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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


VINGANÇA DE SANGUE / Wilbur Smith
VINGANÇA DE SANGUE / Wilbur Smith

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

 

Vingança de Sangue é a sequència de A Lei do Deserto, obra também publicada pela Presença nesta coleção. Neste segundo volume reconhecemos de imediato a mesma intensidade dramática, o suspense e a aventura levados a níveis capazes de desafiar o leitor mais intrépido. Aqui, Hector Cross tem encontro marcado com o inimigo, e fica a sabê-lo da pior forma possível, quando este ataca, sedento de sangue e vingança, assassinando brutalmente Hazel Bannock, agora mulher de Hector e nos últimos meses de gravidez. Determinado a fazer justiça, Hector reúne os seus amigos mais leais da Cross Bow Security, a empresa de segurança de que foi diretor, e juntos viajam para algumas das regiões mais remotas do Médio Oriente. Mas Hector percebe que está a lidar com um inimigo de múltiplos rostos quando figuras sinistras do passado da família Bannock começam a emergir, envoltas em segredos hediondos que Hazel nunca teve coragem de lhe revelar, levando Hector até ao coração de África e a confrontar-se com uma série de crimes tão perversos e chocantes que jamais poderão ficar impunes.

 

 

 

 

 

 

 


1
Despertou por completo antes de se mexer ou abrir os olhos. Permaneceu imóvel
por um segundo, a avaliar a situação em que se encontrava, atento a possíveis perigos enquanto os seus instintos de guerreiro assumiam o controlo. Depois apercebeu-se
do delicado perfume dela e ouviu-a respirar tão suave e uniformemente como a ondulação a esmorecer numa praia distante. Estava tudo bem. Sorriu e abriu os olhos.
Virou a cabeça sem fazer barulho, para não a acordar.
O sol matinal infiltrara-se através de uma nesga nas cortinas e lançava uma estria de ouro batido ao longo do teto, fazendo também recair uma luz intrigante sobre
a cara e o vulto dela. Estava deitada de costas. O rosto exibia uma expressão serena e encantadora. Tinha afastado os lençóis com os pés durante o sono e estava
nua. Os tufos de pelos loiros que lhe cobriam o monte de Vénus eram de um tom um pouco mais escuro do que o esplêndido emaranhado de madeixas de cabelo que lhe caíam
sobre o rosto. Os seios, nessa fase tão avançada da gravidez, tinham aumentado para quase o dobro do seu tamanho normal. Deixou o olhar deslizar até à barriga. A
pele, retesada e acetinada, estava distendida pelo precioso volume que albergava. Enquanto se fixava nela, apercebeu-se de um ligeiro movimento quando o bebé se
mexeu dentro do ventre e, por momentos, ficou de respiração suspensa perante a intensidade e a força do amor que sentia por ambos: a sua mulher e a criança por nascer.
- Para de olhar para a minha barriga enorme e gorda e dá-me um beijo, mas é - disse ela sem abrir os olhos. Ele riu-se e inclinou-se sobre ela. Ela envolveu-lhe
o pescoço com os braços e, quando os seus lábios se abriram, ele sentiu-lhe o hálito doce. Logo depois, de lábios encostados à boca aberta dele, sussurrou-lhe: -
Não consegues controlar este teu monstrinho, pois não? - Estendeu a mão para o entrepernas dele. - Por esta altura, ele já devia saber que não há espaço para ele
aqui dentro. - Chama-lhe desmiolado - disse ele. - Mas também nunca foste de grande ajuda para o manter sob controlo. Tira-me essa mão daí, sua fêmea desavergonhada!
- Espera só umas semanas e depois já te mostro o verdadeiro significado da palavra "desavergonhada", Hector Cross - advertiu-o. - E agora, liga para a cozinha e
pede café.
Enquanto esperavam que lhes trouxessem o café, Hector saiu da cama e abriu as cortinas, deixando o sol irromper pelo quarto adentro.
- Os cisnes estão na lagoa da Represa - disse ele. Ela soergueu-se com esforço na cama, usando ambas as mãos para amparar a barriga. Hector voltou de imediato para
junto dela e ajudou-a a levantar-se. Ela agarrou no roupão de cetim azul pousado na cadeira e vestiu-o enquanto voltavam para junto da janela panorâmica. - Sinto-me
tão desajeitada! - queixou-se ela ao mesmo tempo que atava o cinto. Hector manteve-se atrás dela e envolveu-lhe delicadamente a barriga com as mãos.
- Alguém está a dar pontapés outra vez - sussurrou-lhe ele ao ouvido, prendendo-lhe o lóbulo da orelha entre os dentes e mordendo-lho com suavidade.
- Como se eu não soubesse. Sinto-me inchada como uma maldita bola de futebol. - Estendeu a mão por cima do ombro e bateu-lhe na cara ao de leve. - Não faças isso.
Já sabes que fico toda arrepiada quando fazes isso.
Observaram em silêncio os cisnes na lagoa. O macho e a fêmea eram de um branco deslumbrante sob o sol matinal, mas as três crias eram de um cinzento sujo. O macho
enfiou o pescoço comprido e sinuoso na água esverdeada para se alimentar das plantas aquáticas no leito da lagoa.
- São lindos, não são? - perguntou ele por fim. - São uma das muitas razões por que adoro a Inglaterra - murmurou Hazel. - Que cenário perfeito. Devíamos contratar
um bom artista para o pintar.
O rio derramava-se na lagoa por cima de uma pedra e a água era límpida. Daquela altura de três metros, podiam ver as sombras da enorme truta pousada na gravilha
do leito. Salgueiros perfilavam-se nas margens e roçavam a superfície da lagoa com as suas ramagens curvadas. O prado mais além era de um verde luxuriante e as ovelhas
que aí pastavam eram tão brancas como os cisnes.
- É o lugar ideal para criarmos a nossa menina. Sabes bem que foi por essa razão que comprei esta propriedade. - Hazel soltou um suspiro de contentamento.
- Sim, eu sei. Já mo disseste vezes sem conta. Só não sei como é que podes ter tanta certeza de que é uma menina. - Acariciou-lhe a barriga. - Não queres saber ao
certo se é menino ou menina, em vez de te pores a adivinhar?
- Não estou a adivinhar. Simplesmente sei-o - replicou ela com uma satisfação complacente, cobrindo com as suas mãos brancas e esguias as enormes mãos bronzeadas
dele.
- Podíamos perguntar ao Alan esta manhã, quando formos a Londres - sugeriu ele. Alan Donnovan era o ginecologista dela.
- Para de me chatear com esse assunto. E não te atrevas a perguntar ao Alan e estragar-me a surpresa. Vá, veste o roupão, senão ainda assustas a coitada da Mary
quando ela trouxer o café - disse ela com carinho.
Segundos depois, alguém bateu discretamente à porta. - Entre! - disse Hector, e a criada de quarto entrou com o tabuleiro de chá. - Bom dia a todos! Como está a
senhora e o bebé, senhora Cross? - disse ela no seu jovial sotaque irlandês, colocando o tabuleiro em cima da mesa.
- Está tudo bem, Mary. Mas isso que estou a ver no tabuleiro são biscoitos? - perguntou Hazel.
- Apenas três, pequenos. - Leva-os embora, por favor. - Dois para o senhor e apenas um para si. São de aveia simples. Sem açúcar - disse Mary, tentando convencê-la.
- Sê uma querida, Mary. Faz-me a vontade. Leva-os embora, por favor. - A pobre criaturinha deve estar a morrer à fome - resmoneou Mary, mas pegou no prato com os
biscoitos e saiu da divisão. Hazel sentou-se no sofá e encheu uma caneca de café tão escuro e forte que o aroma permeou o quarto. - Meu Deus! Cheira tão bem! - disse
num tom nostálgico enquanto lhe passava a caneca. Depois serviu-se de leite magro na sua própria chávena de porcelana, sem adicionar açúcar. - Ugh! - exclamou com
repulsa quando o provou, mas engoliu-o como se fosse um medicamento. - E então, como pensas ocupar o teu tempo enquanto eu estiver com o Alan? Já sabes que irá ocupar-nos
pelo menos umas duas horas. Ele é muito meticuloso.
- Tenho de levar as minhas caçadeiras ao Paul Roberts para as guardar e depois tenho de ir ao meu alfaiate tirar as provas do fato. - Não vais andar por aí às voltas
no trânsito matinal de Londres com o meu lindo Ferrari, pois não? Ainda lhe fazes uma amolgadela, como fizeste ao Rolls Royce.
- Precisas de estar sempre a lembrar-me disso? - Abriu os braços num gesto de indignação fingida. - A parva da mulher não parou no semáforo vermelho e esbarrou-se
contra mim.
- Conduzes como um louco, Cross, não negues. - Está bem, vou apanhar um táxi para tratar dos meus assuntos - prometeu. - Também não quero parecer um jogador de futebol
naquela tua máquina feita para snobes. Seja como for, tenho o meu novo Range Rover à minha espera. O Stratstone lá do concessionário ligou-me ontem a dizer que já
está pronto. Se te portares bem, e todos sabemos que te portas sempre bem, levo-te a almoçar nele.
- Por falar em almoço, aonde vamos? - perguntou ela.
- Nem sei porque me dou ao trabalho. Qualquer restaurante serve folhas de alface, mas reservei a nossa mesa do costume no Alfred's Club.
- Agora já sei que me amas de verdade! - Podes crer que sim, sua magricela. - Mente-me, mente-me, que eu gosto! - Ofereceu-lhe um sorriso beatífico.
2
O Ferrari vermelho de Hazel estava estacionado por baixo do pórtico que abrigava a porta. Reluzia como um enorme rubi sob a luz do sol. Robert, o motorista, tinha-o
polido com imenso carinho. Era o seu preferido entre os vários automóveis estacionados na garagem subterrânea. Hector estendeu a mão para a ajudar a descer a escadaria
frontal e instalar-se depois no banco do condutor. Assim que ela conseguiu enfiar a barriga à frente do volante, Hector debruçou-se afobado sobre ela para lhe ajustar
o banco e apertou-lhe o cinto de segurança de forma confortável por cima do volume do ventre.
- De certeza que não queres que seja eu a conduzir? - perguntou ele com solicitude.
- Nem pensar - replicou ela. - E muito menos depois de todas aquelas coisas horríveis que disseste do automóvel. - Deu uma palmadinha no volante. - Entra e vamos
embora, mas é.
Era pouco mais de um quilómetro desde a herdade até à autoestrada, mas a estrada da propriedade estava pavimentada. Na curva antes de se chegar à ponte sobre o rio
Test, tinha-se uma vista esplêndida da mansão atrás. Hazel parou por alguns momentos. Era rara a vez que resistia à tentação de se regozijar com aquilo a que humildemente
se referia como "o edifício georgiano mais encantador que existe".
Brandon Hall tinha sido construída por Sir William Chambers para o conde de Brandon, em 1752. Era o mesmo arquiteto que edificara Somerset House, em The Strand.
Brandon Hall estava vergonhosamente negligenciada e decrépita quando Hazel a adquiriu. Hector esforçava-se por conter um estremecimento quando pensava na quantia
de dinheiro que ela gastara na casa para a deixar no seu atual estado de perfeição. No entanto, nunca poderia negar a beleza das suas linhas elegantes e perfeitamente
equilibradas. No ano anterior, Hazel surgira em sétimo lugar na lista das mulheres mais ricas do mundo segundo a revista Forbes. Por conseguinte, podia permitir-se
esses luxos.
Ainda assim, que mulher no seu perfeito juízo precisa de dezasseis quartos, por amor de Deus? Mas pro diabo com os custos, pescar no rio é uma autêntica maravilha.
Vale cada dólar gasto, consolou-se. - Vá lá, querida - disse em voz alta. - Podes admirá-la no caminho de regresso, senão ainda chegas tarde para a consulta com
o Alan.
- Adoro desafios - disse ela numa voz doce, arrancando e deixando marcas negras de borracha na superfície do asfalto atrás deles, bem como uma nuvem de fumo azul-pálido
a pairar no ar.
Com uma manobra de grande desenvoltura, Hazel entrou em marcha atrás no lugar do parque de estacionamento subterrâneo por baixo do edifício em Harley Street, de
onde Alan Donnovan tinha retirado o seu próprio automóvel para que ela pudesse estacionar, e depois verificou as horas no relógio de pulso.
- Uma hora e quarenta e oito minutos! Creio que é o meu melhor tempo até à data. Quinze minutos antes da hora da consulta. Gostarias de te retratar da piadinha que
disseste, de que chego sempre atrasada, seu convencido?
- Um dia vais acabar por ser apanhada pelo radar de controlo de velocidade de algum carro da polícia escondido e ficas sem a carta de condução, minha querida.
- A minha carta de condução é americana. Estes simpáticos polícias britânicos não podem tocar nela.
Hector acompanhou-a até à sala de espera do consultório de Alan. Assim que ouviu a voz dela, Alan saiu da sala do consultório para a cumprimentar, uma rara demonstração
de respeito que em geral reservava apenas à realeza. Parou junto à entrada para a admirar. O vestido de grávida de Hazel, folgado e de algodão macio das ilhas do
mar, tinha sido confecionado especialmente para ela. Os olhos brilhavam-lhe e a pele reluzia. Alan inclinou-se para lhe tomar a mão e tocou-a ao de leve com os lábios.
- Se todas as minhas pacientes fossem tão saudáveis como tu, ficava sem trabalho - murmurou.
- Quanto tempo vais retê-la aqui, Alan? - Hector deu-lhe um aperto de mão.
- Percebo bem porque estás tão desejoso de a ter de volta. Semelhante leviandade raramente fazia o estilo de Alan, mas Hector riu-se e insistiu: - Quanto tempo?
- Quero fazer alguns exames e talvez consultar os meus colegas. Dá-me duas horas e meia. Pode ser, Hector? - Deu o braço a Hazel e conduziu-a para o interior do
consultório.
Hector observou enquanto a porta se fechava. Ficou ali especado, de olhos fixos na porta. Sentiu-se avassalado pela súbita premonição de uma perda iminente, como
nunca sentira antes. Quis ir atrás dela, trazê-la de volta e abraçá-la encostada ao seu coração para sempre. Precisou de alguns segundos para se recompor. Raios,
não sejas idiota! Controla-te, Cross. Virou-se e saiu para o corredor, em direção aos elevadores.
3
A rececionista de Alan Donnovan observou-o com indiferença enquanto ele se afastava.
Era uma bela rapariga afro-britânica, com olhos enormes e escuros e uma boa figura no seu uniforme branco. Chamava-se Victoria Vusamazulu e tinha 27 anos. Esperou
até ouvir o elevador parar ao fundo do corredor e as portas abrirem e fecharem atrás de Hector, e só depois tirou o telemóvel do bolso do casaco. Tinha gravado o
número na lista de contactos sob o nome "Ele!". O telemóvel tocou apenas uma vez e de seguida ouviu um clique na linha.
- Olá. És tu, Aleutian? - perguntou ela. - Já te disse para não mencionares nomes, sua cadela. Estremecia sempre que ele a tratava daquela maneira. Era tão autoritário.
Tão diferente de qualquer outro homem que ela já tinha conhecido. Levou instintivamente a mão ao seio esquerdo. Estava pisado e ainda dorido de ele lho ter mordido
na noite anterior. Esfregou-o e o mamilo endureceu. - Desculpa. Já me tinha esquecido. - A sua voz soou enrouquecida.
- Então não te esqueças de apagar depois o registo desta chamada quando terminarmos. E agora, conta-me! Ela já chegou?
- Sim, está cá. Mas o marido já saiu. Disse ao doutor que voltava à uma e meia.
- Ótimo! - disse ele, desligando a chamada. A rapariga afastou o telemóvel do ouvido e olhou-o. Deu por si a respirar pesadamente. Pensou nele, em como o sentia
duro e grosso quando a penetrava. Olhou para baixo e sentiu o calor que se propagava através das cuecas até às coxas. - Quente como uma cadela imunda no cio - sussurrou.
Fora isso que ele lhe chamara na noite anterior. O doutor não iria precisar dela durante um bom bocado, pois estava ocupado com a mulher Cross. Saiu da receção e
seguiu pelo corredor até aos lavabos. Fechou-se num dos cubículos. Depois, subiu as fraldas até à cintura e baixou as cuecas até aos tornozelos. Enfiou a mão. Queria
que aquilo durasse, mas assim que tocou no sexo quente não conseguiu conter-se. Foi tão rápido e tão intenso que ficou a ofegar e a tremer.
Hector regressou duas horas mais tarde e instalou-se num cadeirão de couro na sala de espera, virado para a porta da sala do consultório de Alan. Pegou num exemplar
do Financial Times pousado na mesinha de apoio e folheou-o até encontrar as cotações do índice FTSE da bolsa de valores de Londres. Nem se dignou a levantar a cabeça
quando o intercomunicador soou na secretária da rececionista. Ouviu-a falar em voz baixa ao auscultador e depois desligar. - Senhor Cross - chamou ela. - O doutor
Donnovan gostaria de lhe dar uma palavrinha. Importa-se de entrar na sala do consultório?
Hector pousou o jornal e levantou-se de um salto. Voltou a sentir uma leve punhalada de ansiedade. Aprendera a confiar nos seus instintos ao longo dos anos. Que
notícias terríveis teria Alan para lhe dar? Apressou-se para a porta e bateu. A voz abafada de Alan convidou-o a entrar. As paredes da sala do consultório estavam
revestidas com painéis de carvalho e as estantes pejadas de volumes médicos encadernados a couro. Alan estava sentado atrás de uma ampla secretária antiga, com Hazel
virada para ele. Hazel levantou-se
assim que Hector entrou e foi ao encontro dele, carregando a barriga enorme à sua frente. Sorria radiante e isso bastou para lhe acalmar as premonições de desastre.
Abraçou-a.
- Está tudo bem? - perguntou, olhando depois para Alan por cima da reluzente cabeleira loira dela.
- Tudo impecável! Mares calmos e ventos de feição! - tranquilizou-o Alan. - Sentem-se os dois. - Sentaram-se lado a lado e focaram toda a sua atenção nele. Alan
tirou os óculos e limpou-os com um pedaço de camurça.
- Muito bem, chuta aí! - encorajou-o Hector. - O bebé está a desenvolver-se bem, mas a Hazel já não é nenhuma jovem.
- Nenhum de nós é - concordou Hector. - Mas muito obrigado por teres mencionado isso, Alan.
- O bebé está quase pronto para vir ao mundo, mas é possível que a Hazel venha a precisar de uma pequena ajuda.
- Cesariana? - perguntou ela numa voz alarmada. - Meu Deus, não! - tranquilizou-a Alan. - Nada tão extremo. O que tenho em mente é um parto induzido.
- Explica-me, Alan, por favor - insistiu Hector. - A Hazel está na quadragésima semana de gestação. Estará pronta e em condições no final da semana que vem. Vocês
os dois estão enfiados lá nos bosques da zona mais recôndita de Hampshire. Quanto tempo demoram de lá até aqui a Londres? - duas horas e meia, em média - respondeu
Hector. - Alguns condutores de pé mais pesado fazem-no em menos de duas horas.
Hazel fez-lhe uma careta. - Quero que se mudem de imediato para a vossa casa em Belgravia. - Alan tinha sido convidado a jantar lá em mais do que uma ocasião. -
Vou reservar uma ala privada para a Hazel na quinta-feira desta semana, na secção da Maternidade do Hospital de Portland, em Great Portland Street. É uma das maternidades
mais reputadas do país. Se ela entrar espontaneamente em trabalho de parto antes dessa data, ficarão apenas a quinze minutos de distância do hospital. Se nada acontecer
até sexta-feira, darei uma pequena injeção à Hazel e o assunto fica resolvido.
Hector virou-se para ela. - Que te parece, minha querida? - Parece-me bem. No que me diz respeito, quanto mais cedo, melhor. Está tudo pronto para nós na casa de
Londres. Só preciso de ir buscar algumas coisas, como o livro que estou a ler, e podemos mudar-nos já amanhã aqui para a cidade.
- Então, está combinado - disse Alan num tom decidido, levantando-se da cadeira. - Vejo-os aos dois na sexta-feira, o mais tardar.
Quando saíram para a sala de espera, Hazel deteve-se à frente do balcão da receção e procurou algo dentro da mala de mão. Tirou um frasco de perfume Chanel embrulhado
em papel de prenda e pousou-o à frente da rececionista.
- Apenas um pequeno agradecimento, Victoría. Você tem sido uma querida.
- Oh, é muito amável, senhora Cross. Mas, na verdade, não era necessário!
Enquanto desciam no elevador, Hazel perguntou-lhe: - Foste buscar o Range Rover ao Stratstone?
- Está estacionado do outro lado da rua. Vou-te levar a almoçar e depois trago-te para levares a tua velha lata enferrujada.
Ela socou-o ao de leve no ombro e seguiu à frente enquanto saíam do edifício. Hector deu-lhe o braço ao atravessarem Harley Street e os taxistas que circulavam nos
dois sentidos, ao repararem na beleza e na gravidez dela, travaram bruscamente. Um deles debruçou-se sobre a janela com um sorriso. Fez-lhe sinal para atravessar
à frente do seu táxi e bradou-lhe: - A melhor das sortes, amor. Aposto que é um rapaz!
Hazel acenou-lhe. - Depois faço-te saber. Nenhum dos dois reparou na motocicleta parada atrás deles, numa zona de carga cerca de cem metros mais acima na rua. Tanto
o motociclista como o passageiro no assento traseiro usavam luvas e capacetes com viseiras de acrílico escurecido que lhes tapavam os rostos. Assim que Hazel e Hector
se aproximaram do Range Rover estacionado, o motociclista premiu o botão de arranque e o motor da potente máquina japonesa rugiu. O passageiro no assento traseiro
apoiou as botas nos estribos, pronto para partir. Hector abriu a porta do lado do passageiro para Hazel entrar e ajudou-a a sentar-se. Depois, contornou rapidamente
o veículo, entrou, ligou o motor e enfiou-se no meio do trânsito. O motociclista esperou até haver cinco veículos a separá-los e seguiu-os. Manteve essa distância
de forma discreta. Contornaram Marble Arch e avançaram para Berkeley Square. Quando o Range Rover parou à frente do nº 2 de Davies Street, o motociclista prosseguiu
e virou à esquerda no cruzamento seguinte. Deu a volta ao quarteirão e parou num local onde tinha uma boa visão da entrada do Alfred's Club. Reparou de imediato
que o porteiro tinha estacionado o Range Rover um pouco mais acima na rua.
5
Exibindo um enorme sorriso de prazer, Mario, o gerente do restaurante, aguardava à entrada para os cumprimentar. - Sejam bem-vindos, senhor e senhora Cross. Há imenso
tempo que já não vinham cá.
- Que disparate, Mario - contradisse-o Hector. - Estivemos aqui há dez dias com Lorde Renwick.
- Já foi há imenso tempo, senhor - protestou Mario, conduzindo-os para a sua mesa preferida.
A sala silenciou-se quando a atravessaram. Todos os olhos os seguiram. Toda a gente sabia quem eles eram. Mesmo no seu estado de gravidez avançada, Hazel parecia
deslumbrante. A finíssima saia de gaze do vestido esvoaçava à volta dela como uma nuvem cor-de-rosa, e a mala de mão que segurava era uma daquelas criações de pele
de crocodilo que fazia com que as demais mulheres na sala ponderassem o suicídio.
Mario ajudou-a a sentar-se e murmurou: - Presumo que a madame vai querer a salada de toranja e depois vieiras gratinadas, certo? E para si, senhor Cross, o bife
tártaro, seguido de lagosta com molho Chardonnay?
- Como de costume, Mario - anuiu Hector com um ar sério. - Para beber, a senhora Cross vai querer uma pequena garrafa de água Perrier com um balde de gelo. Para
mim, pode trazer, por favor, uma garrafa de Vosne-Romanée Aux Malconsorts de 1993 da minha garrafeira privada.
- Já tomei a liberdade de o fazer, senhor Cross. Há quinze minutos, pus a garrafa a uma temperatura de dezasseis graus centígrados. Quer que peça ao escanção que
a abra?
- Obrigado, Mario. Sei que posso contar sempre consigo. - Fazemos todos os possíveis para satisfazer os nossos clientes, senhor.
Quando o gerente os deixou, Hazel inclinou-se sobre a mesa e pousou a mão no antebraço de Hector. - Adoro os seus pequenos rituais, senhor Cross. São muito reconfortantes,
por assim dizer. - Sorriu. - A Cayla também costumava achá-los divertidos. Lembras-te de como ríamos quando ela te imitava?
- Tal mãe, tal filha. - Hector sorriu-lhe. Houvera um período em que Hazel não conseguia sequer pronunciar o nome "Cayla" em voz alta. Isso acontecera desde o seu
brutal homicídio e posterior mutilação do cadáver pelos assassinos, até Hazel ter descoberto que estava grávida da criança de Hector. Tinha sido uma catarse e chorara
nos braços dele, balbuciando o nome: "Cayla! Vai ser outra pequena Cayla", soluçara ela. Depois disso, as feridas sararam rapidamente, até ser capaz falar de Cayla
com frequência e sem dificuldade.
Era sua intenção falar agora e, depois de o escanção lhe trazer a sua água Perrier, bebericou um pouco e perguntou: - Achas que a Catherine Cayla Cross vai ter cabelo
loiro e olhos azuis como a irmã? - Já escolhera o nome da nova criança em homenagem à sua primeira filha falecida.
- Provavelmente vai nascer com um restolho de barba escura no queixo, como o pai - provocou-a Hector. Também ele adorava a rapariga assassinada. Cayla fora o íman
que o juntara a Hazel, contra todas as probabilidades. Nessa altura, Hector era o chefe da equipa de segurança da petrolífera Bannock Oil após Hazel ter herdado
a companhia do falecido marido.
Desde o primeiro momento que Hazel detestara Hector, apesar do facto de ele ter sido nomeado pelo próprio marido. Conhecia a fundo os antecedentes e a reputação
de Hector e sentira-se repugnada pelas táticas duras e por vezes brutais a que ele recorria para defender o património e o pessoal da companhia de qualquer ameaça.
Ele era um soldado e lutava como tal. Não mostrava nenhuma misericórdia. Desafiava abertamente todos os mais delicados instintos femininos de Hazel. No primeiro
encontro de ambos, ela advertira-o de que estava à procura da mais leve desculpa para o despedir.
Depois disso, a existência mimada e privilegiada de Hazel mergulhara no caos. A filha, que era o pilar da sua existência solitária, tinha sido raptada por piratas
africanos. Hazel usara toda a sua fortuna e influência para persuadir os centros de poder a tentarem resgatá-la. Ninguém pudera ajudá-la, nem mesmo o presidente
dos Estados Unidos da América, com todo o seu poder. Nem sequer conseguiram descobrir onde Cayla estava sequestrada. Já no limite do desespero, pusera de lado o
orgulho e recorrera ao cruel, brutal e impiedoso soldado que ela tanto odiava e desprezava: Hector Cross.
Hector conseguira seguir o rasto dos raptores até ao seu antro numa fortaleza nos desertos africanos onde Cayla era mantida em cativeiro. Estava a ser brutalmente
torturada pelos seus captores. Hector infiltrara-se na fortaleza com os seus operacionais e trouxera Cayla de volta para um lugar seguro. Nesse processo, tinha demonstrado
a Hazel que era um indivíduo muito decente e com elevados princípios morais, alguém em quem ela podia confiar sem reservas. Hazel cedera então à atração que suprimira
com tanto cuidado durante o primeiro encontro com ele e, assim que começou a conhecê-lo mais intimamente, descobrira que por baixo daquele exterior blindado ele
conseguia ser carinhoso, amável e afetuoso.
Olhou-o nesse momento e estendeu a mão sobre a mesa para lhe dar a mão. - Contigo ao meu lado e com a bebé Catherine dentro de mim, tudo voltou a ser perfeito.
- E será assim para sempre - tranquilizou-a ele, sentindo um leve frémito de temor percorrer-lhe a coluna vertebral ao aperceber-se de que estava a desafiar o destino.
Embora estivesse a sorrir-lhe com ternura, continuava a matutar no facto de o resgate de Cayla não ter sido o fim daquele problema. Os fanáticos que a tinham raptado
não desistiram, pois os assassinos que contrataram regressaram e mataram Cayla, enviando depois a sua cabeça decapitada a Hazel. Hector e Hazel tinham sido forçados
a voltar a envolver-se na refrega e finalmente conseguiram erradicar o monstro que lhes arruinara as vidas.
Talvez desta feita já esteja tudo terminado, pensou ele enquanto observava o rosto de Hazel, que continuava a falar de Cayla.
- Lembras-te de quando a ensinaste a pescar? - Ela tinha um talento natural. Bastou-me dar-lhe umas dicas e conseguiu logo lançar uma mosca para apanhar salmões,
pelo menos a quarenta e cinco metros de distância e em condições ventosas, e soube logo interpretar de forma instintiva os sinais na água.
- E lembras-te daquele enorme salmão que vocês os dois conseguiram tirar da água lá na Noruega?
- Era um verdadeiro monstro. Eu bem a segurava pelo cinto das botas de pescador, mas o bicho quase nos arrastava aos dois para dentro da água. - Riu-se. - Nunca
me esquecerei do dia em que ela anunciou que já não queria ser comerciante de arte, que era a carreira que eu tinha planeado para ela, mas a Cayla tinha metido na
cabeça que queria ser cirurgiã veterinária. Quase tive um ataque de raiva!
- Foi uma grande malandrice da parte dela - proferiu Hector com uma expressão austera.
- Malandrice? O malandro eras tu. Apoiaste-a sempre nisso. Vocês os dois trataram logo de me convencer de que isso era o melhor para ela.
- Pronto. Pronto. Ela era uma má influência para mim - admitiu Hector.
- Ela adorava-te. Sabes bem que sim. Adorava-te tanto como ao próprio pai.
- Isso é uma das melhores coisas que alguma vez me disseram. - És um bom homem, Hector Cross. - As lágrimas acumularam-se-lhe nos olhos. - A Catherine Cayla também
te vai adorar. As tuas três raparigas adoram-te. - Arquejou de repente e agarrou a barriga. - Oh, meu Deus! Ela deu-me um pontapé bem forte. Decididamente, parece
concordar com o que acabo de dizer.
Ambos desataram a rir alto, ao ponto de os comensais nas outras mesas olharem na direção deles com um sorriso de simpatia. Estavam totalmente absortos um no outro.
Tinham tantas coisas para recordar e conversar. Ambos tinham visto as suas vidas marcadas por obstáculos ultrapassados à custa de enormes esforços. Ambos haviam
alcançado triunfos ambiciosos e vivido desastres dilacerantes, mas a carreira de Hazel tinha sido, de longe, a mais espetacular. Começara com pouco mais do que coragem
e determinação. Aos 19 anos, tinha ganhado o seu primeiro torneio do Grand Siam' no circuito profissional do ténis. Aos 21, tinha casado com o magnata do petróleo
Henry Bannock e dera-lhe uma filha. Henry falecera quando Hazel tinha quase 30 anos e legara-lhe o controlo do conglomerado da Bannock Oil.
Mas o mundo das grandes empresas é um domínio exclusivo e os intrusos e os arrivistas não são bem-vindos. Ninguém queria apostar numa ex-jogadora de ténis e glamorosa
rapariga da alta sociedade transformada em baronesa do petróleo. No entanto, ninguém tivera em conta a sua perspicácia inata para os negócios, nem os anos de aprendizagem
sob a tutela de Henry Bannock, que valiam mais do que cem mestrados em Gestão de Empresas. À semelhança das multidões no circo romano, os seus detratores e críticos
aguardavam com macabra expectativa que ela fosse devorada pelos leões. E depois, para grande desgosto de todos, a viúva comprara o poço Zara Número Oito.
Hector recordava-se vividamente de como a revista Forbes divulgara com grande destaque na capa frontal a imagem de Hazel em equipamento branco de ténis, com uma
raquete na mão direita. O cabeçalho por cima da fotografia dizia: "Hazel Bannock bate a oposição. A maior descoberta de petróleo dos últimos trinta anos."
O artigo descrevia como no inóspito interior de um pequeno emirado desolado e empobrecido, chamado Abu Zara, existia uma concessão de exploração petrolífera que
outrora era detida pela Shell Oil Company. O campo de petróleo tinha sido explorado até secar e fora abandonado no período imediatamente posterior à Segunda Guerra
Mundial. Desde então, tinha permanecido esquecido.
Até que Hazel conseguira adquirir a concessão por uns míseros milhões de dólares e os peritos acotovelaram-se com sorrisos pretensiosos. Ignorando os protestos dos
seus assessores, Hazel investiu muitos mais milhões para inserir uma broca de perfuração rotativa numa minúscula anomalia subterrânea na extremidade norte do campo
de petróleo; uma anomalia que, com as técnicas de exploração primitivas de trinta anos antes, tinha sido considerada uma subsidiária do reservatório principal. Os
geólogos dessa época eram unânimes na opinião de que qualquer petróleo contido nessa área há muito se tinha escoado para o reservatório principal e fora bombeado
para a superfície, deixando o campo completamente seco e sem valor.
No entanto, quando a equipa de perfuração de Hazel alcançou a impenetrável cúpula de sal do diápiro - uma vasta câmara subterrânea onde as jazidas de petróleo tinham
ficado encurraladas -, a pressão excessiva do gás ascendeu de forma estrondosa ao longo do buraco da perfuração, com tal força que ejetou do tubo quase oito quilómetros
da coluna de perfuração em aço como se fosse pasta dentífrica, e o buraco explodiu. Petróleo bruto de alta qualidade jorrou a centenas de metros de altura. Tornou-se
então evidente que os velhos campos petrolíferos Zara números um a sete que tinham sido abandonados pela Shell eram apenas uma fração da totalidade das reservas.
Recordar todas estas coisas pareceu atraí-los ainda mais para junto um do outro à mesa do almoço, fascinados pelas memórias que tinham recontado muitas vezes antes
mas nas quais ainda descobriam coisas completamente novas e intrigantes. A certa altura, Hector abanou a cabeça com admiração. - Meu Deus, mulher! Nunca te sentiste
intimidada por nada ou ninguém na tua vida? Fizeste tudo sozinha, e fizeste-o da maneira mais difícil.
Hazel lançou-lhe um olhar de soslaio com aqueles olhos deslumbrantes e sorriu. - Não percebes que a vida não foi feita para ser fácil? Se fosse fácil, nunca lhe
daríamos o verdadeiro valor. E agora, já chega de falar de mim. Falemos antes de ti. - Já sabes tudo o que há para saber sobre mim. Já to contei umas cinquenta vezes.
- Pronto, que seja então a quinquagésima primeira vez. Conta-me acerca daquele dia em que caçaste o teu primeiro leão. Quero que contes todos os pormenores outra
vez. E presta atenção ao que te digo: se deixares alguma coisa de fora, vou-me aperceber de imediato.
- Muito bem, aqui vai. Nasci no Quénia, mas o meu pai e
a minha mãe eram ambos britânicos, portanto sou um genuíno cidadão britânico. - Calou-se.
- Chamavam-se Bob e Sheila... - instigou-o ela. - Chamavam-se Bob e Sheila Cross. O meu pai tinha quase vinte e cinco mil hectares de terras de pasto de primeira
qualidade, que confinavam com a reserva tribal dos massais. Aí pastavam mais de duas mil cabeças de gado bovino premiado, da raça Brahman. Portanto, os meus companheiros
de infância foram sobretudo rapazes massais da minha idade.
- E o teu irmão mais novo, claro - disse Hazel. - Sim, também o meu irmão mais novo, o Teddy. Ele queria ser rancheiro, como o meu pai. Fazia tudo e mais alguma
coisa para tentar agradar ao velhote. Quanto a mim, queria ser um guerreiro, como o meu tio que tinha morrido na guerra a combater o Rommel em El Alamein, no deserto
do Norte de África. O dia em que o meu pai me enviou para a Escola do Duque de York para rapazes, em Nairobi, foi a experiência mais devastadora da minha vida até
esse momento.
- Detestavas a escola, não era? - Odiava aquelas regras e as restrições. Estava habituado a correr livremente e à vontade - disse ele.
- Eras um rebelde. - O meu pai dizia que eu era um rebelde e um maldito selvagem. Mas dizia-o com um sorriso. Ainda assim, fui o terceiro melhor aluno da minha turma
e capitão da primeira equipa de quinze jogadores de râguebi no meu último ano de escola. Isso bastava-me. Tinha dezasseis anos nessa altura. - O ano do teu leão!
- Hazel inclinou-se sobre a mesa
e agarrou-lhe na mão, com os olhos reluzindo de expectativa. - Adoro esta parte. A primeira parte é pouco empolgante. Falta-lhe sangue e coragem, sabes.
- Os meus amigos massais estavam a chegar à maioridade. De modo que fui à aldeia falar com o chefe. Disse-lhe que queria tornar-me um moran, um guerreiro, como eles.
Hazel anuiu com a cabeça. - O chefe ouviu tudo o que lhe pedi. Depois disse que eu não era um verdadeiro massai porque não tinha sido circuncidado.
Perguntou-me se queria ser circundado pelo curandeiro da aldeia. Pensei nisso mas recusei a proposta.
- E ainda bem que o fizeste - disse Hazel. - Prefiro a tua gaita como Deus a concebeu de origem.
- Que simpático da tua parte dizeres isso. Mas voltemos à história da minha vida. Falei desta rejeição aos meus companheiros e ficaram quase tão consternados como
eu. Discutimos o assunto durante dias e no final concordaram que, se eu não pudesse tornar-me um verdadeiro moran, pelo menos podia caçar o meu leão, e assim já
estaria a mais de meio caminho de me tornar um guerreiro massai.
- Só que havia um pequeno problema, não era? - relembrou-o ela. - O problema era que o governo queniano, no qual a tribo dos massais estava mal representada, tinha
interditado a cerimónia de caça ao leão do ritual de passagem à maioridade. Os leões estavam estritamente protegidos em todo o território.
- Mas depois houve uma espécie de intervenção divina - disse ela. Hector sorriu-lhe. - Diretamente do céu! No Parque Nacional de Massai Mara, que confinava com as
terras tribais, um velho leão tinha sido escorraçado do grupo por um rival mais jovem e mais forte. Sem as suas leoas para liderar a caçada, viu-se obrigado a abandonar
a proteção do parque e procurar presas mais fáceis do que as zebras e os gnus. Começou por atacar as manadas de gado dos massais, que eram a reserva de riqueza tribal.
Foi bastante mau, mas depois a fera matou uma rapariga que tinha ido buscar água ao poço para a sua família.
"Para grande alegria e entusiasmo febril dos meus amigos massais, o Departamento de Caça do governo viu-se obrigado a emitir uma licença para matar o velho leão
solitário. Graças aos laços que eu tinha criado com a tribo ao longo dos anos, e como eu era corpulento e forte para a minha idade, e também porque os anciãos sabiam
como eu tinha treinado arduamente com os paus de luta e com as lanças de combate, convidaram-me a juntar-me à caçada com os outros jovens candidatos morani.
Hector calou-se quando o escanção lhe serviu um pouco mais de vinho tinto, enchendo depois o copo de Hazel com mais água Perrier. Hector agradeceu-lhe num murmúrio
e bebeu um pouco de borgonha antes de prosseguir.
- Há quase uma semana que o leão não matava nem se alimentava e todos nós aguardávamos, agoniados pela ansiedade, que a fome o obrigasse a matar outra vez. Até que
ao sexto anoitecer, quando a luz começava a desvanecer-se, dois rapazinhos pastores nus regressaram a correr à aldeia com a boa notícia: o leão tinha-os atacado
de surpresa quando levavam o gado para beber no olho d'água. A fera tinha-se mantido deitada em emboscada no meio das ervas densas, no lado do caminho de onde soprava
o vento, e, a escassos dez passos da manada, atacou o gado. Antes que o gado tivesse sequer tempo para se dispersar, o leão saltou sobre a garupa de uma vaca de
cinco anos que estava prenhe. Enterrou-lhe os colmilhos na base do pescoço enquanto desferia uma das poderosas patas dianteiras e lhe cravava as compridas garras
amarelas no focinho. Depois usou toda a força maciça da outra pata dianteira para aumentar a pressão que estava a exercer sobre o pescoço da vaca. As vértebras cervicais
quebraram-se com um estalido, matando-a instantaneamente. Tombou de focinho no solo quando as patas lhe cederam e deu uma cambalhota no meio de uma nuvem de poeira.
O leão afastou-se de um salto para não ser esmagado pelos mais de seiscentos quilos de peso morto.
- Ainda não consigo acreditar que ele fosse suficientemente forte para matar um animal daquele tamanho com tanta facilidade - disse Hazel, admirada.
- Não foi só isso, pois conseguiu erguê-la com as mandíbulas e levá-la para o meio das ervas, levantando-a tão alto que só se lhe viam os cascos a arrastar no solo
poeirento.
- Continua! - instigou-o. - Não ligues às minhas perguntas tolas. Continua com a história!
- Bem, já estava escuro e portanto tivemos de esperar pela madrugada. Nenhum de nós dormiu grande coisa nessa noite. Sentámo-nos à volta das fogueiras e os anciãos
disseram-nos, muito animados, o que poderíamos esperar quando fôssemos ao encontro do leão com a sua presa morta. Não houve grandes risos de nenhum de nós e a nossa
conversa foi curta. Ainda estava escuro quando pusemos as nossas capas de pele de cabra negra para nos protegermos da friagem do amanhecer. Estávamos nus por baixo
das capas. Armámo-nos com os escudos de couro cru e as lanças curtas que tínhamos afiado ao ponto de podermos rapar os pelos dos antebraços com o gume cortante.
Éramos trinta e dois ao todo, um bando de irmãos. Partimos a cantar ao amanhecer para enfrentarmos o nosso leão.
- Quer-me parecer que esse ruído todo teria alertado o leão, levando-o a fugir para longe - disse Hazel.
- Seria necessário muito mais que isso para afastar um leão da sua presa - disse-lhe Hector. - Estávamos a cantar para o desafiar. Estávamos a chamá-lo para a batalha.
E, claro, também o fazíamos para reforçar a nossa própria coragem. Cantámos e dançámos para aquecer o sangue. Desferíamos as lanças no ar para relaxar os músculos
dos braços. As jovens solteiras seguiam-nos à distância para ver quem teria coragem para enfrentar o leão e quem desataria a fugir assim que a fera acorresse em
todo o seu nobre poderio em resposta ao nosso desafio.
Hazel já tinha ouvido aquela história uma dezena de vezes, mas observava o rosto dele tão arrebatada como se fosse a primeira vez que ele a contava.
- O Sol surgiu e mostrou a sua borda superior por cima do horizonte diretamente à nossa frente, brilhante como metal derretido a sair de uma fornalha. Incidiu-nos
nos rostos e ficámos encandeados. Mas sabíamos onde iríamos encontrar o nosso leão. Vimos as pontas das ervas moverem-se onde não soprava nenhum vento e depois ouvimo-lo
rugir. Foi um som terrível que nos estremeceu os corações e as entranhas. As pernas cederam-nos e cada passo de dança era um esforço consciente enquanto avançávamos
para o enfrentar.
"Depois o leão levantou-se do lugar onde tinha estado deitado atrás da carcaça da vaca. A juba estava toda eriçada, formando-lhe uma coroa majestosa à volta da cabeça,
que reluzia com uma luz dourada, pois ele estava iluminado pelo sol. A juba parecia duplicar-lhe a corpulência. Rugiu. Uma rajada de som que nos varreu, ao ponto
de as nossas próprias vozes nos falharem por momentos. Recompusemo-nos e respondemos-lhe com gritos, desafiando-o a escolher um de nós para o atacar. Os flancos
da nossa linha começaram a cerrar-se à volta dele, rodeando-o de forma a não lhe deixar nenhuma via de fuga. O animal moveu lentamente a cabeça de um lado para o
outro, observando-nos muito atento enquanto nos aproximávamos.
- Oh, meu Deus! - exclamou Hazel. - Já sei o que vai acontecer a seguir, mas quase nem consigo suportar a tensão.
- Depois parou de mover a cabeça e começou a agitar a cauda de um lado para o outro, com o tufo negro da ponta a fustigar-lhe os próprios flancos. Eu estava no meio
da linha de guerreiros, no lugar de honra, e suficientemente perto para lhe ver os olhos com nitidez. Eram amarelos, de um amarelo brilhante e flamejante, e estavam
cravados nos meus.
- Porquê em ti, Hector? Porquê em ti, meu amor? - Hazel agarrou-lhe a mão com força e com uma expressão de absoluto temor, como se aquilo estivesse a acontecer à
frente dos seus olhos.
- Só Deus sabe porquê - disse ele, encolhendo os ombros. - Talvez por eu estar no meio da linha, mas mais provavelmente pelo facto de o meu corpo pálido se destacar
no meio dos outros corpos mais escuros que me flanqueavam.
- Continua! - implorou ela. - Conta-me outra vez como tudo terminou.
- O leão agachou-se enquanto se preparava para atacar. Parou de agitar a cauda de um lado para o outro e manteve-a estendida atrás dele, rígida e um tudo-nada curvada
para cima. Depois abanou-a duas vezes e lançou-se diretamente a mim. Aproximou-se serpenteando rente ao solo, tão rápido que ficou reduzido a uma mera estria de
luz amarelo-acastanhada, etérea mas mortífera.
"E foi nesses microssegundos que aprendi o verdadeiro significado do terror. Tudo pareceu abrandar. O ar à minha volta pareceu ficar mais denso e pesado, dificultando-me
a respiração. Era como se estivesse a atolar-me num pântano de lama espessa. Cada movimento exigia-me um esforço deliberado. Sabia que estava a gritar, mas o som
parecia chegar-me debilmente, de muito longe. Alcei o escudo de couro cru à minha frente para me proteger e ergui a ponta da lança. A luz do sol incidiu no metal
polido e uma brilhante estilha de luz encandeou-me os olhos. O vulto do leão avolumou-se à minha frente até preencher todo o meu campo de visão. Fiz pontaria com
a ponta da lança ao centro do peito dele, que batia violentamente enquanto me ensurdecia com a sua fúria assassina, em poderosas rajadas de som como as de uma locomotiva
a vapor a acelerar à velocidade máxima.
"Preparei-me para a acometida. Depois, no momento exato em que ele ia lançar todo o seu peso contra o meu escudo, inclinei-me para ele e consegui espetar-lhe a ponta
da lança. Deixei que o seu próprio peso e velocidade fizessem penetrar a lança no peito dele, tão profundamente que a ponta se enterrou até metade da haste. Já estava
moribundo quando me empurrou para trás contra o solo e se lançou sobre mim, rasgando-me o escudo com as garras e rugindo de raiva e dor contra o meu rosto virado
para cima.
Hazel estremeceu perante aquela imagem que ele tinha criado para ela. - Que coisa mais horrível! Fiquei com a pele dos braços toda arrepiada. Mas não pares. Continua,
Hector. Conta-me o fim da história.
- Depois, de repente, o leão retesou todo o corpo e arqueou o dorso. De mandíbulas bem abertas, vomitou um forte jorro de sangue em cima de mim, encharcando-me a
cabeça e toda a parte superior do corpo antes que os meus companheiros pudessem tirá-lo de cima de mim e o trespassassem uma centena de vezes com as suas lanças.
- Fico apavorada só de pensar em como tudo isso poderia ter tido um desfecho bem diferente - disse ela. - Como poderíamos nunca nos ter conhecido sequer,
nem partilhado tudo aquilo que temos agora. Mas pronto, conta-me agora o que o teu pai disse quando voltaste para o rancho nesse dia - pediu.
- Regressei a cavalo à velha e enorme casa de telhado de colmo lá no rancho, mas já passava do meio-dia quando lá cheguei. A minha família estava sentada à mesa
do almoço no terraço à frente da casa. Amarrei a montada ao poste e subi os degraus sem pressa. A minha euforia dissipou-se assim que vi os rostos da minha família.
Só nesse momento é que me dei conta de que não me tinha dado ao trabalho de me lavar. O sangue do leão tinha secado numa camada espessa que me cobria o cabelo e
a pele. A minha cara era uma máscara de sangue seco. Tinha a roupa manchada e as mãos tingidas de negro, até por baixo das unhas.
"Foi o meu irmãozinho Teddy quem quebrou aquele silêncio horrorizado. Desatou às risadinhas como uma colegial. O Teddy era assim, ria sempre dessa maneira. Foi então
que a minha mãe irrompeu em lágrimas e enterrou o rosto nas mãos, pois já sabia o que o meu pai iria dizer.
"O meu pai levantou-se em toda a sua corpulência de quase um metro e noventa, de rosto sombrio e contorcido de raiva. Balbuciou algumas palavras incoerentes, mas
depois a sua expressão desanuviou-se gradualmente e, num tom sinistro, disse: "Estiveste com aqueles selvagens negros, os teus amigalhaços do peito, não foi, rapaz?"
A minha resposta foi admitir sem rodeios: "Sim, senhor." Tratávamos sempre o meu pai por "senhor"; nunca "pai", e sobretudo nunca "papá". "Sim, senhor", repeti,
e de repente a sua expressão mudou. "Andaste a caçar o teu leão, como um desses malditos morani massais. Foi isso, não foi?" Voltei a admitir: "Sim, senhor", e a
minha mãe desatou num novo pranto. O meu pai continuou fixado em mim com aquela estranha expressão durante um bom bocado, e permaneci ali em sentido à frente dele.
Depois perguntou: "Fizeste-lhe frente ou desataste a fugir?" Respondi-lhe: "Fiz-lhe frente, senhor." Voltou a guardar um silêncio demorado antes de falar outra vez:
"Vai lá à tua cabana e lava-te. Depois quero falar contigo no meu estúdio." Esta convocatória era geralmente o equivalente a uma sentença de morte, ou pelo menos
a umas cem vergastadas.
- Que aconteceu depois? - perguntou Hazel, embora já soubesse perfeitamente o desfecho.
- Quando bati à porta do estúdio um pouco depois, ia vestido com o meu uniforme escolar: blazer, gravata e uma camisa limpa. Tinha engraxado os sapatos e o cabelo
liso ainda estava molhado. "Entra!", bradou ele. Entrei e postei-me à frente da escrivaninha dele. "És um maldito selvagem", disse numa voz firme. "Um selvagem completamente
incivilizado. Só vejo uma esperança para ti." Respondi-lhe "Sim, senhor", mas por dentro sentia-me medroso. Achava que já sabia o que me esperava. "Senta-te, Hector",
disse ele, indicando-me o cadeirão virado para a escrivaninha. Aquelas palavras deixaram-me agitado por dentro. Nunca me tinha sentado naquele cadeirão e já nem
me lembrava da última vez que ele me chamara "Hector" em vez de "rapaz". Quando me sentei muito direito à frente dele, continuou: "Nunca serás um rancheiro, pois
não, Hector?".
"Respondi-lhe "Duvido muito, senhor" e ele disse: "O rancho deveria ter sido teu, sendo tu o primogénito. Mas agora vou deixá-lo ao Teddy." Disse-lhe: "Desejo as
maiores felicidades ao Teddy, senhor", e ele chegou mesmo a sorrir, embora de modo fugaz. O meu velho continuou, mas já sem o sorriso: "Claro que ele não vai mantê-lo
por muito tempo. Dentro de poucos anos, todos nós teremos sido escorraçados daqui a pontapés pelos antigos proprietários a quem roubámos o rancho. No final, é sempre
a África que ganha." Mantive-me em silêncio, pois não me ocorria nenhuma resposta. "Mas tu, jovem Hector, que vamos nós fazer contigo?" Dei por mim novamente sem
nada para responder e mantive-me de boca fechada. Há muito que tinha aprendido que essa era a opção mais segura. Ele continuou a falar: "Serás sempre um selvagem
no mais fundo de ti, Hector. Mas isso não é uma desvantagem grave. Quase todos os heróis britânicos que nós admiramos, desde Clive a Kitchener, passando por Wellington
e Churchill, eram uns selvagens. Nunca teria chegado a haver um Império Britânico sem eles. Mas quero que sejas um selvagem inglês culto e instruído, e é por essa
razão que vou enviar-te para a Real Academia Militar em Sandhurst, para aprenderes a subjugar à lei do soco todos esses povos menores que habitam na Terra."
Hazel desatou a rir às gargalhadas e bateu palmas. - Que homem mais notável. Deve ter sido uma pessoa absolutamente revoltante.
- Ele era cheio de bazófia, mas não passava de fingimento. Queria que todos o encarassem como um homem duro que nunca recuava nem cedia e que chamava sempre as coisas
pelos nomes sem se pôr com rodeios. Mas por baixo daquela fachada era um homem bondoso e decente. Acho que ele me amava, e eu sem dúvida que o idolatrava.
- Quem me dera tê-lo conhecido - disse Hazel num tom melancólico.
- Provavelmente foi muito melhor não o teres conhecido - assegurou-lhe Hector. Depois virou-se quando Mario tossicou de forma educada a seu lado.
- Vai desejar mais alguma coisa, senhor Cross? Hector olhou para o gerente do restaurante como se nunca o tivesse visto antes. Depois pestanejou e olhou em redor
da sala, que agora estava vazia, à exceção de um par de empregados entediados, especados junto às portas de acesso à cozinha.
- Céus, que horas são? - Passam alguns minutos das quatro, senhor. - Por que diabos não nos avisou? - O senhor e a senhora Cross estavam a desfrutar tanto da companhia
um do outro que não me atrevi a interrompê-los, senhor.
Hector deixou-lhe uma nota de cinquenta libras em cima da mesa e avançou de braço dado a Hazel para a entrada do clube, onde o porteiro lhes deixara o Rover com
o motor ligado. Quando chegaram a Harley Street, Hector desceu pela rampa de acesso à garagem subterrânea do edifício do consultório de Alan e depois ajudou Hazel
a instalar-se no Ferrari.
- E agora, minha doce rainha das abelhas, lembra-te de que estarei atrás de ti e que isto não é nenhuma corrida. Espreita-me de vez em quando pelo espelho retrovisor.
- Para de te preocupares, querido. - Só paro quando me deres um beijo. - Vem cá recebê-lo, meu rapazola interesseiro. Enquanto aguardava que ela saísse à sua frente
da garagem, Hector calçou um par de luvas de pelica macia e depois arrancou atrás do Ferrari pela rampa acima. O motociclista que os seguia manteve-se a uma distância
considerável, usando outros veículos para se dissimular enquanto avançavam através das ruas de Londres, até desembocarem na autoestrada M3. Não tinha necessidade
de os seguir de demasiado perto e correr o risco de alertar a presa. Sabia para onde eles se dirigiam. Além disso, tinham-no advertido de que o homem era um tipo
imprevisível; não era, decididamente, alguém que lhe ocorreria enfrentar de ânimo leve. Só iria agir muito mais tarde, depois de terem passado por Winchester. Falava
de vez em quando para o microfone do telemóvel mãos-livres incorporado no capacete de proteção, relatando o progresso dos dois veículos à sua frente. A cada contacto,
o posto de receção emitia um clique a acusar a transmissão.
Hector conduzia duzentos metros à frente do motociclista, tamborilando com um dedo no volante ao ritmo da música. Tinha sintonizado a rádio Magic, a sua estação
preferida. Don McLean estava a cantar American Pie e Hector cantava em coro. Sabia de cor todas aquelas letras intricadas. No entanto, nunca relaxava a sua vigilância.
De tantos em tantos segundos, relanceava os olhos pelo espelho retrovisor, perscrutando o trânsito atrás de si. Os veículos no seu campo de visão estavam constantemente
a mudar, mas retinha cada um na memória. "Protege sempre as costas" era um dos seus aforismos. Quando estavam prestes a chegar a Basingstoke, o fluxo do trânsito
diminuiu e Hazel acelerou o Ferrari. Hector viu-se obrigado a puxar pelo Rover até quase aos 120 quilómetros por hora para não a perder de vista.
Ligou-lhe através do telemóvel mãos-livres: - Vai mais devagar, meu amor. Lembra-te de que levas aí contigo um passageiro muito importante. - Hazel respondeu-lhe
com um sonoro "PM", mas reduziu a velocidade do Ferrari para um pouco acima do limite legal. - Quando queres mesmo, consegues ser uma rapariga bem-comportada - disse
ele, desacelerando para igualar a velocidade dela.
6
- Aproximo-me agora do Cruzamento 9. O veículo vermelho continua na frente. A mulher virou para a estrada de acesso a Winchester. O veículo preto continua a seguir
atrás dela. - Atrás deles, o motociclista falava para o microfone oculto e o posto de receção voltou a emitir um clique a acusar a transmissão.
Prosseguindo em formação aberta, Hazel seguiu para a variante em redor da antiga cidade-catedral de Winchester, fundada há quinze séculos e outrora a capital e bastião
do rei Alfredo, o Grande. Hector conseguia avistar intermitentemente o pináculo da catedral que se erguia sobre os outros edifícios da cidade. Deixaram-na para trás.
O Ferrari vermelho abrandou à frente de Hector e seguiu pelo desvio sinalizado por uma placa que dizia "Smallbridge em Obras" e "Brandon Hall". Enquanto mudava de
sentido para seguir atrás de Hazel, Hector reparou em dois operários na berma da estrada. Envergavam coletes refletores amarelos de alta visibilidade, com os dizeres
ESTRADAS BRITÂNICAS estampados nas costas, estavam a descarregar os componentes de uma barreira de aço da traseira de um camião estacionado. Hector pouca atenção
lhes prestou, sempre de olhos fixos no Ferrari cujo vulto diminuía ao longe. À exceção do veículo vermelho, a estrada estreita estava deserta, pelo que lhe era dado
a ver.
Menos de um minuto depois, o motociclista e o seu passageiro seguiram-nos pela estrada em direção a Smallbridge. Quando passou pelos operários, o motociclista acenou-lhes
com a mão enluvada e eles, galvanizados, reagiram ao sinal, entrando de imediato em ação. Arrastaram rapidamente as secções da barreira metálica para a estrada e
montaram-nas, bloqueando ambas as faixas. Depois ergueram um enorme sinal de trânsito amarelo e preto que dizia ESTRADA ENCERRADA. ACESSO PROIBIDO. DESVIO. Uma enorme
seta negra direcionava o trânsito para continuar pela estrada principal, isolando de forma eficaz tanto Hazel e Hector como a motocicleta que os seguia. Os falsos
operários enfiaram-se no camião e afastaram-se. Tinham sido pagos e o seu trabalho estava feito.
Agora que estava tão perto de casa, Hector conduzia mais relaxado. Olhou uma única vez pelo espelho retrovisor e reparou apenas numa motocicleta que seguia duzentos
metros mais atrás. Depois concentrou a atenção na estrada à sua frente. De ambos os lados da via estendiam-se campos verdes ondeados, interrompidos por pequenas
matas de árvores mais escuras. Algumas delas erguiam-se muito perto da estrada que serpenteava e ondulava sobre as suaves encostas das colinas. A via tinha-se reduzido
a duas estreitas faixas. A própria Hazel viu-se obrigada a reduzir a velocidade.
- Ambos os veículos a entrar na zona demarcada - disse o motociclista numa voz firme, e desta vez foi respondido pelo posto de receção. - Entendido, Posto Um. Já
te estou a ver a ti e ao alvo. De repente, entre a motocicleta e o Rover de Hector interpôs-se um outro veículo que saiu de um trilho rural enlameado para a estrada
asfaltada. Tinha-se mantido escondido atrás de um maciço de árvores até Hector passar. Era uma enorme furgoneta Mercedes Benz, com volante à esquerda e matrícula
francesa. À exceção disso, não ostentava mais nenhuma marca distintiva. O motociclista acelerou até ficar posicionado a cerca de seis metros do para-choques traseiro
da furgoneta.
À frente deles, o Rover de Hector desapareceu ao dobrar o topo de outra elevação. Quando a furgoneta e a motocicleta alcançaram esse mesmo cume, repararam que a
estrada à frente descia para o interior de um vale pouco profundo, onde cruzava um aterro elevado, com terreno pantanoso de ambos os lados. Hector estava precisamente
a entrar no aterro no momento em que o Ferrari vermelho já subia a colina baixa no outro lado do vale. O condutor da furgoneta Mercedes sorriu satisfeito. A cilada
tinha sido montada na perfeição. Carregou no acelerador, descendo a encosta a grande velocidade e entrando no aterro. Quando surgiu a grande velocidade atrás de
Hector, emitiu uma buzinadela aguda. Hector olhou pelo espelho retrovisor.
- De onde é que apareceu este cabrão? - Estava surpreendido. Não vira nenhuma furgoneta da última vez que olhara pelo retrovisor.
Ainda assim, calculou que, apesar de o aterro ser tão estreito, havia espaço para o outro veículo o ultrapassar. Hector abrandou por instinto e colou-se à berma
para deixar passar o veículo maior. A furgoneta ultrapassou-o, não raspando no Rover por escassos centímetros.
Hector ficou alinhado com a cabina da furgoneta por apenas uma fração de segundo. Como já esperava devido à matrícula francesa, o volante ficava do lado esquerdo.
O condutor olhou-o diretamente do alto da cabina. Hector ficou surpreendido com o facto bizarro de o sujeito estar a usar uma máscara de borracha de Halloween com
o rosto sorridente do presidente Nixon. Seguia com o braço esquerdo apoiado no parapeito da janela aberta da furgoneta. Era um braço musculoso, com um pequeno padrão
tatuado a vermelho sobre a pele muito escura.
Logo atrás, com a roda da frente quase a tocar no para-choques traseiro da furgoneta, seguia uma moto Honda Crossrunner de cor preta com dois motoqueiros agachados
sobre o assento duplo, que passou velozmente por Hector. Ambos usavam capacetes de proteção com viseiras escuras de rosto inteiro e equipamento completo de motociclista
em couro preto.
No outro lado da pequena depressão pantanosa, o Ferrari de Hazel acabava de chegar ao topo da colina. Hector apercebeu-se de que tinham sido separados eficazmente
um do outro pela estranha furgoneta e pela motocicleta.
- A Hazel! - gritou ele assim que todos os seus instintos selvagens despertaram em plena força. - Andam atrás da Hazel! - Agarrou no telemóvel e marcou o número
dela. Respondeu-lhe uma voz desencarnada: "O número para o qual ligou de momento não se encontra disponível. Por favor, deixe a sua mensagem após o sinal."
- Merda! - praguejou. A receção era sempre intermitente ao longo daquela extensão de estrada. Largou o telemóvel.
A furgoneta e a motocicleta já estavam a afastar-se rapidamente. Hector carregou a fundo no acelerador e o motor rugiu em perseguição dos outros veículos. Quando
olhou em frente e viu o Ferrari de Hazel desaparecer sobre o topo da elevação, concentrou toda a atenção nos veículos que perseguia. O motor do Range Rover era novo
e estava bem afinado e depressa lhes ganhou terreno. O instinto levou-o a enfiar a mão na parte frontal do casaco, onde costumava ocultar a Beretta automática de
9 mm no coldre axilar. Mas obviamente que não a encontrou. O porte de armas era expressamente proibido na velha e alegre Inglaterra.
- Malditos políticos! - resmungou. Não passou de um pensamento fugaz e a sua atenção plena nunca se desviou da ameaça na estrada à sua frente. Decidiu tentar abalroar
primeiro a furgoneta pesada. Era um alvo mais fácil. Se conseguisse colocar-se lado a lado, usaria a velha tática policial de embater no veículo ao nível das rodas
traseiras, o que o faria derrapar para fora da estrada. A motocicleta seria mais esquiva, mas assim que a furgoneta estivesse fora do caminho poderia concentrar-se
em abalroá-la.
Estava a aproximar-se com grande rapidez da furgoneta. A motocicleta Honda guinou com brusquidão para se afastar da frente de Hector e seguiu paralelamente à cabina
da furgoneta. Hector seguia agora colado à sua traseira. O condutor da Mercedes começou a ziguezaguear, frustrando as tentativas de Hector de abrir caminho à força.
- Merda! - praguejou ele assim que as portas traseiras da furgoneta se escancararam por cima dele. - Que se passa agora?
Olhou através das portas abertas para dentro da plataforma de carga. Viu uma enorme palete de construção que se agigantava sobre ele, atulhada de grandes blocos
de betão embrulhados em plástico transparente. A palete estava montada sobre rodas. Certamente haveria outro rufia na plataforma de carga a empurrar a palete, que
deslizou para trás, na direção dele. Hector apercebeu-se do que estava prestes a acontecer e carregou a fundo no travão. Mesmo assim, foi por um triz.
A palete caiu pelas portas abertas, aterrando com estrondo na estrada diretamente à frente do Rover de Hector. O invólucro de plástico rompeu-se com o impacto e
toneladas de enormes blocos rolaram em cascata ao comprido da estrada estreita, amontoando-se numa barreira que a bloqueou de uma berma à outra - um obstáculo que
seria um desafio mesmo para a poderosa máquina de Hector. Conseguiu parar o carro com o para-choques dianteiro quase a tocar naquele muro de blocos derrubados. Reparou,
sobre o topo da barricada, que a furgoneta tinha deixado cair duas outras paletes de blocos mais à frente, obstruindo a estrada ao longo de uns cinquenta metros.
Bastante mais à frente, a furgoneta e a motocicleta começavam a subir a elevação de cujo topo o Ferrari de Hazel já desaparecera.
Hector examinou por momentos a pilha de blocos. Era um obstáculo formidável, quase impossível de transpor. Ainda assim, tinha de tentar. Agarrou na alavanca das
mudanças e engrenou o Rover em primeira. Depois acelerou o motor e lançou-se contra a barreira. Começou a trepá-la de forma tortuosa, com o chassis a bater e a raspar
por cima dos blocos amontoados que se moviam sob o peso do veículo, negando qualquer tração às rodas. A sua velocidade foi diminuindo até ficar encalhado a meio
do caminho no alto da barricada, com três das rodas a girarem inutilmente no ar e com a roda do lado do condutor encravada entre dois dos blocos de betão.
À sua frente, a furgoneta e a moto desapareceram sobre a elevação. Agora num estado de verdadeiro desespero, Hector engrenou com brusquidão a marcha atrás. Voltou
a acelerar e o veículo baloiçou e deslizou de lado, ameaçando cair e rolar para trás, pela barreira abaixo. A força da gravidade impôs-se por fim e o Rover voltou
a rolar até ficar ao nível da estrada, recuperando o equilíbrio. Hector abriu a porta e saltou para cima do estribo. Olhou desesperado à sua volta, tentando encontrar
uma forma de contornar o amontoado de blocos.
Reparou que de cada lado da estrada se estendiam vedações de arame farpado, claramente para manter o gado longe do aterro. Por baixo de cada vedação corria uma valeta
de drenagem. A lama nas valetas reluzia negra e glutinosa, mas não havia nenhuma forma de a contornar.
- Planearam isto com astúcia. Estrada estreita, carga de blocos para a bloquear, lodaçal, vedação e valetas de cada lado. Cabrões espertos! - enfureceu-se. Voltou
a sentar-se ao volante, pôs o cinto e executou uma viragem rápida em três manobras. Alinhou o Rover com uma das secções da vedação onde dois dos fios de arame tinham
enferrujado quase por completo. Respirou fundo e murmurou: - Ou vai ou racha! - O Rover voou da berma contra a vedação. Os arames enfraquecidos pela oxidação romperam-se
como se fossem feitos de papel e o veículo atravessou a rede, caindo na valeta à frente. Hector foi lançado com tanta violência contra o cinto de segurança que pensou
que tinha partido a clavícula. Não fez caso da dor e debateu-se com o volante que não parava de lhe girar entre as mãos. O Rover arrastou-se de forma penosa para
fora da valeta lamacenta e depois para o prado aberto mais além. Hector deu meia-volta e conduziu paralelamente à estrada alcatroada, ao longo de um percurso cheio
de lama e traiçoeiro. Quase ficou atolado por duas vezes, mas o Rover continuou a avançar, com as rodas a lançarem lama e torrões de turfa alto no ar. A lama salpicou-lhe
o para-brisas até mal conseguir ver através dele. Ligou o limpa-para-brisas. Passou pelas pilhas de blocos de betão na estrada acima dele. Manobrou o Rover de volta
ao aterro, evitando quaisquer movimentos bruscos do volante. O Rover foi aumentando de velocidade à medida que o piso foi ficando mais firme. Hector reparou que
a valeta de drenagem era menos profunda nessa zona e avançou diretamente para aí. O veículo sacolejou e a parte dianteira deslizou de um lado para o outro, mas conseguiu
sair do outro lado da valeta. Aqui, o aterro era mais baixo e a ladeira subia numa inclinação mais suave. Hector acelerou para a galgar e atingiu a vedação no topo.
A rede de arame farpado deteve o Rover por um instante avassalador, mas depois o poste da vedação quebrou-se e a própria rede tombou. O Rover rolou por cima dela
e avançou aos sacões para a estrada pavimentada. Hector girou o volante para apontar o carro pela colina acima e, com um grunhido de alívio, acelerou em direção
ao topo por onde Hazel e os perseguidores tinham desaparecido.
7
Hazel estava apenas a uns cinco quilómetros do cruzamento para a estrada da propriedade que conduzia a Brandon Hall
à semelhança de um cavalo expectante a captar o cheiro do estábulo, acelerou a marcha. Sem se aperceber, começou a afastar-se da furgoneta Mercedes que seguia atrás
dela. Não se dera conta da sua presença. Tinha por hábito usar o espelho retrovisor mais para retocar a maquilhagem do que para qualquer outro propósito. O condutor
com a máscara de Richard Nixon seguia à velocidade máxima, mas de repente viu o Ferrari começar a afastar-se dele. Sabia que tinha de a alcançar antes que ela chegasse
ao cruzamento para a Propriedade Brandon Hall. Abriu o vidro da landa do seu lado e enfiou a metade superior do corpo através dela. Começou a fazer sinais de luz
com os faróis e acenou freneticamente com o braço por cima da cabeça enquanto usava a outra mão para dar uma buzinadela demorada. Viu as luzes vermelhas de travagem
do Ferrari à sua frente brilharem de modo intenso. A furgoneta tornou a aproximar-se do carro desportivo, mas o condutor insistia em buzinar e fazer sinais com os
faróis.
Hazel ficou sobressaltada com aqueles gestos estranhos, até que se deu conta de que ele estava a fazer-lhe sinal para parar... Mas por que razão estaria ele a fazer
isso? Foi então que reparou que a estrada atrás da furgoneta estava vazia. Não havia sinal do Range Rover de Hector e o seu rosto empalideceu de choque.
Algo terrível aconteceu ao Hector. O condutor da furgoneta está a tentar avisar-me. Talvez o Hector se tenha esbarrado. Talvez esteja ferido ou... Não conseguiu
terminar o pensamento, era demasiado horrível. Carregou a fundo no travão e desviou-se para a berma estreita e cheia de ervas. A furgoneta aproximou-se a grande
velocidade atrás dela, ainda a buzinar e a fazer sinais de luz com os faróis. O condutor sorriu por trás da máscara quando viu que o seu ardil tinha resultado e
que a mulher no carro desportivo vermelho estava confusa e alarmada com o seu comportamento errático. O Ferrari estava posicionado de forma ideal na borda da valeta
para o propósito que ele tinha em mente. A vedação de arame farpado terminava alguns metros atrás, mas a valeta de drenagem continuava a estender-se paralelamente
à estrada.
Nesse momento, o Range Rover surgiu no topo da elevação atrás deles. Hector apercebeu-se de imediato da situação num único relance.
- Não pares por causa desse cabrão! - gritou, desesperado. - Continua a seguir o mais rápido que puderes, meu amor. Não pares, por amor de Deus! - Carregava a fundo
no acelerador e, assim que começou a descer a encosta, o Rover precipitou-se em frente, ganhando de imediato velocidade. Mas ainda se encontrava a quase quinhentos
metros de distância, reduzido à posição de um impotente espectador da tragédia que estava prestes a desenrolar-se à sua frente.
A furgoneta Mercedes não abrandou uma única vez enquanto se aproximava do Ferrari parado, mas, assim que o condutor a alcançou, rodou o volante com força e embateu
de lado no automóvel de Hazel. Ouviu-se um clangor de metal contra metal e produziu-se uma chuva de faíscas. O Ferrari, mais leve, foi lançado sobre a berma para
dentro da valeta de drenagem; todo o lado direito da carroçaria ficou completamente riscado e amolgado. Aterrou de lado no fundo da valeta, com as rodas esquerdas
a girarem no ar. A furgoneta oscilou de forma descontrolada, baloiçando devido ao impacto e derrapando em direção à margem oposta. O condutor conseguiu contrariar
habilidosamente as oscilações e, enquanto recuperava o controlo do veículo, acelerou e afastou-se a grande velocidade.
A motocicleta tinha seguido a furgoneta de perto, mas depois derrapou até se deter na estrada, paralelamente ao Ferrari na valeta. O motociclista permaneceu sentado
na Honda, preparado para uma fuga rápida, mas o seu passageiro saltou do assento traseiro e correu na direção do Ferrari virado de lado. O homem foi rápido e ágil
como um macaco. Saltou da borda da valeta para cima do lado direito amolgado do Ferrari e deteve-se sobre a janela do lado do condutor, tentando equilibrar-se com
ambos os braços erguidos bem acima da cabeça. Só nesse momento é que Hector se apercebeu que ele segurava uma marreta com cerca de dois quilos. Nem vidro inquebrável
conseguiria resistir ao tremendo golpe que ele proferiu do alto. O vidro rachou-se em estrias e começou a ceder na ação. O homem de capacete ergueu a marreta e voltou
a desferir um golpe. Dessa vez, o vidro desfez-se em mil estilhaços reluzentes que caíram sobre Hazel. Continuava no lugar do condutor, imobilizada pelo cinto de
segurança em redor da barriga inchada. Ergueu as mãos para proteger o rosto dos estilhaços que voavam. O homem atirou a marreta para o lado e, num movimento destro,
enfiou a mão para tirar algo do bolso lateral do blusão de couro.
Hector encontrava-se agora suficientemente perto do local do sinistro para poder ver o que ele tirara do bolso. Era uma pistola Smith & Wesson carregada com munições
Long Rifle de 22 mm e equipada com um silenciador de nove polegadas. Era a arma de eleição dos verdugos da Mossad israelita. Com a mão livre, o homem armado ergueu
a viseira de acrílico do capacete e apontou o cano alongado através da janela.
Hazel olhou para ele. Viu que era um jovem negro. Depois apercebeu-se da ameaça da pistola apontada ao seu rosto e olhou por cima do cano, diretamente nos olhos
do atacante. A expressão dele era neutra e impiedosa.
- Não! - murmurou ela. - Por favor. Estou grávida. Não pode fazer isto. A minha bebé... - Ergueu as mãos para proteger a cara. A expressão do homem não se alterou
e disparou logo a seguir. A arma equipada com o silenciador não produziu quase nenhum ruído. Apenas um estalido suave e quase polido. Depois o homem ergueu a cabeça
e viu o Range Rover de Hector precipitar-se na sua direção. Não havia tempo para um segundo disparo, mas ele era um profissional e sabia que a primeira bala dera
conta do recado. Girou sobre si próprio e saltou da carroçaria amolgada do Ferrari. Quando aterrou, o Range Rover atingiu-o em cheio nas costas. O som do impacto
foi uma pancada surda de carne a ser esmagada. O corpo dele foi lançado por cima do tejadilho do Rover. Hector nunca reduziu a velocidade. Continuou a acelerar em
frente, diretamente contra o homem no assento dianteiro da Honda.
O motoqueiro tentou esquivar-se ao impacto inclinando a motocicleta ao mesmo tempo que carregava no acelerador para que a Honda se desviasse, derrapando num círculo.
Quase conseguiu evitar a colisão com o Rover. Mas Hector foi demasiado rápido para ele. Rodou o volante com força e conseguiu apanhar a roda traseira em movimento
da Honda com a ponta do para-choques frontal. A motocicleta deu uma cambalhota no ar e o condutor foi lançado do assento e caiu debaixo das rodas dianteiras do Rover.
Tanto as rodas dianteiras como traseiras do pesado veículo atropelaram-no. Hector olhou pelo espelho retrovisor e viu-o esparramado na estrada. O capacete certamente
protegera-o, pois soergueu-se, atordoado. Hector carregou a fundo no travão e, num gesto brusco, meteu a marcha atrás. Recuou a grande velocidade e a sua vítima
tentou levantar-se assim que viu o enorme veículo avançar contra ele em marcha à ré. Hector voltou a atropelá-lo. O sujeito tombou sob a carroçaria do Rover e Hector
sentiu-o rebolar e embater no chassis, até acabar por sair a rolar de debaixo da parte dianteira e ficar estendido de cara contra a superfície asfaltada da estrada.
Hector saiu do Rover de um salto e correu para o homem. Debruçou-se sobre ele e, num movimento rápido, abriu-lhe a presilha do capacete, arrancou-lho da cabeça e
atirou-o para o lado. Depois enfiou o joelho entre as omoplatas do indivíduo para o imobilizar, sujeitou-lhe a nuca com uma das mãos e usou a outra para lhe agarrar
o queixo. Com um movimento rápido, torceu-lhe a cabeça num círculo quase completo. As vértebras cervicais quebraram com um som semelhante ao quebrar de um galho
de madeira seca. Ouviu um ruído líquido na parte traseira das calças de couro negro do homem e sentiu um intenso cheiro fétido quando os intestinos do sujeito se
esvaziaram. Hector agarrou no capacete, voltou a enfiar-lho na cabeça e apertou-lhe a presilha. De seguida, abriu-lhe viseira com cuidado para lhe expor o rosto.
A polícia iria fazer perguntas. Não era sua intenção ser apanhado desprevenido. Não precisava de se preocupar com a hipótese de impressões digitais, pois continuava
de luvas calçadas. Estava desesperado por acudir a Hazel, temendo o que poderia ter-lhe acontecido, mas não se atrevia a deixar ficar para trás um inimigo vivo.
Tinha que proteger as costas. Essa era uma das leis vitais da sobrevivência.
O homem que tinha disparado contra Hazel estava a arrastar a parte inferior paralisada do corpo apoiado nos cotovelos. Obviamente que o sujeito ficara com a coluna
vertebral ou a pélvis esmagada quando Hector o atropelara, mas continuava armado. Hector precisava de o inutilizar de uma vez por todas. A marreta estava caída na
berma da estrada, no local para onde o atirador a lançara. Hector recolheu-a do chão em passo apressado. Ergueu-a assim que se aproximou por trás dele. O homem estava
de queixo encostado ao peito, de modo que o capacete lhe descaía para a frente. A parte inferior do pescoço, logo acima da quarta vértebra cervical, estava exposta.
Era necessária uma grande precisão em vez de força bruta para terminar aquele trabalho. Hector ergueu a marreta a poucos mais de quarenta e cinco centímetros de
altura, mas desferiu o golpe com toda a força do punho. O impacto da cabeça de aço contra osso fez-lhe estremecer a mão e ouviu as vértebras quebrar. A cabeça tombou
para a frente e o homem manteve-se imóvel. Hector apoiou-se num joelho e virou-lhe o corpo até ficar deitado de costas. Tinha a viseira levantada. Os olhos estavam
esbugalhados mas fixados no vazio. Havia uma expressão de moderada surpresa nos escuros traços nilóticos. Hector descalçou uma das luvas e apalpou-lhe a garganta,
à procura da artéria carótida. Não tinha pulsação. Hector soltou um grunhido de satisfação e voltou a calçar a luva.
- Sei muito bem de onde vens, rapaz. Não é a primeira vez que vejo os da tua laia - disse num tom sombrio enquanto olhava o rosto do morto. Deixou a viseira do capacete
deliberadamente levantada. Demorou-se alguns segundos mais a enfiar o cabo da marreta na mão do morto e cerrou-lhe os dedos em volta. Quando a polícia examinasse
a cena, era muito improvável que concluísse que ele usara a marreta para partir o próprio pescoço.
Não percas mais tempo a procurar a pistola dele. Deixa isso a cargo da polícia, decidiu enquanto se levantava e corria para junto do Ferrari virado de lado. Trepou
para cima dele. Debruçou-se sobre a janela despedaçada e olhou para Hazel, que estava caída sobre o volante. Ajoelhou-se sem perder tempo e estendeu os braços para
lhe amparar a cabeça com ambas as mãos. Virou-lha delicadamente até conseguir ver-lhe o rosto. Sentiu um enorme alívio ao constatar que não havia nenhum sinal de
ferimento de bala a desfigurar-lhe os traços encantadores. Hazel tinha os olhos abertos, mas fixados no vazio.
Traumatismo craniano. Tentou encontrar uma resposta racional para a falta de reação dela. Deve ter batido com a cabeça quando o carro caiu na valeta. Depois falou
em voz alta: - Vais ficar bem, meu amor. Vou-te tirar daqui num instante. - Usou os dentes para arrancar uma das luvas e depois enfiou os dedos por baixo do queixo
dela, à procura da carótida para se certificar de que ela continuava viva.
- Obrigado, meu Deus. - Sentiu a artéria a pulsar de forma débil, mas constante, sob os dedos. Teve de enfiar a parte superior do próprio corpo pela armação da janela
destruída para conseguir estender o braço e desapertar-lhe o cinto de segurança. Continuou a ampará-la, envolvendo-lhe os ombros com uma das mãos enquanto lhe desapertava
a fivela, e depois agarrou-a com ambas as mãos por baixo das axilas para a levantar. Hazel estava pesada e volumosa devido à gravidez, e o ponto de apoio dele sobre
a carroçaria desfeita era precário, mas usou toda a sua força para erguer o peso morto dela. Grunhiu devido ao esforço, mas conseguiu retirar-lhe a cabeça gradualmente
pela janela. O queixo dela pendia-lhe sobre o peito.
- Aguenta firme, meu amor - arquejou ele. - Está quase. Aguenta firme. - Com outra convulsão dos músculos da parte superior do corpo, Hector ergueu-a o suficiente
para lhe fazer passar a barriga volumosa, e colocou-lhe o braço esquerdo sobre os seus próprios ombros para a impedir de cair para trás. Recobrou o fôlego rapidamente,
pois ainda estava em excelente forma física apesar da vida sedentária que levava nos últimos tempos. Virou a cabeça para lhe beijar a face e sussurrou-lhe junto
ao ouvido: - Estás a ser muito valente, meu amor. - Assim que voltou a firmar a mão no braço dela, reparou, com um sobressalto no coração, que a mão esquerda dela
estava a sangrar. Olhou-a, apreensivo, até que se apercebeu de que o pesado anel de noivado de ouro no dedo anelar dela tinha sido amolgado ou deformado por alguma
força poderosa. O metal enterrara-se-lhe na pele e escorria sangue da ferida.
- A bala! - ofegou ele. Deduziu que Hazel cobrira o rosto com as mãos quando aquele suíno disparara contra ela. A bala certamente atingira o anel. Era apenas uma
bala ligeira de calibre 22 e acabara por ser defletida do rosto dela. Sentiu-se exultante de alívio. - Vais sobreviver. Vai ficar tudo bem.
Sentiu a força voltar-lhe. Lançou as pernas sobre o flanco do Ferrari e, assim que se colocou na posição de sentado, conseguiu puxar-lhe as pernas pela janela e
rodar-lhe o corpo todo até a amparar no colo, com a cabeça apoiada sobre o seu ombro. Depois baixou os pés até ao chão e correu para o Range Rover, carregando Hazel
nos braços como se fosse uma criança adormecida. Abriu uma das portas traseiras e deitou-a com cuidado no banco. Amparou-a com a manta de viagem e as almofadas dos
assentos para a impedir de resvalar. Recuou e sorriu-lhe, mas foi um sorriso débil e desesperado, sem qualquer brilho no olhar.
- Nunca saberás o quanto te amo - disse-lhe, e estava prestes a fechar a porta quando reparou em algo que voltou a enchê-lo de medo. Um delgado fio de sangue reluzente
serpenteava-lhe da linha do cabelo loiro e escorria-lhe da face para o queixo e para o pescoço.
- Não! - deixou escapar num grito de desespero. - Oh, meu Deus, não! - Estendeu a mão para ela, mas sentiu relutância em tocar-lhe e descobrir o pior. Obrigou-se
a fazê-lo e afastou-lhe as madeixas de cabelo loiro. O buraco da bala estava oculto por baixo. Hector aproximou o rosto do dela e examinou a ferida. Era um soldado
e já vira inúmeros ferimentos de bala. A sua primeira estimativa da situação confirmou-se. A bala ligeira certamente fora defletida pelo pesado anel de ouro, mas
também acabara por a fazer ricochetear. A deflexão não fora suficiente para poupar Hazel. A bala atingira-a na parte superior frontal do crânio. O orifício do ferimento
não era uma perfuração circular nítida mas um rasgão alongado no couro cabeludo. A bala girara na sua trajetória aérea e atingira-a de lado.
Voltou a passar os dedos pelo cabelo dela para lhe examinar o couro cabeludo. Não havia nenhum sinal de um orifício de saída. A bala continuava alojada dentro do
crânio; dentro do cérebro dela.
Fechou os olhos com força. Sim, era um soldado e tinha visto morrer muitos bons homens. Mas aquilo não, não a única mulher que alguma vez amara verdadeiramente.
Considerava-se um homem duro e julgava que conseguiria aguentar tudo. Mas descobria agora que não era tão duro como se julgava e que não conseguia suportar aquilo.
Sentiu o seu mundo desmoronar-se. Tentou reunir coragem. Exigiu-lhe um enorme esforço físico, mas falou em voz alta. - Seu cabrão estúpido! Aqui parado a choramingar
enquanto a vida dela se esvai em sangue. Mexe-te! Mexe-te, maldito!
Fechou a porta e contornou o carro a correr. Enfiou-se no lugar do condutor. O motor tinha parado. Voltou a ligá-lo. Os pensamentos precipitavam-se agora na sua
mente. O hospital mais próximo era o Hospital Real de Hampshire, em Winchester. A estrada atrás dele estava bloqueada e intransitável. Tentou calcular a rota alternativa
mais rápida para chegar lá. Seriam quase treze quilómetros adicionais de percurso.
É a única hipótese, disse a si mesmo sombriamente, acelerando o Rover. Conduziu a toda a brida, como um louco. Correu enormes riscos ao ultrapassar outros veículos
em situações perigosas. Essa imprudência foi quase a sua queda, mas também a sua derradeira salvação. Ultrapassou a grande velocidade um camião pesadamente carregado
que se arrastava ao longo de uma elevação de visibilidade insuficiente. Ao fazê-lo, por meros centímetros não colidiu de frente com uma viatura da polícia que seguia
no sentido inverso. O agente que conduzia fez inversão de marcha e perseguiu-o com a sirene a berrar. Hector viu pelo espelho retrovisor as brilhantes cores refletoras
azul e amarela da viatura e o boné de pala do polícia que o perseguia. - Graças a Deus! - exclamou, parando de imediato na berma. A viatura da polícia parou à frente
dele e dois agentes de uniforme apearam-se de um salto e aproximaram-se dele com uma expressão sombria. Hector baixou o vidro da janela e enfiou a cabeça de fora.
Antes que algum dos agentes da brigada de trânsito pudessem falar, gritou-lhes: - A minha mulher foi baleada na cabeça. Está a morrer. Têm de me escoltar até ao
Hospital de Winchester. - Ambos se detiveram e as suas expressões sombrias transformaram-se em consternação. - Aí! Vejam! Está no banco de trás - insistiu Hector.
O agente com as divisas de sargento na manga correu para a janela traseira e espreitou pelo vidro. - Credo! - exclamou. - Há sangue por toda a parte. - Endireitou-se
e olhou para Hector. - Muito bem! Siga-me, senhor.
- Deixe o seu colega ir atrás com a minha mulher. Para lhe amparar a cabeça e evitar que se mova.
- Peter, ouviste o homem - disse o sargento num tom firme,
e o jovem agente enfiou-se no banco traseiro do Rover.
Hector ajudou-o a pousar a cabeça de Hazel com cuidado no regaço. Depois gritou ao sargento: - Tudo a postos. Vamos. - A viatura de patrulha partiu à frente com
a sirene a uivar, e o Range Rover de Hector seguiu quase colado a ele.
Estava uma ambulância estacionada no exterior da entrada para a sala de emergências do hospital, mas o sargento deu uma forte buzinadela com a sirene ligada e o
veículo afastou-se apressadamente enquanto o Rover de Hector ocupava o lugar. O sargento precipitou-se da viatura e correu para dentro do edifício, voltando quase
de seguida à frente de um enfermeiro de bata branca que empurrava uma maca. Hector ajudou-o a pousar o corpo inerte de Hazel na maca e cobriu-a com um lençol.
- Vá com a sua mulher, senhor - disse-lhe o sargento. - Aguardarei aqui para anotar o seu depoimento mais tarde. Vai ter de nos contar como é que isto aconteceu.
- Obrigado, senhor agente. - Hector virou-se e seguiu atrás da maca para a entrada.
Uma jovem médica abordou-o. - O que aconteceu a esta senhora?
- Foi baleada na cabeça. Tem uma bala no cérebro. - Leve a paciente para a sala de raios X - ordenou a médica ao enfermeiro num tom firme. - Diga-lhes que quero
radiografias frontais e laterais da cabeça. - Depois olhou para Hector. - Tem algum parentesco com a paciente?
- É a minha mulher. - Então não poderia estar no lugar mais indicado, senhor. O especialista de neurocirurgia de Londres está cá hoje. Vou pedir-lhe para examinar
a sua mulher assim que ele puder.
- Posso ficar com ela? - Lamento, mas tenho de lhe pedir que aguarde até ela fazer as radiografias e até que o neurocirurgião a tenha examinado.
- Compreendo - disse Hector. - Estarei lá fora com a polícia. Querem o meu depoimento.
Hector passou a meia hora seguinte com o sargento da polícia, sentado na frente da viatura policial. O agente chamava-se Evan Evans. Hector forneceu-lhe as indicações
do local do incidente, bem como uma breve descrição da natureza do ataque.
- Estava a tentar defender a minha mulher dos assaltantes - explicou, mas teve o cuidado de não fornecer demasiados pormenores. Aos olhos da lei, tinha cometido
um duplo homicídio. Precisava de tempo para repensar a fundo na sua versão do sucedido. - Choquei de frente com o meu Range Rover contra a motocicleta e acho que
os dois motociclistas ficaram feridos. Não tive tempo para me ocupar deles. Estava demasiado ansioso por levar a minha mulher para onde pudesse receber cuidados
médicos adequados.
- Compreendo o que está a dizer, senhor. Vou telefonar para a minha esquadra imediatamente e pedir-lhes que enviem uma viatura ao local do incidente. Mas vai ser
preciso confiscar o veículo da sua mulher para um exame forense completo. - Hector anuiu com a cabeça e o sargento prosseguiu: - Sei que o senhor vai querer ficar
aqui agora com a sua mulher, mas vou precisar de um depoimento completo por escrito e assinado por si assim que for possível.
- Já tem a minha morada e o meu número de telemóvel.
- Hector abriu a porta da viatura. - Estarei disponível em qualquer altura que o senhor agente precisar de mim. Obrigado, sargento Evans. Quando a minha mulher recuperar,
grande parte desse mérito será seu.
Quando voltava para dentro do hospital, a jovem médica apressou-se ao seu encontro. - Senhor Cross, o neurocirurgião já examinou a sua mulher e as radiografias.
E gostaria de falar consigo. Ainda está lá dentro com a senhora Cross. Acompanhe-me, por favor.
O neurocirurgião encontrava-se num cubículo de examinação isolado por um biombo, debruçado sobre o vulto de Hazel deitado na maca. Endireitou-se assim que Hector
entrou no cubículo e foi ao seu encontro. Era um homem bem-parecido, de meia-idade. Exibia aquele ar autoconfiante de alguém inteligente e altamente competente;
um mestre no seu campo de especialidade.
- Chamo-me Trevor Irving, senhor...? - Cross. Hector Cross. Como está a minha mulher, doutor Irving? - disse Hector, pondo de lado as cortesias.
- A bala não saiu - explicou Irving num tom profissional. - Está alojada numa posição extremamente delicada e há hemorragia. O projétil tem de ser removido de imediato.
- Apontou para a radiografia iluminada por trás no visor ao lado da maca de Hazel. A sombra escura do minúsculo projétil de ponta redonda destacava-se com nitidez
contra as circunvoluções macias do tecido cerebral que o rodeava.
- Compreendo. - Hector desviou o olhar. Não queria ver aquele terrível arauto da morte dela.
- Há uma complicação adicional pelo facto de a sua mulher estar grávida. De quantas semanas?
- Quarenta semanas. Foi examinada esta manhã pelo ginecologista dela.
- Já calculava que a gravidez estivesse muito avançada - disse o doutor Irving. - O feto vai ficar perigosamente traumatizado com a cirurgia à mãe. Se perdermos
a mãe, também nos arriscamos a perder a criança.
- Tem de salvar a minha mulher custe o que custar. É ela que me importa, raios. - O tom de Hector era selvagem.
O Dr. Irving pestanejou. - Raios! Ambas importam, senhor Cross. E não se esqueça disso, raios - respondeu ele, no mesmo tom que Hector usara.
- As minhas sinceras desculpas, doutor Irving. Claro que não era minha intenção dizer aquilo. A minha única desculpa é o facto de estar tão aflito.
O Dr. Irving reconheceu em Hector um homem que não transigia facilmente. - Vou fazer o meu melhor para salvar ambas, mãe e criança. Mas vamos precisar da sua autorização
para que aqui o doutor Naidoo retire de imediato a criança por cesariana usando anestesia epidural. Só depois poderei remover a bala.
Virou-se para o outro médico no cubículo, que avançou para dar um aperto de mão a Hector. Era um jovem indiano, mas quase não se lhe notava nenhum sotaque quando
disse: - O bebé continua em perfeitas condições. A cesariana é um procedimento muito simples. Não envolve praticamente nenhum risco e nem a sua mulher nem a criança
ficarão traumatizadas.
- Muito bem, então. Faça-o. Assino qualquer documento que seja necessário - disse Hector. Sentia-se tão frio como a própria voz lhe soou aos ouvidos.
8
Uma enfermeira conduziu Hector para uma das salas de espera
do hospital, onde ele deparou com meia dúzia de outras pessoas que ali aguardavam. Todas ergueram as cabeças com uma expressão expectante quando ele entrou, mas
depois voltaram a baixá-las com desilusão e resignação. Hector serviu-se de um copo de café do dispensador automático comunal. Reparou que as mãos lhe tremiam enquanto
segurava no copo. Fez um esforço para as controlar e encontrou um lugar vazio num dos cantos da sala espaçosa.
Estava habituado a assumir o controlo total de qualquer situação, mas agora sentia-se impotente. Não havia nada que pudesse fazer a não ser esperar. E não deixar
que o desespero se apoderasse de si.
Ainda não tivera uma oportunidade para repensar nas coisas desde o terrível momento em que a furgoneta Mercedes com o condutor mascarado o ultrapassara a toda a
velocidade na estrada estreita. Desde esse momento, fora impelido unicamente pela adrenalina e pelos instintos de sobrevivência para se preservar a si mesmo e aos
seus entes queridos. Hazel e o bebé. Esta era a sua primeira oportunidade para avaliar a situação com sobriedade e calma.
De uma coisa tinha a certeza: encontrava-se no meio de uma guerra mortal. Tinha de reforçar as suas defesas mentais e preparar-se para o próximo ataque de um inimigo
sem rosto e oculto. Só podia deitar-se a adivinhar de onde poderia provir tal ataque. A única coisa da qual tinha a certeza era que esse ataque acabaria por acontecer.
No entanto, a sua mente continuava a pregar-lhe partidas. O desespero voltou com toda a força; um sentimento de confusão e de incerteza, uma esmagadora sensação
de medo. Não conseguia concentrar-se em mais nada a não ser na imagem gravada na sua mente, de um fio de sangue a escorrer pela face de Hazel e a expressão vazia
nos seus olhos abertos.
Deu um gole no café e pressionou os dedos da mão livre contra as órbitas oculares até lhe doer, numa tentativa de reorganizar os recursos de que dispunha. Demorou-lhe
algum tempo, mas por fim recuperou o controlo da sua pessoa.
Muito bem. O que é que fiquei a saber acerca da natureza da Besta?, perguntou a si mesmo. Enfiou a mão no bolso interior do casaco e retirou o pequeno bloco de apontamentos
de moletão. Tenho quase a certeza de que a furgoneta foi roubada, mas tenho o número da matrícula. Anotou-o. De seguida, o condutor da Mercedes. Poucos dados a respeito
dele. Cara tapada pela máscara. Rememorou a breve visão e perscrutou-a à procura de pormenores. Camisa de trabalho de ganga azul, provavelmente comprada por umas
quinze libras numa das lojas da cadeia Primark. Parou por momentos e depois prosseguiu. Braço esquerdo à mostra. Pele muito escura. Boa tonificação muscular. Jovem
e em boa forma física. Anotou tudo na sua estenografia pessoal. Marca de um relógio na pele do pulso, mas relógio ausente. Um cabrão cauteloso, só pode ser. Desfez-se
dos acessórios para entrar em ação. Tatuagem vermelha nas costas da mão. Coração? Escorpião? Serpente enroscada? Sem certeza. Parou de anotar. Nada mais aqui. E
quanto aos dois outros falecidos? No laboratório médico-legal da polícia vão verificar as impressões digitais e extrair dos cadáveres todos os outros detalhes. Se
bem que haja poucas dúvidas acerca da sua origem tribal. Pude dar uma boa olhada a ambos depois de os abater. Aqueles traços nilóticos são inequívocos. Nariz e lábios
finos. Dentes da frente salientes. Maçãs do rosto salientes. Bem-parecidos. Corpos altos e esguios. Somalis, quase de certeza. Depois sorriu sombriamente perante
a sua própria ingenuidade. Ou mascais, ou etíopes, ou samburus, ou qualquer outra das tribos nilóticas. Mas quer-me parecer que faz mais sentido que sejam somalis.
A dinastia dos Tippoo Tip, o grande senhor da guerra. Eram eles a Besta original. Foram eles que sequestraram o iate da Hazel, que raptaram a Cayla e lhe cortaram
a cabeça para depois no-la enviarem dentro de uma redoma de vidro. Isto cheira-me muito ao modo de operar deles. Pensava que já tinha despachado a maior parte dos
elementos desse clã. Pensava que já os tinha apanhado a todos, mas um ninho de escorpiões volta a reproduzir-se em pouco tempo. É bem possível que alguns deles nos
tenham escapado para levarem a cabo a sua vingança de sangue.
Ele próprio tentara muitas vezes compreender a tradição dessas mortes por questões de honra. A vingança de sangue era um dos conceitos da lei da xariá mais insondáveis
para a mente dos ocidentais. O objetivo da vingança de sangue não era o castigo nem a retaliação. Se fosse esse o caso, então a morte recairia sobre o autor original
do crime e, uma vez perpetrada, o assunto ficaria encerrado para sempre. O facto é que se tratava sobretudo de uma questão de limpar a honra da família chacinando
qualquer outro membro da família do ofensor. E, é claro, o sangue derramado dessa vítima acabava depois por redundar num novo apelo à outra família para prosseguir
com a purificação. Um círculo interminável.
Hector suspirou. Está na altura de pedir alguma ajuda nisto. Não precisou de ponderar esta questão. Só havia uma resposta: Paddy O'Quinn. O bom e velho Paddy e a
sua alegre comandita.
Hector conhecera Hazel quando era proprietário e chefe dos operacionais da Cross Bow Security. O único cliente da empresa era a Bannock Oil, o enorme conglomerado
petrolífero ao qual Hazel continuava a presidir como diretora-geral. Assim que os dois se tinham unido, Hazel quisera Hector perto dela em todos os momentos. Persuadira-o
a assumir um cargo no conselho de administração da Bannock Oil e a vender todas as suas ações da Cross Bow à Bannock Oil, para poder ficar livre e estar com ela.
O preço que a companhia petrolífera pagou para comprar a comparticipação acionária de Hector foi substancial mas completamente razoável. Era uma quantia suficiente
para o tornar independente ao nível financeiro e dono do seu próprio destino. Foi a forma que Hazel encontrou de-assegurar que Hector fosse um homem livre e que
podiam ser sempre parceiros em pé de igualdade no casamento. Não queria que ele lhe fosse subserviente por razão da sua própria vasta riqueza. Sabia que ele era
um macho alfa e não iria, nem poderia, aceitar qualquer outro tipo de acordo por muito tempo. Foi um gesto bastante característico dela.
Esperta como tudo e ainda mais bela! O seu estado de espírito animou-se por momentos enquanto pensava nela, mas as nuvens escuras voltaram a cerrar-se sobre ele
quase de imediato.
Paddy O'Quinn tinha sido o seu diretor-adjunto na Cross Bow. Ajudara-o a consolidar a empresa desde os tempos iniciais. Não havia nenhum homem em quem Hector confiasse
mais. Era sólido como uma montanha, perspicaz e rápido, mas, acima de todas as suas outras virtudes, era um combatente com um instinto quase tão forte para pressentir
o perigo como o próprio Hector. Sentia-se tranquilizado pelo facto de Paddy estar apenas a um telefonema de distância. Os seus devaneios foram interrompidos por
uma enfermeira do hospital que entrou na sala de espera e chamou o seu nome. Levantou-se de um salto.
- Sou eu, Hector Cross. - Acompanhe-me, por favor, senhor Cross. Enquanto se apressava atrás dela, Hector verificou as horas no relógio de pulso. Estivera pouco
mais de uma hora e meia à espera. Alcançou a enfermeira no corredor. - Está tudo bem? - perguntou. - Sim, pode ficar descansado. - Sorriu-lhe. - A minha mulher?
- Está na sala de operações. O doutor Irving continua a operá-la. Mas há outra pessoa que quero que o senhor conheça. - Conduziu-o através de um labirinto de corredores
até uma porta onde se lia "Sala de Observações da Maternidade".
Quando entraram, Hector reparou em cadeiras dispostas ao comprido de uma das paredes, virada para um enorme painel de vidro que permitia ver uma sala do outro lado.
A enfermeira falou para um microfone na mesa por baixo da divisória de vidro.
- Olá, Bonnie! Está aqui o senhor Cross. Ao que uma voz desencarnada respondeu: - Só um segundo e já vou ter convosco.
Hector manteve-se junto à divisória e, segundos depois, uma outra enfermeira, envergando o uniforme de enfermeira-chefe, entrou na sala de observações pela porta
na extremidade da divisória. Teria cerca de trinta anos; era jovem para um posto tão alto, pensou Hector. Era roliça e bonita, com um rosto redondo e jovial. Trazia
nos braços um pequeno volume envolto numa manta azul bordada com as iniciais a vermelho do Hospital Real do Condado
Hampshire. Aproximou-se do lado oposto da divisória e dirigiu a Hector um radiante sorriso rosado. Foi um gesto contagiante e Hector retribuiu-lhe o sorriso, embora
não refletisse os seus sentimentos verdadeiros naquele momento.
- Olá, senhor Cross. Sou a Bonnie. Permita-me o prazer de lhe apresentar uma pessoa. - Abriu a manta e mostrou um pequeno rosto rosado e enrugado, com fendas firmemente
fechadas no lugar dos olhos. - Diga olá à sua filha. - Meu Deus! Ela não tem cabelo nenhum. - Hector dissera a primeira coisa que lhe acudira à mente e apercebeu-se
de imediato de como aquilo soara inane, mesmo aos seus próprios ouvidos.
- Ela é tão linda! - disse a enfermeira num tom severo. - De uma maneira um pouco estranha, mas suponho que seja. - É linda de todas as maneiras possíveis - corrigiu-o
ela. - Pesa exatamente dois quilos e setecentos gramas. Não é uma menina encantadora? Que nome lhe vai pôr?
- Catherine Cayla. Foi a mãe dela que escolheu o nome. - Seguramente deveria estar a sentir algo mais do que aquilo ao olhar para a sua primogénita, mas só conseguia
pensar em Hazel, deitada algures ali perto, com uma bala alojada no cérebro. Estava à beira das lágrimas e tossiu e pestanejou para as conter. Da última vez que
chorara diante de alguém fora aos seis anos de idade, quando o seu pónei o derrubara da sela e ele partira o braço em três sítios ao tombar.
Catherine Cayla abriu a boquita num enorme bocejo que lhe expôs as gengivas desdentadas. Hector sorriu e dessa vez o sorriso foi genuíno. Sentiu a centelha de uma
chama inflamar-lhe o coração.
- É linda - disse baixinho. - É maravilhosa como tudo. Tal como a mãe dela.
- Oh! Vejam só que queridinha mais linda - disse Bonnie. - Já está com fome. Vou levá-la para lhe dar a primeira dose de leite. Diga adeus, papá.
- Adeus - disse Hector obedientemente. Nunca ninguém lhe tinha chamado papá antes. Observou enquanto a enfermeira lhe levava a filha. Por breves momentos, aquela
minúscula alma brilhara para ele como uma vela na escuridão de uma noite de inverno. Mas agora que desaparecera, a gelidez ártica do desespero voltou a abater-se
sobre ele. Afastou-se da divisória e regressou à sala de espera.
Sentou-se de costas curvadas numa cadeira a um canto. A escuridão invadiu-o numa série de ondas. Sondou a alma à procura de coragem para a suportar, mas em vez disso
encontrou raiva.
A raiva é uma cura melhor do que a resignação. Endireitou os ombros e levantou-se. Saiu da sala de espera e foi para o corredor. Encontrou os lavabos masculinos
e trancou-se num dos cubículos. Sentou-se na sanita e tirou o telemóvel da bolsa de couro que levava ao cinto. Tinha o número de Paddy O'Quinn na sua lista de contactos.
O telemóvel tocou três vezes e depois Paddy atendeu: - O'Quinn.
- Paddy. Onde estás? - perguntou Hector. O seu tom de voz era novamente áspero e acutilante.
- Meu Deus! Pensei que tinhas desaparecido nos confins do mundo, Hector. - Já não se falavam há meses.
- Eles apanharam a Hazel. Paddy manteve-se num silêncio atordoado. Hector conseguia ouvi-lo respirar roucamente. Depois Paddy disse: - Quem? Como? - A sua voz soava
como um sabre a ser desembainhado.
- Caímos numa emboscada há cerca de quatro horas. É grave. A Hazel foi atingida no cérebro por uma bala de calibre 22. Está agora no bloco operatório. O médico-cirurgião
está a extrair-lhe a bala. Ainda não sabemos se ela vai conseguir sobreviver.
- Ela é uma mulher forte, Heck. Não preciso de te dizer o que sinto.
- Eu sei, Paddy. - Ambos eram guerreiros, não se lamuriavam nem se lamentavam.
- Ela estava grávida, não estava? E a criança? - grunhiu Paddy.
- Salvaram-na. Temos uma menina. Parece estar bem. - Graças a Deus por isso, pelo menos. - Paddy calou-se e depois perguntou: - Tens alguma pista?
- Eliminei dois dos cabrões. Eram somalis, acho. - Só pode ser a Besta outra vez! - disse Paddy. - Pensava que já os tínhamos eliminado a todos.
- Foi o que eu pensei também. Mas estávamos enganados. - Que queres que eu faça? - perguntou Paddy. - Encontra-os para mim, Paddy. Deve ter sobrevivido alguém da
prole dos Tippoo Tip. Encontra-os.
Hector tinha consolidado a Cross Bow Security numa formidável operação, baseada no princípio de que a ofensiva era mais eficaz do que a defensiva, e que dispor de
boas informações de segurança era a vantagem mais poderosa. Quando Paddy o substituíra na chefia da empresa, baseara-se nesses mesmos preceitos. Na sua função como
um dos diretores da Bannock Oil, Hector continuava a ter acesso às contas bancárias da Cross Bow e sabia com precisão quanto Paddy estava a gastar no ramo das informações
secretas. Se esse ramo fora eficaz antes, agora teria de ser ainda melhor.
Hector continuou a falar: - O Tariq continua a trabalhar contigo? - É um dos meus principais homens. - Volta a enviá-lo para a Puntlândia à procura de quaisquer
sobreviventes da família do xeque Hadji Mohammed Khan Tippoo Tip. Ninguém conhece esse terreno melhor que o Tariq, pois nasceu lá.
- Depois do que lhes fizemos lá na Puntlândia, tenho quase a certeza de que aqueles que se safaram acabaram por se dispersar pelo Médio Oriente.
- Descobre-os, onde quer que estejam. O Tariq deve elaborar uma lista de qualquer descendente masculino do clã dos Khan Tippoo Tip acima dos quinze anos de idade.
Nota de Rodapé: Hadji: título honorífico islâmico que atesta que o seu detentor fez a peregrinação a Meca, que é um dos cinco pilares do islão. (NT)
E depois trataremos de os caçar, até não restar nenhum deles.
- Entendido, Heck. Entretanto, ficarei a torcer pelas melhoras da Hazel. Se há pessoa que consegue recuperar de uma situação destas, é ela. Aposto toda a minha fortuna
nela.
- Obrigado, Paddy. - Hector desligou a chamada e voltou para a sala de espera.
9
Passou-se mais uma hora com enorme lentidão, e depois mais outra, ainda mais penosamente, até que uma das enfermeiras do bloco operatório veio ao seu encontro. Usava
uma touca de plástico na cabeça. Uma máscara cirúrgica pendia-lhe do pescoço e calçava pantufas descartáveis.
- Como está a minha mulher? - perguntou Hector enquanto se levantava da cadeira.
- O doutor Irving irá responder a todas as suas perguntas - disse ela. - Queira acompanhar-me, por favor. Conduziu-o para uma das salas de recobro, contígua ao bloco
operatório. Abriu a porta e afastou-se para o lado, para o deixar passar. Hector deu por si numa sala de paredes pintadas de verde. Ao fundo via-se uma única cama
de hospital, ao lado da qual estava um carrinho de rodas com um aparelho de monitorização cardíaca que emitia bipes suaves. No ecrã eletrónico saltitava o reluzente
pontinho de luz verde que se movia em sintonia com as batidas cardíacas do paciente na cama por baixo, deixando um nítido rasto verde denteado no ecrã. Nos poucos
segundos que Hector ficou especado à porta, apercebeu-se de que a linha do ritmo cardíaco não era regular. A uma rápida série de batidas seguia-se uma pausa distinta,
depois uma batida quase hesitante, outra pausa e de seguida três ou quatro batidas rápidas.
O Dr. Irving estava debruçado sobre a paciente na cama, tapando-lhe a visão do corpo deitado. Depois afastou-se para o lado assim que pressentiu Hector atrás de
si, permitindo-lhe então ver o rosto de Hazel.
Tinha a cabeça envolta num apertado turbante de ligaduras brancas que se estendiam por baixo do queixo e lhe tapavam as orelhas. A metade inferior do seu corpo estava
coberta com um lençol. Continuava vestida com a bata verde do bloco operatório. Tinha cateteres intravenosos nas veias dos braços e nas costas das mãos. Tubos de
plástico pendiam de sacos de líquido suspensos por cima dela num suporte móvel.
O Dr. Irving aproximou-se de Hector. - Como está ela? - perguntou Hector, conseguindo manter um tom de voz uniforme.
O doutor hesitou. O monitor cardíaco emitiu dois bipes seguidos antes de ele responder. - Removi a bala. Mas havia mais danos no tecido mole do que esperávamos encontrar.
Não tínhamos como avaliá-los com base nas radiografias.
Hector avançou lentamente para junto da cama e olhou para Hazel, cujo rosto estava branco como a cal. Os olhos estavam entreabertos. Só se lhe via o branco dos olhos
por entre as compridas pestanas curvas. Tinha um tubo enfiado na narina esquerda que estava conectado à máquina de oxigénio pousada no chão. A sua respiração era
tão leve que Hector teve de aproximar a cara a poucos centímetros da dela para conseguir captá-la. Beijou-a muito ao de leve nos lábios. Endireitou-se e olhou para
o Dr. Irving.
- Que hipóteses é que ela tem? - perguntou. - Não me minta.
O Dr. Irving voltou a hesitar e depois encolheu os ombros de forma quase impercetível. - Cinquenta por cento de hipóteses, ou talvez um pouco menos.
- Se ela recobrar, recuperará a totalidade das funções cerebrais? O médico franziu a testa antes de responder e disse: - É pouco provável. - Obrigado pela sua honestidade
- disse Hector. - Posso esperar aqui junto dela? - Com certeza. Essa cadeira é para si. - Indicou-lhe uma cadeira do outro lado da cama. - Fiz tudo ao meu alcance
e agora vou entregar a sua mulher ao cuidado do doutor Daly, o especialista neurocirurgião residente do hospital. Ele já a examinou. O gabinete dele fica logo ali,
ao fundo do corredor. E estará aqui em poucos segundos, caso a enfermeira Palmer o chame. - Indicou com a cabeça a enfermeira do bloco operatório que estava a ajustar
o fluxo nos controladores de gotas dos cateteres.
- Adeus, senhor Cross. Deus o abençoe a si e à sua encantadora mulher.
- Adeus e obrigado, doutor Irving. Sei que ninguém poderia ter feito mais por ela.
Quando ele saiu, Hector falou com a enfermeira Palmer. - Sou o marido dela.
- Eu sei. Sente-se, senhor Cross. A espera poderá ser demorada. Hector aproximou a cadeira da cama e sentou-se. - Posso segurar-lhe na mão?
- Sim, mas por favor tenha cuidado para não mexer em nenhum dos tubos intravenosos.
Hector estendeu a mão com cautela e agarrou em três dos dedos de Hazel. Estavam muito frios, mas não tão frios como o seu coração. Observou-lhe o rosto. As pestanas
estavam quase fechadas. Os próprios olhos estavam virados e afundados nas órbitas. Não conseguia ver-lhe as pupilas. Apenas um fragmento da íris era visível. Tinham
perdido o seu brilho azul-safira. Estavam mortiços e sem vida. Hector voltou a mover a cadeira, para poder estar sentado diretamente na linha de visão dela quando
Hazel abrisse os olhos. Seria a primeira coisa que ela veria quando recuperasse os sentidos; foi com um cuidado extremo que se impediu de pensar sequer na hipótese
contrária.
Escutou o bipe irregular no monitor cardíaco e de vez em quando relanceava o olhar pelo ritmo ascendente e descendente dos foles do aparelho de oxigénio. Os outros
ruídos audíveis eram apenas o bater dos tacões no chão de ladrilhos e o roçagar da saia enquanto a enfermeira Palmer se movimentava pelo quarto. Hector verificou
as horas no relógio de pulso. Tinha sido um presente de Hazel pelo seu último aniversário. Era o modelo de platina, com o típico mostrador Rolex em azul. Faltavam
vinte minutos para as duas da manhã.
Estava acordado desde a alvorada do dia anterior. De queixo descaído sobre o peito, e ainda segurando na mão dela, deixou que o sono se apoderasse de si logo abaixo
do limiar da consciência, mas qualquer alteração no ritmo do monitor cardíaco despertava-o de imediato com um sobressalto.
Sonhou que ele e Hazel estavam a subir o monte Spyglass no rancho no Colorado. De mãos dadas, seguiam o trilho através da floresta que conduzia ao mausoléu de Henry
Bannock. Cayla corria à frente deles.
"Quero ver o papá!", dizia ela, risonha, olhando para trás sobre o ombro. A parecença entre a filha e a mãe era assombrosa.
"Espera por mim!", bradou-lhe Hazel. "Vou contigo." O medo inundou Hector. Apertou-lhe a mão com mais força.
"Não!", disse ele. "Fica comigo. Não podes deixar-me. Nunca podes deixar-me." Depois sentiu uma mão no ombro e ouviu outra voz falar.
- Senhor Cross, sente-se bem? - Hector abriu os olhos e viu a enfermeira Palmer especada sobre ele, com uma expressão de preocupação no rosto. - O senhor estava
a gritar no sono.
Hector precisou de alguns segundos para se recompor. Depois teve consciência do lugar onde estava. Perscrutou o rosto de Hazel. Ela não tinha mudado a posição da
cabeça, mas os olhos estavam abertos. O brilho azul-cerúleo reluzia novamente. Hazel estava a vê-lo.
- Hazel! - murmurou ele num tom insistente. - Aperta-me a mão! - Não houve nenhuma reação. Os dedos dela estavam inertes e frios. Hector passou a mão esquerda pelo
rosto dela. Os olhos não se mexeram. Fixavam-no com uma expressão vazia.
- Sou eu, o Hector - sussurrou-lhe. - Amo-te. Pensei que te tinha perdido. - Olhou-a nos olhos e julgou ver-lhe as pupilas contraírem-se minimamente; ou talvez fosse
apenas a vã esperança que engendrara esse pensamento. Depois ouviu o batimento do coração no monitor cardíaco. Era rápido e regular.
- Ela consegue ver-me - disse. - Ela consegue ouvir-me. - A sua voz alteou-se.
- Acalme-se, senhor Cross - disse a enfermeira Palmer. - Não devemos precipitar-nos. Os danos cerebrais...
Hector não queria ouvi-la dizer aquilo. - Estou a dizer-lhe que ela consegue ver-me e ouvir-me. - Estendeu a mão e tocou na face pálida e fria de Hazel. Sentiu a
coragem e a determinação inundarem-no de repente.
- Enfermeira Palmer - disse numa voz firme. - Por favor, vá lá abaixo à Maternidade dizer à enfermeira de serviço para trazer minha filha aqui. - Não podemos fazer
isso, senhor. A sua mulher está muito débil e...
- A senhora tem filhos? - interrompeu-a. Ela hesitou, mas depois a sua voz e tom mudaram. - Tenho um filho de seis anos.
- Então, consegue imaginar o que seria morrer sem chegar a pôr-lhe os olhos em cima?
- Há regras - disse ela numa voz débil. - Os bebés nascidos por cesariana devem permanecer lá na unidade para...
- Não quero saber das regras. A minha mulher pode morrer. Vá lá abaixo à Maternidade e traga-lhe a filha. Já! A enfermeira Palmer hesitou por um momento e depois
murmurou: - A esta hora da noite haverá pouca gente a circular. - Endireitou as costas e virou-se para a porta. Fechou-a silenciosamente atrás de si e saiu para
o corredor.
Hector aproximou os lábios do ouvido de Hazel e sussurrou-lhe: - Tinhas razão, Hazel, meu amor! O nosso bebé é uma menina. Chama-se Catherine Cayla, tal como tu
tinhas planeado. - Olhou-a nos olhos, à procura de sinais de vida. Era como se estivesse a olhar para dentro de duas poças azuis insondáveis. - Eles vão trazer-te
a Catherine. Vais ver como ela é tão linda. O cabelo dela vai ser loiro como o da irmã. Pesa dois quilos e setecentos ramas. - Afagou-lhe a face ao de leve enquanto
lhe murmurava palavras de coragem e carinho.
O monitor cardíaco emitia agora os bipes num ritmo constante. Nesse momento, o padrão denteado visível no ecrã era regular e uniforme.
Hector teve a impressão de estar ali à espera durante uma eternidade, mas depois a porta abriu-se atrás dele e a enfermeira Palmer entrou. Vinha sorridente. Logo
atrás dela surgiu Bonnie, a enfermeira-chefe da Maternidade. Hector ficou surpreendido ao vê-la ainda de serviço. Trazia nos braços um volume envolto numa manta
azulada. Hector levantou-se de um salto e acercou-se dela. Sem dizer palavra, a enfermeira estendeu-lhe o volume.
Hector estendeu as mãos de forma indecisa e depois recuou e murmurou: - Por qual ponta devo pegar nela? Não quero deixá-la cair.
- Dobre o braço para a amparar - ordenou-lhe Bonnie. Assim que ele obedeceu, a enfermeira pousou Catherine nesse berço improvisado.
Hector estava apreensivo, como se estivesse a segurar numa bomba-relógio. - Nunca fiz isto antes.
- A bebé não se vai partir - tranquilizou-o Bonnie. - Os bebés são minúsculos mas bastante rijos. Segure nela como se a amasse.
Hector começou lentamente a descontrair-se. Sorriu. - Ela cheira bem. - A sua expressão de felicidade transformou-se num sorriso rasgado. - Ela é tão quentinha e
macia!
- É bem verdade! - disse Bonnie. - Os bebés são assim. Hector virou-se para a cama, continuando a segurar a criança no colo. Inclinou-se sobre Hazel até aproximar
o rosto de Catherine ao nível do rosto dela.
- Olha-me só para ela! Não é a coisinha mais mágica que existe? - murmurou.
O rosto de Hazel não se mexeu minimamente; a sua expressão era impassível e os olhos mantiveram-se inexpressivos. Hector aproximou ainda mais o rosto da bebé.
- Acho que a sua filha está a precisar de um beijo, senhora Cross - disse ele, encostando os lábios de Catherine aos de Hazel. Os lábios da criança começaram de
imediato a produzir movimentos de sucção, procurando instintivamente a mama. Começou a mover a cabecita de um lado para o outro, roçando no rosto da mãe. Ainda assim,
a cara de Hazel manteve-se imóvel e pálida como a cal.
Como não conseguiu encontrar o que procurava, Catherine soltou um gemido. Quase de imediato, a sua frustração transformou-se em fúria e emitiu uma série de grunhidos
e berros abafados
- os sons mais evocativos aos ouvidos de uma mãe. Mas o rosto de Hazel permaneceu vazio.
Desanimado, Hector voltou a erguer Catherine no colo. Esperara
própria filha a roçar-lhe a face.
Foi então que aconteceu um pequeno milagre diante dos seus olhos. Uma lágrima brotou da profundeza azul do olho esquerdo
Hazel. Era do tamanho de uma pérola minúscula e brilhava com a mesma opalescência.
- Ela está a chorar - disse Hector em voz baixa e tomado de espanto. - Ela vê. Ela sabe. Ela compreende.
Bonnie tirou-lhe a criança dos braços. - Temos de ir agora. Não me atrevo a ficar mais tempo. O que está aqui em jogo é mais importante que o meu emprego. - Avançou
rapidamente para a porta e olhou para ele com um sorriso. - Foi um risco tremendo, mas estou contente por o ter feito.
- Eu também. - A voz de Hector soava áspera. - Fico-lhe a dever, Bonnie. Fico-lhe a dever um grande favor. Bonnie foi embora com a criança. Hector olhou para a enfermeira
Palmer. - E a si também lhe fico a dever um grande favor! - disse-lhe.
Voltou para o seu lugar ao lado da cama. Agarrou nos dedos de Hazel e massajou-os para tentar aquecê-los. Sussurrou-lhe palavras de carinho durante algum tempo,
mas depois o cansaço e o desgaste emocional apoderaram-se dele e o sono abateu-se sobre si como um nevoeiro escuro.
10
Algo o despertou. Não sabia bem o que era. Olhou em volta, ensonado. Foi então que a sua mente registou duas coisas em rápida sucessão: o som dos bipes era freneticamente
irregular e a linha no ecrã do monitor cardíaco dançava e saltava de forma caótica. Em pânico, levantou-se de um salto e debruçou-se sobre Hazel. O peito dela subia
e descia e saía-lhe um som áspero da boca aberta.
- Hazel! - disse ele, sentindo uma raiva crescente. - Luta, meu amor! Luta contra esse cabrão! - Sabia que o anjo negro tinha vindo para a levar. - Não o deixes
levar-te!
A enfermeira Palmer entrou apressada, alertada pelo tom da voz dele. Aproximou-se do outro lado da cama, observou por momentos e disse: - Vou chamar o médico de
serviço. - Precipitou-se para fora do quarto. Hector não ergueu a cabeça para a ver sair. Estava a apertar a mão de Hazel.
- Ouve-me! - implorou-lhe. - Não nos abandones. Precisamos de ti. A Catherine e eu precisamos de ti. Não vás! Por favor, não deixes que ele te leve!
A frenética cacofonia no monitor cardíaco abrandou. Os picos do padrão no ecrã tornaram-se mais espaçados.
- Luta com esse teu grande coração, Hazel! Não desistas! - disse-lhe, com lágrimas a correrem-lhe pelas faces. Já tinha visto a morte acontecer muitas vezes no campo
de batalha, mas nunca tinha chorado antes. - Pensa em nós. Tu nunca desistes. Luta contra ele com o teu coração de guerreira.
Hazel expeliu o ar dos pulmões num longo suspiro sussurrante. E depois não voltou a respirar. O monitor emitiu um último bipe e depois ficou silencioso. A linha
reduziu-se a um traço verde contínuo no fundo do ecrã.
Hector debruçou-se sobre ela e as suas lágrimas caíram em cima do rosto dela enquanto a agarrava pelos ombros e a abanava.
- Não vás! - gritou. - Não te vou deixar ir! A porta abriu-se atrás dele e o jovem médico de serviço avançou por trás dele e agarrou-o pelo braço, afastando-o da
beira da cama.
- Por favor, senhor Cross. Afaste-se e deixe-me fazer o meu trabalho.
- O médico agiu com rapidez. Encostou-lhe o estetosscópio ao peito, escutou por alguns segundos e franziu a testa. Depois verificou-lhe o pulso e disse baixinho:
- Lamento muito, senhor Cross.
Passou delicadamente a mão sobre o rosto de Hazel para lhe fechar os olhos azuis inexpressivos. Depois estendeu a mão para o lençol da cama e esticou-o para lhe
tapar a cara.
- Não! - Hector agarrou-lhe o pulso. - Não a tape. Quero recordar-me do rosto dela para sempre. Por favor, deixe-nos a sós por uns momentos. - Olhou para a enfermeira
Palmer, que estava especada aos pés da cama. - A senhora também. Não há mais nada que possa fazer aqui.
Ambos saíram em silêncio. Hector ajoelhou-se ao lado da cama.
Já não rezava há muito tempo, mas rezou nesse momento. Depois levantou-se e enxugou os olhos.
- Isto não é um adeus, Hazel. Para onde quer que tenhas ido, espera por mim. Um dia voltaremos a estar juntos. Espera por mim, meu amor. - Beijou-lhe a boca. Os
lábios dela já estavam a arrefecer. Hector esticou o lençol sobre o rosto dela e avançou para a porta.
11
A caminho da saída, parou na secção da Maternidade e bateu à porta da sala das enfermeiras. Uma delas veio ao seu encontro.
- Posso ajudá-lo, senhor Cross? Hector ficou ligeiramente surpreendido por ela saber o seu nome. Não fazia ideia do alvoroço que criara na sala do pessoal. A notícia
tinha-se espalhado.
- Procuro uma enfermeira chamada Bonnie. - A Bonnie Hepworth? Terminou o expediente há uma hora. - A que horas é que ela volta ao trabalho? - Às seis da tarde de
hoje. - Obrigado. Posso ver a minha filha agora? Nasceu na noite passada. - Sim, eu sei. - Verificou a prancheta até encontrar o nome. - Catherine. Muito bem. Vamos
à sala de observações.
Quando lá chegaram, Hector encostou-se à divisória de vidro. - Já parece mais humana do que há umas horas. - A enfermeira lançou-lhe um olhar de desaprovação. Hector
tinha aprendido que elas não gostavam de comentários depreciadores acerca dos bebés de que cuidavam e apressou-se a continuar: - Quando é que ela vai ter alta?
- Bem... - A enfermeira parecia hesitante. - Nasceu de cesariana e a mãe dela...
- Quando é que posso vir cá buscá-la? - insistiu Hector. - Provavelmente daqui a três ou quatro dias, se tudo correr bem, mas claro que isso depende do doutor Naidoo.
- Voltarei esta tarde para lhe fazer uma visita - prometeu ele. Saiu para o parque de estacionamento onde tinha deixado o Range Rover. Contornou-o para verificar
os danos. Estava sujo de lama seca e o para-choques dianteiro estava amolgado do lado esquerdo. Enfiou-se no assento e ligou o motor, conduzindo de volta a Brandon
Hall.
Seguiu pelo caminho direto desde Winchester, o que o levou a passar pelo local da emboscada. Fita plástica policial delimitava a área, mas o Ferrari de Hazel já
tinha sido rebocado. Três agentes policiais continuavam a tirar medições e a procurar indícios adicionais.
Hector abrandou ao aproximar-se do bloqueio na estrada, mas um dos agentes fez-lhe sinal para prosseguir.
Reynolds, o mordomo, abriu-lhe a porta ao chegar a Brandon Hall. - Que bom voltar a vê-lo, senhor. Ficámos muito preocupados quando o senhor e a senhora Cross não
regressaram ontem à noite. A senhora Cross não veio consigo? - Olhou por cima do ombro de Hector, mas este não fez caso da pergunta.
- Por favor, diga à Mary para me levar um bule de café ao estúdio. Depois, às duas da tarde, quero o pessoal todo reunido na sala de estar verde.
Hector foi para o piso superior. Pegou no estojo de barbear, mas depois resolveu, por impulso, deixar a barba crescer como um tributo de luto por Hazel. Tomou um
duche e foi para o quarto de vestir enfiado num roupão. Mary levou-lhe o tabuleiro com o café.
- O senhor e a senhora Cross já tomaram o pequeno-almoço? - Não te preocupes com o pequeno-almoço. O senhor Reynolds já lhe falou da reunião de pessoal? - Sim, já
me disse, senhor. Hector vestiu a roupa informal que usava no campo - calças de bombazina e sapatos de couro grosseiro - e foi para o seu estúdio ao fundo do corredor.
Sentou-se à escrivaninha e pegou no telefone. Paddy atendeu ao quarto toque.
- Paddy, é um cabrão em lágrimas que vai ter de te contar isto. A Hazel não conseguiu resistir. Faleceu às cinco desta madrugada.
Fez-se um silêncio reverberante enquanto Paddy ponderava que resposta dar, mas depois disse numa voz rouca: - Os meus pêsames, Heck. Vamos apanhar os filhos da mãe
que fizeram isto. Dou-te a minha palavra. E o funeral? Eu e a Nastiya queremos estar lá.
Nastiya era a mulher de Paddy, treinada pelo KGB, uma russa loira e espampanante que fizera de duplo de Hazel na operação Cavalo de Troia que eliminara da face da
Terra o bastião dos piratas na Somália.
- Será uma cremação privada. Sem confusões. Como ela sempre quis. Mas se vocês puderem cá vir, a Hazel teria gostado de vos ter aqui, sobretudo a vocês os dois.
Onde estás?
- Em Abu Zara. - A cremação não será tão cedo. A polícia vai querer fazer uma autópsia médico-legal. Mas venham na mesma, assim que puderem. Precisamos de falar.
Delinear planos.
- E a tua bebé, Hector? A pobre criaturinha conseguiu sobreviver?
- Nasceu por cesariana antes de a Hazel... - Hector calou-se. Não queria pronunciar aquela palavra. Era demasiado definitiva. Prosseguiu numa voz rápida: - Chama-se
Catherine. É tão linda!
- Então sai à Hazel. E não a ti. - A gargalhada de Hector foi mais uma espécie de coaxo. Paddy continuou: - Vamos ter de a esconder, Heck. Se a Besta souber da existência
dela, virá atrás dela e de ti.
- Essa é uma das coisas que me tem estado a preocupar, Paddy. Eles não andavam atrás de mim. O alvo era a Hazel, unicamente.
- Conta-me - incitou-o Paddy. - Podiam-me ter abatido a tiro, mas não o fizeram. Afastaram-me deliberadamente de cena. Largaram uma carrada de blocos de cimento
na estrada para me bloquearem o caminho e afastarem-me dela. - Tanto ele como Paddy ficaram em silêncio, a ponderar aquele enigma.
- Não sei a resposta a isso. Não faz sentido - admitiu Paddy por fim. - Talvez tenham sido avisados para não se meterem contigo. Simplesmente não sei. Tudo se tornará
mais claro conforme formos resolvendo o mistério. Mas não nos podemos atrever a correr nenhum risco com a tua Catherine. Temos de a esconder num lugar onde eles
não a consigam encontrar.
- Muito bem, Paddy. Antes de partires de Abu Zara, quero que trates de arranjar aí um lugar seguro para a Catherine. Tenta arranjar o último piso de um dos novos
arranha-céus que o emir mandou construir na marginal; um sítio que não tenhamos dificuldade em defender. - Vou falar com o príncipe Mohammed em pessoa. Não há problema.
Mas pode demorar algum tempo. Talvez umas duas semanas. - O príncipe era cunhado do emir e controlava não só o Tesouro, o exército e a força policial, mas também
o programa de obras públicas. Estava em dívida para com a Bannock Oil, a companhia que fizera as perfurações petrolíferas e transformara o emirado de Abu Zara num
dos mais prósperos microestados do planeta.
- Excelente, Paddy! Informa-me depois do que nos conseguiste arranjar. E irei ao teu encontro. - Desligou a chamada e premiu o botão do intercomunicador. No gabinete
ao fundo do comprido corredor, Agatha, a secretária de Hazel, atendeu de imediato.
- Agatha, venha aqui ao meu estúdio, por favor. - A senhora Cross está consigo, senhor? Tenho algumas cartas para ela assinar.
- Venha aqui ao meu estúdio e já lhe explico tudo. Quando Agatha bateu à porta, Hector premiu o botão elétrico por baixo do painel ao lado do joelho. A porta abriu-se
com um dique. Agatha entrou. Vestia um fato de trabalho de um cinzento sóbrio. O cabelo grisalho estava arranjado de forma impecável. Já trabalhava para Hazel desde
que ela casara com Henry Bannock.
- Sente-se, por favor - disse Hector. Ela sentou-se na cadeira virada para ele e alisou a saia sobre os joelhos. - Tenho notícias trágicas, Agatha. Ela semiergueu-se
da cadeira, com o rosto distorcido de pavor. - Foi a senhora Cross, não foi? Algo terrível...
- Sente-se, Agatha. Estou a contar consigo para que mantenha a calma e seja forte, como sempre. - Respirou fundo e pronunciou as palavras fatídicas. - A minha mulher
morreu.
Agatha começou a chorar em silêncio e de forma discreta. - Como é que ela morreu? Era tão jovem e cheia de vida. Nem consigo acreditar.
- Foi assassinada - disse ele. Agatha levantou-se de forma abrupta. - Posso usar a sua casa de banho, por favor, senhor Cross? Acho que vou vomitar.
- Demore o tempo que quiser. - Ouviu os sons abafados dela a vomitar. Depois ouviu por fim a descarga do autoclismo e Agatha surgiu. Tinha os olhos vermelhos, mas
cada fio de cabelo mantinha-se impecavelmente no lugar.
Sentou-se na cadeira e olhou para ele. - O senhor também esteve a chorar. - Hector inclinou a cabeça em assentimento e ela prosseguiu: - E o seu bebé?
- É uma menina - respondeu. Agatha sorriu com tristeza. - Sim. A Hazel e eu já sabíamos isso. A bebé está bem?
- Está muito bem. Mas temos de ser extremamente cuidadosos para evitar que o facto do nascimento e sobrevivência dela venham a público. Se isso acontecer, ela correrá
um grande perigo de vida como aconteceu à Hazel. Temos de a esconder. Vou precisar da sua ajuda.
- Prestarei toda a ajuda necessária, como é óbvio. - Mas primeiro há outras coisas a tratar. Quero que arranje uma agência funerária em Winchester. Assim que a polícia
tiver concluído as investigações e libertar o corpo dela, os agentes da funerária devem trazer a minha mulher da morgue do hospital para a prepararem para a cremação.
Depois devem tratar dos preparativos no crematório para que a cerimónia se realize o mais rápido possível.
- Mais alguma coisa? - No cofre da minha mulher está um grande envelope bege com selos de lacre vermelho. Traga-mo, por favor.
- Muito bem. Sei qual é o envelope de que fala. - Levantou-se e olhou-o fixamente. - Precisamos de ser fortes - disse. - Ela teria esperado isso de nós.
Agatha saiu do estúdio mas voltou poucos segundos depois e pousou um envelope bege em cima da escrivaninha de Hector.
- Obrigado, Agatha. Só mais uma coisa: deve informar todos aqueles que precisam de saber o que aconteceu à minha mulher.
Por favor, verifique o livro de contactos da Hazel e faça-me uma lista dos nomes. Depois componho uma mensagem para enviar a todos eles.
Hector esperou que ela saísse do estúdio antes de examinar o envelope. Estava endereçado a ele na caligrafia de Hazel. Virou-o e certificou-se de que os selos estavam
intactos.
Hazel tinha escrito o seguinte nas costas do envelope, em maiúsculas: PARA SER ABERTO APENAS NA EVENTUALIDADE DA MINHA MORTE. De seguida, rasgou a aba do envelope
com a adaga árabe de iirnina curva que usava como corta-papel. Retirou do interior um grosso maço de documentos. No topo dessa pilha havia uma carta presa com um
clipe. Hector reconheceu a caligrafia dela e sentiu uma forte pontada no coração enquanto lia a saudação inicial:
Meu querido Hector, Espero que nunca leias isto, porque, se o fizeres, isso significa que o impensável aconteceu e que tu e eu ficaremos separados para sempre...
Depois, o tom da carta tornou-se mais profissional. Hazel estava a detalhar-lhe a dimensão e a disposição jurídica do seu património.
...A maior parte dos bens que têm estado à minha disposição durante a minha vida é, de facto, propriedade do Fundo Fiduciário da Família Henry Bannock. Isto inclui
o rancho em Houston, bem como o do Colorado, os apartamentos em Washington e São Francisco, a casa em Belgravia e Brandon Hall em Hampshire. Tudo isto reverterá
para o Fundo Fiduciário na sequência da minha morte.
Hector soltou um grunhido. Nada daquilo o surpreendia. Nunca ponderara sequer a ideia de continuar a viver numa dessas casas grandiosas. Não com o fantasma de Hazel
a caminhar a seu lado pelas divisões vazias.
Tudo aquilo que está verdadeiramente em meu nome é a ilha nas Seicheles e 4,75% da capitalização bolsista da Bannock Oil. Segundo os termos do testamento do Henry,
administrei e votei em nome dos outros 48%, mas essas ações também revertem para o Fundo Fiduciário na sequência da minha morte.
Se tu e eu tivermos filhos, ficarão ao generoso cuidado do Fundo Fiduciário. O Henry era um homem generoso e santo. Sabia, quase com toda a certeza, que iria partir
primeiro e que era provável que eu voltasse a casar. Não queria que eu e os meus filhos ainda por nascer fôssemos castigados por essa eventualidade. Tenho a certeza
de que tratou de tudo para qualquer um dos meus filhos, fosse ele o pai ou não.
Vais adorar, com toda a certeza, ter de lidar com os mandatários do Fundo Fiduciário, mas terás de o fazer em nome dos nossos filhos. Usarei a tua própria linguagem
para te descrever estes cavalheiros. Uma corja de advogados empertigados, picuinhas e com caras de penico. Por favor, sê gentil com eles, meu querido, mesmo que
eles te deixem louco de frustração. O Henry obrigou-os a prestar um voto de silêncio. Não podem nem te dirão nada acerca do Fideicomisso. Não te dirão os nomes dos
outros beneficiários, nem os bens que pertencem ao Fundo Fiduciário. O Henry escolheu deliberadamente as ilhas Caimão como sede do Fundo Fiduciário, porque esse
pequeno Estado faz vigorar uma disposição de não divulgação. Nem sequer uma ordem do Supremo Tribunal dos Estados Unidos os fará ceder.
No entanto, podes ter a certeza de que os nossos filhos irão ter tudo aquilo de que precisam, e também muito daquilo de que não precisam realmente, sem a mínima
objeção dos mandatários. O Henry foi sempre muito generoso. Uma das condições que ele estipulou é que cada dólar auferido por um dos beneficiários deve ser suplementado
em três dólares pelo Fundo Fiduciário. Por conseguinte, quando a Cayla ganhava cem dólares por cuidar das crianças de um vizinho, o Fundo Fiduciário pagava-lhe outros
trezentos dólares. Sempre que eu recebo uns quantos milhões de dólares em honorários pelas minhas funções de diretora da Bannock Oil... Bem, será que preciso de
dizer mais?
O principal mandatário do Fundo Fiduciário da Família Henry Bannock é o Ronald Bunter, da Bunter & Theobald Inc., uma firma de advogados em Houston, no Texas. A
Agatha poderá dar-te a morada e os números de telefone dele.
Que mais? Ah, sim! Para além do que referi atrás, possuo alguns rublos e shekels israelitas e outros trocos soltos que apliquei em diversos investimentos bancários
e instituições financeiras em várias partes do mundo. Não tenho bem a certeza do montante total, mas da última fez que o contei perfazia cerca de cinco ou seis milhões
de dólares. Há uma lista desses bancos anexada a esta carta, juntamente com os nomes dos agentes que tratam das minhas contas e as palavras-chave para poderes aceder
a elas. São todas contas numeradas, de modo que poderás aceder a elas de imediato, sem precisares de passar por quaisquer trâmites legais. E também não terás de
pagar nenhum imposto por elas, a não ser que o queiras fazer. Se te conheço como acho que conheço, meu querido tontinho, não há dúvida de que vais querer mesmo fazer
isso.
Como era aquele evangelho segundo São Hector que costumavas pregar-me? "Paga todos os impostos que deves. Nem um cêntimo a menos, nem um cêntimo a mais. É a única
forma de poderes dormir tranquilamente à noite. "
Conseguias sempre fazer-me rir. O jato G5 pertence à Bannock Oil e o jato executivo Boeing pertence ao Fundo Fiduciário. Mas como és um dos diretores da Bannock
Oil, terás sempre um dos outros jatos da companhia à tua disposição. Pronto, eu sei que preferes usar os voos comerciais, seu plebeu. Todos os automóveis e cavalos
de corrida são meus. Portanto, condu-los com cuidado e aposta neles com prudência. Infelizmente, os quadros pertencem ao Fundo Fiduciário; todos aqueles maravilhosos
Gauguins e Monets (Ai! Ai!). As roupas, os sapatos e as malas de mão, as peles e todas as jóias são minhas; bem como todos os demais artigos avulsos que possuo.
E acho que é tudo.
Deixo-te tudo isto no meu testamento, anexo a esta carta. Adeus, Hector, meu verdadeiro amor. Não queria realmente deixar-te; estava a divertir-me tanto.
Amar-te-ei por toda a eternidade, Hazel.
Só mais uma coisa, meu querido amor. Não lamentes a minha partida por demasiado tempo. Recorda-me com alegria, mas arranja outra companheira. Um homem como tu nunca
teve como destino viver como um monge. No entanto, deves certificar-te de que ela é uma boa mulher, senão voltarei para a assombrar.
Hector levantou-se de um salto da escrivaninha e atravessou as portas duplas de acesso à varanda. Debruçou-se sobre o parapeito e olhou o rio em baixo, mas essa
visão encantadora ficou distorcida pelas lágrimas.
Eu nunca quis nada disso. É demasiado excessivo. Ficar com 4,75% de todas as ações emitidas pela Bannock Oil? Meu Deus! É uma quantia obscena de dinheiro. Tu foste
tudo o que sempre quis realmente.
No estúdio atrás de si, o intercomunicador zumbiu. Hector voltou para a escrivaninha e pegou no auscultador. - Sim, Agatha?
- Já tenho a lista que me pediu, senhor Cross. - Obrigado. Traga-ma aqui, por favor. A lista que Agatha preparara compreendia mais de quinhentos nomes, todos eles
amigos e parceiros comerciais de Hazel. De esferográfica na mão, Hector reduziu-a para quatrocentos e dez nomes. Depois assinalou alguns desses nomes com um círculo.
- Estes são aqueles que devem ser informados de imediato. Estas pessoas devem ser as primeiras a saber antes de todas as outras e antes que a notícia expluda na
comunicação social. Pode enviar a mensagem aos outros amanhã. - Entre as mensagens urgentes figuravam as que se destinavam a John Nelson, na África do Sul (irmão
da falecida Grace, a mãe de Hazel) e a John Bigelow, em Houston, o ex-senador republicano que era o vice-presidente da Bannock Oil sob a presidência de Hazel como
principal diretora-geral. Outro dos nomes assinalados com um círculo era o de Ronald Bunter.
Hector virou uma página no bloco de notas e escreveu numa folha em branco: "É com enorme pesar que o informo do falecimento da minha amada esposa, Hazel Bannock-Cross,
em circunstâncias trágicas. Em breve serão enviados os convites para a cerimónia fúnebre. Hector Cross."
Agatha pegou na lista emendada e no rascunho da mensagem e depois lembrou-lhe: - São quase duas da tarde. O pessoal já está reunido à sua espera na sala de estar
azul, senhor.
12
Todos os empregados domésticos de Brandon Hall, desde o mordomo, couteiros, guarda-rios e a governanta das criadas de quarto, estavam reunidos na sala de estar
azul. Os homens mantinham-se de pé ao comprido da parede, ao passo que as mulheres estavam sentadas com um ar tímido e constrangido nos sofás e nas cadeiras.
Hector estava mais do que desejoso de terminar aquilo. Todos eles eram boas pessoas e tinham prestado excelentes serviços. Não era sua intenção atirá-los para
um mercado de trabalho já de si saturado devido à recessão económica. Armou-se de coragem e contou-lhes acerca de Hazel. Houve arquejos de choque e exclamações de
incredulidade. Algumas das mulheres começaram a chorar.
- É provável que Brandon Hall seja vendido. Farei tudo ao meu alcance para que vocês voltem a ser contratados por quem quer que compre a propriedade. Mas, independentemente
do que vier a acontecer, todos vocês irão receber uma indemnização por despedimento equivalente a dois anos de salário. - Agradeceu-lhes pela sua lealdade e trabalho
árduo e depois convidou-os a todos a prestar os últimos respeitos a Hazel no serviço fúnebre no crematório. E, por fim, advertiu-os: - Vai haver montes de repórteres
a rondar por aqui como moscas, para vos tentarem sacar pormenores acerca das nossas vidas privadas e da morte da minha mulher. Por favor, não falem com eles. Informem-me
se vos oferecerem dinheiro e pagar-vos-ei o dobro para se manterem em silêncio. Obrigado.
Quando todos começaram a sair da sala, Hector pediu às duas, que Hazel tinha contratado, para ficarem mais alguns minutos.
- A cessação do contrato de trabalho não se aplica a vocês as duas, minhas senhoras. A minha mulher deu à luz uma menina antes de falecer. Vou precisar de vocês
as duas para tomarem conta dela.
Ambas se animaram de imediato. - Uma menina! Que maravilha. Como se chama, senhor?
- Chama-se Catherine. Mas não se esqueçam, por favor: não devem falar disto com nenhum desconhecido. E agora, quero dar uma olhada rápida ao quarto de criança
para verificar se está tudo pronto para receber a bebé quando sair do hospital e voltar para casa.
A suíte para crianças situava-se no corredor, logo à frente da suíte do quarto principal. Fora uma criação da total responsabilidade de Hazel. Hector mantivera-se
completamente à parte desse projeto enquanto ela planeava e construía. A suíte era composta por cinco divisões, incluindo os dois quartos das amas. O padrão de cores
era o rosa-bebé. Hector teve a impressão de estar numa sala de trono quando entrou no quarto da bebé. No centro do pavimento destacava-se um grande berço branco
e dourado, coberto por um dossel rosado. As paredes estavam forradas de estantes repletas com uma variedade de macios brinquedos de peluche, uma coleção de coelhinhos,
girafas, zebras, leões e tigres. Era uma exposição que suplantava a própria loja de brinquedos Hamleys na época natalícia.
As duas amas eram jovens e profundamente respeitosas. Enquanto o conduziam numa visita guiada, Hector mostrou-se prudente e pouco disse. No final, deu a sua opinião
ponderada:
- Bem, parece que vocês já têm aqui tudo aquilo de que precisam. - E acrescentou, para com os seus botões: À exceção de uma mão mais madura e experiente a manobrar
a cana do leme. Agradeceu-lhes e voltou para o estúdio.
13
Enquanto se afundava na cadeira giratória, reparou no ecrã do computador que já tinha recebido uma resposta de John Nelson, o tio de Hazel que vivia na África
do Sul, à sua mensagem eletrônica. Abriu-a. Não havia nenhuma saudação inicial e o texto era ríspido e amargo.
És diretamente responsável pela morte das três únicas pessoas que amei de verdade: a minha irmã Grace, a minha sobrinha-neta Cayla Bannock e agora a própria Hazel.
O fedor da morte persegue-te, Hector Cross. És tão asqueroso como uma enorme hiena negra. Amaldiçoo-te até à cova e irei cuspir-lhe em cima quando por fim te
enterrarem nela.
Hector baloiçou-se para trás na cadeira. Coitado de ti, John, estás mesmo a sofrer. Compreendo. Também eu estou a sofrer. Apagou a mensagem da caixa de entrada.
Demorou algum tempo a recuperar a serenidade. Mantém-te ocupado!, exortou-se a si mesmo. Não cismes. Continua com a vida. Continua a mexer-te. Rodou na cadeira e
estendeu a mão para o telefone. Marcou o número de telemóvel que o sargento Evans lhe tinha dado no hospital e o polícia atendeu quase de imediato.
- Ainda bem que me ligou, senhor Cross. Os meus sinceros pêsames pelo falecimento da sua mulher, senhor. Os dois perpetradores do ataque estavam mortos quando
os meus colegas chegaram à cena do crime. Nesta fase da investigação, calculamos que tenham morrido devido à colisão contra o seu veículo. O caso está a ser investigado
pelo detetive-inspetor Harlow, na sede da esquadra en Winchester. Sei que ele está desejoso de ter o seu depoimento. Queira ligar-lhe, por favor, para marcar um
local e uma hora.
Hector desligou, marcou o 101 e foi atendido por um telefonista, que lhe transferiu a chamada para o centro de casos não urgentes da polícia. Daí, a chamada foi
passada através da cadeia de comando até chegar ao detetive-inspetor Harlow. Combinaram encontrar-se na esquadra ao fim dessa tarde. Hector desligou e verificou
as horas no relógio de pulso.
Ligou para a garagem subterrânea e disse ao motorista: - Por favor, leve o Bentley para a porta da entrada assim que puder. Vou à cidade.
- Vai precisar que o leve lá, senhor? - perguntou o motorista num tom esperançoso. Estava nitidamente a sentir-se pouco requisitado.
- Hoje não, Robert. Mas, já que fala nisso, pode levar o Range Rover ao bate-chapas na cidade e pedir-lhe que repare os danos na parte dianteira. - Hector agarrou
no casaco pendurado no bengaleiro ao sair do estúdio. Enfiou-o enquanto descia apressado as escadas, galgando-as duas a duas. Estava com a respiração muito ofegante
quando chegou ao átrio.
A bufar como um velhote. Vais ter de melhorar o teu desempenho se quiseres sobreviver a esta situação difícil, disse a si mesmo. O mordomo tinha-o ouvido chegar
e manteve a porta aberta para ele passar.
- Volta a casa para jantar, senhor? - perguntou.
- Peça desculpa por mim ao chef. Vou jantar fora - disse-lhe Hector. A enorme casa e as divisões vazias já começavam a tornar-se opressivas. Jantaria num pub
algures. Talvez se encontrasse com algum couteiro ou guarda-rios local com quem pudesse conversar acerca de pesca e caça e afastar assim as escuras nuvens da mágoa
por algum tempo. O motorista já tinha o Bentley à espera dele à entrada.
Seguiu primeiro para o hospital e passou meia hora na repartição do registo civil, a cumprir todos os procedimentos legais para a emissão da certidão de óbito
de Hazel e a certidão de nascimento de Catherine, o que implicou apresentar o seu próprio passaporte. Considerando aquilo que Hazel tinha escrito na última carta
que lhe dirigira, ele iria precisar desses documentos para conseguir obter a atenção plena dos mandatários do Fundo Fiduciário da Família Henry Bannock.
Saiu da repartição do registo civil e regressou à secção da Maternidade, onde as enfermeiras já o conheciam e estavam a par das suas trágicas circunstâncias.
Entre elas, tinham-lhe posto a alcunha "Papá Coração de Galã".
- Ainda não é a hora das visitas - disse-lhe uma delas numa voz austera, mas depois o seu tom suavizou-se: - Mas a si abrimos uma exceção, senhor Cross.
Conduziu-o através de uma porta onde se lia "Proibida a Entrada. Estritamente Privado". Depois equipou-o com uma máscara de gaze que lhe cobria a boca e o nariz
e levou-o para o berçário. Apenas três dos berços estavam ocupados. Tirou do berço do meio um volume envolto numa pequena manta e colocou-lho nos braços.
- Dez minutos. Nem mais um minuto. Depois volto aqui para o expulsar - advertiu-o.
A conversa dele com Catherine foi, previsivelmente, unilateral. Testou a sua própria versão da linguagem de bebé, ao que ela reagiu fazendo bolhinhas de saliva
e adormecendo. Embalou-a nos braços e estudou-lhe a carita enquanto ela dormia. Quando a enfermeira voltou, Hector entregou-lhe a bebé com relutância.
Às dez para as dezoito, saiu para o parque de estacionamento e esperou até a enfermeira Bonnie surgir num velho Mini Cooper de pintura verde-musgo desbotada e
com riscas à Fórmula Um.
Nota de Rodapé: No original existe um humor adicional, resultante do jogo entre a alcunha Daddy Heart Throb (à letra: papá que põe os corações a palpitar =
galã) e a abreviatura DHT (as iniciais da mesma alcunha em inglês, mas também a designação de uma hormona produzida pela testosterona) pela qual as enfermeiras o
chamam entre si. (NT)
Assim que ela estacionou, Hector abriu-lhe a porta. Ela pareceu sobressaltada, até que o reconheceu.
- Posso falar consigo por uns momentos, enfermeira? - perguntou-lhe.
- Com todo o prazer, senhor Cross.
- Tem filhos para cuidar? - perguntou-lhe numa voz séria.
- Quem me dera, mas não tenho.
- Então talvez possamos tratar disso. Quero propor-lhe um trabalho.
- Já tenho um emprego - respondeu ela, mas depois reconsiderou. - Que trabalho é?
- Enfermeira-chefe da minha filha Catherine. Sei que é muito experiente e boa a lidar com bebés. Até acho que a minha Catherine já gosta de si. Irá ter duas outras
amas mais jovens a trabalhar sob as suas ordens.
- Mas... mas eu já tenho um emprego - repetiu ela. Agitou as mãos no ar, em confusão.
- Quanto lhe estão a pagar aqui? - insistiu ele.
- Quarenta mil libras ao ano.
- Ofereço-lhe cento e vinte mil - disse ele.
Bonnie engoliu em seco. - Não sei - balbuciou. - E quanto à minha pensão?
- Qual é o montante?
- À volta de cem mil libras já pagas, ficando a faltar-me vinte e três anos para a reforma.
- Duplico-lhe esse valor e sem fixar um limite de idade. Não haverá nenhuma redução por motivos de idade. Pode ficar connosco até quando quiser. Pense nisso,
Bonnie. Pode informar-me da sua decisão amanhã, quando eu vier visitar a Catherine.
Virou-se e avançou para o Bentley prateado, estacionado ao fundo da fila. Pressentiu o olhar de Bonnie fixo nas suas costas enquanto abria a porta do automóvel.
- Senhor Cross - chamou ela num tom de urgência. - Já decidi.
Hector olhou-a por cima do ombro. - E?
- Aceito o acordo que me propõe.
Hector aproximou-se dela. - É melhor dar-me o seu número.
- Ela disse-o e Hector gravou-o na memória. - Depois ligo-lhe. E podemos tratar dos pormenores. Entretanto, seria melhor apresentar a sua demissão aqui no hospital.
- Deu-lhe um rápido e firme aperto de mão. - Bem-vinda a bordo, enfermeira Bonnie.
- Voltou para o Bentley e seguiu na direção da esquadra da polícia.
14
O detetive-inspetor Harlow era um quarentão com excesso de peso e de cabelo ralo. Os olhos por trás dos óculos de armação de aço eram de um castanho desbotado,
cansados da vida e sensatos, levantou-se e contornou a secretária para cumprimentar Hector com um aperto de mão.
- Os meus pêsames pela sua perda, senhor. Queira sentar-se, por favor. Posso oferecer-lhe uma chávena de chá ou de café?
- Café. Simples. Sem açúcar.
Harlow serviu-o e Hector bebericou a mistela de sabor horrível.
- Está pronto para começar? - perguntou Harlow. Hector pôs a chávena de lado e Harlow fez-lhe uma descrição detalhada dos acontecimentos que resultaram no ataque
homicida a Hazel, dos próprios esforços de Hector para deter os assaltantes e das suas ações subsequentes até ao encontro fortuito com o sargento Evans na viatura
de patrulha.
Hector omitiu apenas uma descrição pormenorizada do condutor da furgoneta de matrícula francesa que largara os blocos de betão na estrada para o impedir de avançar.
Quando Harlow insistiu, Hector disse-lhe: - O condutor estava a usar uma máscara de borracha e só o vi por um segundo quando me ultrapassou.
- Não conseguiu identificar-lhe a nacionalidade?
- Tinha um braço à mostra e era de cor escura. Disso tenho a certeza. Lamento, mas foi apenas um olhar fugaz. - De si para si, pensou: Se alguém vier a apertar
com aquele cowboy serei eu e o Paddy O 'Quinn. Nada de procedimentos legais nem ler-lhe os direitos quando começarmos a massacrá-lo.
Harlow ficou finalmente satisfeito. - Sim. Tudo bate certo com aquilo que apurámos no local do crime.
Hector leu do princípio ao fim o depoimento que Harlow lhe passou para a mão e depois assinou-o. - Soube pelo sargento Evans que os dois perpetradores estavam
mortos quando vocês os encontraram - disse.
- Está correto, senhor Cross - confirmou Harlow.
- Conseguiram identificá-los, inspetor?
- Sim. Obtivemos prontamente uma correspondência das suas impressões digitais. Ambos têm cadastro. - Abriu uma gaveta da secretária e tirou um pequeno maço de
papéis. Passou-lhos um a um por cima da secretária. O primeiro era uma cópia de uma fotografia de registo criminal. Hector reconheceu o indivíduo de imediato.
- Sim! Era o condutor da motocicleta.
Harlow fixou o olhar nos papéis que segurava e leu em voz alta. - Chamava-se Victor Emmanuel Dadu. Vinte e quatro anos. Cidadão britânico. Nascido em Birmingham.
Ambos os pais emigraram do Quénia em 1981. Sem domicílio fixo. Três condenações penais. Cumpriu seis meses em 2004, no Instituto Feltham para Delinquentes Juvenis,
por furto de automóvel; três meses em 2009 por furto agravado; três meses em 2011 por violência pública devido a envolvimento nos tumultos do verão de 2011. Em todos
os restantes aspectos, um rapaz simpático e afável. - Pegou na folha seguinte e entregou-a a Hector.
- Sim. - Hector olhou para a fotografia. - É o atirador, o suíno imundo que matou a minha mulher.
Harlow franziu o sobrolho perante aquele acesso de fúria, mas continuou a ler os papéis que tinha na mão. - Chamava-se Ayan Brightboy Daimar. Vinte e três anos.
Nascido em Mogadíscio, Somália. Imigrante ilegal. Cumpriu um ano em 2009 por violação de domicílio e furto. Recorreu da decisão de deportação e foi-lhe concedido
o estatuto de refugiado em 2010.
Hector anuiu com a cabeça num gesto reservado, satisfeito pelo facto de a sua primeira suspeita ter sido confirmada. Somália.
É um indício que aponta para o clã dos Tippoo Tip. Tudo começa a ficar devidamente, pensou, e olhou para Harlow do outro lado da secretária.
- Há mais alguma coisa que possa fazer para o ajudar? - perguntou.
- Obrigado pelo seu tempo, senhor Cross. Já tenho o seu contacto, se precisar de voltar a falar consigo. Se conseguirmos deter o condutor da furgoneta francesa,
vamos precisar de si para prestar depoimento no julgamento dele. Uma vez mais, os meus sinceros pêsames pelo falecimento da sua mulher. Pode ficar tranquilo que
fixemos todos os possíveis para encontrar todos aqueles que estiveram envolvidos neste horrível incidente.
No caminho de regresso a Brandon Hall, Hector parou no pub rlag & Bear em Smallbridge. Acabou de comer metade de uma dose de empadão de carne gorduroso e bebeu
menos de meia caneca de cerveja de pressão morna antes que os olhares atrevidos e os comentários intencionais de duas jovens damas maquilhadas, sentidas ao balcão,
começassem a irritá-lo. Prosseguiu na direção de Brandon Hall, tomou dois comprimidos de melatonina e enfiou-se na enorme cama de casal.
Acordou ao amanhecer, com a sensação de que acontecera algo de terrível. Deixou-se ficar deitado à escuta da respiração dela. O silêncio era total. Sem abrir
os olhos, estendeu a mão para ela, mas os lençóis do lado dela estavam frios. Abriu os olhos e virou a cabeça, e viu que ela desaparecera de verdade. Depois a dor
começou outra vez, como um cancro profundamente enraizado, implacável e quase insuportável.
15
Precisava de arranjar uma forma de canalizar a raiva e o ódio que sentia. Levantou-se da cama de um salto e foi à casa de banho. Assim que tomou um duche, desceu
para o seu estúdio. Ligou o computador. Embora soubesse que era demasiado cedo, esperava que Paddy já tivesse algo para ele. No entanto, assim que abriu a conta
de correio eletrônico reparou que a caixa de correio estava sobrecarregada. Passou os olhos pelas primeiras mensagens e viu que eram todas mensagens de condolências.
Apercebeu-se do que tinha acontecido.
Os cães raivosos da imprensa já se tinham inteirado da história. Como tinham conseguido deitar-lhe as mãos tão rapidamente?
Apesar do que lhe dizia o bom senso, abriu a página de acolhimento do jornal Sun, um dos pasquins mais famigerados de Rupert Murdoch. Por cima de uma fotografia
de Hazel, coberta de peles e diamantes enquanto se apeava do seu Rolls Royce com Hector em segundo plano, o cabeçalho apregoava: "Multimilionária abatida a tiro
numa estrada rural - Mata dois dos atacantes antes de morrer."
Era uma peça de reportagem adulterada. A única parte correta era que Hazel estava morta. Não havia nenhuma menção ao nascimento de Catherine.
"Dá graças pelas pequenas mercês." Verificou todos os outros ivebsites noticiosos. Cada jornal importante publicara a história. A reportagem do The Times era
circunspecta e reservada, as do Mail e do Telegraph, bastante menos, mas nenhuma delas referia o nascimento de Catherine. Sentiu-se extremamente aliviado.
Tenho de a tirar daquele maldito hospital o mais rápido possível. Não há dúvida de que os rafeiros da imprensa se puseram a vigiá-lo. Sentiu o sangue ferver-lhe
de novo nas veias e estava pronto para enfrentá-los. Não recebera notícias de Paddy, mas sabia que era demasiado cedo para esperar que ele o tivesse feito.
John Bigelow tinha-lhe enviado uma mensagem longa. Em nome de todos os outros diretores da Bannock Oil, expressava o choque e horror face ao homicídio de Hazel.
Tratara já dos preparativos para um serviço fúnebre em memória dela em Houston, e prosseguia:
Gostaria de obter a sua permissão para organizar um serviço similar em Londres, onde Hazel tinha tantos amigos e parceiros de negócios. Pedi ao embaixador americano
no Palácio de St. James, que é um velho amigo meu, para usar os seus bons ofícios a fim de reservar a igreja de St. Martin-in-the-Fields, em Trafalgar Square, para
esse propósito. A data que sugeri foi daqui a duas semanas, para que as pessoas que desejarem assistir, e serão muitas, tenham a oportunidade de tratar dos seus
planos de viagem.
Espero sinceramente que você não esteja a considerar a possibilidade de se demitir do conselho de administração da Bannock Oil por razão desta trágica circunstância.
Todos os seus colegas da administração o têm em alta estima e os seus contributos são valiosos e importantes.
Não vais livrar-te de mim assim tão facilmente, Biggles. Preciso de ti tanto quanto tu precisas de mim, disse a si mesmo. A infraestrutura da Bannock Oil proporcionar-lhe-ia
a influência e os meios necessários para aniquilar todos os cabrões que fizeram aquilo a Hazel.
Respondeu ao vice-presidente da companhia e agradeceu-lhe, aceitando a sua proposta e assegurando-lhe que o seu desejo era continuar no conselho de administração
da Bannock Oil. Disse-lhe que considerava ser seu dever, em honra da memória de Hazel, prosseguir o trabalho ao qual ela devotara grande parte da sua vida.
Examinou rapidamente a coluna de mensagens eletrônicas e eliminou várias delas. Até que uma delas lhe prendeu a atenção e a abriu. Fora enviada por Ronald Bunter,
o principal mandatário do Fundo Fiduciário da Família Henry Bannock.
Caro senhor Cross,
Fiquei profundamente triste ao receber a sua mensagem. Gostaria que aceitasse as minhas condolências pela morte da sua esposa, a senhora Hazel Bannock-Cross.
Era uma senhora encantadora e de grande presença e estatura. Era também muito inteligente. Devotava-lhe pessoalmente o maior respeito e admiração.
Por um acaso fortuito, encontro-me em Londres em negócios neste preciso momento. Estou hospedado no Hotel Ritz, em Piccadilly, até sábado. O número de telefone
da receção é 0207 493 8181, e a minha suíte é o número 1101.
Como o senhor é o executor testamentário das últimas vontades e do testamento da sua esposa, creio que seria da maior importância encontrarmo-nos assim que lhe
for mais conveniente. Queira telefonar-me, por favor, para marcarmos um encontro.
Atenciosamente,
Ronald Bunter
Hector pegou no telefone e marcou o número. A rececionista atendeu quase de imediato e transferiu-lhe a chamada para a suíte 1101. Foi atendido por uma voz feminina.
- Bom dia. Fala Jo Stanley, a assistente jurídica do senhor Ronald Bunter. Em que posso ajudá-lo? - O sotaque era da região americana do Atlântico Central, com
uma modulação firme e controlada.
- Posso falar com o senhor Ronald Bunter, por favor?
- Quem deseja falar-lhe?
- Hector Cross.
- Oh, Santo Deus! O senhor Bunter tem estado à espera da sua chamada. Queira aguardar, por favor.
Hector sorriu ao ouvir a expressão antiquada "Santo Deus!" A outra pessoa que ele alguma vez ouvira usá-la fora a sua própria mãe.
Menos de um minuto depois, Bunter atendeu a chamada. A sua voz era aguda e precisa; a voz de uma velha solteirona pretensiosa.
- Senhor Cross, que bom ter telefonado.
- Senhor Bunter, quando e onde nos podemos encontrar?
- Estarei livre depois das seis esta tarde. Ao que sei, o senhor vive fora da cidade. Infelizmente, não disponho de transporte...
- Posso encontrar-me consigo no Ritz.
- Sim, seria muito conveniente.
Hector trabalhou durante o resto do dia, fazendo e recebendo telefonemas e dando vazão a toda a papelada que tinha em cima da escrivaninha. Alguns minutos após
a uma da tarde, desceu à Sala dos apetrechos de caça e pesca e enfiou as botas de pescador; depois tirou a sua cana de pesca à mosca do porta-canas e saiu para o
rio. Havia bastantes peixes a subir à tona por baixo das ramagens do salgueiro que se arrastavam na água na lagoa da Lua de Mel, como Hazel a rebatizara quando estiveram
sentados na margem de mãos dadas.
Os peixes encontravam-se num lugar difícil de alcançar com um lançamento da linha a partir da margem. Mas Hector prendeu um mosquito grande no anzol e ao terceiro
lançamento conseguiu uma deriva perfeita do isco por cima do esconderijo da truta. O peixe surgiu numa agitação cintilante, todo ele prateado e vermelho, e Hector
deu um esticão na linha para lhe prender o anzol. Durante quinze minutos não pensou em mais nada a não ser na truta que espadanava freneticamente em redor da lagoa.
Quando a teve por fim pousada na margem, ajoelhou-se sobre ela por um momento para lhe admirar as linhas elegantes e a beleza resplandecente e depois assestou-lhe
uma pancada forte com o macete, o pequeno malho de chifre de veado com que o pescador à linha administra o golpe de misericórdia. A chef grelhou-o com cogumelos
silvestres e Hector tomou o almoço no terraço.
Depois de comer vestiu um fato de executivo de cor escura e voltou a pedir o Bentley. Gostava de andar nele, pois proporcionava uma condução suave. Parou no hospital
e passou uma hora com Catherine fora do horário das visitas.
A bebé estava mais linda a cada dia que passava, pensou ele. Quando foi finalmente escorraçado da Maternidade, foi falar com o Dr. Naidoo.
- Quando pode dar alta à minha filha, doutor?
O doutor examinou a ficha clínica de Catherine. - Está a progredir muito bem. Já tratou de tudo para que ela receba os cuidados necessários, senhor Cross?
- Sim, está tudo tratado.
- Sim, com efeito. Segundo sei, roubou-nos uma das nossas melhores enfermeiras.
- Não posso negar a verdade - admitiu Hector.
O doutor pareceu ficar pesaroso. - Muito bem. Amanhã de manhã vou dar alta à sua filha, após as minhas rondas pelas enfermarias. Depois já pode assinar a alta
médica e levar a bebé para casa.
Enquanto saía para o parque de estacionamento, Hector sentiu uma estranha euforia face à perspetiva de ter ao seu cuidado aquele minúsculo pedaço de humanidade.
Catherine era tudo o que lhe restava realmente de Hazel. Seguiu pela estrada em direção a Londres.
16
Hector entregou o Bentley ao porteiro na entrada lateral do Ritz e subiu a correr a escadaria para o átrio do hotel. Parou à frente do balcão da recepção. Estavam
três ou quatro hóspedes à sua frente, à espera para falarem com o recepcionista, e Hector colocou-se no fim da fila. Olhou em redor com descontração, contemplando
o imponente pátio e o salão.
O sacrossanto ritual britânico do chá da tarde decorria a pleno ritmo e as mesas no salão do hotel estavam quase todas ocupadas. Reparou numa mulher sentada sozinha
a uma mesa virada para o átrio. Quando os seus olhos passaram por ela, a mulher levantou-se e olhou-o. O olhar dele voltou a centrar-se nela. Era alta e surpreendentemente
bela. O cabelo era de um preto brilhante, com madeixas castanho-avermelhadas. Tinha os olhos afastados, emoldurados por um rosto em forma de coração. Mesmo àquela
distância, Hector reparou que eram verdes, verde-mar, e serenos. Quando ela caminhou na sua direção, reparou nas pernas compridas e esguias. A saia travada ficava-lhe
cerca de dois centímetros acima dos joelhos. Os saltos altos acentuavam-lhe as linhas finas das barrigas das pernas. As ancas eram estreitas mas arredondadas. Os
seios, altos e volumosos por baixo do casaco de cor cinza feito à medida. Deteve-se à frente dele e sorriu. Um sorriso circunspecto e recatado, mas suficiente para
revelar os dentes uniformes e de um branco reluzente. Estendeu a mão.
- Senhor Cross? - perguntou. - Jo Stanley. - A voz era suave e delicadamente modulada, mas a dicção era clara e cativante.
Hector apertou-lhe a mão. - Sim, sou Hector Cross. É um prazer conhecê-la, menina Stanley.
- O senhor Bunter está à sua espera. Posso acompanhá-lo à suíte?
Havia outras pessoas a subir no elevador e só voltaram a falar quando chegaram ao último piso. No entanto, quando pararam junto da porta dupla ao fundo do corredor,
ela tocou-lhe no braço para o deter por um segundo e disse em voz baixa: - Os meus sentidos pêsames pela sua esposa. Conhecia-a bastante bem. Era uma pessoa maravilhosa,
tão honesta e forte. Estou solidária com o seu sofrimento.
Hector apercebeu-se de que ela dissera cada uma daquelas palavras com grande sinceridade e ficou profundamente comovido.
- Obrigado. É muito gentil da sua parte.
Quando entraram na suíte, Ronald Bunter levantou-se do sofá na extremidade da sala de estar. Era um homem baixo e de aspecto impecável, com cabelos grisalhos
e óculos de leitura com armação dourada. Estava em mangas de camisa e usava um par de suspensórios de um escarlate brilhante que destoava com a sobriedade do resto
do traje. A sua expressão era sinistra. Hector mal conseguiu reprimir um sorriso enquanto se recordava da descrição de Hazel: Uma corja de advogados empertigados,
picuinhas e com caras de penico. Deram um aperto de mão e Hector reparou no brilho nos olhos pálidos de Bunter. Talvez os arrojados suspensórios escarlate fossem
um indicador da sua verdadeira natureza.
- Permita-me, uma vez mais, apresentar as minhas condolências. São circunstâncias trágicas, estas em que nos conhecemos, senhor Cross. - Indicou-lhe os tabloides
espalhados em cima da mesa à sua frente. A fotografia de Hazel era visível em cada uma das primeiras páginas. - E como é cruel o assunto que o senhor e eu temos
de tratar.
- É muito amável e atencioso da sua parte, senhor Bunter.
- Mas, antes de começarmos, permita-me oferecer-lhe primeiro algo para beber. Prefere chá ou café?
- Café para mim, por favor.
- Para mim também. - Bunter olhou para a sua assistente.
- Podes tratar disso, por favor, Jo? - Enquanto ela fazia o pedido pelo telefone através do serviço de quartos, Bunter indicou-lhe uma poltrona à sua frente. Hector
pousou a pasta em cima da mesa e sentou-se.
- Espero que não ponha nenhuma objeção ao facto de a minha assistente estar presente durante a nossa reunião. Conto com ela para manter um registo preciso de
tudo o que for discutido.
- Com certeza.
Enquanto aguardavam que o mordomo da suíte chegasse com o carrinho do chá, falaram do tempo, concordando ambos que estava muito agradável para aquela altura do
ano, e da pré-campanha para as eleições presidenciais americanas. Bunter era um republicano ferrenho e Hector simpatizava com essas inclinações. Jo serviu-lhes o
café e, depois de todos terem nas mãos as respetivas chávenas de porcelana, Bunter olhou para Hector do outro lado da mesa.
- Podemos prosseguir, senhor Cross? - Bunter continuou sem esperar pela resposta dele. - Como o senhor sabe, sou o principal mandatário do Fundo Fiduciário da
Família Henry Bannock pelo racto de gozar do voto de qualidade no conselho de administração.
- Sim, a minha mulher tinha-me explicado isso.
- A sua esposa era um dos beneficiários do Fundo Fiduciário.
- Quantos mais beneficiários há? - disparou-lhe Hector à queima-roupa, mas Bunter esquivou-se.
- Não estou autorizado a revelar essa informação. - O brilho desaparecera-lhe dos olhos e a sua expressão era glacial. Hazel tinha-lhe dito que aquilo iria acontecer,
mas Hector precisara de o comprovar pessoalmente. Bunter prosseguiu: - A sua esposa beneficiava do uso vitalício de alguns dos bens do Fundo Fiduciário. Tais bens
não fazem parte dos bens mobiliários dela. Devem ser devolvidos ao controlo do Conselho Administrativo.
- Sim, ela também me tinha advertido para isso. Poderá contar com a minha plena cooperação.
A expressão de Bunter animou-se ligeiramente. - Obrigado, senhor Cross. Poderia facultar-nos também uma cópia da certidão de óbito da senhora Bannock-Cross? Isso
poupar-nos-ia uma data de problemas.
- Sim, posso fazê-lo de imediato. - Hector abriu a pasta e tirou um arquivador plástico transparente. Extraiu o documento e fê-lo deslizar sobre a mesa. Bunter
examinou-o de forma rápida.
- É muito eficiente, senhor Cross.
- Creio que também vai requerer a certidão de nascimento da filha da minha mulher, estou certo? - Hector tirou outro documento do arquivador plástico.
- Obrigado, mas já dispomos dos originais no arquivo, tanto a certidão de nascimento como a de óbito de Cayla Bannock.
- Não. Não me referia a Cayla Bannock. Refiro-me a Catherine Cayla Bannock-Cross.
Bunter ficou surpreendido.
Um ponto a meu favor, meu caro senhor, pensou Hector com satisfação. Calculou que não fosse fácil ganhar um ponto àquele meia-leca.
Bunter recompôs-se rapidamente. - Peço perdão, mas não estou a entender, senhor Cross. A sua esposa só tinha uma filha, estou correto?
Hector desfrutou do desconforto do outro por alguns momentos. Depois disse-lhe: - Cinco horas antes de falecer, a minha mulher deu à luz uma menina por cesariana.
Ela queria que esta criança se chamasse Catherine Cayla. Aqui tem a certidão de nascimento da Catherine.
Bunter estendeu a mão sobre a mesa e tirou-lhe o documento da mão. Examinou-o avidamente, murmurando para si mesmo.
- Extraordinário. Que espantosa reviravolta. Uma centelha de beleza a iluminar por um instante as escuras e sombrias nuvens da tragédia. - Depois olhou para Hector
e chegou mesmo a sorrir.
- As minhas felicitações por ser pai, senhor Cross.
- Obrigado, senhor Bunter. - Hector retribuiu-lhe o sorriso e depois sentiu um leve toque no braço. Olhou para baixo e reparou que Jo Stanley se tinha inclinado
para a frente e lhe pousara a mão no antebraço.
- Estou muito feliz por si. Sei que a Catherine será uma grande consolação para si - disse ela, de forma aparentemente sincera.
Bunter continuou a falar. - Este facto é da máxima importância para o Fundo Fiduciário. A Catherine será beneficiária de pleno direito.
- Mesmo não sendo ela parente de sangue de Henry Bannock?
- Hector estava de novo a tentar sacar-lhe nabos da púcara.
- Quanto a isso, não há dúvida nenhuma - disse Bunter.
- O Henry era um homem notável. Um dos homens mais excepcionais que já conheci. Não havia nele o mínimo indício de mesquinhez ou maldade. A partir de agora e até
ao fim da vida dela, o Fundo Fiduciário será responsável por todas as necessidades da sua filha, por mais pequenas ou grandes que sejam. O senhor deve enviar-nos
as faturas e, caso não possa facultá-las, bastará uma breve descrição das necessidades dela e uma estimativa dos custos. O Fundo Fiduciário reembolsá-lo-á de imediato.
Quando ela tiver idade para procurar um emprego pago de qualquer tipo, o Fundo Fiduciário irá quadruplicar-lhe os ganhos. E esta disposição é válida durante toda
a vida dela.
- Sim, o Henry Bannock era um homem impressionante - ;oncordou Hector. - Encontrei-me com ele em algumas ocasiões no cumprimento dos meus deveres. Contratou-me
como chefe da segurança da Bannock Oil.
- Sim, eu sei. Ele mencionou o seu nome. E gostava de si - replicou Bunter.
- É muito gratificante saber isso - disse Hector.
Bunter olhou para o relógio de pulso. - Dezoito e vinte. Suponho que ainda seja bastante cedo, mas não deveríamos brindar à saúde da sua filha e dar-lhe as boas-vindas
a este mundo malvado?
- Não esperou pela resposta dele e virou-se para Jo Stanley. -Jo, minha querida, creio ter visto uma garrafa de Dom Pérignon no minibar.
Hector bebeu lentamente a sua flauta de champanhe. A companhia era agradável e estava relutante em regressar à casa vazia em Brandon Hall. Ficou surpreendido
quando Bunter o convidou a ficar para jantar. Jantaram os três no esplendor do restaurante do Ritz. Bunter era um anfitrião atencioso; Jo Stanley era uma boa ouvinte.
A ocasião não se prestava a grandes diversões, mas a certa altura ela chegou a rir de algo que Hector dissera, e esse riso soou ainda mais musical do que a voz dela.
Quando Hector se preparava para partir, ambos o acompanharam à porta do hotel. Embora tivesse sido um jantar amigável, ainda não se tratavam pelos nomes próprios.
Continuava a ser Sr. Cross, Sr. Bunter e Menina Stanley.
Quando se despediram com um aperto de mão, Bunter disse a Hector: - Eu e a Jo vamos apanhar amanhã um voo de regresso a Houston, mas lembre-se de que estou sempre
à distância de um simples telefonema, caso a Catherine Cayla precise de alguma coisa.
Quando Hector estendeu a mão ajo Stanley para se despedir, ela agarrou-a sem hesitar. A sua beleza ficou, uma vez mais, gravada de forma fugaz nos recantos da
mente dele. Mas não havia nada de subjetivo nisso. Era como se reparasse numa nuvem que passava ou numa rosa a florescer. O porteiro segurava na porta aberta do
Bentley. Hector afastou-se dela, enfiou-se atrás do volante e seguiu sem espreitar pelo espelho retrovisor.
17
Na manhã seguinte, Hector ia acompanhado de Bonnie Hepworth e das duas amas jovens quando chegou ao hospital no Range Rover. As três mulheres vinham completamente
equipadas com alcofa, biberões, pacotes extra de fraldas e toda a restante parafernália necessária para cuidar de uma criança lactente.
Havia um pequeno comité de receção à espera deles na secção da Maternidade. Todas as enfermeiras de serviço tinham comparecido para se despedirem de Catherine
e terem um último vislumbre do pai dela. Hector levou a filha para o carro, com o resto da comitiva de Catherine atrás dele. Quando chegaram a Brandon Hall, todo
o pessoal doméstico chefiado por Agatha e por Reynolds estava alinhado sob o pórtico para lhes dar as boas-vindas.
Com a cerimónia que a circunstância impunha, Catherine foi mostrada a todos e vomitou de imediato meio biberão de leite sobre o vestidito de noite bordado e sobre
a lapela do casaco do pai. Hector ficou muito alarmado e quis levá-la rapidamente de volta para o hospital. A enfermeira Bonnie conseguiu dissuadi-lo.
- Isso é uma coisa que os bebés costumam fazer, senhor Cross.
- Bem, então quem me dera que ela não o tivesse feito em cima de mim.
Assim que Catherine foi instalada nos seus novos aposentos, a enorme casa voltou a ganhar vida com a constante azáfama e o som de risos femininos. No entanto,
Hector parecia manter-se à parte de tudo isso.
No seu testamento, Hazel estipulara que desejava ser cremada o mais expeditamente possível. Mas o médico-legista só iria entregar o seu corpo assim que os resultados
da autópsia fossem conhecidos. Hector manteve-se acordado à noite, atormentado por imagens de indignidade e mutilação a serem perpetradas no cadáver da encantadora
mulher que ele amaria para o resto da vida. Parecia uma espera interminável, mas os seus restos mortais foram finalmente devolvidos ao cuidado dele.
Hector quisera desde o início que a cremação fosse uma cerimónia muito privada, mas, devido à demora na entrega dos restos mortais, a notícia da sua morte tinha-se
espalhado por toda a parte. Várias centenas de pessoas tinham vindo de avião de todos os cantos do mundo para lhe prestarem os últimos respeitos. Além disso, os
dois grupos completos de pessoal doméstico de Brandon Hall e da mansão de Belgravia desejavam assistir à cerimónia. A capela estava quase cheia. Contudo, Hector
continuava a envidar todos os esforços para manter em segredo o nascimento de Catherine Cayla. Deixou-a entregue aos cuidados das amas.
O caixão de Hazel foi fechado. Na noite anterior, Hector fora vê-la na casa funerária e não quisera que o seu rosto pálido e frio fosse exposto a todos aqueles
olhares curiosos. Sentou-se sozinho na primeira fila de bancos. A capela estava cheia de jarros brancos. Um padre que Hector nunca tinha visto antes presidiu ao
serviço fúnebre. O rosto de Hector permaneceu inexpressivo quando o clérigo premiu o botão que fez rodar o caixão ao longo da correia transportadora e através das
portas que deslizaram para o lado para
o receber. Quando as portas se fecharam, levantou-se e avançou ao comprido da nave lateral em direção à saída. Olhava diretamente à sua frente, sem se fixar em nenhuma
das pessoas presentes na capela apinhada.
Nessa noite, sentou-se sozinho à comprida mesa da sala de jantar em Brandon Hall e bebeu duas garrafas de clarete, à procura de um estado de olvido. Continuava
sóbrio, mas, a cada copo de vinho que tragava, a sua raiva ardia com mais intensidade, até se transformar num inferno abrasador que ameaçava consumi-lo.
18
Quando acordou na manhã seguinte, estava sóbrio e tinha a raiva sob controlo. Tomou três aspirinas e lavou os dentes energicamente: a sua cura para uma ressaca.
Tomou um duche e vestiu-se. Depois desceu para o estúdio. A criada tinha-lhe deixado o The Times em cima da escrivaninha. Estava virado para cima, de modo que pôde
ler o cabeçalho da primeira página do outro lado da divisão. Ficou paralisado de horror por um momento, mas depois recompôs-se e atravessou a divisão em poucas passadas
rápidas. Agarrou no jornal com um gesto brusco.
Mulher Assassinada Dá à Luz no Leito de Morte
Tornou-se público que a herdeira multimilionária Hazel Bannock-Cross, mortalmente ferida, deu à luz uma menina cinco horas antes de morrer em consequência do
tiro disparado pelo homicida. A criança encontra-se de boa saúde e já teve alta do Hospital Real do Condado de Hampshire na quinta-feira passada, ficando entregue
ao cuidado do seu pai, o Sr. Hector Cross de Brandon Hall, perto de Smallbridge, em Hampshire...
Os olhos de Hector fixaram-se no fundo da página. A história estava toda ali e os factos, no essencial, correspondiam à verdade. Amarfanhou o jornal numa bola
e atirou-o contra a parede.
- Cabrões! - rosnou. - Malditos cabrões! - Avançou para o corredor e subiu apressadamente os degraus dois a dois até ao piso seguinte. Irrompeu pelo quarto da
criança e depois parou à entrada. Catherine estava nua, deitada de barriguita para baixo sobre a mesa. Agitava as pernitas no ar enquanto Bonnie se debruçava sobre
ela, salpicando-lhe o traseiro rosado com pó de talco.
- Senhor Cross! - arquejou ela, surpreendida. - Que se passa?
- Nada. - Hector recuou alguns passos. - Só queria verificar uma coisa. Está tudo bem?
Bonnie sorriu. - Oh, sim. Acabámos mesmo agora de tomar um biberão inteiro e também fizemos um grande cocó. - O uso que fazia da primeira pessoa do plural evocou
na mente de Hector uma imagem macabra.
- Muito bem. Fico contente por saber. Mas agora ouça-me com atenção, Bonnie. Quero que comece já a fazer as malas. Vamos mudar-nos de imediato para a casa em
Londres. - A imprensa tinha anunciado o nascimento de Catherine ao mundo. A Besta saberia agora exatamente onde os encontrar.
- Fazer as malas? - Bonnie olhou-o, incrédula. - Mas ainda agora acabámos de nos mudar para aqui! Quer mesmo fazer isso, senhor?
- Sim, é mesmo minha intenção fazer isso. Certifique-se de que por volta da uma da tarde tem tudo preparado para partirmos.
Hector saiu e voltou para o estúdio. Agarrou no telefone interno e ligou para o chalé do couteiro-mor. - Paul, quero todos os portões da propriedade fechados
e trancados. Ponha um dos seus homens de guarda em cada uma das entradas. Todos deverão estar armados com as respetivas caçadeiras. Nenhum estranho deverá entrar
na propriedade. Está a perceber?
- E quanto à encomenda que vêm trazer da aldeia, senhor Cross? Estamos à espera de uma furgoneta de Farinha com ração para as crias de faisão.
- Certifique-se de que eles conhecem o condutor de vista. Nada de deixar entrar estranhos. - Pousou o auscultador e percorreu o estúdio com o olhar, elaborando
uma lista dos poucos itens que queria levar consigo para Londres. Não era muita coisa. Atenta que era aos pormenores, Hazel tratara de reproduzir a maior parte do
conteúdo das duas casas. Na maioria dos casos, bastava sair de uma casa instalar-se na outra. A própria Catherine dispunha de um quarto particular à sua espera.
Se ao menos tivessem ficado em Londres no dia fatídico, nunca teriam caído na emboscada e talvez Hazel inda estivesse viva. Perguntou-se com amargura qual era o
título do livro que ela quisera levar de Brandon Hall naquele dia sinistro. Agarrou no telefone e marcou o número da casa de Belgravia, em Londres. O mordomo atendeu:
- Ligou para a residência dos Cross. Em que posso ser-lhe útil?
- Bom dia, Stephen.
- Ah, senhor Cross! Como tem passado, senhor? Todos nós andamos muito desolados com o que aconteceu à senhora Cross. Obrigado por nos ter convidado para o serviço
fúnebre.
- Obrigado, Stephen - respondeu Hector numa voz brusca.
- Chegarei aí esta tarde com a bebé e as amas dela. Vamos instalar-nos aí por um período indeterminado. Por favor, prepare tudo para a nossa chegada.
Quando saíram de Brandon Hall no Range Rover, os portões ia propriedade estavam trancados e Paul Stowe, o couteiro-mor, estava de guarda, de caçadeira debaixo
do braço. Hector baixou o vidro da janela para falar com ele. Paul tinha servido no SAS, do Serviço Aéreo Especial, que fora o antigo regimento de Hector. No Afeganistão,
ficara gravemente ferido numa luta armada contra os talibãs e, depois de sair do hospital, fora dispensado do exército. Hector não hesitara quando Paul se candidatara
ao posto de couteiro-mor e nunca tivera nenhuma razão para se arrepender dessa decisão. Hector reforçou as suas instruções para manterem os portões trancados e não
permitirem a entrada de nenhum estranho nos terrenos da propriedade. Quando partiram, Hector viu pelo espelho retrovisor Paul fechar os pesados portões de gradeado
de aço. Três horas depois, Hector conduziu o Rover para a garagem subterrânea do nº 11 em Belgravia. Tinha moderado a velocidade de forma a proporcionar a Catherine
uma viagem suave.
Quando Hector foi ver o quarto da criança uma hora após a sua chegada, Catherine já tinha sido alimentada, já arrotara e estava aconchegada no berço a dormir
profundamente. Pela primeira vez nesse dia, sentiu-se relaxar.
19
Um dos itens que trouxera de Brandon Hall era o seu retrato preferido de Hazel. Pendurou-o virado para a sua secretária no estúdio antes de sequer ligar o computador.
Assim que o computador acabou de arrancar, acedeu à sua conta no Gmail. Perto do topo da coluna das mensagens recebidas reparou numa que aguardava com grande
expectativa.
Nastiya e eu chegamos voo da Emirates EK 005 18h GMT esta quinta-feira. Terminal 3 Heathrow. Podes ir lá buscar-nos, p.f.?
Tenho notícias. Paddy.
Vinte e quatro horas mais tarde, quando ambos cruzaram os portões de desembarque, Hector estava à espera deles. O rosto de feições rugosas de Paddy exibia uma
tez castanho-coco. O rosto e os braços desnudos de Nastiya reluziam numa tez entre o acobreado e o dourado. Ambos pareciam em forma e revigorados. Hector abraçou-os
à vez. Os corpos deles eram robustos e ágeis como os de atletas treinados.
- Vão ficar hospedados na minha casa no número onze - disse-lhes.
- Estava a contar que dissesses isso - replicou Nastiya. - É bom ser tratada como uma duquesa, para variar.
- Não és nenhuma duquesa, Nazzy. És uma czarina.
- Mas que tretas tens de estar sempre a dizer, Hector Cross? - Tentou parecer altiva, mas não conseguiu. Hector sabia que, bem no fundo, ela adorava que a tratassem
daquela maneira. Nastiya beijou-o em ambas as faces.
Enfiaram as bagagens no Range Rover. Paddy sentou-se no banco passageiro e Nastiya no banco de trás. Hector reprimiu um sorriso ao pensar como Nastiya desempenhava
de forma convincente o papel de esposa subserviente quando não estava a encher de porrada alguém que a tivesse irritado.
Assim que o carro arrancou, Paddy e Nastiya reiteraram-lhe as condolências pela morte de Hazel e a sua determinação em vingá-la. Hector reagiu de forma acanhada,
esforçando-se por manter uma expressão de valentia. Foi um alívio para os três quando a conversa se tornou mais descontraída e trivial. Já não se viam há muito tempo,
de modo que trocaram novidades acerca de amigos e conhecidos mútuos, e Paddy pôs Hector a par das atividades da Cross Bow Security.
Assim que entraram na autoestrada, o fluxo de trânsito diminuiu e Hector pôde então dispensar toda a sua atenção aos assuntos importantes.
- Com que então tens notícias para mim, Paddy? Boas ou más?
- Boas e más. Primeiro vou-te pôr ao corrente das boas. A Nazzy encontrou um esconderijo seguro e perfeito para a tua Katherine. Tal como sugeriste, é o último
piso inteiro de uma das novas empreitadas do príncipe Mohammed, na marginal da rraia em Abu Zara. Dispões de elevador privado. Também tem uma plataforma de aterragem
para helicópteros e uma piscina no terraço. Tem espaço de sobra para alojar uma boa equipa de segurança no local. Podemos torná-lo inexpugnável. É essa a boa notícia.
- E a má? - Hector franziu o sobrolho.
- O príncipe quer cento e vinte milhões de dólares americanos pela venda direta, a pronto pagamento em dinheiro vivo aquando da assinatura do contrato.
- Jesus! - exclamou Hector.
Paddy abanou a cabeça em desacordo. -Jesus não está envolvido neste acordo. O príncipe nem sequer acredita nele.
- Achas que estará disposto a arrendar-nos o espaço?
- Sim. Mas nem por isso as coisas melhoram. Pede quinze milhões por um ano de arrendamento. É o melhor preço que ele pode fazer a bons amigos, ou pelo menos é
o que ele diz.
Hector ponderou rapidamente. - Tem-nos agarrados pelos testículos - disse por fim.
- A mim não - disse Nastiya num tom presunçoso.
-- Não consegues controlar essa tua mulher, Paddy? - disse Hector, voltando a remeter-se ao silêncio enquanto refletia naquele problema. Ronald Bunter assegurara-lhe
que o Fundo Fiduciário da Família Henry Bannock custearia todas as despesas de Catherine. Esta situação não era um luxo, era uma necessidade. Destinava-se à segurança
de Catherine; a própria sobrevivência dela poderia estar em risco. Chegara a altura de pôr à prova a palavra do velho Ronnie. Se Bunter recusasse, Hector estava
determinado a pagar essa despesa do próprio bolso. Deus era testemunha de como Hazel lhe deixara "trocos" mais do que suficientes para esse fim. Catherine teria
de ser transferida para o esconderijo e o preço não entrava nos cálculos.
- Temos de aceitar. E daqui a um ano já nos poderemos mover com liberdade. Quando nos podemos mudar para lá? - perguntou a Paddy.
- De imediato. O mobiliário e os acessórios vêm incluídos no preço do príncipe. O espaço é perfeitamente habitável tal como está. Podes acrescentar os retoques
finais assim que tivermos a Catherine instalada em segurança. Quando pensas levá-la para Abu Zara?
- Quanto mais cedo, melhor - disse Hector. - O risco aumenta de forma exponencial a cada dia que passa. Dá-me só uns minutos. Tenho de falar com um amigo. - Verificou
as horas no relógio de pulso. A diferença horária em Houston era de menos seis horas.
Tinha o número privado de Ronald Bunter no telemóvel.
- Fala Bunter. - A inconfundível voz de velha solteirona interrompeu-lhe a linha de pensamentos.
- Boa tarde, senhor Bunter. Fala Hector Cross.
- Que bom ouvi-lo, senhor Cross. Em que posso ajudá-lo?
Hector contou-lhe, e Bunter ouviu-o em silêncio até ele terminar. Depois perguntou numa voz pausada: - De que outras alternativas dispõe para garantir a segurança
da Catherine, senhor Cross?
- Não há mais nenhuma alternativa, senhor Bunter. Já sabe o que eles fizeram à mãe da Catherine.
- Preciso de falar com os meus colegas mandatários. Depois telefono-lhe antes do final do dia de hoje, senhor Cross.
- Obrigado, senhor Bunter.
Desligou a chamada e olhou para Paddy. - Pois bem, que mais tens para me dizer? Já te conheço esse olhar. Estás a esconder um trunfo qualquer na manga.
- Estamos quase a chegar ao número onze - replicou Paddy.
- Vais ter de esperar até lá chegarmos.
- Muito bem - anuiu Hector com relutância. - A suíte do costume está pronta para vocês os dois. Mas primeiro vou-vos levar a dizer olá à Catherine. Depois dou-vos
meia hora para se apinocarem. A Hazel impôs a regra na casa de que os cavalheiros devem iperaltar-se para o jantar.
- Não estou a ver nenhum cavalheiro aqui - disse Nastiya.
- Não a atices -- disse Paddy numa voz pesarosa. - As piadas russas são como os franco-atiradores russos: bem camuflados e difíceis de detetar.
20
Quando Nastiya viu Catherine pela primeira vez, apoderou-se dela uma estranha transformação. Pareceu derreter como uma reluzente folha de aço de titânio sob o
brilho de uma fornalha elétrica. Pegou em Catherine ao colo e falou-lhe em russo. Os olhos azul-esbranquiçados da bebé rolaram nas órbitas enquanto tentavam localizar
a fonte daqueles extraordinários sons bárbaros. Depois Nastiya lançou a Paddy um olhar acusador.
- Porque é que não me dás uma criança assim?
- Sê razoável! - respondeu Paddy, indignado. - Estou a fazer
o melhor que posso, não estou?
Quando conseguiu arrastar Nastiya para longe do quarto da criança, Paddy levou-a para a suíte onde estavam alojados. Uma hora depois, voltaram a descer para o
covil de Hector. Paddy usava um traje de cerimónia com condecorações e Nastiya apanhara o cabelo loiro num puxo alto e usava um vestido de decote baixo.
- Meu Deus, Paddy! Sabes escolhê-las bem! - Hector olhou para ela com uma admiração exagerada. - Tens aqui uma dama deveras encantadora. - Nastiya atirou-lhe
um beijo. Hector já preparara uma vodca com sumo de limão para Nastiya e um grande copo de uísque Jameson para Paddy. - Muito bem - disse-lhes.
- Sentem-se. Bebam. E depois, toca a falar.
Paddy deu um sorvo na sua bebida e exalou ruidosamente.
- Não vais encontrar nada igual a isto deste lado de Dublin - disse ele no seu sotaque irlandês mais carregado.
- Conta-me algo mais interessante.
- O Tariq deparou com uma pista sobre alguém que nos passou despercebido quando eliminámos a prole dos Tippoo Tip.
Hector sentou-se de costas direitas na cadeira de espaldar alto e a sua bebida. - Sou todo ouvidos - disse numa voz calma.
- Tal como tínhamos combinado, enviei o Tariq à Puntlândia.
É a pátria dele e consegue passar despercebido lá. Tem lá família e amigos. Viajou de camioneta. Primeiro foi à velha base dos piratas baía de Gandanga. Encontrou-a
completamente deserta.
- Isso não me surpreende nada. - Hector dirigiu-lhe um sorriso sombrio. - Arrasámos aquilo de alto a baixo.
- Política da terra queimada - anuiu Paddy. - Depois disso, Tarik voltou ao bastião dos Tippoo Tip no Oásis do Milagre, onde tu resgataste a Cayla da Besta. Havia
lá alguns sobreviventes, a viverem no meio das ruínas. Uma dessas pessoas tinha sido concubina do Khan. O Tariq diz que ela é uma velha megera, cega como um morcego
e esfaimada. O Tariq deu-lhe de comer e tentou animá-la para a pôr a falar. Chamava-se Almas e, embora não conseguisse embrar-se do que tinha comido ao pequeno-almoço,
recordava-se com absoluta clareza de tudo o que tinha acontecido vinte anos antes. Sabia de cor a árvore genealógica dos Tippoo Tip até dois séculos atrás. Gabou-se
de ter dado à luz gémeos para o Khan: um rapaz e uma rapariga. Contou ao Tariq que o seu filho era Kamal, que tinha comandado a frota de barcos piratas de ataque
do Kahn. Trata-se do mesmo sujeito que tu despachaste a tiro a bordo do Golden Goose.
- Nunca me esquecerei dele. - Hector sorriu. - Foram precisas cinco balas de nove milímetros para o calar.
- Era um cabrão duro de roer - anuiu Paddy.
- Nem por isso. - Nastiya falou pela primeira vez desde que aquela conversa se iniciara. -- Berrou como um bebé quando lhe arranquei o dedo à dentada.
Hector desatou às gargalhadas. - Isso só me serve de aviso para nunca enfurecer a tua mulher, Paddy.
- Na verdade, depois de a conhecermos bem, percebemos que é uma rapariga de coração mole. - Paddy olhou para Nastiya com ternura. - Mas estou a divagar. Segundo
a velha que reclamava ser a mãe do Kamal, a irmã gémea do Kamal deu à luz um filho quando tinha dezasseis anos. Portanto, esta criança seria o neto de Tippoo Tip.
- Continua! - insistiu Hector. - O Tariq conseguiu saber o nome dele? Que aconteceu a esse neto? Ainda é vivo?
- O seu nome era e é Aazim Muktar Tippoo Tip. Saiu de África quando ainda era um jovem de vinte e poucos anos e veio aqui para Londres, para estudar Direito Islâmico
na Grande Mesquita em Regents Park.
- Ele continua aqui em Londres? Essa tal avó dele sabe? - perguntou Hector.
- Não, não sabe. Aliás, sabe muito pouco acerca de tudo o que seja mais recente. Vive a maior parte do tempo no mundo das fadas. Nem sequer sabe onde ela própria
vive, e muito menos onde está o seu neto. Mas liguei para a mesquita aqui em Londres e falei com um dos mulás. Conhecia bem esse Aazim Muktar. Disse que ele se tornou
um clérigo importante, tido em grande consideração em todo o Médio Oriente; um homem influente e poderoso.
- Muito bem, mas onde podemos encontrá-lo?
- Do outro lado do golfo, logo à frente de Abu Zara. É atualmente um dos principais mulás na Mesquita Masjid Ibn Baaz, em Meca. Enviei lá o Tariq para fazer um
reconhecimento da mesquita. Foi por isso que demorei tanto tempo a dar-te uma resposta. O Tariq assistiu lá às orações uma série de vezes. Viu Aazim Muktar em pessoa
e ouviu-o pregar. Pelos vistos, a mesquita estava apinhada de gente. Aazim Muktar exercia um controlo total sobre a congregação. Os fiéis acorrem de todos os cantos
do Médio Oriente para o ouvir. Até o Tariq ficou impressionado. Diz que Aazim Muktar é um homem santo.
- Folgo em saber isso. Assim, quando eu o despachar, Aazim Muktar terá um lugar onde Alá o acolherá - disse Hector num tom sombrio. - Achas que vai ser difícil
apanhá-lo, Paddy?
Paddy ponderou a questão e depois perguntou por seu turno:
- Presumo que não estejas a considerar a hipótese de o despachar com um tiro de longo alcance quando ele sair lá da mesquita?
- Correto - anuiu Hector. - Quero olhá-lo nos olhos e sondar- a alma. Quero que ele saiba quem sou e quero que saiba aquilo que tem de pagar. Quero mencionar-lhe
a Hazel. E depois quero ver um anjo negro levá-lo. Quero que ele morra lentamente e quero -lo gritar.
O próprio Paddy sentiu-se abalado pela força da raiva de Hector. Demorou algum tempo a pensar numa resposta. - Não estou a ver que é impossível, mas raptá-lo apresentará
os seus problemas, ao menos não vamos precisar de aterrar de paraquedas numa fortaleza no meio do deserto, como tivemos de fazer para deitarmos a mmão ao avô dele.
No final de um dos rituais de orações, o Tariq seguiu-o a ele e à sua comitiva até ao lugar onde ele vive no complexo de edifícios religiosos, a pouco mais de um
quilómetro da mesquita. Não conseguiu aproximar-se o suficiente do edifício sem trair atenções indesejadas. Mas ele diz que é um edifício grande, rodeado de uma
muralha bastante imponente. É um lugar de difícil abordagem, pois há muitos olhos a vigiar. Há guardas armados no portão. Segundo os termos que estipulaste, talvez
não seja tão fácil como eu gostaria que fosse.
Hector pegou na sua bebida e fixou-se nela, fazendo girar o líquido dourado no fundo do copo. Antes que pudesse falar, o telemóvel na bolsa que levava ao cinto
começou a tocar os acordes da abertura do tema American Pie de Don McLean.
- Desculpa, tenho de atender esta chamada. - Encostou o telemóvel ao ouvido. - Fala Cross! Obrigado por voltar a telefonar, senhor Bunter. Tem novidades para
mim?
- Falei com os meus colegas e todos concordamos que um refúgio seguro para a Catherine é um encargo legítimo para o Fundo Fiduciário, bem como os custos de todos
os outros preparativos relativos às questões de segurança. Além disso, de momento, o Jato Executivo Boeing do Fundo Fiduciário está no hangar no aeroporto de Farnborough.
A tripulação recebeu ordens para aguardar e o levar a si e à Catherine para Abu Zara. Obviamente que quanto mais cedo pudermos levá-la para longe do perigo, melhor.
- Estou-lhe muito agradecido a si e aos seus colegas mandatários, senhor Bunter.

 

 


CONTINUA