ainda se lembrava dos dias em que as castanheiras se adensaram de tal forma nos pontos mais altos da região, que na primavera, quando as copas se cobriam de flores, as montanhas pareciam cobertas de neves eternas. Muitas famílias haviam sobrevivido ao inverno graças aos sacos de castanhas guardados no celeiro, aos pernis dos porcos engordados com as castanhas, e à venda das castanhas enviadas por trem para Filadélfia e Nova Iorque, onde pessoas de outras religiões e nacionalidades as assavam e vendiam nas esquinas. Imagi­nava as cidades cheias de pessoas diferentes, agachadas em torno de bra­seiros, assando castanhas cujas origens elas desconheciam. Mas Garnett gostava de pensar que seus antepassados eram "o povo das castanheiras". De troncos, os Walker construíram suas primeiras cabanas, até terem fi­lhos e uma serraria para cortar e aplanar as árvores em tábuas com as quais construíram casas, celeiros, e finalmente um império. Foi a madeira vendida na Serraria Walker que permitiu a seu avô comprar a terra e lhe deu o direito de batizar o Monte Zabulon. Nada tendo de início, além da vontade e das mãos fortes, a família Walker vivia bem sob os braços protetores da castanheira americana até o início da lenta devastação, em 1904, o ano da praga da castanheira. Deus dá, Deus leva.

Não cabia a Garnett discutir a decadência de sua família. Não se quei­xava da venda das terras que, por volta de 1950, com o desaparecimento das últimas castanheiras, havia reduzido a enorme riqueza de seu pai a um pedacinho de terra no vale, pequeno demais para sustentar outra coisa além de um professor. Garnett nunca se arrependeu de ser professor; Ellen nunca se queixou de se ter casado com um. Jamais sentira a necessidade de possuir um império, e não lamentava a falta de vizinhos próximos (menos uma). Mas também nunca teve dúvidas de que seu sonho - recuperar a castanheira para a paisagem americana - estava também nos planos de Deus, que daria uma bela simetria à história de sua família. Ao se aposentar do sistema escolar do Condado de Zabulon 12 anos antes, Garnett se vira abençoado com uma fazenda com três áreas de cultivo planas e sem gado; um bom conhecimento de reprodução de plantas; um punhado de semen­tes de castanheira americana; e acesso a uma ilimitada quantidade das castanheiras chinesas plantadas depois da praga. As castanhas não eram tão boas, e a própria árvore não tinha a estatura graciosa nem as qualidades da madeira da castanheira americana, mas a castanheira chinesa provou ser absolutamente resistente à praga. Essa árvore inferior foi preservada para atender a um desígnio divino, assim como alguns animais inferiores da Arca de Noé. Garnett entendeu que, na sua lenta marcha em busca das graças divinas, ele deveria passar longos anos cruzando e recruzando a castanheira americana com a chinesa. Trabalhava como um possesso, assombrado por fantasmas arbóreos, e já havia mais de uma década que vinha tocando seu projeto. Se vivesse bastante, haveria de produzir uma árvore com todas as propriedades genéticas da castanheira americana original, mais uma: capacidade de resistir à praga, adquirida do parentesco com a mãe chinesa. Receberia o nome de castanheira americana de Walker. Ele distribuiria e venderia as sementes pelo correio para que a espécie crescesse e se multiplicasse nas florestas da Virgínia, Virgínia Ocidental, Kentucky, e em todos os lugares ao norte dos Adirondacks, e a oeste, até o Mississipi. A paisagem em que seu pai vivera seria restaurada.

Um zumbido forte perto de seu ouvido fez Garnett virar a cabeça depressa demais, o que lhe provocou um acesso de tontura que quase o forçou a se sentar na grama. Os besouros japoneses já cobriam tudo, numa camada tão espessa como um creme de ervilhas, e ainda era junho. Obser­vou que suas trepadeiras de Concórdia, que ele adorava ver subir preguiço­samente pelas paredes do celeiro, as folhas caídas tal como mãos de dama, já exibiam uma aura marrom pulverulenta. À distância, parecia que elas estavam cobertas por um pó marrom, mas ele sabia que isso era apenas o esqueleto marrom da folha. Já havia mostrado muitas vezes a seus alunos de agricultura vocacional os sinais dos danos provocados pelos besouros japoneses. Mais uma coisa a ser acrescentada à sua lista de compras: malathion. Ou o pó de Sevin não era tão eficiente contra eles, ou era lavado pela chuva.

Olhou para o sítio da senhorita Rawley, de onde vinha aquela praga. Ela havia feito mais uma porção de pilhas de folhas e frutas podres ao longo da cerca, só para lhe fazer raiva. Ela chamava aquilo de "composto" e dizia que as pilhas se aqueciam a tal ponto, que todas as larvas de besou­ros e sementes de ervas daninhas morriam, mas ele não acreditava. Qual­quer fazendeiro decente que passasse sua vida no Condado de Zabulon a estudar os métodos rurais mais econômicos e eficientes sabia que era me­lhor queimar as sobras do pomar, mas ela vivia ocupada demais com feiti-çaria e com armadilhas para besouros, para ter o trabalho de acabar com o lixo do pomar da maneira certa. Pilhas de compostagem. Mas o nome mais adequado seria "pilhas de preguiça". "Pilhas de lavagem".

Alguns dias antes, através da cerca, ele tentou convencê-la: "Parece que os besouros japoneses vêm das suas pilhas de compostagem, Miss Rawley". E ela respondeu: "Mr. Walker, os besouros japoneses vêm é do Japão".

Não havia meio de conversar com ela. Não adiantava tentar.

Observou que o decrépito caminhão importado que ela usava não estava no lugar de sempre, entre a cerca de lilases e a casa branca de madeira. Tentou adivinhar aonde ela poderia ter ido numa manha de sexta-feira. Nas manhãs de sábado, ela sempre levava seus produtos ao mercado menonita, e nas segundas ao Kroger's (a Loja Black não se adequava às suas necessidades, de acordo com Oda Black, que a vira comprando molho de soja no Kroger's), e ultimamente ela saía nas terças para alguma coisa que ele ainda não havia descoberto. Aos domingos, ela ia àquele lugar unitarista; Garnett se recusava a chamar aquilo de igreja. Era seu dia de descanso e prazer, imaginava ele: uma toca de bebedores de café e mulheres de calça comprida a conversar sobre coisas que não são de Deus. Evolução, transcendentalismo, coisas dessa natureza. Graças a Deus, a igreja ficava no condado vizinho, em Franklin, onde também estava a universidade. Lá havia ainda mais gente dessa laia, e Garnett tinha plena certeza de que o deboche no seu estado aumentava continuamente para leste, seguindo uma linha que ia terminar em Washington, D.C. Oda Black dizia que as mulheres unitaristas se recusavam a vestir trajes apropriados e faziam bruxarias.

Afirmou em seguida que ela não era mulher de julgar ninguém (apesar de ser suficientemente grande para ficar onde quisesse, e ninguém ia se queixar, com a possível exceção do assoalho). Era o que ela ouvira de boa fonte; e além disso, um dia duas moças da universidade entraram na loja e falaram sobre bruxarias em alto e bom som, enquanto pegavam refrigerante na geladeira. Segundo Oda, os seios das duas balançavam debaixo da camiseta, iguais a gelatina fora da vasilha.  

O Condado de Franklin era assim mesmo. Culpa da universidade, que decidiu aceitar mulheres.

Garnett subiu à varanda e tirou do bolso um papel dobrado. Já havia trabalhado bastante, cinco horas naquela manhã, polinizando e plantan­do mudas de castanheira. Junho era o mês em que havia mais trabalho, e naquela manhã, no instante em que o sol saía de seu confinamento, Garnett se levantou e foi à sementeira para recuperar o tempo perdido. Ainda havia muito a fazer: o capim no quintal estava alto e as ervas daninhas cresciam ao longo do córrego, mas ele podia deixar a capina e a aplicação do herbicida para aquela tarde. Já passava das 11, e ele merecia o prazer de uma ida à cidade. Não que quisesse se divertir. Havia muitas tarefas a cumprir: ir à Loja Black, à oficina do Tick, e à loja de ferramentas Irmãos Little. Desdobrou o papel com a lista de material:

 

  1. Serra tico-tico

(Descobriu que a sua estava cega na última vez que a usara.)

  1. Plástico preto para cobertura do solo entre as fileiras de árvores
  2. Pilhas AA para lanterna (quatro)
  3. 3 curvas PVC em L, meia polegada (para o sistema de irrigação)
  4. Pincéis marcadores para as árvores híbridas

 

(Esse item o irritou, pois sabia que no celeiro ainda havia pincéis marcadores, mas ele gastara mais de uma hora tentando achá-los, e sus­peitava de que foram roubados pelo filho de algum vizinho, ou então levados por uma marmota.)

  1. Herbicida concentrado, um galão!!

O ressentimento associado a esse último item era infinito, e o grifo e a exclamação eram uma pálida indicação disso. Mas não podia continuar adiando. Era obrigado a encarar a Oda Black toda vez que precisava de pão, creme chantili e mortadela, e tinha certeza de que todo mundo falava dele pelas costas. Provavelmente, Oda iria gritar "aí vem o dono da faixa de passagem mais feia do mundo", quando ele estacionasse o caminhão, e riria dele enquanto se levantava da poltrona junto à janela da frente e deslizava os pés inchados até a caixa registradora. "Psit, silêncio! Aí vem o Mr. Espinheiro". Muito bem, então ele mesmo iria aplicar herbicida no seu lado da faixa de passagem. Derrubar aquela floresta, aquele matagal, em cima das tartarugas que mordem. Garnett ainda ficava rubro ao se lembrar. Pelo menos Oda não sabia da tartaruga.

Acrescentou o malathion (para os besouros japoneses!!) à lista, do­brou o papel, guardou no bolso da camisa e voltou para dentro da casa, pensando com prazer no restaurante do Pinkie. Parou no hall de entrada para pegar a correspondência da véspera, que se esquecera de verificar: folhetos de propaganda, bobagens e nenhuma conta. Jogou tudo no lixo e fechou a janela da cozinha que dava para o oeste, a fim de isolar o calor da tarde enquanto ele estivesse fora. Completadas todas as tarefas do dia, iria jantar no Pinkie para comer o peixe especial, que era o prato das sextas-feiras: tanto bagre frito quanto o cliente fosse capaz de comer, acompa­nhado de pães de milho e salada, tudo por $5,99. Garnett acreditava que, como era servido às sextas, o especial deveria se destinar aos católicos, mas o restaurante não era uma igreja. Os católicos eram raros e esparsos no Condado de Zabulon, e de qualquer forma Pinkie Prater jamais recusaria $5,99 de qualquer indivíduo, fosse gente, cavalo ou cachorro, que estivesse disposto a entrar e depositá-los na sua caixa registradora. Ir ao Pinkie na sexta-feira era ponto pacífico para Garnett. Nas poucas sextas-feiras em que ele faltava ao compromisso com o peixe especial os boatos sobre sua saúde circulavam tão rápido que, quando ele aparecia de novo no posto de gasolina ou na Loja Black, todo mundo se espantava.

Pouco importava. O hábito faz o monge, já dizia seu pai. Pinkie era a única extravagância de Garnett, uma extravagância que ele gostava de antecipar. Deixara de comer bem desde a morte da mulher. Passaram-se os anos, e ele já se acostumara a comer sanduíches de carne fria sozinho, mas nunca aprendeu a cozinhar. Nem mesmo um pãozinho de milho. Como preparar um pãozinho de milho, de que era feito? Garnett estava cansado de saber que esse mundo de Deus e a maior parte da vida estavam cheios de coisas misteriosas que só as mulheres sabiam.

Teria de trocar de camisa antes de sair. Naquela manhã, suara muito no campo. Fechou a porta do banheiro (apesar de viver sozinho e de não receber visitas) e tirou a camisa sem se olhar no espelho. Depois de se lavar com um pano molhado, entrou no quarto e pegou na gaveta uma camiseta limpa (a roupa ia ser lavada no dia seguinte) e no guarda-roupa, a camisa de ir à cidade (que ainda tinha um leve cheiro do peixe especial do Pinkie. Decidiu lavá-la no dia seguinte, embora isso significasse ter de passá-la, e ele não sabia passar a vapor igual à Ellen). Só depois de abotoar o colarinho e enfiar a camisa na calça, ele se permitiu olhar no espelho da penteadeira da Ellen. Tinha um peito normal para um velho de sua idade, com costelas salientes e um ninho de cabelo branco bem no meio, mas a modéstia era um hábito de Garnett. Enviu­vara há oito anos; sua única companhia era o seu Deus. Já passara da idade de mostrar o corpo. Se o pensamento o entristecia - a idéia de que nunca mais teria o conforto de um toque humano -, ele o via como um tributário do lago de tristeza que todo velho tem de cruzar nos seus últimos dias.

Pegou o chaveiro, contou o dinheiro na carteira e trancou a porta da cozinha ao sair. Olhou mais uma vez para as terras da Nannie, teve a curiosidade despertada por uma grande mancha escura em forma de vaca no telhado dela. Aproximou-se um pouco e apertou os olhos para enxer­gar através da parte superior de suas lentes bifocais. A mancha se devia à falta de algumas telhas de madeira, provavelmente arrancadas por uma tempestade. Ia ser um deus-nos-acuda, com aquela chuva toda, e uma amolação para consertar. Pior que uma amolação: essas telhas antigas cortadas à mão não eram mais encontradas. Ela teria de refazer o telhado inteiro, se não quisesse que ele se transformasse numa mixórdia. Ele apertou os cantos da boca tentando controlar o prazer que sentia com a má sorte da vizinha. Ela não sabia que na garagem de Garnett havia um grande estoque do lote original daquelas telhas verdes, que o pai de Garnett e o Velho Rawley haviam comprado em parceria. Originalmente, antes de Garnett modernizar o telhado com amianto, na década de 60, as ripas de madeira aplicadas nas paredes das duas casas eram do mesmo tipo e ambas tinham as mesmas telhas em forma de espada. O pai de Garnett se dava bem com o Velho Rawley, tanto que lhe vendeu cinqüenta e cinco acres de pomares, com um único local decente para construir uma casa, o que colocou os Rawleys a uma pedrada de distância (apesar de, antes de Garnett e Nannie, ninguém pensar em atirar pedras). A casa era modesta, pequena e bonita, com um telhado inclinado e empenas voltadas para a estrada. O Velho Rawley plantou um excelente pomar, com as melhores mudas. Mas todo mundo sabia que sua filha herdaria tudo, pois ele não tinha filhos. Um problema que o pai de Garnett devia ter previsto: uma filha na escola na década de 50. E num piscar de olhos, lá estava ela a passear por ali com roupas extravagantes, mãe de uma filha ilegítima e excepcional, decidida a plantar maçãs sem produtos químicos, num desafio direto às leis da natureza. Garnett deu um suspiro, e mais uma vez perdoou o pai. Não fora um crime premeditado, fora apenas um erro de previsão.

Como herdeiro de uma fortuna perdida, Garnett passara a vida evi­tando imaginar como as coisas poderiam ter sido diferentes. Nannie Rawley era a única exceção. Como ele iria esquecer a presença dela na sua vida, como não tentar entender o que ela significava? Garnett não lhe dera atenção quando era menina (ela era mais ou menos dez anos mais nova); mal a conhecera quando era moça, pois vivera muitos anos longe; e a ignorara enquanto sua mulher estava viva (Ellen costumava conversar com ela, porém depois a desaprovara). Mas agora, nos seus últimos oito anos solitários, forçou-se a suportá-la como se ela fosse uma praga da velhice. Por quê? O que a levava a fazer as coisas que fazia, perante Deus e os homens e às vezes até na propriedade de Garnett? Ele suspeitava haver uma ligação entre o nascimento da filha anormal e o horror aos produtos químicos. Os problemas se tornaram evidentes logo depois do nascimento, as feições mongolóides e tudo mais, e Nannie lhe deu o nome de Rachel Carson Rawley, em homenagem à cientista que fizera aquele escândalo por causa do DDT. A partir de então, toda a vida de Nannie parecia girar em torno do nascimento daquela criança. Era até possível que a mulher tenha sido normal. Foi a criança quem a desequilibrou.

Onde estaria ela hoje, sexta-feira? Nunca saía às sextas. Ele se abaixou atrás da rosa de Sharon e observou os fundos da casa para se certificar de que o caminhão não estava lá. Ela às vezes parava lá quando tinha alguma coisa para descarregar. Na semana anterior, ela levou o caminhão para dentro do celeiro, com uma carga de caixas de maçãs. Mas hoje não havia sinal dela.

Entrou no seu carro, uma pick-up Ford 1986, que pegou imediata­mente (havia limpado e calibrado as velas na semana anterior), e o conduziu cuidadosamente até a estrada, esforçando-se para não olhar para o seu lado da faixa de servidão. Logo, logo ele iria precisar de mais 2-4-D e Roundup para as sementeiras e havia esquecido de encomendar ao atacadista, como havia feito nos anos anteriores. Dirigia bem devagar, tomando cuidado nas curvas. Garnett sabia que sua vista já não era boa; aceitava tranqüilamente essa limitação. Mas a 6 tinha pouco tráfego, depois da inauguração da rodovia federal que passava por King Valley. Qualquer um que passasse por essa estrada reconheceria a pick-up de Garnett e lhe facilitaria a passagem. Não que ele estivesse cego. Mas tinha alguma dificuldade para avaliar distâncias. Já houvera acidentes.

Iria primeiro à loja Irmãos Little, depois passaria no posto para completar o tanque da pick-up e soprar o filtro de ar com a mangueira do calibrador, duas coisas que ele sempre fazia às sextas feiras. Também compraria cinco galões de diesel para o trator, pois teria de trabalhar a terra. Só na volta, depois do jantar no Pinkie, ele ia passar na Loja Black. E isso, a Loja Black tinha de ficar para o final, senão o leite iria talhar e os ovos seriam chocados pelo calor da tarde.

Passou diante da Loja Black, no cruzamento da 6 com a estrada do Ribeirão do Ovo, mas não viu a Oda acenar para ele pela janela. Imagens do passado de Garnett sempre surgiam quando ele rodava por essa estrada, figuras mais reais do que as coisas que passavam diante dele. Uma trepa­deira que cobriu a copa redonda da tuia de mãe dele como um boné verde-brilhante. A marmota loura como trigo e de rabo preto que passou uma temporada escondida embaixo do celeiro. A criançada toda a viu antes do pai, mas não é verdade que menino vive para procurar marmota? Seu pai não acreditava na existência dela até perto do fim do verão, quando também a viu. Só então ela passou a ser real. Comentou com os vizinhos sobre ela, e a meninada ficou orgulhosa como se também eles tivessem ficado mais reais. Enquanto navegava pela 6, Garnett ia respirando o ar daquele tempo - um tempo mais claro, em que sons e cores eram mais distintos e as coisas ficavam nos seus lugares. Quando à tarde se ouvia o pio pensativo da codorna, que vinha dos pastos. O que teria acontecido às codornas? Agora ninguém mais ouvia o piado delas. Garnett havia lido na revista Extensão que a causa era a festuca, a festuca comum que se plantava para feno. Ficava densa demais e os filhotes de codorna se perdiam no meio dela. Garnett ainda se lembrava do tempo em que a festuca era uma novidade e o governo pagava aos fazendeiros para substituir os pastos do capim nativo por aquela novidade vinda da Europa. (Também diziam naquele tempo que a maconha era uma grande idéia, meu Deus!) Agora a festuca estava em tudo em que é lugar, e é possível que ninguém mais se lembre do capim que antes era comum por aqui. Deve ser estranho para os animais ver um mundo novo surgir à sua volta, tomando o lugar do que sempre conheceram. Que pena as pequenas codornas perdidas naquela selva, sem saber para onde ir. Mas era necessário produzir feno.

E agora surgiam as Iscas Grandy, não uma lembrança, mas um fato, placa escrita à mão: LAGARTOS: 10 POR UM $. Isso o deixava confuso, pois as pessoas do Condado de Zabulon não sabiam que uma salamandra é uma salamandra. E ele ficava ainda mais confuso ao lembrar que Nannie Rawley parava aqui pelo menos uma vez por mês para comprar todos os "lagartos" do tanque e libertá-los no Ribeirão do Ovo, no fundo do pomar. Todo mundo sabia desse seu costume. Os meninos os pescavam com redes e os vendiam novamente a Dennis Grandy por um centavo, rindo por saber que logo depois eles seriam libertados por Nannie Rawley. Por que todo mundo a aceitava com tanta tranqüilidade? Ela dizia que em Zabulon havia umas dez ou quinze espécies de salamandras em risco de extinção, e que ela tentava proteger o meio ambiente. Será que, em resumo, isso implicaria que todo indivíduo que usasse iscas de salamandra para pescar fosse inimigo do plano de Deus?

Garnett teve ganas de lhe dizer uma ou duas coisas a respeito do plano de Deus. Que as criaturas desta Terra surgiam e às vezes desapare­ciam. Que não tínhamos o poder de controlar essas coisas se, como ela afirmava, não passávamos de apenas uma espécie a mais entre nossos irmãos, os animais. E que se não éramos iguais aos animais, se fomos criados para sermos os senhores do Éden, como diz a Bíblia, então os "lagartos" foram postos aqui para que o homem pudesse pescar com eles, e ponto final. Não era possível que as duas coisas fossem verdade. Tudo era muito claro para Garnett, mas sua lógica sempre se perdia diante das respostas curtas e secas dela. Já chegara até a pensar em lhe escrever uma carta.

Passou pela igreja pentecostal, que tinha um grande eupatório cres­cendo no meio do estacionamento. Ora, ora! Todos tão ocupados falando da vida alheia, que não tinham tempo de limpar o mato em seu próprio estacionamento. Garnett sorriu, certo de que entendia o que a palavra de Deus queria ou não queria dizer. Sentiu uma pontada de culpa ao entrar na Maple. Devia dizer à Miss Rawley que ele tinha as telhas na garagem. Mas ela bem que podia ser tolerante, ao menos um pouquinho..

Viu o banco e o posto Esso. Havia chegado à cidade. Viu Les Pratt, professor de matemática no ginásio na mesma época em que ele lecionava agricultura vocacional. Abanou a mão, mas Les não o viu. Viu a mulher de Dennis Grandy com todos os filhos, que não chegavam a ser sujos, mas também não pareciam muito limpos.

E então ele viu Nannie Rawley! Ou melhor, viu o caminhão dela. Deus do Céu, será que ele não merecia o direito de ficar longe dela nem para curtir um passeio agradável à cidade? Aquela mulher era teimosa como uma mula e venenosa como cicuta.

Passou devagar para observar melhor. Era o caminhão dela, no esta­cionamento da igreja batista, onde aos sábados os menonitas montam uma feira de produtos de suas fazendas. Mas hoje era sexta. No entanto, lá estavam eles, os meninos menonitas e suas roupas negras e sóbrias, vendendo polidamente seus produtos. Não chegou a ver Nannie. Decidiu fazer o retorno na esquina e voltar para olhar melhor.

Seria possível que os menonitas já fossem tantos a ponto de precisar de dois dias de feira, nas sextas e sábados? Eram um povo trabalhador, disso ele sabia. Ficara sabendo que no ano anterior eles haviam comprado uma longa fileira de fazendas do outro lado do rio. Mas como era possível que eles hajam prosperado tanto, se todos os outros fazendeiros da região estavam trocando suas terras por lotes na cidade e por empregos em fábri­cas? Os menonitas não estavam atolados em dívidas, não usavam produtos químicos nem máquinas - o que pareceu a ele uma vantagem injusta. Epa! Avançou um sinal vermelho e teve de pisar forte nos freios, quase tarde demais, mas tudo bem: o outro carro conseguiu se desviar a tempo. Che­gara a pensar naquelas fazendas do outro lado do rio, inacessíveis por carro, aonde só chegava quem passasse pelas pontes oscilantes feitas de tábuas e corrimãos de corda. Era preciso muita coragem para cruzar aquela gar­ganta todo dia. Perguntava-se o que alguém faria para levar até uma daquelas fazendas um aparelho de TV, ou a geladeira da mulher, ou mesmo um trator. Foi Les Pratt quem lhe explicou tudo numa única palavra: menonita.

Deu a volta na esquina e tornou a olhar a feira menonita. Ficou tenta­do a parar. Vinha quase todos os sábados, antes de Nannie aparecer com as maçãs ou, no início da estação, como agora, com mel de macieira e outras coisas para vender. Estava claro que não era preciso ser menonita; Nannie e outros fazendeiros do alto do condado também participavam da feira. A única exigência era que todos os produtos fossem orgânicos. Os menonitas não usavam venenos, o que Garnett era capaz de entender, pois eles tinham motivos religiosos. Mas a presença de Nannie entre eles decidia a questão: se ela estava participando, ele não iria pôr os pés naquele lugar, pois então a feira passava a ser Orgânica, com O maiúsculo, com um sen­tido plácido e irritante de coisa sagrada. Ele não mais iria parar na feira nas manhas de sábado para comprar umas tortas bem gostosas, nem para passar o tempo entre esses jovens inocentes e pilhas bem organizadas de legumes, verduras, conservas e coelhos. Iria sentir falta, admitiu com tristeza, reconhecendo a mesma dorzinha que vinha quando ele pensava no rosto inocente do filho - seu próprio filho descalço com uma vara de pescar, todos os erros terríveis ainda à sua espera no futuro. Garnett gostava de ouvir os meninos menonitas contando o troco com um sotaque levemente estrangeiro enquanto ele olhava disfarçadamente para pés calejados deles, pois eles passavam o verão todo descalços. Sabia que os menonitas não mandavam os filhos para a escola, e tecnicamente ele desaprovava o que eles chamavam de simplicidade divina (na verdade, um retrocesso). Mas gostava daqueles meninos e meninas. Não sabia a razão por que os adultos mandavam os filhos para a feira. Estariam em outro ponto da cidade em outras atividades, fazendo compras para atender a suas poucas necessida­des? (Um ancinho, querosene, ou coisa semelhante, pensava ele.) Será que eles consideravam que seus filhos eram os melhores emissários de seu povo? Era um truque para angariar simpatia? Aquilo parecia contrariar hábito de isolamento que eles tinham, pensou Garnett. Trazer os filhos para a cidade e ver as outras famílias saindo de automóveis, ver outras crianças brincando com rádios ou outras quinquilharias eletrônicas que elas sempre tinham nos bolsos, enquanto as mães escolhiam melçes - aqueles meninos estavam aprendendo a desejar o que nunca poderiam ter.

A meio quarteirão da feira, ele encontrou uma vaga e parou junto ao meio-fio. Ficou ali sentado, a avaliar suas alternativas. Poderia comprar uma torta. As tortas eram maravilhosas. Maça, cereja, e uma coisa que eles chamavam de sai-mosca. Mas onde estava Nannie Rawley? Viu o ca­minhão e a mesinha com as coisas que ela vendia enquanto não chegava a época das maçãs: flores secas, sachês de lavanda e de limão - coisas que ele considerava tão supérfluas, que ficava embaraçado só de olhar para elas. Mas onde estava ela?

Decidiu ir até o fim do quarteirão para fazer compras na Irmãos Little. Na volta, se não houvesse perigo à vista, compraria uma torta. Tentaria encontrar um menino de quem se lembrava especificamente, o que levava gaiolas com coelhos e usava um penteado ao estilo holandês, com franjas cortadas rente à testa. Havia conversado com o rapaz e lhe dera alguns conselhos sobre criação de galinhas. Chamava-se Ezra. Ou seria Ezequiel?

Garnett subiu os degraus de concreto da Irmãos Little com o cora­ção tranqüilo, mas então as coisas começaram a se descontrolar. Logo na entrada, onde Dink Little o cumprimentou chamando-o pelo nome, ele percebeu que havia esquecido a lista. Bateu no bolso da camisa, para puxá-la rápido, com um largo gesto, em resposta à previsível pergunta de Dink: "Você está precisando de quê hoje?". Bateu no outro bolso. Mas é claro que tinha trocado de camisa.

- Vou dar uma olhada primeiro, Dink - respondeu, certo de poder refazer a lista assim que visse um dos itens nas prateleiras.

Mas não via nada de que precisasse. A loja bolorenta e de pé-direi-to alto começou a ficar mais parecida com um sótao do que com um local de comércio: altas pilhas de baldes galvanizados inclinadas para lá e para cá, esfregões encostados em prateleiras cheias de latas de cera de assoalho.

Pilhas de luvas de trabalho verdes se aproximavam como se fossem uma horda de mãos decepadas. Tropeçou ao contornar um display de cortadores de grama em liquidação e bateu a cabeça numa placa pendurada acima deles, tão grande e tão colorida, que teve dor de cabeça mesmo sem a ler (Grande venda de cortadores de grama; 10% de desconto em todas as marcas! Toro! Green Machine! Snapper! John Deere!). Garnett estava tão agitado que mal conseguia ficar em pé. Fixou os olhos num carrinho de mão que viu no final do corredor e avançou até ele simplesmente para se afastar da porta e da registradora, para se esconder e tentar pensar.

No devido tempo ele acabaria por se lembrar. Herbicida, é claro! Roundup, um galão de concentrado. Por pouco ele não riu alto. Estava se lembrando: Roundup, malathion, e pincéis marcadores para as árvores, que ele não precisava comprar, pois tinha alguns no celeiro.

- Mas o barulho é parecido com um grito ou com um zumbido? Porque quando a catraca solta, ele faz um barulho assim, ó.

Um dos irmãos à registradora estava conversando com uma clien­te. Devia ser o Big ou o Marshall. Dink ficava sempre à porta.

- Estou dizendo que nem cheguei a ouvir - disse a cliente - quando olhei, ele estava correndo a toda colina abaixo.

Herbicida e malathion. Viu um frasco de malathion numa pratelei­ra a meia altura, junto dos baldes galvanizados. Apesar de ser uma em­balagem spray, pequena para as suas necessidades, ele foi até ela e a agarrou para criar coragem. Tinha de se armar; era apenas um velho perdido numa loja de ferragens, sem conseguir decifrar as letras miúdas dos rótulos que examinava. O que mais havia na lista?

- Não existe nenhum outro maior nem mais violento. Ele é um monstro - disse a cliente.

- Pois este Big aqui é o maior especialista nesses tais grandes - disse Marshall.

- Ora, vocês não estão entendendo - disse a vozinha delicada.

Os irmãos riam ruidosamente, mas o coração de Garnett deu um pulo: ele conhecia aquela voz. Meu Deus do Céu, será que ele estava condenado a sofrer como um Jó renascido? Era Nannie Rawley.

Garnett ficou parado ao lado do carrinho de mão, no final do corre­dor, ouvindo com atenção. Como ela podia estar aqui, se há dez minutos estava vendendo froufrou no mercado menonita? Seria ela uma daquelas bruxas unitaristas, que voavam numa vassoura por cima do Delta do Ovo? Ele se curvou e procurou uma rota de fuga ao lado ou atrás de uns baldes amontoados. Devia ir embora, passar em casa, buscar a lista e retornar dentro de meia hora. Ainda sobraria tempo para o jantar no Pinkie, que ficava aberto até depois das quatro.

Mas não havia saída. A registradora ficava junto da porta, e lá esta­va ela, fazendo futricas, mantendo aquela conversa ridícula com o Dink, o Big e o Marshall. Teve ganas de tapar os ouvidos, de tanto que aquela voz lhe era desagradável.

- Não era um Snapper! - gritou um deles.

- Era, era um Snapper sim - respondeu ela, com indignação e bom humor.

Garnett sentou-se no carrinho e segurou a cabeça entre as mãos. Era insuportável.

Estava além de todas as suas expectativas com relação a Nannie Rawley, cuja única qualidade até agora era não ser fofoqueira.

- Nossa, só acredito vendo - disse Marshall, dobrando-se de tanto rir.

Como ela era capaz de fazer uma coisa dessas, logo com o seu vizi­nho Garnett? Como tinha a coragem de ridicularizá-lo em público com aquela história da tartaruga presa no pé? E tudo foi culpa dela!

- Foi culpa dela - disse baixinho, em seu indigno posto no carrinho de mão, tão baixinho que ninguém ouviu - tudo por causa do matagal dela.

Os três zurravam enquanto registravam as compras dela (e seriam necessários três homens para empacotar aquelas benditas compras?). Eles agiam como estudantes encantados com uma rainha da beleza, e não uma bruxa vestida com uma saia de algodão. Toda a cidade fora enfeitiçada por ela. Agora ela pedia conselhos a respeito de material para telhado! Será que esse tormento nunca teria fim? Aparentemente ela tencionava ficar lá fazendo gracinhas o dia inteiro, até o Pinkie fechar e as galinhas voltarem para o poleiro.

Era evidente que Garnett teria de passar por eles. De repente, ele se imaginou a salvo na cozinha de sua casa lendo as notícias sobre o campo no jornal. Era onde ele gostaria de estar, mais do que jamais desejara um amor ou graça nessa Terra ou além dela: em casa. Nem iria ao Pinkie. Agora não tinha mais sentido. Tinha perdido completamente o apetite.

Garnett se levantou e avançou em direção à porta, abrindo caminho com o frasco de malathion. Todos se voltaram para olhar, e ele passou diante do balcão, pisando duro, sem uma palavra, na maior dignidade.

- Mr. Walker! - gritou ela.

Passe bem a senhora, pensou ele. Te peguei com a boca na botija, sua galinha velha, você e seus amigos fofoqueiros. Tomara que seus pe­cados não te deixem dormir. Quase bateu outra vez a cabeça na placa de promoções de junho, mas se lembrou e se desviou - Deus seja louvado -no último instante. Chegou à pick-up, e foi só depois de estar dois quarteirões adiante do mercado menonita que ele sentiu se acalmarem as batidas de seu coração em seus ouvidos. E só depois de passar diante da Loja Black, já na estrada, quase em frente ao sítio de Nannie Rawley, ele se lembrou de que ela tinha um cortador de grama Snapper; que estava dando problemas; e que fora comprado na Irmãos Little.

E acabava de estacionar diante de casa quando se deu conta de ter furtado um frasco de malathion.

 

As andorinhas voavam descendo e subindo dentro do celeiro, decolando de seus ninhos na estrutura de" madeira em direção à porta e saindo para o céu brilhante e púrpura, onde o sol poente se refletia nas asas aerodinâ­micas, curvadas para trás. Eram como pequenos aviões de caça, que se irritavam à menor intrusão e expressavam sua ira em movimentos imitando balas. Toda noite Lusa entrava no celeiro para fazer a ordenha, e toda noite as andorinhas reagiam da mesma forma. Eram iguais a certas pessoas, pensou ela: juízo curto, grande ambição. O pôr-do-sol cancelava todos os ganhos anteriores e todo dia o mundo se aprontava para uma nova luta.

Seus pensamentos entraram numa espécie de transe enquanto ela ordenhava e observava as andorinhas a dar seus vôos ovais e repetitivos sobre a superfície da lagoa, que o sol poente cobria com uma folha de ouro. De repente, ela deu um pulo, assustando a vaca. O Pequeno Rickie, com seu metro e noventa e cinco, estava parado no vão da porta.

- Oi, Rickie. Como vai?

Ele caminhou até o poste ao lado do qual ela tirava até as últimas gotas o leite do úbere. Naquele ponto o teto era baixo. A cabeça do Pe­queno Rickie quase tocava o madeiramento do teto.

- Bem, eu acho.

- Ótimo. E a família? Rickie pigarreou.

- Tudo bem. O papai mandou dizer que não vem plantar tabaco no sábado. Quer dizer, amanhã.

- Não? - ela olhou para ele. - E por que não? O terreno está secando. Esta tarde fui aonde é para plantar o tabaco e a terra não está tão ruim assim. Eu até fui dizer a ele que tudo estava pronto para amanhã, mas não encontrei ninguém. Até que enfim, acho que a chuva passou de vez.

Rickie estava com um jeito de quem gostaria de estar em qualquer outro lugar, em vez de ali no celeiro, conversando com Lusa. Um traço de família.

- Acontece que o tio Herb vai estar muito ocupado com os bezer­ros. E o papai disse que você não estava assim tão interessada em plantar tabaco. Foi o que ele disse.

- Ah, sim, eu é que devo ir até lá me desculpar pela desastrada tentativa de ser dona do meu nariz e implorar de joelhos que eles venham plantar fumo para mim.

Ela via que estava sendo castigada: o tabaco fora idéia deles, e agora eles usavam isso contra ela. Lusa apoiou as mãos trêmulas sobre os joelhos para se impor um pouco de calma. O acesso de raiva assustara a vaca, e agora ela iria reter o leite durante algum tempo. Só lhe restava esperar. As vacas eram um exemplo de paciência.

Rickie deu de ombros sob a jaqueta jeans, num movimento caracte­rístico dos adolescentes para se ajustar ao corpo adulto. Não devia desa­bafar em cima do garoto: ele já a considerava quase histérica. Uma ruiva, como dizia Cole. O rapaz manteve os olhos nervosos em Lusa enquanto sacudia o maço para puxar um cigarro e acendê-lo. Já ia guardando quando se lembrou de lhe oferecer um, mas ela balançou a cabeça.

- Obrigada, eu não fumo. O que neste condado deve ser uma con­travenção.

Ele passou a mão pelos densos cabelos pretos.

- Acho que o papai não quer te ver ajoelhada implorando.

- Não. Desculpe, eu estava nervosa. Na verdade, eu não queria di­zer literalmente isso.

- Mas de qualquer jeito, não tem importância, porque o Jackie Doddard não entregou as mudas do meu pai. Acho que agora não deve ter mais nenhuma em todo o condado.

- Bem, então não há mais jeito. Meu prato está feito.

Levou as mãos de novo ao úbere da vaca e o manipulou carinhosa­mente. O celeiro estava em silêncio, não fosse o barulho ritmado do leite a bater no fundo do balde e o som sincopado das gotas que caíam dos caibros deteriorados do telhado nos pontos de infiltração de água. Cada gota fazia Lusa se lembrar do dinheiro necessário para consertar o celei­ro, dinheiro que ela não tinha, e que agora o fumo não lhe forneceria.

- Está com vazamentos - disse Rickie, olhando para o telhado.

- Acho que uns três mil dólares de vazamentos. Talvez mais, quan­do descobrirmos todos os caibros podres.

- Vai estragar o feno.

- Não precisa se preocupar. Acho que não vou colher feno para guardar no celeiro este ano. O enfardador está quebrado e o trator vai ser retomado pela financeira. Seria bom se as vacas se contentassem em comer neve este ano.

O Pequeno Rickie olhou para ela. O corpo grande tinha 17 anos, mas o rosto parecia mais jovem. O que ela estava fazendo, por que descarregava sua ironia agressiva sobre este menino? Ele não era mais do que um mensageiro. E ela estava matando o portador de más novas.

- Ei - disse ele - sinto muito pelo..., sabe... o Tio Cole...

- Obrigada. Eu também - expirou devagar -, ainda não se passou nem um mês. Vinte e sete dias. Parecem vinte e sete anos.

Ele se mexeu e se acomodou melhor ao poste de castanheira que sustentava o piso superior do celeiro. Em cima, onde se pendurava o tabaco, o celeiro era alto como uma catedral, mas aqui em baixo, onde ficavam os animais, era agradável e acolhedor, com aquele cheiro misto de estéreo, leite e grãos.

- Eu gostava de pescar com o tio Cole. Ele te contou? a gente matava aula e ia pescar truta no Monte Zab. E tão bonito lá em cima! Tem umas árvores tão grandes que a gente fica tonto só de olhar para elas.

- Vocês dois matavam aula? Lusa fez as contas e completou:

- Quando você entrou para o primeiro ano, o Cole já devia estar no ginásio. Nem imaginei que fosse assim. Ele era um amigão seu, como que um irmão mais velho.

-É.

Rickie olhou para baixo, procurando onde bater a cinza do cigarro.

- Era ele quem me ensinava as coisas. Como a gente fala com as moças, essas coisas todas.

Lusa levou a mão aos olhos e se virou: não queria chorar na frente do Rickie.

- E. Isso ele sabia fazer melhor do que ninguém.

A vaca mugiu: um pequeno protesto contra o silêncio no balde. O bezerro na baia ao lado começou a chamar como se somente agora tivesse percebido ser uma injustiça lhe roubarem o leite.

- Ordenhando, hein? -É.

- Você é boa nisso.

- O Cole me ensinou; dizia que eu tinha talento. Meio chato ser bom numa coisa tão boba, não é?

- Não acho. Quer dizer, os animais. Eles sabem o que é o quê. Eles não se enganam como as pessoas.

O bezerro ao lado continuava a protestar e ela cantarolou para acalmá-lo:

- Calma, sua mãe vai voltar num minuto.

Ele se acalmou e Lusa continuou a ordenhar. Era um trabalho que dava tranqüilidade. Às vezes ela se sentia tomada pelo estado de espírito de sua vaca Jersey - um espanto humilde diante do fato de estar nesse celeiro ao final de cada dia. Lusa realmente gostava da companhia dela, e se sentiu tentada a lhe dar um nome, mas Cole observou que um dia os dois iam comer o bezerro dela.

- O tio Herb está na fazenda? Ele fala que ele e as vacas são como óleo e água. Ele usa aquelas máquinas de ordenhar. Liga a vaca no tanque e seca o leite.

- Pobre vaquinha. Acho que elas não ligam. São vacas, nada mais.

- É verdade.

- Quantas vezes por dia você tira leite? Duas vezes?

Ela reparou no sotaque. Talvez fosse um resquício do inglês antigo, que permaneceu nessas montanhas isoladas.

- Só ordenho uma vez por dia. Para mim é mais que suficiente. Antes de você entrar, eu tinha acabado de decidir que esta seria a minha última ordenha.

- E mesmo?

- E. Vou soltar esta coitada no pasto com o bezerro dela, e o leite vai para o estômago certo. Para o meu, não faz muita diferença.

- Então você não gosta de leite?

- Acho que é o leite que não gosta de mim. Eu só ordenhava as vacas por causa do Cole, ele gostava de leite fresco. Eu gosto de fazer iogurte, ou lában, em árabe. Disso eu vou sentir falta. Mas tenho bastan­te manteiga e queijo congelados, o suficiente para o inverno todo, e não sinto falta de leite fresco. Será que sua família não quer um pouco?

- Não, o tio Herb manda um galão todo dia. A gente toma. Princi­palmente eu.

- Muito bem, melhor para você. Não me criaram na base de tomar leite todo dia, como você.

Lusa estava terminando. Desatou a cabeça da vaca e a empurrou cuidadosamente para trás. A mansa Jersey foi diretamente para a baia onde estava seu bezerro e Lusa abriu a porta para ela, dando-lhe um tapinha de despedida nas ancas. Sentiu-se ridícula por estar com os olhos marejados.

- E. Mamãe disse que você era... diferente.

- Então ela acha que eu sou diferente? Que bom.

Lusa bateu as mãos na calça e tirou pedaços de feno da blusa que usava para trabalhar, branca e manchada, que chegava até os joelhos. Era uma das camisas de Cole sobre a camiseta de veludo ferrugem que ela punha para se sentir bonita por baixo.

- Não, quer dizer: de outra nacionalidade.

- Eu entendi, Rickie: todo mundo tem uma nacionalidade.

- Eu não. Eu sou só americano.

- E é por isso que você colou uma bandeira confederada no pára-choque do seu carro? Você sabe que a Confederação tentou derrubar o governo americano, não é?

- Então eu sou um americano do sul. E você: o que você é?

- Boa pergunta. Acho que eu sou uma polono-árabe-americana.

- Nossa. Não parece.

- Não? E com o que você acha que eu me pareço?

Ela parou sob a luz, braços estendidos a segurar o poste em que a vaca estava amarrada.. Tinha o cabelo encaracolado e desalinhado, por causa da umidade, alourado com uma auréola cor de morango pela luz forte. Pequenas mariposas brancas voavam em círculos em cima da lâmpada. Rickie examinou Lisa polidamente.

- Você parece uma mulher branca.

- a família de minha mãe era palestina e a de meu pai era judia polonesa. Sou a ovelha negra da sua família, e apesar de tudo eu ainda me bronzeio ao sol e ninguém tem nada com isso. Como você vê, Rickie, ninguém conhece um livro pela capa.

- Eu ouvi a mamãe e a tia Mary Edna falando disso, que você era de um desses outros cristianismos.

- Eu até imagino a conversa.

Pegou uma pá e começou a raspar o chão no ponto em que fez a ordenha, mas Rickie tomou a pá das mãos dela e se desculpou por tê-la deslocado com o ombro. Ela nunca se acostumaria com esse povo: rudez e polidez numa mistura incompreensível. Ele raspou o estéreo e fez um pequeno monte, que levou, uma pá de cada vez, para um outro monte fora do celeiro.

- Não era nada contra a senhora, tia Lusa - disse ele no escuro, assustando-a.

Já fazia muito tempo que ela não ouvia o próprio nome dito em voz alta. Vinte e oito dias, para ser mais exata. Ninguém mais na família o pronunciava. Rickie voltou ao local iluminado da ordenha.

- Foi uma vez que eles estavam falando como ia ficar se você e o tio Cole tivessem filhos. Foi antes de...

- De ele morrer. Quando a gente ainda podia pensar em ter filhos.

- É. Acho que eles só estavam pensando, sabe, como ia ficar a parte da igreja. Ia ser difícil para os meninos.

Ela recolheu o balde e o pano que usava para limpar o úbere da vaca, e tampou o balde de leite de aço inoxidável. A borda estava quente.

- Para mim não foi difícil vir de uma família com religiões diferen­tes. De qualquer forma, não éramos devotos, posso lhe garantir. Meu pai odiava o pai dele e como que deu as costas à religião dele. E eu não sou uma boa muçulmana. Se fosse, você veria eu me voltar nessa direção -girou lentamente procurando o leste - e rezar cinco vezes por dia.

- E vocês rezam virados para o galinheiro?

- Virados para Meca.

- E onde é isso? Na Carolina do Norte?

Ela riu.

- Arábia Saudita. Foi onde nasceu o Profeta Muhamad, e portanto é para lá que enviamos nossas orações. E antes de rezar é preciso lavar as mãos.

Rickie achou graça nisso.

- Vocês lavam as mãos antes de rezar?

- Você ainda não viu nada de religião. Ninguém pode beber nem fumar e as mulheres têm de se cobrir por inteiro, menos os olhos.

Ela pôs as mãos diante do rosto, e como se olhasse através dos dedos, disse:

- Um homem que vê o pé de uma mulher, ou que mesmo consegue vislumbrar a forma dela, vai ter pensamentos impuros, entende? E a culpa é dela.

- Nossa. É duro. E eu pensava que a tia Mary Edna era dura. E você acredita nisso?

- O que você acha? Não, mamãe nem usava véu. Os pais dela já eram bem ocidentalizados quando saíram de Gaza. Mas tenho primos que acreditam.

- É mesmo?

- É. A versão americana é um lenço e uma capa de chuva comprida. Eu era obrigada a me vestir assim toda vez que ia à mesquita em Nova Iorque com os parentes da mamãe.

Ele arregalou os olhos.

- Você já esteve em Nova Iorque?

Ela tentou imaginar como ele supunha que era um lugar como aquele. Tão longe da verdade quanto estava esse celeiro na cabeça dos primos do Bronx.

- Umas cem vezes. Meus pais vieram de lá, os dois. Nós sempre voltávamos para as festas de família. Acho que a combinação entre meu pai e minha mãe era esquecer as culpas e comemorar os feriados. Princi­palmente com festas.

Lusa sorriu, ao se lembrar dos primos, da música e das loucas dan­ças no meio das cadeiras do jardim, festivais de amor e de adaptação.

- Cresci comendo do bom e do melhor.

- E eu pensava que quem não acreditava em Deus adorava o diabo ou coisa parecida.

- Calma, Rickie!

Ela riu e se sentou no banco de ordenhar.

- Você não acha que pode haver mais uma ou duas opções entre dois extremos?

Ele deu de ombros, embaraçado.

- Talvez.

Era a deixa para mandar esse rapaz de volta para casa. Mas, e de­pois? Esperar que o Cole a explicasse para a família? Seu corpo doía com o peso da solidão. Não havia ninguém para fazer isso por ela. Apertou as duas mãos entre os joelhos e ergueu os olhos para ele.

- Quem você acha que não acredita em Deus? Os judeus acreditam em Deus. Os muçulmanos acreditam em Deus. Para falar a verdade, a maioria dos judeus e todos os muçulmanos que eu conheço passam mais tempo pensando em Deus do que vocês por aqui. E muito menos tempo fofocando na igreja.

- Mas são deuses diferentes, não é? Não é o verdadeiro, o nosso.

- E o seu mesmo. Exatamente o mesmo Deus. O nome técnico é Jeová; nisso, as três facções concordam. Só existe desacordo quanto ao que cada filho herdou, ou deixou de herdar, dos bens da família. A mesma história de sempre.

- É mesmo?

- Você sabia que a maioria dos povos do mundo não são cristãos, Rickie?

- Verdade?

Ele deu um sorriso de lado tal como um garoto a quem tentam tapear na escola com uma pergunta capciosa. Então acendeu outro cigarro para recuperar a dignidade e ergueu as sobrancelhas numa interrogação.

- Claro, pode perguntar - disse ela.

- Fala alguma coisa em judeu.

- Hum... Talvez você queira dizer iídiche ou polonês.

- É. Qualquer coisa noutra língua.

- Não sou boa nem em iídiche nem em polonês. Minha bubeleh viveu conosco até morrer - a mãe de meu pai -, mas ela era, como direi, secreta. Papai só deixava ela falar inglês em casa. Mas, vamos ver.

Ela ensaiou uma frase na memória e então recitou em voz alta: Kannst mir bloozin kcdteh millich in toochis.

- E o que quer dizer?

- Vá soprar leite frio na minha bunda. Ele deu uma gargalhada.

- Sua vó te ensinava isso?

- Ela era uma senhora muito brava. O marido tinha fugido com uma moça de boate. E melhor me perguntar sobre o árabe; minha mãe me ensinou uma porção de coisas.

- Então fala uma.

Ru-uh chum hawa. Quer dizer: vai cheirar o vento. Ou seja, cai fora.

- Ruh chum hawa - repetiu ele com um sotaque horroroso, mas Lusa se comoveu com o esforço. E a disposição de ficar ali com ela falando de coisas estranhas.

- E mais ou menos isso. Muito bom. Rickie deu um sorriso condescendente.

- Então - disse ele enquanto soltava a fumaça - vocês tinham outros natais? Uns dias em que vocês ganhavam presentes, essas coisas?

- Outros natais, outras páscoas. É isso. Mas não eram presentes, havia mais é comida. O Ramada dura um mês e não se come durante o dia, só à noite.

- Brincadeira! E você ficava com fome o dia todo?

- Eu devia. Mas geralmente não. Não tomava o café da manhã, e tentava ser boazinha o mês inteiro. Mas o melhor vinha no final: uma festa enorme para compensar tudo o que a gente deixou de comer naquele mês.

- Como o nosso dia de ação de graças?

- Muito melhor. Dura três dias.

- Nossa! Uma leitoada.

- E mais uma cabritada. Minha família definitivamente não come car­ne de porco - os dois lados, nem os judeus nem os árabes. Mas adoramos cabrito. As pessoas pensam que no Oriente Médio se come carneiro, mas a verdadeira tradição é o quozi mahshi, um cabrito novo, alimentado com leite. Mamãe e eu sempre visitávamos os primos árabes para o Id-al-Fitr, no fim do Ramadã, e eles assavam um cabritinho no braseiro do quintal. Quatro meses depois há uma festa, Id-al-Adah, que exige um cabrito maior.

- Acho que não gosto de cabrito.

- Não? E você já comeu?

- Nã-ão.

- Então você não sabe o que está perdendo. Quozi mahshi, hum... parece com uma carne de bezerro tenra, só que é mais gostosa.

Ele fez uma cara de dúvida.

-Mas eu achava que vocês criavam cabritos, Rickie. O que são aquelas coisas com chifres que eu vi nos fundos da sua casa?

- Ah, aquilo é o projeto 4-H.

- E no fim vocês não comeram o projeto 4-H?

- Não. Acho que eles ficam lá só para comer capim.

- Eles são animais de leite ou de corte?

- Deviam ser de corte. A idéia era vender na feira estadual enquan­to ainda pesassem menos de quarenta libras. Os juizes apalpam as costelas e dão prêmios.

- E os seus cabritos foram premiados?

- Eram bons. Mas ninguém compra cabrito por aqui. Ora, aqui ninguém aceita cabrito nem de graça. Eu sei, porque eu bem que tentei.

- Mas eu vi cabrito por tudo quanto é lado aqui no condado.

- Bem, houve aquela febre de cabritos de corte uns tempos atrás, no 4-H. O senhor Walker inventou de criar cabritos, não sei bem por quê, e agora metade dos campos daqui está cheia de cabritos que ninguém quer.

- E quem é o senhor Walker?

- E tio ou primo nosso. Por casamento.

- Todo mundo num raio de dezesseis milhas é tio ou primo de vocês.

- É, mas o senhor Walker é consultor de criação do 4-H. Ou era, quando eu era pequeno. Hoje ele já deve ter aposentado. Ele tem uma fazenda na estrada 6, toda coberta de mato, vê se pode. Me disseram que ele planta castanheiras.

- Todas as castanheiras morreram há cinqüenta anos, Rickie. A castanheira americana foi extinta por causa de um fungo.

- Eu sei, mas o povo diz que ele está plantando castanheiras. Não sei. Ele sabe tudo sobre plantas. Todo mundo diz que ele devia ter sido consultor para lavouras, não para criação. Foi por isso que ele atrapalhou os meninos com aqueles bodes todos.

- E você acha que eu consigo comprar um ou dois cabritos baratos para dar uma festa? Que diabo, se eu convidar a sua mãe e suas tias, vou escandalizar a família toda com os quozi mahshi e imnm bai-íldi.

- Que que é isso?

- O alimento dos deuses, Rickie. Cabrito assado e legumes assados. Na verdade, imam bai-tldi significa "o imperador desmaiou". Que é exata­mente o que a sua tia Mary Edna vai fazer quando vir o cabrito olhando diretamente para ela no meio da mesa de castanheira da cozinha da sua avó.

Rickie riu. Tinha um riso maravilhoso, muito aberto, daquele tipo de riso que mostra os molares. - a senhora nem precisa do senhor Walker para conseguir uns ca­britos. Basta anunciar no jornal: "Precisa-se de cabritos, grátis. Entregar em minha casa". Eu te juro, tia Lusa, que no dia seguinte teria uns cem cabritos diante da sua janela comendo capim.

- Você acha?

- Eu juro que sim.

- Eles vão dar conta dos espinheiros e do mato, que ameaçam os campos de feno. Eu poderia me livrar das vacas. E não teria de aprender a operar a roçadeira.

- E verdade. O mato ia ficar baixinho. E eles não precisam muito de feno também; conseguem se manter muito bem só comendo mato, prin­cipalmente no inverno.

- Sério? Meu Deus, então eu não preciso mais de um enfardador para guardar o feno? Há muito tempo não me dão uma idéia tão boa.

- Mas é preciso um pouco de feno. Para quando as coisas ficarem meio ruins. Só que não vai ser muito.

- Ele acendeu outro cigarro na ponta do que ainda estava fumando. Ela deu dois passos e lhe tomou o maço.

- Posso provar?

- Claro. Pegue um câncer.

- Acho que já ouvi falar dele.

Deu uma risadinha sem graça enquanto examinava o buraco no maço.

- Mas hoje ganhar mais alguns anos depois dos setenta não é uma prioridade para mim. Nas circunstâncias.

Tirou um cilindro branco e olhou para ele. Tinha o cheiro do Cole.

- Para falar a verdade, nem a perspectiva de chegar aos trinta anos me excita.

- É a mesma coisa que o pessoal no colégio sente. É por isso que a gente fuma.

- Interessante.

Ela pôs o cigarro na boca e se inclinou em direção ao isqueiro que ele afastou, provocando-a.

- E a primeira vez que a senhora põe um cigarro na boca?

- É. Você está corrompendo esta velha senhora.

Tentou aspirar a chama, mas a garganta reagiu e ela tossiu. Rickie riu. Ela abanou a mão diante do rosto.

- Não sou boa nisso, é evidente.

- É muito ruim, de verdade. É melhor nem começar, tia Lusa.

- Você é muito bondoso, Rickie. Obrigada por tomar conta de mim.

Seus olhos encontraram os dele por um segundo. Era um jovem impressionante, uma bela combinação da pele morena do pai com a beleza da família Widener. Lusa foi atraída, e ao mesmo tempo morti-fícada por seus pensamentos, diante do peito e braços nus do rapaz, com vontade de descansar ali a cabeça, ser abraçada por ele. Será que ela estava ficando louca? Isso era celibato, loucura, ou o quê? Olhou para os tênis dele.

- Não quero morrer - disse ela, um pouco abalada -, não quero dar essa impressão. Estou deprimida, mas acho que é normal, numa viúva. Dizem que passa. Eu só acho que se o fumo é o meio de subsistência desta região, eu poderia colaborar no projeto.

Nã... não é preciso.

Ele tragou e expirou a fumaça, fazendo uns sons sibilantes com o cigarro. Olhou de viés para ela.

- Tia Lusa, espero que não me entenda mal, mas senhora não é nenhuma velha. O pessoal na escola, os meus amigos, sabe? Eles viram você na Kroger's e disseram que você era ótima.

- Eu> - ela ficou rubra.

- Sem querer ofender.

- Não fiquei ofendida. Sei que você e o Cole matavam aula e que ele ensinou você a conversar com as moças. Sempre me esqueço de que não sou sua mãe.

Ele sorriu e balançou a cabeça.

- Você não é minha mãe.

- Obrigada - disse ela num tom forçado, sentindo-se culpada pelos nomes que dava à mãe de Rickie: dentuça, Lois dos pulmões de couro -, sua mãe deve ter uma alma melhor que a minha.

- Se esse é o nome que você dá. Minha mãe acredita que não se deve blasfemar, que é preciso dormir bem, e que tudo na cozinha deve ser enfeitado com patinhos.

- E como você sabe que eu não acredito nessas coisas?

- Eu já vi a sua cozinha.

- Mas olhe o que eu sei fazer. - tragou um pouquinho de fumaça, mas o principal foi a pose de vamp que ela fez, cigarro preso entre os dedos, cabeça envolvida pelos braços.

- Qual a idade dela, se você acha que ela não se importaria se eu perguntasse.

- Deixa ver - olhou para o teto -, acho que ela tem uns quarenta e um, quarenta e dois, por aí. A tia Mary Edna é bem mais velha. Deve ter uns cinqüenta e qualquer coisa.

- E mais ou menos o que eu pensava que a Magnificent Eldest tinha. E Emaline vem entre as duas.

- E. Tia Emaline é mais velha que a mamãe. E a tia Hannie-Mavis é mais moça. Ainda não fez quarenta. Sei disso porque ela estava enchen­do a mamãe por ela já ter passado dos quarenta.

- E a Jewel? Está entre sua mãe e a Emaline?

- Não, tia Jewel é a caçula. Ela veio um pouco antes do Cole; uns dois anos, mais ou menos.

- a Jewel? Tem certeza?

- Tenho. Ela não é tão velha assim. Eu ainda era menino quando ela casou; fui eu que levei as alianças. Não lembro bem, mas eles têm aqueles retratos que me matam de vergonha. Ainda bem que ninguém mais tira eles da gaveta desde que o tio Shel fugiu com a garçonete.

- Ah, é? Que falta de sorte.

- Puxa vida, yuk-yuk-yuk.

Ele deu um tapa na cabeça, e Lusa riu. Sentia-se alegre, talvez por causa da nicotina, mas também por causa da conversa, que a deixava impulsiva. A última vez em que conversara com um rapaz de 17 anos ela provavelmente estava no banco traseiro de um carro.

Ela ficou mais séria ao pensar em Jewel. Não a respeito da fuga de Shel; ela ter 30 e aparentar 50 anos.

- Pensei que ela fosse mesmo a mais nova. Mas de uns tempos para cá comecei a achar que ela parece ser mais velha.

- Ela é a filha mais nova. Minha mãe e as outras sempre tiveram ciúme dela, por causa do Cole. Ele era o favorito de todo mundo, não é? E ele e a Jewel eram amigos inseparáveis.

- Ah - disse Lusa, pensativa - e então eu apareci. E todos ficaram com raiva de mini.

- Mas ninguém tem raiva da senhora, tia Lusa.

- Claro que têm. E você não precisa fingir.

Ele olhou para ela, e naquele momento pareceu mais homem que menino, como se compreendesse o que era a dor. Ela sentiu seu coração se acelerar, mas não era desejo, ou alguma espécie de amor pelo homem que um dia ele se tornaria. Sabia como ele iria ser com a namorada: doce e responsável. Provavelmente igual ao Cole dos 17 anos. Ela se apoiou na parede do celeiro, cabeça encostada nas tábuas, os dois a contemplar, através da porta, a noite que caía. Felizes por um instante apenas por estarem onde estavam. O lago estava da cor de laranjas ensangüentadas.

- Então vai ser assim - disse ele.

- Vai ser assim o quê?

- Você põe o anúncio. O povo começa a aparecer para deixar os cabritos, e eu vou ser o primeiro. Os dois que eu tenho já são seus.

- Obrigada.

- E então: o que você vai fazer com seus quinhentos cabritos? Lusa fechou os olhos sentindo o gosto e o cheiro de cabrito assado.

A última vez em que comemorara o Id-al Fitr fora muitos anos antes, quando sua mãe ainda estava alegre e bem, era uma pessoa com quem Lusa gostava de conversar. Com quem gostava de cozinhar. Uma comemoração de inverno. Na época, o calendário muçulmano estava 11 dias atrasado em relação ao Natal. Mas agora o Id-al Fitr seria bem perto do Natal.

Tornou a abriu os olhos.

- Rickie, você consegue inseminar um rebanho de cabras de uma vez só?

Ele ficou rubro, e ela rompeu em risadas.

- Você não - disse ela quando conseguiu falar -, melhor dizendo: se você tivesse um bando de cabras e também um... como é que se chama isso... um cabra macho?

- São cabras e bodes. Se forem animais de corte.

- Cabras e bodes, certo. Então, o que acontece? Não fique verme­lho, Rickie!

Deu um tapa no braço dele. Ele ria igual menino.

- Estou sendo prática. Acabei de ter uma idéia. Estão chegando duas grandes comemorações em que o principal prato é cabrito; serão agora, no fim do ano. E isso quer dizer que o Id-al-adha vai ser em fevereiro, março, ou início de abril a mesma época da Páscoa dos católicos ortodo­xos e dos judeus. Nem acredito!

Falava depressa, contando nos dedos, excitada.

- Preciso ver o calendário para ter certeza. Quanto tempo leva para se fazer um cabritinho?

- O tempo de gestação? Uns cinco meses, ou um pouquinho menos. Ela contou nos dedos.

- Então vai ser novembro: perfeito! Mais um mês para eles engor­darem. Você vai providenciar todos esses cabritinhos, você sabe como. Não fique vermelho!

Ela alisou a blusa, fez uma expressão séria e falou dando uma tona­lidade grave à voz: - Nós dois somos fazendeiros, Rickie. De fazendeiro para fazendeiro, estou perguntando o que você acha. Será possível fazer um bode gerar uma porção de cabritos de uma só vez?

Rickie se dobrou, explodindo em risadas.

- Rickie, estou falando sério. Ele passou a mão nos olhos.

- Acho que dá. A gente dá hormônios, essas coisas.

- Não, não, não. Esses cabritos são para uma comemoração religiosa. Não podem ter hormônios. Não há outro meio?

- Já tem muito tempo que eu fiz o 4-H, tia Lusa.

- Mas você sabe muito sobre criação de cabras. Como funciona?

- Eu acho que funciona se as cabras forem virgens e você coloca elas no campo com um bode com elas entrando todas no cio ao mesmo tempo. Não tenho certeza absoluta, mas acho que é assim. Você devia perguntar ao Mr. Walker.

- Ah, muito bom. Eu vou até um velho que nunca vi e pergunto como é a vida sexual das cabras! - ela e Rickie explodiram outra vez em risadas, fazendo a vaca mugir na baia atrás deles. Lusa tentou conter a si mesma e ao Rickie, mas teve de se agarrar ao poste para não cair.

- Tome, leve isso para longe de mim - disse ela, entregando-lhe a guimba do cigarro - antes que eu ponha fogo no meu celeiro.

Ele amassou o cigarro na sola do sapato, passou a mão pelo cabelo e esticou o corpo. Ela viu que ele olhou duas vezes para a porta aberta. Já era noite fechada, escuridão total.

- Já é hora de você ir para casa.

- É. E mesmo.

- Diga ao seu pai que, em relação ao fumo, tudo bem. Ele tem razão, era o que eu queria, não plantar fumo este ano. Agradeça a ele por me ajudar a manter meus princípios.

- Está bem.

- Agora, vá - deu-lhe um tapa na coxa com as costas da mão -, sua mãe vai achar que eu prendi você para ser meu refém.

- Não vai, não. O que eles têm é cerimônia com você, a família toda.

- Eu sei. Sou uma estranha que tomou conta da casa da família. Querem a fazenda de volta, o que eu acho certo. Todo dia, quando me levanto, penso em empacotar minhas coisas e ir embora, sem nem me despedir.

Ele ergueu as sobrancelhas.

- Nossa, você ia ofender muita gente.

- Talvez seja exatamente isso o que eu queira.

- Mesmo que você fosse embora, acho que a gente não ia ficar com a terra. Papai, o tio Herb e a tia Mary Edna logo iam acabar tendo de entregar para o banco.

- Era o que eu também estava pensando. As famílias perdem a terra por causa de milhões de razões diferentes. Os pais do meu pai tinham uma fazenda maravilhosa na Polônia, e a perderam por serem judeus. E os de minha mãe perderam a deles por não serem judeus. Não dá para entender.

- E mesmo? Que tipo de fazenda?

Ela o olhou, surpresa com o interesse dele.

- a família Maluf tinha plantações de oliveira à margem do Rio Jordão, pelo menos foi o que me disseram. Não sei os detalhes; já foi há muito tempo. Mamãe nasceu em Nova Iorque. Mas meu pai nasceu na fazenda dos pais dele, na parte central da Polônia, que dizem parecer saído de um conto de fadas. Acho que plantavam beterraba.

- Que interessante! Você vem de uma família de gente do campo. Ele a mediu com os olhos como se de repente ela tivesse ficado mais alta ou mais velha:

- Nunca imaginei.

Ela então percebeu que ele não estava interessado no histórico soci­al dela, mas em lavouras. Ela já começara a entender esse pragmatismo e a suspeitar que, se pudesse assimilá-lo - se ela quisesse -, poderia ser parte desse lugar. Deu de ombros.

- E daí? Sou descendente de gente do campo. Não faz a menor diferença.

Ele continuou a olhar para ela.

- Você vive falando em ir embora, todo mundo diz que você vai embora, mas você fica. Tem de ter uma razão.

Ela deu um suspiro, cruzou os braços no peito e esfregou os cotovelos.

- Se existe lógica no que eu faço, juro que gostaria de saber. Sou como uma mariposa, Rickie, eu vôo em espiral. Você já viu como as mariposas voam?

Apontou a cabeça para a lâmpada. Em torno dela, brilhavam hordas de pequenas asas frenéticas no arco de luz, desenhando trajetórias circu-lares no ar. Depois que eram notadas, elas apareciam por todos os cantos: como moléculas visíveis, pensou Lusa, que enchem totalmente o espaço com suas trajetórias curvas. Rickie pareceu surpreso ao perceber que as mariposas estavam em toda parte. Ele olhou para o alto com a boca ligeiramente aberta.

- O bezerro corre assim quando não acha a mãe e fica com medo.

- Elas não estão perdidas. As mariposas não usam a vista como nós; usam o olfato. Ficam sentindo o cheiro do ar, comparando amostras de lugares diferentes, muito depressa. E assim que elas se orientam. E assim que elas chegam aonde precisam, mas levam a vida inteira para chegar lá.

- "Vá cheirar o vento". Foi o que você disse.

- Ru-hu shum hawa. Exatamente. Essa sou eu. Não consigo andar em linha reta.

- E quem disse que é preciso?

- Não sei, é embaraçoso. As pessoas me observam. Estou tentando descobrir como tocar uma fazenda fazendo tudo errado. E tenho um casamento em retrospectiva, que começou pelo fim e foi recuando, em que estou conhecendo o Cole em todas as idades antes de eu o conhecer.

Ela não acreditava que Rickie estivesse entendendo, mas pelo menos ele era respeitoso. Ficaram juntos a observar a dança louca das asas prate­adas no ar frio: mariposas, tortricídeas, florestais, cada uma delas ignoran­do as outras, a percorrer seu próprio caminho, urgente e sinceramente.

- Tia Lusa, você se preocupa demais.

- Sou viúva, tenho uma fazenda endividada, este celeiro está quase caindo sobre mim. Você tem razão. Por que me preocupar?

Ele riu.

- Com a família, quero dizer. Eles só têm ciúme porque o tio Cole ficou louco por você. Mas quem não ia ficar? Você é muito bonita e inteligente.

Ela virou o rosto para ele com um sorriso reprimido e tristonho, para não chorar.

- Obrigada por me dizer isso. Ele deu de ombros.

- E olha aqui, Rickie, muito obrigada por... não sei. Por me fazer rir. Você não faz idéia da importância dessa risada..

- Está bem. Mas você vai precisar de ajuda para tocar esse negócio das cabras.

- Ah, eu estava só sonhando. E o desespero.

- Mas você estava pensando em quê? Conta.

De repente, ele era um igual, um sujeito sério e atencioso. Ela viu nele um pouco do velho Cole que havia conhecido: não nos olhos, que eram escuros, mas na seriedade do rosto.

- Bem eu estava pensando: conheço um açougueiro em Nova Ior­que, o Abdel Sahdi, que é primo de minha mãe. Ele vende... eu nem sei, mas talvez uns mil cabritos por ano. Talvez mais.

Rickie assoviou; um assovio longo e baixo.

- Pois é. Nova Iorque. Cheia de gente, que come o tempo todo. É o que mais existe por lá. Mas os cabritos são todos vendidos no período de festas. De uma vez só. Por isso, ele não quer cabritos o ano todo. Precisa de quinhentos na mesma semana. Se for no inverno, é preciso encomendar com muita antecedência, e custa uma fortuna. Você não acredita o quanto as pessoas pagam por um cabrito alimentado a leite, na época das festas. É uma das regras gerais que não são aplicáveis nessas ocasiões.

Ele a ouvia atentamente. E ela começou a ouvir-se com mais atenção.

- Rick. Você não se importa se eu deixar de lado esse "Pequeno Rickie", não é? Afinal, você não é tão pequeno assim.

- Claro que não. Bem que alguém podia enterrar esse maldito apelido.

- Muito bem, Rick. Diga-me: existe jeito de produzir cinqüenta ou sessenta cabritinhos no final de dezembro? E se quatro meses depois, na primavera, for preciso arranjar o dobro disso?

Sério, ele não hesitou ao responder:

- Você entende de vermes, de cetose, gestação, essas coisas, não entende? É tudo a mesma coisa. Você já criou gado alguma vez?

Ela ergueu as sobrancelhas para ele, mas ele já estava longe, mer­gulhado em seus cálculos.

- Muito bem. Serão duas estações. Não podem ser as mesmas fê­meas para as duas parições.

- Certo.

- Como é a sua cerca? Uma cerca que não retém água não serve para cabritos.

Ela riu.

- Acho que não tem problema. Minha cerca é eletrificada.

- E mesmo? Isso é ótimo. Quando foi que você eletrificou?

- Nem sei mais; foi há muitos anos. Foi o Cole. A cerca dá volta em todo o pasto principal, lá no alto. O Cole teve uns problemas com umas vacas desgarradas.

- Pois isso é muito bom. Fica caro eletrificar uma cerca.

- Sei disso, ele me contou. Mas também disse que, se aparecesse alguma vaca no jardim da Mary Edna mais uma vez, ele ia perder a mascu-linidade.

Rick riu.

- Muito bem, minha senhora. Acho que estamos prontos. As cabras vão crescer muito bem naquele mato; não vai ser preciso ração nem feno, só um pouquinho, como forragem, depois que nevar. Mas para parir em novembro, elas vão precisar de abrigo. Se estiver muito frio, as mães terão de vir para o celeiro na hora de parir. Você vai ter de construir uns cercadinhos para elas.

Lusa olhou para o teto do celeiro, avaliando o espaço acima. A porta da galeria principal do celeiro se abria para a colina. Ela poderia mudar a cerca para dar acesso ao pasto principal.

- Se não estiver cheio de fumo, nem de feno, vai haver espaço sufi­ciente.

- O segredo vai ser esse. Fazer elas entrarem no cio e parir logo que ficar frio. Geralmente não é assim. Para falar a verdade, nunca ouvi nin­guém falar de uma coisa dessas.

- Então é por isso que o cabrito é tão caro no meio do inverno.

- Claro. Eles valem ouro para quem compra.

- Mas você acha que eu consigo? Ele foi cauteloso:

- E possível. Acho que todo mundo no condado vai dizer que você é louca só de tentar.

- E se ninguém, além de você, eu e aquela vaca, soubesse o que eu estou planejando? E, principalmente, se ninguém souber do meu primo Abdel e dos preços em Nova Iorque?

- Nesse caso, eles vão dizer que você enlouqueceu por causa desse tanto de cabritos de estimação. Vão pensar que você é uma moça da cidade que vive com o nariz enfiado nos livros, e não tem nenhum juízo.

Ela sorriu para o aliado conspirador. "Não é problema. Isso eles já pensam agora".

 

Entro de seu casulo escuro, Diana ouviu barulho de homem na cabana: porta se abrindo, botas batendo no chão para deixar a terra do lado de fora, um ruído oco de lenha que cai no chão. Em seguida, o rangido da porta do fogão e o estalo das primeiras chamas a serem de leve trazidas à vida. Logo a cabana estaria aquecida, expulsando porta afora o frio daquela manhã de junho, a ser vencido pelo sol da manhã. Ela estendeu os membros sob as cobertas, sorrindo secretamente. Levantar-se numa cabana aquecida numa manhã gelada sem ter de ir lá fora para buscar lenha era muito confortável. Sentiu alguma coisa dura encostar na sua perna: era a aresta plástica de uma das cordas de camisinhas emendadas que ele tinha, e que se escondera no fundo da cama, retorcida como uma cadeia de DNA. Ela ficou surpresa na primeira vez em que ele elaborou aquelas vistosas correntes de borracha, feitas de elos nas cores primárias, qual uma procissão vinda de um infinito carretei de camisinhas. "Este é o meu rolo", dissera ele, completamente à vontade, tirando-os da mochila tal como um mágico tira da manga os lenços atados. Disse que os achara numa clínica que os oferecia aos clientes. Ela não gostou da idéia de ele entrar num desses lugares para se tratar de Deus-sabe-o-quê. Não estava preocupada com a triste realidade desse homem alto, nem com o fato de ele ser um migrante sazonal em busca de trabalho ocasional, pesca de salmão, entalhe de cabos de faca, para ganhar algum dinheiro. Um macho em busca de uma cama para se abrigar, suspeitava ela. Fez tudo para expulsá-lo, o que se manifestou num acesso de raiva dentro do tronco oco de castanheira, e apesar de tudo ele ainda continuava em seu território. Saíra do Wyoming há muitos anos - com uma carabina de caça, perseguindo sua paixão, que eles não discutiam. Ele falava de muitas outras coisas, e ela engolia as histórias dele como se fossem pedaços de alimento vivo, levados ao ninho: a aurora boreal a se abrir qual fumaça de charuto, no céu do Ártico. As pétalas cor de parafina de uma flor de cacto. O Oceano Pacífico e as lagoas de maré que ela nunca havia visto, a não serem versões artificiais no aquário de Chattanooga. Ela se lembrou das anêmonas cor-de-rosa que ondulavam naquela água. Tal como ela, quando ele a observou e os seus tentáculos sensíveis de pensamento que ondulavam em torno dela, até ele a tocar e fazê-la se retrair e se fechar como um punho de pedra. Mas ele sabia exatamente como tocá-la, como falar a ela, respirar sobre ela, fazê-la se abrir novamente. O prazer físico era uma ilusão tão convincente, e o sexo, a charada última da segurança.

A porta de metal do fogão se fechou com uma baque, e ela ouviu um ruído de uma calça a deslizar para o chão. Seu corpo formigava numa anteci­pação da volta dele à cama. Ela esperou, e durante um minuto não apareceu ninguém para mergulhar de cabeça naquele mundo sob os cobertores. Ela descobriu a cabeça para a luz da manhã e piscou com a claridade. A manhã já ia alta. O sol era um retângulo ofuscante na janela, onde a silhueta de um homem nu dançava, batendo com as duas mãos numa bruxa assustada.

- Ei, ei, cuidado! - gritou, e ele se voltou para ela. Não viu que expressão ele tinha, pois a luz vinha de trás, mas ela já conhecia aquele rosto e sua sinceridade.

- Não quero matá-lo, só quero colocar esse bicho para fora. Um intrometido, que quer ver você nua.

Ela se sentou e tentou ver melhor as asas desesperadas batendo contra a vidraça:

- É uma fêmea. E está olhando para você.

- Calma - disse ele, tentando prender a bruxa entre as mãos -, veja como está apavorada: ela nunca viu tamanhã exibição de masculinidade em sua vida.

- Não faça isso.

Diana afastou a pesada pilha de cobertores e pôs os pés no chão frio. O forno à lenha irradiava um campo tangível de calor, que seu corpo atravessou ao chegar até a janela:

- É melhor não tocar: as escamas das asas dela se soltam fácil.

- E isso é tão horrível assim?

- Para a bruxa, é. Acho que se ela perder as asas pode morrer., Ele deu um passo para atrás, em deferência a essa grave afirmação:

- Isso é uma verdade científica? Ela sorriu.

- Meu pai me contou, portanto deve ser verdade.

Com a mão em concha, tentou levar a bruxa para longe da janela:

- Que chato, ô bichinho de asas: bem que eu podia abrir a janela para você, mas você escolheu a única que não abre.

- E quem é o seu pai, um cientista pesquisador de bruxas ou coisa assim?

- Não ria, mas existem cientistas que fazem pesquisas sobre as bru­xas. Conheci um deles no curso de pós-graduação.

Ela tentava guiar a bruxa até a janela sobre a cama, mas não conseguia: o bichinho insistia em se se projetar para o leste como se fosse um fiel que se volta para Meca.

- Talvez ela vá para a outra janela se a gente fechar a cortina.

- Pode ser.

Ela puxou cuidadosamente a cortina de algodão branco, entre a bruxa e o vidro, mas logo viu que não ia funcionar.

- Ela ainda está vendo a luz - disse ele.

Ele acreditou quando Diana afirmou ser uma fêmea, e ela ficou comovida.

- Na verdade, não consigo identificar o sexo de uma bruxa, eu esta­va blefando. E não, meu pai não era cientista. Mas poderia ter sido. Era fazendeiro, mas era...

A bruxa pousou sobre a cortina e ficou imóvel. Era uma criatura ma­ravilhosa, com asas preto-e-branco, desenhadas de formas geométricas. O verso das asas, de um vermelho vivo, e um corpo gordo e branco com pontos negros, que lembravam os olhos de carvão dos bonecos de neve. Nenhum olho humano havia visto uma bruxa como essa; nenhum deles veria os amigos dela. Tantos são os detalhes, que se perdem no mundo.

- Não sou capaz sequer de descrever o meu pai - concluiu ela; - se você passar cem anos no Condado de Zabulon estudando todas as plan­tas e animais que vivem nas matas e nos campos ainda saberia menos do que ele sabia quando morreu.

- Ele é o seu herói. Estou com ciúme.

- Era mesmo. Ele tinha teorias para explicar tudo. Costumava di­zer: "Repare na cia azul, parece ter vindo de um mundo onde as cores são mais brilhantes. E repare na fêmea: é marrom, cor de lama. Como você explica isso?". E eu dizia alguma coisa boba, por exemplo, que talvez nas cias azuis os homens sejam mais vaidosos que as mulheres. E ele dizia: "Pois eu acho que é porque ela tem de chocar os ovos, e se as cores fossem brilhantes, o ninho chamaria a atenção".

- E o que sua mãe dizia disso tudo?

- Ai! - gritou Diana, assustando-se com a sombra escura de um rati­nho que pulou de trás de uma pilha de lenha e correu praticamente sobre os pés dos dois até um buraco entre a parede de madeira e o soalho.

- Merda - riu -, detesto eles porque sempre me fazem gritar igual a uma menina.

Mas ela notou que Eddie Bondo também tinha dado um pulo.

- Sua mãe dizia "ai"?

- Minha mãe não dizia muita coisa. Principalmente porque já havia morrido.

Diana apertou os olhos e examinou o buraco por onde o camun-dongo tinha desaparecido. Há dois anos ela vinha tapando esses buracos com folha de alumínio. Mas já aprendera que a aparição de um rato detona uma guerra que não se pode ganhar.

Percebeu que Edie olhava para ela, esperando o final da história.

- Ora, a morte de minha mãe não foi uma tragédia. Para meu pai, foi com certeza, mas nem me lembro dela, eu era muito pequena.

Diana abriu as mãos, incapaz de descrever o buraco que esse acon­tecimento havia deixado na sua vida.

- Ninguém me ensinou a me comportar como uma dama, essa foi a grande tragédia. Mas veja, ela é uma ela mesmo.

Diana apontou a bruxa que apertava a ponta do abdome contra a cortina, numa aparente tentativa de pôr ovos.

- Minha mãe também morreu, mas foi há muito tempo - disse ele enquanto os dois observavam a bruxa - acho que isso acontece. E meu pai se casou de novo, depois de, sei lá, uns quinze minutos.

Diana não conseguia entender esse desapego à família.

- Mas pelo menos você se dava bem com ela? Ele deu uma risada estranha.

- Ela poderia se virar melhor sem mim. Tinha seus próprios filhos, o que criava o problema de saber quem ia ficar com a fazenda. Aquela história feia de existir a meia-irmã, sabe como é.

Diana não sabia.

- Meu pai nunca se casou de novo.

- Não? Então era só você e ele?

Ela se perguntou se realmente queria contar tudo isso a ele.

- E. Geralmente, só eu e ele. Ele tinha uma amiga, mas isso foi muitos anos depois. Os dois nunca moraram juntos, cada um tinha uma fazenda para tocar, mas ela foi boa para mim. E uma mulher notável. Só há pouco tempo me dei conta do inferno por que ela passou. No fim, meu pai era um problema nas mãos dela. E ela também tinha uma filha, com síndrome de Down e um defeito incurável no coração. Era minha meia-irmã.

Eddie Bondo pôs as mãos nos ombros de Diana e a beijou.

- Essa é você, não é?

Ela passou a mão pelo cabelo dele, agora cortado com mais capricho - menos corvo e mais arminho. Na terça-feira, seu dia de mortificação depois de tê-lo atacado no tronco de castanheira, ela se deixara convencer por ele a fazer muitas coisas, inclusive cortar os cabelos dele com uma tesoura pequena. Era um cabelo surpreendentemente grosso, parecendo o pêlo de algum animal do norte, desses que precisam de isolamento térmico. O prazer táctil de passar uma hora na varanda a correr as mãos pelos cabelos dele criou uma nova intimidade entre os dois. Mais tarde, ficaram a observar em silêncio um casal de chapins que catava os cabelos no chão para forrar o ninho.

- Eu? Não - disse ela, sem entender bem o que ele queria dizer -, minha meia-irmã. Chamava-se Rachel.

- Melhor dizendo: de quem você é. Você está me contando um pedaço da sua vida.

Ela olhou dentro dos olhos dele, notando que eles fixavam ora uma de suas pupilas ora outra, iam e voltavam. Estavam muito próximos.

- a nossa cama está esfriando - sussurrou ele.

- Não acredito.

Então, o fogo deu um estalo igual a um tiro, assustando os dois tal como o camundongo fez, e eles riram alto. Eddie Bondo correu para a cama e se enfiou debaixo dos cobertores, gritando que havia sido desco­berto pela patrulha. Ela o empurrava ao lado da cama, lutando para ele abrir espaço:

- Eu denunciei você ao Serviço Florestal. Afastar um guarda-florestal de seus deveres é crime para pena capital, nestas montanhas.

- Então eu quero a minha última refeição.

Jogou as cobertas para o lado e se revelou, solene e deitado de costas. Ela o atacou e tentou prendê-lo, mas ele era forte e parecia conhecer bem os movimentos de luta livre. Apesar de ela ser maior e ter membros mais longos, ele era capaz de dominá-la com um braço nas costas. Em menos de um minuto ela estava imobilizada, e ria enquanto ele montava nela.

- O que é isso, Bondo? Uma técnica diferente de controlar ovelhas?

- Exatamente agarrou uma mecha grossa dos cabelos dela - e agora vou tosquiar você.

Mas ele beijou-lhe a testa, e depois cada uma das costelas, até deitar a cabeça na sua cintura. Mas ela o puxou para o travesseiro a seu lado. Tinha de olhar para ele.

- Muito bem. Você foi salvo. Resolvi adiar sua execução.

- Governadora, sou seu escravo.

Ela queria brincar, mas não estava com a disposição adequada. Falar sobre a Nannie e a Rachel trouxera as duas para dentro da cabana. E tam­bém seu pai - especialmente ele. O que ele teria achado de Eddie Bondo?

- Eu falei sobre mim, agora você tem de me dizer alguma coisa sobre você.

Ele desviou o olhar:

- Posso escolher sobre o quê? Ou você é que escolhe?

- Eu escolho.

- Uma coisa séria?

- Para mim, é.

Ele rolou e ficou deitado de costas e os dois olharam para o teto, com caibros tortos e marcados por túneis feitos pelos besouros. Diana pensou nas árvores que eles foram, há muito tempo. Sofreram mais em vida que depois da morte. Ouviu-se um barulho de algo arranhando as telhas.

- O que existe lá em cima? - perguntou ele.

- Acima desses caibros, são placas de cedro; provavelmente podres. Está vendo os pregos? E por cima de tudo, folha de flandres.

- Não, não: estou falando é desse barulho.

- Uns camundongos, com toda a certeza.

- Como aquele que fez você gritar igual a uma menina? Ela apertou os olhos.

- Diferente. Um dos inúmeros amigos e parentes que ele tem. Os dois olharam durante um minuto para o teto, olhos a seguir o

barulho à medida que subia para o topo do telhado. Diana achou que o movimento era lento demais para ser de um camundongo e pensou em outras possibilidades.

- Quem construiu esta cabana? - perguntou ele.

- Um sujeito chamado Garnett, ou um nome parecido com esse, e sobrenome Walker. Eles eram de uma linhagem, todos com o mesmo nome. Uma espécie de barões da terra desta região, há uns cem anos.

- E era este o luxuoso palácio do barão?

- Claro que não. Devia ser o escritório de uma das mais de cem áreas de exploração. Ele e os filhos desmataram estas montanhas. E esta foi provavelmente uma das últimas áreas; a cabana deve ter sido construída lá pela década de trinta. A julgar pelo estado da madeira.

- Que madeira é esta, carvalho?

- Castanheira. Quando perceberam que as castanheiras estavam morrendo, o povo correu e cortou todas as que sobraram, até as mortas que ainda não tinham caído.

Ele passou a examinar a construção mais minuciosamente.

- É por isso que os caibros são tortos e pequenos?

- É. Madeira morta, ou quem sabe os galhos mais altos de uma árvore enorme, que eles usaram como madeira de construção.

Ela se virou para ele:

- O que eu estou querendo dizer é que eles perceberam que as castanheiras estavam condenadas à extinção. Então o que fizeram? Cor­reram até aqui e derrubaram todas as que ainda estavam vivas.

Ele pensou por uns instantes, e disse:

- Mas elas iam morrer de qualquer jeito: acho que foi isso que eles pensaram.

- Mas nem todas morreriam. Algumas das últimas castanheiras estavam de pé porque não estavam doentes. E elas poderiam sobreviver à praga.

- Você acha?

- Tenho certeza. Há gente que estuda esse assunto. Toda espécie tem extremos, pequenos bolsões de resistência genética que lhe dão uma chance maior de sobrevivência. Algumas teriam sobrevivido.

Ela acompanhou os olhos deles que esmiuçavam os caibros retorci­dos enquanto avaliava o que ela tinha acabado de dizer. Era isso que sempre a surpreendia: Eddie Bondo prestava atenção em tudo. A maioria dos homens que ela conhecera agiam como se já soubessem tudo o que ela sabia. E não sabiam.

- E se algumas tivessem mesmo sobrevivido, quantos anos elas vive­riam?

- Talvez uns cem anos, quem sabe? Tempo suficiente para espalhar sementes. E algumas viveram; talvez umas cinco ou seis em cada condado, escondidas no fundo dos vales, mas poucas para polinizar umas às outras. Se mais algumas sobrevivessem, elas teriam refiorestado estas monta­nhas, mas ninguém pensou nessa possibilidade. Ninguém. Cortaram as últimas a poder de machado.

Ele se virou para encarar Diana.

- E é por isso que você veio morar sozinha aqui no alto, não é? Você não suporta as pessoas em geral.

Ao ouvir essa afirmação, ela refletiu; e sentiu que era uma profun­da verdade.

- Não quero me sentir desse jeito - respondeu passado um mo­mento -, há pessoas de quem eu gosto. Mas há muitas outras formas de vida que eu também amo. E as pessoas agem de uma maneira odiosa com todas as espécies que não a delas.

Ele não respondeu. Será que ele estava tomando como pessoal o jul­gamento dela? Ela pensara em gente que recusava a se incomodar por causa de um peixe, ou planta, ou coruja, ameaçados de extinção, e não pensara especificamente nos matadores de coiotes. Forçou-se a pronunciar as palavras que se seguiram, sabendo que cada uma delas teria um custo:

- Você disse que eu poderia perguntar o que quisesse, e agora eu pergunto.

- O quê?

- Você sabe.

Ele piscou, mas não falou. Alguma coisa nos olhos dele se afastou dela.

- O que trouxe você para estas montanhas? Ele olhou para o outro lado.

- Um ônibus da Greyhound.

- Eu tenho de saber. Qual a presa dessa caçada? Ele não respondeu.

- Só me diga se a resposta é não. E só que eu quero. Ele continuou mudo.

- Meu Deus - ela soltou um longo suspiro -, não estou surpresa. Eu sabia. Mas eu nunca, mas nunca mesmo vou entender você.

- Nem eu espero isso de você.

Não, ele não esperava, mas ela era incapaz de não tentar, se fosse possível. Mas aqui estava ele, nu ao lado dela, mão esquerda sobre o coração dela. Como ela poderia não querer saber quem ele era? Macho e fêmea de mundos diferentes, como a cia azul e sua fêmea? Será que por dentro ela não passava de uma fêmea cor de lama? Logo ela, que sempre teve a certeza de levar uma vida azul-brilhante?

- De onde vem isso? Não consigo entender essa paixão capaz de matar uma coisa viva.

- Não é uma coisa viva. É um inimigo.

- Diga a verdade. Quantas vezes você já viu ovelhas mortas por coiotes?

- O suficiente.

- Cem?

- Na fazenda de minha família? Não. Se perdesse cem delas, um homem iria à ruína, mesmo que elas fossem mortas num período de quatro ou cinco anos.

- Quantas foram na fazenda de sua família, durante toda a sua vida? Cinqüenta, uma dúzia?

Ele ainda olhava para os caibros do telhado.

- Talvez uma dúzia. Temos cães pastores, temos boas cercas, mas mesmo assim... Talvez uma dúzia. Nem sempre se sabe o que pegou uma ovelha, se ela for muito nova e o que a pegou não deixar uns restos.

- Então em um ou em todos esses casos, poderia ter sido qualquer coisa: o cachorro do vizinho, uma coruja, uma águia da cabeça branca?

Eddie Bondo fez uma careta, sem concordar nem discordar.

- É fácil pôr a culpa num coiote. Ninguém gosta deles; eles não pertencem a ninguém, só a si mesmos. Então é fácil meter uma bala neles.

Ele se virou para ela, apoiando-se no cotovelo.

- O que você não entende é que criar gado não é igual a ter uma lavoura. Não é uma proposição vegetariana.

Ela balançou a cabeça, mas nada disse, começando a sentir que se afastava no seu próprio caminho. O que havia no Velho Oeste, com aquela história de caubóis em que todo mundo gostava de acreditar? Com ho­mens valorizavam quem era durão. Ela pensou no pai, de fala macia, cuja fina linha numa boca pálida parecia um punho cerrado quando operava o castrador e ela segurava a cabeça do bezerro que berrava. Ele na tarefa de castrar os tourinhos.

A bruxa na janela ficou agitada outra vez, batendo as asas contra a cortina e a luz externa que havia atrás dela. Ele viu o olhar dela e se levantou para espantá-la delicadamente.

- Milagre dos milagres, e pensar que estou na cama com uma amante de animais.

Surpresa, ela olhou para ele. Ah, se ele soubesse que ela acabava de pensar em castração. Estava muito incomodada com a idéia de que ele já a considerava sua. Abriu a boca, fechou-a, e depois tornou a abrir, ainda assustada com o que ia dizer.

- Vou lhe dizer uma coisa: se um gato do mato aparecesse por aqui, vindo de uma fazenda qualquer, e começasse a destruir ninhos e a parir ninhadas no meio do mato, eu o caçaria e o afogaria no rio.

Ele fez uma cara de desapontamento exagerado.

- Mentira.

- Talvez eu o caçasse: eu teria vontade de caçar.

- Por quê?

- Porque aqui não é lugar de gatos. São animais falsos, tão intrusos como a praga da castanheira. E tão destrutivos quanto ela.

- Mas não um homem-gato - sentenciou ele, com a segurança de estar com a razão.

- Quando criança, eu tinha gatos. Mas as pessoas não se importam com eles, e eles procriam nos celeiros, e caçam nas matas, mas não têm a menor idéia do que podem caçar. Não são predadores naturais, a não ser, talvez, num celeiro. Na mata, eles são como uma bomba incendiaria. Eles conseguem destruir um habitat rapidamente, em um ano até, porque não têm um predador natural. Se ainda existissem lobos vermelhos por aqui, a gente poderia ter alguma defesa contra gatos desgarrados. Mas os lobos foram extintos.

"Tal como foi com os coiotes", pensou ela.

Ele contemplou essa nova Diana, assassina potencial de gatos vira-latas. Ela o encarou por um momento; então, virou-se de bruços, apoiou-se nos cotovelos, e enrolou as pontas dos cabelos, fazendo com eles uma espécie de pincel com que pintava a palma da outra mão.

- Não amo os animais como indivíduos, acho que posso me expressar assim. Eu os amo na qualidade de espécies. Sinto que eles devem ter o direito de continuar com seus próprios hábitos. Se aparecer um gato por causa de um desleixo humano, é possível remediar isso tirando uma vida, ou então ignorar o problema e deixar o erro persistir.

- E que dano um gato pode causar?

- Você não acreditaria se eu lhe mostrasse a lista das espécies que desapareceram por causa da displicência das pessoas em relação aos gatos. Especialmente os pássaros que fazem ninho no chão.

- E não é culpa dos gatinhos.

- Não - respondeu ela, achando graça naquele caçador advogado dos gatinhos -, nem é dos gatos a idéia de que tudo o que seja vida, inclusive a dele próprio, é sagrada. E uma idéia humana, e eu a aceito para a humanidade. Mas é uma espécie estranha de religião querer impô-la a outros animais, que já têm suas próprias regras. A maioria dos animais é tão racista quanto Hitler, e muitos deles praticam o infanticídio. Como os gatos - e os leões. E também muitos primatas.

-É?

- É. E eu defendo o seu direito de continuar matando os filhotes na natureza, se esse for o seu costume, sem serem incomodados pelos hu­manos. Esse é o tipo de amante de animais que eu sou.

Ele ergueu as sobrancelhas e anuiu com a cabeça.

- Não é o que você imaginava, é?

- Ora, agora eu até acho que você vai caçar comigo. Ela rolou e se deitou de costas.

- Nem pense nisso: eu nunca mataria um animal só para me divertir. Para comer, talvez: se estiver com fome. Mas eu nunca seria um predador.

- Então a gente pode matar um veado, mas um lobo não? Os herbí­voros são menos importantes que os carnívoros?

Ela pensou um pouco.

- Não são menos importantes. Mas os herbívoros tendem a ter uma vida mais curta, e se reproduzem mais depressa; foram projetados para se expandir. Se ninguém os comer, eles viram uma superpopulação.

Ele se deitou de costas ao lado dela, satisfeito com o andamento da conversa.

- Claro. E o que acontece com os coelhos. Mas é complicado. Lá no norte, o lince varia em ciclos. A cada dez anos eles^ viram uma multidão, e depois desaparecem. Talvez haja uma praga no Ártico.

Ela tentou adivinhar se ele já tinha visto algum lince. Provavelmen­te, ela nunca veria um.

- Sei o que você quer dizer. Já foram muito castigados.

- E como são eles, os linces?

Ela tentou não parecer uma menina com ciúme.

- Ah, querida, é um gato que você ia amar. É igualzinho a você.

- Como assim?

Ele sorriu ao se lembrar.

- Cerca de três partes de raiva com quatro partes de orgulho. São lindos. Se você encontra um preso numa armadilha e solta, ele não sai correndo, nada disso. Ele fica ali, olhando com raiva para você, e depois se vira e sai andando bem devagar.

Ela conseguiu ver a imagem.

- E você não percebe? E pecado matar um predador natural.

- Você tem suas regras, eu tenho as minhas. Ela se sentou para olhar para ele.

- Certo. Mas também há o mundo, que também tem regras que ninguém consegue mudar. E isso que está errado nas pessoas: elas não vêem essa verdade.

- E qual a regra do mundo que diz que é pecado matar um predador?

- Uma matemática elementar, Eddie Bondo, dentro do que você conhece. Um mosquito satisfaz um morcego durante, digamos, uns quinze segundos antes de ele começar a procurar outro? Mas um morcego come uns duzentos mosquitos por noite. Imagine agora onde está a regra de ouro neste caso? Qual dos dois tem maior influência na vida do outro?

- Está bem. Calma.

- Calma você. Não fui eu quem criou os princípios da ecologia. Se você não gosta deles, vá morar em outro planeta.

Estou fazendo o possível para mandar esse cara embora, pensou ela. Mas ela não conseguia mais se conter. Precisava dessa conversa.

- Ótimo. Mas se eu sou um criador de mosquitos, tenho o direito de matar os morcegos da minha fazenda.

Ela se recostou no travesseiro.

- O que você pensa dos coiotes não faz o menor sentido. Eles são muito mais importantes para suas presas naturais do que os animais do­mésticos. Aposto que nunca houve um fazendeiro americano que tenha perdido tudo por causa de coiotes.

- E, talvez nenhum deles tenha falido.

- Acho que é puro medo. Um bando de criadores machões com medo de uma sombra.

- Você não faz idéia de como é difícil manter uma criação.

- Não consigo imaginar você tomando conta de carneiros, Eddie. Acho que não lhe posso dar crédito nessa questão.

- Um dia eu vou herdar mil e quinhentos acres.

Ele não pareceu muito certo disso, e ela imaginou as relações de parentesco ocultas naquela afirmação, que medos e que expectativas, o quanto lhe estava custando guardar seu lugar naquela família. Como filha de um fazendeiro que perdeu tudo, ela não sentia tanta simpatia.

- Muito bem - disse ela -, você vai se recolher com sua mulherzi-nha, criar ovelhas até chegar à velhice. Seu plano é esse? Só que antes disso você vai correr o mundo e matar todos os coiotes?

Ele deu de ombros, recusando-se a aceitar a ironia.

- Ainda tenho tempo. Vou andar por aí, conhecer o mundo. Caçar todos os coiotes, trepar com todas as mulheres, ver o mundo: a

estratégia da adolescência prolongada. Mas não era justo; ele também era bom. Havia trabalhado. Trabalhara bastante nessa manhã para prover o ninho dela, trazendo braçadas de lenha como se fossem buquês. Tentou esquecer a tristeza que era pensar demais.

- Tenno de reconhecer que você foi fiel à sua escola, dispondo-se a percorrer grandes distâncias para tornar o mundo mais seguro para as ovelhas do Wyoming.

- Você zomba, mas não sabe de nada. Criar ovelhas é um trabalho que só pode ser feito quando se consegue toda a ajuda necessária. A gente fica o tempo todo à beira da ruína.

- E o que eu não sei? Desça a montanha e você chega à cerca de uma lavoura. A partir daí você não anda nem para a direita nem para a esquerda sem topar com uma família que perdeu tudo por azar, mau tempo, praga da castanheira, mudança, crise econômica, lobby contra o fumo. Um fa­zendeiro que eu conheço não conseguiu se recuperar. Mas ninguém se mostra amargo. Vão todos trabalhar na Toyota e esquecem o resto.

- Não esquecem, não. Acontece que eles não têm um inimigo que possam ver na mira telescópica do rifle.

Ela olhou para ele durante muito tempo. Pensou no pai, bebendo para esquecer a dor de ser forçado a vender a propriedade. Se pudesse atirar em alguma coisa, o que ele teria alvejado?

E enfim ela respondeu:

- Não dá para concordar com você: você não pode provar nada disso.

- Se aparecerem uns coiotes nesta região, eles serão mortos.

- Sei disso. Penso nisso o tempo todo.

- E eles estão aqui. E você sabe onde eles estão. Ela tornou a encarar os olhos claros dele.

- E é por isso que você está comigo? Está atrás de informações? Os olhos verdes escureceram, numa- breve revelação de uma tem­pestade sob a superfície.

- Se é isso que você está pensando, vou pegar minhas botas e ir embora imediatamente.

- Não sei se é isso que eu estou pensando. Não sei mais o que pensar desde que você apareceu por aqui. Mas se é o que você quer, então é melhor ir mesmo embora.

- Se eu estivesse atrás disso, eu seria um idiota. Sei que há coiotes entocados aqui, em algum lugar onde eu não consigo enfiar uma bala em cada um deles, e você não vai me dar a menor pista, nem por amor nem por dinheiro.

- E isso mesmo.

- Diana, e você não acha que eu já sabia disso?

- Se eu confiasse em você, poderia lhe mostrar onde eles estão. Mas não confio. Não dessa forma. Minha confiança não vai a esse ponto.

- Você já me disse isto. No primeiro dia, lá na montanha, quando encontrei você seguindo o puma. Você me disse quais eram as suas con­dições, e eu aceitei.

- Eu disse?

- Disse.

- Então, o que você está fazendo aqui?

- Tomando café na cama. Tentando pegar uma borboleta sem ferir nenhuma escama.

Ela examinou o belo rosto dele e os primorosos planos de seu corpo, e desejou enxergar dentro dele para ver a mistura de amor e raiva e mentira que se escondia lá dentro, e em que proporções.

- Qual é a sua idade? Ele pareceu surpreso.

- Vinte e oito. Por quê? Qual a sua?

Ela hesitou, surpresa consigo mesma. Sentou-se e se enrolou nas cobertas. Era a primeira vez que ela se sentia mal ao admitir a própria idade. Quase vinte anos mais que esse homem. Não tinha o menor sentido.

- Não quero dizer.

- Ora, menina, esquece. Olhe para você. Para ajustar tão bem uma máquina, é preciso mais do que trinta anos.

- Bem mais que trinta. Mais de quarenta.

- É mesmo?

- E. E mesmo.

Pensou ter visto um brilho de surpresa, mas ele disfarçou bem.

- Então você tem noventa e sete anos. Você é minha avó. Vem, vovó, vou acabar com o seu reumatismo.

Quando ele a puxou para si, o fogo crepitou mais uma vez, um alaranjado brilhante surgiu na portinhola redonda do fogão. Ela via o fogo refletido nos olhos dele.

- Vou lhe dizer uma coisa - disse ela, olhos nos olhos - você sabe rastrear, mas eu sou melhor. Se você encontrar um filhote de coiote e matá-lo, eu meto uma bala na sua perna. Acidentalmente.

- Verdade?

Ela sabia que não era, mas ele talvez não.

- Com toda a certeza. Se for preciso, sou capaz até de seguir você durante muitos dias. Estou falando é desse tipo de acidente.

- Na perna? E por que não entre os olhos?

- Não.

Ele sorriu e se afastou dela, deitando-se de costas, e prendeu as mãos atrás da cabeça.

- Muito bem. Estou avisado.

- Está avisado.

Ela saiu da cama, tremendo por causa do esforço de ser tão dura. Passou o longo penhoar de flanela sobre a cabeça e o deixou cair sobre o corpo como se fosse um casulo. Pegou um copo de plástico de boca bem larga no armário da cozinha e um envelope na pilha de papéis da sua mesa. Examinou-o: uma antiga carta de Nannie Rawley, a única pessoa que ainda escrevia para ela. Foi até a janela e puxou com cuidado a cortina, fazendo a bruxa voltar a atacar freneticamente o vidro. Sobre a cortina ela tinha deixado duas fileiras de ovos minúsculos, tão certinhas como uma costura dupla. Diana se entristeceu ao ver esse último e desesperado esforço de sobrevivência. Lera que as bruxas fêmeas se acasalavam com muitos machos diferentes, e guardavam o esperma de cada um em pacotes separados, e então, por meio de um mecanismo ainda desconhecido, depois de todos terem partido, escolhia entre os rapazes - na verdade decidindo qual esperma iria fertilizar os ovos que ia pôr. Diana estudou o cuidadoso trabalho dessa bruxa sobre a cortina. Talvez ela ainda tivesse a esperança de encontrar o macho perfeito que devia estar lá fora. Mas agora já era tarde.

- Coitadinha - disse baixinho -, pode parar de bater a cabeça, você merece a liberdade.

Colocou cuidadosamente o copo sobre a bruxa e enfiou o envelope entre o copo e o vidro. Presa, a bruxa bateu contra o plástico duro, mas não eram mãos humanas e ela não perdeu escamas. Diana enfiou os pés nas botas desamarradas e foi até a porta, que abriu com o cotovelo, sentindo os olhos de Eddie Bondo sobre ela. Será que ele a via realmente como um lince? Ela não se sentia nem tão elegante nem tão auto-suficiente. Ele conseguia fazê-la falar demais.

O dia estava maravilhoso. Já era verão. Essas manhãs frias logo iam desaparecer, dissolvidas no calor da estação da reprodução. Aspirou: até o cheiro do ar lembrava êxtase sexual. Musgos e samambaias liberavam seus esporos no ar. Os pássaros apertavam ovos fertilizados nas áreas sem penas de seu peito: filhotes de coiotes, onde quer que estivessem, saíam para as primeiras lições de vida. Diana parou na beirada da varanda e levantou o papel da boca do copo, deu uma sacudidela para soltar a bruxa. Ela tropeçou, se debateu no ar claro, depois deu uma volta, e voou desajeitada para o alto, agarrando-se à repentina liberdade.

Um passarinho se lançou do beirai e agarrou a bruxa no bico. Voando rápido, ele tornou a desaparecer, levando comida para seus filhotes.

 

JL rezada Miss Rawley,

Fiquei enormemente abalado por uma suspeita que me ocorreu na última sexta-feira, 8 de junho, na Loja de Ferragens Little Brothers. Ouvi acidentalmente (apesar de não desejar, a conversa era claramente audível) suas observações para os irmãos, sobre um "snapper". Não sei se a conversa se referia a um cortador de grama, pois que essa é uma marca muito conhecida nesta região, e que é vendida pela Irmãos Little. Ou seria possível que estivessem conversando sobre um incidente que só era conhecido por nós dois, que envolvia uma tartaruga snapper?

Escrevo para lhe fazer esta pergunta, Miss Rawley, não porque isso seja uma questão de grande importância para mim, mas porque, aten­dendo ao conselho do Senhor, sinto ser meu dever lhe informar que expor ao ridículo o nome de um vizinho que em todos esses anos tem despendido grande esforço para servir com sabedoria e dignidade o seu país (como professor de agricultura vocacional durante 21 anos e conselheiro do 4-H por mais de dez anos), perante nosso Senhor, é um pecado de suma gravidade para qualquer alma.

Atenciosamente Garnett S. Walker III

  1. Com relação à questão de se liberar os "lagartos" vendidos na loja de iscas Grandes, com a justificativa de pertencerem a espécies que estão desaparecendo desta região, depois de dar ao assunto profunda consideração, proponho três perguntas:

1 - Nós, humanos, devemos nos considerar apenas mais uma espécie entre tantas outras, como a senhorita sempre insiste em nossas discussões sobre como uma pessoa poderia viver em "harmonia" com a "natureza" evitando, ao mesmo tempo, que os besouros japoneses destruam com­pletamente suas árvores? a senhorita acredita que um ser humano não tem autoridade especial de nenhuma espécie neste mundo além da que é conferida a um besouro japonês ou a uma salamandra? Se isso é verdade, por que temos o dever de libertar as salamandras, se elas não são obrigadas a nadar até a Penitenciária Estadual de Marion e libertar todos os condenados lá detidos?

2 - Ou devemos nos considerar os guardiães da Terra, como foi determinado por Deus no Gênese 1: 27-30: "E Deus criou o homem à sua imagem;... e Deus os abençoou dizendo: "Crescei e multiplicai-vos, enchei e dominai a Terra". E Deus disse: "Toda semente que existe na face da Terra, e toda árvore que dá fruto Eu vos dou por alimento. E a todo animal da Terra, e a toda ave do ar e a tudo em que há vida que rasteja sobre a terra" - tal como as salamandras, Miss Rawley - "Eu dou como alimento todas as plantas verdes; e assim se fez". Se a Bíblia Sa­grada merece fé, devemos ver as criaturas de Deus como um presente aos Seus filhos favoritos e usá-las para nossos próprios fins, mesmo que depois de algum tempo isso leve à extinção de uma ou outra espécie.

3 - Quem vai se importar com a extinção de uma ou duas espécies dessas salamandras imundas?

Simples perguntas, GWIII

 

                                     Predadores

— IN ao entendo por que as pessoas falam em bons ventos quando que­rem falar de boa sorte, - perguntou Eddie Bondo revelando o traço irritadiço de sua personalidade que ela ainda não conhecia.

Era uma pergunta válida. Ela parou para cocar a nuca. Estavam lutando para atravessar um labirinto de árvores caídas, e agora os mosquitos os haviam encontrado. Diana tinha feito uma escolha infeliz numa manha que tinha tudo para ser perfeita, e lá estavam eles, subindo tediosamente através do labirinto horizontal criado pelo temporal. Pareceu a ela que um pinheiro enorme no alto da montanha, atingido por um raio, havia arrastado todas as árvores encosta abaixo. Como havia esco­lhido o caminho, ela ainda tentava fingir que tudo aquilo era divertido.

- O vento seria bom para quem estivesse planejando derrubar e aparelhar todas as árvores desta encosta.

- Não é o meu caso.

Saíram essa manhã em busca de molly-moochers, como o povo da região os chamava. Ele riu desse estranho par de palavras (como havia rido de outras expressões sulistas que ela usava), mas ficou interessado quando ela explicou o que eram. Cogumelos comestíveis eram pouco mais que uma lenda nas montanhas áridas do Oeste, mas aqui eles eram uma realidade, e ele queria sentir aquele novo gosto. Ela estava alegre por poder ajudá-lo a procurar. Oficialmente, ela não deveria colher coisa alguma dessa floresta, mas as populações de cogumelos não estavam sob risco na Floresta Nacional, e não era a época de cogumelos. Havia apren­dido com o pai a procurá-los em meados de maio, quando as folhas de carvalho tinham o tamanho de orelhas de esquilo. Nem mesmo a gula de Eddie Bondo seria capaz de fazê-los aparecer na terceira semana de ju­nho. Mas mesmo assim os dois saíram a procurar, porque era o jeito dele. As vezes ele pegava a mochila e sumia, por algum tempo ou de vez, ela nunca tinha certeza, mas quando estava com ela, estava com ela; quando o dia começava alegre, com os dois felizes na cama, haveria uma aventu­ra, mais uma razão para ela ignorar as cadernetas de campo e as trilhas que deveria manter. Nesses dias eles abandonavam as trilhas e entravam pelos lugares mais recônditos da montanha, subindo ou descendo encos­tas tão íngremes que eram forçados a subir usando mãos e pés ou descer sentados, escorregando como num tobogã de folhas escorregadias. Des­cobriram bosques e clareiras que nem ela conhecia, onde veados tranqüi­los comiam musgo e folhas tenras.

Estavam chegando ao final do labirinto. Diana olhou através dos galhos, deu um tapa num mosquito e cocou o joelho esfolado. O dia estava quente, mas ela lamentava ter escolhido o short que estava usando. Sabia agora onde estavam: não muito longe da trilha do Ribeirão do Ovo. Deu um nó duplo na trança para não se embaraçar nos galhos e avançou para o fim do labirinto tedioso.

Ao emergirem das agulhas dos pinheiros, assustaram um tetraz, cuja cauda cor de cobre brilhou quando o corpo gordo partiu horizontalmente com o som de motor de popa. Diana parou com a mão sobre o coração, que também batia agitado. Os tetrazes sempre produziam aquela explosão. Gostaria de ter encontrado galos silvestres, que marcham pelas clareiras com as penas eriçadas, inflando balões amarelos no pescoço para produzir sons profundos que se ouviam de longe. Não agora, naturalmente. No mesmo tom de suas amigas solteiras, quando se queixavam de que todos os homens que valiam a pena já estavam casados, Diana teve vontade de gemer: "Todos os melhores animais já foram extintos".

- Existe alguma estação de caça a eles? - perguntou Eddie maravi­lhado com o tetraz, a irritação anterior já desaparecida sem deixar tra­ços. Ela olhou para ele, mas não respondeu. Tetrazes não eram comuns por ali. O que ela geralmente encontrava eram bandos de peruas grugrulejando calmamente na mata, batendo na vegetação com as asas, tentando penetrar entre os galhos baixos. No dia anterior mesmo os dois tinham visto algumas. E havia também um peru grande que costuma­vam ver pisando duro pela estrada do Serviço Florestal, sozinho, evitando a companhia das fêmeas. Desfez os nós da trança e deixou-a cair pelas costas, tentando decidir a melhor saída dali. Eddie Bondo começou a assoviar.

- Pssssiu! - fez ela de repente. Alguém ou alguma coisa estava no meio dos pinheiros acima deles. Esperou um segundo para ver se ele se movia como homem ou como animal.

Homem.

- Oi, amigo - chamou. - Como vão as coisas?

Ele surgiu do meio dos galhos verde-escuros: alto e barrigudinho, o cabelo grisalho chegando até os ombros, uma carabina de pequeno calibre, todo ataviado para uma batalha na floresta. Como se um veado fos­se ficar impressionado com o uniforme. Olhou para ela apertando os olhos.

- Diana Wolfe?

- Quem? - ela também o olhou com os olhos apertados. Não tinha a menor idéia de quem era. Era capaz de guardar nomes latinos e cantos dos pássaros, mas os colegas com quem freqüentara o ginásio tinham todos o mesmo rosto.

- Sammy Hill - disse ele finalmente.

- Sammy, claro - disse ela, como se aquele nome estivesse na ponta da língua. Sammy Hill, como alguém poderia esquecer um nome desses?

- Di-a-na Wolfc - repetiu ele, dirigindo o prazer principalmente às suas pernas. - Me disseram que você andava por aqui. Que um urso quase te comeu. Ele falava muito alto, talvez nervoso, talvez um pouco surdo. Muita gente perdia a audição nos tratores e roçadeiras.

- É mesmo? O povo ainda não esqueceu aquela história?

- É assim que a dona Oda Black conta. Mas eu não acredito. Uma garota que nem você passando frio sozinha aqui no alto da montanha? Você não mudou nem um pouquinho.

Sozinha. Ela olhou de lado, tentou escutar. Eddie Bondo sabia, como ninguém, desaparecer. Ótimo. Ninguém precisava saber que ele era par­te dessa história.

- Nem um pouquinho, desde o ginásio? - perguntou com doçura. -Você quer dizer que até hoje minha única esperança de arrumar um na­morado é todas as outras mulheres do condado pegarem raiva?

- Não, não. Você está entendendo errado. A gente adorava você, Diana.

- Ora, Sammy. E como eu nunca consegui notar? Ele riu.

- E que a gente tinha medo de você.

- Então é por isso que você subiu armado até aqui? Ele olhou desapontado para a arma.

- O quê, isso?

- Lamento muito, Sammy - disse ela parecendo realmente triste -, mas a estação de caça ao veado é no outono. E ainda é verão.

Ele olhou para ela, piscando com o esforço da inocência.

- E sabe o que mais? Lá no posto do George Tick? Ele está distri­buindo calendários de caça. Você bem que poderia pegar um no caminho de volta.

Sammy deu uma risadinha, balançando a cabeça.

- Diana Wolfe. Você, heinl - deu mais uma risadinha. - Você conti­nua engraçada igual no ginásio.

- Você também, Sammy. - continuou a sorrir, esperando. Sabia como aquilo ia terminar. Já estava quase no fim.

Ele pareceu ter uma idéia brilhante.

- Ora, eu não estava pensando em caçar nada. Só queria ver se acha­va um pouco de seng. Esqueci do pagamento da pensão.

- Então - disse ela, séria -, foi bom você ter trazido a carabina. O seng constuma atacar na estação de reprodução dos animais.

Ele riu e riu, Sammy Hill. Jogou a cabeça para trás e piscou para ela, e então, de repente, ela o viu aos dezesseis anos, o corpo comple­tamente diferente. Magro e confiante, jogando com um movimento do pulso uma bola de papel na cesta de lixo - aquele Sammy Hill, jogador de basquete. Tinha uma irmã presunçosa, Regina, que os colegas chama­vam de Rainha da Colina.

Sammy cocou a bochecha com o punho, traindo a falta de um molar no sorriso sem jeito.

- Não. Ora, eu preciso da carabina para me defender - disse convicto. -Ursos e outros bichos. Depois que me contaram o que aconteceu com você.

- Claro, claro que eu entendo. Mas, Sammy, você enfrenta um urso com a mão amarrada nas costas. Um atleta igual a você. Você ainda dá aquelas enterradas?

Ele abriu um sorriso.

- Que nada! - disse corando sob a barbicha.

- Bem, vou lhe dar as más novas. Agora também é proibido colher sen0 - o governo quer que tudo volte a crescer na montanha. Sinto muito, Sammy, mas você tem de ir embora. - sentia pena dessa versão pesada de Sammy, que amadureceu tão depressa e agora ficara para semente -Talvez haja seng nos fundos da terra de seu pai, lá perto do delta.

- Sabe, eu acho que tem mesmo.

- Como vai o seu pai?

- Morreu.

- Então não vai tão bem, não é?

- Nem tão mal.

- Muito bem. Foi muito bom ver você de novo. Dê um abraço em Regina por mim.

- Ora, Regina não conversa comigo, só reclama. Desde que eu bati com o carro dela. Acho que você vai ter de dar o abraço você mesma.

- Está bem - disse Diana, erguendo a mão num aceno discreto. Sammy tocou a aba do chapéu camuflado e desceu a encosta, lento e desajeitado, com a cabeça lançada para frente como costumam andar os homens altos e barrigudinhos. Tinha de caminhar com cuidado pela encosta íngreme.

Ficou ainda algum tempo esperando que as moléculas de Eddie Bondo se reagrupassem saindo dos ramos do pinheiro e do ar úmido. Não estava atrás dela, mas um pouco acima, parado atrás de onde Sammy estivera. Percebeu primeiro o sorriso dele, como o do Gato de Cheshire.

- Quem diria, Diana - disse ele, macaqueando o sotaque e cuspindo.

- Cuidado. Você está fazendo troça da minha língua.

- Aposto que a rapaziada toda te amava.

- Hu-hum. Mas não tanto que o amor alterasse o desprezo generalizado. Desceu a encosta até onde ela estava, como se tivesse nascido para

se mover em encostas íngremes. Homens baixos têm mais vantagens, decidiu, admirando sua graça. As costas eram mais firmes. E havia a questão dos ombros e dos quadris estreitos e o sorriso - a questão de Eddie Bondo. Sentiu um estranho orgulho interior por este macho magnífico ser seu par, pelo menos durante aquela estação.

- Que diabos é seng

- Ginseng.

Começou a andar em direção à trilha do Ribeirão do Ovo, e ele a seguiu.

- Foi o que eu pensei.

- E você já viu?

- Não sei. Como é? Ela pensou um pouco.

- Uma folha de cinco dedos, uma planta pequena, morre e se incor­pora ao solo no inverno. É muito exigente quanto ao lugar onde cresce. Geralmente só crescem sob o bordo nas encostas voltadas para o norte.

- E é bom para ex-esposas? Ela não entendeu.

- Ah, entendo, pagamento de pensão. E bom para qualquer tipo de pagamento. Mas é difícil de encontrar. Vem sendo colhido em excesso há cinco gerações.

- Daniel Boone tinha uma ex-mulher?

- Com toda a certeza. Já naquela época era fácil vendê-lo por bom preço, exportar para a China.

Caminharam em silêncio durante alguns minutos.

- Sammy Hill não estava procurando seng - disse ela.

- Não?

- Não. Se estivesse, ele ia precisar de pá e sacola, ia procurar num lugar mais alto, e ia procurar no outono, não agora.

- Não é possível encontrar seng agora?

- Eu consigo, o Sammy não. Eddie estalou a língua para ela.

- Mascarada.

- Não é isso. Acontece que é fácil encontrar seng no outono, e as pessoas costumam fazer o que é mais fácil. Durante a primavera e o verão, o ginseng é uma planta muito tímida, mas quando chega outubro, ela se descuida e expõe aquelas frutinhas vermelhas e as folhas amarelas que parecem bandeiras de sinalização de obras na estrada.

Mas não disse que, quando as encontrava nessa condição, ela arran­cava as folhas amarelas e as escondia no bolso para evitar que fossem descobertas pelos caçadores. Espalhava as frutinhas sob maciços vegetais, ajudando as raízes do ginseng a ocultar seus segredos. Mais tarde, quando lavava as roupas numa bacia de água escaldante, ela tirava as folhas de ginseng dos bolsos como se fossem maços de lenços de papel. Eddie a consideraria louca se soubesse. Guardar a montanha para seu uso priva­tivo, esta era a acusação mais comum que ele lhe fazia, mas não se trata­va disso. Se ninguém mais as visse, ela inclusive, não haveria problema; ela gostava da idéia de essas raízes, iguais a homens, dançarem sozinhas no seu mundo sob o solo. Gostaria que elas continuassem a existir para sempre, não por causa dos homens impotentes da China, mas por causa do ginseng.

Eddie Bondo estava curioso com relação às raízes. Quando se sen­taram sobre o musgo à margem do Ribeirão do Ovo para o almoço de sardinhas e biscoitos, ela riscou na terra escura as diferentes formas que já havia visto: homem de uma perna só, de um braço só; nem sempre os desenhos eram perfeitos. Na verdade, raramente o eram.

Mas ele não olhou para as figuras que ela fizera. Olhou para ela.

- Esses caras não te assustam, não é? Você acaba com eles e os manda embora sem perder o sorriso.

Ela olhou para o homem do ginseng que continuava lá em baixo.

- O quê, Sammy Hill?

— E o melhor é que ele adorou a coisa toda. Vai chegar lá em baixo e dizer para todo mundo que topou com essa loba de cabelos longos e pernas perfeitas.

Ela não gostou de pensar no que ele iria dizer.

— Tento não humilhar demais a masculinidade deles. Faça isso, e logo eles voltam com três ou quatro amigos e a coisa pode ficar muito feia. Mas a verdade é que eles não me assustam. - deu de ombros -Afinal, eu cresci com essas pessoas.

— Está aí uma coisa que eu não consigo imaginar: você com essas pessoas. Você dirigindo um carro, fazendo compras. Não consigo imaginar você em nenhuma outra situação que não nesta floresta.

— Acho que já estou aqui há muito tempo.

— E você não sente falta de nada?

— Se você está falando do colégio e dos Sammy Hills deste mundo, não sinto, não.

— Não estou. E você sabe do que eu estou falando. Ela tentou decidir se sabia.

— É claro que existem pessoas com quem eu gostaria muito de pas­sar um dia. E algumas coisas.

— Por exemplo?

— Nem sei dizer - pensou um pouco - Não carros, nem lâmpadas elétri­cas, nem filmes. Basta pedir que eu recebo livros. Mas passear pela biblioteca pondo a mão em livros de que nunca havia ouvido falar, é uma coisa que me faz falta. O resto, não sei. - pensou mais um pouco - Gosto de praia. A família de meu marido tem uma casa de praia na Carolina do Norte.

— a praia não conta. Quero saber de coisas que foram inventadas.

— Então são os livros. Poemas, histórias de terror, genética popu­lacional. Todos os quadros que o Mr. Audubon pintou.

— Que mais?

— Chocolate. E a cidra de maçã de Nannie. E o meu Collie, se não estivesse morto. Mas ele conta, bichos de estimação são invenções huma­nas. Fechou os olhos, tentando se lembrar do gosto de alguma coisa per­dida. E música, quem sabe? E uma coisa de que eu gostava muito.

— E você tocava algum instrumento? Ela arregalou os olhos.

— Não, mas ouvia muito. Meu pai tocava num conjunto regional, Out ofthe Blue. E quando vivi em Knoxville, havia um bar que a gente freqüentava, música da região e country. Artistas de quem você nunca ouviu falar. Umas irmãs que às vezes tocavam lá - eram ótimas - The Dii Chicks.

Eddie Bondo riu alto.

- É, é um nome engraçado.

- Engraçada é você. Você ficou muito tempo fora de circulação. Agora elas não tocam mais em botequins.

- Então você já ouviu falar delas?

- Eu e todo mundo que não é surdo. Ela balançou a cabeça.

- Impressionante. Tudo muda lá em baixo.

- Tudo muda em toda parte. Ela olhou séria para ele.

- Mas veja. Aqui as coisas não mudam tanto. Existem os grandes sucessos e os grandes fracassos, mas são muito lentos para serem perce­bidos em uma vida apenas. - ela cruzou os braços, abraçando-se. - Acho que é disso que eu gosto: a natureza é mais segura.

Ele se dobrou e beijou-a.

- Fale um pouco mais do ginseng.

Ela voltou a se concentrar no desenho de um homenzinho atrevido e perfeito, com duas pernas e dois braços, que não precisava de ginseng para ser viril. Ele a fez deitar no chão, sobre sua obra de arte, e os dois ficaram ali, rolando à luz do sol através das folhas, deixando sua própria impressão do desejo humano. Logo estavam a caminho da cabana, sem nada na cabeça que não o próprio corpo.

Foi quando encontraram os coiotes, duas fêmeas caçando em cam­po aberto. Estavam a cerca de uma milha do ribeirão que desaguava no Ribeirão Amargo, um lugar onde Diana não esperava encontrá-las. Era uma clareira onde as árvores caídas haviam aberto a cobertura de folhas deixando entrar um pouco de sol sobre o chão da floresta, que agora estava coberto por um tapete vermelho de folhas novas de amora. De início ela pensou que eram cachorros, pois eram muito grandes: o pêlo espesso atrás das orelhas com os huskies, e muito mais fortes que os espécimes anêmi­cos que vira no zoológico ou que os coiotes do oeste que havia visto em fotografias. As duas eram douradas ao sol, curvando as costas, saltando através da folhagem espessa, primeiro uma depois a outra, como um par de golfinhos rolando sobre as ondas. Caçavam alguma coisa pequena e rápida sob as folhas e o capim. Possivelmente um ratinho ou outro roedor. Não deram atenção ao par de humanos congelados na sombra. Estavam concentradas na perseguição, as orelhas viradas para a frente, como se fossem mecânicas, buscando sons imperceptíveis. Agindo como duas par­tes de um mesmo animal, as duas cercaram e acuaram sua presa contra um barranco de calcário, atacando-a com os longos focinhos. Diana observava enfeitiçada. Avaliou a eficiência das duas nas margens de uma lavoura a perseguir ratos e roedores que pareciam preferir. Não era de admirar que os criadores as vissem e temessem por seus animais; quem dera eles soubessem que só tinham de temer a perda dos ratos do cam­po. Observando as duas, ocorreu-lhe que essa técnica de caçada deveria ser até benéfica para pássaros que constróem ninhos no chão, por causa das muitas passagens que eram abertas no capim alto.

Então, sem qualquer indicação de que a caçada estava no final, a primeira saltou e ergueu a cabeça puxando de lado, agarrando o ratinho no ar como se fosse um paninho de limpeza de que ela estivesse sacudindo o pó, e desapareceu na mata com a presa ainda a se debater entre seus dentes. A irmã parou na entrada da floresta e olhou para os dois com um olhar ameaçador.

Diana não falou durante o resto do dia. O que poderia dizer a esse homem, cujos pensamentos ela temia saber? Ela gostaria que ele tivesse percebido a beleza das duas naquela clareira ensolarada, como eram dou­radas e perfeitamente adaptadas à satisfação de suas próprias necessida­des. Mas preferiu não perguntar. A vista das duas levou-o a se retrair para dentro de si mesmo, evitando cuidadosamente tocar ou olhar para ela enquanto observavam os animais. Depois não disse uma palavra so­bre o que acabaram de ver.

Não foram para cama naquela tarde, o que antes parecia ser a intenção dos dois. O corpo dela ficou frio. Ferveu água para fazer chá, depois cozinhou arroz e reaqueceu o feijão preto do dia anterior. Ela e Eddie tinham se habituado a comer as refeições na cama, mas naquele dia ela sentou-se na única cadeira, encheu a mesa de livros, papéis e o caderno de campo que havia esquecido e escreveu enquanto comia. Eddie Bondo estava agitado, andando de um lado para o outro na varanda. O ruído mais ensurdecedor da terra era o que faz um homem que não tem o que fazer. Por que ele ainda estava ali?

Pela centésima vez ela se perguntou sobre a sua louca escolha de parceiro. A fêmea da galinha do prado copula com o macho que infla o saco amarelo e faz mais barulho. Outras fêmeas de pássaros se acasalavam com o macho que fizesse o ninho mais espalhafatoso. O que havia em Eddie Bondo que a atraía com tanta força - o passo que se ajustava ao dela, finalmente um homem capaz de acompanhá-la? Ou seria a menor estatura, depois de tantos anos sendo comandada por uma porção de professores? Mas ele era muito arrogante, auto-suficiente como qualquer outro que ela já encontrara. Sob esse aspecto, ele era realmente o seu par. Só gostaria de se sentir menos como uma galinha do prado, a andar tonta pelo local de acasalamento para a grande exibição.

No fim da tarde, sem conseguir suportar mais a proximidade, ela inventou a necessidade de descer com um martelo até um bosque de pinheiros. Precisava trabalhar na ponte que cruzava o riacho naquele ponto da trilha e que havia caído em fevereiro. Ainda tinha algumas horas de luz, pois o solstício de verão já estava próximo. (Pensou consigo mesma: "será que eu deixei passar o solstício?") Teria de desmontar a ponte, contar as pranchas irrecuperáveis e requisitar a madeira necessária para o reparo, pois o jipe do Serviço Florestal não devia demorar a trazer os suprimentos e levar a nova lista. Não pretendia solicitar acréscimo da quota de alimento, nada extra. Saiu da cabana sem uma palavra, incapaz de imaginá-lo a fazer outra coisa que não limpar a arma na sua ausência.

A ponte ficava num afluente que caía no Ribeirão Amargo, numa garganta estreita onde os ventos ascendentes carregavam o som de for­ma excepcionalmente boa. Às vezes, lá do alto ela ouvia sons que vinham do fundo do vale: um cachorro latindo, ou até mesmo o ruído constante dos caminhões na rodovia. Mas isso era no inverno, quando as árvores estavam nuas. Hoje, enquanto trabalhava no exame das pranchas, ela ou­viu apenas o silêncio que precede as noites de verão, antes de os grilos começarem a trilar, quando os sons da floresta são separados por longos silêncios. Um esquilo zangou-se com ela, mas depois parou. Um pica-pau fazia seu trabalho em volta do tronco de um pinheiro. Eddie Bondo havia falado de alguns pica-paus que havia visto no Oeste, criaturas engraçadas que se reuniam para furar diversos buracos em troncos mortos, que depois enchiam de bolotas de carvalho, e passavam o resto de seus dias defenden­do aquele estranho tesouro de ladrões da vizinhança. Como a vida às vezes perdia o sentido, como era absurdo inventar coisas para amar, sim­plesmente para morrer de medo de perdê-las. Ouviu o ruído metódico do pica-pau, que só parava quando o pássaro precisava arrancar pedaços da casca que caíam no chão coberto de musgo perto do riacho.

Estava arrancando as últimas pranchas da estrutura de troncos, quan­do ouviu alguma coisa que a fez parar e ouvir. Vozes: pareciam homens falando. Ela se levantou e prestou atenção. Caçadores.

Afastou uma mecha de cabelo do rosto, sentindo-se esgotada. Esse era, com certeza, o dia mais longo do ano, pois ela já estava cheia dele. A conversa indicava que havia mais de um, e nessa hora do dia, deviam estar a fim de alguma coisa estúpida como subir nas árvores e passar a noite para matarem os perus à primeira luz do dia seguinte. Suspirou e andou sobre o tronco sobre o riacho até onde havia deixado a jaqueta. Tinha de descer até lá e reunir a energia necessária para pagar para ver.

Os sons vinham de longe, talvez a uma milha. Mas eram claros e contínuos. Escutou mais um minuto os murmúrios baixos e contínuos. Não eram palavras. Eram rosnados. Pequenos rosnados conversacionais e latidos agudos. Não eram homens falando; eram mulheres, mulheres coiotes; não uivavam para a lua, mas rosnavam calmamente na linguagem que as mães usam para falar aos filhos. Aquela manhã, as duas fêmeas tinham caçado um rato vivo. Não o tinham comido nem matado, só o imobilizaram. E, naquele instante, Diana entendeu. Os filhotes estão vivos, cantou para si mesma num sussurro. Vivos no mundo, com os olhos aber­tos, aprendendo a caçar. Aprendendo a falar. Meninos coiotes que nasce­ram com a cabeça vazia, como os humanos, que tinham de aprender tudo o que era necessário para viver. Seus protetores ficaram mudos durante toda a primavera, mas agora teriam de vocalizar; nenhuma criatura social cresce muda, pois não sobreviveria. Os filhotes já deviam ter seis semanas, quase prontos para caçar sozinhos. Deviam ser um espetáculo. Empilhou rapidamente a madeira boa contra um tronco de pinheiro e voltou para casa, apesar de a casa não lhe oferecer muito na atual situação: um lugar onde não poderia pronunciar uma palavra do que havia descoberto, nem dormir, até ver aqueles filhotes com seus próprios olhos abertos.

À primeira luz da manhã, movendo-se depressa ao longo da trilha do Ribeirão Amargo, ela parou para ouvir. Nada, só o silêncio. Ou me­lhor, todo tipo de som, menos o que ela queria ouvir. Muito barulho que se erguia das folhas secas em volta de seus pés - devia ser um lagarto tentando parecer grande como um urso. Continuou a andar, sabendo o que devia ouvir, certa de que havia de ouvi-lo. Passara toda a primavera esperando, enquanto sua imaginação se enchia de vozes que lhe eriçavam o cabelo da nuca: os clássicos uivos para a lua, os latidos e gritos polifônicos que ela havia estudado em fitas cassete que se gastaram até serem quase reduzidas a fitas transparentes de celofane. Tinha medo de ter gasto a memória da mesma forma, esperando nessas montanhas, esticando o cor­po nas noites silenciosas, e finalmente decidindo que o som que ela espera­va não viria. Ali eles não precisavam falar. Não era como no Oeste, onde eles se chamavam do alto das colinas pela pura alegria da quantidade, pois eram tão numerosos. Era preciso se lembrar de quem eram, quantas famílias eram, onde ficava cada uma. Aqui só havia uma família, que sabia exatamente onde estava. Melhor manter silêncio.

O trabalho mais penoso da vida de Diana fora ficar longe da toca, protegendo-a com sua ausência. Às vezes ela tinha a certeza de que tinham ido embora, ido para o sul na direção da Serra Azul. Ela tentara se con­vencer de que assim era melhor, mas a verdade é que não havia abrigo seguro para aquela família. Onde quer que fossem, esses coiotes teriam de enfrentar o ódio dos criadores. Aqui nessa montanha isolada, eles tinham a estranha combinação de um protetor e um inimigo. Ela não tinha fé na própria capacidade de negociar a sobrevivência deles. Nas seis semanas de conhecimento de Eddie Bondo, o que incluía tanto as ausências quanto as presenças, ela havia negaceado e mentido. Agora ele os havia visto, e ela passou infeliz a noite anterior enrolada na cadeira perto do fogão à lenha, enquanto ele roncava. De manhã seus ossos doíam e sua mente estava em branco. Mas mesmo assim ela pôs as cartas na mesa.

- Vou descer a encosta hoje, sozinha. Se me seguir você vai embora desta montanha pelo resto de sua vida ou da minha, a que terminar primeiro.

Sem uma palavra, ele enfiou uns biscoitos na mochila, jogou-a so­bre o ombro e saiu assoviando pela estrada do Serviço Florestal na dire­ção oposta à do Ribeirão Amargo. Diana esperou durante vários minutos, olhando para o chapéu que ele tinha deixado pendurado no gancho junto da porta, e para a arma encostada no canto. Ela então se vestiu e correu pela trilha, finalmente livre para ir ver. Agora ela podia escutar sem ter medo de ouvir as vozes que denunciariam a presença deles. Durante to­das aquelas semanas ela vinha prendendo a respiração, escutando sem querer ouvir. Como deixara aquilo acontecer?

Parou outra vez, ouvindo apenas o riso maluco de um casal de pica-paus que se divertia pulando de lado pela floresta, saltando de uma árvore para a próxima. Ficou um minuto a observar os dois pica-paus coroados jogando damas consigo mesmos. Eram enormes, como dois gatos pre­tos voadores, notáveis pela voz estridente e arrogante e pelo topete ver­melho arrepiado. Teve uma visão dos fantasmas, imaginou os bicos de marfim - primos mortos desses pica-paus coroados - ainda maiores, com quase três pés de envergadura e olhos frios e brancos. Pássaros do Senhor Deus, era como o povo os chamava, pois era o que todos grita­vam ao ver um. Nunca mais.

Nesse momento, sob os risos dos fantasmas, começou a ouvir as vocalizações intermitentes dos coiotes. Ela caminhou na direção do som, cem passos lentos na trilha, até parar num lugar de onde poderia obser­var de trás dos rododendros e ter uma visão clara da toca. O lugar estava diferente do que vira na primavera; agora a floresta estava cheia de folhas. O ar e a luz se moviam de modo diferentes, e a toca também estava mudada. A terra abaixo da toca era um avental de terra, marcado de tantas pegadas minúsculas que parecia ter sido feito de veludo cotelê marrom. Pensou ter visto um movimento dentro do sorriso escuro da toca, mas nada, tudo imóvel. Marcou um minuto contando as batidas do coração, e depois mais minutos e se convenceu de que na verdade não havia visto nenhum movimento. Antes havia filhotes ali, estava claro pe­las marcas no chão, mas começou a achar que agora era muito tarde. Ela os havia perdido por um dia; haviam crescido e se foram.

Então ela notou um movimento numa moita de mirtilo a pouca dis­tância da toca. Um gemido longo atraiu seu coração num apelo irresistível. Um adulto estava na moita, a mãe ou uma das fêmeas beta, chamando os filhotes para fora. Eles apareceram imediatamente na boca da toca, uma fila de olhos brilhantes sob uma floresta de minúsculas orelhas em ponta. Diana tentou contar, mas eram muitos, um bando incontrolável de orelhas e rabos; mais de seis e menos de vinte, decidiu afinal. Tropeçavam uns sobre os outros ao sair da toca, enquanto a fêmea se aproximava com alguma coisa nos dentes, uma coisinha escura que ela jogou no meio deles. Ouviu-se uma onda de rosnados e gemidos e as bolinhas peludas douradas pulavam como pipocas na panela. Filhotes, pensou ela; não passavam de filhotes. Mas também eram como gatinhos, no modo como brincavam com o ratinho meio morto que acabara de lhes ser entregue no pátio da escola. Diana caiu de joelhos, voltou aos verões da infância, quando os vizinhos lhe traziam ninhadas de cachorrinhos em caixas, e as gatas do celeiro pariam suas ninhadas praticamente nas suas mãos. Sem que ela percebesse, seu corpo voltou à infância, os dentes mordendo com força a trança para não gritar e as mãos no peito para não deixar o coração explodir.

Desejou tanto o pai, parecia uma oração: se ao menos eu pudesse lhe mostrar, por favor. Permita que ele veja do Céu e veja através de meus olhos, das células do gênese que ele plantou em mim, permita que ele veja isso, pois ele entenderia perfeitamente. Amor era uma coisa que ele sempre foi capaz de reconhecer quando via.

Tentou lembrar de mais alguém a quem ela pudesse falar sobre esses cachorrinhos, essa matilha coesa de sobrevivência e amor. Não dis­secar sua história e natureza, isso ela já havia feito. Ela queria explicar como tudo aquilo dava a sensação de uma família.

 

 

CONTINUA

 

 

Garnett abriu a água quente e a deixou escaldar os músculos que escon­diam as omoplatas. Como doíam, como se tivesse levado ali um soco do desordeiro no colégio.

Suspirou. A vida estava ficando muito difícil para um velho. Não era o trabalho; ele adorava trabalhar com as castanheiras. As pessoas imaginavam que devia ser enormemente tedioso proteger todas as flores na primavera, fazer a polinizaçao cruzada, recolher as sementes e plantá-las, mas para ele aquilo tudo era excitante, pois daquelas sementes talvez surgisse a tão sonhada castanheira resistente à praga. Todo saquinho de papel colocado sobre a ponta de um galho, cada pitada de pólen, cada passo trazia a esperança de uma coisa maravilhosa. Um pedaço do mundo perdido que voltava, ali, bem diante de seus olhos.

 

 

 Segunda Parte

 

 

Não, o que o estava esgotando ultimamente era ter de enfrentar um problema atrás do outro, o desânimo representado por essa fazenda e toda a sua história. Ela não passava de um depósito de entulho que escondia suas ameaças sob uma pele de grama. Na verdade, todas as fazendas da região eram assim. Havia visto um jovem casal com um corretor examinando uma fazenda perto da loja de Oda Black, e ficara tentado a gritar da janela da pick-up:

- Procurando histórias? Isso aí é a história de como o Velho Blevins se enterrou em dívidas e equipamento velho, e agora está aí, esperando para enrolar o primeiro que aparecer.

Na verdade, ele não lhes dissera nada, e eles iam comprar. Tinham a aparência boba de gente da cidade; a mulher se vestia mais como homem do que o homem. Logo iam aprender o que Garnett já sabia de cor: numa fazenda velha, toda vez que se finca a pá para plantar uma árvore bate-se num pedaço de prato, o que sobrou do couro de um arreio, um pedaço de metal enferrujado, quem sabe até uma bala de canhão! Quando Garnett era menino, seu pai trazia, não se sabe de onde, balas de canhão para eles brincarem até elas desaparecerem esquecidas no pomar ou enterradas nos canteiros da mãe, esperando de tocaia para criar a maior confusão 50 anos depois, um arado, uma grade ou outro equipamento qualquer, ao custo de um dia de trabalho e muito dinheiro para o conserto.

Nessa manha ele tinha um plano modesto: terminar a limpeza do campo do fundo ao longo da cerca para plantar mais uma fileira de árvores. Imaginara que o mais difícil seria arrancar o mato, mas estava enganado. Quebrou a roçadeira e depois um disco do arado. Enterrados naquele pe­dacinho de terra, ele encontrou seis mourões de cerca enrolados em arame farpado, que evidentemente haviam sido deixados ali quando foram subs­tituídos pela cerca nova, lá pelos anos 40. Depois de arrancar tudo aquilo, descobriu uma quantidade absurda de pregos e porcas espalhados, o su­ficiente para encher três baldes (e três viagens até a pilha de entulho na garagem, que agora estava ficando monstruosa). Então, por baixo de tudo aquilo, o chassis metálico completo de uma carroça - e o pior ainda estava por vir! No fim da cerca ele descobriu um rolo enorme de plástico com alguma coisa pesada no interior, que Garnett de início pensou que podia ser um cadáver (depois do que já havia encontrado hoje, por que não?). Mas não, eram caroços de um pó branco, talvez sal gema, embora ele não pudesse ter certeza. Alguma coisa que seu pai quisera jogar fora quando Garnett ainda era menino. Esse era o problema da forma de eles pensarem naquele tempo: "fora" queria dizer apenas "em algum lugar que não aqui", para mais tarde alguém topar com aquilo. Garnett já estava cheio de tudo aquilo, e ainda não tinha limpado o terreno que queria ver pronto antes do almoço, e agora? Meu Deus, agora era o telefone chamando.

Fechou o chuveiro e prestou atenção. Era mesmo o telefone do sa­guão...

 

 

                      

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