Biblio VT
21
O primeiro prato era ostras Fine de Claire grelhadas em meia concha, guarnecidas com uma divinal camada de molho holandês com tabasco e acompanhadas por um borgonha
branco seco Chablis, muito gelado. Hector acabava de enfiar a primeira ostra na boca e revirava os olhos de prazer quando o seu iPhone voltou a tocar, amaldiçoou
aquela interrupção inoportuna enquanto saboreava a ostra.
- Quem raios se lembraria de me ligar a uma hora destas? - Relanceou os olhos pelo ecrã iluminado do telemóvel. - É o meu couteiro-mor lá de Brandon Hall. Não
preciso de falar com ele a hora do jantar. Desculpem-me, mas vou desligar este aparelho infernal.
- Nyet, Hector - disse-lhe Nastiya. - Isso não é muito sensato numa altura destas.
Hector hesitou. Tinha aprendido a respeitar os conselhos de Nastiya, cujo instinto guerreiro era apuradíssimo. Atendeu a chamada. - Paul, seja qual for o assunto,
sê breve. Estamos a meio do jantar - disse.
A voz de Paul Stowe soava tão alterada e agitada que todos eles, sentados à mesa do jantar, puderam ouvi-lo claramente. - Senhor, a casa em Hall está a arder.
Pelo menos quatro dos nossos empregados ficaram encurralados nas chamas.
- Oh, meu Deus, Paul! Como é que o fogo começou?
- Granadas incendiárias, senhor. - Paul era um velho soldado.
- Conseguiria reconhecer o cheiro a fósforo branco queimado em qualquer lado. Foram duas, em rápida sucessão. Ouvi as explosões e uma fração de segundo depois a
casa explodiu em chamas.
- Que parte da casa é que foi atingida? - perguntou Hector.
- A ala dos quartos de dormir. Parece que uma das granadas foi lançada através das janelas do seu estúdio, por baixo do quarto principal, e a outra entrou pela
janela da biblioteca, por baixo da área do novo quarto de criança.
Hector digeriu rapidamente aquelas informações. Os atacantes certamente conheciam a planta da casa. Tinham levado a cabo um ataque muito preciso. Hector teve
uma vívida imagem mental das possíveis consequências caso ele e Catherine tivessem dormido em casa nessa mesma noite. A termite de uma granada incendiária arde a
2200 graus Celsius. Consegue derreter aço de forma quase instantânea.
- Alguém conseguiu ver os atacantes? Fazes alguma ideia de quem possam ser?
- Dois canalhas quaisquer entraram na propriedade ao final da tarde, provavelmente ao cair do crepúsculo. - A voz de Paul soava cheia de certeza e indignação.
- Como sabes isso, Paul?
- Encontrei o carro deles, um Vauxhall Zafira novo, no sítio onde o tinham escondido, do lado exterior do nosso muro de delimitação, em frente a Corner Stone
Drive. Ia a caminho de casa quando reparei em algo que não estava lá ontem, uma pilha de ramos verdes. Como o senhor me tinha avisado para estar atento, fui dar
uma olhada e descobri o carro escondido por baixo dos ramos. Depois segui os rastos dos rufias a partir dali e descobri por onde tinham trepado o nosso muro. Demorei
quase meia hora a voltar à casa porque tive de contornar a ponte de pedra para cruzar o rio. Por essa altura, já tinha escurecido e estava a atravessar o prado mais
baixo quando ouvi as granadas explodir e vi as chamas. Já não valia a pena continuar a seguir-lhes os rastos, pois já estava demasiado escuro. De modo que a minha
prioridade foi resgatar empregados nossos que eventualmente tivessem ficado encurralados dentro de casa. Tenho quase a certeza absoluta de que aqueles bandidos voltaram
direitinhos para onde tinham deixado o carro. Mas que o carro não ia pegar, pois eu tinha-me encarregado disso.
- Como? - perguntou Hector.
- Bem, tinha o meu canivete multifunções Leatherman comigo, a primeira coisa que fiz quando descobri ali o carro foi arrancar todas as velas do motor e atirá-las
para o rio. A única maneira de eles poderem ir a algum sítio esta noite será a pé.
- Que estás a fazer agora, Paul?
- Estou a tentar salvar alguns daqueles pobres coitados que ficaram presos nas chamas. Mas não creio que haja grande esperança. As chamas são tão ferozes que
nem conseguimos chegar perto da casa. O telhado já começou a ruir.
- Fizeste bem, Paul. Vou já para aí para te ajudar. A esta hora da noite não deverá haver muito trânsito. Devo chegar em menos de duas horas. - Desligou e olhou
para Paddy.
- É a Besta outra vez - disse Paddy. - Quanto a isso não há dúvidas. Leram a notícia nos jornais e já sabem da Catherine, e pensam que ela está em Brandon Hall.
Andam atrás dela. - Calou-se e depois acrescentou: - E de ti também, Hector.
- Mudem de roupa, pois vamos partir de imediato - disse Hector.
Deixaram o resto das ostras e o vinho intactos. Apressaram-se pela escadaria principal acima para as respetivas suítes. Poucos minutos depois, os três voltaram
a reunir-se nas escadas, vestidos com roupas de tecidos resistentes. Hector armara-se com um shil- Ulagh, um bastão de luta irlandês, feito de madeira de espinheiro
negro. Atirou-o para o banco traseiro quando se enfiaram no Rover estacionado na garagem subterrânea.
Conduzindo a grande velocidade ao longo da estrada quase deserta, Hector demorou pouco menos de uma hora e vinte minutos a chegar a Winchester. Enquanto passavam
pela cidade, Hector liigou a Paul Stowe.
- Põe-me a par do que está a acontecer, Paul.
- Os bombeiros já conseguiram controlar o incêndio, mas as chamas já se tinham praticamente extinguido sozinhas. Encontraram dois corpos. Mas é impossível identificá-los.
Estão todos carbonizados.
- Pobres coitados! Deixa os bombeiros fazerem o seu trabalho. Temos de tentar apanhar aqueles cabrões que lançaram as granadas. Se estiverem a tentar fugir a
pé, então ainda devem estar na estrada. Estamos a atravessar Winchester neste preciso momento. Vamos estar muito atentos à estrada desde aqui até Brandon Hall. Mas
eles podem não vir nesta direção. Podem ter seguido para sul, para Southampton. Leva um dos Land Rovers e cobre esse trecho da estrada. Leva contigo dois dos teus
homens e certifica-te de que vão armados com caçadeiras. Estamos a lidar com suínos assassinos. - Hector desligou a chamada e falou a Nastiya, sentada no banco traseiro.
- Há um holofote portátil no compartimento da bagageira atrás de ti. Pega nele e liga-o à tomada do isqueiro ao lado do cinzeiro entre os bancos. Depois abre
o tejadilho. Se te puseres de pé em cima do assento, mesmo uma minorca como tu consegue enfiar a cabeça e os ombros pela abertura. Varre os dois lados da estrada
com o holofote portátil. O terreno é razoavelmente aberto daqui até à saída para Brandon Hall, mas eles podem esconder-se no meio das árvores quando nos virem aproximar.
A estrada continuava deserta enquanto avançavam a grande velocidade. As gentes do campo não permaneciam acordadas até tarde, de modo que não viram nenhum outro
veículo durante os cerca de oito quilómetros seguintes. Depois fizeram uma curva apertada através de uma extensão arborizada e a estrada à frente deles descia através
de campos abertos de ambos os lados. Só duzentos metros mais à frente, atingidos pelo feixe do potente holofote portátil que Nastiya segurava, é que distinguiram
dois vultos masculinos que caminhavam com esforço na direção deles ao longo da faixa divisória branca no meio da estrada.
A zona arborizada ocultara os faróis do Range Rover que se aproximava, até o veículo surgir quase em cima deles, apanhando-os completamente de surpresa. Ficaram
petrificados durante alguns segundos críticos enquanto o Rover avançava contra eles.
Os seus rostos estavam ocultos, pois ambos usavam blusões de capuz. Recompuseram-se com rapidez, deram meia-volta e desataram a correr. Tinham sido suficientemente
estúpidos para se deixarem apanhar em terreno aberto, e suficientemente parvos para desatarem a correr e confirmarem assim a sua culpabilidade, e tiveram a esperteza
suficiente de não se manterem juntos, separaram-se como se o tivessem combinado de antemão. Um deles o da estrada, trepou a vedação e subiu a correr a encosta suave
ao longo de um campo recém-cultivado de trigo, avançando na direcção de um escuro maciço de árvores que mal se distinguiam, recortadas contra a luz das estrelas
perto do cume.
O outro homem seguiu na direção oposta, por cima da vedação ao longo do campo aberto até ao que parecia ser um pequeno ribeiro que corria paralelamente à estrada
no sopé do monte. Quando Hector alcançou o local onde ambos tinham saído da estrada, travou a fundo e escancarou a porta do seu lado. Quando estendeu a mão para
o banco de trás, onde pousara o bastão irlandês gritou: - Paddy, tu e a Nazzy vão atrás daquele que fugiu do vosso lado. Eu ocupo-me do outro cabrão.
Nastiya trepou para o tejadilho do Rover, saltou e aterrou com suavidade, em perfeito equilíbrio, na berma da estrada. Alcançou a vedação antes de Paddy sequer
sair do veículo. Usou a vertente do talude para ganhar ímpeto e correu para a vedação. Saltou e agarrou-se com uma das mãos ao topo do poste da vedação, arqueando
depois o corpo e caindo do outro lado. Os rebentos de trigo no campo não tinham mais de trinta centímetros de altura e não lhe travavam a marcha. Começou a ganhar
terreno ao vulto que fugia, correndo tão rapidamente quanto um galgo a perseguir uma lebre. Apanhou-o muito antes de ele conseguir alcançar a orla do arvoredo e
enquanto Paddy seguia ainda vinte metros atrás deles.
O homem ouviu as passadas leves dela, que roçagavam nos frágeis caules de trigo logo atrás de si, e virou-se para se defender. Quando viu que era uma rapariga
magricela e baixinha que o perseguia, enfiou a mão no bolso. Sacou uma navalha e soltou a lâmina com um estalido seco. Acocorou-se em posição defensiva, com a ponta
da lâmina virada para ela.
- Anda cá, cadela! - disse numa voz ofegante. - Vou cortar-te essa rata fedorenta e enfiar-ta pelo cu acima.
Nastiya nunca chegou a travar o ímpeto da sua acometida. Avançou velozmente e, no último instante, atirou-se contra ele. de pés esticados para a frente, caindo
com todo o peso sobre os ombros. Depois ressaltou de imediato, desferindo ambas as pernas em simultâneo, com a velocidade e a força de uma seta disparada de um arco.
Apanhado de surpresa, o homem foi lento a reagir. Gritou de dor quando Nastiya lhe atingiu o pulso direito com as plantas dos pés. Apesar dos seus gritos de dor,
o ruído dos ossos cárpicos a quebrarem foi nítido e agudo. A navalha voou-lhe da mão num enorme arco giratório. Nastiya serviu-se do ímpeto da investida para voltar
a aterrar de pés firmes no chão. Apanhou a navalha pelo cabo com um movimento hábil enquanto tombava do ar.
Amparando o pulso despedaçado com a outra mão, o homem recuou para longe dela, mas Nastiya seguiu-o impiedosamente, desferindo a lâmina da navalha de ponta e
mola de um lado para o outro, a meros centímetros da cara dele.
- Abaixa-te! - ordenou-lhe. - De joelhos, seu filho de Satanás de boca imunda, antes que te corte esses tomates fedorentos e te obrigue a engoli-los.
- Espera! - gemeu ele. - Já me estou a baixar. Faço tudo o que disseres. - Caiu de joelhos, continuando a amparar o pulso estropiado, pondo-se na posição perfeita
para ela lhe assestar o pontapé seguinte. O golpe atingiu-o sob o queixo e tombou para trás, ficando ali estendido a sufocar e a escorrer sangue da língua meio decepada
que ele mordera devido à força da pancada.
Paddy surgiu ao lado de Nastiya e olhou para o vulto que se contorcia no meio dos rebentos de trigo.
- Por Deus e pela Virgem Maria, mulher! Estou a ver que não deixaste grande coisa para eu fazer.
22
No lado mais baixo da estrada, Hector começava a encurtar a distância que o separava do homem que perseguia. Parecia ser muito mais novo do que ele, mas Hector
era mais rápido e estava em melhor forma.
Hector queria evitar uma luta corpo a corpo com alguém que, quase de certeza, estaria armado com uma navalha. Quando se encontrava a uns meros doze passos da
presa, Hector balançou o bastão para trás sobre o ombro para ganhar ímpeto e depois desferiu-o para a frente. Tinha passado a infância em África e os seus pequenos
companheiros indígenas eram todos peritos a lançar paus. Mesmo o mais jovem deles conseguia derrubar um faisão em voo a vinte passos de distância. Tinham ensinado
Hector bem. O bastão girou no ar e atingiu a parte posterior das pernas do homem, derrubando-o enquanto soltava um grito de surpresa.
Hector recolheu o bastão ainda em corrida e, assim que surgiu por trás da vítima caída, fez um cálculo rápido. Se lhe quebrasse uma das pernas, certamente o imobilizaria
ali, mas depois teria de o carregar pelo monte acima até ao local onde deixara o carro. Por outro lado, um braço partido conseguiria imobilizá-lo quase com a mesma
eficácia, mas o tipo poderia seguir a mancar de volta até ao Range Rover, sobretudo se Hector o instigasse um pouco com a ponta romba do bastão. Inclinou-se sobre
o homem, que ergueu instintivamente as mãos para proteger a cara. Hector atingiu-o na ponta do cotovelo com uma forte cacetada e o sujeito gritou assim que a articulação
do cotovelo se despedaçou.
Hector agarrou-o pelo pulso do braço aleijado e torceu-lho. O homem voltou a uivar e Hector obrigou-o a levantar-se.
- Raios, pá, estás-me a magoar - balbuciou.
- Não digas isso - replicou Hector. - Até me partes o coração. - Torceu-lhe o braço ferido, esticando-lho entre as omoplatas, e arrastou-o à força pelo monte
acima. Quando alcançou o Range Rover, viu Nastiya e Paddy descerem a outra encosta para se juntarem a ele. Paddy carregava o outro cativo sobre o ombro, como um
bombeiro em serviço.
Quando chegou à vedação, atirou o fardo por cima da rede de arame e bradou a Hector: - Já tiveste oportunidade de cheirar bem esse teu jovem amigo simpático?
- Podes crer que sim - respondeu Hector. - O meu cheira a alho. E essa tua beldade?
- Tresanda ao mesmo. - Paddy ficou com um ar sério.
- Que mais tem um cheiro parecido com o do alho? Relembra-me, por favor - pediu Hector.
- Não será o fósforo branco de uma granada incendiária quando arde? -- aventou Paddy.
Hector estalou os dedos. - É isso! - Voltou a torcer o braço do homem com força. - Ora bem, por acaso não andaram recentemente a pegar fogo a casas, ou andaram?
- A vítima guinchou de forma estrídula. - Vou interpretar isso como uma resposta afirmativa - disse Hector, atirando-o pela porta aberta do carro como se fosse uma
trouxa.
Paddy trepou a vedação e arrastou o segundo homem pelos calcanhares para fora da valeta; alçou-o no ar com ambas as mãos e atirou-o para o banco traseiro do Rover,
para cima do companheiro, e depois Hector fechou a porta com força e trancou-a por fora.
-- Nazzy, faz o favor de ter a navalha à mão para o caso de algum desses encantadores rapazes ficar um pouco turbulento - advertiu-a Hector enquanto entravam
no carro. Antes de ligar o motor, Hector telefonou a Paul Stowe.
- Muito bem, Paul. Podes dar o serviço por terminado e voltar para casa. Já apanhámos os dois fugitivos.
Ligou a ignição e conduziu com descontração na direção de Brandon Hall. Quando cruzou a ponte sobre o rio Test e atravessou os portões principais da propriedade,
não seguiu diretamente para a mansão, mas virou à esquerda e avançou pela estrada de terra batida em direcção ao Velho Celeiro. Este edifício renovado era usado
para almoços festivos nos dias de caça. Ficava quase a um quilómetro da mansão, ocultado por árvores. Hector estacionou do lado do edifício mais afastado da estrada
principal. Assim ninguém conseguiria ver ou ouvir o que estivesse a acontecer no interior.
Enquanto Nastiya seguia à frente para destrancar o portão da entrada e ligar as luzes no celeiro, Hector e Paddy arrastaram os dois cativos do banco traseiro do
Rover e entraram no edifício espaçoso.
- Mantém-te de olho nos nossos reféns, Paddy - disse Hector, apesar de perceber que tinham perdido por completo a capacidade de lutar. Aproximou-se da fila de armários
na parede do fundo do celeiro e voltou com uma grossa bobina de cabo elétrico amarelo e um alicate de cortar arame. Amarrou cada cativo a uma cadeira de espaldar
direito encostada à mesa, deixando-lhes apenas os braços feridos livres. Fê-lo com a habilidade de um perito. Ambos ficaram completamente imobilizados e impotentes.
- Muito bem, ponham os braços livres em cima da mesa, à vossa frente - ordenou-lhes. Como eles hesitaram, Hector estendeu o braço ao comprido da mesa e agarrou
um deles pelo pulso. Torceu-lho sem piedade. O homem gritou e o rosto sob o capuz do blusão ficou branco como a cal. Começou a escorrer-lhe suor do queixo e da testa.
- Obedeçam! - insistiu Hector.
- Está bem! Está bem! Acalma-te, pá - balbuciou o sujeito que tinha a língua lacerada, a qual inchara até lhe encher a boca. Estendeu cautelosamente o braço para
Nastiya, que estava inclinada sobre a mesa e virada para ele. Nastiya prendeu-lhe o pulso inchado com um laço de cabo amarelo e apertou-o com força.
- Caramba, pá! - guinchou. - Queres-me matar?
- Deixa-me só dizer-te umas coisinhas que precisas de saber, camarada - disse ela. - Primeiro, continuo a não gostar nada dessa tua linguagem imunda. Segundo,
não me chames pá. Terceiro, sim, ia dar-me um grande prazer matar-te. Faz-me lá o favor de me dar um pretexto para o fazer.
O segundo cativo tinha observado o que acontecera ao companheiro e apressou-se a cooperar, estendendo o braço ferido a Paddy sobre a mesa, sem a mínima objeção.
Paddy amarrou-lhe o pulso com o cabo.
Hector postou-se atrás dos dois prisioneiros e puxou-lhes os capuzes sobre os ombros, expondo-lhes as cabeças. Depois aproximou-se do outro lado da mesa e colocou-se
entre Paddy e Nastiya. Observou por momentos os dois cativos à sua frente.
Ambos teriam vinte e muitos anos ou talvez trinta e poucos; ambos eram brancos. Contara que fossem da mesma raça que os homens que tinham assassinado Hazel.
A cor da pele não significa nada, pensou. Alguns dos piores suínos que conheci eram brancos; e alguns dos melhores homens eram negros.
Estudou o homem que Nastiya apanhara. Era atarracado; cabelo desgrenhado e escuro; traços de um eslavo comum; pústulas amarelas e reluzentes cicatrizes de acne
no queixo e nas faces. Estava a suar imenso devido à dor. Não conseguia tirar os olhos de Nastiya, que o sujeitava pela ponta do cabo e lhe retribuía o olhar com
frieza.
O segundo homem era alto, de constituição esgalgada e tez macilenta. O cabelo arruivado começava a escassear. Os olhos eram vivazes e de um castanho-pálido e
os dentes tortos e descolorados. Hector podia sentir-lhe o bafo do outro lado da mesa.
- Muito bem, cavalheiros. Agora, façam o favor de prestar atenção. Chamo-me Hector Cross. Sou a pessoa que vocês tentaram matar ao incendiarem a casa. A minha
filha é a Catherine. Ainda não passa de uma bebé. Também a tentaram matar. Por conseguinte, não estou muito disposto a ser compreensivo convosco.
- Deu-lhes alguns segundos para digerirem as suas palavras e depois prosseguiu: - Vão ter de me responder a algumas perguntas, quer gostem ou não. Se responderem
com a verdade, ganham dez pontos como bons escuteiros. Se me contarem petas, volto-vos a torcer o braço ferido. Sabes o que é uma peta, carinha laroca?
- Uma mentira - murmurou o homem. Um pequeno fio de sangue escorreu-lhe do canto da boca. Lambeu-o. A língua, profundamente lacerada pelos dentes e inchada, começava
a ficar azulada.
- Correto. E agora, podemos começar o jogo? - Não esperou uma resposta. Tirou as pontas dos cabos amarelos das mãos de Paddy e de Nastiya e segurou uma em cada mão.
- A primeira pergunta é para ti. - Olhou para o sujeito de dentes podres. - Sabias que o teu hálito tresanda como tudo?
- Não tresanda nada.
- Resposta errada - disse Hector, puxando o cabo. Os ossos partidos do cotovelo estalaram como dados a ser lançados e o tipo gritou. Debateu-se como um selvagem
para se soltar das amarras.
Acalmou por fim, ofegante e a soluçar.
Hector repetiu a pergunta numa voz pausada. - Vamos lá esclarecer isto. Tresanda ou não?
- Sim! Sim! Tresanda.
- Ótimo. Vou passar a chamar-te Bafo de Onça. - Virou-se para o outro: - Sabias que tens borbulhas?
- Sim. 'Tá bem. Tenho algumas.
- Muitas, queres tu dizer, não? Seja como for, é esse o teu novo nome. Ora diz-me lá, ó Espinhas. Onde é que arranjaram as granadas incendiárias?
Os olhos escuros do homem desviaram-se. Hector ergueu a mão esquerda que segurava a ponta do cabo.
- Rápido - advertiu-o.
- Foi o preto que mas deu.
- Que resposta tão interessante, mesmo apesar de ofender a minha consciência política. - Hector sorriu, um gesto que produziu um efeito mais ameaçador do que
um simples carregar do cenho. - E se nos referíssemos a esse teu fornecedor das granadas como o Grande Farsola Africano, ou simplesmente o Farsola?
- Como queira. - O Espinhas encolheu os ombros e depois estremeceu devido à dor que esse gesto lhe causou.
- Como se chamava ele, esse tal Farsola?
- Não sei.
- Cuidado! - disse Hector, mostrando-lhe a ponta do cabo que segurava.
- Juro pela alma da minha mãe, que Deus a tenha. Não sei o nome dele. Não lho perguntei e ele também não mo disse.
- Como é que o conheceste?
- Uma pessoa para quem trabalhei uma vez deu-lhe o meu nome.
- Que tipo de trabalho fazias antes? Trabalhos sujos?
- Sim, despachámos um velhote que devia uns dinheiros e não pagou. Tipo, para servir de exemplo a outros.
- Como se chamava esse velhote e onde é que o despacharam?
- Chamava-se Charley Bean, acho, mas não me lembro da morada; era lá para os lados de Croydon. - Virou a cabeça para poder olhar para o companheiro. - Onde é
que foi, Bonzo?
- Número dezasseis em Pulson Street - murmurou o Bafo de Onça.
- Até agora estão-se a sair bem. - Hector aplaudiu a atuação deles. - O que é que usaste para despachar esse Charley Bean? Uma navalha?
- Ná. Um taco de golfe.
- E onde é que arranjaste o taco?
- Num saco atrás da porta do quarto dele.
- Era um madeira ou um ferro cinco? Quantas tacadas? - perguntou Hector. O Espinhas exibiu um olhar inexpressivo.
- Esquece. Estava só a divertir-me um pouco contigo - consolou-o Hector. - Quem vos contratou para matar o Charley Bean e pôs o Farsolas em contacto convosco?
- Não me consigo lembrar.
Hector deu um forte puxão no cabo amarelo e o Espinhas uivou e começou a suar de novo. - Pensa! - instigou-o Hector.
- Um corretor de apostas chamado Aaron Herbstein - soluçou ele. - Organiza apostas de lutas de cães nos estádios de Romford e Sunderland.
- Obrigado, Espinhas. Como é que esse corretor, o Herbstein, marcou o rendez-vous entre vós e o Farsolas?
- O randê quê? - O Espinhas parecia desorientado.
- O encontro. Onde e como se encontraram?
- Esperámos à saída da estação do metro em Brixton Road, às nove da manhã do domingo passado, e ele apareceu de carro para nos levar.
- Que carro?
- Um Ford preto.
- Fixaste a matrícula?
- Não me dei ao trabalho.
! - Porquê? - perguntou Hector, e o Espinhas encolheu os ombros.
- Era roubado, né?
- Claro que era. E então, entraste para o banco traseiro desse Ford e olhaste para o condutor. Diz-me o que viste.
- Vi um preto com uma máscara engraçada - respondeu o Espinhas.
- Uma máscara do Richard Nixon?
- Ná, era uma máscara da Dolly Parton.
- Como sabias que ele era negro?
- Estava a ver-lhe a nuca. Era preta, né?
- Que outras coisas reparaste nele?
- Bem, era um muzzie.
- Um muzzie? O que é isso?
- Um muçulmano. Um háji, um daqueles que fazem a peregrinação a Meca.
- Conseguiste perceber isso tudo só de lhe ver a nuca?
- Ná, ele tinha uma tatuagem de um Maalek.
- O que é um Maalek?
- Um anjo. Um anjo muzzie. São um bando e chamam-se Maaleks uns aos outros porque se julgam guerreiros de Alá, ou qualquer coisa desse género. Tatuam esse símbolo
neles próprios e acham que isso faz deles uns gajos muito importantes. Mas não passam dum bando de soldados de rua a tentarem ganhar uns trocos como o resto de nós.
Geralmente lutamos contra eles pelo território. Mas desta vez estávamos a fazer negócios. Este tal Maalek propôs-nos cinco milonas para deitar fogo a uma velha casa
grande em cascos de rolha.
- A minha casa - disse Hector.
- Lamento, chefe. Se eu soubesse, tinha-lhe dito para enfiar as cinco milonas bem dentro. - O Espinhas apressou-se a continuar: - Eu sabia que ele nos estava
a subcontratar. É o que esses Maaleks merdosos fazem. Alguém lhes oferece dez milonas por um trabalhinho e depois vêm-nos propor o mesmo trabalho por cinco. São
uns merdosos, é o que é.
- E portanto aceitaste fazer o trabalho?
- Quem me dera não ter aceitado - murmurou o Espinhas num tom de arrependimento. - Não sabia nada acerca de si nem da sua filha. Mas, ainda assim, cinco milonas
é muita massa. Dá pra comprar muita droga pra fumar. Este tal Maalek disse-me que a casa pertencia a um velhote que era demasiado mole para oferecer resistência.
- Pois, mas agora olha-me só para ti, carinha laroca. - Hector deu um esticão duplo no cabo.
O Espinhas uivou de dor, a sua voz alquebrou-se e começou a choramingar. - Não faça isso, por favor. Estou a contar-lhe tudo. Não volte a fazer isso, por favor.
- Corriam-lhe lágrimas pelas faces, serpenteando lentamente entre as pústulas. Não tinha nenhuma mão livre para as limpar e pingaram em cima do blusão.
- Não, ainda não me contaste tudo, Espinhas. Fala-me mais acerca dessa tatuagem do Maalek. Descreve-ma.
- Era mais ou menos do tamanho de uma moeda de dez cêntimos. Parece-se com um verme a rastejar pra fora de um pedaço de merda, todo muito torcido. Acho que é
uma espécie de escrita muzzie. Nem todos eles têm permissão para a usar, apenas os manda-chuvas de cada grupo.
- De que cor é a tatuagem?
- Cada grupo usa cores diferentes.
- O teu homem. O tipo que te deu as cinco milonas. De que cor era a dele?
- Ele é americano, né?
- Como sabes isso?
- Pra começar, ele falava com sotaque de ianque. Segundo, a tatuagem dele é vermelha. O Bonzo e eu verificámos isso antes de aceitarmos o contrato. Vermelho significa
o grupo da Califórnia.
- E o que é que ele anda a fazer deste lado do Atlântico?
- Sei lá! Deve ser um dos Capo de Capos, tipo o Robert de nos filmes ou uma cena parecida.
- Não sabes o nome dele? - insistiu Hector.
O Espinhas abanou a cabeça com veemência. - Não! É tudo que sei.
- Onde estão as cinco mil libras que eles te deram para fazeres o trabalho?
- Não as tenho aqui comigo.
- Perguntei-te onde estão e não onde não estão.
- Dei-as à minha garina pra mas aguardar.
- Ai tens namorada? Não posso propriamente aplaudir os gostos dela. Seja como for, este é o dia de sorte dela. Tem cinco milonas e nunca mais vai ter de voltar
a ver essa tua cara nojenta. Porquê? Por- que se nós não te matarmos, os bófias enfiam-te atrás das grades por vinte ou trinta anos, ou talvez mais. Sabias, não
sabias? Fogo posto e homicídios múltiplos, né? - disse, imitando o sotaque do sujeito.
- Vocês, cavalheiros, encontram-se entre a espada e a parede.
Ambos olharam para ele com uma resignação embrutecida.
Hector virou-se para Nastiya. - Não têm muito mais para nos dizer que precisemos de ouvir. Que achas que devíamos fazer com eles, Nazzy, minha querida? Como se eu
não soubesse já.
- Acho que devíamos matá-los. Deixa-me ocupar-me do tipo que tem borbulhas. Ele disse-me umas coisas muito feias. Ainda me sinto muito, muito zangada.
- Deve ser muito divertido de ver. - Hector virou-se para Paddy. - E tu, em que votas?
- Não temos tempo para desperdiçar com este monte de esterco. Façamos aquilo que a Nazzy sugere e não percamos mais tempo.
Hector fingiu refletir na situação. Ambos os cativos lhe observaram o rosto com ansiedade. Hector soltou por fim um suspiro.
- É, definitivamente, uma sugestão muito atrativa. Mas ia dar-nos muito trabalho a limpar tudo depois. Não é fácil fazer desaparecer um par de carcaças humanas.
Acho que devíamos ser caridosos e dar-lhes algum tempo para pensarem bem e arrependerem-se dos pecados, tipo vinte ou trinta anos a desfrutar da hospitalidade de
Sua Majestade. Deve ser o suficiente. - Pegou no telemóvel e marcou o 112 dos serviços de emergência. Duas viaturas despachadas da esquadra da polícia em Winchester
chegaram a Brandon Hall menos de quarenta minutos depois.
Os agentes policiais foram muito amáveis e atenciosos com Hector. Estavam bem cientes da posição dele na comunidade e do homicídio de Hazel. Trataram de agilizar
todo o processo de detenção, de modo a não exacerbar o peso do seu luto. Ainda assim, foi uma noite longa. Em primeiro lugar, porque Hector insistiu em ficar em
Brandon Hall até se saber do paradeiro de todos os seus empregados. Foi só depois da meia-noite que os bombeiros encontraram o quarto e último corpo entre as cinzas
e os escombros.
Era Reynolds, o mordomo, que tinha ficado encurralado pelas chamas na sua própria copa. Nos momentos finais, antes de o fumo o asfixiar, cobrira a cabeça com
uma manta ignífuga do estojo de emergências. Tinha o rosto apenas superficialmente calcinado e ainda reconhecível, mas do pescoço para baixo não passava de uma massa
carbonizada, toda enegrecida e encarquilhada.
Depois de os bombeiros terem enfiado o cadáver num saco mortuário verde, Hector e os companheiros seguiram no Range Rover atrás das viaturas da polícia até Winchester,
para prestarem os seus depoimentos por escrito.
Os dois detidos foram advertidos, acusados e trancados nas celas de detenção. De seguida, Hector, Paddy, Nastiya e Paul Stowe foram levados para salas de interrogatório
diferentes para prestarem os seus depoimentos.
Foi uma tarefa entediante, mas tinham ensaiado a sua versão dos acontecimentos e tudo correu sem problemas. Hector conseguiu até que ficasse registado por escrito
aquilo que os perpetradores tinham confessado relativamente ao contrato anterior para matar um tal Charles Bean, residente no nº 16 de Pulson Street. O sargento-detetive
que estava a tomar o depoimento de Hector escusou-se para ir consultar algo no computador no seu próprio gabinete e voltou passados cerca de dez minutos. A sua expressão
era sombria enquanto se sentava virado para Hector.
- Bate certo com os Registos Centrais. Mesmo nome e mesmo endereço; cinco de março há dois anos. Homicídio por resolver.
Ademais, Nastiya entregou a navalha de ponta e mola que retinha na sua posse, declarando como o arguido a atacara com essa mesma e como ela se vira obrigada a defender-se,
desarmando-o. O agente que estava a anotar o depoimento dela olhou-a com uma expressão de respeito e admiração.
- Deixou-lhe o pulso assim com um único pontapé?
- Tive o cuidado de não usar força excessiva - explicou Nastiya.
- Referia-me ao facto de a senhora ser tão baixinha e ele tão corpulento! - Poucos homens eram capazes de resistir à pequena russa quando ela se punha a tremular
as pestanas e assumia uma atitude de inocência infantil.
23
Eram duas da madrugada quando finalmente saíram da esquadra. Já estavam sem comer e sem dormir há mais de vinte e quatro horas, mas continuavam a sentir os efeitos
do pico de adrenalina. Hector parou no primeiro McDonald's que encontrou na estrada e voltou com um enorme saco cheio de cheeseburgers duplos e grandes copos de
cartão com café. Mais refortalecidos, a sua conversa a caminho de casa no nº 11 foi animada enquanto tentavam discernir algum sentido nos dois ataques a Hector e
à sua família, e no papel que o misterioso líder mascarado do gangue californiano desempenhara em ambas as tentativas de assassinato.
- Ao que tudo indica, parece que era ele quem estava a conduzir a furgoneta. E não há dúvida de que é um tipo importante logo a seguir à cadeia de comando. Os
dois que seguiam na moto e mataram a Hazel, mais estes dois que esta noite enfiámos atrás das grades, não passam de arraia-miúda. Não tinham a mínima ideia porque
estavam a fazer aquilo que fizeram. Não sabiam quem estava a dar as ordens. Limitaram-se a segui-las cegamente. E isto, por si só, já é significativo - postulou
Hector.
- De que forma? - perguntou Paddy.
- Ora bem. Na primeira tentativa, estavam em vantagem em relação a mim. Podiam ter-me despachado com bastante facilidade, mas não aproveitaram a oportunidade.
Puseram-me fora de cena, ou pelo menos tentaram fazê-lo. É mais que certo que tinham ordens para matar unicamente a Hazel. Não estavam enteressados em mim. Porquê?
Conseguem explicar-me porquê? É isso que me preocupa.
- É difícil saber a resposta a isso - admitiu Paddy.
- Se estivessem a agir de forma lógica, deveria ter sido eu o principal e não a Hazel. Fui eu que matei o chefe do clã, o
Tippoo Tip. E também eliminei pelo menos cinco dos seus, incluindo o Kamal e o Adam, que eram os seus preferidos, eu que montei a operação Cavalo de Tróia que lhes
destruiu a frota de barcos piratas. Deveria ter sido eu o número um da lista.
- A Hazel foi tão responsável como tu; ou talvez ainda mais. ela quem passava os cheques. Tu não passavas de um simples assassino a soldo dela. Além disso, foi ela
quem, na verdade, premiu o gatilho na execução do Adam - frisou Paddy.
- É verdade - concordou Hector. - Mas aqueles cabrões nunca chegaram a saber isso. E mesmo que soubessem ter-nos-iam matado aos dois. Porque é que andavam a persegui-la
só a ela?
- O Hector tem razão, Muslaki. - Hector achava sempre divertido quando Nastiya chamava "Doçura" a Paddy, pois Paddy 'eria ser tudo menos isso. - E quanto à noite
passada? Quem iriam eles despachar realmente com as bombas incendiárias?
Hector ou a nossa pequena Catherine?
- Casaste com uma bonitona toda esperta - comentou Hector. - Ela tem toda a razão. Porque é que a Besta mudou de repente de ideias na noite passada e decidiu que
afinal queria vingar-se de mim?
- E porque é que decidiram lançar outro ataque, precisamente na altura em que os jornais se puseram a falar da existência da nossa
Katherine? - Nastiya ostentava um ar presunçoso.
- Estás a dizer que na noite passada eles andavam atrás da Katherine e não do Heck? - O tom de Paddy era cético. - Isso não faz sentido para mim. Que poderiam
eles ganhar em queimar viva uma criança recém-nascida?
A discussão perdurou ao longo de todo o caminho de regresso a Londres. Não paravam de andar em círculo, sem chegarem a conclusão nenhuma; lançavam as teorias
mais estapafúrdias e punham-se a rebater os argumentos uns dos outros, até acabarem por concordar que nenhuma delas fazia sentido. A Besta tinha agido de forma irracional,
e isso, por si só, não fazia sentido. A Besta nunca agia de forma irracional.
Enquanto atravessavam a parte ocidental de Londres, Hector recapitulou as conclusões: - A única coisa de que tenho a certeza é que temos de levar a Catherine
para fora de Inglaterra. Só quando a tivermos bem escondida no último andar do edifício Seascape Mansions em Abu Zara, com um pelotão dos melhores operacionais do
Paddy a vigiá-la, é que estarei pronto para a largar.
- E ir para onde e fazer o quê? - perguntou Paddy. - Quais são os teus planos, Heck?
- Ir com o Tariq a Meca; encontrar esse último descendente do clã dos Tippoo Tip; capturá-lo e levá-lo para um lugar seguro onde o possa interrogar e avaliar.
Depois, se o achar culpado, volto a despachá-lo para arder nas chamas do inferno de onde veio.
Não demorariam mais do que uns dias a fazer as malas e preparar tudo para se mudarem para Abu Zara. As necessidades pessoais de Hector foram facilmente satisfeitas,
pouco mais do que uma escova de dentes e uma muda de roupa interior. A Cross Bow Security dispunha de todo o equipamento de que ele poderia precisar para a Fase
Dois da operação, armazenado nas instalações da Bannock Oil no meio do deserto, cerca de cento e sessenta quilómetros a sul da Cidade de Abu Zara.
O que o inquietava mais era aquilo que mais desconhecia: os aprovisionamentos e a logística para cuidar de um bebé. Convocou a sua especialista residente, Bonnie
Hepworth. Apesar da hora tardia, ela acorreu prontamente e manteve-se de roupão à frente da escrivaninha dele, com uma expressão expectante, não muito diferente
da de um cachorro à espera de um osso.
- Quer-me, senhor Cross?
- Queria falar consigo - disse Hector, reformulando cuidadosamente a pergunta dela. - Bonnie, sabe onde fica Abu Zara?
- Isso é um hotel, senhor Cross?
- Nem sequer remotamente. Tentemos de novo. Sabe onde ficam os Emirados Árabes Unidos?
- Bem, mais ou menos. Já ouvi falar desse lugar, mas nunca lá fui. - Pareceu ficar hesitante. - Algures entre o Egito e a Índia acho.
- Já está mais perto - elogiou-a. - Bem, é para aí que nós vamos, você e a Catherine também.
- Meu Deus! Trabalhar para si não tem nada de entediante. Uma pessoa nunca sabe o que vai acontecer de seguida.
- O que vai acontecer de seguida é que vai elaborar uma lista de tudo aquilo de que você e a Catherine possam precisar ou querer ao longo dos próximos seis meses.
Devo avisá-la que não é fácil arranjar antibióticos lá nos Emirados, portanto se precisar de alguma receita médica tem aqui o cartão do meu médico.
- Entregou-lho. - Peça tudo aquilo de que precisar, faça as malas
i deixe tudo pronto para partir dentro de três dias. - Calou-se e depois prosseguiu: - Tem o passaporte em dia?
- Oh, sim, senhor. Fui a Paris na última Páscoa com algumas das colegas lá do hospital. Tive de tirar o passaporte.
- Ótimo. Não se esqueça de o guardar na mala também.
- Sabia que as duas amas mais jovens já dispunham dos documentos necessários para viajar, pois Hazel certificara-se desse pormenor antes de as contratar.
Fez deslizar o seu cartão de crédito preto Harrods ao comprido do tampo da escrivaninha para Bonnie. - Pague tudo com isto. E peça para entregar tudo aqui. -
Ela apressou-se em direção à porta, mas Hector chamou-a. - Decidi que vamos mudar a Catherine para o meu quarto até partirmos para Abu Zara.
- Oh, céus! - Bonnie pareceu ficar perturbada. - E quem lhe vai dar o biberão, e mudar-lhe as fraldas?
- Eu faço isso - tranquilizou-a Hector.
- Eu podia ficar com vocês os dois, só para ajudar. Não me importava nada - ofereceu-se.
- Obrigado, Bonnie. Mas tenho a certeza de que nós os dois conseguimos desembaraçar-nos bem sozinhos.
Hector estava a contar que a tarefa de ama noturna que se impusera a si mesmo fosse pesada, mas veio a revelar-se um deleite e não uma obrigação. Ajustou a lâmpada
de leitura na mesinha de cabeceira para emitir uma luz suave sobre o rosto de Catherine quando a segurou no colo. Enquanto ela mamava da tetina do biberão, Hector
deliciou-se com o cheiro e a sensação de contacto do minúsculo corpo da bebé. Estudou-lhe o rosto à procura de vestígios de Hazel e convenceu-se de os ter encontrado
na forma da boca e do pequeno queixo. De certa forma, isso atenuou-lhe o sentimento de perda e de solidão.
24
Conhece o teu inimigo. Estuda-o demorada e aprofundadamente e ataca-o com a força e o veneno de uma cobra-real. Era esse o princípio de ação de Hector Cross.
Na manhã seguinte, ainda antes de o dia despontar, Hector levantou-se da cama e tomou um duche. Depois vestiu um roupão e ligou para o quarto de criança para chamar
Bonnie.
Enquanto lhe entregava Catherine, disse-lhe: - Organizei tudo para que a senhora O'Quinn passe o dia consigo e com a Catherine.
- Nastiya tinha aceitado o papel de guardiã da bebé, com um sorrisinho de contentamento. Com Catherine entregue aos cuidados das duas mulheres, Hector poderia ocupar-se
dos seus outros afazeres sem ficar apreensivo. - Vou estar fora durante algum tempo. Mas a senhora O'Quinn estará aqui para garantir que tudo está em segurança e
sob controlo durante a minha ausência. Não terá que se preocupar com nada.
Ainda de roupão, desceu para o estúdio. Havia uma enorme freira de mármore à frente da escrivaninha, com um friso ornado de cinco cabeças de leão que se estendia
por baixo da cornija. Carregou na cabeça central e, quando ouviu o clique abafado do mecanismo escondido, rodou-a no sentido dos ponteiros do relógio. Ouviu-se outro
clique e, após uma breve pausa, a estante de um dos lados ia lareira girou silenciosa e suavemente, revelando uma estreita porta de aço. Hector inseriu a palavra-passe
no teclado numérico da fechadura eletrônica. A porta rodou e ele entrou no exíguo compartimento. Sucessivas filas de prateleiras ocupavam a parede do fundo, desde
o chão até ao teto. Cada prateleira exibia uma ordenada fileira de caixas de cartão, todas elas com uma etiqueta críptica num dos lados a descrever o conteúdo. A
maior parte das caixas continha armas ou outros itens delicados: tudo, desde facas e cassetetes, até à sua pistola automática favorita, a Beretta de 9mm, mais duzentos
cartuchos. Segundo a lei britânica, quase todas aquelas armas eram de posse estritamente proibida. Havia, inclusive, uma caixa onde se lia "Passaportes", que continha
mais de trinta desses documentos, provenientes de diversos países, com a sua fotografia mas com nomes que iam desde Abraham a Zakariyya. Estendeu os braços até à
prateleira de cima e baixou a caixa assinalada "Roupa árabe".
Não pegou em mais nenhuma caixa. Fechou a porta e trancou-a, ativando depois o mecanismo que fazia rodar a prateleira. Levou a caixa para o quarto de vestir.
Despiu-se, ficando apenas em roupa interior, e durante os minutos seguintes usou uma bisnaga de maquilhagem para escurecer com subtileza os traços já de si trigueiros,
até lhes conferir a tez de um habitante do Médio Oriente. O restolho denso e escuro da barba dava-lhe um ar médio-oriental suficientemente convincente.
Vestiu a túnica dishdasha branca de corpo inteiro que tirou da caixa e atou o keffiyeh em volta da cabeça, de modo a que a ponta do lenço lhe caísse sobre os
ombros. Trocou o Rolex de platina por um simples Seiko de aço inoxidável, calçou um par de sandálias abertas de cabedal, pôs um par de óculos escuros de aviador
e viu-se ao espelho.
Conseguirá passar despercebido, decidiu. O seu árabe era fluente e coloquial. O seu conhecimento intrínseco dos costumes e dos usos orientais era impecável. Poderia
passar realmente por um nativo muçulmano, quer em situações sociais descontraídas quer no desempenho dos rituais religiosos tradicionais.
Desceu no elevador privado até à garagem subterrânea. Um dos veículos aí estacionados em segunda fila era um pequeno sedã um pouco amolgado e de aspeto negligenciado.
A aparência era deliberadamente enganadora. Hector equipara-o com vidros fumados, suspensão de corrida de alto desempenho e um potente motor novo, capaz de alcançar
velocidades surpreendentes. Usava-o para ocasiões especiais como a presente, quando não desejava chamar as atenções sobre si. Chamava-lhe o seu Q-car, inspirado
nos navios Q-shzps que a Marinha Real usara durante a Segunda Guerra Mundial para enganar os submarinos U-boots nazis até ficarem ao alcance do seu poder de fogo.
Hector ligou-o e durante alguns segundos escutou, satisfeito, o rugido grave do motor, subindo depois a rampa de acesso e cruzando as portas metálicas deslizantes
em direção à rua. Era sexta-feira e, mesmo àquela hora, o trânsito já era intenso e frenético. A sexta-feira era também o dia em que todos os muçulmanos tinham de
cumprir o dever sagrado de assistir às orações. Encontrou uma zona de estacionamento em Regent's Park, a poucas centenas de metros da imponente mesquita. Saiu do
carro e dirigiu-se para lá. Deparou com um fluxo constante de fiéis que se apressavam na mesma direção que ele. Todos envergavam trajes tradicionais. Hector era
mais um no meio da multidão quando entrou no recinto da mesquita. Não era a sua primeira visita, de modo que sabia orientar-se em redor do edifício. Primeiro sentou-se
junto dos outros homens no comprido banco de betão, virado para a fileira de torneiras, para realizar as suas abluções. Lavou as mãos e os pés e depois a cara. Também
enxaguou a boca.
Ainda faltava bastante tempo para o início das orações, mas a área demarcada do salão das orações, o masjid, já estava apinhada, com sucessivas filas de vultos
ajoelhados e trajados de branco. No entanto, ainda havia alguns lugares vazios perto do fundo. Hector ajoelhou-se nos tapetes de oração ali colocados, com os ombros
quase tocando nos seus vizinhos de ambos os lados.
As orações começaram e Hector executou a apaziguadora sequência de prostrações e movimentos de resposta. Não era um ateu; estivera tantas vezes próximo da morte
que percebia como a vida é fugaz e inconsequente. Acreditava profundamente que devia haver alguma força controladora por trás do assombroso funcionamento do universo
e da imensidão do infinito. Neste sentido, era um crente; contudo, não se comprometera com nenhum credo em particular. Queria ser livre para poder escolher o melhor
das doutrinas de cada uma das fés que o atraíam e adaptar esses elementos à sua visão particular de Deus e do universo. Para ele, tanto o cristianismo como o islamismo
estavam cravejados de inestimáveis diamantes de beleza e verdade. Muitos deles idênticos. Valorizava ambas as religiões por igual. Rezava agora com total sinceridade
e deu por si a orar especialmente por Hazel, onde quer que ela estivesse. Sentiu-se rejuvenescido quando as orações terminaram.
Saiu do recinto principal e vagueou pelos claustros adjacentes. Passou por alguns dos cubículos onde os mulás da mesquita aguardavam por membros da congregação
que desejassem orientação espiritual ou conselhos. Encontrou o homem que procurava, perto da extremidade da segunda colunata, um mulá cujos olhos, rodeados de finas
rugas, eram penetrantes e inteligentes, e cuja barba era branca por baixo da tinta corante avermelhada. Todo ele transparecia a ideia de quietude, como se estivesse
ali imóvel há muito tempo. Hector entrou no cubículo e fez uma vénia.
- As-salamu alaykum!
- E a paz também contigo!
Trocaram saudações e depois o mulá indicou-lhe o tapete estendido à frente da mesa baixa sobre a qual repousava um exemplar já gasto do Corão, bem como outros
textos e exegeses religiosos. Hector sentou-se de pernas cruzadas à frente dele e conversaram de modo informal durante algum tempo. O mulá reconheceu-lhe o sotaque
quase de imediato.
- Presumo que venha da África Oriental, mais precisamente da Somália.
Hector abriu as mãos num gesto de aquiescência. O seu árabe tinha sido aprimorado por Tariq Hakam, que era oriundo da Puntlândia, e Hector adquirira o sotaque
dele. - É assim tão óbvio, xeque? - disse ele, usando o termo de respeito. - Vivi muitos anos nesse país.
O mulá esboçou um sorriso condescendente. - Em que posso ajudá-lo, meu filho?
- Pai, estou a planear fazer a peregrinação a Meca em breve. Inshallah!
Nota de Rodapé: Também escrito Salaam Aleikunr. "Que a paz esteja sobre vós".
Fim de nota.
- Mashallah! Assim Deus o permita! - entoou o velho mulá. - Ouvi falar de um mulá nesse país que outrora pregava nesta mesma mesquita. As pessoas que o ouviram disseram-me
que, apesar da sua juventude, é um homem de grande santidade e sabedoria. Gostava de saber se conheceu esse homem quando ele estava cá e se crê que o tempo e os
custos de alongar a minha estadia em Meca para o ouvir seriam justificados. Também gostaria de saber se aquilo que ele prega é conforme aos ensinamentos do profeta
Maomé.
- Quem é esse mulá, meu filho? Diz-me o nome dele, por favor.
- Chama-se Aazim Muktar... Antes que Hector pudesse completar a frase, o rosto do velho iluminou-se, deleitado. Bateu as palmas das mãos e exclamou: - Em nome de
Alá e do seu abençoado profeta, que ambos sejam louvados para todo o sempre. Estás a falar, nada mais, nada menos, de que de Aazim Muktar Tippoo Tip.
Hector ficou surpreendido com o fervor da reação dele. - Conhece-o?
- Conheço-o como se fosse um dos meus próprios filhos, e desejaria verdadeiramente que fosse meu filho.
- Então admira-lo, Pai Ancião? - É como se Aazim Muktar tivesse sido tocado pela mão de Gabriel, o primeiro de todos os anjos de Alá. - O mulá baixou a voz em reverência.
- Foi-lhe dado o dom de ver muito mais além daquilo que os outros homens conseguem ver. Possui a sabedoria para compreender de forma clara o que é invisível aos
demais. O seu coração está preenchido de amor por Alá e pelos seus semelhantes.
- Então acha que me deveria esforçar por o ouvir pregar? - Se perderes essa oportunidade, irás arrepender-te até ao fim da tua vida. A voz dele é como a música do
mais requintado instrumento, como o suspiro do vento nos ramos dos cedros no monte Horeb, a única montanha do único Deus.
Nota de rodapé:Também conhecido como monte Sinai, situado no sul da península do Sinai, no Egito, e considerado uma região sagrada pelas três religiões o cristianismo,
judaísmo e islão.
Fim de Nota.
- Descreva-me a sua aparência, Antigo Ancião, para que eu o possa reconhecer quando o vir.
O mulá uniu as pontas dos dedos e franziu os lábios enquanto ponderava o pedido, e depois começou a falar: - É alto, mas não demasiado alto. É magro e move-se
com a graciosidade de um leopardo. Tem a testa larga e alta. A barba ainda não foi tocada pela geada da idade. Tem um nariz firme, forte como o bico de uma águia.
O olhar é penetrante, mas gentil e desprovido de perfídia. Em suma, é gracioso mas não bonito.
De repente, e para grande surpresa de Hector, o mulá olhou à sua volta de um modo conspiratório e depois inclinou-se para a frente e baixou a voz: - Há muitos
que acreditam que este homem é o Mahdi; o Messias que, segundo as profecias, surgirá aquando do fim do mundo; o Redentor que irá estabelecer um reino de paz e retidão.
Quando o ouvires pregar, talvez venhas a concordar com essas pessoas. Se assim suceder, quando voltares para Londres deves vir falar comigo de novo.
Hector olhou-o. A visão do caminho que deveria seguir alterou-se lenta mas drasticamente.
Nada disto era tão simples como imaginara de início. Havia muitas camadas e profundezas ocultas.
25
Nessa noite, Hector, Paddy e Nastiya reuniram-se na sala de estar antes do jantar. Como habitualmente, os dois homens vestiam trajes de gala com condecorações,
ao passo que Nastiya usava o seu colar de diamantes aninhado no decote dos seios altos e apertados, com um brilho no olhar e de faces coradas. Enquanto Hector lhe
servia Dom Perignon num copo flauta alto, ela anunciou: - Os Bebés são uma coisa maravilhosa. Nunca me tinha dado verdadeiramente conta disso antes.
- Todos os bebés? - provocou-a Paddy. - Ou só um bebé em particular?
- Não sejas parvo. Só conheço um bebé. Ela é maravilhosa. Hoje dei-lhe o biberão e até lhe mudei a fralda. Nunca pensei ser capaz disso, mas a ama dela mostrou-me
como fazer. Pensava que aquilo me ia dar vómitos. Mas sabem uma coisa? Aquilo quase nem sequer tem cheiro.
- Olha a conversa, meu amor! Estamos prestes a desfrutar de um dos lendários jantares do Heck. Será que não podemos falar de um assunto mais apropriado do que
cocó de bebé? - protestou Paddy, apressando-se a mudar de tópico. - Falei com o príncipe Mohammed esta tarde acerca do arrendamento do apartamento no edifício Seascape
Mansions. Claro que o príncipe sentiu necessidade de me dizer que tinha outro inquilino interessado, com uma oferta melhor em cima da mesa. Andámos ali algum tempo
a negociar, aos avanços e recuos, mas no final consegui que ele baixasse em dez por cento o preço que pedia de início, e lá fechámos o acordo. O apartamento é teu,
Heck. A outra boa notícia é que só há outros dez inquilinos no edifício inteiro, e são todos ou membros da família real ou importantes ministros do governo de Abu
Zara. ou ambas as coisas. Ele afirma que a segurança é absolutamente rigorosa e a toda a prova.
- Podemos confiar na palavra dele quanto a isso?
- Não, Heck. Não confiamos na palavra de ninguém em relação a isso. Liguei ao Dave Imbiss assim que acabei de falar com o príncipe. - Dave era o braço direito
de Paddy e o perito em eletrônica na Cross Bow Security. - O Dave prometeu ir lá amanhã falar com a equipa dele, logo pela manhãzinha. Vão passar o apartamento a
pente fino, à procura de escutas eletrônicas e de quaisquer outras surpresas desagradáveis que alguém mal-intencionado possa ter colocado lá. O Dave vai instalar
sensores de movimento e de pressão munidos de alarmes silenciosos, câmaras de circuito fechado, leitores da íris e todos os outros equipamentos topo de gama. Nenhum
ser vivo conseguirá mover-se no último piso de Seascape Mansions. nem em nenhum outro lugar do resto do edifício, sem que o Dave saiba. Assim que chegarmos a Abu
Zara, o apartamento será uma verdadeira fortaleza eletrônica. - Aceitou o copo de uísque Jameson que Hector lhe serviu e sorveu um trago. Exalou os vapores antes
de perguntar: - E então, que conseguiste descobrir hoje lá em Regents Park que nos possa alegrar o coração?
- Infelizmente, muito pouco para te deixar a ti ou a mim tranquilos. Parece que o nosso alvo é um demagogo religioso com o poder de exaltar as emoções dos ouvintes
com a sua oratória inflamada. Alguns deles, ou a maioria, pensam que ele é o Mahdi.
Ambos olharam Hector fixamente, com expressões preocupadas e alarmadas. Paddy falou pelos dois: - Em nome de tudo o que é sagrado, Heck! Não acreditas nessa treta,
pois não?
- Aquilo em que acredito não interessa, meu caro Padraig.
O essencial aqui é que existe uma vasta multidão que acredita que sim.
Nota de Rodapé: Padraig, nome irlandês equivalente ao inglês Patrick e derivado do latim Patricius. O seu diminutivo mais comum é Paddy.
Fim da nota.
A vinda do Messias é uma crença comum que atravessa o judaísmo, o islão e o cristianismo. A única divergência diz respeito identidade dele e a quando virá, ou
se já veio e partiu. Neste caso particular, Aazim Muktar enclausurou-se no lugar mais sagrado do islão. Nada mais, nada menos do que em Meca, o lugar onde nasceu
o próprio profeta Maomé. A cidade é guardada por uma enorme multidão de fiéis e devotos. Somente os verdadeiros crentes no islão são autorizados a entrar na cidade,
sob pena de morte. Ao que parece, agora muitos destes crentes também acreditam com um fervor fanático que Aazim Muktar é o Mahdi. Irão protegê-lo com as próprias
vidas. E arrancarão com as próprias mãos os braços e as pernas àqueles que se atreverem a levantar um dedo contra ele.
Calou-se e sorveu um gole de uísque antes de ordenar os pensamentos. - Aquilo que eu tinha em mente de início era ir a Meca disfarçado de peregrino e esconder-me
no meio da multidão de fiéis para ouvir e observar Aazim. Depois, com base naquilo que visse e ouvisse, avaliaria a probabilidade de ser ele a Besta que está a perpetuar
a vingança de sangue. Se for mesmo inocente, deixo-o em paz e parto à procura do verdadeiro inimigo. Por outro lado, se houver na minha mente a mínima dúvida que
seja quanto à inocência dele, tratamos de o raptar e trazemo-lo para ser julgado perante os seus acusadores. Só que agora já não dispomos mais da opção de o sacar
de lá. Seria demasiado arriscado. Aquela cidade é uma armadilha mortal para os infiéis. Tenho de sopesar bem as probabilidades de ele ser culpado ou inocente, e,
se a balança pender contra ele, então terei de o executar ali mesmo e deixar o corpo a apodrecer em Meca.
- Se fosse a ti, Hector, ia direitinha lá e eliminava-o sem perder tempo com conversas ou remorsos na consciência, o que, deixa que te diga, não faz nada o teu
estilo - opinou Nastiya. - Mas peço-te, com lágrimas nos olhos: para quê correr riscos? Se o matares e depois vieres a descobrir que ele era o homem errado e estava
inocente, seria uma grande pena e já podíamos verter uma lágrima por ele ou acender-lhe uma vela, mas pelo menos assim já não restaria mais nenhum Tippoo Tip no
mundo. Não seria uma grande perda, não achas?
- Claro que concordo contigo, flor do meu coração. - - sorriu-lhe com ternura. - Mas sabes bem que às vezes o H consegue ser muito tolo e obstinado.
- É homem. - Nastiya encolheu os ombros e soltou um suspiro de resignação. - E todos os homens conseguem ser muito tolos e obstinados.
- Nazzy, sabes bem a profunda afeição, não, a profunda veneração que tenho por ti, mas... - começou Hector por dizer, mas ela interrompeu-o com um gemido.
- Não me venhas com tretas, Hector Cross. Pronto, queres andar para aí com pezinhos de lã, é? Pois muito bem! Eu e o Paddy respeitaremos a tua decisão, como sempre.
Mas depois não atires as culpas para cima de nós se esse tal Grande Redentor se virar contra ti e te esmagar os tomates.
26
Só depois de decorridas outras quarenta e oito horas é que Hector ficou satisfeito com os preparativos e decidiu que estavam prontos para fazerem a mudança de
Londres para Abu Zara. Após o anoitecer, a coluna composta pelos dois enormes camiões alugados para o transporte das bagagens foi enviada da casa de Belgravia para
o aeroporto de Farnborough, onde o jato Boeing da Bannock Oil os aguardava para receber a carga.
Hector e os seus convidados jantaram no conforto do lar e só depois vestiram roupas mais confortáveis para viajar. Hector voltou ao compartimento secreto por
trás da estante no estúdio. Primeiro pegou na pistola automática de 9 mm e em dois carregadores extra, bem como em mais cem munições de reserva. Enfiou a pistola
no coldre axilar de libertação rápida. Deu-lhe uma palmadinha e sorriu. Era uma sensação agradável e reconfortante. De seguida, pegou na caixa onde se lia "Passaportes"
e escolheu três deles: um saudita, outro iraquiano e o terceiro de Abu Zara. Fechou e trancou o compartimento secreto e desceu para a entrada da casa, onde o motorista
aguardava com o motor do Rolls Royce em funcionamento.
Houve uma breve luta de poder entre Nastiya e Hector para disputar quem iria levar Catherine ao colo no curto percurso até ao aeroporto. Nastiya jogou o seu trunfo
com um comentário sarcástico relativo ao facto de os verdadeiros homens ingleses nunca carregarem bebés ao colo. Sentou-se no lugar da frente, ao lado do motorista,
com a criança ao colo, e cantou-lhe canções de embalar em russo, numa voz de surdina. Catherine não emitiu um único gemido durante toda a viagem. Bonnie e as outras
amas seguiram noutro veículo atrás do Rolls Royce.
A coluna de veículos seguiu para a pista de aterragem e parou por baixo da asa do jato executivo Boeing. A bordo do avião estava uma jovem anglo-indiana da Agência
de Fronteiras do Reino Unido, que processou as formalidades de imigração com grande eficiência e, poucos minutos depois, o jato já rolava para a pista principal.
Assim que levantaram voo, Nastiya, rodeada de todas as outras mulheres a bordo, deitou Catherine na alcofa para dormir.
Quando Nastiya voltou para junto dos homens para uma bebida antes de dormir, enroscou-se como uma gata no lugar ao lado de Paddy e falou-lhe de uma forma muito
sedutora. - Por acaso sabes o quanto detesto esperar nas filas de aeroporto, marido meu que tanto adoro? - murmurou-lhe ao ouvido. - Portanto, se me amas de verdade,
devias comprar-me uma destas máquinas.
- Um jato executivo Boeing, certo? Provavelmente custam à volta de duzentos milhões de dólares. Ainda queres um?
- Já mudei de ideias. Podes-me levar para a nossa cabina e provar-me o teu amor de outra maneira.
27
Pouco mais de sete horas depois, aterraram em Abu Zara e um dos supervisores do aeroporto foi ao encontro do jato na pista. Fazendo uso de balizas luminosas,
orientou o piloto em direção ao hangar das aeronaves da família real. Estacionaram ao lado do novo Boeing 747-8 do emir. Os Boeings de menor dimensão, pertencentes
às esposas dele, estavam alinhados atrás da aeronave maior. A Bannock Oil ou qualquer pessoa associada à companhia gozava de um estatuto altamente privilegiado em
Abu Zara.
Havia um pequeno comité de receção da Cross Bow Security à espera na base da escada de desembarque para lhes dar as boas-vindas. Era encabeçado por Dave Imbiss
e Tariq Hakam, que envergavam os elegantes novos uniformes em tom castanho-claro que Nastiya tinha concebido. Tariq mal conseguiu disfarçar o seu deleite ao ver
Hector descer agilmente a escada.
Há muito tempo, quando Hector ainda era major no SAS, o Serviço Aéreo Especial britânico, Tariq Hakam tinha sido destacado como intérprete e guia local para a
unidade de Hector no Iraque. Tinham-se dado bem desde o primeiro dia, quando haviam deparado com uma emboscada e se viram obrigados a lutar para poderem escapar.
Tariq estivera ao lado de Hector no terrível dia do atentado bombista na berma da estrada. Quando Hector abrira fogo contra os três insurgentes árabes que tinham
colocado a bomba e pareciam estar prestes a ativar um dispositivo suicida, Tariq cobrira os disparos de Hector e abatera um dos inimigos. Quando Hector renunciara
à sua comissão no SAS, Tariq acompanhara-o e dissera-lhe: "És meu pai. Para onde fores, também eu vou." Nesse momento, estava em sentido à frente de Hector e cumprimentou-o
com uma longa vénia, de mãos enlaçadas sobre o coração. - Que o amor de Alá te proteja de todos os perigos, meu pai - disse baixinho em árabe.
Contrariando todas as regras do protocolo, Hector apertou-o num forte abraço e, numa voz sufocada pela emoção, respondeu-lhe em inglês: - Tariq, meu velho tratante!
Céus, como eu tinha saudades tuas.
Tendo ouvido aquela saudação da boca de Hector em tantas ocasiões ao longo dos anos, Tariq sabia que era uma das mais profundas expressões de estima na língua
inglesa. Sorriu de prazer e retribuiu o abraço, afastando-se depois para o lado para permitir aos outros membros da Cross Bow Security aproximarem-se e cumprimentarem
Hector. Hector conhecia-os bem a todos. Tinha chefiado alguns deles até ao interior da Puntlândia, para resgatar a filha mais velha de Hazel, e tinham criado fortes
laços no calor do combate.
Dave Imbiss era agora o adjunto de Paddy O'Quinn na Cross Bow. Dave dava a impressão de ser jovem e inocente, mas cumprira duas comissões de serviço na Marinha
americana e ostentava uma fileira de medalhas de fita no peito para o provar. Na fase inicial da Cross Bow, Hector, que sempre tivera bom olho para escolher vencedores,
selecionara-o de entre os demais. Dave era astuto e forte. Aquilo que parecia ser adiposidade juvenil era na verdade musculatura rija. Dave vira homens morrer e
ele próprio despachara uma série deles numa longa viagem sem retorno. Ele e Hector deviam um ao outro muitas das suas sete vidas. Enquanto davam um aperto de mão,
Hector perguntou: - E então, este esconderijo que arranjaste é realmente seguro, Dave?
- Como um couraçado, chefe.
- Não me expliques. Mostra-me, mas é.
Subiram para o todo-o-terreno Hummer com camuflagem cor de areia e Dave conduziu-os do complexo do aeroporto para o deserto aberto, com os dois camiões de bagagem
seguindo imediatamente atrás. A estrada era de quatro faixas, retilínea e de superfície reluzente como vidro. À semelhança da cidade etérea que se entrevia ao longe
na neblina leitosa, tinha sido construída com os dividendos de concessão dos direitos de exploração do petróleo que jazia muito em baixo das areias do deserto; o
petróleo no qual Hazel Bannock tinha apostado a sua fortuna e reputação quando estivera ao leme
Bannock Oil. Dave conduzia a grande velocidade ao longo da costa do golfo. A praia era de areia branca como ossos ressequidos pelo sol e as águas mais além eram
de um surpreendente misto de azuis e verdes, mudando de tonalidade à medida que o leito marinho se aprofundava. O céu por cima apresentava-se completamente límpido
e de um tom azulado tão luzente que causava ardência nos olhos.
Quanto mais se aproximavam da Cidade de Abu Zara, mais alto os edifícios pareciam elevar-se em direção ao céu: torres de vidro e betão cor de creme. Dave Imbiss
apontou para um bastante afastado dos outros.
- Ali está! Seascape Mountains, o novo castelo de fadas da pequena Catherine - disse ele a Hector. Saiu da autoestrada principal no cruzamento seguinte.
- Encosta e para por um minuto, por favor, Dave - disse Hector. Havia um par de binóculos pousados no tabliê por baixo do para-brisas. - Emprestas-mos por uns
momentos? - Estás à vontade, Heck. Assim que o Hummer parou, Hector apeou-se e apoiou-se sobre o capô do motor, focando os binóculos no edifício altíssimo. Observou
a configuração exterior da estrutura e depois perscrutou os espaços circundantes. O edifício central propriamente dito estava rodeado de extensos jardins paisagísticos,
relvados bem cuidados e fontes, maciços de tamareiras e outras plantas exóticas. O perímetro era protegido por uma paliçada dupla de arame farpado. Do outro lado
destes jardins havia um complexo separado, constituído por edifícios de serviços de apoio e pelos alojamentos dos empregados, localizados de forma discreta num condomínio
fechado e vigiado por guardas.
- Visto daqui, parece ser o lugar perfeito - admitiu Hector. Voltou a subir para o Hummer e avançaram até aos portões principais de Seascape Mountains. Os guardas
no posto de controle foram corteses mas minuciosos. Examinaram os seus documentos com grande atenção, inclusive o passaporte da bebé Catherine. Depois de concedida
a autorização para entrarem no recinto, Dave I parou no meio dos jardins e todos eles esticaram os pescoços para olharem o edifício. Dave indicou a Hector os discretos
painéis de aço que os seus trabalhadores já tinham colocado sobre as janelas do último piso. Destinavam-se a defletir granadas-foguetes oa quaisquer outros dispositivos
explosivos disparados do recinto en baixo ou da praia mais além. Hector advertira Dave para o perigo das granadas incendiárias que a Besta usara para destruir Brandon
Hall e não queria correr o risco de uma repetição desse cenário.
Havia outro guarda postado à entrada do parque de estacionamento subterrâneo. O homem verificou se a matrícula do Hummer correspondia àquela que lhe tinham comunicado
por telefone dos portões principais. Subiram da cave no elevador exclusivo, destinado ao último piso. Quando Hector saiu do ascensor para o átrio de acesso ao apartamento,
compreendeu de imediato por que razão
o príncipe Mohammed exigira um valor tão extravagante pelo arrendamento, e concluiu que o montante não tinha sido excessivamente inflacionado por mero capricho.
Havia uma dúzia de empregados domésticos de túnicas brancas e tarbuches escarlates com borlas pretas alinhados em fila e virados para as portas do elevador. Saudaram
Hector com uma mesura respeitosa e depois desapareceram em silêncio nas áreas interiores do vasto apartamento.
- Já sei o que vais perguntar, chefe - disse Dave Imbiss.
- Todos eles foram minuciosamente investigados. - Assumo a responsabilidade por cada um deles.
A decoração interior do apartamento tinha sido concebida por um famoso gabinete italiano de design de interiores. Havia doze suítes, duas salas de jantar dotadas
das respetivas cozinhas, três salões, um ginásio equipado com prodigalidade, dois quartos de brincar e uma sala de cinema. Ademais, como Dave Imbiss explicou, havia
espaço para acomodar até vinte e cinco empregados domésticos no complexo ao lado, separado por portões.
Catherine dispunha do seu próprio quarto de criança, bastante espaçoso, com os aposentos de cada uma das amas situados de ambos os lados, para assim poderem acorrer
de imediato ao primeiro gemido da bebé. No telhado havia uma plataforma de aterragem para helicópteros, uma piscina, um jardim com painéis solares e uma área de
lazer equipada com bar e grelha de churrasco. Tinha-se uma visão desimpedida sobre a baía até ao centro da Cidade de Abu Zara. Na direção oposta estendiam-se as
águas abertas do golfo, com os triângulos brancos das velas dos dhows dispersos como flores de margarida na imensidão azul. - Já que temos de viver enclausurados
como porcos, acho que esta pocilga terá de servir. - Foi o comentário irónico de Hector, que convocou de imediato um conselho de guerra para a sala de cinema.
28
Hector expôs o seu plano de ação a Paddy, Nastiya, Dave Imbis? e Tariq. E fê-lo regendo-se pelo princípio de conhecimento estrito: só seriam informados os que
estavam diretamente envolvidos, e nem mesmo os outros principais operacionais confiáveis da Cross Bow seriam postos ao corrente.
Para a primeira fase da operação, Hector e Tariq iriam disfarçar-se de peregrinos e viajariam para Meca num dos muitos voos comerciais disponíveis. Tariq tratara
já das reservas do voo. fazendo-se passar por um indivíduo sem quaisquer ligações à Bannock Oil. Pagou com riais sauditas, de modo que não deixou nenhum rasto de
cartões de crédito. Ambos viajariam do Dubay para Jidá, e daí apanhariam um dos autocarros públicos até à cidade sagrada. Aproximava-se o mês islâmico do Dhu al-Hijjah,
a estação alta da peregrinagem, e durante esse período Meca estaria apinhada de centenas de milhares de fiéis. Hector e Tariq seriam engolidos pelas multidões e
ficariam ocultos à vista desarmada.
Tariq também tomara a precaução de reservar alojamento num dos caravançarais mais baratos da cidade, onde partilhariam um dormitório comunal com outros peregrinos,
por menos de vinte dólares por noite. A Besta nunca suspeitaria que Hector Cross se esconderia num tal pardieiro infestado de pulgas.
Estes planos deixaram a Hector pouco menos de três meses de preparação antes de efetuarem a viagem a Meca. Tinha consciência de que o seu árabe se tinha tornado
ligeiramente afetado e enferrujado e que não convenceria um interrogador astuto. A tez bronzeada do seu rosto e dos braços atenuara-se e o uso de maquilhagem não
resistiria a um escrutínio atento.
Mais importante ainda, a sua forma física tinha-se deteriorado um pouco e sabia que já não estava apto a combater. Era essencial que se robustecesse. Dave Imbiss
e Tariq tinham planeado ajudá-lo e corrigir todas essas deficiências.
Hector passou uma noite no luxuoso apartamento do altíssimo edifício de ar rarefeito de Seascape Mansions. Na manhã seguinte, despediu-se de Catherine com um beijo
e, acompanhado de Tariq, juntou-se à equipa de trabalhadores de um empreiteiro saudita cuja empresa estava a construir mais outro arranha-céus no litoral de Abu
Zara.
O governo de Abu Zara encarava com desagrado a formação de sindicatos no emirado. O emir, em particular, desejava impor os seus próprios termos e não se submeter
às exigências dos seus subordinados. Regendo-se por este exemplo vindo de cima, os capatazes da empresa Construções Khidash não estavam demasiado preocupados com
os direitos dos seus operários, fossem eles direitos humanos ou de outra índole.
As condições de alojamento eram primitivas, o trabalho brutal: dezasseis a dezoito horas diárias, sete dias por semana, sob um sol abrasador, a carregar sacos de
cimento ou de agregados de pedra britada ao longo de dezenas de metros de andaimes altos, ou a trabalharem de picareta e pá nos profundos alicerces das obras até
ficarem com os músculos doridos. O rosto e os braços de Hector adquiriram por fim uma tez escura devido à exposição ao sol. Os seus companheiros de trabalho eram
a escória da humanidade. Os seus modos careciam de qualquer sofisticação e exprimiam-se numa linguagem grosseira e coloquial. Hector depressa recuperou a sua fluência
perdida. Aguentou estoicamente as três semanas no estaleiro de obras da Khidash antes de se mudar com Tariq para a principal instalação da Bannock Oil no deserto,
cerca de cento e cinquenta quilómetros a sul. Ocupavam aí três a quatro horas por dia no campo de tiro, a aprimorarem a precisão da pontaria com pistola e espingarda.
Graças aos seus contactos no exército americano e ao seu engenho para obter armas, Dave Imbiss tinha localizado um Sistema Semiautomático de Fuzil de Precisão
Ml 10 SASS. Hector servira-se da sua posição como diretor e enviara o jato da Bannock Oíl para recolher esse armamento na base principal da Marinha americana no
Afeganistão. Após umas quantas horas de prática, Hector decidiu dispor uma linha de meia dúzia de bolas de ténis amarelas no topo de uma duna. Considerava que uma
bola de ténis serviria de alvo razoável pelo facto de ser um pouco mais pequena do que um cérebro humano. A uma distância de trezentos e cinquenta metros medidos
com exatidão, conseguiu fazer voar cada uma das bolas com seis disparos feitos em rápida sucessão.
O Ml 10 SASS, com a sua mira ótica de enorme precisão, pesava menos de doze quilos. Quando desmontado, os seus componentes podiam ser ocultados de forma eficaz
e carregados por dois homens. Do outro lado da estrada onde se situava a mesquita em Meca onde Aazim Muktar pregava havia um pequeno parque público com pouco mais
de um hectare de extensão. Tariq fizera já o reconhecimento do terreno e encontrara uma posição ideal nesses jardins sobrejacentes ao percurso que o mulá percorria
diariamente entre a sua casa e a mesquita. Tariq medira o trajeto a passo e obtivera uma distância de 210 metros. Mesmo tratando-se de um alvo em movimento, seria
um tiro certeiro para Hector.
Obviamente que a parte mais difícil seria contrabandear o Ml 10 SASS para Meca. Tariq tinha cultivado um contacto com uma empresa de transportes que durante a
estação da peregrinação transportava todos os dias milhares de toneladas de carga do aeroporto de Jidá para a cidade de Meca. Esta carga era sobretudo constituída
por produtos alimentares perecíveis. No entanto, Tariq estava convencido de que conseguiria fazer passar o fuzil assim que o desmontasse nos seus componentes, os
quais poderiam ser rotulados de peças sobressalentes para maquinaria mais pesada como unidades de ar condicionado ou ascensores. Dave Imbiss estava a trabalhar em
estreita colaboração com ele neste projeto. Também tinha muitos contactos na Arábia Saudita que poderiam ser subornados ou persuadidos a ajudá-los. Tudo isto não
passava de um planeamento a longo prazo. Havia imenso tempo para elaborar um esquema infalível. O plano final só seria concluído depois de Hector tomar a decisão
de matar o mulá.
Os últimos trinta dias antes de partirem para Meca foram ocupados com o processo final de preparação física que Hector se Impusera a si e a Tariq. Dave Imbiss
enviou um dos seus treinadores de caraté para a base. Esta criatura era mais uma máquina do que um ser humano. Levou Hector aos seus limites físicos e depois exigiu
ainda mais dele, mostrando pouca consideração pela posição ou estatuto dele, ou tão-pouco pelo facto de Hector ter quase o dobro da sua idade. No final, Hector ganhou
o respeito dele da maneira mais árdua, ensinando ao jovem lobo a caminhar a uma distância acautelada do líder da matilha.
Por ordem de Hector, todas as noites o helicóptero levava-os aos três para o deserto em equipamento completo de combate. Lançavam-se de paraquedas de baixa altitude
e depois corriam cerca de quarenta quilómetros de regresso à base, sempre com equipamento completo e carregando os paraquedas.
No início do treino, foi mais difícil para Hector do que para os dois homens mais jovens. Contudo, à medida que recuperava rapidamente a sua melhor forma, começou
a apreciar aquela brutal rotina física. Dormia um sono profundo e sem sonhos. O terrível e doloroso vazio deixado por Hazel começava a fechar-se. Podia agora, por
fim, recordá-la com alegria e não com um desespero angustiante. Sabia que ia vingar a morte dela, e talvez ela pudesse repousar com mais paz assim que ele concretizasse
esse objetivo.
Enquanto o seu corpo recuperava as forças, também a sua relação com Tariq se fortalecia. Ambos se sentiam tão próximos um do outro como há muitos anos. Tinham
partilhado tanto e vivido juntos tantas situações difíceis. Haviam combatido ombro a ombro no campo de batalha. Ambos tinham perdido uma esposa amada às mãos da
insensível crueldade da Besta. Daliyah, a mulher de Tariq, morrera carbonizada juntamente com o filho bebé sob os escombros da sua casa. O facto de ambos terem vivido
tragédias idênticas fortalecia o vínculo que os unia.
Hector descobriu que conseguia falar a Tariq acerca da morte de Hazel como não era capaz de fazer com mais ninguém, nem nem com Paddy ou Nastiya. Hazel acompanhara-os
na expedição à Puntlândia para resgatar a sua filha Cayla da fortaleza do Khan Tippoo Tip. Tariq testemunhara a sua coragem e resistência física, que igualavam as
dos mais duros operacionais da Cross Bow. Taric desenvolvera um profundo respeito e admiração por Hazel e querer saber todos os pormenores da emboscada que a Besta
lhe preparara. Ouviu com atenção enquanto Hector explicava como o ataque fora levado a cabo. No final do relato, Tariq inclinou a cabeça num gesto solene e manteve-se
em silêncio durante algum tempo enquanto contemplava o deserto do topo da duna onde ambos estavam a repousar. Depois tossiu, escarrou ruidosamente e cuspiu uma bola
amarelada de fleuma que atingiu a areia e rolou pela duna. Observaram em silêncio enquanto ela avançava pela encosta até alcançar o sopé da duna, e depois Tariq
perguntou: - Mas como é que eles sabiam que vocês seguiam naquela direção?
A pergunta apanhou Hector de surpresa. - Os dois suínos na moto devem-nos ter seguido quando saímos de Harley Street Provavelmente ligaram para o condutor mascarado
da furgoneta, que seguia mais à frente - explicou.
- Sim, isso já percebi. Mas como é que os motociclistas sabiam que tu e a Hazel iam ao médico dela naquela manhã? Quem mais sabia que ela tinha uma consulta lá?
Hector olhou-o fixamente durante alguns segundos e depois praguejou baixinho. - C'os diabos! Tens razão. Ninguém sabia, à exceção da Hazel, da secretária dela
e de mim.
- Tens confiança nessa secretária?
- Trabalhou para a Hazel durante muitos anos. É impossível ter sido ela. Apostava a minha vida nisso!
- Alguém sabia - disse Tariq numa voz firme. - É a única explicação para o que aconteceu.
- Não tenho andado a pensar direito. - A expressão no rosto de Hector era sombria. - Claro que tens razão. Certamente havia mais alguém que sabia. Eu deveria
ter investigado isso de imediato. Estou a ficar velho, não estou, amigo?
- Não, Hector. Tinhas acabado de sofrer um golpe duríssimo com a perda da Hazel. Quando eles mataram a minha Daliyah e o nosso bebé, andei durante quase um ano louco
como um cão nervoso. Por isso, compreendo o que te aconteceu. Já passei por isso antes de ti.
Quando voltar a Londres, alguém vai ter uma morte bem terrível - disse Hector baixinho.
- Mas, antes disso, tu e eu temos de seguir o rasto de sangue que nos conduz a Meca. - Pousou a mão no braço de Hector.
- Uma coisa de cada vez. Mas, no final, acabarás por encontrar quem te fez essa coisa terrível. Sei-o do fundo do coração. Gostaria de estar contigo quando encontrares
o culpado.
Mantiveram-se sentados em silêncio durante algum tempo
Hector pensou no vínculo que os unia e que se fortalecera ao longo dos anos, e recordou a si mesmo que o amor platónico de um homem por outro era, na verdade, uma
das experiências mais nobres da vida.
Aqui está outra pessoa à qual posso confiar a minha própria vida,
pensou, o que o ajudou a reforçar a sua determinação em seguir em frente com o plano delineado.
29
Seis dias depois, quando Hector e Tariq entraram a bordo do voo lotado do Dubai para Jidá, ambos estavam em excelente forma física. A pele de Hector escurecera
por causa do sol e o seu rosto exibia uma barba negra e encaracolada. Viajavam apenas com o essencial, sem armas nem dispositivos eletrônicos, nem mesmo telemóveis.
Tudo o que levavam eram os seus bilhetes de regresso, os passaportes e um punhado de notas engelhadas e sujas que cada um deles guardara no cinto do dinheiro atado
à cinta por baixo da túnica. Os artigos básicos de higiene pessoal e as roupas estavam recolhidos em pequenas trouxas de pano.
O avião tinha sido fretado especialmente para os peregrinos: um velho Fokker de motor turbopropulsor a operar a partir de um aeroporto secundário, reservado aos
voos nacionais. O ar condicionado funcionava de forma precária e o odor de corpos suados na cabina era tão intenso que trazia as lágrimas aos olhos. Os assentos
eram estreitos e não almofadados. O espaço para acomodar as pernas era tão limitado que Hector se viu obrigado a ficar com os joelhos quase encostados à barba. A
criança na fila à sua frente urinou no chão durante a descolagem e a poça escorreu para debaixo dos pés de Hector. O voo durou três horas, mas pareceu-lhes trinta.
Após os trâmites e formalidades alfandegários em Jidá, tiveram de esperar sete horas até conseguirem arranjar lugares a pé a bordo de um autocarro público para
Meca. O veículo avariou duas vezes antes de chegar à Cidade Sagrada, muito depois da meia-noite. O hotel onde Tariq reservara alojamento para ambos estava longe
dos esplendores de mármore pintado das áreas centrais da cidade. Estava escondido num emaranhado de ruas estreitas e sinuosas. Partilharam um dormitório comunal
com doze outros peregrinos. Nem mesmo os sons dos roncos e peidos conseguiram manter Hector acordado por muito tempo. O bulício na divisão iniciou-se antes da alvorada.
Hector esperou pela sua vez para usar a única latrina e depois lavou-se com água fria, enchendo um prato de estanho que estava acorrentado à base da única torneira.
Assim que vestiram túnicas lavadas, desceram para a rua malcheirosa e estreita, levando as magras trouxas com as suas posses.
Tomaram um pequeno-almoço de pão achatado, demasiado condimentado com especiarias, numa das bancas na berma de estrada e depois caminharam penosamente em direção
ao centro da cidade.
A família real saudita tinha investido milhares de milhões de dólares provenientes dos dividendos da concessão dos direitos de exploração petrolífera na glorificação
deste que era o lugar mais sagrado do Islão. No meio elevava-se um imponente aglomerado de pináculos, cúpulas, minaretes, edifícios e praças, tudo revestido de mármore
e folha de ouro. Todas estas construções circundavam a mais venerada mesquita do Islão, a Masjid al-Haram, e o santuário da Caaba, ambos erigidos há mil e quatrocentos
anos pela mão do próprio profeta. Todo o verdadeiro muçulmano se vira na direção destes monumentos quando reza cinco vezes ao dia.
No entanto, só em Meca existiam centenas de mesquitas menos veneradas, muitas delas datando dos tempos do paganismo. Era numa dessas mesquitas menores que Aazim
Muktar pregava. Tratava-se da mesquita Masjid Ibn Baaz, localizada na extremidade ocidental do bairro Azeeziyyah. Vista do exterior, parecia ser um edifício muito
moderno, embora Tariq tivesse explicado a Hector que tinha mais de mil anos de idade e era muito venerada pelo grande número de homens santos e famosos que haviam
rezado e pregado nos seus recintos.
Entraram no parque público do outro lado da rua, em frente à mesquita. Era um terreno com pouco mais de um hectare de solo árido e ressequido pelo sol, mas muitas
centenas de peregrinos se tinham congregado aí, à espera de visitarem a mesquita ao fundo da estrada para assistirem ao dhuhr, as orações do meio-dia.
Tariq conduziu Hector até à pequena colina ligeiramente elevada no centro do parque, onde crescia um maciço de eufórbiü espinhosas do deserto. Acocoraram-se lado
a lado sobre as ervií acastanhadas, entre os aglomerados de fiéis à espera. Partilharam uma porção de húmus e falafel envoltos em pão não levedado Depois beberam
chá leitoso frio de uma garrafa de litro que Tariq tinha comprado numa banca de rua. Tariq limpou com cuidado o gargalo à bainha da túnica antes de passar a garrafa
a Hector.
Enquanto comiam, Tariq indicou-lhe a área, propícia para matar o inimigo, que se estendia à frente deles, e Hector avaliou-a com a visão de um bom atirador.
-- Achei que tu e eu podíamos assumir as nossas posições no meio daqueles arbustos - disse Tariq. Virou a cabeça e apontou com o queixo na direção do maciço de
eufórbias. - É suficientemente denso para nos esconder aos dois e à arma. De manhã cedo. poucas pessoas vêm para estes jardins. Por volta das seis da manhã Aazim
Muktar sai de casa lá no complexo habitacional, a quatrocentos metros daqui. - Apontou a Hector o edifício de telhado plano. - Costuma descer pelo lado oposto da
estrada, rodeado de muitos dos seus discípulos.
- Achas que vou conseguir distingui-lo no meio dos seus seguidores? Não quero desperdiçar o primeiro tiro certeiro no homem errado.
- Vais vê-lo hoje. Assim que o vires, nunca mais te esquecerás dele. Ele destaca-se no meio de qualquer multidão - assegurou-lhe Tariq.
- Continuará a ser um alvo em movimento - refletiu Hector. mas Tariq refutou-lhe as hesitações.
- Se fores paciente, não precisa de ser assim. Há sempre suplicantes à espera dele ali, ao longo da estrada. Prostram-se no caminho dele e imploram pela sua bênção;
outros estendem-lhe os filhos doentes para que ele os toque e os cure. Aazim Muktar não recusa atender nenhum deles e para sempre para os ouvir. Será um alvo estacionário
e impossível de falhar para um atirador como tu. - Tariq olhou por cima do ombro. - Quando ele cair ao chão, vai-se gerar uma grande confusão e um pandemónio; só
precisas de deixar o fuzil e fugir pelo portão das traseiras do jardim. Há uma paragem de autocarro no exterior do portão, e também há sempre muitos riquexós motorizados
na rua à espera de clientes. Um deles levar-te-á para longe daqui muito rapidamente.
- Sim, estou ciente disso. O ruído do disparo deverá ecoar naqueles edifícios altos do outro lado da rua. Ninguém saberá ao certo de onde veio o tiro. Isso vai-me
dar um bom avanço para escapar sem problemas.
- Ocupemo-nos de uma coisa de cada vez. Tudo isto só acontecerá quando tiveres visto e ouvido Aazim Muktar hoje, e se chegares à conclusão de que é ele realmente
a Besta que deu a ordem para matar a Hazel. - Tariq falou muito baixinho, pois havia muitos estranhos acocorados a poucos passos deles que poderiam ouvi-los.
- Onde achas que Aazim Muktar está agora? Não disseste que ele costuma vir todos os dias para a mesquita de manhã cedo? - perguntou Hector.
- Vem todos os dias de manhã, por volta das seis, sem falta. Fica lá todo o dia. Preside às orações cinco vezes ao dia, como estipulado pelo Segundo Pilar do islão
- explicou Tariq. - Costuma pregar duas vezes ao dia: uma vez após as orações do dhuhr ao meio-dia, e outra vez a seguir às orações de Isha ao anoitecer. Depois,
por volta das nove da noite, volta para junto da família em casa, acompanhado de muitos dos seus seguidores.
- Portanto, neste momento deve estar na mesquita, certo? - Está lá, de certeza. - Tariq verificou as horas no relógio de pulso. - Faltam quarenta minutos para o
meio-dia, por isso temos tempo. Podemos esperar e descansar aqui.
O sol era quente e o murmúrio das vozes das pessoas apinhadas à volta deles tinha um efeito entorpecente. Hector cedeu à sonolência. De repente, acordou com um sobressalto.
Não sabia bem quanto tempo tinha dormido e olhou rapidamente em redor. Tariq desaparecera. Sentiu uma pontada de ansiedade, mas depois avistou-o. Tariq vinha na
sua direção, avançando através dos grupos de peregrinos dispersos pelo terreno poeirento.
- Aonde foste? - perguntou Hector assim que Tariq se acocorou a seu lado.
- Ali. - Tariq apontou para os lavabos públicos à entrada do parque. - Fui dar uma mija.
- Devias-me ter dito. - Hector estava irritado. Encontravam-se no antro da Besta. Estavam em risco. Deveriam proteger-se sempre um ao outro, esse era um princípio
básico.
- Desculpa. Estavas a dormir. - Tariq sentiu-se ofendido com a reprimenda, mas tinha sido merecida. Hector conteve a irritação. Talvez estivesse a ser demasiado
suscetível. Além do mais. ele próprio também errara, pois não deveria ter adormecido. Taric sentou-se ao lado dele e Hector tocou-lhe ao de leve no ombro, num gesto
de reconciliação.
Soou por fim o cântico agudo do almuadem, que recitava o Adhan, a chamada para a oração, no minarete da mesquita no sopé da colina. Tariq levantou-se prontamente.
- Está na altura de irmos lá a baixo rezar - disse. Havia na sua voz um tom de ânsia que ele não conseguiu disfarçar. Hector levantou-se também e ambos se juntaram
ao mar de homens barbudos que se dirigiam para a mesquita. Deixaram as sandálias no pátio junto às portas principais do masjid e realizaram as suas abluções juntamente
com todos os outros fiéis. Depois, descalços e ritualisticamente purificados, entraram com a multidão no masjid e ajoelharam-se lado a lado sobre um dos tapetes
de lã virados na direção da Caaba.
Havia uma sensação palpável de expectativa que parecia ter-se apoderado de cada um dos elementos da congregação ajoelhada. Era quase como se cada pessoa ali presente
estivesse de respiração suspensa. Quando o mulá Aazim Muktar Tippoo Tip entrou no masjid, Hector deu por si a exalar e a relaxar em sintonia com todos os outros
fiéis.
Tariq tinha dito a verdade. Hector não teve a menor dúvida. Sabia que aquele era Aazim Muktar. O homem tinha uma presença que parecia reverberar através do grande
salão da mesquita. Emanava dele uma força interior. Hector não soube dizer se era uma força maligna ou benigna, mas era poderosa.
O mulá correspondia à descrição que lhe tinha sido feita: alto, magro e gracioso, com traços fortes, quase ferozes. Aquele homem podia ser um assassino, pensou Hector,
mas também havia muitos mais elementos que punham em causa as suas suposições. A boca era generosa, embora não suave. O olhar era perscrutador e direto, mas não
cruel. Hector apercebeu-se quase de imediato de que aquele homem era um enigma.
Aazim Muktar subiu para o minbar, o púlpito sobrejacente à congregação. Movia-se com graciosidade; o corpo por baixo da túnica esvoaçante era ágil como o de um belo
predador. Quando chamou os presentes para a oração, a sua voz alcançou cada canto do amplo salão e ecoou na cúpula em cima deles. Hector observou-o com fascínio
enquanto ele conduzia os fiéis através do ritual de prostrações e devoções. Deu por si dominado pela incerteza. Num dado momento, tivera a certeza de que aquele
era o homem que deveria matar, mas, meros segundos depois, as dúvidas assaltaram-no e minaram-lhe a determinação. As ondas de profunda reverência que emanavam dos
fiéis que o rodeavam toldavam-lhe o discernimento e faziam-no oscilar como um junco num rio sob uma brisa intermitente.
Sabia que não era possível, mas continuava a ansiar por uma oportunidade de confrontar aquele homem cara a cara, poder arrancar-lhe as camadas que ocultavam a sua
verdadeira identidade, alcançar o seu núcleo íntimo e saber, com toda a certeza, se era um santo ou um demónio. Apercebeu-se de que seria aviltante e degradante
para ambos se lhe preparasse uma emboscada e o abatesse de longe. Ansiava por uma prova infalível de que ele era ou um inimigo digno do seu aço ou um homem bondoso
e honesto que merecia o seu respeito.
As orações formais terminaram. Os fiéis ergueram-se para a prostração final e baloiçaram os corpos para trás, apoiados nos calcanhares. Uma nova onda de expectação
varreu as fileiras compactas e cada um dos rostos da congregação se virou para a figura imponente postada no minbar.
Aazim Muktar sentou-se perante eles. Ergueu o braço direito e começou a falar. O tom sonoro e persuasivo impôs-se a inclusive a Hector, o cético.
- Desejo falar-vos da Lei de Al-Qisas, a Lei da Retaliação, como foi estabelecida na Tora, no capítulo vinte e cinco do Êxodo, e posteriormente sancionada pelo
profeta Maomé na sura cinco do Corão.
"Al-Qisas é o direito de a parte agravada reclamar uma vida por outra, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé, queimadura por queimadura, ferida
por ferida e pisadura por pisadura
Hector sentiu um vento ártico percorrer-lhe a coluna vertebral. Talvez pelo facto de o texto que Aazim escolhera se aproximar demasiado da sua própria intenção
para ser simplesmente uma coincidência. Estava sentado ao fundo do salão apinhado e não dispunha de uma visão clara do rosto do mulá. Não podia ler-lhe a expressão
nem a luz nos olhos.
- Sabemos que esta sura do Corão foi transmitida ao Profeta diretamente do alto. Sabemos que no Hadiz existem registos de Maomé pondo em prática este aspeto da
lei da xariá. Num caso. quando a tia de Anas, um dos seus companheiros, partiu o dente a uma serva e a família dela exigiu uma compensação, Anas apelou ao Profeta
e pediu-lhe para intervir. "Amado Mestre", exclamou ele. "Ela tem mesmo de perder um dente?" Mas Maomé replicou "É a lei de Alá."
- Inshallah! - entoaram os fiéis em coro.
- No entanto, será por vontade de Alá e do seu Profeta que devemos ocultar a nossa sede de vingança sob o manto da lei divina? - perguntou Aazim Muktar numa voz
implacável.
- Será por essa razão que Alá, o Omnividente, o Omnipotente, nos ofereceu uma segunda escolha? É isso a multa ou punição pelo sangue derramado, ou Al-Qisas. A vítima
pode escolher aceitar um pagamento em dinheiro ou género para exonerar a culpa do ofensor. Nenhum sangue será derramado. A morte não precisa de ser paga com outra
morte, e a ira de Alá é aplacada.
Nota de Rodapé: Corpo de leis, ensinamentos, palavras ou atos de Maomé.
Fim da nota.
- Mashallah! - rejubilou a congregação. - Contudo, será a ganância um motivo mais nobre do que a vingança? Alguns dirão que não é esse o caso. Alá ofereceu-nos,
uma vez mais, uma terceira linha de ação. Essa escolha é o perdão.
- Allahu Akbar! Deus é grande! - clamaram os fiéis ao céu. - E todavia, se perdoarmos ao assassino, será de justiça que ele possa escapar impune do seu crime, talvez
para voltar a assassinar? Que nobreza de mente é exigida a um homem para deixar viver o assassino da sua amada esposa?
- Não! Deve morrer! - gritaram todos em fúria. Aazim Muktar estava a manipulá-los de forma habilidosa, servindo-se do método socrático, refutando o argumento ao
demonstrar o erro da sua conclusão. Hector não pôde deixar de admirar a subtileza dele. - Ora, se o assassino é morto, será que o seu irmão também tem o direito
de o vingar? Voltará para matar o filho da mulher morta? Porventura isto não acaba por mergulhar a humanidade num círculo vicioso de morte que gera uma nova morte?
Os fiéis começaram a trocar murmúrios entre si, confundidos e hesitantes. Aazim Muktar deixou-os debaterem-se com as suas próprias consciências durante alguns momentos,
antes de se apiedar deles. - Será possível que cada nova era encontre a sua própria moralidade? Talvez aquilo que era reto e justo há quinze mil anos já não o seja
hoje. - Alçou as mãos e prosseguiu num tom mais ligeiro e alegre. - Um dos preceitos não só do Sagrado Corão, mas também da Tora judaica e da Bíblia cristã, é que
no final dos tempos, antes de o mundo que conhecemos perecer e desaparecer para sempre, o Redentor ser-nos-á enviado à Terra por Deus. O Corão diz-nos que ele reinará
sobre nós durante nove anos de paz, amor e justiça, em que já não haverá crueldade nem maldade, em que o mal desaparecerá da face da Terra.
- Inshallah! - Há muitos que acreditam que esse tempo abençoado de perdão e justiça já chegou e que o Redentor já se encontra entre nós.
- Allahu Akbar!
Aazim levantou-se, fez o sinal da bênção sobre a congregação e depois desceu para o chão de mármore, desaparecendo através da porta por trás do minbar.
Os fiéis levantaram-se e avançaram para as portas da saída. O estado de espírito coletivo era de otimismo. Estavam empolgados e muito comovidos com aquilo que
tinham acabado de ouvir. Era uma maré humana tão densa que Hector deu por si a ser arrastado fisicamente pela multidão. Quanto mais se aproximavam das portas da
saída, mais Hector se sentia comprimido. Os homens mais perto de Hector eram todos altos e corpulentos, muitos deles tão altos quanto ele próprio. Era quase como
se tivessem sido escolhidos por esses atributos específicos.
Olhou em redor à procura de Tariq, mas não conseguiu avistá-lo. Certamente fora arrastado pela corrente de humanidade. Hector não estava particularmente preocupado.
Sabia que ele e Taric acabariam por se encontrar no pátio do outro lado das portas. No entanto, por esta altura já mal conseguia respirar e a pressão dos corpos
à sua volta era intensa. O rosto do homem à sua direita encontrava-se a meros centímetros do dele, e os seus lábios quase tocavam na orelha de Hector.
- Efêndi - disse ele baixinho, e Hector sobressaltou-se ao ouvir aquele termo árabe de respeito. - Por favor, não fique alarmado. Não queremos fazer-lhe nenhum
mal e não se encontra em perigo. Mas devo insistir para que venha connosco, por favor
- O uso do plural clarificou de imediato a situação a Hector Tinha quase a certeza de que todos os homens que o rodeavam estavam a trabalhar em conjunto. Calculou
que fossem pelo menos uns vinte. Era agora prisioneiro deles - tão certo como se já estivesse de mãos algemadas e de grilhetas nas pernas. Tentou avaliar as probabilidades
de sucesso. Talvez conseguisse derrubar dois, três ou mesmo dez deles, mas no final a superioridade numérica seria decisiva. Mesmo que conseguisse libertar-se do
meio da multidão, não faria a mínima ideia do caminho a seguir para escapar do labirinto da mesquita. Estava desarmado, numa cidade desconhecida de um país estrangeiro.
Todos se virariam contra ele. Sabia que não conseguiria ir muito longe. Não era o momento oportuno para desatar a fugir. Deveria esperar por uma oportunidade, até
que as probabilidades lhe fossem mais favoráveis.
- Para onde me levam? - Era uma pergunta estúpida, mas fé-la para ganhar tempo. Estava a pensar rapidamente. Onde raios estaria Tariq? Nele residia a sua melhor
hipótese de êxito. Era engenhoso e corajoso. Tariq encontrava-se em terreno familiar. Acima de tudo, Tariq era leal e dedicado.
- O mulá Aazim Muktar Tippoo Tip quer que saiba que é da máxima importância que lhe faça uma visita como seu convidado de honra. Deseja falar consigo. Ordenou-nos
que o levássemos a sua casa.
- Creio que me estão a confundir com outra pessoa - protestou Hector.
- Não há confusão nenhuma, efêndi. Sabemos quem você é. Hector remeteu-se ao silêncio; como forma de defesa, revelou-se um derradeiro esforço vão. Só lhe restava
esperar que Tariq se tivesse apercebido da situação difícil em que ambos se encontravam e descortinasse uma solução.
Foi então que ouviu um dos homens logo atrás de si avisar os companheiros em voz baixa: - Cuidado. Ele pode estar armado.
- Não. Estavam ambos desarmados. - A resposta convicta dada por outro dos árabes não continha a menor sombra de dúvida.
Hector sentiu-se aturdido assim que se apercebeu da real implicação daquela simples declaração. O homem usara o plural, referindo-se a Tariq e a ele próprio. Somente
Tariq sabia que ambos estavam desarmados, e isso queria dizer que Tariq lhes contara.
Tariq! Foi um grito silencioso de desespero, saído das profundezas da sua alma. O Tariq falou com eles. Ajudou-os a montarem-me uma armadilha. O Tariq é um traidor.
Deteve-se por completo. Foi imediatamente empurrado para a frente, sem brutalidade mas com firmeza. Os captores apertaram ainda mais o cerco à volta dele.
Quando é que ele fez isso? Esteve sempre comigo. Quando? Lembrou-se então. Tariq tinha-se afastado quando ele estava a dormir. Traidor! Entregou-me às mandíbulas
da Besta.
Soube então, com absoluta certeza, que ia matar Tariq; Tariq. que outrora ele amara como a um irmão. Tariq ia morrer e este pensamento deu-lhe determinação para
aguentar. Sentiu apoderar-se de si uma resolução fria. Ia matar ambos, Tariq e Aazim Muk- tar Tippoo Tip. Se morresse juntamente com eles, de bom grado acolheria
a morte, pois não havia mais nada neste mundo em que pudesse acreditar verdadeiramente.